Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Educação em
Direitos Humanos III
Vitória
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
1
FUNDAMENTOS HISTÓRICO-FILOSÓFICO DA
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS (EDH)
10
dimensão de um direito natural relativo, visto que inerentes às necessidades
básicas do homem, depois de sua queda. (MAGALHÃES, 1992, p. 29).
A defesa da igualdade de todos os homens numa mesma dignidade fica
bem clara na formulação de São Paulo, na sua Epístola aos Gálatas, cap. 3,
versículo 27-28, onde assim se manifesta: “Não há judeu nem grego, não há
escravo nem homem livre; todos sois um só em Cristo”.
Posteriormente, a idéia de direito natural será desenvolvida na obra dos
dois grandes doutores do pensamento católico: Santo Agostinho e São Tomás
de Aquino. Para o primeiro, as leis divinas (direito natural absoluto) eram
superiores às leis temporais e, em caso de conflitos, as últimas deveriam ser
declaradas sem efeitos. Os direitos naturais relativos, consequência do pecado,
deveriam estabelecer-se sob a orientação da Igreja, esta como guardiã da lei
eterna de Deus. (MAGALHÃES, 1992, p. 23).
São Tomás distinguia quatro classes de lei: a Lei Eterna, sendo esta a
razão de tudo, dirigindo todos os movimentos e ações do universo; a Lei Na-
tural, que possibilita ao homem distinguir o bem e o mal, e por tal razão deve
ser guia invariável e imutável da lei humana. Lei Divina, que vem a ser o ato
de vontade do governo temporal, devendo este observar os princípios da Lei
Eterna, refletido na Lei Natural. (MAGALHÃES, 1992, p. 31).
Entendia São Tomás que o indivíduo se encontrava no centro de uma or-
dem social e jurídica justa, devendo, no entanto, o direito laico, definido pelo
imperador, rei ou príncipe, submeter-se às leis emanadas de Deus.
A idéia de um direito natural irá povoar todo o pensamento que se
desenvolve com as várias mudanças que ocorrem a partir do século XVI, e
nas concepções de autores como Hugo Grotius, Hobbes, Spnoza, Pufendorf,
Rousseau, Locke, Kant, para citarem-se os mais expressivos, caracterizando-
-se como uma fase clássica dos direitos naturais. “Postulava-se a existência
de valores inerentes à condição humana e decorrente da própria natureza”
(DALLARI, 2010, p. 101).
No arcabouço dessas várias vertentes, podemos identificar uma caracte-
rística comum, que é a idéia de um direito universal, que transcende a lei par-
ticular de um determinado Estado. Do quadro paradigmático do direito natural
e da dicotomia direito natural e direito positivo nasce toda problemática em
torno dos direitos humanos fundamentais. (FABRIZ, 2003, p. 234).
11
Celso Lafer, levando em consideração as várias vertentes de reflexão em
torno da idéia de direitos naturais, e admitindo a diversidade de entendimen-
tos, afirma a possibilidade de se identificar um paradigma de pensamento,
referente ao direito natural. Dentre os vários pontos que viabilizam essa pos-
sibilidade, destacam-se os seguintes: a idéia de imutabilidade; universalidade;
a função de qualificar determinada conduta como boa, justa, má ou injusta,
determinando uma contínua vinculação entre norma e valor, importando uma
permanente aproximação entre direito e moral. O acesso a esses direitos dá-se
por intermédio da razão, da intuição ou da revelação. Daí o fato de seus prin-
cípios serem dados, e não postos em convenção. (LAFER, 1988, p. 36).
Nota-se que o direito natural, em relação ao direito positivado, apre-
senta-se como um sistema de valores, universais e imutáveis. Lafer distingue
dois planos na elaboração doutrinária dos direitos naturais: o ontológico e o
deontológico. Nesse sentido procede a seguinte análise:
12
dualista da sociedade e da história. O jusnaturalismo chega ao seu apogeu com
o advento da ilustração. O entendimento de um direito racional, universalmen-
te válido, teve grandes desdobramentos com o constitucionalismo moderno.
A doutrina do direito natural, muito criticada por diversos flancos, nos
fins do século XVIII e na primeira metade do século XIX, por autores como
Edmund Burke, escola histórica alemã (com Savigny à frente), Marx e Engel,
dentre outros, entra em declínio.
Ensina Dallari que os séculos XVII e XVIII foram marcados pela ascensão
política da burguesia, tendo por consequência a firmação de novos padrões de
organização política. A acumulação de fatores históricos, inclusive a definição de
valores humanistas externada em séculos anteriores, deu a base política, econô-
mica e social para que se desencadeassem os movimentos de rebelião e renovação
que podem ser caracterizados como revoluções burguesas. (DALLARI, 2010, p.99).
A experiência jurídica dos séculos XIX e XX determinou uma preponde-
rância do direito positivo em relação ao direito de inspiração natural, identifi-
cando-se tão-somente como Direito aquilo que emanava das leis positivadas,
promovendo a separação entre Direito e Moral. (FABRIZ, 2003, p. 236).
A crença em um direito positivado, fruto da razão, é determinante na aven-
tura modernizante que a humanidade se lançou ao longo dos últimos três séculos.
13
e diante da lei”. Com aspirações universalistas declara-se que certos direitos
são inerentes ao ser humano em qualquer lugar e em qualquer época. Quais
são esses direitos? A igualdade, a liberdade, a propriedade. São considerados
direitos naturais e imprescritíveis.
Por outro lado, quando tratou sobre os direitos dos cidadãos, verificou-se
que nem todos os indivíduos poderiam ser titulares de certos direitos. Para usu-
fruir de determinados direitos ligados à cidadania os indivíduos deveriam ter uma
ligação jurídico-política com determinada nação. No caso, a nação francesa. Para
ilustrar essa condicionante utiliza-se o artigo V da referida Declaração que esta-
belece que “todos os cidadãos são igualmente admissíveis ao emprego público”.
Antes do advento da Revolução Francesa a Inglaterra já contava com
importantes documentos que asseguravam direitos aos membros do seu povo,
desde 1215 com a Magna Carta; a Petição de Direitos de 1628; com a Lei do
Habeas Corpus de 1679 e a Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689.
Vale ressaltar a Declaração dos Direitos do Bom Povo de Virgínia de 16
de junho de 1776 destacando no artigo 2° que toda autoridade pertence ao
povo e por conseqüência dela se emana.
Os direitos ligados ao exercício das liberdades públicas (religião, expres-
são, locomoção etc.), aliado aos direitos políticos, quando declarados em um
documento denominado Constituição passam a ser chamados de direitos fun-
damentais. Nesse sentido a partir do constitucionalismo moderno vinculado
às matrizes inglesa, francesa e norte-americana, todos os países passaram a
adotar uma constituição de Estado. Os direitos declarados nesses documentos
são direitos matrizes posto que concedam fundamento aos demais direitos.
Desse modo os direitos fundamentais podem ser considerados direitos dos ci-
dadãos de um determinado tempo e lugar, isto é, num Estado concreto – pers-
pectiva nacional – o constitucional.
Vê-se, desse modo, que Direitos Fundamentais (em sentido específico)
constituem uma categoria especial do direito constitucional. Revestem-se es-
ses direitos de essencialidade para a vida de qualquer indivíduo, uma vez que
tocam as dimensões da liberdade e da dignidade. A concepção de direitos
fundamentais surge do entendimento e da necessidade de se criar mecanismos
contra os abusos do poder estatal. A autoridade deve ser controlada por um
conjunto de direitos que visem mediar as relações entre governantes e go-
14
vernados, estabelecendo-se o respeito à liberdade individual e a igualdade de
todos perante a lei.
Os horrores perpetrados pelas grandes Guerras Mundiais imprimiram a
necessidade de se criar mecanismos jurídicos, em âmbito internacional, capa-
zes de proteger os direitos denominados humanos. Aproveitou-se o momento
de extraordinária comoção internacional para que o mundo compreendesse da
necessidade de se criar mecanismos jurídicos de âmbito internacional a fim de
impedir os abusos cometidos contra a pessoa humana.
Em 1948, a Organização das Nações Unidas adota a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, proclamada pela Resolução n° 217 A (III) da
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro. Inaugura-se, desse
modo o Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos. Desde o advento da
referida Declaração, vários documentos surgiram cujo conteúdo básico refere-
-se à tutela dos Direitos Humanos. A título de exemplo pode-se citar o Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966; o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966; a Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem de 1948; a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica – de 1969, dentre outros.
A essa altura, pode-se afirmar que Direitos do Homem, Direitos Fun-
damentais e Direitos Humanos convergem para um mesmo sentido que é o
resguardo da pessoa humana contra qualquer tipo de opressão. São direitos
que buscam viabilizar a vida em liberdade e com dignidade. Nesse sentido a
teoria contemporânea tem consagrado a expressão “Direitos Humanos Funda-
mentais” para abarcar as várias denominações, conforme acima foi explanado.
Destaque-se que a Constituição Federal Brasileira de 1988, em seus §§ 2°
e 3°, deixa bem claro ao estabelecer que os direitos humanos declarados nos
tratados internacionais em que o Brasil faz parte são recepcionados com status
de Direitos Fundamentais. Vale dizer que os direitos humanos positivados nos
tratados e convenções internacionais que o Brasil tenha aderido devem ser ob-
servados e respeitados internamente, podendo o indivíduo que sofrer qualquer
lesão provocar o Poder judiciário para ver o seu direito respeitado.
Resumo: Diante do exposto temos que a expressão “Direitos do Homem”
refere-se aos direitos de todas as pessoas em qualquer lugar e em qualquer épo-
ca. São direitos denominados de naturais posto que sejam considerados inatos.
15
Os Direitos Fundamentais são aqueles proclamados nas constituições
políticas dos Estados nacionais. São direitos formalmente fundamentais uma
vez que são escritos (positivados). Vide o art. 5º, por exemplo, da Constituição
Brasileira de 1988. Nesse sentido, direitos fundamentais é parte do Direito
Constitucional do Estado.
Os Direitos Humanos, por sua vez, são aqueles direitos declarados nos
tratados e convenções internacionais. Fazem parte do Direito Internacional.
São identificados como Direito Internacional dos Direitos Humanos.
No Brasil, a Constituição de 1988, em seu art. 5º, §§ 2° e 3° recepciona os
Direitos Humanos dos Tratados Internacionais na condição de Direitos Funda-
mentais, concedendo unidade aos mesmos.
16
• CUMULÁVEIS (ou concorrentes) – podem ser exercidos ao mesmo tem-
po. Exemplo: direito de informação e liberdade de manifestação do pen-
samento (CF. art.5. IV e XXXIII).
• IRRENUNCIÁVEIS: podem deixar de ser exercidos, mas nunca renun-
ciados. Exemplo: não-ajuizamento do mandado de segurança, algo que
não o retira da Constituição (CF. art. 5. LXIX).
