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Educação em

Direitos Humanos III

Ministério da Educação Educação em


Universidade Aberta do Brasil Direitos Humanos
Universidade Federal do Espírito Santo
Aperfeiçoamento
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
Núcleo de Educação Aberta e a Distância

Educação em
Direitos Humanos III

Paulo Velten (org.)


Julio Pompeu (org.)

Vitória
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

Presidente da República Reitor Coordenador do curso de graduação em


Reinaldo Centoducatte Direitos Humanos na modalidade a distância
Ministro da Educação Paulo Velten
Diretora Geral da Secretaria de Ensino
Diretoria de Educação a Distância a Distância – SEAD Subcoordenador
DED/CAPES/MEC Ethel Leonor Noia Maciel Julio Pompeu

Secretaria de Educação Continuada, Secretária de Ensino a Distância - SEAD Revisor de Linguagem


Alfabetização, Diversidade e Inclusão Maria José Campos Rodrigues Claudeir Souza
Agatha Brandão
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LDI - Laboratório de Design Instrucional
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(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Laboratório de Design Instrucional


Educação em direitos humanos 3 / Paulo Velten (org.). - Vitória :
LDI coordenação Universidade Federal do Espírito Santo, Secretaria de Ensino a Distância, 2014.
Heliana Pacheco E24 167 p. : il.
José Otávio Lobo Name
Letícia Pedruzzi Fonseca Inclui bibliografia.
Priscilla Garone ISBN:
Ricardo Esteves
1. Educação. 2. Direitos humanos. I. Velten, Paulo.
Gerência CDU: 37:342.7
Giuliano Kenzo Costa Pereira
Patricia Campos
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Editoração e o Ministério da Educação. As opiniões expressas neste livro são de responsabilidade de seus autores e não representam
Antônio Victor Simões necessariamente a posição oficial do Ministério da Educação ou do Governo Federal.
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Paulo Caldas
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do regime geral de direito de autor no Brasil.
SUMÁRIO

1 FUNDAMENTOS HISTÓRICO-FILOSÓFICO DA EDUCAÇÃO EM


DIREITOS HUMANOS (EDH)
Dr. Daury Cesar Fabriz pág. 9

2 PARA FAZER DA EDUCAÇÃO AÇÃO DE DIREITOS HUMANOS


POR UMA EDUCAÇÃO DIREITOSHUMANIZANTE
Paulo César Carbonari pág. 30

3 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NAS ESCOLAS:


UM PROJETO A SER CONSTRUÍDO PELA COMUNIDADE ESCOLAR
Ana Maria Klein, Monica Abrantes Galindo e Raul Aragão Martins pág. 46

4 CONTRIBUIÇÃO À DISCUSSÃO SOBRE A IMPOSSIBILIDADE DO


“DIREITO DE TODOS”: O CASO DO CURRÍCULO MÍNIMO NACIONAL
Claudeir Aparecido de Souza e Débora Ceciliotti Barcelos pág. 61

5 EDUCAÇÃO AMBIENTAL PARA ALÉM DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL


Flavio Alves Barbosa e Vilma de Fátima Machado pág. 73

6 A ÉTICA ENTRE FINS E MEIOS: MAQUIAVEL


Júlio Pompeu pág. 103

7 A ESCOLA, O MÉDICO E O JUÍZ:


EDUCAÇÃO, BIOPOLÍTICA E PRODUÇÃO DE COLETIVOS
Cristiana Mara Bonaldi pág. 113
8 O DIREITO FUNDAMENTAL AO NÃO TRABALHO E A EDUCAÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS
Jair Teixeira dos Reis pág. 121

9 TRÁFICO DE PESSOAS ENQUANTO VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS


Alline Pedra Jorge Birol e Lucicleia Souza e Silva Rollemberg pág. 134

10 AS VIOLAÇÕES SISTEMÁTICAS AOS DIREITOS HUMANOS POR MEIO


DOS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO SELETIVA: O CASO DAS
POLÍTICAS PENITENCIÁRIAS CAPIXABAS
Humberto Ribeiro Júnior pág. 160

11 DIREITOS HUMANOS: COMO IDENTIFICAR SUAS VÍTIMAS E


SEUS VIOLADORES
Nara Borgo pág. 184

12 A LÓGICA DA EXCLUSÃO TEMÁTICA NO DEBATE POLÍTICO SOBRE


MÍDIA E DIREITOS HUMANOS
Edgard Rebouças, Victor Gentilli e Rafael Paes pág. 195

13 MUTAÇÕES DO CONCEITO DE ANISTIA NA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO


BRASILEIRA: A TERCEIRA FASE LUTA PELA ANISTIA
Paulo Abrão e Marcelo D. Torelly pág. 219

O MODUS OPERANDI DA DITADURA MILITAR E A SEGURANÇA NACIONAL


14
Paulo Velten pág. 239
15 UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO SOB A
ÓTICA CONSTITUCIONAL: OS DESAFIOS AINDA PRESENTES
Ricardo Gueiros Bernardes Dias pág. 248

16 LAS INMUNIDADES DE ESTADO EXTRANJERO Y LA PROTECCIÓN DE LOS


DERECHOS HUMANOS EN LA PAUTA DEL JUDICIARIO BRASILEÑO
Martha Lucía Olivar Jimenez e Valesca Raizer Borges Moschen pág. 275

17 A DIGNIDADE HUMANA COMO CRITÉRIO DE JUSTIÇA EM DECISÕES


DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Gilberto Fachetti Silvestre pág. 293

18 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: ESTRATÉGIAS PARA COMBATER


OS ESTEREÓTIPOS E PRECONCEITOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Carmelinda de Souza Oliveira pág. 315

19 DIREITOS HUMANOS E O PROFESSOR NA SALA DE AULA


Jane Fernandes da Costa pág. 336

20 FORMAÇÃO DOCENTE EM DIREITOS HUMANOS NO CURRÍCULO SUPERIOR DO


CURSO DE PEDAGOGIA DE UMA INSTITUIÇÃO PRIVADA DA REGIÃO SUL CAPIXABA
Irene Alexandra de Oliveira pág. 351

21 OS DIREITOS HUMANOS SOB A PERSPECTIVA DE CHAUÍ E SANTOS:


CONTRIBUIÇÕES PARA O CONTEXTO ESCOLAR
Roberta Silva de Andrade pág. 372
22 O MENOR/ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI E OS DESAFIOS
PARA UMA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Nina Mary Lopes Cunha e Marcelo Costa Hastenreiter pág. 284

23 CIGANOS: DIREITOS HUMANOS E EDUCAÇÃO


Daniela Simiqueli Durante pág. 401

24 ESTUDO DE CASO DE UM ALUNO AUTISTA: SUJEITO DE DIREITOS


Elaine Cristina Gireli Alves, Luzidélia Almeida Vidal Aguiar e Michele Anchesqui Nardoto pág. 416

25 VIOLÊNCIA URBANA NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS


Valdineia Gomes das Chagas pág. 430

26 DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA INCLUSÃO EDUCACIONAL


NO CONTEXTO DO ENSINO REGULAR
Marlene Aparecida da Silva, Penha Beltrame, Vanda Maria Moreira e Camila Côgo pág. 454

27 DESENVOLVIMENTO HUMANO NA PERSPERTIVA DA INCLUSÃO E IGUALDADE


Maria Aparecida Klippel e Wilsiane Hammer pág. 470

28 A INCLUSÃO DO CADEIRANTE ATRAVÉS DA ACESSIBILIDADE


Carla da Costa Rodrigues, Jéssica Moreira Cândido Guerra e Wagner da Cunha Oliveira pág. 480

29 DIREITOS HUMANOS E A PESSOA COM DEFICIENCIA:


PANORAMA NACIONAL DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA NO BRASIL
Lívia Matielo, Verônica Timoteo e Bárbara Ferreira pág. 495
Dr. Daury Cesar Fabriz
Doutor em Direito. Professor do curso de Direito da UFES e da Faculdade de
Direito de Vitória.

1
FUNDAMENTOS HISTÓRICO-FILOSÓFICO DA
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS (EDH)

Dr. Daury Cesar Fabriz

1. Pressupostos filosóficos dos direitos humanos:


arqueologia dos direitos humanos

A idéia em torno dos direitos humanos surge da confluência de várias fontes


– filosóficas, jurídicas e teológica – num imbricado jogo de várias concepções
em torno de leis universais, que se impõem acima de qualquer lei criada pelo
próprio homem.
Apregoam-se idéias universalizantes, direitos que possam alcançar todos
os indivíduos independentemente de nacionalidade, credo ou raça.
A noção de direitos humanos, que, em essência, representa o fruto das re-
flexões elaboradas pelo jusnaturalismo, encontra suas raízes no estoicismo, na
idéia judaico-cristã de uma legislação de origem superior às normas jurídicas
positivas. Todavia, a idéia e a possibilidade de declaração de direitos humanos
são recentes, originais e específicas em relação a um momento da história do
pensamento judaico ocidental. (ARNOUD, 1986, p. 74).
Não obstante, entender as diferenças entre os homens como algo plena-
mente aceitável, por ser uma consequência da própria natureza – contrariando
um dos pilares dos direitos humanos que é a igualdade de todos e todas –, o
pensamento grego, principalmente o aristotélico, apegava-se à seguinte idéia:
a existência de leis universais que regiam a vida de todos os homens, por
intermédio de princípios superiores às leis específicas de cada povo. Há nessa
concepção a idéia de um direito natural.
O pensamento cristão primitivo também desenvolveu sua noção de direi-
to natural. O direito natural era compreendido pelos padres da Igreja Católica
em perspectiva absoluta e relativa, sendo a primeira a melhor vertente, por se
referir àquele direito ideal que imperava antes que a natureza do homem fosse
viciada pelo pecado original. Direitos relativos à propriedade, ao matrimô-
nio, à submissão a um governo temporal e a um direito penal inserem-se na

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dimensão de um direito natural relativo, visto que inerentes às necessidades
básicas do homem, depois de sua queda. (MAGALHÃES, 1992, p. 29).
A defesa da igualdade de todos os homens numa mesma dignidade fica
bem clara na formulação de São Paulo, na sua Epístola aos Gálatas, cap. 3,
versículo 27-28, onde assim se manifesta: “Não há judeu nem grego, não há
escravo nem homem livre; todos sois um só em Cristo”.
Posteriormente, a idéia de direito natural será desenvolvida na obra dos
dois grandes doutores do pensamento católico: Santo Agostinho e São Tomás
de Aquino. Para o primeiro, as leis divinas (direito natural absoluto) eram
superiores às leis temporais e, em caso de conflitos, as últimas deveriam ser
declaradas sem efeitos. Os direitos naturais relativos, consequência do pecado,
deveriam estabelecer-se sob a orientação da Igreja, esta como guardiã da lei
eterna de Deus. (MAGALHÃES, 1992, p. 23).
São Tomás distinguia quatro classes de lei: a Lei Eterna, sendo esta a
razão de tudo, dirigindo todos os movimentos e ações do universo; a Lei Na-
tural, que possibilita ao homem distinguir o bem e o mal, e por tal razão deve
ser guia invariável e imutável da lei humana. Lei Divina, que vem a ser o ato
de vontade do governo temporal, devendo este observar os princípios da Lei
Eterna, refletido na Lei Natural. (MAGALHÃES, 1992, p. 31).
Entendia São Tomás que o indivíduo se encontrava no centro de uma or-
dem social e jurídica justa, devendo, no entanto, o direito laico, definido pelo
imperador, rei ou príncipe, submeter-se às leis emanadas de Deus.
A idéia de um direito natural irá povoar todo o pensamento que se
desenvolve com as várias mudanças que ocorrem a partir do século XVI, e
nas concepções de autores como Hugo Grotius, Hobbes, Spnoza, Pufendorf,
Rousseau, Locke, Kant, para citarem-se os mais expressivos, caracterizando-
-se como uma fase clássica dos direitos naturais. “Postulava-se a existência
de valores inerentes à condição humana e decorrente da própria natureza”
(DALLARI, 2010, p. 101).
No arcabouço dessas várias vertentes, podemos identificar uma caracte-
rística comum, que é a idéia de um direito universal, que transcende a lei par-
ticular de um determinado Estado. Do quadro paradigmático do direito natural
e da dicotomia direito natural e direito positivo nasce toda problemática em
torno dos direitos humanos fundamentais. (FABRIZ, 2003, p. 234).

11
Celso Lafer, levando em consideração as várias vertentes de reflexão em
torno da idéia de direitos naturais, e admitindo a diversidade de entendimen-
tos, afirma a possibilidade de se identificar um paradigma de pensamento,
referente ao direito natural. Dentre os vários pontos que viabilizam essa pos-
sibilidade, destacam-se os seguintes: a idéia de imutabilidade; universalidade;
a função de qualificar determinada conduta como boa, justa, má ou injusta,
determinando uma contínua vinculação entre norma e valor, importando uma
permanente aproximação entre direito e moral. O acesso a esses direitos dá-se
por intermédio da razão, da intuição ou da revelação. Daí o fato de seus prin-
cípios serem dados, e não postos em convenção. (LAFER, 1988, p. 36).
Nota-se que o direito natural, em relação ao direito positivado, apre-
senta-se como um sistema de valores, universais e imutáveis. Lafer distingue
dois planos na elaboração doutrinária dos direitos naturais: o ontológico e o
deontológico. Nesse sentido procede a seguinte análise:

A primeira acepção abrange a segunda, pois neste caso o ser do Direito


(ontologia) constitui-se como dever-ser do Direito Positivo (deontolo-
gia), na medida em que o dizer o Direito e o fazer a justiça são conce-
bidos como atividades sinônimas. A segunda acepção, no entanto, não
engloba a primeira. Com efeito, ao se admitir a existência de valores
universais e imutáveis, não se nega a presença de outros fatores, como
os sociais, políticos e econômicos, que influenciam a realidade jurídica.
O sistema de valores do Direito natural existe, no entanto, para exercer
uma função de controle em relação ao Direito Positivo. Daí a respon-
sabilidade de um dualismo entre o respeito à justiça e o respeito à lei
(LAFER, 1988, p. 36-37).

Depreende-se, do fragmento acima transcrito, que os planos do Direito


e da justiça se intercalam, na medida em que o Direito passa a ser pensado a
partir do paradigma do direito natural. Com base em seu sistema de valores,
possibilita a criação e aplicação do direito positivo, pondo em primeiro plano
o sentimento de justiça. (FABRIZ, 2003, p. 235).
As idéias em torno dos direitos inatos e o contratualismo permitiu a ela-
boração de uma doutrina do direito e do Estado a partir da concepção indivi-

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dualista da sociedade e da história. O jusnaturalismo chega ao seu apogeu com
o advento da ilustração. O entendimento de um direito racional, universalmen-
te válido, teve grandes desdobramentos com o constitucionalismo moderno.
A doutrina do direito natural, muito criticada por diversos flancos, nos
fins do século XVIII e na primeira metade do século XIX, por autores como
Edmund Burke, escola histórica alemã (com Savigny à frente), Marx e Engel,
dentre outros, entra em declínio.
Ensina Dallari que os séculos XVII e XVIII foram marcados pela ascensão
política da burguesia, tendo por consequência a firmação de novos padrões de
organização política. A acumulação de fatores históricos, inclusive a definição de
valores humanistas externada em séculos anteriores, deu a base política, econô-
mica e social para que se desencadeassem os movimentos de rebelião e renovação
que podem ser caracterizados como revoluções burguesas. (DALLARI, 2010, p.99).
A experiência jurídica dos séculos XIX e XX determinou uma preponde-
rância do direito positivo em relação ao direito de inspiração natural, identifi-
cando-se tão-somente como Direito aquilo que emanava das leis positivadas,
promovendo a separação entre Direito e Moral. (FABRIZ, 2003, p. 236).
A crença em um direito positivado, fruto da razão, é determinante na aven-
tura modernizante que a humanidade se lançou ao longo dos últimos três séculos.

1.1 Configuração dos direitos humanos na contemporaneidade


a partir do uso de variada terminologia

A questão dos Direitos Humanos envolve o emprego de terminologias variadas


que preliminarmente devem ser melhor compreendidas. Direitos do Homem,
Direitos Fundamentais e Direitos Humanos são gêneros de uma mesma espé-
cie, com fundamentos diversos.
Ao considerar-se a declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789 (Revolução Francesa) podem-se notar duas categorias de direitos, quais
sejam: direitos do homem e direitos vinculados à cidadania.
Ao se referir aos direitos do homem, a mencionada Declaração colocou
em perspectivas a idéia de certos direitos inatos cujo fundamento encontra-
se no âmbito do jusnaturalismo. Tal perspectiva fica clara quando se avalia o
artigo III da Declaração de 1789: “Todos os homens são iguais por natureza

13
e diante da lei”. Com aspirações universalistas declara-se que certos direitos
são inerentes ao ser humano em qualquer lugar e em qualquer época. Quais
são esses direitos? A igualdade, a liberdade, a propriedade. São considerados
direitos naturais e imprescritíveis.
Por outro lado, quando tratou sobre os direitos dos cidadãos, verificou-se
que nem todos os indivíduos poderiam ser titulares de certos direitos. Para usu-
fruir de determinados direitos ligados à cidadania os indivíduos deveriam ter uma
ligação jurídico-política com determinada nação. No caso, a nação francesa. Para
ilustrar essa condicionante utiliza-se o artigo V da referida Declaração que esta-
belece que “todos os cidadãos são igualmente admissíveis ao emprego público”.
Antes do advento da Revolução Francesa a Inglaterra já contava com
importantes documentos que asseguravam direitos aos membros do seu povo,
desde 1215 com a Magna Carta; a Petição de Direitos de 1628; com a Lei do
Habeas Corpus de 1679 e a Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689.
Vale ressaltar a Declaração dos Direitos do Bom Povo de Virgínia de 16
de junho de 1776 destacando no artigo 2° que toda autoridade pertence ao
povo e por conseqüência dela se emana.
Os direitos ligados ao exercício das liberdades públicas (religião, expres-
são, locomoção etc.), aliado aos direitos políticos, quando declarados em um
documento denominado Constituição passam a ser chamados de direitos fun-
damentais. Nesse sentido a partir do constitucionalismo moderno vinculado
às matrizes inglesa, francesa e norte-americana, todos os países passaram a
adotar uma constituição de Estado. Os direitos declarados nesses documentos
são direitos matrizes posto que concedam fundamento aos demais direitos.
Desse modo os direitos fundamentais podem ser considerados direitos dos ci-
dadãos de um determinado tempo e lugar, isto é, num Estado concreto – pers-
pectiva nacional – o constitucional.
Vê-se, desse modo, que Direitos Fundamentais (em sentido específico)
constituem uma categoria especial do direito constitucional. Revestem-se es-
ses direitos de essencialidade para a vida de qualquer indivíduo, uma vez que
tocam as dimensões da liberdade e da dignidade. A concepção de direitos
fundamentais surge do entendimento e da necessidade de se criar mecanismos
contra os abusos do poder estatal. A autoridade deve ser controlada por um
conjunto de direitos que visem mediar as relações entre governantes e go-

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vernados, estabelecendo-se o respeito à liberdade individual e a igualdade de
todos perante a lei.
Os horrores perpetrados pelas grandes Guerras Mundiais imprimiram a
necessidade de se criar mecanismos jurídicos, em âmbito internacional, capa-
zes de proteger os direitos denominados humanos. Aproveitou-se o momento
de extraordinária comoção internacional para que o mundo compreendesse da
necessidade de se criar mecanismos jurídicos de âmbito internacional a fim de
impedir os abusos cometidos contra a pessoa humana.
Em 1948, a Organização das Nações Unidas adota a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, proclamada pela Resolução n° 217 A (III) da
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro. Inaugura-se, desse
modo o Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos. Desde o advento da
referida Declaração, vários documentos surgiram cujo conteúdo básico refere-
-se à tutela dos Direitos Humanos. A título de exemplo pode-se citar o Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966; o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966; a Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem de 1948; a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica – de 1969, dentre outros.
A essa altura, pode-se afirmar que Direitos do Homem, Direitos Fun-
damentais e Direitos Humanos convergem para um mesmo sentido que é o
resguardo da pessoa humana contra qualquer tipo de opressão. São direitos
que buscam viabilizar a vida em liberdade e com dignidade. Nesse sentido a
teoria contemporânea tem consagrado a expressão “Direitos Humanos Funda-
mentais” para abarcar as várias denominações, conforme acima foi explanado.
Destaque-se que a Constituição Federal Brasileira de 1988, em seus §§ 2°
e 3°, deixa bem claro ao estabelecer que os direitos humanos declarados nos
tratados internacionais em que o Brasil faz parte são recepcionados com status
de Direitos Fundamentais. Vale dizer que os direitos humanos positivados nos
tratados e convenções internacionais que o Brasil tenha aderido devem ser ob-
servados e respeitados internamente, podendo o indivíduo que sofrer qualquer
lesão provocar o Poder judiciário para ver o seu direito respeitado.
Resumo: Diante do exposto temos que a expressão “Direitos do Homem”
refere-se aos direitos de todas as pessoas em qualquer lugar e em qualquer épo-
ca. São direitos denominados de naturais posto que sejam considerados inatos.

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Os Direitos Fundamentais são aqueles proclamados nas constituições
políticas dos Estados nacionais. São direitos formalmente fundamentais uma
vez que são escritos (positivados). Vide o art. 5º, por exemplo, da Constituição
Brasileira de 1988. Nesse sentido, direitos fundamentais é parte do Direito
Constitucional do Estado.
Os Direitos Humanos, por sua vez, são aqueles direitos declarados nos
tratados e convenções internacionais. Fazem parte do Direito Internacional.
São identificados como Direito Internacional dos Direitos Humanos.
No Brasil, a Constituição de 1988, em seu art. 5º, §§ 2° e 3° recepciona os
Direitos Humanos dos Tratados Internacionais na condição de Direitos Funda-
mentais, concedendo unidade aos mesmos.

1.2 CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

Os direitos humanos fundamentais são relativos, e não absolutos, na medida


em que há situações em que um direito entra em conflito com outro deter-
minado. Como exemplo pode-se citar a hipótese de liberdade de expressão
ou liberdade de imprensa e a honra e a imagem da pessoa. Nessa hipótese de
tensão entre direitos fundamentais, um deve ser flexibilizado para que o outro
possa ser exercido com legitimidade. Em outras palavras, o exercício dos di-
reitos encontra limites nos próprios direitos. Impõe-se desse modo o princípio
da convivência entre liberdades.
São várias as características dos direitos humanos fundamentais e várias
são as classificações. Conforme Bulos (2008, p. 409) os direitos humanos fun-
damentais se caracterizam pelos seguintes elementos:

• HISTÓRICOS – derivam de longa evolução, participando de um contexto


histórico perfeitamente delimitado. Nascem, morrem e extinguem-se.
Não são obra da natureza, mas das necessidades humanas, ampliando-
-se ou limitando-se a depender das circunstâncias. Exemplo: direito de
propriedade (CF, art.5. caput).
• UNIVERSAIS – ultrapassam os limites territoriais de um lugar específico
para beneficiar os indivíduos, independentemente de raça, credo, cor,
sexo, filiação etc. Exemplo: princípio da isonomia (CF. art. 5 caput).

16
• CUMULÁVEIS (ou concorrentes) – podem ser exercidos ao mesmo tem-
po. Exemplo: direito de informação e liberdade de manifestação do pen-
samento (CF. art.5. IV e XXXIII).
• IRRENUNCIÁVEIS: podem deixar de ser exercidos, mas nunca renun-
ciados. Exemplo: não-ajuizamento do mandado de segurança, algo que
não o retira da Constituição (CF. art. 5. LXIX).
• INALIENÁVEIS: São indisponíveis. Os titulares não podem vendê-los,
aliená-los, comercializa-los, pois não têm conteúdo econômico. Exem-
plo: função social da propriedade não pode ser vendida porque não
corresponde a um bem disponível (CF. art. 5., XXIII).
• IMPRESCRITÍVEIS – não prescrevem, uma vez que não apresentam ca-
ráter patrimonial. Exemplo: direito à vida (CF. art. 5 caput).
• RELATIVOS (ou limitados) – nem todo direito ou garantia fundamental
podem ser exercidos de modo absoluto e irrestrito, salvo algumas exceções.

Quanto aos destinatários, os direitos humanos fundamentais se dirigem,


primeiramente, ao Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) na medida em
que esses direitos ora limitam a ação do Estado, ora estabelecem ações aos Po-
deres Constitucionais do Estado. Como desdobramento as normas de proteção
voltam-se para os seres humanos, cidadãos do Estado ou estrangeiros. Cabe ao
Estado respeitar e fazer valer os direitos humanos fundamentais.
Pode-se afirmar também, que alguns direitos fundamentais podem ser usu-
fruídos por pessoas jurídicas (unidade de pessoas físicas ou de bens que se reúnem
para atingir objetivos comuns. Uma empresa, por exemplo). Exemplo de direitos
fundamentais que podem ter por destinatário as pessoas jurídicas: direito de pro-
priedade, direito de resposta, inviolabilidade do domicílio, direito adquirido etc.

1.3 Concepção e gerações dos direitos humanos fundamentais

A conquista dos Direitos dá-se num plano histórico. Surgem primeiro como
valores que são compartilhados e internalizados. Surgem a partir da consci-
ência dos homens e das mulheres. Da luta pelo respeito a esses valores, numa
segunda fase, ocorre a positivação, ou seja, são escritos em determinado docu-
mento jurídico. Pode-se afirmar, desse modo, que os direitos declarados hoje

17
são fruto de uma contínua luta de afirmação de valores que brotam de nossas
consciências e que se tornam fundamentais para que possamos viver uma vida
em liberdade e dignidade.
De forma didática, têm-se tratado sobre esses direitos numa perspectiva ge-
racional. Direitos de primeira, segunda e terceira gerações. Alguns autores (Ingo
W. Sarlet, p.ex.) preferem utilizar a expressão dimensões no lugar de gerações.

1.3.1 Dos direitos de primeira geração (dimensão)

O constitucionalismo moderno surge numa primeira versão clássica a partir


das idéias liberais. Os postulados do liberalismo econômico se estabeleceram
como pilares de uma nova sociedade que se libertava do mundo antigo e me-
dieval, construindo-se a partir de um novo paradigma. Esse novo Estado que
vai se configurando a partir dos ideais constitucionalistas encontra limites na
sua atuação. Como contraponto ao Estado absolutista, o Estado constitucional
se autolimita a partir da separação dos Poderes (legislativo, executivo e Judi-
ciário) e externamente é limitado, agora, pelos direitos fundamentais.
No Estado constitucional liberal em sua versão clássica é que se pro-
clamam os direitos denominados de primeira geração. São os direitos ligados
às liberdades e à propriedade privada. Para essa concepção todos são livres e
proprietários. Livres por que podem dispor da autonomia da vontade e dispor
essa vontade nos contratos. São proprietários do seu próprio corpo que expres-
sa em força de trabalho que, por sua vez, se transforma em mercadoria. Em
decorrência dessa percepção, a propriedade privada é considerada um direito
fundamental absoluto.
Formalmente todos são iguais perante a lei, posto que a lei é compreendida
como fruto da razão do legislador, válida universalmente para todos. A Consti-
tuição Brasileira de 1988, em seu art. 5º estabelece que “ninguém será obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. É uma conquis-
ta liberal que permaneceu ao longo da história do constitucionalismo moderno.
O Estado Liberal foi determinante para a construção da idéia de direitos
humanos fundamentais. Dado o ideário que o informava, a concepção desses
direitos estava atrelada ao individualismo. Nesse sentido, os direitos ditos de
primeira geração são direitos civis de cunho individual. Conforme já mencio-

18
nados são direitos ligados à idéia de liberdade e igualdade no plano meramen-
te formal, destacando-se a propriedade privada concebida como um direito
fundamental absoluto.

1.3.2 Dos direitos de segunda geração (dimensão)

No entre guerras, uma confluência de novas idéias vão questionar a legi-


timidade da sociedade individualista liberal. Questiona-se o estado mínimo,
dominado por poucos em detrimento da maioria proletária e empobrecida.
Revoluções socialistas vão surgindo a partir dessas novas idéias. Busca-se a
implantação de uma nova sociedade, mais justa.
Nesse contexto, em 1917 o México elabora a primeira constituição a
inserir um novo conteúdo em seu texto, rompendo com o constitucionalismo
de cunho liberal. A Constituição mexicana de 1917 proclama novos direitos li-
gados ao campo social. A propriedade privada sofre um novo tratamento, dei-
xando de ser um direito absoluto, devendo voltar-se para a sua função social.
Em seguida, na Alemanha, surge a Constituição de Weimar, em 1919. Essa
Constituição cria um subsistema constitucional denominado da Ordem Econô-
mica e Social, permitindo ao Estado organizar e regular as relações no mundo
da produção e do trabalho. No Brasil, em 1934 inaugura o Estado Social.
No contexto do Estado Social que tem lugar os direitos de segunda ge-
ração. São direitos de cunho social e econômico. São direitos que tem por
objetivo a valorização do trabalho humano, visando à justiça social. Saúde,
educação, previdência e assistência sociais, direitos de proteção do trabalhador
são conquistas, a partir da consciência de classe.
A intervenção no mundo da produção e do trabalho, por parte do Estado
e a constitucionalização dos direitos de segunda geração visaram a proporcio-
nar uma igualdade real (material) entre as pessoas.
A liberdade de iniciativa subordina-se às regulações do Estado e aos no-
vos direitos de cunho social. O direito de propriedade subordina-se a função
social que a mesma deve cumprir. Conforme Bulos (2008, p. 472) “a função
social da propriedade é a destinação economicamente útil da propriedade, em
nome do interesse público”. A propriedade deve desse modo, ser destinada
para a geração de riqueza e bem estar da comunidade humana. A propriedade

19
privada que não cumpre a sua função social é suscetível de desapropriação por
parte do poder público.
No plano interno o Brasil estabeleceu na Constituição de 5 de outu-
bro de 1988, no seu artigo 6º os direitos sociais, sendo eles a educação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Os referidos direi-
tos fundamentais recebem tratamento normativo tanto no corpo da própria
Constituição, principalmente no âmbito da Ordem Econômica e Ordem Social,
além da legislação infraconstitucional.
No contexto internacional o Pacto Internacional dos Direitos Econô-
micos, Sociais e Culturais, adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI) da As-
sembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 e ratificada,
pelo Brasil, em 24 de janeiro de 1992, constitui uma das principais fontes
desses direitos denominados de segunda geração. O Artigo 1- Parte I do
mencionado Pacto estabelece que todos os povos têm o direito à autodetermi-
nação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político
e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
O referido Pacto reconhece ainda os direitos referentes ao trabalho; salário
digno; sindicalização; proteção da família; proteção contra a fome; direito
à educação; participação na vida cultural; dentre outros direitos de cunho
social, econômico e social.
Os direitos sociais podem ser considerados, dessa forma, prestações po-
sitivas do Estado, visando a proporcionar aos menos favorecidos meios de
subsistência com dignidade. Em sua grande maioria são serviços prestados
pelo poder público (serviços ligados à educação, saúde, assistenciais, previden-
ciários, de lazer e proteção dos hipossuficientes, em geral). Esses serviços são
reconhecidos sob a alcunha do interesse público primário.
Ensina Bulos (2008, p. 624-625) que os direitos sociais são direitos de
crédito, pois envolve poder de exigir, por meio de prestações positivas do Es-
tado. Considera-se o Estado como o sujeito passivo desses direitos; ou seja: é
dever do Estado propiciar proteção à saúde (art. 196 da CF), promover a edu-
cação (art. 205 da CF), incentivar a cultura (art. 215 da CF) etc.
Os direitos sociais podem ser classificados em direito do trabalhador; da
seguridade social (saúde, previdência social e assistência social); educação;

20
cultura; lazer, segurança; moradia; da família; da criança; do adolescente e
do idoso; dos grupos, compreendendo a liberdade sindical, direito de greve,
cogestão e autogestão.

1.3.3 Dos direitos de terceira geração (dimensão)

No contexto do liberalismo vislumbrou-se a emancipação do indivíduo. Com o


advento do Estado do bem-estar-social perseguiu-se a igualdade material a partir
de um mínimo existencial. Nos fins do século passado e início do século em curso
uma nova consciência vem se formando e transformando a seara dos direitos hu-
manos fundamentais. São valores que vêm se positivando em documentos cons-
titucionais e instrumentos jurídicos internacionais, em torno de novos direitos
denominados de terceira geração/dimensão, vinculados à idéia de fraternidade.
Paulo Bonavides (1996, p. 523) ao tratar desses direitos escreve que os
direitos de terceira geração tendem a se cristalizar como direitos que têm por
destinatário o gênero humano, na afirmação do valor supremo em termos de
existencialidade concreta.
São direitos difusos, caracterizando-se como aqueles direitos que, na hipó-
tese de dano, os indivíduos atingidos não podem ser claramente identificados.
Os direitos de terceira geração estão vinculados diretamente ao direito
ao desenvolvimento que possa emancipar não apenas indivíduos ou grupos
humanos; mas sim, a emancipação de toda a sociedade.
Meio ambiente, direito do consumidor, direito das crianças, adolescentes
e idosos são alguns exemplos desses direitos denominados de terceira geração
dimensão. Junte-se a esses exemplos a questão da informação, questão mar-
cante no mundo atual e as pesquisas com seres humanos.

RESUMO: Diante do que foi explanado no presente tópico podemos sin-


tetizar dizendo que os direitos humanos fundamentais são conquistas histó-
ricas que, ao longo do tempo, foram se incorporando ao catálogo de direitos
da pessoa humana. São classificados em gerações ou dimensões conforme a
ideologia de estado predominante, a partir do século XVII.
Nesse sentido, no paradigma do Estado constitucional liberal teve lugar
os direitos de primeira geração. Com o advento do Estado social, já no con-

21
texto do século XX, a conquista dos direitos de segunda dimensão. A partir
da década de 70 do século vinte aos dias de hoje, com a constante construção
do Estado democrático de direito, os direitos de terceira geração ou dimensão
vêm se inscrevendo nos mais variados documentos nacionais (constituições) e
internacionais (tratados e convenções).
Para uma melhor compreensão e didatismos, a partir das gerações/di-
mensões, conforme acima descrito, pode-se discriminar e conceituar esses di-
reitos da seguinte forma:

DIREITOS INDIVIDUAIS: Interesse juridicamente tutelado do indivíduo.


Direito “que reconhece autonomia ao particular, garantindo iniciativa e in-
dependência ao indivíduo diante dos demais membros da sociedade política
e do próprio Estado”. Direito individual é o direito, cuja fruição esgota-se no
círculo de atuação de seu destinatário. (MANCUSO, 1991, p. 13). Exemplos:
direito à propriedade; direito de locomoção; direito de expressão; liberdade
religiosa etc.

DIREITOS SOCIAIS: Conforme Bulos (2008, p. 624), direitos sociais são

liberdades públicas que tutelam os menos favorecidos, proporcionando-


-lhes condições de vida mais decente e digna com o primado da igual-
dade real.

São prestações positivas do Estado. Impõem um dever-fazer ao Estado (sujeito


passivo) objetivando resguardar a liberdade e a dignidade daquelas pessoas
que se encontram em situação de vulnerabilidade, principalmente na pers-
pectiva econômica. São aquelas pessoas denominadas hipossuficientes. São
direitos exigíveis ao Estado. Exemplos: Direito à saúde; educação; moradia;
assistência social; proteção da família; ao lazer; direito do trabalho etc.

DIREITOS DIFUSOS: Referem-se à coletividade, não necessitando de vín-


culo jurídico entre os indivíduos. Baseiam-se em fatos genéricos, acidentais
e mutáveis. São titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas ligadas por
vínculos fáticos. De titularidade aberta, referem-se a bens indivisíveis. A satis-

22
fação do interesse refere-se à satisfação de toda sociedade. (PINHO, 2002). São
direitos de feitio promocional e educativo. Exemplos: meio ambiente; direito
do consumidor; direito das gerações futuras; vida em paz; direito ao desenvol-
vimento; direito à informação etc.

1.4 Novas concepções e a teoria crítica dos direitos fundamentais


no contexto do século xxi

O século em curso inicia sob o estandarte da “guerra contra o terror”; sob o


assombro do dia 11 de setembro e sob os impactos das crises capitalistas. Um
mundo submetido aos postulados do neoliberalismo e do processo de globa-
lização financeira. São fatores do tempo histórico atual e que motivam novas
reflexões e olhares sobre o tema Direitos Humanos.
A primeira questão que se coloca para essa necessária meditação é a seg-
mentação dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões. Essa concep-
ção é bastante criticada tendo em vista a interdependência desses direitos. São
conquistas históricas que hoje se articulam de forma a complementarem-se.
Direitos individuais (liberdades públicas) necessitam da realização dos
direitos sociais para que possam ser exercidos na plenitude. Da mesma manei-
ra, para que os direitos difusos (ligados ao ideal de solidariedade) atinjam seus
objetivos, na construção de uma sociedade mais livre e justa, necessitam da
efetividade dos direitos de primeira e segunda dimensões.
Nesse sentido, os direitos humanos fundamentais devem ser percebidos
de maneira pluridimensional e ao mesmo tempo em sua unidade. Pluridimen-
sionais na medida em que os mesmos podem ser experienciados por indivídu-
os, grupos ou toda comunidade de maneira diversa. Unidade, na medida em
que são interdependentes.
O direito à saúde, por exemplo, pode ser exercido por indivíduos, em par-
ticular; por grupos de pessoas (saúde da criança; do idoso; das mulheres etc.);
ou de forma difusa, no caso de epidemias. Nesse sentido pluridimensionais.
A unidade advém da interdependência. Para exercer o meu direito de
livre expressão, para que eu possa cuidar da minha saúde, preciso de escla-

23
recimento e informação que podem ser fornecidos por processos educativos
(direito à educação) ou direitos ligados à comunicação social, por exemplo.
Outra questão importante que vem sendo colocada no âmbito dos direitos
humanos é a necessária compreensão desses direitos num plano transdisciplinar.
Krohling (2009, p. 139) alerta para a fragmentação do saber e os perigos
da especialização que, muitas vezes, acabam por impedir uma visão global dos
fenômenos. Escreve o citado autor que nas instituições universitárias cresceu a
departamentalização do saber. Nos currículos dos cursos de ciências humanas
foram introduzidos os princípios do taylorismo. Separou-se o sujeito do objeto.
Tal processo de fragmentação também ocorreu na divisão técnica do trabalho.
No campo dos direitos humanos, tal fragmentação também se verifica na
medida em que se passou a separar esses direitos em gerações ou dimensões.
Essa segmentação permitiu a afirmação de alguns direitos individuais a uma
pequena parcela da sociedade e a sonegação dos direitos de segunda dimensão
à grande maioria das pessoas.
Nessa perspectiva, Krohling, apoiado na teoria da complexidade de Ed-
gard Morin, postula a aceitação do princípio da complementaridade nas ciên-
cias humanas (2009, p. 143). Tal postulado também deve reverberar no con-
texto da educação em Direitos Humanos.
Herrera Flores (2009) destaca que os Direitos Humanos se converteram
no grande desafio do século XXI. Esse desafio se expressa tanto no plano te-
órico e prático.
Admitindo a importância do grande esforço que foi realizado em prol dos
Direitos Humanos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
até os dias de hoje; lembra, todavia, que o contexto de hoje é bem diferente.
Ainda, Herrera Flores (2009), ressalta que atualmente estamos diante de um
novo contexto social, econômico, político e cultural que se inicia a partir da
queda do muro de Berlim.
Nesse sentido, o contexto atual exige uma teoria que dê atenção especial
aos contextos concretos em que vivemos e uma prática – educativa e social
– de acordo com o presente que estamos atravessando (HERRERA FLORES,
2009, p. 31).
Nessa perspectiva, Herrera Flores constrói uma teoria crítica dos direitos
humanos como via de acesso aos mesmos no contexto do atual momento histó-

24
rico. Conforme o citado autor, os direitos humanos, mais que direitos “propria-
mente ditos”, são processos. Ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que
os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para
a vida. Para Herrera Flores, os direitos humanos não podem ser confundidos
com os direitos positivados no âmbito nacional ou internacional. (2009, p. 34).
Partindo do pressuposto que não são as declarações, convenções e cons-
tituições que criam os direitos, mas as lutas e ações das pessoas, Flores des-
taca que falar em dignidade humana não implica em fazê-lo a partir de um
conceito abstrato, posto que a mesma constitui-se em um fim material. Para
o autor, “trata-se de um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e
generalizado aos bens que fazem com que a vida seja ‘digna’ de ser vivida”
(HERRERA FLORES, 2009, p. 37).
Destaca ainda, que as lutas jurídicas são muito importantes para a efeti-
vidade desses direitos. Mas rechaça as pretensões intelectuais que se apresen-
tam como ‘neutras’ em relação às condições reais nas quais as pessoas vivem.
Nesse sentido indaga: que neutralidade podemos defender se nosso objetivo
é empoderar e fortalecer as pessoas e os grupos que sofrem essas violações,
dotando-os de meios e instrumentos necessários para que, plural e diferencia-
damente, possam lutar pela dignidade? (HERRERA FLORES, 2009, p. 38).
Herrera Flores (2009) concebe os direitos humanos a partir de uma pers-
pectiva de altíssima complexidade envolvendo vários aspectos, quais sejam:
complexidade cultural; complexidade empírica; complexidade jurídica; com-
plexidade científica; complexidade filosófica; complexidade política; comple-
xidade econômica.
Diante das referidas complexidades, aponta para cinco deveres básicos
para a compreensão dos direitos humanos no início do século XXI, e a pos-
sibilidade de se construir o acesso aos bens necessários para uma vida em
liberdade, igualdade e dignidade:

i. reconhecimento de que todos e todas devem reagir culturalmente frente


ao entorno de relações no qual vivemos. Toda realidade é construída.
Nesse sentido tudo está por se fazer;
ii. respeito como forma de conceber o reconhecimento como condição ne-
cessária, mas não suficiente, na hora de por em prática as lutas pela dig-

25
nidade. Por meio do respeito aprende-se a distinção entre aqueles que
têm posição de privilégio e quem tem a posição de subordinação no di-
fícil, mas, iniludível encontro entre as diferentes percepções de mundo;
iii. reciprocidade como base para saber devolver o que tomamos dos outros
para construir os nossos privilégios, seja dos outros seres humanos, seja
da natureza;
iv. responsabilidade: a nossa responsabilidade de exigir responsabilida-
des aos que cometeram o saqueio e a destruição das condições de vida
dos demais;
v. redistribuição: ou seja, o estabelecimento de regras jurídicas, fórmulas
institucionais e ações políticas e econômicas concretas que possibilitem
a todos e a todas não somente satisfazer as necessidades vitais ‘primá-
rias’, mas, além disso, a reprodução secundária da vida, quer dizer, a
construção de uma dignidade não submetida aos processos depreda-
dores do sistema imposto pelas necessidades de benefício imediato que
caracterizam o modo de relação baseado no capital; sistema no qual
uns têm nas suas mãos todo o controle dos recursos necessários para
dignificar suas vidas, e os outros não têm mais que aquilo que pandora
não deixou escapar dentre suas mãos: a esperança de um mundo melhor
(HERRERA FLORES, 2009, p. 67-68).

A educação em direitos humanos para o século XXI deve buscar nas


experiências vividas uma nova percepção desses direitos a partir das necessi-
dades do contexto concreto em que hoje vivemos.
Educar para uma vida em dignidade significa educar para além das teo-
rias e práticas clássicas que nortearam os direitos humanos. Faz-se necessário
aliar uma nova teoria para novas práticas, tendo por finalidade a promoção
de todos e todas aos bens (educação, vida, saúde, propriedade, meio ambien-
te ecologicamente equilibrado, segurança, assistência etc.) para uma vida em
liberdade e dignidade. Para além das lutas jurídicas, também as lutas políticas
em busca desses bens e direitos.
Outra vertente de pesquisa vem aflorando hodiernamente que é a com-
preensão dos deveres humanos fundamentais. A constituição brasileira de
1988 trás no seu texto expressamente a expressão deveres fundamentais. Mas

26
quais seriam as reais consequências dos deveres fundamentais na perspectiva 1. Conceito formulado no primeiro semes-
normativa? São indagações que vão surgindo e que ainda merecem ampla tre de 2013 pelos integrantes do Grupo de
Pesquisa vinculado ao PPGD-FDV, denomi-
reflexão. Para iniciar o debate eis um conceito: nado “Estado, Democracia Constitucional e
Direitos Fundamentais” liderado pelo Prof.
dever fundamental é uma categoria jurídico-constitucional, fundada na Dr. Daury Cesar Fabriz.

solidariedade, que impõe condutas proporcionais àqueles submetidos a


uma determinada ordem democrática, passíveis ou não de sanção, com
a finalidade de promoção de direitos fundamentais1.

Nessa perspectiva podemos indicar vários exemplos de direitos funda-


mentais em espécie, quais sejam, Dever Fundamental dos pais cuidar dos seus
filhos; Dever Fundamental de cuidar do meio ambiente; Dever Fundamental
de servir à pátria; Dever Fundamental de ajudar a segurança pública; Dever
Fundamental de contribuir com os gastos do Estado; Dever Fundamental dos
filhos cuidar dos seus pais na idade avançada etc.
Ainda sobre os Deveres Fundamentais do cidadão pode-se perquirir so-
bre as consequências práticas que poderão incidir sobre uma pessoa que dei-
xa de cumprir o comando normativo que estabelece o Dever Fundamental.
Sobre essa questão podemos afirmar que

As consequências em relação ao descumprimento de um dever podem


existir ou não. Ao prescrever uma conduta humana como devida, a or-
dem jurídica pode estabelecer quanto à sua observância ou inobservân-
cia um determinado tipo de consequência: uma vantagem ou desvanta-
gem; ou não as estabelecer. Assim, não se procura analisar que razões
ou motivos levam um indivíduo a cumprir ou não um dever jurídico,
e sim que consequências podem advir do descumprimento. Trata-se do
princípio retributivo. (MARQUES &FABRIZ; 2013, p. 04).

É nesse sentido que para além dos direitos devemos também levar em consi-
deração os deveres fundamentais.

27
Reênciasfer ácasbilogr

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portu-


guesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1988.

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28
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MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Os direitos humanos na ordem jurídica interna.


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MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses disfusos: conceito e legitimação para


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PINHO, Humberto Dalla Bernadina. A natureza jurídica do direito individual homo-


gêneo e sua tutela pelo Ministério Público como forma de acesso à justiça.
Rio de Janeiro: Forense, 2002.

29
Paulo César Carbonari
Doutorando em Filosofia (Unisinos), professor e coordenador do Curso de Ba-
charelado em Filosofia do Instituto Berthier (IFIBE, Passo Fundo, RS), membro
e vice-coordenador do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (CNEDH/SDH-
-PR), membro do conselho nacional do Movimento Nacional de Direitos Hu-
manos (MNDH).

2
PARA FAZER DA EDUCAÇÃO: 1. Fazemos um esforço na direção de pro-
AÇÃO DE DIREITOS HUMANOS blematizar a situação brasileira contem-
porânea no artigo Direitos humanos no
POR UMA EDUCAÇÃO DIREITOSHUMANIZANTE Brasil: a promessa é a certeza de que a
luta precisa continuar (CARBONARI, 2012,
Paulo César Carbonari p. 21-35), ao qual remetemos.

A questão que se apresenta de início é: que educação é aquela que se põe como
uma educação capaz de promover os direitos humanos, não em sentido abstra-
to, mas de forma contextualizada ao processo histórico dos direitos humanos.1
Mesmo com o risco de sermos generalista e sem tomar em conta as diferenças
de fazer educação em direitos humanos na educação formal e na educação não
formal, propomos o que chamamos de educação direitoshumanizante.
A educação direitoshumanizante aponta para que a educação seja mais do que
a garantia de um dos direitos humanos – o que de fato é. Exige também que
seja mais do que incluir os direitos humanos na educação. A questão funda-
mental é que o conjunto da educação seja perpassada pelos direitos humanos.
Dizer direitoshumanizante não é agregar um adjetivo a mais à educação
e sim dar-lhe uma substantividade que lhe apresenta exigências próprias. Estas
exigências são favoráveis a umas e críticas a outras compreensões e práticas
educativas, assim como favoráveis a umas e reativas a outras concepções e
práticas de direitos humanos.

Apresentamos um diagnóstico de motivações que não se constituem em boas


razões para uma educação direitoshumanizante.
A educação não tem nada que educar em direitos humanos. Ela tem
sim é que formar profissionais competentes e aptos ao mercado de trabalho.
Assim se pronunciam as vozes do mesmo, dos que só querem mais, do mes-
mo. A ideologia da competência e da preparação para a atuação no mercado
contribui para rebaixar as pautas, as agendas, as abordagens e as exigências
para a educação em geral e, particularmente, para a educação formal, a básica
e a superior. Voltar-se unicamente para competências é trabalhar o processo

31
2. Recuperamos a posição de Martha Nus- educativo de forma unidimensional, como treinamento, dado que a forma-
sbaum quando diz que: “O tema do lucro ção exige mais do que domínio de técnicas e capacidade para sua aplicação.2
sugere para a maioria dos políticos em
O voltar-se para o mercado é componente ideológico que contribui para afas-
questão que a ciência e a tecnologia são
de importância crucial para o futuro do tar a educação da sua finalidade maior, que é a formação para a atuação inte-
bem-estar de seus povos. Não deveríamos gral. Esta postura parte de uma premissa insuficiente e que estabelece o mer-
ter qualquer objeção a uma boa educação
cado como o fórum de definição das prioridades e das demandas. O mercado,
científica e técnica e não estou sugerindo
que as nações deveriam parar de tentar sabemos, não é um espaço público, antes, pelo contrário, é privado e privatista
melhorar este aspecto. A minha preocupa- no capitalismo tardio.3 Por isso, se ficar na dependência do mercado, a educa-
ção é que as outras habilidades, habilidades ção abre mão de formar agentes para a incidência na vida pública e de formar
cruciais para a saúde interna de qualquer
democracia, para a criação de uma cultu-
para orientar sua participação na vida social e para incidir nas agendas do que
ra descente, para um modelo robusto de é de interesse público, para colaborar no que é comum. As demandas a serem
uma cidadania mundial e para abordar os atendidas pela educação não são aquelas dos interesses privados e privatistas;
problemas mais prementes do mundo estão
são, sim, aquelas dos espaços públicos nos quais se exerce os direitos e se
em risco de se perder nessa busca compe-
titiva por lucro” (NUSSBAUM, 2009, p. 4). constrói novos direitos. Formar competências para o mercado não contribui
para a formação do sujeito de direitos, no máximo o faz ser um consumidor
3. Mais: “Preocupa-me, no entanto, per-
servil aos ditames do consumismo.4
ceber que a análise da educação utilizada,
mesmo pelos melhores profissionais da Educar em direitos humanos é o mesmo que educar para a cidadania,
abordagem do desenvolvimento humano, para os valores e para a paz. Sim, educar para a cidadania, para os valores e
tende a concentrar-se nas competências para a paz se constituem em tarefas fundamentais da educação. Mas, fazer da
básicas e comercializáveis negligenciando
educação em direitos humanos somente o formar para a cidadania é restritivo,
as habilidades humanistas do pensamento
crítico e da imaginação tão cruciais caso a pois implica na educação para o conhecimento e o exercício dos direitos exis-
educação realmente seja pensada de modo tentes e circunscritos ao seu reconhecimento no âmbito de uma determinada
a promover o desenvolvimento humano,
comunidade política nacional, de um determinado país [mesmo que se deseje,
em vez de, simplesmente, o crescimen-
to econômico e as aquisições individuais“ não existe ainda a cidadania global] e para a contraprestação dos deveres por
(NUSSBAUM, 2009, p. 5). eles exigidos, como que formando para a inserção na ordem social, jurídica
e política disponível. Formar em valores constitui-se também em tarefa fun-
4. Para aprofundamento ver, entre muitos
damental, mas dado que valores e vida moral são construções controversas e
outras, as reflexões críticas de Martha Nus-
sbaum. Ela diz, analisando a situação con- nem sempre favoráveis, fazer este tipo de formação poderia ser confundido
temporânea da educação: “Se esta tendên- com a inserção na vida moral hegemônica que, nem sempre é protetora dos
cia se prolonga, as nações de todo o mundo
direitos – vide posições patriarcais, machistas, homofóbicas e de outros tipos,
produzirão gerações inteiras de máquinas
úteis no lugar de cidadãos com capacidade mesmo que se possa ser crítico, acima de tudo a formação moral quer levar a
de pensar por si próprios, com uma pers- “aderir” a uma determinada vida moral. A formação deste tipo também corre o
pectiva crítica sobre as tradições e de com- risco de ser confundida com a reintrodução de formas de famigerada memória
preender a importância e das conquistas e
na educação, como a educação moral e cívica como estratégias de submissão

32
– ao modo como fez o regime ditatorial civil-militar. Por fim, educar para a Continuação da nota 4
paz é também tarefa fundamental, mas confundi-la com educação em direitos dos sofrimentos dos outros” (NUSSBAUM,
humanos é não reconhecer que a paz é mais do que a simples ausência das 2010, p. 20, tradução nossa).

violências, mas a combinação de uma vida vivida com direitos, exigindo, por-
5. No dizer de Freire: “É precisamente por-
tanto, os direitos humanos e não reduzindo os direitos humanos a ela. Assim, que reduzidos a quase ‘coisas’, na relação
quaisquer destas formas de educação são fundamentais, mas insuficientes para de opressão em que estão, que se encon-
dar conta do significado de educar em direitos humanos. tram destruídos” (1975, p. 60). Ele vai mais
a fundo e diz que “Dela [a prática de do-
Educar em direitos humanos se confundiria com fazer uma educação
minação], que parte de uma compreen-
ideológica, estranha ao que deve ser científico.5 Este é o fator mais pernicioso à são falsa dos homens – reduzidos a meras
construção da educação em direitos humanos, visto que parte de uma premissa coisas – não se pode esperar que provoque
o desenvolvimento do que Fromm cha-
completamente equivocada de que há certo tipo de saber que se constitui em
ma de biofilia, mas o desenvolvimento de
parâmetro [neutro] para todos os demais saberes, o saber científico, que exclui seu contrário, a necrofilia. […] A opressão,
todos os que não respondem aos cânones por ele determinados. O resultado é que é um controle esmagador, é necrófila”
a produção do saber de forma monolítica e reprodutora de modelos e formas (FREIRE, 1975, p. 74). Tratamos a fundo da
posição de Freire em relação à educação
pouco abertas à diversidade dos conhecimentos, dos saberes e das suas formas
em Porque educação em direitos humanos:
de expressão e de vivência, e que tende para a formação de uma ciência uni- bases para a ação político-pedagógica, a
ficada. A epistemologia contemporânea tem mostrado sobejamente a ilusão ser publicado pela editora da UFPB.

desta premissa e a sua consequência mais nefasta para a própria ciência, que é
6. Ver de modo particular a crítica e a pro-
o “desperdício” de saberes, da criatividade e da possibilidade de identificação posta alternativa feita por Boaventura de
e de resolução de problemas.6 Tem mostrado também a pluralidade dos saberes Sousa Santos (2004; 2006). Discutimos este
e das formas de sua expressão como sendo característica tanto dentro de cada assunto no contexto da relação entre reco-
nhecimento e educação no artigo Direitos
área específica de conhecimento quando das diversas áreas entre si. Desco- humanos, reconhecimento e educação: por
nhecer esta perspectiva é efetivamente investir numa educação monocultural uma abordagem ecológica (CARBONARI,
e pouco afeita à formação de sujeitos de direitos. 2012, p. 20-30).

A educação em direitos humanos não tem qualquer especificidade e, por


isso, “cabe tudo na educação em direitos humanos”. Esta postura parte da
premissa de que a abrangência ampla e a baixa determinação positiva do con-
teúdo dos direitos humanos os transformam num grande “guarda-chuva” para
todo tipo de ação educativa. É verdade que direitos humanos têm conteúdos
abertos e abrangentes e que são pouco afeitos à exatidão. Daí a deduzir que
qualquer atividade pode ser de promoção da educação em direitos humanos
é exagero. Um exemplo pode ilustrar: a orientação jurídica ou o atendimento
de demandas da população no campo penal ou cível por si só não são imedia-
tamente ações em direitos humanos. O acesso à justiça é um direito humano,

33
7. Recentemente o Conselho Nacional de mas nem todas as práticas de promoção do acesso à justiça são práticas de
Educação emitiu Diretrizes Nacionais para promoção dos direitos humanos podendo até vir a ser expedientes funcionais
a Educação em Direitos Humanos na edu-
em pouco ou nada emancipatórios. A questão diferenciadora fundamental está
cação básica e na educação superior. Ver
Resolução nº 1 e Parecer nº 8, ambos de no alcance destas ações no sentido de formar sujeitos de direitos.
30/05/2012. Contra estas posições, a principal motivação para educar em direitos hu-
manos é a formação dos/as educandos/as como sujeitos de direitos que já são
sujeitos de direitos no ato educativo, têm, entre outros, o direito à educação,
que é um dos direitos humanos, e também têm o direito de aprender direitos
humanos como parte de sua formação. Trata-se de agir com os sujeitos da
educação, os/as educandos/as, como sujeitos de direitos: a) porque, mas não
somente, os sujeitos são parte de uma cultura jurídica do estado democrático
de direito que lhes confere status de cidadania; b) porque, mas não somente,
os sujeitos são parte de uma comunidade moral e por isso parte de um pro-
cesso de formação em valores; c) porque, mas não somente, os sujeitos são
parte de uma comunidade que resiste e exige viver livre de todas as formas de
violência e quer paz; d) porque, mas não somente, os sujeitos são parte de uma
comunidade política e por isso têm direito a resistir, a se organizar e a protes-
tar, contestando a ordem injusta; e) porque, mas não somente, os sujeitos são
parte de uma comunidade de saber específica, mas aberta aos demais saberes.
Em outras palavras, os modelos acima descritos se mostram ainda insuficien-
tes para cumprir a tarefa da educação direitoshumanizante na perspectiva da
formação integral do sujeito de direitos.

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH)7 sugere indi-


cativos para ajudar nesta tarefa. Ele estabelece que a educação em direitos
humanos é “[…] um processo sistemático e multidimensional que orienta a for-
mação do sujeito de direitos […]” (BRASIL, 2006, p. 25). A educação em direitos
humanos se constitui, assim, em “processo”. Se é processo, é parte do conjunto
das ações às quais se associa. Os adjetivos “sistemático” e “multidimensional”
qualificam de forma substantiva o processo a ser realizado pela educação em
direitos humanos, dando-lhe as qualidades essenciais: a primeira afasta qual-
quer perspectiva de que a educação em direitos humanos seja apenas um [ou

34
até muitos] evento em qualquer dos momentos ou dos âmbitos da vida edu- 8. Construímos um esboço de uma teoria do
cativa; a segunda afasta qualquer perspectiva unidimensional e fragmentária sujeito de direitos no artigo Sujeito de dire-
itos humanos: questões abertas e em con-
da formação. Positivamente, uma e outra convergem para a finalidade central
strução (CARBONARI, 2007, p. 169-186).
da educação em direitos humanos, que é a formação do “sujeito de direitos”.
O PNEDH explicita as várias dimensões da educação em direitos huma- 9. Sugerimos como subsídio a reflexão de
Josef Estermann (2012), expressa em vários
nos. Informa pelo menos as seguintes dimensões: a) a dimensão epistêmico-
textos sobre este tema, particularmente em
-cognitiva [“apreensão de conhecimentos historicamente construídos […]”; b) Crisis civilizatoria y Vivir Bien: una crítica
a dimensão ética [“afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expres- filosófica del modelo capitalista desde el
sem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade”]; c) a allin kawsay/suma qamaña andino. Esta
leitura é feita com base na construção que
dimensão política [“formação de uma consciência cidadã […]”; d) a dimensão vem sendo elaborada pelas organizações
pedagógica [“desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de indígenas andinas, entre as quais a Coor-
construção coletiva […]”; e e) a dimensão social [“fortalecimento de práticas dinadora Andina de Organizaciones Indí-
genas (CAOI). Para mais informações ver
individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção,
documento em www.reflectiongroup.org/
da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das stuff/vivir-bien.
violações”] (BRASIL, 2006, p. 25). Estas diversas dimensões têm como eixo
articulador e diferenciador fundamental a formação do sujeito de direitos.8
Formar sujeitos de direitos é contribuir de maneira decisiva para a recon-
figuração das relações entre os seres humanos e destes com o mundo cultural e
com o ambiente natural de forma a subsidiar processos de afirmação dos huma-
nos como sujeitos em convivência com outros sujeitos. Com base nesta noção
geral, desdobramos três aspectos que consideramos fundamentais ao núcleo da
educação direitoshumanizante como processo de formação de sujeitos de direitos.
Educar em direitos humanos é formar sujeitos sustentáveis e que promovem
a sustentabilidade em sentido amplo. Nenhum ser humano se faz fora do mundo,
fora do ambiente cultural e do ambiente natural. A interação ocorre como rela-
ção com os sentidos (mundo) nas condições de sentido (culturais e naturais) nas
quais se está inserido. Posturas predatórias – ou mesmo as preservacionistas que
são só mitigadoras – são insuficientes porque, além de comprometer o mundo
como ambiente natural e cultural, também comprometem o humano. Por isso,
o grande desafio da educação em direitos humanos é o educar para o bem viver
como integração do viver humano com o viver de outras formas de vida, recons-
truindo a relação do humano com o ambiente no qual se insere.9
Educar em direitos humanos é formar para participar, para “aparecer” e
para “dizer”. “Aparecer” e “dizer” consistem em aceitar que cada pessoa pode

35
10. Remetemos à reflexão, entre muitas se expressar de forma livre e em condições adequadas para tal. Significa forta-
outras, de Adela Cortina no texto Democ- lecer todo tipo de presença [que é mais que visibilidade] e fazer frente a todo
racia como forma de vida (1992, p. 254-
tipo de cerceamento da expressão, o que é sinônimo de participar. A participa-
272). Desenvolvemos o tema democracia e
direitos humanos em CARBONARI, 2008, p. ção é conteúdo fundamental para a efetivação dos direitos humanos. Presença
13-34. é participação. Participação é interação. Interação é agir na alteridade. Assim,
está em questão identificar processos e propostas, dinâmicas e sujeitos, diver-
gências e convergências, sob o crivo da alteridade. Quando centradas na alte-
ridade, as vivências públicas são muito mais do que um jogo; são construção,
permanente e sempre nova, de um modo de ser social e político, um modo de
ser humano, com direitos humanos, o que remete para a convivência demo-
crática como necessária aos direitos humanos, mas não a mera democracia
representativa e sim a democracia como forma de vida.10
Educar em direitos humanos é formar para a liberdade e para a respon-
sabilidade. A liberdade, longe de ser uma propriedade ou uma faculdade, é
a vivência de condições que abram oportunidades e que permitam fazer das
oportunidades realidade. As escolhas se dão em vários planos e entrecruzam
a diversidade das possibilidades sempre em relação. Daí ser impossível querer
a liberdade como uma propriedade individual que só serve para constituir os
outros como concorrentes – afastando a ideia de que minha liberdade vai até
onde começa a do outro, como se houvesse uma cerca entre uns e outros. A
liberdade entendida como tecido em relação tem em seu conteúdo a respon-
sabilidade consigo e com os outros, que não nasce como decorrência, mas é
lhe é constitutiva. Ou seja, a responsabilidade não vem como recíproca, mas
como doação. Isto não exclui as recíprocas, apenas as põe num outro patamar.
Educar em direitos humanos é, assim, educar para a liberdade como respon-
sabilidade e para a responsabilidade como liberdade. Não se trata de escolher
entre direitos e deveres; trata-se de vivê-los como exercício combinado, nunca
podendo estabelecer prioridade a uns ou a outros. O sujeito de direitos é, assim,
sujeito livre e criativo com os outros, nunca contra os ou apesar dos outros.

Propor-se a educação direitoshumanizante exige tomar em conta um conjunto


de desafios concretos que dependem menos de uma decisão de vontade ou

36
de uma norma vinculante e apontam mais para a configuração de posiciona- 11. Vale a pena ver a posição de Walter
mentos criativos que reponham o que significa fazer educação muito além do Benjamin, particularmente em Sobre o
conceito de história, assim como o comen-
ensino. Coerentes com o que já desenvolvemos, os desafios se concentram em
tário de Michael Löwy (2005), ver referên-
formar sujeitos de direitos em perspectiva integral, multidimensional. Por isso, cia completa ao final.
exploramos três aspectos que sistematizam a tarefa da educação em direitos
humanos: a memória, a verdade e a justiça estendidos a toda a educação.
Não há educação em direitos humanos sem memória! A memória é cons-
titutiva do modo de vida no qual se situam e se fazem os sujeitos em intera-
ção com o ambiente (natural e cultural) e com os outros humanos (não contra
eles). A memória é constitutiva da historicidade (da temporalidade e da finitude),
mas também da possibilidade de transcendência a ela. Este desafio exige uma
nova compreensão do tempo, superando perspectivas lineares e que alargam
por demais o futuro em detrimento do passado e do presente, ou o presente em
detrimento do passado e do futuro.11 Reforçar a memória não é sinônimo de re-
afirmação pura e simples da tradição de simples alargamento do passado; pelo
contrário, é compreender o passado como parte constitutiva do presente e do fu-
turo. Por outro lado, não é sacrificar o passado e o presente em nome de um futu-
ro largo e de progresso; pelo contrário, é compreender o presente como exercício
de realização do “já-não” e do “ainda-não” que fazem parte das práticas atuais.
O desafio da educação em direitos humanos como memória exige a crítica
contundente a todas as formas de esquecimento cínico, aquele que costuma so-
brepenalizar as vítimas da história (e das violações de direitos, os “sujeitos sujei-
tados”) em nome do avanço, do progresso. A educação em direitos humanos que
não for capaz de reconstrução da memória não como simples descrição da histó-
ria, mas como vivência dos significados dos processos históricos, não será capaz
de formar sujeitos de direitos que se compreendam como agentes da promoção
dos direitos em qualquer área do conhecimento e em qualquer tipo de educação
que for. Um exemplo para ilustrar: um arquiteto que não tenha a compreensão
do significado da construção do espaço urbano como espaço de disputa e de
integração para certos setores e de segregação para as maiorias dificilmente terá
condições de trabalhar na perspectiva da cidade como direito e como espaço de
exercício dos diversos direitos. É a memória das muitas vítimas das cidades, visí-
veis e invisíveis, que poderá fazer da educação em direitos humanos um exercício
de direitos humanos e um compromisso com a promoção dos direitos humanos.

37
12. Ver, neste sentido, a proposta de Joa- Não há educação em direitos humanos sem verdade! A verdade (não
quín Herrera Flores (2002) sobre o univer- absoluta, muito menos relativa) como busca de assentimento e convergência
salismo de chegada e de Boaventura de
é constitutiva da afirmação dos conhecimentos e também das vivências, até
Sousa Santos (2006) sobre a ecologia dos
saberes [referência completa ao final]. porque sujeitos se fazem em relações verdadeiras e de confiança. Este desafio
exige uma nova concepção de racionalidade capaz de lidar com a diversidade
dos saberes e da verdade. O reconhecimento de diferentes tipos de racionalida-
de não necessariamente advoga sucumbir ao relativismo. Pelo contrário, é exi-
gência para lidar com a pluralidade de forma construtiva, o que repõe a uni-
versalidade, não de partida, mas como horizonte a ser buscado.12 A ecologia
dos saberes se constitui em desafio que exige muito mais do que o tratamento
de cada área ou cada especialidade por si mesma; exige o desenvolvimento de
perspectivas interdisciplinares e até transdisciplinares. A vigência da ordem
dos saberes pelo disciplinamento acadêmico que constitui cânones incomuni-
cáveis entre as várias racionalidades e, em consequência, entre os múltiplos
saberes é o desafio central a ser superado. A verdade, neste sentido, é menos
um dado ou uma posse e mais uma construção em diálogos complexos.
Por isso, o desafio da verdade como tarefa da educação em direitos hu-
manos exige enfrentar tanto o dogmatismo [e seus fundamentalismos] quanto
o relativismo, dado que ambos são cínicos já que tendem a não reconhecer
legitimidade à diversidade das formas de saber e de verdade como constitu-
tiva de sujeitos de direitos. Por seu lado, o dogmatismo, inviabiliza as múl-
tiplas possibilidades fechando-se numa perspectiva unificacionista do saber
que tende a reduzir tudo o mais a ceticismo crasso ou a simples ignorância
e não-saber. O relativismo, por seu turno, mesmo que pareça reconhecer a
diversidade, não a trata, porém, em perspectiva de pluralidade, ou seja, não
admite qualquer tipo de convergência possível, redundando por inviabilizar
a afirmação de sujeitos, dado que perde qualquer possibilidade de interação,
nem que seja comparativa, entre os diversos tipos de racionalidade, de saber e
de verdade, fazendo-se funcional ao modelo competitivo do consumismo indi-
vidualista vigente. É por inviabilizar os sujeitos, cada um a seu modo, que tan-
to o dogmatismo quanto o relativismo são posturas inadequadas à educação
comprometida com direitos humanos. O desafio central está na promoção da
ecologia dos saberes. Neste sentido, é da qualidade da verdade que se constrói
nos processos de produção e de disseminação do saber que se pode estabelecer

38
convivência e interação que sejam adequadas e favoráveis a afirmação de
sujeitos de direitos.
Não há educação em direitos humanos sem justiça! A justiça é exigência
que só pode ser efetivada pela promoção de práticas que tenham como conteúdo
central, de um lado, a superação das desigualdades e, de outro, a superação das
discriminações. A promoção do acesso aos bens materiais e simbólicos necessá-
rios à vida com dignidade e a promoção do reconhecimento da singularidade, da
particularidade e da universalidade dos sujeitos se constituem, juntas, a síntese
do que significa a formação para a justiça como combinação complexa entre dis-
tribuição e reconhecimento. Fazer justiça é muito mais do que implantar na terra
uma ideia de reino dos fins ou do que compor interesses de forma a maximizar
a felicidade em detrimento da dor. Trata-se, além de promover oportunidades,
também da promoção de condições, dado que oportunidades sem condições po-
dem se tornar vãs e condições sem oportunidades podem reificar relações.
Por isso, o desafio da justiça exige construir condições capazes de iden-
tificar e reparar violações de direitos (reparar as vítimas) e, acima de tudo,
promover e proteger as pessoas e seus direitos de forma que a dignidade possa
ser concreta no cotidiano. Isso exige a crítica a todas as formas de cinismo que
relegam a igualdade à quimera e a diversidade à desigualdade (discriminação)
e que faz da justiça sequer uma promessa. O compromisso da educação com a
justiça informa todos os processos educativos na perspectiva de constituí-los
como dinâmicas de estabelecimento de novas relações, neles mesmos enquan-
to estão sendo realizados e no que promovem desde sua realização.
Em suma, memória, verdade e justiça constituem trinômio fundamental
de uma educação em direitos humanos que seja educação direitoshumani-
zante. Sujeitos só se constituem e se fazem com os outros. Esta educação se
propõe como ação contra o mais fácil e o mais conveniente. Estes, de regra,
colaboram para produzir resultados que reforçam práticas e processos que
dispensam a dignidade e, em consequência, inviabilizam, interditam e sub-
jugam sujeitos. Por isso, enfrentar os desafios aqui identificados é investir na
realização da dignidade do sujeito como conteúdo intransitivo dos direitos
humanos. Acima de tudo está o desafio de orientar [e reorientar] o conjunto
da ação educativa de forma a fazê-la como exercício dos direitos humanos,
formando sujeitos de direitos.

39
13. Como defende Joaquín Herrera Flores A educação direitoshumanizante exige a construção do que se poderia
no artigo Direitos humanos, interculturali- chamar de “racionalidade de resistência”.13 Isto significa dizer que está posta a
dade e racionalidade de resistência (2002).
exigência de educar para que as pessoas não sucumbam às formas perversas,
funcionalizadas e naturalizadas de desumanização, tão comuns às sociedades
contemporâneas. O outro lado da formação para a resistência, que é parte da
mesma ação, é a formação para a cooperação.
A resistência é a atitude que constitui as múltiplas possibilidades de
construção do humano como solidariedade visto pôr as relações de coopera-
ção como características do modo humano de ser, sem o que certamente os
humanos já teriam extinto a si mesmos como espécie. É inclusive como for-
ma de cooperação e de solidariedade com os mais fracos, as vítimas, que faz
sentido a resistência, dado que ela se caracteriza por fazer dos humanos seres
capazes de indignação e de movimentação para fazer frente a todas as formas
e violência e de inviabilização do humano. Assim que, a resistência faz sentido
como mediação para a construção de relações humanas e humanizadas, de
cooperação na tarefa de humanização, por um lado, e para o enfrentamento
duro e consistente de todas as formas e relações desumanizadoras, por outro.
A perspectiva da resistência, como diz Herrera Flores, aponta para um
movimento que caminha em sentido contrário a

[…] todo tipo de visão fechada, seja cultural ou epistêmica [e], a favor de
energias nômades, migratórias, móbiles, que permitam deslocarmo-nos
pelos diferentes pontos de vista sem a pretensão de negar-lhes, nem de
negar-nos, a possibilidade de luta pela dignidade humana (2002, p. 23).

Trabalhar a resistência neste sentido indica que a construção dos direitos


humanos reúne solidariedades. O que se quer de alternativo ao modo de vida
hegemônico desumanizante não pode repetir o mesmo modo massificador,
fechado e uniformizador. Por isso, a abertura ao movimento e ao outro é ca-
racterística forte da resistência.
O movimento e a mobilização são componentes fundamentais para que os
sujeitos de direitos humanos se constituam em processos organizativos e orgâ-
nicos de resistência. O direito à resistência não pode ser transformado em sinô-
nimo de delinquência e passar a ser desmoralizado e criminalizado – o “discurso

40
da ordem” é sempre o discurso deste tipo.14 Afinal, o direito de exigir os próprios 14. Ver a posição de Castor Bartolomé
direitos é dos direitos humanos o mais fundamental e educar-se para tal é essen- Ruiz (2009).

cial numa época em que a resistência, da organização, da movimentação, ações


15. Ver a proposta de Enrique Dussel
criminalizadas. Aprender a se organizar com os outros é a lição mais elementar (2000; 2001).
dos direitos humanos. Isto por que, os processos de libertação, e entre eles os
16. Para um mapeamento deste debate
processos de luta por direitos humanos, são processos de afirmação de vítimas
ver, entre outros, A justiça perante uma
que não aceitam sua condição e se põem em luta para superar esta condição e crítica ética da violência, de Castor Bar-
para instaurar um mundo no qual tenham lugar como sujeitos de direitos.15 tolomé RUIZ (2009, p. 87-111), texto no
A cooperação como forma de construção de alternativas para a viabilida- qual faz uma belíssima reflexão sobre a
crítica ética da violência.
de do humano e de sua humanização é aspecto fundamental da educação em
direitos humanos. Apesar das discussões das possíveis interações entre a com-
petição e a cooperação,16 não há dúvida de que a cooperação não é dispensável
em processos de humanização e de que ela sempre é salutar para isso, sendo
que o mesmo não se pode sempre dizer de toda a competição, mormente no
modo como a conhecemos no capitalismo avançado. A educação direitoshu-
manizante há que investir de forma significativa para fazer frente a todas as
formas de individualismo possessivo que não mais vê fronteiras em se apossar
inclusive dos outros humanos, coisificando-os, de forma a propor alternativas
de construção de espaços de convivência nos quais a cooperação seja a marca.
Vivenciar no cotidiano, como forma de vida, as novas formas de cooperação é
o caminho para que os direitos humanos se realizem.
Enfim, a educação direitoshumanizante tem como tarefa central direi-
toshumanizar os sujeitos humanos para que, por sua ação, sejam capazes de
direitoshumanizar o mundo. Os direitos humanos não podem mais ser apenas
um expediente de interesse das conveniências do poder e menos ainda discur-
so retórico ilustrado. Os direitos humanos continuam a fazer sentido enquanto
se tornarem ação efetiva dos sujeitos em suas relações. Por isso o neologismo
direitoshumanizar se apresenta como um novo verbo, transitivo, de ação; e
direitoshumanizante é mais que um simples adjetivo querendo-se um substan-
tivo, como que a indicar o que é fundamental no processo educativo.

41
Reênciasfer ácasbilogr

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Ana Maria Klein
Doutora em Educação. Professora da UNESP e Consultora ONU/
PNUD;UNESCO em Educação em Direitos Humanos(2010-2011).

Monica Abrantes Galindo


Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Pro-
fessora Assistente da UNESP.

Raul Aragão Martins


Doutor em Psicologia. Livre-Docente em Psicologia da Educação
pela Universidade Estadual Paulista - UNESP.

3
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NAS ESCOLAS: 1. O Parecer nº 8 CNE/CP/2012 e a Resolução nº
UM PROJETO A SER CONSTRUÍDO PELA 01 CNE/CP/2012 - instituem as Diretrizes Na-
cionais para a Educação em Direitos Humanos.
COMUNIDADE ESCOLAR

Ana Maria Klein


Monica Abrantes Galindo
Raul Aragão Martins

1. Introdução

A Educação em Direitos Humanos (EDH) é um compromisso internacional


datado do século XX, desde que a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
DUDH, (ONU, 1945) foi proclamada pela ONU e afirmou em seu preâmbulo a
importância da educação para os Direitos Humanos. Essa importância foi rei-
terada em Viena, no ano de 1993, durante a Conferência Mundial das Nações
Unidas sobre Direitos Humanos. Nesta ocasião, criou-se internacionalmente
a responsabilidade estatal em relação à educação formal e das instituições
sociais em relação à educação não formal, cabendo a cada país o desenvolvi-
mento de ações nesta direção.
O Brasil ao ratificar a DUDH e as convenções, declarações e tratados
subsequentes se compromete com a EDH e o Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos, PNEDH, cuja primeira edição data de 2003 (BRASIL, 2006)
é um marco na efetivação deste compromisso.
Nove anos após a formulação do PNEDH o país deu um passo decisivo em
direção à concretização da EDH na educação formal. Em maio de 2012 o Con-
selho Nacional de Educação, por meio da homologação ministerial, aprovou as
Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos1. Cabe acrescentar que
as Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos foram instituídas
pelo Conselho Pleno do CNE – Conselho Nacional de Educação, isto é, pela
Câmara de Educação Básica e pela Câmara de Educação Superior. Assim sendo,
sua abrangência inclui além da Educação Básica, a educação em nível superior.
Com isso todos os níveis de educação do país – da Educação Infantil à Pós-
-graduação – deverão contemplar a EDH em seus projetos e práticas educativas

47
As DCNs consideram a autonomia da escola e da sua proposta peda-
gógica, cabendo acada instituição adequar os princípios, fundamentos e
procedimentos a sua realidade. O intuito é orientar as praticas educacionais
brasileiras, respeitando as matizes curricularesestaduais e municipais. Tais
adequações nas instituições educativas formais têm como principal instru-
mento os Projetos Pedagógicos.
Este capítulo tem por objetivo refletir sobre as principais ideias que dão
corpo à EDH e sobre a construção coletiva dos Projetos Políticos Pedagógicos-
nas escolas, como via de concretização dos princípios e valores da EDH.

2. Ideias centrais à EDH

Educação em Direitos Humanos é uma bandeira de Justiça, Liberdade,


Solidariedade, Igualdade, Paz e Tolerância. Valores e práticas que dão
um sentido profundo não apenas ao nosso trabalho, como, sobretu-
do, às nossas vidas. Direitos Humanos são um compromisso de mu-
dança, de transformação para uma sociedade mais justa e solidária.
(GENEVOIS, 2007 p.12)

Atuar na promoção de direitos e na conscientização sobre os mesmos


nos leva à importância da educação e nas possibilidades do que pode ser feito.
Por meio de ações educativas voltadas à EDH temos a oportunidade de formar
seres humanos sensíveis aos princípios e valores que reconhecem a centralida-
de do ser humano no mundo, a dignidade humana como fundamento da vida
social, que reconheçam a igualdade nas diferenças e que repudiem a desigual-
dade. A educação é uma das principais vias para o despertar de um novo olhar,
de uma cultura baseada em valores democráticos e humanizadores.
A força da lei pode coibir atos violentos, discriminatórios, mas não neces-
sariamente contribui para o reconhecimento da igualdade e da dignidade hu-
mana. Uma lei pode ser respeitada pelo temor de ser punido e não pelo respeito
ao principio que a gerou. Daí a importância de transcender a dimensão jurídica
e atentar-nos, também, à dimensão ética relacionada aos Direitos Humanos.

48
Ainda que estejamos nos referindo a direitos, a EDH trata fundamentalmente
de princípios que guiam a vida humana nas instituições e na sociedade.
Não se trata de negar ou subestimar a importância da dimensão jurídico-
-politica. A EDH surge e se desenvolve em contextos marcados por múltiplas
relações políticas, sociais, culturais e econômicas, assim ela não se dá apartada
de seu entorno, pelo contrário é estritamente vinculada ao mesmo e o retroa-
limenta, apontando para a transformação do contexto. Mas devemos reconhe-
cer que a educação é uma via imprescindível a uma sociedade que pretende
transformar suas relações tendo por base princípios éticos e democráticos.
Magendzo (2009) analisa as principais ideias vinculadas a EDH defen-
didas por autores de países ibero-americanos e aponta nove “ideias-força”
presentes nestas concepções.
A primeira delas associa a EDH a uma educação contextualizada que
surge e se desenvolve em articulação com um contexto social, econômico,
politico e cultural, sofrendo influencias dele e podendo transforma-lo.
A segunda refere-se a uma educação construtora de democracia. Apenas
um regime democrático garante os direitos humanos e cria instâncias que legi-
timam a EDH. Por outro lado, esta educação tem como objetivo central desen-
volver nos estudantes as competências para o exercício ativo da democracia,
sua defesa e seu aperfeiçoamento. Magendzo (op.cit) afirma que a EDH nasce
como reação e antidoto às ditaduras, aos conflitos bélicos e às democracias de
fachada que os países ibero-americanos vivenciaram.
A terceira reconhece seu caráter político transformador. Na medida em que
a EDH objetiva formar pessoas críticas e comprometidas com a transformação
social, ela tem um caráter eminentemente político. A EDH deve ser um compro-
misso de promoção ativa dos direitos humanos com uma dupla dimensão: políti-
ca e pedagógica. A dimensão politica supõe compreender e trabalhar, por exem-
plo, os marcos normativos dos direitos humanos, nacionais e internacionais, os
regimes de governo, sua posição e compromisso frente aos direitos humanos, a
diversidade étnico-cultural da população, as relações entre Estado e sociedade
civil, entre outros aspectos de tal natureza. Para a sua promoção é necessário
uma plataforma filosófica, legal, e vontade politica consensuada pelo Estado.
A dimensão pedagógica exige igual preocupação conceitual e de ação,
por exemplo, metodologias e linguagens adequadas aos destinatários, com

49
especial atenção às variáveis (idade, sexo, etnia, língua, cultura, espaço real,
condições de vida); os conteúdos multidimensionais e interdisciplinares dos
Direitos Humanos, seu desenvolvimento em ambientes educativos promotores
de direitos, a inserção curricular (disciplinar ou transversal), a avaliação, a
relação com a comunidade, entre outros (RODINO, 2009).
A responsabilidade dos Estados em relação à EDH se manifesta por meio
de diversos instrumentos e conferencias internacionais. O discurso oficial
transformou-se em politica pública. No Brasil, o Plano Nacional de Educação
em Direitos Humanos (BRASIL, 2006) marca o compromisso do Estado com a
EDH como uma politica pública. Com isso ela é reconhecida nas normativas
internas e pode se incorporar por meio das diretrizes aos Projetos Políticos
Pedagógicos de escolas, faculdades e universidades.
A quarta discute sua amplitude concebendo-a como uma educação in-
tegral-holística. Esta não é uma ideia presente desde o inicio da EDH. À época
das ditaduras predominava uma visão normativa-jurídica. A concepção de
uma educação que devesse fazer parte da vida cotidiana, com caráter proces-
sual, vivencial e ético é mais recente. Foi com a década das Nações Unidas
para a EDH (1995-2005) que se estabeleceu esta visão holística, por meio do
Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (UNESCO, 2005).
Uma educação integral e emancipadora transcende o aprendizado sobre
os direitos humanos e inclui também a implementação dos direitos na prática,
na vida dos sujeitos e grupos. Os seres humanos têm a capacidade de conhecer
a realidade, de refletir sobre ela e sobre as ações, ou seja, trata-se da cons-
cientização que pressupõe não apenas o conhecimento sobre a realidade, mas
também a sua capacidade de transformar esta realidade.
A quinta trata da dimensão ético-valorativa. A Declaração Universal
dos Direitos Humanos (ONU, 1948) traz como premissa fundante que todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e devem
relacionar-se fraternalmente uns com os outros. Aqui estão postos valores
centrais: valor absoluto do ser humano, igualdade, liberdade e fraternidade.
Compreender, respeitar e promover os Direitos Humanos pressupõe a criação
de disposições internas em cada ser humano para que os valores mencionados
sejam de fato valorados e constituam-se como guias para a vida social. Outros
valores são igualmente importantes, tais como a democracia, a inclusão, a

50
educação e a cultura, a justiça, o trabalho e o lazer, o meio ambiente saudável,
a inclusão, a criticidade e problematização da realidade, dentre outros que
fundamentam não apenas a DUDH, como também pactos e tratados firmados
nas últimas décadas.
A sexta ideia associa a EDH a uma educação construtora da paz. Consi-
dera-se que a paz é um direito humano essencial para educar em uma ética de
solidariedade. A relação entre Direitos Humanos e educação para a paz é de
interdependência, uma vez que a violência em qualquer uma de suas manifes-
tações é um espaço para a violação de direitos. A educação para paz é fruto da
justiça e da igualdade e seu fundamento é a dignidade humana.
Contextos sociais pós-conflito nacional, marcados por necessidades hu-
manas básicas não atendidas são fontes de conflitos nos quais a injustiça e
a violação da dignidade humana violam direitos (ANDREOPOULOS, 2007). A
respeito de sociedades e relações que violam direitos, o sociólogo polonês Zyg-
munt Bauman (2013) ressalta que as pessoas exploradas e desprezadas tendem
a reproduzir tais atitudes com outras pessoas. A vitimização não enobrece suas
vítimas, acaba sim, por destituir-lhes de sua humanidade. A violência, a desu-
manidade, a humilhação e a vitimização geram cadeias resistentes à ruptura
ou ao corte, ou seja, a violência gera violência num ciclo que se auto reproduz
por meio da vitimização.
Cabe acrescentar que o conflito é inerente às relações humanas e constitu-
tivo da democracia. Nas escolas ocorrem conflitos diariamente envolvendo seus
atores (gestores, docentes, discentes, funcionários, pais e mães) e revelam dife-
rentes olhares e necessidades de cada um dos segmentos ou entre ideias, crenças
e valores entre os sujeitos. Muitas vezes, busca-se acabar com o conflito temen-
do-se que ele gere ações e reações violentas por parte dos envolvidos. Perde-se
assim, a oportunidade de análise das causas do conflito, dos seus efeitos em
relação à violação de direitos e do enfrentamento pacífico do conflito, por meio
do diálogo. Este tipo de discussão pode ajudar os estudantes a compreender as
diferenças entre conflitos construtivos e destrutivos e a sua importância para a
transformação social. Desenvolver a EDH é, também, refletir, discutir, posicio-
nar-se e buscar formas de enfrentamento de situações conflituosas.
A sétima discute a EDH como construtora do sujeito de direitos. A ideia
de sujeito de direitos é fruto das numerosas inter-relações do sujeito com os
outros e com seu meio. O sujeito de direitos não é um ser passivo que espera
51
que seus direitos lhe sejam concedidos por outrem, consiste, sim, em um ser
reflexivo que pensa, sente e interage em um fluxo de relações e em seu con-
texto. Ele se constrói na prática cotidiana com os direitos humanos. Assim,
falar na formação deste sujeito no ambiente escolar implica a convivência em
ambientes promotores de direitos, onde estes sejam vivenciados e exercitados
cotidianamente, em todas as relações que tem lugar na escola, das interpesso-
ais, às relações dos estudantes com o conhecimento e da escola com a comu-
nidade na qual se insere. Envolve também uma concepção de mundo, de ser
humano e uma vontade de transformação. Tudo isso fundamentado em uma
ética que coloca o ser humano e sua dignidade como elementos centrais das
ações, objetivos, planejamentos, enfim do processo educativo.
A formação do sujeito de direitos envolve também a responsabilidade
para com o outro e com o outro. Isso significa que fazer valer um direito en-
volve a responsabilidade de cada um, inclusive em assumir assuntos que não
são “meus”, mas aborda-los como se fossem. Trata-se de uma dimensão ética
que pressupõe a consideração do “outro” e da reciprocidade.
A oitava refere-se às decisões curriculares e pedagógicas. A decisão do
que entra no currículo e, sobretudo, do que fica de fora dele não é neutra, é
uma decisão politica, valorativa (escolhemos aquilo que consideramos social-
mente importante) e se pauta em concepções e pensamentos pedagógicos. O
mesmo se dá em relação às competências que se pretende desenvolver junto
aos estudantes. Outro ponto importante relacionado a esta ideia refere-se ao
currículo oculto, aquilo que não é explicitado, mas está presente na cultura e
clima escolares, na organização e gestão institucional, nos objetivos e conteú-
dos das disciplinas, enfim naquilo que se desenvolve cotidianamente na escola
e não consta de seus planos de aula e projetos.
Esta ideia envolve a consideração da interdisciplinaridade dos Direitos
Humanos e da sua inserção transversal nos currículos. A EDH é um processo o
que significa que não bastam aulas ou palestras sobre seus conteúdos e temas.
É necessário adota-la como um modo de vida que envolve conhecimentos sobre
os Direitos Humanos, valores democráticos e humanizadores e práticas. Dito de
outra forma, é preciso conhecer, querer e saber agir na sua defesa e promoção.
Sua presença não se dá apenas por meio do currículo explicito, mas sim e,
sobretudo, por meio do currículo oculto, guiando concepções, ações e relações.

52
A nona e última, centra a discussão nas tensões que precisam ser enfren-
tadas. A EDH envolve conflitos, tensões e contradições. Os conflitos sociais,
políticos, econômicos se fazem presente no debate sobre os diretos humanos.
Há polêmicas e valores em torno de questões éticas, como por exemplo, no de-
bate sobre o direito à vida e as múltiplas dimensões a serem consideradas. Há
o preconceito que, no caso brasileiro, associa os Diretos Humanos a “direitos
de bandidos”. Os pontos de divergência, conflito e tensão devem ser debatidos
e os preconceitos desconstruídos. Daí a necessidade de trabalharmos nas três
dimensões já mencionadas: conhecimentos, valores e práticas.
As ideias sobre EDH, presentes na visão de diferentes autores ibero-ame-
ricanos (MAGENDZO, 2009) revelam princípios e valores que reafirmam a dig-
nidade humana e a democracia como sistema político e processo; a formação
de sujeitos ativos, conscientes de suas responsabilidades, críticos e compro-
metidos com a transformação social num ambiente promotor de direitos e
formador de valores éticos.
Ideias, princípios, valores mostram o sentido a ser seguido, a essência da
educação pretendida. Os caminhos para transformar ideias em práticas devem
ser discutidos e planejados por cada escola, de acordo com a sua realidade,
com seus desafios e suas possibilidades. Daí a importância de um projeto dis-
cutido e formulado pela comunidade escolar (gestores, docentes, discentes,
funcionários, mães e pais), onde cada segmento contribua efetivamente com
ideias e assuma o compromisso perante ao que foi planejado.

3. Educação em Direitos Humanos nos Projetos Políticos Pedagógicos

A EDH objetiva a construção de ambientes educativos promotores de direitos,


constituindo-se como um modo de vida capaz de orientar todas as relações
que têm espaço nos ambientes escolares e na sociedade. Este tipo de educação
se realiza na interação, nas relações, por meio das experiências pessoais e/
ou coletivas e referem-se desde as relações interpessoais entre os diferentes
sujeitos que integram o ambiente educacional até as relações que os sujeitos
estabelecem com o conhecimento e com o meio no qual estão inseridos.

53
Há uma grande flexibilidade em relação à introdução da EDH nos cur-
rículos. Os Direitos Humanos são interdisciplinares e transversais na medida
em demandam a contribuição de diferentes saberes para a sua compreensão
e se alicerçam nas experiências e vivencias dos sujeitos. De qualquer forma,
não bastam aulas sobre Direitos Humanos. Seja qual for a entrada escolhida
é preciso um amplo espaço de reflexão no qual toda a comunidade escolar
planeje e insira no Projeto Político Pedagógico as ações destinadas à criação
de um ambiente comprometido com os direitos humanos. Este deve ser um
trabalho intencionalmente voltado a tal finalidade onde devem ser discutidas
formas de relacionamento e normas de convivência; metodologias de trabalho
e técnicas avaliativas que considerem o estudante como elemento central no
processo ensino-aprendizagem, valores democráticos e humanizadores que se
concretizam nas relações cotidianas.
As Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (BRASIL,
2012) em seu artigo 6º refere-se explicitamente à necessidade de se considerar
a EDH na formulação dos Projetos Político-Pedagógicos (PPP); dos Regimentos
Escolares; dos Planos de Desenvolvimento Institucionais (PDI); dos Programas
Pedagógicos de Curso (PPC) das Instituições de Educação Superior; dos ma-
teriais didáticos e pedagógicos; do modelo de ensino, pesquisa e extensão; de
gestão, bem como dos diferentes processos de avaliação.
O Projeto Político-Pedagógico (PPP) é o instrumento que norteia a tota-
lidade dos âmbitos da ação educativa e cuja elaboração requer a participação
de toda a comunidade escolar. Trata-se de um projeto coletivo que expressa
simultaneamente o que a instituição é e aquilo que ela pretende ser. Um PPP
visa a transformação, direciona-se ao futuro mediante a consideração do pre-
sente, aliando teoria e prática educativa.
No âmbito escolar há diferentes projetos desde os pedagógicos direcio-
nados a determinados temas e conteúdos curriculares, passando por projetos
de vida dos seus sujeitos e incluindo o projeto institucional que diz respeito a
toda a comunidade escolar, o Projeto Político-Pedagógico (PPP).
O Projeto Político-Pedagógico é político na medida em que tem por ob-
jetivo a educação do indivíduo para uma determinada sociedade, ou seja, tra-
ta-se da formação para a cidadania, o que pressupõe, princípios, valores e

54
práticas democráticos. Neste sentido, implica em escolhas de: conteúdos, me-
todologias, organizações de tempo e espaço, dentre outras.
Reconhecer a natureza política do projeto que orienta uma escola significa
ter a consciência de que nem a escola, tampouco a educação são espaços neu-
tros. Todas as escolhas sobre como, para quem e porque realizar algo revelam
opções, não somente em relação ao que entra na escola, mas também ao que
fica de fora dela. Em outras palavras, um projeto politico pedagógico traduz
opções que se referenciam em valores, concepções de mundo, de ser humano,
de aprendizagem e de sociedade e devem levar em conta anseios, necessidades,
especificidades de todos/as os sujeitos que integram a comunidade escolar.
O Projeto Político-Pedagógico é pedagógico, pois trata das ações educa-
tivas que a escola empreenderá no sentido da formação desejada. São as ações
pedagógicas que concretizam o ideal político do projeto.
A consideração do que está instituído e daquilo que se pretende alcançar
relaciona-se diretamente com a realidade de cada escola, com seu cotidiano,
com a diversidade de seus sujeitos, com as suas dificuldades e suas possibili-
dades. Assim sendo, não se pode conceber um PPP construído verticalmente,
ou seja, emanado do ministério ou das secretarias de educação. Diante de ce-
nários múltiplos não há como pleitear um modelo ou padrão único de projeto.
No entanto, é possível elencar algumas características que tal instrumento
deve apresentar, pois é preciso reconhecer que as escolas necessitam de apoio
técnico e de estímulo para empreenderem a tarefa de elaboração de um PPP.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nº 9395/96 (BRASIL, 1996) estabelece a
obrigatoriedade da construção de um projeto político-pedagógico nas escolas.
Em seu art. 12, a LDB ressalta que

…os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do


seu sistema de ensino, terão incumbência de: elaborar e executar sua
proposta pedagógica; informar os pais e responsáveis sobre a frequência
e o rendimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta
pedagógica (BRASIL, 1996).

Essa mesma lei, no art. 13, destaca dentre as atribuições docentes:

55
(…) participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento
do ensino; elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta
pedagógica do estabelecimento de ensino (iden).

Legalmente, portanto, está assegurada a autonomia institucional na


elaboração do PPP, bem como a obrigatoriedade da participação docente
neste processo.
A autonomia institucional, a gestão democrática e o engajamento de
todos os segmentos da comunidade escolar são condições básicas para que o
PPP não seja apenas uma carta de boas intenções.

(…) o projeto é um meio de engajamento coletivo para integrar ações


dispersas, criar sinergias no sentido de buscar soluções alternativas
para diferentes momentos do trabalho pedagógico-administrativo, de-
senvolver o sentimento de pertença, mobilizar os protagonistas para
a explicitação de objetivos comuns definindo o norte das ações a se-
rem desencadeadas, fortalecer a construção de uma coerência comum,
mas indispensável, para que a ação coletiva produza seus efeitos
(VEIGA, 2003, p.268).

A elaboração e a execução de um PPP não é de responsabilidade exclusi-


va do/a diretor/a ou dos/as docentes, são processos que compreendem a totali-
dade da comunidade escolar. Deve-se, no entanto, ter em mente que a direção
da escola exerce o papel de liderança nos referidos processos, por este motivo a
escolha do/a diretor/a escolar deve ser democrática. A pessoa eleita para assu-
mir tais responsabilidades deve representar os valores e anseios da comunidade
escolar, pois as garantias da elaboração e da execução democráticas de um PPP
dependerão da postura e das opções políticas e pedagógicas do/a diretor/a.
Outro ponto a ser destacado em relação aos processos democráticos rela-
ciona-se à participação dos membros da comunidade não apenas na elabora-
ção do projeto, mas na sua execução. Gadotti (1994) destaca que o PPP precisa
ser percebido e vivenciado por todos/as e isso envolve a escolha do livro
didático, o planejamento do ensino, o estabelecimento do calendário escolar, a
participação efetiva na organização de eventos culturais, de atividades cívicas,

56
esportivas e recreativas. Trata-se de viabilizar a convivência em um ambiente
de fato democrático concretizado por meio das relações interpessoais, da orga-
nização do trabalho pedagógico (em sala de aula e de todas as atividades fora
da sala de aula), das metodologias adotadas, enfim, a participação esperada vai
muito além da presença em reuniões, ela se traduz cotidianamente em atitudes,
métodos e processos.
Pode-se, portanto, afirmar que um projeto político-pedagógico compre-
ende o currículo da escola, as metodologias e o próprio modo de organizar a
vida escolar. Assim sendo, não nega o instituído da escola, mas o confronta
com a realidade e as novas exigências sociais, adotando novos horizontes
(GADOTTI, op.cit).
A formulação de um PPP envolve uma reflexão coletiva e o questiona-
mento crucial sobre os conteúdos escolhidos para integrar o currículo. Envol-
ve, também, a consciência e coerência em relação às opções que faz e às metas
pretendidas. As metas que guiam os projetos não são definidas aleatoriamente
pelos indivíduos, o que significa que não é qualquer meta que vale a pena ser
perseguida, senão aquelas que têm importância para a comunidade escolar; a
definição de metas, portanto, se efetiva sempre face a um cenário de valores e
esses são sócio-histórico-culturalmente situados.
É precisamente na escolha consciente sobre o que ensinar, como ensinar,
com quais objetivos ensinar e sobre quais valores orientam essas escolhas que
se insere a reflexão sobre a Educação em Direitos Humanos. Este tipo de edu-
cação extrapola a dimensão dos conteúdos e se refere, sobretudo, a um modo
de orientar a vida na escola e na sociedade. Envolve valores democráticos e
humanos, relações de respeito e solidariedade e conteúdos que visam a forma-
ção de sujeitos de direitos.

3. Algumas considerações

A variedade de relações entre seres humanos é ampla, o que torna os direitos


humanos dinâmicos, em constante discussão, reivindicação e transformação.
Por isso, a EDH se desenvolve em contextos reais, a partir de experiências,
necessidades e problemas dos sujeitos (estudantes, comunidade escolar, comu-

57
nidade na qual a escola se localiza) e das relações destes entre si, com a sua
escola, sua comunidade e com o seu governo.
A elaboração coletiva do Projeto Político Pedagógico constitui-se numa
excelente oportunidade de reflexão conjunta sobre a realidade escolar, as ne-
cessidades e os anseios dos sujeitos que integram a escola. Mais do que isso
é a oportunidade da instituição assumir valores e práticas coerentes com uma
educação humanizadora e comprometida com a formação crítica dos sujeitos.

[…] qualquer esperança de promover o contato das pessoas com a cons-


ciência crítica e com a ação social está diretamente relacionada à sua
capacidade de refletir sobre experiências e situações que tocam profun-
damente a sua vida (BUTKUS, apud MEINTJES, 2007, p. 134).

58
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59
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60
Claudeir Aparecido de Souza
Doutorando em Letras pela universidade Federal do Espírito Santo, Mestre em
Letras pela Universidade Estadual de Maringá.

Débora Ceciliotti Barcelos


Auditora Federal e Mestre em Direito pela Ufes.

4
CONTRIBUIÇÃO À DISCUSSÃO SOBRE A
IMPOSSIBILIDADE DO “DIREITO DE TODOS”:
O CASO DO CURRÍCULO MÍNIMO NACIONAL

Claudeir Aparecido de Souza


Débora Ceciliotti Barcelos

1. Introdução

O reconhecimento do caráter universal da educação figura em documentos tais


como a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, de 1948, a De-
claração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, dentre outros tantos (BARI-
FFI, 2009). A Constituição Federal de 1988 também reconhece a educação como
um direito de todos, abrigado no âmbito dos direitos fundamentais. Entretanto,
mais do que reconhecer o direito de igualdade de oportunidades, o direito à
educação na perspectiva dos Direitos Humanos é uma potência atenta às possi-
bilidades de diminuição das desigualdades sociais e da discriminação, sobretudo
dos não-privilegiados. No mundo das desigualdades, não há grandes ganhos em
se afirmar igualdades e universalidades, posto que o reconhecimento de direitos
se efetiva, sobretudo, a partir da constatação da ausência de tais princípios.
Não nos basta mais concluir que todos os seres humanos são dotados
da mesma dignidade, posto que isso não evita que seres humanos continuem
vítimas de violências e discriminações por motivos sociais, culturais, políticos,
étnicos, religiosos, dentre outros (RABENHORST, 2008).
Por isso, parece-nos simplista a ideia de um direito universalizado cujos
benefícios possam ser gozados igualmente pelo conjunto da sociedade sem
prejuízos a certos grupos, posto que a complexidade social engendra relações
de ordens distintas. A simples observação de que vida digna – não obstante a
possível problematização do entendimento de dignidade – é um privilégio em
nossa sociedade, denuncia a fragilidade do pressuposto de direitos estendidos
à totalidade da sociedade.
É fato social reconhecido a valorização dos direitos humanos como fruto
do impulso vindo das conquistas de certos grupos sociais. Tais direitos estão

62
na esteira da construção e sustentação de instrumentos que possibilitem a hu-
manização e a emancipação de seres humanos, uma vez que os pactos sociais,
institucionalizados ou reconhecidos pelas instâncias legais ou burocráticas,
não sustentam um estado de direito para além do lastro moral de seus discur-
sos (Carbonari, 2009). Os pactos sociais encontram-se, pois, longe de esgotar o
conteúdo dos direitos humanos.
Considerando o problema arrolado, visamos, neste texto, discutir e ques-
tionar as relações que sustentam a ideia de currículo escolar mínimo como um
direito capaz de ser estendido à totalidade da sociedade sem provocar prejuí-
zos ou privilégios aos diferentes segmentos sociais. Tomamos como recorte o
contexto histórico que culminou na promulgação da Constituição de 1988. A
análise de alguns documentos, ainda que sucinta e de aspectos determinantes
de fatos políticos atuam como vigorosos objetos no empenho de mais bem
sustentarmos os argumentos.
Outrossim, espera-se contribuir na discussão sobre os currículos escolares em
funcionamento frente ao desafio da promoção da Educação em Direitos Humanos.

As polêmicas acerca do currículo escolar denunciam o caráter político da sua


natureza e funcionamento.

O currículo nunca é apenas o conjunto neutro de conhecimentos, que


de algum modo aparece nos textos e nas salas de aula de uma nação.
Ele é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado de uma seleção
de alguém, da visão de algum grupo do que seja conhecimento legítimo.
É produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e eco-
nômicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE, 2011, p.71).

Nas tensões e conflitos próprios do ser humano subjaz um jogo de forças


entre diferentes posicionamentos. Tomando tais embates como pano de fundo
ideológico, é oportuno vislumbrar, a exemplo, certa propensão à adoção de
um Currículo Mínimo nacional, sobretudo no cenário da construção e pro-
mulgação da Constituição Federal de 1988. Cumpre verificar porque a ideia

63
de currículo mínimo permeia os planos educacionais produzidos sob a moti-
vação democrática. Na mesma medida, é oportuno verificar em que medida
tal motivação política impressa nas propostas de currículos dialogam com a
perspectiva dos direitos humanos.
Sem um exame mais apurado, somos impelidos a pensar que a ideia de
um currículo mínimo nacional encontra, de imediato, guarida na Educação
em Direitos Humanos (doravante EDH), para quem a equidade, propalada nos
direitos fundamentais, é princípio elementar.
Com efeito, o desejo de construção de uma educação geral, no Brasil da
Nova República e pós-Constituição de 1988, remonta ao cenário em que atuou
a Frente Democrática, grupo de parlamentares federais que efetuou as costuras
políticas e alianças populares em torno de uma agenda mínima capaz de re-
conduzir o país à democracia, o que culminou na eleição indireta de Tancredo
Neves e na “proclamação” da Nova República (CUNHA, 1999). Àquela época,
figurava na perspectiva democrática o “combate a qualquer espécie de discri-
minação e preconceito quanto à religião, sexo e raça” (CUNHA, 1999, p.26), em
favor da proteção dos direitos das minorias.
Não obstante a intempestiva recondução ao centro do poder político de
setores da direita nacional, face à condução circunstancial de José Sarney à
presidência da república, o discurso de uma educação para todos cristalizou-
-se rapidamente nos planos educacionais que se seguiram. Podemos encon-
trar, nesses planos, objetivos de unificação curricular tais como:

unificar os currículos de 1º grau das redes públicas e particulares, vi-


sando à construção de uma escola básica unitária, sem desrespeitar as
diversidades regionais (CUNHA, 1999, p.275).

Da mesma forma, frente à ameaça de financiamento da educação pri-


vada com capital público, proposta por alguns constituintes no calor do
embate entre forças políticas progressivas e conservadoras, por ocasião da
construção da referida Constituição, certas vozes progressistas, ligadas às
universidades, capitaneadas pela Universidade de Brasília, com seu Centro
de Estudos e Acompanhamento da Constituinte e o Conselho Nacional de
Secretários de Educação (CONSED), embora apontassem acertadamente para

64
preocupações de ordem pedagógica que levavam em conta as diferenças re-
gionais, reiteraram a defesa de uma educação básica e comum a todo o país,
seguindo o clima de consenso, sem o qual a construção da Carta Magna não
teria logrado êxito:

O ensino será em todo o território nacional, de boa qualidade e unifi-


cado, entendido este como formação básica, comum e necessária, di-
verso no seu modo de ser e na adaptação às peculiaridades locais e nos
métodos pedagógicos utilizados, a fim de combater as desigualdades
existentes no País e promover a democratização do saber e da cultura
(CUNHA, 1999, p. 431).

Assim, vê-se no ideário que forjou nossa educação pública pós-governos


militares, tanto de direita, quanto de esquerda ou de coalizão, _ que, por sua
vez, terminou por centralizar as decisões da Constituinte (MEIRELES, 2012), _
certa preocupação com um currículo mínimo nacional, cuja motivação política
sustenta-se na tentativa de aproximação com as demandas populares silencia-
das sobretudo pelo regime militar.
O Poder Constituinte e o poder de uma coalizão não estão vinculados
a formas jurídicas e procedimentais. Em tais exercícios de poder, descansam
todas as faculdades e competências constituídas e acomodadas à Nação. Eles
se estabelecem a partir de uma categoria extrajurídica cuja natureza filia-se,
antes, ao político e ao sociológico. Por imputação, torna-se representante da
Nação quem por ela for designado a agir em nome do povo.
À guisa de mais bem explicitar o caráter preponderantemente político
das propostas de intervenção social presentes na Constituição de 1988, é opor-
tuno pensar na filiação ideológica das mesmas a partir das palavras de José
Carlos Toseti Barrufini:

Todas foram constituídas por um poder preexistente no próprio Estado,


que traçou linhas para seu futuro. (…) Assim, cada processo constituinte,
enquanto ação portadora de uma nova concepção de Direito, traz, em si
também, toda uma tendência formalista de institucionalização do pro-
cesso político (BARRUFINI, 1976, p.11).

65
Adiante-se que tal herança passadista pode ser imputada ao ideário que
forjou a Nova República. O caráter reformista da Carta forjada sob a política
da coalizão não conseguiria, de fato, dar vazão às demandas sociais reprimidas
desde o regime militar e do acirramento das forças capitalistas de mercado.
Com efeito, o discurso representativo das demandas populares fez-se oportuno
à legitimação e cristalização de certo pensamento conservador.
José Afonso da Silva (2003) aponta uma contradição na democracia con-
temporânea pela qual os princípios fundamentais elitistas são incorporados às
teorias democráticas. Assim, a realização dos anseios de determinados grupos
hegemônicos na sociedade fica garantida por meio de uma estrutura demo-
crática. Dessa forma, a elite, formada de acordo com a tendência democrática
posta em uso, tem sua agenda legitimada pelos princípios democráticos. O
chamado “elitismo de dirigentes”, pelo qual o povo não estaria apto a pensar
as ações sociais necessárias, cabendo essa tarefa a determinado grupo de po-
der, subverte a verdadeira face da democracia em que o povo teria seus direitos
garantidos. É esse o processo pelo qual não se efetivam, de fato, os direitos do
povo, mesmo sustentados pela Constituição em vigor.
No nosso país, em especial, o corporativismo dos grupos de poder pode
ser tomado como caso em que o sistema democrático é cooptado pela coalizão
dos grupos de poder em seus anseios. Nessa perspectiva, os interesses que re-
percutiram na pauta do Congresso Nacional a partir de então, ganhando com
isso legitimidade, nem sempre traziam, de fato, a essência das reivindicações
populares. Atendiam, antes, aos interesses de determinados grupos de poder
ou categorias profissionais.
Tais grupos de poder, intentando legitimidade às suas atividades, não tra-
tam, inclusive, as reivindicações dos setores progressistas da sociedade historica-
mente subjugados como uma ameaça, uma vez que os efeitos do regime de exce-
ção que estes buscavam extirpar geravam descontentamentos em vários setores
da sociedade, tanto da classe trabalhadora quanto da elite política e econômica.
Veja-se como reflexo disso o apego ao nacionalismo de diversos matizes
e à estatização de ações de determinados setores da sociedade, a recorrência
ao planejamento, à burocracia e à previdência. Entretanto, isso se dá quando,
na verdade, o mundo rendia-se à descoberta das polpudas vantagens da livre
iniciativa, da internacionalização dos mercados, do enxugamento do Estado,

66
das técnicas privadas de produção, da redução da máquina estatal em favor da
diminuição de custos sociais (MEIRELLES, 2012).
Ademais, o interesse de alguns grupos de empresas detentoras de mono-
pólios foi encampado pela concepção de interesse nacional presente na Cons-
tituição. Somando-se ao peso exagerado com o qual o Estado arca, a força
corporativa dos grupos de poder ainda exigiu dele uma série de tarefas, intrin-
cadas até para Estados mais avançados do que o nosso.
Entrementes, esboça-se aqui um dos paradoxos da democracia, pois, atual-
mente, o Estado, ao criar novos direitos sociais, obriga-se a novas funções, com
o que não só aumenta a sua presença na sociedade como especialmente tende a
ampliar a máquina técnico-administrativa. Acerca disso, segundo Bastos (1994),
até o judiciário teria sido envolvido nessa teia de contradições, na imprecisão de
institutos como o mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão,
como tentativas de lançar coerções sobre o Estado. O esforço do judiciário para
o cumprimento da lei termina por gerar instabilidade entre as instituições.

2. Comentário à ideia do currículo mínimo

Parece-nos que a ideia de um currículo mínimo para a educação nacional car-


rega a capacidade de aglutinar elementos que podem ser tomados como repre-
sentativos de anseios nacionais, sejam eles legítimos ou não. Há certo compo-
nente de identidade nacional em tal proposta. Um currículo nacional mínimo
apresenta-se como um produto sintético de experiências do passado tidas como
positivas. Em nosso caso recente, especificamente, pode ser tomado como um
construto da coalizão política que pretendia atingir um centro comum a todos os
anseios: das demandas sociais reprimidas, da tradição conservadora no controle
do Estado e das forças do mercado. O currículo mínimo é um espaço onde todas
as forças descarregam suas energias, como escreve Michael W. Aplle (1994):

É assim que um currículo nacional (…) se torna capaz de, a um só tempo,


objetivar uma ‘modernização’ curricular e uma eficiente produção de
melhor ‘capital humano’ e de representar um anseio nostálgico por um
passado romantizado (APPLE, 1994, p.86).

67
Pode-se dizer que ao ser apresentado no conjunto das demandas sociais,
das elites nacionalistas e das exigências do mercado, o currículo mínimo as-
cende à categoria de um sistema nacional de padrão capaz de ser avaliado
por instrumentos igualmente padronizados, o que, de um lado, sugere certa
manutenção de um nível elevado de conhecimentos àqueles que se julgavam
excluídos dos ganhos sociais, e, de outro, serve ao mercado como instrumento
de aferição do seu potencial frente às demandas crescentes do capital. A esse
respeito escreve Apple (1994):

O currículo nacional possibilita a criação de um procedimento que pode


supostamente dar aos consumidores escolares com ‘selo de qualidade’
para que as ‘forças de livre mercado’ possam operar em sua máxima
abrangência. Se for para termos um mercado livre na educação, ofere-
cendo ao consumidor um atraente leque de ‘opções’, então o currículo
nacional e sobretudo o sistema de avaliação nacional atuarão, em es-
sência, como uma comissão de vigilância do Estado para controlar os
‘excessos’ do mercado (APPLE, p. 88).

Veja-se que o currículo padrão vigendo sob o controle político das ações
do Estado serve à suposta legitimação a partir do pressuposto da igualdade
de direito, princípio que sustenta uma determinada sociedade e é sustentado
por ela. No mesmo movimento, o Estado, conservador “por natureza”, visa a
apresentar-se como instância capaz de controlar o fluxo do mercado. Este, por
sua vez, é, entretanto, muito dinâmico, não se deixando regular por princípios e
valores presentes na sociedade. O mercado privilegia sempre suas demandas. A
quem pensar, por exemplo, que, por meio do currículo mínimo nacional pode-
-se extinguir a diferença entre escolas públicas e privadas, o mercado respon-
derá com sua lógica interna de fluxo de capital, capaz de privilegiar certos seto-
res em detrimento da grande maioria, sem “crise” de consciência, como vemos.
Embora ainda se possa ver no currículo mínimo nacional uma oportuni-
dade para que os pais possam avaliar a escola dos filhos, vê-se que a exacerba-
ção desse processo de controle particular de qualidade conduz a classificações
e categorizações das crianças, o que, em última análise, resulta na construção
irreversível de estigmas negativos, perfazendo uma relação em que os critérios

68
podem até ser objetivos, mas não os resultados, “dadas às diferenças de recur-
sos e classe social” (APPLE, 1994, p. 89) e segregações em geral.
Apple (1994) menciona, ainda em seu trabalho, as implicações advindas
das distinções entre o “nós” e “os outros”, diferenças recrudescidas pelas desi-
gualdades entre as classes sociais, terminando por consolidarem antagonismos
sociais e culturais, numa relação em que o polo socialmente menos favorecido
assiste à negação de seus direitos por meio do esfacelamento de um sistema
que deveria garanti-los e não negá-los.
Ao fim e ao cabo, no currículo mínimo, a ênfase acaba recaindo sobre os
resultados. Parece-nos que num Estado propenso à adoção, mesmo que velada
de tal modelo de currículo, as tecnologias da educação voltam-se à elaboração
de sistemas de avaliação e controle capazes de quantificar, na verdade, a efici-
ência de determinada gestão. Ainda que os processos de avaliação não sejam
adequados, a lógica de seu funcionamento tem de ser percebida e internalizada
por todos, uma vez posta em ação a infraestrutura de controle do Estado. Tudo
isso pode se dar, inclusive, em detrimento da própria aprendizagem, feita,
assim, coadjuvante de um processo que resultará em números expostos em
estatísticas; que contra números não há argumentos. Não é à toa que ainda
na primeira década do século XXI os governos intensificaram a ação de seus
processos avaliativos com instrumentos tais como a Prova Brasil, ENEM, etc.,
para se “ver quem pode mais” em educação de norte a sul país.
O grande equívoco está em se pensar que, frente às diferenças entre pretos
e brancos, operários e classe média, pobres e ricos, homens e mulheres, etc., o
currículo possa ser apreendido da mesma forma. É evidente que os educandos,
marcados pelas injunções das suas relações sociais, respondem diferentemente
a uma mesma proposta curricular. Ademais, a quem disser que a flexibilização
dos currículos, em que certos conteúdos são adaptados a certas realidades, tor-
nando-se o mecanismo por meio do qual respeita-se as especificidades de cada
grupo social, poder-se-ia dizer que, na prática, o que se faz é negar a alguns cer-
tos conhecimentos fundamentais à formação integral, crítica e libertadora, como
propõem os pensadores educacionais das últimas décadas. Em outras palavras,
um currículo mínimo não pode dar conta de lidar com a heterogeneidade social.
Há, pois, que se pensar num currículo capaz de compreender e lidar com
a heterogeneidade social a partir da apreensão das raízes das diferenças e

69
desigualdades. Nem a história, nem os interesses sociais devem ser homoge-
neizados. Um currículo capaz de tratar com igualdade os seres humanos deve
considerar a desigualdade entre eles.
Analisando o caso específico dos Estados Unidos, Apple (1994) escreve
a respeito disso:

Em meio à imensa diversidade linguística, cultural e religiosa, que é


a essência da nossa criatividade e das mudanças contínuas de nossas
vidas, vem a política cultural da direita querer ‘superar’ essa diversida-
de. Pensando estar reinstituindo, ela está na verdade inventando uma
cultura comum (…) (APPLE, 1994, p. 92).

No nosso caso, especificamente, em que a Direita pode ser tomada como


a coalizão que “conduziu” a construção dos pilares da recente democratiza-
ção, os indicadores educacionais colhem todos os anos exemplos negativos
de aprendizagem, posto que, na arena das salas de aula, lutam contendores
supostamente iguais, à revelia de que a igualdade pressupõe por si a suposição
da desigualdade.

3. Considerações finais

A ideia de que a política consegue produzir remédios para todos os males


indiscriminadamente imputa ao Estado a realização da hercúlea tarefa de res-
ponder às diversas demandas de uma sociedade cada dia mais complexa. Resta
que, no embate de forças entre a luta pela garantia da propalada dignidade hu-
mana e os reclames do mercado, o que pensávamos ser um direito, garantido
pela lei e pela cultura, configura-se num engodo, dada à impossibilidade de se
levar a efeito o discurso praticado pelas instâncias de poder.
Resta que as coalizões políticas pressupõem certa homogeneização das
demandas sociais. Entretanto, as demandas específicas do mercado prevalecem
sobre as demais por conta da dinamicidade que ele tem. Ao fim e ao cabo, per-
dura a perversidade do ajuste das demandas sociais a produzir medidas tidas
como capazes de beneficiar a todos, sem, de fato, fazê-lo.

70
A ideia de um currículo capaz de atender, indistintamente, a toda a po-
pulação de modo a considerar o princípio da dignidade humana é exemplar da
utopia do direito de todos. Com efeito, o que se vê é a formação de nichos de
privilegiados, em detrimento da grande maioria.

71
Reênciasfer ácasbilogr

APPLE, Michael W., A política do conhecimento oficial: faz sentido a ideia de um currí-
culo nacional? In Currículo, cultura e Sociedade. Antonio Flavio Moreira e Tomaz
Tadeu (Orgs.), 12 ed., São Paulo, Cortez, 1994.

CUNHA, Luiz Antônio. Educação, Estado e Democracia no Brasil. 3 ed., São Paulo,
Cortez, 1999.

RABENHORST, Eduardo R., O que são Direitos Humanos? In Direitos Humanos: capa-
citação de educadores / Maria de Nazaré Tavares Zenaide, et al. – João Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 2008.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 125.

108 MEIRELLES, Delton Ricardo Soares; Luiz Cláudio Moreira Gomes. Gestão demo-
crática das cidades: acesso à justiça a partir dos juízes leigos comunitários.
Disponível em: <www.ibdu.org.br/ Acesso em: 27 jul. 2012.

109 MEIRELLES, 2012.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1994.

BARRUFINI, José Carlos Toseti. Revolução e poder constituinte. São Paulo: Revista
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BARUFI, Elder. A educação como um direito do homem. In Direitos fundamentais


sociais: Estudos em homenagem aos 60 anos da declaração dos direitos hu-
manos e aos 20 anos da Constituição Federal. Dourados, MS: 2008.

72
Vilma de Fátima Machado
Professora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Hu-
manos – UFG. Coordenadora do Curso de Especialização em Educação para
Diversidade e Cidadania – UFG.

Flávio Alves Barbosa


Professor da Universidade Estadual de Goiás e professor formado no Curso de
Especialização em Educação para Diversidade e Cidadania – UFG.

5
EDUCAÇÃO AMBIENTAL PARA ALÉM DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Flavio Alves Barbosa


Vilma de Fátima Machado

Estamos propondo pensar a Educação Ambiental como espaço privilegiado


de uma práxis capaz de romper com a ideia de desenvolvimento criada pela
modernidade e atualizada, em tempos recentes, na noção de desenvolvi-
mento sustentável. Estamos propondo uma batalha contra a colonização e
aprisionamento da Educação Ambiental pelo Império do Desenvolvimento
Sustentável. A nossa proposta guarda similitude com a batalha de Teseu con-
tra o Minotauro que habitava o palácio do rei Minos, narrada pela mitologia
grega. E, então, recorreremos a ela para nos ajudar a deixar mais evidente
não só a força do inimigo (Desenvolvimento), mas, também, as possibilidades
de ir além dele.

Conforme a mitologia Teseu, um jovem herói ateniense, sabendo que a


sua cidade deveria pagar a Creta um tributo anual, sete rapazes e sete
moças, para serem entregues ao insaciável Minotauro que se alimentava
de carne humana, solicitou ser incluído entre eles. Em Creta, encon-
trando-se com Ariadne, a filha do rei Minos, recebeu dela um novelo
que deveria desenrolar ao entrar no labirinto, onde o Minotauro vivia
encerrado, para encontrar a saída. Teseu adentrou o labirinto, matou o
Minotauro e, com a ajuda do fio que desenrolara, encontrou o caminho
de volta. Retornando a Atenas levou consigo a princesa (DIAS,s/d).

A escolha desse mito se deu em razão da visão que temos do mundo


ocidental moderno e contemporâneo: pensamos que em vários aspectos ele
assemelha-se a um labirinto. E é nesse labirinto que vamos entrar para des-
construir a ideia de desenvolvimento e colocar em discussão o conceito de
ambiente, de educação ambiental e de direitos humanos que têm servido de
suporte para modo produção capitalista. Essa é a primeira parte do texto.

74
Na segunda parte do texto, buscamos apontar elementos que poderiam 1. Sobre os desafios da Educação na con-
nos ajudar na construção de caminhos para encontrarmos a saída do labirinto. temporaneidade, vale a pena conferir o que
pensa o educador espanhol, In: Desafios da
E o fio de Ariadne que vislumbramos é a ideia de envolvimento. Desde já,
Educação Jorge Larrosa Bondia/Espanha.
antecipamos que envolvimento não é oposto de desenvolvimento, mas um ca- Disponível em: http://www.youtube.com/
minho para sair dele A proposta reflexiva é construir um caminho que é uma watch?v=AzI2CVa7my4.

espécie de terceira margem. E assim é porque está fora do espectro do modo de


produção capitalista. Então, ele não é alternativo, porque ele não gravita em
torno de uma proposta oficial, fazendo oposição a ela e reforçando a lógica
dualista que é própria do capitalismo.
Com a ideia de envolvimento, não queremos parar na denúncia ou mes-
mo sugerir algo do tipo salvação da pátria. In-tencionamos explicitar as con-
tradições, as incoerências, as violações de direitos humanos e do ambiente,
mas, além disso, e porque estamos trabalhando com educadores e educadoras,
somos convidados a ser propositivos(as). Como provoca Dias (s/d) citando Jor-
ge Larrosa, “[…] teremos que aprender a viver de outro modo, a pensar de outro
modo, a falar de outro modo, a ensinar de outro modo”.1
Neste sentido comecemos a pensar de outro modo. Deixemos nos trau-
matizar com o que está à nossa volta, pois o pensamento começa com um
trauma, como bem disse Lévinas ao ser indagado por Philippe Nemo sobre
como se começa a pensar.

Philippe Nemo – Como se começa a pensar? Com perguntas que, após acon-
tecimentos originais, fazemos a nós mesmos ou acerca de nós próprios?
Emanuel Lévinas – Isso começa provavelmente com traumatismos ou
tacteios a que nem sequer se é capaz de dar uma forma verbal: uma se-
paração, uma cena de violência, uma brusca consciência da monotonia
do tempo (LÉVINAS, 2000, p. 15).

Então, pensemos o mundo, a realidade das crianças, das mulheres, dos


homens e suas relações entre si e com o ambiente, a trajetória histórica do de-
senvolvimento, as desigualdades, a exclusão, a justiça, a pobreza e o empobre-
cimento, a homogeneização cultural, a produção, o consumo e os problemas
ambientais, os direitos humanos e a educação ambiental, em espaços formais
e não formais de educação.

75
2. Cf. vídeo-documentário sobre o episódio Pensando tudo isso, caminhemos em direção ao Outro humano, para
em: http://www.youtube.com/watch?v=qH além desse de quem falamos nobremente, mas que está sendo violado a cada
QdWwZcGlg
instante e que não percebemos essas violações se não acontecem conosco.
Ou ainda, mesmo quando acontece conosco agimos no sentido de naturalizá-
-las. Busquemos modos de ver o outro e nós mesmos fora das naturalizações
que invisibilizam a possibilidade do comum, do coletivo. Presos no Labirinto,
somos governados pela lógica do indivíduo, do isolamento reforçado pelas
infinitas paredes construídas para não percebermos o Outro humano e não hu-
mano. Pensamos que na percepção e no envolvimento com o outro é possível
construir uma saída para a prisão do Labirinto.
O desafio é transcender a tese, já naturalizada, de que ambiente é ape-
nas uma extensão do homem, está fora dele, e por isso pode ser explorado,
maltratado com doses incomensuráveis de agrotóxicos e consumido até a
exaustão. Transcender essa ideia é afirmar que a vida é inalienável. Quando
respeitamos e reconhecemos o ambiente por inteiro também respeitamos
crianças, homens e mulheres. Mas também o contrário é verdadeiro: quan-
do não respeitamos a(s) natureza(s) não respeitamos mulheres, crianças e
homens. Para ilustrar o que estamos dizendo basta lembrar o fato ocorrido
em uma lavoura no Estado de Goiás, noticiado pela imprensa em nível na-
cional, cujo teor geral das manchetes foi: “avião pulveriza lavoura e ignora
presença de escola próxima à plantação e acaba por atingir crianças e pro-
fessores com agrotóxico”2.
Um fato como esse define quem é humano para aquele que manda es-
palhar o agrotóxico-veneno. Ou será que ele pulverizaria a sua casa estando
nela sua família? Nas linhas desse acontecimento, está dito quem tem direito
e a quem ele é negado. Portanto, está claro nele, como o agronegócio vê os
direitos humanos e quem pode ter esses direitos. É evidenciado quem deve ser
consumido, assassinado. Esse fato é ontológico, revela um modo de ser no
mundo; uma maneira de ver o Outro e de se relacionar com ele.
Ante um acontecimento que é apenas uma amostra do que ocorre dia-
riamente no mundo, e antes de adentrar no estudo sobre o desenvolvimento,
lembramos aqui a força das palavras de Bertolt Brecht

76
Nós vos pedimos com insistência
Não digam nunca
Isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia
Numa época em que reina a confusão
Em que corre o sangue
Em que o arbítrio tem força de lei
Em que a humanidade se desumaniza
Nunca digam nunca:
Isso é natural!
Para que nada possa ser imutável!
(Domínio público)

Com Brecht queremos que esse texto seja uma espécie de convocação
para não permanecermos silenciosos diante dos gritos desesperados daqueles
que são cotidianamente encurralados pelo Minotauro contra as paredes do
Labirinto. E parte desses viventes somos nós, professores e alunos, convivendo
diariamente no mesmo espaço chamado escola, seguindo dia após dia como
se não estivéssemos vendo e ouvindo nada, nenhuma lamuria, nenhum grito,
nenhum desespero e quando por um trauma conseguimos ouvir, sentir, ou ver
alguma coisa tratamos logo de dizer: “melhor deixar pra lá, afinal as coisas são
assim mesmo, não tem outro jeito, não tem saída”.
Pensar a partir do Outro, seja ele humano ou o Não humano, exige de nós
abertura, disposição e desejo para promover aproximações, construir redes,
partilhar saberes e lutar para que todos os direitos sejam para todos e todas.
Isso implicará que abandonemos a linha retilínea e contínua do progresso e
assumamos a lógica inclusiva/envolvente de uma espiral.

1. Desenvolvimento como promessa: construção e reforma do


labirinto moderno

Mais do que um conjunto de proposições, ideias e princípios calcados na cren-


ça de que a aliança entre razão, ciência e técnica seria o caminho para a

77
libertação de todas as opressões humanas, a modernidade, de acordo com San-
tos (2001) pode ser entendida como um Projeto Sócio Cultural. Este projeto
emerge no processo de desagregação da ordem feudal, ganha contornos mais
definidos com a filosofia iluminista e é posto em operação ao se converter em
instrumento da expansão capitalista. Desde as grandes navegações essa alian-
ça Projeto Sócio Cultural da Modernidade e Capitalismo tem se aprofundado
e a cada crise ou contradição que se configura no desenrolar histórico vem
demonstrando uma grande capacidade de reorganização e atualização de sua
lógica. E qual seria essa lógica a que estamos nos referindo? Para refletirmos a
respeito comecemos por buscar entender o sentido da modernidade.

A ideia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirma-


ção de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma
correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais
eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da
sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interes-
se, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões (…).
A humanidade agindo, segundo suas leis, avança simultaneamente em
direção à abundância, à liberdade e à felicidade (TOURAINE, 1999, p. 9).

A logica que vai caracterizar o desenrolar histórico do projeto moderno


se configura a partir da conversão dessa racionalidade – produzida no seio do
pensamento iluminista – em objetivos políticos e sociais, e pela instrumenta-
lização do estado moderno como agente central no seu processo de execução.
Ainda pensando com Touraine,

A nação não é a figura política da modernidade, ela é o ator principal da


modernização, o que significa que ela é o ator não moderno que cria uma
modernidade sobre a qual ela procurará preservar o controle, ao mesmo
tempo que aceitará perdê-lo em parte, em benefício de uma produção
e de um consumo internacionalizados (1999, p. 146 – grifos do autor).

A promoção do desenvolvimento é o eixo articulador da aliança entre


modernidade e capitalismo. O conhecimento científico entendido como aquele

78
mediado por uma técnica, por um distanciamento radical entre sujeito (aquele
que conhece) e objeto (aquilo que é conhecido) oferece a base para a criação
de tecnologias capazes de potencializar a capacidade dos homens de colocar a
natureza sob seu controle, sob seu domínio e ao seu serviço. A promessa do de-
senvolvimento é a possibilidade de crescente satisfação das necessidades huma-
nas. É essa promessa que funciona como atração para adentrarmos o Labirinto.
Ocorre que essa satisfação nunca é alcançada, está sempre se renovando.
A lógica que rege o Labirinto é a da acumulação e não da suficiência. Sempre é
possível ir mais longe do que já se foi – como no bordão do personagem Buzz
Ligthyear no filme Toy History que sempre exclamava: “ao infinito e além!”.
Ou seja, a lógica é a produção e recriação de sociedades insatisfeitas, como
ponderou a filosofa Agnes Heller:

O termo ‘sociedade insatisfeita’ foi cunhado para destacar um traço


conspícuo da identidade ocidental (…). Sugere que a forma moderna
de criação, percepção e distribuição de necessidades reforça a insa-
tisfação, independente de alguma necessidade concreta ser ou não de
fato satisfeita. Além disso, sugere que uma insatisfação geral atua
como uma vigorosa força motivacional na reprodução das sociedades
modernas (1998, p. 29).

Uma vez que enredados na lógica do desenvolvimento é difícil livrar-


-se de suas armadilhas. Pois ela é uma noção hierarquizante, que pressupõe
uma negação, uma dicotomia. Carrega a ideia de evolução, de caminho a ser
percorrido do pior para o melhor e uma vez atingido esse patamar há sempre
outro a ser galgado. Ele pressupõe a insatisfação: o melhor está sempre no
futuro e temos que correr nessa direção sem desviar o olhar e as ações senão
ficaremos atrasados.
A promessa moderna do desenvolvimento foi construída como possível
para todos, bastava trilhar o mapa desenhado na trilha da aliança entre ciên-
cia, tecnologia e capital. Mas não demorou que ficasse clara a impossibilidade
de seu cumprimento. Entre a primeira grande crise que veio à tona por volta
de 1870 e a queda das Torres Gêmeas em 2001, várias adaptações e propostas
de reordenamento no Projeto Sócio Cultural da Modernidade foram sendo

79
3. De um modo geral, podem ser consultados postos em operação. À palavra desenvolvimento, em diferentes contextos foi
como uma boa amostra da discussão, entre acoplado um adjetivo, seja na perspectiva da crítica ou da reforma – desigual,
outros: Santos (1997, 2001, 2010), Harvey
periférico, competitivo, equilibrado, justo, como liberdade, com equidade, sus-
(1992), Giddens (1991), Escobar (2005), Mig-
nolo (2007, 2008), Touraine (1999), Wallesrs- tentável, sustentado, emancipatório, etc. – no entanto nenhum consegue es-
tein (2002), Latour (1994), Stengers (2002) e capar da força substantiva que lhe define como hierarquização, produção de
Norgaard (1994).
desigualdades e diferenças.
A crítica ao modo de operar da modernidade tem se fortalecido nos úl-
timos anos, sobretudo a partir do processo de descolonização que tem sido
empreendido em diferentes áreas de saber e espaços de lutas produzidos no
interior da dinâmica social. A intensificação dessas críticas sinaliza para al-
guns estudiosos não só a configuração de uma crise dos fundamentos da mo-
dernidade, mas principalmente a possibilidade de ocupar lugar na arena das
disputas sociais outros saberes e fazeres antes invisibilizados. Nesta perspec-
tiva é que se colocam os estudos vinculados antropologia da modernidade, da
opção descolonial ou ainda àqueles vinculados às chamadas epistemologias do
sul.3 Em que pese diferenças significativas entre essas abordagens, é comum
entre elas a crítica à força semântica da palavra desenvolvimento e a necessi-
dade de superarmos essa ideia-força que nos coloniza e aprisiona no labirinto
moderno. Esteva (2000), afirma que esta é uma das palavras mais tóxicas já
produzidas, pois seu processo de descontaminação é muito difícil. Podemos
ainda acrescentar que essa contaminação se faz por diferentes e silenciosas e
viciantes toxinas, expelidas nas escolas, nas fábricas, nas universidades, nos
laboratórios, nos lojas, no cinema, na televisão, enfim em quase todos os es-
paços onde as relações capitalistas governam.
Olhemos com cuidado para essa palavra que costumamos usar cotidia-
namente sem pensar na extensão do sentido que ela carrega e no seu poder
tóxico. Olhando para suas raízes etimológicas percebemos que ela traz em sua
morfologia a ideia de negação, de ação contrária, separação e retirada. Como
argumenta Couto,

O prefixo DES freqüentemente indica algo ruim, associado a desfazer,


destruir, […]. Quando aplicado à palavra “desenvolvimento”, o prefixo
DES mantém essa conotação negativa, destrutiva […]. Assim, desenvol-
ver algo é tirar o “invólucro” (a proteção) que o tem protegido, que o

80
mantém inteiro como formação ontológica, como ser, como organismo. 4. Ainda que alguns estudiosos tenham
No caso que nos interessa, “desenvolver” um ecossistema é tirar sua elaborado conceitos mais amplos de desen-
volvimento, tal como o Índice de Desenvol-
auto-defesa, é fragilizá-lo (2007, p. 375).
vimento Humano, construído pelo econo-
mista indiano Amarthya Sem, e economista
Etimologicamente desenvolvimento significa desvencilhar-se, expandir- paquistanês Mahbub, eles não conseguiram
escapar tanto do desenvolvimento, como
-se rompendo os vínculos, as ligações. É importante ter sempre em conta que
do mais reduzido desenvolvimento eco-
as palavras não são neutras, elas são carregadas de conteúdo, que revelam as nômico. Por isso, estão substancialmente
suas intencionalidades. Ou seja, condenados.

5. O não reconhecimento do Outro e, por-


palavras têm força, tem magia, tem a vitalidade de gerar aquilo que
tanto a indiferença diante de seu exter-
dizem. Por isso, quando nos deparamos com certos textos ficamos arre- mínio é constatado facilmente na espeta-
piados com o que ouvimos e vemos (PEREIRA, 2009, p. 39). cularização da violência e naturalização
das práticas de extermínio que temos no-
ticiados nas grandes redes de tv aberta. É
Neste sentido, a palavra desenvolvimento, na história do mundo ociden- recorrente matérias sobre o extermínio de
tal, é uma palavra-texto, é expressão do projeto de sociedade que nasceu com a moradores de ruas nas grandes capitais.
Os grupos de extermínio também são noti-
modernidade e atravessou a história, a ponto de uma dirigente de um dos países
ciados de forma naturalizada como parte do
ocidentais mais desenvolvidos – Margareth Thatcher – Inglaterra, sentenciar o aparato policial. Se na época foi causa de in-
fim da sociedade: “não existe isto que chamam de sociedade, apenas homens e dignação social hoje, poucos se lembram da
mulheres individuais” (apud MITTELMAN, 2013, p. 30). A conhecida “dama de morte do índio Galdino, queimado vivo em
Brasília por adolescentes em abril de 1997.
ferro” reafirmava o indivíduo, como centro, como unidade a ser considerada.
O indivíduo no seu mais completo isolamento é alçado à categoria de único
sujeito social real e, portanto, na lógica que ela reafirma não há que se conside-
rarem os interesses coletivos, ou o bem comum. Só o individuo e sua satisfação
importa. O conteúdo da sentença de Thatcher tem suas raízes na história, na
filosofia e na economia, do ocidente, em síntese no projeto Sócio Cultural da
Modernidade em cuja implementação o governo inglês foi ativo protagonista.
O desenvolvimento tem, pois, a marca genuína de uma filosofia do redu-
cionismo4, da atomização, da dissociação, enfim da reificação. A modernidade
se estabeleceu como um marco zero, rejeitando toda a tradição. E ao fazer
assim, a modernidade se institui como fundamento e totalidade. Fora dela não
há o Outro, não há exterioridade. Então a expansão contínua e progressiva,
o não reconhecimento e o extermínio do Outro foi desde sempre autorizados.
Não precisamos olhar para o governo Inglês para ver como essa lógica de
extermínio do Outro funciona. Ela ocorre de diferentes formas ao nosso redor,

81
6. Síntese do texto disponível em: http:// diante de nossos olhos5. E o que é ainda mais indicativo desse não reconhe-
www.novacartografiasocial.com/downloa cimento é que essa autorização de extermínio é dada não só aos indivíduos,
ds/fasciculos/10-ncsa-alcantara.pdf
mas ao Estado. Para ilustrar, vejamos o trecho a seguir retirado do documento
produzido pelo Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara

Em 1980, o governo militar brasileiro decretou a área de 52.000 hectares


localizada no município de Alcântara, no estado do Maranhão, habitada
por quilombolas, pescadores, agricultores, extrativistas e artesãos, como
área de vazio demográfico. O governo estadual de então decretou como
de utilidade pública pra fins de desapropriação a área acima referida,
para instalação da Base de Lançamento de Foguetes6.

Para o Brasil, a construção de uma Base de Lançamento de Foguetes sem-


pre foi apresentada como sinal de desenvolvimento. Disso não discordamos,
porque realmente a referida Base des-envolveu toda uma região formada por
remanescentes de quilombolas desestruturando-a sócio-culturalmente, dei-
xando-a vulnerável a ataques de toda ordem. E mais, os militares decretaram
a referida área como área de vazio demográfico. Fica evidente nessa história
o seguinte: é premissa do desenvolvimento o não reconhecimento que leva à
eliminação. Em muitos casos, a concretização de projetos de desenvolvimento
envolvem a eliminação de entraves, de estruturas consideradas atrasadas, etc.
Não importa se esses entraves são pessoas, são territórios habitados por hu-
manos e não humanos. Importa que são entraves e precisam ser eliminados.
O desenvolvimento envolve a criação de condições favoráveis e para cria-las
os governos justificam qualquer ação: expulsar, grilar, forçar o êxodo rural,
inundar os territórios de comunidades indígenas e quilombolas com grandes
lagos para hidrelétricas, rever demarcações de terras indígenas, etc.
A modernidade provocou rupturas que deixariam na(s) sociedade(s), na(s)
natureza(s), nas mulheres e homens, marcas indeléveis. E duas a serem desta-
cadas aqui é a impossibilidade de ser, de existir, fora do horizonte uniformiza-
dor estabelecido pela modernidade; e a outra, é o desencantamento do mundo,
a supressão de todo mistério seja do(s) humano(s) ou da(s) natureza(s).
A igualdade é uma ideia fundante da modernidade e foi revolucionária
no sentido de contrapor ao antigo domínio do estamento aristocrático ou-

82
tra forma de sociedade. No entanto, no desenrolar do projeto moderno essa
igualdade não foi convertida em favor da emancipação, ela operou no sentido
de criar subjetividades homogêneas, mutilando e destruindo singularidades,
suprimindo diversidades. Os humanos – enquanto tipo ideal moderno – apre-
sentam-se destituídos de toda a sua originalidade. Reduz-se o plural ao múl-
tiplo. No múltiplo, somos simples exemplares, somos idênticos. Não existimos
a partir de uma cultura particular. A globalização aprofunda esse processo de
homogeneização, aspecto que pode ser observado a partir das festas que se
produzem nas grandes cidades e nas suas periferias ao redor do mundo, nas
comidas, nas roupas que se consome.
Essa homogeneização é naturalizada e a partir dela passamos a negar o
diferente, o Outro, nos o desconsideramos. Não há possibilidade de estranha-
mento, de aproximação. O que não é igual, não é reconhecido. Um exemplo
bastante significativo desse processo de homogeneização e reificação é o uso
que fazemos da palavra natureza. Quando falamos “natureza” estamos falando
de um ente abstrato, sem característica identificável, sem identidade, sem ori-
ginalidade. Quando falamos natureza estamos nos incluindo? Estamos falando
dos rios, ou dos mares? Das florestas, ou seres que nelas habitam? Das savanas
da África ou das geleiras do Ártico? Provavelmente estamos falando de todos
e de nenhum ao mesmo tempo. Estamos tomando como concreto algo que só
é possível enquanto abstração, estamos reificando a natureza e suas múltiplas
identidades, característica e lógicas constituintes.
Essa reificação é o motor que mantem operante o desencanto do mundo,
a ausência de todo mistério, produz o aprisionamento a um único horizonte,
nos mantem no Labirinto.

1.1 Desenvolvimento Sustentável e o esforço para reformar o Labirinto

A economia capitalista é marcada por ciclos de expansão e contração. De


maneira que a cada crise de contração o rastro de miséria e opressão deixado
pelas políticas desenvolvimentistas se faz mais evidente. A concentração de
rendas e riquezas nas mãos de poucos e a penúria da maioria absoluta da
população aspecto que a cada crise parece se aprofundar, vem sinalizando os
limites da promessa moderna de emancipação pelo desenvolvimento. Mas se o

83
não reconhecimento do Outro humano cria as condições de reprodução de de-
sigualdades sociais que são necessárias à operação do projeto sócio cultural da
modernidade, parece sinalizar também os limites desse mesmo projeto. Mas é a
emergência do Outro não humano que parece evidenciar a impossibilidade da
manutenção da aliança fundadora desse projeto de colonização que foi posto
em operação pela modernidade: razão-ciência-tecnologia-desenvolvimento.
A emergência da problemática ambiental parece abrir uma fissura nas estrutu-
ras desse projeto moderno de colonização.
As proposições que constituem a ideia força, ou a palavra texto do De-
senvolvimento sustentável, traduzem, a partir da chave de leitura que estamos
propondo, os esforços de atualização da lógica de operação do desenvolvi-
mento cujo objetivo é manter de pé e em funcionamento o Labirinto Moderno.
A ideia de ser possível como alternativa ao desenvolvimento tradicio-
nalmente hegemônico a construção de um Desenvolvimento Sustentável tem
reunido os interesses mais diversos – desde os mais conservadores aos que
se dizem os mais progressistas – ao ponto de estabelecer um consenso que
tem ocultado a contradição que ela traz em seus termos. Desenvolvimento
sustentável é uma expressão suave, aos ouvidos de muitos. Quase redentora.
Para confirmar isso basta ver a frequência com que se recorre a ela, a fim de
demonstrar que a saída para a humanidade e para o planeta é a promoção do
desenvolvimento sustentável. Não esqueçamos que o substantivo permanece.
Apenas lhe foi agregado outro adjetivo.
Todos os adjetivos acoplados têm força secundária. Não há como pro-
mover desenvolvimento local, se o que move as ações de desenvolvimento
implica em desenraizamento e negação do pertencimento; como realizar de-
senvolvimento humano, se as pessoas são as que menos interessam ao mundo
do capital; como garantir desenvolvimento social, se para o mercado o impor-
tante são indivíduos e não a sociedade; como sustentar a ideia de desenvol-
vimento sustentável, se já cada vez mais é evidente para os povos indígenas,
os africanos e afrodescendentes e, por aqueles de lutam cotidianamente para
não serem devorados pelo Minotauro, que sozinho nada é sustentável, nada
se sustenta. Para existir é necessário estar na teia da vida. A lógica do desen-
volvimento opera em sentido contrário, trabalha para destruir a vida de outros
seres vivos, a fim de sustentar-se.

84
O desenvolvimento da mesma forma que o Desenvolvimento Sustentável
está nu desde a sua criação. Ele nunca esteve envolvido com ninguém e em
nada. Ele é DES-envolvido. E para conquista-lo é preciso entrar no Labirinto.
Ser um indivíduo desenvolvido, desvinculado de tudo, encerrado em si mesmo,
proclamando

nada receber de outrem a não ser o que já está em mim, como se desde
toda eternidade, eu já possuísse o que me vem de fora. Nada receber ou
ser livre (LÉVINAS, 1988, p. 31).

O sujeito do des-envolvimento é aquele cujo mundo não comporta o Outro,


mas está encerrado em sua autossuficiência.
O núcleo da ideia força do Desenvolvimento Sustentável recoloca a pro-
messa moderna de emancipação a partir da erradicação da pobreza e da con-
ciliação entre satisfação das recriadas necessidades humanas e a preservação
da natureza. Sociedade e Natureza juntas como mais uma obra do poder da
racionalidade moderna. A ciência moderna é chamada agora para tratar das
doenças da natureza. A ciência novamente é colocada no centro da produção
de tecnologias capazes de poupar recursos, de orientar técnicas de gestão e
planejamento adequadas à preservação do meio ambiente. A gula moderna
por tudo conhecer e dominar é rearticulada como suporte do novo adereço
(sustentável) agregado ao substantivo desenvolvimento. (ESCOBAR, 1998).
Todos são chamados a se engajarem na busca da sustentabilidade global
e planetária. O planejamento e a gestão de recursos ambientais devem orientar
as ações de todos os grupos sociais, comunidades e seres que habitam o pla-
neta. Todos os espaços são convertidos em “recursos” que devem ser geridos
de forma adequada, e novamente a ciência e seus operadores é que vai dizer o
que é bom para o desenvolvimento e o que não é bom. E como vimos o que é
bom para o desenvolvimento tem o poder de desumanizar.
A adesão ao Desenvolvimento Sustentável é uma adesão ao Desenvolvi-
mento e a todo o seu corolário de hierarquização e reconfiguração e desigual-
dades. Mesmo quando nos colocamos diante de alguma atrocidade do desen-
volvimento e o negamos por ser insustentável, ainda assim estamos aceitando
o desenvolvimento como marco para a discussão (ESCOBAR, 1998).

85
Resta ainda examinar um aspecto que consideramos muito importante
para compreendermos o papel colonizador da lógica desenvolvimentista que
se mantem como eixo das proposições vinculadas à promoção do Desenvolvi-
mento Sustentável. Trata-se da apropriação e potencialização do poder instru-
mental inerente ao conceito de Meio Ambiente.

1.2 Morre a(s) natureza(s) e vive o meio ambiente

A importância da noção de Meio Ambiente fez parte do discurso ambientalista


desde seu nascedouro ganhando importância na medida em que a consciência
ecológica questionava os problemas advindos da expansão do industrialismo.
Desta forma diferentes matizes do ambientalismo contribuíram para o deslo-
camento da noção operante de “natureza” para “meio ambiente” (ESCOBAR,
1998). A partir do conceito de Meio Ambiente é aprofundada uma lógica de
morte da natureza, ou melhor, das naturezas:

Como se usa hoje o conceito de meio ambiente ele se coaduna a uma vi-
são da natureza que está de acordo com o sistema urbano industrial. Todo
o importante para o funcionamento deste sistema se converte em parte
do meio ambiente. O principio ativo desta conceptualização e o agente
humano e suas criações, ao passo que a natureza fica relegada a uma con-
dição ainda mais passiva. O que circula é matéria prima, produtos indus-
triais, dejetos tóxicos, “recursos”. A natureza se reduz a um ente estático,
um mero apêndice do meio ambiente. Junto com a deterioração física da
natureza presenciamos sua morte simbólica. O que se move, cria, inspira
a vida, quer dizer o seu principio organizador, reside agora no meio am-
biente (ESCOBAR: 1998, p. 369 – tradução livre feita pelos autores).

Se vivermos como colonizadores subalternizando, explorando, silencian-


do a vida em todas as suas expressões, seja transformando-a em coisa, em
“vidas secas”, embrutecidas, estéreis ou pela imposição da morte; o meio am-
biente que se configurará é resultado deste modo de estar no mundo.
O modo de viver, inerente à logica do desenvolvimento (insustentável ou
sustentável), nega qualquer possibilidade de relação com o Outro, porque ele

86
é objeto. E objeto é passível de qualquer manipulação, pode ser tirado de um
lugar e posto em outro de acordo com os interesses de que o domine e/ou o
possua. Assim, desvia-se o curso de rios para atender a especulação imobiliá-
ria, promovem-se urbanizações forçadas, deslocam-se populações, inundam-
-se grandes áreas de terras para construir hidrelétricas, e pouco interessa a
vida das comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas que habitavam
nelas, em nome do desenvolvimento o poder público (e também a sociedade
imobilizada no Labirinto) é condescendente com a prática de trabalho escravo,
com a homofobia com o racismo; com extermínio de jovens, sobretudo os
negros e pobres, com a violência contra as mulheres.
Meio ambiente como simulacro de vida, e vida sem espanto, pois todos
e tudo foram homogeneizados, aprisionados no interior de um obscurantismo
esclarecido que conspira para nos manter dentro do Labirinto ou como ope-
rários da sua reforma. Talvez possamos pensar que conspiração é um termo
muito forte para uma lógica que não parece ter um sujeito operante. Mas é essa
sua força. Tudo se move no sentido da

manipulação dos meios de comunicação, da construção da administra-


ção estatal e da política pública como dominação e não como serviço ao
bem comum, como também da manipulação da ciência para dominar,
oprimir, explorar e subjugar as populações. É a mentira pública como
forma de obter benefícios privados (TORRES, 2008, p. 44-45).

E o obscurantismo esclarecido impede as mudanças porque nos impõe


sua lógica umbilicocêntrica que nos faz acreditar que em um mundo fragmen-
tado não se ganha nada dizendo nós e, portanto, a melhor opção é cada um
cuidar de si.
Assim, o meio ambiente que nos salta aos olhos é aquele demarcado
pelo terror, violência e pelo uso espetacular de aparelhos de segurança e vi-
gilância. Nele não é possível garantir a coexistência, porque em cada esquina
encontramos um inimigo e não um(a) companheiro(a). O eixo orientador é
a competição. Nesse ambiente, artefato construído por uma “arquitetura da
exclusão” que apesar de postular “a liberdade de cada um vai até onde come-
ça a liberdade do outro”. O outro não existe. Não é reconhecido, é excluído.

87
7. Crisol é um recipiente onde se derrete Então a liberdade desse Um, tomado como ser reificado e sem identidade,
o metal para apurar as suas qualidades. não encontra limites.
Neste texto, a crisol é uma metáfora para
Presos no Labirinto Moderno, cercados por uma natureza una, desen-
significar que interrogaremos a Educação
Ambiental, colocaremos em questão seus cantada e morta, ainda podemos vislumbrar uma saída desde meio ambiente
limites, possibilidades e otimismo. hostil? Pensamos que sim, e ainda mais, pensamos que o fato de nos perceber-
mos como prisioneiros já oferece oportunidade de encontrarmos uma saída.
Claro que este Labirinto é forte e cheio de armadilhas e estas só serão vencidas
com muita reflexão, criatividade e cooperação – único caminho que temos
contra a naturalização da prisão. Posturas que implicam o permanente esforço
de se compreender como integrante da teia da vida, e compreender, então, que
dela muitos Outros tomam parte e estão envolvidos.
Como propusemos no inicio do texto a ideia de envolvimento pode ser
o fio de Ariadne a orientar nossa caminhada rumo saída do Labirinto. Aqui
vamos trazer a discussão dessa ideia como possibilidade dela se constituir no
eixo da práxis da Educação Ambiental. A partir do envolvimento a Educação
Ambiental pode se converter em um espaço crítico cooperativo de imensa
potência libertadora.

2. O FIO DE ARIADNE: ENVOLVIMENTO E EDUCAÇÃO AMBIENTAL


CRÍTICO COOPERATIVA

Para pensarmos na lógica do envolvimento precisamos resignificar o sentido


de Natureza e Meio Ambiente, conferindo a eles historicidade, concretude,
identidade. É importante compreender o

meio ambiente como um campo de sentidos socialmente construído e,


como tal, atravessado pela diversidade cultural e ideológica, bem como
pelos conflitos de interesse que caracterizam a esfera pública (CARVA-
LHO, 2001, p. 47).

Esta compreensão revela um ambiente em permanente devir, e sinaliza um


rompimento com o dualismo do ser ou não-ser. Meio ambiente como lugar
mantido pelos sentidos construídos na cultura vivida, sócio e historicamente.

88
A natureza como unidade não existe. Temos naturezas perpassadas por feixes 7. Crisol é um recipiente onde se derrete
de sentidos e tempos. Meio ambiente não é algo separado, destacado dessas o metal para apurar as suas qualidades.
Neste texto, a crisol é uma metáfora para
naturezas, mas um conjunto de significados de movimentos, de humanos e significar que interrogaremos a Educação
não humanos, de seres vivos e não vivos, enfim um feixe de relações visíveis, Ambiental, colocaremos em questão seus
invisíveis, imaginárias. limites, possibilidades e otimismo.

Assim sendo, o meio ambiente não existe desde uma data ou existirá
eternamente. Ele é feito e refeito a cada instante segundo a configuração das
relações entre os humanos e os não humanos, das relações estabelecidas ou
por se estabelecer na complexa teia da vida.
A essa visão de meio ambiente articula-se, pois uma compreensão de
ser humano, como um ser genérico, nascido com a idade moderna, sem lugar,
sem memória, porque a vida para ele é tão somente o tempo presente, e o que
lhe preocupa é sua liberdade sem responsabilidade e sua autossuficiência. Ao
articular uma compreensão do humano, opera ao mesmo tempo uma compre-
ensão de Direitos Humanos que reivindica o direito de afirmar que a sua vida é
hierarquicamente superior a de todos os outros seres. Dessa ótica, não há sen-
tido nenhum em falar em interdependência dos direitos humanos econômicos,
sociais, culturais, ambientais e sexuais – DHESCAS.
O que dá lastro a essa concepção de direitos humanos é o cumprimento
dos deveres.

É deste tipo de consciência que nascem expressões como: direitos hu-


manos sim, mas somente para os ‘humanos direitos’. Em outras palavras,
direitos humanos somente para os que cumprem seus deveres e se adé-
quam à ordem estabelecida (CARBONARI, 2008, p. 27).

E quem será que estabelece os deveres a serem cumpridos e qual é a ordem a


ser estabelecida e garantida? Com certeza, não são as mulheres, as crianças,
os gays, as lésbicas, os travestis, os trabalhadores, os desempregados, os jo-
vens, os índios, os pobres e os negros que definem essa ordem. E não o são
porque desses direitos humanos a figura representante é o homem ocidental
branco e cristão.
Um meio ambiente feito de “vidas secas” produz posições extremas e
excludentes de direitos humanos

89
As posições estagnadoras de direitos humanos trabalham com a ideia de
que direitos humanos – e também quem atua com eles – se confundem
com a defesa de “bandidos e marginais”, num extremo; e no outro, que
direitos humanos conformam uma ideia tão positiva e tão fantástica
que é síntese do que de mais belo a humanidade produziu. Pelas duas
pontas, imobiliza: seja porque tocar no assunto compromete negativa-
mente; seja porque tocar na ideia a “estraga” (CARBONARI, 2008, p. 33).

A estagnação das estruturas sociais é o que interessa à sociedade do ca-


pital. Portanto, nada a estranhar se tudo está desligado de tudo. Para ela, meio
ambiente ou natureza é recurso para ser explorado e gerenciado e não possui
vínculo com sociedade; e por consequência entre meio ambiente e os direitos
humanos não há conexão. É essa lógica que o desenvolvimento alimenta e o
envolvimento pode romper.
Para que a educação ambiental promova outra lógica operativa, capaz
de promover a saída da prisão do desenvolvimento, como estamos propondo,
pensamos que ela precisa antes ser colocada no crisol7. Expliquemos melhor.
Colocar a educação ambiental no crisol é assumir que

conhecimento não é apenas crítico, é principalmente autocrítico – ar-


gumentar e contra-argumentar são o mesmo gesto e a mesma dinâmica,
o que impede a impunidade de quem sabe pensar (DEMO, 2004, p. 24).

Agora, impunidade não se trata de “encontrar ‘certo e errado’, muito menos


de ‘culpados e inocentes’” (SATO, 2001, p. 1). O que queremos é colocar-nos
face a face com educação ambiental e interrogá-la para que ela mostre a sua
verdade, podendo com isso escapar do conformismo ou do otimismo, isto é,
romper com a lógica do dualismo e/ou da reificação.
A partir da ideia-chave envolvimento, colocar no crisol é estabelecer
uma crise por meio da seguinte pergunta: com quem e com quê a educação
ambiental está envolvida. E quem e o quê a educação ambiental está (des)
envolvendo e deixando numa posição vulnerável.
Interrogar a educação ambiental é interrogar os sujeitos que a fazem.
Quem são eles? Estão entorpecidos com o sustentável agregado ao desenvol-

90
vimento? Será que estão inscritos entre os que criticam empreendimentos do
desenvolvimento na lógica de que busquem ser sustentáveis? Será que perce-
bem que a lógica que move um também move o outro. E que ambos operam
na produção e reprodução de necessidades, movimento inerente ao modo de
produção capitalista?
Com essas perguntas em mente, nos parece que as atividades de educação
ambiental têm sido marcadas por uma “ilusão pedagógica” ou um disfarçado
(quem sabe ingênuo?) comprometimento com o modo de produção capitalista.
Ilusão pedagógica que não reconhece os limites emancipatórios inerentes ao
desenvolvimento sustentável, e por isso reforça, na sua práxis, a crença no
trabalho instrumental e fragmentado dos indivíduos enquanto promessa de
uma sempre adiada libertação. Trabalho individual não gera envolvimento,
por isso não tem lastro suficientemente forte para transformar valores, hábitos
e atitudes, mas apenas para criar uma zona de conforto em que os indivíduos
se alojam, encerrando-se cada um sobre seu ato:

Proliferam-se, assim, ações pontuais de abraços em árvores ou ofici-


nas de reciclagem de papel, sem nenhuma postura crítica dos modelos
de consumo vivenciados pelas sociedades, ou pela análise do modo de
relação dominadora do ser humano sobre a natureza, com alto valor
antropocêntrico. A ênfase dada ancora-se no terceiro “R” (Reciclagem)
das campanhas dos resíduos sólidos, em detrimento da Redução e da
Reutilização, chaves nos programas de EA. As indústrias fazem campa-
nhas nas escolas, através de jogos competitivos e não solidários, para a
coleta de “latinhas” de alumínio, enquanto incentivam mais consumo
para a premiação de computadores e de outros materiais escolares. Es-
tudantes plantam árvores no dia mundial do meio ambiente (5 junho),
como se o ambientalismo se resumisse em datas comemorativas e não
configurasse como um projeto de vida, de lutas sociais (…) necessários
para a construção da sociedade que queremos (SATO, 2001, p. 2).

Movida por ações desse tipo, a educação ambiental acaba por escamo-
tear as lutas ambientais, políticas, sociais, culturais, econômicas, que estão
presentes na esfera da vida cotidiana, aonde se faz a resistência e a luta

91
contra o Minotauro. Ao escamotear essas lutas e resistências a Educação Am-
biental acaba contribuindo para a legitimação do modelo econômico e social
hegemônico. O que vemos por trás das ações pontuais é um movimento que
vai da aceitação da ordem econômica dominante a no máximo a sua virtual
negação; não chegam a se constituírem em um movimento orientado para
superá-lo. Então, continua preso ao do dualismo do certo e do errado, do
sustentável e do insustentável.
De modo geral, as proposições e práticas relacionadas à educação am-
biental que tem predominado nas escolas são de natureza funcional. A edu-
cação ambiental tem exercido o papel de realocar o lixo que o capital produz,
criando uma estética abstrata do reciclado, uma vez que tais produtos não
manifestam as contradições e os conflitos que estão por trás deles. E abstrata,
ainda, porque não possui vínculos com a identidade social dos grupos para os
quais se dirigem ao mesmo tempo em que reforça e evidencia a situação de
desigualdade e hierarquização. A estética do reciclado trabalha no sentido de
alimentar a inferioridade, a subalternidade, a exclusão de seus consumidores,
ao mesmo tempo em que os mantêm na cadeia do consumo. Afinal a palavra
re-ciclagem, não esta propondo a continuidade de um ciclo? Não traz em si a
proposta de re-entrada no processo produtivo, no ciclo da produção? E cabe
ainda perguntar, de qual processo produtivo estamos falando?
Promover a crise nas práticas de educação ambiental é questionar tam-
bém a promoção da adaptação. De várias formas a batalha empreendida pela
Educação Ambiental em favor do desenvolvimento sustentável opera no sen-
tido da adaptação ao modelo dominante, hegemônico. É nesta perspectiva que
consideramos as mais diversas práticas e orientações votadas para a produção
de nichos de mercados que se pretendem sustentáveis. Encontrar um nicho
significa encontrar um espaço de acomodação dentro do ciclo produtivo, que
como analisamos não é sustentável. Não tem sentido dispender energias para
“‘encontrar o nicho’. [Pois] o nicho é a tumba, o lugar adequado no mercado”
(BENGOA, 2002, p. 68). Aliás, a defesa da ideia de que o segredo é encontrar
o nicho nos traz à memória o texto de Bertold Brecht, “Se os tubarões fossem
homens”, onde ele imagina como seria a vida dos “peixinhos” se os tubarões se
comportassem como homens. Já no trecho final, depois de dizer que certamen-

92
te os tubarões construiriam gaiolas para abrigar os peixes pequenos (prisões 8. Importante salientar que o princípio co-
como as do Labirinto?), observa o poeta: operativo não é sinônimo de consenso, de
adaptação.

Se os tubarões fossem homens também acabaria a ideia de que todos os 9. Sísifo, é considerado na mitologia Grega
peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e o fundador da importante cidade de Corin-
to. Por ter traído um segredo de Zeus, foi
seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores até
condenado por este ao inferno depois de
poderiam comer os menores. Isso seria agradável para os tubarões, pois morto, e lá deveria cumprir o castigo, eter-
eles, mais frequentemente, teriam bocados maiores para comer. E os no, de fazer avançar sem parar montanha
peixinhos maiores detentores de cargos, cuidariam da ordem interna acima uma grande pedra que ao atingir o
cume despenhava-se montanha abaixo,
entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, polícias, constru-
quando então ele reiniciava a tarefa.
tores de gaiolas, etc.

Então, não seria essa proposta de encontrar o nicho a isca do capital para
manter todos dentro do Labirinto, pensando que estão caminhando no sentido
de sair dele? Não estaria o “nicho” funcionando como um espaço de reprodu-
ção de saborosos alimentos para os Tubarões?
Levar a educação ambiental a uma crise é um esforço de coloca-la na pers-
pectiva da permanente autocrítica, da vigilância propositiva em relação às arma-
dilhas do Labirinto. É, também, ser intransigente, com a nossa prática educativa,
é não se conformar e não se acomodar com que estamos fazendo. E mais, é colo-
car-se numa posição de enfrentamento e superação dos modos de ser e de pensar
fundados em hierarquias, no poder, no silenciamento, na dominação, no interesse
e na colonização. É colocarmos numa posição de confronto ao processo de elimi-
nação do Outro humano e não humano, fundando desta forma possibilidades de
nos envolvermos com esses Outros buscando tornar possível o impossível.
Pensando a partir da ideia-chave envolvimento “trata-se ao mesmo tem-
po de mudar de vida e transformar o mundo, de revolucionar o indivíduo e de
unir a humanidade” (MORIN, 1999, p. 188). É colocar a nossa “cunha” na crise
civilizacional, para ampliar o máximo possível a fissão em vista da abertura de
espaço para o novo. E uma das possibilidades de se fazer isso é sentir-pensar-
-viver uma pedagogia da cooperação.
Mas o que vem a ser a pedagogia da cooperação? É um modo de vivenciar
a educação, no qual

93
os integrantes de um grupo devem aceitar o fato de que só serão capa-
zes de alcançar seus objetivos se os demais também alcançarem os seus
próprios (DUCK, 2007, p. 210).

Cooperar pressupõe reconhecimento. Reconhecer não é só perceber a presença


de alguém, mas, mais do que isso, é ver, abrir espaços, acolher e viver em co-
mum as infindáveis possibilidades da vida.
Nesse sentido, articula reflexões não lineares promovendo uma partilha
de saberes e não o acúmulo de informações (BRANDÃO, 2008). Compartir sa-
beres exige a disposição de fazer um caminho com, com o Outro, com o dife-
rente; ao passo que o ato de acumular informações pode ser feito solitariamen-
te. Na pedagogia da cooperação, não há lugar para a subalternidade, exclusão
ou descarte dos seres, da vida, em sua expressão humana, mineral e vegetal.
O princípio cooperativo8 abre a possibilidade para a sociedade encontrar
coletivamente seu próprio rumo, construir a sua autonomia, ser uma comuni-
dade com presente e futuro. Isto é impossível no esquema tirânico neoliberal
que nos impõe a viver como Sísifo9, colocando toda nossa potencialidade em
trabalhos infrutíferos, numa vida sem esperança.
Trata-se de construir o protagonismo cooperativo dos sujeitos que fazem
educação ambiental, a fim de descobrir não somente o porquê de tantos pro-
blemas socioambientais e nem de como atacá-los de modo isolado. A educa-
ção ambiental crítica nos convida a outros desafios, como conclui MATEUS,

Pensando na relação entre educação, reciclagem e os diversos tipos de


consumo, foi possível concluir que as práticas educativas ambientais
precisam ser desafiadoras, não podem permanecer prisioneiras dos limi-
tes da lógica da metodologia de resolução de problemas socioambientais
globais de modo pragmático, pois esta faz da reciclagem de resíduos só-
lidos tão somente uma atividade-fim, ao invés de considerá-la um tema
gerador para o questionamento das causas e consequências da produção
continuada e excessiva de resíduos (2010, p. 8-9).

Somente Reciclar não altera fundamentalmente o modo de ser, de pro-


duzir e de consumir que estão centrados no individuo e nos impossibilitam de

94
perceber as inúmeras e complexas conexões que marcam a interdependência
entre os seres vivos. É um esforço permanente de construção de uma práxis
que opere fora da lógica da exclusão, pois como lembra Boff,

a lei básica do universo não é a competição que divide e exclui, mas a


cooperação que soma e inclui. Todas as energias, todos os elementos,
todos os seres vivos, desde as bactérias e os vírus até os seres mais
complexos, somos inter-retro-relacionados e, por isso, interdependentes
(BOFF, 2002, p. 14).

Cooperar ou competir não é uma escolha determinada pela má ou boa


vontade dos indivíduos. É muito mais do que isso. São realidades determina-
das pelas estruturas sociais. A desfiguração, imposta às mulheres, às crianças e
aos homens, particularmente aos marginalizados, só poderá ser transformada
com ações políticas com força convocatória para agir em vista da conquista
da condição de sujeitos de direitos. E acreditamos que uma das fontes dessas
ações é a educação em direitos humanos. Nesse caminho não pensamos que
a Educação Ambiental Crítico Cooperativa possa acontecer desconectada da
Educação em Direitos Humanos.
A educação em direitos humanos é o convite do Outro para um caminho
comum de lutas, cujo sentido está em passar de uma subjetividade fechada em
si mesma a uma subjetividade aberta e relacional, a uma intersubjetividade.
Ela me possibilita pensar um sujeito e uma subjetividade à luz dos direitos
humanos capaz de nos aproximar das experiências vitais do Outro.
Na educação em direitos humanos não se tem a preocupação em institu-
cionalizar metodologias, pois o importante é estar no caminho do Outro, apren-
der a escutar. Neste sentido, Rubem Alves, em O amor que acende a lua, escreveu

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso


de escutatória. […] A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem
logo dar um palpite melhor… Sem misturar o que ele diz com aquilo que
a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de des-
cansada consideração… E precisasse ser complementado por aquilo que
a gente tem a dizer, que é muito melhor. Nossa incapacidade de ouvir é

95
a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no
fundo, somos os mais bonitos (2008, p. 65-7).

Sem dúvida, para o educador, em qualquer área que esteja atuando é


importante se colocar na relação de alteridade-outridade que a escuta às vezes
permite criar. Sem essa relação de escuta a educação ambiental crítico-coo-
perativa não é possível. Da mesma forma que não é possível a educação em
Direitos Humanos, uma vez que o sentido tanto de uma como de outra – que
compreendemos estarem umbilicalmente relacionadas – é pensar a liberdade, a
autonomia e a subjetividade a partir da responsabilidade pelo Outro.

Ser livre e autônomo, dessa forma, é muito mais do que respeitar a ‘cerca’
da liberdade dos outros – no sentido de que ‘minha liberdade vai até onde
inicia a liberdade do outro’ –, reduzindo a liberdade a uma espécie de
propriedade privada e privatista. Trata-se de compreender a liberdade e
a autonomia como processo de constituir-se com os outros, desde os ou-
tros, para si e para os outros. A liberdade, dessa forma, é construção subs-
tantiva da subjetividade aberta e relacional (CARBONARI, 2007, p. 178).

Nenhum ser é uma ilha. Ou somos cooperativos ou não somos. Protagoni-


zar uma educação ambiental crítico-cooperativa é abrir-se ao Outro, é respon-
sabilizar-se por ele, é compartir da luta contra todos os ferrolhos e labirintos da
competição, possibilitando a todas as formas de vida viver o seu kairós, tempo
favorável para libertar e ser libertado, feito de imanência e transcendência. É
fazer a experiência da atenção para consigo e com o Outro, situando-nos no
mundo e tecendo uma contracorrente ao khronós, que é o tempo do mercado e
do capital, que descontextualiza, esquadrinha, limita e fragiliza a vida.

3. Para finalizar sem concluir

Não por fim, mas para terminar, pensamos que muitos dos que nos acompa-
nharam até aqui, poderiam concluir consigo mesmos, “sim, pode ser…” e na
sequencia se virem acossados pela legitima pergunta: mas como fazer? Como
encontrar ou tecer o fio de Ariadne?

96
A educação ambiental fundada no princípio crítico-cooperativo busca
construir possibilidades, pensar em termos éticos e estéticos que não estão no
horizonte, mas para além dele. Ela faz a crítica ao que se vê, mas anuncia o
ainda não visto, a utopia, o que precisa ser construído e reconstruído constan-
temente, pois entende que a

crítica sem autocrítica é problematizar o movimento da vida queren-


do ficar de fora, sem colocar a mão na massa, algo inaceitável para
uma perspectiva na qual não pode haver oposição entre teoria e prática
(LOUREIRO, 2007, p. 67).

A autocrítica deve libertar-nos do aprisionamento no subjetivismo, da


crença de que a crítica é um ato de poder, de protesto egoísta. A crítica deve
ser o que abre para anunciar algo que vai além dela mesma.
O caminhar pelas veredas de uma educação ambiental crítico-coopera-
tiva deve nos levar a investir na intuição de que na educação não há espaço
para individualismos expressos na relação sujeito/objeto, mas que ela deve ser
antes de tudo uma convocação para o diálogo com o Outro.
E aí responderíamos para terminar que a saída do Labirinto está na trilha
que nos leva em direção ao Outro.

97
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101
102
Júlio Pompeu
Doutor e Coordenador do Curso de Direito da Universidade Federal do Espirito
Santo. Professor do Mestrado em Direito e em Gestão Pública. Coordenador
Adjunto do Curso de Aperfeiçoamento de Educação em Direitos Humanos.

6
A ÉTICA ENTRE FINS E MEIOS: MAQUIAVEL

Júlio Pompeu

Ética e política parecem não mais combinar, como água e óleo. Tornou-se
coisa de que não se gosta sequer de falar e, de desgosto em desgosto, de de-
silusão em desilusão, entregamos a condução de nossas vidas nas mãos de
pessoas nem sempre dignas de confiança. Ante a desilusão, quando muito, é
aceitável que falemos da política como ela deveria ser. Tentar encará-la como
ela é, é assumir o risco de decepcionar-se pela incapacidade de nosso Estado
converter as promessas políticas em realidade na vida dos súditos que somos.
Não parece haver ética na política tal qual ela é, mas apenas na política tal
qual ela deveria ser. Será?
Muitos não conhecem a obra de Maquiavel, mas já ouviram falar na frase
“os fins justificam os meios”. E já aprenderam a associar esta frase a um tal de
Maquiavel, um italiano meio cínico. Ignora-se o autor, mas não a frase. Ela
tornou-se o lema dos maquiavélicos. Bordão dos ardilosos.
Ser maquiavélico seria não dar muita atenção para a conduta praticada,
mas apenas para os resultados que queira alcançar. Seria ter um descompro-
misso total com qualquer regra de conduta, para com qualquer limitação mo-
ral ou até mesmo legal. Alguém que é capaz de qualquer coisa para alcançar
seus desejos, pouco importando o que ou quem esteja no meio do caminho.
Este tipo de interpretação não só da frase atribuída a Maquiavel, mas de
sua obra como um todo, rendeu ao autor a fama de imoral (contrário à moral)
ou, no mínimo, de amoral (produtor de discurso onde a moralidade se encontra
ausente). Mas nem imoral, nem amoral, Maquiavel nos seus conselhos polí-
ticos faz apelo a uma ética. Não à ética posta até então, ética cristã fundada
em princípios inquestionáveis, dogmas e verdades universais, mas a uma ética
comprometida com o que ele chama de “verdade efetiva das coisas”, uma ética
inspirada na vida como ela é e não em como ela deveria ser.
Esta verdade maquiavélica, a fundamentação primeira de sua ciência,
pressupõe uma ruptura com os fundamentos filosóficos dominantes até então
e que, de maneira bastante contundente, ainda encontramos nas nossas repre-

104
sentações contemporâneas do mundo. Refiro-me ao idealismo e, em especial, 1. Metafísica: do grego metà (além de),
à sua versão cristã. mais physis (mundo físico). Aquilo que está
além do mundo físico. Já que para os gre-
Ser um idealista segundo o senso comum é ser um sonhador, alguns
gos o mundo físico é aquele que podemos
acrescentariam ingênuo, de uma maneira geral, o idealista seria alguém que perceber e com ele nos relacionar através
ama o mundo tal qual ele é, mas como ele deveria, idealmente, ser. Numa con- dos nossos cinco sentidos, então o mundo
metafísico seria também o suprasensível,
cepção filosófica, o idealismo não é tão diferente assim. De Platão a autores
algo para além de nossa visão, tato, olfato,
contemporâneos encontramos uma série de obras políticas e éticas, de filóso- paladar e audição.
fos e, mais recentemente, de escritores que nos falam não do mundo como ele
é, mas como ele deveria ser. Sua empreitada filosófica é a de nos fazer crer
que o mundo ideal que nos anunciam é não só possível ou, em certos casos,
existente em uma instância metafísica1 qualquer, como é muito melhor do que
o mundo em que efetivamente vivemos.
Transpondo tais crenças para a ética, se para tudo no mundo há uma
forma ideal a ser conhecida e usada como referência, para a ética não seria
diferente. Haveria um conjunto de regras, modos de ser, pensar e agir ideais,
que uma vez seguidos grantiriam a qualquer um em qualquer situação ou lu-
gar uma ação correta. Se erramos, é por desconhecermos os ideais. Conecê-los,
seria a fórmula para uma vida de acertos. Será?
Maquiavel desconfia de ideais e, portanto, de uma ética idealista. Ele
observa que uma atitude pode ser correta para algumas pessoas em algumas
circunstâncias e prejudicial para outras em outras circunstâncias. Imagine um
indivíduo que siga a ética cristã, que aconselha a dar a outra face quando de
um tapa recebido. Se a face esbofeteada uma segunda vez for a dele e somente
a dele, sua atitude pode ser considerada correta, mas imagine se este cristão
convicto for o príncipe de um país invadido em suas fronteiras do leste, o que
deverá fazer, permitir a invasão das fronteiras do oeste também?
O idealismo e uma ética de princípios fazem sentido como um conjunto
de regras a serem seguidos em toda e qualquer circunstância somente se os
seus fundamentos, que são ideais metafísicos, mundo inexistentes, não mu-
darem. Se, ao contrário, o mundo não respeita princípios, se na vida dos ho-
mens as coisas não se dão como na física, em que os corpos se movimentam
obedecendo a leis constantes e imutáveis, então obedecer sempre a princípios
que fizeram sentido para alguém em algum momento pode ser ineficaz ou até
mesmo perigoso.

105
A imagem de um mundo onde até mesmo a moral obedece a leis como as
da física é a representação cristã do mundo, onde Deus, ser onipotente, onipre-
sente e onisciente, apresenta-se como princípio da ordem ideal. “O homem, com
seu livre arbítrio, peca, afrontando a ordem, mas Deus tudo vê, tudo pode e há
de lhe castigar, diz o crente. Mas Maquiavel substitui Deus pela Fortuna. Antiga
deusa associada ao caos e à aleatoriedade. È o mesmo que dizer que o mundo
não é um cosmos regido por um princípio ordenador bom, mas que el é um caos
de encontro e desencontros regido por uma deusa caprichosa e inconstante.
Mas o que faz da vida uma eterna luta contra a Fortuna? A deusa é
apenas uma alegoria, uma metáfora para, de forma mais palatável, apresen-
tar suas idéias. O mundo é regido pela incerteza, mas não por culpa de uma
deusa antiga, mas em consequência da natureza humana. Maquiavel acredita
que todos nós possuímos uma natureza e que, portanto, para além de nossas
diferenças culturais e singularidades individuais, há algo que nos assemelha
em nossos modos de agir e de pensar. Esta natureza humana lhe dará uma
nova bse de certeza para opor-se à metafísica idealista. Em outras palavras, se
Platão e outros tantos recorriam à metafísica para a firmarem que suas idéias
eram corretas, Maquiavel fundamentará sua verdade na natureza humana. A
natureza humana é o substituto moderno da metafísica.
Para ele a natureza humana se resume a um disposição de espírito pre-
dominante: o desejo. Somso desejantes e desejo é falta. Ninguém deseja o que
tem, apenas o que não tem. Por aquilo que temos, ao contrário, nutrimos certo
desprezo. Isto significa que, seja lá qual for a vida que temos, estamos de algu-
ma maneira dispostos a trocá-la por outra que não temos. Não somos movidos
pelos benefícios da vida presente, mas pelas promessas da vida futura. O desjo
funciona em nós como um princípio de corrupção de toda e qualquer forma de
vida. Causa da inconstância e da vida regida pela fortuna.
Em sendo a vida compartilhada ou, mais especificamente, a política re-
gida pelos desejos que levam cada uma a corromper a forma atual de vida que
leva, então a resposta à pergunta fundamental da ética: “o que é a coisa certa
a se fazer?”, não pode se basear em princípios. Isso seria ignorar a natureza
humana, os desejos e a “verdade efetiva das coisas”.
Em substituição a princípios, uma ética baseada na disposição de agir de
cada indivíduo para afrontar e vencer as incertezas da vida: a virtu. Mas o que

106
é ser virtuoso? Muitos reponderiam que é ser bondoso, honesto, dizer sempre
a verdade e respeitar os mais fracos. Nada disso traduz a virtú de Maquiavel.
Literalmente, a palavra significa virtude, mas a virtude dos antigos romanos.
Os bons exemplos do passado que Maquiavel exalta são, com freqüência, ro-
manos. Há virtuosos de outros povos, mas não há povo mais virtuoso que o
romano. É sua cultura que Maquiavel enaltece. Mas quem eram eles, na sua
opinião? Todo o mito fundador de Roma e os valores enaltecedores do cidadão
romano giram em torno da guerra. Os romanos eram, sobretudo, um povo
belicoso. Filhos de Marte, o deus da guerra.
Clausewitz, o general prussiano qu e no começo do século XIX escreveu
“Da Guerra”, afirmava que a guerra era o domínio da incerteza. Tal qual a polí-
tica construída por homens desejantes na visão maquiavélica. O espírito guer-
reiro é o da impetuosidade e da clara avaliação das circunstâncias para a ção
eficaz contra esta incerteza. Se sempre soubéssemos como as coisas acontecem
ou aontecerão, seria fácil saber o que fazer para vencer os desafios da vida, mas
como as ações e acontecimentos são incertos, então para conquistarmos o que
desejamos é preciso uma boa capacidade estratégica para tentar se antecipar
aos acontecimentos. Considerando que não há gênio que dê conta de toda a
incerteza da política ou da guerra, essa limitação da visão estratégica requer a
coragem ou impetuosidade como condição da ação, pois no final das contas,
por mais que planejemos, por mais que sejamos prudentes em nossas ações, na-
vegamos sempre num mar de incertezas dominado por uma deusa caprichosa.
Mas virtú ou ralismo e ímpeto dizem respeito a atributos que Maquiavel
enaltece, não nos informa sobre como avaliar a boa e a má ação. Seu critério é
simples: os resultados. Uma ação será boa ou má em razão do que ela ocasio-
nar e não por uma conformidade ou desconformidade a uma regra qualquer.
Como na guerra, o objetivo alcançado é o que conta. Este novo princípio de
avaliação é traduzido pela fatídica frase: “os fins justificam os meios”.
Ela encontra-se ao final do capítulo XVIII do Príncipe, cujo título é “In
che modo e principi abbino a mantenere la fede: Quomodo fides a principibus
sit servanda”. O tema é jurídico e moral: até que ponto o príncipe deve manter
a palavra empenhada? Moral por motivos óbvios, jurídico porque a palavra do
príncipe é lei. Manter a palavra é manter a lei, tratados, acordos internacionais
e assim por diante. É palavra pública, não apenas privada.

107
Ao responder à pergunta, Maquiavel distingue, em termos morais, duas
ordens de palavras e de condutas: a dos homens comuns e a dos príncipes.
No caso dos homens comuns é correto que a palavra empenhada deva ser
mantida. Era inclusive princípio jurídico e regra de solução de conflitos entre
cidadãos ao seu tempo. Mas no caso dos príncipes a situação seria diferente.
A regra que nos impõe a manutenção da palavra empenhada, a observa-
ção da fé, da caridade, da humanidade e da religião é moral e seu propósito é
tornar viável a vida entre iguais. Ela visa a convivência num ambiente onde a
violência entre os homens esteja, de alguma forma, controlada. Pressupõe al-
gum tipo de ordem social já existente e minimamente funcional. Exige, enfim,
uma ordem onde determinadas atitudes possam gerar com certeza determina-
das consequências.
Em sendo a política esse cenário violento de incertezas, então agir de
acordo com a caridade, fé, humanidade etc. é fórmula certa do fracasso. Ex-
põe-nos a inimigos que não vêm diante de si nenhuma destas limitações. Mas
se, ao contrário, a guerra entre nós foi controlada, então um comportamento
sem limites seria desagregador e ameaçaria a paz conquistada.
Em suma, a ética idealista, fundamentada em um princípio metafísico
de ordem e traduzida em leis ou princípios a serem serpre observados é acei-
tável para os homens comuns, que vivem em um cenário político onde uma
ordem tenta se impor. Não a ordem metafísica de Deus ou assemelhados, mas
a ordem mundana das leis do príncipe e do Estado. Mas para o príncipe, esse
governante do caos e da incerteza, um agir por princípios levaria a resultados
catastróficos não só para sua vida, mas para a de seus súditos. Nos atos dos
governantes, sem prévias que se lhes sejam aplicáveis, penas uma ética onde
as ações são avaliadas pelos resultados faria sentido.
Mas que resultado? Por certo não um resultado individualisticamente
avaliado, mas um resultado politicamente interessante, no caso, a conservação
e engrandecimento do Estado. Por sermos desejantes tendemos a corromper
nossos modos de vida, mas de corrupção em corrupção, corremos o sério risco
de perdermos o Estado que nos é tão caro. Se tendemos a revolucionar nossos
modos de existência política, então devemos nos esforçar ou para manter o
status quo ante o risco iminente de uma mudança que piorará nossas vidas ou
para melhorar nossa existência, eis uma necessidade imperiosa. A necessidade

108
da manutenção do Estado e da vida harmoniosa é o que atribui a súditos e prín- 2. MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários à
cipes o dever de desempenhar papéis diferentes. Necessidade é a palavra-chave. primeira década de Tito Lívio. Brasília: Ed.
UnB, 2008. Pág. 6
Os príncipes devem agir com realismo. Razão prática que lhe permitiria
perceber que a política é a arte do possível e não uma ação livre e desimpedida
dos desejos. Tudo é necessidade na vida pública do príncipe. Se os homens
agem ou por ambição, ou por necessidade, então esta última parece ser o
grande imperativo dos príncipes e não a primeira. Se “a necessidade, por sua
vez, muitas vezes nos obriga a empreendimentos que a razão nos faz rejeitar”2,
então o príncipe está sempre obrigado, por necessidade, a agir de forma dife-
rente dos demais homens e ter sua própria moral.
Podemos conceber a política como um jogo ou como uma guerra. Am-
bas as imagens referem-se a formas de enfrentamento entre seres desejantes.
Ambas possuem regras. A diferença é que no jogo as regras são anteriores aos
embates. Elas pressupõem a sua aceitação prévia como condição para a rea-
lização dos embates. Já na guerra, as regras também existem, apesar do dito
popular de que no amor e na guerra valeria tudo. O que não há é regra prévia.
Pacto anterior ao embate sobre como este ocorrerá. Mas há regras. Elas são
conseqüência das formas disponíveis para submeter o inimigo.
O fato de a política ser conseqüência da natureza humana faz com que
ela também possua suas regras, às quais chamamos de bom senso, realismo,
às vezes pragmatismo, mas que Maquiavel chama de prudência. A moral do
príncipe é a prudência, cujo imperativo são os resultados e seu tribunal, a
história. Já para os súditos, a moral é a obediência à lei por princípio, cujo
tribunal é o comum, com juízes conhecedores e aplicadores de leis e carrascos
sadicamente eficientes.
Para o príncipe a política seria como uma guerra, já para o súdito, como
um jogo. Curiosamente, para quem joga, há mais liberdade do que para quem
luta. O príncipe está regido pelas tantas necessidades que a guerra lhe impõe,
seu ritmo, as batalhas, o local. Pouco ou quase nada é resultado de sua esco-
lha livre. É muito mais conseqüência dos passos certos e errados, das jogadas
prudentes ou dos erros estratégicos.
Isto nos coloca diante de duas morais e não na ausência de moral. Ma-
quiavel não é um autor amoral, mas de duas morais. Do súdito e do príncipe.
Do jogo e da guerra. O mesmo Maquiavel a quem se atribui afirmar que os fins

109
3. Acima das leis. justificam os meios é o mesmo que repreende a corrupção das repúblicas e que
aponta o desrespeito às leis por parte dos súditos como o maior mal que uma
república pode experimentar. O mesmo Maquiavel que louva os feitos militares
e políticos cruéis e violentos do príncipe César Bórgia, repreende o republicano
Girólamo Savonarola que, para proteger amigos, desrespeitou uma lei que ele
mesmo havia promulgado.
Para bem compreender a polêmica afirmação de que “os fins justificam
os meios”, é preciso perceber que ela é dita como conselho ao príncipe. Que,
por ser então considerado legibus solutos3, não tinha o hábito de compreender-
-se como alguém a ser julgado por nada, nem mesmo pela história. Ao afirmar
que os resultados da conduta serão levados em conta para julgar o príncipe,
Maquiavel não está afirmando a plena liberdade daquele. Não está dizendo:
“façais o que quiserdes, pois sois o príncipe”. Mas, ao contrário: “sejais res-
ponsável e prudente; vós não podeis fazer o que quereis, pois sois o príncipe”.
A ética de Maquiavel é a dos resultados. Ela visa uma forma de organiza-
ção política na qual os súditos sejam afetados positivamente. Os fins que jus-
tificam os meios são fins políticos que justificam meios também políticos. Os
grandes exemplos de grandes homens são histórias de fundação, fortalecimen-
to e salvação de Estados e povos. Decisões tomadas muitas vezes em momentos
de perigo e risco para a sobrevivência do Estado e de seu povo. A ética de Ma-
quiavel não é mesquinha, pois a grandeza do Estado, gerada pela ambição do
príncipe, é também benefício para o povo por ele governado. Não há nenhuma
decisão política que afete apenas ao príncipe. Há sempre conseqüências boas
ou más para o Estado e, portanto, para todos. Este é o alerta dos fins que jus-
tificarão os meios: teus atos afetam muitos e estes muitos o julgarão conforme
sejam bem ou mal afetados. Esta responsabilidade é fundamental na ética de
Maquiavel. É para esta responsabilidade que o príncipe deve ser alertado. É por
ela que ele não pode observar uma conduta baseada somente em princípios.

Naturalmente, seria bom que o príncipe possuísse todas as boas qua-


lidades mencionadas, mas como isto não é possível, pois as condições
humanas não o permitem, é necessário que tenha a prudência necessá-
ria para evitar o escândalo provocado pelos vícios que poderiam fazê-
-lo perder seus domínios, evitando os outros se for possível; se não o

110
for, poderá praticá-los com menores escrúpulos. Contudo, não deverá 4. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Vários.
preocupar-se com a prática notória daqueles vícios sem os quais é di- Capítulo XVI.

fícil salvar o Estado; isto porque, se se refletir bem, será fácil perceber
que certas qualidades que parecem virtudes levam à ruína, e outras que
parecem vícios trazem como resultado o aumento da segurança e do
bem-estar4.

Se o príncipe não fosse responsável por seus atos, se eles não afetassem
outros, então afirmar que os fins justificam os meios seria um salvo conduto
ao egoísmo desenfreado, à ambição livre. Mas a ambição do príncipe não
deve ser livre, mas responsável, pois afeta a outros. Maquiavel tem um fim
específico que aponta o julgamento do príncipe: a segurança e o bem-estar.
Estes os fins que justificam meios. Estes os fins que substituem princípios
como orientadores de condutas políticas de homens desejantes, mas de quem
se espera responsabilidade.
Por várias vezes Maquiavel elogia o ato de Brutus que, para manter a re-
pública, sacrificou a vida dos próprios filhos. Ele chega a ditar um conselho: “é
preciso imolar os filhos de Brutus”18. Este se viu na difícil situação de flagrar
os próprios filhos conspirando contra a república. Não titubeou e condenou-os
à morte. Este exemplo, segundo Maquiavel, salvou a república. Eis um agir
ético e responsável segundo a ética maquiavélica. Por princípio, teria feito o
oposto: quem não condenaria um pai que mata os filhos? Pensando nas con-
seqüências para a república, matou-os. Os fins justificaram os meios.

[…] dentre todos os mortais que já mereceram elogios, os mais dignos


são os chefes ou fundadores de religiões. Depois vêm os fundadores
de repúblicas ou de reinos. Em seguida os que, à frente de exércitos,
estenderam os domínios de sua pátria. A estes devemos acrescentar os
letrados; e como destes há várias espécies, cada uma alcança a glória
reservada à categoria a que pertence. Enfim, no número infinito dos
homens, nenhum deles deixa de receber a fração de elogio a que faz jus
pela sua arte ou profissão. Por outro lado, merecem o ódio e a infâmia e
os destruidores de religiões, os que permitiram que os reinos ou repúbli-
cas confiados a seus cuidados se perdessem; os inimigos da virtude, das

111
5. MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários à letras e das artes honradas e úteis à espécie humana; e assim os ímpios,
primeira década de Tito Lívio. Brasília: os furiosos, os ignorantes, os ociosos, os covardes e os inúteis5.
Ed. UnB, 2008. Pág. 10.

Pensar a ética é pensar quais condutas merecem prêmios e quais mere-


cem punição. Maquiavel aponta as condutas construtivas na política como as
que merecem prêmios e as destrutivas as que merecem punições. Isto é ética
própria à política, própria às ações cujas conseqüências afetam muitos. Não
vejo nisto maldade ou perversidade. Não vejo na frase maldita o corolário da
ambição desenfreada. Ela não foi maldita, foi mal lida por pessoas que, acos-
tumadas a uma ética de princípios e à idéia de que na razão apática reside o
bem - crentes de que as paixões são a voz do diabo em nós - acabaram por
odiar e temer a própria humanidade. Tornaram-se irrealistas, amantes de um
homem sem desejos e ambições. A ética de Maquiavel é humanista e libertária.
Mas também responsável, como convém à política.

Para sber mais:

• BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991.


• MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Brasília: Ed. UnB.
• MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários à primeira década de Tito Lívio.
Brasília: Ed. UnB, 2008
• POMPEU, Júlio. Somos maquiavélicos: o que Maquiavel nos ensinou
sobre a natureza humana. Rio de janeiro: Objetiva, 2011.
• SKINNER, Quentin. Maquiavel: pensamento político. São Paulo: Bra-
siliense, 1988.
• STRAUSS, Leo. Pensées sur Machiavel. Paris: Payot, 1992.

112
Cristiana Mara Bonaldi
Doutora e Professora na UFF- Universidade Federal Fluminense.

7
A ESCOLA, O MÉDICO E O JUÍZ:
EDUCAÇÃO, BIOPOLÍTICA E PRODUÇÃO DE COLETIVOS.

Cristiana Mara Bonaldi

Sentimentos de impotência invadem o espaço escolar. Não é difícil encontrar


professores desanimados, relatando sentimentos de solidão e despreparo para
lidar com as situações que ora se apresentam nas escolas. Os professores pa-
recem dividir estas impressões com os demais participantes da comunidade
escolar. Estudantes, familiares, gestores, outros trabalhadores… E o sentimento
insiste… Despreparo?! Como assim?! Logo essa gente que faz a educação acon-
tecer dia após dia?! Tanta gente junta… E gente se sentindo só?!
O individualismo, um dos pressupostos básicos do liberalismo, atribui
aos indivíduos posições sociais que se justificariam pelos talentos e aptidões
próprias de cada um. Dessa forma, o sucesso ou o fracasso se definiriam pelo
mérito de cada indivíduo, levando em consideração seus esforços, talentos e
aptidões individuais. Um dos efeitos mais contundentes dessa forma de pen-
sar/viver - que tem pautado, de forma hegemônica, a vida no mundo contem-
porâneo – também no campo da educação, é a culpabilização dos indivíduos,
separadamente, o que impede a ampliação das análises acerca dos múltiplos
processos que envolvem a vida escolar.
A “incapacidade”, o “despreparo”, a “fragilidade do professor”. O “mau
comportamento” do aluno. A “omissão” da familia. Efeitos de um pensamento
fragmentado, de que resulta a produção de segregação, competição, culpabili-
zação, fracasso, solidão. E assim, a gente vai se sentindo só, bem no meio da
multidão… E assim, a gente vai se convencendo de que não tem jeito não… De
que a gente não sabe mais fazer aquilo que a gente faz todo dia… Como assim?!
Ao individualizar os impasses próprios do cotidiano escolar, somos con-
vocados a encerrar no indivíduo tais impasses e vivê-los como problema, como
obstáculo, como algo indesejável. O indivíduo torna-se, então, o “culpado” pela
suposta dificuldade. O que se produz é a expectativa de que ao tratar, afastar,
punir, treinar o indivíduo, o “problema” será solucionado e este indivíduo não
mais representará um risco para o suposto “bom andamento” da vida escolar.

114
Deixamos, assim, de considerar algumas questões fundamentais: Seriam 1 HECKERT, A. L. C. ROCHA, M. L. A maqui-
tais impasses efetivamente indesejáveis?! Seria mesmo possível afastar do naria escolar e os processos de regulamen-
tação da vida. Revista `sicologia e Socieda-
campo escolar as variações, as crises, o que difere?! Seria possível, e desejável,
de; 24, p.88, 2012.
que os processos em curso no cotidiano escolar se desenrolassem de forma
linear, estável, invariável, previsível e sem tensionamentos?!
Heckert e Rocha (2012) chamam atenção para a importância de situar a
questão da “indisciplina”, por exemplo, no contexto da vida e dos processos
de formação em curso:

A indisciplina e a violência na escola são fomentadas nos encontros


efetuados no espaço escolar e que, sem análises concernentes ao plano
de existência em que se realiza a vida e a formação, acabam encarnando
grandes problemas! Enquanto índice de movimento, a indisciplina traz
as tensões que podem gerar outros modos de pensar e fazer o cotidiano
escolar.1

Nesta direção, seria impossível produzir qualquer análise dos processos


em funcionamento nas escolas sem olhar bem de perto os impasses vividos
no cotidiano escolar, sem levar em consideração as políticas de educação, as
condições de vida e trabalho da população e dos profissionais que atuam nas
escolas, a competitividade, a aceleração, os modelos de sucesso e fracasso,
as formas de avaliação, enfim, os modos de subjetivação que se atualizam
na contemporaneidade…
O aumento da demanda por laudos psicológicos e médicos, especialmen-
te psiquiátricos e neurológicos, supostamente capazes de dar suporte às deci-
sões, planejamentos e encaminhamentos escolares é uma das características
principais das configurações que a escola atualiza hoje. A relação, cada vez
mais estreita, entre escola e órgãos/serviços ligados de maneira direta ou indi-
reta aos aparelhos jurídicos também chamam atenção e apontam para algumas
questões importantes.
Aparelhos policiais e jurídicos são convocados a participar do cotidiano
escolar. Além de comum, considera-se aceitável e até mesmo desejável, por
exemplo, que exista, em alguns municípios, um carro de polícia ou guarda
municipal à disposição das escolas para a resolução de conflitos oriundos da

115
2. PELBART, Peter Pál.  Vida capital: en- vida no cotidiano escolar. Denúncias aos Conselhos, como o tutelar, por exem-
saios de biopolítica. Editora Iluminuras plo, de situações de indisciplina, enfrentamento entre as crianças e suposta
Ltda, 2003.
“negligência” das famílias, também apresentam-se mais comuns a cada dia.
Conselho Tutelar, Guarda Municipal, Polícia Militar, são instituições con-
vocadas cotidianamente a participar na solução dos impasses escolares. Si-
tuações cotidianas que terminam por serem decididas na justiça também não
são raras… O que está acontecendo com a nossa capacidade de negociação, de
escuta, de produção de debate, de argumentação, de discussão dos impasses?!
Diante disso, faz-se fundamental a produção de outros olhares, olhares
capazes de questionar, de problematizar tais práticas no sentido da desnatura-
lização de um cotidiano escolar cada vez mais pasteurizado, individualizante,
medicalizado e judicializado e do fortalecimento dos coletivos, das redes teci-
das nos encontros entre os que fazem a educação acontecer.
Como afirma Pélbart2 (2009):

Muito cedo o próprio Foucault intuiu que aquilo mesmo que o poder
investia – a vida – era precisamente o que doravante ancoraria a resis-
tência a ele, numa reviravolta inevitável.

A escola, para além de suas normas, leis, prescrições, constitui-se


como uma rede de encontros, de relações, de conversa… Uma rede viva!
Como evidenciar a escola em toda a sua complexidade e diversidade?! Como
afirmar os processos de singularização que se atualizam cotidianamente nas
práticas escolares?!
Questões que emergem do cotidiano escolar, como a chamada “indisci-
plina”, a evasão e até os chamados “problemas de aprendizagem” vêm sendo
cada vez mais tratados como “desvios” próprios dos sujeitos, problemas indivi-
duais. Esta forma de tratar tais impasses tem como efeito uma grave “despoliti-
zação” do cotidiano e consequente culpabilização dos indivíduos, que passam
a ser encarados como os únicos responsáveis por tudo o que se convencionou
entender como indesejável.
É exatamente neste momento que são convocados os especialistas. Mas,
dificilmente, estes profissionais são convocados para o debate, para participar
da roda de conversa ou para tornar-se mais um na construção coletiva de

116
encaminhamentos. Estes profissionais especialistas são, em geral, convocados 3. CAPONI, S. Biopolítica e Medicalização
para solucionar o suposto problema de enquadramento dos indivíduos que de dos normais. Physis Revista de Saúde Cole-
tiva, Rio de Janeiro, 19 [ 2 ]: 529-549, 2009.
alguma forma perturbam o “bom e linear” andamento da vida escolar. É exata-
mente neste momento que os saberes PSI têm sido convocados a dar respostas. 4. FOUCAULT, Michel. Os anormais. São
Tratamentos, treinamentos, terapias… Saberes considerados superiores, saberes Paulo: Martins Fontes, 2001.

que portam a força da hierarquia e que, muitas vezes, terminam por produzir
5. FOUCAULT, Michel. Os anormais. São
desqualificação dos saberes produzidos no cotidiano de trabalho nas escolas. Paulo: Martins Fontes, 2001.
Os saberes do especialista, nesta configuração, atuam de forma a se sobre-
por, então, aos saberes das pessoas que vivem o cotidiano da escola. Professo- 6. CAPONI, S. Biopolítica e Medicalização
dos normais. Physis Revista de Saúde Co-
res, estudantes, merendeiras, porteiros, faxineiras, coordenadores, supervisores, letiva, Rio de Janeiro, 19 [ 2 ]: 2009, p. 532.
diretores… Pessoas que no seu dia a dia inventam formas de fazer escola… Ex-
periências, saberes, estórias, afetos que perdem a importância frente às novas
ofertas de terapias e medicamentos que prometem “o comportamento desejado”
e processos de aprendizagem supostamente lineares. A conversa, o diálogo, os
espaços coletivos são, assim, colocados de lado, abrindo espaço para outras
formas, reducionistas, ilusórias e imediatistas, de superação das dificuldades.
Alguns autores como Caponi3(2009), chamam atenção para a crescente
medicalização dos chamados anormais4. Torna-se, segundo ela, fundamental
analisar os efeitos do que chamou de uma psiquiatria ampliada, surgida por
volta do século XIX. Uma certa ciência do comportamento que teve como refe-
rência a distinção entre normalidade e desvio. Trata-se de novas estretágias de
gestão biopolítica dos corpos e das populações através da chamada “medicina
do não patológico”5.
Para Caponi6,

A biopolítica da população iniciada no século XVIII foi a estratégia que


possibilitou que, pela primeira vez na história, o biológico ingressasse
no registro da política (FOUCAULT, 1994). Foi a partir desse momento
que o corpo e a vida passaram a se transformar em alvo privilegiado de
saber e de intervenções corretivas.

A medicalização de comportamentos indesejados como a indiscipli-


na, os tão falados “déficit de atenção e hiperatividade”, as “dificuldades
de aprendizagem”, são os alvos preferidos dos laudos e medicamentos que

117
7. PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta, prometem moldar os sujetos e colocá-los em padrões considerados úteis para
uma vida. Trópico, 2007. o modelo contemporâneo.
Pélbart7(2007), trata da medicalização da existência como um entre os
8. PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta,
uma vida. Trópico, 2007. P. 4 possíveis mecanismos de atualização do biopoder. A medicalização da vida
como algo capaz de reduzir a vida à sobrevida: “A sobrevida é a vida humana
9. PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios
reduzida a seu mínimo biológico, à sua nudez última, à vida sem forma, ao
de biopolítica. Editora Iluminuras Ltda,
2003.p. 24. mero fato da vida, à vida nua”8.
Porém, ainda segundo Pélbart9(2009), para além de processos bioló-
10. PELBART, Peter Pál.  Vida capital: en- gicos, vida
saios de biopolítica. Editora Iluminuras
Ltda, 2003. p.25.
inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto
11. PELBART, Peter Pál.  Vida capital: en- de produção material e imaterial contemporânea, o in telecto geral. Vida
saios de biopolítica. Editora Iluminuras
significa inteligência, afeto, cooperação, desejo10.
Ltda, 2003. p. 25.

Dessa forma, afirmamos a vida como algo que escapa às normas e que se
produz nos encontros. Assim, afirmamos o espaço escolar como espaço de
produção de vida, de saberes, de afetos, de conversa, de solidariedade.
Afirmamos que a vida…

Ao descolar-se de sua acepção predominantemente biológica, ganha


uma amplitude inesperada e passa a ser redefinida como poder de afetar
e ser afetado, na mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte
inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por Foucault: biopo-
lítica não mais como poder sobre a vida, mas como a potência da vida11.

Fundamental acompanhar os fluxos que se produzem na contramão do


biopoder. Abrir os sentidos para tudo o que escapa, o que se rebela, o que
produz rachaduras numa certa forma endurecida e normatizada de fazer edu-
cação. Apostamos no fortalecimento do debate entre os membros da comuni-
dade escolar, na visibilidade das práticas que rompem com o instituído como
gatilho de transformação.
Acreditamos que torna-se fundamental, neste momento, dar visibilidade
para a multiplicidade, para a diversidade das práticas em educação. Funda-
mental dar visibilidade e fortalecer a importância decisiva das experiências

118
cotidianas, dos saberes produzidos cotidianamente por todos aqueles que de 12 COIMBRA, C. M. B.; LOBO, L. F.; NASCI-
alguma forma habitam o espaço escolar. Olhar de outro jeito tudo aquilo que, MENTO, M. L. “Por uma invenção ética para
os Direitos Humanos.”  Psicologia clíni-
num primeiro momento, se apresenta como ameaça à uma suposta ordem es-
ca 20.2 (2008): 89-102.
tabelecida… Duvidar das intenções desta “ordem”…
É evidenciando o que difere, dando visibilidade às invenções mais
cotidianas deste coletivo formado por estudantes, trabalhadores, familiares,
comunidade, gestores, que conseguiremos produzir brechas, rachaduras, nos
modos biopolíticos de operar. Processos de subjetivação capazes de diferir dos
modos de viver contemporâneos - tão individualizantes, tão normatizadores -
tendo como norte a produção e o fortalecimento dos coletivos.
Fundamental que o diálogo seja uma prática constante, que o debate e o
tensionamento sejam desejáveis no sentido de tentar evidenciar cada vez mais
a diversidade de posições e exercitar o compartilhamento de decisões. Aposta-
mos na atualização de direitos humanos produzidos nos movimentos da vida.
Apostamos na atualização de direitos humanos produzidos nas composições
onde a hierarquização seja enfraquecida e emerja o diálogo e o coletivo como
rede solidária e de produção de processos de formação mais cooperativos,
solidários e potentes.
Dessa forma, afirmamos com Coimbra, Lobo e Nascimento (2008)12 que:

Em vez de pensar os direitos como essência universal do homem, pode-


ríamos, por meio de outras construções, garantir e afirmá-los como di-
ferentes modos de sensibilidade, diferentes modos de existir, viver, pen-
sar, perceber, sentir; enfim, diferentes jeitos de estar e existir no mundo.

119
Reênciasfer ácasbilogr

CAPONI, S. Biopolítica e Medicalização dos normais. Physis Revista de Saúde Cole-


tiva, Rio de Janeiro, 19 [ 2 ]: 529-549, 2009.

COIMBRA, C. M. B.; LOBO, L. F.; NASCIMENTO, M. L. “Por uma invenção ética para os
Direitos Humanos.” Psicologia clínica 20.2 (2008): 89-102.

FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

HECKERT, A. L. C. ROCHA, M. L. A maquinaria escolar e os processos de regulamentação


da vida. Revista Psicologia e Sociedade; 24, p.88, 2012.

PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. Editora Iluminuras Ltda, 2003.

PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta, uma vida. Trópico, 2007.

120
Jair Teixeira dos Reis
Auditor Fiscal do Trabalho, Professor Universitário. Autor do livro Curso de
Direitos Humanos publicado pela Editora Ferreira, 2012.

8
O DIREITO FUNDAMENTAL AO NÃO TRABALHO E A
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Jair Teixeira dos Reis.

1. Introdução.

Os Direitos Humanos como direitos de primeira, segunda e terceira gerações


ou dimensões, ampliando sua extensão, originalmente enraizada no campo
dos direitos e garantias individuais para se estender na discussão dos direitos
sociais e difusos. Os Direitos Humanos, caracterizados em sua revisão teórica
como “indissociáveis da pessoa humana”, universais, inalienáveis, imprescri-
tíveis, irrenunciáveis e interrelacionados, assumem uma dimensão bastante
ampla, compartilhado como bem comum da humanidade e incluindo aspectos
valiosos da dignidade humana, tal como o trabalho. Aqui, podemos nos referir
também, ao direito fundamental ao não trabalho, em determinado momento
da vida do cidadão, cujo objetivo é preservar a formação física, educacional,
lazer e convivência familiar.
Ao ser publicada, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
amplia os documentos anteriores, especialmente a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, formulada na Revolução Francesa de 1789, baseados
na defesa de direitos individuais de cidadãos que principiavam, na época, a
construção da cidadania em contraponto ao poder tirânico de Estados despó-
ticos. São princípios norteadores da elaboração e consolidação do Estado De-
mocrático de Direito, sob o qual se assenta a discussão dos Direitos Humanos.
Mas na declaração de 1948, que busca reconstruir direitos humanos rompidos
pelas Guerras Mundiais, recebe dimensão mais ampla, incorporando novas ge-
rações de direitos que acompanham a evolução da cidadania e da democracia.
Consolida-se hoje como integrante da Carta Internacional dos Direitos do Ho-
mem, junto com o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais e com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de
1966 e seus dois protocolos facultativos.

122
1.1 Histórico do Trabalho Infantil.

1.1.1. Contexto Internacional.

Lecionam Araújo Júnior e Maranhão (2010, p. 46) que o trabalho do


menor é fenômeno antigo. Basta dizer que já no Código de Hamurabi (1.700
a.C.) podem ser encontradas normas que regem o labor infantil. Na Grécia e
em Roma os filhos dos escravos também eram propriedade dos senhores, sendo
obrigados a trabalhar para o dono ou qualquer pessoa por ele indicada. Por sua
vez, na Idade Média, com as Corporações de Ofício, o menor trabalhava sem
nenhum salário ou proteção. Negritamos.
Ainda de acordo com Araújo Júnior e Maranhão (2010, p. 46), foi com o
advento da Revolução Industrial (século XVIII), propiciadora da implantação
de um inaceitável quadro de desumana exploração da classe trabalhadora, que
o tema da tutela do trabalho infantil começou a ganhar ares inquietantes.
A legislação tutelar do menor tem início justamente na Inglaterra, com
o Ato da Moral e da Saúde, de 1802, que reduziu a jornada de trabalho em 12
horas e proibiu o trabalho noturno do menor nas oficinas dos povoados, pro-
teção essa mais tarde estendida às cidades em 1819, com a Lei Cotton Mills Act
que limitou a idade mínima para o trabalho em 9 anos. (BARROS, 2013, p. 434).
Em 1959, na Assembleia Geral da ONU, foi lançado um instrumento
jurídico internacional de proteção do trabalho da criança, trata-se da Decla-
ração dos Direitos da Criança, onde ficou prescrito que a criança gozará de
proteção especial e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades,
por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições
de liberdade e dignidade.
A Convenção Sobre os Direitos da Criança foi aprovada, por unanimi-
dade, em 1989 em Assembleia Geral das Nações Unidas. Nesse instrumento
internacional ficou registrado que a criança tem o direito de ser protegida
contra qualquer trabalho que ponha em perigo a sua saúde, a sua educação
ou o seu desenvolvimento. O Estado deve fixar idades mínimas de admissão
no emprego e regulamentar as condições de trabalho (art. 32 da Convenção).

123
1. A exemplo: o Movimento Nacional dos 1.1.2. Contexto Nacional
Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que
surgiu em 1985 em São Bernardo do Cam-
Desde seu “descobrimento”, o Brasil avançou radicalmente em sua economia,
po, um importante centro sindical do país,
e a Pastoral da Criança, criada em 1983 passando por muitas fases político-administrativos e vários foram os momentos
pela Conferência Nacional dos Bispos do históricos vividos pelas crianças e adolescentes brasileiros, para hoje serem re-
Brasil - CNBB, envolvendo forte militân-
conhecidos como sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento.
cia proveniente dos movimentos sociais
da igreja católica. (Disponível em: <http:// Acompanhando as ideias internacionais, o ordenamento jurídico brasilei-
www.promenino.org.br/Ferramentas/Con- ro teve uma significativa mudança na área trabalhista com a criação da Con-
teudo/tabid/77/ConteudoId/70d9fa8f solidação das Leis do Trabalho (CLT), instituída através do Decreto-Lei nº 5.452
-1d6c-4d8d-bb69-37d17278024b/Default.
aspx>. Acesso 08.jun./2013,
de 1o de maio de 1943, que nos seus artigos 402 a 410 apresentam disposições
sobre as condições de trabalho do menor de 18 anos de idade.
Várias Constituições foram promulgadas e muitas leis infraconstitucio-
nais foram criadas e principalmente com a Constituição da República Fede-
rativa do Brasil – CRFB/88, promulgada em 05 de outubro de 1988, é que
as Crianças e os Adolescentes foram reconhecidos como sujeitos de direitos,
conforme determina no art. 227:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cul-
tura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Além disso, o inciso IV do art. 1o da CRFB/88 estabelece como funda-


mento os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, para garantir o bem
estar da família e sociedade, contudo resguarda em seu art. 7º, inciso XXXIII a
proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de
qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz,
a partir de quatorze anos.
Por outro lado, com base na garantia Constitucional prevista, foram
promovidos movimentos sociais1 acompanhados de debates no parlamento e,
assim, para resguardar e proteger os direitos da Criança e do Adolescente foi

124
instituído pela Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do 2. Art. 226 da CF/88. A família, base da so-
Adolescente - ECriad, o qual em seu art. 4º disciplina que: ciedade, tem especial proteção do Estado.

3. A criança gozará de uma proteção espe-


É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder cial e beneficiará de oportunidades e ser-
público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos re- viços dispensados pela lei e outros meios,
para que 2possa desenvolver-se física, in-
ferentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,
telectual, moral, espiritual e socialmente
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à de forma saudável e normal, assim como
convivência familiar e comunitária. em condições de liberdade e dignidade. Ao
promulgar leis com este fim, a consideração
fundamental a que se atenderá será o inte-
A família é a célula da sociedade2, portanto, deve cuidar dos seus infan- resse superior da criança.
to-juvenis com todas as peculiaridades que lhes são afetas, garantindo-lhes
uma vida digna com amor, saúde, alimentação, moradia, educação, segurança,
lazer etc., bem como outros direitos estabelecidos no art. 227 da Carta Política
de 1988. Como é sabido, crianças bem cuidadas e orientadas chegam seguras à
sua adolescência, refletindo de forma direta em sua vida de adulto.
Disso, extrai-se que o Estado Democrático de Direito Brasileiro criou ins-
titutos (tais como os Conselhos Tutelares, Conselhos Municipais dos Direitos
da Criança e Adolescente) para a fiscalização/aplicação da lei. Outras institui-
ções como o Ministério do Trabalho e Emprego - MTE também estabelecem
normas executivas, como a Instrução Normativa nº. 102 que resguarda os
direitos trabalhistas e a dignidade dos infanto-juvenis visando à preservação
desses seres em peculiar condição de desenvolvimento.
Para Barroso Filho (2010), as particularidades descritas no Estatuto da
Criança e Adolescente levam em conta a situação peculiar daqueles que estão
ainda em desenvolvimento físico, mental, moral, social, espiritual e psicológi-
co, sempre em condições de dignidade da pessoa humana. É o que estabelece
o Princípio 2o da Declaração dos Direitos da Criança de 19593.
Segundo Reis,

(…) a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho – OIT


estabelece, dentre outros aspectos, uma idade mínima para a entrada no
mercado de trabalho e determina algumas restrições para o trabalho de
crianças com menos de 14 anos.

125
A legislação brasileira relativa à regulamentação do trabalho infantil
remonta ao ano de 1891, quando o Decreto n. 1.313 definia que os menores
do sexo feminino, com idade entre 12 e 15 anos e os do sexo masculino, na
faixa entre 12 e 14 anos, teriam uma jornada diária máxima de 7 horas e fi-
xava uma jornada de 9 horas para os meninos de 14 a 15 anos de idade. Até
o advento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – Decreto-Lei n. 5.453,
em 1943, vários dispositivos regularam a idade mínima para o trabalho, des-
tacando-se o Primeiro Código de Menores da America Latina, de 1927, que
vedava o trabalho infantil aos 12 anos de idade e proibia o trabalho noturno
aos menores de 18 anos. A CLT tratou da matéria de forma abrangente, defi-
nindo inicialmente a idade mínima de 12 anos, alterando posteriormente para
14 anos, e estabelecendo as condições permitidas para a realização. (REIS,
2011, p. 15-16).
O Estatuto da Criança e do Adolescente pauta-se pelos princípios da
descentralização político-administrativa e pela participação de organizações
da sociedade, além de ampliar as atribuições do Município e da comunidade
e restringir as responsabilidades da União e dos Estados, pois aqueles estão
mais próximos às crianças, adolescentes e jovens, por isso têm mais condi-
ções para protegê-las.
O Estatuto revela-se como um conjunto de princípios e normas prescri-
tos pelo Estado brasileiro para a administração dos direitos da infância e da
juventude, considerados como prioridade nas ações estatais, haja vista serem
nossas sementes de futuro (BARROSO FILHO, 2013).
Como se percebe neste breve histórico, tamanha importância foi dada
ao acompanhamento do desenvolvimento das crianças e dos adolescentes no
seio da sociedade. Todavia, os procedimentos de autorização do trabalho do
adolescente apresentam-se ainda com incoerência normativa considerando o
princípio da proteção integral à criança e adolescente.

2. Dimensões dos Direitos Humanos.

Para uma melhor compreensão deste capítulo queremos registrar que, de acor-
do com Henrique Savonitti MIRANDA (2007, pág. 188-189) surgirão os termos

126
“Gerações” ou “Dimensões” dos Direitos Humanos. Todavia, entendemos que
os Direitos Humanos não surgiram simultaneamente, mas em períodos distin-
tos conforme aspirações de cada ocasião, tendo esta consagração se dado de
forma progressiva e seqüencial nas cartas constitucionais bem como em trata-
dos. Isto não quer dizer que tais direitos surgiram em seqüência generacional.
Pois com o surgimento de novos direitos não ocasionou a extinção ou revoga-
ção dos anteriores, assim preferimos o termo “Dimensão” por não ter ocorrido
uma sucessão desses direitos, afinal, atualmente, todos eles coexistem.
No mesmo sentido, para André Ramos Tavares (apud MIRANDA, 2007,
pág. 188-189), até os dias atuais, podemos relacionar a existência de qua-
tro dimensões de direitos fundamentais. Note-se que a grande maioria da
dogmática constitucionalista prefere utilizar-se da expressão “gerações” para
designar os vários grupos de direitos trazidos à lume ao longo dos tempos. To-
davia, cremos que a expressão geração traz em seu bojo a ideia de renovação e
sucessão, o que não ocorre com os direitos fundamentais, pois o surgimento de
novos direitos não exclui os anteriormente prestigiados, vindo, ao contrário,
somarem-se a eles.
Conforme Alexandre de Moraes (2011, pág. 25), modernamente, a doutrina
apresenta-nos a classificação de direitos fundamentais de primeira, segunda e
terceira gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a
ser constitucionalmente reconhecidos, e destaca a classificação de Celso Bandeira
de Mello (1995, p. 39-206);

Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) –


que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – real-
çam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos
econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades
positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os
direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade
coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consa-
gram o princípio da solidariedade e constituem um momento impor-
tante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos
direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indis-
poníveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.

127
Reitera Moraes (2011, pág. 25) que os direitos fundamentais de primeira
geração são os direitos e garantias individuais e políticos clássicos (liberdades
públicas), surgidos institucionalmente a partir da Magna Carta. Já os direitos
fundamentais de segunda geração, que são os direitos sociais, econômicos e
culturais, surgidos no início do século XX, que são os relacionados com o
trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice etc.
Por fim, como direitos de terceira geração os chamados direitos de solidarieda-
de ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado
(dentre eles o meio ambiente do trabalho), uma saudável qualidade de vida,
ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos,
que são, no dizer de José Marcelo Vigliar (1997, p.42), os interesses de grupos
menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há vínculo jurídico
ou fático muito preciso.

2.1. O Trabalho e as Dimensões dos Direitos Humanos.

Para Reis (2011, pág. 17) o trabalho é tão antigo quanto o homem. Em
todo o período da pré-história, o homem é conduzido, direta e amargamente,
pela necessidade de satisfazer a fome e assegurar sua defesa pessoal. Ele caça,
pesca e luta contra o meio físico, contra os animais e contra os seus semelhan-
tes, tendo como instrumento as suas próprias mãos.
Segundo Reis (2011, pág. 30) o vocábulo trabalho

pode ser definido como o esforço físico ou intelectual, gratuito ou one-


roso, em proveito próprio ou de terceiros com objetivo de produzir ou
desenvolver algum bem ou serviço.
Esforço físico ou intelectual – quer dizer o desprendimento de energia
física ou mental no desenvolvimento de algum bem ou a prestação de
algum serviço.
Gratuito ou oneroso – quer referir-se à existência ou não de uma con-
traprestação pecuniária ou em utilidades.
Em proveito próprio ou de terceiros – poderá ser efetivado para a pró-
pria pessoa ou para outros (pessoas naturais ou jurídicas).

128
Com objetivo de produzir ou desenvolver algum bem ou serviço –
O esforço utilizado terá como finalidade a produção ou desenvolvimen-
to de algum bem ou prestação de algum serviço.

No entender de Maria Áurea Baroni CECATO (2013) a Declaração dos Di-


reitos do Homem e do Cidadão (Declaração Francesa) de 1789, ícone do surgi-
mento da primeira geração ou dimensão de direitos (os civis e políticos) é, ao
mesmo tempo, a demarcação da conquista da liberdade do trabalhador. Este
passa a ser livre das amarras das corporações de ofício e das imposições
da servidão, pela adoção da premissa de que a faculdade de trabalhar é um
dos primeiros direitos do homem. Com a aprovação da referida Declaração,
de repercussão mundial, o trabalhador deixa de ser objeto para ser sujeito de
direitos (e obrigações). O contrato é a figura jurídica que garante a manifes-
tação de sua própria vontade e representa, ao mesmo tempo, a liberdade e o
respeito que lhe é devido a partir de então, enquanto cidadão. Ele passa a ter,
ao menos em tese, a opção de trabalhar ou não, além da escolha do seu toma-
dor de serviços.
Revela CECATO (2013) que os pilares do direito coletivo (e particular-
mente da liberdade de reunião e associação) são construídos a partir das lutas
dos movimentos sociais e da persistência dos trabalhadores, então motivados
pelo enfrentamento das deploráveis condições de trabalho nas fábricas da Re-
volução Industrial. Assim, os direitos econômicos, sociais e culturais (segunda
dimensão de direitos) resultam do cotejo entre as ideologias liberal e socia-
lista e refletem as conquistas do trabalhador, então coletivamente organizado.
Aí se encontra a efetiva adoção de direitos laborais, assentada, entretanto, nos
direitos civis e políticos, que garantem a autonomia do trabalhador, primeiro
individual e, em seguida, coletivamente, permitindo a atuação nos movimen-
tos sociais e, mais especificamente, sindicais. Por outro lado, fica claro que, a
partir de então, os grandes contingentes humanos não serão mais pacíficos.
Já, os direitos de terceira dimensão no entender de CECATO (2013) –
coletivos e de solidariedade – também contemplam o trabalhador, tanto por-
que consideram a indispensabilidade de meio ambiente saudável de trabalho,
como porque ampliam os direitos coletivos, mas, sobretudo, porque definem

129
que a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento. Com efeito, do
texto da Declaração de 1986, da ONU, infere-se que a inclusão sócio laboral é
componente essencial do desenvolvimento.

3. Marco legal da proteção ao não trabalho infantil.

A legislação brasileira, ao tratar do trabalho infantil, guarda consonância com


os preceitos estabelecidos na Carta Republicana de 1988, cujas normas incor-
poraram os postulados de proteção prescritos na Convenção dos Direitos da
Criança, adotada em 1989 pela Organização das Nações Unidas – ONU, e que
fixa, em seu artigo 32, as seguintes obrigações:

Artigo 32
Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de estar protegida
contra a exploração econômica e contra o desempenho de qualquer
trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que
seja nocivo para sua saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental,
espiritual, moral ou social.
Os Estados Partes adotarão medidas legislativas, administrativas, sociais
e educacionais com vistas a assegurar a aplicação do presente Artigo.
Com tal propósito, e levando em consideração as disposições pertinentes
de outros instrumentos
internacionais, os Estados Partes deverão, em particular:
- Estabelecer uma idade ou idades mínimas para a admissão em empregos;
- Estabelecer regulamentação apropriada relativa a horários e condições
de emprego;
- Estabelecer penalidades ou outras sanções apropriadas a fim de asse-
gurar o cumprimento efetivo do presente Artigo.

Assim estabeleceu a Lex Maior, no caput do art. 227:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à

130
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Grifamos.

Já, o art. 7º, inc. XXXIII, com a alteração dada pela Emenda Constitucio-
nal nº 20/1998, a Magna Carta estabelece as seguintes vedações:

• qualquer trabalho, a pessoas com idade inferior a 16 (dezesseis) anos,


salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 (quatorze) anos; e
• trabalho noturno, perigoso ou insalubre a pessoas com idade inferior
a 18 (dezoito) anos.

Leciona MEDEIROS NETO (2013) tratar-se de norma essencial de natu-


reza proibitiva, com visível escopo protetivo e tutelar, estabelecendo o direito
fundamental ao não trabalho em certa época da vida do ser humano, e ao
trabalho protegido, no período seguinte do seu desenvolvimento, no objetivo
de preservar a formação, educação, lazer e convivência familiar da criança e
do adolescente, de modo a impedir a ocorrência de prejuízos e abusos.
Ainda para o autor mencionado, há, assim, constitucionalmente, duas
situações de proteção à criança e ao adolescente, em face do trabalho: em pri-
meiro, a regra geral do direito ao não-trabalho da pessoa com idade inferior a
16 anos; em segundo, o direito ao trabalho protegido, a partir dos 16 até os
18 anos, e, excepcionalmente, a contar dos 14 anos, na condição de aprendiz.