• INALIENÁVEIS: São indisponíveis. Os titulares não podem vendê-los,
aliená-los, comercializa-los, pois não têm conteúdo econômico. Exem-
plo: função social da propriedade não pode ser vendida porque não
corresponde a um bem disponível (CF. art. 5., XXIII).
• IMPRESCRITÍVEIS – não prescrevem, uma vez que não apresentam ca-
ráter patrimonial. Exemplo: direito à vida (CF. art. 5 caput).
• RELATIVOS (ou limitados) – nem todo direito ou garantia fundamental
podem ser exercidos de modo absoluto e irrestrito, salvo algumas exceções.
A conquista dos Direitos dá-se num plano histórico. Surgem primeiro como
valores que são compartilhados e internalizados. Surgem a partir da consci-
ência dos homens e das mulheres. Da luta pelo respeito a esses valores, numa
segunda fase, ocorre a positivação, ou seja, são escritos em determinado docu-
mento jurídico. Pode-se afirmar, desse modo, que os direitos declarados hoje
17
são fruto de uma contínua luta de afirmação de valores que brotam de nossas
consciências e que se tornam fundamentais para que possamos viver uma vida
em liberdade e dignidade.
De forma didática, têm-se tratado sobre esses direitos numa perspectiva ge-
racional. Direitos de primeira, segunda e terceira gerações. Alguns autores (Ingo
W. Sarlet, p.ex.) preferem utilizar a expressão dimensões no lugar de gerações.
18
nados são direitos ligados à idéia de liberdade e igualdade no plano meramen-
te formal, destacando-se a propriedade privada concebida como um direito
fundamental absoluto.
19
privada que não cumpre a sua função social é suscetível de desapropriação por
parte do poder público.
No plano interno o Brasil estabeleceu na Constituição de 5 de outu-
bro de 1988, no seu artigo 6º os direitos sociais, sendo eles a educação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Os referidos direi-
tos fundamentais recebem tratamento normativo tanto no corpo da própria
Constituição, principalmente no âmbito da Ordem Econômica e Ordem Social,
além da legislação infraconstitucional.
No contexto internacional o Pacto Internacional dos Direitos Econô-
micos, Sociais e Culturais, adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI) da As-
sembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 e ratificada,
pelo Brasil, em 24 de janeiro de 1992, constitui uma das principais fontes
desses direitos denominados de segunda geração. O Artigo 1- Parte I do
mencionado Pacto estabelece que todos os povos têm o direito à autodetermi-
nação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político
e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
O referido Pacto reconhece ainda os direitos referentes ao trabalho; salário
digno; sindicalização; proteção da família; proteção contra a fome; direito
à educação; participação na vida cultural; dentre outros direitos de cunho
social, econômico e social.
Os direitos sociais podem ser considerados, dessa forma, prestações po-
sitivas do Estado, visando a proporcionar aos menos favorecidos meios de
subsistência com dignidade. Em sua grande maioria são serviços prestados
pelo poder público (serviços ligados à educação, saúde, assistenciais, previden-
ciários, de lazer e proteção dos hipossuficientes, em geral). Esses serviços são
reconhecidos sob a alcunha do interesse público primário.
Ensina Bulos (2008, p. 624-625) que os direitos sociais são direitos de
crédito, pois envolve poder de exigir, por meio de prestações positivas do Es-
tado. Considera-se o Estado como o sujeito passivo desses direitos; ou seja: é
dever do Estado propiciar proteção à saúde (art. 196 da CF), promover a edu-
cação (art. 205 da CF), incentivar a cultura (art. 215 da CF) etc.
Os direitos sociais podem ser classificados em direito do trabalhador; da
seguridade social (saúde, previdência social e assistência social); educação;
20
cultura; lazer, segurança; moradia; da família; da criança; do adolescente e
do idoso; dos grupos, compreendendo a liberdade sindical, direito de greve,
cogestão e autogestão.
21
texto do século XX, a conquista dos direitos de segunda dimensão. A partir
da década de 70 do século vinte aos dias de hoje, com a constante construção
do Estado democrático de direito, os direitos de terceira geração ou dimensão
vêm se inscrevendo nos mais variados documentos nacionais (constituições) e
internacionais (tratados e convenções).
Para uma melhor compreensão e didatismos, a partir das gerações/di-
mensões, conforme acima descrito, pode-se discriminar e conceituar esses di-
reitos da seguinte forma:
22
fação do interesse refere-se à satisfação de toda sociedade. (PINHO, 2002). São
direitos de feitio promocional e educativo. Exemplos: meio ambiente; direito
do consumidor; direito das gerações futuras; vida em paz; direito ao desenvol-
vimento; direito à informação etc.
23
recimento e informação que podem ser fornecidos por processos educativos
(direito à educação) ou direitos ligados à comunicação social, por exemplo.
Outra questão importante que vem sendo colocada no âmbito dos direitos
humanos é a necessária compreensão desses direitos num plano transdisciplinar.
Krohling (2009, p. 139) alerta para a fragmentação do saber e os perigos
da especialização que, muitas vezes, acabam por impedir uma visão global dos
fenômenos. Escreve o citado autor que nas instituições universitárias cresceu a
departamentalização do saber. Nos currículos dos cursos de ciências humanas
foram introduzidos os princípios do taylorismo. Separou-se o sujeito do objeto.
Tal processo de fragmentação também ocorreu na divisão técnica do trabalho.
No campo dos direitos humanos, tal fragmentação também se verifica na
medida em que se passou a separar esses direitos em gerações ou dimensões.
Essa segmentação permitiu a afirmação de alguns direitos individuais a uma
pequena parcela da sociedade e a sonegação dos direitos de segunda dimensão
à grande maioria das pessoas.
Nessa perspectiva, Krohling, apoiado na teoria da complexidade de Ed-
gard Morin, postula a aceitação do princípio da complementaridade nas ciên-
cias humanas (2009, p. 143). Tal postulado também deve reverberar no con-
texto da educação em Direitos Humanos.
Herrera Flores (2009) destaca que os Direitos Humanos se converteram
no grande desafio do século XXI. Esse desafio se expressa tanto no plano te-
órico e prático.
Admitindo a importância do grande esforço que foi realizado em prol dos
Direitos Humanos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
até os dias de hoje; lembra, todavia, que o contexto de hoje é bem diferente.
Ainda, Herrera Flores (2009), ressalta que atualmente estamos diante de um
novo contexto social, econômico, político e cultural que se inicia a partir da
queda do muro de Berlim.
Nesse sentido, o contexto atual exige uma teoria que dê atenção especial
aos contextos concretos em que vivemos e uma prática – educativa e social
– de acordo com o presente que estamos atravessando (HERRERA FLORES,
2009, p. 31).
Nessa perspectiva, Herrera Flores constrói uma teoria crítica dos direitos
humanos como via de acesso aos mesmos no contexto do atual momento histó-
24
rico. Conforme o citado autor, os direitos humanos, mais que direitos “propria-
mente ditos”, são processos. Ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que
os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para
a vida. Para Herrera Flores, os direitos humanos não podem ser confundidos
com os direitos positivados no âmbito nacional ou internacional. (2009, p. 34).
Partindo do pressuposto que não são as declarações, convenções e cons-
tituições que criam os direitos, mas as lutas e ações das pessoas, Flores des-
taca que falar em dignidade humana não implica em fazê-lo a partir de um
conceito abstrato, posto que a mesma constitui-se em um fim material. Para
o autor, “trata-se de um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e
generalizado aos bens que fazem com que a vida seja ‘digna’ de ser vivida”
(HERRERA FLORES, 2009, p. 37).
Destaca ainda, que as lutas jurídicas são muito importantes para a efeti-
vidade desses direitos. Mas rechaça as pretensões intelectuais que se apresen-
tam como ‘neutras’ em relação às condições reais nas quais as pessoas vivem.
Nesse sentido indaga: que neutralidade podemos defender se nosso objetivo
é empoderar e fortalecer as pessoas e os grupos que sofrem essas violações,
dotando-os de meios e instrumentos necessários para que, plural e diferencia-
damente, possam lutar pela dignidade? (HERRERA FLORES, 2009, p. 38).
Herrera Flores (2009) concebe os direitos humanos a partir de uma pers-
pectiva de altíssima complexidade envolvendo vários aspectos, quais sejam:
complexidade cultural; complexidade empírica; complexidade jurídica; com-
plexidade científica; complexidade filosófica; complexidade política; comple-
xidade econômica.
Diante das referidas complexidades, aponta para cinco deveres básicos
para a compreensão dos direitos humanos no início do século XXI, e a pos-
sibilidade de se construir o acesso aos bens necessários para uma vida em
liberdade, igualdade e dignidade:
25
nidade. Por meio do respeito aprende-se a distinção entre aqueles que
têm posição de privilégio e quem tem a posição de subordinação no di-
fícil, mas, iniludível encontro entre as diferentes percepções de mundo;
iii. reciprocidade como base para saber devolver o que tomamos dos outros
para construir os nossos privilégios, seja dos outros seres humanos, seja
da natureza;
iv. responsabilidade: a nossa responsabilidade de exigir responsabilida-
des aos que cometeram o saqueio e a destruição das condições de vida
dos demais;
v. redistribuição: ou seja, o estabelecimento de regras jurídicas, fórmulas
institucionais e ações políticas e econômicas concretas que possibilitem
a todos e a todas não somente satisfazer as necessidades vitais ‘primá-
rias’, mas, além disso, a reprodução secundária da vida, quer dizer, a
construção de uma dignidade não submetida aos processos depreda-
dores do sistema imposto pelas necessidades de benefício imediato que
caracterizam o modo de relação baseado no capital; sistema no qual
uns têm nas suas mãos todo o controle dos recursos necessários para
dignificar suas vidas, e os outros não têm mais que aquilo que pandora
não deixou escapar dentre suas mãos: a esperança de um mundo melhor
(HERRERA FLORES, 2009, p. 67-68).
26
quais seriam as reais consequências dos deveres fundamentais na perspectiva 1. Conceito formulado no primeiro semes-
normativa? São indagações que vão surgindo e que ainda merecem ampla tre de 2013 pelos integrantes do Grupo de
Pesquisa vinculado ao PPGD-FDV, denomi-
reflexão. Para iniciar o debate eis um conceito: nado “Estado, Democracia Constitucional e
Direitos Fundamentais” liderado pelo Prof.
dever fundamental é uma categoria jurídico-constitucional, fundada na Dr. Daury Cesar Fabriz.
É nesse sentido que para além dos direitos devemos também levar em consi-
deração os deveres fundamentais.
27
Reênciasfer ácasbilogr
BIBLIA. Evangelho segundo São Paulo. Português. Bíblia sagrada. Trad. Ivo Storniolo.
São Paulo: Paulus, 1990.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva 2008.
28
KROHLING, Aloísio. Direitos humanos fundamentais: diálogo intercultural e demo-
cracia. São Paulo: Paulus, 2009.