131
Reênciasfer ácasbilogr

ARAÚJO JÚNIOR, Francisco Milton. MARANHÃO, Ney Stany Morais. Considerações so-
bre o Combate à Exploração do Trabalho Infantil: Bosquejo Histórico, Proteção Ju-
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radigma da Declaração de 1998 da OIT. Disponível em http://www.redhbra-
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MEDEIROS Neto, Xisto Tiago. Trabalho Infantil. Disponível em http://www.mp.go.gov.


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132
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REIS, Jair Teixeira dos. Direito da criança e do adolescente: questões trabalhistas


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REIS, Jair Teixeira dos. Manual Prático de Direito do Trabalho. 3 ed. São Paulo: LTr, 2011.

VIGLIAR, José Marcelo. Ação Civil Pública. São Paulo: Atlas, 1997.

133
Alline Pedra Jorge Birol
Advogada, Pós Doutora em Direito (UFSC), Doutora em Criminologia (Univer-
sité de Lausanne, Suiça), Consultora de Organizaçõoes Internacionais (ICMPD,
UNODC, PNUD) em projetos de cooperação técnica com o Ministério da Justiça.

Lucicleia Souza e Silva Rollemberg


Delegada de Polícia Federal, Coordenadora Substituta de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça.

9
TRÁFICO DE PESSOAS ENQUANTO VIOLAÇÃO DE 1. O Protocolo de Palermo foi adotado pela
DIREITOS HUMANOS Assémbleia Geral das Nações Unidas, Reso-
lução 55/25, e entrou em vigor em 25 de
dezembro de 2003.
Alline Pedra Jorge Birol
Lucicleia Souza e Silva Rollemberg 2. Na data de 08 de novembro de 2013, 158
países membros das Nações Unidas eram
estados-parte do Protocolo.

1. Introdução 3. A expressão “escravidão dos tempos mo-


dernos” é inclusive o slogan do Freedoom
Project financiado pela rede de televisão
Tráfico de Pessoas é uma das mais antigas formas de violação de direitos internacional CNN. Outra expressão co-
humanos. Registros históricos demonstram que desde a colonização das Amé- mumente utilizada é “escravidão contem-
ricas até a abolição da escravatura, negros africanos eram transportados de porânea.” Veja Justin Guay, The Economic
Foundations of Contemporary Slavery.
seus países e forçados a trabalhar em vários lugares no território brasileiro.
Indígenas também foram vítimas de exploração e sujeitos a escravidão nesse
mesmo período. (Fausto, 2008). No entanto, nessa época, tanto o transporte
como a exploração destes seres humanos eram permitidos por lei.
Apesar de abolida a escravidão, em 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea,
a prática parece ter continuado e nunca ganhou tanta visibilidade como nos
últimos 10 anos, após a aprovação do Protocolo Adicional à Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Preven-
ção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crian-
ças, conhecido como Protocolo de Palermo, em 15 de novembro de 2000.1 O
Protocolo de Palermo foi ratificado por boa parte dos países membros das Na-
ções Unidas2 e aprovado no Brasil por intermédio do Decreto nº 5.017 de 2004.
Com a globalização e a intensificação da mobilidade humana, tem-se
observado o ressurgimento do transporte de pessoas para fins de exploração,
sendo codinome da expressão “tráfico de pessoas” a expressão “escravidão dos
tempos modernos” e fazendo relembrar que esta é uma das formas de violação
de direitos humanos que nunca deixou de existir.3
Razões para a perpetuação desta forma de violência seriam: (a) diferenças
econômicas entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, em transição
ou pós-conflito, o que leva as pessoas a deixarem seus países de origem em busca
de melhores oportunidades (Dijck, 2005); (b) políticas migratórias muito restritas
nos países desenvolvidos que recriminam e discriminam o migrante (Dijck, 2005);

135
e (c) relativa ineficácia da justiça criminal que não está ainda preparada para
identificar e enfrentar as situações de tráfico de pessoas (Dijck, 2005). Demanda
por serviços sexuais e outros serviços, tais como serviços domésticos e no setor
de turismo, atuam como fatores de atração para os países de destino, assim como
a violência familiar, o desemprego, problemas financeiros, dentre outros, atuam
como fatores de expulsão nos países de origem (Dijck, 2005; Pedra J.B., 2008).
Observa-se, no entanto, que a condição de vulnerabilidade é uma das prin-
cipais razões pelas quais as pessoas acabam se tornando vítimas de tráfico de
pessoas e que, por sua vez, têm uma grande dificuldade de denunciar essa forma
de violência para as autoridades ou até mesmo de buscar apoio em organizações
de assistência às vítimas, por razões diversas tais como o medo, a vergonha e
até mesmo o desejo de não voltar para sua condição sócioeconômica anterior.
É o tráfico de pessoas, dessa forma, fenômeno extremamente subnoti-
ficado, cujas cifras são desconhecidas e dificilmente podem, até mesmo, ser
estimadas. Inclusive, quando denunciado, nem sempre a justiça criminal está
preparada para registrá-lo como tal, fazendo com que os casos que chegam no
sistema também passem despercebidos ou “etiquetados” de outras maneiras.
Este trabalho tem o objetivo de descrever o marco conceitual e legal
desta violação de direitos humanos. Neste sentido, o trabalho aborda as espe-
cificidades e as lacunas da legislação brasileira. O trabalho também destaca a
questão da subnotificação dessa forma de violência e suas principais razões.
Na sequência, traz estatísticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas de acor-
do com pesquisas e dados oficiais de órgãos da justiça criminal, que de forma
bastante rudimentar tentam descrever o tráfico de pessoas no mundo e no
Brasil, muito embora a subnotificação e a impropriedade dos sistemas que re-
gistram essas informações dificulte bastante esta tarefa. E por fim, o artigo traz
recomendações, sem pretensões conclusivas, devido à complexidade do tema.

2. Tráfico de Pessoas no Brasil: Marco Legal e Conceitual

Nos termos do Protocolo de Palermo, que por sua vez foi adotado, com seus
devidos ajustes pela Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
tráfico de pessoas é:

136
o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhi-
mento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras
formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade
ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamen-
tos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá,
no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas
de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou
práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.

Do conceito, apreendemos que são necessários três elementos para que o


tráfico de pessoas se configure, ou seja, a ação, o meio e a finalidade, segundo
a Figura 1 (Ministério da Justiça, 2013):

Figura 1: Conceito de Tráfico de Pessoas

Ação Meio Fim

Recrutamento, Ameaça uso da força ou Exploração sexual, trabalho


Transporte, outras formas de coação ou serviço forçados, escra-
Transferência, rapto, fraude, engano, vtura ou práticas similares
Alojamento ou abuso de autoridade ou à escravatura, servidõ,;
Acolhimento de pessoas situação de vulnerabilidade remoção de órgãos, tenidos
entrega ou aceitação de e partes do corpo, e outras
pagamentos ou benefícios formas de exploração
para obter o consentimento
de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra

Fonte: Ministério da Justiça, 2013.

A ação é o recrutamento/aliciamento que ocorre quando uma pessoa fí-


sica ou um representante de uma pessoa jurídica busca persuadir outra pessoa
a realizar uma viagem.
O recrutamento pode se dar por diversos meios, tais como: pessoal-
mente, por amigos ou familiares, anúncios de jornal, internet, etc. A ação é
também o transporte, compreende meios variados de locomoção e facilitação

137
4. Críticas têm sido feitas ao tipo penal do de entrada no local de destino. Faz parte ainda do elemento ação a trans-
tráfico de pessoas previsto no art. 231 e ferência, que é o ato de facilitar o trânsito entre países, regiões, cidades ou
231-A. Dentre elas, a de que o legislador
locais. E, finalmente, alojar ou abrigar significa dar abrigo ou alojamento às
esqueceu de prever um dos elementos do
tráfico, que é o meio coercitivo, violento, pessoas traficadas, ainda que durante a viagem, nos locais de trânsito, ou nos
fraudulento, etc, fazendo com que o mes- locais de exploração.
mo se equipare à definição de contrabando
No que diz respeito aos meios, a ameaça, a força ou outras formas de
de migrantes, não de tráfico de pessoas. A
outra é a de que o tipo penal criminaliza coação (física, moral ou psicológica) podem ser empregadas para obter o con-
a prostituição, ainda que indiretamente sentimento da pessoa traficada para o transporte e/ou a exploração. O con-
(Castilho, 2008). sentimento obtido desta maneira é obviamente viciado. O rapto é o sequestro
da pessoa traficada, ou sua manutenção em cárcere privado no intuito de
transportá-la para fins de exploração. A fraude e o engano acontecem quando
o traficante usa de artifícios fraudulentos como contratos de trabalho falsos,
promessas de emprego, casamento, para obter o consentimento da pessoa tra-
ficada. O abuso de autoridade ou da situação de vulnerabilidade ocorre quan-
do o traficante usa do seu poder (por exemplo, numa relação hierárquica) ou
da posição de vulnerabilidade da pessoa a ser traficada (dificuldade financeira
ou familiar) para coagí-la ou obter o seu consentimento com o transporte. E,
finalmente, a entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra é também um
dos meios utilizados para convencer, por exemplo, os pais a entregarem seus
filhos, em troca de um determinado valor.
No que diz respeito à exploração, o Protocolo e a Política Nacional re-
conhecem expressamente as seguintes modalidades: (1) a exploração da pros-
tituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, (2) o trabalho ou
serviços forçados, (3) escravatura ou práticas similares à escravatura, (4) a
servidão e (5) a remoção de órgãos.
A legislação penal brasileira, no entanto, ainda não contempla todas as
modalidades de tráfico de pessoas, mas tão somente o tráfico de pessoas para
fins de exploração sexual.
O tráfico de pessoas para fins de exploração sexual (1) está previsto nos
arts. 231 e 231-A do Código Penal. O art. 231 define o tráfico internacional para
fins de exploração sexual como a ação de

138
promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que
nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual,
ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro.

E o art. 231-A define o tráfico interno para fins de exploração sexual como a
conduta de “promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território
nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual.”4
As outras formas de exploração estão previstas em outros tipos penais, fa-
zendo com que a exploração em si possa ser punida, mas não necessariamente
a mercantilização da pessoa, que se configura com a Ação (recrutamento, trans-
porte, etc), o Meio (engano, fraude, coerção) e que são anteriores à exploração.
É o caso do tráfico de pessoas para fins de trabalho ou serviços forçados (2),
escravatura ou práticas similares à escravatura (3), modalidade de exploração
que poderá ser punida nos termos do art. 149 do Código Penal, que define o tipo
penal da “redução a condição análoga à de escravo”. Reduzir alguém a condição
análoga à de escravo significa submeter esta pessoa a trabalhos forçados ou
a jornada exaustiva e/ou sujeitá-la a condições degradantes de trabalho, e/ou
restringir, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com
o empregador ou preposto. Significa ainda cercear o uso de qualquer meio de
transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho e/
ou manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documen-
tos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Portanto, este tipo penal poderá incidir no caso do tráfico de pessoas com
esta finalidade, punindo, no entanto, a conduta da exploração, mas não os atos
anteriores a esta que são o recrutamento, o transporte, a utilização de meio
fraudulento para convencer a vítima ou de violência. Com isto os casos em que
a exploração não se concretize, ou os casos tentados, acabam sem punição.
O tráfico de pessoas para fins de servidão (4) significa submeter uma
pessoa a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, sujeitá-lo a condições
degradantes de trabalho, no âmbito doméstico. É também confundida com o
casamento servil, quando a pessoa traficada se casa com alguém que promete
uma relação conjugal saudável, mas que acaba por obrigar a pessoa a realizar
as tarefas domésticas e/ou a ter relações sexuais com o mesmo, ainda que

139
5. Mendicância são diversas atividades contra a sua vontade. De acordo com a legislação brasileira, pode ser também
através das quais uma pessoa pede a um interpretado como forma de trabalho escravo.
estranho dinheiro, sob a justificativa de sua
O tráfico de pessoas para fins de remoção de órgãos (5), por sua vez,
pobreza ou em benefício de instituições re-
ligiosas ou de caridade. A venda de peque- encontra relativa guarida na Lei do Transplante, quer seja a Lei n° 9.434/97,
nos itens como flores e doces nos sinais, que criminaliza toda forma de extração de órgão, tecido ou parte do corpo
limpar vidros, estacionar ou vigiar carros,
sem autorização dos parentes ou do paciente em vida. Não obstante, a lei de
auxiliar com as compras em supermercado,
apresentações artísticas (circenses, tocar transplantes não tipifica os atos anteriores, tais como o transporte da pessoa
instrumentos musicais) nas ruas podem ser com vida ou do cadáver para fins de extração de órgãos, o uso da fraude em
também considerados como mendicância. relação à vítima, que é convencida em vida a extrair parte de seu corpo, em
Destacamos, todavia, que a mendicância
como forma de exploração se configura
troca de vantagem.
quando grupo organizado ou indivíduos Finalmente, tanto o Protocolo de Palermo como a Política Nacional de
transportam e coagem pessoas, principal- Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas não são taxativos, abrindo a possibili-
mente crianças e adolescentes, mas não só,
dade para outras formas de exploração. Pesquisas de campo têm, inclusive,
para que fiquem nas ruas pedindo dinheiro
ou comercializando pequenos produtos, identificado outras modalidades de tráfico de pessoas, tais como o tráfico de
restringindo sua liberdade e retendo, todo pessoas para fins de mendicância5 ou adoção ilegal6; o tráfico de pessoas para
ou em parte, o fruto desta mendicância
fins da prática de crimes7 (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
(Secretaria Nacional de Justiça, 2013).

6. Acontece quando crianças e adolescen-


tes são transportadas com ou sem o con- 3. Do consentimento da vítima no crime de tráfico de pessoas
sentimento ou a autorização dos pais e são
vendidos/entregues para outras pessoas,
muito comumente casais, que tenham o Nos termos do art. 2°, § 7° da Política Nacional, o consentimento da vítima é
desejo de adotar um filho. Tudo é feito sem irrelevante, o que gera alguma confusão, pois nos termos do Protocolo de Pa-
a observância das formalidades legais de
lermo, o consentimento é irrelevante só quando o meio utilizado for a ameaça
um processo de adoção. É conduta que po-
derá ser punida nos termos dos arts. 238 e ou o uso da força ou outras formas de coação, o rapto, a fraude, o engano, o
239 do Estatuto da Criança e do Adolescen- abuso de autoridade ou da situação de vulnerabilidade ou a entrega ou aceita-
te. (Secretaria Nacional de Justiça, 2013). ção de pagamentos ou benefícios para obtê-lo.
Em verdade, há vários níveis de vitimização (Aronowitz, 2001) que cor-
7. É quando a pessoa traficada é forçada ou
coagida à prática de atividades criminosas, respondem a diferentes níveis de conhecimento e informação que são dados à
tais como o cultivo ou o transporte de dro- vítima e que estão relacionados à discussão sobre o consentimento.
gas de um local para outro, pequenos furtos,
O primeiro nível corresponde à total coerção em que as vítimas são rapta-
etc. (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
das; o consentimento neste nível é nulo. O segundo nível diz respeito às vítimas
que foram enganadas com promessas de emprego que não a prostituição. Nestes
casos, o consentimento da vítima foi dado com base numa fraude. O terceiro ní-
vel refere-se a um nível de engano menor, em que as vítimas sabem que vão tra-

140
balhar na indústria do sexo, mas não na prostituição. Por fim, o quarto nível de 8. Seguindo a definição do Estatuto da
vitimização diz respeito às vítimas que, antes da sua partida, sabiam que iriam Criança e do Adolescente (Lei Federal n.
8.069/90), a criança é a pessoa que tem en-
trabalhar como profissionais do sexo, mas que desconheciam até que ponto iam tre 0 e menos de 12 anos, e o adolescente,
ser controladas, intimidadas, endividadas, exploradas. (Aronowitz, 2001). entre 12 e menos de 18 anos.
O risco é, portanto, o de se obter uma definição de tráfico que estabeleça
hierarquias morais informadas por valores morais, que acabem por se traduzir
em barreiras legais e/ou práticas na defesa dos direitos humanos das vítimas
de tráfico de pessoas (Anderson & Davidson, 2002).
Daí a inteligência da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas quando exclui qualquer forma de consentimento (obtido sob ameaça,
violência, fraude, etc., ou não) como elemento para se identificar uma situação
de tráfico de pessoas.
No que diz respeito especificamente à criança e ao adolescente,8 nos
termos do Protocolo, o segundo elemento, quer seja o Meio, não é necessário
para se configurar o tráfico de pessoas fazendo com que, obviamente, mais
uma vez o consentimento seja irrelevante, o que é natural dada à condição de
incapacidade da vítima. Basta, portanto, a Ação e a Finalidade da exploração
para que a criança ou o adolescente sejam considerados pessoas traficadas.

4. Da subnotificação do crime de tráfico de pessoas e dos “medos”


da vítima

Segundo a literatura, sentimentos de vergonha, culpa, medo de represálias e


desconhecimento da sua própria condição de “vítima” são sentimentos co-
muns às vítimas de crime (Aebi, Aubusson de Cavarlay, Barclay, Killias, et al.,
2010; Pedra J.B., 2010; Shapland, Duff, & Willmore, 1985; Waller, 1990).
Assim, como em outros tipos penais, vítimas de tráfico de pessoas têm
relatado experiências negativas e sentimentos semelhantes aos das outras ví-
timas de crime, ao decidir notificá-lo. Particularmente, no caso das vítimas de
tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, pesquisas têm demonstrado
que os sentimentos mais comuns são a vergonha de denunciar, devido ao
receio de serem discriminadas pela sua própria família ou amigos por terem
trabalhado (ainda que forçosamente) na indústria do sexo.

141
9. Lerner (1980) inclusive explica os sen- Outro sentimento comum é a culpa, pois as vítimas de tráfico de pessoas,
timentos de culpa e a falta de reconheci- particularmente o internacional, acreditam que de alguma maneira poderiam
mento da condição de vítima, por parte da
ter evitado e deveriam ter suspeitado que as “promessas” de uma vida melhor
própria vítima, com a teoria da crença num
mundo justo. Segundo o autor, as pesso- em outro país eram falsas (Secretaria Nacional de Justiça, 2005; Secretaria
as estão sempre procurando explicação e Nacional de Justiça & Organização Internacional do Trabalho, 2007; Secretaria
acreditam que os eventos são previsíveis e
Nacional de Justiça, Escritório das Nações Unidas de Drogas e Crime & Asso-
controláveis. Acreditam, portanto, que têm
o que merecem, o que significa dizer que ciação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude, 2009). Ain-
caso se comportem corretamente, terão re- da, pessoas traficadas não se reconhecem como vítimas (Tyldum, 2010). Elas
sultados positivos, e que caso se comporta- acreditam ter contribuído de alguma forma para a sua própria vitimização.9
rem negativamente, as consequências serão
negativas. Esta crença é um mecanismo psi-
Enquanto imigrantes ilegais, em alguns casos de tráfico internacional,
cológico que o ser humano desenvolve no elas acreditam que serão presas se denunciarem o crime para a polícia e, por-
intuito de se sentir seguro e no controle de tanto, se percebem mais enquanto violadoras da lei do que enquanto vítimas
suas vidas. No entanto, a vitimização abala
(Secretaria Nacional de Justiça, 2005; Secretaria Nacional de Justiça & Organi-
esta crença e demonstra a imprevisibilidade
e a aleatoriedade dos eventos. A reação psi- zação Internacional do Trabalho, 2007; Secretaria Nacional de Justiça, Escritó-
cológica do indivíduo é portanto a de acre- rio das Nações Unidas de Drogas e Crime & Associação Brasileira de Defesa da
ditar que fez por merecer, mantendo a sua
Mulher, da Infância e da Juventude, 2009). O comportamento discriminatório
crença, e por conseguinte, seu sentimento
de segurança, inabalável. É um mecanismo de autoridades policiais e da justiça, nesta seara, pode também contribuir para
psicológico de defesa que o ser humano este sentimento. (Anti-Slavery International, 2002).
desenvolve para restituir seu sentimento de Não ao menos, vítimas de tráfico de pessoas são mais vulneráveis e têm
segurança e controle sobre sua vida, que é
necessidades especiais. O crime do tráfico de pessoas gera impactos severos
importante para a sobrevivência.
na saúde física e mental das vítimas (Zimmerman et al., 2003). Pessoas trafi-
cadas relatam stress e ansiedade como consequência das violências e ofensas
que sofreram durante o transporte para o país de destinho e no momento da
exploração (Zimmerman et al., 2003).
A natureza continuada do crime, em que as vítimas de tráfico de pessoas
ficam “nas mãos” do agressor, geralmente por longos períodos, possibilitando in-
timidação, violência e tortura, provoca o medo de represálias e pela segurança de
suas famílias caso as vítimas denunciem (Secretaria Nacional de Justiça, 2005;
Secretaria Nacional de Justiça & Organização Internacional do Trabalho, 2007).
Finalmente, o medo de retornar para o mesmo lugar de onde decidi-
ram sair, normalmente sem dinheiro, reduz ainda mais a possibilidade das
vítimas de tráfico de pessoas denunciarem este tipo de crime para a polícia
(Pedra J.B., 2013).

142
5. Medindo o Tráfico de Pessoas: Tarefa Difícil 10. A exemplo: Escritório das Nações Uni-
das sobre Drogas e Crime (UNODC), Orga-
nização Internacional do Trabalho (OIT),
Ao tentar descrever e mensurar o fenômeno do tráfico de pessoas, não há como se Centro Internacional para o Desenvolvi-
ignorar as dificuldades e os desafios que existem para tanto, no Brasil e no mundo. mento de Políticas Migratórias (ICMPD), a
No início do século XXI, Salt (2000) já mencionava a carência de dados Organização Internacional para a Migra-
ção (OIM), Organização para a Segurança
oficiais sobre tráfico de pessoas. Na opinião do autor, em regra, os dados eram
e Cooperação na Europa (OSCE), e Comis-
coletados por instituições, metodologias e tecnologias diversas e em tempos são Européia (CE).
diferentes, impossibilitando sua sistematização e comparação dentro de um
mesmo país, que dirá entre diversos países. A exemplo, o Vienna Forum of 11. A exemplo: Anti-Slavery Internatio-
nal, La Strada International, e no Brasil
UN.GIFT (2008) relata ser, atualmente, impossível comparar estatísticas crimi- a ASBRAD.
nais de tráfico de pessoas, pois muitos dos países signatários do Protocolo de
Palermo estão ainda na fase de adaptação da sua legislação interna ao Proto-
colo, dentre estes o Brasil.
Ainda, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime
(UNODC, 2009), os sistemas das instituições de segurança pública e justiça cri-
minal são construídos no intuito de otimizar as suas necessidades operacionais.
O primeiro Diagnóstico brasileiro sobre Tráfico de Pessoas realizado pela
Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça em 2012 (Ministério da
Justiça, 2013), cuja fonte principal de informação foram dados oficiais, tam-
bém deixa clara a impropriedade dos sistemas de informação das instituições
da segurança pública e justiça criminal no Brasil. Há uma variedade muito
grande de categorias e de formas de registros, praticamente impossibilitando a
comparabilidade destes dados.
A confusão entre tráfico de pessoas, contrabando de migrantes, imigra-
ção irregular e, às vezes prostituição, bem como a ausência de legislação espe-
cífica, também dificultam a coleta de dados sobre o assunto.
Por outro lado, o número de pesquisas acadêmicas e relatórios de orga-
nismos internacionais e/ou intergovernamentais10 e de organizações não go-
vernamentais11 têm aumentado, mas recebido críticas sobre a confiabilidade e
a validade desses dados considerados extra-oficiais (van Dijck, 2005).
No Brasil, particularmente, a Secretaria Nacional de Justiça tem se de-
dicado ao estudo do tema, sendo esta inclusive uma das ações do II Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

143
Soma-se a isso o fato de que o tráfico de pessoas é uma das formas de
criminalidade subnotificada, por razões diversas como a desconfiança do
sistema de polícia e justiça, o receio da pessoa traficada de ser discrimina-
da ou incriminada, particularmente como imigrante irregular, nos casos de
tráfico internacional, o medo de ser deportado ou expulso, a vergonha e o
medo da humilhação (Aebi, Aubusson de Cavarlay, Barclay, Killias, et al.,
2010; Anti-Slavery International, 2002; Goodey, 2003; UNODC, 2008), o des-
conhecimento sobre a sua condição de vítima, a falta de informação sobre
os mecanismos de denúncia e até mesmo o medo de represálias (Pedra J. B.,
2008), como foi explorado no item anterior. Isto tudo intensifica a ausência
de dados sobre um fenômeno que além de ontologicamente subnotificado, é
registrado impropriamente, fazendo com que o crime permaneça oculto, ao
menos estatisticamente.
Nesse sentido, a contribuição tanto das organizações não governamen-
tais como dos organismos internacionais tem sido muito importante, pois na
ausência de dados quantitativos oficiais, são esses relatórios que contribuem
para o conhecimento e o reconhecimento do fenômeno.

6. Medindo o Tráfico de Pessoas: Descrevendo o Perfil da Vítima, as


Modalidades de Exploração, o Modus Operandi e o Número de Casos

Superada a discussão sobre as dificuldades nacionais e internacionais em se


descrever e medir o tráfico de pessoas de forma válida e real, não somente
a partir de revisão bibliográfica e estudo de casos isolados, mas por meio
de dados quantitativos, seguem alguns dados que vêm sendo coletados de
pesquisas quantitativas e qualitativas e que têm auxiliado na descrição e
mensuração do fenômeno.
Inicialmente, estimativas globais sobre o número de pessoas traficadas
no mundo e os recursos financeiros que este verdadeiro “business” movimenta
são feitas principalmente por organismos internacionais, mas recebem críticas
(Blanchette & Silva, 2012; Tyldum, 2010).
Segundo os autores, a invisibilidade do fenômeno, o registro precário
perante as diversas instituições que trabalham no seu enfrentamento, a inde-

144
finição ainda conceitual e legal do tema, em alguns países, inclusive o Brasil,
torna a tarefa de mensurá-lo e compará-lo quase impossível.
Desta forma, os dados apresentados a seguir têm o objetivo de informar
sobre o fenômeno, ainda que de forma relativa, não necessariamente de men-
surá-lo ou quantificá-lo.
Uma das primeiras inquietações no que diz respeito ao tráfico de pessoas
é o perfil da vítima, principalmente para a elaboração de políticas de preven-
ção. Em síntese, mulheres, adolescentes e crianças são registradas com mais
frequência como vítimas do tráfico de pessoas, somando 75% das vítimas,
entre os anos de 2007 e 2010. Este dado é revelado pelo Relatório Global do
UNODC (2012a), segundo o qual o tráfico de pessoas é um crime com uma
forte conotação de gênero, sendo a principal parcela de vítimas identificadas
constituída por mulheres adultas (UNODC, 2012a: 26).
Pesquisas realizadas no Brasil também confirmam que a maioria das ví-
timas registradas é do sexo feminino (Leal & Leal, 2002; Colares, 2004; Se-
cretaria Nacional de Justiça e Organização Internacional do Trabalho, 2007;
UNODC, 2009; Ministério da Justiça, 2013); oriundas de classes populares,
com baixa escolaridade, que habitam espaços urbanos periféricos com carên-
cia de saneamento, transporte, moram com algum familiar, têm filhos (Leal &
Leal, 2002; Hazeu, 2008) e exercem atividades laborais de baixa rentabilidade,
como cabelereira, esteticista, auxiliar de enfermagem, professora de ensino
fundamental, vendedora, secretária e doméstica (Leal & Leal, 2002; Colares,
2004; Secretaria Nacional de Justiça, 2005).
Dados do Ministério da Saúde, cuja fonte é o Sistema de Informação de
Agravos de Notificação (SINAN), por meio da notificação compulsória, in-
formam também que a maioria das vítimas de tráfico de pessoas registradas
é de mulheres e adolescentes do sexo feminino, com baixa escolaridade,
solteiras e residentes da zona urbana. Por exemplo, no ano de 2011 foram
identificadas um total de 65 vítimas do sexo feminino e 15 do sexo mascu-
lino (Ministério da Justiça, 2013). Demonstram ainda que a faixa etária de
maior incidência é entre os 10 e 29 anos, havendo todavia uma maior inci-
dência de vítimas, cerca de 25%, na faixa etária de 10 a 19 anos, reforçando
a informação do Relatório Global, segundo o qual as adolescentes somam
de 15% a 20% das vítimas mundialmente (UNODC, 2012a). Uma pequena

145
12. Texto original: “There is no specific and parcela das entrevistadas ou das vítimas identificadas em processos crimi-
exclusive demand for trafficked persons, nais citados nessas pesquisas afirmou já ter exercido a prostituição no Brasil
only demand for labour/services of vulne-
(Colares, 2004; Secretaria Nacional de Justiça, 2005; Hazeu, 2008).
rable and unprotected persons” (Davidson,
2013). Tradução das autoras. Pessoas traficadas do sexo masculino são mais comumente identificadas
na modalidade trabalho escravo/trabalho forçado, segundo o Relatório Global
do UNODC. Todavia, pesquisa na área de fronteira revelou que mulheres tam-
bém estão sendo traficadas para o Brasil para fins de trabalho escravo na in-
dústria textil e para servidão doméstica (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
Observa-se, desta forma, que o perfil pode variar de acordo com a mo-
dalidade de exploração e com as condições de vulnerabilidade de cada pessoa
traficada. Como afirma Davidson (2013) “não há demanda de pessoas trafica-
das, mas tão somente demanda de trabalho/serviços de pessoas vulneráveis e
desprotegidas”.12 Isto significa dizer que não há um público alvo ou perfil espe-
cífico. O crime de tráfico de pessoas mercantiliza e coisifica a vítima, fazendo
com que as características pessoais sejam irrelevantes; o que determina é a
utilidade para a qual aquela pessoa se presta. É definitivamente a situação de
vulnerabilidade que vai determinar se esta ou aquela pessoa é uma potencial
vítima de tráfico de pessoas ou não.
E quais são os grupos que podem estar em situação de vulnerabilidade?
Crianças e adolescentes, naturalmente, por uma questão de desenvolvimento
pessoal, são vulneráveis. Mulheres, em algumas sociedades, mais do que em ou-
tras. Isto depende do grau de empoderamento, acesso à educação e ao trabalho,
acesso aos direitos civis, políticos e sociais, que diferem em cada sociedade. Mi-
grantes em geral também são considerados como um público vulnerável, prin-
cipalmente aqueles que estão em situação irregular (UNODC, 2012b). Minorias
étnicas, indígenas, pessoas com deficiência e a população LGBT podem também
estar em situação de vulnerabilidade em alguns contextos (ICMPD, 2011).
Há ainda aqueles grupos que são mais vulneráveis a depender da mo-
dalidade de exploração. Por exemplo, adolescentes do sexo masculino (ho-
mosexuais e heterosexuais) são traficados para fins de exploração sexual em
determinados locais. Pessoas com deficiências podem estar mais vulneráveis
à modalidade do tráfico para fins de exploração na mendicância. Refugiados
políticos e ambientais, pelo fato de estarem na condição de refugiados, são
mais vulneráveis que outras pessoas (UNODC, 2012a).

146
Resumidamente, os relatórios internacionais, nacionais e outras pesqui- 13. Um deles e talvez o mais conhecido foi
sas realizadas informam que a forma de exploração mais vulgarmente iden- a Operação Bisturi da Polícia Federal que
desarticulou um grupo organizado que le-
tificada no contexto do tráfico de pessoas é a sexual, nas Américas, Europa
vava as vítimas de Recife/PE para a remo-
e Ásia Central, enquanto que na África, Meio Oriente, Sul e Leste da Ásia e ção de órgãos na África do Sul, mediante
Pacífico, mais casos de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo foram promessa de recompensa. A última inte-
grante do grupo foi presa em maio de 2013,
detectados (UNODC, 2012a).
mas o grupo foi desarticulado em 2003. Fo-
No Brasil, no que diz respeito ao tráfico internacional, a predominância ram 27 indiciados e condenados (Diário de
da modalidade de exploração sexual é confirmada por dados do Ministério Pernambuco, 04 de maio de 2013).
das Relações Exteriores/Divisão de Assistência Consular (MRE/DAC) reve-
14. Tais como casos de pacientes declara-
lados no Diagnóstico Nacional (Ministério da Justiça, 2013), no qual das dos com morte encefálica em Poços de Cal-
475 vítimas de tráfico internacional de pessoas, brasileiros identificados pela das e Taubaté, cujos órgãos foram retirados
rede consular no exterior, 337 foram vítimas da modalidade exploração se- e transplantados sem a observância das
formalidades necessárias e o caso da im-
xual e 135 da modalidade trabalho escravo, além de três pessoas cuja forma
portação das córneas, onde se identificou a
de exploração é ignorada. realização de depósitos em dinheiro para a
No Brasil, observa-se um crescente aumento do número de pessoas es- realização dos transplantes (Comissão Par-
lamentar de Inquérito, 2004).
trangeiras, de ambos os sexos, traficadas para fins de trabalho escravo. O
Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas na Área de Fronteira revelou a presença
de estrangeiros, por exemplo, de bolivianos que estão sendo traficados para
o Brasil para fins de trabalho escravo. (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
Ademais, o Relatório Global do UNODC também informa que o número
de casos de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo registrados tem
aumentado, assim como tem aumentado a capacidade das autoridades locais
de identificar esta forma de exploração (UNODC, 2012a).
Nas Américas, particularmente, 44% dos casos de tráfico de pessoas de-
tectados tinha como finalidade o trabalho escravo (UNODC, 2012a).
Outras modalidades, como o tráfico para fins de remoção de órgãos, ex-
ploração da mendicância, casamento servil, conflito armado e adoção ilegal,
foram raramente identificados. O tráfico para fins de remoção de órgãos con-
siste em 0.2% dos casos e foi detectado em 16 países participantes do Relatório
Global do UNODC, enquanto que as outras modalidades somam 6% dos casos,
sendo que em 1.5% dos casos as vítimas eram traficadas para fins de explora-
ção na mendicância (UNODC, 2012a).
O Diagnóstico Nacional de Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça,
que coletou dados de 2005 a 2011, identificou tráfico de pessoas para explo-

147
15. O modus operandi é uma expressão do
ração sexual e trabalho escravo (Ministério da Justiça, 2013). Não obstante, a
latim que siginifica o modo de operação
que no contexto do tráfico de pessoas é a fonte de informações do Diagnóstico Nacional foi oriunda dos dados oficiais
maneira como os autores da conduta do de enfrentamento ao tráfico de pessoas, fornecidos pelas instituições do sis-
tráfico de pessoas ou os grupos organizados tema de justiça criminal, que coletam os dados de acordo com a legislação
operam e executam suas atividades.
penal em vigor.
16. A criminalidade feminina é tema que A Polícia Federal, em 2003, identificou casos de tráfico de pessoas para
ainda envolve muitos tabus, dentre estes a fins de remoção de órgãos, segundo notícias midiáticas13, bem como a Co-
discussão sobre os papéis do homem e da
missão Parlamentar de Inquérito com a finalidade de investigar a atuação de
mulher na sociedade. Há teorias que afir-
mam que há mulheres que delinquem, mas organizações criminosas atuantes no tráfico de órgãos humanos.14
que tendo em vista seu papel pre-deter- E pesquisa realizada na área de fronteira identificou mais casos registra-
minado na sociedade, estas são com me- dos de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e trabalho escravo,
nos frequência alvo de desconfiança e de
mas também identificou situações de tráfico de pessoas para fins de servidão
investigações da polícia. Veja por exemplo
Steffensmeier e Allan (1996). doméstica, mendicância, prática de ilícitos e até casos de tráfico de jogadores
de futebol (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
No que diz respeito ao modus operandi15, a maioria dos recrutadores
identificados no Brasil, em 2002, era do sexo masculino (Leal & Leal, 2002),
enquanto que em 2005, pesquisa destaca as

teias femininas formadas por amigas, conhecidas, vizinhas e parentes,


tias, sobrinhas, irmãs, sogras, “convidando”, informando, estabelecendo
conexões (Secretaria Nacional de Justiça, 2005: 57).

Pesquisa publicada, em 2008 (Hazeu), especificamente sobre o tráfico de pes-


soas do Brasil para o Suriname, também revela uma maior incidência de mu-
lheres aliciadoras.
O Diagnóstico Nacional (Ministério da Justiça, 2013) também revelou que
dos dados registrados pela Polícia Federal, foi constatada maior incidência de
mulheres aliciadoras, embora os dados do Departamento Penitenciário reve-
larem que mais homens do que mulheres estão presos por tráfico de pessoas.
Estes dados podem nos revelar que os homens são, com mais frequência, alvo
de prisões preventivas e prisões condenatórias,16 ou que ocupam um lugar
mais alto na hierarquia dos grupos de traficantes, cometendo assim, crimes
mais graves com sentenças mais severas.

148
Importante destacar análise estatística do Relatório Global do UNODC 17. Vale notar, no entanto, que os países
(2012a), segundo o qual o envolvimento de mulheres no tráfico de pessoas, é mais desenvolvidos têm também uma maior ca-
pacidade de identificar e registrar casos de
frequente em casos de tráfico de crianças e adolescentes do sexo feminino, refor-
tráfico de pessoas
çando a idéia de relações afetivas ou de confiança entre traficados e traficantes.
O ICMPD destaca o caso das pessoas traficadas que se tornaram aliciadoras: 18. Fonte: UNODC, 2009. O Relatório Glo-
bal de 2012 também traz a mesma consta-
tação (UNODC, 2012a).
Redes que transformam pessoas antes exploradas em aliciadoras, em
uma estratégia que, além de facilitar o contato, não exporia os verda-
deiros financiadores do tráfico” (ICMPD, 2011: 56).

Hazeu já observava isto em 2008, quando dizia em sua pesquisa sobre tráfico
de pessoas do Brasil para o Suriname que

em geral são outras mulheres, que já viveram situação de tráfico e que


“ascenderam” na hierarquia da organização criminosa. Essa ascensão se
dá comumente por um namoro, casamento ou envolvimento afetivo com
o dono do clube ou algum funcionário (Hazeu, 2008: 85).

E pesquisa na área de fronteira destaca, principalmente, a identificação


da própria vítima com o agressor, numa espécie de Síndrome de Estocolmo,
que é um estado psicológico desenvolvido em vítimas de sequestro e segundo
o qual a vítima se identifica e se simpatiza com o seu agressor. É fenômeno
comum nos casos das vítimas transsexuais de exploração sexual, que acredi-
tam estar pagando um “preço justo” pelos prováveis benefícios que terão no
local da exploração, tais como a prometida cirurgia de redesignação de sexo.
E até mesmo no caso dos trabalhadores vítimas de trabalho escravo, que vêem
no seu explorador uma saída para a sua condição de desemprego ou extrema
pobreza (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
No que diz respeito às rotas, tem-se discutido a relação entre as rotas do
tráfico, os fluxos migratórios, os modos de exploração econômica e os níveis
de desenvolvimento. A Figura 2 demonstra que os maiores fluxos de pessoas
traficadas identificados têm origem nos países em desenvolvimento ou pós
conflito, com destino para os países desenvolvidos.17

149
19. Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Figura 2: Países de Origem e de Destino de Pessoas Traficadas18
Roraima,Tocantins, Rio de Janeiro, São Paulo,
in North America, Central
Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia, Pernambu- in Western and Central Europe America and the Caribbean in the Middle East

co, Ceará, Maranhão, Rio Grande do Norte, Sub-Saharan Africans 15% 0% 20%
East Asians 7% 27% 35%
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. South Americans 6% 3% 1%
Eastern Europeans and Central Asians 5% 1% 10%
South Asians 1% 1% 23%

Western Eastern Europeans


and Central and Central Asians
Europe
North America,
Central America East
and the Caribbean The Middle Asians

Atelier de cartographie de Sciences Po, 2012


East
South
Asians

Sub-Saharan
Africans
South
Americans

Flows of 1% or less of
detected victims at destination

Fonte: UNODC, 2009. O Relatório Global de 2012 também traz a mesma constatação
(UNODC, 2012a).

A maioria das rotas identificadas está dentro de uma mesma região, ou


seja, países de um mesmo continente, seguida de um quarto dos casos de tráfi-
co de pessoas que são entre diferentes regiões (por exemplo, da América do Sul
para a Europa) e 27% dos casos de tráfico que são de tráfico interno (UNODC,
2012a). Isto se explica pelo fato de distâncias menores serem mais fáceis para
se operacionalizar e controlar do ponto de vista dos modus operandi.
No Brasil particularmente, em pesquisa publicada em 2002, foram iden-
tificadas 240 rotas em 19 estados e Distrito Federal19 (Leal & Leal, 2002). Se-
gundo Leal & Leal (2002, 71), basta identificar

as cidades próximas às rodovias, portos e aeroportos, oficiais ou clan-


destinos, ou seja, “os pontos de fácil mobilidade”, que casos de tráfico de
pessoas podem ser identificados. As vias utilizadas são as mais diversas,
ou quase todas as vias disponíveis: terrestres, aéreas, hidroviárias e
marítimas (Leal & Leal, 2002,71).

150
Excepcionam-se as vias ferroviárias que no Brasil raramente transportam pessoas.
Pesquisas de 2002 e 2004 demonstraram que, aparentemente, a rota de-
terminava os perfis das pessoas traficadas. Por exemplo, crianças e adolescentes
traficadas eram observadas com mais frequência nas rotas intermunicipais e
interestaduais (Leal & Leal, 2002; Colares, 2004). Já na área de fronteira, crian-
ças e adolescentes são traficados para o exterior para fins de exploração sexual.
Isto por causa da proximidade geográfica com os países fronteiriços da América
do Sul, sendo a linha divisória entre um país e outro, às vezes, tão somente uma
rua. Ademais, “cruzar fronteiras” é um ato tão ordinário nessas regiões e tão
pouco vigiado, que inclusive crianças e adolescentes transitam de um país para
outro aleatoriamente, sem que a documentação necessária esteja disponível
(Secretaria Nacional de Justiça, 2013). A mesma pesquisa identificou, principal-
mente, que as rotas seguem o fluxo da mobilidade, das formas de exploração
econômica e são impulsionadas pelas situações de vulnerabilidade das pessoas.
Desta forma, pode-se concluir que as rotas são transitórias (ICMPD, 2011)
e que acompanham as formas de exploração econômica, não havendo mais
um padrão a partir do século XXI, em virtude da globalização e da dimensão
atual da mobilidade humana.
Mas, o Brasil tem uma característica interessante e que dificulta ainda mais
o enfrentamento ao tráfico de pessoas, ou seja, é um país de origem, trânsito
e destino de vítimas de tráfico de pessoas. As estatísticas revelam que vítimas
brasileiras são encontradas no exterior e que vítimas estrangeiras são encontra-
das no Brasil (UNODC; 2012a). Enquanto que brasileiros são identificados como
vítimas de tráfico para fins de exploração sexual na Europa Ocidental (Ministé-
rio da Justiça, 2013), paraguaias foram identificadas no Brasil como vítimas da
mesma modalidade exploratória (Secretaria Nacional de Justiça, 2013). No que
diz respeito à exploração laboral, bolivianos, paraguaios, peruanos, chineses e
bengalis foram identificados no Brasil, (Secretaria Nacional de Justiça, 2013)
assim como brasileiros foram identificados na Europa Ocidental como vítimas
de tráfico para fins de trabalho escravo (Ministério da Justiça, 2013).
Finalmente, o número de casos de tráfico de pessoas identificados ao
longo da última década nos mais diversos países do mundo tem sido motivo
de polêmica. Cifras como milhares de vítimas e milhões de dólares têm sido
levantadas a partir de estimativas feitas por organismos internacionais como a

151
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crime (UNODC) na tentativa de se mensurar o fenômeno.
No entanto, ponto pacífico entre os pesquisadores e gestores públicos é
que os casos que chegam ao sistema de segurança pública e justiça criminal
são somente a ponta do iceberg, sendo a subnotificação, dentre outras ques-
tões apontadas, fator que dificulta a identificação do fenômeno do tráfico de
pessoas no Brasil. Além do que, o sistema de justiça criminal funciona como
um funil, onde o número de casos identificados pela polícia é muito inferior ao
número de casos reais, o número de processos distribuídos no poder judiciário
é também inferior ao número de inquéritos policiais instaurados e o número de
condenações chega a ser dez vezes menor que o número de casos.
Para se exemplificar, o Diagnóstico Nacional de Tráfico de Pessoas revela que
o número de inquéritos policiais instaurados por tráfico internacional de pessoas
é duas vezes superior ao número de processos judiciais distribuídos. No caso do
tráfico interno, a diferença é de cerca de oito vezes (Ministério da Justiça, 2013).
O Diagnóstico referido revela também que o número de processos judiciais
distribuídos pelo crime de redução análoga à condição de escravo é cerca de
cinco vezes superior ao crime de tráfico de pessoas (Ministério da Justiça, 2013).
Enquanto 200 processos de tráfico de pessoas (internacional e interno) foram
distribuídos no período de 2005 a 2011, 940 foram distribuídos por trabalho
escravo, possivelmente demonstrando que o fenômeno do trabalho escravo tem
sido mais reconhecido no território nacional, talvez por causa da política de
erradicação do Ministério de Trabalho e Emprego (MTE), que data de 1995.

7. A Guisa de Conclusão

Este artigo demonstra que apesar do Brasil ter ratificado o Protocolo de Pa-
lermo, com exceção do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, as
outras formas de exploração não foram ainda observadas pela legislação penal
vigente. Felizmente, a ausência dessa legislação penal não tem impedido a
atuação do poder público que, seguindo os parâmetros internacionais previs-
tos no Protocolo de Palermo, vem empreendendo ações balizadas pelo texto da

152
Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, lançada por meio do
Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006.
Mais recentemente, em fevereiro de 2013, foi lançado o II Plano Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas que alinhado às perspectivas dos três
eixos norteadores da política, ou seja, prevenção, repressão e responsabiliza-
ção dos autores do crime, bem como a assistência e proteção às vítimas, possui
115 metas que serão executadas pelos órgãos envolvidos até o ano de 2016.
De qualquer sorte, apesar de muitas ações que vêm sendo empreendidas
pelo Governo Federal, inclusive, com o apoio de organismos internacionais e
da sociedade civil organizada, ainda há muito que se fazer para o enfrenta-
mento do fenômeno do tráfico de pessoas no Brasil.
Em síntese, a revisão da literatura apresentada neste artigo revela que a
ausência de legislação adequada e que abranja o tráfico de pessoas para outros
fins que não a exploração sexual, a subnotificação devido ao medo das vítimas
de denunciar, a falta de conhecimento dos profissionais que atendem as víti-
mas de tráfico de pessoas e que, inclusive, os impede de reconhecê-las como
tal, contribuem para o desconhecimento desse fenômeno no Brasil.
Desta feita, necessária a mudança na legislação penal brasileira, no que
diz respeito à previsão das outras modalidades de exploração, no caso do trá-
fico de pessoas, que não somente a exploração sexual prevista nos artigos 231
e 231-A do Código Penal Brasileiro. Neste aspecto, aguarda-se aprovação do
Projeto de Lei (PLS 479) que tramita no Senado Federal com esse propósito.
Ademais, é imperioso que os operadores da justiça criminal, dentre estes
os que compõem o sistema de segurança pública, sejam continuamente capa-
citados e treinados, particularmente aqueles que atuam nas áreas de fronteira,
nos aeroportos internacionais e nas estradas federais ou estaduais que ligam
os estados da federação.
Assim, será possível propiciar dedicação especial às vítimas de tráfico
de pessoas no sentido de encorajá-las a denunciar e a participar da instrução
probatória, aumentando as chances de se perseguir e punir os traficantes.
Será, portanto, com a disponibilização ou facilitação às vítimas dos
meios para se recuperarem dos traumas, se sentirem protegidas e empoderadas
a tomar decisões, estando bem informadas, que passarão, então, a colaborar

153
com a justiça criminal e a denunciar essa forma tão cruel de violação dos
direitos humanos.
Nesse sentido, o ciclo do tráfico de pessoas somente poderá ser descon-
tinuado com o apoio, a disponibilização e facilitação de acesso aos meios de
proteção e atendimento às vítimas.
Como se pode depreender, este estudo não tem a pretensão de esgotar o de-
bate sobre o tráfico de pessoas, mas contribuir para a reflexão do tema que repre-
senta uma das mais graves formas de violação dos direitos humanos no mundo.

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158
159
Humberto Ribeiro Junior
Doutor em Sociologia e Direito pela UFF. Mestre em Filosofia e Teoria do Di-
reito pela UFSC. Professor e pesquisador nas áreas de criminalidade, violência
e segurança pública.

10
AS VIOLAÇÕES SISTEMÁTICAS AOS DIREITOS 1. Sistema de informações Penitenciárias
HUMANOS POR MEIO DOS PROCESSOS DE do Ministério da Justiça. Dados de dezem-
bro de 2012. Disponível em <http://goo.gl/
CRIMINALIZAÇÃO SELETIVA: O CASO DAS mOawdu>. Acesso em: outubro de 2013.
POLÍTICAS PENITENCIÁRIAS CAPIXABAS
2. Cf. RIBEIRO JÚNIOR, Humberto. Encar-
ceramento em massa e criminalização
Humberto Ribeiro Júnior
da pobreza no Espírito Santo: as políticas
penitenciárias e de segurança pública do
governo de Paulo Hartung (2003-2010).
1. Introdução Vitória: Editora Cousa, 2012

3. Por exemplo, demonstramos como no


De acordo com os últimos dados consolidados pelo InfoPen,1 o Espírito Santo Espírito Santo os índices elevados de ho-
conta hoje com uma população carcerária de aproximadamente 14.800 pes- micídio remontavam ao final da década
de 1990 e não se correlacionavam com o
soas. Isso representa uma taxa de 421,05 presos por cem mil habitantes, cerca
aumento da chamada “sensação de insegu-
de 1,5 vezes o índice nacional de 287,31. São números alarmantes, mas que rança”. RIBEIRO JÚNIOR, Humberto. op. cit.
não dizem respeito a uma longa série histórica, eles são resultado de políticas p. 49-54
que nos remetem a um passado recente. Em dezembro de 2002, por exemplo,
apenas dez anos antes, o número de encarcerados era de 2.920.
Como demonstramos em outro trabalho,2 a grande virada rumo a uma
política de encarceramento em massa no Espírito Santo se deu ao longo do
governo de Paulo Hartung, entre 2003 e 2010. Naquele momento afirmamos
que as reformas econômicas implementadas por este governador contribuíram
para a ascensão de uma política penitenciária e de segurança pública orientada
pela criminalização da miséria e pelo encarceramento massivo da população
– que teve pouca ou nenhuma contribuição para a redução dos índices de cri-
minalidade, notadamente a violenta.
Procurávamos demonstrar como estas políticas não nasceram como res-
posta ao suposto aumento da violência,3 mas como uma resposta à desregula-
mentação econômica e à ausência de garantia dos direitos sociais inspirados
no modelo do Welfare State e previstos na Constituição Brasileira de 1988.
Deste modo, tratava-se de um controle penal das massas que se tornaram ví-
timas dos efeitos colaterais da modernização neoliberal, como o desemprego,
instabilidade, acirramento das desigualdades sociais, enxugamento dos bene-
fícios sociais, redução das garantias trabalhistas, etc.

161
4. BARATTA, Alessandro. Criminologia crí- Portanto, uma das conclusões a que chegamos, por meio dos dados esta-
tica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de tísticos coletados em confronto com a base teórica utilizada, foi a de que esta
Janeiro: Revan, 2002. p. 41-42.
política de encarceramento não atingiu igualmente os indivíduos pertencentes
a todos os estratos sociais, ela teve um direcionamento claro para determina-
dos grupos divididos por cor e por classe.
No entanto, tendo em vista os objetivos daquela pesquisa, não foi pos-
sível desenvolver mais adequadamente o debate em torno das razões que de-
terminam esta criminalização seletiva de parcela da população. Desta forma, a
proposta deste artigo é a de recuperar e atualizar os dados sobre o encarcera-
mento no Espírito Santo para procurar compreender como se dão os processos
de criminalização e se realmente eles se orientam por uma seleção desigual dos
indivíduos de acordo com seu status social.
Para tanto, utilizaremos neste artigo o arcabouço teórico da criminologia
crítica a fim de tentar ultrapassar a barreira construída, em grande medida, pela
ideologia da defesa social que ainda vigora nos meios jurídicos como modelo
teórico explicativo do fenômeno da criminalidade e das formas de combatê-la.
Diante disso, se comprovada a hipótese de que o sistema de justiça crimi-
nal vigente se direciona seletivamente para os grupos que compõem as classes
sociais mais baixas, teremos elementos suficientes para demonstrar como ele
se constitui em um instrumento de violação sistemática dos Direitos Humanos.

2. A seletividade penal e os processos de criminalização:


as contribuições da criminologia crítica

Ainda hoje o sistema penal é construído e legitimado, em grande medida,


tendo como base os argumentos da teoria da defesa social. Esta ainda é a
ideologia dominante não apenas da ciência jurídica contemporânea como das
opiniões comuns, seja dos representantes do aparato penal penitenciário, seja,
no dizer de Baratta, do “homem de rua”.4
Este modelo de análise parte da compreensão de que a criminologia é
uma ciência causal-explicativa da criminalidade, assumindo como tarefas,
portanto, a explicação das causas da criminalidade – concebida como um
fenômeno natural – e a necessidade de prever os remédios para combatê-la,

162
sempre segundo um método científico ou experimental e com o auxílio das 5. ANDRADE, Vera Regina. Sistema penal
estatísticas criminais oficiais.
5 máximo x cidadania mínima: códigos da
violência na era da globalização. Porto
Deste modo, na busca das “causas da criminalidade”, uma série de res-
Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 35
postas podem ser construídas a partir de um método estritamente científico,
como é o caso da afamada teoria desenvolvida por Cesare Lombroso, que afir- 6. Este cientista, partindo de métodos es-
tritamente científicos (observação e exper-
mava a hipótese do criminoso nato, ou seja, de que as causas da criminalidade
imentação) chegou ao resultado de que as
estariam no próprio homem.6 causas da criminalidade estão na própria di-
Portanto, a ideologia da defesa social compreende a criminalidade como mensão anátomo-fisiológica do indivíduo.
uma realidade ontológica anterior ao Direito Penal, cabendo a este apenas Deste modo, a partir da comparação entre
grupos de criminosos e não criminosos ele
identificá-la e positivá-la. Assim, seria possível descobrir as causas do crime e conseguiu construir uma espécie de “man-
colocar a ciência a serviço do seu combate, em defesa da sociedade.7 ual” capaz de identificar criminosos, por
Tendo este raciocínio como premissa básica desta ideologia, é possível exemplo, pelo formato e tamanho de olhos,
nariz, orelhas, membros, etc. Apesar deste
estruturar seu conteúdo a partir de uma série de princípios: 1) princípio da
teoria sofrer inúmeras críticas atualmente,
legitimidade, segundo o qual o Estado, como expressão da sociedade, é o ente é comum a sua reprodução por mecanismos
legitimado para reprimir a criminalidade (defender a sociedade); 2) princípio mais sofisticados como têm feito grupos de
pesquisadores da área de neurociências ao
do bem e do mal, que toma o desvio criminal (crime e criminoso) como o mal,
buscar determinadas disfunções biológicas
enquanto a sociedade constituída é o bem (cidadão de bem); 3) princípio da naturais no cérebro de indivíduos que com-
culpabilidade, para o qual o delito é expressão de uma atitude interior repro- eteram crimes. Ademais, insta ressaltar que
vável contrária a valores sociais mesmo que ainda não transformadas em lei; outras teorias, tidas como mais progressis-
tas, que trabalham a criminalidade a partir
4) princípio da finalidade ou prevenção, que trata a pena como tendo não
de causas sociais (pobreza, por exemplo),
apenas uma função retributiva, mas também uma função de prevenção de ou- partem dos mesmos pressupostos que as
tros crimes, seja pela contramotivação da norma penal em abstrato, seja pelo teses lombrosianas.
processo de ressocialização; 5) princípio do interesse social, segundo o qual
7. ANDRADE, Vera Regina. op. cit. p. 35.
os interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os
cidadãos, condições essenciais à existência da sociedade.8 8. BARATTA, Alessandro. Criminologia
Um último princípio que deve ser destacado é o (mito) da igualdade. A crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio
de Janeiro: Revan, 2002. p. 42.
ideologia da defesa social propugna que o direito penal protege igualmente
todos os cidadãos contra as ofensas aos interesses sociais e que a aplicação 9. Ibid. p. 162.
do direito penal é igual para todos, na medida em que quaisquer violadores
das normas jurídicas têm igual chance de se tornarem sujeitos dos processos
de criminalização.9 Ou seja, isso significaria dizer, por exemplo, que ricos e
pobres são igualmente protegidos pelo direito penal e que criminosos de cola-
rinho branco e assaltantes de rua têm as mesmas chances de serem submetidos
aos rigores da lei penal, processual penal e de execução penal.

163
10. Noção da qual deriva a ideia de que a Há alguns anos, no entanto, surgiu no âmbito da sociologia jurídica um
prisão serviria como forma de ressocializar novo paradigma criminológico, orientado pelo método materialista histórico-
o indivíduo com defeitos de socialização.
-dialético, que procurava uma resposta diferenciada aos modelos liberais, tais
como o da defesa social. Neste sentido, construíram-se as teses da chama-
da criminologia crítica, capitaneada, em grande parte, pelo sociólogo italiano
Alessandro Baratta.
A criminologia crítica constrói seu raciocínio não buscando as causas da
criminalidade e suas respostas, mas sim buscando compreender os chamados
processos de criminalização, ou seja, os processos a partir dos quais determi-
nados sujeitos são criminalizados enquanto outros não o são.
Para tanto, deve-se estabelecer a crítica a todos os princípios basilares
à ideologia da defesa social, em especial os da igualdade, do interesse social,
e da culpabilidade. A criminologia crítica tenta, em primeiro lugar, desnatu-
ralizar a noção de crime demonstrando que o modo pelo qual determinadas
condutas são definidas como crime dependem de interesses concretos de classe
e não são simplesmente afrontas aos valores sociais. Ademais, a definição dos
crimes, a aplicação e a execução do direito penal são orientadas por um crité-
rio de seleção desigual dos sujeitos de acordo com seu status social e não por
um princípio de igualdade.
Esta abordagem da criminologia crítica deve-se, em grande parte, à te-
ses construídas pela doutrina do labeling approach, ou etiquetamento. Esta
teoria busca ultrapassar as noções de crime e criminalidade construídas, por
exemplo, a partir da lógica dos “defeitos de socialização”, segundo a qual o
indivíduo infringe uma norma social (natural) por não ter sido suficientemente
ou corretamente socializado.10
A doutrina do labeling approach, por outro lado, não centra suas análises
no comportamento desviante, mas sim no comportamento rotulado como des-
viante. Deste modo, tenta-se perceber que não há nada natural ou intrínseco
a um comportamento que o classifique como antissocial. Nem mesmo o fato
de um comportamento ser considerado um delito pela legislação penal torna
possível a sua classificação como criminoso.
O labeling approach demonstra que importa menos a ação que o status
atribuído à ação ou àquele que age. Assim, por exemplo, ao considerarmos,
lado a lado, uma pessoa que praticou um furto e uma que praticou um crime

164
contra a ordem financeira, o primeiro é rotulado como criminoso ao passo 11. FRADE, Laura. O que o congresso
que o segundo não. Os tratamentos dados pela legislação penal, pelo siste- brasileiro pensa sobre a criminalidade.
2007. Tese (Doutorado em Sociologia).
ma de justiça criminal e pelo cidadão comum são completamente distintos
Departamento de Sociologia, Universida-
nos dois casos. de de Brasília, 2007.
Como exemplo, vale citar a pesquisa realizada por Laura Frade sobre as
12. Ibid. p. 101-102.
representações do legislativo federal brasileiro sobre crime e criminalidade.11
Segundo os dados analisados, a visão dos congressistas é a de que crime está
relacionado com baixa escolaridade, sujeira, inferioridade, indisciplina, deso-
cupação, doença, desordem, etc.
Deste modo, verifica-se que quando pensam em crime, eles não pensam
em crimes de colarinho branco, corrupção, enfim, crimes praticados pela
elite, isso não é rotulado como crime, ainda que esteja previsto em lei. Nas
palavras da pesquisadora:

A baixa instrução figurou como o principal atributo dos criminosos.


Considerando-se que […]: 1) os elaboradores da lei, objeto da amostra,
possuem em sua maioria uma alta instrução; 2) que apenas dois projetos
de lei sobre os “crimes do colarinho branco” foram apresentados duran-
te a legislatura sob exame e que nesses crimes prevalece a atuação de
profissionais graduados e que 3) praticamente nenhuma referência foi
feita nas entrevistas sobre os crimes praticados dentro do próprio Con-
gresso Nacional, é razoável supor que os parlamentares não vinculem
a eles próprios a ideia de criminalidade. Parece haver uma correlação
indireta do crime com as camadas menos favorecidas, não com a elite
– com a qual os parlamentares parecem se identificar. Ou seja, crime é
coisa “de pobre”.12 (grifos nossos)

Fica evidente, portanto, que a caracterização do que seja considerado


crime ou criminalidade depende de uma rotulação, um etiquetamento, daquele
que passa a ser um cliente constante do sistema penal. Por isso, a teoria do
labeling approach é classificada como uma teoria da reação social por buscar
compreender as razões pelas quais a sociedade reage negativamente diante de
determinadas condutas e, especialmente, pessoas.

165
13. BARATTA, Alessandro. Criminologia crí- Neste sentido, Baratta afirma que
tica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2002. p. 86.
esta direção de pesquisa [labeling approach] parte da consideração de
14. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao di- que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do
reito penal brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas
Revan, 2002, p. 116.
abstratas até a noção de instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições
penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delin-
quente pressupõe, necessariamente o efeito da atividade das instâncias
oficiais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse
status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento
punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas mesmas ins-
tâncias.13 (grifo nosso)

Desta maneira, o labeling approach ultrapassa os questionamentos acerca


das causas do crime e dos mecanismos para seu controle e prevenção (defesa
social), para chegar a um debate acerca do modo pelo qual o sistema penal re-
age de maneira diferente conforme o status daquele rotulado como criminoso
(reação social). Como sintetiza Baratta,

Os criminólogos tradicionais examinam o problemas do tipo “quem é


o criminoso?”, “como se torna desviante?”, “em quais condições um
condenado se torna reincidente?”, “com que meios se pode exercer o
controle sobre o criminoso?”. Ao contrário, os interacionistas, como em
geral os autores que se inspiram no labeling approach, se perguntam:
“quem é definido como desviante?”, “que efeito decorre desta definição
sobre o indivíduo?”, “em que condições este indivíduo pode se tornar
objeto de uma definição?” e, enfim, “quem define quem?”.

A partir destas noções, a criminologia crítica percebe que o sistema penal


criminaliza seletivamente determinados grupos sociais. Assim, não é possível
considerá-lo como um sistema que atua de maneira isonômica sobre todas as
pessoas e delitos, ao contrário, ele protege os interesses sociais das classes do-
minantes e também contribui para a reprodução dessa relação – constituindo-
se esta sua verdadeira finalidade, ainda que não declarada14. Neste sentido,

166
Baratta afirma que “o status de criminoso é distribuído de modo desigual en- 15. BARATTA, Alessandro. op. cit. p.162.
tre os indivíduos” e conclui que, contrariamente a toda aparência, “é o direito
16. SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra N.
desigual por excelência”.15 Os direitos humanos como fundamento do
Para a manutenção desta desigualdade, importante esclarecer que o pro- minimalismo penal de Alessandro Baratta.
cesso de criminalização manifesta-se em três momentos: primeiramente cabe in: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (Org.)
Verso e Reverso do Controle Penal: (Des)
ao legislador definir quais os bens que serão tutelados pelo direito penal (cri-
Aprisionando a Sociedade da Cultura Pu-
minalização primária); depois, cabe à polícia selecionar os indivíduos que serão nitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux,
submetidos a um inquérito policial e, posteriormente, a um processo penal, ca- 2002. p.16.
bendo ao juiz exercer a mesma seletividade (criminalização secundária); e, por
17. BISSOLI FILHO, Francisco. Punição e di-
fim, operam os mecanismos de execução penal ou das medidas de segurança.16 visão social: do mito da igualdade à reali-
Este processo atua nos campos da quantidade e da qualidade. A seletivi- dade do apartheid social. in: ANDRADE,Vera
dade quantitativa diz respeito ao número de condutas rotuladas como crimino- Regina Pereira de. (Org.). Verso e Reverso
do Controle Penal: (Des)Aprisionando a
sas e ao de autores em relação aos quais é atribuída a condição de criminoso. Já
Sociedade da Cultura Punitiva. Florianó-
a seletividade qualitativa relaciona-se com a não inclusão de todas as condutas polis: Fundação Boiteux, 2002. p.78-79.
socialmente nocivas como criminosas, e com a não classificação de todos os
18. Cf. ANDRADE, Vera Regina. Sistema pe-
sujeitos que praticam atos delituosos como pessoas criminosas (rotulamento).17
nal máximo x cidadania mínima: códigos
Importante ressaltar que, com relação à aplicação e execução da lei pe- da violência na era da globalização. Porto
nal, esta crítica é construída a partir de duas variáveis: 1) a da impossibilidade Alegre: Livraria do Advogado, 2003. e BA-
estrutural de o sistema penal operacionalizar toda programação da lei penal RATTA, Alessandro. Criminologia crítica e
crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janei-
a partir das agências responsáveis por executá-lo (polícia, judiciário, poder
ro: Revan, 2002.
executivo); e 2) diante desta incapacidade os processos de criminalização são
orientados por uma seleção desigual de pessoas segundo seu status social.18
Isso significa dizer que não é possível investigar todos os crimes que
acontecem a todo o momento, e, mesmo se isso fosse possível não seria pos-
sível processar e julgar todos estes casos e, por fim, não seria possível execu-
tar todas estas penas. Diante disso, selecionam-se aqueles que serão clientes
habituais do sistema penal – no caso, a esfera da população das classes mais
baixas, pertencentes à minorias, etc.
Desta forma, o método utilizado pela criminologia crítica permite anali-
sar os mesmos dados cotidianamente divulgados a partir de olhares distintos
daqueles construídos pela ideologia da defesa social. Por exemplo, ao perceber
que a maior parte da população carcerária é composta por negros e pobres ela
não chega à conclusão de que a pobreza ou a cor são “causas do crime” e que,
por isso, as agências penais devem atuar preventivamente sobre estes grupos.

167
19. As reflexões deste tópico foram par- Com este mesmo dado, a sua conclusão é a de que este é o grupo selecionado
cialmente inspiradas no segundo capítulo para ser objeto dos controles penais.
do livro Encarceramento em massa e cri-
Assim, a partir do método da criminologia crítica, buscar-se-á analisar os
minalização da pobreza no Espírito San-
to. Cf. RIBEIRO JUNIOR, Humberto. op. cit. dados sobre o encarceramento no Espírito Santo, notadamente os relativos ao
p. 47 e segs. período do governo de Paulo Hartung (2003-2010), a fim de identificar em que
medida sistema de justiça criminal capixaba atua de maneira desigual sobre os
20. Conforme o Instituto Jones dos Santos
Neves (ISJN), neste ano o índice teria chega- crimes praticados por indivíduos pertencentes às classes vulneráveis.
do a 43,2 homicídios por 100 mil habitantes.

21. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da


violência 2013: homicídios e juventude
3. O encarceramento em massa no espírito santo:
no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA e FLAC- uma política de aprisionamento diferenciada por cor e classe19
SO, 2013. p. 25. Disponível em: <http://
www.mapadaviolencia.org.br/pdf2013/
[…] mas presos são quase todos pretos
mapa2013_homicidios_juventude.pdf>.
Acesso em: novembro de 2013. Destaca-se Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
que mesmo nestes momentos de “relativa E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
queda”, estamos falando de um número
Caetano Veloso e Gilberto Gil
pelo menos 4,6 vezes maior que o reco-
mendado pela OMS, que seriam 10 homi-
cídios por 100 mil habitantes. Ao menos desde o início da década de 1990, o Estado do Espírito Santo pos-
suía um dos maiores índices de homicídio do Brasil, chegando a seu ápice em
22. Dados produzidos pelo Instituto Jo-
1998 com 58,4 homicídios por 100 mil habitantes. Desde então, poucos foram
nes dos Santos Neves chegaram a apontar
60,11 homicídios por 100 mil habitantes os momentos de “relativa queda”: 1) o primeiro durante o governo de José Ig-
neste mesmo ano. nácio, quando ele foi reduzido a 46,7 20 homicídios por 100 mil habitantes em
2001, mas logo retornando a 51,2 em 2002; 2) o segundo durante o primeiro
mandato do governo de Paulo Hartung, em 2005, chegando a 46,9 por 100
mil; 3) o terceiro no primeiro ano do governo de Renato Casagrande, em 2011,
quando a taxa foi de 47,4.21
Por outro lado, após 2005 a taxa de homicídios chegou a 57,2 por 100
mil em 2009.22 Contudo, se houve certa estabilidade entre 50 e 60 homicídios
por 100 mil habitantes, isso se deu apenas entre a população adulta, pois entre
a população jovem esse índice chegou a absurdos 129,2 em 2009.
No entanto, mesmo que os índices de homicídio tenham quase retornado
aos piores níveis que o Estado já teve nos últimos quinze anos – ou, em outras
palavras, ainda que o problema da criminalidade violenta não tenha sido, ao
menos, amenizado –, a política de segurança pública implantada ao longo do

168
governo de Paulo Hartung e mantida pelo de Renato Casagrande foi respon- 23. A fim de manter a integridade da com-
sável por um aumento exponencial do número de encarcerados no Espírito paração, nesta soma foram excluídos os
presos provisórios sob custódia da Polícia
Santo. Eram 2.920 presos em dezembro de 2002 contra 10.191 em junho de Judiciária, uma vez que esses dados não
2010 23 e 14.733 em dezembro de 2012. eram disponíveis em 2002. O total de en-
Deve-se ressaltar, entretanto que essa expansão do encarceramento teve carcerados em junho de 2010 era de 10.803.

uma clara orientação de classe e de cor. O número absoluto dos encarcerados é


24. WACQUANT, Loïc. Prisões da Miséria.
pobre e cometeram delitos patrimoniais, porém, o mais espantoso foi o aumen- Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 93. ju-
to da população negra e parda nas prisões em uma proporção cada vez maior nho de 2010 era de 10.803.
frente à população branca. Seria possível dizer que houve no Espírito Santo o
25. Ibid. p. 94-95.
que Wacquant chamou de “política de ação afirmativa carcerária”.24
Esta política de encarceramento em massa, gerou, em dez anos, um au-
mento de 5,04 vezes na população carcerária. Contudo, por outro lado, quando
isolamos os presos por cor, verificamos que em dezembro de 2005, no Espírito
Santo havia 2.655 presos de cor negra ou parda, frente a 930 presos de cor
branca, uma proporção de 2,85. Em apenas cinco anos, em dezembro de 2010,
estes números saltaram para 7.596 negros e pardos contra 2.042 brancos, uma
proporção de 3,72. Ou seja, no final do governo Hartung 77,87% da população
carcerária era composta de negros ou pardos, enquanto os brancos represen-
tavam 20,49%. Segundo os últimos dados disponibilizados pelo InfoPen, em
dezembro de 2012 já eram 11.521 presos de cor negra ou parda contra 3.008
de cor branca: uma proporção de 3,83.
Diante disso, vale a pena rememorar Wacquant quando ele diz, a partir
da realidade norte-americana, ser possível afirmar que há uma política de cri-
minalização orientada por padrões de cor/etnia.

Com efeito, o aumento rápido e contínuo da distância entre brancos e


negros não resulta de uma súbita divergência em sua propensão a co-
meter crimes e delitos. Ele mostra acima de tudo o caráter fundamental-
mente discriminatório das práticas policiais e judiciais implementadas
no âmbito da política “lei e ordem” das duas últimas décadas.25

Ademais, nota-se que entre dezembro de 2005 e junho de 2009 o au-


mento da população negra e parda encarcerada dava-se a uma média de 410
presos por semestre (820 por ano). No entanto, apenas entre dezembro de 2009

169
26. Dados do InfoPen. e junho de 2010 houve um salto súbito de 1.923 novos negros e pardos presos.
Neste mesmo período, a população carcerária branca aumentou em 336, uma
27. MANSO, Bruno Paes. Entre o crime or-
diferença proporcional de 5,72 vezes.26
ganizado e crack. Estadão. São Paulo, 08
novembro 2009. Notícias. Disponível em: Curioso que neste mesmo semestre os únicos crimes que tiveram um au-
<http://blogs.estadao.com.br/crimes-no- mento numérico tão grande como o total de encarceramentos foram aqueles
-brasil/tag/rodney-miranda/> Acesso em:
relacionados ao tráfico de entorpecentes. Este havia se tornado o principal foco
outubro de 2010.
da política de segurança pública capixaba da época, como mostra uma entre-
vista concedida em novembro de 2009 pelo então secretário Rodney Miranda:

No primeiro governo de Paulo Hartung, nós tivemos que combater a


violência urbana, mas tivemos que doar muito da nossa energia até para
fazer a reconstrução do Estado e da política de segurança. A gente não
pode esquecer do crime organizado, até porque tem muita gente que
enriqueceu do patrimônio público que ainda frequenta colunas sociais
por aqui. Mas o nosso maior desafio é o mesmo que o do resto do Brasil,
o problema do crack, da violência entre jovens e é para isso que está
voltado nosso trabalho.27

O resultado dessa política foi que entre dezembro de 2009 e junho de


2010, enquanto o número de encarcerados por todos os tipos de delitos perma-
neceu praticamente estável, houve um aumento de 1.076 pessoas presas por
crimes relacionados a entorpecentes (Lei 11.343/2006).
Note-se que no período o índice de presos por crimes contra a pessoa au-
mentou 3,8%, enquanto o de presos por crimes sexuais chegou a reduzir 11,8%
– que são os crimes considerados os mais violentos pelo senso comum. Até
mesmo os crimes patrimoniais, que sempre foram o maior percentual dentre
todos, tiveram um aumento de apenas 1% e foram numericamente superados
pelos crimes envolvendo entorpecentes.
Estes dados já evidenciam, como há uma forte orientação seletiva para
o tipo de delito que é punido com a pena de prisão. Os maiores índices são
de crimes patrimoniais, que representam 37% e 33% do total em 2009 e
2010, somente sendo superados pelos crimes relacionados à Lei de Drogas
(11.343/2006), que representam 29% e 34% no mesmo período.

170
Somando-se os percentuais de crimes contra a pessoa e crimes contra os 28. MACHADO, Nara Borgo Cypriano. Usu-
costumes, não se chega a 20% dos detentos em 2010. Crimes contra a adminis- ário ou traficante? a seletividade penal na
nova Lei de Drogas. In: Anais do XIX Encon-
tração pública chegam a 0,65% do total neste mesmo ano.
tro Nacional do Conpedi, Fortaeza, 2010.
No entanto, é sintomático o fato de que sejam os crimes da Lei de Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2011.
Drogas que sofreram maior crescimento no período em que houve o maior Disponível em: < http://www.conpedi.org.
br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3836.
crescimento da população negra e parda. Segundo análises recentes, como
pdf>. p. 1098-1111.
da pesquisadora Nara Borgo C. Machado,28 a Lei 11.343/06 introduziu uma
nova dinâmica no trato aos crimes de uso e de tráfico de drogas que se 29. Previsto no artigo 33, caput, é carac-
orienta com mais clareza para uma punição desigual das classes sociais terizado pelas seguintes condutas: impor-
tar, exportar, remeter, preparar, produzir,
mais altas e baixas. fabricar, adquirir, vender, expor à venda,
Uma das novidades da nova Lei de Drogas (11.343/06) teria sido a sua oferecer, ter em depósito, transportar, tra-
aparente descriminalização do uso de drogas. Ao menos não há para este a zer consigo, guardar, prescrever, ministrar,
entregar a consumo ou fornecer drogas,
pena privativa de liberdade, pois como afirma o art. 28, caput, e § 1º:
ainda que gratuitamente, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal
Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou ou regulamentar.
trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em
30. Deve-se ressaltar que, por meio da
desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às Resolução 05/2012, publicada em 16 de
seguintes penas: fevereiro de 2012, o Senado Federal sus-
I - advertência sobre os efeitos das drogas; pendeu a execução da expressão “vedada a
conversão em penas restritivas de direitos”,
II - prestação de serviços à comunidade;
contida no parágrafo 4º do artigo 33 da
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Lei 11.343/06. Isso ocorreu em virtude da
§ 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, decisão pela inconstitucionalidade do dis-
positivo concedida pelo Supremo Tribunal
semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena
Federal no Habeas Corpus 97.256/RS. Por-
quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência fí- tanto, a afirmação contida neste parágrafo
sica ou psíquica. se restringe ao período em tela.

Por outro lado, o tratamento dado ao crime de tráfico de drogas29 se agra-


vou, pois com o aumento da pena mínina de 3 para 5 anos houve a impossibi-
lidade de imposição de penas restritivas de direitos, por exemplo.30
Porém, o grande problema da nova lei foi a introdução, por meio do arti-
go 28, § 2º, da regra que o juiz deverá seguir para determinar se a droga apre-
endida destinava-se a consumo pessoal ou não. De acordo com o dispositivo,

171
31. MACHADO, Nara Borgo Cypriano. Usu- Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz aten-
ário ou traficante? a seletividade penal derá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às
na nova Lei de Drogas. In: Anais do XIX
condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pes-
Encontro Nacional do Conpedi, Fortaeza,
2010. Florianópolis: Fundação Boiteaux, soais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (grifos nossos)
2011. Disponível em: < http://www.conpe
di.org.br/manaus/arquivos/anais/fortale
Desta forma, a lei reforça a tese de que, mais do que simplesmente a
za/3836.pdf> p. 1104.
quantidade de substância proibida, importa a classe social do agente. Afinal,
32. ZACCONE, Orlando. Acionistas do uma mesma quantidade de droga apreendida na casa de uma pessoa de classe
nada: quem são os traficantes de drogas. média e de uma pessoa de classe pobre poderá provocar um tratamento bem
Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 19-20.
distinto. Não é à toa que, como afirma Nara Machado,

Pode parecer, a princípio, que a nova legislação trouxe benefícios para


aqueles que são apenas usuários, pois o consumo de drogas não pode
mais conduzir ninguém ao cárcere. Entretanto, quando verificamos os
mecanismos de criação de estereótipos de “traficantes”, de controle
punitivo das classes sociais mais baixas, consideradas perigosas, e de
repressão bélica ao tráfico de drogas, percebemos que aqueles consi-
derados “perigosos”, mesmo que estejam apenas fazendo uso de droga
ilícita, serão submetidos à pena de prisão.31

A prática policial confirma essa tese. Orlando Zaccone, delegado de po-


lícia, transcreve em sua dissertação de mestrado sua experiência e mostra que

[…] um delegado do meu concurso, lotado na 14 DP (Leblon), autuou,


em flagrante, dois jovens residentes na zona sul pela conduta descrita
para usuário, porte de droga para uso próprio, por estarem transpor-
tando, em um veículo importado, 280 gramas de maconha […], o que
equivaleria a 280 “baseados” […] o fato de os rapazes serem estudantes
universitários e terem emprego fixo, além da folha de antecedentes cri-
minais limpa, era indiciário de que o depoimento deles, segundo o qual
traziam a droga para uso próprio, era pertinente.32

Este relato confirma como, na prática, o que importa não é a quantidade


de substância entorpecente apreendida, mas as outras circunstâncias (sociais)

172
que envolvem o delito. Como demonstra a pesquisa “Tráfico e Constituição, 33. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Tráfico e
um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Constituição, um estudo sobre a atuação
da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do
Federal no crime de drogas”, nas varas criminais do Distrito Federal, quase Distrito Federal no crime de drogas. Dis-
70% dos processos referem-se a presos com quantias inferiores a 100 gramas ponível em: <http://goo.gl/pOGTy7> Aces-
de substância proibida. No Rio de Janeiro, esse índice é de 50%.33 so em: outubro de 2013.

Ademais, nesta pesquisa, a partir de uma análise dos processos do Supe-


34. Ibid. s/n.
rior Tribunal de Justiça, verificou-se que
35. Estimativas obtidas com base na Pes-
[…] 67% dos réus estavam nas seguintes condições: a maioria é réu pri- quisa nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) de 1998 e 2008 e consolidadas pelo
mário, com bons antecedentes, estava desarmada na ocasião da prisão Instituto Jones dos Santos Neves.
em flagrante e não integrava organizações criminosas.34
36. ANDRADE, Vera Regina. Sistema penal
máximo x cidadania mínima: códigos da
Em suma, o crescimento vertiginoso do aprisionamento no Espírito Santo
violência na era da globalização. Porto Ale-
em virtude dos crimes que envolvem a Lei 11.343/2006 pode ser um indício gre: Livraria do Advogado, 2003, p.52.
das razões pelas quais o número de negros e pardos encarcerados está cada vez
maior. Afinal, existe um dado socioeconômico importante no que diz respeito
a essa parcela da população capixaba.
Na esteira de um fenômeno nacional, houve, no Espírito Santo, uma drás-
tica redução do número de pobres: em 1998, 29% da população era considerada
pobre, ao passo que, em 2008, 15% da população se encontrava nesta condição.35
Todavia, ainda que neste período a proporção da população branca e
negra tenha permanecido exatamente a mesma (44% e 56%, respectivamente),
a razão entre o percentual de negros pobres e brancos pobres aumentou de
1,71 para 1,9 nestes dez anos. Em outras palavras, é possível dizer que, durante
este período, a redução da pobreza não atingiu de maneira equânime todas as
cores/etnias, assim como aconteceu com a política criminal.
Neste sentido, é possível confirmar as teses propostas pela criminolo-
gia crítica e afirmar que os processos de criminalização são dão de manei-
ra seletiva atingindo prioritariamente os indivíduos das classes sociais mais
desfavorecidas. Como afirma Vera Regina P. Andrade, “a clientela do sistema
penal é composta, ‘regularmente’, em todos os lugares do mundo, por pessoas
pertencentes aos mais baixos estratos sociais” e isso “é resultado de um pro-
cesso de criminalização altamente e seletivo e desigual de ‘pessoas’ dentro da
população total, às quais se qualifica como criminosos”.36

173
Desta forma, se o sistema penal é orientado por uma aplicação desigual
da lei penal e das penas de prisão, uma discussão que deve ser feita é em que
medida esta prática da penalização está de acordo ou não com os princípios de
direitos humanos e se existem alternativas à essa prática da violência punitiva
institucionalizada.

4. O sistema penal e as sistemáticas violações aos Direitos Humanos


e os Direitos Humanos como limite da lei penal

A partir do marco da criminologia crítica e tomando como referência


o exemplo privilegiado das políticas de segurança pública e penitenciárias
do Espírito Santo na última década, foi possível perceber como realmente a
prática concreta dos processos de criminalização e punição não correspondem
àquele ideário construído pela lógica da defesa social.
O sistema penal não funciona para reprimir a criminalidade, não visa
punir atitudes socialmente prejudiciais, não previne a prática de novos cri-
mes, nem protege bens jurídicos tidos como importantes para toda a so-
ciedade e, muito menos, protege ou atinge a todos igualmente. Antes, este
sistema funciona seletivamente como um instrumento de proteção e repro-
dução das relações de dominação de classe. Ou seja, vimos, acima de tudo,
que o sistema penal opera desigualmente tendo em vista o status social do
autor da conduta.
Portanto, se fizermos uma análise mais detida deste fenômeno, perce-
beremos que, uma vez operando seletivamente, tal como comprovamos nas
páginas anteriores, a conclusão inevitável a que chegamos é a de que o siste-
ma penal, tal como operado em sua prática cotidiana, se constitui como um
instrumento de violação sistemática dos Direitos Humanos, especialmente com
aqueles relacionados com os limites da intervenção estatal sobre a esfera da
vida e da liberdade do indivíduo.
A título de exemplificação inicial podemos ver três princípios básicos
sendo sistematicamente violados: o princípio da igualdade, na medida em que
o sistema atua desigualmente sobre os indivíduos de acordo com sua classe
social; da legalidade, na medida em que, ao perseguir diferencialmente os in-

174
divíduos em função de seu status social e não de sua conduta, percebe-se que 37. SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra N.
a função punitiva se realiza fora do direito e não de acordo a lei anterior que Os direitos humanos como fundamento do
minimalismo penal de Alessandro Baratta.
define o crime; e o princípio do devido processo legal, na medida em que o
in: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (Org.)
criminoso será definido a partir de seus aspectos físicos, seu local de moradia, Verso e Reverso do Controle Penal: (Des)
de circulação, sem qualquer cuidado com o direito de defesa, de produção de Aprisionando a Sociedade da Cultura Pu-
nitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux,
provas, ou, muito menos, de garantia de um julgamento justo.
2002. p. 19
Em suma, isso demonstra, a violação direta de, pelo menos, quatro arti-
gos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: o artigo VII, que garante 38. BARATTA, Alessandro. Princípios do di-
a igualdade perante à lei e a proteção contra qualquer discriminação; o artigo reito penal mínimo: para uma teoria dos
direitos humanos como objeto e limite da
IX, que proíbe a prisão arbitrária; o artigo X, que garante um julgamento jus- lei penal. Tradução de Francisco Bissoli Fi-
to, igualitário e realizado por um tribunal independente e imparcial; e o artigo lho. mimeo. Disponível em: <http://goo.gl/
XI, que garante a presunção de inocência e a reserva legal. YCcsdu>. Acesso em: novembro de 2013.

É possível afirmar, portanto, que submetendo a noção de direitos huma-


nos à análise do sistema penal em sua estrutura de funcionamento concreto,
percebe-se que este atua muito mais como um sistema de violação dos direitos
humanos do que como um sistema de tutela dos mesmos. Como bem resume
Samyra Sanches,

A violação dos direitos humanos pelo sistema penal se dá de várias


formas. A pena revela-se como uma violência institucional, no sentido
de que reprime as necessidades básicas do ser humano. Através dos fins
úteis que as teorias utilitárias da pena declaram que ela cumpre, preten-
dem as mesmas justificar tal repressão. Com os estudos da Criminologia
crítica sobre o fracasso da pena de prisão quanto aos seus declarados
fins úteis, a pena revela-se, porém, como violência inútil com relação
aos fins de prevenção geral e especial. Por outro lado, a violação aos
direitos humanos apresenta-se mais evidente se considerarmos que a
maior parte dos casos de prisão ocorre com indivíduos que ainda nem
receberam sentença condenatória. […] Podemos ainda acrescentar, ao
rol de violências cometidas pelo sistema penal, aquelas que, violando o
princípio liberal da reserva legal e de todos os seus derivados, violam
também os Direitos Humanos, tais como penas de morte extrajudiciais,
torturas, desaparecimentos, linchamentos, cometidas por policiais, mili-
tares, esquadrões da morte, etc.37

175
39. Ibid. p. 4-5.
Atento a essas questões, o criminólogo crítico Alessandro Baratta, em um
artigo intitulado Princípios do direito penal mínimo: para uma teoria dos direi-
tos humanos como objeto e limite da lei penal,38 tenta debater esta crise do siste-
ma penal e, a partir do marco dos direitos humanos, procura apontar alguns ca-
minhos que possam ser trilhados a curto e médio prazo em busca de superá-la.
Com este objetivo, inicialmente o autor resgata os resultados de suas
pesquisas para demonstrar que o sistema penal é absolutamente incapaz de
cumprir as funções declaradas por seu discurso oficial (baseado na ideologia
da defesa social, tal como discutimos anteriormente). Em seguida, ele constrói
uma forma de pensar os fundamentos de uma política criminal orientada pelos
direitos humanos.
Deste modo, ele verifica que se analisados os sistemas punitivos em suas
manifestações empíricas, em sua organização e em suas funções reais, algumas
constatações básicas podem ser alcançadas: 1) a pena é uma violência institu-
cional; 2) os órgãos que atuam na organização da justiça criminal (judiciário,
legislativo, órgãos de execução e investigação) não tutelam interesses comuns da
sociedade, mas de grupos dominantes e socialmente privilegiados; 3) o funciona-
mento da justiça penal é altamente seletivo, seja na proteção dos bens jurídicos,
nos processos de criminalização e aprisionamento; 4) o sistema punitivo produz
mais problemas do que procura resolver, uma vez que reprimem e agravam as
relações de conflito existentes, além de criar outras; 5) ele é absolutamente ina-
dequado para desenvolver as funções socialmente úteis declaradas em seu dis-
curso oficial – sendo uma violência útil apenas do ponto de vista da reprodução
do sistema social existente e da manutenção das relações de poder e produção.39
Diante disso, torna-se possível dizer que o sistema punitivo aparece
como um suporte importante da violência estrutural. Desta forma, lutar con-
tra esta violência estrutural e, portanto, afirmar os direitos humanos é lutar
contra o modo pelo qual a prática punitiva se dá atualmente. Nas palavras de
Alessandro Baratta,

A luta pela contenção da violência estrutural é a mesma luta pela afir-


mação dos direitos humanos. Com efeito, em uma concepção históri-
co-social, esses assumem um conteúdo idêntico ao das necessidades

176
reais historicamente determinadas […]. Desprendem-se daqui duas con- 40. Ibid. p. 5.
seqüências: a primeira é que uma política de contenção da violência
41. Neste sentido se encaixa a discussão
punitiva é realista só se inserida no movimento para a afirmação dos
contra a chamada “esquerda punitiva”, no
direitos humanos e da justiça social. Pois, definitivamente, não se pode sentido dado por Maria Lúcia Karan, que
isolar a violência concebida como violência institucional da violência busca sempre a criminalização de condutas
e o recurso ao sistema penal como forma
estrutural e da injustiça das relações de propriedade e de poder, sem
de aparente garantia de liberdades. A crí-
perder o contexto material e ideal da luta pela transformação do sistema tica feita é a de que, na medida em que o
penal, reduzindo-a a uma batalha sem saída nem perspectivas de êxito sistema penal atua seletivamente reprodu-
[…]. A segunda conseqüência é que as possibilidades de utilizar alter- zindo as relações de poder instauradas na
sociedade, ele não apenas não irá prote-
nativamente os instrumentos tradicionais da justiça penal para a defesa
ger essas liberdades como poderá produzir
dos direitos humanos são sumamente limitadas.40 novas violações pelo seu uso. Cf. KARAM,
Maria Lúcia. Esquerda punitiva. Discursos
Sediciosos, Rio de Janeiro, ano 01, vol. 01,
Portanto, devemos compreender que, não apenas é equivocado utilizar
p. 79-82, jan-jun, 1996.
os instrumentos da justiça penal para a defesa dos direitos humanos,41 como é
imperioso que a violência punitiva seja contida e limitada pelos princípios de 42. SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra N.
Os direitos humanos como fundamento do
direitos humanos, ante o reconhecimento da impossibilidade concreta de sua
minimalismo penal de Alessandro Baratta.
abolição a curto ou médio prazo. in: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (Org.)
Diante dessas questões, no texto já citado, Alessandro Baratta busca Verso e Reverso do Controle Penal: (Des)
resgatar a primazia dos direitos humanos como fundamento de uma política Aprisionando a Sociedade da Cultura Pu-
nitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux,
criminal alternativa que consiga conter e limitar a violência punitiva do Esta-
2002. p. 17.
do. Desta maneira, ele afirma a estratégia de uma mínima intervenção penal
orientada pelo respeito aos direitos humanos no marco do processo penal e da
execução da pena. Como explica Samyra Sanches,

A tarefa da política criminal de direito penal mínimo é ao mesmo tempo


preparar a transformação do sistema penal, inclusive do seu discurso
oficial, legitimado entre outras instâncias pela dogmática jurídico pe-
nal; e a sua utilização como um instrumento para conter a violência
com que manifesta o seu exercício de poder, enquanto o ideal abolicio-
nista não é alcançado.42

Neste sentido, Baratta organiza e desenvolve uma série de princípios-guia


para a superação e transformação do sistema penal tradicional em um sistema
penal de defesa e garantia dos direitos humanos. São eles os seus princípios do

177
43. BARATTA, Alessandro. Princípios do di- direito penal mínimo que se constituem, na verdade, em requisitos mínimos de
reito penal mínimo: para uma teoria dos respeito aos direitos humanos na produção, aplicação e execução da lei penal.
direitos humanos como objeto e limite da
Como nosso objetivo neste trabalho não é reconstruir detalhadamente to-
lei penal. Tradução de Francisco Bissoli Filho.
mimeo. Disponível em: <http://goo.gl/YCcs das as teses de Alessandro Baratta, indicaremos alguns desses princípios que en-
du>. Acesso em: novembro de 2013. p. 6. tendemos ser mais relevantes para a transformação deste sistema penal que em
sua forma atual se mostra como um violador sistemático dos direitos humanos.
44. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 7.
Diante dessas considerações, o primeiro passo para um programa de li-
45. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 8. mitação formal da violência punitiva implica em submetê-la ao princípio da
estrita legalidade, sendo assim, toda a violência punitiva deve ser restrita ao
46. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 9.
âmbito da lei, submetendo todas as “punições extralegais” e excessos come-
tidos pelo sistema penal às sanções correspondentes, sejam elas penais, civis,
administrativas, disciplinares, etc.43
Além disso, estas garantias contidas no princípio da legalidade devem
ser estendidas à situação do indivíduo em cada um dos subsistemas em que se
divide o sistema penal na forma de um princípio do primado da lei penal subs-
tancial. Assim, diante da ação da polícia, dentro do processo e da execução da
pena, a limitação dos direitos dos indivíduos não pode superar as restrições
previstas taxativamente pela lei penal para os delitos de que pode ser suspeito,
imputado ou condenado. Neste sentido, por exemplo, não se poderia permitir a
prisão processual de um indivíduo acusado de um crime cuja condenação não
acarretaria pena de prisão.44
Alguns princípios também deveriam restringir a própria produção da lei
penal. Desta forma, Baratta afirma um princípio de representação popular que
garanta a participação popular na formação da vontade legislativa, bem como
um princípio da resposta não contingente que garanta que a lei penal não seja
uma resposta imediatista problemas aparentes, mas um ato solene de resposta aos
problemas sociais fundamentais que se apresentam como gerais e duradouros em
uma sociedade – o que significa a proibição de uma legislação penal de emer-
gência ou de um populismo punitivo, como frequentemente se faz na prática.45
Outro limite à legislação penal diz respeito aos seus conteúdos. Para
Baratta, somente graves violações aos direitos humanos podem ser objeto de
sanções penais, sendo as penas proporcionais ao dano causado pela violação.
Este seria o princípio da proporcionalidade abstrata, uma das bases fundamen-
tais para um direito penal mínimo.

178
Ele deve ainda andar lado a lado com o princípio da subsidiariedade, 47. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 13.
segundo o qual uma pena só pode ser cominada se for possível provar que não
48. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 13.
existem outros meios não-penais de responder a tais situações de violação dos
direitos humanos.46
Ademais, por mais que a crítica rasa do senso comum normalmente rela-
cione este tipo de proposta com uma ausência de preocupação com a vítima,
dentre os princípios elencados por Baratta, um dos mais importantes é justa-
mente o princípio do primado da vítima. Porém de maneira oposta à lógica pu-
nitivista de “estatização e generalização do direito à vingança”, este princípio
orienta-se pela ideia de que seria injustificada a pretensão do sistema penal de
tutelar interesses gerais que vão além dos da vítima. E mais, o caminho propos-
to é o da privatização dos conflitos, procurando formas de restabelecer ao má-
ximo a condição anterior conturbada pelo delito. Nas palavras do próprio autor,

Substituir, em parte, o direito punitivo pelo direito restitutivo, outorgar


à vítima e, mais em geral, a ambas as partes dos conflitos individu-
ais maiores prerrogativas, de maneira que possam estar em condições
de restabelecer o contato perturbado pelo delito, assegurar em maior
medida os direitos de indenização das vítimas são algumas das mais
importantes indicações para a realização de um direito penal da mínima
intervenção e para lograr diminuir os custos sociais da pena.47

Com relação à responsabilização penal dos agentes, Baratta indica um


princípio fundamental e extremamente violado no contexto atual da prática
do sistema penal, qual seja, o princípio da responsabilidade pelo fato. Segundo
este princípio, a responsabilidade penal do imputado não pode derivar de suas
características pessoais, mas deve derivar unicamente de

[…] um tipo de delito previsto pela lei e imputável a um ato voluntário,


do qual o autor haja sido capaz de entender seu sentido social, e em caso
de sujeitos que superem a idade mínima estabelecida pela lei.48

Assim, não pode haver nenhuma consequência penal ou medida de inter-


nação coativa que seja derivada da periculosidade social do agente ou de uma

179
conduta criminal daqueles não imputáveis legalmente. Seja o caso daqueles
atualmente submetidos aos “manicômicos judiciais” das medidas de seguran-
ça, sejam as crianças e adolescentes não imputáveis criminalmente, sejam os
usuários de drogas submetidos às internações compulsórias.
Esses são alguns dos princípios elencados por Alessandro Baratta com
vistas à construção de um direito penal mínimo que respeite os direitos hu-
manos e contenha a violência punitiva. Isso significaria um empreendimento
radical de transformação do sistema penal e da sociedade moderna no sentido
de inverter, ao máximo, a lógica vigente em nossas sociedades atuais de um
sistema penal que funciona como um violador sistemático de direitos humanos
em um sistema que seja orientado por sua garantia.
Porém, ressalte-se que, mesmo se tratando de uma proposta radical, ten-
do em vista nossa realidade concreta, ela ainda é considerada uma das etapas
necessárias – e factíveis a curto e médio prazo – para criar as condições neces-
sárias para a abolição radical do sistema penal.

5. Considerações finais

O objetivo inicial deste trabalho era o de tentar compreender, a partir


dos marcos da criminologia crítica e dos dados recolhidos no contexto das
políticas de segurança e penitenciárias capixabas, como se dão os processos
de criminalização e aprisionamento dos indivíduos e como isso pode ser visto
como um instrumento de violação sistemática dos direitos humanos.
Desta maneira, partindo das lições do labeling approach e da criminolo-
gia crítica, demonstramos como a definição dos crimes, a aplicação e execução
da lei penal são orientadas por um critério de seleção desigual dos indivíduos
de acordo com seu status social. Neste sentido, o sistema penal serve para
controlar as classes menos favorecidas, protegendo os interesses das classes
dominantes e reproduzindo, em sua prática, esta relação de dominação.
Isto pôde ser comprovado a partir dos dados do encarceramento no Espírito
Santo na última década. Restou demonstrado, a partir do cruzamento dos dados
do aprisionamento com os indicadores sociais e com os processos de produção
da lei penal, como a lógica do aprisionamento se direciona especificamente para

180
a população negra e pobre, envolvida majoritariamente em delitos patrimoniais
e, mais recentemente, em crimes relacionados ao comércio ilegal de drogas.
Portanto, concluímos que a prática concreta do sistema de justiça cri-
minal não apenas se afasta completamente de seus princípios legitimadores,
como se manifesta na forma de um um mecanismo que promove violações
sistemáticas aos mais basilares princípios de direitos humanos.
Diante disso, como uma forma de apontar caminhos alternativos recor-
reu-se às teses do criminólogo crítico Alessandro Baratta em sua proposta de
construção de um direito penal de mínima intervenção fundamentado nos
princípios de direitos humanos. Esta, para ele, seria a melhor alternativa para,
a curto e médio prazo, transformar as práticas de criminalização seletivas e
desiguais do sistema penal e conter a violência punitiva estatal.
Esta transformação gradativa permitiria a busca de mecanismos alter-
nativos ao intervencionismo repressivo do sistema penal que fossem mais de-
mocráticos, igualitários, criativos e, acima de tudo, mais direcionados para o
respeito aos direitos humanos e para a solução real dos conflitos – em vez de
servir ao seu reforço e reprodução.

181
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183
Nara Borgo
Advogada. Mestre em Direito. Especialista em Direito Penal Econômico pela
Universidade de Castilla – La Mancha – Toledo, Espanha. Especialista em Di-
reito Penal pela Universidade Nacional de Mar del Plata - Argentina. Profes-
sora da Faculdade de Direito de Vitória.

11
DIREITOS HUMANOS:
COMO IDENTIFICAR SUAS VÍTIMAS E SEUS VIOLADORES

Nara Borgo

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a quem se dirigem os direitos


humanos e quem pode ser responsabilizado internacionalmente por violar
tais direitos.
Para tanto, serão feitos breves comentários sobre educação em direitos
humanos no Brasilcom a finalidade de compreender como a falta de informa-
ção faz com que grande parte da população desconheça seus direitos e, com
isso, não consiga identificar as vítimas e os violadores de direitos humanos.
No que se refere às vítimas, busca-se demonstrar em que medida não
podem ser confundidas com as vítimas de crimes praticados por aqueles que
não são agentes estatais, bem como visa esclarecer que qualquer pessoa pode
sofrer violação de direitos humanos.
Nesse passo, procura analisar a responsabilidade do Estado por violação
de direitos humanos e, ainda, quais seriam as obrigações estatais no sentido de
promover e respeitar tais direitos.
Para melhor compreensão do tema, o artigo faz uso de casos brasileiros
submetidos à Comissão e à Corte Interamericana de Direitos Humanos para as-
sim fazer breves comentários a respeito do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos e contextualizar o tema aqui proposto.

2. EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: BREVES


COMENTÁRIOS

A Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), datada de 1948, estabe-


leceque os Estados-Membros se esforcem, por meio do ensino e da educação,
a promover o respeito aos direitos humanos.

185
1. DORNELLES, João Ricardo W. O que são Apesar do Brasil ser signatário da DUDH, aqui, “como no resto da Amé-
direitos humanos. São Paulo: Brasiliense, rica Latina, não existe uma arraigada tradição cultural de valorização dos
2006, p. 45.
direitos humanos”1.
2. Ibid, p. 47. Podemos afirmar que a atenção aos problemas gerados em virtude de
violações de direitos humanos no Brasil só foi “despertada” com as lutas opo-
3. LACERDA, Áurea Santos; FIDELIS, Vera
sicionistas aos regimes de exceção.
Lucia Chieppe. O que é educar em Direitos
Humanos? In: VELTEN, Paulo (Org). Educa- Não que não houvesse violação de direitos humanos antes da ditadu-
ção em Direitos Humanos II. Vitória: Uni- ra militar e que muitos movimentos não tivessem se levantado contra tais
versidade Federal do Espírito Santo, Núcleo opressões. Ao contrário, sempre houve quem lutasse por direitos humanos no
de Educação Aberta e à Distância, 2013, p.
123.
Brasil mas, segundo diversos doutrinadores, a questão dos direitos humanos
se tornou “ordem do dia”quando os movimentos sociais, contrários ao regime
militar, passaram a confrontar “um tipo de poder político que violentava siste-
maticamente os direitos mais elementares da pessoa humana”2.
Nesse sentido as lições de Lacerda e Fidélis3 que ensinam-nos que:

No Brasil a Educação em Direitos humanos já está em pauta há alguns


anos; segundo Ana Klein (2011), iniciou-se por processos informais im-
pulsionada por movimentos sociais que lutavam contra a ditadura militar.
A retomada da democracia e a Constituição (1988) fortaleceram o pro-
cesso de construção da EDH com a adoção de uma série de dispositivos.

Apesar de terem se tornado “ordem do dia” antes mesmo da Constitui-


ção de 1988, ainda enfrentamos desafios no tange à educação e garantia dos
direitos humanos, principalmente por faltar informação à grande parte da so-
ciedade, que desconhece o que sejamdireitos humanos.
É preciso lembrar que educar em direitos humanos não é uma tarefa fácil
pois, seguindo as lições de Fabriz, “Educar para uma vida em dignidade signi-
fica educar para além das teorias e práticas clássicas que nortearam os direitos
humanos”. E, continua o doutrinador:

Faz-se necessário aliar uma nova teoria para novas práticas, tendo por
finalidade a promoção de todos e todas aos bens (educação, vida, saúde,
meio ambiente ecologicamente equilibrado, segurança, assistência etc.)

186
para uma vida em liberdade e dignidade. Para além das lutas jurídicas, 4. FABRIZ, Daury Cesar. Fundamentos His-
também as lutas políticas em busca desses bens e direitos .
4 torico-Filosófico da EDH. In: VELTEN, Paulo
(Org). Educação em Direitos Humanos.
Vitória: Universidade Federal do Espírito
Por fim, como ensinam Áurea Santos Lacerda e Vera Lúcia Fidellis5: Santo, Núcleo de Educação Aberta e á Dis-
tância, 2011, p. 58-59.

Educar em DH então pode ser entendido como levar os indivíduos a


5. LACERDA, Áurea Santos; FIDELIS, Vera
percepção que todos têm direitos à vida, saúde, educação, à segurança, Lucia Chieppe, op. cit. p. 123.
a assistência, dentre outros. Educar numa cultura de integração – va-
lorizar os movimentos sociais e lutas pelas causas de forma coletiva e 6. DORNELLES, João Ricardo W. op. cit. p. 58.

não individualmente.

Apenas com educação em direitos humanos poderemos avançar no sen-


tido de construir uma sociedade livre e mais justa, fazendo com que todos
conheçam seus direitos, mas essa educação, como mencionado acima, deve
extrapolar os limites jurídicos.

3. A quem se dirigem os direitos humanos?

Apesar dos esforços no sentido da promoção da educação em direitos huma-


nos, muitas pessoas não sabem quem são os destinatários desses direitos e,
muitas vezes, não compreendem quecabe aos Estados seguirem valores e re-
gras de cunho universal no sentido de garantir e promover direitos humanos,
a todos, de forma igualitária.
Por isso, quando se trata da promoção e defesa dos direitos humanos
ainda temos que lidar com a falta de informação existente com relação a que
são direitos humanos, quem são as vítimas e quem pode violar tais direitos.
Além da desinformação, a promoção dos direitos humanos se torna
mais difícil na medida em que foi criada uma falsa imagem de que os de-
fensores de direitos humanos são defensores de “bandidos”, que contribuem
para a impunidade.
Assim, é possível perceber que há um preconceito com relação aos defenso-
res de direitos humanos, preconceito este muitas vezes estimulado pela mídia que

187
frequentemente usa imagens e frases de efeito no sentido de transmitir a ideia
equivocada de os direitos humanos são destinados apenas a quem comete crimes.
Sobre o preconceito existente com relação à proteção dos direitos huma-
nos, acertadas são as palavras de Dornelles6, ao afirmar que:

Divulga-se a ideia de que a proteção dos direitos individuais e coletivos


para toda população e o pleno exercício da cidadania constituem um
meio de estímulo ao crime, de privilégio aos bandidos e de “boa vida”
aos presos. Como se esta fosse a realidade vivida pela imensa maioria
marginalizada de nossa sociedade.

Nesse contexto, usando as palavras de Dornelles acima mencionadas, “de


privilégio aos bandidos”, frequentemente ouvimos nos meios de comunicação
a seguinte pergunta: “e os direitos humanos da vítima?”
Esta é uma pergunta que merece ser não só respondida, mas também
questionada.

3.1. As vítimas de violações de direitos humanos

A defesa dos direitos humanos está relacionada com todas as violações so-
fridas por uma ou mais vítimas, desde que tais violações tenham sido prati-
cadas pelo Estado.
Desta forma, quando a proteção dos “direitos humanos das vítimas” é
questionada, é preciso compreender quem são essas vítimas e quem violou
tais direitos.
Não se discute a necessidade de se garantir uma sociedade segura, assim
como não há discordância no sentido de que as vítimas da violência urbana
precisam de assistência. A própria Constituição da República assegura o direito
à segurança no art. 5º, que estabelece que:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,


garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes.

188
A segurança é um direito de todos, estabelecido no Título II da CF/88, 7. O relatório do Caso 12.051 está disponível
que versa sobre os direitos e garantias fundamentais, portanto, deve ser asse- em: <http://www.cidh.oas.org/annualrep /
2000port/12051.htm>. Acesso em 25,
gurada pelo Estado, mas é necessário que se compreenda, como será demons- out. 2013.
trado, que quando estamos diante de violação de direitos humanos é preciso
que a responsabilidade seja estatal e não individual.
Não há dúvidas de que a violência urbana geracomoção social, principal-
mente quando o fato se torna conhecido nacionalmente, e que grande parte da
população, esteja ela vinculada ou não a uma entidade de proteção de direitos
humanos, se solidariza com a dor das vítimas.
Para estas pessoas, vítimas e familiares, entretanto, há um aparato estatal
que visa investigar o crime e punir o agressor. Assim, a polícia investiga, o
Ministério Público atua em favor da sociedade, o Juiz julga e, por fim, o Esta-
do busca amparar aqueles que sofreram algum tipo de violência por parte de
outro ser humano.
Nos casos de violência urbana (ou nos casos de crimes não violentos),
estamos diantede delitos que podem ser cometidos por qualquer pessoamas,
apesar de todas as consequências advindas da agressão, não estaremos dian-
te de violação de direitos humanos pois apenas o Estado pode ser o violador
de tais direitos.
Caberá ao Estado, nos casos acima mencionados, apurar os fatos e apli-
car as sanções cabíveis ao agressor. Havendoomissão estatal, a vítima de vio-
lência praticada por um indivíduopode pleitear a proteção internacional por
violação de direitos humanos, pois neste caso a responsabilidade que antes era
individual passa a ser também do Estado por ter se omitido quando deveria
agir em favor daquele que foi agredido.
Foi exatamente isso que aconteceu no Caso 12.051, apresentado à Comis-
são Interamericana de Direitos Humanos.
Trata-se do mais famoso caso de violência doméstica e familiar do Bra-
sil, em que a vítima, a senhora Maria da Penha Maia Fernandes, denunciou
a impunidade e ineficácia do sistema judiciário brasileiro diante da violência
doméstica contra a mulher.
Apesar de ter sido um caso entre particulares, eis que Maria da Penha foi
vítima de vários atos de violência praticados por seu ex-marido, a ausência de
resposta do poder judiciário brasileiro com relação à conduta do agressor fez

189
8. DORNELLES, João Ricardo W. op. cit. p. 59. com o Estado fosse condenado por negligência e omissão em relação à violên-
cia doméstica contra as mulheres brasileiras7.
9. FABRIZ, Daury Cesar. Fundamentos His-
As vítimas de direitos humanos, portanto, são todas as pessoas que ti-
torico-Filosófico da EDH. In: VELTEN, Pau-
lo (Org). Educação em Direitos Humanos. veram seu direito desrespeitado por algum órgão, funcionário(a) ou agente do
Vitória: Universidade Federal do Espírito Estado. Assim:
Santo, Núcleo de Educação Aberta e á Dis-
tância, 2011, p. 58-59
(…) Quando se fala em direitos humanos, não se pensa em realidades
10. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos estanques, compartimentada. Não se pensa que apenas os “bons” os
e o Direito Constitucional Internacional. “mocinhos da história”, têm direitos a serem preservados. Quando se
São Paulo: Saraiva, 2010, p.113.
luta pelos direitos humanos, pensa-se e atua-se integralmente tendo
11. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Cons- uma visão global da realidade em que vivemos8.
tituição e Internacionalização dos Direitos
Humanos. In: FABRIZ, Daury Cesar et al.
Desta forma, é preciso que se compreenda que todos os seres humanos
(Coord). O tempo e os Direitos Humanos.
Acesso: Vitória, 2011, p. 125. podem ser vítimas de violações de direitos humanos e que a defesa intran-
sigente de tais direitos não é sinônimo de impunidade, ao contrário, violar
direitos humanos é que deve ser repudiado por todas as nações.
Nas precisas lições de Fabriz9, podemos concluir que os direitos humanos:

convergem para um mesmo sentido que é o resguardo da pessoa huma-


na contra qualquer tipo de opressão. São direitos que buscam viabilizar
a vida em liberdade e em dignidade.

3.2. A responsabilidade internacional dos Estados por violação de


direitos humanos

Atualmente, o tema da proteção e promoção dos direitos humanos vem


ganhando cada vez mais destaque no cenário internacional, mas ainda per-
siste a polêmica a respeito do fundamento, da sua natureza e de seus pre-
cedentes históricos.
Discute-se na doutrina, como leciona Piovesan, “se são direitos naturais
e inatos, direitos positivos, direitos históricos ou, ainda, direitos que derivam
de determinado sistema moral”10.
Segundo os ensinamentos de Castro11:

190
A trajetória dos direitos humanos iniciou-se por uma compreensão jus- 12. O Direito Humanitário expressou, de
naturalista, expressante do ideário individualista que assinalou as revo- forma pioneira, que deve haver limites à
liberdade e autonomia dos Estados, mesmo
luções liberais do século 18, evoluindo no sentido da positivação cons-
na hipótese de Guerra. A Liga das Nações,
titucional dos direitos e garantias considerados fundamentais segundo segundo o Preâmbulo da Convenção, de-
a escala de valores sublimados pelas constituições da era moderna, cul- terminava que: “As partes contratantes, no
sentido de promover a cooperação interna-
minando por alcançar no presente século um coroamento transcendente
cional e alcançar a paz e a segurança in-
das fronteiras do Estado nacional, com a sua inclusão nos tratados, de- ternacionais, com a aceitação da obrigação
clarações, convenções, protocolos e demais instrumentos que compõem de não concorrer à guerra, com o propósito
a ordem jurídica internacional. de estabelecer relações amistosas entre as
nações, pela manutenção da justice e com
extremo respeito para com todas as obri-
Também se discute quais seriam os precedentes históricos da moderna gações decorrentes dos tratados, no que
sistemática de proteção internacional desses direitos e, ainda sob os ensina- tange à relação entre povos organizados
uns com os outros, concordam em firmar
mentos de Piovesan, tem-se que o Direito Humanitário, a Liga da Nações e a
este Convênio da Liga das Nações”. A Orga-
Organização Internacional do Trabalho12 são “os primeiros marcos do processo nização Internacional do Trabalho teve a
de internacionalização dos direitos humanos13”. finalidade estabelecer padrões internacio-
nais para as condições de trabalho.
Apesar dos marcos anteriores, acima mencionados, foi em decorrência da
Segunda Guerra Mundial, em meados do século XX, que foi consolidada a in- 13. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e
ternacionalização dos direitos humanos,visto que alguns países, em conjunto o Direito Constitucional Internacional, op.
com organizações não governamentais, conseguiram “garantir que a proteção cit, p. 115.

aos direitos humanos fosse uma das quatro metas prioritárias da Carta das
14. BEUST, Luis Henrique. O emergir dolo-
Nações Unidas”14. roso da consciência universal dos direitos
Após aCarta da Nações Unidassurgiram diversos tratados e convenções humanos. In: Os direitos humanos desa-
fiado o século XXI. Brasília: OAB, Conselho
internacionais que tutelam direitos humanos e, assim, os Estados passaram
federal, Comissão Nacional de Direitos Hu-
a ter maior responsabilidade com relação às violações de direitos humanos manos, 2010, p. 93.
ocorridas em seu território.
No âmbito do continente americano, por exemplo, foi criado o Sistema 15. A Comissão é um órgão principal e au-
tônomo da OEA, criado em 1959, cuja fun-
Interamericano de Direitos Humanos, que é um sistema regional de promoção ção é promover a observância e a defesa
e proteção de direitos humanos integrado por dois órgãos: a Comissão Intera- dos direitos humanso nas Américas. Realiza
mericana de Direitos Humanos15 e a Corte Interamericana de direitos Huma- visitas aos países, atividades ou iniciativas
temáticas, prepara relatórios sobre a situ-
nos16, que têm a função de monitorar o cumprimento das obrigações contra-
ação de direitos humanos em um país ou
ídas pelos Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). sobre um tema determinado, adota medi-
As normas que versam sobre direitos humanos, então, dirigem-se aos Es- das cautelares ou pedido de medidas provi-
tados, visando limitar a ação estatal e também estabelecendo ações aos poderes sórias à Corte IDH e realiza o processamen

constituídos do Estado no sentido de promoção e garantia dos direitos humanos.

191
Continuação da nota 15 Assim, cabe aos Estados, de acordo com as convenções e tratados assina-
12. O Direito Humanitário expressou, de dos, adotar disposições legislativas para tornar efetivos os direitos humanos.
forma pioneira, que deve haver limites à No que se refere às obrigações dos Estados frente aos tratados e con-
liberdade e autonomia dos Estados, mesmo
venções internancionais de direitos humanos, é preciso lembrar que tem a
na hipótese de Guerra. A Liga das Nações,
segundo o Preâmbulo da Convenção, de- obrigação de adotar todas as medidas necessárias para prevenir as violações de
terminava que: “As partes contratantes, no direitos humanos, bem como investigar, processar e sancionar os responsáveis
sentido de promover a cooperação interna-
por quaisquer violações.
cional e alcançar a paz e a segurança in-
ternacionais, com a aceitação da obrigação Neste sentido, cabe lembrar o caso de Damião Ximenes Lopes17, em que o
de não concorrer à guerra, com o propósito Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Huma-
de estabelecer relações amistosas entre as nos por violação de direitos humanos ocorrida dentro de uma clínica médica,
nações, pela manutenção da justice e com
extremo respeito para com todas as obri-
eis que Damião Ximenes morreu em virtude de ter sofrido violência dentro de
gações decorrentes dos tratados, no que uma clínica que deveria cuidar de sua saúde mental.
tange à relação entre povos organizados Os Estados também têm a obrigação de remediar violações de direitos
uns com os outros, concordam em firmar
humanos restabelecendo as situações ao estado anterior à violação oureparan-
este Convênio da Liga das Nações”. A Orga-
nização Internacional do Trabalho teve a do as conseqüências, caso não seja possível o restabelecimento.
finalidade estabelecer padrões internacio- Como já mencionado, caso descumpram a obrigação de respeitar e ga-
nais para as condições de trabalho.
rantir os direitos protegidos nas convenções internacionais de direitos huma-
13. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e nos, os Estados incorrem em responsabilidade internacional, podendo então
o Direito Constitucional Internacional, op. serem denunciados aos órgãos do sistema interamericano de proteção dos di-
cit, p. 115. reitos humanos (ou aos órgãos dos sistemas que fizerem parte, caso não seja
um país do continente Americano).
14. BEUST, Luis Henrique. O emergir dolo-
roso da consciência universal dos direitos É necessário compreender que não basta uma farta legislação que vise
humanos. In: Os direitos humanos desa- a proteção dos direitos humanos,é necessário que se garantam cada vez mais
fiado o século XXI. Brasília: OAB, Conselho
condições para o exercício desses direitos e, por isso, tão importante que se
federal, Comissão Nacional de Direitos Hu-
manos, 2010, p. 93. promova a educação em direitos humanos.
O problema, como como nos ensina Dornelles18, é que
15. A Comissão é um órgão principal e au-
tônomo da OEA, criado em 1959, cuja fun-
estamos acostumados com belos documentos históricos declarando ser-
ção é promover a observância e a defesa
dos direitos humanso nas Américas. Realiza mos todos iguais e livres. Estamos acostumados também ao fato e al-
visitas aos países, atividades ou iniciativas guns serem mais iguais do outros.
temáticas, prepara relatórios sobre a situ-
ação de direitos humanos em um país ou
sobre um tema determinado, adota medi- Por isso, precisamos mudar a forma de compreender os direitos humanos
das cautelares ou pedido de medidas provi- e trabalhar no sentido de se transformar a sociedade, conscientizando às pes-
sórias à Corte IDH e realiza o processamen-

192
to e análise de petições individuais, com o
soas para que conheçam os seus direitos, mas também no sentido de quebrar
objetivo de determiner a responsabilidade
os preconceitos existentes. internacional dos Estados por violações de
direitos humanos e também emite as re-
condações que considerer necessárias.
16. A Corte IDH foi instalada em 1979 e é
4. Considerações finais um órgão autônomo da OEA. O objetivo da
Corte é interpreter e aplicar a Convenção
O presente trabalho buscou analisar a quem se dirigem os direitos humanos e Americana e outros tratados interamerica-
nos de direitos humanos, por meio de sen-
quem pode ser responsabilizado internacionalmente por violações a tais direitos.
tenças sobre casos e opiniões consultivas.
Para tanto, foram feitos breves comentários sobre a educação em direitos
humanos no Brasil, importante para que se compreenda como a falta de infor- 17. Outras informações sobre o caso po-
mação faz com que grande parte da população desconheça seus direitos e, com dem ser obtidas em http://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/ximenes/agescidh.pdf.
isso, não consiga identificar as vítimas de direitos humanos e o responsável
e em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
por violar tais direitos. articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em:
No que se refere às vítimas de direitos humanos restou claro que não 25 out. 2013.

podem ser confundidas com as vítimas de crimes praticados por aqueles que
18. DORNELLES, João Ricardo W. op.
não são agentes estatais, pois no caso de violação de direitos humanos a res- cit. contra-capa.
ponsabilidade, em âmbito internacional, não pode ser individual.
Ao ser feito o estudo das vítimas, defendeu-se ainda que qualquer pessoa
pode sofrer violação de direitos humanos e que não se pode ter uma visão
compartimentada da sociedade, como se fosse dividia entre “bons” e “maus”
sujeitos, pois a luta por direitos humanos pressupõe a defesa intransigente de
todos contra ações ou omissões estatais que firam direitos humanos.
Nesse passo, restou claro que apenas o Estado pode ser responsabilizado
internacionalmente por violação de direitos humanos e que, ao ser signatário
de tratados e convenções internacionais, deverá cumprir uma série de obriga-
ções no sentido de promover e respeitar tais direitos.
Por fim, não há dúvidas de que apenas por meio da educação em direitos
humanos será possível fazer com que a sociedade tenha consciência de seus
direitos e só assim poderemos avançar no sentido de construir uma sociedade
livre e mais justa.

193
Reênciasfer ácasbilogr

BEUST, Luis Henrique. O emergir doloroso da consciência universal dos direitos hu-
manos. In: Os direitos humanos desafiado o século XXI. Brasília: OAB, Conselho
Federal, Comissão Nacional de Direitos Humanos, 2010.

BRASIL. Constituição [da] República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2012.

CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Constituição e Internacionalização dos Direitos Hu-


manos. In:FABRIZ, Daury Cesar et al. (Coord). O tempo e os Direitos Humanos.
Acesso: Vitória, 2011.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório do Caso 12.051.


Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm>. Acesso
em 25 out. 2013.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório do Caso Damião Ximenes


Lopes. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/ximenes/agescidh.
pdf.> e em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf>.
Acesso em: 25 out. 2013.

DORNELLES, João Ricardo W. O que são direitos humanos. São Paulo: Brasiliense, 2006.

FABRIZ, Daury Cesar. Fundamentos Historico-Filosófico da EDH. In: VELTEN, Paulo (Org).
Educação em Direitos Humanos. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo,
Núcleo de Educação Aberta e á Distância, 2011.

LACERDA, Áurea Santos; FIDELIS, Vera Lucia Chieppe. O que é educar em Direitos Hu-
manos?. In: VELTEN, Paulo (Org). Educação em Direitos Humanos II. Vitória: Uni-
versidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2013

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São


Paulo: Saraiva, 2010.

194
Edgard Rebouças; Victor Gentilli e Rafael Paes
Professores do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Es-
pírito Santo e coordenadores do Observatório da Mídia: direitos humanos,
políticas, sistemas e transparência.

12
A LÓGICA DA EXCLUSÃO TEMÁTICA NO DEBATE
POLÍTICO SOBRE MÍDIA E DIREITOS HUMANOS

Edgard Rebouças
Victor Gentilli
Rafael Paes

A cada dia os índices de violência aumentam no Brasil, e com ele a incidên-


cia da cobertura jornalísticaapoiada na equivocada “metáfora do espelho”,
onde insinua-se que a imprensa é um mero fiel reprodutorda realidade. O que
ocorre, no entanto, é que colabora para uma construção social da realidade,
ondevalores e estereótipos são reforçados e até criados com objetivo de ma-
nutenção de um estado das coisasque interessa apenas a determinadas cama-
das da sociedade. Desta forma, uma série de desrespeitos aosdireitos humanos
são praticados e a mídia se cala, se omite, e em alguns casos propaga. Vide
ações eposicionamentos quanto ao desarmamento, redução da maioridade pe-
nal, união homoafetiva, invasão deprivacidade, criminalização de movimento
sociais, erotização precoce de crianças, exposição de mulheres,negros, LGBTs,
pobres e pessoas com deficiência.
Os desrespeitos aos direitos humanos passaram a ser rotineiros nas gra-
des televisivas, sobretudo emprogramas policialesco exibidos nacional e re-
gionalmente em vários horários ao longo do dia. Nojornalismo impresso, tal
prática é comum nas publicações ditas “populares”, chegando à criação da
expressão “espremeu sai sangue”.
A adoção de tais práticas pela imprensa obedece a uma lógica da ex-
ploração da miséria humana, à qualnão apenas inescrupulosos proprietários
de veículos de comunicação a praticam. A cada dia, mais e maisjornalistas
passam a considerar tal tipo de atuação como comum, sem perceberem o des-
virtuamento deseu papel, historicamente reconhecido pela sociedade.
O que a maioria da população e os profissionais envolvidos comcomu-
nicação não sabe é que no Brasil há uma política pública especificamente
voltada para a temática da mídia e dos direitos humanos, o Plano Nacional de
Direitos Humanos (PNDH), já em sua terceira edição, que tem como Diretriz

196
de número 22 o título: “Garantia do direito à comunicação democrática e ao
acesso à informação para a consolidação de uma cultura em Direitos Huma-
nos”. Sendo esta diretriz dividida em dois objetivos estratégicos:

I. Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comuni-


cação e o cumprimento de seu papel na promoção da cultura em
Direitos Humanos.
II. Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à infor-
mação (SEDH: 2009, p. 164-167).

Dois artigos do Código de Ética dos Jornalistas também apontam para as


mesmas preocupações quemotivam a presente reflexão:

Art. 2º - A divulgação de informação,precisa e correta, é dever dos meios


de comunicação pública, independente da natureza de suapropriedade (FE-
NAJ, 2007).

Isso quer dizer que o jornalista deve ter o compromisso não somente
deproduzir informação como também é responsável pela qualidade, pelo rigor,
precisão e correção dainformação. Já o artigo 13º determina que “O jornalista
deve evitar a divulgação de fatos: […] b) De carátermórbido e contrários aos
valores humanos” (FENAJ, 2007). Desse modo, o que é definido como corre-
çãoda informação passa, necessariamente, pela não produção e divulgação de
notícias que sejam contráriasaos valores humanos.
No âmbito do estado do Espírito Santo, onde os índices de criminalidade
são dos maiores no país e há uma grande apologia a isso em programas poli-
cialescos de rádio e televisão, há em tramitação desde 2012 um Plano Estadual
de Educação em Direitos Humanos e um Programa Estadual de Direitos Huma-
nos, sendo que ambos contemplam a temática da mídia como importante fator
de desrespeito e promoção de Direitos Humanos (SEADH, 2012/2013).
Há, no entanto, um grande descaso por parte do poder público e tratar tais
temáticas com mais profundidade, e os veículos e profissionais de comunicações
têm se aproveitado de tais aspectos com muita habilidade, focando basicamente
suas ações para a manutenção dos históricos desrespeitos aos direitos humanos.

197
1. Coirmão do Observatório da Mídia: direi- Este artigo tem por objetivo colaborar para o debate e trazer à tona uma
tos humanos, políticas, sistemas e transpa- temática tão menosprezada, sendo ao mesmo tempo tão importante para os
rência sediado na UFES.
processos sociais. Para tanto, serão expostas algumas premissas da postura
ética dos profissionais de imprensa, uma análise dos instrumentos de políticas
públicas na área e algumas sugestões para avanços em termos de respeito e
promoção de direitos humanos pela mídia.

1. O papel do profissional

Como bem observa Bernardo Kucinski (2005), o jornalismo é uma profissão


definida pela ética. Já sãoquase 40 anos que Alberto Dines observou que o
fundamental da atividade jornalística é tomardecisões. Vale transcrever:

Há um componente otimista dentro da profissão que a torna vulnerável


atendências, aguça percepções, espicaça a criatividade. Essa inquietação
gera ou é gerada por umapermanente sensibilização. Qualquer anorma-
lidade deve ser percebida, seguida, desvendada. O jornalistaé o profissio-
nal da indagação, do questionamento. No nível operacional, o jornalista
se caracteriza pela permanente tomada de decisões. Mesmo sem otreino
do rápido decisionmaking, está permanentemente tomando decisões. Se
fotógrafo, é o ângulo dafotografia que importa, uma decisão, portanto.
Se repórter, importam o enfoque da notícia, a pergunta aoentrevistado
e a escolha do próprio entrevistado. Se chefe, tem de avaliar incessante-
mente a incrívelmassa de informações despejada sobre sua mesa, aferir
sua veracidade, avaliar sua importância e definirseu destaque.

Ao escrever, cada palavra é uma decisão, cada informação, uma decisão,


cada orientação uma decisão. Durante todo o tempo em que desempenha sua
atividade diária – e já vimos que esta não se limita aohorário de trabalho –, o
jornalista seleciona e opta’ (DINES: 2004, p. 137).
Foi também Alberto Dines quemchamou a atenção para o fato de o jor-
nalismo ser essencialmente um “serviço público”. Já naapresentação do Ob-
servatório da Imprensa1, que viria a criar em 1996, mais de 20 anos depois

198
da primeira edição do livro da citaçãoacima, de 1974, esclarece que o foco do
Observatório será o olhar sobre esse “serviço público”.
Em obra seminal, Adelmo Genro Filho (989) vê no jornalismo um po-
tencial valor na perspectiva daemancipação humana, como, por exemplo,
ao observar que a impossibilidade da objetividade pode servista como “sinal
da potência subjetiva do homem diante da subjetividade”. Em 2007, Sylvia
Moretzsohn,em um primeiro estudo mais denso sobre a obra de Adelmo Genro
Filho, observou que o jornalismo écentrado no singular. Esta percepção ofe-
rece uma possibilidade de uma alternativa ao fazer jornalísticomais completa,
subvertendo a lógica tradicional consagrada no conceito de “pirâmide inver-
tida”. A estenovo olhar de Adelmo, Sylvia avança em sua elaboração focando
na ideia de “jornalismo comoesclarecimento”.
Em livro originário de um trabalho sistemático de pesquisa realizado
nos Estados Unidos por um grupochamado de “jornalistas preocupados”, Ko-
vach e Rosenstiel (2003) listam resultado de pesquisa comcolegas referentes
ao que consideram elementos do jornalismo. A questão dos direitos huma-
nos nãoaparece diretamente na obra por tratar-se de trabalho realizado nos
EUA, ainda no final do século passadomas, principalmente, por focar em
profissionais que trabalham no chamado jornalismo de referência,também
conhecidos como qualitypapers. Mas vale observar a ideia clara que fazem
de si mesmos e do público:

Embora os jornalistas se sintam incomodados em definir o que fazem,


eles concordam num pontofundamental, que é a finalidade do que fa-
zem. Quando começamos, em 1997, a mapear o territóriohabitual dos
profissionais de imprensa, esta foi a primeira resposta que ouvimos:
“A meta principal dojornalismo é contar a verdade de forma que as
pessoas disponham de informação para sua própriaindependência”. Esta
frase é de Jack Fuller, escritor, romancista, advogado e presidente do
TribunePublishingCompany, que edita o Chicago Tribune (KOVACH; RO-
SENSTIEL: 2003, p. 34).

Já no final do livro, tratam do que apresentam como “obrigação com sua


consciência. O trecho é longo,mas merece transcrição:

199
Todos os jornalistas – da redação à sala da diretoria – devem ter um
sentidopessoal de ética e responsabilidade – uma bússola moral. Mais
ainda, eles tem uma responsabilidade dedar voz, bem alta, a sua cons-
ciência e permitir que outros ao seu redor façam a mesma coisa. Para
queisso aconteça, uma redação aberta é essencial para por em prática
todos os princípios discutidos nestelivro. Inúmeras barreiras dificultam
a tarefa de produzir notícias exatas, justas, equilibradas, dirigidas aoci-
dadão, independentes e corajosas. O esforço, porém, começa mal quan-
do não existe uma atmosfera quepermita às pessoas desafiar as ideias
em circulação, as percepções e os preconceitos. É preciso que osjorna-
listas se sintam livres, até mesmo encorajados, a falar alto e dizer: “Esta
matéria me parece racista”,“Chefe, você está tomando a decisão errada”.
Somente uma redação onde todos podem emitir seusdiversos pontos de
vista as notícias terão alguma possibilidade de antecipar e refletir, com
exatidão, ascrescentes e diversas perspectivas e necessidades da cultura
americana (KOVACH; ROSENSTIEL: 2003, p. 274).

Esta premissa da ética é fundamental. Impossível pensar em direitos


humanos sem umentendimento dos pressupostos morais que os sustentam.

2. Ataques ao PNDH-3

O caso da cobertura jornalística do lançamento do III Plano Nacional de Direi-


tos Humanos (PNDH-3), no final de 2009 e início de 2010, foi bem emblemá-
tico. Recebeu uma abordagem preconceituosa, sem a percepção da dimensão
ampla e universal dos direitos humanos. Tal abordagemdeveu-se a dois fatores:

• os interesses privados dos proprietários de veículos, que viram no


PNDH-3uma ameaça a suas práticas abusivas; e
• a um quase total desconhecimento dos profissionais deimprensa so-
bre a temática dos direitos humanos.

200
A difusão e compreensão ampla dos direitos humanos norteia a prática
do Estado brasileiro desde apromulgação da Constituição de 1988. É uma ação
que vai além dos governos, tanto que é clara apercepção que o PNDH-3 se
constitui em um avanço linear em relação aos dois anteriores, estesproduzidos
no governo Fernando Henrique Cardoso.
A despeito destes movimentos, o Brasil avançou pouco na produção de
uma real “cultura de direitoshumanos”. A prática de torturas mantém-se como
atividade corrente em dependências policiais. Preconceitos contra o negro, o
pobre, a mulher, homossexuais e tantos outros grupos sociais continuamarrai-
gados na sociedade. E é perceptível que estes preconceitos são realimentados
pelo que se podechamar de “sistema midiático”.
Ainda sobre a enxurrada de posicionamentos corporativistas contra o
PNDH-3, vale lembrar a cobertura do Jornal Nacional, da TV Globo, em 16 de
março de 2010, quando criticou a proposta da criação de uma regulamentação
do artigo 221 da Constituição – já previsto na mesma –, que imporia sanções
para concessionárias de rádio e TV que o violassem. Medida semelhante é
regulamentada para todos os demais serviços sob concessão do Estado, como
educação (ex.: fechamentos de escolas), saúde (ex.: intervenção em hospitais),
transporte (ex.: renovação de frota de ônibus), combustíveis (ex.: porcentagens
de etanol e gasolina) e vários outros.
Há ainda outra proposta no PNDH-3, esta falando mais fundo nos bolso
das concessionárias de rádio e TV: “suspender patrocínio e publicidade ofi-
cial em meios que veiculam programações atentatórias aos direitos humanos”
(SECRETARIA:2009, p. 167). Para quem acha que “bandido bom é bandido
morto”, banaliza o uso de câmeras escondidas e faz apologia cotidiana da
violência, realmente, trata-se de uma grande ameaça.
O fato de o PNDH ter nascido não da cabeça de meia dúzia de tecno-
cratas, mas de um conjunto de debates com parte da sociedade diretamente
interessada nas questões de direitos humanos já é um grande avanço. Mes-
mo que tenha sido uma parcela ínfima da sociedade a participar, já revela
que o caminho é este. No caso específico da mídia como um dos elementos
a serem tratados como fundamentais – mesmo tendo sido listada como a 22ª
diretriz entre 25 – mostra uma preocupação de pessoas ligadas a diversos

201
outros setores neste ponto tão presente na vida de cada um, mas que nor-
malmente não é debatido.
Os pontos listados nas recomendações são exatamente aqueles que pes-
soas e grupos ligados ao tema da democratização das comunicações vêm de-
batendo e reivindicando desde meados dos anos 1980, mas que quase nunca
avançavam para os demais setores da sociedade. Então, ver agora organiza-
ções de mulheres, negros, índios, deficientes, homossexuais, igrejas, educado-
res etc., incluindo temas como conteúdos de televisão, concessões ou publici-
dade em seus debates, para mim, representa um grandeavanço. Quanto ao que
o PNDH-3 vem se tornando efetivamente em termo de políticas públicas ou até
regulamentações, isso já é uma outra discussão.
Apesar de tudo, o PNDH-3 foi até modesto em termos de propostas
ligadas ao tema mídia e direitos humanos. Se somente aquilo que já esta na
Constituição levanta tantos questionamentos por parte dos empresários do
setor, o que ocorreria se todos os pontos realmente de interesse público fos-
sem colocados em pauta? A base da reclamação dos grupos midiáticos está
na lógica em si da atividade de mídia como algo de interesse privado: ma-
ximização dos lucros, redução de custos e nada de riscos. Tais elementos es-
tão embutidos nos programas televisivos que agridem claramente os direitos
humanos: têm grande audiência, e com isso uma grande receita publicitária;
são relativamente baratos de se produzir; e requentam fórmulas que histori-
camente já fizeram sucesso.
Qualquer ação que se oponha aos baratos-repetitivos-lucrativos produtos
midiáticos são tratados como uma ameaça. E para se “defenderem” dessa ame-
aça, empresários lançam mão de uma retórica do discurso-escudo. Colocam-se
na posição de vítimas e de únicos defensores da liberdade de expressão, dando
sempre como exemplo a censura exercida no período da ditadura (REBOUÇAS:
2006). No caso do PNDH-3 não há nada de censura, como não havia na classi-
ficação indicativa proposta pelo Ministério da Justiça, tampouco na criação do
Conselho Federal de Jornalismo, menos ainda nas proposta da Agência Nacio-
nal de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Saúde e da Organização
Pan-Americana de Saúde (Opas) para regulamentar a publicidade de alimentos
que causam obesidade em crianças.

202
3. Cortando pela raiz: o caso do Espírito Santo 2. Participantes efetivos do Grupo de Tra-
balho: Aliança Cristã Evangélica Brasileira;
Comissão de Direitos Humanos da Assem-
Por mais que o III Plano Nacional de Direitos Humanos tenha sido duramente
bleia Legislativa do Espírito Santo – ALES;
criticado pela grande mídia e por setores tradicionais, a Secretaria Especial de Associação dos Municípios do Espírito San-
Direitos Humanos da Presidência da República manteve sua posição na manu- to – AMUNES; Conselho Estadual de Direi-
tos Humanos - CEDH/ES; Conselho Nacio-
tenção do texto do Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, que havia
nal de Igrejas Cristãs do Brasil - CONIC-ES;
saído do acumulo de dois anos de debates e das resoluções da 11ª Conferência Conselho Regional de Psicologia - CRP-16;
Nacional de Direitos Humanos, alémde propostasaprovadas nas mais de 50 con- Conselho Regional de Serviço Social -
ferências nacionais temáticas, promovidas desde 2003 nas áreas de segurança CRESS-17; Defensoria Pública do Estado do
Espírito Santo – DPES; Federação Espírita
alimentar,educação, saúde, habitação, igualdade racial, direitos da mulher, juven- do Estado do Espírito Santo – FEEES; Fó-
tude, crianças e adolescentes,pessoas com deficiência, idosos e meio ambiente. rum Capixaba em Defesa da Liberdade e
No caso do processo de elaboração do Programa Estadual de Direitos da Tolerância Religiosa; Instituto Jones dos
Santos Neves – IJSN; Ministério Público do
Humanos (PeDH-ES) e do Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos
Espírito Santo – MPES; Ministério Público
(PeEDH-ES), no Espírito Santo, a situação foi bem diferente. O Governo do Es- Federal: Procuradoria da República no E.
tado optou por se antecipar às críticas, e por conta própria retirou pontos que do Espírito Santo MPF/ES; Ordem dos Ad-
vogados do Brasil - OAB-ES; Secretaria de
haviam sido elaborados a partir de uma série de reuniões e audiências públicas
Estado da Educação – SEDU; Secretaria de
do grupo de trabalho2 instituídoem 9 de janeiro de 2012 no Decreto nº 2944-R Estado da Justiça – SEJUS; Secretaria de Es-
pelo próprio governador Renato Casagrande. tado da Segurança Pública e Defesa Social
Incialmente programado para ser lançado em 10 de dezembro de 2012, – SESP; Secretaria de Estado de Assistência
Social e Direitos Humanos – SEADH; Se-
em solenidade no Palácio Anchieta, sede do Governo do Espírito Santo, a “ver-
cretaria Municipal de Cidadania e Direitos
são 4.0” do grupo de trabalho que contava com ampla representatividade da Humanos de Vitória - SEMCID/PMV; Sindi-
sociedade civil e de órgãos governamentais, após a inesperada ausência do go- cato dos Jornalistas Profissionais no Estado
do Espírito Santo - SINDIJORNALISTAS-ES;
vernador no evento, foi comunicado um adiamento sine datado lançamento.
Superintendência Estadual de Comunica-
Com a pressão das entidades envolvidas e até a ameaça de greve de fome ção Social – SECOM e Universidade Federal
do presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Gilmar Ferreira, em 23 do Espírito Santo - UFES
de janeiro de 2013 o governador anunciou a criação de outro grupo de trabalho,
desta vez com o objetivo de analisar tecnicamente a exequibilidade das diretri-
zes e recomendações do PeDH-ES e do PeEDH-ES, tal grupo seria encabeçado
pela Procuradoria-Geral do Estado. O prazo do trabalho seria de três meses. Pas-
sados exatos seis meses, para o dia 23 de julho foi marcada a apresentação da
análise ao grupo de trabalho original, do que viria a ser chamada de “versão 5.0”.
O ocorreu na sede da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direi-
tos Humanos na manhã daquele 23 de julho merece um parênteses: diante de
boa parte dos representantes das entidades que elaboraram o texto original do

203
PeDH-ES e do PeEDH-ES, com as versões impressas sobre a mesa, o projetor
já ligado para mostrar ponto-a-ponto as mudança, o subsecretrário de Direitos
Humanos Perly Cipriano, cinco minutos antes do início da apresentação, rece-
beu um telefonema solicitando que comunicasse aos presentes que a reunião
estava suspensa. Em 2 de setembro de 2013, um arquivo em PDF com a “versão
5.0” foi enviado aos membros do Conselho Estadual de Direitos Humanos, mas
sem anúncio de data para debate do mesmo.
No entanto o que mais surpreendeu, foi no dia 2 de dezembro de 2013,
quando da abertura da 5ª Semana Estadual de Direitos Humanos, a entrega
para algumas pessoas de um caderno com o texto impresso da “versão 6.0” do
PeDH-ES e do PeEDH-ES. Não houve um anúncio formal de que esta seria a
versão definitiva, sequer que seria publicada no Diário Oficial, além do detalhe
de não mais constar os nomes do governador e do vice-governador no expe-
riente, como havia nas versões anteriores.
Especificamente para o tema da mídia e direitos humanos, na sequência
será mostrada a involução das diretrizes consensuadas pelo grupo de trabalho
original ao longo de um ano. Em destaque, estão as exclusões decorrentes das
“versões 5.0”, de 2 de setembro de 2013; e “6.0”, de 2 de dezembro de 2013:

PLANO ESTADUAL DE EDUCAÇÃOEMDIREITOSHUMANOSDOESPÍRITO


SANTO - PEEDH-ES (“VERSÃO 4.0”, DE 10 DE DEZEMBRO DE 2012)

Área 5 - EDUCAÇÃO E MÍDIA

Ações Programáticas

5.1 Encorajar o estudo e a exploração prática das possibilidades das mí-


dias ditas não convencionais ou novas mídias sociais na divulgação da
temática dos Direitos Humanos, desde seus princípios e fundamentos,
inclusive através das redes sociais.

204
5.2 Criar bancos de dados e portal sobre Direitos Humanos, com par-
ceria nospoderes Legislativo e Judiciário e na sociedade civil, com as
seguintes características:
a. informações claras às cidadãs e cidadãos sobre seus direitos;
b. canais para a denúncia de violações;
c. acesso a textos didáticos e legislação pertinente ao tema;
d. relação de profissionais e defensores(as) de Direitos Humanos;
e. informações sobre políticas públicas sendo desenvolvidas nos âmbitos
municipal, estadual e federal.

5.3 Apoiar iniciativas que facilitem a regularização dos meios de co-


municação de caráter comunitário, como estratégia de democratização
da informação.

5.4 Promover seminários, oficinas e cursos sobre Direitos Humanos e Mídia


abertos a todas(os) as(os) profissionais de educação e de comunicação.

5.5 Incentivar professores e professoras, estudantes de comunicação social e


especialistas em mídia a desenvolver pesquisas na área de Direitos Humanos.

5.6 Incentivar pesquisas regulares que possam identificar formas, cir-


cunstâncias, causas e características de violações dos Direitos Humanos
pela mídia.

5.7 Criar linha de pesquisa específica sobre destinada à área de Mídia e


Direitos Humanos nos organismos de fomento.(Excluído na “Versão 6.0”)

5.8 Acompanhar a implementação da Portaria n° 310 de 28/06/2006


do Ministério das Comunicações, sobre emprego de legenda oculta,
janela com intérprete de Libras, dublagem e audiodescrição de cenas
e imagens na programação regular da televisão, de modo a garantir o
acesso das pessoas com deficiência auditiva e visual à informação e à
comunicação.(Excluído na “Versão 6.0”)

205
5.9 Propor projeto de Lei estadual e fomentar a criação de leis mu-
nicipais que interditem a liberação de verbas de publicidade oficial
a veículos de comunicação listados por violação de Direitos Hu-
manos por instâncias competentes de monitoramento.(Excluído na
“Versão 6.0”)

5.10 Incentivar a criação de mecanismos de monitoramento da mídia


e realizar campanhas para orientar cidadãs, cidadãos e entidades a de-
nunciar eventuais abusos e violações dos Direitos Humanos cometidos
pela mídia, para que os autores sejam responsabilizados na forma da
lei.(Excluído na “Versão 6.0”)

5.11 Apoiar iniciativas federais no sentido de maior responsabilização


do setor de comunicação social.(Excluído na “Versão 6.0”)

5.12 Fomentar a criação e a acessibilidade de Observatórios Sociais


estadual e municipais destinados a monitorar os conteúdos da mídia
em Direitos Humanos. (Excluído na “Versão 6.0”)

5.13 Propor a inclusão da temática Direitos Humanos e Mídia como tema


transversal nas diretrizes curriculares da educação básica, profissional e
outras modalidades de ensino.

5.14 Incluir o desenvolvimento da habilidade de leitura crítica da mídia


na perspectiva dos Direitos Humanos nos cursos e programas de for-
mação inicial e continuada dos e das profissionais da Educação e áreas
afins, tendo em vista sua qualificação para lidar com a inclusão curric-
ular do tema.

5.15 Propor concursos de trabalhos (redações, desenhos, monografias,


audiovisuais, artes cênicas e outros) sobre meios de comunicação e Di-
reitos Humanos, nos níveis fundamental, médio e superior, em âmbito
estadual e regional.

206
5.16 Estabelecer parcerias entre o Governo do Estado, organizações
comunitárias e empresariais, tais como rádios, canais de televisão e
agências de publicidade, bem como organizações da sociedade civ-
il, para a produção e difusão de programas, campanhas e projetos
de comunicação na área de Direitos Humanos, levando em consider-
ação o parágrafo 2° do artigo 53 do Decreto Presidencial nº 5.296 de
02/12/2004 (Decreto da Acessibilidade), sendo estas ações obrigatórias
para os veículos estatais.

5.17 Rever as diretrizes e planejamento dos veículos estatais de


comunicação no sentido de dotar seu conteúdo das qualidades
necessárias para servir de padrão em temáticas de defesa e promoção
dos Direitos Humanos, tanto pela criação de programas específicos
quanto pela compatibilização de toda a programação com os valores
e objetivos dos Direitos Humanos. (Substituído na “Versão 6.0” pelo
texto abaixo)

5.11 Orientar os veículos estatais de comunicação no sentido de dot-


arem seu conteúdo das qualidades necessárias para servir de padrão
em temáticas de defesa e promoção dos Direitos Humanos, tanto pela
criação de programas específicos quanto pela compatibilização de toda
programação com valores e objetivos dos Direitos Humanos.

5.18 Propor e estimular, nos meios de comunicação, a realização de pro-


gramas de entrevistas e debates sobre Direitos Humanos e criação de
editorias especializadas no tema, que envolvam entidades comunitárias
e populares, levando em consideração as especificidades e as linguagens
adequadas aos diferentes segmentos do público, tornando tais ações pri-
oritárias, como objeto de política oficial, nos veículos estatais.

5.19 Sensibilizar diretoras e diretores de órgãos da mídia para a inclusão


dos princípios fundamentais de Direitos Humanos em seus manuais de
redação e orientações editoriais.

207
5.20 Sensibilizar proprietários e proprietárias de agências de publicidade
e de veículos de comunicação, bem como as associações de classe da
área da comunicação social, para a produção e veiculação voluntárias de
conteúdos de promoção, informação, educação e entretenimento que se
constituam em campanhas de difusão dos valores e princípios relaciona-
dos aos Direitos Humanos.

5.21 Propor às associações de classe e dirigentes de meios de comunicação


a veiculação gratuita dos conteúdos das campanhas acima referidas, como
forma de parceria com entidades de proteção dos Direitos Humanos.

5.22 Definir parcerias com entidades associativas de empresas da área de


mídia, profissionais de comunicação, entidades sindicais e populares para
a produção e divulgação de materiais relacionados aos Direitos Humanos.

5.23 Firmar convênios com gráficas públicas e privadas, além de outras


empresas, no sentido de produzir edições populares de códigos, estatutos
e legislação em geral relacionada a direitos, visando à orientação da pop-
ulação sobre seus direitos e deveres, com ampla distribuição gratuita em
todo o estado – considerando formatos tais como cartilhas, calendários,
gibis, inclusão em capas de cadernos escolares e em livros didáticos,
paradidáticos e em material de reforço escolar, entre outros, contemplan-
do também a acessibilidade.

5.24 Fomentar o tratamento dos temas de Educação em Direitos Humanos


em produções artísticas culturais e publicitárias, em formas tais como artes
plásticas e cênicas, multimídia, literatura, música, vídeo, cinema e outras
formas de audiovisual, entre outros, com temas locais, regionais e nacio-
nais, para veiculação tanto em formas e meios tradicionais quanto nas no-
vas mídias, inclusive nos meios de comunicação de massa, dando atenção
à garantia de espaço para isso nas emissoras públicas de rádio e televisão.

5.25 Incentivar e apoiar a produção de filmes e material audiovisual


sobre a temática dos Direitos Humanos, inclusive os voltados à recon-

208
strução da história recente do autoritarismo no Brasil, tendo em vista sua
utilização na Educação em Direitos Humanos, entre outros fins.

5.26 Criar mecanismos de estímulo, tais como um “Prêmio de Mídia Ci-


dadã”, destinados às agências de publicidade, veículos, profissionais e
estudantes de comunicação, no sentido da produção de conteúdos de
promoção, informação, educação e entretenimento adequados a todos os
meios de comunicação, que difundam valores e princípios relacionados
aos Direitos Humanos e à construção de uma cultura transformadora
nessa área de forma continuada.

PROGRAMA ESTADUAL DE DIREITOS HUMANOS DO ESPÍRITO SAN-


TO – PEDH-ES (“VERSÃO 4.0”, DE 10 DE DEZEMBRO DE 2012)

EIXO 5 - Educação, Cultura e Pesquisa em Direitos Humanos

Diretriz 5.5 - Direito ao acesso à informação e à comunicação democráti-


ca para a consolidação de uma Cultura dos Direitos Humanos

OBJETIVO 5.5.1
Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e
o cumprimento de seu papel na promoção da cultura como Direito Hu-
mano e de uma Cultura dos Direitos Humanos

Ações programáticas

5.5.1.1 Desenvolver ações para garantir o conhecimento e a realização


dos objetivos e ações previstas na Área 5 do Plano Estadual de Educação
em Direitos Humanos (PeEDH).

5.5.1.2 Propor a criação de marco legal, nos termos do Artigo 221 da


Constituição Federal, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos
nos serviços de radiodifusão concedidos (rádio e televisão), permitidos
ou autorizados. (Excluído na “Versão 5.0”)

209
5.5.1.3 Apoiar iniciativas federais no sentido de maior responsabili-
zação do setor de comunicação social.(Excluído na “Versão 5.0”)

5.5.1.4 Promover o diálogo com o Ministério Público para proposição


de ações objetivando a suspensão de programação e publicidade aten-
tatórias aos Direitos Humanos.(Excluído na “Versão 6.0”)

5.5.1.5 Suspender patrocínio e publicidade oficial em meios que veic-


ulam programações atentatórias aos Direitos Humanos. (Excluído na
“Versão 6.0”)

5.5.1.6 Desenvolver programas de formação nos meios de comunicação


públicos como instrumento de informação e transparência das políticas
públicas, de inclusão digital e de acessibilidade.

5.5.1.7 Promover a eliminação das barreiras que impedem o acesso


de pessoas com deficiência sensorial à programação em todos os mei-
os de comunicação e informação, em conformidade com o Decreto
nº 5.296/2004 e a Portaria n° 310 de 28/06/2006 do Ministério das
Comunicações, bem como acesso a novos sistemas e tecnologias, in-
cluindo a internet.

5.5.1.8 Incentivar a inclusão da disciplina Direitos Humanos nos cursos


de Comunicação Social em todo o estado. (Excluído na “Versão 5.0”)

5.5.1.9 Implementar programa de sensibilização para profissionais de


comunicação, voltado para a promoção, proteção e defesa dos Direitos
Humanos nos meios de comunicação.

5.5.1.10 Criar o Conselho Estadual de Comunicação Social, com o ob-


jetivo de formular, implementar, monitorar e avaliar a política estad-
ual de comunicação social. (Excluído na “Versão 6.0”)

210
OBJETIVO 5.5.2 3. Devido a esta série de alterações, um dos
Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à infor- autores deste artigo, representante da UFES
no Conselho Estadual de Direitos Humanos
mação
e membro do grupo de trabalho original
para elaboração do PeEDH e PeDH, solicitou
Ações programáticas formalmente ao Governo do Estado a reti-
rada de seu nome do documento final que
vier a ser publicado.
5.5.2.1 Fomentar o acesso de estudantes, professores(as) e demais profis-
sionais da educação às tecnologias da informação e comunicação.

5.5.2.2 Promover parcerias com entidades associativas de mídia, profis-


sionais de comunicação, entidades sindicais e populares para a produção
e divulgação de materiais sobre Direitos Humanos.

5.5.2.3 Incentivar pesquisas regulares que possam identificar formas,


circunstâncias e características de violações dos Direitos Humanos na
mídia.

5.5.2.4 Promover ações de divulgação sobra a importância dos direitos ao


bem-estar social e desenvolvimento econômico, como acesso a educação,
a saúde, ao meio ambiente sadio, a habitação, ao transporte e a cultura.

5.5.2.5 Promover campanhas e ações de divulgação sobre a importância


da preparação de pais e mães para a construção de uma sociedade não
violenta e respeitadora dos Direitos Humanos, através da qualidade do
acolhimento dado a seus filhos e filhas.

5.5.2.6 Promover a divulgação junto à população de informações sobre os


seus direitos e deveres como cidadãos e cidadãs, bem como sobre os me-
canismos de defesa, proteção e promoção postos à sua disposição para fazer
respeitá-los, através de cartilhas, folhetos, campanhas nos meios de comu-
nicação.

211
5.5.2.7 Apoiar a regularização das rádios comunitárias e promover
incentivos para que se afirmem como instrumentos permanentes de
diálogo com as comunidades locais.(Excluído na “Versão 6.0”)

5.5.2.8 Inserir a temática dos Direitos Humanos como pauta perma-


nente em todos os veículos de comunicação do governo estadual. (Sub-
stituído na “Versão 6.0” pelo texto abaixo)

5.5.2.07 Estabelecer o respeito aos Direitos Humanos, sua defesa e pro-


moção, como diretriz, e a temática dos Direitos Humanos como pauta
permanente em todos os veículos de comunicação subordinados direta ou
indiretamente ao Poder Executivo estadual.

5.5.2.9 Promover ações de divulgação da atuação do Conselho Estadual


de Direitos Humanos.

As exclusõesafetaram diretrizes e ações pontuais de:

• suspensão de verbas publicitárias oficiais para a o financiamento de


programações com desrespeitos aos direitos humanos;
• inserção da temática dos direitos humanos nas pautas de veículos
midiáticos do Governo do Estado;
• diálogo com Ministério Público sobre denúncias de conteúdos midi-
áticos atentatórios aos direitos humanos;
• acessibilidade com uso de legenda oculta e áudio descrição;
• incentivo a pesquisas na temática de mídia e direitos humanos;
• incentivo ao monitoramento da mídia para denunciar violações;
• marco legal estadual nos termos do Artigo 221 da Constituição Federal;
• criação de um Conselho Estadual de Comunicação; e
• apoio à radiodifusão comunitária.

Diante disso, fica clara a política da “não política” para a temática de


mídia edireitos humanos por parte do Governo do Estado do Espírito Santo. A

212
pressão de grupos de interessepouco preocupados com o respeito aos direitos
humanos também influenciou trechos do texto original do PeEDH-ES e do
PeDH-ES nas área de moradores de rua, gays, lésbicas, bissexuais e transgêne-
ros, bem como manifestações culturais e religiosas de raiz africana3.

3. Caminhos e possibilidades

Mas nem tudo são problemas. Em algumas áreas, é possível observar ações
importantes em preocupação com a temática da mídia e direitos humanos. O
exemplo mais evidente é o da Agência de Noticias dos Direitos da Infância
(Andi), focadona criança e no adolescente desde o início dos anos 1990. A
Andi conseguiu agregar uma razoável“massa crítica” no acompanhamento de
noticiários sobre o tema. E as ações concretas na superação dosproblemas tor-
naram-se referenciais. As oficinas com jornalistas e o prêmio “Jornalista Ami-
go da Criança”são experiências que merecem replicação e aperfeiçoamento.
Ainda no campo da defesa dos direitos da criança, tendo a mídia como
foco, há o Instituto Alana, com uma série de iniciativas de advocacy com es-
pecificidade na questão do consumismo infantil provocado pela publicidade; e
a Cipó – Comunicação Interativa, que realiza estudos, ações e seminários pela
garantia dos direitos de crianças, adolescente e jovens, com destaque para as
denúncias contra os programas policialescos de rádio e televisão na Bahia.
Em âmbito mais geral há o Coletivo Intevozes, que vem organizando
ciclos de formação em mídia e educação em direitos humanos, além de ser
um das principais entidades na defesa do conceito do direito humano à co-
municação. Na mesma linha, outra entidade atuante no país é a ONG Artigo
XIX, que organiza debates e ações sobre a aplicação do princípio especifico da
comunicação na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Outro exemplo a
ser enfatizado é o do Instituto Vladimir Herzog, entidade criada em 2009 com
a intenção de contribuir para a reflexão e produção de informação que garanta
o direito à vida e o direito à justiça.
A iniciativa que concentrava boa parte dessas atividades, e ainda agrega-
va vários outros setores da sociedade, era a Campanha “Quem financia a bai-
xaria é contra a cidadania”, vinculada à Comissão de Direitos Humanos da Câ-

213
mara dos Deputados. Reunindo políticos, acadêmicos, psicólogos, jornalistas,
advogados, igrejas progressistas, movimentos negro e LGBT, e mais uma gama
de atores sociais, a Campanha… ganhou destaque a tratar diretamente dos con-
teúdos de telenovelas, programas de auditório, publicidades e telejornais, ten-
do conseguido uma série de ações que levaram a mudanças nas programações
de grande emissoras de TV. Desde que uma ala político/religiosa conservadora
assumiu o comando da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputa-
dos, uma década de conquistas foi engavetada (REBOUÇAS, 2013).
Para dar uma dimensão de como o tema da mídia e dos direitos humanos
vem ganhando cada vez mais espaço, basta observar a programação do Fórum
Mundial de Direitos Humanos, realizado em Brasília no inicio de dezembro de
2013. Em três dias, foram realizadas XX mesas e seminários específicos:

• Uso da Lei de Acesso à Informação para garantia dos


direitos humanos
• Comunicação e direitos humanos - experiências de comunicação
e direitos humanos no mundo digital e convergente
• Safernet: promoção, defesa e educação em direitos humanos na
Internet no Brasil
• A democratização da comunicação, ontem e hoje
• Mídias, redes sociais e direitos de crianças e adolescentes
• A importância da rádio comunitária no desenvolvimento
das comunidades
• Rádio livre e ativismo criativo
• Seminário: Mídia, diversidade religiosa e experiências
de grupos neo-pagãos e outras minorias
• Cultura, juventude e comunicação: diálogos de cidadania
• A luta pela democratização da comunicação e o contexto
da radiodifusão comunitária
• Infância e comunicação: a imprensa e o debate sobre o
limite da idade penal
• Infância e comunicação
• Oficina prática de proteção à comunicadores ameaçados de morte

214
• O projeto de Lei da Mídia Democrática como instrumento
de luta pelo direito humano à comunicação no Brasil
• Princípios da internet e o direito à privacidade e à
liberdade de expressão
• Estratégias de proteção à comunicadores
• Como utilizar as mídias sociais produzindo e veiculando uma mo-
bilização social dinâmica, interessante e atraente para os direitos
humanos LGBT?
• Roteiro de debates: os direitos Humanos e a diversidade como
pilares para a construção da comunicação pública
• O direito à liberdade de expressão por intermédio das
concessões de rádios comunitárias
• Medios de comunicación para el futuro
• Comunicação e direitos humanos
• Fui processado. O que eu faço?
• Como os meios de comunicação em geral podem contribuir
para a conscientização sobre os direitos humanos e aumentar
a autoestima em LGBT?
• Infância e comunicação: a imprensa e o debate sobre o
limite da idade penal

Houve ainda uma apresentação teatral –A covardia do monopólio e repres-


são– sobre a ação da polícia na repressão às rádios comunitárias; e o lançamen-
to do livroPorumaculturaemDireitosHumanos: Direitoà opinião e expressão.
Já no Espírito Santo, há na Universidade Federal, o grupo de pesquisa e
ação Observatório da Mídia: direitos humanos, políticas, sistemas e transpa-
rência, que vem realizando projetos, eventos, seminários e estudos sobre vio-
lações aos direitos humanos na mídia. Mais recentemente, o Observatório está
executando um projeto de extensão com o título Capacitação de Jornalistas
para o Respeito e Promoção dos Direitos Humanos. Trata-se de parceria com o
Sindicato dos Jornalistas e a Secretaria Estadual de Assistência e Direitos Hu-
manos para a realização de oficinas em quatro cidades polo (Vitória, Cachoeiro
de Itapemirim, Colatina e São Mateus) divididas em três módulos. O projeto foi

215
classificado em primeiro lugar nacionalmente na categoria Direitos Humanos
em edital do Ministério da Educação.
Uma postura presente em toda a ação desenvolvida por esta iniciativa
do Observatório da Mídia é preconizada porPaulo Freire (1983) em sua obra
Extensão ou comunicação?. O que se pretende é o diálogo, muitomais do que
a mera extensão extra-muros do “conhecimento” gerado na universidade. A
dialógica e adialética freire-habermasiana são compartilhadas por estudantes,
educadores e pesquisadores deComunicação, profissionais da imprensa e mili-
tantes de direitos humanos de forma profunda e continuada.

Para algumas inconclusões

O fato de o tema da mídia e direitos humanos estar ganhando mais volume


recentemente não deve ser visto como uma vitória. Ainda há muito a ser fun-
damentado, agregando às iniciativas da militância conceitos teóricos e dados
empíricos que embasem as próximas disputas. Governos, empresas de mídia e
a grande maioria da sociedade ainda reproduzem antigas máximas de defesa
da liberdade de expressão acima de qualquer outro direito. Isso porque o tema
dos direitos humanos não tem espaço no debate público, nas escolas e pouco
menos nos meios de comunicação.
O caso da opção do Governo do Estado do Espírito Santo de excluir pon-
tos tão importantes do Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos e do
Programa Estadual de Direitos Humanos é bem sintomático desta manutenção
do estado das coisas. Isso é corroborado diariamente pelas programações poli-
cialescas que não tratam do âmago da problemática dos direitos humanos, que
somente espetacularizam a violência em busca de uma audiência vítima de um
constante assédio moral midiatizado.
Iniciativas como da Andi, Instituto Alana, Cipó, Artigo XIX, Intervozes
e Observatório da Mídia, entre outros, terão êxito apenas quando a sociedade
tomar consciência de seus direitos, sabendo que a comunicação é um serviço
público – mesmo que administrado por uma empresa privada.
O caminho é longo e duro. Os interesses comerciais e político-partidários
são fortes. Mas tudo em nome da defesa dos direitos humanos vale a pena.

216
Reênciasfer ácasbilogr

DINES, A.. O papel do jornal e a profissão de jornalista. 9. ed. São Paulo: Summus, 2004.

FEDERAÇÃO Nacional dos Jornalistas. Código de ética dos jornalistas brasileiros.


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FREIRE, P. Extensão ou comunicação? 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

GENRO FILHO, A. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo.


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CHRISTOFOLETTI, R., MOTTA, L.G. (orgs.). Observatórios de mídia: olhares da cida-
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HABERMAS, J.. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma


categoria da sociedadeburguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

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KUCINSKI, B.. Jornalismo na era virtual: ensaios sobre o colapso da razão ética. São
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MORETZSOHN, S.. Pensando contra os fatos: jornalismo e cotidiano: do senso comum


ao senso crítico. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

REBOUÇAS, E.. O discurso/escudo da liberdade de expressão dos “donos” da mídia. In:


CHAGAS, C.; ROMÃO, J. E.; LEAL, S. (Org.). Classificação indicativa no Brasil: de-
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217
_____ . Um caminhopossívelparaa participação da sociedadenos debates sobre o conteú-
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Financia a Baixaria é Contra a Cidadania. Brasília: EdiçõesCâmara, 2013, p. 36-57.

SECRETARIA de Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Espíri-


to Santo. PlanoEstadual de Educação em Direitos Humanos do Espírito Santo:
versão 4.0, proposta para oficialização em10 de dezembro de 2012. Vitória: SEADH,
Dez. 2012.

_____ . Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Espírito Santo:


versão 5.0, proposta para oficialização em 10 de dezembro de 2013. Vitória: SEADH,
Ago. 2013.

_____ . Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos do Espírito Santo:


versão 6.0, proposta para oficialização em 10 de dezembro de 2013. Vitória: SEADH,
Dez. 2013.

_____ . Programa Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo: versão 4.0,


proposta para oficializaçãoem 10 de dezembro de 2012. Vitória: SEADH, Dez. 2012.

_____ . Programa Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo: versão 5.0,


proposta para oficializaçãoem 10 de dezembro de 2013. Vitória: SEADH, Ago. 2013.

_____ . Programa Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo: versão 6.0,


proposta para oficializaçãoem 10 de dezembro de 2013. Vitória: SEADH, Dez. 2013.

SECRETARIA Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. PNDH-3: De-


creto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Brasília: SEDH, 2009.

218
Paulo Abrão
Secretário Nacional de Justiça, Presidente da Comissão de Anistia do Minis-
tério da Justiça, Professor da Faculdade de Direito da PUCRS e do Programa
Europeu de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Pablo de
Olavide (Espanha).

Marcelo D. Torelly
Pesquisador Visitante do Institute for Global Law and Policy, Harvard Law
School (Estados Unidos).

13
1. Uma versão anterior deste texto encon- MUTAÇÕES DO CONCEITO DE ANISTIA
tra-se publicada no apresentação da Revis- NA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO BRASILEIRA:
ta Anistia Política e Justiça de Transição,
no.07, publicada pelo Ministério da Justiça.
A TERCEIRA FASE LUTA PELA ANISTIA1
As opiniões expressas neste texto são de
seus autores, não necessariamente refletin- Paulo Abrão
do posições das instituições em que atuam.
Marcelo D. Torelly
2. Veja-se nosso: Abrão, Paulo & Torelly,
Marcelo D. “O programa de reparações
como eixo estruturante da justiça de tran- Neste breve texto procuramos sistematizar algumas teses defendidas em es-
sição no Brasil”, in: Reátegui, Felix (org.).
Justiça de Transição – Manual para a Amé-
tudos esparsos ao longo dos últimos cinco anos. Partimos da ideia de que
rica Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério o programa de reparações às vítimas da ditadura militar constitui o “eixo
da Justiça/ICTJ, 2011, pp. 473-516. O termo estruturante” da justiça de transição no Brasil2, promovendo os denominados
Justiça de Transição será utilizado em sen-
“direitos da transição3”. E, a partir daí, buscamos explicitar a ambiguidade da
tido amplo para referir-se aos mecanismos
disponíveis para lidar com o legado de vio- Lei de Anistia de 1979, enquanto processo social cujo legado e consequências
lência do passado: verdade, reparação, jus- seguem em disputa, ensejando um “paradoxo da vitória de todos”4, que se tra-
tiça e reforma das instituições.
duz em distintas concepções sobre a anistia no Brasil: de um lado, é lida como
3. Cf. Abrão, Paulo & Genro, Tarso. Os direi- impunidade e esquecimento, de outro, como liberdade e reparação5.
tos da transição e a democracia no Brasil: A aprovação da lei de anistia no Brasil em 1979, durante o regime mi-
estudos sobre a Justiça de Transição e a litar, é o marco jurídico fundante do processo de redemocratização. A forte
Teoria da Democracia. Coleção Fórum Jus-
e histórica mobilização social da luta pela anistia e pela abertura política é
tiça e Democracia, vol. 01. Belo Horizonte:
Fórum, 2012. Capítulo 2. de tal sorte que do conceito de anistia emana toda a concepção da Justiça de
Transição no Brasil. O conceito de anistia, enquanto “impunidade e esque-
4. Cf.: Torelly, Marcelo D. Justiça de Tran-
cimento” defendido pelo regime militar e seus apoiadores, seguiu estanque
sição e Estado Constitucional de Direito.
Belo Horizonte: Fórum, 2012. Capítulo 04, ao longo dos últimos anos, passando por atualizações jurisprudenciais. Por
item 4.3. outro lado, o conceito de anistia defendido pela sociedade civil na década
de 1970, anistia enquanto “liberdade”, seguiu desenvolvendo-se durante a
5. Cf.: Abrão, Paulo & Torelly, Marcelo D. democratização, consolidando-se na ideia de anistia enquanto “reparação”
“Resistance do change: Brazil’s persistent constitucionalizada no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais
amnesty and its alternatives for truth and
Transitórias de 1988.
justice”, in: Lessa, Francesca & Payne, Leigh
(org.) Amnesty in the Age of Human Rights Para além da exposição da síntese desta tese, o presente texto procurará
Accountability. Nova Iorque: Cambridge analisar também o momento atual da justiça transicional brasileira, com a
University Press, pp. 152-180 ou Payne,
articulação de novos movimentos sociais, com demandas por justiça junto ao
Leigh; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D.
(orgs.). A Anistia na Era da Responsabiliza- Supremo Tribunal Federal6 e na Corte Interamericana de Direitos Humanos7.
ção – o Brasil em perspectiva internacional Em acréscimo, serão enfocadas a nova posição da Câmara Criminal do Minis-

220
tério Público Federal8, a aprovação da Lei de Acesso à Informação9, a criação Continuação de nota 5.
da Comissão Nacional da Verdade e as primeiras condenações judiciais rela-
10 e comparada. Brasília/Oxford: Ministério
da Justiça/Universidade de Oxford, 2011.
cionadas aos crimes da ditadura militar .11
pp.212-248.
Tais elementos factuais, de acordo com o modelo de análise aqui propos-
to, consolidam a perspectiva social de uma ideia de anistia como “liberdade” e 6. Ação de Descumprimento de Preceito
como “reparação” e apontam para o surgimento de uma terceira fase de signi- Fundamental n.º 153/2008.

ficação social da ideia de “anistia” no processo transicional brasileiro, a qual 7. Caso Júlia Gomes Lund e outros vs. Brasil
chamamos de anistia enquanto verdade e justiça. (caso Araguaia). Sentença disponível em:
Estas percepções alteram, concretamente, os pressupostos da anistia en- http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/arti-
culos/seriec_219_por.pdf, bem como em:
quanto impunidade e esquecimento propagada durante o regime militar, inda
Revista Anistia Política e Justiça de Tran-
afirmada por setores e instituições conservadoras. sição, Brasília: Ministério da Justiça, n.º 04,
jul/dez 2010, pp. 402-554.

8. Cf.: 2a Câmara de Coordenação e Revisão


1. A centralidade da anistia de 1979 e sua ambiguidade de sentido Criminal. Documento n.º 02/2011. Workshop
na transição política Internacional sobre Justiça de Transição:
os efeitos domésticos da decisão da Cor-
te Interamericana de Direitos Humanos no
A compreensão do significado político e jurídico do termo “anistia” na histó-
caso Gomes Lund e outros vs. Brasil e as
ria do Brasil remete-nos, diretamente, ao contexto político de disputa entre re- atribuições do Ministério Público Federal.
gime ditatorial e a resistência política na década de 1970. Após o golpe militar Brasília, 03 de outubro de 2011. Disponí-
vel em: http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/diversos/
de 1964, que contou com o apoio de importantes setores civis, surgem diversos
justica-de-transicao/documento%202.pdf
movimentos de resistência, inclusive de formas de resistência armada que não
existiam antes do golpe, e que passam a ser utilizadas pelo regime militar em 9. Brasil. Lei 12.527 de 18 de novembro
sua autojustificação .
12 de 2011.

Com a proclamação da medida de exceção denominada Ato Institucional 10. Brasil. Lei 12.528 de 18 de novembro
n.º 05, em 13 de dezembro de 1968, a ditadura, estimulada pelo ambiente da de 2011.
Guerra Fria, passou a atuar sistematicamente na repressão de tais movimentos
11. Como na recente condenação à inde-
de resistência, gerando, inclusive, uma política oficial típica de Terror de Esta-
nização de vítimas proferida em segunda
do. Tal Política destinava-se a generalizar a tortura e a exterminar os membros instância contra Brilhante Ustra e a recente
da resistência armada13, a banir ou exilar líderes políticos e sociais identifi- abertura de processo criminal na Justiça
cados com as ideologias de esquerda do país, além de gerar um incalculável Federal do Pará, envolvendo o episódio da
Guerrilha do Araguaia.
número de atingidos por prisões, por demissões arbitrárias no setor púbico
e privado, por perseguição política, em sentido amplo. Ademais, promoveu 12. Skidmore, Thomas. The politics of mi-
cassações de direitos políticos, compelimento à clandestinidade, censuras, tor- litary rule in Brazil 1964-85. Nova Iorque:
Oxford University Press, 1988, p.23.
turas, desaparecimentos forçados e execuções sumárias.

221
13. É desta época que trata o caso Guerri- O movimento em favor da aprovação de uma anistia aos perseguidos
lha do Araguaia, acima referida. políticos já é presente desde o início do Golpe, mas se fortalece entre os anos
de 1974 e de 1975, liderado pelas mulheres. Após o momento mais crítico da
14. Viana, Gilney & Cipriano, Perly. Fome
de Liberdade. São Paulo: Fundação Perseu repressão, as mães de filhos mortos, as viúvas de maridos vivos, os familiares
Abramo, 2009. de desaparecidos, dos presos e exilados políticos, ocupam a arena pública em
busca de liberdade e de notícias para seus entes. O movimento pela anistia se
15. Cf.: Gonçalves, Danyelle Nilin. “Os múl-
irradia pela sociedade, abrangendo desde os militantes organizados que per-
tiplos sentidos da Anistia”, in: Revista Anis-
tia Política e Justiça de Transição. Brasília: maneceram no país, até o movimento estudantil e do meio cultural. Aliados
Ministério da Justiça,Jan/Jun 2009, pp. ao movimento popular operário insurgente, essas agremiações protagonizaram
272-295.
uma das maiores mobilizações sociais já registradas na história do Brasil.
16. Na apreciação do caso “Rio Centro”, em A palavra de ordem do movimento social é a “anistia ampla, geral e
1981, a lei de anistia de 1979 sofrerá uma irrestrita”, adstrita a todos os “crimes” políticos praticados na resistência con-
mutação jurisprudencial pela atuação do tra o regime. Essa fase, que chamamos de primeira fase da luta pela anistia
Superior Tribunal Militar, passando a ser
uma lei “ampla e irrestrita” a todos os tipos
caracteriza, portanto, a anistia “enquanto liberdade”. A luta social buscou o
de crimes, incluindo os crimes de Estado, e, resgate das liberdades públicas: civis e políticas. A propósito, uma das crônicas
forçosamente, até mesmo aqueles crimes políticas mais reconhecidas sobre o período, a relatar a histórica greve de fome
cometidos posteriormente à sua edição.
de 32 dias dos presos políticos, em todo o Brasil, em favor da aprovação da lei
17. O conceito de “legalidade autoritária” de anistia, leva o simbólico título de “Fome de Liberdade”14.
é do politólogo Anthony W. Pereira, tendo A ampla mobilização popular obrigou a ditadura a rever sua posição con-
sido amplamente desenvolvido em: Pereira, trária a qualquer anistia. Junto ao parlamento brasileiro bipartidário – que
Anthony W. Ditadura e Repressão – o au-
toritarismo e o Estado de Direito no Brasil,
funcionou de forma descontinuada, sob intervenções e com parte de senadores
Chile e Argentina. São Paulo: Paz e Terra, “biônicos” durante o período de exceção – o Movimento Democrático Brasileiro
2010, pp. 237-255. (MDB), partido da oposição consentida, formulou um projeto de lei de anistia
que tinha este condão: devolver a liberdade a todos aqueles que os Estado dita-
torial criminalizou. Não obstante, o governo militar apresentou outro projeto de
lei, que previa uma anistia aos “crimes políticos e conexos”, ou seja, uma anistia
bilateral, porém restrita, excluindo os crimes violentos contra a pessoa, os ditos
“crimes de sangue” praticados pela resistência15. Por apertada maioria de 206
a 201 votos, a anistia proposta pelo gabinete do governo militar foi aprovada.
De um lado, o regime impôs à sociedade a anistia que lhe convinha: uma
anistia parcial e restrita, que excluía os ditos “crimes de sangue”, mas que
incluía dispositivos de sentido dúbio que seriam posteriormente interpretados
de forma estendida pelos tribunais militares responsáveis pela sua aplicação16,
segundo a legalidade autoritária vigente17.

222
Por outro lado, a sociedade civil obteve sua mais significativa vitória des- 18. Cf.: Torelly, Marcelo D. Justiça de Tran-
de a decretação do AI-5, ao alterar a correlação de forças sociais que obrigou sição e Estado Democrático de Direito. Co-
leção Fórum Justiça e Democracia, vol. 02.
o governo militar a aprovar alguma lei de anistia. A anistia, mesmo parcial, Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp. 184-198.
permitiu recompor muitos direitos políticos, a saber: a liberdade para a maior
parte dos presos políticos, o retorno ao país dos exilados, a readmissão de ser- 19. Por exemplo: Fico, Carlos. “A nego-
ciação parlamentar da anistia de 1979 e
vidores públicos expurgados para os seus postos de trabalho, a liberdade e o
o chamado ‘perdão aos torturadores’”, in:
direito à identidade para os que haviam sido compelidas à clandestinidade, etc. Revista Anistia Política e Justiça de Transi-
Estas primeiras medidas de liberdade, que são acompanhadas das primei- ção. Brasília: Ministério da Justiça, Jul./Dez.
ras medidas reparatórias, forjaram o ambiente para a retomada do processo 2010, pp. 318-332.

democrático e o início da abertura política. A lei de anistia de 1979, mesmo


que restrita, constitui-se, assim, no marco jurídico fundante do processo de
redemocratização. Esse processo histórico enseja a ambiguidade que definimos
como um “paradoxo da vitória de todos”18.

2. O contexto da aprovação da Lei de Anistia de 1979: um acordo


político entre iguais?

É também nesse processo que se constrói a compreensão jurídica e histórica


hegemônica de que a aprovação da anistia de 1979 pelo Congresso Nacional
constituiu-se, em duplo aspecto, num acordo político entre oposição e governo19.
Seja em seu aspecto jurídico, de alcance concomitante aos crimes políticos da
resistência e aos crimes “conexos”, perpetrados pelos agentes públicos da repres-
são, seja em seu aspecto político, de uma condição de possibilidade inafastável
para a reconciliação nacional, essa compreensão, a nosso ver, merece algumas
considerações críticas.
Primeiramente, relacionadas ao déficit de legitimidade do suposto acor-
do. Como já referido, o espectro de liberdade e de representação política do
Congresso Nacional em agosto de 1979 era significativamente restrito. Nem
todos os parlamentares eram efetivamente eleitos pelo voto direto do cidadão.
Esse dado histórico é ainda mais relevante quando se verifica a apertada maio-
ria que permitiu a vitória do projeto de lei do governo (apenas cinco votos).
Ou seja: no Parlamento não houve um acordo, mas sim a disputa entre dois
projetos de anistia, decidida por uma pequena diferença.

223
20. Diferentemente do caso espanhol, onde Em segundo lugar, não se pode olvidar que, ao falar-se de “oposição
uma anistia similar à brasileira é aprovada livre”, em 1979, falamos, na prática, de uma “oposição consentida”20. Os parti-
em um parlamento com possibilidade de
dos políticos não eram livres e muitos segmentos políticos não participaram do
oposição mais efetiva, integrado, inclusive,
pelo Partido Socialista. Para uma excelente “pacto”, pois somente depois da anistia é que ocorre o retorno à legalidade de
exposição crítica do caso espanhol, veja-se: algumas agremiações, bem como de importantes quadros políticos de oposição
Aguilar, Paloma. “A lei espanhola de anis-
que estavam exilados, banidos ou forçados a recolherem-se à clandestinidade.
tia de 1977 em perspectiva comparada: de
uma lei para a democracia a uma lei para Em terceiro lugar, não existia relação de igualdade ou equidade entre
impunidade”, in: Payne, Leigh; Abrão, Pau- os pretensos sujeitos do acordo. De um lado, os governantes e a força de
lo; Torelly, Marcelo D. (org.). A Anistia na suas armas; de outro, a sociedade civil criminalizada, presa: ou pelas grades
Era da Responsabilização – o Brasil em
perspectiva internacional e comparada.
de ferro ou pelas leis ilegítimas de exceção. Por último, quando se verbaliza
Brasília/Oxford: Ministério da Justiça/Uni- que a anistia para “os dois lados” seria uma condição para a reconciliação,
versidade de Oxford, 2011, pp. 394-427. revela-se, aí, a sua face autoritária, produzindo-se uma chantagem odiosa e
repressiva: a concessão de uma liberdade restrita somente seria admitida com
a condição da impunidade.
Os aspectos percebidos nesse suposto “acordo político”, no contexto da
aprovação da lei de anistia, definitivamente, não são suficientes para carregar
consigo as características e os efeitos éticos e normativos que caracterizam os
acordos firmados sob a liberdade e a democracia. Mesmo que os personagens
negociadores do “acordo” tenham considerado a anistia de 1979 como bilate-
ral, não cabe afirmar-se o mesmo quanto aos movimentos políticos articulados
pela sociedade civil.
Quanto ao déficit de juridicidade, a questão que se apresenta é a seguinte:
acordos políticos do passado autoritário podem ter o condão de afastar o exercício
de direitos humanos na democracia? Existe democracia sem direitos humanos?
Estes questionamentos não pretendem, de nenhuma maneira, deslegiti-
mar a luta política daqueles que, pelos meios institucionais disponíveis, atu-
aram pela aprovação da lei de anistia de 1979 em favor dos presos políticos,
mas sim, contextualizar o limite do possível à época. Procuram, portanto,
diferenciar o momento da contingência da transição de seu momento de jus-
tiça, no caso, de justiça de transição. Tais questionamentos contribuem para
elucidar os contornos claros deste eventual acordo: a atuação da oposição
consentida (restrita e limitada), que não pode ser traduzida historicamente
como um abrangente acordo social.

224
3. A Constituinte e a insurgência da “anistia como reparação”

Após a anistia, o movimento pela redemocratização ganha fôlego, mesmo sem


afetar a manutenção do poder de controle do regime militar. Grandes manifesta-
ções clamam por eleições diretas para o cargo de Presidente da República. A di-
tadura, mais uma vez, demonstra sua força e capacidade de controle parlamentar
e impõe mais uma derrota à sociedade organizada. Derruba a emenda Dante de
Oliveira pelas “diretas já”. E, com o apoio de um parlamento fragilizado, aprova
a manutenção das eleições indiretas para a escolha do primeiro presidente civil
pós-período ditatorial. Após as eleições, é convocada uma Assembleia Nacional
Constituinte, livre e soberana. Este será o cenário de uma nova disputa pelo
conceito de anistia, tomada em um ambiente efetivamente mais democrático.
O colégio eleitoral para a eleição indireta de um presidente civil para o
Brasil, este sim, foi um cenário de acordo político. Evidencie-se que a chapa
vencedora foi resultante de uma composição de um líder da oposição consen-
tida, com o antigo presidente do partido de sustentação da ditadura. Tal acordo
sinalizou a falta de interesse em uma ruptura com o regime autoritário. Se, na
aprovação da Lei de Anistia, mais de cinco anos antes, não houve acordo, e
sim disputa entre dois projetos, eis aqui a configuração de um pacto político
da transição brasileira. A transição, pela via indireta da eleição de Tancredo
Neves (1985), foi pactuada com os militares e transcorreu de forma tranqüila.
Enquanto a ditadura Argentina terminou em ruptura, o Brasil e o Chi-
le são exemplos de transições controladas. A ditadura brasileira executou de
forma meticulosa seu plano de saída: (I) uma lei de autoanistia restrita para
afastar posições políticas radicalizadas; (II) eleições indiretas para assegurar
uma lógica de continuidade, e; (III) ampla destruição de arquivos públicos dos
centros e órgãos de repressão para tentar apagar vestígios e responsabilidades
individuais pelas graves violações aos direitos humanos.
Um fator relevante para a compreensão da mutação do conceito de anistia
acontece na convocação da Assembleia Constituinte. O ato de convocação da
constituinte é formalizado por uma Emenda Constitucional à Carta outorgada
pela Junta Militar de 1969. Tal Emenda reafirmou a anistia nos termos da lei de
1979, inclusive em suas ambiguidades, fazendo remissão ao perdão aos crimes
políticos e conexos. A reafirmação da anistia ambígua, “bilateral”, no texto da

225
21. O voto do Ministro Gilmar Mendes na Emenda Constitucional teve a intenção de “constitucionalizar” referido dispo-
ADPF 153 é uma importante leitura desta sitivo e reiterar a dimensão da anistia enquanto “impunidade e esquecimento”.
tese, a qual defende que a Emenda 26 vin-
Deve a Emenda Constitucional convocatória da Constituinte ser compre-
cula e limita o Poder Constituinte.
endida como uma limitação ao Poder Constituinte21? Uma espécie de limitação
22. A esse respeito, veja-se: Torelly, Marcelo apriorística à própria Constituição democrática22?
D. “A anistia e as limitações prévias à Cons-
O fato é que, independentemente de sua forma de chamamento, o Poder
tituição”, in: Constituição e Democracia
(UnB), Brasília, outubro de 2009, pp. 20-21. Constituinte brasileiro, materialmente, mostrou-se independente e não vincula-
do, como sói ser um espaço político desta natureza23. Como resultado, o processo
23. Neste sentido, veja-se: Paixão, Cris- constitucional consolidou-se como espaço de ampla discussão política e social,
tiano. “A Constituição em disputa: tran-
sição ou ruptura?”. In: Seelaender, Airton
levando ao abandono do texto-base produzido por uma comissão de notáveis,
(org.)  História do Direito e construção do e pela redação de uma efetiva constituição democrática, marcada pelas lutas e
Estado. São Paulo: Quartier Latin, no prelo. contradições que todo processo político crítico, como o é a insurgência consti-
tucional, possui24. O debate da anistia não escapou ao alcance desse processo.
24. A esse respeito: Barbosa, Leonardo Au-
gusto Andrade. Mudança constitucional, O que ocorre é que a nova Constituição resultante da Assembleia Consti-
autoritarismo e democracia no Brasil pós- tuinte não previu, em seus dispositivos, os mesmo termos da anistia ambígua e
1964. Universidade de Brasília, Faculdade
bilateral, a anistia enquanto impunidade e esquecimento. Ao contrário, a Cons-
de Direito: Tese de Doutoramento, 2009.
tituição da República de 1988, faz referência, em seu Ato de Disposições Cons-
titucionais Transitórias, a uma anistia para os que foram atingidos por atos de
exceção, prevendo, inclusive, mais um conjunto de novos direitos reparatórios.
Portanto, a anistia constitucional dirigiu-se aos perseguidos políticos e
não aos perseguidores, omitindo-se quanto à anistia a crimes políticos e co-
nexos. A propósito, essa mesma Constituição democrática, de modo coerente,
declarou no rol dos direitos e garantias individuais (art. 5º) que ninguém será
submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (inc. III); bem
como que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura (inc. XLIII).
Ao que tudo indica, a Constituição corroborou o sentido da anistia en-
quanto liberdade, somando-a a uma dimensão de reparação. E determinou que
todos aqueles cidadãos atingidos por atos de exceção deveriam ser reparados
pelo Estado democrático.
Desta feita, o conceito de anistia defendido pela sociedade civil movi-
mentou-se constitucionalmente para o sentido de uma anistia enquanto liber-
dade e reparação, antagônico com o sentido de anistia enquanto impunidade
e esquecimento imposto pelo regime, seus cúmplices e seus intérpretes legais.

226
Temos, portanto, que, dentre os quatro pilares da justiça de transição, 25. Veja-se: ONU. “O Estado de Direito e a
quais sejam: verdade e memória; reformas das instituições, justiça e repara- Justiça de Transição em sociedades em con-
flito ou pós-conflito”. S/2004/626. Tradu-
ções25; este último foi efetivamente constitucionalizado em 1988. Essa con- ção disponível em: Revista Anistia Política
quista constitucional só foi possível a partir da mobilização na Constituinte, e Justiça de Transição. Brasília: Ministério
especialmente exercida pelos sindicatos e associações de servidores públicos da Justiça, Jan/Jun. 2009, pp. 320-350.

em geral, pelos perseguidos políticos - atingidos por atos de exceção ou afas-


26. Confira-se, refutando tal tese em foro
tados de suas funções durante movimentos grevistas ocorridos durante a di- de estudos comparados: Pascual, Alejandra
tadura militar -, insatisfeitos com a incompletude das medidas reparatórias Montiel. Terrorismo de Estado: a Argentina
presentes na Lei de Anistia de 1979 e na Emenda Constitucional n.º 25/85. de 1976 a 1983. Brasília: Ed.UnB, 2004.

27. Cf.: “País deveria olhar para frente, di-


zem militares”, in: Folha de S. Paulo, 06 de
4. A segunda fase da luta pela anistia no Brasil: a reparação como novembro de 2008. Disponível em: http://
www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ul-
eixo estruturante da Justiça de Transição t96u464785.shtml

A ambiguidade da anistia de 1979, somada ao discurso social construído 28. Para um maior desenvolvimento da
ideia de “estado de negação”, veja-se: Co-
ao longo do Estado de Exceção estrutura, desta feita, os pilares da transição
hen, Stanley. Estado de Negación. Buenos
controlada, em três âmbitos distintos: politicamente, a negação da existência Aires: UBA/British Council, 2005.
de vítimas e a justificação da violência por meio da tese dos dois “demônios”,
que implica na inexistência de vítimas26; culturalmente, pela afirmação do es-
quecimento como melhor forma de tratamento do passado27, e; juridicamente,
pela garantia da impunidade por meio da lei de anistia.
Se, num primeiro momento, as forças sociais não foram capazes de su-
perar essa estratégia, o desenvolvimento do programa de reparações às víti-
mas no Brasil, gradualmente, significou uma primeira ruptura. O seu resulta-
do concreto é o de que um dos já citados pilares da transição controlada - a
pretensão ditatorial ao esquecimento -, é rompido. Afinal, somente foi e é
possível reparar aquilo que é objeto de conhecimento e consequente exercício
da memória. Assim, um primeiro resultado imediato do programa de repara-
ções é, por fim, um “estado de negação da violência de Estado” experimen-
tado pelo país28.
No Brasil insta constar duas comissões de reparação: a Comissão Espe-
cial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que funcionou entre 1995 e 2007,
e a Comissão de Anistia, atuante desde 2001 até os dias atuais. Para promover
reparação, o Estado, necessariamente, reconhece a existência de vítimas e suas

227
29. Um amplo panorama deste processo é narrativas. E, mais ainda, reconhece as graves violações contra os direitos
apresentado no nosso já referido texto “O humanos perpetradas contra a resistência à ditadura.
programa de reparações como eixo estru-
De forma menos imediata, as comissões de reparação passaram a produ-
turante da justiça de transição no Brasil”.
zir verdade e memória, tornando-se mecanismos justransicionais transversais.
Ao desfazer as narrativas oficiais sobre os crimes de Estado e reconhecer as
narrativas das vítimas, as comissões efetivavam o direito à verdade, diante das
violações de direitos humanos, mesmo antes de tal direito restar positivado no
ordenamento jurídico doméstico pelo disposto na lei de criação da Comissão
Nacional da Verdade. O processo de reparação resulta em um inédito acervo
de testemunhos e de registros de violência que compõem os arquivos das duas
Comissões de reparação29.
Mais ainda, as comissões iniciaram a implantação de projetos de resgate
da memória histórica das vítimas e passaram a promover diversas ações de
educação e direitos humanos em todo o Brasil. A esse relevante quadrante
histórico, de mais de 20 anos de conquista e afirmação da reparação e me-
mória contra o esquecimento; de enfrentamento ao negacionismo dos agentes
de repressão; de visibilidade às vítimas e seus relatos de violência sofrida; de
reconstrução de episódios históricos que vigiam sob versões oficiais deturpa-
doras da verdade factual; de construção crescente de um importante consenso
social sobre a existência e a gravidade dessas violações; e do surgimento de
novas mobilizações em torno da agenda da Justiça de Transição ainda pen-
dente, damos o nome de segunda fase da luta pela anistia.
Ao desenvolver ao máximo o processo de reparações, transversalmente
produzindo memória e verdade, a segunda fase da luta pela anistia caracteriza,
portanto, um momento em que a anistia é lida como liberdade e reparação. Nes-
ta fase, o conceito de anistia passou a ser debatido de forma mais direta e aberta.
Em 2007, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
lançou o livro relatório Direito à Memória e à Verdade, traçando, de forma sis-
tematizada, seus 12 anos de atuação e quase 400 casos reconhecidos de mortes
e desaparecidos praticados pela ditadura.
No mesmo ano, a Comissão de Anistia, empreende uma particular virada
hermenêutica. E, em deliberada disputa pela significação desse mecanismo
histórico de clemência, institui atos públicos de pedidos de desculpas oficiais,
em nome do Estado, a cada um dos ex-perseguidos e afetados pela violên-

228
cia do Estado de Exceção, por meio das chamadas Caravanas da Anistia30. 30. Vide: Abrão, Paulo; Carlet, Flávia et alli.
Se o conceito de anistia significava um gesto político do Estado direcionado a “As Caravanas da Anistia: um mecanismo
privilegiado da Justiça de Transição Bra-
perdoar os cidadãos enquadrados nos dispositivos legais da Doutrina de Segu-
sileira”. In: Revista Anistia Política e Justiça
rança Nacional, com a medida, a anistia ressignificada passou a constituir-se de Transição. Brasília: Ministério da Justiça.
em ato no qual o cidadão violado é quem perdoa o Estado pelos erros come- N.º 02. Jul./Dez. 2009, seção especial,
pp.110-149.
tidos contra ele no passado. A declaração de anistiado político torna-se um
ato oficial de reconhecimento do direito de resistência da sociedade contra o 31. Neste mesmo sentido, veja-se: Bag-
autoritarismo e a opressão. Se o significado da anistia, para alguns, reverbera- gio, Roberta. “Justiça de Transição como
va o esquecimento ou amnésia, agora ele passa, pela ação estatal de reconhe- reconhecimento: limites e possibilidades do
processo brasileiro”. In: Santos, Boaventura;
cimento, a revelar o protagonismo da reparação e da memória31. Abrão, Paulo; MacDowell, Cecília; Torelly,
No mesmo sentido dessa ressignificação institucional e política da ideia Marcelo D. (org.). Repressão e Memória
de anistia no Brasil, e, considerando iniciativas do Ministério Público Federal Política no Contexto Ibero-Brasileiro.
Brasília/Coimbra: Ministério da Justiça/Uni-
em ajuizar ações civis contra agentes torturadores da ditadura militar, a Co-
versidade de Coimbra, 2010, pp. 260-285.
missão de Anistia realizou uma Audiência Pública no Ministério da Justiça. A
iniciativa foi apoiada por mais de 30 entidades nacionais de direitos humanos, 32. Diante das reivindicações sociais e
das obrigações assumidas pelo Brasil em
com o objetivo de questionar o alcance e a interpretação da lei de anistia de
compromissos internacionais, a Comissão
1979 como regra de impunidade para os crimes contra a humanidade32. de Anistia do Ministério da Justiça pro-
O tema, que era considerado um tabu político, foi recolocado na pauta moveu a Audiência Pública “Limites e
nacional. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 153, inter- Possibilidades para a Responsabilização
Jurídica dos Agentes Violadores de Di-
posta pela Ordem dos Advogados do Brasil junto ao Supremo Tribunal Federal
reitos Humanos durante o Estado de Ex-
é um dos produtos mais imediatos desta mobilização interinstitucional. ceção no Brasil”, ocorrida em 31 de julho
Em 2009, com a ampliação do rol de atores sociais atuantes na pauta, de 2008. Foi a primeira vez que o Estado
brasileiro tratou oficialmente do tema
a sociedade civil mobilizada aprova junto à Conferência Nacional de Direitos
após quase trinta anos da lei de anis-
Humanos a proposta de uma “Comissão da Verdade e Justiça”. A pauta seria tia. A audiência pública promovida pelo
incorporada ao III Plano Nacional de Direitos Humanos33, e coadunaria, dois poder executivo, com a devida represen-
anos depois, na criação da Comissão Nacional da Verdade. tação de posições jurídicas e políticas di-
vergentes, rompeu com uma espécie de
Em 2010, os familiares dos mortos e desaparecidos no episódio da Guerrilha mito em torno do “tema proibido” e teve
do Araguaia, com apoio do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o condão de unir forças que se manifes-
conquistam uma sentença junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A tavam de modo disperso, articulando as
iniciativas da Ordem dos Advogados do
sentença declara o dever do Estado brasileiro de suspender todos os obstáculos
Brasil, do Ministério Público Federal de
jurídicos impeditivos do direito à proteção judicial das vítimas, inclusive na esfera São Paulo, das diversas entidades civis.
penal. E, ainda, de declarar a lei de anistia brasileira como uma clara autoanistia, Dentre estas, a Associação dos Juízes pela
incompatível com a jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Huma- Democracia, o Centro Internacional para
a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL),
nos, especialmente em relação às graves violações contra os direitos humanos34.

229
Continuação da nota 32 Como se percebe, na segunda fase da luta pela anistia, desde o trabalho
a Associação Nacional Democrática Na-
das comissões de reparação e das ações políticas de promoção da memória e
cionalista de Militares (ADNAM). E, ainda,
fomentou a re-articulação de iniciativas da verdade, resgata-se e amplia-se o leque de atores sociais mobilizados para
nacionais pró-anistia. A audiência públi- a agenda da justiça de transição34. Mobilizam-se os familiares dos mortos e
ca resultou em um questionamento junto desaparecidos, os movimentos dos presos e perseguidos políticos, o movimen-
ao Supremo Tribunal Federal, por meio
to dos trabalhadores civis demitidos em lutas paredistas, o movimento de ou-
de uma Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF n.º 153) pelo tros segmentos civis e militares sociais atingidos por atos de exceção. Enfim,
Conselho Federal da OAB. Ressalte-se que mobiliza-se toda uma agenda de entidades de direitos humanos que se volta à
a controvérsia jurídica debatida e leva-
temática com grande vitalidade.
da ao STF pela Ordem dos Advogados do
Brasil advinha, inclusive, do trabalho do Este momento de conscientização social sobre o passado gerou a corro-
Ministério Público Federal de São Paulo, são dos pilares do negacionismo e do esquecimento, restando funcional apenas
ao ajuizar ações civis públicas em favor o pilar da impunidade, assegurada nos dias de hoje pela persistência da leitura
da responsabilização jurídica dos agentes
torturadores do DOI-CODI, além das ini-
dada à anistia de 1979 pelos tribunais superiores brasileiros.
ciativas judiciais interpostas por familiares
de mortos e desaparecidos. A exemplo do
pioneirismo da família do jornalista Vladi-
5. Impunidades e Justiça de Transição
mir Herzog que, ainda em 1978, saiu vito-
riosa de uma ação judicial que declarou a
responsabilidade do Estado por sua morte A impunidade dos crimes de Estado perpetrados pela ditadura civil-militar
e afastou a versão oficial e inverídica de abrange duas dimensões. Uma, relativa ao conhecimento histórico das graves
seu suicídio.
violações aos direitos humanos e suas autorias individuais e institucionais. Ou-
33. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/ tra, à possibilidade jurídica de aplicação de sanções penais e civis a estes autores.
sedh/pndh3/pndh3.pdf Sobre o primeiro aspecto, a lei que institui a Comissão da Verdade pode
representar um avanço. Enquanto que as Comissões de reparação, por com-
34. Sobre a mobilização junto à Corte, ve-
ja-se: Kristicevic, Viviana; Affonso, Beatriz.
petência legal, apenas puderam reconhecer fatos e assumir a responsabilidade
“A dívida histórica e o caso Guerrilha do abstrata do Estado brasileiro pelas violações ocorridas36., a Comissão da Verda-
Araguaia na Corte Interamericana de Di- de tem poderes para sistematizar, pelo menos, as graves violações aos direitos
reitos Humanos impulsionando o direito
humanos (torturas sistemáticas, desaparecimentos forçados, execuções sumá-
à verdade e à justiça no Brasil”. In: Payen,
Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. rias, genocídios e massacres) e identificar sua autoria individual e institucional.
(org.). A Anistia na Era da Responsabi- Isso significa que a Comissão da Verdade tem poderes para apurar todas
lização – o Brasil em perspectiva inter- as violações ocorridas, verificando um certo grau de responsabilidade, uma
nacional e comparada. Brasília/Oxford:
Ministério da Justiça/Universidade de Ox-
responsabilidade individual em sentido amplo. Não uma responsabilidade es-
ford, 2011, pp. 344-390. tritamente jurídica ou judicial, mas sim, no escopo do exercício do direito à
verdade que é pertencente às vítimas e a toda a sociedade. O próprio Supremo
Tribunal Federal brasileiro negou o direito à proteção judicial das vítimas,

230
impedindo a investigação criminal dos fatos cobertos pela lei de anistia, mas 37. A esse respeito, veja-se: CELS/ICTJ. Ha-
afirmou o direito da sociedade ter acesso à verdade. cer Justicia. Buenos Aires: Siclo XXI, 2011.

E, neste aspecto, o Brasil diferenciou-se da tradição latinoamericana de 38. Sobre o caso chileno, veja-se: Collins,
associar verdade e justiça. “No hay verdad sin justicia”, expressa o Estado Cath et alli. “Verdad, justicia y memoria:
argentino que, em 2005, por meio de sua suprema corte, declarou a lei local las violaciones de derechos humanos del
pasado”. In: Informe Anual sobre Derechos
de anistia inconstitucional. Com isso, foi possível abrir processos contra cerca
Humanos en Chile 2011. Santiago: Univer-
de mil agentes da ditadura, sendo que 250 já foram condenados por crimes sidad Diego Portales, 2011, pp 19-53.
graves, entre outros, o próprio ex-ditador Jorge Videla37.
O Chile, mesmo não revogando sua lei de anistia, reconheceu e cumpriu 39. Veja-se: Lessa, Francesca. “Barriers to
justice. The Ley de Caducidad and Impuni-
a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para abrir inves- ty in Uruguay”. In: Lessa, Francesca; Payne,
tigações e condenar casos de graves violações aos direitos humanos, os quais, Leigh A. (org.). Amensty in the Age of Hu-
como já dito, escapam ao alcance das leis de anistia38. O Uruguai condenou man Rights Accountability – comparative
and international perspectives. Nova Ior-
Juan Bordaberry, seu último ditador, por atentado contra a democracia e por ser
que: Cambridge University Press, 2012, pp.
responsável por crimes de desaparecimento forçado. Isto, além de incentivar a 123-151, bem como Skaar, Elin. “Impuni-
realização de um intenso debate sobre a promoção de justiça, ante a outras vio- dade versus responsabilidade no Uruguai:
o papel da ley de caducidad”. In: Payne,
lações39. O Peru indiciou e sentenciou Alberto Fujimori40. A Guatemala abriu dois
Leigh; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. A
julgamentos por acusações de genocídio contra o ex-ditador, Efraín Ríos Montt41. Anistia na Era da Responsabilização. Bra-
São medidas que expressam, para as sociedades destes países, que a lei é sília/Oxford: Ministério da Justiça/Universi-
igual para todos, inclusive para aqueles que um dia estiveram em posição de dade de Oxford, 2011, pp. 428-469.

poder para manipular o modo de produção legislativa e direcionar institutos


40. Cf.: BURT, Jo-Marie. “Culpado: o julga-
jurídicos de clemência para neutralizar seus próprios crimes. Trata-se de uma mento do ex-presidente peruano Alberto
concepção na qual o Estado democrático presta contas daquilo que foi feito Fujimori por violações dos direitos huma-
nos”. In: Revista Anistia Política e Justiça de
anteriormente pelo Estado de Exceção, pela via da justiça de transição.
Transição. Brasília: Ministério da Justiça, n.º
A Justiça de Transição, in concreto, pode ser concebida segundo três 04, Jul./Dez. 2010, pp.108-137.
características: a complementaridade, a circularidade e a contextualidade dos
seus mecanismos. 41. Veja-se: Roth-Arriaza, Naomi; Braid,
Emily. “De facto and de Jure amnesty laws:
Complementaridade significa que verdade, memória, justiça e reparação the Central American case”. In: Lessa, Fran-
são elementos que se entrecruzam, suas funções são superpostas e interdepen- cesca; Payne, Leigh A. (Org.). Amensty in
dentes. Por exemplo, o direito à verdade depende tanto da atuação das comis- the Age of Human Rights Accountability
– comparative and international perspec-
sões de verdade e reparação quanto do sistema de justiça.
tives. Nova Iorque: Cambridge University
Circularidade significa que os resultados de uns destes mecanismos re- Press, 2012, pp. 182-209.
metem a necessidade de aplicação dos outros. Por exemplo, o trabalho final de
uma comissão da verdade impõe novas medidas reparatórias, abre horizontes
de justiça e promove novas memórias.

231
42. Schwartz, Herman. The struggle for
Contextualidade, por sua vez, implica que os mecanismos são aplicados
constitutional justice in post-communist
Europe. Chicago: Chicago University Press, conforme as características históricas, políticas e de cada transição local. Por
2002. exemplo, as ditaduras na América Latina ocorreram no contexto da Guerra
Fria, estimuladas por uma das potências do mundo bipolar contra a expansão
do poder da outra. No caso brasileiro, lutava-se contra a expansão do pen-
samento socialista e das idéias de esquerda. As ditaduras do Leste Europeu,
por sua vez, são contextualmente diferentes das do Cone Sul. As eventuais
democracias que insurjam do processo da Primavera Árabe serão, igualmente,
distintas. Esses padrões contextuais devem ser levados em conta tanto para a
integração de políticas interestatais, quando para sua diferenciação.
Para a América Latina, que possui défices históricos na consolidação do
Estado de Direito, é particularmente caro que o sistema de Justiça participe do
processo de democratização da sociedade e das instituições. E, assim, supere um
conjunto de jurisprudências autoritárias para afirmar os direitos humanos vi-
sando vocacionar-se para a superação de uma concepção institucional de con-
trole social repressivo rumo a uma concepção de segurança e justiça protetiva
da emancipação social. Por sua vez, no Leste Europeu, o deságio residia na pró-
pria construção de sistemas de justiça vinculados ao ideário constitucionalista42.
Se estas diferenças contextuais interregiões são relevantes, as distinções
intrarregionais também merecem atenção. É preciso registrar que a cooperação
entre as justiças dos países sul-americanos, por exemplo, tem sido vital para a
promoção de justiça. A posição do Brasil sobre justiça de transição tem, assim,
reflexos em nível regional, vez que perpetradores de outros países latinoame-
ricanos estão em território nacional e suas extradições dependem da compre-
ensão jurídica que o Brasil assume sobre a sua própria anistia.

6. Anistia como “Verdade e Justiça”?

Atualmente, emergem, no Brasil, novos movimentos sociais com o lema da


busca de Verdade e Justiça, análogos aos movimentos que antes surgiram na
Argentina e no Chile. Questionam a validade da lei de anistia. Exigem o cum-
primento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos para que

232
sejam superados os obstáculos jurídicos para a responsabilização judicial dos 43. Um exemplo pode ser encontrado em:
agentes perpetrados de crimes contra a humanidade . 43 Mourão, Alexandre et alli. “Os aparecidos
políticos: arte ativista e justiça de transi-
Se, na primeira fase da luta pela anistia, os movimentos sociais deman- ção”. Em: Revista Anistia Política e Justiça
davam liberdade, e, na segunda, reparação e memória, estes novos movimen- de Transição. Brasília: Ministério da Justiça,
tos sociais avançam ainda mais a agenda da transição, inaugurando a terceira n.º 06, jul./dez. 2011, no prelo.

fase da luta pela anistia, ao demandarem verdade e justiça. No período recen-


44. Cf.: “Comemoração do golpe de 64
te, após a aprovação da Comissão da Verdade e da Lei de Acesso à Informação, termina em tumulto no Rio”, disponível
vemos surgirem novos atores sociais da agenda justransicional: os comitês em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/
estaduais pela memória, verdade e justiça, o “movimento quem?”, o “levante comemoracao-do-golpe-de-64-termina-
-em-tumulto
popular da juventude” e os “aparecidos políticos” são alguns destes novos
atores. A manifestação popular contra a comemoração do golpe de 1964 pelos 45. O modelo de “equilíbrio da justiça”,
clubes militares, em 2012, no Rio de Janeiro, e os atos políticos dos “escra- exemplificado pela compatibilização entre
anistias e julgamentos é defendido por al-
chos”, demonstraram a capacidade de mobilização destes atores e grupos44.
guns autores como aquele que mais produz
Tais quais os movimentos anteriores, estes novos movimentos sociais aprimoramentos democráticos pós-tran-
não se insurgem contra a anistia, que mantém sua centralidade na agenda sicionais. Confira-se: Olsen, Tricia; Payne,
Leigh A.; Reiter, Andrew. Transitional Jus-
da justiça de transição brasileira desde os anos 1970. Mas sim, disputam seu
tice in Balance. Washington: United States
significado, apontando para uma leitura da anistia enquanto justiça e verdade, Peace Institute, 2010.
que exclua dos efeitos da lei de anistia de 1979 os graves delitos de Estado,
os denominados crimes contra a humanidade. Pode-se dizer que buscam gerar
as condições objetivas para aproximação com o modelo chileno de justiça de
transição, onde uma anistia penal para crimes comuns convive com julgamen-
tos por delitos contra graves violações contra os direitos humanos45.
O que explica a eficácia da lei de anistia no Brasil, distintamente dos
demais países latinoamericanos, é a combinação de fatores históricos, relacio-
nados à transição controlada; fatores sociais, como a mobilização social tardia
em torno do tema; fatores políticos, típicos dos presidencialismos de coalizão
e da dificuldade de composição de maiorias estáveis e programáticas; e fatores
jurídicos, especialmente em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal ao
validar a bilateralidade da lei de anistia de 1979.
A interpretação dada à lei de anistia pelo Judiciário da ditadura (em
especial pelo Superior Tribunal Militar), recentemente reiterada pelo Supremo
Tribunal Federal democrático, por meio do julgamento da ADPF n.º 153, é um
desafio objetivamente colocado.

233
46. Huntiginton, por exemplo, define os A decisão do Supremo Tribunal Federal baseou-se, em síntese, em três
dois casos como emblemáticos do modelo argumentos: 1º) Por ser bilateral, a lei de anistia brasileira não se trataria de uma
de “transição por transformação”. Cf.: Hun-
autoanistia, como outras da região; 2º) Contra a anistia brasileira não se aplicaria
tington, Samuel. The third wave. Norman:
Oklahoma University Press, 1993. a tipologia de crimes contra a humanidade; e 3º) Tratando-se de uma lei de re-
conciliação, somente o Poder Legislativo poderia modificá-la. Coincidentemente,
47. Como recentemente afirmado pela ti-
essas foram as mesmas fundamentações recentemente utilizadas no julgamento
tular da Comissão Nacional da Verdade,
Rosa Cardoso. Cf.: “Revisão da Anistia de- do magistrado espanhol Baltazar Garzón, o que permite corroborar a por muitos
pende da opinião pública”. In: O Estado de alegada similitude entre o processo transicional brasileiro e espanhol46.
S. Paulo. Disponível em: http://www.esta- Particularmente temos leitura crítica a esta decisão pelos seguintes mo-
dao.com.br/noticias/impresso,revisao-da-
-anistia-depende-de-opiniao-publica-diz-
tivos: (I) ela reconhece, no regime iniciado após o golpe de Estado em 1964, os
rosa-cardoso-cunha,873966,0.htm. elementos essenciais de um Estado de Direito; (II) considera legítimo o pacto
político contido na Lei de Anistia que, mesmo sendo medida política, teria o
condão de subtrair um conjunto de atividades delitivas da esfera de atuação
do poder judiciário; (III) consequentemente, como efeito prático, negou o di-
reito à proteção judicial aos cidadãos violados em seus direitos fundamentais
pelo regime militar, por meio de exercício de controle de constitucionalidade;
(IV) reconhece que a lei de anistia e a emenda Constitucional convocatória da
Constituinte são as bases do Estado Democrático de Direito no Brasil; (V) ignora
que anistiar os “dois lados” em um mesmo ato não anula o fato de que o regime
estaria anistiando a si próprio; (VI) não leva em conta os tratados e convenções
internacionais em matéria de direitos humanos, especialmente a jurisprudência
da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já havia declarado como in-
válidas as autoanistias e a anistia a graves violações contra os direitos humanos;
(VII) omite-se quanto ao tratamento consoante os precedentes do próprio tribu-
nal constitucional pátrio, em sede da imprescritibilidade dos crimes de desapa-
recimento forçado, forjados nos casos de extradição de repressores argentinos.
Assim, o fato é que a decisão do STF tornou a lei de 1979, em sua
dimensão de “impunidade”, formalmente válida no ordenamento jurídico de-
mocrático brasileiro, estabelecendo uma continuidade direta e objetiva entre o
sistema jurídico da ditadura e o da democracia.
Evidentemente, é muito cedo para se saber em que medida esta terceira
fase da luta pela anistia no Brasil tem – ou terá – a força política necessária
para alterar este estado das artes. Mas o certo é que, como nos demais países
da região, somente a atuação social poderá ensejar tal alteração47.

234
Essa possibilidade de nova ressignificação do conceito de anistia, no 48. Cf.: “Verdade e Justiça em perspectiva
Brasil, rumo à Verdade e a Justiça, constitui-se em momento de reflexão sobre comparada”. José Zalaquett responde Mar-
celo D. Torelly. In: Revista Anistia Política
as conexões entre a política e o direito e envolvem um conjunto de aspectos e Justiça de Transição. Brasília: Ministério
muito interessantes: da Justiça, n.º 04, Jul./Dez. 2010, pp. 12-29.

1. A relação do direito internacional e o direito nacional no Brasil;


2. Os fundamentos da Constituição brasileira;
3. Os efeitos penais e civis das leis de anistia;
4. A distinção entre crimes políticos e crimes comuns;
5. O papel do Judiciário nos processos de democratização;

O certo é que já existem resultados tangíveis que apontam, ao menos,


para uma nova etapa de nossa justiça de transição. Primeiramente, temos,
hoje, positivado em nosso ordenamento, o Direito à Verdade. Depois, resta
criada – e em funcionamento – uma Comissão Nacional da Verdade, com
poderes e estrutura para realizar algo nunca antes feito em nosso país: a
sistematização e a identificação das autorias de um conjunto de violações
contra os direitos humanos, promovidas pela ação ou pela omissão estatal.
Tais ações de sistematização e identificação serão acompanhadas de um con-
junto de recomendações de reformas institucionais para o enfrentamento do
legado de tais violações.
A Comissão da Verdade é produto de um processo histórico que deita
longas raízes, chegando à disputa original pelo conceito de anistia presente
nas ruas em 1979. Constitui, certamente, um momento ímpar e extraordinário
para avançar. Tem poderes, estrutura e atribuições que nenhum outro meca-
nismo de nossa justiça transicional já teve.
Não obstante, a Comissão Nacional da Verdade não será a última etapa
de nossa agenda transicional. Somando-se aos esforços já empreendidos, a
Comissão da Verdade é um passo a frente, pois seria um erro esperar que a Co-
missão da Verdade possa, ou deva, dar conta de todas as dívidas pendentes da
transição, ou que seja sua responsabilidade fazê-lo isoladamente. Experiência
como a do Chile, que teve duas comissões da verdade e uma mesa de negocia-
ção, são extremamente exemplificativas dos potenciais e limitações que tais
mecanismos têm para fazer avançar a democracia48.

235
49. Justiça Federal. Seção do Pará. Sub- A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Guer-
seção Marabá. 2ª Vara. Autos n.º 4334- rilha do Araguaia” também foi elemento determinante para a alteração da
29.2012.04.01.3901.
posição institucional do Ministério Público Federal que, após defender a anis-
tia enquanto impunidade no julgamento da ADPF n.º 153, passa, agora, a
buscar alternativas para contornar tal interpretação. E, a partir daí, processar,
pelo menos, as mais graves violações praticadas contra os direitos humanos,
incorporando, em sua atuação institucional, importantes aportes da doutri-
na do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Propiciando, então, um
deslocamento gradual do modelo de impunidade espanhol para o modelo de
responsabilidade parcial chileno.
Finalmente, tivemos, recentemente, a primeira denúncia criminal aceita
pela Justiça Federal do Brasil, no estado do Pará49.
Aos somarem-se ao contexto dos novos atores sociais, atualmente mo-
bilizadas, essas mudanças institucionais insurgem-se justamente contra o úl-
timo sustentáculo da estratégica de saída dos agentes do regime militar de
1964: a perpetuação da impunidade. Embora ainda muito recente, esse novo
cenário que se desenha é o mais favorável para a Justiça de Transição no
Brasil desde a redemocratização.

7. Aportes finais: a anistia enquanto reparação, memória,


verdade e justiça

Esta apresentação buscou resumir e apresentar, de forma direta e sintética, um


conjunto de argumentos que vem sendo construído coletivamente, há alguns
anos, para não apenas explicar, mas, também, incidir no processo transicional
brasileiro. Resumimos, então, suas teses centrais.
Primeiro, a de que a anistia é um elemento cuja centralidade e mutabili-
dade é fundamental para a devida compreensão da justiça de transição brasi-
leira. Do conceito de anistia emana toda a concepção da Justiça de Transição
no Brasil. No Brasil, Verdade, Reparação e Justiça dependem do conceito de
anistia. Sem compreender a amplitude, ambiguidade e a disputa em torno do
conceito de “anistia” no Brasil, corre-se o risco de assimilar um senso comum
do discurso da “anistia enquanto impunidade e esquecimento”, desperdiçando-

236
-se, assim, o enorme potencial político que o conceito de anistia tem em nossa
transição para a expansão das liberdades públicas.
Segundo, a tese que considera que o processo de reparação às vítimas
foi o eixo estruturante da justiça de transição no Brasil. Mesmo tratando-se
de um processo tardio, quando comparado com o dos países vizinhos, temos
que seu fluxo de seguimento nunca cessou. E desenvolveu-se, gradualmente,
com o somatório de forças ocorrendo justamente na medida que o processo
de reparação corroia dois dos pilares de sustentação da estratégia de saída do
regime (a negação da existência de vítimas e a imposição do esquecimento).
Engendrando, inclusive, o atual questionamento do pilar da impunidade.
Terceiro, a luta pela anistia atravessa gerações e consolida-se como mar-
co de formação de nossa identidade democrática. É por meio desta luta que
a sociedade se mobiliza para mudar um conjunto de alegados elementos de
conformação de nossa identidade nacional. Como exemplo, temos a premissa
do “homem cordial”, avesso à ruptura, que é apropriada e distorcida pela estra-
tégia de saída do regime por meio de um “acordo político”. É esta luta que nos
leva a refutar a ilação de que somos um povo pacífico, somente porque temos
um número de vítimas fatais menor em nossa ditadura que nas de alguns dos
países vizinhos, o que nos leva à falácia da “ditabranda”. E, sobretudo, a ideia
de que é possível esquecer o passado e olhar para o futuro como se o mundo
se iniciasse neste mesmo instante.
Quarto, o processo transicional brasileiro nos deixa claro que somen-
te um amplo trabalho político e jurídico é capaz de superar o legado e os
reflexos das culturas autoritárias advindas dos regimes de exceção. E que é
função do Direito das democracias do presente romper com as pretensões das
transições controladas.
Quinto, o legado de direitos que a Justiça de Transição vem consoli-
dando, no Brasil e no mundo, é um patrimônio comum da humanidade, que
deve ser cultivado e universalizado. No plano doméstico, o enfrentamento ao
autoritarismo deve ser estendido a outras causas e a outros períodos. O direito
à verdade e ao acesso à informação é, sem dúvida, um exemplo por excelência
do que esta conclusão pretende apontar. Todos nós temos direito a um Estado
transparente e que preste contas a população sobre seus atos. Esse é um caso
de legado transicional que deve ser universalizado. No plano internacional,

237
resta clara a consolidação de uma norma global de responsabilização indivi-
dual. Seja no plano civil, seja no plano criminal, nenhuma pessoa pode ser
considerada inalcançável pelo devido processo legal, nem ser excluída da res-
ponsabilidade por seus atos, principalmente quando estes implicam em graves
violações contra os direitos humanos.
As experiências de justiça de transição nos demonstram que a palavra
“justiça” não existe no singular, vez que pode ser praticada de distintas manei-
ras. Não obstante, parece-nos claro que a noção de crimes contra a humanida-
de – impassíveis de anistia e imprescritíveis –, ajuda a consolidar um padrão
mínimo de justiça efetivamente capaz de promover a proteção dos direitos
humanos no âmbito global.

238
Paulo Velten
Doutorando em Direito na UNESA. Coordenador do Colegiado do Curso de
Direito da UFES. Coordenador do Curso de Aperfeiçoamento do Curso de Edu-
cação em Direitos Humanos.

14
O MODUS OPERANDI DA DITADURA MILITAR E A
SEGURANÇA NACIONAL

Paulo Velten

1. Uma pequena contextualização Histórica

O golpe militar de 1º de abril de 1964, que este ano completa 50 anos, deve
ser analisado a partir de vários eventos simultâneos em todo mundo, dentre
os quais, deve-se ressaltar polarização das forças políticas entre os Estados
Unidos da América e União Soviética, a assim chamada “guerra fria” acabou
por se materializar através do tratado de Yalta, que configurou um bloco ca-
pitalista que, capitaneado pelos EUA, praticava a política econômica liberal
juntamente com Japão e Europa Ocidental. Em oposição, o bloco comunista
que liderado pela União Soviética dominou a Europa Oriental.
Quanto à América Latina, como citado por Valter Pires Pereira, a “adesão
ao bloco capitalista foi praticamente a única saída” (PEREIRA, 2005, p.30)
apesar das tentativas de forças políticas de países sul americanos de desven-
cilharem-se desta submissão, como nos governos de Velasco Alvarado (1968-
1975) no Peru, Salvador Allende (1970-1973) no Chile e Fidel Castro em Cuba.
Neste macro contexto, forjado no Nacionalismo Americano, iniciou-se
um programa sistemático de militarização do poder político na América Lati-
na. Baseada numa retórica alarmista e apocalíptica: o liberalismo “persuadiu
milhões de americanos a interpretar seu mundo em termos insidiosos levando-
-os a estabelecer políticas domésticas e globais que tentavam conter a ameaça
comunista”. (PEREIRA, 2005, p.24).
Baseada neste contexto histórico, o presente artigo pretende abordar o
modo de agir violador de direitos humanos que caracterizou o regime político
instituído a partir do golpe de estado de 01 de abril de 1964 e que perdurou até os
idos de 1986, cujos métodos produziram efeitos que se fazem sentir ainda hoje.
Este modus operandi é marcado pela busca da legitimação dos atos
ditatoriais através de processos judiciais. Esta prática foi possível graças à
transformação e introdução do conceito de violação da segurança nacional no

240
1. HABEAS CORPUS N. 26.155 com acórdão
ordenamento jurídico. Outrora relegado às ameaças externas, passou então a
redigido nos seguintes termos: Atendendo
ser atribuído a cidadãos opositores ao regime vigente, revelando assim a exis- a que a mesma paciente é estrangeira e a
tência de um razoável consenso entre os militares e o judiciário. sua permanência no país compromete a se-
Estigmatizado, o Governo João Goulart pretendia reformas de base (agrária e gurança nacional, conforme se depreende
das informações prestadas pelo Exmo. Sr.
de educação) que passaram a ser vistas como políticas comunistas. Dá-se o golpe,
Ministro da Justiça em casos tais não há
que através do Ato Institucional Número 1 se autodenominou revolução vitoriosa. como invocar a garantia constitucional do
O golpe preservou o funcionamento do sistema judicial no Brasil, tanto habeas corpus, à vista do disposto no art.
2 do decreto n. 702, de 21 de março deste
que a justiça eleitoral continuou a funcionar normalmente durante a ditadura,
ano: Acordam por maioria, não tomar co-
tanto na eleição indireta do primeiro presidente, referendado no cargo após nhecimento do pedido.
dois dias de campanha, como nas eleições de governadores que se sucederam
durante a ditadura. Evidencia-se assim, a disposição do judiciário de aplicar
a legislação produzida durante o regime militar, comportamento que perdura
mesmo após o fim do referido regime. Senão vejamos:

2- A Mutação do Conceito de Segurança Nacional

Desde o primeiro ato institucional, os golpistas evidenciavam que a busca pela


legitimação de seus atos não passava pelo congresso, pois, na ótica destes, o
comunismo constituía-se na ameaça externa à democracia brasileira. Assim,
embora combatessem “inimigos internos”, o faziam em função de fatores ex-
ternos. Daí a atração ao conceito que, conforme Hélio Bicudo, “uma ideologia
de segurança nacional que não fazia diferença entre inimigo externo e interno”
(BICUDO, 1986, p.9).
Este conceito já era utilizado desde a Constituição do Império de 1824
(art.148 e 179), também reafirmado na Constituição republicana e ainda na
Constituição de 1934 (art.159 e 161) foi fortemente utilizado por Getúlio Var-
gas, tanto na criação do Tribunal de Segurança Nacional (1935), verdadeiro
tribunal de exceção que funcionou como instrumento repressivo, tanto quanto
para julgar casos “comuns”, como do Habeas Corpus1 impetrado em favor de
Olga Benário, esposa de Luiz Carlos Prestes e principal opositor ao governo
Vargas, que, mesmo grávida, foi extraditada (porque alemã), tendo em vista
ter sido considerada uma ameaça contra a segurança nacional, vindo a ser
exterminada em campo de concentração nazista.