MARQUES, Fabiano Lepre & FABIZ, Daury Cesar. Breves considerações sobre deveres
com sanção e deveres sem sanção no direito brasileiro. In: Revista Derecho Y
Cambio Social, Ano X, nº 31, 2013 (http://www.derechoycambiosocial.com/revis-
ta031/DEVERES.pdf) Consulta realizada em 05 de dezembro de 2013 às 16h34).
29
Paulo César Carbonari
Doutorando em Filosofia (Unisinos), professor e coordenador do Curso de Ba-
charelado em Filosofia do Instituto Berthier (IFIBE, Passo Fundo, RS), membro
e vice-coordenador do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (CNEDH/SDH-
-PR), membro do conselho nacional do Movimento Nacional de Direitos Hu-
manos (MNDH).
2
PARA FAZER DA EDUCAÇÃO: 1. Fazemos um esforço na direção de pro-
AÇÃO DE DIREITOS HUMANOS blematizar a situação brasileira contem-
porânea no artigo Direitos humanos no
POR UMA EDUCAÇÃO DIREITOSHUMANIZANTE Brasil: a promessa é a certeza de que a
luta precisa continuar (CARBONARI, 2012,
Paulo César Carbonari p. 21-35), ao qual remetemos.
A questão que se apresenta de início é: que educação é aquela que se põe como
uma educação capaz de promover os direitos humanos, não em sentido abstra-
to, mas de forma contextualizada ao processo histórico dos direitos humanos.1
Mesmo com o risco de sermos generalista e sem tomar em conta as diferenças
de fazer educação em direitos humanos na educação formal e na educação não
formal, propomos o que chamamos de educação direitoshumanizante.
A educação direitoshumanizante aponta para que a educação seja mais do que
a garantia de um dos direitos humanos – o que de fato é. Exige também que
seja mais do que incluir os direitos humanos na educação. A questão funda-
mental é que o conjunto da educação seja perpassada pelos direitos humanos.
Dizer direitoshumanizante não é agregar um adjetivo a mais à educação
e sim dar-lhe uma substantividade que lhe apresenta exigências próprias. Estas
exigências são favoráveis a umas e críticas a outras compreensões e práticas
educativas, assim como favoráveis a umas e reativas a outras concepções e
práticas de direitos humanos.
31
2. Recuperamos a posição de Martha Nus- educativo de forma unidimensional, como treinamento, dado que a forma-
sbaum quando diz que: “O tema do lucro ção exige mais do que domínio de técnicas e capacidade para sua aplicação.2
sugere para a maioria dos políticos em
O voltar-se para o mercado é componente ideológico que contribui para afas-
questão que a ciência e a tecnologia são
de importância crucial para o futuro do tar a educação da sua finalidade maior, que é a formação para a atuação inte-
bem-estar de seus povos. Não deveríamos gral. Esta postura parte de uma premissa insuficiente e que estabelece o mer-
ter qualquer objeção a uma boa educação
cado como o fórum de definição das prioridades e das demandas. O mercado,
científica e técnica e não estou sugerindo
que as nações deveriam parar de tentar sabemos, não é um espaço público, antes, pelo contrário, é privado e privatista
melhorar este aspecto. A minha preocupa- no capitalismo tardio.3 Por isso, se ficar na dependência do mercado, a educa-
ção é que as outras habilidades, habilidades ção abre mão de formar agentes para a incidência na vida pública e de formar
cruciais para a saúde interna de qualquer
democracia, para a criação de uma cultu-
para orientar sua participação na vida social e para incidir nas agendas do que
ra descente, para um modelo robusto de é de interesse público, para colaborar no que é comum. As demandas a serem
uma cidadania mundial e para abordar os atendidas pela educação não são aquelas dos interesses privados e privatistas;
problemas mais prementes do mundo estão
são, sim, aquelas dos espaços públicos nos quais se exerce os direitos e se
em risco de se perder nessa busca compe-
titiva por lucro” (NUSSBAUM, 2009, p. 4). constrói novos direitos. Formar competências para o mercado não contribui
para a formação do sujeito de direitos, no máximo o faz ser um consumidor
3. Mais: “Preocupa-me, no entanto, per-
servil aos ditames do consumismo.4
ceber que a análise da educação utilizada,
mesmo pelos melhores profissionais da Educar em direitos humanos é o mesmo que educar para a cidadania,
abordagem do desenvolvimento humano, para os valores e para a paz. Sim, educar para a cidadania, para os valores e
tende a concentrar-se nas competências para a paz se constituem em tarefas fundamentais da educação. Mas, fazer da
básicas e comercializáveis negligenciando
educação em direitos humanos somente o formar para a cidadania é restritivo,
as habilidades humanistas do pensamento
crítico e da imaginação tão cruciais caso a pois implica na educação para o conhecimento e o exercício dos direitos exis-
educação realmente seja pensada de modo tentes e circunscritos ao seu reconhecimento no âmbito de uma determinada
a promover o desenvolvimento humano,
comunidade política nacional, de um determinado país [mesmo que se deseje,
em vez de, simplesmente, o crescimen-
to econômico e as aquisições individuais“ não existe ainda a cidadania global] e para a contraprestação dos deveres por
(NUSSBAUM, 2009, p. 5). eles exigidos, como que formando para a inserção na ordem social, jurídica
e política disponível. Formar em valores constitui-se também em tarefa fun-
4. Para aprofundamento ver, entre muitos
damental, mas dado que valores e vida moral são construções controversas e
outras, as reflexões críticas de Martha Nus-
sbaum. Ela diz, analisando a situação con- nem sempre favoráveis, fazer este tipo de formação poderia ser confundido
temporânea da educação: “Se esta tendên- com a inserção na vida moral hegemônica que, nem sempre é protetora dos
cia se prolonga, as nações de todo o mundo
direitos – vide posições patriarcais, machistas, homofóbicas e de outros tipos,
produzirão gerações inteiras de máquinas
úteis no lugar de cidadãos com capacidade mesmo que se possa ser crítico, acima de tudo a formação moral quer levar a
de pensar por si próprios, com uma pers- “aderir” a uma determinada vida moral. A formação deste tipo também corre o
pectiva crítica sobre as tradições e de com- risco de ser confundida com a reintrodução de formas de famigerada memória
preender a importância e das conquistas e
na educação, como a educação moral e cívica como estratégias de submissão
32
– ao modo como fez o regime ditatorial civil-militar. Por fim, educar para a Continuação da nota 4
paz é também tarefa fundamental, mas confundi-la com educação em direitos dos sofrimentos dos outros” (NUSSBAUM,
humanos é não reconhecer que a paz é mais do que a simples ausência das 2010, p. 20, tradução nossa).
violências, mas a combinação de uma vida vivida com direitos, exigindo, por-
5. No dizer de Freire: “É precisamente por-
tanto, os direitos humanos e não reduzindo os direitos humanos a ela. Assim, que reduzidos a quase ‘coisas’, na relação
quaisquer destas formas de educação são fundamentais, mas insuficientes para de opressão em que estão, que se encon-
dar conta do significado de educar em direitos humanos. tram destruídos” (1975, p. 60). Ele vai mais
a fundo e diz que “Dela [a prática de do-
Educar em direitos humanos se confundiria com fazer uma educação
minação], que parte de uma compreen-
ideológica, estranha ao que deve ser científico.5 Este é o fator mais pernicioso à são falsa dos homens – reduzidos a meras
construção da educação em direitos humanos, visto que parte de uma premissa coisas – não se pode esperar que provoque
o desenvolvimento do que Fromm cha-
completamente equivocada de que há certo tipo de saber que se constitui em
ma de biofilia, mas o desenvolvimento de
parâmetro [neutro] para todos os demais saberes, o saber científico, que exclui seu contrário, a necrofilia. […] A opressão,
todos os que não respondem aos cânones por ele determinados. O resultado é que é um controle esmagador, é necrófila”
a produção do saber de forma monolítica e reprodutora de modelos e formas (FREIRE, 1975, p. 74). Tratamos a fundo da
posição de Freire em relação à educação
pouco abertas à diversidade dos conhecimentos, dos saberes e das suas formas
em Porque educação em direitos humanos:
de expressão e de vivência, e que tende para a formação de uma ciência uni- bases para a ação político-pedagógica, a
ficada. A epistemologia contemporânea tem mostrado sobejamente a ilusão ser publicado pela editora da UFPB.
desta premissa e a sua consequência mais nefasta para a própria ciência, que é
6. Ver de modo particular a crítica e a pro-
o “desperdício” de saberes, da criatividade e da possibilidade de identificação posta alternativa feita por Boaventura de
e de resolução de problemas.6 Tem mostrado também a pluralidade dos saberes Sousa Santos (2004; 2006). Discutimos este
e das formas de sua expressão como sendo característica tanto dentro de cada assunto no contexto da relação entre reco-
nhecimento e educação no artigo Direitos
área específica de conhecimento quando das diversas áreas entre si. Desco- humanos, reconhecimento e educação: por
nhecer esta perspectiva é efetivamente investir numa educação monocultural uma abordagem ecológica (CARBONARI,
e pouco afeita à formação de sujeitos de direitos. 2012, p. 20-30).
33
7. Recentemente o Conselho Nacional de mas nem todas as práticas de promoção do acesso à justiça são práticas de
Educação emitiu Diretrizes Nacionais para promoção dos direitos humanos podendo até vir a ser expedientes funcionais
a Educação em Direitos Humanos na edu-
em pouco ou nada emancipatórios. A questão diferenciadora fundamental está
cação básica e na educação superior. Ver
Resolução nº 1 e Parecer nº 8, ambos de no alcance destas ações no sentido de formar sujeitos de direitos.
30/05/2012. Contra estas posições, a principal motivação para educar em direitos hu-
manos é a formação dos/as educandos/as como sujeitos de direitos que já são
sujeitos de direitos no ato educativo, têm, entre outros, o direito à educação,
que é um dos direitos humanos, e também têm o direito de aprender direitos
humanos como parte de sua formação. Trata-se de agir com os sujeitos da
educação, os/as educandos/as, como sujeitos de direitos: a) porque, mas não
somente, os sujeitos são parte de uma cultura jurídica do estado democrático
de direito que lhes confere status de cidadania; b) porque, mas não somente,
os sujeitos são parte de uma comunidade moral e por isso parte de um pro-
cesso de formação em valores; c) porque, mas não somente, os sujeitos são
parte de uma comunidade que resiste e exige viver livre de todas as formas de
violência e quer paz; d) porque, mas não somente, os sujeitos são parte de uma
comunidade política e por isso têm direito a resistir, a se organizar e a protes-
tar, contestando a ordem injusta; e) porque, mas não somente, os sujeitos são
parte de uma comunidade de saber específica, mas aberta aos demais saberes.
Em outras palavras, os modelos acima descritos se mostram ainda insuficien-
tes para cumprir a tarefa da educação direitoshumanizante na perspectiva da
formação integral do sujeito de direitos.