241
Após o golpe, os governos militares que se sucederam mantiveram-se
atentos à legislação vigente e inovaram com a edição de novas leis, bem como
com a edição de decretos-leis e atos institucionais.
Quando da deposição do governo João Goulart, vigorava a Lei 1.802/53,
que regulava especificamente da defesa nacional, a proteção dos limites territo-
riais; no ambiente interno de espionagem. Em 13 de março de 1967, foi editado o
Decreto Lei 314 que alterou a citada lei e passou a responsabilizar o cidadão pela
segurança nacional, além de acrescentar novos tipos penais. Para além, em 20 de
março de 1969, o Decreto Lei 510 criou novas modalidades de prisão e a incomu-
nicabilidade do preso, e, em 21 de outubro de 1969, com os Decretos Lei 1001 e
1002, instituíram-se o novo código penal e de processo penal que, respectivamen-
te, entre outras coisas, inovava ao instituir a prisão perpétua e a pena de morte.
Estas manipulações da lei durante o período ditatorial forjaram situações
que produziram conseqüências desastrosas para a Justiça brasileira, conforme
se pode observar na pesquisa “Brasil Nunca Mais”, dentre as quais deve-se
ressaltar: - a denúncia e julgamento por leis excepcionais de mais de sete mil
cidadãos brasileiros por discordarem do regime; - a modificação da competên-
cia justiça comum para a justiça militar para julgamento de crimes cometidos
por cidadãos por ato civis; - atribuição ao cidadão e não mais ao Estado a
responsabilidade pela segurança nacional; – de provocar verdadeira confusão
entre a honra do mandatário e a honra da nação ao tipificar crime de crítica à
autoridade constituída; - ao punir como atos subversivos e contra a segurança
nacional atividades legais; - estabelecer a prisão preventiva por iniciativa do
encarregado do inquérito; - a restrição do número de testemunhas de defesa
por acusado; - chegando ao absurdo de criar a possibilidade de prisão perpétua
e pena de morte, e, por derradeiro, a suspensão do habeas corpus.
Dessa forma, a Segurança Nacional passou de acessório à própria razão
de ser do golpe; a segurança de um sistema político, saindo do campo teórico
e passando a ser a régua de medir a legalidade; no dizer de Bicudo “tornou-se
uma espécie de palavra chave, um conceito inserido na linguagem comum a tal
ponto que ninguém mais indagava o seu sentido.”
Finalmente, em 17 de dezembro de 1978, foi promulgada a Lei 6.620.
A assim chamada nova Lei de Segurança Nacional substituía os decretos leis
citados anteriormente com a pretensão de substituir os instrumentos excep-

242
2. Art. 5º - Caberá, privativamente, ao Presi-
cionais que se fizeram indispensáveis para manter o regime militar, e ainda,
dente da República a iniciativa dos projetos
paralelamente, mas no mesmo caminho foi promulgada também a Emenda de lei que criem ou aumentem a despesa
Constitucional Nº.11, de 13 de outubro de 1978, que tinha por finalidade a cas- pública; não serão admitidas, a esses pro-
sação, em breve, do regime de leis excepcionais. A nova lei abrandava as penas jetos, em qualquer das Casas do Congresso
Nacional, emendas que aumentem a despe-
anteriores, bem como suprimia a pena de prisão perpétua e pena de morte.
sa proposta pelo Presidente da República.
Portanto a análise da transmutação do referido conceito é o ponto ne-
vrálgico para entender o modus operandi do regime militar, que se constituiu 3. Art 7º - Ficam suspensas, por 6 (seis) me-
ses, as garantias constitucionais ou legais
em verdadeiro indutor do comportamento doutrinário das gerações seguintes.
de vitaliciedade e estabilidade.
§ 1º - Mediante investigação sumária, no
prazo fixado neste artigo, os titulares des-
3. Medidas Arbitrárias sas garantias poderão ser demitidos ou
dispensados, ou ainda, com vencimentos
e as vantagens proporcionais ao tempo de
Outros procedimentos característicos de governos totalitários também foram serviço, postos em disponibilidade, aposen-
impostos pelo governo militar, vejamos: tados, transferidos para a reserva ou refor-
mados, mediante atos do Comando Supre-
- Com o golpe e a consequente limitação dos poderes do congresso, as
mo da Revolução até a posse do Presidente
leis, principalmente as orçamentárias, passaram a ser elaboradas pelo Presiden- da República e, depois da sua posse, por
te, que, com decretos leis de vigência imediata, tornou-se “dono” do orçamento decreto presidencial ou, em se tratando de
público, conforme preconizado no art.5º 2 do Ato Institucional Nº1. Essa me- servidores estaduais, por decreto do gover-
no do Estado, desde que tenham tentado
dida, que para muitos é de governança, demonstra o caráter autoritário de um contra a segurança do País, o regime de-
regime, uma vez que um país será tão democrático quanto for seu orçamento. mocrático e a probidade da administração
- Ainda no AI-1, em seu artigo 7º 3, cassou os direitos políticos dos opo- pública, sem prejuízo das sanções penais a
que estejam sujeitos.
sitores e até mesmo de aliados. Estabeleceu a suspensão das garantias cons-
titucionais ou legais de vitaliciedade e da estabilidade como forma de, numa 4. Os golpistas na exposição de motivos
penada, minar eventuais resistências do judiciário e dos servidores públicos, do AI-1 afirmavam que tomavam medidas
urgentes no sentido de drenar o bolsão co-
uma vez que, poderiam ser demitidos ou aposentados por investigações sumá-
munista infiltrado na cúpula do governo e
rias perpetradas pelo comando revolucionário supremo, no caso de decisões nas suas dependências administrativas em
contrárias à segurança do país; ou ainda, e por contraditório que possa pare- que pretenderia bolchevizar o país, em cla-
cer, por decisões contra o regime democrático4 ou a probidade administrativa. ra alusão à ditadura comunista.

Ressalte-se que o dispositivo foi, de fato, muito utilizado, tendo em vista que,
já sob a égide do AI-5, cassou aos Ministros do Supremo Tribunal Federal Her-
mes Lima, Vitor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, além de quase quinhentos
deputados e dois mil funcionários públicos, expulsando ainda de suas cátedras
sessenta e seis professores universitários, entre eles Caio Prado Jr, Florestan
Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, bem como inúmeros estudantes.

243
- Introduziu dispositivo que limitou o controle jurisdicional dos atos
derivados do AI-1 ao exame de formalidades extrínsecas, inovação que veda-
va a apreciação da conveniência e oportunidade dos fatos que o motivaram;
excluindo ainda a possibilidade de apreciação judicial do próprio ato, preceito
replicado até os dias atuais no que diz respeito a ações contra a fazenda pú-
blica, notadamente no que diz respeito às limitações atuais quanto ao deferi-
mento de liminares contra o Estado.
- No campo Universitário, a influência também foi grande, conforme
Regina Celi Frechiani Bitte “criou-se no sistema universitário uma visão tec-
nicista da educação, própria dos militares que se encontravam no poder, um
sistema baseado no modelo administrativo das grandes empresas e vinculando
a educação ao progresso técnico e científico, contrário a autonomia universi-
tária” (BITTE, 2006, p.44), idéia esta tida como contrária à falta de disciplina e
autoridade, prejudicial à ordem e à democracia.
- Com o ato institucional No. 5 e a suspensão das garantias constitucio-
nais, notadamente do habeas corpus, consolidou-se o maior retrocesso legis-
lativo que já se impôs a uma nação, reconduzindo o povo brasileiro a séculos
anteriores ao próprio descobrimento (a criação do habeas corpus data de 1215).

4. A Repressão no Processo

Na vida daqueles que foram processados, o dano foi ainda maior, conforme
revelou o Projeto Brasil Nunca Mais que, sob a batuta insuspeita de Dom Paulo
Evaristo Arns, denunciou, entre inúmeras mazelas, infindáveis excessos legais
e absurdos processuais como descritos a seguir:

• a prisão e a tortura tornaram-se o método de investigação e de segre-


gação política, de tal forma que o referido estudo revela que 69,18%
dos denunciados entre os anos de 1964 e 1968 e 71,05% entre anos
de 1969 e 1974 foram aprisionados; tornando-se assim a prisão regra
(método) e não exceção, violando assim o princípio da liberdade.
• que em 86,15% dos inquéritos entre os anos de 1964 e 1968 e 84,77%
dos inquéritos entre os anos 1969 e 1974 das prisões efetivadas não

244
constam dos autos os respectivos mandados de prisão, violando as-
sim o princípio da legalidade.
• que 681 pessoas entre os anos 1964 e 1968, 1937 pessoas entre os anos
de 1969 e 1974 e 210 pessoas entre os anos de 1974 e 1979 foram con-
denados em primeira instância sob o argumento da segurança nacional.

Para além de nossas fronteiras, o estudo do modus operandi ditatorial não


é novidade. A filósofa Hanna Harendt, em “As origens do totalitarismo”, desde
os meados do século passado, já denunciava o terror como instrumento neces-
sário para o governo de massas para o estabelecimento do regime totalitário.
Contemporaneamente, Anthony W. Pereira (2010) aponta três principais
motivos para o estudo da fundamentação jurídica dos argumentos lançados
para justificar os processos por crimes políticos que aconteceram durante a
ditadura, a saber:

1. Quando governos autoritários se preocupam em legalizar o processo, a


exigência de aderência a procedimentos formais pode vir a mitigar os
piores efeitos da repressão;
2. A compreensão mais profunda dos regimes autoritários influenciaram a
transição subseqüente para o regime democrático;
3. Permite construir um quadro mais detalhado da maneira como a lei foi
usada de forma excepcional, podendo revelar o que mudou e o que não
mudou, com o retorno ao Regime Democrático (PEREIRA, 2005)

Desta forma, descortinar tais fatos, servirá para que as gerações futuras pos-
sam, identificando-os, refutá-los; e para que se tenha uma história contada de-
mocraticamente. Poder-se-á entender, ainda, como a ideologia criada, replicada
até os dias atuais através de conceitos jurídicos impostos e incutidos nas gerações
que se seguiram, contaminam o modo de vida de uma nação inteira pois quanto
maior o consenso entroe as elites civis-militares sobre o funcionamento da dita-
dura, maior o grau de continuidade autoritária no funcionamento do golpe.
De todo o exposto, conclui-se que o estudo do modo de agir ditatorial,
para além de estancar a continuidade do método, pode servir como parâmetro
para que nas escolhas do presente não tomemos o caminho do passado.

245
Reênciasfer ácasbilogr

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad.: Robert Raposo. São Paulo: Cia
das Letras, 1989.

________A condição humana. Trad. Roberto Raposo, Rev. Adriano Correia. 11.ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2010.

_______ Da revolução. Trad.: Fernando Dídimo. 2.ed. Brasília: Editora Universidade


de Brasília, 1990.

ARNS, Paulo Evaristo (Org.). Brasil Nunca Mais. Petrópolis. Vozes, 1985.

BICUDO, Hélio, Lei de Segurança Nacional, Edições Paulinas – São Paulo, 1986.

BITTE, Regina Celi Frechiani, Formação do Professor no curso de história da Univer-


sidade Federal do Espírito Santo In: Ensino da História, seus sujeitos e suas
práticas/ Regina Helena Silva Simões, Sebastião Pimentel Franco, Maria Alayde
Alcantara Salim (Organizadores). Vitória: GM Gráfica e Editora, 2006, p.44 ISBN:
85-99510-16-9

BICUDO, Hélio. Lei de segurança Nacional. Leitura Critica. São Paulo: Edições Pau-
linas,1986.

BRASIL; OLIVEIRA, Juarez de. Lei de Segurança Nacional. 2ª Ed. São Paulo: Sa-
raiva, 1984.

PEREIRA, Valter Pires e Marvilla, Miguel (Org.) Ditaduras não são eternas: memórias
da resistência ao golpe de 1964, no Espírito Santo / textos de Ana Gabrecht,
Valter Pires Pereira, Ueber José de Oliveira; Vitória: Flor & Cultura: Assembléia Le-
gislativa do Estado do Espírito Santo, 2005 ISBN 85-88909-26-X

246
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão autoritarismo e o estado de direito no
Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito


no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

247
Ricargo Gueiros Bernardes Dias
Doutor em Direito pela UGF/University of California (San Francisco),
Mestre em Direito pela UGF/UERJ. Professor de Direito Constitucional e Pro-
cesso Penal da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Visiting Rese-
archer da Univeristy of California.

Penha Beltrame, Vanda Maria Moreira


Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Monitor das disciplinas de Teoria da Constituição e de Direito Constitucional
II na mesma Universidade.

15
“UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA INCORPORAÇÃO
DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL:
OS DESAFIOS AINDA PRESENTES”

Ricardo Gueiros Bernardes Dias


João Guilherme Gualberto Torres

1. Introdução

Ficamos, por vezes, a imaginar quais seriam as consequências de um ordena-


mento jurídico sem um escalonamento hierárquico. Em verdade, esse questio-
namento traz, em outras palavras, uma indagação mais profunda, o que não
é objeto precípuo da presente investigação, ou seja, qual a (real e eventual)
necessidade de haver uma sistema hierárquico de normas. Ora, são elas en-
tes amórficos. Estaríamos escalonando esses entes para fins de regulação de
quem os criou? Mas, independentemente desse aspecto, é dessa problemática
(a hierarquização) que nosso conflito (problemática) vem à tona.
O presente trabalho tem por escopo um exame mais acurado, e atual, da
incorporação do direito internacional no ordenamento jurídico pátrio, máxi-
me após a Emenda Constitucional n. 45/04, a qual acresceu, entre outros, ao
artigo 5º da Magna Carta, o parágrafo 3º, que versa sobre o procedimento de
votação de tratados internacionais de direitos humanos.
A importância, embora vastos já sejam os posicionamentos do Su-
premo Tribunal Federal na matéria, não se cinge à hierarquia assumida
pelos tratados de direitos humanos, senão que se busca avançar e perquirir
acerca dos próximos passos a serem dados; isto é, de que forma os tratados
antes da Emenda Constitucional 45, ou mesmo antes da Constituição de
88, devem ser analisados. Em linha de conta, traz-se a lume a proposta de
alteração do regimento interno do Congresso Nacional, modificadora do
quórum de votação de tratados internacionais, em alinhamento, já tardio,
com a EC em epígrafe.

249
O estudo mais detido da estrutura escalonar do ordenamento jurídico
brasileiro é ponto de partida para outras indagações que permanecem, igual-
mente, presentes no meio acadêmico-jurídico.
O tema em especial, demonstra a preocupação, sempre válida, da coloca-
ção pátria em meio ao quadro internacional que se amolda em clara preocupa-
ção com a defesa dos direitos humanos e os mais diversos e coletivos valores.
Nesta quadra da historia, ainda há resistência a que a incorporação es-
colhida pelo legislador tenha sido consentânea com as exigências políticas da
época, mas que não podem, ainda assim, ser suplantadas por teorias que visam
a alçar voos mais altos.

2. A hierarquia das normas jurídicas.

É antiga a visão de que a estrutura escalonada das normas jurídicas serve


como parâmetro para estudo do ordenamento jurídico. A importância reside
na facilidade de perceber-se de que forma é possível que uma norma retire de
outra seu fundamento de validade, possibilitando não só o fortalecimento, em
último grau, de uma Constituição rígida, como também realçando aquilo que
nela vem pregado por vontade do legislador.
De acordo com tal estudo, toda norma retira seu fundamento de valida-
de de outra norma, superior, por excelência, formando, assim, uma estrutura
suprainfraordenada na qual é possível surgir um mosaico piramidal, em que
normas inferiores estejam de acordo com normas superiores, ao menos no
primeiro momento dessa visualização.
Em consequência, haverá um momento em que, não sendo possível um
regresso ao infinito, uma norma última há de ser pressuposta como funda-
mento de validade para todo o ordenamento jurídico. A essa norma, Hans
Kelsen atribuiu o nome de “norma fundamental hipotética” (Grundnorm), a
qual não retira seu fundamento de validade de outra norma, senão que se
apresenta como um

fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legis-


ladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como

250
devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fun- 1. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.
dado sobre essa norma fundamental .
1 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 219.

2. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamen-


Esse último parâmetro de validade permite que qualquer outra norma, de esca- to jurídico. São Paulo: EDIPRO, 2011. p. 69.
lão inferior, possa, ou não, manter-se no ordenamento jurídico observado. Certo
3. Op. cit. p. 38.
é que, por presunção de validade, toda e qualquer norma é passível de adentrar
na estrutura escalonada, ali permanecendo até que outra norma, revogadora,
a anule porque não condizente com o parâmetro de validade preestabelecido.
É de se ressaltar que a norma fundamental hipotética não conduz a
que haja um conteúdo de validade das normas sobre elas fundadas, mas que
fornece, apenas, o fundamento de validade de todas as demais2.
Ao trabalhar a norma fundamental, Norberto Bobbio tratou-a como sen-
do, ao mesmo tempo, uma norma atributiva (no sentido de conferir poder a
algum órgão de editar normas inferiores a normas válidas) e imperativa (no
sentido de impor aos destinatários das normas editadas pelo órgão competente
o cumprimento). O autor não deixou escapar que essa norma é pressuposta,
fundante do sistema normativo, ou, se se preferir, ordenamento jurídico. Se-
melhante ao que expôs Kelsen, além dessa norma fundamental e pressuposta
não é possível digredir, ou melhor, seria inútil caminhar além dela.
Interessante notar que, embora partindo de visões diferenciadas, ambos
chegam a uma e mesma conclusão, qual seja, a de fundamentar toda a vali-
dade do ordenamento jurídico numa norma fundamental e pressuposta, sem
conteúdo condicionante, que, no entanto, servirá para todo o ordenamento
jurídico como fundamento de validade último, além do qual não se pode ir.
Diz-se que partem de colocações diferenciadas, porquanto Norberto Bo-
bbio, ao analisar a norma jurídica, acaba por dar prevalência a ela, apenas
quando inserida no ordenamento, nas palavras dele,

não existem ordenamentos porque há normas jurídicas, mas existem


normas jurídicas porque há ordenamentos jurídicos distintos dos orde-
namentos não jurídicos3.

De outro lado, Hans Kelsen, partindo da nomoestática (que considera os


problemas relativos à norma jurídica), leva à conclusão da existência da nomo-

251
4. KELSEN, Hans. Teoría pura del derecho.
dinâmica (problematização do ordenamento jurídico), igualmente imprescindí-
México: Universidad Nacional Autónoma
de México, 1982. p. 202. vel para o estudo do direito posto. Lapidar a passagem na qual

5. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e que una norma determinada pertenezca a un orden determinado se basa
do estado. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes,
en que su último fundamento de validez lo constituye la norma fundante
1998. p. 163.
básica de ese orden.
6. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e con-
senso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
E prossegue,

esta norma fundante es la que constituye la unidad de multiplicidad de


normas, en tanto representa el fundamento de la validez de todas las
normas que pertenecen a ese orden4.

Parte, portanto, do particular ao geral.


Para fins deste trabalho, resulta que, diferentemente do tratamento dado
ao mundo do ser, em que as coisas se distinguem por critério apofântico, isto
é, cogitar-se de verdadeiro ou falso, de acordo com aquilo que é, que acontece;
ao trabalhar no plano do dever ser, examina-se por critério valitativo. Isso
posto, a norma valerá se pertencer a um sistema válido de normas, buscando
em norma superior seu fundamento de validade, até que

limitada por uma norma mais alta que é o fundamento último de va-
lidade de uma norma dentro de um sistema normativo, ao passo que
uma causa última ou primeira não tem lugar dentro de um sistema de
realidade natural 5.

Avançando, se da hierarquia normativa extrai-se, igualmente, a hierar-


quia dos órgãos legiferantes não é demasia concluir que um tal poder consti-
tuinte só pode derivar de uma norma fundamental pressuposta, que o institua
como órgão competente a dar razão a uma Constituição ou sobre ela dispor,
por critérios políticos, daquilo que cogite ser o substancial ou necessário a
determinada sociedade, em determinado tempo.
Nada obstante não se queira, aqui, perquirir acerca dos limites do poder
constituinte, discussão esta que atravessa os limites do propósito ora estabele-

252
cido, faz-se necessário compreender de que modo a opção constituinte acaba 7. Op. cit. p. 72.
por influir na recepção de normas jurídicas internacionais, incorporadas ao
8. MÜLLER, Friederich. Quem é o povo? São
ordenamento pátrio por meio de cláusulas havidas no texto constitucional.
Paulo: Max Limonad, 2003. p. 108.
Se, por um lado, tem-se o conhecimento dos trâmites necessários desde
a celebração de um tratado até o depósito deste na esfera internacional (e pro- 9. STRECK, Lenio Luiz. Ciência política e
mulgação na esfera interna), é também verdade que a limitação de sua hierar- teoria geral do estado. 3 ed. Porto Alegre,
2003. p. 135.
quia em termos de direito interno é capaz de apresentar sérias controvérsias, se
não se compreende como motivação política esta ou outra forma de inserção,
como mais a frente se verá.
Trata-se de um problema já referido por Lenio Streck6, como uma das
dificuldades encontradas no Brasil. Isto é, a ausência de uma verdadeira teoria
das fontes não consegue dimensionar os problemas havidos pela não com-
preensão do estamento galgado por determinada norma jurídica dentro do
ordenamento pátrio; e de que forma sua hierarquia se faz possível a depender
do órgão legiferante ou do procedimento já previamente estabelecido. Mais
abaixo se apontará a mudança trazida no bojo da Emenda Constitucional n.
45/04, ao prever procedimento específico (semelhante ao de votação de emen-
da constitucional) para tratados versados em direitos humanos.
A abertura ao plano internacional do ordenamento jurídico brasileiro
deve ser acompanhada, igualmente, das alterações legislativo-constitucio-
nais provocadas pelos anseios constituintes (originários ou derivados, sem
adentrar na polêmica).
Indagar o critério de pertença de uma norma é saber conferir-lhe, de acor-
do com os mandos constitucionais postos, de que modo passa a ser válido no
sistema jurídico o preceito normativo legislado, ou se se preferir, incorporado.
Contudo, ainda que possa parecer antipático aos olhos de tantos, sobre-
pujar a vontade constitucional de disciplinar ou não em espaço interno o rele-
vo dado a esses pactos é igualmente repudiar o texto constitucional e desven-
cilhar-se dos critérios adotados pelo constituinte, representante democrático
das escolhas de um povo, se assim se entender o texto constitucional. Seria,
outrossim, desrespeitar a Constituição, contra o que deve-se montar guarda, a
fim de que não sejam cometidos abusos.
O próprio Bobbio leva a crer em que questionar “qual é o fundamento da
norma fundamental num ordenamento jurídico positivo?”7 é redundar no vazio

253
10. JEVEAUX, Geovany Cardoso. Direito
de que tais perguntas transcendem o ordenamento jurídico positivo, pois seria
constitucional: teoria da constituição. Rio
de Janeiro: Forense, 2008. p. 296. o mesmo que buscar a justificação em sentido absoluto do poder.
Assim, também, com Friederich Müller 8, pode-se dizer que a legitimida-
de do poder constituinte do povo só é possível se houver a incorporação das
pretensões deste ao texto (Vertextung) da Constituição, tendo por interlocutor
o povo enquanto instância de atribuição, sendo que o procedimento democrá-
tico de pôr em vigor a Constituição dirige-se ao povo ativo. Sem, obviamente,
descurar do cerne constitucional (democrático, por excelência) observado pelo
povo-destinatário dos direitos.
O alerta vem, mais uma vez de Lenio Streck quando aduz:

são os direitos humanos, a nosso ver, um dos aspectos fundamentais


para que entendamos privilegiadamente o quadro das relações interna-
cionais contemporâneas, em especial no que diz respeito à soberania 9.

2.1. A relação existente entre direito interno e direito internacional.

A análise da relação havida entre direito interno e direito internacional, tri-


lhando o exposto no tópico anterior, não se assenta no conteúdo sobre o
qual versa o tratado internacional, ou da ordem internacional, como um
todo. Pelo contrário, funda-se, justamente, naquilo que pode ser considera-
do pressuposto de validade para a existência do direito internacional, se da
perspectiva de que o direito internacional é ou não parte integrante do direi-
to interno, para as teorias monistas, ou se é possível a convivência de duas
ordens simultâneas, e, por conseguinte, de dois fundamentos de validade
(teoria dualista ou pluralista).
Para aqueles adeptos da teoria dualista, existiriam duas ordens jurídicas
coexistentes, internacional e nacional, que poderiam vir a ser diferenciadas na
fonte (vontade do Estado), nos sujeitos (indivíduos ou Estados) e no conteúdo
(subordinação ou coordenação)10.
Pela teoria dualista, assentou-se que enquanto no direito interno a von-
tade emana do próprio Estado, no direito internacional exige-se a vontade
conjunta dos Estados. Decerto, é algo a diferenciar entre as ordens normativas
sobre as quais se debruça, haja vista, na estrutura interna, é possível enxergar-

254
se o eixo vertical que fundamenta a estrutura jurídica interna. De outro modo, 11. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8
no plano internacional, a inexistência de um órgão único supranacional e san- ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2009. p. 369.
cionador, possibilita a que só seja possível a mantença do direito internacional
através dos acordos bi ou plurilaterais, pelos quais se obriga o próprio Estado. 12. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8
Quanto ao conteúdo, a preocupação da ordem interna em normatizar a ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2009. p. 378.
conduta dos indivíduos, dos sujeitos nacionais, sendo que no direito interna-
cional a atenção se volta aos interesses supranacionais. 13. JEVEAUX, Geovany Cardoso. Direito
Em posição mais moderada, propugna-se pela obrigatoriedade das leis constitucional: teoria da constituição. Rio
no âmbito interno, e pela incidência da regra do pacta sunt servanda, em de Janeiro: Forense, 2008. p. 297.

âmbito internacional.
Nenhuma das duas teorias dualistas (ou pluralistas), todavia, está imune
a críticas, em especial, quanto à lógica de sua construção. Com supedâneo em
Kelsen, não se pode aceitar que dois complexos de normas formem um siste-
ma normativo unitário, delimitados nos respectivos domínios de validade, um
em face do outro. Para tanto, seria, ainda, necessário, um terceiro e superior
ordenamento, que os delimitasse e os coordenasse. Eis que “a determinação do
domínio de validade é a determinação de um elemento de conteúdo do ordena-
mento jurídico inferior pelo superior”11.
Assim sendo, duas apenas são as construções possíveis de modo a ajustar
o direito interno e o direito internacional: ou se concebe o direito interna-
cional como ordem jurídica delegada pela ordem interna, incorporada a esta;
ou como uma ordem jurídica total que delega nas ordens jurídicas internas,
supraordenada a estas e abrangendo-as a todas como ordens jurídicas parciais.
A diferença existente entre as duas construções monistas reside em que,
a seguir o pensamento kelseniano, aquela que toma o direito interno como
fundamento de validade para a ordem internacional, pressupõe-se que a pri-
meira constituição histórica, cujo ordenamento forma o ponto de partida da
construção, é um fato gerador de direito. De outro lado, a teoria monista que
sustenta o primado da ordem internacional sobre a interna, não toma qualquer
ordem interna como ponto de partida, senão que se sustenta na própria ordem
internacional o fundamento de validade, pressuposta por virtude da qual o
costume é um fato gerador de direito12.
Para Jellinek e Wenzel, ficaria a cargo das Constituições estatais estabe-
lecer o modo de conclusão dos tratados e de que modo seria feita a incorpo-

255
14. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8 ração da ordem internacional na ordem interna13. A se adotar a teoria monista
ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, com primado da ordem interna deve-se, antes de tudo, reafirmar a soberania
2009. p. 374.
do Estado. Esta soberania é a pressuposição de uma ordem normativa como
15. RESEK, José Francisco. Direito interna- ordem suprema cuja validade não é dedutível de nenhuma ordem superior.
cional público: curso elementar. 13 ed. São Nesse último caso, apenas se reconhece o direito internacional como
Paulo: Saraiva, 2011. p. 127.
ordem jurídica delegada pela ordem interna, apenas válido com relação ao
16. Em crítica aguda à resistência à incor- Estado, se reconhecida por este. Em linhas gerais, o fundamento de validade
poração dos Tratados internacionais sobre do direito internacional é, para esta versão da teoria monista, encontrado na
Direitos humanos, embora pouco destoante ordem jurídica interna.
dos lindes do afirmado neste ensaio, confe-
rir LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Direitos
A teoria monista com primado da ordem internacional foi encampada
humanos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, por Hans Kelsen, e, segundo ela, o conhecimento da unidade do Direito interno
2011. pp. 24-26, passim. e do Direito internacional toma por ponto de partida este último como ordem
jurídica válida. Nesta toada, calha considerar o princípio da efetividade, “que
é uma norma do Direito internacional positivo”, a qual

determina, tanto o fundamento de validade, como o domínio territorial,


pessoal e temporal de validade das ordens jurídicas estaduais e estas,
por conseguinte, podem ser concebidas como delegadas pelo direito in-
ternacional14.

Nada obstante a crítica da a-historicidade trazida no bojo da teoria mo-


nista apregoada por Kelsen, não se pode desconsiderar que se mostra totalmente
adequada aos propósitos de sua teoria, consentâneo com tudo o mais o que ele
escreveu. Não é na ordem cronológica que se deve observar a criação das ordens
interna e externa, senão que a própria norma jurídica válida é capaz de pres-
crever este enlace. Não se deve confundir a conexão histórica com a conexão
normológica. Assim, também, ocorre com a unidade estadual (Estado-membro)
que, embora existente antes da Constituição Federal, nela se fundamenta.
Nessa senda, lapidar a observação de Francisco Resek, segundo o qual

o primado do Direito das gentes sobre o direito nacional do Estado


soberano é ainda hoje uma proposição doutrinária. Não há, em direito
internacional positivo, norma assecuratória de tal primado15.

256
O ponto fulcral da questão é observar tratar-se de política a prevalência, 17. BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à
adotada a teoria monista, do direito interno ou do direito internacional. Se o pró- constituição do brasil. São Paulo: Saraiva,
1988. p. 262.
prio Estado é quem se obriga no plano internacional, dele parte a maior ou menor
vontade de reduzir sua soberania e submeter-se às regras pactuadas em nível 18. Pérez Luño, citado por André Ramos Ta-
horizontal com demais Estados. De fato, não há qualquer móvel que o obrigue a vares, sustenta que “no processo de cons-
titucionalização dos direitos fundamentais
se limitar mais ou menos em plano internacional, senão a sua vontade política.
o positivismo teve um papel importante
Nesses tempos, porém, em que a busca pelo pacifismo se faz contundente, ao colocar a exigência de uma concreção
e a necessidade de ajuda externa mútua é cada vez mais evidente, os laços cria- jurídica dos ideais jusnaturalistas, para
dos em nível supraestatal suplantam as diferenças culturais, étnicas religiosas dotá-los de autêntica significação jurídico-
-positiva. Contudo, os acontecimentos po-
ou de qualquer ordem e acabam por exigir de cada Estado um posicionamento líticos se encarregaram de evidenciar, em
mais firme de inserção na ótica globalizada que se tem vislumbrado16. Com certas ocasiões, de forma trágica, a necessi-
Kelsen, é possível afirmar a existência da Weltanschauung em matéria de sub- dade de situar a fundamentação do sistema
da liberdades públicas em uma esfera que
missão ou não aos tratados internacionais e em que grau no direito interno.
ultrapassa o arbítrio da jurisdição interna
Na concepção subjetivista, se prevalente o Eu soberano, não se afigura de cada Estado”. In TAVARES, André Ramos.
possível conceber uma realidade externa, um mundo exterior, desvinculado que Curso de direito constitucional. 10 ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 553.
seja da representação e da vontade do Eu interno. Tal concepção conduz, ine-
vitavelmente, ao solipsismo, levando a crer em que as coisas só existem através
e a partir da ordem jurídica do próprio Estado. Destarte, a soberania do Estado
exclui a soberania dos demais. Na mundividência objetivista, por outro lado,
parte-se do mundo exterior real para conceber o Eu como parte integrante do
mundo, valendo-se como ordem parcial incorporada ao direito internacional.
É, contudo, necessário asseverar que qualquer das duas concepções
encontra locus favorável em qualquer Estado que se possa dizer soberano. Já
não mais há qualquer lógica que possa subverter o pensamento diretivo do Es-
tado, a não ser a própria política, a qual toma as rédeas da direção normativa.
Não há entre os dois sistemas qualquer exclusão ou opção de um que seja mais
ou menos correto. Sob qualquer ponto de vista, está alijada da ciência jurídica
a decisão por uma ou outra formulação de predominância do sistema interno
ou do sistema internacional.
Pelo que se viu alhures, agregando-se ao expendido as teorias de relação
entre o direito interno e o direito internacional, parece que, com o advento da
Emenda Constitucional n. 45/2004, optou o constituinte brasileiro, adotando a
teoria monista, por fazer prevalecer a ordem interna, porquanto esta estabele-
ceu, de antemão, o procedimento necessário para a incorporação dos tratados

257
19. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de di- internacionais sobre direitos humanos a nível constitucional, do que se pode
reito constitucional. 7 ed. São Paulo: Sarai- deduzir a sistemática quanto aos demais acordos internacionais.
va, 2012. pp. 656-675, passim.
A EC n. 45/04 surge como marco delimitador do mecanismo de incor-
20. Representativo da defesa desta teoria, poração porque, pela primeira vez, dita o procedimento necessário para que
o eminente professor Celso Albuquerque os direitos humanos, pactuados na esfera externa, alcancem status de normas
Mello.
constitucionais, pacificando a celeuma, ao menos num primeiro momento (e
21. No Brasil, Antônio Cançado Trindade e no nível legislativo), existente na doutrina e na jurisprudência.
Flávia Piovesan perfilharam o entendimen- Crendo em que a crescente intensificação das relações internacionais
to de hierarquia constitucional a ser atribu- possa, um dia, levar à supremacia da comunidade internacional, logo após a
ída aos tratados que versem sobre Direitos
humanos.
promulgação da Constituição de 1988, aduzia Celso Ribeiro Bastos que, vindo
a consumar-se, em sua inteireza a noção de submissão dos Estados às normas
22. Entendimento que restou esposado no internacionais, heteronomamente impostas, “estará superada a própria noção
paradigmático julgamento do RE 466.343/
de Estado”. De modo que, “a organização política da humanidade terá assu-
SP, de relatoria do ex-Ministro Cezar Pelu-
so, julgado em 3 de dezembro de 2008. mido uma natureza e feição profundamente diversa daquelas dominantes em
nossos dias” 17, 18.
23. Esta a posição adotada pelo Supremo
Tribunal Federal quando ainda precoce a
discussão da matéria, anteriores, os julga-
dos, à EC n. 45, seguindo jurisprudência 3. A incorporação de tratados internacionais sobre Direitos
firmada na Corte. Cf. RE 80.004/SE, Rel. humanos: as teorias existentes.
Min. Xavier de Albuquerque, julgado em 1º
de junho de 1977; ADI 1.080/DF, Rel. Min.
Celso de Mello, julgada em 4 de setembro Com a ratificação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de
de 1997. Desta última, é possível extrair o São José da Costa Rica – Decreto 678/92) e com a adesão brasileira ao Pacto In-
seguinte trecho da ementa: “Os tratados ou
ternacional de Direitos Civis e Políticos (Decreto 592/92), interessante discussão
convenções internacionais, uma vez regu-
larmente incorporados ao Direito interno, frequentou o meio acadêmico e doutrinário, indo parar na jurisprudência da
situam-se, no sistema jurídico brasileiro, Suprema Corte. Tratava-se, pois, de indicar a hierarquia assumida pelos trata-
nos mesmos planos de validade, de eficácia dos internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro,
e de autoridade em que se posicionam as
leis ordinárias, havendo, em consequência,
tendo surgido várias vertentes, entre as quais19: a) supraconstitucionalidade20;
entre estas e os atos de Direito internacio- b) hierarquia constitucional21; c) supralegalidade22; d) status de lei ordinária23.
nal público, mera relação de paridade nor- Duas colocações devem anteceder as explicações pertinentes a cada uma
mativa. Precedentes.” E ainda se asseverou
dessas vertentes. Em primeiro lugar, deve-se ter ciência do escopo em observar
que a resolução de conflito antinômico so-
mente seria possível através dos critérios de o grau hierárquico ocupado por tratados que versem sobre direitos humanos,
cronologia (lex poster derogat lex anterior) pois, do contrário, assumirão eles mesmos status da legislação ordinária.
e de especialidade. Curioso notar, a esse respeito, o art. 98 do Código Tributário Nacional
(CTN), segundo o qual “os tratados e convenções internacionais revogam ou

258
modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes 24. A este propósito, interessante conferir
sobrevenha” (grifou-se). O preceito normativo em tela não somente aduz a res- a discussão traçada entre os Ministros do
Supremo Tribunal Federal quando do julga-
peito da revogação por incorporação superveniente de tratados internacionais mento do HC 87.585, de relatoria do Min.
em matéria tributária, o que se assemelharia à adoção do mesmo grau hierár- Marco Aurélio, julgado em 03.12.2008.
quico, havendo derrogação por critério cronológico, como, ainda, passado este
25. Apenas para situar, conferir, entre ou-
momento, condicionaria as demais legislações futuras, limitando o legislador
tros, TAVARES, André Ramos. Curso de
na elaboração normativa. É dizer, se incorporado, assume um caráter suprale- direito constitucional. 10 ed. São Paulo:
gal, condicionando a atividade legiferante. Saraiva, 2012. pp.544-572; BULOS, Uadi
Há, pois, desde a década de 40, previsão, infraconstitucional, diga-se de Lammêgo. Curso de direito constitucional.
6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. pp. 698-712.
passagem, a respeito da incorporação de tratados que fugissem ao plano ordiná-
rio legislativo. Veja-se que tão somente abrange a matéria tributária, o que não 26. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de di-
se cogitava até a promulgação da vigente Carta Magna e, em especial, após o reito constitucional. 7 ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2012. p. 658.
advento da EC n. 45/04, quanto a tratados e convenções sobre direitos humanos.
Em segundo lugar, mister consignar a diferença substancial provocada
pela inserção do § 3º no artigo 5º da Magna Carta. A previsão de procedimento 27. CRFB, art. 5º, § 2º. Os direitos e ga-
semelhante ao exigido para emendas constitucionais não pode ser olvidada rantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e
pelos estudiosos do direito. Parece claro que, a seguir o quórum previsto, al- dos princípios por ela adotados, ou dos
cançará o tratado sobre direitos humanos o mesmo grau hierárquico das de- tratados internacionais em que a República
mais normas constitucionais, o que inviabiliza entendimento acerca da teoria Federativa do Brasil seja parte.

de supraconstitucionalidade24.
28. CRFB, art. 5º, § 1º. As normas definido-
Segundo alguns doutrinadores, entretanto, a tão só presença do § 2º, ras dos direitos e garantias fundamentais
no art. 5º, permitindo a extensão do rol de Direitos Fundamentais e o art. têm aplicação imediata.
4º, inciso II, todos da Constituição Federal, já seriam permissivos claros de
que tais acordos internacionais devessem assumir hierarquia constitucional,
quiçá, supraconstitucional.
Voltando às teorias até então apresentadas pela doutrina25, a primeira
delas incorpora os tratados internacionais sobre direitos humanos com status
supraconstitucional, conferindo-lhes aplicabilidade imediata. Nas palavras de
Bidart Campos, citado por Gilmar Mendes,

si lo que queremos es optimizar los derechos humanos, y si conciliarlo


con tal propósito interpretamos que las vertientes del constitucionalis-
mo moderno y del social han enrolado […] en líneas del derecho interno
inspiradas en un ideal análogo, que ahora se ve acompañado interna-

259
29. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de di- cionalmente, nada tenemos que objetar (de lege ferenda) a la ubicación
reito constitucional. 7 ed. São Paulo: Sa- prioritaria del derecho internacional de los derechos humanos respecto
raiva, 2012. p. 661.
de la Constitución26.
30. CRFB, art. 5º, § 3º. Os tratados e con-
venções internacionais sobre direitos hu- Ocorre, todavia, que, algumas sérias implicações traz a adoção da re-
manos que forem aprovados, em cada Casa
ferida tese. A uma, que a rigidez constitucional, desenvolvida pelo princípio
do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos da supremacia forma e material da Constituição, impediria a adequação da
membros, serão equivalentes às emendas tese diante do quadro apresentado pelo ordenamento jurídico brasileiro. A
constitucionais. duas, que, a prevalecer, impediria o controle de constitucionalidade dos atos
internacionalmente pactuados, o que levaria ao questionamento de que, em
vindo a se descumprir o iter procedimental de incorporação dos tratados, qual
a solução seria adotada? Ainda, no plano material, a adequação aos direitos e
garantias fundamentais já trazidos no seio constitucional.
A tese de atribuição de hierarquia constitucional enxerga no § 2º do
art. 5º 27 da Magna Carta uma cláusula aberta de recepção de direitos outros
subscritos pelo Brasil, no plano internacional, conferindo-se, ademais, aplica-
bilidade imediata, desde a ratificação, dispensando-se a intermediação legisla-
tiva, em leitura do § 1º do mesmo art. 5º 28.
Em caso de conflito, adotar-se-ia o princípio do in dubio pro homini
ou fazendo prevalecer o princípio da dignidade humana, com o consectário
da norma mais favorável à pessoa humana. Cançado Trindade asseverou que
“a normativa dos tratados de Direitos humanos em que o Brasil é parte tem efe-
tivamente nível constitucional e entendimento contrário requer demonstração”29.
Tal doutrina esvaziou-se com o advento da EC n. 45/04, a qual, conforme já
se disse, trouxe procedimento próprio de incorporação de tratados sobre direitos
humanos, a nível constitucional 30. A exigência de aprovação através de quórum
especial no Congresso Nacional mitiga a adoção da vertente esposada pelo autor.
A vigência do mesmo parágrafo terceiro reflete, para alguns, que não
pode, todavia, entender-se possível o plano meramente ordinário dos tratados
incorporados. Isso porque, ao prever quórum especial, ter-se-ia ressaltado o
caráter especial dos tratados sobre direitos humanos em relação aos demais
tratados, os quais assumem, incontestavelmente hierarquia ordinária.
Destarte, a terceira vertente assenta-se na posição intermediária de ditos
tratados, é dizer, acima do nível ordinário, da legislação comum, mas abaixo

260
do nível constitucional, somente alcançado se aprovado, no Congresso Nacio- 31. TIBURCIO, Carmen. Conflito entre fon-
nal, de acordo com o procedimento prescrito. tes: os casos da prisão do depositário infiel
e devedor fiduciante e as leis uniformes de
Por fim, a quarta e última vertente, já superada, como se verá abaixo,
Genebra: comentários à súmula vinculan-
pela jurisprudência e pela doutrina, atribuía aos tratados incorporados o nível te 25. Revista de Direito Bancário e do
semelhante ao da legislação ordinária. Mercado de Capitais. São Paulo, v. 50, p.
245, out. 2010.
Uma preocupação não pode deixar de ser externada e, inclusive, chegou
a ser aventada em várias decisões da Suprema Corte quando se debruçaram os
Ministros sobre a temática ora posta em discussão. A caracterização dos trata-
dos e convenções internacionais, para fins de abrangência ou não da temática
dos direitos humanos poderá, num futuro próximo, gerar sérias dúvidas aos
estudiosos do Direito. Isto porque deve ficar entendido que nem sempre os
acordos internacionais são claramente extensores do rol dos direitos humanos,
abordando, por vezes, indiretamente a questão, ou, ainda, apenas fazendo re-
ferência. Saber se versa ou não sobre direitos humanos o tratado ratificado e
a ser incorporado no ordenamento pátrio poderá causar transtornos tanto no
momento da votação parlamentar, quando se buscará aferir o procedimento
adequado de votação, ou como no controle de constitucionalidade, realizado
pela Suprema Corte brasileira.
Não se pode, ademais, perder de vista que defensores há que encontrarão
em todo e qualquer tratado internacional algum ponto a fim de reivindicar o
caráter humanitário trazido em seu bojo, para fins de benefícios que poderão
ser alcançados de acordo com o status hierárquico assumido. A deturpação na
apreensão dos fins do Direito das gentes introduzido no solo tupiniquim não
pode descambar para o alvedrio de motivações ideológicas ou oportunistas,
senão de que deverá haver profícua proteção de aspectos humanistas exis-
tentes a nível internacional, plano este que busca o Estado brasileiro ocupar,
alinhando-se às demais potências com os mesmos e bem definidos escopos.

3.1. O caminho trilhado pela jurisprudência na incorporação dos


tratados internacionais sobre Direitos humanos.

Sob a ótica da inserção do Brasil perante o cenário internacional, uma frase


sempre nos chamou a atenção. Era (e é) um costumeiro raciocínio de Camen
Tiburcio31: Dizia ela (e ainda diz) que nossa nação, durante boa parte de

261
sua história, praticou uma espécie de isolacionismo no tocante sua parti-
cipação no cenário internacional. Não faz, assim, tanto tempo que o Brasil
passou a ratificar um número mais substancial de tratados internacionais.
Isso, portanto, é uma (apenas uma!) das razões que levaram a jurisprudência
a tardar em mostrar suas primeiras balizas quanto à incorporação e posição
hierárquica dos tratados internacionais. Além disso, não se olvida que os
diferentes tratamentos – concedidos pelos mais diversos Estados – também
corroboram para uma falta de sistematização. Com isso (e também por outros
motivos), a problemática da antinomia no âmbito internacional encontra
percalços além daqueles vistos em um ordenamento jurídico interno, como
esmiuçado acima.
De uma forma ou de outra, nosso leading case sobre a matéria remonta
ao período anterior à Constituição de 1988, como fizemos menção em nota
anterior. Estávamos no ano de 1977, quando o Supremo Tribunal Federal apre-
ciou o Recurso Extraordinário 80.004. Tratava-se de analisar a Convenção
de Genebra, especificamente, a Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas
Promissórias. Discutia-se o conflito entre o Decreto-Lei n. 427/69 e o referido
Tratado Internacional (promulgado pelo Decreto n. 57.663/66).
Tratava-se, portanto, de averiguar a questão do critério hierárquico, uma
vez que, quanto ao critério temporal, não haveria maiores dúvidas e que, no
tocante à especificidade, percebeu-se que ambas as normas possuíam natureza
semelhantes.
Curiosamente, a princípio, o Ministro Xavier de Albuquerque inclinava-
se a posicionar os tratados internacionais em posição superior ao da legislação
infraconstitucional. Entretanto, após o voto-vista do Ministro Cunha Peixoto,
o Supremo Tribunal Federal, por maioria, entendeu que as normas em conflito
possuiriam mesma posição hierárquica, razão pela qual a solução do conflito
de normas não deveria ser outro senão ao já utilizado se normas internas fos-
sem, ou seja, lex posterior derrogat legi priori.
É só após a promulgação da Constituição de 1988 é que a discussão volta
ao palco da jurisprudência. E isso se dá porque, pela primeira vez, uma norma
constitucional pátria resolve tratar, mesmo que timidamente, da matéria.
Como já salientado, o § 2º do art. 5o preceituava originariamente (e ainda
preceitua) que

262
os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros 32. RHC 79785. Relator Min. Sepúlveda
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados Pertence. Julgamento: 29.03.2000.

internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

A redação, com efeito, poderia gerar interpretações diversas. Mas as pri-


meiras interpretações doutrinárias pareciam seguir um caminho mais lógico.
O que estaria a Constituição a dizer quando preceituava que não haveria ex-
clusão de outras garantias, por exemplo, criadas por tratados internacionais?
Seria apenas uma previsão constitucional a permitir que tratados – que versas-
sem sobre direitos e garantias fundamentais – pudessem (no sentido permissi-
vo) ser incorporados ao ordenamento jurídico interno? Ou seria um dispositivo
constitucional que teve por condão posicionar os tratados internacionais em
situação hierárquica similar à Constituição (ou, no mínimo, superior às normas
infraconstitucionais)? Sim, fazemos essas perguntas por um motivo lógico.
Não haveria muitas outras opções hermenêuticas (sustentáveis).
E o maior percalço seria a obviedade da resposta à primeira pergunta: não.
Não acreditamos que § 2º do art. 5o teria um escopo óbvio de permitir (ou seja,
apenas permissivo) que tratados internacionais trouxessem ao ordenamento
jurídico novos direitos e garantias fundamentais. Concluir de forma contrária
nos levaria a uma intepretação absurda: que, sem essa previsão constitucional,
os tratados só poderiam regular matérias que não disciplinassem direitos e ga-
rantias fundamentais. Ora, uma norma que não dispensa um processo legislati-
vo mais rigoroso que a formação de uma lei ordinária estaria – estranhamente
– limitada a situações de somenos importância. E mais: seria ilógico, agora
sob a ótica material, imaginar que as normas internacionais só poderiam – ao
menos no âmbito pátrio – disciplinar assuntos de menor importância. Haveria,
em tese, uma outra conclusão absurda. Se se precisasse dizer que os tratados
podem criar novos direitos e garantias fundamentais, concluiríamos dizer que
a Constituição também precisaria deixar expresso que as normas infraconstitu-
cionais também teriam essa prerrogativa (o que, obviamente, é desnecessário).
Dissemos “percalço” porque isso faria restar apenas uma interpretação,
precisamente aquela que nos faria responder positivamente à segunda per-
gunta. Não que isso seja de todo mal. Pelo contrário. O problema é que, no afã
de uma recém-editada Constituição, impulsionada por um movimento demo-

263
crático, parecia haver uma certa resistência do Supremo Tribunal Federal em
aceitar uma hierarquia constitucional de uma norma (seja internacional, ou
não), que não fosse proveniente de um poder constituinte. Estava claro que
a resistência não estava no caráter transfronteiriço da norma. Esse caráter
veio a acalentar as discussões. Aliás, não fosse isso seria desnecessário maior
esforço hermenêutico.
E essa resistência ficou claramente demonstrada logo após os primeiros
casos analisados pelo Supremo Tribunal Federal. Interessantes as palavras de
Sepúlveda Pertence ao relatar o primeiro processo32 em que teve a oportunida-
de de examinar a questão de forma mais exauriente. É que o

tema foi encarado pelo Tribunal duas vezes, pelo menos: a primeira,
no HC 72.131, 23.11.95, Moreira Alves - relativa à compatibilidade da
prisão civil do depositário infiel ou equiparado com o art. 5º, LXVII, CF,
e com o Pacto de São José - e na ADinMC 1.480, 25.9.96, Celso de Mello
- acerca da constitucionalidade da Convenção 158 da Organização In-
ternacional do Trabalho. Ambos os acórdãos lamentavelmente ainda
aguardam publicação. Mas, no primeiro, fiquei vencido, dada a inteli-
gência restritiva que empresto à permissão constitucional da prisão do
depositário infiel, independentemente da superveniência da Convenção
Americana; e, no segundo, a nitidez das posições ficou um tanto com-
prometida com a circunstância de a Convenção possuir caráter progra-
mático - como a mim e a outros juízes pareceu - ou, pelo menos, admitir
interpretação conforme, que exclua qualquer pretensão de eficácia ple-
na e imediata (Inf. STF, n. 82) como entendeu a maioria (ver ementa do
voto condutor do Ministro Celso de Mello, transcrito no Inf. STF 135).

Assim, quanto ao período pós-Constituição de 88, parece ter sido dado,


nesse caso, um tratamento mais definidor. Ao dissertar, longamente, sobre as
diversas posições doutrinárias (como também fizemos acima), o ministro rela-
tor coloca-se a favor da tese segunda à qual não haveria razão para modificar
o entendimento já pacificado anteriormente à promulgação da CF de 88, qual
seja, o tratado internacional possuiria hierarquia similar à da lei ordinária.

264
O fundamento-base poderia ser resumido em um raciocínio: “que, ao
menos no Brasil, o tratado internacional não pode ultrapassar os limites im-
postos pela Constituição da República. E a razão para tanto, está na natureza
estável do texto constitucional”. Em outras palavras, o exercício hermenêutico,
a nosso ver, derivou de uma intenção predisposta em colocar a Constituição
acima de qualquer outra norma. Utilizou-se, inclusive, o argumento de que o
art. 59 da CF já deixava claro o caráter rígido da Carta.
Perceba o leitor que nem sequer estamos, aqui, entrando no mérito da
questão dos direitos e garantias fundamentais. Queremos dizer, não há esforço
persuasivo, de nossa parte, em demonstrar que a posição do STF deveria ser
diferente em razão da importância dos direitos envolvidos. O que estamos a
dizer é que, independentemente do grau de relevância do assunto, não fosse a
intenção predisposta, não se poderia interpretar dessa forma.
Disso, podemos tirar duas conclusões: 1) essa intepretação nos leva a
uma inocuidade do § 2º do art. 5o (ao menos quanto ao assunto que estamos
a tratar), na esteira do que relatamos acima; 2) para mudar o cenário, seria
necessário lidar com a rigidez da CF.
E essa barreira (no que toca ao problema da rigidez), precisaria ser ul-
trapassada mediante uma emenda constitucional. Essa mudança vem com a,
já mencionada, “reforma do judiciário”, mediante a qual é inserido o § 3º do
art. 5o. Interessante. Poder-se-ia optar pela mudança da redação do § 2º, já
que, pela nossa conclusão, o dispositivo seria inócuo. Optou-se, entretanto,
em criar subsequente parágrafo, como se o dispositivo constitucional original
não precisasse de um esclarecimento e, sim, de um aditamento (o que não nos
parece fosse o caso).
A nova redação, contudo, não foi bastante, em termos jurisprudenciais,
para esclarecer o tema (ao menos para o STF). Como já transcrevemos, diz o
§ 3º do art. 5o:

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que fo-


rem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
às emendas constitucionais.

265
33. Informativo STF n. 498. E, aqui, a história se repete. A história da resistência a que nos referimos
nos parágrafos anteriores. Mas, agora, a situação (hermenêutica) nos parece
34. Íntegra do voto do Recurso Extraordi- mais séria. É que se o problema era a rigidez (e a rigidez é derivada exatamente
nário 466.343.
do grau de dificuldade – em termos comparativos – da aprovação da emenda
constitucional), ele seria sanado com a promulgação da EC 45/04.
A resistência, entretanto, dessa vez, não parece ter-se dado tanto em ra-
zão do caráter da rigidez, mesmo porque foi precisamente esse aspecto que a
EC 45/04 veio superar. A resistência, como veremos abaixo, parece ter tido um
motivo mais técnico-processual, qual seja, o fato de não se estar analisando, in
casu, um tratado aprovado sob a força do § 3º do art. 5º da CF. Isto é, o máximo
que o STF poderia ter realizado (e, infelizmente, o fez muito timidamente) seria
um esclarecimento obiter dictum, quanto a esse novel parágrafo constitucional.
Ao analisar o Recurso Extraordinário 466.343, cuja relatoria foi incumbi-
da ao Min. Cezar Peluso, houve uma divergência significativa. O Min. Gilmar
Ferreira Mendes salientou

(…) que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo


Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a
legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou
posterior ao ato de ratificação (…).

Por sua vez, o Min. Celso de Mello, divergindo nesse ponto, afirmou que

no que respeita à atribuição de status supralegal aos tratados interna-


cionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, afirmou terem estes
hierarquia constitucional. No ponto, destacou a existência de três dis-
tintas situações relativas a esses tratados: 1) os tratados celebrados pelo
Brasil (ou aos quais ele aderiu), e regularmente incorporados à ordem
interna, em momento anterior ao da promulgação da CF/88, revestir-
se-iam de índole constitucional, haja vista que formalmente recebidos
nessa condição pelo § 2º do art. 5º da CF; 2) os que vierem a ser celebra-
dos por nosso País (ou aos quais ele venha a aderir) em data posterior à
da promulgação da EC 45/2004, para terem natureza constitucional, de-
verão observar o iter procedimental do § 3º do art. 5º da CF; 3) aqueles

266
celebrados pelo Brasil (ou aos quais nosso País aderiu) entre a promul- 35. Idem.
gação da CF/88 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter
36. Idem.
materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido
transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade33.

Ao refutar os argumentos o Min. Gilmar Mendes asseverou:

A despeito da belíssima sustentação dos argumentos e também dos res-


paldos doutrinários, entendo que, no caso, corremos o risco de produzir-
mos uma atomização de normas constitucionais. Identificados os trata-
dos de direitos humanos como de hierarquia constitucional, passaremos
a ter essas normas como parâmetro de controle, gerando, portanto, um
quadro de insegurança jurídica.34

Reforçamos o esclarecimento acima: por tratar-se de tratado não aprova-


do sob a égide do § 3º do art. 5º da CF (e ainda “não convertido”), a discussão
foi voltada muito mais para a própria aplicação do § 2º do mesmo artigo.
Esses argumentos acabaram, entretanto, por serem obiter dictum, pois
não modificaram o decisum. Ou seja, a divergência não foi determinante para
eventual alteração no julgado, qual seja, a vedação da prisão civil nos casos
do depositário infiel.
Tanto isso é verdade (o caráter obiter dictum do ponto), que o Min. Cesar
Peluso, ao aditar seu voto (exatamente em razão do pronunciamento dos de-
mais ministro), disse:

Neste ponto, abstenho-me de examinar a questão da taxinomia, entre


nós, dos tratados internacionais aprovados, promulgados e incorpora-
dos ao ordenamento jurídico, porque me parece que, qualquer que seja
a postura teórica em relação à autoridade e ao valor nomológico desses
tratados, o resultado jurídico e prático será o mesmo para os casos con-
cretos que estamos a julgar. (…) Assim, a mim me parece - pelo menos
neste julgamento - irrelevante saber qual o valor, a autoridade ou a
posição taxinômica que os tratados internacionais ocupam perante o
ordenamento jurídico brasileiro.35

267
37. Note-se que, até a presente data, ape- E mais: o ministro relator chega a antecipar eventual futuro voto a res-
nas um tratado internacional foi aprova- peito da precisa posição hierárquica dos tratados internacionais:
do segundo os novos ditames: Decreto nº
6.949, de 25.8.2009, que trata “sobre os Di-
reitos das Pessoas com Deficiência e de seu Em relação aos casos futuros e a eventual caso posto perante o novo
Protocolo Facultativo, assinados em Nova Código Civil, já antecipo, para excluir a terceira alternativa, minha po-
Iorque, em 30 de março de 2007.”
sição de que vou reconhecer caráter supralegal ou caráter constitucional
ao Tratado.36

A palavras finais deixam clara a dúvida que ainda paira sobre a temática.
Mas como vimos, a discussão não enfrentou, de forma minimamente
exauriente, a questão do § 3º do art. 5º da CF. Arriscaríamos a dizer que, nesse
ponto, o Supremo Tribuna Federal se posicionará de forma mais homogênea e,
quiçá, como ratio decidendi. Como parece adiantar (uma vez mais em caráter
obiter dictum) o Min. Gilmar Mendes no discutido RE 466.343:

Enfim, desde a adesão do Brasil no ano de 1992, ao Pacto dos Direitos


Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Huma-
nos – Pacto de San José de Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para
a aplicação da parte final do art. 5º, LXVII, da Constituição, ou seja, para
a prisão civil do depositário infiel.
(…)
De qualquer forma, o legislador constitucional não fica impedido de sub-
meter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José de Costa Rica,
além de outros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial
de aprovação previsto no art. 5º, §3º, da Constituição, tal como definido
pela EC n. 45/04, conferindo-lhes status de emenda constitucional.

Em outras palavras, a tese da supralegalidade (mas, ao mesmo tempo,


concedendo caráter infraconstitucional aos tratados) só se coadunaria quanto
aos tratados não aprovados segundos os ditames § 3º do art. 5º da CF (ou não
“convertidos” mediante o mesmo processo).
Isso implica concluir que o Supremo Tribunal Federal, embora não enfren-
tando a novidade inserida na EC 45/04, modificou seu entendimento anterior

268
quanto à aplicação do (então) inócuo § 2º do art. 5º da CF, que agora possui,
ao menos, a eficácia de alçar os tratados internacionais a um nível supralegal.

3.2. A proposta de emenda regimental do Congresso Nacional:


perspectivas futuras.

Exsurge, entretanto, o problema advindo da aprovação do § 3º do art. 5º da


CF. Seria possível “converter” os tratados internacionais aprovados (ainda sob
a égide da redação constitucional original) em normas com nível hierárquico
segundo a nova redação? E como seria realizada essa “conversão”?37
Visando a regulamentar a matéria, foi proposto, no âmbito da Câmara
dos Deputados, o Projeto de Resolução 204/2005, que propõe a criação do ar-
tigo 203-A, §10, no Regimento Interno da Câmara dos Deputados:

§10. Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos rati-


ficados pelo Brasil antes da promulgação da EC 45, de 2004, poderão ser
objeto de requerimento previsto no caput deste artigo [203-A],
Art. 203-A. Recebida mensagem do Presidente da República conten-
do tratado ou convenção internacional sobre direitos humanos, a Mesa
fará publicar no avulso da ordem do dia o prazo de dez sessões para a
apresentação de requerimento subscrito por um terço de deputados so-
licitando sua equivalência a emenda constitucional, nos termos do §3.º
do art. 5.º da CF, acrescido pela EC 45, de 2004.

Entretanto, independentemente do processo legislativo de “conversão”


utilizado, a questão do tópico anterior continua. E não poderia ser diferente,
tendo em vista que uma Resolução de uma das Casas do Congresso Nacional
não teria o condão de esclarecer a interpretação a ser dada ao controvertido §
3º do art. 5º da CF.
Mas nem parece ter sido essa a intenção da Casa Legislativa. O que
houve foi um “recado” daquela Casa no sentido de conceber tal possibilidade.
De qualquer forma, caberá ao Supremo Tribunal Federal, pronunciar-se a
respeito da inserção desses tratados aprovados sem a observância do § 3º do
art. 5º da CF.

269
Não vemos maior óbice; mesmo porque a proposta de Resolução nada
mais faz do que equiparar a aprovação dos tratados (nos ditames do § 3º do
art. 5º da CF) ao processo de formação das emendas constitucionais. Importa só
frisar, uma vez mais, que essa proposta não guarda qualquer relação quanto à
discussão da hierarquia dessas normas, como defendem alguns doutrinadores.

5. Conclusão

Para concluir, poderíamos resgatar o velho chavão: “sem pretender esgotar tema,
objetivamos…”. Mas não se trata disso. Nunca se “esgota” um tema. Achamos
que é uma espécie de uma falsa humildade e/ou hipocrisia acadêmica, pois se
estaria admitindo que o assunto (e pior: a conclusão desse assunto) não poderia
ser revisto. O (pseudo) esgotamento significaria uma desnecessidade de futuras
reflexões sobre o tema. E, admitir isso, nos levaria a um engessamento de uma
ciência (notadamente a relativa às ciências sociais) que possui (e possuirá) uma
eterna mutação, o que implica reanálises perenes. Quem afirma isso, de duas
uma: ou disse menos do que gostaria de ter dito (talvez por falta de tempo); ou,
realmente, crê que um dia esgotará um assunto (o que julgamos menos provável).
Nossa breve conclusão relata mais uma preocupação do que eventuais
sugestões. Desde o surgimento da Constituição de 1988, a problemática do
posicionamento hierárquico no tocante aos tratados internacionais já estaria,
a princípio, resolvido. A redação do § 2º do art. 5º da CF já seria, por si, bas-
tante para concluir que os tratados que versassem sobre direitos e garantias
fundamentais (e, aqui, não pretendemos adentrar na eterna discussão que os
diferencia dos direitos humanos, no sentido conceitual) poderiam ser equipa-
rados às emendas constitucionais.
E, nesse sentido, reforçamos nosso entendimento de que para chegar-
se a essa conclusão não precisaríamos investigar com maior profundidade
as noções principiológicas extraídas da teoria constitucional, tampouco dos
princípios internacionais dos direitos humanos. Bastaria um exercício herme-
nêutico mais simplório.
Mas o Supremo Tribunal Federal sempre foi resistente desde os primeiros
julgados; talvez, como salientamos, derivado de uma cultura de momento.

270
Uma cultura derivada de um afã que pairava nos primeiros momentos da eu-
foria de quem ganhou um novo guardião.
Mas não bastasse a frustrada tentativa do § 2º do art. 5º da CF, a situação
(hermenêutica), a nosso ver, se agrava quando, mesmo após o surgimento do §
3º do mesmo dispositivo, o Supremo Tribunal Federal, quase dez anos depois,
não ter ainda um posicionamento claro a respeito do tema, o que não se deu
por falta de oportunidade.
O debate acerca dos aspectos do direito civil, tal como os princípios
do direito cambiário e os institutos atinentes à prisão civil ganharam mais
a atenção dos Ministros que, propriamente, assentar o status hierárquico de
tratados internacionais sobre direitos humanos ao serem incorporados ao
ordenamento pátrio.
Nesse sentido, mesmo que, de forma intelectualmente prepotente (ou
mesmo ingênua) concluíssemos pelo esgotamento do tema, pouco adiantaria.
É que, em nossa investigação, nossa principal conclusão é que a questão não
foi sequer examinada pelo STF (ao menos como ratio decidendi).
Se, contudo, conforme acreditamos, voltar o debate a ocupar a pauta do
judiciário, merecerá da Suprema Corte uma revisão crítica dos posicionamen-
tos até então esposados, para fins de garantir maior coerência na incorporação
dos tratados internacionais, bem como o respeito às balizas estipuladas cons-
titucionalmente, máxime quanto ao §3º do art. 5º da Magna Carta.

271
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273
274
Martha Lucía Olivar Jimenez
Discente do curso de Educação em Direitos Humanos

Valesca Raizer Borges Moschen


Doutora em Direito e Coordenadora do Mestrado em Direito da Universidade
Federal do Espirito Santo

16
LAS INMUNIDADES DE ESTADO EXTRANJERO Y LA
PROTECCIÓN DE LOS DERECHOS HUMANOS EN LA
PAUTA DEL JUDICIARIO BRASILEÑO

Martha Lucía Olivar Jimenez


Valesca Raizer Borges Moschen

1. MADRUGA F., Antenor P., A renúncia à 1. Los progresos en la jurisprudencia brasileña en materia de
imunidade de jurisdição pelo estado bra- inmunidades de Estado extranjero
sileiro e o novo direito da imunidade de
jurisdição, Rio de Janeiro:Renovar, 2003,
pp.203 e 204. No hay ninguna duda en la relación simbiótica entre la doctrina y la jurispru-
dencia en la búsqueda de soluciones innovadoras a los problemas que surgen
2. Op. Cit. P. 200.
día a día y en la incuestionable evolución del derecho que de allí resulta. Esa
afirmación gana proporciones mayores en la materia que nos ocupa. Entre los
asuntos que más han interesado a los jueces brasileños y para los cuales han
buscado auxilio en la doctrina nacional y extranjera pueden destacarse de un
lado, el constante esfuerzo por diferenciar claramente competencia internacional
e inmunidad de jurisdicción y de ejecución, examinando el fundamento de los
privilegios (1.1), y de otro la determinación de reglas de procedimiento que deben
ser observadas en los conflictos en que interviene un Estado extranjero (1.2).

1.1 Jurisdicción & competência: harina de un mismo costal?

La inmunidad de jurisdicción se consubstancia en un triangulo procesal que


se presenta a partir de dos relaciones jurídicas distintas: una primaria, así lla-
mada por Antenor Pereira Madruga Filho1, entre el Estado extranjero (deman-
dado) y el particular/Estado (demandante); y, una secundaria, que solamente
existirá en el caso de que el Estado extranjero alegue su inmunidad negandose
a la jurisdicción de los tribunales en los cuales la lidis se desarrolla.
Es, en este último caso, que se constituye un conflicto internacional a ser
analizado bajo la óptica del ordenamiento jurídico que disciplina las relaciones
entre Estados: el derecho internacional2 y las reglas procesales nacionales.

276
En la relación primaria, en caso de no existir oposición del Estado ex- 3. La problemática mayor reside, usualmen-
tranjero a la jurisdicción interna, el procedimiento será realizado a partir de las te, en la ejecución de una eventual senten-
cia condenatoria del Estado extranjero.
reglas materiales y procedimentales aplicables a al caso concreto. Al no existir
la excepción preliminar de inmunidad, cabrá al juez, a partir del analisis de 4. MADRUGA F., Antenor P., A renúncia à
fondo de la cuestión, tomar la decisión según los supuestos de hecho y de imunidade de jurisdição pelo estado bra-
sileiro e o novo direito da imunidade de
derecho argumentados y aplicables3.
jurisdição, Rio de Janeiro:Renovar, 2003,
Por otro lado, en la relación secundaria – en la cual exista el conflicto pag.203 e 204.
internacional – la inmunidad se clasifica como una cuestión independiente de
la cuestión de fondo. O sea, antes de resolver el problema de fondo que nortea 5. Mandat d’arret du 11 avril 2002 (Repu-
blique Democratique du Congoc. Belgique),
el litigio, el juez debe evaluar si el Estado demandado es inmune a la jurisdic- arrêt C.I.J. Recueil 2002.p.3.
ción nacional4.
Desde el prisma procedimental, las controversias relativas al tema de 6. Mandat d’arret du 11 avril 2002, nota 9.

la inmunidad se inician en la propia calificación procesal del instituto. Por


7. Mandat d’arret du 11 avril 2002, nota 9.
tratarse de una excepción preliminar la inmunidad de jurisdicción del Estado
demandado y la determinación de la competencia del juez, son cuestiones
cercanas y frecuentemente confundidas.
En 2002 la Corte Internacional de Justicia en el caso RDC V. Bélgica
también conocido como el “Mandato de Prisión” o “Caso Yerodia”5señaló la
diferencia crucial entre la jurisdicción de los tribunales nacionales y las inmu-
nidades jurisdiccionales, rechazando la asimilación entre estas dos cuestiones:

[…] Las reglas que gobiernan la jurisdicción de las Cortes Nacionales


deben ser cuidadosamente diferenciadas de aquellas que gobiernan las
inmunidades de jurisdicción: jurisdicción no implica ausencia de inmu-
nidad y ausencia de inmunidad no implica jurisdicción […] 6.

La declaración del Juez Koroma apoyando el raciocinio del Tribunal In-


ternacional merece ser destacada:

[…] La jurisdicción se refiere al poder del Estado de afectar los derechos


de una persona o personas por medidas legislativas, ejecutivas o judi-
ciales. En tanto que la inmunidad representa la independencia y excep-
ción de la jurisdicción o de la competencia de las Cortes o Tribunales de
un Estado extranjero7.

277
8. LIEBMAN, Enrico Túlio, Manual de Di- La Corte hizo tal afirmación al constatar que los dos conceptos, jurisdic-
reito Processual Civil, trad. Port. Foren- ción e inmunidad, están íntimamente relacionados generando muchas veces
se, 1984, v.1, n.24, p.55, apud CARNEIRO,
Athos Gusmão, Jurisdição e competência,
confusión por lo que se hace necesario garantizar la prevalencia lógica del
14 ed., São Paulo:Saraiva, 2005, p.67. primero sobre el segundo: la inmunidad jurisdiccional solamente será un obs-
táculo procesal en el momento en que sea constatada y no en el momento
9. Apelação Civil 9696–3 Genny de Olivei-
en que es manifestada por el Estado interesado y eso ocurre si el tribunal es
ra v. RDA, Aci 9696–3/SP São Paulo, D.J.
12/10/1990, p 11045. competente para decidir la cuestión.
La doctrina brasileña trabaja el concepto de jurisdicción y competencia
10. MADRUGA FILHO, Antenor Pereira, op. a partir de la concepción de que “La jurisdicción actúa como la manifestación
cit., 201.
de la potestad del Estado. Es al mismo tiempo, poder, función y actividad”. La
competencia, por su vez, posee una dimensión de naturaleza interna, o sea,
representa “la medida de la jurisdicción8”
Los tribunales brasileños no constituyen una excepción al problema
como se puede constatar en la propia decisión 9696–3 Genny de Oliveira,
donde el Ministro Relator Sydney Sanches confundió los dos conceptos al
ver en el artículo 114 de la Constitución de 1988 una alteración del régimen
de la inmunidad.
En esa ocasión el voto del Ministro Francisco Rezek fue claro al determi-
nar que tal disposición se refería exclusivamente a las reglas de jurisdicción/
competencia del juez nacional y en ningún momento debía interpretarse como
consagrando el principio de la inmunidad relativa de jurisdicción9.
Como bien lo afirma uno de los especialistas brasileños en materia de in-
munidades, Antenor Pereira Madruga Filho, la competencia constituye siempre
una limitación de la jurisdicción, al no existir un orden jurídico supranacional
capaz de centralizar decisiones e imponer eficazmente límites al poder de cada
uno de los Estados le corresponde a cada uno de ellos establecer los límites
de su jurisdicción10. Compartimos la posición del citado autor cuando afirma
que procesalmente el examen de la inmunidad de jurisdicción constituye una
cuestión plenamente independiente de la decisión de mérito del conflicto. Así
el juez deberá verificar primero si la causa está dentro del ámbito de su com-
petencia de conformidad a la ley interna, para solamente después evaluar si el
Estado reo es inmune a la jurisdicción nacional.

278
Para el Profesor Cândido Dinamarco tres ordenes de motivos orientan la 11. DINAMARCO, Cândido Rangel. Insti-
acción del Estado al determinar las reglas de competencia: tuições de direito processual civil. 2ª ed.,
São Paulo: Malheiros, v. 1, 2002
1º. La imposibilidad o dificultad para ejecutar en territorio extranjero
ciertas decisiones de los jueces nacionales;
2º. La irrelevancia de muchos conflictos frente a los intereses que al Es-
tado le corresponde preservar;
3º. La conveniencia política de mantener ciertos padrones de respeto
recíproco con relación a otros Estados.

Tales motivos llevan a excluir del poder judicial ciertas cuestiones por
inviabilidad, por ausencia de interés o por conveniencia internacional11. Es en
esta última cuestión que la doctrina encaja las inmunidades.
La competencia internacional de los tribunales brasileños se encuentra
determinada fundamentalmente, no exclusivamente, en la constitución, en la
Ley de Introducción del Código Civil y en los artículos 88 (competencia concu-
rrente) y 89 (competencia exclusiva) del Código de Procedimiento Civil.
En los últimos años los esfuerzos del Supremo Tribunal Federal se han
concentrado en definir claramente el concepto independientemente de las in-
munidades dando lugar a una jurisprudencia digna de mención. A pesar de los
esfuerzos muchos jueces de instancias inferiores continúan a confundir juris-
dicción e inmunidad, declarando frecuentemente extinto el proceso sin citar el
Estado extranjero al entender que está amparado en el privilegio.

1.2 El paradojo de las reglas procedimentales

Curiosamente en Brasil ni la verificación de incompetencia internacional ni


aquella destinada al reconocimiento o no de inmunidad a un Estado extran-
jero están sometidas a un régimen procesal expresamente definido, de tal
manera que en uno y otro caso los tribunales se han visto forzados a aplicar
analógicamente los dispositivos normativos existentes particularmente en el
Código de Procedimiento Civil. Esa situación explica que sobre algunos as-
pectos aún subsisten posiciones contradictorias y la necesidad de precisión
se hace evidente.

279
12. RO 85 – RS (2009/0044482–3), Dje El análisis de la jurisprudencia de los Superiores Tribunales brasileños,
17/08/2009, pag.2–11. principalmente aquella mas reciente, así como el excelente trabajo ya realiza-
do por Antenor Pereira Madruga Filho, permiten determinar el procedimiento
13. Vid, entre otros, el RO 70 RS de 2008.
que viene siendo observado en los controversias en que interviene un Estado
14. RO 74 – RJ (2008/0076862–4), Dje extranjero particularmente en calidad de demandado.
08/06/2008, p.1 a 35.

1º. La citación del Estado. Esta es, sin lugar a dudas, una de las cues-
tiones que más ha suscitado dudas en los jueces, en particular sobre la na-
turaleza del acto como bien lo señalaba el Ministro Relator João Otávio de
Noronha, en el Recurso Ordinario 85 de 200912 al analizar la diferencia entre
citación, notificación e intimación dadas las consecuencias procesales que
cada una presenta.
Deja claro el Ministro relator en su voto que no se trata de citación en
el sentido estricto de la palabra y en el sentido del art. 213 del CPC brasileno,
una vez que los efectos de la citación, en particular, la angularización de la
relación jurídica, no estarían presentes.
Tampoco se trataría de intimación, acto por el cual se da a conocer al
destinatario los actos y términos del proceso, conforme el art. 234 del CPC bra-
sileno, una vez que la comunicación al Estado extranjero por el juez nacional,
no criaría onus a las partes.
La propuesta enumerada por el RO 85, es la de caracterizar tal acto como
atípico en el ordenamiento brasileño, por no generar onus y no producir efec-
tos frente al Estado extranjero. El relator la caracteriza como siendo una “co-
municación procesal” no tipificada en nuestras normas jurídicas, pero que no
genera efectos procesales en los moldes de la citación y /o intimacción.
En general los tribunales han preferido la citación en la Embajada.13 Mas
el Supremo Tribunal Federal , basado en la naturaleza jurídica de las embaja-
das y en leyes existentes, defiende la citación al Ministerio de Relaciones Ex-
teriores del Estado extranjero directamente. Opción también corroborada por
las decisiones recientes del Superior tribunal de Justicia, como lo demuestra la
decisión del RO 74–RJ (2008/0076862–4)14, al afirmar que el estado extranjero,
aún cuando si configure acto de imperio, tiene la prerrogativa de renunciar a
la inmunidad motivo por el cuál há de ser realizada la citación”.

280
Ahora bien, la doctrina mayoritaria así como la jurisprudencia de los Tri- 15. Vid entre otros, los Recursos Ordiná
bunales Superiores (STF Y STJ) coinciden en afirmar que no se puede declarar rios n.57–RJ (2007/0081639–4), Dje
14/09/2009; e n.74 – RJ (2008/0076862–4)
inepta la petición inicial contra un Estado extranjero desde el comienzo, pues
Dje 08/06/2009.
aún cuando aparentemente la situación se encuadre dentro de las hipótesis en
que será declarada la inmunidad el Estado extranjero podrá renunciar siempre 16. RO 64–SP (2008–0003366–4). Dje
23/06/2008.
al privilegio e someterse a la jurisdicción territorial.15
Mediante el Recurso Ordinario n. 6416 se consagra, en la jurisprudencia 17. RO 64–SP, op.cit.
brasileña, la necesidad de actuación del Estado extranjero para que se mani-
fieste a respecto de su inmunidad, antes de la extinción del proceso. En este 18. Vid. Comentários DINAMARCO Cândido.
Op.cit. p.203.
sentido, el recurso mencionado consagró el entendimiento de que:

la inmunidad de jurisdicción no representa una regla que automáticamente


deberá ser aplicada a los procesos judiciales contra un Estado extranjero. Se
trata de un derecho que puede, o no, ser ejercido por ese Estado.

A raíz de una mejor comprensión de la autonomía del instituto de


inmunidad frente al de la competencia, la justicia brasileña rechaza cons-
tantemente la decisión de extinción del proceso sin la debida citación del
Estado Extranjero.17

2º. Plazo para defensa. En los países dotados de legislación específica es


previsto un plazo bastante amplio, sobre esta base Antenor Pereira Madruga
defiende la aplicación análoga del plazo otorgado por el artículo 188 del CPC
a favor de la Hacienda Pública Nacional. Este plazo todavia no es harmonico,
en función, inclusive, de la própria naturaleza del acto de citación anteriore-
mente analisado.

3º. Silencio del Estado extranjero. Tradicionalmente la doctrina interna-


cionalista en peso ha equiparado el silencio de un Estado extranjero demanda-
do a la invocación del privilegio e, en consecuencia, al no reconocimiento de
la jurisdicción del tribunal que le cita.
En 1984 el Ministro Djaci Falcão en el caso Luthero Viera v. Francia18
dejaba claro que “el silencio del Estado reo, no atendiendo a la citación judi-
cial, no configura por sí renuncia a la inmunidad de jurisdicción”. La situación

281
19. En este mismo sentido vid las decisiones cambia radicalmente si el Estado extranjero contesta la acción e inclusive si
RO N. 69. recorre de la decisión, ya que en tales situaciones se está reconociendo la com-

20. La interposición de La defensa de inmu-


petencia del Tribunal para decidir la cuestión de mérito.
nidad suspende el plazo procesal del tras- En la misma línea de pensamiento, en la citada decisión, RO 85 –RS
lado y de la citación hasta que se resuelva. (2—9/0044482–3) la Corte entendió que:

21. Igualmente CINTRA, Antonio Carlos de


Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINA- el silencio de representante diplomático, o del propio Estado Extranjero,
MARCO, Cândido Rangel. “Teoria Geral dejando de comparecer a la relación jurídico-procesal, no implica re-
do Processo”. 21ed, São Paulo: Malheiros, nuncia a la inmunidad de jurisdicción.19
2005, p.238.

22. Publicado en el Dje 14/09/2009, Este viene siendo el entendimiento mayoritario de la jurisprudencia pa-
pág. 24–43. tria contemporánea.

4º. Incidente de inmunidad. Compartimos la posición defendida por An-


tenor Pereira Madruga Filho que, inspirado en la ley argentina de 199520,
propone la aplicación del artículo 265 III del CPC. En consecuencia, invocado
el privilegio por el Estado o transcurrido el plazo concedido al Estado sin que
este se haya manifestado el proceso se suspendería y los plazos volverían a
correr a partir del momento en que el Estado fuese informado de la decisión
de no reconocer la inmunidad.
En el incidente el juez analizará los argumentos de la parte autora y del
Ministerio Público Federal.

5º. Extinción del proceso por el reconocimiento de la inmunidad de ju-


risdicción. La doctrina constata como en la década de ochenta ante demandas
contra Estados extranjeros muchos tribunales extinguían el proceso sobre le
fundamento de la imposibilidades jurídica del pedido” consagrada en el artí-
culo 267, IV del CPC. Como lo deja claro Cândido Dinamarco21 la inmunidad
de jurisdicción de un Estado extranjero y la imposibilidad jurídica del pedido
constituyen institutos jurídicos que no pueden confundirse: “La imposibilidad
jurídica del pedido se presenta cuando una cuestión no tiene la menor condi-
ción de ser apreciada por el poder judicial, por estar excluida a priori por el or-
den jurídico sin cualquier consideración de las peculiaridades del caso concreto.

282
Lo interesante es que esa confusión aún está presente particularmente 23. RO n. 57 –RJ (2007/0081639–4), pag.34.
en las instancias inferiores del poder judicial en Brasil. En el recurso n. 57–RJ
24. RO n. 57 op.cit., pag. 34.
(2007/0081639–4)22, el Ministro Sidnei Benetti , en su voto vista, busca dejar
clara la cuestión al construir su raciocinio a partir de la necesaria calificación 25. BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio,
jurídico-procesal de la decisión judicial, reconociendo la inmunidad. “Questões procedimentais das ações contra
Estados e organizações internacionais”, in A
Para el referido magistrado, el juez al extinguir el proceso deberá hacerlo
imunidade de jurisdição e o judiciário bra-
con base en la ausencia de condición de la acción, sileiro. Coord. Mario Garcia e Antenor Perei-
ra Madruga Filho, CEDI:Brasília, 2002, p. 216.
diferentemente de competencia interna, la falta de competencia implica
falta del derecho de acción, o incluso la ausencia de este derecho en
caso de existir anteriormente.23

En este sentido, la extinción, sin el análisis del merito procesal, deberá


ocurrir no con base en la imposibilidad del pedido, pero si, con base en la
imposibilidad de alcanzar al Estado extranjero a través de la propia acción
del autor. De este modo, la existencia de la inmunidad deriva de la falta de
condición de acción.24
La imposibilidad jurídica del pedido se refiere a una inadecuada pre-
tensión en tesis al ordenamiento jurídico vigente. Gran parte de los pedidos
realizados contra el Estado Extranjero al Poder Judicial brasileño, constituyen
pedidos de indemnización. Es incuestionable, a la luz del orden jurídico na-
cional, en particular, a los artículos 186 e 927 del Código Civil Brasileño, la
proclamación de que quien por omisión o acción cause daño a otro es obligado
a indemnizar. En este sentido la decisión judicial que decrete la extinción de la
acción por imposibilidad del pedido contraría la realidad normativa contem-
poránea del sistema nacional.
Finaliza el Ministro Sidnei Benetti citando a José Ignácio Botelho de
Mesquita25:

La acción, como se sabe, es el derecho de exigir del Estado la prestación


de la actividad jurisdiccional, a que corresponde el deber del Estado de
presar. Si el Estado no tiene este deber de prestar, […] , deja de existir el
correspondiente derecho de acción […]

283
26. Corte Internacional de Justicia CIJ, 2. Los desafíos de los tribunales brasileños en materia de
affair Alemanha vs Itália, 2008/44. inmunidades de Estado extranjero

La proliferación de actividades de los Estados en territorio extranjero trae


como consecuencia natural la multiplicación de situaciones de conflicto. Nin-
guna cuestión suscita en la actualidad mayor discusión que la relativa al en-
frentamiento entre inmunidades de Estado y actos considerados contrarios a
los derechos fundamentales, en particular cuando se plantea que tal evento
constituya una violación de normas imperativas de derecho internacional. La
propia Corte Internacional de Justicia deberá a enfrentar el desafío que re-
presenta el actual conflicto entre Italia y la República Federal de Alemania26.
Pero otros asuntos continúan preocupando los tribunales como los propios
representantes Estatales: la autorización para renunciar los privilegios, la po-
sibilidad de ejecutar un Estado extranjero en ciertas circunstancias.
Las soluciones encontradas a esos problemas varían considerablemente
en los países dotados de legislación específica y en aquellos en que no hay una
reglamentación de ese tipo (2.1), los tribunales brasileños han comenzado a
enfrentar tales situaciones con mayor frecuencia en la última década lo que ha
originado un mayor análisis en la materia aun cuando aún se puede calificar
de deficiente (2.2).

2.1 La diversidad de soluciones propuestas internacionalmente

Una impresionante cantidad de obras doctrinarias producidas en los últimos


años constatan como ante la invocación de inmunidades, de jurisdicción y de
ejecución, por un Estado extranjero acusado de violar derechos fundamenta-
les la posición de los tribunales difiere radicalmente en los países dotados de
legislación y en aquellos que no la tienen.
En los primeros, el juez está vinculado a los dispositivos legales de tal
manera que fuera de las hipótesis expresamente previstas como susceptibles de
ser sometidas a la jurisdicción territorial el Estado extranjero estará amparado
por los privilegios de fundamento internacional. Las legislaciones en vigor,
inclusive la Convención Europea de Basilea, no hacen ninguna referencia a la
violación de derechos humanos, mucho menos de violación de normas de Jus

284
Cogens que pueda ser imputable a un Estado extranjero27. Existe en todas ellas
la llamada “cláusula delictual”: El Estado extranjero no podrá invocar la inmu-
nidad de jurisdicción en controversias relativas a la indemnización por daños a
la integridad física de personas o daños a bienes causados por un acto u omi-
sión que le puedan ser atribuidas, si tal acto u omisión se ha producido, en todo
o en parte, en el territorio del Estado de foro y si el perpetrador directo estaba
presente en dicho territorio en el momento en que se produjo el acto u omisión.
Idealizada originalmente para ser aplicada en casos de accidentes de
tránsito en los que interviniesen agentes diplomáticos amparados por los pri-
vilegios de la Convención de 1961, el dispositivo ha sido utilizado en situa-
ciones mucho más complejas e, por que no decirlo, insólitas relacionadas a
actos de agentes del “servicio secreto” de un Estado extranjero. Así, entre las
controversias más famosas en que se reconoció la aplicación de la cláusula
resultando en el rechazo del privilegio, pueden ser mencionados sólo en Esta-
dos Unidos Lettelier y Moffit v. República de Chile, Liu v. República de China.
Ante la falta de previsión expresa, las víctimas de violaciones de dere-
chos fundamentales atribuidos a Estados extranjeros han recurrido a la cláu-
sula delictual e inclusive han tratado de vincular el acto en cuestión al des-
conocimiento de obligaciones contractuales sin obtener resultados favorables
En la primera hipótesis, debido a la exigencia de realización del acto en el
territorio del Estado de foro, lo que impide al juez analizar violaciones que
se hayan perpetrado en el territorio del Estado acusado o en un tercer Estado.
En el segundo caso por la falta de identidad del acto con la previsión legal.
De tal manera que la situación es bastante crítica para quien intenta ingresar
en un país dotado de legislación sobre inmunidades con una demanda ante
los tribunales sobre la alegación de violación de derechos fundamentales. Un
triste ejemplo de ello es el caso Bouzari v. Iran ante los tribunales canadienses.
Estados Unidos es el único país a adoptar una legislación específica per-
mitiendo a los tribunales analizar las demandas contra Estados extranjeros por
actos imputables a ellos realizados fuera de las fronteras americanas. En efecto
en 1996 el Foreign Sovereign Immunities Act de 1976 fue modificado por el
Antiterrorism and Effective Death Penalty Act (FSIA terrorism exception o State
Sponsored Terrorism Exception). Este último instrumento otorga a los ciudada-
nos americanos víctimas de lesiones personales o muerte, derivadas de actos de

285
28. Irak fue retirado en 2003. tortura, asesinatos extrajudiciales, sabotaje de aeronaves o toma de rehenes,
cometidos en territorio extranjero e imputables a un Estado, la posibilidad de
29. La más célebre sin duda fue concedida
buscar reparación en las Cortes Americanas. El principal límite a tales acciones
en el proceso Flatow v. Islamic Republic of
Iran, que daría origen a una modificación es que el Estado demandado debe ser considerado “financiador” (sponsor) de
de legislación conocida como la enmien- terrorismo de acuerdo con una lista elaborada por la Secretaria de Estado. En
da Flatow : Civil liability for acts os state
esa lista figuran actualmente Cuba, Irán, Corea del Norte , Libia, Siria y Sudan28.
sponsored terrorism Act. Esa enmienda
creó una base legal para que las victimas Entre 1996 y 2000 muchas demandas fueron presentadas e indemni-
pudiesen iniciar una acción contra el ofi- zaciones pulposas fueron concedidas29 que no fueron fácilmente ejecutadas
cial, empleado o agente del Estado extran- al enfrentar el privilegio de la inmunidad de ejecución por parte del Estado
jero que perpetra el acto. Además creaba
una base legislativa federal para ese tipo de
extranjero y la negativa inicial del gobierno americano de autorizar la utili-
acción, Independiente de La legislación del zación de bienes congelados de propiedad de esos Estados para tales fines. En
Estado de la federación de residencia de las enero de 2008 una nueva enmienda legislativa fue aprobada por el Congreso
victimas. Es pertinente aclarar que el FSIA
motivada por algunas interpretaciones de la enmienda Flatow realizadas por
se analiza en demandas contra Estados,
contra individuos existen otros dos instru- Cortes Federales. El National Defense Authorization Act modifica el FSIA en el
mentos jurídicos: el ACTA y el TVPA Torture sentido de crear una nueva sección que deja claramente establecido en ámbito
Victim Protection Act de 1991. federal el derecho de acción privada contra un Estado extranjero sobre la base
30. Entre los multiples comentarios sobre el
de la enmienda Flatow. Tal legislación no soluciona el problema de individuos
caso ver: Gavouneli Maria y Bantekas Elias, que buscan indemnización por violaciones de derechos fundamentales impu-
Prefecture of Voiotia v. Federal Republico f tables a Estados extranjeros en contextos totalmente diferentes.
Germany case 11/2000 – International de-
Es en los Estados carentes de legislación especial donde los Tribunales
cisions, en AJIL, 95, 2001, p.98.
han tomado la iniciativa de buscar soluciones concretas e innovadoras a las
demandas de víctimas de derechos humanos. Tales esfuerzos encuentran fun-
damento, parcial o totalmente, en el derecho internacional. Fueron los jueces
griegos los pioneros de esa corriente que encontró eco rápidamente en los
tribunales italianos. En el célebre caso Distomo de 1997, prefectura de Voiotia
y otros v. República Federal de Alemania30, el Tribunal de primera instancia
después de determinar la jurisdicción sobre el conflicto apoyándose en las
normas de la Convención de Basilea y en el derecho consuetudinario, utiliza
la noción de Jus Cogens para apartar el privilegio de la inmunidad estatal. En
efecto, de acuerdo con la sentencia, los crímenes de guerra, como son conside-
rados los hechos que originan la demanda, constituyen violaciones de normas
imperativas de derecho internacional que no pueden ser consideradas actos
soberanos amparados por la inmunidad de Estado. De otra parte, continua la
decisión, actos de tal naturaleza deben ser considerados nulos y prohibidos

286
a la luz del derecho Internacional de tal forma que toda conducta a su favor 31. La decisón Ferrini dio lugar a una biblio-
debe ser considerada una forma de cooperación con una violación del derecho grafia extensa entre la cual cabe destacar
los artículos de Andrea Bianchi. Ver entre
internacional. El tribunal de segunda instancia acompañaría la decisión, así muchos otros su comentário sobre La de-
como la Corte Suprema en 2000. Posteriormente un Tribunal Especial recha- cisión en AJIL, vol. 99, 2005, PS. 242–248.
zaría esas conclusiones sin que esto afectase su importancia y repercusión.
32. La corte de Casación afirmo en su sen-
Desde 2004, con la decisión de la Corte de Casación en el caso Ferrini
tencia que Itália podría ejercer su jurisdic-
v República Federal de Alemania31, los tribunales italianos desarrollaron una ción frente a demandas presentadas por
jurisprudencia constante en el sentido de no conceder el privilegio de la inmu- personas que durante La Segunda Guerra
nidad de jurisdicción a Estados extranjeros que enfrenten acusaciones de vio- Mundial hubiesen sido deportadas a Ale-
mania y sometidas a trabajos forzados en
lación de normas de Jus Cogens principalmente cuando se trata de crímenes la industria armamentista. La sentencia
de guerra32. La particularidad de la posición italiana radica en la invocación Ferrini fué confirmada por otras decisiones
constante de los principios del Derecho Internacional consuetudinario, entre emitidas el 29 de mayo y El 21 de octubre
de 2008.
los cuales está la inmunidad de jurisdicción de Estado extranjero cuyo alcance
no es mas absoluto, y en el reconocimiento de una jerarquía superior a las 33. CIJ, 17 de enero de 2011 – solicitud de
normas imperativas – Jus Cogens – sobre las demás disposiciones del Derecho Grécia para ser reconocido como Estado in-
terveniente en el Proceso RFA v Itália.
Internacional por representar la garantía de valores universales que trascien-
den los intereses nacionales individuales. Tal superioridad genera como con-
secuencia necesaria la imposibilidad de conceder un privilegio que amenace la
integridad de tales valores.
La actitud italiana generó protestas de la República Federal de Alemania,
Estado especialmente afectado por las decisiones, que fueron sostenidas por
el Primer Ministro Berlusconi sin modificar la posición del Poder Judicial. Tal
situación motivó en diciembre de 2008 el depósito de una demanda ante la
Corte Internacional de Justicia cuya fundamental acusación radica en la viola-
ción de la regla consuetudinaria de la inmunidad de Estado extranjero. Grecia
acaba de someter a la Corte una solicitud para intervenir en el proceso invo-
cando intereses jurídicos indirectos relacionados al ejercicio de la jurisdicción
que sus tribunales pueden ejercer en virtud del Derecho Internacional y que
podrían ser afectados por una decisión internacional33.
Si bien es cierto que la decisión de la Corte Internacional de Justicia
es importante para la evolución posterior de las posiciones favorables a una
mayor garantía de los derechos fundamentales y del reconocimiento de la
superioridad de las normas imperativas, es imposible ignorar los intereses po-
líticos que están en juego y que pueden motivar una posición conservadora

287
34. Entre los autores más importantes se de los privilegios estatales. Muchos autores han apuntado las consecuencias
encuentra Christian Tomuschat nefastas que en su opinión tendría una decisión favorable a la prevalencia
de las normas imperativas, con la posibilidad de una aumento inusitado de
35. Vid RO nº 57_RJ (2007/0081639–4).
Dje14/09/2009, pp.2–43. demandas contra Estados Extranjeros por hechos pasados34. Otros consideran
esa situación infundada.
Lo que es cierto es que el conflicto República Federal de Alemania v.Italia
fue una oportunidad para que el Tribunal Internacional enfrente claramente
ciertas cuestiones que hasta ahora han sido evitadas.

2.1 Las soluciones locales ante la diversidad de problemas

Los conflictos relacionados con contratos de trabajo celebrados en el Bra-


sil por Estados extranjeros siempre fueron objeto de análisis por los jueces
brasileños. Como ya fue señalado, en 1989 el Supremo Tribunal Federal con-
sagró el principio de la inmunidad relativa de jurisdicción para los Estados
Extranjeros, visando principalmente esas relaciones, así como los contratos
de naturaleza comercial.
Para justificar su nueva posición la Suprema Corte Brasileña buscó fun-
damento en la erosión del paradigma de la inmunidad absoluta consagrado
por las legislaciones mas modernas y por la jurisprudencia foránea. Lo que
en ningún momento aparece en las decisiones es la referencia a la seguridad
jurídica buscada por esas legislaciones, que al consagrar hipótesis en que el
Estado no puede invocar la inmunidad termina con la discrecionalidad de los
Tribunales para determinar los actos sometidos a su competencia y elimina
la referencia a los actos de gestión y de imperio. La libertad para clasificar
un acto como de gestión o de imperio, con las respectivas consecuencias en
materia de reconocimiento de inmunidad, se mantiene en el sistema judicial
brasileño con las eventuales contradicciones que puede generar.
Es en la última década que los tribunales nacionales han enfrentado
demandas contra Estados Extranjeros fuera de los parámetros tradicionales.
Entre las más originales se encuentran, sólo por citar algunas, las presentadas
contra los Estados Unidos de America por incumplimiento de pagar una re-
compensa a quien diera informaciones del escondite de Sadam Hussein y por
intervenir en el golpe de Estado que derrocaría el Presidente João Goulart35. No

288
es de extrañar que acusaciones de violación de derechos fundamentales hagan 36. RO nº 64_SP (2008/0003366-4), Dje
23/06/2008, pp.2-17.
parte de esa nueva tendencia, lo que ha conducido los jueces a hacer un aná-
lisis más profundo de las razones que justifican la concesión de inmunidad.
En 2008 el Superior Tribunal de Justicia examinó el Recurso Ordinario 64 SP36
que recuerda el caso Distomo. Ese recurso tiene origen en una demanda contra
el Estado Alemán presentada por un francés naturalizado brasileño, Salomón
Simón Frydman, en que solicita indemnización por los actos cometidos contra
él y su familia de etnia judaica durante la ocupación de Francia por las fuer-
zas alemanas. En la sentencia, cuya Relatora es la Ministra Nancy Andrighi,
se reconoce el interés de la jurisdicción brasileña en actuar en la represión de
ilícitos como los descritos en la demanda.
Dos razones justifican la posición del Tribunal: en primer lugar, la exis-
tencia de representación del Estado extranjero en el territorio brasileño que
autoriza la aplicación del artículo 88 I del Código de Procedimiento Civil y en
segundo lugar, el hecho que la Constitución Brasileña tiene como un principio
fundamental el respeto a la dignidad de la persona humana, fuera del com-
promiso adquirido en el ámbito internacional de garantizar la prevalencia de
los Derechos Humanos, la autodeterminación de los pueblos y el repudio al
terrorismo y al racismo. Los actos practicados por el ejercito alemán durante
la ocupación son de esa naturaleza y cuando dirigidos contra ciudadanos bra-
sileros, inclusive los naturalizados, interesan al Estado Brasileño y pueden ser
juzgados por sus tribunales.
A continuación la decisión se refiere a la inmunidad de Estado Extranje-
ro considerando que no representa una regla aplicable de manera automática,
mas un derecho que puede o no ser ejercido por el Estado, por lo cual el pro-
ceso no puede extinguirse sin manifestación del mismo. La decisión concluye:

Se justifica la citación del Estado Extranjero para que alegue su interés de


no someterse a la jurisdicción brasileña demostrando que la hipótesis se
encuadra como un acto de imperio que autoriza la invocación del principio.

La oportunidad de discutir a fondo la posibilidad de no conceder la in-


munidad frente a actos considerados crímenes de guerra no fue aprovechada
por el tribunal brasileño como lo hicieran las Cortes griegas.

289
37. Recursos Ordinarios 62 RJ, 66 RJ, 72 RJ De los casos analizados por el Superior Tribunal de Justicia que merecen
y 74 RJ entre otros. destaque están las demandas de indemnización contra la Republica Federal de
Alemania por la muerte de pescadores en la costa brasileña causada por ata-
ques de submarino durante la segunda guerra mundial37. A pesar que en todas
las decisiones el Tribunal consideró que ante un acto de guerra la inmunidad
de Estado debe ser reconocida por tratarse de un típico acto de Imperio, la
discusión sobre el conflicto entre inmunidad y violación de derechos funda-
mentales y normas imperativas fue iniciada.
En el RO 74 RJ, cuya decisión es de mayo de 2009, el Ministro Salomón
en su voto vista reconoce la competencia de los Tribunales Brasileños para
dirimir el conflicto y hace un relato pormenorizado de la evolución de la
cuestión, citando las decisiones griegas e italianas como pioneras. Sostiene de
otra parte, que en el caso concreto es irrelevante la caracterización del acto
como de imperio o de gestión puesto que constituye un crimen de guerra (ya
tipificado en la época como tal) contrario a normas de Jus Cogens y en ese
caso el principio de la inmunidad de Estado presenta una excepción justifica-
da en la necesidad de proteger tales dispositivos y garantizar su prevalencia.
Para el Ministro la inmunidad de jurisdicción es incompatible con violación
de normas imperativas, la Constitución Brasileña consagra la obligación de
garantizar el respeto a los Derechos Fundamentales y concluye que por tales
motivos no se debe conceder la inmunidad en este caso.
El enfrentamiento entre inmunidad de jurisdicción y violación de Dere-
chos Humanos también fue planteada últimamente en casos de deportación
de ciudadanos brasileños. Siendo la decisión de un Estado de admitir o no el
ingreso de una persona en su territorio un típico acto de imperio, uno de los
demandantes evitó de discutir el acto en sí para atacar los abusos cometidos
por los agentes gubernamentales durante el procedimiento. En la sentencia
emitida en el Recurso Ordinario 70 RS, de 27 de mayo de 2008, el Tribunal
manda citar el Estado Extranjero para que se manifieste y compruebe, si es
el caso, que el acto es de imperio garantizando el privilegio de la inmunidad.
El demandante ingresaría posteriormente con un recurso (Agravo de Ins-
trumento) al considerar que la citación por el Tribunal de Primera Instancia
y la posterior manifestación del Estado extranjero habrían ocurrido de forma
incorrecta. En las palabras del demandante: “El propio contenido de la ma-

290
nifestación hace evidente que la parte demandada no conoce los reales mo-
tivos de la acusación objeto del proceso una vez que la demanda judicial no
confronta, en ningún momento, el derecho del Estado Extranjero de vedar el
ingreso de extranjeros que no cumplen con las exigencias documentales, así
como aquellos que se encajan en los perfiles delineados como peligrosos, sino
que se refiere a la forma abusiva y violadora de los derechos humanos en que
la prohibición del ingreso en el país fue hecha”. El objetivo del recurso es el de
garantizar que el Estado acusado vá a tener conocimiento pleno de la acusa-
ción y así tener oportunidad de defenderse debidamente.

3. Consideraciones finales

La inmunidad de jurisdición, tal como se propuso trabajar en este artículo,


constituye, sin sombra de duda, uno de los temas más actuales a que los tri-
bunales nacionales, en particular el brasileño, si tiene debruzado a la hora de
se determinar los limites y posibilidades de la judicialización e ejecucion de
un Estado extranjero.
La relativizacion de la inmunidad ya es un echo cada vez más recurriente,
como se propuso analizar, en el judiciario nacional. Muchos son, entretanto,
las incertidumbres encontradas, desde los dilemas de la processualística a ser
seguida, que carece de una normativa harmonizada interna e externamente,
hasta la clalificación de la naturaleza de los actos delictivos realizados por el
Estado extranjero.
Es, así, de importancia crucial, la continuidad del analisis del instituto
juridico de la inmunidad de jurisdiccion, por este representar, hoy por hoy, una
de las piezas fundamentales del engrenaje del sistema de promoción y protec-
ción de los derechos humanos. La mejor y mayor compreension y utilizacion
del instituto por los judiciários nacionales, seguramente contribuirá con el
cambio paradojal tan necessário para la protección de los derechos humanos
en una escala global.

291
Reênciasfer ácasbilogr

BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio, “Questões procedimentais das ações contra Esta-
dos e organizações internacionais”, in A imunidade de jurisdição e o judiciário
brasileiro. Coord. Mario Garcia e Antenor Pereira Madruga Filho, CEDI:Brasília, 2002.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 2ª ed., São


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CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet.
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leiro e o novo direito da imunidade de jurisdição, Rio de Janeiro:Renovar, 2003.

PASTOR RIDRUEJO, José Antonio, Curso de Derecho Internacional Publico y Orga-


nizaciones Internacionales. Madrid: Tecnos, 2007.

292
Gilberto Fachetti Silvestre
Doutorando em Direito na USP e Professor Direito na Universidade Federal
do Espirito Santo.

17
A DIGNIDADE HUMANA COMO CRITÉRIO DE JUSTIÇA EM
DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Gilberto Fachetti Silvestre

1. Introdução: os direitos humanos como critério do justo

Desde 2008 tenho participado de diversos projetos da Universidade Federal


do Espírito Santo, como professor, que dizem respeito à educação em direitos
humanos. Nas minhas exposições tenho refletido muito como o Direito – a
“lei” – pode contribuir nesse processo de afirmação da pessoa humana e na
busca pelo respeito aos seus aspectos fundamentais.
Falo da normatividade dos direitos humanos e seu principal objetivo: a
criação de uma ética da dignidade humana, ou seja, que todos devemos nos
comportar de forma a respeitar os aspectos fundamentais de nossos semelhan-
tes, o que significa dizer que temos o dever de amar o próximo. Essa talvez seja
a grande consequência jurídica que os direitos podem promover.
Meu objetivo nesse trabalho é apresentar algumas decisões emblemáticas
do Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte de justiça do Brasil, que podem
ser trabalhadas em sala de aula, grupos de discussão ou podem ser objeto de
estudo individual para demonstrar como as instituições judiciárias promovem
os direitos humanos.
Evidentemente que não foi possível colacionar todas as decisões do STF
que versam sobre o assunto. Meu objetivo foi selecionar aquelas que me pa-
receram significativas e inteligíveis ao público leigo para um trabalho de dis-
cussão. Torna-se evidente que trabalhar decisões judiciais com alunos torna o
Judiciário – órgão que protege e faz cumprir os direitos humanos – mais pró-
ximo dos professores e alunos. A minha intenção é corrigir um distanciamento
que existe entre as cortes judiciárias e as pessoas, pois às vezes um tribunal se
assemelha na cultura popular a um “Olimpo”.
E para isso escolhi falar do tema mais caro ao Judiciário: a justiça. E
como os direitos humanos podem contribuir para que uma decisão seja justa.

294
Nenhum tema é tão fascinante e polêmico no campo da teoria e filosofia 1. “Nós, representantes do povo brasileiro,
jurídicas quanto àquele que envolve o estudo da justiça, e, por via reflexa, da reunidos em Assembléia Nacional Consti-
tuinte para instituir um Estado Democrá-
lei justa. Seu fascínio está no fato de que a justiça é a justificativa à obediên- tico, destinado a assegurar o exercício dos
cia da lei; e sua polêmica gira em torno da acusação positivista de que é um direitos sociais e individuais, a liberdade,
conceito irracional, territorial e relativista. a segurança, o bem-estar, o desenvolvi-
mento, a igualdade e a justiça como va-
O que se quer é analisar como os direitos humanos são padrões aplica-
lores supremos de uma sociedade fraterna,
dos pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro como fatores que determinam pluralista e sem preconceitos, fundada na
o que é justo. harmonia social e comprometida, na or-
Nesse sentido, é preciso estabelecer como a lei pode contribuir à uni- dem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos,
versalização do conceito de justiça. Ora, o Direito é uma síntese do bem, da sob a proteção de Deus, a seguinte Cons-
paz, da liberdade, da convivência, da igualdade, da solidariedade. Ou seja, os tituição da República Federativa do Brasil”
valores fundamentam e dão sentido ao Direito (que deve ser um reflexo de tais (sem itálico no original). Além disso, serve
de paradigma, também, o caput do art. 37
valores). Há, assim, certo ideal que foi, entre nós, universalizado e que se con-
da Constituição, que fortalece o vínculo
sagrou positivamente: trata-se de um paradigma ideológico-normativo, que factual entre Direito e Moral e reforça a ne-
não é construção meramente relativista e subjetiva, senão algo objetivo e que cessidade de um vínculo conceptual com a
Moral para a exata compreensão do Direito:
se encontra, no caso brasileiro, por exemplo, no Preâmbulo da Constituição,
“Art. 37. A administração pública direta e
dentre tantos outros dispositivos.1 indireta de qualquer dos Poderes da União,
Essa idéia de paradigmas ideológico-normativos é bem representada pe- dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-
los diversos direitos humanos, reunidos sob o império do princípio da dignida- cípios obedecerá aos princípios de legalida-
de, impessoalidade, moralidade, publicida-
de da pessoa humana. É justamente aqui que se encontra a aproximação com
de e eficiência […]” (sem itálico no original).
a justiça, que é a finalidade do Direito. É a partir de tais paradigmas que se
determina, objetivamente, quando o Direito é justo ou injusto.
Mas, de que trata os referidos paradigmas? Ora, todos eles – liberdade,
igualdade, fraternidade, justiça, segurança jurídica, pluralismo, dignidade etc.
– possuem um ponto central em comum: o ser humano; eles representam a
preocupação com a preservação do homem. Nada é mais importante para um
sistema social e para um sistema de controle social do que as pessoas, indi-
vidualmente consideradas, que o compõe. Assim, o ser humano é um super-
valor, do qual derivam todos os outros valores (KAUFMANN, 2002, p. 145).
Veja, então, que o ser humano, enquanto valor, ou seja, em sua dignidade
ou humanidade, é o denominador comum de toda valoração. Sendo o valor
universal, não há que se falar de relativismo ou irracionalidade numa noção de
justiça que leve em consideração, exatamente, o homem. Dessa maneira, será
possível um conceito universal e racional de justiça se pautado nesse denomi-

295
nador comum que é o valor “ser humano”, que pode, numa linguagem axio-
lógica, ser designado a partir do conceito de dignidade da pessoa humana. Em
suma, qualquer conceito de justiça deve ter em seu centro a pessoa humana.
Por isso, é possível entender o bom Direito (rectius, justo) como aquele
que propicia a realização da dignidade do indivíduo. Ou seja, Direito justo é
aquele que proporciona o bem-estar, pois não é outro o resultado quando se
pensa em realização da dignidade do indivíduo. Quando realizado, o indivíduo
torna-se feliz. Logo, justiça é felicidade! Porém, justiça aqui não é vista como
a felicidade interna do indivíduo, isto é, um estado de espírito. A noção que
aqui se tem de felicidade está relacionada com a realização da “humanidade”,
ou seja, da dignidade do indivíduo.
A justiça vista como felicidade, na acepção que aqui é dada, está bem
distante daquela noção dada por Kelsen (2000, p. 09), de que justiça é um
julgamento subjetivo de valor, “dando como significado de felicidade de um
homem aquilo que ele considera que isso seja”. Na verdade, a justiça não será
aquilo que um sujeito considera como algo que lhe dá satisfação e felicidade;
a justiça tem a ver com a realização da condição humana da pessoa, e isto em
nada é relativo: o homem se realiza plenamente quando tem sua dignidade, ou
seja, condição humana, respeitada.
Esse é, pois, o conceito de justiça que se tem universalizado: a realização
da condição humana do sujeito, isto é, de sua dignidade, o que lhe provoca
a boa sensação de uma felicidade que pode ser sentida por todos aqueles que
têm sua condição humana respeitada. Nesse ínterim, urge questionar o que
os Tribunais aplicam como sendo o justo, ou, em outras palavras, a idéia do
que seja justiça aqui defendida é a mesma orientação seguida pelos tribunais
brasileiros? Para responder a tanto, nas curtas linhas que seguem, utilizou-se
como amostragem algumas decisões da Suprema Corte brasileira, que, de certa
maneira, representa a essência de todo o Judiciário do país.
Antes, porém, é preciso compreender perfeitamente o Direito em seu sen-
tido axiológico. A partir daí será possível determinar a importância e o alcance
da justiça para o conhecimento jurídico.
O conteúdo do Direito deve estar de acordo com o ideal de Direito, e o Di-
reito ideal é aquele que é justo. Para Radbruch (2000, p. 47), “a idéia do direito

296
não pode ser outra senão a justiça”. Assim, os valores que o Direito consagra
dão-lhe conteúdo, fazendo-o justo.
Reale (1987, p. 127) bem caracteriza, da seguinte forma, o “espírito epo-
cal” de nossos tempos:

a “Era Contemporânea é de crescente sentido axiológico, o que se com-


preende à luz da condição do homem em nossa era, cada vez mais
disperso na sociedade de massa; cada vez mais impotente no círculo da
absorvente comunicação cibernética; cada vez mais temeroso no meio
de revolucionárias conquistas científicas e técnicas, ameaçadoras dos
bens da natureza e da vida em nosso planeta, sentindo todos os riscos
de perder o valor supremo de seu ser pessoal no Mundo”.

Já com relação ao aspecto teleológico, cuida-se da resposta à questão


“Para que serve o Direito?”, para a qual é possível uma resposta muito simples:
o fim do Direito é a realização do homem, ou seja, a promoção da justiça.
Sabe-se que o Direito não é só instrumento de controle de conduta; é
também – e principalmente – instrumento de realização do homem em suas
potencialidades (quer dizer, é instrumento de realização da justiça). Claro está
que, atendidas essas funções, alcança-se harmonia, seja na vida do indivíduo
(vida privada), seja na ordem social. Então, não há outro significado para
essa “harmonia” que o Direito persegue do que o seguinte: 1º) realização do
indivíduo (consagração de seus direitos fundamentais indisponíveis); e 2º) con-
vivência social sem perturbações, pela qual o Direito apresenta-se como um
princípio de (re)ajustamento social.

2. A noção de justiça em decisões do STF

Cumpre destacar, agora, algumas principais, polêmicas e recentes decisões do


Supremo Tribunal Federal que possuem, como “pano de fundo”, uma visão de
justiça idêntica a essa que aqui se defende, demonstrando, assim, a universali-
dade – ou potencial universalização – do conceito de justiça:

297
“HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RA-
CISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM
DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros ‘fazendo
apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias’ contra a comuni-
dade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90)
constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e
imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da
prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-
se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a ex-
ceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.
3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o ma-
peamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções
entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos,
altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que
todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas
entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo.
A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conte-
údo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo
que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.
5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de
que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam
raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar
a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e
morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo,
sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas
que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos
princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, base-
ada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica
convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais
que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa into-
lerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e
constitucional do País. […]. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia

298
como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura 2. STF, HC 82.424/RS, Tribunal Pleno, Rel.
ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que Min. Moreira Alves, Rel. p/ Acórdão Min.
Maurício Corrêa, j. em 17.09.2003, DJ
o acompanham. […]. Prevalência dos princípios da dignidade da pes-
19.03.2004.
soa humana e da igualdade jurídica. 15. ‘Existe um nexo estreito entre
a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar 3. STF, Ext. 811/Peru, Tribunal Pleno, Rel.
Min. Celso de Mello, j. em 04.09.2002, DJ,
termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo
28.02.2003, p. 09.
da lembrança sobre o esquecimento’. No estado de direito democrático
devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a
prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória
dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que
permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de
torpeza inominável. […]. Ordem denegada”.2

“[…].O RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS DEVE CONSTITUIR VETOR


INTERPRETATIVO A ORIENTAR O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOS
PROCESSOS DE EXTRADIÇÃO PASSIVA. - Cabe advertir que o dever
de cooperação internacional na repressão às infrações penais comuns
não exime o Supremo Tribunal Federal de velar pela intangibilidade
dos direitos básicos da pessoa humana, fazendo prevalecer, sempre, as
prerrogativas fundamentais do extraditando, que ostenta a condição
indisponível de sujeito de direitos, impedindo, desse modo, que o súdito
estrangeiro venha a ser entregue a um Estado cujo ordenamento jurídi-
co não se revele capaz de assegurar, aos réus, em juízo criminal, a ga-
rantia plena de um julgamento imparcial, justo, regular e independente
(‘fair trial’), com todas as prerrogativas inerentes à cláusula do ‘due-
processoflaw’ (Ext 633/China, Rel. Min. CELSO DE MELLO), tais como
proclamadas e reconhecidas na Constituição do Brasil e nas convenções
internacionais subscritas pela República Brasileira. […]”.3

“ADPF – ADEQUAÇÃO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – FETO ANEN-


CÉFALO – POLÍTICA JUDICIÁRIA – MACROPROCESSO. Tanto quanto
possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se,
de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo
valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade

299
4. STF, ADPF-QO  54/DF, Tribunal Pleno, da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação
Rel. Min. Marco Aurélio, j. 27.04.2005, DJ da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de
31.08.2007, p. 29.
feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do
5. STF, RE  359444/RJ, Tribunal Pleno, crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de pre-
Rel. Min. Carlos Velloso, Rel. p/ Acórdão ceito fundamental. ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO
Min. Marco Aurélio, j. em 24.03.2004, DJ
DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – PROCESSOS EM CURSO – SUSPEN-
28.05.2004, p. 07.
SÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito
fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da
gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final
do Supremo Tribunal Federal. ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – IN-
TERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – AFASTAMENTO – MI-
TIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao
qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de
preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal rela-
tivamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez
no caso de anencefalia”.4

“ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – PRÁTICA DE ATOS – REGÊNCIA. A Ad-


ministração Pública submete-se, nos atos praticados, e pouco importando
a natureza destes, ao princípio da legalidade. TAXISTA – AUTONOMIA
– DIARISTA – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – TRANSFORMAÇÃO
– LEI MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO Nº 3.123/2000 – CONSTITU-
CIONALIDADE. Sendo fundamento da República Federativa do Brasil
a dignidade da pessoa humana, o exame da constitucionalidade de ato
normativo faz-se considerada a impossibilidade de o Diploma Maior
permitir a exploração do homem pelo homem. O credenciamento de pro-
fissionais do volante para atuar na praça implica ato do administrador
que atende às exigências próprias à permissão e que objetiva, em ver-
dadeiro saneamento social, o endosso de lei viabilizadora da transfor-
mação, balizada no tempo, de taxistas auxiliares em permissionários”.5

“CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI


DE BIOSSEGURANÇA. IMPUGNAÇÃO EM BLOCO DO ART. 5º DA LEI Nº
11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (LEI DE BIOSSEGURANÇA). PESQUI-

300
SAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE
VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSITUCIONALIDADE DO USO DE
CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS
PARA FINS TERAPÊUTICOS. DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO.
NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDA-
MENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E
AO PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA
TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE
BIOSSEGURANÇA CONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM
RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS. IMPRO-
CEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO. I — O CONHECIMENTO CIENTÍFICO, A
CONCEITUAÇÃO JURÍDICA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E
SEUS REFLEXOS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA LEI
DE BIOSSEGURANÇA. As “células-tronco embrionárias” são células
contidas num agrupamento de outras, encontradiças em cada embrião
humano de até 14 dias (outros cientistas reduzem esse tempo para a fase
de blastocisto, ocorrente em torno de 5 dias depois da fecundação de um
óvulo feminino por um espermatozóide masculino). Embriões a que se
chega por efeito de manipulação humana em ambiente extracorpóreo,
porquanto produzidos laboratorialmente ou “in vitro”, e não espontane-
amente ou “in vida”. Não cabe ao Supremo Tribunal Federal decidir so-
bre qual das duas formas de pesquisa básica é a mais promissora: a
pesquisa com células-tronco adultas e aquela incidente sobre células-
tronco embrionárias. A certeza científico-tecnológica está em que um
tipo de pesquisa não invalida o outro, pois ambos são mutuamente com-
plementares. II — LEGITIMIDADE DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-
TRONCO EMBRIONÁRIAS PARA FINS TERAPÊUTICOS E O CONSTITU-
CIONALISMO FRATERNAL. A pesquisa científica com células-tronco
embrionárias, autorizada pela Lei n° 11.105/2005, objetiva o enfrenta-
mento e cura de patologias e traumatismos que severamente limitam,
atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida
de expressivo contingente populacional (ilustrativamente, atrofias espi-
nhais progressivas, distrofias musculares, a esclerose múltipla e a lateral
amiotrófica, as neuropatias e as doenças do neurônio motor). A escolha

301
feita pela Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou desapre-
ço pelo embrião “in vitro”, porém u’a mais firme disposição para encur-
tar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no
âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo
qualifica “a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça” como valores supremos de uma sociedade mais
que tudo “fraterna”. O que já significa incorporar o advento do consti-
tucionalismo fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira co-
munhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade
em benefício da saúde e contra eventuais tramas do acaso e até dos
golpes da própria natureza. Contexto de solidária, compassiva ou frater-
nal legalidade que, longe de traduzir desprezo ou desrespeito aos con-
gelados embriões “in vitro”, significa apreço e reverência a criaturas
humanas que sofrem e se desesperam. Inexistência de ofensas ao direito
à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-
-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se
destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se
acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos àfeli-
cidade e do viver com dignidade (Ministro Celso de Mello). III - A PRO-
TEÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À VIDA E OS DIREITOS INFRA-
CONSTITUCIONAIS DO EMBRIÃO PRÉ-IMPLANTO. O Magno Texto
Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante
em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana
um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma
concreta pessoa, porque nativiva (teoria “natalista”, em contraposição
às teorias “concepcionista” ou da “personalidade condicional”). E quan-
do se reporta a “direitos da pessoa humana” e até dos “direitos e garan-
tias individuais” como cláusula pétrea está falando de direitos e garan-
tias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos
fundamentais “à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie-
dade”, entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o
timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento
familiar). Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de
transpasse de poder normativo para a legislação ordinária. A potencia-

302
lidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante
para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas
ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três
realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a
pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana
embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei
de Biossegurança (“in vitro” apenas) não é uma vida a caminho de outra
vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar
as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem
factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito
infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvol-
vimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana ante-
riores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum.
O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa
no sentido biográfico a que se refere a Constituição. IV — AS PESQUI-
SAS COM CÉLULAS-TRONCO NÃO CARACTERIZAM ABORTO. MATÉ-
RIA ESTRANHA À PRESENTE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALI-
DADE. É constitucional a proposição de que toda gestação humana
principia com um embrião igualmente humano, claro, mas nem todo
embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana, em se
tratando de experimento “in vitro”. Situação em que deixam de coincidir
concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecun-
dado) não for introduzido no colo do útero feminino. O modo de irrom-
per em laboratório e permanecer confinado “in vitro” é, para o embrião,
insuscetível de progressão reprodutiva. Isto sem prejuízo do reconheci-
mento de que o zigoto assim extra-corporalmente produzido e também
extracorporalmente cultivado e armazenado é entidade embrionária do
ser humano. Não, porém, ser humano em estado de embrião. A Lei de
Biossegurança não veicula autorização para extirpar do corpo feminino
esse ou aquele embrião. Eliminar ou desentranhar esse ou aquele zigoto
a caminho do endométrio, ou nele já fixado. Não se cuida de interrom-
per gravidez humana, pois dela aqui não se pode cogitar. A “controvér-
sia constitucional em exame não guarda qualquer vinculação com o
problema do aborto.” (Ministro Celso de Mello). V — OS DIREITOS FUN-

303
DAMENTAIS À AUTONOMIA DA VONTADE, AO PLANEJAMENTO FA-
MILIAR E À MATERNIDADE. A decisão por uma descendência ou filia-
ção exprime um tipo de autonomia de vontade individual que a própria
Constituição rotula como “direito ao planejamento familiar”, funda-
mentado este nos princípios igualmente constitucionais da “dignidade
da pessoa humana” e da “paternidade responsável”. A conjugação cons-
titucional da laicidade do Estado e do primado da autonomia da vonta-
de privada, nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa. A opção do casal
por um processo “in vitro” de fecundação artificial de óvulos é implícito
direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretar para esse casal o
dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os embriões
eventualmente formados e que se revelem geneticamente viáveis. O
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana opera por modo
binário, o que propicia a base constitucional para um casal de adultos
recorrer a técnicas de reprodução assistida que incluam a fertilização
artificial ou “in vitro”. De uma parte, para aquinhoar o casal com o di-
reito público subjetivo à “liberdade” (preâmbulo da Constituição e seu
art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade. De outra banda,
para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se
por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assis-
tência físico-afetiva (art. 226 da CF). Mais exatamente, planejamento
familiar que, “fruto da livre decisão do casal”, é “fundado nos princípios
da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável” (§ 7º
desse emblemático artigo constitucional de nº 226). O recurso a proces-
sos de fertilização artificial não implica o dever da tentativa de nidação
no corpo da mulher de todos os óvulos afinal fecundados. Não existe tal
dever (inciso II do art. 5º da CF), porque incompatível com o próprio
instituto do “planejamento familiar” na citada perspectiva da “paterni-
dade responsável”. Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gê-
nero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao
direito fundamental que se lê no inciso II do art. 5º da Constituição. Para
que ao embrião “in vitro” fosse reconhecido o pleno direito à vida, ne-
cessário seria reconhecer a ele o direito a um útero. Proposição não
autorizada pela Constituição. VI — DIREITO À SAÚDE COMO COROLÁ-

304
RIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA DIGNA. O § 4º do art. 199 da
Constituição, versante sobre pesquisas com substâncias humanas para
fins terapêuticos, faz parte da seção normativa dedicada à “SAÚDE”
(Seção II do Capítulo II do Título VIII). Direito à saúde, positivado como
um dos primeiros dos direitos sociais de natureza fundamental (art. 6º
da CF) e também como o primeiro dos direitos constitutivos da seguri-
dade social (cabeça do artigo constitucional de nº 194). Saúde que é
“direito de todos e dever do Estado” (caput do art. 196 da Constituição),
garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados como “de
relevância pública” (parte inicial do art. 197). A Lei de Biossegurança
como instrumento de encontro do direito à saúde com a própria Ciência.
No caso, ciências médicas, biológicas e correlatas, diretamente postas
pela Constituição a serviço desse bem inestimável do indivíduo que é a
sua própria higidez físico-mental. VII — O DIREITO CONSTITUCIONAL
À LIBERDADE DE EXPRESSÃO CIENTÍFICA E A LEI DE BIOSSEGURAN-
ÇA COMO DENSIFICAÇÃO DESSA LIBERDADE. O termo “ciência”, en-
quanto atividade individual, faz parte do catálogo dos direitos funda-
mentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de
expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou
genuíno direito de personalidade. Por isso que exigente do máximo de
proteção jurídica, até como signo de vida coletiva civilizada. Tão quali-
ficadora do indivíduo e da sociedade é essa vocação para os misteres da
Ciência que o Magno Texto Federal abre todo um autonomizado capítu-
lo para prestigiá-la por modo superlativo (capítulo de nº IV do título
VIII). A regra de que “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvi-
mento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas” (art. 218, ca-
put) é de logo complementada com o preceito (§ 1º do mesmo art. 218)
que autoriza a edição de normas como a constante do art. 5º da Lei de
Biossegurança. A compatibilização da liberdade de expressão científica
com os deveres estatais de propulsão das ciências que sirvam à melhoria
das condições de vida para todos os indivíduos. Assegurada, sempre, a
dignidade da pessoa humana, a Constituição Federal dota o bloco nor-
mativo posto no art. 5º da Lei 11.105/2005 do necessário fundamento
para dele afastar qualquer invalidade jurídica (Ministra Cármen Lúcia).

305
6. ADI nº. 3510/DF, Tribunal Pleno, Rel. VIII — SUFICIÊNCIA DAS CAUTELAS E RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELA
Min. Ayres Britto, j. em 29/05/2008. LEI DE BIOSSEGURANÇA NA CONDUÇÃO DAS PESQUISAS COM CÉ-
LULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. A Lei de Biossegurança caracteriza-
se como regração legal a salvo da mácula do açodamento, da insufici-
ência protetiva ou do vício da arbitrariedade em matéria tão religiosa,
filosófica e eticamente sensível como a da biotecnologia na área da
medicina e da genética humana. Trata-se de um conjunto normativo
que parte do pressuposto da intrínseca dignidade de toda forma de
vida humana, ou que tenha potencialidade para tanto. A Lei de Bios-
segurança não conceitua as categorias mentais ou entidades biomédi-
cas a que se refere, mas nem por isso impede a facilitada exegese dos
seus textos, pois é de se presumir que recepcionou tais categorias e as
que lhe são correlatas com o significado que elas portam no âmbito
das ciências médicas e biológicas. IX — IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
Afasta-se o uso da técnica de “interpretação conforme” para a feitura
de sentença de caráter aditivo que tencione conferir à Lei de Biossegu-
rança exuberância regratória, ou restrições tendentes a inviabilizar as
pesquisas com células-tronco embrionárias. Inexistência dos pressu-
postos para a aplicação da técnica da “interpretação conforme a Cons-
tituição”, porquanto a norma impugnada não padece de polissemia ou
de plurissignificatidade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada
totalmente improcedente”.6

“UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO — ALTA RELEVÂN-


CIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO PERTINENTE
ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS — LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO
RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOA-
FETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR: POSIÇÃO CONSAGRADA NA JU-
RISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADPF 132/RJ E
ADI 4.277/DF) — O AFETO COMO VALOR JURÍDICO IMPREGNADO DE
NATUREZA CONSTITUCIONAL: A VALORIZAÇÃO DESSE NOVO PARA-
DIGMA COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO CONCEITO DE FAMÍLIA
— O DIREITO À BUSCA DA  FELICIDADE,  VERDADEIRO POSTULADO
CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO E EXPRESSÃO DE UMA IDÉIA-FORÇA

306
QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA ESSENCIAL DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA — ALGUNS PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDE-
RAL E DA SUPREMA CORTE AMERICANA SOBRE O DIREITO FUNDA-
MENTAL À BUSCA DA FELICIDADE — PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA
(2006): DIREITO DE QUALQUER PESSOA DE CONSTITUIR FAMÍLIA,
INDEPENDENTEMENTE DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU IDENTI-
DADE DE GÊNERO — DIREITO DO COMPANHEIRO, NA UNIÃO ESTÁ-
VEL HOMOAFETIVA, À PERCEPÇÃO DO BENEFÍCIO DA PENSÃO POR
MORTE DE SEU PARCEIRO, DESDE QUE OBSERVADOS OS REQUISI-
TOS DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL — O ART. 226, § 3º, DA LEI
FUNDAMENTAL CONSTITUI TÍPICA NORMA DE INCLUSÃO — A FUN-
ÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO — A PROTEÇÃO DAS MINORIAS
ANALISADA NA PERSPECTIVA DE UMA CONCEPÇÃO MATERIAL DE
DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL — O DEVER CONSTITUCIONAL DO
ESTADO DE IMPEDIR (E, ATÉ MESMO, DE PUNIR) “QUALQUER DIS-
CRIMINAÇÃO ATENTATÓRIA DOS DIREITOS E LIBERDADES FUNDA-
MENTAIS” (CF, ART. 5º, XLI) — A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS E O FORTALECIMENTO DA JURISDIÇÃO CONSTI-
TUCIONAL: ELEMENTOS QUE COMPÕEM O MARCO DOUTRINÁRIO
QUE CONFERE SUPORTE TEÓRICO AO NEOCONSTITUCIONALISMO —
RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. NINGUÉM PODE SER PRIVADO
DE SEUS DIREITOS EM RAZÃO DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL. — Nin-
guém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem so-
frer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivode sua orientação
sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber a igual
proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído
pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável
qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a
intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em
razão de sua orientação sexual. RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO
DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR. — O Supremo
Tribunal Federal — apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva e
invocando princípios essenciais (como os da dignidade da pessoa huma-

307
na, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da
intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade) — reconhece
assistir, a qualquer pessoa, o direito fundamental à orientação sexual,
havendo proclamado, por isso mesmo, a plena legitimidade ético-jurí-
dica da união homoafetiva como entidade familiar, atribuindo-lhe, em
conseqüência, verdadeiro estatuto de cidadania, em ordem a permitir
que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes con-
seqüências no plano do Direito, notadamente no campo previdenciário,
e, também, na esfera das relações sociais e familiares. — A extensão,
às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união
estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela
direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igual-
dade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado
constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os
quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de
inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1º, III,
e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir
suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do
mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar. — Toda pessoa
tem o direito fundamental de constituir família, independentemente de
sua orientação sexual ou de identidade de gênero. A família resultan-
te da união homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe
os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações que se mos-
trem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões he-
teroafetivas. A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DO AFETO COMO UM
DOS FUNDAMENTOS DA FAMÍLIA MODERNA. — O reconhecimento do
afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um
novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio concei-
to de família. Doutrina. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E BUSCA
DA FELICIDADE. — O postulado da dignidade da pessoa humana, que
representa — considerada a centralidade desse princípio essencial (CF,
art. 1º, III) — significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte
que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em
nosso País, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que

308
se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada 7. RE nº. 477554 AgR/MG, 2ª Turma, Rel.
pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. — O princípio Min. Celso de Melo, j. em 16/08/2011.

constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do


8. ADPF nº. 54/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min.
núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, Marco Aurélio, j. em 12/04/2011.
assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e ex-
pansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua
própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omis-
sões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo,
esterilizar direitos e franquias individuais. — Assiste, por isso mesmo, a
todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadei-
ro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão
de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da
pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema
Corte americana. Positivação desse princípio no plano do direito com-
parado. A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL E A PROTEÇÃO DAS MINORIAS. — A proteção das minorias
e dos grupos vulneráveis qualifica-se como fundamento imprescindível
à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito. — In-
cumbe, por isso mesmo, ao Supremo Tribunal Federal, em sua condição
institucional de guarda da Constituição (o que lhe confere “o monopólio
da última palavra” em matéria de interpretação constitucional), desem-
penhar função contramajoritária, em ordem a dispensar efetiva proteção
às minorias contra eventuais excessos (ou omissões) da maioria, eis que
ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, à autoridade
hierárquico-normativa e aos princípios superiores consagrados na Lei
Fundamental do Estado. Precedentes. Doutrina”.7

“ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo abso-


lutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFA-
LO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E
REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO –DIREI-
TOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucio-
nal interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser con-
duta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal”.8

309
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CI-
VIL PÚBLICA. GRATUIDADE DE TRANSPORTE PARA PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA MENTAL. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE (ART.
330, I, DO CPC). ALEGADO CERCEAMENTO DE DEFESA. ANÁLISE DE
MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. 1. A violação reflexa e oblíqua da
Constituição Federal decorrente da necessidade de análise de malferi-
mento de dispositivos infraconstitucionais torna inadmissível o recurso
extraordinário. Precedentes: RE 596.682, Rel. Min. Carlos Britto, Dje de
21/10/10, e o AI 808.361, Rel. Min. Marco Aurélio, Dje de 08/09/10. 2.
Os princípios da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa
e do contraditório, da motivação das decisões judiciais, dos limites da
coisa julgada e da prestação jurisdicional, quando a verificação de sua
ofensa dependa do reexame prévio de normas infraconstitucionais, re-
velam ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal, o que, por si
só, não desafia a abertura da instância extraordinária. Precedentes: AI
804.854–AgR, 1ª Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 24/11/2010, e
AI 756.336–AgR, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 22/10/2010.
3. In casu, o acórdão recorrido assentou: “PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TU-
TELA. PRETENSÃO DE DETERMINAÇÃO À PERMISSIONÁRIA DE SER-
VIÇO PÚBLICO PARA O TRANSPORTE GRATUITO DE PESSOAS POR-
TADORAS DE DEFICIÊNCIA MENTAL. IMPROVIMENTO AO RECURSO.
I – Nos termos do art. 203, IV, da Constituição Federal, ‘a assistência
social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de con-
tribuição à seguridade social, e tem por objetivos […] a habilitação e
reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
integração à vida comunitária; […]’. O transporte dos deficientes físicos
promove a sua integração à vida comunitária e o Colendo Supremo Tri-
bunal Federal através de seu venerando Tribunal Pleno, julgando a ADI
3768/DF, na qual foi relatora a eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA, em
julgamento de 19/09/2007, conforme DJ de 20–10–2007, afastou a exi-
gência de fonte de custeio quando se trata de transporte capaz de viabi-
lizar a concretização da dignidade da pessoa humana e de seu bem-es-
tar. Fundamentando-se diretamente na Constituição Federal, o direito

310
ao transporte gratuito de deficientes afasta a necessidade de fonte de 9. AI 847845 AgR/RJ, 1ª Turma, Rel. Min.
custeio; II – Ademais, ‘qualquer cidadão sabe que, independentemente Luiz Fux, j. em 11/12/2012.

da quantidade de pessoas que utilizam o transporte público, ele deverá


10. Sobre os direitos fundamentais, veja
ser prestado em horários pré-determinados pela Administração. O custo seguinte decisão do STF no MS 22.164,
desta operacionalização é estável. O que se quer demonstrar é que a em- Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em
30.10.1995, DJ de 17.11.1995, que em muito
presa não tem um custo maior por estar transportando pessoas idosas.
se aproxima da idéia central deste trabalho:
O transporte encontra-se ali, disponível, com o custo já estabelecido.’ “Enquanto os direitos de primeira geração
III – Os deficientes físicos ‘não são em número suficiente para aniquilar (direitos civis e políticos) — que compreen-
os ganhos dos empresários’ e as empresas não têm um custo maior pelo dem as liberdades clássicas, negativas ou
formais — realçam o princípio da liberdade
fato de transportá-los, sobretudo a Apelante que já vinha concedendo a
e os direitos de segunda geração (direitos
gratuidade nos transportes coletivos a 652 pessoas portadoras de defi- econômicos, sociais e culturais) — que se
ciência mental sem previsão de fonte de custeio; IV – Improvimento ao identifica com as liberdades positivas, re-
ais ou concretas — acentuam o princípio da
recurso.” 4. Agravo regimental a que se nega provimento”.9
igualdade, os direitos de terceira geração,
que materializam poderes de titularidade
Fácil é perceber que o fundamento das decisões supracitadas gira em tor- coletiva atribuídos genericamente a todas
no da dignidade humana – dos direitos humanos –, o que exatamente constitui as formações sociais, consagram o princípio
da solidariedade e constituem um momen-
o núcleo da noção universalizável que se tem de justiça. to importante no processo de desenvolvi-
Fala-se, então, com base na lição de Radbruch e Kaufmann (2002, p. 137), mento, expansão e reconhecimento dos
num conteúdo mínimo do Direito, que consiste em direitos humanos, caracterizados, enquan-
to valores fundamentais indisponíveis, nota
de uma essencial inexauribilidade”.
certos direitos subjectivos do homem que se impõem à legislação esta-
dual como direitos indisponíveis, não obstante serem também historica-
mente referenciados. No fundo trata-se daquilo a que nós chamamos de
direitos fundamentais ou direitos humanos.10

Como já demonstrado, a dignidade humana (conjunto dos direitos hu-


manos) é o conteúdo mínimo do Direito e determina os valores a que este está
submetido para a realização do ideal de justiça. Preservado em seus direitos
fundamentais o homem realiza sua condição humana e tem a possibilidade de
constituir as bases de uma convivência harmônica em sociedade.
A justiça é a realização do homem, que corresponde ao respeito a seus di-
reitos fundamentais, ou seja, àquilo que há de essencial para seus atributos de
humanidade. Nestes tempos, o justo – ou seja, aquilo que tem justificação – é
o que permite aos homens o bem estar (individual e coletivo) e a felicidade. De

311
maneira que o bom Direito é aquele que consagra valores capazes de realizar
esse ideal de realização e felicidade para todos os homens. O Direito deve per-
mitir a realização plena das potencialidades de todos os homens. E para tanto,
necessária a consagração de valores que repercutam em mecanismos para a
promoção da dignidade das pessoas.
É exatamente o que se verifica nas decisões supracitadas: a preocupação
central foi com a preservação do núcleo central da pessoa humana, qual seja,
sua dignidade. A preocupação com os direitos fundamentais demonstra a re-
levância da preservação do ser humano. Dessa maneira, os valores que fazem
referência ao homem são os critérios de avaliação do Direito (função da justi-
ça), e naquelas decisões foram bem empregados perfeitamente nesse sentido,
pois se insurgiram contra atos que feriam a dignidade humana.
São esses valores que nos unem como comunidade através da lei, como
bem demonstra Dworkin (1999, p. 492):

O que é o direito? Ofereço, agora, um tipo diferente de resposta. O direi-


to não é esgotado por um catálogo de regras e princípios, cada qual com
seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos.
[…]. É uma atitude interpretativa e auto-reflexiva, dirigida à política no
mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão
responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua
sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada
nova circunstância. […]. A atitude do direito é construtiva: sua finali-
dade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática
para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a
boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma
expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos
por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma,
o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e
para a comunidade que pretendemos ter.

O STF está preocupado com o conteúdo da lei, quer dizer, pretende que
ela seja boa, isto é, justa. Para tanto, a dignidade humana é utilizada como o
parâmetro para a constatação da constitucionalidade dos atos normativos, o

312
que significa dizer, resumidamente, que as normas devem estar de acordo com 11. Cite-se, a título de exemplo, o Preâm-
os paradigmas contidos na Constituição. Tais paradigmas, ou parâmetros – bulo, o art. 1º, o art. 5º, o caput do art. 37,
dentre tantos outros.
bem representados por aqueles valores contidos em diversos dispositivos cons-
titucionais11 –, derivam, como já dito, de um super-valor, que é o ser humano.
Aí foi localizado o núcleo da noção de justiça.
O que se quer dizer aqui é que a noção de justiça contida naquelas decisões
nada mais é do que a aplicação dos valores constitucionais que protegem o homem.

3. Conclusão

A principal preocupação do presente estudo foi a demonstração de que a jus-


tiça não é irracional e um valor agregado ao subjetivismo. Demonstrou-se a
existência de valores universalizáveis que correspondem ao núcleo desse ideal
de justiça, caracterizado pela certeza, racionalidade e objetividade. Para tanto,
se fez necessária a análise de decisões do Supremo Tribunal Federal que justa-
mente apresentavam como preocupação a preservação de tais valores, ou seja,
as decisões aplicavam a noção de justiça que aqui se defendeu, baseada na
dignidade humana como conjunto dos direitos humanos fundamentais.
Pode-se perceber a preocupação do Supremo Tribunal Federal em realizar
a perspectiva axiológica e teleológica que aqui foi apresentada. Não há busca
mais essencial no cenário do Brasil, hoje, que a realização dessa noção de jus-
tiça a partir do homem, com o qual se trabalhou aqui, e que está contida no
Direito. As decisões ora analisadas representam a busca da realização do bom
Direito, e do Direito que queremos.

313
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TORRÉ, Abelardo. IntroducciónalDerecho. Buenos Aires: Abeledo–Perrot, 1999.

314
Carmelinda de Souza Oliveira
Discente do Curso Educação em Direitos Humanos, Graduada em Pedagogia,
Pós-graduada em Alfabetização e Letramento e Gestão Escolar.

18
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: ESTRATÉGIAS PARA
COMBATER OS ESTEREÓTIPOS E PRECONCEITOS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Carmelinda de Souza Oliveira

1. Introdução

Atualmente, educar em Direitos Humanos torna-se imprescindível à educação,


já que todo ser humano é considerado um sujeito de direitos, sendo um com-
promisso assumido internacionalmente pelo Brasil ao ratificar a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
De acordo com Klein (2013, p.44):

levar a Educação em Direitos Humanos para a sala de aula implica na


compreensão e na interpretação da realidade, para tanto, fazem-se neces-
sárias capacidades cognitivas (compreender os conteúdos e conceitos aos
temas trabalhados) afetivas e subjetivas (valorar e atribuir significado)

Nesta perspectiva, Raizer (2013, p.32), relata que:

os processos educacionais em direitos Humanos pressupõem que sejam


coletivos, participativos e democráticos construídos pela interatividade
social e pelo diálogo”.

Neste sentido, cabe aos profissionais da educação criar estratégias efi-


cazes para combater os estereótipos e preconceitos que surgem no contexto
escolar, pois, “combatê-los em processos educacionais eficazes requer o co-
nhecimento dos modos específicos de como os mesmos foram construídos e
reproduzidos. Compreender as representações e práticas perversas que elas
sustentam (POMPEU, 2013). Sendo assim, é preciso compreender a realidade
onde o individuo está inserido para se tentar formular estratégias educacionais
visando a colocar em foco os autores de preconceitos e violências.

316
Desse modo, justifica-se a pertinência desse tema, considerando-o de
suma importância para a área da Educação, por possibilitar maior conheci-
mento sobre educar em Direitos Humanos. Busca-se redefinir e criar novas es-
tratégias para combate aos estereótipos e preconceitos iminentes no contexto
escolar infantil.
Para elaboração do artigo, optou-se pela pesquisa bibliográfica. Desse
modo, de acordo com Lakatos e Marconi (1987), este tipo de pesquisa possi-
bilita ao pesquisador entrar em contato direto com os materias e registros de
outros autores que abordam a sua problemática de discussão, visando dar base
e ênfase à temática de estudo.
Nessa perspectiva, Cervo e Bervian (1976) afirmam que todo tipo de
pesquisa em qualquer área do conhecimento, supõe e exige pesquisa biblio-
gráfica prévia, seja para fazer o levantamento da situação em questão, para
realizar a fundamentação teórica ou ainda para justificar os limites e contri-
buições da mesma.
A pesquisa bibliográfica será realizada em revistas de educação e livros,
procurando fazer um levantamento de dados relevantes que abordam a temá-
tica do artigo, com o intuito de aprimorar, desenvolver novos conhecimentos
e revisionar as estratégias que têm sido utilizadas para combater estereótipos
e preconceitos na educação.
No decorrer do artigo será apresentado (dando ênfase à educação infan-
til) um breve histórico dos direitos humanos no Brasil, as leis que amparam a
educação em direitos humanos nessa modalidade de educação e estratégias de
combate aos estereótipos e preconceitos na educação infantil.

2. Breve histórico do reconhecimento dos direitos humanos


no Brasil – a educação infantil

A primeira constituição a tratar dos Direitos Humanos foi a Constituição Impe-


rial Brasileira de 1824. De acordo com a mesma, a inviolabilidade dos direitos
civis e políticos baseava-se na liberdade, na segurança individual e, como não
poderia deixar de ser, na propriedade.

317
A Constituição de 1934 estabeleceu algumas franquias liberais, intitulan-
do garantias individuais e estatuindo normas de proteção social ao trabalhador.
A Constituição de 1946 redemocratizou o país, restaurando os direitos e
garantias individuais, sendo estes, até mesmo ampliados, do mesmo modo que
os direitos sociais. Essa constituição garantiu os Direitos Humanos.
O Brasil, ao ratificar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948, assumiu um compromisso internacional em promover uma educação
pautada no reconhecimento dos Direitos Humanos.
A Constituição de 1967, entretanto, trouxe inúmeros retrocessos, su-
primindo a liberdade de publicação, tornando restrito o direito de reunião,
estabelecendo foro militar para os civis, mantendo todas as punições e ar-
bitrariedades decretadas pelos Atos Institucionais. Essa Constituição, embora
determinasse o respeito à integridade física e moral do detento e do presi-
diário, reduziu a idade mínima de permissão para o trabalho para 12 anos;
restringiu o direito de greve; acabou com a proibição de diferença de salários,
por motivos de idade e de nacionalidade; restringiu a liberdade de opinião e de
expressão, recuando no campo dos chamados direitos sociais.
A Constituição de 1969 somente começou a vigorar com a queda do Ato
Institucional -5, em 1978. Essa constituição retroagiu, ainda mais, já que teve
incorporadas ao seu texto legal, as medidas autoritárias dos Atos Institucio-
nais, não foram respeitados os Direitos Humanos.
A Constituição de 1988 veio para proteger os direitos humanos, o que
poderia ter se efetivado ainda na Constituição de 1946, considerada uma bela
Constituição caso não tivesse sido derrubada pela ditadura. A Constituição de
1988 foi uma “Constituição cidadã” porque promoveu dignidade ao brasileiro,
possibilitando que o mesmo tivesse cidadania.
Segundo Sader (2007), foi durante a ditadura militar que o tema dos
direitos humanos ganhou espaço de destaque. A temática passou a disputar
espaço no discurso hegemônico, no plano nacional, visando garantir igual-
dade de direitos, proteção da integridade física, direito a afirmar diferenças.
Com a repressão à ditadura, a educação em direitos humanos obteve uma
grande conquista, porquanto, no movimento de resistência política, valeu-se
do discurso democrático. A partir de então, as escolas passaram a incorporar o
tema; cursos específicos passaram a fazer parte de currículos, palestras espe-

318
cíficas; entidades voltadas diretamente para a questão dos direitos humanos,
com publicações, espaços na imprensa, promoção de personalidades que se
notabilizaram na sua defesa.
No entanto, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a
educação já era considerada responsável por expandir plenamente a persona-
lidade humana, reforçar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais.
Enfatize-se que essa educação deve prevalecer em todo o ensino elementar,
portanto, deve ter inicio ainda na Educação Infantil.

3. Leis que amparam a educação em direitos humanos


na educação infantil

A primeira Legislação que evidencia a educação fundamentada nos Direitos Hu-


manos foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada em
1948 na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse docu-
mento é considerado a base da luta universal contra a opressão e a discrimina-
ção, por reconhecer que os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem
ser aplicados a cada cidadão e defender a igualdade e a dignidade das pessoas.
No art. 26 da Declaração está escrito que toda pessoa tem direito a ins-
trução, sendo-a gratuita e obrigatória nos graus elementares e fundamentais.
Ainda ressalta no capitulo 2 desse artigo que:

a instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da perso-


nalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos
e pelas liberdades fundamentais. Promoverá a compreensão, a tolerância
e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coad-
juvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

Em 1988, a Constituição Federal no Capitulo III, Seção I, em seu Art. 205,


que trata especificamente da educação, ressalta que a mesma é um direito de
todos, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidada-
nia e sua qualificação para o trabalho.

319
No Art.206, prevê em relação ao ensino:

[…] será ministrado com base na igualdade de condições para o aces-


so e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar
e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e
privadas de ensino e gratuidade do ensino público em estabeleci-
mentos oficiais.

A Lei Nº 8.069, de 13 de Julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da


Criança e do Adolescente e dá outras providências, no Capítulo IV, que trata
da educação, no Art. 53 estabelece que:

A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno


desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e
qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - direito de ser respeitado por seus educadores;
III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às ins-
tâncias escolares superiores;
IV - direito de organização e participação em entidades estudantis;
V - acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.

A Lei Nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996, estabelece as Diretrizes e


Bases da Educação Nacional no Capitulo II, que trata da Educação Básica, na
Seção I Das Disposições Gerais. No Art.27 aborda que

Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as se-


guintes diretrizes: I - a difusão de valores fundamentais ao interesse
social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e
à ordem democrática.

320
Ainda nesse mesmo capitulo na Seção II, que trata da Educação Infantil,
relata que:

Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem


como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de
idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, comple-
mentando a ação da família e da comunidade.

Art. 30. A educação infantil será oferecida em:


I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos
de idade;
II - pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade.
Art. 31. Na educação infantil a avaliação far-se-á mediante acompanha-
mento e registro do seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoção,
mesmo para o acesso ao ensino fundamental.

No ano de 1998, foram criados os Referenciais Curriculares Nacionais


para a Educação Infantil. Esses documentos apontam metas de qualidade que
visam a contribuir para que as crianças tenham um desenvolvimento integral
de suas identidades, capazes de crescerem como cidadãos cujos direitos à in-
fância são reconhecidos. São documentos que têm como intuito possibilitar
que nas instituições o objetivo socializador dessa etapa educacional seja reali-
zado em ambientes que propiciem o acesso e a ampliação, pelas crianças, dos
conhecimentos da realidade social e cultural.
Os Referenciais são guias de reflexão de cunho educacional sobre objeti-
vos, conteúdos e orientações didáticas para os profissionais que atuam direta-
mente com crianças de zero a seis anos, respeitando-se seus estilos pedagógi-
cos e a diversidade cultural brasileira.
A Lei N° 10.172, de 9 de Janeiro de 2001, aprova o Plano Nacional de
Educação e dá outras providências. No tópico 1.2 das Diretrizes, aborda que a
Educação Infantil é considerada:

[…] a primeira etapa da Educação Básica. Ela estabelece as bases


da personalidade humana, da inteligência, da vida emocional, da

321
socialização. As primeiras experiências da vida são as que mar-
cam mais profundamente a pessoa. Quando positivas, tendem
a reforçar, ao longo da vida, as atitudes de autoconfiança, de
cooperação, solidariedade, responsabilidade.

A Educação Infantil terá como papel, de acordo com o Plano Nacional:

Considera-se, no âmbito internacional, que a educação infantil terá um


papel cada vez maior na formação integral da pessoa, no desenvol-
vimento de sua capacidade de aprendizagem e na elevação do nível
de inteligência das pessoas, mesmo porque inteligência não é herdada
geneticamente nem transmitida pelo ensino, mas construída pela crian-
ça, a partir do nascimento, na interação social mediante a ação sobre os
objetos, as circunstâncias e os fatos. Avaliações longitudinais, embora
ainda em pequeno número, indicam os efeitos positivos da ação edu-
cacional nos primeiros anos de vida, em instituições específicas ou em
programas de atenção educativa, quer sobre a vida acadêmica posterior,
quer sobre outros aspectos da vida social. Há bastante segurança em
afirmar que o investimento em educação infantil obtém uma taxa de
retorno econômico superior a qualquer outro.

O Plano Nacional visa a implementar diretrizes e referenciais curricula-


res na tentativa de melhorar a qualidade da Educação Infantil. Tem o intuito
de respeitar “às diversidades regionais, aos valores e às expressões culturais
das diferentes localidades, que formam a base sócio-histórica sobre a qual as
crianças iniciam a construção de suas personalidades”.
Entre os objetivos e metas do plano está a ampliação à oferta de educa-
ção infantil, o estabelecimento de padrões mínimos de infraestrutura para o
funcionamento adequado das instituições, estabelecer um Programa Nacional
de Formação dos Profissionais de educação infantil, assegurar que os Muni-
cípios tenham definido sua política para essa modalidade de educação, assim
como as instituições tenham formulado, com a participação dos profissionais
de educação neles envolvidos, seus projetos pedagógicos.

322
Em 2006 foi concluído o Plano Nacional de Educação em Direitos Huma-
nos (PNEDH), o qual se destaca como política pública em dois sentidos prin-
cipais: primeiro, consolidando uma proposta de projeto de sociedade baseada
nos princípios da democracia, cidadania e justiça social; segundo, reforçando
um instrumento de construção de uma cultura de direitos humanos, entendida
como processo a ser apreendido e vivenciado na perspectiva da cidadania ativa.
De acordo com PNEDH:

A educação em direitos humanos é compreendida como um processo


sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de
direitos, articulando as seguintes dimensões:

a. apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos huma-


nos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local;
b. afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos
direitos humanos em todos os espaços da sociedade;
c. formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis
cognitivo, social, ético e político;
d. desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção
coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados;
e. fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instru-
mentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos huma-
nos, bem como da reparação das violações.

O PNEDH aborda que a educação em direitos humanos deve ser promo-


vida em três dimensões:

a. conhecimentos e habilidades: compreender os direitos humanos e os meca-


nismos existentes para a sua proteção, assim como incentivar o exercício de
habilidades na vida cotidiana;
b. valores, atitudes e comportamentos: desenvolver valores e fortalecer atitu-
des e comportamentos que respeitem os direitos humanos;
c. ações: desencadear atividades para a promoção, defesa e reparação das vio-
lações aos direitos humanos.

323
De acordo com as leis apontadas acima, pode-se constatar que a Edu-
cação em Direitos Humanos deve fazer parte dos currículos disciplinares da
Educação Infantil. Os profissionais dessa modalidade de ensino têm de elabo-
rar estratégias para combater os estereótipos e preconceitos que surgem no
cotidiano escolar.
A Educação Infantil é considerada a base da educação básica, por possi-
bilitar à criança o primeiro convívio social. Dessa forma, o individuo começa
a construir sua aprendizagem estabelecendo as bases de sua personalidade, da
sua inteligência, da sua vida emocional e principalmente da sua socialização.

4. Estratégias de combate aos esteriótipos e preconceitos


na educação infantil

Quando falamos de Educação Infantil, de certa maneira estamos falando


da inserção social de um individuo em um processo de educação. Esse in-
dividuo chega à escola trazendo consigo uma aprendizagem prévia do seu
cotidiano. Ele já tem uma certa formação de valores, direitos e uma gama
cultural especifica.
Assim, promover uma Educação baseada na promoção dos Direitos Hu-
manos é principal estratégia para combater os estereótipos e preconceitos na
educação infantil. Porém, esse tipo de educação ainda é considerado um gran-
de desafio para as instituições de ensino. Para Fernandes e Paludeto (2010), a
educação voltada aos direitos humanos ainda não faz parte da prática nem do
currículo da escola brasileira.
As mesmas autoras ainda argumentam que:

Em momentos de crise de valores públicos e privados e da sociedade


como um todo, torna-se imperativo que as temáticas da igualdade e da
dignidade humana não estejam inscritas apenas de textos legais, mas
que, igualmente, sejam internalizadas por todos que atuam tanto na
educação formal como na não formal.

324
A educação em direitos humanos (EDH) é um desafio de todos os mem-
bros da escola, devendo ser vivenciada e colocada em prática no cotidiano
escolar. Favorecer esse tipo de educação é promover a igualdade e dignidade
humana, o respeito às diferenças, a consolidação da democracia e, principal-
mente, o reconhecimento do ser humano.
Tomando como base essa perspectiva, Klein (2013), deixa bem claro em
relação à EDH dentro da sala de aula, que:

Levar a EDH para dentro da sala de aula implica na compreensão e na


interpretação da realidade, para tanto fazem-se necessárias capacidades
cognitivas (compreender os conteúdos e os conceitos relacionados aos
temas trabalhados); afetivas e subjetivas (valorar e atribuir significado).
O aprendizado em Direitos Humanos conjuga a experiência dos indiví-
duos às ações coletivas (KLEIN, 2013, p. 45).

Pode-se compreender que a EDH baseia-se na construção coletiva do


conhecimento. Dessa maneira, o foco dessa educação é o trabalho em equi-
pe e a aprendizagem interdisciplinar, sendo um processo ativo e signifi-
cativo de construção de conhecimentos. Para Klein, “A questão central à
educação passa a ser aaprendizagem e a participação ativa dos discentes
nesse processo”. (KLEIN, 2013, p.48)
Nesta perspectiva, uma escola que tem como centro da educação o aluno
não pode permitir que a criação de estereótipos e os preconceitos aconteçam
dentro do espaço escolar. O aluno deve ter as suas diferenças respeitadas, se-
jam físicas, culturais, sociais, econômicas ou étnicas.
Portanto, cabe aos educadores criar estratégias para combater os es-
tereótipos e preconceitos no contexto escolar. Os professores, para Klein
(2013), devem buscar métodos e adequar os conteúdos à lógica da aprendi-
zagem humana.
Abordando essa mesma temática, as autoras Lacerda e Fidelis ressaltam que:

[…] os educadores têm a obrigação de sensibilizar e estimular o


pensamentodo cidadão que deve ser desenvolvido através das
práticas pedagógicas, resgatedos valores, elaboração de projetos

325
educacionais voltados para os direitoshumanos capazes de hu-
manizar sua própria metodologia (LACERDA, 2013, p.124).

Dessa forma, as escolas têm de ser ambientes favoráveis para a promoção


da EDH. As autoras ainda afirmam que:

A escola deve ser o ambiente favorável para desenvolver metodologias


didáticas que levem alunos a compreenderem os processos históricos,
diversidades culturais. A tarefa do docente aparentemente não parece
ser tão fácil para implantar uma Educação em Direitos Humanos, mas
a escola é o espaço formador de indivíduos para a sociedade e assim,
com responsabilidade de criar uma cultura de paz, instruindo as pessoas
sobre seus direitos e deveres capazes de exercer a cidadania e evitar a
exclusão social dos menos favorecidos, tornando-os como sujeito de
direitos na sociedade.
O eixo da Educação em Direitos Humanos trata de criar uma cultura de
respeito em direitos humanos, sendo necessário capacitar educadores e
representantes da sociedade civil, de forma transversal e interdisciplinar
(LACERDA, 2013, p.124).

Essas autoras entendem que educar em direitos humanos significa:

[…] levar o aluno a reflexão do que lhe é de direito, comparti-


lhando com os educadores neste processo de aprendizagem. Tra-
ta-se de promover uma cultura de respeito à dignidade humana,
promovendo valores, justiça, solidariedade, não através de recla-
mações retóricas e sim de atitudes conscientes, embasadas nos
valores e na realidade concreta de cada aluno. […] A educação
em direitos humanos não deve ser restrita somente aos professo-
rese educandos, mas devem ser estendidas a todos os membros
da comunidadelocal de forma a propiciar a construção de enten-
dimento sobre direitos edeveres, dos quais todos vivenciem uma
cultura de igualdade e dignidade. Estesobjetivos poderão ser al-

326
cançados com metodologias de projetos que visam àparticipação
da escola bem como da comunidade (LACERDA, 2013, p.125).

Dessa maneira, a EDH tem seus princípios didáticos ligados ao contexto


do educando. Para o autor Santos Júnior (2011):

O processo de escolarização estabelecendo plano de ação e metas que


visem implementar a EDH na escola tem o papel fundamental na in-
vestidura dos processos formativos dos educandos e demais membros
da comunidade escolar, oportunizando a descolonização do olhar et-
nocêntrico, ou seja, a produção de um novo olhar sem preconceitos e/
ou estereótipos sobre determinados grupos, indivíduos e fenômenos da
sociedade (SANTOS JÙNIO, 2011, p.100).

Faz-se necessário esclarecer, segundo Gomes (2003), que “a escola possui


a vantagem de ser uma das instituições sociais em que é possível oencontro
das diferentes presenças”, ou seja, cada indivíduo que frequenta o meio escolar
tem uma cultura, crença, uma ideologia de valores distintos um dos outros.
Nas escolas de Educação Infantil, torna-se fundamental trabalhar as
culturas Africanas e Afro-brasileiras, ambas tendo o ensino amparado pela
lei 10.639/2003, e também a cultura indígena, pautada na lei 11.645/2008.
A autora Trindade (2010) aborda a importância de realizar um trabalho na
Educação Infantil, sem praticar o racismo, prezando o respeito, a convivên-
cia e o diálogo.
Segundo Santana (2010), em todas as dimensões do cuidar e educar nessa
modalidade de educação faz-se necessário considerar a singularidade de cada
criança, ou seja, as suas necessidades, desejos, queixas e as dimensões: cultu-
rais, sociais e familiares. A autora ainda ressalta, que nós educadores:

Precisamos questionar as escolhas pautadas em padrões dominantes que


reforçam os preconceitos e os estereótipos racistas. Nessa perspectiva,
a dimensão do cuidar e do educar deve ser ampliada e incorporada
nos processos de formação dos profissionais que atuam na Educação
Infantil, o que significa construir princípios para os cuidados embasa-

327
dos em valores éticos, nos quais atitudes racistas e preconceituosas não
podem ser admitidas. […] É importante evitar as preferências e escolhas
realizadas porprofessores e outros profissionais, principalmente quando
os critérios sepautam por posições preconceituosas e padrões de beleza
dominantes:crianças brancas e de cabelos lisos e olhos claros são mais
acolhidas, acalentadas, elogiadas, lembradas, em detrimento das crian-
ças negrasque ficam esquecidas.
Não silenciar diante de atitudes discriminatórias eventualmente obser-
vadasé outro fator importante na construção de práticas democráticas
e decidadania para todos e não só para as crianças. A criança discri-
minada, rejeitada pelos colegas por causa da cor escura de sua pele,
de seu cabelocrespo, precisa ser ouvida e acolhida, ao mesmo tempo
em que atividades pedagógicas precisam ser desenvolvidas para tratar
do assunto com todas as crianças. O não silenciamentoem situações de
discriminaçãoracial e outras informa para todos, adultos e crianças, que
essas atitudessão inadmissíveis quando se acredita em uma educação
humanitária e derespeito à diversidade.
[…] Relações pautadas em tratamentos desiguais podem gerar danosir-
reparáveis à constituição da identidade das crianças, bem comocompro-
meter sua trajetória educacional (SANTANA, 2010, p.18-19).

A autora cita estratégias que são fundamentais para evitar os estereótipos


e preconceitos, como:

Chamar as crianças pelo nome é fundamental. Evitar tratá-las por suas


características físicas permite identificá-las como seres únicos, plenos
de potencialidade, de individualidade. Tratamentos como “neguinha”,
“moreninha”, “loirinha”, “pretinha” descaracterizam as crianças e as
deslocam para dimensões de aparência física somente. Perde-se o que é
do sujeito, da pessoa (SANTANA, 2010, p.20).

Para Dorneles (2010), os brinquedos das salas de aula também são con-
siderados um fator de estereótipos e preconceitos, argumentando que normal-

328
mente os bonecos e bonecas quando sai do parâmetro considerado normal são
rejeitados pelas crianças. A autora afirma:

[…] Onde, em nossas salas de aulas, estão os bonecos negros, gordos,


velhos, que usam óculos etc.?
Estes corpos “anormais” não fazem parte dos brinquedos encontrados
nasescolas ou em nossas casas. Tal como aqueles que aparecem na mí-
dia, oscorpos “certos” são sempre os magros, altos, loiros e de olhos cla-
ros. Esse modelo leva crianças de lugares os mais diferentes a quererem
modificarseus corpos com o objetivo de fazê-los parecer o mais possível
com os “normais” e “bonitos”. As imagens e os discursos veiculados na
mídia sãocarregados de significados, trazem embutida uma “pedagogia
da beleza” (DORNELES, 2010, p.31).

A autora ainda relata:

Por isso, é importante que pais e professores possam desconstruir, rein-


ventar, pluralizar, apresentar diferentes repertórios de brinquedos a sere-
mutilizados nas atividades com bonecos e bonecas, a fim de questionar
ostipos físicos tidos como “certos”, pois é nos corpos que se inscrevem
nossos modos de sermos sujeitos (DORNELES, 2010, p.32).

Sendo assim, a autora considera que quando a criança brinca com bo-
necos diferentes ela aceita com mais facilidade as pessoas que não se parecem
com ela e começa a refletir sobre a maneira de relacionar com os outros.
Em relação ao brincar, Lima (2010) considera que:

[…] O brincar é uma oportunidade de apreender a vida. O educador pode


dimensionar a riqueza desses momentos como um jogo que pode levar
à superação ou manutenção de preconceitos, principalmente quando
associados à identidade negra. Se toda criança descobrir prazer nesse
relacionamento, esta será uma base sensível para futuros caminhos de
volta ao mesmo (LIMA, 2010, p.90).

329
Portanto, educar com intuito de promover o respeito á diversidade cul-
tural e a promoção dos direitos humanos é um grande desafio que precisa ser
superado pelas escolas. Precisamos encontrar métodos eficazes que combatam
os estereótipos e preconceitos da educação infantil, como vimos é nessa mo-
dalidade do ensino que a criança constrói a sua identidade, seus padrões de
comportamento e principalmente, o reconhecimento ao outro. Neste sentido,
Santana (2010), apresenta algumas questões que devemos colocar como fun-
damentais para promover uma educação pautada nos direitos humanos, são
abordadas pela autora as seguintes questões:

[…] como educar todas ascrianças na prática da solidariedade, no respei-


to às diferenças? Estamosdialogando com nossas crianças, permitindo
que contem sobre suas vidas, que ouçam os outros, que sejam ouvidas
e orientadas em seus dilemas, dúvidas, buscas e curiosidades? Estamos
considerando a experiênciacomo forma importante de aquisição de co-
nhecimentos? Respeitamosas crianças como seres completos? Que prin-
cípios de identidade, valoreséticos, relações étnico-raciais e de gêneros
estamos ensinando?(SANTANA, 2010, p.21).

A autora ainda acrescenta:

todos esses desafios precisam ser encarados para construirmos uma


educação pautada na esperança de um mundo mais justo e fraterno.
Esse mundo não poderá existir sem considerarmos á diversidade étnico-
racial e o respeito a todos os povos e culturas (SANTANA, 2010, p.21).

5. Considerações finais

Abordou-se no artigo que a principal estratégia para combater os estereótipos


e preconceitos na Educação Infantil é promovendo uma educação baseada nos
Direitos Humanos. Nas escolas, deve ser trabalhada em atividades pedagógicas
a diversidade cultural, mas, de forma que o aluno seja o centro do processo de
ensino e que as atividades estejam em coerência com a sua realidade.

330
Os educadores têm que estar atentos para criar estratégias de combate às
violações dos direitos das crianças, sempre buscando trabalhar as diferenças
de cada um no contexto escolar. Dessa maneira, as crianças aprenderão atra-
vés da socialização a respeitar, reconhecer e aceitar o outro.
Assim, torna-se imprescindível que os profissionais da educação tenham
uma formação pautada na Educação em Direitos Humanos. Nesse sentido, cabe
aos educadores procurarem cursos de capacitação e atualização relacionados
a essa temática, mas para isso, faz-se necessário que o Ministério da Educação
e as instituições de ensino superior considerem a Educação em Direitos Hu-
manos como uma Politica Educacional, ofertando cursos e formação continu-
adanessa área para todos os profissionais que trabalham no contexto escolar.
As instituições de ensino superiordevem programar na grande curricular,
das graduações ofertadas, um eixo norteador ou uma disciplina, para ensinar os
futuros educadores a importância de promover esse tipo de educação.

331
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335
Jane Fernandes da Costa
Pedagoga e Supervisora Escolar . Pós graduada em Educação Especial e em Lín-
gua Brasileira de sinais. Discente do Curso de Educação em Direitos Humanos.

19
DIREITOS HUMANOS E O PROFESSOR
NA SALA DE AULA

Jane Fernandes da Costa

1. Introdução

Constitui nosso interesse neste trabalho abordar o contato de profissionais da


educação com crianças e adolescentes agressivos, dentro e fora da sala de aula.
Esse tema tem tido grande repercussão, pois estatísticas mostram que esse tipo
de conduta tem aumentado dentro das instituições educativas.
Um questionário composto de questões abertas e fechadas será respondido
por professores, sem que os mesmos sejam identificados, sendo 10 professores em
cada uma das seis escolas estaduais da cidade de Bom Jesus do Itabapoana – RJ.
O professor precisa ser protegido pelos Direitos Humanos, tendo sua integri-
dade física e moral resguardada para que possa retomar o seu papel de educador,
e, por fim, ser o mediador entre pais e escola, pois educar é uma tarefa de todos.

2. O professor e os direitos humanos

A Declaração dos Direitos Humanos diz respeito a todos os cidadãos, indepen-


dentemente da sua raça, religião, sexo, idade, cultura. Na escola, são cidadãos
livres e de direitos iguais alunos e professores, conforme declara a Declaração
dos Direitos Humanos no seu art 1º “Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem
agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Contudo, não é isso
o que se vê quando tomamos o papel do professor na escola.
Quanto ao papel do professor de acordo com Zenaide:

Aos professores e as professoras são destinados papéis diferenciados


dentro da instituição escolar, devido a seus conhecimentos e sua expe-
riência. A sociedade lhes atribui responsabilidades e deveres que lhes

337
permitem, inclusive, avaliar alunos e alunas e utilizar da autoridade
da função para exigir o cumprimento das regras e normas sociais. Por
outro lado, tais poderes não lhes garante o direito de agir de maneira
injusta, desconsiderando, por exemplo, os direitos relativos a cidadania
de seus alunos e suas alunas (ZENAIDE. 2008. p.165).

No cenário das escolas brasileiras, a violência dentro da sala de aula


tem privado professores e alunos de seus direitos. O professor, que é silencia-
do ao tentar exercer sua autoridade, coloca, muitas vezes, a sua vida e a vida
de alunos, que não usam dessa prática para se favorecerem. Sendo vítima de
violência, tende a fracassar perante o seu papel de ensinar os conteúdos e
avaliar seus alunos.
Afirma Zenaide:

Se queremos falar de democracia na escola, devemos, ao mesmo tempo,


reconhecer a diferença nos papéis sociais e nos deveres e buscar aqueles
aspectos em que todos os membros da comunidade escolar têm os mes-
mos direitos. Estou falando, por exemplo, do direito ao diálogo, a livre
expressão de seus sentimentos e idéias, ao tratamento respeitoso, a dig-
nidade, etc. Tanto nas escolas quanto nos hospitais e nas famílias. Estou
me referindo, afinal, a igualdade de direitos que configura a cidadania
(ZENAIDE. 2008. p.165).

Se todos temos direitos que configuram a cidadania, é preciso que todos,


dentro da comunidade escolar, usufruam desses direitos para se desenvolverem
e para se defenderem, sabendo reconhecer a diferença dos papéis sociais e dos
deveres, iguais para todos. É como afirma Ferrari (2005, p. 02), precisamos
“manter vivo o vínculo educativo em nossas escolas”.

2.1 A violência e o professor na sala de aula

No mês de outubro de 2013, dez professores que trabalham nas seis escolas
estaduais do município de Bom Jesus do Itabapoana — RJ, responderam a um
questionário sobre o tema: A violência e o professor na sala de aula, como

338
forma de demonstrarem que a violência sofrida pelo professor no dia-a-dia
na sala de aula é algo real e já tem sido abordada em diversas salas de debate
institucionais e governamentais.
Ao distribuir o questionário, selecionamos professores que lecionavam
matérias distintas, com tempo de atuação no magistério e em diferentes mo-
delos de sala de aula. Ainda selecionamos profissionais com formação no
Ensino Médio, Superior, Pós-graduação e Mestrado, sendo que a maioria dos
profissionais são pós-graduados e, apesar de alguns também trabalharem em
escolas municipais e particulares, todos os entrevistados têm experiência na
rede estadual. Afinal, a heterogeneidade é importante para determinar a ve-
racidade dos fatos, mostrando que os argumentos comuns ou não entre os
professores não se dão pelo fato de serem mais experientes no magistério
ou não, ou porque tenham se formado há muito tempo ou recentemente, ou
ainda pelo tipo de graduação.
Foram distribuídos 10 questionários nas 6 escolas estaduais do município
de Bom Jesus do Itabapoana – RJ, totalizando 60 questionários. Contudo, em
uma das escolas, 4 profissionais se negaram a responder e não mencionaram
o motivo. Portanto os dados serão coletados dos 54 questionários respondidos
pelos profissionais da educação, atuantes dentro da sala de aula que atende-
ram e responderam à nossa solicitação.
Quanto à satisfação, dos 54 professores, observe o gráfico 1, 5 pro-
fessores, ou seja, 9 % responderam que estão muito satisfeitos; 28 profes-
sores, ou seja, 49 % que estão satisfeitos; 5 professores, ou seja 9 % que
nem satisfeito, nem insatisfeito; 13 professores, ou seja 23 % que estão
insatisfeito e 6 professores, ou seja 10 % que estão muito insatisfeito,
demonstrando que de modo geral os profissionais da educação estão satis-
feitos com a sua profissão.
No que se refere a mudança de profissão, observe o gráfico 2, 22 pro-
fessores, ou seja, 42 % responderam sim, mudariam se houvesse esta opção,
enquanto 34 professores, ou seja, 58 %, responderam que não mudariam, mos-
trando que os profissionais da educação estão aos poucos desistindo da profis-
são, apesar da maioria ainda demonstrarem interesse.

339
Gráfico 1. Representação satisfação dos professores quanto a sua profissão

9%
10% Muito satisfeito
Satisfeito
49% Nem satisfeito, nem insatisfeito
Insatisfeito
23% Muito insatisfeito
9%

Gráfico 2. Representação dos professores quanto a opção de mudança

Sim
58% 42%
Não

Quanto aos que já foram agredidos dentro da sala de aula, observe o


gráfico 3: 25 professores, ou seja, 45% responderam sim, enquanto 31 profes-
sores, ou seja, 55%, responderam que não. Se observarmos a próxima pergunta,
entenderemos que a mesma não foi entendida por alguns dos entrevistados, pois
apesar de colocarem não, responderam que haviam sofrido algum tipo de agressão
na sala de aula, portanto analisaremos melhor esta questão na próxima pergunta.

Gráfico 3. Representação dos professores quanto a agressão dentro da sala de aula

Sim
55% 45%
Não

340
Em se tratando de profissionais que sofreram algum tipo de agressão
dentro ou fora da sala de aula, dos 54 professores, conforma observamos no
gráfico 3, apenas 25 professores disseram que já foram agredidos dentro da
sala de aula, mas no momento de assinalar, alguns que assinalaram que não
sofreram agressão nem dentro ou fora da escola, nessa pergunta mostraram
que haviam sim sofrido algum tipo de agressão. Observe o gráfico 4: dos 54,
apenas 25 professores, ou seja, 45 % responderam que nunca foram agredidos
e os 31, ou seja, 55 % restantes assinalaram que já foram agredidos. Observa-
se a seguinte distribuição: 20 professores, ou seja, 36%, agressão verbal; 6
professores, ou seja, 11%, agressão material; 2 professores, ou seja, 3%, agres-
são tanto verbal quanto física; 2 professores, ou seja, 3%, agressão física e 1
professor, ou seja, 2%, não se manifestaram. Contudo nesta pergunta podemos
concluir que o professor se confunde ao responder questionamentos deste tipo.
Fica parecendo que a agressão verbal não é significante, já que a cada dia isso
se torna mais comum dentro e fora da sala de aula.

Gráfico 4. Representação dos professores quanto ao tipo de agressão dentro ou fora


da sala de aula

Verbal Física
45% 36%
Material Não respondeu
Verbal e física Nunca fui agredido

2% 3% 3% 11%

Para os profissionais que assinalaram algum tipo de agressão, e a per-


gunta permitiu que um mesmo professor assinalasse mais de uma vez, afinal
nosso intuito nesta pergunta era descobrir a agressão mais comum entre os
profissionais, observe o gráfico 5. Das 39 vezes assinaladas, 30 são os alunos
o agressor, ou seja, 77%; 4 são os progenitores ou responsáveis pelos alunos,
ou seja, 10%, 2 são destinadas aos auxiliares/técnico em atividades escolares
(secretários/ bibliotecários…), ou seja, 5%; 2 são professores colegas de traba-

341
lho de mesmo nível hierárquico, ou seja, 5 %, e apenas 1 professor colega de
trabalho com hierarquia superior a sua, ou seja 3 %. Como podemos observar
são os alunos os responsáveis pela maioria das agressões, e ainda, que 87% das
agressões vêm de casa se somarmos as dos alunos com os seus progenitores
ou responsáveis.

Gráfico 5 Representação dos professores quanto aos agressores

77%
Colega do trabalho de mesmo nível hierárquico
Progenitor ou responsável legal por aluno
Aluno
Colega de trabalho com hierarquia superior a sua
Auxiliares/ técnicos em atividades escolares
5% 3% 5% 10%

Quanto à frequência das agressões, dos 31 professores, observe o gráfico 6:


8 professores, ou seja, 26 % responderam diariamente; 2 professores, ou
seja, 6% semanalmente; 3 professores, ou seja, 10% mensalmente; 4 pro-
fessores, ou seja, 13% semestralmente; 4 professores, ou seja, 13% anual-
mente e 10 professores, ou seja, 32% menos que uma vez ao ano. Mostra-
se que as agressões ocorrem diariamente, apesar de não ser a maioria, há
uma porcentagem preocupante, muito mais somada a semanal; mensal-
mente e semestral.

Gráfico 6 Representação da frequência das agressões

32% 26%
Diariamente Semestralmente
Semanalmente Anualmente
6% Mensalmente Menos que uma
10% vez ao ano
13%
13%

342
Dos 31 professores, observe o gráfico 7, 2 professores, ou seja, 7 % res-
ponderam muito pouco; 2 professores, ou seja 7% pouco; 6 professores, ou
seja 19 % mais ou menos; 19 professores, ou seja 61 % muito e apenas 2
professores, ou seja 6 % responderam que não influencia. Provando que a
maioria dos professores que sofrem agressão, se sentem insatisfeitos e por que
não dizer desmotivados.

Gráfico 7 Representação da satisfação quanto as agressões

61%
Muito
Não influencia
Muito pouco
Pouco
6%
Mais ou menos
19% 7%
7%

A maioria dos profissionais se sente desmotivados e é claro que seu de-


sempenho é influenciado em função dessas agressões. Dos 31 professores, ob-
serve o gráfico 8, 2 professores, ou seja, 6 % responderam muito pouco; 3
professores, ou seja 10% pouco; 7 professores, ou seja 23 % mais ou menos; 8
professores, ou seja 26 % muito e apenas 11 professores, ou seja 35 % respon-
deram que não influencia.

Gráfico 8 Representação do desempenho quanto as agressões

26% 35% Muito


Não influencia
Muito pouco
Pouco
23% 6% Mais ou menos
10%

343
Os professores ou a maioria admitem que as agressões interferem em
sua qualidade de vida. Dos 31 professores, observe o gráfico 9, 3 professores,
ou seja, 10 % responderam muito pouco; 5 professores, ou seja 16 % pouco;
7 professores, ou seja 23 % mais ou menos; 11 professores, ou seja 35 % muito
e 5 professores, ou seja 16 % responderam que não influencia.

Gráfico 9 Representação influencia na qualidade de vida do professor quanto as agressões

16% 10%
Muito pouco
16% Pouco
Mais ou menos
Muito
35% 23% Não influencia

Dos 31 profissionais que mencionaram que já sofreram algum tipo de


agressão, 26 professores disseram que sim, que tomaram alguma providência
após ser agredido e 5 professores disseram que não e dos 26 professores que
disseram que sim, observe o gráfico 10, 6 professores, ou seja 23 %, comu-
nicou somente a direção; 2 professores, ou seja 0 %, comunicou a direção,
supervisão escolar e pais; 2 professores, ou seja 0 % registro de ocorrência
policial e Conselho tutelar; 2 professores, ou seja 8 %, apenas registro poli-
cial; 2 professores, ou seja 8 %, ocorrência na escola – formulário próprio; 2
professores, ou seja8 %, ocorrência (não mencionou qual); 2 professores, ou
seja 8 %, pais; 3 professores, ou seja 11 %, conversa individual com o aluno; 1
professor, ou seja 4 %, comentou com o colega de trabalho e 4 professores, ou
seja 15 %, não responderam a pergunta. Mostrando que o profissional, tenta
buscar ajuda, provando que o mesmo, na maioria das vezes, não está satisfeito,
e também não ignora o que está acontecendo, contudo a heterogeneidade das
respostas comprova que não sabem o que fazer, que atitude tomar mediante
esse tipo de situação.

344
Gráfico 10 Representação das providências relatadas pelos professores após as agressões

15% 23%
Comunicou somente a direção Ocorrência (não mencionou qual)
4% 15% Comunicou a direção, supervisão escolar e pais Pais
11% 7% Registro de ocorrência policial e Conselho tutelar Conversa individual com o aluno
Apenas Registro policial Comentou com a colega
8% 8%
Ocorrência na escola - formulário próprio Não responderam a pergunta
8% 8%
8%

Todos os os 31 professores opinaram, 23 professores disseram que sim, que


a direção toma providência quanto o professor é agredido e 8 professores disse-
ram que não, observe o gráfico 11, 7 professores, ou seja, 30% responderam sus-
pensão, 9 professores, ou seja, 39% conversar com alunos, pais ou responsáveis,
2 professores, ou seja, 9% ocorrência, 2 professores, ou seja, 9% conversar pais
ou responsáveis e Conselho tutelar e 2 professores, ou seja, 9% que a direção con-
versa com alunos e os retorna para sala e “fica por isso mesmo” e 1 professor, ou
seja, 4% comentou que após fazer uma ocorrência policial foi chamada a direção
e a “diretora me pediu para retirar a queixa policial e disse: — Se eu continuasse
não iria dar em nada e falou que eu podia ser ameaçada”. Como podemos obser-
var não é sempre que o professor encontra “ajuda’, muita das vezes se encontra
sozinho, nem mesmo a direção se preocupa em defendê-lo, sem punições, sem to-
mada de atitude o professor fica cada vez mais vulnerável a esse tipo de situação”.

Gráfico 11 Representação das providências do diretor após as agressões feitas ao professor

30% 39% Suspensão


Conversar com alunos, pais ou responsáveis
Ocorrência
Conversar pais ou responsáveis e Conselho tutelar
4% A direção conversa com alunos e os retorna para sala
9% 9% Ocorrência
9%

345
Se os pais ou responsáveis, são comunicados após agredir o professor.
Todos os os 23 professores opinaram, 5 professores disseram que sim e 8 pro-
fessores disseram que não e 3 professores acrescentaram no questionário a
resposta ás vezes. Mostrando que na maioria das vezes o pai ou responsáveis
são comunicados.
Dos 56 profissionais que responderam ao questionário, 32 professores
disseram que sim, que conheciam algum tipo de dispositivo legal que os de-
fenda em caso de agressão e 16 professores disseram que não e 8 não respon-
deram. Dos 32 que disseram que sim, 8 professores responderam “Polícia”, 1
professor “Desacato ao professor e medidas contidas no Estatuto da Criança e
do Adolescente”, 1 professor “para agressão verbal eu não conheço”, 7 profes-
sores, Boletim de Ocorrência por desacato a servidor público no exercício da
função, 1 professor Conselho tutelar, Polícia e Ministério Público, 1 professor
Constituição e Código Penal, 1 professor Estatuto do servidor do Rio de Janei-
ro, 1 professor Decreto lei 2848/40 – art. 331 do Código Penal, 1 professor “não
sei de cor, preciso pesquisar”, 1 professor Crime de lesão Corporal, 1 professor
Relato a autoridades competentes, 1 professor Ronda Escolar e Conselho tute-
lar, 1 professor “Telefone”, 1 professor não respondeu e 1 professor “Delegacia
da mulher, pois o Direito Civil assegura melhor o Direito do aluno, o nosso não
tanto, o Conselho tutelar usa desses direitos e não vê que os alunos irritam o
professor e fazem questão disso”. Optei por não colocar gráfico para transcre-
ver a resposta dos profissionais, cada profissional tem uma opinião acerca das
leis que possam o defender em caso de agressão, podemos observar são poucos
o que realmente sabem o que fazer.
Totalizaram 17 professores, ou seja, 31 % responderam que a relação
professor aluno, observe o gráfico 12, é muito boa; 33 professores, ou seja
59% boa; 3 professores, ou seja 5 % regular e 3 professores, ou seja 5% não
responderam. Provando que a maioria dos professores não tem problemas de
relacionamentos com seus alunos e ao responder o porquê, disseram pelo res-
peito, amizade, diálogo e etc.

346
Gráfico 12 Representação da relação de professor e aluno

5%
5%
31% Muito boa
Boa
Regular
Não respondeu
59%

A maioria dos professores não tem problemas de relacionamentos com


colegas não superiores e ao responder o porquê, disseram pelo respeito mútuo,
amizade, diálogo e etc., observe o gráfico 13, 34 professores, ou seja, 29 %
responderam muito boa, 16 professores, ou seja 61% boa; 3 professores, ou
seja 5 % regular e 3 professores, ou seja 5% não responderam.

Gráfico 13 Representação da relação de professor com seus colegas não superiores

5%
5%
29% Muito boa
Boa
Regular
Não respondeu
61%

E também relataram não terem problemas de relacionamentos com co-


legas não superiores e ao responder o porquê, disseram pelo respeito mútuo,
amizade, diálogo e etc., como podemos observar o gráfico 14, 28 professores,
ou seja, 50 % responderam muito boa, 22 professores, ou seja 39% boa; 3
professores, ou seja 6 % regular e 3 professores, ou seja 5% não responderam.

347
Gráfico 14 Representação da relação de professor com seus colegas superiores.

5%
6%
Muito boa
Boa
39% 50%
Regular
Não respondeu

Como podemos observar a problemática gira em torno do aluno para o


professor, e não do professor para o aluno, o professor na grande maioria não
tem problemas de relacionamentos com alunos e colegas de trabalho, tanto os
não superiores, quanto os superiores. Podemos perceber com os dados obtidos
nesta pesquisa que as agressões estão presentes sim na sala de aula e o pro-
fessor não foi e não está preparado para essa realidade, não conhece os seus
direitos, não sabe a quem recorrer e ainda tem medo de tocar no assunto. Os
quatro profissionais que se negaram a participar da pesquisa são professores
da escola que mais acontece agressões a professores dentro da sala de aula
nesta cidade — conforme relato de colegas. Em outra escola, a direção tentou
barrar a pesquisa dizendo “nunca presenciamos agressões a professores nesta
escola” que, segundo comentários de colegas, uma professora havia sido hos-
pitalizada depois de ser agredida e omitiu os fatos. Por medo, por repressão…
Por qualquer que seja o motivo, a maioria dos professores ainda se cala diante
dessa situação.

3. Considerações finais

Este trabalho teve por objetivo abordar a violência com o professor na sala
de aula, como forma de compreender os agentes da violência sofrida por esse
profissional dentro da sala de aula. Dediquei-me a realizar esses estudos com
intuito de comprovar que o professor precisa, e muito, de um olhar especial de

348
todos que se dedicam a proteger o ser humano de ser exposto a situações de
risco e da degradação da integridade humana.
Sabemos que os problemas enfrentados pelos professores não são recen-
tes e acontecem principalmente por causa da pouca valorização da educação
como possibilidade de construção de sujeitos que são capazes de criticar, par-
ticipar e com condições intelectuais melhoradas. Acreditamos ainda que essa
pouca valorização desse profissional não está totalmente associada à falta de
vontade por parte dos políticos e sim à incompetência de muitas administra-
ções que este país tem e já teve.
A maioria dos professores, por fim, acabaram admitindo terem sofrido
algum tipo de agressão dentro da sala de aula, contudo percebemos que não
sabem o que fazer diante da situação e muito menos como podem se defender.
Os Direitos humanos são os direitos e liberdades básicas de todos os seres
humanos, nos dá a ideia de liberdade de pensamento, de expressão, e a igual-
dade perante a lei. Esses conhecimentos precisam chegar até o professor, para
que ele possa retomar o seu papel de educador, e seja o mediador entre pais e
escola, pois educar é uma tarefa de todos.

349
Reênciasfer ácasbilogr

ABRAMOVAY . Miriam. O bê-á-bá da intolerância e da discriminação: violência nas


escolas. Editora Universitária / UCB . 2005.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://portal.mj.gov.


br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso em 20 out de 2013.

FERRARI. Ilka Franco. O mal-estar do professor frente à violência do aluno. Dis-


ponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27117013004> Acesso em:
20 out de 2013.

ZENAIDE et al.. Maria de Nazaré Tavares. Direitos Humanos: Capacitação de Educado-


res. João Pessoa: Editora Universitária / UFFB. 2008.

350
Irene Alexandra de Oliveira
Discente do Curso Educação em Direitos Humanos, Graduada em Pedagogia,
Pós-graduada em Alfabetização e Letramento.

20
FORMAÇÃO DOCENTE EM DIREITOS HUMANOS NO
CURRÍCULO SUPERIOR DO CURSO DE PEDAGOGIA DE UMA
INSTITUIÇÃO PRIVADA DA REGIÃO SUL CAPIXABA

Irene Alexandra de Oliveira

1. Introdução

No campo da educação formal, a Educação em Direitos Humanos vai


além de uma aprendizagem cognitiva. Partindo do pressuposto que o desen-
volvimento social e emocional também faz parte do processo ensino-aprendi-
zagem, é importante destacar que as instituições de ensino superior precisam
abrir espaços para discussões e reflexões constantes sobre direitos humanos
(DH), oferecendo assim subsídios teóricos e metodológicos suficientes para
uma formação pautada na defesa e promoção desses direitos, assumindo, as-
sim, o compromisso com a formação crítica e auto reflexivado educador.
Nessa perspectiva, a EDH torna-se um processo sistemático e multidi-
mensional, dependendo necessariamente de processos metodológicos partici-
pativos, nos quais, deve ser articulada a prática pedagógica ao contexto real
do educando.
Desse modo, justifica-se a pertinência desse tema, considerado de suma
importância para a área da Educação por possibilitar uma análise critica/re-
flexiva sobre a necessidade de a educação superior reestruturar sua proposta
curricular, seus métodos e seu processo ensino-aprendizagem, voltados para o
novo perfil do educador e para uma educação em e para os DH.
Para a elaboração deste artigo, optou-se pela abordagem qualitativa, com
intuito de atingir os objetivos desse trabalho. Leal (2013, p. 52), afirma que:

[…] a investigação qualitativa tem o ambiente natural como a fonte


direta dos dados, em que o pesquisador exerce papel crucial; trata -se de
um processo descritivo; os investigadores devem se interessar mais pelo
processo do que pelo produto; e tendem a analisar os dados de forma
indutiva, em que o significado assume importância vital.

352
Na metodologia utilizou-se, num primeiro momento, a pesquisa biblio-
gráfica em revistas de educação, livros e mídias, procurando fazer um levan-
tamento de dados relevantes que abordassem a temática do artigo, buscando
entender como o tema DH está sendo discutido na formação do docente.
Nessa perspectiva, Cervo e Bervian (1976) afirmam que todo tipo de pes-
quisa supõe e exige pesquisa bibliográfica prévia, seja para fazer o levantamen-
to da situação em questão, para realizar a fundamentação teórica ou ainda para
justificar os limites e contribuições da própria, em uma área do conhecimento.
Num segundo momento, foi feita uma análise documental, sendo a mes-
ma o ponto central da temática de estudo. Seguindo esta linha de raciocínio,
Silva et.al (2009, p.4556), aborda que:

A pesquisa documental, enquanto método de investigação da realidade


social, não traz uma única concepção filosófica de pesquisa, pode ser
utilizada tanto nas abordagens de natureza positivista como também
naquelas de caráter compreensivo, com enfoque mais crítico. Essa ca-
racterística toma corpo de acordo com o referencial teórico que nutre
o pensamento do pesquisador, pois não só os documentos escolhidos,
mas a análise deles deve responder às questões da pesquisa, exigindo
do pesquisador uma capacidade reflexiva e criativa não só na forma
como compreende o problema, mas nas relações que consegue estabe-
lecer entre este e seu contexto, no modo como elabora suas conclusões
e como as comunica. Todo este percurso está marcado pela concepção
epistemológica a qual se filia o investigador.

Para Evangelista (2008), através da análise documental os documentos,


expressam não apenas diretrizes para a educação, mas articulam interesses,
projetam políticas, produzem intervenções sociais.
Nesse sentido, pretende-se discutir, neste trabalho, as temáticas das dis-
ciplinas desenvolvidas na grade curricular de pedagogia, relacionando-as à
Educação em Direitos Humanos, bem como examinar os eixos principais do
currículo que a direcionam, visando investigar a articulação entre a teoria e a
prática necessária para uma formação efetiva do educador.

353
No trabalho será apresentada a importância da formação docente em
direitos humanos com implicações no currículo, sendo realizada uma análise
das temáticas da grade curricular do curso de pedagogia de uma instituição
privada de ensino Superior do Espírito Santo.

2. Formação docente em direitos humanos: implicações no currículo

Este capítulo foi construído com a finalidade de fundamentar reflexões e aná-


lises sobre a formação docente do curso de pedagogia, buscando elucidar os
principais pressupostos relativos à formação para a cidadania, bem como o
entendimento da relação teoria-prática para promoção da EDH.
Sobre esta concepção Carbonari (2006, p.1) afirma que:

Educar e educar-se em direitos humanos é humanizar-se e pretender


humanizar as pessoas e as relações. Isto porque os processos de educa-
ção em direitos humanos tomam cada ser humano desde dentro e por
dentro, em relação com os outros. Ora, educar em direitos humanos é
promover a ampliação das condições concretas de vivência da humani-
dade. Neste sentido, a educação em direitos humanos, mais do que um
evento, é um processo de formação permanente, de afirmação dos seres
humanos como seres em dignidade e direitos e da construção de uma
nova cultura dos direitos humanos (nova institucionalidade e nova sub-
jetividade). Este é o sentido profundo da educação em direitos humanos.

Para Tavares (p.490–491) os principais objetivos da EDH, são:

[…] promover processos educativos que sejam críticos e ativos e que des-
pertem a consciência das pessoas para as suas responsabilidades como
cidadão/cidadã e para a atuação em consonância com o respeito ao ser
humano. Educar dentro de um processo crítico-ativo significa modificar
as atitudes, as condutas e as convicções, mas não pela imposição dos
valores e sim por meios democráticos de construção e de participação
que busquem possibilitar a experiência cotidiana desses direitos.

354
Visando promover esse tipo de educação, torna-se imprescindível para
a formação do educador, ainda segundo o mesmo autor, que a prática peda-
gógica seja:

[…] condizente com o respeito ao ser humano como de uma educação


que privilegie a interdisciplinaridade e a multidimensionalidade que en-
volve a temática. Esses aspectos representam uma nova postura diante
do conhecimento, possibilitando uma ação educativa capaz de ampliar
as capacidades, desenvolver a consciência crítica diante da informação
e priorizar a interação e participação de forma democrática. O foco,
portanto, valoriza o que é construído e não simplesmente transmitido
(TAVARES, p.498).

Neste contexto, Klein (2013, p.53), aborda a seguinte questão:

[…] é imprescindível que novas metodologias sejam difundidas junto aos/


às docentes, a fim de que as práticas escolares possam ser recriadas. Dito
de outra forma, as salas de aula do ensino superior devem adotar meto-
dologias congruentes com os discursos educacionais contemporâneos.
Elegemos duas metodologias – Aprendizagem Baseada em Problemas
(ABP) e Aprendizagem em Serviço como exemplos de metodologias
transformadoras, capazes de levar a cabo os princípios e objetivos da
Educação em Direitos Humanos.

Para Tavares (2007, p.401–402), a EDH requer uma metodologia que se-
lecione os seguintes instrumentos:

[…] conteúdos e atividades, materiais e recursos didáticos, quesejam


condizentes com a finalidade de um processo educativo em direitoshu-
manos. Estes requisitos são essenciais para que a prática pedagógica
Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos-
facilite a formação de uma consciência crítica e de um compromisso so-
cialcom as questões relacionadas à problemática dos direitos humanos.

355
Recamán (2013) enfatiza a necessidade de reconhecer o legítimo papel
educacional de formar sujeitos capazes de ter objetivos mais consolidados em
relação a sua contribuição neste mundo complexo e adverso. Nesta dimensão,
professores e demais profissionais da educação, para além de ministrarem suas
disciplinas e seus saberes específicos, precisam ver-se num processo dialético e
global de modo a transcender os elementos imediatos de seus fazeres cotidianos.
Dessa maneira, torna-se essencial ressaltar a importância de uma área
como a dos DH contemplarem abordagens interdisciplinares e multidimensionais
em seus conteúdos teóricos e práticos. Para Tavares (2007, p.499) a EDH tem que:

[…] estar em interação com todas as áreas do conhecimento e a interdis-


ciplinaridade e a multidimensionalidade são recursos que se completam e
que têm a finalidade de ampliar as inúmeras possibilidades de interface do
conhecimento, possibilitando, ao mesmo tempo, a autonomia e a interação.
É através delas que um processo educativo em direitos humanos ultra-
passa os limites da simples descrição da realidade e passa a mobilizar
as competências cognitivas para auxiliar nas análises, deduções e in-
ferências. Ao mesmo tempoque fomenta a explicação, a compreensão
e a intervenção.
A formação do educador em direitos humanos, para ser completa, tem
que partir dessas premissas. Não pode estar atrelada a uma estrutura
fechada de produção do conhecimento […].

De acordo com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos


(PNEDH), o ensino superior como uma extensão universitária tem o compro-
misso com a promoção dos direitos humanos, através da:

[…] inserção desse tema em programas e projetos de extensão pode en-


volver atividades de capacitação, assessoria e realização de eventos, en-
tre outras, articuladas com as áreas de ensino e pesquisa, contemplando
temas diversos.
A contribuição da educação superior na área da educação em direitos
humanos implica a consideração dos seguintes princípios:

356
a. a universidade, como criadora e disseminadora de conhecimento, é institui-
ção social com vocação republicana, diferenciada e autônoma, comprometi-
da com a democracia e a cidadania;
b. os preceitos da igualdade, da liberdade e da justiça devem guiar as ações
universitárias, de modo a garantir a democratização da informação, o aces-
so por parte de grupos sociais vulneráveis ou excluídos e o compromisso
cívico-ético com a implementação de políticas públicas voltadas para as
necessidades básicas desses segmentos;
c. o princípio básico norteador da educação em direitos humanos como prática
permanente, contínua e global, deve estar voltado para a transformação da so-
ciedade, com vistas à difusão de valores democráticos e republicanos, ao forta-
lecimento da esfera pública e à construção de projetos coletivos;
d. a educação em direitos humanos deve se constituir em princípio ético-
político orientador da formulação e crítica da prática das instituições de
ensino superior;
e. as atividades acadêmicas devem se voltar para a formação de uma cultura
baseada na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos
humanos, como tema transversal e transdisciplinar, de modo a inspirar a
elaboração de programas específicos e metodologias adequadas nos cursos
de graduação e pós-graduação, entre outros;
f. a construção da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão deve ser
feita articulando as diferentes áreas do conhecimento, os setores de pesquisa e
extensão, os programas de graduação, de pósgraduação e outros;
g. o compromisso com a construção de uma cultura de respeito aos direitos
humanos na relação com os movimentos e entidades sociais, além de grupos
em situação de exclusão ou discriminação;
h. a participação das Instituições de Ensino Superior na formação de agentes
sociais de educação em direitos humanos e na avaliação do processo de
implementação do PNEDH (p. 38–39).

A partir das considerações do PNEDH, pode-se constatar que as univer-


sidades, sendo instituições sociais, comprometidas com a democracia e cida-
dania, devem programar politicas públicas voltadas para os grupos sociais
vulneráveis ou excluídos. Promovendo a EDH com base em princípios éticos

357
e políticos, elaborando programas específicos e metodologias de ensino que
respeitem os DH nas relações com movimentos, entidades sociais e grupos
excluídos e discriminados.
Ainda, são abordadas no documento 21 ações programáticas, entre as
quais está propor a temática da educação em direitos humanos para subsidiar
as diretrizes curriculares das áreas de conhecimento e incentivar a elaboração
de metodologias pedagógicas de caráter transdisciplinar e interdisciplinar para
a EDH nas Instituições Superiores.
Para Pozer (2012, p.4) é preciso:

a inserção da temática dos direitos humanos na formação de professo-


res tem de superar a compreensão de formação como um mero direi-
to formalem que se reproduzem conhecimentos e técnicas incapazes
de desconstruir pré-conceitos implícitos às práticas monoculturais e
(neo) tecnicistas.

De acordo com Moll (2009), a formação em e para os Direitos Humanos


tem implicações como:

[…] pensar meios e estratégias que aproximam as práticas acadêmicas com


os espaços urbanos tratados como territórios educativos. Implica uma inte-
gração entre os saberes científicos com os saberes quecirculam” em praças,
teatros, cinemas, parques, museus, clubes, movimentos sociais, espaços di-
gitais e outras organizações que favorecem a implantação e desenvolvi-
mento de políticas em defesa, promoção e reparação de direitos humanos de
mulheres, crianças, jovens, grupos minoritários ou invisibilizados e outros.

Nessa concepção de formação docente para a EDH, Dias (2010, p. 18)


propõe que:

[…] tenha como elemento constituinte uma natureza dinâmica, que consi-
dere tanto os conteúdos curriculares disciplinares, quanto aqueles inúmeros
conteúdos necessários à construção do ser, do saber e do fazer do professor
ou professora, que se volte para a promoção de processos emancipatórios

358
comprometidos com a ruptura de determinados modelos de sociedade e de
educação excludente, mediante os quais muitos grupos sociais foram histori-
camente alijados da produção e da apropriação dos bens materiais e culturais.

A autora ainda afirma que as instituições superiores em sua prática edu-


cativa precisa de uma:

mudança de mentalidade decorrentes da construção de uma cultura de


direitos, pautada valorativamente pelo paradigma dos direitos humanos
e, consequentemente, uma educação problematizadora, dialógica, hu-
manizadora (DIAS, 2010, p. 61).

Portanto, percebe-se através das abordagens dos autores a necessidade


dos currículos do ensino superior fomentarem uma formação docente pautada
no reconhecimento e valorização dos direitos humanos, atenuando sua contri-
buição significativa para uma consciência cidadã. Sendo assim, os currículos
devem comtemplar disciplinas ou eixos norteadores que proporcionam aos
docentes o entendimento sobre a EDH em sua complexidade e ensinar meto-
dologias ativas de promoção dessa educação, para que os futuros educadores
consigam articular a prática pedagógica com a teoria.

3. Análise das temáticas da grade curricular do curso de pedagogia


dando ênfase aos direitos humanos

Neste tópico será realizada uma análise reflexiva e crítica sobre as principais
disciplinas que estão relacionadas aos direitos humanos da grade curricular do
curso de graduação em pedagogia, de uma instituição privada e superior do
Espírito Santo. Serão analisadas as seguintes disciplinas: Educação Inclusiva,
Educação e Problemáticas da Sociedade Contemporânea, Pedagogia Diferen-
ciada, Habilidades Comunicativas, Ética e Relações Humanas e Orientação de
Estágio Supervisionado nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental II.

359
3.1 Educação Inclusiva

Os objetivos da disciplina Educação Inclusiva propostos na grade e ementa


referem-se ao conhecimento histórico e social das necessidades educativas es-
peciais possibilitando uma analise teórica das diversas formas de atendimento
ao educando bem como o amparo da legislação especial.
Observa-se que os objetivos apresentam lacunas quanto ao tratamen-
to dos direitos humanos na educação especial, considerando que a mesma,
segundo a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educa-
ção Inclusiva (MEC/SEESP, 2007) é uma ação, política, cultural e pedagógica,
desenvolvida em defesa e promoção dos direitos de todos os alunos estarem
juntos sem nenhuma forma de discriminação.
Ainda é possível verificar que a educação inclusiva não é constituída no
currículo como um paradigma educacional fundamentado na concepção de direi-
tos humanos que conjuntura respeito à diversidade e tolerância entre os desiguais.
Durante a análise do currículo observou-se também fragilidades na ar-
ticulação entre teoria-prática, especialmente nessa disciplina que menciona
apenas o estudo da teoria, ignorando a prática no seu desenvolvimento, con-
siderando que a prática constitui-se eixo fundamental no desenvolvimento
de habilidades e competências necessárias para uma intervenção consistente
capaz de transformar a sociedade.

[…] o rompimento com o modelo que prioriza a teoria em detri-


mento da prática não pode significar a adoção de esquemas que
supervalorizem a prática e minimizem o papel da formação teórica.
Assim como não basta o domínio de conteúdos específicos e/ou pe-
dagógicos para alguém se tornar um bom professor, também não é
suficiente estar em contato apenas com a prática para se garantir
uma formação docente de qualidade. Sabe-se que a prática peda-
gógica não é isenta de conhecimentos teóricos e que estes, por sua
vez, ganham novos significados quando diante da realidade escolar
(DINIZ-PEREIRA, 2011, p. 216).

360
Outra questão importante são as bases normativas que orientamo de-
senvolvimento dessa disciplina. Percebeu-se que o currículo não possui todas
as legislações que amparam a educação inclusiva, apenas a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional 9394/96 é mencionada no meio de livros que
falam sobre Necessidades Educacionais Especiais, é importante destacar a rele-
vância dessas legislações no desenvolvimento da educação, evidenciando sua
participação na construção de uma sociedade mais justa.
Nesse cenário, apontamos como referencial a Constituição Federal de
1988, instituto mais importante do ordenamento jurídico, a lei 7.853 de 1989
que assegura o pleno desenvolvimento dos direitos das pessoas portadoras
de deficiência, o Estatuto da criança e do adolescente de 1990, Declaração
de Salamanca de 1994, o decreto nº 3.298 de 1999, que regulamenta a Lei nº
7.853/89 ao dispor sobre a Politica Nacional para Integração da Pessoa Por-
tadora de Deficiências definindo a educação especial como uma modalidade
transversal a todos os níveis e modalidades de ensino, enfatizando a atuação
complementar da educação especial ao ensino superior.
Considerando tal problema, ressalta-se também o Plano Nacional da
Educação lei 10.172 de 2001 que estabelece vinte e oito metas e objetivos
para educação inclusiva, a resolução número 2 de 11 de setembro de 2001
que institui as Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Bá-
sica, o decreto 3.956 de outubro de 2001, que promulga a Convenção Inte-
ramericana para eliminação de todas as formas de discriminação contra as
pessoas portadoras de deficiência (convenção da Guatemala), a lei nº 10.436-
02 que reconhece a língua de sinais como um meio legal de comunicação e
expressão, os decretos 5.626/05 que integra o ensino de libras no currículo
superior e o decreto 6.571 de 2008, revogado pelo decreto 7.611 de 2011, que
dispõe sobre a educação especial, o atendimento educacional especializado
e dá outras providências.
Entretendo é preciso especificar que a formação teórica não subsidia
uma formação capaz deformar sujeitos conscientes e críticos da realidade que
se encontra inserido, assim compreende-se a necessidade de uma articulação
desses dois polos, assim como se considera importante a atualização constante
e periódica dos conteúdos do currículo superior.

361
3.2 Educação e problemáticas da sociedade contemporânea

Nessa disciplina observou-se que o termo direitos humanos é mencionado


apenas na sua ementa, mas de forma superficial, não sendo discutido nos ob-
jetivos, conteúdos e referências. A principal temática da disciplina é o conhe-
cimento e estudo sobre a existência da diversidade no contexto educacional,
apresentando-a como forma de crescimento cultural.
No entanto, a disciplina deixa a desejar por não mencionar os direi-
tos humanos no seu desenvolvimento, sendo que a EDH privilegia em seus
dispositivos, todas as problemáticas da sociedade contemporânea, segundo
Ana Klein (2013, p.44):

A proteção e a promoção de direitos de crianças e adolescentes por meio


do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); a educação das relações
étnico-raciais e a preocupação com a não-discriminação na educação; a
educação quilombola; a educação escolar indígena; a educação ambiental;
a educação do campo; as temáticas de gênero e orientação sexual na edu-
cação; a inclusão educacional das pessoas com deficiência e a implemen-
tação dos direitos humanos de forma geral no sistema de ensino brasileiro.

3.3 Pedagogia diferenciada

Nesse tópico podemos analisar que os conteúdos dessa disciplina estão


direcionados ao estudo e reflexão sobre as diferentes formas de organização
escolar, possibilitando ao educando uma visão universal e ao mesmo tempo
particular de cada estrutura curricular, como a articulação teoria-prática, o
trabalho desenvolvido pelo professor, seu planejamento e avaliação.
A principal finalidade da disciplina é proporcionar ao professor condi-
ções para atuar nas instituições, tendo seus conteúdos direcionados apenas ao
conhecimento teórico de algumas formas de organização, como, os da escola
rural e escolas de assentamento.
Entretanto, observa-se durante a análise que em nenhum momento a dis-
ciplina aborda direitos humanos em seu desenvolvimento, considerando que
o estudo dessa problemática reconhece, valoriza e defende a minoria cultural.

362
Atentamo-nos nesse tópico a apresentar a fragilidade quanto ao trata-
mento dos DH, referindo-se a sua participação na construção do currículo e
sua abordagem nas disciplinas como conteúdo norteador dos conteúdos prag-
máticos. Nesse sentido Carbonari (2011, p.19) afirma que:

[…] a tarefa da educação em geral, e daeducação em direitos humanos,


considerando os diversos aspectos aqui abordados, caminha mais no
sentido de formar sujeitos de direitos que sejam resilientesa todas as
formas de sua inviabilização. Invertem-se os polos. Não se trata decon-
firmar, ou de afirmar certos preceitos e certos conceitos – até porque,
aofazê-lo se poderia incorrer no que Herrera Flores chama de “universa-
lismo departida”. Trata-se de construir aprendizagens que posicionem os
sujeitos na direçãoda superação de todas as formas de sua inviabilização
– aliás, é isto o quemarca o contexto hegemônico, que não tem sido
favorável aos direitos humanos, pelo contrário.

3.4 Habilidades comunicativas, ética e relações humanas

Ao analisar essa disciplina observou-se que a mesma não apresenta o termo


DH, apesar de ser uma temática totalmente relacionada com a formação para
cidadania. Também analisou-seque o termo ética não é demonstrado na sua
complexidade, deixando lacunas em relação a sua compreensão. Para o autor
Araújo (2007, p.13), o termo ética em filosofia refere-se ao:

[…] campo que se ocupa da reflexão sobre a moralidade humana recebe a de-
nominação de ética. Esses dois termos, ética e moral, têm significados próxi-
mos e, em geral, referem-se ao conjunto de princípios ou padrões de conduta
que regulam as relações dos seres humanos com o mundo em que vivem.

Segundo Puig (1998, p.15), uma educação pautada nos princípios éticos
deve ser convertida em constante reflexão individual e coletiva, visando permitir
a elaboração de forma racional e automática dos princípios relacionados aos va-
lores e o enfrentamento pelo individuo de forma critica dos conflitos da realidade.

363
Pode-se considerar que na disciplina ao aborda as Relações Humanas
deveria estar inserido os DH como base do ensino voltado para cidadania, para
Lodi e Araújo (2007, p.69), o cidadão precisa aprender a:

[…] agir com respeito, solidariedade, responsabilidade, justiça, não-vio-


lência, aprender a usar o diálogo nas mais diferentessituações e compro-
meter-se com o que acontece na vida coletiva da comunidade e do país.
Esses valores e essas atitudesprecisam ser aprendidos e desenvolvidos
pelos estudantes e, portanto, podem e devem ser ensinados na escola.
3.5 Orientação de estágio supervisionado nos anos iniciais do
ensino fundamental II

Nessa disciplina, DH é citado apenas na referência, observa-se que é a única


disciplina de estágio que menciona o termo, dando margens a distintas indaga-
ções em relação á compreensão da finalidade dessa referência para a disciplina.
Dessa forma, pode-se compreender que essa referência foi citada de for-
ma evasiva, sem ser contextualizada e direcionada, nesta perspectiva Klein
(2013, p.47) afirma que:

[…] não é qualquer metodologia de ensino que se adequa ao desenvol-


vimento da EDH, sendo esta uma questão central à sua efetivação nas
instituições de educação.

A autora deixa claro que o estudante tem o direito de ter acesso aos
conhecimentos contemporâneos, portanto, cabe às instituições apresentar re-
ferencias condizentes com a temática de ensino. Nesse sentido Klein (2013,
p.49) reafirma que:

A aprendizagem é condição para o desenvolvimento humano e para


a inserção social do indivíduo, viabilizando o direito à educação. Ter
acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade por meio da
educação é um direito humano sob duas perspectivas, enquanto um
fim em si mesmo na medida emque a educação viabiliza o direito ao
patrimônio cultural da nossa espécie; eenquanto meio, pois, é por inter-

364
médio da educação e da aprendizagem que osseres humanos desenvol-
vem recursos cognitivos, morais, afetivos, sociais paraa compreensão e
consecução de todos os outros direitos humanos.

Para Carbonari (2011, p.14), a EDH constitui-se como um processo de


formação de:

[…] sujeitos de direitos conscientes e críticos (aspecto epistemológico) e


comprometidoscom a promoção da dignidade (aspecto ético-político).
Faz istoatravés de dinâmicas que tomem os sujeitos desde dentro e os
ponha dentrodos processos educativos como mediação para a transfor-
mação das relações. Isto porque seres humanos se fazem na relação com
os outros seres humanos, sendo que é da qualidade das relações que se
pode esperar maior ou menorhumanização. Ou seja, seres humanos se
fazem com os outros (nunca sobre enem sob os outros) seres humanos.

4. Considerações finais

Após a análise das temáticas das disciplinas da grade/ementa do curso de


pedagogia e estudos relativos à EDH, considera-se que a mesma encontra-se
desatualizada em relação ao tratamento dos DH, por não ser abordado nas
ementas das disciplinas o estudo desses direitos como elemento relevante para
a formação docente. Reconhecendo que existe uma grande distância entre
o discurso e a prática apresentados na grade curricular, pois, se encontram
em profunda contradição como os princípios e fundamentos da EDH. Dessa
forma aponta-se como necessidade rever os estudos e abordagens do tema
emquestão, a fim de recriar metodologias de aprendizado condizentes com os
discursos educacionais contemporâneos.
Assim, a discussão sobre a EDH pressupõe a articulação entre diferentes
modalidades de conhecimento, considerando a inserção desta temática no
currículo superior como uma disciplina ou um eixo norteador. Podendo, ser
desenvolvida em uma linha de pesquisa ou projetos de intervenção e exten-
são, sendo, fomentada em discussões periódicas estabelecidas em seminários.

365
Neste sentido, julga-se necessário que a instituição reformule sua estrutura
curricular, atentando-se para estudos recentes, visando estabelecer estratégias
que auxiliam os futuros educadores a solucionar as problemáticas desenca-
deadas nessa análise.
Portanto, cabem as instituições de ensino superior inserir em suas grades
curriculares a EDH de maneira multidimensional e interdisciplinar, contem-
plando-a em diversas áreas do conhecimento, no sentido de possibilitar uma
formação ao docente capaz de compreender a realidade na qual está inserido,
visando promover uma educação voltada para cidadania.

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371
Roberta Silva de Andrade
Formada em Educação Física Licenciatura/Bacharel pelo Centro Universi-
tário São Camilo/ES. Especialista em Educação Inclusiva pela FACEL e em
Informática na Educação pelo IFES. Discente do Curso Aperfeiçoamento em
Educação em Direitos Humanos.

21
OS DIREITOS HUMANOS SOB A PERSPECTIVA DE
CHAUÍ E SANTOS: CONTRIBUIÇÕES PARA O
CONTEXTO ESCOLAR

Roberta Silva de Andrade

1. Introdução

Durante o curso de aperfeiçoamento em Educação em Direitos Humanos,


abordou-se de forma enfática os direitos humanos com um viés de igualdade
e a supressão das camadas menos favorecidas da sociedade. Diante de tal
questão e das discussões realizadas, indagava-me a respeito de ser somen-
te esse o objetivo da inserção dos direitos humanos no contexto escolar e
percebi que a escola poderia contribuir para além dessas questões. Assim,
iniciou-se um processo de indagações diversas, entre as quais: em que con-
texto e porquê a ênfase na igualdade, insitou-me a busca de temáticas dife-
renciadas, assim, durante a busca literária, deparei-me com CHAUÍ e SANTOS
que abordam os direitos humanos sob o viés da emancipação e da transição
paradigmática. Mediante as considerações de tais autores, proponho no pre-
sente trabalho realizar apropriações de tais autores para o contexto escolar.
Nesse sentido, tal trabalho tem o propósito de: realizar reflexões acerca da
concepção de direitos humanos incutidas na sociedade, baseando no viés da
concepção contra-hegemônica e intercultural de direitos humanos proposta
por CHAUÍ e SANTOS (2013).

2. Concepção de dirietos humanos enraizada na sociedade

No contexto social, os direitos humanos legitimou-se a partir de sua associa-


ção com a dignidade humana. Nesse sentido, CHAUÍ e SANTOS (2013, pág. 42),
afirmam que “a grande maioria da população mundial é objeto de discursos
de direitos humanos”. Dessa forma, toda concepção de direitos humanos a que
a sociedade tem acesso, está mergulhada numa dinâmica de cunho liberal e

373
ocidental e no senso comum. Em síntese ocorre que os direitos humanos são
parte da hegemonia que consolida e legitima a opressão contra os grupos so-
ciais oprimidos (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 42).
Todo exposto acima, traz uma reflexão que necessita ser enfatizada no
contexto escolar: de que maneira, os direitos humanos poderão ser utilizados
de forma contra-hegemônica? Para que tal questão seja melhor detalhada, é
necessário realizar algumas considerações:

• A leitura dos fatos históricos não devem ser realizadas de modo line-
ar e orientada para um resultado preconizado. A vitória dos direitos
humanos, assim como de muitos acontecimentos históricos, são re-
sultados de diversas competições que são reconfiguradas de acordo
com o interesse do poder regulatório. (Ilusão teleológica, CHAUÍ e
SANTOS 2013, pág. 45).
• A noção de superioridade dos direitos humanos em relação aos de-
mais termos éticos e políticos, incita a uma reflexão crítica acer-
ca das razões dessa superioridade, assim como se esse mérito dos
direitos humanos se traduz efetivamente em emancipação humana
(Ilusão triunfalista, CHAUÍ e SANTOS 2013, pág. 46).
• A contextualização é um aspecto primordial para se entender o ob-
jetivo de determinada ação. Um mesmo termo pode ser utilizado
de maneiras diversas/contraditórias para a obtenção de determinado
objetivo. Tal circunstância, ainda está muitas vezes presente na po-
lítica de direitos humanos.

O que normalmente não é referido é que, desde então até os nossos


dias, os direitos humanos foram usados, como discurso e como arma
política, em contextos muito distintos e com objetivos contraditórios.
No século XVIII, por exemplo, os direitos humanos eram parte inte-
grante dos processos revolucionários em curso e foram uma das suas
linguagens. Mas também para legitimar práticas que consideramos
opressivas se não mesmo contrarrevolucionárias. Robespierre fomen-
tou o terror em nome do fervor beato e dos direitos humanos durante
a revolução francesa (CHAUÍ E SANTOS, 2013, pág. 47).

374
• Quando CHAUÍ e SANTOS (2013, pág. 49) se referem ao termo
monolitismo. A ênfase agora, é a respeito da negação das tensões
das teorias dos direitos humanos. Diante de tal abordagem, ganha
destaque a pertença dos direitos humanos em duas coletividades.
Uma mais complexa, que pode ser analisada por meio de decla-
rações internacionais e outra mais restrita circunscritas dentro de
um Estado.
• O antiestatismo nos traz uma questão bastante interessante. O
Estado passa de uma posição negativa (alvo) a uma positiva (re-
alizando prestações que traduz direitos). Com o estado sendo um
ator de promoção de direitos humanos e alvo de intensos deba-
tes sobre os direitos humanos, conforme abordam CHAUÍ e SAN-
TOS (2013, pág. 51), ocorre uma dificuldade de análise quanto as
transformações operadas no poder político pelo neoliberalismo. O
resultado disso é:

A reconfiguração do poder do Estado que daqui decorre obriga a que na


identificação e na punição das violações de direitos humanos sejam in-
cluídas as ações daqueles cujo poder econômico é suficientemente forte
para transformar o Estado num dócil instrumento dos seus interesses
(CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 52).

Todas as abordagens enfatizadas acima, são consideradas por CHAUÍ e


SANTOS (2013) como ilusões que servem de base para centralidade da contra-
-hegemonia nos direitos humanos. Tal ênfase necessita ser objeto de reflexões
no meio escolar, principalmente porquê:

[…] o que conta como violação dos direitos humanos é definido pelas
declarações universais, instituições multilaterais (tribunais e comissões)
e organizações não governamentais (predominantemente baseadas no
Norte) (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 54).

375
3. Direitos humanos sob o aspecto tensional e correlações com o
contexto escolar

Os aspectos que serão abordados nesse tópico, nos direcionam a pensar a


função da escola não como uma instituição monoculturalista, mas como uma
instituição que tem o compromisso da abordagem intercultural, que necessita
incutir em seus alunos uma visão de contestação para com os processos hege-
mônicos. É importantíssimo que a escola saia da posição de expectadora para
a de coadjuvante. Isso se dará no contexto escolar, por meio de reflexões e
ressignificações dos direitos humanos. A intenção aqui, não é contrapor os di-
reitos humanos, mas, além de entender sua versão mais incutida na sociedade,
é também questioná-la.

Universal x Fundacional
É interessante como na sociedade o termo universal é utilizado. No geral, ele
coloca para todas as pessoas as mesmas condições independente do contexto.
Já o fundacional é mais restrito, único (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 57).
Considerando tal perspectiva, no contexto escolar ocorre uma ênfase na igual-
dade. Como considerar iguais indivíduos marcados pela diferença? Essa é uma
questão que grandes reflexões. A escola, tem reproduzido os paradigmas do-
minantes e vinculada a essa questão não é diferente, ela reproduz e na maioria
das vezes, não questiona quais as raízes de tal questão. Muito abordada no
meio escolar, está o termo globalização e, para explicar a universalização da
igualdade, entender a amplitude de tal termo é imprescindível:

A globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entida-


de local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvol-
ve a capacidade de designar como local outra condição social ou enti-
dade rival… não existe uma condição global para a qual não se consiga
encontrar uma raiz local, uma fonte específica de pertença cultural…
(CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 58).

376
Todo o exposto anteriormente, designam um viés hegemônico que não é 1. A posição anti-Estado, foi considerada
abordado no contexto escolar. A igualdade, produto também dos direitos hu- democrática, enquanto teve cunho libe-
ral, oitocentista em face do autoritarismo,
manos, necessitam de uma abordagem diferenciada, que abranja a diferença.
mas, quando, a partir de 1980 intenciona
desmantelar o Estado social, ela passa a ser
Direitos individuais x Direitos coletivos vista como antidemocrática (CHAUÍ e SAN-
TOS, 2013, pág. 67).
Retomando a discussão acerca das diferenças encontradas no contexto escolar,
observa-se que nesse mesmo espaço, ainda persistem estereótipos e preconcei-
tos para com os povos indígenas, os afrodescendentes, gays e lésbicas. Nesse
sentido, ganha destaque uma abordagem a respeito dos direitos (individuais
e coletivos). Conforme, CHAUÍ e SANTOS (2013, pág. 60), “os povos só são
reconhecidos na medida em que são transformados em Estado” e que as de-
clarações, dentre as quais a Declaração Universal dos Direitos do Homem das
Nações Unidas, só conhece dois sujeitos de direito: o indivíduo e o Estado.
Diante de tais fatos, ocorre que nos dias atuais, existe um movimento de
afirmação de identidade do público acima citado, pelo fato dos mesmos serem
discriminados, excluídos e o mais emblemático, não terem sido durante mui-
to tempo, protegidos pelos direitos humanos. Todas essas questões suscitam,
maiores reflexões no contexto escolar, afim de avaliar as concepções atribu-
ídas durante muito tempo para com esses públicos e ainda, analisar de que
maneira as ações afirmativas públicas que vem sendo desenvolvidas.

Estado x anti-Estado
Os direitos humanos colocaram para a sociedade, uma expressão denominada
anti-Estado1. Para o contexto escolar, o Estado é o detentor de certo poder e
responsável pelas políticas públicas, além de ser responsável pelos direitos hu-
manos. Nesse sentido, ocorre a necessidade de enfoque nos diversos tipos de
direitos: políticos, cívicos, econômicos e sociais, esses dois últimos dependem
de prestações do Estado para se efetivarem. Essas formas de apresentação dos
direitos, necessitam de maiores esclarecimentos no contexto escolar, afim de se
refletir acerca da colocação que se faz na sociedade de que os direitos cívicos e
políticos são determinados contra o Estado e a supressão do autoritarismo estatal.
No contexto escolar é necessário frisar que devido a ascencão dos direitos
humanos, ocorreu uma alteração de denominação:

377
[…] esta transformação ocorreu na passagem do Estado liberal ou de
direito para o Estado social de direito, para o Estado de bem-estar, no
Norte global, ou para o Estado desenvolvimentista ou neodesenvolvi-
mentista do Sul global (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 66).

Um aspecto de extrema relevância para abordagem no contexto escolar, é


que diante dessa tensão, ocorre o aumento de ONGs internacionais que objetivam
incrementar os direitos humanos e “desinvestir nas prestações sociais do Estado,
considerado ineficiente, corrupto e predador” (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 68).

Direitos humanos e deveres humanos


Interessante destacar, que na conjuntura escolar, a abordagem sobre Direitos
Humanos, deve perpassar a noção de direitos e enfocar os deveres. Dessa
forma, é necessário enfatizar de que maneira, os deveres são cumpridos na
sociedade atual e para além disso, e numa contextualização mais complexa,
como o cristianismo, fornecedor dos fundamentos dos direitos humanos, con-
cedeu a mesma prioridade aos deveres, visível no caso dos mártires (CHAUÍ e
SANTOS, 2013, pág. 70).

Estado x Razão dos direitos


Relacionada a continuidade dos direitos humanos e as descontinuidades dos
regimes políticos. Descontinuidades essas atreladas a Estados de exceção ou
regimes ditatoriais e que foram responsáveis por violações massivas de direitos
humanos (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 71). Mediante tais circunstâncias, ocor-
reu um boom de reivindicações sociais e abertura democrática, de maneira que
o Estado cria a Lei de Anistia 1979, alvo de várias divergências quanto a sua
interpretação. Mas, dentro das várias ações do estado, acrescentam-se políticas
públicas educativas e de memória dedicadas a reparar os ex-perseguidos tam-
bém no campo simbólico e moral (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 72). Quando se
toma como essas ações ocorreram, verifica-se que:

[…] a correlação de forças – dentro e fora dos governos – pode ser pro-
fundamente alterada pela pressão organizada a partir da sociedade civil
(CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 74).