34
até muitos] evento em qualquer dos momentos ou dos âmbitos da vida edu- 8. Construímos um esboço de uma teoria do
cativa; a segunda afasta qualquer perspectiva unidimensional e fragmentária sujeito de direitos no artigo Sujeito de dire-
itos humanos: questões abertas e em con-
da formação. Positivamente, uma e outra convergem para a finalidade central
strução (CARBONARI, 2007, p. 169-186).
da educação em direitos humanos, que é a formação do “sujeito de direitos”.
O PNEDH explicita as várias dimensões da educação em direitos huma- 9. Sugerimos como subsídio a reflexão de
Josef Estermann (2012), expressa em vários
nos. Informa pelo menos as seguintes dimensões: a) a dimensão epistêmico-
textos sobre este tema, particularmente em
-cognitiva [“apreensão de conhecimentos historicamente construídos […]”; b) Crisis civilizatoria y Vivir Bien: una crítica
a dimensão ética [“afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expres- filosófica del modelo capitalista desde el
sem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade”]; c) a allin kawsay/suma qamaña andino. Esta
leitura é feita com base na construção que
dimensão política [“formação de uma consciência cidadã […]”; d) a dimensão vem sendo elaborada pelas organizações
pedagógica [“desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de indígenas andinas, entre as quais a Coor-
construção coletiva […]”; e e) a dimensão social [“fortalecimento de práticas dinadora Andina de Organizaciones Indí-
genas (CAOI). Para mais informações ver
individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção,
documento em www.reflectiongroup.org/
da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das stuff/vivir-bien.
violações”] (BRASIL, 2006, p. 25). Estas diversas dimensões têm como eixo
articulador e diferenciador fundamental a formação do sujeito de direitos.8
Formar sujeitos de direitos é contribuir de maneira decisiva para a recon-
figuração das relações entre os seres humanos e destes com o mundo cultural e
com o ambiente natural de forma a subsidiar processos de afirmação dos huma-
nos como sujeitos em convivência com outros sujeitos. Com base nesta noção
geral, desdobramos três aspectos que consideramos fundamentais ao núcleo da
educação direitoshumanizante como processo de formação de sujeitos de direitos.
Educar em direitos humanos é formar sujeitos sustentáveis e que promovem
a sustentabilidade em sentido amplo. Nenhum ser humano se faz fora do mundo,
fora do ambiente cultural e do ambiente natural. A interação ocorre como rela-
ção com os sentidos (mundo) nas condições de sentido (culturais e naturais) nas
quais se está inserido. Posturas predatórias – ou mesmo as preservacionistas que
são só mitigadoras – são insuficientes porque, além de comprometer o mundo
como ambiente natural e cultural, também comprometem o humano. Por isso,
o grande desafio da educação em direitos humanos é o educar para o bem viver
como integração do viver humano com o viver de outras formas de vida, recons-
truindo a relação do humano com o ambiente no qual se insere.9
Educar em direitos humanos é formar para participar, para “aparecer” e
para “dizer”. “Aparecer” e “dizer” consistem em aceitar que cada pessoa pode
35
10. Remetemos à reflexão, entre muitas se expressar de forma livre e em condições adequadas para tal. Significa forta-
outras, de Adela Cortina no texto Democ- lecer todo tipo de presença [que é mais que visibilidade] e fazer frente a todo
racia como forma de vida (1992, p. 254-
tipo de cerceamento da expressão, o que é sinônimo de participar. A participa-
272). Desenvolvemos o tema democracia e
direitos humanos em CARBONARI, 2008, p. ção é conteúdo fundamental para a efetivação dos direitos humanos. Presença
13-34. é participação. Participação é interação. Interação é agir na alteridade. Assim,
está em questão identificar processos e propostas, dinâmicas e sujeitos, diver-
gências e convergências, sob o crivo da alteridade. Quando centradas na alte-
ridade, as vivências públicas são muito mais do que um jogo; são construção,
permanente e sempre nova, de um modo de ser social e político, um modo de
ser humano, com direitos humanos, o que remete para a convivência demo-
crática como necessária aos direitos humanos, mas não a mera democracia
representativa e sim a democracia como forma de vida.10
Educar em direitos humanos é formar para a liberdade e para a respon-
sabilidade. A liberdade, longe de ser uma propriedade ou uma faculdade, é
a vivência de condições que abram oportunidades e que permitam fazer das
oportunidades realidade. As escolhas se dão em vários planos e entrecruzam
a diversidade das possibilidades sempre em relação. Daí ser impossível querer
a liberdade como uma propriedade individual que só serve para constituir os
outros como concorrentes – afastando a ideia de que minha liberdade vai até
onde começa a do outro, como se houvesse uma cerca entre uns e outros. A
liberdade entendida como tecido em relação tem em seu conteúdo a respon-
sabilidade consigo e com os outros, que não nasce como decorrência, mas é
lhe é constitutiva. Ou seja, a responsabilidade não vem como recíproca, mas
como doação. Isto não exclui as recíprocas, apenas as põe num outro patamar.
Educar em direitos humanos é, assim, educar para a liberdade como respon-
sabilidade e para a responsabilidade como liberdade. Não se trata de escolher
entre direitos e deveres; trata-se de vivê-los como exercício combinado, nunca
podendo estabelecer prioridade a uns ou a outros. O sujeito de direitos é, assim,
sujeito livre e criativo com os outros, nunca contra os ou apesar dos outros.
36
de uma norma vinculante e apontam mais para a configuração de posiciona- 11. Vale a pena ver a posição de Walter
mentos criativos que reponham o que significa fazer educação muito além do Benjamin, particularmente em Sobre o
conceito de história, assim como o comen-
ensino. Coerentes com o que já desenvolvemos, os desafios se concentram em
tário de Michael Löwy (2005), ver referên-
formar sujeitos de direitos em perspectiva integral, multidimensional. Por isso, cia completa ao final.
exploramos três aspectos que sistematizam a tarefa da educação em direitos
humanos: a memória, a verdade e a justiça estendidos a toda a educação.
Não há educação em direitos humanos sem memória! A memória é cons-
titutiva do modo de vida no qual se situam e se fazem os sujeitos em intera-
ção com o ambiente (natural e cultural) e com os outros humanos (não contra
eles). A memória é constitutiva da historicidade (da temporalidade e da finitude),
mas também da possibilidade de transcendência a ela. Este desafio exige uma
nova compreensão do tempo, superando perspectivas lineares e que alargam
por demais o futuro em detrimento do passado e do presente, ou o presente em
detrimento do passado e do futuro.11 Reforçar a memória não é sinônimo de re-
afirmação pura e simples da tradição de simples alargamento do passado; pelo
contrário, é compreender o passado como parte constitutiva do presente e do fu-
turo. Por outro lado, não é sacrificar o passado e o presente em nome de um futu-
ro largo e de progresso; pelo contrário, é compreender o presente como exercício
de realização do “já-não” e do “ainda-não” que fazem parte das práticas atuais.
O desafio da educação em direitos humanos como memória exige a crítica
contundente a todas as formas de esquecimento cínico, aquele que costuma so-
brepenalizar as vítimas da história (e das violações de direitos, os “sujeitos sujei-
tados”) em nome do avanço, do progresso. A educação em direitos humanos que
não for capaz de reconstrução da memória não como simples descrição da histó-
ria, mas como vivência dos significados dos processos históricos, não será capaz
de formar sujeitos de direitos que se compreendam como agentes da promoção
dos direitos em qualquer área do conhecimento e em qualquer tipo de educação
que for. Um exemplo para ilustrar: um arquiteto que não tenha a compreensão
do significado da construção do espaço urbano como espaço de disputa e de
integração para certos setores e de segregação para as maiorias dificilmente terá
condições de trabalhar na perspectiva da cidade como direito e como espaço de
exercício dos diversos direitos. É a memória das muitas vítimas das cidades, visí-
veis e invisíveis, que poderá fazer da educação em direitos humanos um exercício
de direitos humanos e um compromisso com a promoção dos direitos humanos.
37
12. Ver, neste sentido, a proposta de Joa- Não há educação em direitos humanos sem verdade! A verdade (não
quín Herrera Flores (2002) sobre o univer- absoluta, muito menos relativa) como busca de assentimento e convergência
salismo de chegada e de Boaventura de
é constitutiva da afirmação dos conhecimentos e também das vivências, até
Sousa Santos (2006) sobre a ecologia dos
saberes [referência completa ao final]. porque sujeitos se fazem em relações verdadeiras e de confiança. Este desafio
exige uma nova concepção de racionalidade capaz de lidar com a diversidade
dos saberes e da verdade. O reconhecimento de diferentes tipos de racionalida-
de não necessariamente advoga sucumbir ao relativismo. Pelo contrário, é exi-
gência para lidar com a pluralidade de forma construtiva, o que repõe a uni-
versalidade, não de partida, mas como horizonte a ser buscado.12 A ecologia
dos saberes se constitui em desafio que exige muito mais do que o tratamento
de cada área ou cada especialidade por si mesma; exige o desenvolvimento de
perspectivas interdisciplinares e até transdisciplinares. A vigência da ordem
dos saberes pelo disciplinamento acadêmico que constitui cânones incomuni-
cáveis entre as várias racionalidades e, em consequência, entre os múltiplos
saberes é o desafio central a ser superado. A verdade, neste sentido, é menos
um dado ou uma posse e mais uma construção em diálogos complexos.
Por isso, o desafio da verdade como tarefa da educação em direitos hu-
manos exige enfrentar tanto o dogmatismo [e seus fundamentalismos] quanto
o relativismo, dado que ambos são cínicos já que tendem a não reconhecer
legitimidade à diversidade das formas de saber e de verdade como constitu-
tiva de sujeitos de direitos. Por seu lado, o dogmatismo, inviabiliza as múl-
tiplas possibilidades fechando-se numa perspectiva unificacionista do saber
que tende a reduzir tudo o mais a ceticismo crasso ou a simples ignorância
e não-saber. O relativismo, por seu turno, mesmo que pareça reconhecer a
diversidade, não a trata, porém, em perspectiva de pluralidade, ou seja, não
admite qualquer tipo de convergência possível, redundando por inviabilizar
a afirmação de sujeitos, dado que perde qualquer possibilidade de interação,
nem que seja comparativa, entre os diversos tipos de racionalidade, de saber e
de verdade, fazendo-se funcional ao modelo competitivo do consumismo indi-
vidualista vigente. É por inviabilizar os sujeitos, cada um a seu modo, que tan-
to o dogmatismo quanto o relativismo são posturas inadequadas à educação
comprometida com direitos humanos. O desafio central está na promoção da
ecologia dos saberes. Neste sentido, é da qualidade da verdade que se constrói
nos processos de produção e de disseminação do saber que se pode estabelecer
38
convivência e interação que sejam adequadas e favoráveis a afirmação de
sujeitos de direitos.
Não há educação em direitos humanos sem justiça! A justiça é exigência
que só pode ser efetivada pela promoção de práticas que tenham como conteúdo
central, de um lado, a superação das desigualdades e, de outro, a superação das
discriminações. A promoção do acesso aos bens materiais e simbólicos necessá-
rios à vida com dignidade e a promoção do reconhecimento da singularidade, da
particularidade e da universalidade dos sujeitos se constituem, juntas, a síntese
do que significa a formação para a justiça como combinação complexa entre dis-
tribuição e reconhecimento. Fazer justiça é muito mais do que implantar na terra
uma ideia de reino dos fins ou do que compor interesses de forma a maximizar
a felicidade em detrimento da dor. Trata-se, além de promover oportunidades,
também da promoção de condições, dado que oportunidades sem condições po-
dem se tornar vãs e condições sem oportunidades podem reificar relações.
Por isso, o desafio da justiça exige construir condições capazes de iden-
tificar e reparar violações de direitos (reparar as vítimas) e, acima de tudo,
promover e proteger as pessoas e seus direitos de forma que a dignidade possa
ser concreta no cotidiano. Isso exige a crítica a todas as formas de cinismo que
relegam a igualdade à quimera e a diversidade à desigualdade (discriminação)
e que faz da justiça sequer uma promessa. O compromisso da educação com a
justiça informa todos os processos educativos na perspectiva de constituí-los
como dinâmicas de estabelecimento de novas relações, neles mesmos enquan-
to estão sendo realizados e no que promovem desde sua realização.
Em suma, memória, verdade e justiça constituem trinômio fundamental
de uma educação em direitos humanos que seja educação direitoshumani-
zante. Sujeitos só se constituem e se fazem com os outros. Esta educação se
propõe como ação contra o mais fácil e o mais conveniente. Estes, de regra,
colaboram para produzir resultados que reforçam práticas e processos que
dispensam a dignidade e, em consequência, inviabilizam, interditam e sub-
jugam sujeitos. Por isso, enfrentar os desafios aqui identificados é investir na
realização da dignidade do sujeito como conteúdo intransitivo dos direitos
humanos. Acima de tudo está o desafio de orientar [e reorientar] o conjunto
da ação educativa de forma a fazê-la como exercício dos direitos humanos,
formando sujeitos de direitos.
39
13. Como defende Joaquín Herrera Flores A educação direitoshumanizante exige a construção do que se poderia
no artigo Direitos humanos, interculturali- chamar de “racionalidade de resistência”.13 Isto significa dizer que está posta a
dade e racionalidade de resistência (2002).
exigência de educar para que as pessoas não sucumbam às formas perversas,
funcionalizadas e naturalizadas de desumanização, tão comuns às sociedades
contemporâneas. O outro lado da formação para a resistência, que é parte da
mesma ação, é a formação para a cooperação.
A resistência é a atitude que constitui as múltiplas possibilidades de
construção do humano como solidariedade visto pôr as relações de coopera-
ção como características do modo humano de ser, sem o que certamente os
humanos já teriam extinto a si mesmos como espécie. É inclusive como for-
ma de cooperação e de solidariedade com os mais fracos, as vítimas, que faz
sentido a resistência, dado que ela se caracteriza por fazer dos humanos seres
capazes de indignação e de movimentação para fazer frente a todas as formas
e violência e de inviabilização do humano. Assim que, a resistência faz sentido
como mediação para a construção de relações humanas e humanizadas, de
cooperação na tarefa de humanização, por um lado, e para o enfrentamento
duro e consistente de todas as formas e relações desumanizadoras, por outro.
A perspectiva da resistência, como diz Herrera Flores, aponta para um
movimento que caminha em sentido contrário a
[…] todo tipo de visão fechada, seja cultural ou epistêmica [e], a favor de
energias nômades, migratórias, móbiles, que permitam deslocarmo-nos
pelos diferentes pontos de vista sem a pretensão de negar-lhes, nem de
negar-nos, a possibilidade de luta pela dignidade humana (2002, p. 23).
40
da ordem” é sempre o discurso deste tipo.14 Afinal, o direito de exigir os próprios 14. Ver a posição de Castor Bartolomé
direitos é dos direitos humanos o mais fundamental e educar-se para tal é essen- Ruiz (2009).
41
Reênciasfer ácasbilogr
CARBONARI, Paulo César. Democracia e Direitos Humanos. Reflexões para uma agenda
substantiva e abusada. In: BITTAR, Eduardo C. B.; TOSI, Giuseppe (Org.). Democracia
e Educação em Direitos Humanos numa Época de Insegurança. Brasília: SEDH;
UNESCO; ANDHEP, UFPB, 2008. p. 13-34.
42
CARBONARI, Paulo César. Direitos humanos, reconhecimento e educação: por uma
abordagem ecológica. In: Revista Espaço Pedagógico, Passo Fundo, UPF, v. 19, n.
1, p. 20-30, jan-jun. 2012.
CORTINA, Adela. Democracia como forma de vida. In: Ética sin moral. 2. ed. Madrid:
Tecnos, 1992, p. 254-272 [Tradução pela Martins Fontes publicada em 2010].
DUSSEL, Enrique D. Derechos humanos y ética de la liberación. In: Hacia una Filosofía
Política Crítica. Bilbao: Descleé de Brower, 2001. p. 145-158.
ESTERMANN, Josef. Crisis civilizatoria y Vivir Bien: una crítica filosófica del modelo
capitalista desde el allin kawsay/suma qamaña andino. In: Polis – Revista La-
tinoamericana, n. 33, p. 1-18, 2012. Disponível em http://polis.revues.org/8476.
Acesso em 25/03/2013.
43
FERNÁNDEZ, David. Los derechos humanos en las funciones sustantivas de la univer-
sidad. In: UNESCO. La Educación Superior en Derechos Humanos en América
Latina y el Caribe. Coord. Ed. Ricardo Bonilla. México: UNESCO, 2003.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de inocência. Uma leitura das teses “Sobre o
conceito de história”. Trad. W. N. Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005 [inclui
o texto das teses traduzido por J. M. Gagnebin e M. L. Müller].
MONTEIRO SILVA, Aida Maria (Org.). Educação superior: espaço de formação em di-
reitos humanos. São Paulo: Cortez, 2013.
MÜHL, Eldon Henrique et al. (Org.). Textos referenciais para a educação em direitos
humanos. Edição Revista e Ampliada. Passo Fundo: IFIBE, 2013.
44
NUSSBAUM, Martha C. Educação para o lucro, Educação para a Liberdade. Trad. Fer-
nando Cardoso. In: Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatis-
mo e Filosofia Norte-americana, a. I, n. 1, 2009. Disponível em www.gtpragma-
tismo.com.br/redescricoes/principal.htm. Acesso em 10/02/2012.
NUSSBAUM, Martha C. Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las hu-
manidades. Trad. Maria Victoria Rodil. Buenos Aires: Katz, 2010.
RODINO, Ana María. Visión y propuestas para la región. In: UNESCO. La Educación Su-
perior en Derechos Humanos en América Latina y el Caribe. Coord. Ed. Ricardo
Bonilla. México: UNESCO, 2003.
RUIZ, Castor Bartolomé M. M. (Org.). Justiça e Memória. Para uma crítica ética da
violência. São Leopoldo: Unisinos, 2009.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura políti-
ca. São Paulo: Cortez, 2006.
WARAT, Luis Alberto. Direitos Humanos: subjetividade e práticas pedagógicas. In: SOU-
SA Jr., José Geraldo de et al. (Org.). Educando para os Direitos Humanos: pautas
pedagógicas para a cidadania na universidade. Brasília: Síntese, 2003.
45
Ana Maria Klein
Doutora em Educação. Professora da UNESP e Consultora ONU/
PNUD;UNESCO em Educação em Direitos Humanos(2010-2011).
3
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NAS ESCOLAS: 1. O Parecer nº 8 CNE/CP/2012 e a Resolução nº
UM PROJETO A SER CONSTRUÍDO PELA 01 CNE/CP/2012 - instituem as Diretrizes Na-
cionais para a Educação em Direitos Humanos.
COMUNIDADE ESCOLAR
1. Introdução
47
As DCNs consideram a autonomia da escola e da sua proposta peda-
gógica, cabendo acada instituição adequar os princípios, fundamentos e
procedimentos a sua realidade. O intuito é orientar as praticas educacionais
brasileiras, respeitando as matizes curricularesestaduais e municipais. Tais
adequações nas instituições educativas formais têm como principal instru-
mento os Projetos Pedagógicos.
Este capítulo tem por objetivo refletir sobre as principais ideias que dão
corpo à EDH e sobre a construção coletiva dos Projetos Políticos Pedagógicos-
nas escolas, como via de concretização dos princípios e valores da EDH.
48
Ainda que estejamos nos referindo a direitos, a EDH trata fundamentalmente
de princípios que guiam a vida humana nas instituições e na sociedade.
Não se trata de negar ou subestimar a importância da dimensão jurídico-
-politica. A EDH surge e se desenvolve em contextos marcados por múltiplas
relações políticas, sociais, culturais e econômicas, assim ela não se dá apartada
de seu entorno, pelo contrário é estritamente vinculada ao mesmo e o retroa-
limenta, apontando para a transformação do contexto. Mas devemos reconhe-
cer que a educação é uma via imprescindível a uma sociedade que pretende
transformar suas relações tendo por base princípios éticos e democráticos.
Magendzo (2009) analisa as principais ideias vinculadas a EDH defen-
didas por autores de países ibero-americanos e aponta nove “ideias-força”
presentes nestas concepções.
A primeira delas associa a EDH a uma educação contextualizada que
surge e se desenvolve em articulação com um contexto social, econômico,
politico e cultural, sofrendo influencias dele e podendo transforma-lo.
A segunda refere-se a uma educação construtora de democracia. Apenas
um regime democrático garante os direitos humanos e cria instâncias que legi-
timam a EDH. Por outro lado, esta educação tem como objetivo central desen-
volver nos estudantes as competências para o exercício ativo da democracia,
sua defesa e seu aperfeiçoamento. Magendzo (op.cit) afirma que a EDH nasce
como reação e antidoto às ditaduras, aos conflitos bélicos e às democracias de
fachada que os países ibero-americanos vivenciaram.
A terceira reconhece seu caráter político transformador. Na medida em que
a EDH objetiva formar pessoas críticas e comprometidas com a transformação
social, ela tem um caráter eminentemente político. A EDH deve ser um compro-
misso de promoção ativa dos direitos humanos com uma dupla dimensão: políti-
ca e pedagógica. A dimensão politica supõe compreender e trabalhar, por exem-
plo, os marcos normativos dos direitos humanos, nacionais e internacionais, os
regimes de governo, sua posição e compromisso frente aos direitos humanos, a
diversidade étnico-cultural da população, as relações entre Estado e sociedade
civil, entre outros aspectos de tal natureza. Para a sua promoção é necessário
uma plataforma filosófica, legal, e vontade politica consensuada pelo Estado.
A dimensão pedagógica exige igual preocupação conceitual e de ação,
por exemplo, metodologias e linguagens adequadas aos destinatários, com
49
especial atenção às variáveis (idade, sexo, etnia, língua, cultura, espaço real,
condições de vida); os conteúdos multidimensionais e interdisciplinares dos
Direitos Humanos, seu desenvolvimento em ambientes educativos promotores
de direitos, a inserção curricular (disciplinar ou transversal), a avaliação, a
relação com a comunidade, entre outros (RODINO, 2009).