378
Diante dessa importância da sociedade civil, cabe a escola perceber e enfatizar
a importância da articulação da sociedade civil junto a ações governamentais,
afim de consolidar inovações institucionais, como por exemplo, as “clínicas de
testemunho”, fruto de reivindicações sociais, e que objetivam promover apoio
psicológico às vítimas de violência do Estado (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 74).

Humano x Não humano


A discussão que subjaz de tal tensão é de grande relevância na sociedade e
principalmente no contexto escolar. A abordagem de humano no contexto es-
colar, está restrito ao aspecto racional e o de não humano a algo desprovido de
cognição. No entanto, tal discussão tem raízes mais profundas quando atrela-
das aos direitos humanos no contexto escolar. A metodologia mais eficaz para
se entender as concepções de humano e não humano, é a exposição dialogada
e reflexiva dos termos anteriores, enfocando que:

[…] a universalidade dos direitos humanos conviveu sempre com a ideia


de uma “deficiência” originária da humanidade, a ideia de que nem
todos os seres com um fenótipo humano são plenamente humanos e
não devem por isso se beneficiar do estatuto de dignidade conferidos à
humanidade… o grande teorizador dos direitos humanos na modernida-
de, John Locke, fez fortuna à custa do comércio de escravos. É possível
defender a liberdade e a igualdade de todos os cidadãos, e ao mesmo
tempo a escravatura (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 76–77).

Conceituar humano e não humano, é uma tarefa que envolve aspectos


muito amplos e que estão circunscritos na dimensão capitalista.

Reconhecimento da igualdade x reconhecimento da diferença


CHAUÍ e SANTOS (2013, pág. 78) afirmam a existência do paradigma da
igualdade, fundado com a universalização dos direitos humanos eurocên-
tricos. Questões relevantes, nesse sentido, são colocadas para serem objetos
de pesquisa no contexto educacional: a partir de tal paradigma os discri-
minados e excluídos começam a se organizar para lutar contra as diversas

379
formas de exclusão e inclusões que os grupos dominantes impunham sob a
égide da igualdade.

A partir de então a luta contra a discriminação e a exclusão deixou de ser


uma luta pela integração e pela assimilação na cultura dominante e nas
instituições suas subsidiárias, para ser uma luta pelo reconhecimento da
diferença, pela consequente transformação da cultura e das instituições de
modo a separar as diferenças (a respeitar) das hierarquias (a eliminar) que
atavicamente lhe estavam referidas (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 79).

Resultado dessa luta contra o paradigma da igualdade:

[…] múltiplas intervenções do Estado: ações afirmativas de vários tipos,


quotas para mulheres, afrodescendentes e indígenas, revisão profunda
da história dos países e dos programas e conteúdos educativos, reconhe-
cimento e proteção de línguas não coloniais, direitos especiais à terra e
ao território (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 80).

Nesse sentido, pressupõe-se que a Educação em Direitos Humanos, se faz


em entender o reconhecimento da diferença e nas formas de como o contexto
escolar pode se apropriar da contextualização acima enfatizada. As diferenças
da sociedade estão presentes no contexto escolar, e a escola como promotora
de uma sociedade mais justa, necessita refletir aceca dos diversos aspectos que
durante muito tempo alijaram e excluíram seus atores principais, os alunos.

Direito ao desenvolvimento x Outros direitos humanos individuais e


coletivos (direito à autodeterminação, direito a um ambiente saudável,
direito à terra e o direito à saúde)
A contextualização histórica e geográfica, transpassadas pela escola, determi-
navam o mundo dividido em 2: desenvolvido e subdesenvolvido ou ainda, a
divisão de mundos: primeiro, segundo e terceiro mundo. Tais nomenclaturas
perpassaram por muito tempo a imagem do Brasil de país subdesenvolvido e
pertencente ao terceiro mundo. Então, os países classificados conforme o Bra-
sil, começam a reivindicar o direito ao desenvolvimento. No entanto, “o direito

380
ao desenvolvimento teve na sua base ideias semelhantes às que viriam a ser
consagradas na teoria da independência” (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 86).
Juntamente com o boom do desenvolvimento, ocorreram problemas de ordem
climático e ambientais, com consequências para a saúde (cancro) e para diversas
populações indígenas (concentração de terras, grilagem, etc.). Assim, “a articulação
entre os diferentes fatores de crise deverá levar urgentemente à articulação entre
os movimentos sociais que lutam contra eles” (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 90).
Concernentes aos direitos acima considerados, cabe ressaltar que o con-
texto escolar, necessita enfatizar dois direitos humanos essenciais: a saúde e
o direito de ser (indígena). Quanto ao primeiro, verifica-se que devido as con-
centrações de terra em campos de monocultura (soja, cana-de-açúcar, algodão,
etc) e a necessidade de produção em larga escala, “o processo produtivo agrí-
cola brasileiro está cada vez mais dependente dos agrotóxicos e fertilizantes
químicos” CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 97). E ainda, “o Brasil vem ocupando
o lugar de maior consumidor de agrotóxicos do mundo, alguns deles já proi-
bidos noutros países” (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 97).

Em todos os espaços ou setores da cadeia produtiva do agronegócio,


estão comprovadas intoxicações humanas, cancros, malformações, do-
enças de pele, doenças respiratórias, tudo decorrente da contaminação
com agrotóxicos e fertilizantes químicos as águas, do ar, do solo (CHAUÍ
e SANTOS, 2013, pág. 98).

Diante das considerações acima, percebe-se que a Educação em Direitos


humanos está muito além de discursar sobre a igualdade, ela está envolta num
processo de intensa reflexão sobre o que acontece e o que está por vir na so-
ciedade, mediante a constante análise sobre os direitos humanos.
Correlacionando todo o exposto com o direito a ser/direito a autodeter-
minação dos indígenas, CHAUÍ e SANTOS (2013, pág. 100), abordam que:

As áreas de grande concentração da monocultura coincidem com as


áreas de maior consumo de agrotóxicos e tragicamente também com as
áreas de maior incidência da violência no campo.

381
E continuam:

Em várias partes do país, os povos indígenas e quilombolas estão a ser


convertidos em obstáculos ao desenvolvimento mediante uma narrati-
va, bem apoiada pela grande mídia, que transforma o crescimento no
único desígno nacional (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 108).

Reitera-se que o intuito de toda essa exposição teórica, é de cunho pe-


dagógico, direcionado a fomentar nas práticas educacionais um enfoque mais
amplo sobre a Educação em Direitos Humanos. Nesse sentido, atribui-se a
escola uma função emancipatória de abordagem, reflexiva-crítica e contextu-
alizada sobre os direitos humanos.

4. Considerações finais

O presente artigo baseia-se em abordar as concepções de direitos humanos


propostas por CHAUÍ e SANTOS (2013) correlacionando-as ao contexto esco-
lar. Nesse sentido, ficou claro que existem algumas ilusões acerca da concep-
ção de direitos humanos e que servem de parâmetros para a centralidade da
contra-hegemonia nos direitos humanos. Isso no contexto escolar, necessita
ser enfatizado a partir reflexões sobre a hegemonia (visão eurocêntrica, decla-
rações universais e a unicidade no Norte), com vistas a ascenção emancipató-
ria de seus atores (alunos).
Um outro aspecto, serviu de base para se entender a maneira pela qual os
direitos humanos pode se apresentar para o contexto educacional. Esse segundo
aspecto, abordou o tensionalidade de termos relacionados aos direitos humanos.
Assim, mais uma vez a hegemonia e contra-hegemonia foram colocadas
em evidência, com o intuito de produzir uma reflexão mais ampla, contextu-
alizada e atual sobre os aspectos tensionais que a escola necessita primar em
seu processo ensino aprendizagem.

382
Reênciasfer ácasbilogr

CHAUÍ, Marilena e SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos Humanos, democracia e


desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.

383
Nina Mary Lopes Cunha
Discente do Curso de Educação em Direitos Humanos. Graduada
em Letras, com especialização em Literatura e Ensino para Jovens e
Adultos. Professora no Estado e no Município de Itapemirim

Marcelo Costa Hastenreiter


Pós Graduado em Docência do Ensino Superior e Tutor do Pólo de
Itapemirim/ES

22
O MENOR/ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI
E OS DESAFIOS PARA UMA EDUCAÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS

Nina Mary Lopes Cunha


Marcelo Costa Hastenreiter

1. Introdução

A civilização humana, desde os seus primórdios até o período atual, pas-


sou por inúmeras fases, cada uma com suas peculiaridades, com seus pontos
negativos e positivos. As transformações científicas, tecnológicas, políticas,
econômicas, sociais e jurídicas se dão de maneira lenta e gradual em avanços
e retrocessos.
A evolução histórica dos direitos inerentes às pessoas também é lenta
e gradual. Desenvolve-se conforme a própria experiência da vida humana
em sociedade, de acordo com as condições objetivas reais existentes e com a
presença da subjetividade humana, exercendo sua ação prática na construção
da vida social.
É importante esse processo pelo conhecimento das suas práticas e pela
percepção objetiva da aplicação concreta de políticas públicas de direitos hu-
manos sob orientação do Estado. Esse é um nível elevado na garantia dos
direitos humanos, observado enquanto dever constitucional do poder públi-
co de preservar e dar condições para que se apliquem os direitos humanos
na forma da lei.
Esse patamar, em muitos países, só se alcançou após décadas de confron-
tos, injustiças, exploração para o crescimento da pobreza e o enriquecimento
de poucos. Os direitos essenciais à pessoa humana, “direitos humanos”, “di-
reitos morais”, “direitos naturais”, “direitos públicos subjetivos”, “direitos dos
povos”, “liberdades públicas” e “direitos fundamentais”, dentre outras termi-
nologias, apresentam marcas da sua existência desde a Idade Antiga, passando
pela Idade Média e início da Idade Moderna.

385
Resquícios desses direitos, assim com algumas ideias sobre a sua exis-
tência, vieram posteriormente com a influência e ecos das revoluções inglesa,
francesa e americana, no reconhecimento e na positivação dos direitos es-
senciais à pessoa humana. Nos tempos modernos, grande parte da doutrina
jurídica mundial já abriga “gerações” de direitos fundamentais.
Na Inglaterra, outros documentos foram de fundamental importância,
como o Petition of Rights, de 1628, que reclama a necessidade de consenti-
mento na tributação, o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e
a proibição de detenções arbitrárias (FERREIRA FILHO, 1998, p. 12). Da mesma
forma, a Lei de habeas corpus, de 1679, protegia a liberdade de locomoção,
inspirando ordenamentos do mundo todo (COMPARATO, 2003, p. 86).
Doutos vigilantes da garantia constitucional dos direitos humanos esta-
belecem três “dimensões” de direitos fundamentais. Outros constitucionalistas
propõem uma quarta dimensão/existência ou concordância quanto ao seu real
conteúdo. O que prevalece é a sucessão em que efetivam esses direitos funda-
mentais. Sempre surgem direitos novos ou perspectivas novas sobre direitos já
reconhecidos, sempre objetivando uma maior proteção à pessoa humana e o
aperfeiçoamento da aplicação prática desse direito.

2. Longo caminho do processo civilizatório dos direitos humanos

A civilização humana, desde os seus primórdios até a época atual, percorreu


um longo caminho. Passou por inúmeras transformações sociais, políticas, re-
ligiosas, econômicas, culturais e naturais, num movimento permanente. Com a
disseminação das novas tecnologias e o avanço da ciência, a humanidade con-
formou um arranjo social de relações humanas no qual a certeza de direitos
básicos essenciais tem que ser absoluta. Sem direitos humanos em extensão
universal os seres humanos perdem a sua essência social. Nessa dimensão, o
que se configura como ameaça é a própria condição humana.
A determinação enfática da questão dos direitos humanos nas políticas
públicas como exercício de afirmação de cidadania é uma conquista ímpar.
Um back-ground imprescindível foi construído ao longo dos anos, fruto não

386
apenas de pesquisa acadêmica de bases teóricas, mas principalmente das lutas
contra o poder. Nesse sentido Norberto Bobbio (1992, p. 5) afirma que:

Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos


históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por
lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos
de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.

José Joaquim Gomes Canotilho (2004, p. 9) também partilha de entendi-


mento semelhante:

A colocação do problema – boa ou má deixa claramente intuir que o


filão do discurso subsequente – destino da razão republicana em torno
dos direitos fundamentais – se localiza no terreno da história política,
isto é, no locus globalizante onde se procuram captar as ideias, as men-
talidades, o imaginário, a ideologia dominante a consciência coletiva, a
ordem simbólica e a cultura política.

Os direitos essenciais à pessoa humana nascem das lutas contra o poder,


das lutas contra a opressão, das lutas contra o desmando, gradualmente, ou
seja, não nascem todos de uma vez, mas sim quando as condições lhes são
propícias, quando se passam a reconhecer a sua necessidade para assegurar a
cada indivíduo e à sociedade uma existência digna.

3. Os direitos essenciais se aplicam a todas as pessoas

Por direitos essenciais à pessoa humana são considerados os direitos naturais,


direitos públicos subjetivos, liberdades públicas, direitos morais, direitos dos
povos, direitos humanos e direitos fundamentais.
Os Direitos Humanos podem ser tomados, assim, pela sua positivação nas
constituições. Os direitos fundamentais, por sua vez, são tomados para iden-
tificar o seu reconhecimento dentro de um ordenamento jurídico específico.

387
Os “direitos naturais” mantêm um traço do jus-naturalismo como se es-
ses direitos fossem fruto de uma revelação, não levando em consideração a
sua construção histórica. A expressão “direitos públicos subjetivos” surge com
a intenção de delimitar os direitos considerados essenciais à pessoa humana,
dentro de um marco positivista (PÉREZ LUÑO, 1999, p. 33). É parte integrante
do conceito de Estado Liberal, estabelecendo limites e atuando junto ao poder
político, sem ater-se ao mundo das relações entre particulares (MARTÍNEZ,
1999, p. 28), deixando de abranger parte substancial das situações em que seja
necessário lutar por tais direitos.
Há, também, a concepção francesa das “liberdades públicas”, tanto as
que se referem e dependem do Estado, como as existentes entre particulares,
consideradas públicas, com proteção do Direito (ISRAEL, 2005, p. 14). O limite
desse conceito está na ausência dos direitos sociais e econômicos. Entende-se
não ser adequado o seu uso ou o seu correlato, “liberdades fundamentais”,
termo também ao gosto dos franceses.
O Direito anglo-saxão utiliza-se da nomenclatura “direitos morais”, de
conotação jusnaturalista, vinculada à ideia do Estado Liberal, deixando de
lado os direitos de participação política, assim como os direitos sociais, cul-
turais e econômicos (MARTÍNEZ, 1999, p. 35). Ainda muito aplicada nos dias
atuais é a concepção dos “direitos dos povos” para determinar seu destino, no
campo político, social, cultural, econômico, o direito de se relacionar com ou-
tros Estados e direito à paz, não abrangendo, entretanto os direitos das pessoas
individuais, concretas, insubstituíveis (MIRANDA, 2000, p. 68).
Outras concepções definem que, a rigor, não há um problema “direitos
humanos”, pois, o problema de base estaria na existência de uma sociedade desi-
gual e injusta, na qual a própria proposição de algo como direitos humanos seria
a confissão da existência da negação de direitos essenciais como direitos econô-
micos, direitos sociais, direitos políticos, culturais e outros. Não haveria, a rigor,
“direitos humanos”, mas direitos próprios e específicos de cada pessoa humana.
De qualquer forma, os direitos humanos têm a sua dimensão histórica e
não foram revelados para a humanidade em um momento de luz, mas sim con-
quistados e construídos ao longo da história humana, através das evoluções,
das modificações na realidade social, na realidade política, na realidade indus-
trial, na realidade econômica, enfim, em todos os campos da atuação humana.

388
O jurista Perez Luño (1999, p. 48) ressalta que:

Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e


instituciones que, en cada momento histórico, concretanlasexigencias
de ladignidad, lalibertad y laigualdad humana, lascualesdeben ser reco-
nocidas positivamente por losordenamientos jurídicos a nível nacional
e internacional.

Embora os direitos humanos sejam inerentes à própria condição humana,


na sociedade de injustiças e desigualdades, seu reconhecimento, sua proteção
é fruto de todo um processo histórico de luta contra o poder e de busca de um
sentido para a humanidade. Quanto aos direitos fundamentais, estes nascem a
partir do processo de positivação dos direitos humanos nas legislações positi-
vas de direitos considerados inerentes à pessoa humana.
José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p. 259) aponta que:

As expressões direitos do homem e direitos fundamentais são frequen-


temente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado
poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são
direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos; direitos
fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente
garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem
arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável,
intertemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos
objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.

Dessa forma, os direitos humanos dos adolescentes infratores, acantona-


dos nos centros de reclusão são direitos fundamentais da pessoa humana na
ordem nacional e internacional. São direitos inscritos nos ordenamentos jurí-
dicos da legislação nacional, que ainda esperam pleno reconhecimento do po-
der político e da sociedade. Assim, o que se indica neste artigo é a necessidade
de uma compreensão dos direitos humanos enquanto processo de educação,
ainda que restrita à comunidade de internos e funcionários das unidades de
internação. Por serem “direitos fundamentais” positivados por um ordenamen-

389
to jurídico da Constituição da República dependem que sejam garantidos pelo
aparelho do Estado responsável por sua implementação.
Embora tenha existido grande avanço, neste período, não se pode falar
ainda em direitos considerados universais, ou seja, comuns a toda e qual-
quer pessoa apenas por pertencer à raça humana, pois os direitos eram meras
concessões reais, podendo ser revogados, ou seja, não constituíam um limite
permanente na atuação do poder político.

4. A realidade dos direitos humanos e o menor infrator no Brasil

No Brasil, a garantia de direitos humanos legais e constitucionais para a crian-


ça e o adolescente é conquista recente, completou 23 anos no dia 13 de julho
de 2013, após a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad)
que ainda não é cumprido em sua totalidade. Basta ver que educação, saúde,
lazer e alimentação não são garantidos a todas as crianças e adolescentes no
Brasil. Embora seja a referência que se aplica junto com o Código Penal, o
Estatuto, mesmo bastante atualizado, não impede que a realidade de crianças
e adolescentes infratores que cumprem sentença das unidades de internação
seja contrária ao que expressa o Ecriad.
O tratamento dispensado aos internos em processos sócio-educativos não
guarda diferença formal entre as penas imputadas a maiores de idade e as
sanções reservadas a menores infratores. Desde os 12 anos de idade, pessoas
no Brasil que cometem crimes acabam arrastadas para um sistema de interna-
ção deteriorado e em condições de funcionamento precárias. Embora haja a
previsão legal quanto a medidas sócio-educativas, elas não se aplicam e o que
prevalece é uma relação de maus tratos, revolta e medo.
Os documentos “Um olhar mais atento às unidades de internação e se-
miliberdade para adolescentes – Relatório da Resolução 67/2011”, e outro re-
latório “Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento para crianças e
adolescentes no país – Relatório da Resolução 71/2011” mostram uma reali-
dade perversa e horrível, na qual o aparelho do estado revela-se com pouca
qualificação para articular políticas de auxílio a crianças e adolescentes sem
família ou em situação de risco; bem como indicam a situação nas unidades de

390
acolhimento de menores — abrigos, casas-lares e famílias acolhedoras cadas-
tradas. Das 2.754 unidades em operação, incluindo-se os três tipos de acolhi-
mento, os promotores visitaram 2.370. Dentre os 2.598 abrigos e casas-lares,
os promotores estiveram em 2.247 deles. Já entre os 156 órgãos que cadastram
e preparam as famílias acolhedoras, os promotores estiveram em 123. Dessa for-
ma, foram visitadas, ao todo, 86,1% das unidades de acolhimento de todo o país.
No Brasil, até a data da pesquisa, 29.321 crianças e adolescentes esta-
vam em acolhimento institucional, afastados provisoriamente da família ou
sob guarda do Estado. Um dos principais problemas apontados pelos dados
do levantamento é a ausência do guia de acolhimento, o documento que in-
dica a autorização judicial do encaminhamento do menor e, por conseguinte,
do devido trâmite de seu processo. Há casos em que para uma criança ser
encaminhada a uma instituição de acolhimento ou a uma família acolhedora
é necessária a autorização do juiz. Com a dificuldade da Justiça em acom-
panhar um universo de mais de 30 mil casos de violência contra menores,
o que acontece é o encaminhamento informal de crianças e adolescentes às
unidades. O relatório mostra que 27,9% dos abrigos visitados por promotores
informaram receber crianças sem a devida guia de acolhimento, de forma que
27,9% dos abrigos visitados por promotores informaram receber crianças sem
a devida guia de acolhimento.
Os Procedimentos Administrativos Disciplinares (PAD) são instrumentos
para estabelecer as sanções em casos de mau comportamento de internos,
porém, o que se constata é que em 56% das unidades visitadas não se aplica
o PAD antes das punições. A prática recorrente implica em abusos como as
suspensões de banhos de sol ao ponto de adolescentes passarem mais de 300
dias sem sair das celas e ficar ao ar livre.
Outro dado importante sobre o qual se debruça o estudo é quanto às me-
didas que reivindicam punições mais rigorosas aos menores de idade, inclusive
com a proposta de redução da maioridade penal. A absoluta falta de estrutura
do sistema que já não consegue atender à população atual ficaria ainda mais
comprometido com o aumento da clientela. Não há estrutura física nem recur-
sos humanos disponíveis para viabilizar o acesso dos adolescentes infratores ao
estudo e às atividades profissionalizantes, o que é a principal deficiência desse
modelo. Sem a perspectiva de participar de atividades sócio-educativas a rotina

391
ociosa do adolescente se torna parecida à de um presidiário. A responsabilidade
penal começa, de fato, aos 12 anos, numa realidade vivida pelo adolescente
infrator que é a reprodução do sistema carcerário. Sendo aprovada a proposta
de redução da maioridade penal, acontecerá, apenas, a transferência de jovens
adolescentes para as prisões sem solução do problema que, ao contrário, poderá
ser agravado por falta de vagas nos cárceres, nas prisões e nas penitenciárias.
As normativas do Sistema Nacional de Atendimento Sócio-educativo
ao Adolescente em Conflito com a Lei - Sinase – são indicativos que agregam
esforços com vistas a ajustar um sistema intersetorial que depende essencial-
mente da articulação de diferentes órgãos do poder público. Há bons exemplos
de melhorias no atendimento sócio-educativo, com base no respeito aos direi-
tos humanos e com ênfase na educação. Enquanto a maioria das unidades de
internação de menores/adolescentes em conflito com a Lei é instalada em con-
dições inadequadas, convivendo com superlotação, com a falta permanente
de meios humanos e materiais para subsistirem, na Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania do Senado já estão prontas para votação três propostas de
emenda à Constituição com a redução da maioridade penal. O tema da maio-
ridade penal aos 16 anos, por força da visão de impunidade aos infratores tem
apoio considerável na opinião pública.
Duas dessas propostas flexibilizam a maioridade de acordo com a gra-
vidade do delito, e uma terceira impõe a idade limite de 16 anos para que
alguém seja considerado inimputável. Há, por outro lado, projeto de decreto
legislativo no Senado propondo plebiscito sobre o assunto, a ser feito junto
com as eleições gerais de 2014.

5. Maioridade penal e a revogação dos Direitos Humanos

O Conselho Nacional do Ministério Público fez levantamento sobre a situação


das unidades de internação de adolescentes infratores em 16 Estados. De acor-
do com o estudo, há superlotação, pois o sistema oferece 15.414 vagas em todo
o país e registra 18.378 internos. Há casos, como o Estado do Maranhão, com
335 internos para 73 vagas disponíveis nas unidades, no Mato Grosso do Sul
são 220 vagas e 779 internos e Alagoas com 154 vagas e 500 internos.

392
Esses dados foram coletados por meio de pesquisa realizada por promo-
tores de Justiça em todo o país, entre março de 2012 e março de 2013. Ao todo
foram visitadas 392 unidades de internação e de semiliberdade para adoles-
centes e jovens em cumprimento de medidas sócio-educativas.
No relatório, intitulado: Um Olhar Mais Atento às Unidades de Inter-
nação e de Semiliberdade para Adolescentes, pela Comissão de Infância e
Juventude do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), constatou-se
que a maior parte das Unidades descumpre o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, deixando de separar os internos provisórios dos definitivos, por idade
e pelo tipo de infração cometida: um ambiente que impede qualquer prática
de reeducação.
Por outro lado, há repercussões entre políticos, empresários, intelectuais
e jornais, para a redução da maioridade penal. O ardor das manifestações
pela maioridade apoia-se no aumento dos crimes praticados por crianças e
adolescentes, inclusive com armas de fogo, às quais têm facilidade de acesso.
São crianças ou pré-adolescentes, de 10 a 12 anos, em número crescente,
em assaltos e ameaças com revólver. No primeiro semestre deste ano, a PM
apreendeu 170 armas em Teresina, 60% delas estavam nas mãos de menores
de 11 e 12 anos.
Em Belo Horizonte apreensões de armas com menores aumentaram mais
de 20%, de 2011 para 2012, segundo o Tribunal de Justiça de Minas. Consta-
tam-se pelas ocorrências policiais mudanças no perfil dos menores infratores,
praticando crimes com mais violência, ameaçando as suas vítimas de morte.
A facilidade de acesso às armas contribui para esse quadro ao qual se junta,
também, em muitos casos, a sensação de impunidade. Pela legislação vigente,
como não há ações coordenadas planejadas, adolescentes infratores podem
ficar internados de três meses até três anos..
A ineficiência do sistema é constatada pela quantidade de fugas e pela
reduzida ou quase nenhuma reinserção. As práticas de manutenção das unida-
des de internação de adolescentes no Brasil ainda não chegaram ao patamar
dos direitos humanos. A realidade social e a precariedade estrutural pública
não estão adequadas para garantir a aplicação de direitos humanos básicos a
essa população, já ceifada de direitos fundamentais como a liberdade indivi-
dual para dispor de si mesmo.

393
Cumpre aplicar política de direitos humanos nas práticas administrati-
vas das unidades de internação de adolescentes com programas de extensão
aos quais os internos se vinculem, com acompanhamento e orientação, com
respeito às diferenças. Falta uma proposta para ampliar execução pedagógica
dos direitos humanos, no método pelo qual educando e educadores se educam.
Os orçamentos públicos, em nome da segurança pública, podem conter inves-
timentos sociais passíveis de serem executados em sistemas educacionais de
internação e não somente no espaço de unidades de internação e repressão.
O educador, o disciplinador e a equipe da unidade devem ser contempla-
dos na formação de agentes de reeducação social com base nos direitos huma-
nos, possibilitando desfazer a imagem e o pensamento de que o adolescente
não é punido. Primeiro, a realidade social que produz a situação em que o
adolescente começa a vender droga, a roubar e a encontrar alguém que “coloca
uma arma na sua mão” revela um menor infrator.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990) é uma referência necessária, sua função efetiva precisa ir além da
intenção firmada no texto da lei. Ele prevê medidas socioeducativas, como
oficinas profissionalizantes e acompanhamento de educadores que não são
executadas por falta de estrutura, recursos humanos, financeiros e materiais.
Ao todo, percorreram 88,5% das unidades de internação e de semiliber-
dade para adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas
para constatarem o que está no relatório ao CNMP que aponta que a “relação
entre o espaço físico da unidade de internação e a qualidade do atendimento
socioeducativo é imediata”. Esses dois fatores são os principais motivos para as
rebeliões nas unidades de internação, de acordo com o documento.
Ressalte-se então que dois principais motivos para os descontentamen-
tos, em sua maioria, são com relação às condições básicas de existência e
as práticas de disciplinas, problemas que estão na raiz das lutas por direitos
humanos no mundo. Urge reavaliar a pedagogia socioeducativa e articular
as relações humanas da disciplina necessária com a prática do respeito aos
direitos humanos.
Reunidos em alojamentos superlotados não se pode esperar ressocializa-
ção de menores/adolescentes ociosos durante o dia e sem oportunidade para
o estudo, o trabalho ou prática de atividades esportivas reeducativas. Espaço

394
físico reduzido e falta de infra-estrutura criam lugares de permanente con-
fronto, não estimula na socialização, tudo conspira e às vezes explode em
deflagração de rebeliões nas unidades de internação. O local e as condições da
internação não se dão de forma condizente com a política de direitos huma-
nos que o Brasil respeita, inclusive com garantias asseguradas em acordos e
convenções internacionais. Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad), os
menores que cometem atos infracionais graves, como crimes previstos no Código
Penal, podem cumprir medidas socieducativas em unidades de semi-liberdade,
quando o menor pode participar de atividades externas como a escola, ou interna-
ção, que é a punição mais severa.
Entre março de 2012 e março de 2013, houve 103 rebeliões nas unidades
de internação brasileiras. 20,2% das casas para menores infratores foram afe-
tadas com algum motim nesse período. Em 70,7% das rebeliões ocorridas no
País, houve vítimas lesionadas.
As rebeliões mais violentas ocorreram no Sudeste, onde houve registro
de lesão corporal em 88% das rebeliões. O menor percentual de rebeliões com
vítimas com lesões corporais foi registrado no Sul: 27,3%.  Nesse período de
um ano ocorreram 129 evasões nas unidades inspecionadas pelo Ministério
Público, com a fuga de cerca de 1.560 internos.

6. Quem são os menores internos?

A maioria das crianças e adolescentes internados em unidades de ressocializa-


ção é de homens, 95% são do sexo masculino. A maioria (cerca de 70%) tem
entre 16 e 18 anos. O segundo grupo mais numeroso é de meninos dos 12 aos
15 anos.  Mulheres são 5%. Respondem, principalmente por atos infracionais
de roubo (38,1% dos casos), tráfico (26,6%) e homicídio (8,4%), segundo o
levantamento divulgado no mês de agosto de 2013, pelo Conselho Nacional
de Justiça (CNJ).  Dos adolescentes internados em cumprimento de medidas
socioeducativas no Brasil, 75% são usuários de entorpecentes.
O CNJ considera ato infracional toda conduta praticada por criança ou
adolescente definida como crime ou contravenção pelo Código Penal brasilei-
ro. Entre os atos infracionais mais comuns entre os adolescentes internados

395
estão crimes contra o patrimônio, como roubo e furto. De acordo com o le-
vantamento, 36% dos entrevistados afirmaram estar internados por roubo. Em
seguida aparece o tráfico de drogas (24%).
A pesquisa “Panorama Nacional, a Execução das Medidas Socioeducati-
vas de Internação” foi realizada pelo Departamento de Monitoramento e Fisca-
lização do Sistema Carcerário (DMF) e pelo Departamento de Pesquisas Judici-
árias (DPJ). O levantamento foi realizado por uma equipe multidisciplinar que
visitou, de julho de 2010 a outubro de 2011, os 320 estabelecimentos de inter-
nação existentes no Brasil para analisar as condições de internação de 17.502
adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em restrição de liberdade.
Durante essas visitas, a equipe entrevistou 1.898 adolescentes internos.
Dos jovens entrevistados, 74,8% faziam uso de drogas ilícitas, sendo o
percentual ainda mais expressivo na Região Centro-Oeste, onde 80,3% dos
adolescentes afirmam ser usuários de drogas. Em seguida está a Região Sudes-
te, com 77,5% de usuários.
Um caso serve de referência para a necessidade de compreensão quanto
à importância do conteúdo Direitos Humanos nas unidades de internação.
O Centro Integrado de Atendimento Sócio-educativo (Ciase) foi flagrado em
série de violações aos direitos da criança e do adolescente. O secretário-exe-
cutivo do  Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CO-
NANDA), Benedito Rodrigues dos Santos, disse, na época, em maio de 2009,
que o Ciase talvez fosse a pior unidade de internação já visitada pelo órgão.
“Era como se tivéssemos voltado à Idade Média, ao tempo das masmorras.
É um lugar onde o estado de direito não chegou ainda”, relatou Benedito o
secretário do CONANDA.
O pesadelo encontrado motivou a elaboração da “Carta de Vitória”, en-
dereçada aos governos estadual, federal e municipal, ao Tribunal de Justiça do
Estado, entre outros, solicitando providências.
A comoção com a barbárie do CIASE foi o tema central da 174ª. Assem-
bleia Ordinária do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescen-
te, Vitória-ES, com audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado. O
órgão se mobilizava face à denúncias de crueldades nas mortes de dois inter-
nos da Unidade de Internação Socioeducativa (Unis) no período de um mês,
além de novo espancamento tendo por vítima outro adolescente.

396
As inspeções do CONANDA ouviram os adolescentes internos, servido-
res, operadores do sistema de segurança e justiça. O que se constatou e foi
expresso no documento refere-se a uma situação incompatível com as dire-
trizes do Estatuto da Criança e do Adolescente – Ecriad quanto às condições
mínimas de dignidade humana. Identificou-se graves violações dos direitos
dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, “desde a apre-
ensão do adolescente, aplicação e execução da medida, tanto em meio aberto
quanto em meio fechado, envolvendo distintas instâncias do Sistema de Ga-
rantia dos Direitos.” 
Os espaços onde ainda são confinados esses adolescentes, nessa unidade,
que não é muito diferente das demais existentes no País, remetem às prisões
medievais. Vê-se extrema precariedade das instalações prediais das unidades
de internação, que operam com superlotação, insalubridade, sem iluminação
e ventilação, rede elétrica danificada, condições sanitárias sub-humanas, ali-
mentação imprópria para o consumo e para a faixa etária.
São condições indignas que afrontam o princípio da dignidade humana,
portanto, em afronta, também, aos princípios dos direitos humanos pelo risco
à saúde e à própria vida dos adolescentes internados nessas unidades.
Dentre as violações dos direitos dos internos estabelecidos no artigo 124
do  Ecriad, identificamos a falta de acesso ao atendimento. Há impedimen-
tos para que a população em questão possa ter acesso a outras perspectivas
de ocupação do tempo que resgatem as determinações dos direitos humanos
básicos e fundamentais, mediante a aplicação dos programas já existentes.
Direito à saúde, à educação, à profissionalização, a atividades de lazer, a meios
de comunicação, à visita e contatos com familiares, aos objetos necessários à
higiene e asseio pessoal são, também do âmbito dos direitos humanos.
Se a maioria dos adolescentes aponta a existência de lesões corporais
decorrentes da ação policial no ato de apreensão, bem como de espancamentos
nos procedimentos de revista semanal realizados nas unidades de internação
pelo grupo de agentes socioeducativos, esta já é uma situação que demanda
maior dinamismo das políticas públicas de direitos humanos referentes aos
adolescentes internos.
Os “choquinhos”, acompanhados de práticas de desnudamento e agres-
sões físicas com cassetetes e projéteis de borracha; revistas íntimas abusivas

397
em mulheres, mães ou familiares dos internos, com desnudamento, agacha-
mento e outras situações de constrangimento não educam. Tudo isso viola por
inteiro o pressuposto universal dos direitos humanos.
Nos centros de triagem permanecem adolescentes por tempo superior ao
legalmente previsto, não há separação, alguns estão em regime de internação
provisória e outros já com medidas de internação, ou até situações de transfe-
rência de outras unidades por medida de segurança. Na unidade feminina de
internação, adotava-se o procedimento de manter adolescentes em regime de
internação provisória no mesmo espaço com as que já cumprem medidas de
privação de liberdade.
Era de tamanha gravidade as condições sub-humanas desses adolescen-
tes que o CONANDA indicou a necessidade de decretar, de imediato, Situação
de Emergência para a adoção de medidas. Passado o clamor do momento, os
problemas continuam, em decorrência da negação de direitos humanos e da
falta de uma educação voltada especificamente para essas situações.

7. Conclusão

A educação em direitos humanos como necessidade: o caso específico das


condições dos centros de internação de menores infratores em Vitória serve
para reflexões sobre os caminhos de uma nova abordagem para humanizar
as relações socioeducativas nos ambientes dos centros integrados de atendi-
mento. Um primeiro olhar demanda por ações integradas e compartilhadas
que possam contribuir para a formação de um novo espaço de internações de
adolescentes infratores com referência nos direitos humanos. As ações podem
e devem ser articuladas na integração entre o Conselho Municipal, Estadu-
al e Federal da Criança e do Adolescente, o Tribunal de Justiça do Estado,
representações dos poderes Executivos e Legislativos nos planos estaduais e
municipais. Exige-se uma visão que reconheça, de início, que o adolescente
infrator, em geral, já está prejudicado nos seus direitos fundamentais em de-
corrência da realidade social adversa.
A negação dos direitos humanos básicos está na origem do problema
a que se refere o presente artigo, condicionado pelas condições de vida real,

398
concreta e objetiva dessa população que conforma a faixa crescente dos ado-
lescentes internos. Uma segunda negação aos direitos humanos ocorre na in-
ternação que deixa o adolescente infrator privado de acesso a um tratamento
digno, de acordo com a lei.
Seria elementar, no Estado Democrático de Direito, que os menores/ado-
lescentes em conflito com a Lei pudessem conhecer o processo legal pelo qual
foram condenados até para que, em programa mais amplo, viessem a integrar
programas socioeducativos estruturados a partir de um entendimento que re-
force a aplicação de medidas de meio aberto e de semi-liberdade, no limite das
possibilidades, evitando-se as práticas de internamento.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente já re-
comendou à Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Espírito Santo, por
exemplo, para que se garantam os direitos dos adolescentes com relação ao
devido processo legal, “…criando estruturas e procedimentos necessários a esta
finalidade, destacando a criação de promotorias especializadas para atuar em
varas da infância e da juventude e instauração de procedimentos administra-
tivos para apurar as irregularidades na execução das medidas socioeducati-
vas”, de acordo com a proposta da Carta de Vitória. A perspectiva que essas
medidas se inscrevem demanda, por necessidade, por integração dos órgãos
responsáveis pela efetividade do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança
e do Adolescente, sob a ótica e as normas do respeito aos direitos humanos.
E nessa integração a inserção da educação em direitos humanos, no con-
junto das medidas já apontadas nos estudos assinalados, é ponto de apoio
significativo para uma política mais humana no processo de penalidades so-
cioeducativas de menores infratores.

399
Reênciasfer ácasbilogr

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400
Daniela Simiqueli Durante
Mestranda em História Social das Relações Políticas/UFES.Professora da Rede
Municipal de Anchieta/ES. Discente do Curso de Educação em Direitos Humanos

23
CIGANOS: DIREITOS HUMANOS E EDUCAÇÃO

Daniela Simiqueli Durante

1. Introdução

Todos nós, em algum momento de nossas vidas, já nos deparamos com os


ciganos. Muitas vezes, através das mulheres de vestidos coloridos nas calçadas
das cidades, buscando a leitura das mãos dos transeuntes, ou até mesmo pela
presença das barracas de lona fixadas em terrenos baldios, nas proximidades
de rodovias. A trajetória dos ciganos ainda é cercada pelo desconhecimento e
sua história escrita no Ocidente, isto é, os relatos sobre a existência dos ciga-
nos possuem cerca de um milênio.

Esta é a história de um povo itinerante que chegou aos Bálcãs nos tem-
pos medievais e gradualmente se foi espalhando por todo o continente
europeu e para além dele. Quando bateram à porta da Europa Ocidental,
em jeito de peregrinos, despertaram uma imensa curiosidade e suscita-
ram proliferação de teorias sobre as suas origens. Só muito mais tarde se
tornou possível deduzir da sua língua onde tinha começado a diáspora.
Ao longo dos séculos, apesar de constantemente expostos a múltiplas
influências e pressões, conseguiram preservar uma identidade própria e
demonstrar notável capacidade de adaptação e sobrevivência. Com efeito
quando consideramos as vicissitudes por que passaram — pois a história
que vamos relatar é em grande medida a história do que outros fizeram
destruir a sua diferença – somos forçados a concluir que a sua maior pro-
eza foi precisamente terem conseguido sobreviver (FRASER, 1997, p. 07).

Atualmente, há um consenso que os ciganos originaram-se da Índia.


Curiosamente, esta afirmação não veio dos próprios ciganos, mas dos gadjés
(não-ciganos) que através de diversos estudos que utilizaram critérios bio-
lógico-genealógicos, étnico-raciais e, sobretudo os lingüísticos buscaram re-
constituir a trajetória destas populações. Trata-se de um terreno árido, pois

402
não dispomos de muitas fontes escritas e, além disso, percebemos que sempre
o “outro” contou a história dos ciganos (estes eram ágrafos e não constam
registros realizados por eles) o que dá uma grande margem para especula-
ções provenientes da ignorância, preconceito e incompreensão. Podemos citar
como exemplo o médico baiano Alexandre de Mello Moraes Filho (1843–1919)
considerado um dos pioneiros sobre os estudos da tradição cigana na cultura
brasileira. Em suas obras O Cancioneiro dos Ciganos e Os Ciganos no Brasil
percebemos as concepções deterministas típicas da segunda metade do século
XIX onde o valor social do indivíduo era mensurado pela sua utilidade social
ou capacidade biológica. Certamente, tais concepções impediram o autor de
compreender a essência do ser cigano.
Segundo os estudos, há uma forte afinidade entre a morfologia da língua
Romani e o Sânscrito o que determinou uma descendência hindu aos ciganos.
Não se sabe quando em que região da Índia ocorreu esta dispersão. As razões
para a emigração também são misteriosas. Há diversas hipóteses para os an-
tepassados dos ciganos. Entre elas que eles seriam descendentes dos Banjara
“uma raça mista de mercadores ambulantes que formavam um exemplo do
que se costuma chamar de “tribos de criminosos errantes” da Índia” (FRASER,
1999, p. 31). Outra vertente acredita que os ciganos seriam descendentes de
guerreiros Jat e Rajput. Acredita-se também em diversas ascendências, o que
justificaria a diversidade de tipos físicos das populações ciganas na atualidade.

Enquanto não for possível reduzir as opções de tempo e lugar, continu-


ará a haver muito espaço de polêmica para se saber exatamente quem,
em termos de casta, ocupação e origem étnica, deixou o subcontinente
indiano há mil ou mais anos atrás e se saíram ou não como um só
grupo (FRASER, 1999, p. 31).

Existem alguns textos que registram possivelmente a presença dos ci-


ganos na Pérsia, Armênia, Bizâncio e Turquia, constituindo numa espécie de
“pré-história” dos ciganos. Um dos documentos mais antigos data do ano de
1050 onde um monge grego relata que o imperador de Constantinopla (atual
Istambul) teria solicitado o auxílio de adivinhos e feiticeiros denominados de
Adsincani. No século posterior, outro monge menciona domadores de animais,

403
principalmente ursos, e indivíduos que liam a sorte e previam o futuro cha-
mados de Athinganoi.
A migração para a Grécia ocorreu possivelmente pela expansão dos
turcos otomanos. No século XIV surgem relatos da presença de ciganos no
Peloponeso e nas ilhas gregas. Simão Simeónis, um frade franciscano, visi-
tou a ilha de Creta em 1323 e descreve um povo que poderia ser identificado
como cigano:

Vimos também aí uma raça de fora da cidade, que servia o rito grego e
se dizia da família de Chaym [Ham]. Raramente ou nunca paravam num
lugar mais de trinta dias, andando sempre a vaguear e a fugir, como se
malditos por Deus, passado o trigésimo dia mudavam de campo para
campo com suas tendas oblongas, negras e baixas, como as dos árabes,
e de caverna para caverna (Ibid., 1999, p. 55).

Em 1415 o poeta satírico bizantino Mazaris relata a existência de diver-


sas nações habitando o Peloponeso, entre as quais os Egípcios [Aigúpatioi]. Tal
designação deve-se ao fato que os próprios ciganos afirmavam que sua terra
de origem era o “Pequeno Egito”. Sabe-se hoje que se trata de uma região da
Grécia, mas que foi confundida pelos europeus com o Egito na África.
A partir do século XV, os ciganos migraram para a Europa Ocidental
e a partir deste período, observamos um grande número de relatos sobre
eles. Por causa desta suposta origem egípcia, passaram a ser chamados de
egípcios ou egiptanos, gipsy (inglês), egyptier (holandês), gitan (francês), gi-
tano (espanhol). Porém, existem grupos que se apresentaram como gregos o
que derivou as seguintes designações – grecianos (espanhol antigo), tsiganes
(francês), ciganos (português), zíngaros (italiano).
As dispersões ocorridas neste período histórico são denominadas
como a primeira onda migratória sofrida pelas populações ciganas no Oci-
dente. A partir daí, há um considerável aumento no número de registros
da bandos de ciganos em vários países. A princípio, foram bem recebidos.
Acredita-se que tal consideração devia-se às estratégias criadas para au-
mentar as perspectivas de sobrevivência. Dentre estas táticas está na figura
de um líder do bando

404
com algum real ou auto-atribuído título de nobreza: conde, duque ou
voivode, e há notícia de “alguns” reis ciganos. Apresentavam-se como
penitentes ou peregrinos, com cartas de apresentação ou salvo-condutos
de reis, príncipes e nobres, e até do papa, nas quais estes pediam que
se fornecesse aos ciganos a melhor acolhida possível, hospedagem, ali-
mentação e dinheiro (MOONEN, 2008, p. 21).

Atualmente, parece-nos difícil compreender a mobilização popular em


relação aos penitentes. È certo que os ciganos deste período apreenderam tal
dimensão o que lhes possibilitava uma boa acolhida e assistência em alimentos
e dinheiro. Contudo, com o passar do tempo, este disfarce caiu por terra. Isto
se deveu ás suas próprias características físicas que diferiam dos peregrinos
europeus: eram estrangeiros oriundos de terras longínquas, não se dirigiam
a nenhum santuário ou à Terra Santa em grandes grupos o que diferenciava
dos peregrinos individuais. Foi o mesmo século XV que abrigou os ciganos na
Europa, presenciou o surgimento das primeiras sanções e políticas anticiganas.
Entre o século XVI até o XVII presenciamos uma dura repressão em
todas as nações européias. A principio surgiram editais que combatiam os va-
gabundos, os bandidos e os “pagãos” (isto é, os ciganos). Mais tarde, surgiram
editais que combatiam especificamente as populações ciganas. Mesmo sem
terem cometido crime algum, sua presença representava uma ameaça. Geral-
mente, eram proibidos de exercerem legalmente uma profissão e aqueles que
os empregassem eram submetidos a sanções. Em desespero, muitos ciganos
passam a praticar crimes. Na Holanda do final do século XVII, por exemplo,
eram comuns assassinatos de camponeses, assaltos e incêndios em fazendas.
As punições a esta minoria, de modo geral, eram bastante severas:

[…] açoites em praça pública (quase sempre até “sangrar”), marcação


com ferro quente (geralmente nas costas), cortes de parte do nariz ou
das orelhas, para facilmente serem reconhecidos, tudo isto sempre se-
guido pelo banimento perpétuo da cidade ou da província. Em casos de
reincidência, a pena de morte, principalmente para os homens, através
do enforcamento ou decapitação. As mulheres em geral escapam da
pena capital e são apenas banidas, junto com seus filhos, para evitar

405
que as autoridades tivessem que sustentar depois a quase sempre nu-
merosa prole cigana (Ibid., 2008, p.32).

As Legislações anticiganas utilizavam a expulsão e a extirpação como


mecanismos de repressão. Em vários momentos, estas leis penais não surtiam
efeito, o que fez com que varias nações européias utilizasse políticas de assimi-
lação, fato que ocorreu com muita freqüência em Espanha e Portugal.
A princípio, a legislação portuguesa buscou suprimir as diferenças cultu-
rais apresentadas pelos ciganos e assimilá-los ao restante da população. Tais
medidas eram repletas de ambigüidades, pois ao mesmo tempo em que bus-
cavam uma integração forçada destes grupos, havia leis que os impediam de
participarem da esfera pública portuguesa. Como exemplo, citamos as Ordens
Manuelinas (1514 – 1521) que baseadas nos estatutos de pureza de sangue,
proibiam que ciganos e seus descendentes ocupassem “cargos públicos, eclesi-
ásticos e títulos honoríficos” (MATTOS, 2009, p.355).
Com o fracasso da integração à sociedade portuguesa, os ciganos eram
enviados para as colônias de degredo.

A falta de êxito das tentativas de integração forçada juntou-se à ne-


cessidade dos colonizadores de povoar os territórios além-mar, e por
isso o degredo foi aplicado tanto ao indivíduo quanto à família cigana
(COSTA, 2006, p.117).

Os primeiros registros e relatos sobre a presença de ciganos no Brasil


nos remetem ao século XVI. Não há dúvidas que os primeiros ciganos que
desembarcaram em nosso país eram originários de Portugal, onde atraíam as
“atenções hostis das autoridades, com a conseqüência da habitual chuva de
medidas repressivas” (FRASER, 1997, p.102). A Coroa Portuguesa nunca tole-
rou a presença desta etnia em seu território, sendo que as autoridades judiciais
incriminavam estes grupos sempre pelos mesmos delitos:

ser nômade, deslocar em grupos, cometer pequenos furtos, pedir esmo-


las sem autorização específica, fingir saber feitiçarias, falar geringonça
(o dialeto calo, também chamado romani-ibérico) usar “traje de ciga-

406
nos”, ou as mulheres de lerem a buena-dicha (isto é, prever o futuro
lendo a sina na palma da mão). As referências a crimes de sangue eram
bastante raras (COSTA, 2006, p. 17).

A trajetória dos ciganos no Brasil inicia-se em 1574 “[…] com um certo


João de Torres e sua mulher Angelina que foram presos pelos simples fato de
serem ciganos” (MOONEN, 2009, p.125). As políticas anticiganas portuguesas
condenavam o homem às galés e a mulher ao degredo. Segundo os relatos,
João consegue reverter a sua sentença saindo com sua esposa e filhos do Reino
e partindo para o Brasil para sempre.
A partir de então, os ciganos vindos de Portugal espalharam-se rapida-
mente por todo o território nacional. Várias capitanias receberam estes degre-
dados, entre as quais podemos citar Maranhão, Ceará, Sergipe e São Paulo,
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Vários documentos registraram uma grande preocupação das autorida-
des com estes grupos cada vez mais numerosos. “A não submissão do povo
cigano aos padrões dominantes e a incapacidade das autoridades de lidar com
eles ficam patentes em muitos documentos” (COSTA, 2006, p.19). Em várias
passagens, esta etnia continua identificada com a prática de crimes contra
a propriedade, principalmente relacionados ao furto de escravos e cavalos,
assassinatos, sendo responsabilizados até pelo surgimento de epidemias nas
regiões em que se fixavam.
Percebemos que a política metropolitana em relação aos ciganos no Bra-
sil apresentava uma relação ambígua, variando entre sanções as mais diversas
e medidas de inclusão canhestras que buscavam incluir este grupo social nos
planos de expansão colonial. Mesmo com a chegada da Família Real, a situ-
ação não sofre muitas alterações. A prática predominante, de simples aplica-
ção, resultava em sucessivas medidas de expulsão. Trata-se da:

[…] velha política de “mantenha-os em movimento”: Minas Gerais ex-


pulsa seus ciganos para São Paulo, que os expulsa para o Rio de Janeiro,
que os expulsa para o Espírito Santo, que os expulsa para a Bahia, de
onde são expulsos para Minas Gerais, etc (MOONEN, 2009, p.19).

407
A segunda Onda migratória dos ciganos para o Ocidente ocorreu no
século XIX. Acredita-se que a abolição da escravidão cigana na Romênia, a
miséria que se encontrava grande parcela da população européia e as duas
grandes guerras ocasionaram sucessivas migrações internas e externas. No-
vamente, as políticas anticiganas foram acionadas, chegando ao seu ápice
na Alemanha nazista com o holocausto cigano conhecido por Poraimos (que
significa Devoração). O sangue cigano representava uma ameaça ao ideal
ariano o que culminou em uma selvagem perseguição aos ciganos. O tradi-
cional ódio aos ciganos associada ás teorias de “higiene racial” e criminal
culminaram no extermínio de mais de 500.000 vidas em campos de concen-
tração vítimas de inanição, trabalho excessivo, doenças, câmaras de gás e
abusos médicos.

2. O que é ser cigano?

A trajetória dos ciganos no Ocidente foi marcada pela intolerância e violência.


A começar pelo termo “cigano” que segundo Angus Fraser (1999) constitui um
problema semântico que não foi obra dos próprios ciganos. “A confusão da
nomenclatura tornou-se particularmente aguda no século XX. Em tempos, a
palavra ´cigano’ teve conotações essencialmente raciais” (FRASER, 1999, p.08).
Ao lermos o verbete da palavra cigano encontramos o seguinte:

Cigano: S.m. 1.indivíduo de um povo nômade, provavelmente origi-


nário da índia e e emigrado em grande parte para a Europa Central,
de onde se disseminou, povo esse que tem um código ético próprio
e se dedica a música, vive de artesanato, de ler sorte, barganhar
cavalos, etc [Sin. Boêmio, gitano] 2. Fig. Indivíduo erradio, de vida
incerta 3. Fig. Indivíduo trapaceiro, velhaco. 4.Fig. Vendedor ambu-
lante 5. Um dos carneiros de guia dj 6. Errante, nômade 7. Ladino,
astuto, trapaceiro.

Percebemos claramente conceitos e representações incrustadas onde


“aqueles a quem chamamos ciganos são indivíduos com biografias, valores

408
e sentimentos muito diferentes entre si, e que, no entanto, continuam a ser
tratadas como pessoas idênticas” (REZENDE, 2000, p. 07).
Ao descreverem a cultura cigana, os ciganólogos se deparam com alguns
impasses: estariam tratando de uma cultura homogênea e isolada? O gadjé
(não-cigano) tem uma verdadeira compreensão desta cultura? Todorov ques-
tiona os critérios de julgamento que devemos utilizar em culturas diferentes:

Quem acredita em julgamentos absolutos, portanto, transculturais, corre


o risco de considerar seus valores habituais como universais, de praticar
um etnocentrismo ingênuo e um dogmatismo cego, convencido de deter
para sempre o que é verdadeiro e justo (TODOROV, 2010, p. 23)

A necessidade de explicar o outro é um exercício de poder. A compreen-


são do ser cigano depende da queda deste julgamento absoluto que constrói
uma imagem presente na cultura gadjé.
Invariavelmente, nos deparamos em nossos estudos com a seguinte ques-
tão: o estilo de vida constitui em um fator decisivo para alguém seja intitulado
cigano? Esta indagação não é fácil de ser respondida. Lidamos com um mosai-
co multicultural, isto é, não existe um grupo homogêneo, mas diversos grupos
que apresentam estilo de vida e, até mesmo, dialetos diferentes.

3. Os ciganos na contemporaneidade

A partir da década de 70, surgem as primeiras organizações de defesa dos di-


reitos ciganos. Em 1971, realizou-se em Londres o primeiro Congresso Mundial
Romani onde 14 países participaram do evento. Foi adotado “o nome Rom,
uma bandeira e uma palavra de ordem simples – Opré Roma!, ‘Erguei-vos,
Ciganos!’”(FRASER, 1999, p.302). Foram tratados assuntos sociais, educação,
língua, cultura e crimes de guerra. Outros congressos foram realizados com a
crescente adesão de outras nações e com o reconhecimento da ONU e UNESCO.
Em território brasileiro, até o presente momento, pouco se sabe sobre
o modo de vida das comunidades ciganas espalhadas pelo país. Há cerca de
450 anos que os ciganos encontram-se em nosso território, contudo a sua

409
participação na construção do processo histórico é negligenciado de modo
ostensivo até os dias atuais, “não existindo órgãos governamentais e legis-
lação específicos que tutele os interesses dessa minoria” (COSTA e SILVA,
2009, p.439), o que impede o acesso a direitos fundamentais como atenção
básica à saúde, à documentos de identificação civil obrigatórios e ao ensino/
permanência na escola.

Por não possuírem o mesmo tipo de organização social dos outros gru-
pos classificados como tradicionais, e particularmente por seu noma-
dismo, os ciganos possuem bastante dificuldades de se inserirem em
estruturas sociais normativas que lhe garantam acesso a equipamentos
sociais (SIMÕES, 2007, p.641).

No cenário brasileiro, ao retratarmos minorias étnicas, logo se pensa nos


povos indígenas. Os ciganos raramente são lembrados. As pesquisas acadêmi-
cas são muito escassas e, consequentemente, o Brasil possui uma bibliografia
reduzidao que contribui para dificultar a criação de uma legislação específica
para esta minoria com o intuito de assegurar seus direitos civis.
Consequentemente, quando pesquisamos sobre os ciganos, utilizamos
pesquisas realizadas na Europa onde existe uma ampla bibliografia:

[…] a quantidade e a qualidade dos ensaios sobre os ciganos brasileiros


deixa muito a desejar. E praticamente inexistem estudos sobre o antici-
ganismo e os direitos ciganos no Brasil. A produção ciganológica exis-
tente é insuficiente para alguém escrever um tratado sobre a situação
dos ciganos brasileiros na atualidade. Para preencher esta lacuna, antes
de tudo será necessário que sejam realizadas maise melhores pesquisas
sobre as minorias ciganas em geral e no Brasil (MOONEN, 2008, p. 05).

Nos últimos quarenta anos, a preocupação das ciências humanas com


questões relacionadas ao multiculturalismo tornou-se muito evidentes. No
mundo contemporâneo, a pluralidade e a diversidade cultural tomaram pro-
porções multidimensionais onde diversos grupos sociais minoritários bus-
cam seu espaço.

410
Desde homossexuais, camponeses, pentecostais ou viciados em flipe-
rama, até as expressões mais contundentes de uma tradição cultural
peculiar, como uma minoria indiana em West End, famílias de migran-
tes latinos nas bordas de Miami, ou até mesmo “ciganos modernos” na
periferia de belo Horizonte – todos vêm mostrar limites que nos criam
um certo “mal estar”. (REZENDE, 2003, P.18)

Este “mal estar” relaciona-se não simplesmente a grupos culturalmente


definidos, mas de múltiplas estratificações culturais. Um cigano não se reco-
nhece somente na cultura em que está inserida, mas também, em uma cultura
cristã e brasileira, por exemplo. Segundo Todorov:

[…] essas diferenças culturais não coincidem entre si, nem formam ter-
ritórios claramente delimitados em que fosse possível verificar uma so-
breposição perfeita entre diversos ingredientes. Qualquer indivíduo é
pluricultural (TODOROV, 2010, p.69).

Assim, não podemos tratar de uma cultura cigana homogênea com cos-
tumes e tradições e dialetos idênticos. “Não existem culturas puras; pelo con-
trário, todas elas são mistas (ou “híbridas” ou “mestiças”)”. (Ibid.).
Estando de acordo que a cultura é um processo que se constrói, entende-
mos que as práticas sociais são diversificadas e variadas:

Para construir uma representação , deve-se proceder as escolhas e com-


binações em vez de refletirem passivamente a natureza das coisas, essas
operações vão organizá-las de maneira peculiar. Por conseguinte, os
indivíduos encontram-se imersos, não em contatos puramente físicos
com o mundo, mas em um conjunto de representações coletivas que,
em determinado momento, ocupam uma posição hierárquica no âmago
da cultura. Essas representações formam um saber oral que se transmi-
te de geração em geração ou, então, encontra-se também consignadas
por escrito; elas é que conferem sentido aos diferentes acontecimentos
constitutivos da vida de uma pessoa (TODOROV, 2010, p.73).

411
Qualquer sociedade é pluricultural. Aquelas que estão impregnadas pelo
ódio e pelo preconceito impedem o avanço das ideias democráticas e, contri-
buem paraa perpetuação da barbárie.

4. Educação cigana

A discriminação na área educacional contra os ciganos em vários países


europeus ainda é muito forte na atualidade. “Muitas crianças começaram a
frequentar escolas, o analfabetismo cigano diminuiu, alguns poucos ciganos
chegaram a obter títulos acadêmicos” (MOONEN, 2008, p. 73). O afastamento
das crianças e jovens ciganos das escolas públicas é extremamente comum na
Europa. Infelizmente, no Brasil, não existem estudos sobre a questão educa-
cional entre os ciganos.
Trata-se de um problema complexo e multidimensional. Existe uma falsa
crença em que “os ciganos não gostam da escola” ou que não possuem o mes-
mo nível de desenvolvimento cognitivo que os demais alunos. Dessa forma,
muitas crianças ciganas são matriculadas em escolas especiais destinadas à
deficientes mentais. Seus rendimentos escolares eram considerados baixos e os
testes de inteligênciaeram considerados insatisfatórios. “Nos anos 80 apenas
30% a 40% das crianças ciganas na União Europeia frequentavam a escola
com regularidade e mais da metade não recebia qualquer tipo de escolaridade”
(LIEGEÓIS apud CASA-NOVA, 2006, p. 157). Segundo o autor, esta situação
não sofreu qualquer alteração.
Em Portugal, as crianças e jovens da cultura cigana se afastam da escola
por causa do absenteísmo e pala diminuição da frequência escolar de um ciclo
para o outro. O ensino da língua nacional seria um elemento que dificultaria
a permanência desta criança na escola, pela falta de domínio sobre ela. Outra
questão seria que ao entrarem em contato com a educação dos Gadjés, elas
perderiam os conceitos e tradições do seu grupo. Além disso, estas crianças
não encontram qualquer referência de suas tradições e a importância de seu
povo nos livros didáticos, além de serem vítimas de preconceito por parte dos
colegas e dos professores por suas roupas coloridas e hábitos ruidosos.

412
Vários ensaios e relatórios documentam a discriminação de crianças
ciganas nas escolas mistas: os professores dão pouca importância ou
nenhuma atenção aos alunos ciganos, considerados “casos perdidos e
irrecuperáveis!, que por isso são colocadas nos bancos raseiros da sala.
Os alunos ciganos são ridicularizados por seus colegas não-ciganos,
por causa do seu vestuário mais pobre, por causa da sua aparência
física (mais escura), por serem supostamente sujas ou cheias de pio-
lhos, pelo fato de não saber falar direito a língua nacional, por serem
supostamente ladrões ou filhos de ladrões, por não saberem contar
direito, etc” (MOONEN, 2008, p. 74).

Quando falamos de crianças ciganas na escola, estamos relacionando a


diversidade cultural nas escolas e os processos de desigualdade social. A visão
eurocêntrica predominante nas instituições de ensino impede que outras con-
cepções de mundo, outros saberes sejam validados no espaço escolar.
Compreender as diferenças culturais torna-se fundamental no processo
educativo. No caso estudado, temos dois sistemas culturais distintos: de um
lado, a cultura cigana, que é ágrafa, baseada na oralidade, no pensamento
concreto e em um conhecimento relativo a atividades cotidianas que garan-
tam a sobrevivência do grupo. Do outro lado, a cultura da sociedade majo-
ritária, letrada, baseada na transmissão escrita, no pensamento abstrato e no
conhecimento erudito. Quando a criança cigana entra nesta cultura, nada lhe
é familiar. São exigidas tarefas as quais não fazem parte da sua realidade. As-
sim, a frustração é evidente, pois seus conhecimentos não possuem qualquer
validade neste locus e sua autoestima é ameaçada.

5. Considerações finais

Durante a elaboração deste artigo, nos deparamos com a carência de produções


acadêmicas sobre o tema. O desconhecimento sobre os elementos culturais e
a organização social das populações ciganas no Brasil e no mundo contribui
para que crianças e jovens ciganos/ciganas deixem de estudar o que acarreta
em altas taxas de analfabetismo e a consequente marginalização deste grupo.

413
A construção de uma escola democrática e cidadã precisa conhecer os
seus alunos. Ao compreender as diferenças culturais e os diversos olhares que
compõem a sociedade brasileira, estaremos avançando em políticas públicas
mais eficientes e justas que atendam os diversos segmentos que representam
a sociedade brasileira.

414
Reênciasfer ácasbilogr

CASA-NOVA, Maria J. A relação dos ciganos com a Escola Pública: contributos para
a compreensão sociológica de um problema complexo e multidimensional. Dispo-
nível em: http:// www.eses.pt/interaccoes. Acesso 20/11/2008.

COSTA, Elisa M.L. Ciganos em terras brasileiras. Revista de História da Biblioteca


Nacional, ano 2, no. 14, Novembro, 2006.

COSTA, Jenima G. e SILVA, Sidinea F.G. Tratamento Constitucional à minoria cigana:


a situação do cigano brasileiro. Anais SCIENCULT – UEMS, V. 1, n.1, Paranaíba, 2009

FRASER, Angus. História do povo cigano. Lisboa, Editorial teorema, 1997

MACHADO, Lia Osório. Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, es-
paços vazios e a idéia de ordem (1870-1930). In: CASTRO, Iná Elias; GOMES, Paulo
César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: Conceitos e Temas. 8.ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p.309-352.

MOONEN, Frans. Anticiganismo: Os ciganos na Europa e no Brasil.Centro de Cultura


Cigana, Juiz de Fora, MG., 2008. Documento disponível em http: www.dhnet.org/
direitos/sos/ciganos. Acessado em 10 de Julho de 2009.

REZENDE, Dimitri. Transnacionalismo e Etnicidade: a Construção Simbólica do


Romanesthàn (Nação Cigana). Dissertação de mestrado no programa de mestrado
em Sociologia da Universidade federal de Minas gerais (UFMG), 2000.

SIMÕES, Sílvia R.F. Ciganos: perspectivas e desafios emergidos na busca por direitos
fundamentais. Anais do II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e
democracia, UFSC, Florianópolis, 2007.

TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Pe-
trópolis: Vozes, 2010.

415
Elaine Cristina Gireli Alves
Discente do curso de Educação em Direitos Humanos.

Luzidélia Almeida Vidal Aguiar


Discente do curso de Educação em Direitos Humanos.

Michele Anchesqui Nardoto


Formada em Licenciatura em Educação Física e Pós gradu-
ada em Informática na Educação e em Artes Visuais. Dis-
cente do Curso de Educação em Direitos Humanos.

24
ESTUDO DE CASO DE UM ALUNO AUTISTA:
SUJEITO DE DIREITOS

Elaine Cristina Gireli Alves


Luzidélia Almeida Vidal Aguiar
Michele Anchesqui Nardoto

1. Introdução

O contexto histórico-social nos movimenta para entendermos a função de


cada ser, tracejando todo um processo de lutas e conquistas que perpassam o
limite da mediocridade de cada geração, tanto que, na Idade Média, os indiví-
duos relegados à submissão eram pessoas doentes levadas a mendigar. Eram
classificados como: retardado, doentinho, aleijado, surdo-mudo, surdinho,
mudinho, excepcional, mongoloide, débil-mental, doidinho. E muitos viviam
escondidos em lugares isolados, longe do convívio social.
Nesse período, essa prática de mendigar era usada para angariar dinheiro
para os seus gastos. As pessoas (cidadãos) acreditavam que o deficiente assu-
mia a deficiência porque Deus o fez assim e, cada vez mais, estavam incapazes,
limitados a fazer as coisas.
No entanto, esse mesmo contexto histórico provou o contrário. As pes-
soas deficientes têm potencialidades para construir seu pensamento, nada está
estagnado. Por isso, é importante pensar como está sendo a inclusão dos alu-
nos com deficiência em nossas escolas regulares nos tempos atuais.
No decorrer deste trabalho, pretendemos direcionar um novo olhar. Um
olhar crítico, que possibilite uma reflexão dos métodos para se trabalhar com
crianças com deficiência intelectual (DI), como é o caso dos autistas, definido
como transtorno global do desenvolvimento pela CID.10 e como transtorno
autista pela DSM. IV, classificações neurológicas internacionais.
Para tanto, é necessário que haja políticas públicas comprometidas, para
fazer valer os direitos diversos destas pessoas, e conjuntamente com escola,
sociedade e família, participar e acrescentar de forma positiva da vida e da
necessidade de cada cidadão.

417
2. Definindo o papel da educação especial

A Educação Especial se posiciona diante da nova proposta de reforma do sis-


tema educacional brasileiro como um serviço de atendimento especializado,
assegurando serviços de apoio a todos aqueles que apresentem necessidades
educacionais especiais, exigindo, portanto, uma política educacional de quali-
dade, a qual disporá de referenciais legais e educacionais, que são: Declaração
dos Direitos Humanos (1948); Declaração de Salamanca (1994); Constituição
Federal (1988); Lei de Diretrizes e Base da Educação—LDB 9.394 (1996); Po-
lítica Nacional de Educação Especial (PNEE-MEC-1994); Lei Berenice Piana
—12.764 (2012) que institui a Política Nacional de Proteção dos direitos da
Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Buscando, a partir desses referen-
ciais, orientações educacionais e qualidade de ensino.
Portanto, entender um pouco desses direitos nos conduz para esse ensino
de qualidade. Tem-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos – ONU
(10/12/1948) – que, dentre os princípios que mais destacam pela forte influên-
cia que tem exercido, inclusive na Constituição Brasileira, destacam-se: o res-
peito à dignidade humana; à igualdade de direitos; a liberdade de pensamentos
e de escolhas. Destacamos o direito à não discriminação e o direito de toda
pessoa à educação. Sobre o Programa Mundial de Ação Relativo às Pessoas
com Deficiência –(ONU, 1983), o documento afirma que os Países-Membros
devem permitir crescente flexibilidade na aplicação quando recomendável,
nos procedimentos para exames às pessoas com deficiência.
Nas Leis 4.024/61 e 5.692/71, observa-se que não havia um capítulo
direcionado para essa modalidade educacional. Somente em 1961 verifica-se
a falta de compromisso do ensino público, tanto que, em 1971, o texto indi-
cará um tratamento especial a ser regulamentado pelos Conselhos de Educa-
ção, processo que se estendeu nessa década. Na vigência da Lei N° 5.692/71,
motivou-se numerosas ações de dinamização da educação e amparo aos ex-
cepcionais, e na Lei N°7.853/89, teremos o Disposto sobre o apoio às pessoas
com deficiências, sua integração social, assegurando o pleno exercício de seus
direitos individuais e sociais.

418
Na Constituição da República Federativa do Brasil (1988), teremos alguns
capítulos direcionados inteiramente à educação especial, como:

Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família será


promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.

Art. 206 – O ensino será ministrado com base nos seguinte princípio:
I — Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.

Art. 208 — O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a


garantia de:
I – Ensino Fundamental obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele
não tiveram acesso na idade própria.
II – Atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino.

Já a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)— 9394/96,


em seu Art. 58, entende a educação especial como modalidade de educação
escolar oferecida, preferencialmente, na rede regular de ensino, se estendendo
da Educação Básica até a Educação Superior, para educandos portadores de
necessidades educativas especiais, e prevê a criação de serviços de apoio es-
pecializado, na escola regular, atendendo ás peculiaridades. Prevê, também, a
criação de serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender às
peculiaridades da clientela de educação especial.
No art. 59, verifica-se que serão os Sistemas de Ensino que assegurarão
aos educandos com Necessidades Educacionais Especiais: currículos, méto-
dos, técnicas, recursos educativos e organização específica para atender as
suas necessidades.
Foi a partir da reunião em Salamanca, onde aconteceu a Conferência
Mundial Sobre Necessidades Educativas Especiais – Declaração de Salamanca,
1994, na Espanha, que se reafirmou o compromisso com a Educação Para To-
dos, reconhecendo a necessidade e a urgência de ser o ensino ministrado no

419
sistema comum de educação a todas as crianças, jovem e adulto com neces-
sidades educacionais especiais discriminatórias, criando comunidades solidá-
rias, constituindo uma sociedade inclusiva e atingindo a Educação Para Todos.

3. Conhecendo o autismo

Segundo Wing (1989), autismo é uma síndrome definida por alterações pre-
sentes desde idades muito precoces, tipicamente antes dos três anos de idade,
e que se caracteriza sempre por desvios qualitativos na comunicação, na inte-
ração e no uso da imaginação.
O autismo foi descrito pela primeira vez em 1943, pelo Dr. Leo Kanner
(médico austríaco, residente em Baltimore, EUA), em sua publicação intitulada
Distúrbios do Contato Afetivo.

3.1 Incidência

A incidência do autismo é medida de acordo com o critério utilizado por cada


autor. Bryson e Col.(1988), em estudo no Canadá, chegaram a uma estimativa
de 1:000, isto é, em cada mil crianças nascidas, uma seria autista. Segundo a
mesma fonte, o autismo seria duas vezes e meia mais frequente em pessoas do
sexo masculino do que em pessoas do sexo feminino. O autismo incide igual-
mente em famílias de diferentes raças, credos ou classes sociais.

3.2 Causas

O autismo infantil é definido como transtorno global do desenvolvimento pela


CID. 10 e como transtorno autista pela DSM. IV. TR, o mais recente esquema
internacional de diagnóstico.
As causas do autismo são desconhecidas. Acredita-se que a origem do
autismo esteja em anormalidades em alguma parte do cérebro ainda não de-
finida de forma conclusiva e, provavelmente, de origem genética. Além disso,
admite-se que possa ser causado por problemas relacionados a fatos ocorridos
durante a gestação ou no momento do parto.

420
Já que as causas não são totalmente conhecidas, o que pode ser reco-
mendado em termos de prevenção do autismo são os cuidados gerais a todas
as gestantes, especialmente cuidados com ingestão de produtos químicos, tais
como remédios, álcool ou fumo.

3.3 Manifestações artísticas

O autismo não é uma condição de “tudo ou nada”, mas é visto como um con-
tinuum, que vai do grau leve ao severo.
A definição de autismo adotada para efeito de intervenção é que o autismo
é uma alteração do comportamento que consiste em uma tríade de dificuldades:

3.4 Dificuldades de comunicação

A dificuldade de comunicação caracteriza-se pela dificuldade em utilizar


com sentido todos os aspectos da comunicação verbal e não verbal. Isto
inclui gestos, expressões faciais, linguagem corporal, ritmo e modulação na
linguagem verbal.
Portanto, dentro da grande variação possível na severidade do autismo,
podemos encontrar uma criança sem linguagem verbal e com dificuldade na
comunicação por qualquer outra via, o que inclui ausência de expressão facial
ou expressão facial incompreensível para os outros e assim por diante, como
podemos, igualmente, encontrar crianças que apresentam linguagem verbal,
porém repetitiva e não comunicativa.
Muitas das crianças que apresentam linguagem verbal repetem simples-
mente o que lhes foi dito. Esse fenômeno é conhecido como ecolalia imediata.
Outras crianças repetem frases ouvidas há horas ou, até mesmo, dias
antes; é a chamada ecolalia tardia.
É comum que crianças autistas inteligentes repitam frases ouvidas ante-
riormente e de forma perfeitamente adequada ao contexto, embora, geralmen-
te, nestes casos, o tom de voz soe estranho e pedante.

421
3.5 Dificuldades de socialização

Este é o ponto crucial no autismo e o mais fácil de gerar interpretações. Impli-


ca em relacionar-se com os outros, compartilhar sentimentos, gestos e emo-
ções e a discriminação entre diferentes pessoas.
Muitas vezes a criança apresenta-se muito afetiva, aproximando-se das
pessoas, abraçando-as e mexendo, por exemplo, em seu cabelo, ou mesmo
beijando-as, quando na verdade ela adota indiscriminadamente esta postura,
sem diferenciar pessoas, lugares ou momentos. Essa aproximação usual-
mente segue um padrão repetitivo e não contém nenhum tipo de troca ou
compartilhamento. Contudo, o ambiente escolar pode oferecer modelos sa-
tisfatórios de relacionamento a esses alunos, o que propicia a flexibilidade
desses comportamentos.
A dificuldade de socialização faz com que a pessoa autista tenha pouca
consciência da outra pessoa. Isso é responsável, em muitos casos, pela falta
ou diminuição da capacidade de imitar, que é um dos pré-requisitos para o
aprendizado, e também pela dificuldade de se colocar no lugar do outro e de
compreender os fatos a partir da perspectiva do outro.

3.6 Dificuldades no uso da imaginação

Caracteriza-se por rigidez e inflexibilidade e se estende às várias áreas do pen-


samento, linguagem e comportamento da criança. Isso pode ser exemplificado
por comportamentos obsessivos e ritualísticos, compreensão literal da lingua-
gem, falta de aceitação das mudanças e dificuldades em processos criativos.
Essa dificuldade pode ser percebida por uma forma de brincar despro-
vida de criatividade e pela exploração peculiar de objetos e brinquedos. Uma
criança autista pode passar horas a fio explorando a textura de um brinquedo.
Em crianças autistas com a inteligência mais desenvolvida, pode-se perce-
ber a fixação em determinados assuntos, na maioria dos casos incomuns em
crianças da mesma idade, como calendários ou animais pré-históricos, o que é
confundido, algumas vezes, com nível de inteligência superior.
As mudanças de rotina, com mudanças de casa, dos móveis ou, até mes-
mo, de percurso, costumam perturbar bastante algumas destas crianças.

422
3.7 Como é feito o diagnóstico de autismo

O diagnóstico de autismo deve ser feito por uma equipe de profissionais com
experiência no diagnóstico dessa síndrome.
O diagnóstico de autismo é feito, basicamente, através da observação
do comportamento.
Não existem testes laboratoriais específicos para a detecção do autismo.
Por isso, diz-se que o autismo não apresenta um marcador biológico.
Normalmente, solicitam-se exames para investigar condições (possíveis
doenças) que têm causas identificáveis e podem indicar outras síndromes as-
sociadas ao autismo, como: a síndrome do X-frágil, Fenilcetonúria, Esclerose
Tuberosa, Moébius Dow, etc.
Quanto mais precocemente for iniciada uma intervenção pedagógica,
mais oportunidades de desenvolvimento as pessoas com autismo terão.

4. Conhecendo a história de um autista

RELATO DA MÃE
Quando tudo começou…

“Quando tinha um ano e meio, comecei a desconfiar que ele fosse surdo.
Nós o chamávamos, mas ele não respondia”.

Além desse comportamento acima citado pela mãe, o atraso na lingua-


gem, alteração de comportamento (hiperatividade acentuada), entre outros, foi
o motivo pelo qual os pais de A.P.L o levaram ao médico. Com base em entre-
vistas semidirigidas e anamnese com os pais e observação lúdica da criança,
foi diagnosticado a síndrome aos 2 anos de idade.
Logo após o diagnóstico confirmado, a família buscou conhecer e enten-
der a síndrome do autismo. Foi percebida a necessidade de um tratamento e
uma intervenção pedagógica precoce, para que a criança aprendesse a se rela-
cionar com a família e o mundo que a cercava. Além disso, passaram a unir-se

423
a organizações que defendem os direitos e promovem a cidadania plena das
pessoas com autismo e suas famílias.
Mudanças de rotina e mudança de percurso costumam perturbar bastante
a criança autista. Sabendo dessa característica do autista, sua mãe acredita que
a mudança de um estado para outro (moravam no estado do Pará-PA), talvez
tivesse sido a razão pela qual o seu filho, inicialmente, não tivesse conseguisse
se adaptar à primeira escola no município de São Mateus-ES, no qual perma-
neceu por menos de 30 dias.
A escola, lugar onde se educa para a vida em sociedade, para o respeito
às leis e para o cumprimento dos deveres de cidadão, declarou que não poderia
continuar com um aluno autista, alegando despreparo dos seus professores em
lidar com crianças autistas. Não sabia a determinada escola que os sujeitos de
direitos se constroem de forma processual e em interação com outros huma-
nos, com o ambiente cultural e o ambiente natural.
Infelizmente esse não é um caso excepcional. Está na lei, mas o direito
das crianças autistas estudarem em escolas regulares com a atenção devida é
ainda um sonho distante.
Sendo assim, foi procurada outra escola para que o aluno, com calendá-
rio escolar atrasado não perdesse o ano. Essa outra escola o recebeu, fez sua
matrícula e imediatamente solicitou à Secretaria Municipal de Educação que,
com urgência, enviasse uma professora de apoio. Com a demora em chegar a
bidocente, foi preciso acionar a defensoria pública para que, amparada pelos
direitos do autista, interviesse junto à Secretaria Municipal e escola. A partir
de então foi disponibilizado uma professora para ajudar a professora regente
na execução das atividades.

4.1 Relatando a prática

Matriculado no primeiro ano do ensino fundamental, A.P.L., 6 anos, autis-


ta, demonstrou no primeiro momento apatia com a escola e com a profes-
sora bidocente. Corria pelos corredores, chorava muito, apresentou ausência
de limites e regras, agitação psicomotora e agressividade. Como foi difícil a
socialização imediata, houve resistência com a sala de aula regular. A escola
disponibilizou uma sala extra para o atendimento do aluno.

424
A professora contratada pela rede municipal buscou através do método
educacional TEACCH, que é o mais eficaz para atender o aluno com autismo,
uma rotina diária, tendo na sala o mínimo de informação possível nas paredes.
A docente trabalhou com estratégias comportamentais, metodologias específi-
cas, com atividades significativas e adequações didático-pedagógicas necessá-
rias, contribuindo para avanços no relacionamento social, na comunicação com
o aluno no âmbito escolar, a atingir as características peculiares do autista.
No inicio dos trabalhos, em observação da linguagem escrita do aluno,
o mesmo chegou à escola com garatujas desordenadas, rabiscos e linhas pa-
ralelas e sequenciais, reconhecendo apenas as letras do seu nome. Hoje, após
meses de dedicação, o aluno já se encontra em nível silábico alfabético.
Consegue ler palavras simples e compreender o sentido das mesmas. No
entanto, sua leitura se apoia quase exclusivamente na estratégia da decodi-
ficação, o que consiste à linguagem oral. O aluno apresenta dificuldades de
articulação em algumas palavras, emitindo palavras soltas.
O recurso utilizado faz com que o aluno fique concentrado mais tem-
po na atividade, o que pode ser um grande ganho. Essa ferramenta tem
se mostrado cada vez mais efetiva na educação de pessoas com autismo,
proporcionando, além da comunicação, um conhecimento de mundo que
favorece o processo de educação: atividade planejada considerando a ludi-
cidade e a criatividade.
Para Scott, Clark & Brad (2000), a abordagem mais recomendada para
ensinar pessoas com autismo é aquela que usa apoios visuais. Os alunos fre-
quentemente demonstram certa força no pensamento concreto, nas rotas de
memória e na compreensão das relações visoespaciais, enquanto demonstram
dificuldades no raciocínio simbólico, comunicação e atenção. Figuras e pistas
escritas podem ajudar os alunos a aprenderem a se comunicar e a desenvol-
verem autocontrole.
Durante os meses trabalhados com o aluno autista, foi possível perceber
que o tempo de concentração é muito reduzido, devido a um repertório restrito
e pouco criativo de interesses e atividades. Além do mais, seus focos de aten-
ção, com frequência mudam rapidamente de um objeto para outro; alguns dias
ele conseguia se envolver nas atividades, realizá-las e noutros não conseguia
assimilar e executar as atividades planejadas.

425
No que se refere à socialização do aluno autista, ponto crucial do autis-
mo, fica difícil realizar uma avaliação mais precisa, devido à inconstância de
seu desempenho nos relacionamentos interpessoais.

4.2 Relatando as ações do município

Para conhecer a realidade do município de São Mateus — ES, acerca da Edu-


cação Especial, foi realizado uma entrevista com a representante da Secretaria
Municipal da Educação Especial. Foi perguntado se há ações que contemplam
a educação especial com recorte para o autismo no município.
“O plano de Ação da Seção da Educação Especial — SME do município de
São Mateus prevê ações que contemplem todo o público da Educação Especial
e suas respectivas famílias, bem como os profissionais que com eles atuem”.
As ações são, por exemplo:

• Reunião mensal com os profissionais que atuam com os alunos espe-


ciais para fins de formação nas diversas áreas da Educação Especial;
• Fórum de pais e reunião com a família, realizado em dois encontros
na sala de recursos para informar sobre a prática da mesma e ouvir os
pais – e um fórum final para que o município, através de alguns repre-
sentantes das secretarias afins, possa apresentar os serviços disponíveis;
• Formação Continuada para os professores regentes que possuem
alunos público-alvo da Educação Especial, abrangendo DI, DA, DV,
entre outras.
• Visita às instituições escolares para acompanhamento, conversa com
as famílias e demais agentes da comunidade escolar;
• entre outras “ações, que emergirem como demanda”.

Crianças com autismo podem desenvolver talentos específicos em deter-


minadas áreas do conhecimento, desde que essas habilidades sejam estimu-
ladas de forma inteligente. Quando perguntada qual a contribuição por parte
do planejamento pedagógico da SME – Seção de Educação Especial para os
professores, em especial ao bidocente, e como acontece a capacitação dos pro-

426
fessores para atuar em sala de aula com alunos DI, ela disse que a capacitação
é feita através das reuniões de estudo mensais com os bidocentes e, para os ou-
tros professores, vem através da proposta do curso de formação que implicará
em uma ação direta na comunidade escolar como um agente multiplicador.
Com relação ao planejamento, o bidocente tem direito a cinco planejamentos
semanais e pelo menos um deles acompanhado pelo pedagogo, que é quem
acompanha e conhece os alunos por eles atendidos. (“de preferência que esse
planejamento seja junto com o professor regente”).
Quanto à adaptação curricular, disse que deve haver sempre que ne-
cessário, sendo garantida e legitimada pela LDB, Lei 9394/96. Agora, quanto
à adequação ou adaptação de currículos e avaliações, depende de como é o
aluno, quais suas necessidades e especificidades, só podendo isso ser realizado
após uma avaliação diagnóstica. O professor especialista que atua na sala de
recursos pode colaborar e orientar nas adaptações.
Quanto às acomodações físicas, o município está estruturando as esco-
las mais antigas, pois nem todas possuem adequações. “As que têm sala de
recursos multifuncional recebem uma verba para acessibilidade e as que não
têm podem solicitar ao setor de construção da prefeitura o serviço para a aces-
sibilidade, como por exemplo: alargamento de portas, corredores, entradas e
adequação de banheiros entre outros”.

5. Conclusão

De acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Educação nº dois de


11 de setembro de 2001, artigo 2º, toda instituição de ensino deve matri-
cular qualquer aluno, cabendo a elas se organizarem e assim, oferecerem
uma educação de qualidade para todos, inclusive alunos com necessidades
educacionais especiais. Mas isso não é o que acontece nas escolas em geral.
É comum encontrar no ensino, professores, diretores e até mesmo funcioná-
rios da educação despreparados, sem nenhum conhecimento ou informação
a respeito dos alunos com algum tipo de necessidade especial, principal-
mente o Autista.

427
Algumas propostas político-educacionais nos dão a impressão de que
as deficiências estão consolidadas nos indivíduos, ou seja, eles não teriam
capacidade de ler, escrever, se socializar, não conseguindo se desenvolver e
progredir. Dessa forma, faz-se com que a inclusão desses alunos não aconteça
nas instituições de ensino, sendo valorizado apenas um ensino especializado,
individualizado e adaptado.
Para que isso não aconteça é de grande importância que o aluno seja
acompanhado por profissionais bem instruídos para que possa obter sucesso
em sua vida. Mas, além desses profissionais, também é preciso que, tanto a
escola em todos os segmentos, quanto as políticas vigentes acerca da educação
especial e famílias estejam caminhando juntas. É preciso que a escola tenha
o conhecimento das especificidades dos alunos com necessidade educacionais
especiais, pois assim, o educador conseguirá saber e entender as dificuldades
e buscar cada vez mais recursos, materiais e projetos que possam ajudar o
desenvolvimento desses alunos.
É necessário que as instituições de ensino reorganizem práticas escolares,
planejamento, currículo, avaliação, valorizando a capacidade de cada criança,
garantindo assim os seus direitos de acesso à educação de qualidade.
A escola abordada neste estudo de caso, diante da chegada do primeiro
aluno autista, superou desafios, promoveu acomodações físicas e eliminou
preconceitos ao reconhecer que o autismo faz parte da diversidade humana.
A escola buscou, ainda, conhecer as características da criança relatada neste
estudo, além de trazer para a professora bidocente uma experiência ímpar e
transformadora para sua prática pedagógica.
Através deste trabalho, foi possível perceber que a educação escolar deve
estar sempre pautada nas leis e consciente do seu papel na sociedade, pois, não
basta apenas aceitar a criança especial, colocando-a no espaço escolar, é pre-
ciso promover o convívio social, o convívio familiar, direito a uma identidade,
à liberdade, à singularidade e à dignidade de ser humano como sujeito de sua
própria história, em promoção à cidadania.

428
Reênciasfer ácasbilogr

Brasil, Ministério da Educação.

Brasília, Ministério da Educação\ SEESP.

CID 10. Transtornos da identidade de gênero. Disponível em: http://www.google.com.


br/#q=CID+10.+Transtornos+da+identidade+de+g%C3%AAnero.

Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, 2001.

DSM.IV. Transtornos da identidade de gênero. Disponível em: http://www.google.com.


br/#q=CID+10.+Transtornos+da+identidade+de+g%C3%AAnero.

Educação Inclusiva: A Família, 2004.

Educação em Direitos Humanos 2/Paulo Velten (org). – Vitória: Universidade Federal


do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2013.

429
Valdineia Gomes das Chagas
Assistente Social com especialização em Saúde Coletiva e Discente no Curso
de Educação em Direito Humanos.

25
VIOLÊNCIA URBANA NA PERSPECTIVA DOS
DIREITOS HUMANOS

Valdineia gomes das chagas

1. Introdução

Atualmente, uma das maiores preocupações da sociedade é o agravamen-


to da violência. Este é um fenômeno que sempre esteve presente na história da
humanidade em todos os modos de produção. Compreendemos, dessa forma,
a violência em suas determinações na sociedade de classes, no modo de pro-
dução capitalista baseada na acumulação, na individualidade e na exploração.
Segundo IANNI (2004), a violência é um fenômeno eminentemente his-
tórico, à medida que se constitui no curso dos modos de organização social e
técnica do trabalho e da produção, das formas de sociabilidade e da correlação
das forças sociais. Este fenômeno pode atingir sujeitos singulares e/ou cole-
tivos, selecionando uns e esquecendo outros. Apresenta conotação político-
econômica e sociocultural, podendo ser ideológica ou física.
Nesse contexto, as contradições do modo de produção capitalista en-
contram-se mais destacadas nos grandes centros urbanos, onde a aglome-
ração apresenta com maior visibilidade a violência urbana. É nas cidades
que se encontram todos os tipos de violência e é nesse espaço que as frações
da classe trabalhadora, ao sofrerem com a sua posição na divisão social do
trabalho, deslocam-se cada vez mais para as áreas periféricas, originando o
processo de segregação social e espacial. Esse processo manifesta as desi-
gualdades sociais nos territórios, tendo como um dos indicadores a pouca
ou nenhuma infraestrutura em equipamentos e serviços coletivos próximos
às residências.
Nessa perspectiva, há uma conformação urbana nos grandes centros que
culmina com a classificação de bairros nobres, intermediários e periféricos no
município de Vitória/ES (SILVA, 2005). E a violência também impacta essa
conformação, podendo ser percebida em sua paisagem e arquitetura. Nas áreas
nobres e intermediárias, observa-se a construção de condomínios fechados e

431
de casas com muros altos com modernos equipamentos de segurança na ten-
tativa de enfrentamento à violência (ODÁLIA, 1985).
Entretanto, percebe-se que nas regiões periféricas não há as mesmas
condições de segurança e nem de enfrentamento à violência em seu cotidia-
no. Isso é percebido na ausência ou insuficiência de equipamentos e serviços
instalados para o atendimento dos moradores, como: unidades de saúde,
escolas, lazer, habitação, saneamento básico, dentre outros. Esses serviços,
quando instalados pelo Estado, dão-se através de lutas e conquistas dos
movimentos sociais.
A autora ZALUAR (1994), destaca que esse fato é marcado no território
pela distribuição desigual de equipamentos e serviços, o que se caracteriza
por um tipo de violência sofrido pelas classes menos abastadas. Outro tipo
de violência é o estigma que os moradores dessas áreas periféricas sofrem, já
que essas regiões são consideradas e citadas, especialmente, pela mídia como
lugares de violência e de autores da violência, e não daqueles que também
são vítimas da mesma.
Sendo assim, realizou-se este trabalho intitulado “Violência Urbana na
perspectiva dos Direitos Humanos”, com o objetivo de verificar o impacto da
violência urbana em áreas periféricas do Município de Vitória/ES. Delimitou-
se o Bairro da Penha como cenário do estudo, devido às diversas manifesta-
ções da violência, dentre eles, conflitos entre “gangues” rivais, pelas disputas
do domínio do tráfico de drogas na região. A repercussão dos assassinatos
na mídia aumenta uma sensação de insegurança, provocando a resposta do
Estado em ocupar, com a Polícia Militar, o bairro. O clima de insegurança e
de possíveis conflitos propicia a inacessibilidade dos moradores quanto aos
serviços e políticas públicas. Em períodos de conflitos, a população teme a cir-
culação na região e os equipamentos sociais como escolas e unidades de saúde
não funcionam. Não funciona também o transporte público, que em períodos
de conflitos não fazem todo o itinerário na região, como por exemplo, na
parte mais alta do bairro, dificultando o deslocamento dos moradores a outras
regiões da cidade.
Para alcançar o objetivo proposto neste trabalho, buscou-se compreender
o fenômeno da violência urbana, bem como verificar como se deu o seu sur-
gimento, além de informações mais recentes de conflitos violentos na região.

432
Para isso, foi realizado um levantamento bibliográfico, através de livros e
artigos, o qual tratará o fenômeno violência urbana como uma manifestação
e atos violentos advindas da acumulação desigual da riqueza socialmente pro-
duzida. Para abordar o processo de surgimento do bairro, bem como a violên-
cia na região, será realizada a pesquisa documental baseada em jornais e sites
(Jornal Gazeta Online, PMV, IBGE, entre outros).
As motivações para realização deste trabalho surgiram em razão de ex-
periências e aproximações do tema e da realidade vivenciada na região. A
aproximação com o tema se deu, também, em razão da graduação em Serviço
Social, na qual foi possível participar de algumas pesquisas sobre violência, a
partir do que foram percebidas lacunas a serem preenchidas acerca de estudos
e pesquisas sobre esta temática e seu impacto nesse território.
Outra motivação foi o fato de esta pesquisadora ter trabalhado durante
03 anos no Curso de Especialização em Segurança Pública da UFES, o que me
propiciou a participação em debates, palestras e leituras relacionadas à vio-
lência e à segurança pública, contribuindo assim para o interesse em estudar
o assunto. E, finalmente, por ser moradora do Bairro Santos Dumont que fica
muito próximo do Bairro da Penha e constantemente nos deparamos com no-
tícias de conflitos e assassinatos na região.
A perspectiva científica de base utilizada para se chegar aos fins preten-
didos neste trabalho será o materialismo histórico. Nela, o modo de produção
é o que determina o processo social e político.
Gil (2007, p. 40) ressalta que:

Quando, pois, um pesquisador adota o quadro de referência do mate-


rialismo histórico, passa a enfatizar a dimensão histórica dos processos
sociais. A partir da identificação do modo de produção em determinada
sociedade e de sua relação com as superestruturas (políticas, jurídicas
etc) é que ele procede à interpretação dos fenômenos observados […].
A relação infra-estrutura/superestrutura deve ser entendida dialetica-
mente. Não é uma relação mecânica nem imediata, mas se constitui
como um todo orgânico, cuja determinante é em última instância a
estrutura econômica.

433
2. A violência no contexto histórico

Historicamente a violência se mostrou presente em distintos modos de pro-


dução e assume formas e manifestações diferenciadas, tornando-se complexa
com novas determinações a partir da revolução das forças produtivas e do
desenvolvimento das relações de produção (comunidade primitiva, escravista,
feudal e capitalista).
Como análise entre as formações sociais, nas sociedades tribais, não ha-
via exploração do homem pelo homem. A divisão do trabalho consistia em
uma divisão natural, a diferenciação de idade e gênero, assumindo, assim,
um caráter fisiológico. Essa divisão tem seus elementos ampliados quando as
famílias ou tribos se aproximam e realizam troca de produtos entre si. Consi-
derando que essas diversas comunidades possuem meios de produção e meios
de subsistência diferenciados, consequentemente seus produtos, modo de vida
e modo de produção também serão distintos (MARX, 1999).
A violência nessas sociedades se caracterizará na força para se fazer
justiça pelas próprias mãos. Não é a fome nem a necessidade, nem as rivali-
dades comerciais que geram esses conflitos, mas sim as relações de inimizade,
desconfiança ou cuidado. Porém, mesmo com a inexistência de exploração
e dominação sob a subordinação do processo de trabalho, os considerados
inimigos poderiam ser terrivelmente torturados e mutilados antes de serem
devolvidos ao seu grupo (ZALUAR, 1996).
Porém, a análise do fenômeno da violência na historicidade social será
enfatizada a partir do século XIV, período da crise do sistema feudal, no qual
“as suas contradições internas foram potenciadas pelos efeitos do florescimen-
to do comércio, expressos na consolidação crescente de uma economia de base
mercantil” (NETTO & BRAZ, 2007, p.70). Esse processo de transição do modo
de produção feudal, segundo Netto & Braz (2007), ocorreu devido à falta de
recursos para produção, porque:

[…] as terras já cultivadas revelaram-se esgotadas e não havia recursos


técnicos à época para recuperá-las, novas terras apresentavam resulta-
dos pobres e a necessária expansão dos cultivos fez-se à base da redu-
ção de áreas para a pecuária. […] Acresça-se a isso, outro fenômeno – a

434
peste negra que, vinda da Ásia em 1348, dizimou cerca de um quarto 1. […] Do ponto de vista econômico, me-
da população europeia – e ter-se-á o quadro que vai erodir o regime diações de natureza mercantil penetravam
as relações básicas da economia feudal en-
feudal, que parecera tão estável entre os séculos XI e XIV (NETTO &
tre os próprios senhores (a terra começou a
BRAZ, 2007, p.71). ser objeto de transação mercantil) e entre
senhores e servos (as prestações em traba-
lho e espécie começaram a ser substituídas
Nesse contexto, a partir da queda do sistema feudal, as lutas entre as clas-
por pagamentos em dinheiro) (NETTO &
ses fundamentais do modo de produção, proprietários fundiários e camponeses, BRAZ, 2007, p. 71).
aprofundaram-se drasticamente a partir de então, já que os primeiros, para
compensar a redução do excedente econômico de que se apropriavam, tratavam
de acentuar a exploração dos produtores diretos1; e também entre os senhores
instalaram-se conflitos que derivaram em verdadeiro banditismo, configurando
um cenário de confrontos sociais que invadirá o século XVI (NETTO & BRAZ,
2007). Isto como consequência da expulsão dos camponeses de suas terras de
forma violenta pelos senhores, agravando sua condição de manutenção à sua
subsistência, pois não detinham mais a terra como objeto de seu trabalho e não
conseguiam inserir-se nas oficinas manufatureiras com a rapidez para satisfa-
zer as suas necessidades sociais. Assim, foram transformados em “mendigos”,
“ladrões” e “vagabundos”, devido a essas circunstâncias e à organização do tra-
balho na manufatura, que exigia disciplina em suas novas formas de relações
sociais de produção, estas de natureza e mediações mercantis (MARX, 2003).
Para controlar a classe camponesa, no fim do Século XV e início do Sé-
culo XVI, surgiram legislações na Europa contra a vadiagem.

A legislação os tratavam como pessoas que escolheram propositalmente


o caminho do crime, como se dependesse da vontade deles prosseguirem
trabalhando nas velhas condições que não mais existiam (MARX, 2003,
L.I, V. II p. 848).

As leis criadas tratavam os sujeitos com brutalidade e violência, porque


além de serem expropriados e expulsos de suas terras, compelidos a vaga-
bundagem, foram enquadrados na disciplina exigida pelo sistema de trabalho
assalariado, por meio de um grotesco terrorismo legalizado que empregava o
açoite, o ferro em brasa e a tortura (MARX, 2003, L. I, V. II p. 850–851).

435
2. […] A alienação presente na sociedade As transformações no âmbito do trabalho fazem com que a relação entre
“penetra a consciência dos agentes” ere- o criador e a criatura apareça invertida; a criatura passa a dominar o criador.
gindo-se como “sério obstáculo” para que
A essa inversão dá-se o nome de alienação2. Ela é própria da sociedade em que
pudessem estruturar sua consciência social
e política (Martinelli, 1989:115). Conduz ao ocorre a divisão do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção;
fortalecimento da identidade atribuída pelo naquelas em que ocorre a exploração do homem pelo homem, sendo neces-
capitalismo, afirmando “sua função econô-
sário para o surgimento e consolidação do sistema capitalista de produção
mica de fundo ideológico, mais que sua fun-
ção social” (sic). Traduz-se em uma “identi- (NETTO & BRAZ, 2007).
dade reificada” que reproduz a “consciência Nessa perspectiva, a divisão do trabalho e da cooperação nas oficinas
metafísica da burguesia”, incorporando-a tornava os trabalhadores mais produtivos. Porém, a apropriação em pou-
num típico jogo de espelhos, como se fos-
se parte da própria superestrutura (MARTI-
cas mãos dos instrumentos de trabalho provocava transformações súbitas
NELLI apud IAMAMOTO, 2008, p. 286). e violentas no modo de produção, de vida e de trabalho da população
rural expropriada.
3. […] contratado o trabalhador por um sa-
lário diário de, digamos R$ 30,00 (expres-
são do valor real da mercadoria força de Mas essa luta, originalmente, se trava mais entre grandes e pequenos
trabalho de circunstancias do contrato), a proprietários de terras do que entre capital e trabalho assalariado; por
jornada estipulada pelo capitalista só terá outro lado, quando trabalhadores são suprimidos por instrumentos de
sentido para ele se, ao cabo dessa jornada, o
trabalhador produzir um valor superior (ex-
trabalho, ovelhas, cavalos, etc, os atos de violência diretamente aplica-
cedente) ao equivalente aqueles R$ 30,00; dos constituem prelúdio da revolução industrial (MARX, Livro primeiro,
com efeito, o capitalista jamais contrataria Vol I, 1999, p. 490).
um proletário para lhe restituir somente o
valor expresso no salário: seria o mesmo
que trocar seis por meio dúzia; assim, na Marx (1999) afirma que a máquina revolucionou o contrato de trabalho
jornada, contém-se um tempo suplementar estabelecido entre capitalista e trabalhador. Na medida em que, com o surgi-
de trabalho no qual o proletário produz o
mento da industrialização no século XVIII, o trabalho humano passou a ser
valor que excede o equivalente aqueles R$
30,00. É desse valor excedente (que se de- empregado no manuseio das máquinas, que foram criadas e desenvolvidas
signa como mais-valia) que o capitalista se com o propósito de aumentar a produção e consequentemente a mais-valia3.
apropria (NETTO & BRAZ, 2007, p. 100-101). Passou-se então, o capitalista, a empregar mão de obra feminina e infantil
,
nas indústrias, uma vez que não havia a necessidade de força muscular para
trabalhar com as máquinas.
Assim, o poderoso meio de substituir trabalho e trabalhadores, a ma-
quinaria, transformou-se imediatamente em meio de aumentar o número de
assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador, sem
distinção de sexo e idade, sob o domínio direto do capital (MARX, Livro Pri-
meiro, Vol I, 1999, p.451).

436
Os trabalhadores, com o tempo, passaram a questionar sobre o prolon- 4. Um modo de ampliar o tempo de tra-
balho excedente consiste na extensão da
gamento desmedido da jornada diária de trabalho (mais-valia absoluta4) a que jornada de trabalho sem alteração de sa-
estavam submetidos nas indústrias, passando assim a submeter-se à mais- lário: aumentando-se a duração da jornada
valia relativa5 como alternativa imposta pelos capitalistas. (dez, doze, catorze horas etc), conserva-se a
mesma duração de tempo de trabalho ne-
Quando a rebeldia crescente da classe trabalhadora forçou o Estado a di-
cessário e se acresce o tempo de trabalho
minuir coercitivamente o tempo de trabalho, começando por impor às fábricas excedente. Esse modo de incrementar a pro-
propriamente ditas, num dia normal de trabalho, quando, portanto, se tornou dução de excedente a ser apropriado pelo
capitalista designa-se como produção de
impossível aumentar a produção de mais-valia, prolongando o dia de traba-
mais-valia absoluta (NETTO, 2007, p. 108).
lho, lançou-se o capital, com plena consciência e com todas as suas forças, a
produção da mais-valia relativa, acelerando o desenvolvimento do sistema das 5. Quando não dispõe de condições po-
máquinas (MARX, Livro Primeiro, Vol I, 1999, p.467). líticas que lhes permitam a ampliação
da jornada de trabalho, os capitalistas
Somando-se a essa percepção do trabalhador frente à intensificação do
tratam de encontrar meios e modos de
trabalho, tem-se um movimento da classe trabalhadora que vai de encontro à reduzir no seu interior, a parte relativa
instalação e manutenção de máquinas na indústria que ocupavam postos de ao trabalho necessário: se se mantém
um limite para a jornada (por exemplo:
trabalho e disciplinavam tarefas específicas a fim de otimizar o tempo de tra-
oito horas), o que se reduz no tempo de
balho e a produção de mercadorias. Assim sendo, um dos primeiros movimen- trabalho necessário se acresce no tempo
tos da classe trabalhadora contra a classe capitalista, já na industrialização, de trabalho excedente. Com essa alter-
foi a revolta e tentativa de destruição dos instrumentais de trabalho, ou seja, nativa, tem-se a produção de mais-valia
relativa (NETTO, 2007, p. 109).
da própria máquina6.
Dessa forma, verificamos que a divisão da sociedade em classes, a apro- 6. A luta entre o capitalista e o trabalhador
priação dos meios de produção e, consequentemente, a exploração do trabalho remonta à própria origem do capital. Res-
soa durante todo período manufatureiro.
pelos capitalistas, não foi aceita de forma pacífica pelos trabalhadores. Pode-se
Mas só a partir da introdução da máquina
caracterizar esta exploração e subordinação do processo de trabalho pelo ca- passa o trabalhador a combater o próprio
pitalista como um ato eminente de violência, pois afeta a classe trabalhadora instrumental de trabalho, a configuração
nos mais diversos setores da vida social, envolvendo indivíduos e coletivida- material do capital. Revolta-se contra essa
forma determinada dos meios de produ-
des, objetividades e subjetividades. Chega-se à modernidade não como um pe- ção, vendo nela o fundamento material do
ríodo histórico pautado na igualdade social, mas que atinge as ideias, as gentes modo capitalista de produção (MARX, Livro
e as coisas, e a natureza de suas relações sociais de produção (IANNI, 2004). Primeiro, Vol I, 1999, p. 488).

Historicamente, verificamos que o desenvolvimento e formação de uma


sociedade é complexo em todos os níveis, porém, algo que se mantém con-
solidado é a forma capitalista de sobrevivência do indivíduo. Esse modo de
produção manipula indivíduos, coletividades e até mesmo o Estado e o faz de
todas as formas para se manter e também se utiliza de todos os meios, fazendo
com que a violência se torne algo justificável para a sua existência.

437
O capitalismo caracteriza-se pelo desenvolvimento intenso e extensivo
das “forças produtivas”, isto é, capital, tecnologia, força de trabalho,
divisão do trabalho social, planejamento e violência; simultaneamente
ao desenvolvimento das “relações de produção”, compreendendo os
princípios jurídico-políticos da liberdade, igualdade e propriedade, or-
ganizados no contrato e codificados em instituições tais como a empre-
sa, a corporação e o conglomerado, o mercado e o Estado; bem como
em outros institutos codificados em termos jurídico-políticos, entre os
quais estão aqueles relativos ao ensino, saúde, previdência, trabalho,
sindicato, partidos e outros (IANNI, 2004, p. 143).

A violência nos distintos modos de produção caracterizou-se por suas


distintas formas e percepções nas relações sociais de produção, revelando-se
na produção e reprodução contínuas e crescentes de “marginalização”, “exclu-
são”, “pobreza” “miséria” ou “pauperismo” (IANNI, 2004, p. 145). Ela atinge
o ápice de sua complexidade no sistema capitalista contemporâneo, com a
negação do direito ao trabalho, através do desemprego e o subemprego, como
elementos essenciais a manutenção deste sistema socioeconômico.

2.1 As distintas percepções sobre a violência

Pensar a violência na atualidade desvinculada da historicidade e das contra-


dições inerentes ao modo de produção capitalista é incorrer em um equívoco,
uma vez que é nesse modo de produção que se encontra a maior complexidade
das relações sociais de produção.
Para o autor Ianni (2004), a violência tem sido vista sob várias perspec-
tivas, como, por exemplo: uma anomalia, brutalidade, destruição, assassinato,
desastre, catástrofe, que atingem inocentes: pessoas, coisas, ideias e ilusões.
Negam princípios morais prevalecentes na sociedade em que ocorre. Agride
valores universais que norteiam os trabalhos e os dias de uns e outros. Ocorre
na sociedade nacional e na sociedade mundial, sem aviso prévio, sem que uns
e outros possam defender-se. Brutalizam os sentimentos, as coisas, as ativi-
dades e os ideais, as formas de sociabilidade e os jogos das forças sociais, os
modos de ser e os estilos de vida.

438
O autor Odália (1985), ao estudar a temática da violência, cria a seguinte 7. O Estado, dessa forma, tem dupla face:
tipologia: 1) violência institucional; 2) violência política; 3) violência revolu- uma para servir e para garantir direitos a
todos os cidadãos, possibilitando a crítica,
cionária; e, 4) violência social. o diálogo e a negociação; uma outra para
Para esse autor, a Violência Institucional é entendida como uma relação dominar e controlar os subalternos que
de força natural, como se na natureza as relações fossem de imposição. Con- não tem a mesma capacidade de se defen-
der que os poderosos. De um lado, o Estado
tudo, a violência não se institucionaliza apenas por esse lado, existem outras
democrático, instância da lei e da justiça;
formas mais dinâmicas, por serem transformáveis passíveis de serem institu- de outro, o Estado burocrático, instância
cionalizadas, como, por exemplo: do controle e do poder policial. Quando o
uso desse poder acumulado em qualquer
órgão do Estado é excessivo, arbitrário,
A institucionalização da miséria, do sofrimento, da dor, da indiferença chama-se a isso “violência institucional”
pelos outros, da ignorância, do não saber sobre si e sobre sua sociedade, (ZALUAR, 1996, p. 45).
não ocorre porque o homem é mau […] mas pelo simples fato de que
8. A violência política do terrorismo é uma
uma sociedade estruturada para permitir que a competição, o suces-
prática que existiu sempre. Durante mui-
so pessoal individualizado, sejam os parâmetros de aferição do que o tos séculos, porém, o assassinato político
homem é não pode, evidentemente, preparar o homem para ver o seu foi como que um instrumento reservado a
pequena minoria – representada por famí-
semelhante outra coisa que não um concorrente ou uma presa a ser
lias que viviam do e para o poder político.
devorada. (ODALIA, 1985, p. 35). […] eram os laços de sangue que definiam
e permitiam pertencer aos pequenos clãs,
Zaluar (1996) acrescenta que esse tipo de violência surge no Estado Mo- que se perpetuavam no poder político. O
assassinato político como forma de criar
derno7, na medida em que este possui “o monopólio da violência legítima”,
dinastias e sucessões perpassa por toda a
passando a arbitrar os conflitos e a exigir o cumprimento de suas decisões antiguidade, pela Idade Média e pela his-
judiciais. Nesse sentido, é o sistema jurídico que estabelece as normas de com- tória moderna. O povo permanecia alheio
a esses crimes, o que se explica pela sua
portamento, “o que é permitido e o que é proibido”. Estas normas compreen-
impossibilidade de participar ativamente
dem o conjunto de leis de um país, em seu desenvolvimento histórico, expli- da vida política. Sem uma consciência clara
citando a institucionalização da violência. As leis consagram os limites de do que ocorria, a tudo assistia indiferente-
violência permitidos a cada sociedade (ODALIA, 1985). mente. Poucas vezes era o povo chamado a
participar de uma vida política reservada a
Já por violência política, não se deve compreender unicamente a ação poucas famílias e, quando o era, funciona-
terrorista8, ou ações de direita ou de esquerda, cujas atividades são divulgadas va mais como uma massa de manobra com
ou camufladas pelo sistema. Esse tipo de violência assume formas variadas: escassa consciência do que ocorria. O as-
sassinato político, dessa maneira, pode ser
pode ser um assassinato político, a invasão de um país por outro, o desapareci-
considerado, nesses tempos, como um pri-
mento de dissidentes, legislação eleitoral que frauda a opinião pública, leis que vilégio de nobres que se entredevoravam,
não permitem às classes sociais, especialmente o operariado, organizarem seus visando a conquista ou a manutenção de
sindicatos. Ela aparece e é sentida por todos, está em todas as nações; nenhum poder (ODALIA, 1991, p. 49-50).

país, nenhum povo, está livre dessa violência (ODALIA, 1985).

439
9. […] por revolução entendo toda trans- A violência revolucionária é inquestionavelmente, uma violência po-
formação que afeta de maneira essencial lítica; no entanto, ela destaca-se de tal forma que, muitas vezes, a palavra
as estruturas sociais, econômicas, políticas
e culturais, de uma sociedade. A revolu-
“revolucionário9” é usada para justificar movimentos políticos que estão longe
ção deve ser compreendida como um fe- de ser revolucionários. Dessa forma, torna-se essencial distinguir a violência
nômeno global, sua ação e consequências política da violência revolucionária. A explicação, segundo o autor, está no
devem repercutir sobre toda a sociedade
fato de que nenhuma classe social abre mão de seus privilégios, de seu poder,
(ODALIA, 1985, p. 64).
da possibilidade de guiar uma sociedade, apenas obedecendo a um processo
10. “Tomo, como exemplo, a poluição am- histórico de transferência de poderes normal e pacífico (ODALIA, 1985).
biental. É uma violência social e atinge, E, finalmente, a violência social que consiste em certos atos violentos
praticamente, toda população. Todos nós
temos consciência de suas consequências
que atingem, seletiva e preferencialmente, alguns segmentos da população,
terríveis para o homem e para natureza. principalmente os mais desprotegidos, cujos atos são apresentados e justifica-
No entanto, somos obrigados a suportá-la dos como condições necessárias para o futuro da sociedade. Como exemplo,
porque – na lógica do sistema capitalista de
temos a violência social de cunho estrutural10. Esses atos se disseminam por
produção -, impedi-la seria antieconômico
– especialmente, para os países subdesen- todas as partes, eles se oferecem quando abrimos um jornal ou quando assis-
volvidos” (ODALIA, 1991, p. 39). timos à televisão. Eles estão na discriminação racial, nas diferenças entre as
classes sociais, na fragmentação do trabalhador, nos preconceitos políticos, na
separação dos sexos, e assim por diante (ODALIA, 1985).
Perceber um ato como violência demanda do homem um esforço para su-
perar sua aparência de ato rotineiro, natural e como que inscrito na ordem das
coisas. O autor afirma também que o ato violento não traz uma identificação. O
mais óbvio dos atos violentos, a agressão física, pode envolver tantas sutilezas e
tantas mediações que pode ser descaracterizado como violência. Mas quando fa-
lamos de violência, sua face mais imediata é a que exprime pela agressão física,
tanto que atinge diretamente o homem tanto naquilo que possui (ODÁLIA, 1985).

2.2 A violência urbana

Ao se tratar da violência urbana evidencia-se que a violência social e institu-


cionalizada aparece com mais destaque nos grandes centros urbanos, pois fica
mais evidente a separação de classes sociais nessas áreas, essa disparidade entre
as classes que propiciam conflitos, fragmentações e peculiaridades. “A cidade
é síntese de todo o país, de toda a sociedade. É na cidade que se manifesta,
sintetiza, multiplica e explode tudo o que são as criações, frustrações e tensões
da sociedade” (IANNI, 2004, p.159).

440
Segundo Moraes (1985), em áreas urbanas menores, as pessoas estão
mais próximas umas das outras, valendo-se de um espaço menos ameaçador.
Entretanto, nos grandes centros urbanos, o poder exercido sobre esse espaço é
do capital e, consequentemente, das macro-organizações político-econômicas.
A forma de distribuição dos habitantes nos espaços das grandes cidades man-
tém relação com a divisão social do trabalho. Ao observar o espaço físico das
grandes cidades percebe-se que quem manda são as grandes fábricas e isto
se agrava quando o Estado Capitalista protege o capital, deixando de lado a
qualidade de vida do trabalhador.

A cidade, que nasceu da tentativa humana de produzir um espaço soli-


dário, tornou-se, ela mesma, uma mercadoria, perdendo assim sua fina-
lidade primordial e tendo como única razão de se realizar, aumentar e
favorecer o lucro (MORAES, 1985, p.38).

E o autor Lira acrescenta que:

A maneira desigual e contraditória pela qual o espaço urbano é constru-


ído e reproduzido torna a cidade um palco privilegiado para os conflitos
e desentendimentos interpessoais. A violência emana neste contexto e
é influenciada pela segregação social. Da mesma maneira que o espaço
urbano é fragmentado, a violência se desdobra distintivamente atin-
gindo estratos da sociedade de forma diferenciada (LIRA, 2004, p. 11).

É importante ressaltar que no campo também existe a exploração do tra-


balho humano, mas é na cidade que as contradições se concentram e as injusti-
ças são mais claramente visualizadas. E é nesse espaço que a massa prejudicada
da sociedade encontra-se mais destacada. Assim, a segregação social torna-se
um fato que marca visivelmente as grandes cidades, quando a grande massa de
trabalhadores é nitidamente deslocada para áreas periféricas (MORAES, 1985).
No Brasil, a urbanização acelerada, a partir da década de 1950, fez surgir
grandes regiões metropolitanas e muitas cidades no interior do país. Começa-
ram a surgir, assim, os problemas das grandes concentrações urbanas, relati-
vos à habitação, trabalho, saúde, educação, etc. (ZALUAR, 1996).

441
Essa urbanização acelerada, decorrente da industrialização, altera dras-
ticamente a estrutura, expressando as contradições de seu espaço e assim as
cidades expandem-se adquirindo uma forma urbana até então desconhecida.

Contemporaneamente ao novo ciclo de globalização, intensificam-se e


generalizam-se as migrações para os centros urbanos, movimentam-se
amplamente os mercados de força de trabalho, tecnificam-se ainda mais
as atividades agrícolas e pecuárias. Aos poucos, o modo de vida ur-
bano, compreendendo individuação e secularização, mobilidade social
e individualismo, mercado e consumismo, comunicação e informação,
impregna ampla e profusamente a sociedade como um todo, em escala
nacional e mundial (IANNI, p. 153–154).

Nesse contexto, entre os países que vivenciaram o processo de industria-


lização tardia, o Brasil apresenta uma complexa rede urbana. Dessa forma, as
grandes cidades brasileiras apresentam um movimento contraditório: incor-
poram rapidamente as inovações tecnológicas, alteram o modo de vida e, ao
mesmo tempo, segregam, de forma extremamente contraditória, grande parte
das frações dos trabalhadores. A fragilidade das políticas públicas voltadas
à habitação favorece o surgimento de ocupações desordenadas. Essas áreas
destacam-se na paisagem urbana, incorporando-se na organização das cida-
des. Em pouco tempo se tornam símbolo das cidades de países em desenvolvi-
mento, expressão da transferência maciça de trabalhadores do campo para a
cidade (VALENÇA, 2008).
Como exemplo, podemos citar a população do Espírito Santo, que na dé-
cada de 1960, apresentava um índice de 71,6% de moradores nas áreas rurais e
28,4% nas áreas urbanas. Em 1980, a situação já quase se invertia com 64,2%
na área urbana e 35,8% na área rural (MENDONÇA, 2007).
Nesse sentido, é importante discorrer sobre o fato da segregação socioes-
pacial, inerente ao modo de produção capitalista. A segregação socioespacial
caracteriza-se pela diferenciação do acesso à habitação e aos equipamentos
e serviços coletivos e suas infraestruturas, em maior ou menor intensidade, a
depender das diferenciações internas a cada fração de classe. “E está fundada,
em última instância, no direito da propriedade privada dos meios de produ-

442
ção, com particularidades nas cidades dos países periféricos” (SÁ apud SILVA,
2005, p. 33). Trata-se da particularidade do:

[…] processo de concentração espacial dos meios de produção so-


cial (capital e trabalho) e na forma particular em que o espaço
assume a dimensão de suporte material do conjunto de práticas
relacionadas à geração e distribuição das riquezas produzidas e às
condições de vida das diversas frações de classe sociais (SÁ apud
SILVA, 2005, p.33).

Dentre os equipamentos colocados a disposição da população pelo Es-


tado, temos que destacar o item segurança, que se faz mais presente em áreas
nobres em detrimento de regiões periféricas. Nota-se, portanto, que os eleva-
dos índices de violência nas áreas periféricas mantêm relação com a ausência
do Estado, propiciando o surgimento de atividades ilícitas, como, por exemplo,
o tráfico de drogas, marcante na violência urbana.

A cidade é uma síntese literal e metafórica da sociedade, na qual preva-


lecem a riqueza e a pobreza, lado a lado com a integração e a fragmen-
tação. São muitos os que padecem a pauperização e a lumpenização,
classificados eufemisticamente como “pobres”, “miseráveis, “margina-
lizados” […]”; seres humanos transformados em sucata, graças à lógi-
ca de destruição criativa. É a mesma fábrica da sociedade burguesa,
moderna ou capitalista que produz a riqueza e a pobreza, a alegria e a
tristeza (IANNI, 2004, p.156).

Na década de 1980, os crimes violentos, principalmente os assaltos, o


sequestro e os homicídios, começaram a aumentar rapidamente em várias ci-
dades. O aumento dos homicídios foi relacionado principalmente à faixa etária
entre 15 e 29 anos. E deslocou-se dos crimes de sangue para crimes cometidos
entre desconhecidos em locais públicos, exatamente o padrão encontrado nas
guerras pela divisão de território entre quadrilhas de traficantes, ou decorren-
tes da rivalidade violenta entre “gangues” (ZALUAR, 2004).

443
11. A população estimada de Vitória no ano 2.3 A violência urbana no bairro da penha
2013 é de 348.268 habitantes. Enquanto
a capital Rio de Janeiro é de 6.320,446 no
É certo que a causa da violência urbana não se deve a um único fator, mas sim
mesmo ano (IBGE, 2013).
a um conjunto de fatores. Um exemplo disso é a capital, Vitória, que mostra
12. As desigualdades se revelam quando um elevado índice de homicídios em comparação com outras capitais, como
as pessoas são sistematicamente excluídas
por exemplo, Rio de Janeiro. Apesar de Vitória11 possuir um número expres-
dos serviços, benesses e garantias, tidos
em geral como direitos sociais de cidada- sivamente menor de habitantes e uma malha urbana menos complexa que a
nia, oferecidos ou assegurados pelo Estado, do Rio de Janeiro, dados levantados por pesquisadores mostram Vitória como
ou ainda quando não conseguem exercer uma das capitais mais violentas do país.
direitos civis ou humanos, os chamados di-
reitos formais das constituições nacionais
O Mapa da Violência realizado por Waiselfisz (2012) traz uma tabela das
e demais leis escritas ou das declarações regiões metropolitanas por taxas de homicídios em 100 mil habitantes. Esse
universais do homem. Aparecem igual- documento aponta que o município de Vitória ocupou a 4º posição no ano de
mente quando as pessoas não conseguem
2010, mostrando-se como uma das mais violentas capitais do país, enquanto a
ou não são capazes de exercer sua crítica
a essas leis e, principalmente, ao funciona- capital do Rio de Janeiro ocupou a posição 22º. As cidades de Maceió, Belém,
mento efetivo do sistema de justiça […]. Por João Pessoa e Salvador ocuparam respectivamente as posições de 1º, 2º, 3º, 4º
isso esses direitos não são reais e apontam
e 5º lugares com relação às taxas de homicídios.
para o descompasso entre a letra da lei e as
práticas institucionais, um problema ainda É certo que a má distribuição de renda, riqueza e recursos urbanos de
grave no país (ZALUAR, 2004, p. 151). toda ordem (serviços e equipamentos coletivos) mostram a desigualdade12
existente na sociedade e, nesse contexto, podemos destacá-los como um dos
grandes fatores da violência urbana (LIRA, 2004).
Assim, para darmos ênfase à questão da violência urbana no Bairro da
Penha, objeto deste trabalho, faz-se necessária breve referência do desenvol-
vimento da capital do Estado, Vitória, município que apresenta aproximada-
mente 348.268 habitantes.

É um arquipélago composto por 33 ilhas e uma porção continental; in-


tegra uma área geográfica de grande nível de urbanização. Trata-se da
região metropolitana, compreendida pelos municípios de Vitória, Vila
Velha, Serra, Cariacica, Viana, Guarapari e Fundão. Em seu território,
40% de sua área é coberta por morros (PMV, 2013).

Nas décadas de 1960, 1970 e 1980 as ocupações foram intensificadas,


destacando-se o surgimento dos principais bairros da cidade. Contudo, a dé-
cada de 1990 caracterizou-se pela urbanização e adensamento dos bairros. A

444
malha urbana da região estende-se em todas as direções. No entanto, os limites
do município com a baía e o oceano, limitaram seu crescimento horizontal,
pois, caso não houvesse essa delimitação geográfica, ela ligar-se-ia efetiva-
mente com os municípios limítrofes (Vila Velha, Cariacica e Serra) (PMV, 2010).
A organização do Município de Vitória em bairros é regulamentada pela
Lei 6.077/2003, assim como a divisão da cidade em regiões administrativas.
Dessa forma, Vitória está dividida em oito regiões administrativas.
Dentre essas regionais, o Bairro da Penha encontra-se na regional IV
que compreende 12 bairros no total: Joana D’arc, Tabuazeiro, Maruípe, São
Cristóvão, Santa Marta, Andorinhas, Santa Cecília, Santos Dumont, Bonfim,
Da Penha, Itararé e São Benedito.
O Bairro da Penha está situado no Município de Vitória/ES, tendo por
limites os bairros Itararé e Bonfim. A ocupação inicial do bairro da Penha se
deu na década de 1950, orientada pelo Sargento Carioca, considerado uma
liderança para os moradores. Ele demarcava e indicava os lotes a serem ocu-
pados, incentivando os processos de invasão. Os primeiros moradores eram
pessoas das proximidades e migrantes do interior do Estado, norte de Minas
Gerais, norte do Rio de Janeiro e do sul da Bahia (PMV, 2013).
O perfil inicial do bairro era de muita pobreza, as casas construídas eram
de estuque ou de madeira, cobertas por folhas de coqueiro ou palha, aos pou-
cos foram construindo barracos de madeira que foram substituídas no decorrer
de vários anos por casas de alvenaria (PMV, 2013).
O Bairro da Penha apresenta as características físicas e sociais de uma co-
munidade pertencente a uma região de periferia, na qual é possível encontrar
todas as contradições sociais, como: tráfico de drogas, segregação, ausência do
Estado no que tange às políticas públicas, entre outros fatores, exprimindo de
forma clara as principais causas da violência urbana.

Nos bairros mais sofisticados, a arquitetura se adapta à violência urbana


que busca conquistar os espaços exteriores. Vinte ou trinta anos atrás,
o espaço visual era ampliado, pois as residências eram projetadas para
fora, com grandes jardins (ODALIA, 1985).

445
“A violência e a expectativa dela deixaram muitos traços na paisagem
urbana atual”. […] Os modernos condomínios de São Paulo, Nova York,
Los Angeles e outras cidades, com sua segregação espacial, seus altos
muros ou cercas e guardas de segurança na entrada – para não mencio-
nar os cães e os sistemas de alarme – são outro sinal da expectativa da
violência (OLIVEIRA, 2002, p. 42).

O capitalismo mostra-se como um sistema capaz de absorver e se ade-


quar a todo e qualquer fato, unindo-se às contradições. Satisfaz por um lado
ao mesmo tempo em que se beneficia. Por exemplo, quando se utiliza da in-
segurança e da sensação de medo da população para gerar mais capital, como
é o caso da indústria de serviços de segurança privada, que cresce a cada dia,
trazendo a todo o momento novas tecnologias para proteger aqueles que po-
dem pagar por esses serviços.
Entretanto, nos bairros periféricos, a violência não pode ser escorraçada
e evitada com cercas e muros, é uma realidade com a qual se convive, e é
enfrentada como tantas outras calamidades que se enfrentam no cotidiano.
No cotidiano dos moradores do Bairro da Penha, a deterioração insti-
tucional e a desagregação da comunidade, por conta da violência, se fazem
presentes, conforme mostram reportagens e matérias de jornais. Os mora-
dores presenciam homicídios, repetidos tiroteios, brigas entre grupos rivais
pelo domínio de regiões, buscando uma supremacia afirmada quase sempre
através da violência. Um exemplo dessa violência presenciada pelos mora-
dores está na reportagem do Jornal Gazeta online do dia 31/07/2013 que traz
a seguinte matéria:

Criminosos armados, circulando por lajes de casas e atirando para to-


dos os lados. A cena foi registrada em vídeo por um morador do Bair-
ro da Penha, em Vitória, na última terça-feira. Um policial militar foi
ferido com um tiro no rosto, quando fazia um patrulhamento de car-
ro pela região. Desde então, o policiamento no bairro foi reforçado.
No vídeo é possível ver os bandidos efetuando disparos e se escondendo
por entre as residências. Com uma camisa cobrindo a cabeça, um deles
aponta a arma para um alvo, mas não é possível ver qual o objetivo do

446
criminoso. De acordo com informações da Secretaria de Segurança Pública
do Estado (Sesp), duas gangues rivais trocavam tiros na região. […] Ao che-
gar ao local indicado, policiais foram surpreendidos com o tiroteio. Após
o tiroteio que deixou um policial militar ferido no Bairro da Penha, o poli-
ciamento no bairro foi reforçado. […] mais de 50 homens reforçam a segu-
rança em viaturas e a pé e motos na região (GAZETA ONLINE, 31/07/2013).

E ainda segundo o mesmo jornal:

Uma criança de 12 anos foi assassinada a tiros no Bairro da Penha, em


Vitória, na noite deste sábado (4). De acordo com a família, ele tinha
envolvimento com o tráfico de drogas. A polícia disse que ele foi morto
dentro de uma casa no Beco 2, um dos lugares mais perigosos do bairro
e ponto de tráfico. […] a Gangue do Beco 2, como é conhecida, está
sempre em conflito com outras gangues do bairro e de morros vizi-
nhos. O menino tinha a função de olheiro do tráfico, segundo a polícia
(GAZETA ONLINE, 05/05/2013).

Entretanto, percebe-se que as ações do Estado quanto ao enfrentamento


da violência urbana no Bairro da Penha são isoladas e em períodos pré-deter-
minados, sempre diante de algum acontecimento ou suspeita.

Um tiroteio  na região de São Benedito e bairro da Penha, em Vitória,


fez com que a Polícia Militar reforçasse a segurança no local na noite
desta segunda-feira (27). Segundo a polícia, ninguém ficou ferido e tudo
indica que os disparos foram feitos por suspeitos de tráfico de drogas
contra gangues rivais, por volta das 20h. […] A região é marcada pela
intensa violência oriunda do tráfico e o bairro já esteve ocupado pela
Polícia Militar (GAZETA ONLINE, 28/05/2013).

Em períodos de conflitos entre grupos rivais e de ocupação da polícia


no bairro, a rotina dos moradores passa a ser alterada. Seja pela escola que
não abre, seja pela dificuldade de deslocamento dos moradores, uma vez que

447
13. Educação especial para alunos superdo- nesses momentos o transporte público não circula em grande parte do bairro,
tados ou com deficiência. como é mostrado na reportagem abaixo:

14. Educação Especial para alunos com


surdez. Durante a semana, a Polícia Militar ocupou o Bairro da Penha devido a
um toque de recolher ordenado pelo tráfico. Os bandidos impediram que
15. Escolas Municipais de Ensino Funda-
os ônibus que servem a comunidade subissem até o ponto final, no alto
mental que atendem em horário integral.
do morro. Motoristas dos coletivos chegaram a ser ameaçados com arma
apontada para a cabeça (GAZETA ONLINE, 30/03/2012).

Assim, encontramos uma realidade quanto às políticas públicas que, de


certa forma, generalizam suas ações, não tratando de forma mais específicas
questões como a deste bairro. Toda a problemática enfrentada pelos morado-
res reafirma o abandono das regiões de periferia pelo poder local, seguindo
a lógica do capital, deslocando recursos para outros interesses e que não se
enquadram em áreas precárias como mostra a tabela abaixo:

Tabela 1 – Equipamentos em bairro periférico, nobre e intermediário

Equipamentos Bairro da Penha Praia do Canto Jardim Camburi

Nudec’s 0 0 0

Cajun 01 0 0

Centro de Convivência para a Terceira Idade 0 0 01

Grupo de convivência para terceira idade 0 01 01

Casa Lar 0 0 01

Educação Especial13 0 01 0

Educação Especial14 0 0 01

EJA 0 0 01

Educação em Tempo Integral15 0 0 01

EMEF 01 0 03

448
Continuação da tabela 1

CEMEI 0 0 02

EEEM 0 0 01

EEEFM 0 01 0

Unidade de Saúde 01 0 01

Hospital 0 02 01

Telecentros 0 0 01

Linhas de Ônibus 01 01 10

Total de equipamentos 04 04 14

Fonte: (PMV, 2013)

Fazendo uma análise da tabela que se refere a três regiões do municí-


pio de Vitória: Bairro da Penha, Praia do Canto e Jardim Camburi, encontra-
mos uma disparidade na distribuição dos equipamentos públicos. O bairro
Jardim Camburi, considerado um bairro intermediário, possui o maior número
de equipamentos e serviços. Nele residem os profissionais liberais e outros
com nível elevado de escolaridade. No bairro da Praia do Canto, área nobre,
considerando que as pessoas que residem neste podem pagar pelos serviços
ofertados pelo setor privado, apresenta a mesma quantidade de equipamentos
públicos em comparação ao Bairro da Penha, área periférica, cujos moradores
necessitam de maior infraestrutura advindas das políticas públicas e sociais.
A ausência de intervenção do Estado em regiões periféricas contribui
para o aumento da violência, uma vez que, se o poder público não atua de for-
ma a garantir o “Estado de Direito”, outros o irão fazer de forma adversa e de
acordo com suas leis, criando nessas áreas uma região de domínio e violência.

449
3. Conclusão

O estudo sobre a temática da violência urbana não pode ser dissociado da es-
trutura e superestrutura do modo de produção capitalista na qual se sustenta a
sociedade contemporânea. Isto porque se agravaram nesse contexto o processo
de segregação socioespacial e as manifestações da violência urbana, oriun-
das da divisão social do trabalho, impedindo frações da classe trabalhadora o
acesso ao trabalho, quando estas são expropriadas dos objetos e dos meios de
trabalho para sua manutenção.
Nessa perspectiva de análise, compreender a violência urbana que se
manifesta no Bairro da Penha, é entender as relações de produção construídas
historicamente pelos homens, enquanto ser social, para além de classificar sua
condição de bairro periférico, mas entender o que o faz assim ser. Nesse sen-
tido, é necessário também compreender o lugar que os moradores ocupam na
divisão do trabalho e na correlação de forças, nas lutas sociais.
Assim, apresentou-se, aqui, que a violência no Bairro da Penha está as-
sociada ao tráfico de drogas e a coerção que este impõe perante a esta comu-
nidade, o qual busca através da violência exercer o seu domínio na região, o
que altera o cotidiano dos moradores, trazendo prejuízos em relação ao acesso
aos seus direitos, dificultando o acesso aos serviços públicos e do exercício do
seu direito de ir e vir.
O Estado, ao enfrentar essa problemática, atua de forma localizada e
temporária no que diz respeito à violência na região. Atua de forma insu-
ficiente quanto a garantir serviços na área de educação, saúde, habitação,
segurança, lazer, etc. Isso contribui para o aumento da violência e para a se-
gregação social, pois ao mesmo tempo em que está inserida no espaço urbano,
está também isolada/segregada socialmente.

450
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453
Marlene Aparecida da Silva,
Penha Beltrame, Vanda Maria Moreira
Graduadas em Pedagogia, com especialização em Educa-
ção Especial e Inclusiva. Atuantes no Ensino Regular pela
rede estadual de ensino e na APAE- São Mateus. Discentes
no Curso de Educação em Direitos Humanos.

Camila Côgo
Especialista em Gestão Pública. Assistente Social, Profes-
sora na UNISAM e Tutora Presencial do Curso EDH.

26
DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA INCLUSÃO
EDUCACIONAL NO CONTEXTO DO ENSINO REGULAR

Marlene Aparecida da Silva


Penha Beltrame
Vanda Maria Moreira
Camila Côgo

1. Introdução

O direito à inclusão do deficiente é assegurado e sua fundamentação legal se


dá, principalmente, na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional e no Estatuto da Criança e do Adolescente, além de sua
estrutura geral e posicionamento nas esferas administrativas governamen-
tais, em nível federal e estadual. É tarefa do professor (consequentemente, da
escola) fazer valer esse direito humano.
Um ponto muito importante é o atendimento educacional especializado e
as modalidades de atendimento da Educação Inclusiva, de acordo com a filo-
sofia governamental, bem como os profissionais envolvidos nesta educação, o
papel dos professores, dos especialistas, fazendo a assistência desses alunos e
a necessidade cada vez maior da sua formação profissional adequada.
Desde a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Ado-
lescente de 1990 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, também a
Declaração Mundial de Educação para Todos e Declaração de Salamanca, além
de muitas outras leis, decretos, portarias e resoluções, que a educação voltada
à inclusão dos deficientes vem buscando sua implantação, seu processo e seu
espaço para garantir a toda criança/adolescente o direito à educação, mostra
a importância que as escolas têm e precisam adaptar os seus espaços físicos,
currículos, reavaliar seus métodos e suas técnicas, reorientar seus recursos
pedagógicos e organizar-se de maneira específica de tal forma que atenda
satisfatoriamente a todas as especificidades de seus alunos.
Também é relevante destacar que não adianta realizar as adequações arqui-
tetônicas, viabilizar a acessibilidade se a escola não puder prestar a inclusão social
indispensável ao educando especial, o que é garantido pelos direitos humanos.

455
Para tal, o Gestor deverá desenvolver um trabalho de sensibilização jun-
to aos alunos, professores e comunidade escolar, antes mesmo do aluno espe-
cial ingressar na escola, para que seus direitos sejam garantidos e a inclusão
aconteça de fato.
No decorrer do trabalho ficará mais claro que nem todas as escolas apre-
sentam um especialista em Educação Inclusiva no seu quadro de profissionais,
cabendo ao docente, ao gestor e aos pedagogos essa função, em que buscarão
através de mecanismos próprios a integração do deficiente junto aos demais e
a sua devida participação no processo de ensino-aprendizagem.

2. A Evolução da educação especial

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde sua promulgação, em


1948, visa o atendimento aos direitos básicos dos cidadãos. Com ela, as ações
que asseguram os direitos deveriam ser garantidas, entretanto, pouco se pode
afirmar que é feito nesse sentido.

Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, pelas Na-


ções Unidas, houve uma tendência a definir os direitos humanos em fun-
ção das realidades sociais, econômicas e políticas. No decorrer do século
XX, o conceito de direitos humanos foi ampliando-se e incorporando
outros direitos visando à correção das desigualdades sociais, econômicas
e culturais encontradas na sociedade. Entretanto a interpretação não uni-
versal da natureza desses direitos evidenciou dúvidas e questionamentos
sobre essa universalidade dos direitos humanos, o processo comum a ser
adotado e a garantia de serem respeitados (CANIGLIA, 2008, p. 4).

Um dos aspectos que caracterizou a sociedade, especificamente, a educa-


ção nas últimas décadas, em relação às crianças e aos jovens com deficiências
e condutas típicas, foi o movimento perverso de sua exclusão do convívio com
os outros colegas ditos “normais” e sua segregação, principalmente em Escolas
Especiais, com a solene desculpa ou justificativas, entre outras, de propiciar a
essas crianças um melhor atendimento.

456
A evolução da Educação Especial passou por várias etapas. A primeira 1. Na etapa de extermínio, a pessoa com
etapa é a denominada “etapa do extermínio” , ou seja, aquela em que a pessoa
1 necessidades especiais não tinha direito
a vida. Isso aconteceu principalmente nos
excepcional não tinha o direto sequer à vida.
tempos primitivos, quando os nômades
Essa foi uma etapa chamada “etapa filantrópica”, quando o indivíduo deslocavam-se constantemente em busca
com deficiência era tratado como uma eterna criança, ou o eterno doente sem de alimento e o deficiente era visto como
empecilho MARIZ (apud SOUZA,2008, p.07).
cura, com invalidez e incapacidades permanentes e por isso deveria ser tratado
de forma assistida filantrópica. 2. Com a transformação política e econô-
A atual etapa é a “etapa científica”2, quando a pessoa especial é alguém mica da Revolução Burguesa, houve avan-
que deve ser vista como deficiente, parte de uma educação especial, ou seja, ço na medicina e inicia as discussões acerca 
das causas  e  efeitos  da  deficiência, com
esse aluno visto como uma pessoa limitada, mas potencialmente capaz e in-
base na herança genética, como origem dos 
dependente. Nessa visão, os “grandes inimigos” da Educação Especial, é o distúrbios  físicos  e intelectuais. Assim, no
preconceito, a improvisação, a rotulação, a segregação e o tecnicismo. ano de 1784 iniciou a educação para surdos
e à abertura de um Instituto para crianças
A Etapa Científica da Educação Especial veio à tona devido aos estudos
cegas, e foram feitas melhorias  nos  méto-
de ordem científica, ideológica e cultural que provocam na sociedade, refle- dos  de ensino para a área visual e auditiva.
xões sobre estas pessoas, chamando a atenção sobre sua condição de sujeito Posteriormente, no século XIX, Louis Braille
– ser pensante, social, desejante, mostrando os efeitos perniciosos de sua se- criou o Sistema Braille e surgiu a Educação 
Especial  na  forma  de  assistência segre-
gregação e dos rótulos que a caracterizaram. gativa nas primeiras instituições assisten-
A partir daí, o acesso dessas pessoas à escola regular começou a tomar cialistas (LIMA, 2012,p. 01).
vulto, como opção cada vez maior de estratégia de atendimento.

2.1 Os princípios básicos dos direitos da inclusão

Além de seguir os princípios democráticos de igualdade e respeito à dignida-


de, a Educação Especial norteia sua ação pedagógica por alguns princípios:
integração, individualização, legitimidade, efetividade dos modelos de aten-
dimento educacional e social, sociológico da interdependência, epistemológi-
co da construção do real e ajuste econômico com a dimensão humana. Tais
princípios são conceituados a seguir, segundo os fundamentos filosóficos e
pedagógicos oficiais do Ministério da Educação e Cultura (2002, p.76).
Percebe-se a integração como sendo o processo que visa ao estabeleci-
mento de condições que facilitem a participação da pessoa com deficiência na
sociedade, obedecendo aos valores democráticos de igualdade, participação
ativa e respeito aos direitos e deveres socialmente estabelecidos.
Existem três níveis de integração: temporal, instrucional e social.

457
A integração “temporal” refere-se à disponibilidade de oportunidades
que existe para que a pessoa com deficiência permaneça mais tempo com seus
companheiros sem deficiência e os resultados positivos que se espera obter
através das ações institucionais e sociais.
Quando se abrange a integração “instrucional”, revela-se a instrumenta-
lização do espaço, para que receba esse tipo de indivíduo, dando-lhe condições
de executar suas atividades, de aprender o que lhe for inerente à vida pessoal,
social e profissional.
A integração “social” refere-se ao relacionamento entre essas pessoas e seus
companheiros dentro do grupo social, na escola e na comunidade como o todo.
A integração é um fenômeno complexo e vai muito além de colocar ou manter
alunos com necessidades especiais em classes regulares. É parte do atendimento
que atinge todos os aspectos do processo educacional (MEC, 1994, p. 79).
Para que quaisquer dessas formas de integração ocorram efetivamente, tor-
na-se premente a identificação de forças restritivas à viabilização desse processo.
No âmbito educacional brasileiro, de acordo com os estudos da Secretaria
de Educação Especial (1994, p. 112), destacam-se: (1) preconceitos em relação
ao aluno com deficiência; (2) insuficiência na infraestrutura adequada; (3)
inadequação na capacitação de professor do sistema regular de ensino para
atuarem junto ao alunado com necessidades especiais; (4) insuficiência de ma-
teriais didático-pedagógicos e de equipamentos. Sobre preconceito, Pompeu
(2011, p. 20) destaca que:

Muitas vezes, para combatermos preconceitos, simplesmente tentamos


demonstrar que ales não são lógicos, que as ideias que os sustentam são
falsas ou resultado de pensamentos tortos. Faz-se a denuncia na espe-
rança de que, uma vez demonstrada a verdade, uma vez restabelecida a
logica ou um pensamento metódico, o preconceito desapareceria. Não
e o que acontece.
Preconceitos são estereótipos com consequências sociais indesejáveis
e, por isso, chamamos as ideias que os sustentam de erradas, mas se
considerarmos o modo particular como nossa mente organiza as ideias,
por princípios, afetos e sentimentos, fica fácil perceber que o racista
simplesmente não toma como erro seu modo de pensar.

458
Tais fatores têm funcionado como obstáculo à concretização, no processo
de integração. Apesar disso, existem, em alguns estados brasileiros, experiên-
cias bem sucedidas que o têm viabilizado, ainda de modo empírico.
Ainda, ao se repensar a filosofia educacional, de modo a valorizar e res-
peitar as diferenças individuais, deve-se lembrar que o princípio de integração
busca não só a inserção do aluno no ambiente o menos restrito, mas também
a sua aceitação pelo grupo onde está inserido.
Esta filosofia não deve ser generalizada e mal compreendida, inserindo-
se indiscriminadamente todos os alunos com deficiência em classe regular.
Neste sentido, a criação de ambientes mais segregativos é, às vezes, necessária.
A consulta às comunidades ou órgãos representativos formados pelos próprios
alunos com deficiência deve sempre ser feita.
Quanto à normalização, refere-se à questão de se proporcionar a esses
alunos condições de vida as mais próximas possíveis de outras pessoas, a fim
de que possam desenvolver ao máximo suas potencialidades.
Pereira (1980, p. 46) assinala que, enquanto a integração é um processo,
a normalização a partir dos direitos humanos é um objetivo. Dentro deste prin-
cípio, a Escola Regular deve possibilitar-lhes meios de acesso, nesse espaço
físico, o que se vê frequentemente é a presença de “barreiras arquitetônicos”
que impedem o aluno com deficiência física, por exemplo, de locomover-se
com facilidade. São, então, necessárias adaptações criativas da Escola, dentro
de uma filosofia de “normalização”, para poder receber esse aluno.
Percebe-se que a individualização valoriza as diferenças individuais, sejam
as diferenças entre os com deficiência, se comparados aos ditos sem deficiência,
sejam as diferenças entre os com deficiência, quando comparados entre si.
Individualizar o ensino significa atender às necessidades de cada um, dar
o que cada um precisa para o seu desenvolvimento pleno.
Estes princípios norteadores visam, em última instância, à preparação
para o exercício da cidadania. O princípio de legitimidade visa à participação
das pessoas com deficiência ou de seus representantes legais, na elaboração e
formulação de políticos, planos e programas (BRITO, 2002,p. 19).
O princípio da efetividade dos modelos de atendimento educacional
embasa a qualidade das ações educativas e envolve três elementos: infraes-
trutura (administrativa, recursos humanos e materiais); hierarquia do poder

459
(interno e externo às instituições envolvidas); e consenso político (ideologias
educacionais) (MEC, 1995, p. 90).
O princípio sociológico da interdependência visa ao pleno desenvolvi-
mento das pessoas com necessidades especiais, através de um trabalho em par-
ceria, envolvendo educação, saúde, ação social e trabalho (BRITO, 2002,p. 18).
O princípio epistemológico da construção do real “refere-se à concilia-
ção entre o que é necessário fazer para atender às aspirações e interesses dos
indivíduos com deficiência e à aplicação dos meios de toda ordem, que então
disponíveis” (MEC, 1995).
E, por fim, o princípio do ajuste econômico com a dimensão refere-se “ao
valor que se deve atribuir à dignidade dos portadores de necessidades espe-
ciais, como seres integrais” (BRITO, 2002,p. 19).

3. A educação especial e a ética

Falar de inclusão é inicialmente fazer um caminho até o direito, haja vista que
há a Lei de Inclusão. Esse processo não é apenas verbal, mas uma realização
legal do que eticamente possa representar a inclusão.
Liberdade e igualdade já não são os ícones da atualidade.
A segurança jurídica – e seus conceitos essenciais, como o direito adqui-
rido – sofre o sobressalto da velocidade, do imediatismo e das interpretações
pragmáticas, embaladas pela ameaça do horror econômico. As fórmulas abstra-
tas da lei e a discrição judicial já não trazem todas as respostas. O paradigma ju-
rídico, que já passara, na modernidade, da lei para o juiz, transfere-se agora para
o caso concreto, para a melhor solução, singular ao problema a ser resolvido.
O discurso acerca do Estado atravessou, ao longo do século XX, três fases
distintas: a pré-modernidade (ou Estado liberal), a modernidade (ou Estado
social) e a pós-modernidade (ou Estado neoliberal). A constatação inevitável,
desconcertante, é que o Brasil chega à pós-modernidade sem ter conseguido
ser liberal nem moderno. Herdeiros de uma tradição autoritária e populista,
elitizada e excludente, seletiva entre amigos e inimigos – e não entre certo e
errado, justo ou injusto –, mansa com os ricos e dura com os pobres, chega-se
ao terceiro milênio atrasados e com pressa.

460
A Constituição acenou com uma democracia participativa e esta só
se fará quando todos os brasileiros tiverem condições de acompanhar e de
influenciar a tomada das decisões políticas em todos os níveis do desempe-
nho estatal.

O Estado contemporâneo – ou o que sobrar dele – será cada dia mais éti-
co se o protagonismo individual vier a ser estimulado, mediante efetiva
cobrança de compostura e zelo de seus agentes (NALINI, 2006, p. 118).

Seguindo um movimento mundial, na atualidade, o paradigma que nor-


teia as ações da Educação Especial no Brasil é o da Inclusão Escolar, que re-
comenda a inserção das crianças com necessidades educacionais especiais no
sistema regular de ensino. Para isso, faz-se necessário que o contexto escolar
crie condições para acolher a criança em suas necessidades.
A resolução do Conselho Nacional de Educação e Conselho de Educação
Básica (CNE/CEB), aprovada em 1º de setembro de 2001 preconiza que:

Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às es-


colas organizar-se para o atendimento aos educandos com necessidades
educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para uma
educação de qualidade para todos (BRASIL, 2001, p. 37).

A Educação especial é definida, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Nacional – LDBEN (BRASIL, 1996), como uma modalidade de edu-
cação escolar que perpassa todas as etapas e níveis de ensino. Esta definição
permite desvincular “educação especial” de “escola especial”, permite também,
tomar a educação especial como um recurso que beneficia a todos os edu-
candos e que atravessa o trabalho de professor com toda a diversidade que
constitui o seu grupo de alunos.
Atualmente são considerados alunos com necessidades educacionais es-
peciais aqueles que:

[…] apresentam durante o processo educacional dificuldades acentuadas


de aprendizagem que podem ser não vinculadas a uma causa orgânica

461
específica ou relacionadas a condições, disfunções, limitações ou defi-
ciências, abrangendo dificuldades de comunicação e sinalização dife-
renciadas dos demais alunos bem como altas habilidades/ superdotação
(BRASIL, 2005,p. 29).

Essa tendência a reconhecer grupos específicos e suas particularida-


des demonstra a força de organização dos grupos representativos dessas
deficiências, que, diante do avanço cientifico da área e das evidentes espe-
cificidades dessas pessoas, vêm reivindicando um espaço próprio junto às
políticas públicas.
A escola inclusiva pressupõe uma ação conjunta entre o sistema regular
de ensino e a educação especializada, esta última representada por Institui-
ções Especiais onde serão concentradas as informações sobre as peculiarida-
des da criança com necessidades educacionais especiais.
Ao desenvolver o tema “Ética” é necessário enfocar três pontos, devidamente.
O primeiro refere-se ao que se poderia chamar de “núcleo” moral de uma
sociedade, ou seja, valores eleitos como necessários ao convívio entre os mem-
bros dessa sociedade. A partir deles, nega-se qualquer perspectiva de “relati-
vismo moral”, entendido como “cada um é livre para eleger todos os valores
que quer”. Por exemplo, na sociedade brasileira não é permitido agir de forma
preconceituosa, presumindo a inferioridade de alguns (em razão de etnia, raça,
sexo ou cor), sustentar e promover a desigualdade, humilhar, etc. Trata-se de
um consenso mínimo, de um conjunto central de valores, indispensável à so-
ciedade democrática: sem esse conjunto central, cai-se na anomia, entendida
seja como ausência de regras, seja como total relativização delas (cada um tem
as suas, e faz o que bem entender); ou seja, sem ele, destrói-se a democracia,
ou, no caso do Brasil, impede-se a construção e o fortalecimento do país.
O segundo ponto diz respeito justamente ao caráter democrático da so-
ciedade brasileira. A democracia é um regime político e também um modo de
sociabilidade que permite a expressão das diferenças, a expressão de conflitos,
em uma palavra, a pluralidade. Portanto, para além do que se chama de con-
junto central de valores, deve valer a liberdade, a tolerância, a sabedoria de
conviver com o diferente, com a diversidade (seja do ponto de vista de valores,
como de costumes, crenças religiosas, expressões artísticas, etc.). Tal valoriza-

462
ção da liberdade não está em contradição com a presença de um conjunto cen-
tral de valores. Pelo contrário, o conjunto garante, justamente, a possibilidade
da liberdade humana, coloca-lhe fronteiras precisas para que todos possam
usufruir dela, para que todos possam preservá-la.
O terceiro ponto refere-se ao caráter abstrato dos valores abordados. Éti-
ca trata de princípios e não de mandamentos. Supõe que o homem deva ser
justo. Porém, como ser justo? Ou como agir de forma a garantir o bem de
todos? Não há resposta predefinida. É preciso, portanto, ter claro que não
existem normas acabadas, regras definitivamente consagradas. A ética é um
eterno pensar, refletir, construir.
De acordo com Mantoan (2003, p. 49), existem várias opções de aten-
dimento educacional para a pessoa com necessidades educacionais especiais,
conforme nos parágrafos anteriores, mas essas opções só existem em docu-
mentos oficiais porque existiam primeiro na prática. Ainda, a mesma autora
afirma que esse é o percurso da Educação Especial no Brasil: acontecer primei-
ro no cotidiano e depois pela mobilização de pais, professores, especialistas e
instituições se transformarem em ações públicas legitimadas pela força da lei.
O processo de inclusão das pessoas com necessidades educacionais es-
peciais em salas do ensino regular precisa, portanto, respeitar a personalidade
de cada um, considerando o estilo próprio de cada criança aprender, seu ritmo
e sua vivência. Vale ressaltar que esse critério não deve valer apenas para o
aluno incluso, mas para qualquer criança da escola.

Com isso, podemos afirmar que o processo de aprendizagem vai ainda


além da vontade de aprender e se incorpora a maneira de viver do su-
jeito, modifica suas relações com o mundo. Portanto, quando falamos
em aprendizagem colocamos o sujeito que aprende como figura central
do processo e isso implica também na consideração de seus desejos e na
modificação de suas condutas. Dito de outra forma, não podemos redu-
zir a aprendizagem a mera apreensão de conteúdos (KLEIN, 2011, p. 50).

Não se pode permitir que as incapacidades físicas, mentais ou cognitivas


de qualquer pessoa impeçam que ela seja vista como um ser dotado de outras
habilidades, que precisam ser exploradas e desenvolvidas ao máximo. O mo-

463
vimento da inclusão, portanto, convoca a todos, não só a escola, para serem
corresponsáveis e solidários no acolhimento e desenvolvimento das pessoas
com necessidades educacionais especiais (MANTOAN, 2003).

4. A prática docente envolvida no atendimento aos direitos


humanos na educação inclusiva

Vale destacar que o contexto escolar aponta como um novo rumo à educação
contemporânea, pois ela engloba profissionais que possam trabalhar unidos,
frente à necessidade de uma educação de qualidade, que perceba o aluno en-
quanto cidadão, corroborando para que sua formação seja crítica e reflexiva.
Nesse intento, o professor não está sozinho no trato com os alunos ne-
cessidades especiais, o gestor deve ser seu principal parceiro, subsidiando a
sua formação e o seu atendimento a esse aluno tão especial. Para que ele se
integre ao trabalho docente, é necessário que o reconheça através de reuniões
e planejamentos, fidedignamente.

4.1 O papel dos professores

Se considerar que educar é um ato político e que o professor deve ser capaz
de conceber como um agente de mudanças do contexto social, o seu papel
profissional extrapola o de mero repassador de conhecimentos para se trans-
formar, sobretudo, em formador de cidadãos e um multiplicador da educação
em direitos humanos.

A Educação em Direitos Humanos tem especificidades que requerem a


transcendência da mera transmissão de conteúdos e envolve ações pro-
tagonistas por parte dos estudantes, um processo ativo de construção e
significação dos conhecimentos construídos. Logo, não e qualquer me-
todologia de ensino que se adequa ao desenvolvimento da EDH, sendo
esta uma questão central a sua efetivação nas instituições de educação
(KLEIN, 2011, p. 47).

464
Na educação inclusiva, a sua atuação, segundo as diretrizes do MEC
(1994), deve ser comprometida com as condições da escola e com a qualidade
de sua formação acadêmica.
Essa formação torna-se cada vez mais importante porque nos municípios
brasileiros mais carentes, é ele, o professor, a única autoridade, o que exige a
responsabilidade de não só conduzir o processo de ensino-aprendizagem, mas,
também, de intervir como orientador familiar, função para a qual nem sempre
está preparado. Quando isso ocorrer, ele, o professor, deverá receber auxílio de
um profissional especialista: psicólogo, psicopedagogo, pedagogo especializa-
do em Educação Inclusiva.
Constata-se, na realidade educacional, que as escolas, geralmente, e prin-
cipalmente, não possuem em seu quadro de profissionais médicos, assistentes
sociais e psicólogos, que seriam, em primeira instância, os especialistas indi-
cados para acompanhar o desenvolvimento dos alunos com deficiência. En-
tretanto, pedagogos e especialistas em Educação (Administrador, Orientador,
Supervisor e Inspetor) buscam se qualificar na área, fazendo cursos de espe-
cialização também em Educação Especial e Educação Inclusiva. Nesse sentido,
atualmente, são esses profissionais que dão assistência direta a estes alunos,
dentro do que lhes compete conforme a sua formação.
Também se constata que algumas escolas de ensino regular, que possuem
um número elevado de alunos com deficiência, buscam lhes integrar em suas
turmas e fazem a devida assistência em horário inverso, previamente consen-
tido pelas famílias.
Assim, o aluno assiste às aulas em um turno e tem um acompanhamento
auxiliar em outro horário, a ser combinado com os pais.
Além dos alunos, estes profissionais especializados dão assistência aos
respectivos pais, mostrando que estes devem ser motivados aos estudos tam-
bém em casa. Por isto o acompanhamento nas atividades de casa é um grande
aliado ao sucesso do aluno com deficiência.

Trabalhando sempre com as possibilidades do sujeito torna-se possível


conhecer a relação que este estabelece com o conhecimento e de que
forma articula o seu corpo, organismo desejo e sua inteligência na busca
de suas aprendizagens. São utilizadas estratégias psicopedagógicas pre-

465
viamente organizadas à partir da necessidade real da criança, tais como:
adaptações motoras, atividades adequadas a modalidade de aprendiza-
gem correspondente, vivências sensório-motoras, construções referentes
ao campo conceitual e orientações à família e a escola (GARBINI, 2007).

Os professores também recebem orientações e transmitem aos especia-


listas o cotidiano dos alunos. Entre as orientações, estão: a motivação, o in-
centivo à integração, o trabalho com os demais alunos em relação à aceitação
dos especiais, sobre a importância do planejamento, em relação à variação das
atividades, entre outros.

O […] pedagogo tendo uma compreensão abrangente sobre a deficiência


poderá desenvolver um importante papel instituições escolares, discu-
tindo novas metodologias de ensino, questões sobre o preconceito e
rejeição, ou diferentes modalidades de aprendizagem, seja do aluno ou
do professor. Desta forma estará desenvolvendo um trabalho preventivo
e contribuindo em direção da meta, talvez utópica da equiparação de
oportunidades, o que o significa a sociedade se preparar para receber a
pessoa portadora de deficiência (BREGANTINI, 1998).

Destaca-se que um dos critérios mais importantes à inclusão dos defi-


cientes nas classes regulares é a afetividade. Não a afetividade no sentido de
compaixão ao deficiente, mas em relação à amizade e ao companheirismo que
pode ser estabelecido entre ele e os demais colegas e entre ele e os professores.

5. Considerações finais

Não adianta pensar que incluir é colocar apenas o deficiente na sala de aula e
tentar conviver com esta realidade. É muito mais. É compreender que a edu-
cação inclusiva não pode ser discriminatória, exclusiva. Deve-se entender que
toda criança/adolescente/jovem é um sujeito singular, único, social e histórico
de direitos, principalmente o direito de ter acesso à educação.

466
É preciso que o docente mude a forma de olhar a educação, e com ela
a inclusão, deixar “cair” tantas barreiras. Tornar as dificuldades em possi-
bilidades, mudar as posturas de alguns colegas que ainda não entenderam
que o princípio da inclusão é um desafio, não apenas da escola, como de
toda a sociedade.
Na realidade o educador prestará assistência não somente aos alunos
com deficiência, ele necessitará trabalhar nas turmas em que esses alunos
estão, junto aos demais, a aceitação do outro com suas diferenças, por isto,
a educação inclusiva precisa estar sempre atenta e aberta para a diversida-
de, para o diferente.
Refletir sobre a inclusão significa mudança de atitudes, de paradigmas
e de idealizar um aluno como se todas as pessoas fossem iguais e não fossem
seres históricos e contextualizados.
Cabe pensar que a capacidade de muitos educadores deve ser ampliada
para estar engajados neste processo que deve ser responsável, pois não basta
“jogar” a criança deficiente na escola regular e não oferecer a ela subsídios
que atendam às suas necessidades. É por isto que o processo de inclusão não
acontece do dia para a noite, mas uma coisa é possível idealizar, ela pode já
estar acontecendo e é acontecendo à inclusão que ela pode se corporificar e ir
quebrando as resistências.

467
Reênciasfer ácasbilogr

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469
Wilsiane Hammer,
Maria Aparecida Klippel
Discentes do curso de Educação em Direitos Humanos

27
DESENVOLVIMENTO HUMANO NA PERSPERTIVA DA
INCLUSÃO E IGUALDADE

Maria Aparecida Klippel


Wilsiane Hammer

1. Introdução

A educação inclusiva é um direito que todos os alunos com necessidades espe-


ciais têm, mas é sabido que em todas as esferas sociais encontram-se barreiras
que dificultam o acesso desses alunos ao conhecimento, ao sistema educacional.
O sistema escolar deverá estar sensível à inclusão que surge como uma
força cultural para a renovação da escola. Mais do que a sua simples adapta-
ção, o processo inclusivo hoje tem valor formativo, educacional e espera-se da
escola que ela atenda às expectativas da nova sociedade emergente.
Este trabalho discorre a respeito do professor de crianças com necessi-
dades especiais, pois, cabe a ele ter uma personalidade adequada ao tipo de
trabalho que irá desenvolver, trabalho que requer, antes de tudo, equilíbrio
emocional e, para que possa encarar os problemas que lhe apresentem, sereni-
dade, compreensão e tolerância.
O estudo se deu a partir de pesquisa bibliográfica em livros, jornais, ar-
tigos científicos e sites acadêmicos, objetivando conhecer e refletir a inclusão
no recinto escolar de forma ética.

2. Desenvolvimento

2.1 O docente de crianças com necessidades especiais

Nos últimos dez anos, ocorreram avanços importantes em relação à formação


de professores no Brasil, não apenas em termos de legislação, mas também
em relação à produção do conhecimento acadêmico voltado para o tema em
questão (FONSECA,1996).

471
1. Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de: Em relação à legislação, destaca-se como marco jurídico-institucional
I — participar da elaboração da proposta fundamental a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB nº 9394/96),
pedagógica do estabelecimento de ensino;
aprovada, em 20 de dezembro de 1996. (JOSÉ; COELHO, 2002).
II — elaborar e cumprir plano de trabalho,
segundo a proposta pedagógica do estabe- O objetivo desse documento foi iniciar um processo de mudanças em to-
lecimento de ensino; dos os níveis da educação, que foram reorganizados em educação básica — que
III — zelar pela aprendizagem dos alunos;
abarca a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio — e ensino
IV — estabelecer estratégias de recuperação
para os alunos de menor rendimento; superior. A LDB dedica um capítulo à formação de professores, assinalando os
V — ministrar os dias letivos e horas-aula es- fundamentos metodológicos, os tipos e as modalidades de ensino, bem como
tabelecidos, além de participar integralmente as instituições responsáveis pelos cursos de formação inicial dos professores.
dos períodos dedicados ao planejamento, à
Também, o artigo 131 a LDB estabelece as incumbências dos professores, inde-
avaliação e ao desenvolvimento profissional;
VI — colaborar com as atividades de articula- pendentemente da etapa escolar em que atuam (RODRIGUES, 2006).
ção da escola com as famílias e a comunidade. O artigo 13 da LDB é reservado exclusivamente aos docentes. Pelo me-
nos, são seis as incumbências dos docentes, isto é, dos profissionais de ensino
que têm cargos ou funções específicas ou especializadas na escola.
O atual e grande desafio posto para os cursos de formação de professores
é o de produzir conhecimentos que possam desencadear novas atitudes que
permitam a compreensão de situações complexas de ensino, para que os pro-
fessores possam desempenhar de maneira responsável e satisfatória seu papel
de ensinar e aprender para a diversidade (DUARTE, 2000).
Para tanto, faz-se necessária a elaboração de políticas públicas educacio-
nais voltadas para práticas mais inclusivas, a formação de professores atentos
às novas exigências educacionais e a definição de um perfil profissional, ou
seja, com habilidades e competências necessárias aos professores de acordo
com a realidade brasileira (FERREIRA, 2006).
Essas parecem ser, hoje, medidas urgentes a serem adotadas para que
ocorra uma mudança no status quo da educação inclusiva.
Assim, cabe ao pro­fessor, ter uma personalidade adequada ao tipo de
trabalho que irá desenvolver. Precisa demonstrar grande habilidade diante das
situações imprevistas, contornando os problemas com firmeza, serenidade e
cordialidade. O professor deve ser flexível, ter entusiasmo e revelar espírito
criador; ser sincero e gentil com seus alunos, revelando consideração, respeito
e verdadeiro inte­resse por todos (ARANHA, 2002).
O que realmente é necessário e obrigatório para a escola é oferecer serviços
complementares, adotar práticas criativas na sala de aula, adaptar o projeto pe-

472
dagógico, rever posturas e construir uma nova filosofia educativa. Essa mudança
não é simples. Na verdade ainda é difícil encontrar professores que afirmem estar
preparados para receber em classe um estudante com necessidades especiais.
Resumindo, pode-se dizer que o professor deve valorizar a diversidade
como aspecto importante no processo de ensino-aprendizagem. Além disso,
ele deve ser capaz de construir estratégias de ensino, bem como adaptar ativi-
dades e conteúdos, não só em relação aos alunos considerados especiais, mas
para a prática educativa como um todo, diminuindo, assim, a segregação, a
evasão e o fracasso escolar (CARNEIRO (1999).
A tarefa do professor é muito complexa. Vai trabalhar com crianças que
apresentam problemas sérios; vai ajudar crianças que precisam se adaptar; vai
fornecer-lhes os elementos de adaptação ao mundo (ARANHA, 2002).
A fim de realizar um trabalho eficiente, o professor de crianças com
necessidades especiais, além de experiência em classes comuns, precisa ter
vivências sociais, pois não pode atuar sozinho. Deve fazer parte de uma equipe
na qual todos os membros trabalhem em uníssono, desempenhando sua im-
portante missão de educar a criança especial.
Esse professor deve também possuir uma boa formação técnica no cam-
po a que se propõe assistir, pois traduzirá, em métodos e processos de ensino,
todas as indicações dos médicos e técnicos que atendem à criança.
De acordo com Ferreira (2006), algumas atitudes básicas do professor são:

• Criar na classe um ambiente tranquilo, agradável, acolhedor e


de liberdade.
• Planejar aulas de forma que todos os alunos estejam sempre ocupados.
• Ser sempre coerente, firme e constante em suas atitudes.
• Andar frequentemente pela sala de aula, atendendo a todos igualmente.
• Usar material didático variado, de fácil manipulação e renovação.
• Aproveitar a grande força do estímulo, usando-o sempre; a criança
gosta de ser elogiada, de se sentir valorizada.
• Dar ordens claras, precisas e curtas. Estabelecer os limites de uma
forma positiva;
• Punir as infrações de modo objetivo: a criança precisa sentir que há
regras estabelecidas às quais todos devem obedecer.

473
Para Gordon (1999), é fundamental a integração da criança à comunida-
de, englobando todas as atividades sociais (festas cívicas e religiosas, excur-
sões, jogos, teatro, biblioteca), nas quais ela aprende a:

• participar (repartindo, esperando a vez, cooperando, apreciando);


• aceitar responsabilidades (reconhecendo limites, cumprindo ordens,
respeitando propriedades, desenvolvendo hábitos de trabalho).

Cabe ao professor desenvolver no aluno cuidados pessoais, hábitos de


auto-suficiência em relação à sua higiene pessoal, à sua saúde e segurança,
propiciando atividades tais como:

• alimentar-se sozinho;
• repousar;
• vestir-se;
• usar adequadamente o banheiro;
• cuidar da limpeza do corpo e do vestuário;
• reconhecer o valor de uma alimentação apropriada.
• respeitar as regras de segurança em casa (prevenir-se contra objetos
cortantes, o fogo, a eletricidade) e na rua (andar pela calçada, obe-
decer às faixas e sinais de trânsito);

Música e Atividades Rítmicas também são muito importantes, pois, pro-


movem a harmonia dos gestos e dos movimentos, possibilitando a auto-ex-
pressão e a comunicação de sentimentos. A criança deve ser levada a perceber
(ouvindo e observando), imitar movimentos com o corpo (o vento, o mar, a
gangorra, o pêndulo do relógio…); executar exercícios rítmicos com o corpo e
com instrumentos; cantar e dançar; tocar numa bandinha.

474
3. Conversando sobre o desenvolvimento humano na
perspertiva da inclusão e igualdade

O nascimento de uma criança especial, seja qual for o tipo de deficiência, traz
à tona uma série de complicações advindas de sentimentos de culpa, rejeição,
negação ou desespero, modificando as relações sociais da família e sua pró-
pria estrutura. Isso faz com que os seus membros venham a procurar ajuda
profissional no sentido de buscar informações, desabafar, propiciar um melhor
desenvolvimento da criança e recuperar a organização interna.
Cabe, aqui, relacionar as dificuldades iniciais sobre o isolamento social
que acontece desde o nascimento da criança. Conforme Blascovi-Assis (1997),
citado por José (2002), esse isolamento pode começar a diminuir quando os
pais entram em contato com outros pais que passam pela mesma problemática,
isto é, têm um filho deficiente. A solidão e o isolamento social que atingem os
pais por ocasião do nascimento acabam por atingir posteriormente a própria
criança e o adolescente ou adulto especial, na medida em que ele depende da
família ou da escola para alimentar seu relacionamento social.
Não é de intenção atribuir às famílias os problemas de integração e par-
ticipação social desses indivíduos. A idéia é levantar subsídios da importância
do papel da família no âmbito educacional, favorecendo a conscientização e a
ação da mesma (SAMARA, 1998).
É fundamental que o professor aborde com os familiares temas como a
vida social, as amizades, a participação passiva ou ativa em atividades culturais
(como teatro, cinema, esportes) e as férias escolares. Blascovi-Assis (1997), ci-
tado por José (2002), chama a atenção para a não percepção dos pais para a im-
portância de determinadas atividades sobre o desenvolvimento de seus filhos.
O objetivo maior da escola com a família deve ser atender às suas ne-
cessidades, transmitindo informações, abrindo espaço para que haja troca de
experiências entre mães e pais e discutindo abertamente temas como infân-
cia, adolescência, escolaridade, trabalho, lazer, integração social, sexualidade.
Quando esclarecida, a família pode contribuir de forma muito mais efetiva
para a independência de seu filho, o que sem dúvida, seria importante para a
conquista de sua própria independência.

475
Na educação inclusiva não se espera que o aluno com deficiência se
adapte à escola, mas que a escola como um todo se transforme de forma a
possibilitar a inserção desse aluno em seu ambiente. A escola é também um
lugar do cuidado, da atenção, do tomar conta. E esse tomar conta exige um
compromisso individual do professor com cada aprendiz, um compromisso
que garanta o diálogo com todos os diferentes. Uma pedagogia das diferenças
é uma pedagogia construtiva que busca a interação, a variedade, a riqueza da
diversidade que faz parte da natureza humana.
Sabe-se que as famílias, muitas vezes, se surpreendem com a indepen-
dência do filho em determinadas situações. A família atribui à escola parte da
responsabilidade pela programação social do filho deficiente.
Fica evidente que há necessidade de orientação, informação e esclareci-
mentos sobre os temas desenvolvimento e socialização, para, desta forma, cla-
rificar e definir os papéis da família e da escola como partes ativas no processo
da integração social do deficiente. É a partir de um trabalho conjunto que a
criança, adolescente ou adulto com DM poderá atingir uma maior autonomia
e satisfação pessoal.

4. Adaptações curriculares

As adaptações curriculares constituem as possibilidades educacionais de atuar


frente às dificuldades de aprendizagem dos alunos. Elas têm como objetivo
subsidiar a ação dos professores. Constituem um conjunto de modificações que
se realizam nos objetivos, conteúdos, critérios, procedimentos de avaliações,
atividades e metodologias para atender as diferenças individuais dos alunos.
Essas adaptações  visam promover o desenvolvimento e a aprendizagem
dos alunos que apresentam necessidades educacionais especiais, tendo como
referência a elaboração do projeto pedagógico e a implementação de práticas
inclusivas no sistema escolar. Essas adaptações são necessárias para tornar a
escola um ambiente apropriado às peculiaridades dos alunos com necessidades
especiais. Nessas circunstâncias, as adaptações curriculares implicam a planifi-
cação pedagógica e a ações docentes fundamentadas em critérios que definem:

476
• Como e quando aprender;
• O que o aluno deve aprender;
• Que formas de organização do ensino são mais eficientes para o
processo de aprendizagem;
• Como e quando avaliar o aluno.

4.1 As adaptações relativas aos objetivos e conteúdos


dizem respeito à:

• Priorização de áreas ou unidades de conteúdos que garantam fun-


cionalidade e que sejam essenciais e instrumentais para as aprendi-
zagens posteriores. Ex. habilidades de leitura e escrita, cálculos etc.
• Priorização de objetivos que enfatizam as capacidades e habilida-
des básicas de atenção, participação e adaptabilidade do aluno. Ex.
desenvolvimento de habilidades sociais, de trabalho em equipe, de
persistência na tarefa etc.
• Sequenciação pormenorizada de conteúdos que requeiram processos
gradativos de à maior complexidade das tarefas, atendendo à sequ-
ência de passos, à ordenação da aprendizagem etc.
• Consideração do reforço da aprendizagem e à retomada de determi-
nados conteúdos para garantir o seu domínio e a sua consolidação;
• Eliminação de conteúdos menos relevantes, secundários para dar en-
foque mais intensivo e essencial ao currículo.

4.2 As adaptações avaliativas dizem respeito:

• À seleção de técnicas e instrumentos utilizados para avaliar o aluno,


modificando-os de modo a considerar, na consecução, a capacidade
do aluno em relação ao proposto para os demais colegas;
• A não abandonar os objetivos definidos para o grupo, mas acrescen-
tar aqueles objetivos curriculares complementares específicos que
minimizam as dificuldades concernentes à deficiência do aluno.

477
5. Conclusão

A nova proposta de Educação Inclusiva recomenda que todos os indivíduos


portadores de necessidades educativas especiais sejam matriculados em turma
regular, o que corrobora o princípio de educação para todos.
Frente a esse novo paradigma educativo, a escola deve ser definida
como uma instituição social que tem por obrigação atender todas as crianças,
sem exceção. A escola deve ser aberta, pluralista, democrática e de qualidade.
Portanto, deve manter as suas portas abertas às pessoas com necessidades
educativas especiais.
A escola deve promover o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo,
moral e social dos alunos com necessidades educativas especiais, e, ao mesmo
tempo, facilitar-lhes a integração na sociedade como membros ativos. Mas,
para que isso aconteça, é importante que o indivíduo portador de necessidades
educativas especiais seja visto como sujeito eficiente, capaz, produtivo e, prin-
cipalmente, apto a aprender a aprender.

478
Reênciasfer ácasbilogr

ARANHA, Maria Salete Fábio. A inclusão social da criança com deficiência. Criança
Especial. São Paulo, Editora Roca 2002.

CARNEIRO, Maria Sylvia Cardoso. Contribuições Vygotskyanas para a discussão da


integração de alunos considerados especiais no ensino regular. Revista Ponto
de Vista, julho/dezembro de 1999.

DUARTE, Newton. Vigotski e o “Aprender a Aprender”: Crítica às apropriações neolibe-


rais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas, SP: Autores Associados, 2000.

FERREIRA, Julio Romero. Educação Especial, Inclusão e Política Educacional: Notas


Brasileiras. In: David A Rodrigues (Org.). Inclusão e Educação: Doze Olhares sobre a
Educação Inclusiva. São Paulo: Summus Editorial, 2006. p.85-114.

FONSECA, Vitor da. Educação Especial: Programa de intervenção precoce. Porto


Alegre: Cortez, 1996

GORDON L. Porter. A educação de alunos com necessidade especiais. São


Paulo:[s.n.],1999.

JOSÉ, Elisabete da Assunção; COELHO, Maria Teresa. Problemas de aprendizagem. São


Paulo, Ática, 2002.

RODRIGUES, David A. Dez Idéias (Mal) Feitas sobre a Educação Inclusiva. In: David
A Rodrigues (Org.). Inclusão e Educação: Doze Olhares sobre a Educação Inclusiva.
São Paulo: Summus Editorial, 2006. p.299-318.

SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998.

479
Carla da Costa Rodrigues,
Jéssica Moreira Cândido Guerra,
Wagner da Cunha Oliveira
Discentes do curso de Educação em Direitos Humanos.

28
A INCLUSÃO DO CADEIRANTE ATRAVÉS DA
ACESSIBILIDADE

Carla da Costa Rodrigues


Jéssica Moreira Cândido Guerra
Wagner da Cunha Oliveira

1. Introdução

Com a Constituição Federal do Brasil de 1988, os direitos básicos à vida foram


garantidos, assim como os direitos dos portadores de deficiência física. Mas es-
sas pessoas ainda encontram muitas dificuldades, principalmente na questão da
acessibilidade. Apesar de a lei já estar em vigor há muitos anos, muitos estabe-
lecimentos comerciais e mesmo públicos, desrespeitam as normas de adequação
dos serviços de acesso a cadeirantes ou pessoas com dificuldade de locomoção,
uma injustiça e violação dos direitos do deficiente. A ausência, por exemplo,
de rampas, calçadas apropriadas com faixas guias, portas adaptadas nas in-
fraestruturas que são atualmente erguidas, sem falar dos meios de transportes
públicos que não querem atender por conta do tempo gasto nos atendimentos.
Com relação à escola, ainda existem dúvidas quanto a matricula, inclu-
são, deficiência e educação inclusiva, mas o MEC foi categórico em reafirmar
que a lei foi instituída para todos e que o ato da matricula não precisa de
licença ou de um intermediário. Entretanto, não há necessidade de licença da
secretaria de educação, uma vez que nossa lei maior, a Constituição Federal,
determina no art. 205 que a educação é direito de todos, e a Resolução do CNE/
CEB nº 2/2001, que define as diretrizes nacionais para a educação especial na
educação básica, determina que as escolas do ensino regular devem matricular
todos os alunos em suas classes comuns, com o apoio necessário.
Esse apoio pode constituir parte do atendimento educacional especia-
lizado (previsto no art. 208 da Constituição Federal) e pode ser realizado na
parceria com o sistema público de ensino.
As leis foram criadas e hoje precisamos do seu cumprimento, porque
ainda existem pessoas que insistem em negar direitos a essa população.

481
Sabe-se que existe penalidade para qualquer cidadão que negar ou ne-
gligenciar os direitos à educação. Qualquer escola, pública ou particular, que
negar matrícula a um aluno com deficiência, comete crime punível com reclu-
são de 1 (um) a 4 (quatro) anos” (art. 8º da Lei 7.853/89).
Por tudo isso, escolhemos acompanhar o dia-a-dia de um cadeirante, que
estuda na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio “Job Pimentel”,
no primeiro ano do ensino médio, turno matutino, trabalho por meio do qual
iremos demonstrar que direitos básicos foram negados.

2. História dos deficientes

Vemos nos dias atuais, muitos debates sobre a inclusão dos deficientes, acessi-
bilidade em locais públicos e cotas em concursos públicos, mas essas conquis-
tas, tão debatidas hoje por estudiosos e especialistas, foi, por séculos, negadas
às pessoas como direitos de igualdade de acesso e inclusão na sociedade. Os
deficientes físicos na história da humanidade sempre foram vítimas de se-
gregação, pois o julgamento de sua incapacidade física era vista como uma
anomalia a ser exterminada. Desde a Roma Antiga até o século XV, as crianças
com anomalias eram jogadas nos esgotos. Na idade média, essas pessoas en-
contravam abrigos nas igrejas, mas sempre foram isoladas do convívio social.
Do século XVI até o século XIX, as pessoas com deficiência física recebiam
abrigos em asilos e albergues, porém não recebiam tratamento médico Ade-
quado, o que tornavam esses espaços verdadeiras prisões.
Por muitos anos, os deficientes físicos sofreram todo tipo de preconcei-
to, devido à limitação do corpo. Esse cenário de segregação e sofrimento dos
deficientes só mudaria a partir do século XX, mais precisamente no ano de
1948, com a assinatura de um documento na Assembleia Geral das Nações
Unidas conhecido como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse
documento, feito logo após o momento pós-guerra, que deixou muitas conse-
quências ruins em todo o mundo — em que, na segunda guerra, uma raça se
declarava superior a outra — propunha-se uma nova visão de comportamento
ético entre as nações, entre os seres humanos, sem distinção de raça, cor ou
religião. O objetivo desse documento seria tratar as diferenças com igualdade,

482
respeitando a individualidade de cada pessoa. Citemos o primeiro artigo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.


São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos
outros com espírito de fraternidade.

Nesse artigo, vemos claramente que todos têm iguais direitos, sem dis-
criminação de cor, raça ou condição social. A partir de momentos com esses,
as famílias dos deficientes, inclusive, começaram a despertar em si sobre esses
direitos que os deficientes físicos sempre tiveram, assim como todas as pessoas
sem problema físico, mas que nunca foram respeitadas.
No Brasil, as pessoas com deficiência tiveram um início de reconheci-
mento de suas necessidades primeiramente com a criação da Associação de
Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), que foi instituída primeiramente na
cidade do Rio de Janeiro em 1954, e que atende há milhares de pessoas espe-
ciais em muitas partes do território brasileiro.
Em 1978, os deficientes tiveram uma grande conquista, a criação da
1ª emenda na Constituição Federal, no tocante aos direitos das pessoas com
deficiência: “É assegurada aos deficientes a melhoria da condição social e eco-
nômica especialmente mediante educação especial e gratuita”.
Mais tardiamente, no ano de 1982, ocorreu a aprovação do Programa
de Ação Mundial para Pessoas com Deficiência, cuja finalidade segundo o
contexto da ação, seria promover medidas eficazes para a prevenção da defici-
ência e para a reabilitação e a realização dos objetivos de “igualdade” e “par-
ticipação plena” das pessoas deficientes na vida social e no desenvolvimento.
Essas ações, no cenário mundial, refletiram de modo efetivo no Brasil, re-
sultando em diversas medidas, pelo menos no tocante a legislação do país, dando
igualdade de direitos aos portadores de deficiência. A respeito, podemos citar o
artigo 23 da Constituição Federal de 1988 que diz em seu capítulo segundo que:

é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos


Municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia
das pessoas portadoras de deficiência.

483
Assegura-se, assim, o direito das pessoas portadoras de deficiência na
área da saúde, bem como os benefícios do Estado e o direito à acessibilidade.
Um ano após essa inserção, foi editada a Lei n.° 7.853, que criava a
Coordenadoria Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência no âmbito do Mi-
nistério da Justiça. Tal coordenadoria estabelecia os princípios e as diretrizes
da Política Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência que trata de várias
áreas: saúde, educação, formação profissional, trabalho (estabelecia cotas sem
especificar percentual) e recursos humanos.
A Lei de número 10.048 da Constituição Federal, criada no ano de 2000,
trouxe mais uma vitória aos portadores de deficiência e também às pessoas
que necessitam de prioridades como idosos, gestantes e lactantes. Nela vemos
dispostas normas e critérios para a promoção da acessibilidade dessas pessoas
a locais públicos e empresas concessionárias.

3. A inclusão do portador de deficiência através da acessibilidade

3.1 Acessibilidade

Acessibilidade, segundo a versão de alguns dicionários, é a qualidade do que


é acessível, daquilo que se tem acesso, facilidade, possibilidade na aquisição.
Porém, o significado dessa palavra tomou uma dimensão tão ampla, no que
tange a direitos assegurados, a termos acessibilidade a esses direitos e na in-
clusão do portador de deficiência. Essa palavra se torna parte do cotidiano, no
que diz respeito a lutas e também a conquistas, pois essa acessibilidade vem
desde o simples fato de ter acesso a calçadas públicas, como também a ter
acesso a uma educação e também saúde de qualidade.
Segundo Maciel (2000), falta de condições mínimas, bem como a não
disponibilização dos direitos que lhe competem, fazem com que os deficientes
físicos estejam impedidos de circularem pelas ruas da cidade, de utilizarem
o transporte coletivo ou entrarem nas edificações públicas e privadas, sendo
obrigados ao alijamento social, sem garantias de direitos constitucionalmente
fundamentais, ao sucumbirem ao direito de ir e vir, o que desencadeia a dene-
gatória do acesso à educação, à saúde, ao trabalho e ao lazer.

484
Outro importante decreto institucionalizado na lei de número 10.098,
de 19 de dezembro de 2000, em seu artigo 8º considera condições gerais
para a acessibilidade:
I — acessibilidade: condição para utilização, com segurança e autono-
mia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das
edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios
de comunicação e informação, por pessoa portadora de deficiência ou com
mobilidade reduzida.
Duarte e Cohen (2004) acreditam que a acessibilidade deve ser universal
e não somente para os deficientes. Destacam que não somente os deficientes,
mas também os idosos, mães com seus bebês em carrinhos, pessoas que tem-
porariamente estão impedidas de se locomoverem e que recorrem ao uso de
muletas sofrem com a falta de acessibilidade na arquitetura urbanística.
Santos (2004) destaca que a acessibilidade é um dos principais fatores que
rege a inter-relação entre a sociedade e os indivíduos portadores de deficiências,
influenciando em vários aspectos diretamente ligados a direitos dos cidadãos.
Somente com a conscientização, tanto do poder público com do privado,
e das pessoas em geral, em reconhecerem as dificuldades por parte do portador
de deficiência, pode-se conceber espaços de convívio social preparados para
recebê-los da maneira como se deveria.

3.2 Inclusão

Segundo Sassaki (2003), para a construção de uma verdadeira sociedade in-


clusiva deve-se prestar mais atenção à linguagem, pois, é por meio desta que
se dá a comunicação e se expressa, voluntariamente ou involuntariamente, o
respeito ou a discriminação em relação às pessoas com deficiências.
A inclusão deve começar no ambiente familiar, e se estender aos espaços
externos. A inclusão não é somente acolher as pessoas portadoras de necessida-
des especiais, mas transformar o espaço e também todas as pessoas ao seu redor.
Uma professora não pode acolher a um aluno com necessidade especial,
se dentro dela permanece um preconceito contra aquele aluno. Ela não irá dar
conta dele e dos demais em sala de aula.

485
A educação nos dias atuais está se tornando cada vez mais inclusiva.
Mesmo com tantas dificuldades de preconceito, falta de infraestrutura e aces-
sibilidade, os educadores têm se preocupado em participar de capacitações que
os trabalhem da melhor maneira para incluir ao aluno em sala de aula, mesmo
que para isso necessite de um apoio de um cuidador, um auxiliar de sala que
o ajude com o aluno.
O processo de inclusão deve começar dentro de cada um de nós, acolhen-
do a essas pessoas que enfrentam tantos obstáculos em seu cotidiano e que
necessitam tanto de uma inclusão de modo material, de apoio às suas necessi-
dades, como de uma inclusão afetiva.

3.3 Deficiência

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Bra-


sil, existem milhares de pessoas com as mais variadas deficiências. O último
Censo Demográfico feito no ano de 2010, acusou que 45 milhões de brasileiros
possuíam alguma deficiência, entre elas a visual, auditiva e motora, de acordo
com cada grau de severidade e também deficiências mentais e intelectuais.
Esse número de deficientes provavelmente aumentou nesses três anos
posteriores à pesquisa do IBGE. Os deficientes estão espalhados pelo Brasil
afora, buscando pelos seus direitos de igualdade perante a sociedade.

3.4 Principais classificações Deficiência Física

As deficiências físicas podem dividir-se em distúrbios ortopédicos e neuroló-


gicos. Os primeiros referem-se a problemas originados nos músculos, ossos e/
ou articulações, enquanto que os neurológicos referem-se a deterioração ou
lesão do sistema nervoso. A deficiência pode ser ainda divida em congênita ou
adquirida, aguda ou crônica, permanente ou temporária e, por fim, progressiva
ou não progressiva.

486
3.5 Causas

As causas da deficiência física são as mais variadas possíveis, desde os pro-


blemas genéticos, ligados a gestação ou complicações no parto, doenças que
causam a paralisia infantil, por exemplo, a acidente de trânsito.

4. Metodologia

Para a realização do presente trabalho foi preciso uma pesquisa de campo


para obter dados sobre a questão da inclusão do cadeirante através da acessi-
bilidade, sendo a pesquisa de caráter qualitativo, analisando assim, aspectos
complexos da realidade. Uma pesquisa de campo é um processo sistemático
de construção do conhecimento que tem como metas principais gerar novos
conhecimentos, e/ou corroborar ou refutar algum conhecimento pré-existente.
É basicamente um processo de aprendizagem tanto do indivíduo que a realiza
quanto da sociedade na qual a mesma se desenvolve.
O estudo de caso foi feito com 1 cadeirante, de 17 anos, da Escola Estadual
de Ensino Fundamental e Médio Job Pimentel, situada na rua Joaquim Batista
de Souza, SN, no município de Mantenópolis, ES. A escola, ao longo de sua
existência, vem desenvolvendo eventos que se tornaram marco de sua cultura.
Desses eventos destacam-se a realização para melhoria da acessibilidade, tra-
balhos interdisciplinares com temas transversais, jogos interclasses, campanhas
solidárias dentre outros, todos sem distinção de alunos. O número de alunos na
E.E.E.F.M Job Pimentel é de aproximadamente 815 de 12 a 18 anos, nos níveis
fundamental, médio e técnico, sendo que 2 (dois) deles são alunos cadeirantes.
Em conversa com a pedagoga Maria de Laia, foi notória a preocupação e
o carinho que a escola tem com os cadeirantes, “Temos dois alunos cadeiran-
tes um no turno matutino e outro no vespertino. As turmas foram pensadas e
adequadas a cada um deles e não de uma forma aleatória, as salas são perto
da diretoria, secretaria, e todos os outros ambientes. Cada cadeirante tem sua
mesa adaptada e um cuidador, escolhido em processos seletivos pelo Estado.
Para melhor atendermos nossos alunos cadeirantes, descemos a biblioteca e
a sala de recursos. A escola também recebeu uma verba para adaptação e

487
atendimento de alunos cadeirantes. Planejamos e optamos pelo projeto de um
banheiro adaptado, até porque já possuímos rampa e, pra construir uma maior,
ficaria muito caro. O projeto foi elaborado em 2010 e aprovado em 2013 pelo
MEC. Nossos alunos cadeirantes passam pela mesma metodologia dos outros
alunos, porém suas avaliações são elaboradas de acordo com a capacidade
de cada aluno. Em relação a inclusão, acredito que seja excelente, porém só
acontecerá de uma maneira concreta quando as escolas tiverem recursos su-
ficientes para adaptações imediatas do ambiente físico para atender alunos e
professores em acesso à formação continuada, de acordo com as necessidades
especiais de cada aluno e professor.”
Além das declarações da pedagoga, também conversamos com a cui-
dadora Eliana da Crua Silva Cabral. A mesma acompanha e auxilia o aluno
Vinícius de Freitas Pereira fazendo com ele as atividades que o mesmo não
consegue fazer sozinho. Ajuda na locomoção, estimula atividades de lazer e
ocupacionais dentre muitas outras tarefas. A cuidadora nos relata: “Está sendo
pra mim uma experiência impar. É gratificante e, ao mesmo tempo, difícil ser
uma cuidadora, até porque o aluno Vinícius é muitas vezes inseguro, inquieto,
mas ao mesmo tempo carente e sinto que de alguma ou de várias maneiras
tenho sido alguém que o ajuda. Sinto que ele gosta de minha presença. Ele me
liga e manda mensagens até nos finais de semana ou horários nos quais não
estou na escola. Sinto que ele sente-se seguro ao meu lado, e que suas dificul-
dades ele procura sempre superar.”
Diante das dificuldades de acessibilidades de alunos cadeirantes, foi ela-
borado um questionário fechado, no intuito de colher informações sobre a re-
alidade dos cadeirantes em que procuramos conhecer melhor o aluno Vinícius
de Freitas Pereira, para saber quais são suas maiores dificuldades em locomo-
ção pela cidade e na escola, o que é preciso melhorar, como está o atendimento
prioritário, e se estão cumprindo as leis necessárias para uma boa qualidade de
vida. A opção por questionários estruturados deu-se em parte pela facilidade
de coletar dados e também pela liberdade do respondente em acrescentar ob-
servações pessoais às respostas, enriquecendo o trabalho.
Primeiramente, procurou-se identificar as necessidades dos usuários de
cadeiras de rodas de maneira a entender o universo que o cerca e conhecer
suas dificuldades, suas escolhas e necessidades. Nesta primeira parte foi ex-

488
tremamente enriquecedora, pois, a partir destas informações pode-se conhecer
de maneira profunda o que eles pensam e como se comportam. O cadeirante
Vinícius relatou toda sua dificuldade para locomoção de sua casa à escola:
“Às vezes o que mais me incomoda é a falta de respeito das pessoas. Até moro
próximo a uma faixa de pedestre e a distância para a escola nem é tão grande,
porém, muitas vezes, tenho que esperar vários minutos para atravessar a faixa
e chegar à escola. As pessoas não cadeirantes deveriam ter mais consciência
com a gente”. Assim, durante o questionário foi possível observar as dificul-
dades pelas quais os usuários de cadeira de rodas passam em seu dia-a-dia.
Vinícius nos relata ainda: “Infelizmente não temos muitas rampas. As lomba-
das são muito altas, tornando isso muito difícil para mim que tenho muitas
dores no braço, sem falar nos motoristas que não nos respeitam muitas vezes
na faixa de pedestres. Acredito que os governantes precisam ter bom senso e
cumprir a lei que diz: todos têm o direito de ir e vir”. Mas infelizmente isso
ainda não acontece no nosso país. É dever do poder público tomar alguma
providência para melhorar a vida dessas pessoas.

4.1 Resultados

Causa da lesão
Essa primeira pergunta foi de grande valia, pois o resultado foi impressionante
quanto à questão da imprudência no trânsito. Todos os deficientes físicos que
participaram do questionário tiveram suas vidas interrompidas por causa de
acidente automobilístico. Acidentes de trânsito causam 40% dos casos de pa-
ralisia. As causas externas têm sido fatores expressivos no número de lesões
medulares, traumatismos crânio-encefálico e amputações. A população jovem,
nesses casos, é a mais afetada.

Em seu lar existem meios para facilitar sua locomoção?


Foi observada a dificuldade em que o entrevistado tem em sua locomoção na
sua própria casa. Nelas não há rampas e o espaço é muito pequeno para que
ele movimente-se com sua cadeira. “O único meio de facilitação para mim, em
minha casa é minha mãe (Giane de Freitas Pereira), é ela que me ajuda sempre
que preciso. O resto, como você pode observar, é bem complicado”.

489
Como está a acessibilidade onde você estuda?
A questão teve como objetivo saber qual era a relação do aluno com a escola.
Felizmente o aluno respondeu que sua escola vem desenvolvendo melhorias, e
que está feliz com as mudanças. Sua acessibilidade vem em ordem crescente:
“Os últimos anos não eram assim, minha mãe muitas vezes tinha que estar
junto comigo para que eu pudesse desenvolver minhas atividades”.

Sendo assim, a escola vem cumprindo com as leis para


sua melhoria de vida?
“Sim, agora posso ir à biblioteca e à sala de recursos sem muitas dificuldades,
além disso, tenho uma cuidadora (Eliana da Cruz Silva Cabral) para me ajudar
nas minhas maiores dificuldades.”

Quais são as barreiras que você encontra no seu dia-a-dia?


“As dificuldades que o portador de deficiência encontra no dia-a-dia são mui-
tas, principalmente na questão da acessibilidade, pois eles não podem se lo-
comover sozinhos. É preciso alguém para lhes acompanhar devido à falta de
infraestrutura nas cidades. Minha mãe está sempre comigo, sair sozinho real-
mente não dá. Eu tenho muitas dores nos braços e as lombadas, poucas rampas
pelas ruas são extremamente tristes para nos cadeirantes.”

O que mais te incomoda nas pessoas em relação ao preconceito, ele existe?


“Na minha infância passei por uma experiência não muito feliz, fui vítima de
agressão por conta de ser como sou. Os meninos não gostavam de mim, eram
de situação melhor que a minha. fui parar no hospital onde até hoje sofro com
a consequência em meu braço. A direção da escola antiga em que eu estudei
não fez nada, tinha medo, sei lá. Isso me machuca muito ate hoje, mas estou
superando, graças a Deus. Isso um dia vai mudar, assim espero. O preconceito
infelizmente está presente ainda em nossa sociedade. O olhar das pessoas nos
deixa muito tristes, eles acham que não sou capaz, mas eu sou, e quero um
dia mostrar para todos aqueles que um dia duvidaram de mim. Meu sonho é
ser um médico neurocirurgião, além de especialista na coluna. Quero ajudar
as pessoas. Quero que todos vejam que posso estar incluso na sociedade, que
posso ser igual.”

490
Atendimento prioritário está sendo respeitado em relação ao deficiente físico?
Segundo o Art. 9°, as instituições referidas no art. 1° devem estabelecer em
suas dependências alternativas técnicas, físicas ou especiais que garantam
atendimento prioritário para pessoas portadoras de deficiência física ou com
mobilidade reduzida, temporária ou definitiva, idosos, com idade igual ou
superior a sessenta e cinco anos, gestantes, lactantes e pessoas acompanhadas
por criança de colo mediante guichê de caixa para atendimento exclusivo.
Vinícius respondeu que: “Em muitos lugares, as pessoas fingem que não
estão me vendo para não ceder seus lugares. Aqui na porta da minha casa,
por exemplo, mesmo com uma placa em que diz respeitar os cadeirantes, ou
seja, a proibição de estacionamento de carros, eles estacionam, e, muitas ve-
zes, minha mãe ou avó têm que sair procurando o dono do veículo para tirar
da frente e a gente entrar”. Além da dificuldade que muitos sentem com suas
limitações, somam-se os problemas para conseguir viver com dignidade em
locais sem condições.

Como você classifica as ruas, avenidas e calçadas de sua cidade em relação


à acessibilidade? O que deve ser feito para melhorá-las?
“Difíceis de locomoção. As calçadas e quebra-molas deveriam seguir um padrão.”

Como o poder público local trabalha para proporcionar boas condições de


locomoção aos cadeirantes?
“Bom, sinceramente eu vejo poucas, mais felizmente já se observa algumas
calçadas mais baixas em nossa cidade, e isso com certeza é muito bom não
só pra mim, mas também para idosos, mães com carrinhos de bebês, etc., mas
eu tenho procurado também por diversas vezes o poder público de minha
cidade para conversar sobre uma hidroginástica. Talvez eu esteja sonhando,
mas eu, sinceramente, preciso. Meu fisioterapeuta me indicou isso e infeliz-
mente faltam profissionais.”

Acha que o Brasil possui todas as leis necessárias à boa qualidade de vida
do deficiente físico?
“Não, é preciso melhorar muito ainda, infelizmente todos percebemos que isso
existe somente no papel porque na vida real é bem diferente.”

491
No questionário foi possível observar as dificuldades pelas quais o alu-
no Vinícius, usuário de cadeira de rodas, enfrenta por falta de infraestrutura
adequada na sua cidade. Nas escolas foram percebidas a luta pela melhoria
de sua infraestrutura.

5. Conclusão

Apesar da crescente expansão do reconhecimento dos direitos dos portadores


de deficiência física no Brasil, ainda é grande o preconceito que cerca essa
minoria. Enfrentam-se desafios no cumprimento das leis vigentes, onde vários
direitos são reconhecidos somente com a interferência da justiça. Uma das
grandes dificuldades encontra-se na saúde pública, devido a alguns tratamen-
tos não serem custeados pelo SUS. Passa-se muito tempo lutando na justiça
para que os direitos constitucionais relacionados à vida sejam reconhecidos.
É importante ressaltar que, com relação à escola, os projetos desenvol-
vidos pelo Governo Federal, como o Projeto Escola Acessível, que tem trans-
formado as escolas em um ambiente que traz dignidade aos portadores de
deficiência física. Também com a implantação das Salas de Recursos Multi-
funcionais, os alunos com necessidades especiais podem aprender utilizando
instrumentos preparados para essa finalidade. Tudo isso tem trazido mudanças
significativas no desenvolvimento intelectual dessas minorias que participam
dos bancos escolares.
Após investigar as ações do dia-a-dia do aluno cadeirante, concluímos
que houve avanço quanto ao atendimento escolar, principalmente, quanto à
aprendizagem e qualidade de vida, porque houve a contratação de cuidadores,
banheiros adaptados, rampas, sala de recursos e pessoal de apoio especializado.

492
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494
Lívia Matielo, Verônica Timoteo,
Bárbara Ferreira
Discentes do curso de Educação em Direitos Humanos.

29
DIREITOS HUMANOS E A PESSOA COM DEFICIENCIA:
PANORAMA NACIONAL DAEDUCAÇÃO
INCLUSIVA NO BRASIL

Lívia Matielo
Verônica Timoteo
Bárbara Ferreira

1. Introdução

O tema em questão tem como objetivo principal abordar a temática dos di-
reitos da pessoa com deficiência no contexto histórico, bem como a educação
inclusiva, pois entende-se que a educação é um direito fundamental que tem
sido tematizado ao longo da historia da humanidade, por documentos, movi-
mentos, campanhas de afirmação e legitimação de direitos do homem. È nesse
contexto histórico que se resgata a educação como um lugar de exercício da
cidadania e da garantia de direitos, através do que é preconizado pela De-
claração Universal dos Direitos Humanos, uma sociedade mais justa em que
valores fundamentais são resgatados como igualdade de direitos e o combate
a qualquer forma de discriminação.
Nessa concepção de direitos humanos, a ONU em 1975 estabelece a
Declaração Universal dos Direitos da Pessoa com Deficiência, assim a Decla-
ração se tornou ponto de partida para a defesa da cidadania e do bem-estar
dessas pessoas. A mesma assegura direito essencial à própria dignidade hu-
mana. As pessoas com deficiência, independente da origem, natureza e gravi-
dade de suas incapacidades, têm os mesmos direitos que os outros cidadãos,
o que implica no direito de uma vida decente, tão normal quanto possível.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela
ONU em 2006, da qual o Brasil é signatário, estabelece que os Estados - Par-
tes devem assegurar um sistema de educação inclusiva em todos os níveis de
ensino, em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social
compatível com a meta da plena participação e inclusão, adotando medidas
para garantir que:

496
a. As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema edu- 1. ONU. Convenção das Nações Unidas para
cacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com Pessoas com Deficiência.

deficiência não sejam excluídas do ensino fundamental gratuito e


2. GUGUEL, Maria Aparecida. História da
compulsório, sob alegação de deficiência; pessoa com deficiência o Direito ao Traba-
b. As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino fundamen- lho. Florianópolis: Obra Jurídica, 2007.

tal inclusivo, de qualidade e gratuito, em igualdade de condições


com as demais pessoas na comunidade em que vivem (Art.24).

Portanto, a inclusão é um dos grandes desafios da educação contem-


porânea. Sendo assim, se faz necessário realizar a educação com base nos
princípios de participação plena e de igualdade. Mais que a inclusão de alunos
com necessidades especiais nas escolas regulares, a educação inclusiva de-
fende uma escola melhor, voltada para todos, inclusive crianças “especiais”.
A prioridade é de poder tratar a todos que compõe o universo escolar como
sujeitos e cidadãos.

2. Contextualização do atendimento à pessoa com deficiência

A história da pessoa com deficiência é marcada por fortes experiências de vio-


lações de direitos e exclusões sociais. A trajetória desses indivíduos foi marcada
por preconceitos e lutas em favor dos direitos da cidadania. São reconhecidas
como pessoas com deficiência aquelas que têm impedimentos de natureza física,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem
obstruir a participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas1.
Os estudos em torno da pessoa com deficiência estão em consonância
com fatores históricos, por estes revelarem a evolução da sociedade e as con-
sequentes edições de leis2. Assim, a abordagem do tratamento dado à pessoa
com deficiência ao longo da história da humanidade estimula a reflexão sobre
a exclusão social; o abandono vivenciado por essas pessoas.
O tratamento dado às pessoas com deficiência na antiguidade e entre
os povos primitivos foi marcado por violações, abandono, exclusão social,
preconceitos. Segundo diversos relatos históricos, as pessoas com deficiência
eram consideradas amaldiçoadas. Assim, desde os tempos mais remotos, a

497
3. GUGUEL, Maria Aparecida. História da pessoa com deficiência recebia um tratamento desumano, cruel e degradan-
pessoa com deficiência o Direito ao Traba- te, sendo consideradas pessoas inferiores em relação às outras. No período
lho. Florianópolis: Obra Jurídica, 2007.
Pré-historico não se tem indícios de como os grupos se comportavam em
4. IDEM. relação às pessoas com deficiência. Nesse período, os homens não plantavam
para o seu sustento e não havia comida em abundância. Seria praticamente
5. BORNIN, Daniela Queila dos Santos. A
impossível às pessoas com deficiência sobreviverem a um ambiente desfa-
dignidade da pessoa humana e igualdade:
breve estudo sobre a declaração universal vorável a elas.
dos direitos humanos e a pessoa com defi- Os povos hebreus consideravam indignos aqueles que eram cegos, cor-
ciência. 2009. cundas e coxos. Para eles, segundo suas crenças, essas pessoas eram consi-
deradas demoníacas. Assim, suas impurezas expressariam sinais corporais
que cristalizavam a evidência de maus espíritos3. No Egito antigo, as pes-
soas com deficiência integravam as diferentes classes sociais como faraós,
nobres, artesãos e escravos. Platão e Aristóteles, em suas obras, respecti-
vamente nas obras intituladas “Republica” e a “Política”, discorrem que as
pessoas nascidas “disformes” eram eliminadas, tanto por abandono quanto
jogado em apriscos.

A República, livro IV, 460c — Pegarão então os filhos dos homens su-
periores e levá-los-ão para o aprisco para junto de amas que moram a
parte, num bairro da cidade: os dos homens inferiores, e qualquer dos
outros que sejam disformes, escondê-los-ão em lugares interdito e ocul-
tos como convém4.

Ainda Aristóteles na Obra “Política”

A política, Livro VII, Capitulo XIV, 1335b — Quanto a rejeitar ou criar os


recém-nascidos, terá de haver uma lei segundo a qual nenhuma criança
disforme será criada, com vistas a evitar o excesso de crianças, se os
costumes das cidades impedem o abandono de recém-nascidos deve
haver um dispositivo legal limitando a procriação se alguém tiver um
filho contrariamente a tal dispositivo, deverá ser provocado o aborto
antes que comecem as sensações e a vida (a legalidade do aborto será
definida pelo critério de haver ou não sensação e vida)5.

498
As Leis romanas não eram favoráveis a pessoas com deficiência. De 6. FREITAS, Soraia Napoleão. O direito à edu-
acordo com a Lei das XII Tabuas, autorizava-se aos patriarcas matar seus cação para a pessoa com deficiência: con-
siderações acerca das políticas públicas. In:
filhos com deformidades físicas, por afogamento. Com o surgimento do Cris- BAPTISTA, C; JESUS, D. (Org.). Avanços em
tianismo, passou-se a um período marcado pela visão assistencialista e ca- Políticas de Inclusão: O contexto da edu-
ritativa, surgindo, então, os primeiros hospitais que abrigavam indigentes e cação especial no Brasil e em outros países.
Porto Alegre: Mediação/CDV/ FACITEC, 2009.
pessoas com deficiência.
No contexto histórico da pessoa com deficiência, tanto na idade média
quanto moderna, era evidente a exclusão, eliminação e a separação dessas pes-
soas da família e a ridicularização das mesmas em eventos públicos. Somente
após a revolução francesa, com a defesa humanista, a sociedade começou a
perceber que as pessoas com deficiência precisavam de atenção especializada.
Com a evolução da medicina, houve a busca por medicamentos que
curassem os indivíduos. Nessa busca de cura acontece o surgimento de orga-
nizações que estudam os problemas de cada deficiência, com ênfase em torno
da reabilitação5.
De acordo com Freitas (2009, p. 224):

Essa concepção de normalidade passa a permear as políticas públicas,


que, em vez de investirem em alternativas educacionais para esse públi-
co na educação comum, enfatizam a criação de instituições especializa-
das que se dedicam apenas à oferta de atendimentos médicos clínicos e
desprezam o âmbito educacional no desenvolvimento destes sujeitos. A
filantropia demarca a organização dessas instituições, e o setor privado
sem fins lucrativos avança nesta área, já que o Estado não assume a
educação destas pessoas, confundindo, em suas proposições políticas, o
direito à educação e ao atendimento educacional especializado6.

No Brasil, mais precisamente no século XIX, houve as primeiras ini-


ciativas de atendimento a pessoa com deficiência. No contexto do império
(1822–1889), surge o primeiro “hospital para o tratamento de pessoas alie-
nados” ligado à Santa Casa de misericórdia, através do Decreto n° 18 de ju-
lho de 1841. Em 1854, foi fundado o Imperial Instituto dos Meninos Cegos
(hoje atual Instituto Benjamim Constant) (IBC) e, em 1856, o Imperial Instituto
para Surdos-Mudos (hoje Instituto Nacional de Educação de Surdos-INES).

499
7. LANNA, Mário Cléber Júnior. As primeiras Em 1932, são criadas as sociedades Pestallozzi e, em 1954, as Associações de
ações e organizações voltadas para as pes- Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), ambas criadas pela sociedade civil,
soas com deficiência. 2011
com ações voltadas para a assistência na área da saúde e da educação. Com o
8. Declaração Universal dos Direitos Humanos. surto de poliomielite no país, são criados os primeiros centros de reabilitação
como a ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação), fundada em
1954, e também a AACD Associação de Assistência a Criança Defeituosa (hoje
Associação de Assistência a Criança Deficiente) de São Paulo.

Embora esse modelo representasse avanço no atendimento às pesso-


as com deficiência, ele se baseia em uma perspectiva exclusivamente
clinicopatológica da deficiência. Ou seja, a deficiência é vista como
causa primordial da desigualdade e das desvantagens vivenciadas pe-
las pessoas. O modelo médico ignora o papel das estruturas sociais
na opressão e exclusão das pessoas com deficiência, bem como des-
conhece as articulações entre deficiência e fatores sociais, políticos e
econômicos7. (grifo nosso)

3. Educação um direito humano fundamental

De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo


XXVI, toda pessoa tem direito à educação obrigatória e gratuita, pelo menos,
na educação infantil, fundamental e média.

1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo


menos, nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar
será obrigatória. A instrução técnica profissional será acessível a todos,
bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução
será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade
humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e
pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão,
a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou
religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da
manutenção da paz8.

500
A Constituição Federal Brasileira de 1988, a nossa Lei maior, em seu arti- 9. MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O Direito
go 6°, dispõe sobre os direitos sociais, dentre os quais está o ensino universal. à Educação. p 45.

Também está explícito nos artigos 205 a 214 que compete a União, legislar, de 10. BRASIL. Estatuto da Criança e do Ado-
forma privativa, sobre as diretrizes e bases da educação nacional. Desse modo, lescente E Legislação Congênere. 2011
a efetivação da educação enquanto um direito fundamental ao desenvolvi-
11. IDEM.
mento pleno do ser humano, como um instrumento de transformação social, é
compreendida como um direito à própria dignidade do homem. Nesse sentido,
Regina Muniz discorre que:

Os direitos fundamentais são os direitos do ser humano, reconhecidos


e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Es-
tado, enquanto direitos humanos têm relação com o direito interna-
cional, pois se referem ao ser humano como tal, independente de sua
vinculação com uma determinada ordem constitucional, sendo válidos
para todos os homens em todos os tempos e lugares, revelando um
caráter supranacional.9

O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº. 8.069, promulgada em 13


de julho de 1990, dispõe, em seu Art. 3º, que:

a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais ine-


rentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, que são as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e
de dignidade.10

Afirma, também, que:

é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder


público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos re-
ferentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária (Art.4º).11

501
A política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência,
prevista no Decreto 3298/99, adota os seguintes princípios:

1. Desenvolvimento de ação conjunta do Estado e da sociedade civil,


de modo a assegurar a plena integridade da pessoa portadora de
deficiência no contexto socioeconômico e cultural;
2. Estabelecimento de mecanismos e instrumentos legais e operacionais
que assegurem às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício
de seus direitos básicos que, decorrentes da Constituição e das leis,
propiciam o seu bem-estar pessoal, social e econômico;
3. Respeito às pessoas portadoras de deficiência, que devem receber
igualdade de oportunidades na sociedade, por reconhecimento dos
direitos que lhes são assegurados, sem privilégios ou paternalismos.

No que se refere especificamente à educação, o Decreto estabelece a ma-


trícula compulsória de pessoas com deficiência, em cursos regulares, a con-
sideração da educação especial como modalidade de educação escolar que
permeia transversalmente todos os níveis e modalidades de ensino, a oferta
obrigatória e gratuita da educação especial em estabelecimentos públicos de
ensino, dentre outras medidas (Art. 24, I,II,IV).
Para as Nações Unidades, os direitos da pessoa com deficiência tem sido
uma prioridade em sua agenda. Neste sentido, recentemente foi criada a Con-
venção das Nações Unidas sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu
Protocolo Facultativo foi adotado em 2006, entrando em vigor em 3 de maio
de 2008. A Convenção afirma que todas as pessoas com todos os tipos de
deficiência devem desfrutar de todos os direitos humanos fundamentais e as-
sim elevarem-se a um patamar de pessoas “sujeitos” de direitos e capazes de
reivindicar esses direitos e não mais pessoas caracterizadas como “objetos”,
dependentes da caridade de outros. Reconhece-se, assim, a necessidade de
promover e proteger os direitos humanos de todas as pessoas com deficiência.
A Convenção, além de tratar dos princípios e obrigações, também dispõe sobre
a igualdade e não discriminação, conscientização, acessibilidade, direito a vida,
reconhecimento igual perante a Lei, acesso à justiça, liberdade e segurança da pes-
soa, prevenção contra a tortura ou os tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou

502
degradantes, prevenção contra a exploração, à violência e o abuso, entre outros.
Em relação à educação de pessoas com deficiência, a citada Convenção dispõe
que, para a realização desse direito, os Estados signatários deverão assegurar que:

a. As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema edu-


cacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com
deficiência não sejam excluídas do ensino fundamental gratuito e
compulsório, sob a alegação de deficiência;
b. As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino fundamen-
tal inclusivo, de qualidade e gratuito, em igualdade de condições
com as demais pessoas na comunidade em que vivem;
c. Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais se-
jam providenciadas;
d. As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do
sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;
e. Efetivas medidas individualizadas de apoio sejam adotadas em am-
bientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, com-
patível com a meta de inclusão plena.

Os Estados devem facilitar a plena e igual participação de pessoas com


deficiência na educação e na vida em comunidade, assegurando a possibilida-
de de aprender as habilidades necessárias à vida e ao desenvolvimento social
(ONU 2006). Nessa direção, Sassaki (2004), a partir do artigo 24 da Convenção
que trata do direito a “educação” afirma que a escola deve receber todo o tipo
de aluno e oferecer-lhe uma educação de qualidade, considerando cada um
a partir da realidade em que chega à escola, independente de sua raça, etnia,
gênero, situação econômica, deficiências e etc.

4. Educação Inclusiva

Em seus documentos, a UNESCO (1998) afirma a sua opinião de que a inclusão


de alunos com necessidades educativas especiais resulta de um processo de
reforma total do sistema educativo tradicional, cuja meta é a criação de uma

503
12. Diretrizes Nacionais de Educação Espe- escola comum que ofereça uma educação diferenciada a todos, em função de
cial na Educação Básica (2001, p.35). suas necessidades e num marco único e coerente de planos de estudos.
A Política Nacional de Educação Especial no Brasil prevê alternativas
13. (MEC/SEESP, 2001)
que priorizam o atendimento educacional às pessoas com necessidades edu-
14. BRUNO E MOTA (2001) BRUNO & cacionais especiais.
MOTA. Programa de capacitação e recursos
As Diretrizes Nacionais de Educação Especial na Educação Básica afirma
humanos do Ensino Fundamental: defici-
ência visual. Vol. 2. Brasília: Ministério da que “os serviços de educação especial podem ser oferecidos em classes espe-
Educação, Secretaria de Educação Especial, ciais, escolas especiais, classes hospitalares e em ambientes domiciliar”12. As
2001. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, Resolução
CNE/CEB nº 2/2001, no artigo 2º, determinam que:

Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às


escolas organizarem-se para o atendimento aos educando com neces-
sidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias
para uma educação de qualidade para todos. (MEC/SEESP, 2001).13

A atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96,


no artigo 59, preconiza que os sistemas de ensino devem assegurar aos alunos
currículo, métodos, recursos e organização específicos para atender às suas
necessidades;assegura a terminalidade específica àqueles que não atingiram o
nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas de-
ficiências; e assegura a aceleração de estudos aos superdotados para conclusão
do programa escolar. Também define, dentre as normas para a organização da
educação básica, a “possibilidade de avanço nos cursos e nas séries mediante
verificação do aprendizado” (art. 24, inciso V) e “[…] oportunidades educa-
cionais apropriadas, consideradas as características do aluno, seus interesses,
condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames” (art. 37). Quanto
aos currículos escolares os autores, BRUNO E MOTA (2001) preconiza que:

Devem ser os mesmos da rede de ensino regular, precisa sofrer adapta-


ções, criando-se estratégias que respeitem o ritmo de aprendizagem dos
alunos portadores de deficiência visual e os interesses correspondentes
a sua faixa etária. Não se deve facilitar ou aplicar conteúdos mais fáceis
pelo aluno ser portador de alguma deficiência.14

504
Contudo, para o processo de inclusão de pessoas com necessidades edu-
cacionais especiais acontecer, precisam ser tomadas algumas medidas como:
preparação da comunidade escolar, Oferta de cursos de capacitação e aperfei-
çoamento em educação especial para professores de classe comum.
O Plano Nacional de Educação – PNE, Lei nº 10.172/2001, destaca que “o
grande avanço que a década da educação deveria produzir seria a construção
de uma escola inclusiva que garantisse o atendimento à diversidade humana”.
Ao se estabelecer objetivos e metas para que os sistemas de ensino favo-
reçam o atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos, apon-
ta-se um déficit referente à oferta de matrículas para alunos com deficiência
nas classes comuns do ensino regular, à formação docente, à acessibilidade
física e ao atendimento educacional especializado.

Contrariando a concepção sistêmica da transversalidade da educação


especial nos diferentes níveis, etapas e modalidades de ensino, a educa-
ção não se estruturou na perspectiva da inclusão e do atendimento às
necessidades educacionais especiais, limitando, o cumprimento do prin-
cípio constitucional que prevê a igualdade de condições para o acesso
e permanência na escola e a continuidade nos níveis mais elevados de
ensino (2007, p. 09).

A Política Nacional de Educação Especial, na Perspectiva da educação In-


clusiva, tem como objetivo o acesso, a participação e a aprendizagem dos alu-
nos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilida-
des /superdotação habilidades/superdotação nas escolas regulares, orientando
os sistemas de ensino para promover respostas às necessidades educacionais
especiais, garantindo:

• Transversalidade da educação especial desde a educação infantil até


a educação superior;
• Atendimento educacional especializado;
• Continuidade da escolarização nos níveis mais elevados do ensino;
• Formação de professores para o atendimento educacional especiali-
zado e demais profissional da educação para a inclusão escolar;

505
• Participação da família e da comunidade;
• Acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários e equipa-
mentos, nos transportes, na comunicação e informação;
• Articulação intersetorial na implementação das políticas públicas.

4.1 Panorama da educação inclusiva

A escola que temos e a escola que é necessária


Na perspectiva da educação inclusiva, a educação especial passa a integrar a
proposta pedagógica da escola regular, promovendo o atendimento às neces-
sidades educacionais especiais de alunos com deficiência, transtornos globais
de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Nestes casos e outros,
que implicam em transtornos funcionais específicos, a educação especial atua
de forma articulada com o ensino comum, orientando para o atendimento às
necessidades educacionais especiais desses alunos.15
Segundo a Política Nacional de Educação Especial do MEC (1994), a inclusão:

É um processo dinâmico de participação das pessoas num contexto


relacional, legitimando a sua interação nos grupos sociais. Para que
a inclusão se torne realidade torna-se elemento essencial à recipro-
cidade, isto é, cada componente deve oferecer aos indivíduos com
necessidades especiais modos e condições de vida diária o mais se-
melhantes possível às formas e condições de vida do resto da socie-
dade, não se trata de normalizar as pessoas, mas sim o contexto em
que se desenvolvem.

Um aspecto importante da educação inclusiva é que a escola é quem tem


que se adequar para atender as necessidades do aluno e não o aluno que tem
que se adaptar a escola. No entanto, a escola tem vivenciado uma realidade
difícil no cenário da educação inclusiva, pois apesar das políticas públicas
afirmarem a inclusão escolar, não tem mostrado mudanças significativas no
sistema educacional. Blanco (2005, p. 07),

506
Os sistemas educacionais seguem oferecendo respostas homogêneas, que 16. Fogaça, Jennifer. Educação Inclusiva.
não satisfazem às diferentes necessidades e situações do alunado, o que (SILVA e RETONDO, 2008, p. 2).

se reflete em altos índices de reprovação e evasão escolar, que afetam em


maior medida às populações que estão em situação de vulnerabilidade.

Uma escola inclusiva tem suas vantagens, pois ela respeita, é igualitária,
é promovida por valores para a sociedade com resultados visíveis de paz social
e cooperação. Contudo, o discurso da educação inclusiva se contradiz à reali-
dade educacional, pois as escolas têm sido caracterizadas por salas superlota-
das, instalações físicas insuficientes e docentes com pouco preparo para aten-
dimento especializado. Silva e Retondo (2008) cita Bueno (1999), dizendo que:

de um lado, os professores do ensino regular não possuem preparo míni-


mo para trabalhar com crianças que apresentem deficiências evidentes
e, por outro, grande parte dos professores do ensino especial tem muito
pouco a contribuir com o trabalho pedagógico desenvolvido no ensino
regular, na medida em que têm calcado e construído sua competência
nas dificuldades específicas do alunado que atendem.16

Além de os educadores não serem bem preparados, as próprias institui-


ções de ensino não contam com recursos didáticos que visam à atender as
necessidades dos alunos.
A escola se torna inclusiva quando reconhece as diferenças dos alunos
diante do processo educativo e busca a participação e o progresso de todos,
adotando novas práticas pedagógicas. Não é fácil e imediata a adoção dessa
nova prática, pois ela depende de mudanças que vão além da escola e da sala
de aula. Para que essa escola possa se concretizar, é patente a necessidade de
atualização e desenvolvimento de novos conceitos, assim como a redefinição e
a aplicação de alternativas e práticas pedagógicas e educacionais compatíveis
com a inclusão. O ambiente da escola precisa ser acessível a todos os alunos
e principalmente a pessoas com deficiências, sendo necessária a existência de
mobiliários como: mesas, bebedouros, quadros de aviso, equipamentos, entre
outros que estejam em acordo com as necessidades desses indivíduos para que

507
17. (MONTE E SANTOS: 2004, apud Munhóz os mesmos possam se movimentar nas salas de aula. Assim também, sanitá-
p 57). Educação infantil no sistema educa- rios, pátios, bibliotecas e outros devem ser acessíveis.
cional inclusivo.
A escola necessária deve estar pautada na formação de sujeitos de direi-
18. IDEM. tos críticos e atuantes, que lutam em prol de seus direitos e ideais e da busca de
uma formação adequada. Uma escola onde o aluno possa refletir sobre o res-
peito ao próximo, e também que leve à emancipação o individuo, tornando-o
capaz de questionar os padrões sociais e políticos do nosso país.
As escolas inclusivas representam um marco favorável para garantir a igual-
dade de oportunidades e a completa participação. Elas contribuem para uma edu-
cação personalizada, fomentam a solidariedade entre todos os alunos e melhora
a relação custo-benefício de todo o sistema educacional. A educação inclusiva
implica uma visão diferente da educação comum, compreendendo uma diversifi-
cação de ofertas que assegurem que todos os alunos obtenham as competências
básicas estabelecidas no currículo escolar. As escolas inclusivas devem promover
o favorecimento de atividades de valorização do respeito às diferenças, de uma
cultura de paz e de uma sociedade mais justa e solidária, garantindo a todos o
direito à educação e à igualdade de oportunidades e o direito à participação.17

a educação inclusiva deve ter como ponto de partida o cotidiano: o cole-


tivo, a escola e a classe comum, onde todos os alunos com necessidades
educacionais, especiais ou não, precisam aprender ter acesso ao conhe-
cimento, à cultura e progredir no aspecto pessoal e socia.18

Para que haja o processo de inclusão de pessoas com deficiência no âmbito


escolar é necessário uma mudança qualitativa no trabalho educacional no interior
das escolas, o que requer um envolvimento de todos os profissionais da educação,
alunos e pais, na reorganização do espaço e do tempo da escola, transformando o
ambiente educacional num ambiente acolhedor, solidário e participativo.
Portanto, o movimento de inclusão demonstra a ideia de que a sala de
aula do ensino regular de uma escola comum é o local ideal para a aprendi-
zagem do aluno com necessidades educativas especiais. Assim, uma escola
inclusiva é uma escola onde todos os cidadãos são respeitados e estimulados a
aprender de acordo com as suas capacidades.

508
5. Considerações Finais

A inclusão é um desafio que, ao ser devidamente enfrentado pela es-


cola, provoca melhoria da qualidade da educação, pois para que os todos
alunos, com deficiência ou não, possam exercer o direito à educação em
sua plenitude, é indispensável que a escola aprimore sua práticas, a fim de
atender às diferenças. Esse aprimoramento é necessário, sob pena de os alu-
nos passarem pela experiência educacional sem tirarem o proveito desejável,
comprometendo um tempo que é valioso e irreversível em suas vidas: o mo-
mento do desenvolvimento.
À medida que a sociedade vem evoluindo, têm sido registradas ações de
promoção aos direitos da sociedade. As pessoas com deficiência, que antes
eram lançadas à própria sorte, aos poucos, vêm ganhando espaço e conquis-
tando direitos que são assegurados em legislações, embora muitas vezes, na
realidade, não efetivados. Em se tratando de educação inclusiva, observa-se
que são feitas criticas em relação à instituição escolar e à educação oferecida.
Contudo, acredita-se que a educação é capaz de promover uma melhor qua-
lidade de vida para todos e que, para se efetivar enquanto direito de todos,
deve haver uma articulação entre as políticas públicas e as ações dos diferentes
segmentos da sociedade.
Nesse sentido, conclui-se que as instituições de educação devem fazer
de modo continuo avaliações em seu projeto político pedagógico, a fim de
aprimorar e inovar propostas de inclusão, revendo-se, assim, os conceitos
de uma educação inclusiva para que haja o desenvolvimento das pessoas
com deficiências.

509
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