A responsabilidade dos Estados em relação à EDH se manifesta por meio
de diversos instrumentos e conferencias internacionais. O discurso oficial
transformou-se em politica pública. No Brasil, o Plano Nacional de Educação
em Direitos Humanos (BRASIL, 2006) marca o compromisso do Estado com a
EDH como uma politica pública. Com isso ela é reconhecida nas normativas
internas e pode se incorporar por meio das diretrizes aos Projetos Políticos
Pedagógicos de escolas, faculdades e universidades.
A quarta discute sua amplitude concebendo-a como uma educação in-
tegral-holística. Esta não é uma ideia presente desde o inicio da EDH. À época
das ditaduras predominava uma visão normativa-jurídica. A concepção de
uma educação que devesse fazer parte da vida cotidiana, com caráter proces-
sual, vivencial e ético é mais recente. Foi com a década das Nações Unidas
para a EDH (1995-2005) que se estabeleceu esta visão holística, por meio do
Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (UNESCO, 2005).
Uma educação integral e emancipadora transcende o aprendizado sobre
os direitos humanos e inclui também a implementação dos direitos na prática,
na vida dos sujeitos e grupos. Os seres humanos têm a capacidade de conhecer
a realidade, de refletir sobre ela e sobre as ações, ou seja, trata-se da cons-
cientização que pressupõe não apenas o conhecimento sobre a realidade, mas
também a sua capacidade de transformar esta realidade.
A quinta trata da dimensão ético-valorativa. A Declaração Universal
dos Direitos Humanos (ONU, 1948) traz como premissa fundante que todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e devem
relacionar-se fraternalmente uns com os outros. Aqui estão postos valores
centrais: valor absoluto do ser humano, igualdade, liberdade e fraternidade.
Compreender, respeitar e promover os Direitos Humanos pressupõe a criação
de disposições internas em cada ser humano para que os valores mencionados
sejam de fato valorados e constituam-se como guias para a vida social. Outros
valores são igualmente importantes, tais como a democracia, a inclusão, a
50
educação e a cultura, a justiça, o trabalho e o lazer, o meio ambiente saudável,
a inclusão, a criticidade e problematização da realidade, dentre outros que
fundamentam não apenas a DUDH, como também pactos e tratados firmados
nas últimas décadas.
A sexta ideia associa a EDH a uma educação construtora da paz. Consi-
dera-se que a paz é um direito humano essencial para educar em uma ética de
solidariedade. A relação entre Direitos Humanos e educação para a paz é de
interdependência, uma vez que a violência em qualquer uma de suas manifes-
tações é um espaço para a violação de direitos. A educação para paz é fruto da
justiça e da igualdade e seu fundamento é a dignidade humana.
Contextos sociais pós-conflito nacional, marcados por necessidades hu-
manas básicas não atendidas são fontes de conflitos nos quais a injustiça e
a violação da dignidade humana violam direitos (ANDREOPOULOS, 2007). A
respeito de sociedades e relações que violam direitos, o sociólogo polonês Zyg-
munt Bauman (2013) ressalta que as pessoas exploradas e desprezadas tendem
a reproduzir tais atitudes com outras pessoas. A vitimização não enobrece suas
vítimas, acaba sim, por destituir-lhes de sua humanidade. A violência, a desu-
manidade, a humilhação e a vitimização geram cadeias resistentes à ruptura
ou ao corte, ou seja, a violência gera violência num ciclo que se auto reproduz
por meio da vitimização.
Cabe acrescentar que o conflito é inerente às relações humanas e constitu-
tivo da democracia. Nas escolas ocorrem conflitos diariamente envolvendo seus
atores (gestores, docentes, discentes, funcionários, pais e mães) e revelam dife-
rentes olhares e necessidades de cada um dos segmentos ou entre ideias, crenças
e valores entre os sujeitos. Muitas vezes, busca-se acabar com o conflito temen-
do-se que ele gere ações e reações violentas por parte dos envolvidos. Perde-se
assim, a oportunidade de análise das causas do conflito, dos seus efeitos em
relação à violação de direitos e do enfrentamento pacífico do conflito, por meio
do diálogo. Este tipo de discussão pode ajudar os estudantes a compreender as
diferenças entre conflitos construtivos e destrutivos e a sua importância para a
transformação social. Desenvolver a EDH é, também, refletir, discutir, posicio-
nar-se e buscar formas de enfrentamento de situações conflituosas.
A sétima discute a EDH como construtora do sujeito de direitos. A ideia
de sujeito de direitos é fruto das numerosas inter-relações do sujeito com os
outros e com seu meio. O sujeito de direitos não é um ser passivo que espera
51
que seus direitos lhe sejam concedidos por outrem, consiste, sim, em um ser
reflexivo que pensa, sente e interage em um fluxo de relações e em seu con-
texto. Ele se constrói na prática cotidiana com os direitos humanos. Assim,
falar na formação deste sujeito no ambiente escolar implica a convivência em
ambientes promotores de direitos, onde estes sejam vivenciados e exercitados
cotidianamente, em todas as relações que tem lugar na escola, das interpesso-
ais, às relações dos estudantes com o conhecimento e da escola com a comu-
nidade na qual se insere. Envolve também uma concepção de mundo, de ser
humano e uma vontade de transformação. Tudo isso fundamentado em uma
ética que coloca o ser humano e sua dignidade como elementos centrais das
ações, objetivos, planejamentos, enfim do processo educativo.
A formação do sujeito de direitos envolve também a responsabilidade
para com o outro e com o outro. Isso significa que fazer valer um direito en-
volve a responsabilidade de cada um, inclusive em assumir assuntos que não
são “meus”, mas aborda-los como se fossem. Trata-se de uma dimensão ética
que pressupõe a consideração do “outro” e da reciprocidade.
A oitava refere-se às decisões curriculares e pedagógicas. A decisão do
que entra no currículo e, sobretudo, do que fica de fora dele não é neutra, é
uma decisão politica, valorativa (escolhemos aquilo que consideramos social-
mente importante) e se pauta em concepções e pensamentos pedagógicos. O
mesmo se dá em relação às competências que se pretende desenvolver junto
aos estudantes. Outro ponto importante relacionado a esta ideia refere-se ao
currículo oculto, aquilo que não é explicitado, mas está presente na cultura e
clima escolares, na organização e gestão institucional, nos objetivos e conteú-
dos das disciplinas, enfim naquilo que se desenvolve cotidianamente na escola
e não consta de seus planos de aula e projetos.
Esta ideia envolve a consideração da interdisciplinaridade dos Direitos
Humanos e da sua inserção transversal nos currículos. A EDH é um processo o
que significa que não bastam aulas ou palestras sobre seus conteúdos e temas.
É necessário adota-la como um modo de vida que envolve conhecimentos sobre
os Direitos Humanos, valores democráticos e humanizadores e práticas. Dito de
outra forma, é preciso conhecer, querer e saber agir na sua defesa e promoção.
Sua presença não se dá apenas por meio do currículo explicito, mas sim e,
sobretudo, por meio do currículo oculto, guiando concepções, ações e relações.
52
A nona e última, centra a discussão nas tensões que precisam ser enfren-
tadas. A EDH envolve conflitos, tensões e contradições. Os conflitos sociais,
políticos, econômicos se fazem presente no debate sobre os diretos humanos.
Há polêmicas e valores em torno de questões éticas, como por exemplo, no de-
bate sobre o direito à vida e as múltiplas dimensões a serem consideradas. Há
o preconceito que, no caso brasileiro, associa os Diretos Humanos a “direitos
de bandidos”. Os pontos de divergência, conflito e tensão devem ser debatidos
e os preconceitos desconstruídos. Daí a necessidade de trabalharmos nas três
dimensões já mencionadas: conhecimentos, valores e práticas.
As ideias sobre EDH, presentes na visão de diferentes autores ibero-ame-
ricanos (MAGENDZO, 2009) revelam princípios e valores que reafirmam a dig-
nidade humana e a democracia como sistema político e processo; a formação
de sujeitos ativos, conscientes de suas responsabilidades, críticos e compro-
metidos com a transformação social num ambiente promotor de direitos e
formador de valores éticos.
Ideias, princípios, valores mostram o sentido a ser seguido, a essência da
educação pretendida. Os caminhos para transformar ideias em práticas devem
ser discutidos e planejados por cada escola, de acordo com a sua realidade,
com seus desafios e suas possibilidades. Daí a importância de um projeto dis-
cutido e formulado pela comunidade escolar (gestores, docentes, discentes,
funcionários, mães e pais), onde cada segmento contribua efetivamente com
ideias e assuma o compromisso perante ao que foi planejado.
53
Há uma grande flexibilidade em relação à introdução da EDH nos cur-
rículos. Os Direitos Humanos são interdisciplinares e transversais na medida
em demandam a contribuição de diferentes saberes para a sua compreensão
e se alicerçam nas experiências e vivencias dos sujeitos. De qualquer forma,
não bastam aulas sobre Direitos Humanos. Seja qual for a entrada escolhida
é preciso um amplo espaço de reflexão no qual toda a comunidade escolar
planeje e insira no Projeto Político Pedagógico as ações destinadas à criação
de um ambiente comprometido com os direitos humanos. Este deve ser um
trabalho intencionalmente voltado a tal finalidade onde devem ser discutidas
formas de relacionamento e normas de convivência; metodologias de trabalho
e técnicas avaliativas que considerem o estudante como elemento central no
processo ensino-aprendizagem, valores democráticos e humanizadores que se
concretizam nas relações cotidianas.
As Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (BRASIL,
2012) em seu artigo 6º refere-se explicitamente à necessidade de se considerar
a EDH na formulação dos Projetos Político-Pedagógicos (PPP); dos Regimentos
Escolares; dos Planos de Desenvolvimento Institucionais (PDI); dos Programas
Pedagógicos de Curso (PPC) das Instituições de Educação Superior; dos ma-
teriais didáticos e pedagógicos; do modelo de ensino, pesquisa e extensão; de
gestão, bem como dos diferentes processos de avaliação.
O Projeto Político-Pedagógico (PPP) é o instrumento que norteia a tota-
lidade dos âmbitos da ação educativa e cuja elaboração requer a participação
de toda a comunidade escolar. Trata-se de um projeto coletivo que expressa
simultaneamente o que a instituição é e aquilo que ela pretende ser. Um PPP
visa a transformação, direciona-se ao futuro mediante a consideração do pre-
sente, aliando teoria e prática educativa.
No âmbito escolar há diferentes projetos desde os pedagógicos direcio-
nados a determinados temas e conteúdos curriculares, passando por projetos
de vida dos seus sujeitos e incluindo o projeto institucional que diz respeito a
toda a comunidade escolar, o Projeto Político-Pedagógico (PPP).
O Projeto Político-Pedagógico é político na medida em que tem por ob-
jetivo a educação do indivíduo para uma determinada sociedade, ou seja, tra-
ta-se da formação para a cidadania, o que pressupõe, princípios, valores e
54
práticas democráticos. Neste sentido, implica em escolhas de: conteúdos, me-
todologias, organizações de tempo e espaço, dentre outras.
Reconhecer a natureza política do projeto que orienta uma escola significa
ter a consciência de que nem a escola, tampouco a educação são espaços neu-
tros. Todas as escolhas sobre como, para quem e porque realizar algo revelam
opções, não somente em relação ao que entra na escola, mas também ao que
fica de fora dela. Em outras palavras, um projeto politico pedagógico traduz
opções que se referenciam em valores, concepções de mundo, de ser humano,
de aprendizagem e de sociedade e devem levar em conta anseios, necessidades,
especificidades de todos/as os sujeitos que integram a comunidade escolar.
O Projeto Político-Pedagógico é pedagógico, pois trata das ações educa-
tivas que a escola empreenderá no sentido da formação desejada. São as ações
pedagógicas que concretizam o ideal político do projeto.
A consideração do que está instituído e daquilo que se pretende alcançar
relaciona-se diretamente com a realidade de cada escola, com seu cotidiano,
com a diversidade de seus sujeitos, com as suas dificuldades e suas possibili-
dades. Assim sendo, não se pode conceber um PPP construído verticalmente,
ou seja, emanado do ministério ou das secretarias de educação. Diante de ce-
nários múltiplos não há como pleitear um modelo ou padrão único de projeto.
No entanto, é possível elencar algumas características que tal instrumento
deve apresentar, pois é preciso reconhecer que as escolas necessitam de apoio
técnico e de estímulo para empreenderem a tarefa de elaboração de um PPP.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nº 9395/96 (BRASIL, 1996) estabelece a
obrigatoriedade da construção de um projeto político-pedagógico nas escolas.
Em seu art. 12, a LDB ressalta que
55
(…) participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento
do ensino; elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta
pedagógica do estabelecimento de ensino (iden).
56
esportivas e recreativas. Trata-se de viabilizar a convivência em um ambiente
de fato democrático concretizado por meio das relações interpessoais, da orga-
nização do trabalho pedagógico (em sala de aula e de todas as atividades fora
da sala de aula), das metodologias adotadas, enfim, a participação esperada vai
muito além da presença em reuniões, ela se traduz cotidianamente em atitudes,
métodos e processos.
Pode-se, portanto, afirmar que um projeto político-pedagógico compre-
ende o currículo da escola, as metodologias e o próprio modo de organizar a
vida escolar. Assim sendo, não nega o instituído da escola, mas o confronta
com a realidade e as novas exigências sociais, adotando novos horizontes
(GADOTTI, op.cit).
A formulação de um PPP envolve uma reflexão coletiva e o questiona-
mento crucial sobre os conteúdos escolhidos para integrar o currículo. Envol-
ve, também, a consciência e coerência em relação às opções que faz e às metas
pretendidas. As metas que guiam os projetos não são definidas aleatoriamente
pelos indivíduos, o que significa que não é qualquer meta que vale a pena ser
perseguida, senão aquelas que têm importância para a comunidade escolar; a
definição de metas, portanto, se efetiva sempre face a um cenário de valores e
esses são sócio-histórico-culturalmente situados.
É precisamente na escolha consciente sobre o que ensinar, como ensinar,
com quais objetivos ensinar e sobre quais valores orientam essas escolhas que
se insere a reflexão sobre a Educação em Direitos Humanos. Este tipo de edu-
cação extrapola a dimensão dos conteúdos e se refere, sobretudo, a um modo
de orientar a vida na escola e na sociedade. Envolve valores democráticos e
humanos, relações de respeito e solidariedade e conteúdos que visam a forma-
ção de sujeitos de direitos.
3. Algumas considerações
57
nidade na qual a escola se localiza) e das relações destes entre si, com a sua
escola, sua comunidade e com o seu governo.
A elaboração coletiva do Projeto Político Pedagógico constitui-se numa
excelente oportunidade de reflexão conjunta sobre a realidade escolar, as ne-
cessidades e os anseios dos sujeitos que integram a escola. Mais do que isso
é a oportunidade da instituição assumir valores e práticas coerentes com uma
educação humanizadora e comprometida com a formação crítica dos sujeitos.
58
Reênciasfer ácasbilogr
59
Humanos no Século XXI. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo – Núcleo
de Estudos da Violência, 2007.
60
Claudeir Aparecido de Souza
Doutorando em Letras pela universidade Federal do Espírito Santo, Mestre em
Letras pela Universidade Estadual de Maringá.
4
CONTRIBUIÇÃO À DISCUSSÃO SOBRE A
IMPOSSIBILIDADE DO “DIREITO DE TODOS”:
O CASO DO CURRÍCULO MÍNIMO NACIONAL
1. Introdução
62
na esteira da construção e sustentação de instrumentos que possibilitem a hu-
manização e a emancipação de seres humanos, uma vez que os pactos sociais,
institucionalizados ou reconhecidos pelas instâncias legais ou burocráticas,
não sustentam um estado de direito para além do lastro moral de seus discur-
sos (Carbonari, 2009). Os pactos sociais encontram-se, pois, longe de esgotar o
conteúdo dos direitos humanos.
Considerando o problema arrolado, visamos, neste texto, discutir e ques-
tionar as relações que sustentam a ideia de currículo escolar mínimo como um
direito capaz de ser estendido à totalidade da sociedade sem provocar prejuí-
zos ou privilégios aos diferentes segmentos sociais. Tomamos como recorte o
contexto histórico que culminou na promulgação da Constituição de 1988. A
análise de alguns documentos, ainda que sucinta e de aspectos determinantes
de fatos políticos atuam como vigorosos objetos no empenho de mais bem
sustentarmos os argumentos.
Outrossim, espera-se contribuir na discussão sobre os currículos escolares em
funcionamento frente ao desafio da promoção da Educação em Direitos Humanos.
63
de currículo mínimo permeia os planos educacionais produzidos sob a moti-
vação democrática. Na mesma medida, é oportuno verificar em que medida
tal motivação política impressa nas propostas de currículos dialogam com a
perspectiva dos direitos humanos.
Sem um exame mais apurado, somos impelidos a pensar que a ideia de
um currículo mínimo nacional encontra, de imediato, guarida na Educação
em Direitos Humanos (doravante EDH), para quem a equidade, propalada nos
direitos fundamentais, é princípio elementar.
Com efeito, o desejo de construção de uma educação geral, no Brasil da
Nova República e pós-Constituição de 1988, remonta ao cenário em que atuou
a Frente Democrática, grupo de parlamentares federais que efetuou as costuras
políticas e alianças populares em torno de uma agenda mínima capaz de re-
conduzir o país à democracia, o que culminou na eleição indireta de Tancredo
Neves e na “proclamação” da Nova República (CUNHA, 1999). Àquela época,
figurava na perspectiva democrática o “combate a qualquer espécie de discri-
minação e preconceito quanto à religião, sexo e raça” (CUNHA, 1999, p.26), em
favor da proteção dos direitos das minorias.
Não obstante a intempestiva recondução ao centro do poder político de
setores da direita nacional, face à condução circunstancial de José Sarney à
presidência da república, o discurso de uma educação para todos cristalizou-
-se rapidamente nos planos educacionais que se seguiram. Podemos encon-
trar, nesses planos, objetivos de unificação curricular tais como:
64
preocupações de ordem pedagógica que levavam em conta as diferenças re-
gionais, reiteraram a defesa de uma educação básica e comum a todo o país,
seguindo o clima de consenso, sem o qual a construção da Carta Magna não
teria logrado êxito:
65
Adiante-se que tal herança passadista pode ser imputada ao ideário que
forjou a Nova República. O caráter reformista da Carta forjada sob a política
da coalizão não conseguiria, de fato, dar vazão às demandas sociais reprimidas
desde o regime militar e do acirramento das forças capitalistas de mercado.
Com efeito, o discurso representativo das demandas populares fez-se oportuno
à legitimação e cristalização de certo pensamento conservador.
José Afonso da Silva (2003) aponta uma contradição na democracia con-
temporânea pela qual os princípios fundamentais elitistas são incorporados às
teorias democráticas. Assim, a realização dos anseios de determinados grupos
hegemônicos na sociedade fica garantida por meio de uma estrutura demo-
crática. Dessa forma, a elite, formada de acordo com a tendência democrática
posta em uso, tem sua agenda legitimada pelos princípios democráticos. O
chamado “elitismo de dirigentes”, pelo qual o povo não estaria apto a pensar
as ações sociais necessárias, cabendo essa tarefa a determinado grupo de po-
der, subverte a verdadeira face da democracia em que o povo teria seus direitos
garantidos. É esse o processo pelo qual não se efetivam, de fato, os direitos do
povo, mesmo sustentados pela Constituição em vigor.
No nosso país, em especial, o corporativismo dos grupos de poder pode
ser tomado como caso em que o sistema democrático é cooptado pela coalizão
dos grupos de poder em seus anseios. Nessa perspectiva, os interesses que re-
percutiram na pauta do Congresso Nacional a partir de então, ganhando com
isso legitimidade, nem sempre traziam, de fato, a essência das reivindicações
populares. Atendiam, antes, aos interesses de determinados grupos de poder
ou categorias profissionais.
Tais grupos de poder, intentando legitimidade às suas atividades, não tra-
tam, inclusive, as reivindicações dos setores progressistas da sociedade historica-
mente subjugados como uma ameaça, uma vez que os efeitos do regime de exce-
ção que estes buscavam extirpar geravam descontentamentos em vários setores
da sociedade, tanto da classe trabalhadora quanto da elite política e econômica.
Veja-se como reflexo disso o apego ao nacionalismo de diversos matizes
e à estatização de ações de determinados setores da sociedade, a recorrência
ao planejamento, à burocracia e à previdência. Entretanto, isso se dá quando,
na verdade, o mundo rendia-se à descoberta das polpudas vantagens da livre
iniciativa, da internacionalização dos mercados, do enxugamento do Estado,
66
das técnicas privadas de produção, da redução da máquina estatal em favor da
diminuição de custos sociais (MEIRELLES, 2012).
Ademais, o interesse de alguns grupos de empresas detentoras de mono-
pólios foi encampado pela concepção de interesse nacional presente na Cons-
tituição. Somando-se ao peso exagerado com o qual o Estado arca, a força
corporativa dos grupos de poder ainda exigiu dele uma série de tarefas, intrin-
cadas até para Estados mais avançados do que o nosso.
Entrementes, esboça-se aqui um dos paradoxos da democracia, pois, atual-
mente, o Estado, ao criar novos direitos sociais, obriga-se a novas funções, com
o que não só aumenta a sua presença na sociedade como especialmente tende a
ampliar a máquina técnico-administrativa. Acerca disso, segundo Bastos (1994),
até o judiciário teria sido envolvido nessa teia de contradições, na imprecisão de
institutos como o mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão,
como tentativas de lançar coerções sobre o Estado. O esforço do judiciário para
o cumprimento da lei termina por gerar instabilidade entre as instituições.
67
Pode-se dizer que ao ser apresentado no conjunto das demandas sociais,
das elites nacionalistas e das exigências do mercado, o currículo mínimo as-
cende à categoria de um sistema nacional de padrão capaz de ser avaliado
por instrumentos igualmente padronizados, o que, de um lado, sugere certa
manutenção de um nível elevado de conhecimentos àqueles que se julgavam
excluídos dos ganhos sociais, e, de outro, serve ao mercado como instrumento
de aferição do seu potencial frente às demandas crescentes do capital. A esse
respeito escreve Apple (1994):
Veja-se que o currículo padrão vigendo sob o controle político das ações
do Estado serve à suposta legitimação a partir do pressuposto da igualdade
de direito, princípio que sustenta uma determinada sociedade e é sustentado
por ela. No mesmo movimento, o Estado, conservador “por natureza”, visa a
apresentar-se como instância capaz de controlar o fluxo do mercado. Este, por
sua vez, é, entretanto, muito dinâmico, não se deixando regular por princípios e
valores presentes na sociedade. O mercado privilegia sempre suas demandas. A
quem pensar, por exemplo, que, por meio do currículo mínimo nacional pode-
-se extinguir a diferença entre escolas públicas e privadas, o mercado respon-
derá com sua lógica interna de fluxo de capital, capaz de privilegiar certos seto-
res em detrimento da grande maioria, sem “crise” de consciência, como vemos.
Embora ainda se possa ver no currículo mínimo nacional uma oportuni-
dade para que os pais possam avaliar a escola dos filhos, vê-se que a exacerba-
ção desse processo de controle particular de qualidade conduz a classificações
e categorizações das crianças, o que, em última análise, resulta na construção
irreversível de estigmas negativos, perfazendo uma relação em que os critérios
68
podem até ser objetivos, mas não os resultados, “dadas às diferenças de recur-
sos e classe social” (APPLE, 1994, p. 89) e segregações em geral.
Apple (1994) menciona, ainda em seu trabalho, as implicações advindas
das distinções entre o “nós” e “os outros”, diferenças recrudescidas pelas desi-
gualdades entre as classes sociais, terminando por consolidarem antagonismos
sociais e culturais, numa relação em que o polo socialmente menos favorecido
assiste à negação de seus direitos por meio do esfacelamento de um sistema
que deveria garanti-los e não negá-los.
Ao fim e ao cabo, no currículo mínimo, a ênfase acaba recaindo sobre os
resultados. Parece-nos que num Estado propenso à adoção, mesmo que velada
de tal modelo de currículo, as tecnologias da educação voltam-se à elaboração
de sistemas de avaliação e controle capazes de quantificar, na verdade, a efici-
ência de determinada gestão. Ainda que os processos de avaliação não sejam
adequados, a lógica de seu funcionamento tem de ser percebida e internalizada
por todos, uma vez posta em ação a infraestrutura de controle do Estado. Tudo
isso pode se dar, inclusive, em detrimento da própria aprendizagem, feita,
assim, coadjuvante de um processo que resultará em números expostos em
estatísticas; que contra números não há argumentos. Não é à toa que ainda
na primeira década do século XXI os governos intensificaram a ação de seus
processos avaliativos com instrumentos tais como a Prova Brasil, ENEM, etc.,
para se “ver quem pode mais” em educação de norte a sul país.
O grande equívoco está em se pensar que, frente às diferenças entre pretos
e brancos, operários e classe média, pobres e ricos, homens e mulheres, etc., o
currículo possa ser apreendido da mesma forma. É evidente que os educandos,
marcados pelas injunções das suas relações sociais, respondem diferentemente
a uma mesma proposta curricular. Ademais, a quem disser que a flexibilização
dos currículos, em que certos conteúdos são adaptados a certas realidades, tor-
nando-se o mecanismo por meio do qual respeita-se as especificidades de cada
grupo social, poder-se-ia dizer que, na prática, o que se faz é negar a alguns cer-
tos conhecimentos fundamentais à formação integral, crítica e libertadora, como
propõem os pensadores educacionais das últimas décadas. Em outras palavras,
um currículo mínimo não pode dar conta de lidar com a heterogeneidade social.
Há, pois, que se pensar num currículo capaz de compreender e lidar com
a heterogeneidade social a partir da apreensão das raízes das diferenças e
69
desigualdades. Nem a história, nem os interesses sociais devem ser homoge-
neizados. Um currículo capaz de tratar com igualdade os seres humanos deve
considerar a desigualdade entre eles.
Analisando o caso específico dos Estados Unidos, Apple (1994) escreve
a respeito disso:
3. Considerações finais
70
A ideia de um currículo capaz de atender, indistintamente, a toda a po-
pulação de modo a considerar o princípio da dignidade humana é exemplar da
utopia do direito de todos. Com efeito, o que se vê é a formação de nichos de
privilegiados, em detrimento da grande maioria.
71
Reênciasfer ácasbilogr
APPLE, Michael W., A política do conhecimento oficial: faz sentido a ideia de um currí-
culo nacional? In Currículo, cultura e Sociedade. Antonio Flavio Moreira e Tomaz
Tadeu (Orgs.), 12 ed., São Paulo, Cortez, 1994.
CUNHA, Luiz Antônio. Educação, Estado e Democracia no Brasil. 3 ed., São Paulo,
Cortez, 1999.
RABENHORST, Eduardo R., O que são Direitos Humanos? In Direitos Humanos: capa-
citação de educadores / Maria de Nazaré Tavares Zenaide, et al. – João Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 125.
108 MEIRELLES, Delton Ricardo Soares; Luiz Cláudio Moreira Gomes. Gestão demo-
crática das cidades: acesso à justiça a partir dos juízes leigos comunitários.
Disponível em: <www.ibdu.org.br/ Acesso em: 27 jul. 2012.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1994.
BARRUFINI, José Carlos Toseti. Revolução e poder constituinte. São Paulo: Revista
dos Tribunais,1976.
72
Vilma de Fátima Machado
Professora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Hu-
manos – UFG. Coordenadora do Curso de Especialização em Educação para
Diversidade e Cidadania – UFG.
5
EDUCAÇÃO AMBIENTAL PARA ALÉM DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
74
Na segunda parte do texto, buscamos apontar elementos que poderiam 1. Sobre os desafios da Educação na con-
nos ajudar na construção de caminhos para encontrarmos a saída do labirinto. temporaneidade, vale a pena conferir o que
pensa o educador espanhol, In: Desafios da
E o fio de Ariadne que vislumbramos é a ideia de envolvimento. Desde já,
Educação Jorge Larrosa Bondia/Espanha.
antecipamos que envolvimento não é oposto de desenvolvimento, mas um ca- Disponível em: http://www.youtube.com/
minho para sair dele A proposta reflexiva é construir um caminho que é uma watch?v=AzI2CVa7my4.
Philippe Nemo – Como se começa a pensar? Com perguntas que, após acon-
tecimentos originais, fazemos a nós mesmos ou acerca de nós próprios?
Emanuel Lévinas – Isso começa provavelmente com traumatismos ou
tacteios a que nem sequer se é capaz de dar uma forma verbal: uma se-
paração, uma cena de violência, uma brusca consciência da monotonia
do tempo (LÉVINAS, 2000, p. 15).
75
2. Cf. vídeo-documentário sobre o episódio Pensando tudo isso, caminhemos em direção ao Outro humano, para
em: http://www.youtube.com/watch?v=qH além desse de quem falamos nobremente, mas que está sendo violado a cada
QdWwZcGlg
instante e que não percebemos essas violações se não acontecem conosco.
Ou ainda, mesmo quando acontece conosco agimos no sentido de naturalizá-
-las. Busquemos modos de ver o outro e nós mesmos fora das naturalizações
que invisibilizam a possibilidade do comum, do coletivo. Presos no Labirinto,
somos governados pela lógica do indivíduo, do isolamento reforçado pelas
infinitas paredes construídas para não percebermos o Outro humano e não hu-
mano. Pensamos que na percepção e no envolvimento com o outro é possível
construir uma saída para a prisão do Labirinto.
O desafio é transcender a tese, já naturalizada, de que ambiente é ape-
nas uma extensão do homem, está fora dele, e por isso pode ser explorado,
maltratado com doses incomensuráveis de agrotóxicos e consumido até a
exaustão. Transcender essa ideia é afirmar que a vida é inalienável. Quando
respeitamos e reconhecemos o ambiente por inteiro também respeitamos
crianças, homens e mulheres. Mas também o contrário é verdadeiro: quan-
do não respeitamos a(s) natureza(s) não respeitamos mulheres, crianças e
homens. Para ilustrar o que estamos dizendo basta lembrar o fato ocorrido
em uma lavoura no Estado de Goiás, noticiado pela imprensa em nível na-
cional, cujo teor geral das manchetes foi: “avião pulveriza lavoura e ignora
presença de escola próxima à plantação e acaba por atingir crianças e pro-
fessores com agrotóxico”2.
Um fato como esse define quem é humano para aquele que manda es-
palhar o agrotóxico-veneno. Ou será que ele pulverizaria a sua casa estando
nela sua família? Nas linhas desse acontecimento, está dito quem tem direito
e a quem ele é negado. Portanto, está claro nele, como o agronegócio vê os
direitos humanos e quem pode ter esses direitos. É evidenciado quem deve ser
consumido, assassinado. Esse fato é ontológico, revela um modo de ser no
mundo; uma maneira de ver o Outro e de se relacionar com ele.
Ante um acontecimento que é apenas uma amostra do que ocorre dia-
riamente no mundo, e antes de adentrar no estudo sobre o desenvolvimento,
lembramos aqui a força das palavras de Bertolt Brecht
76
Nós vos pedimos com insistência
Não digam nunca
Isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia
Numa época em que reina a confusão
Em que corre o sangue
Em que o arbítrio tem força de lei
Em que a humanidade se desumaniza
Nunca digam nunca:
Isso é natural!
Para que nada possa ser imutável!
(Domínio público)
Com Brecht queremos que esse texto seja uma espécie de convocação
para não permanecermos silenciosos diante dos gritos desesperados daqueles
que são cotidianamente encurralados pelo Minotauro contra as paredes do
Labirinto. E parte desses viventes somos nós, professores e alunos, convivendo
diariamente no mesmo espaço chamado escola, seguindo dia após dia como
se não estivéssemos vendo e ouvindo nada, nenhuma lamuria, nenhum grito,
nenhum desespero e quando por um trauma conseguimos ouvir, sentir, ou ver
alguma coisa tratamos logo de dizer: “melhor deixar pra lá, afinal as coisas são
assim mesmo, não tem outro jeito, não tem saída”.
Pensar a partir do Outro, seja ele humano ou o Não humano, exige de nós
abertura, disposição e desejo para promover aproximações, construir redes,
partilhar saberes e lutar para que todos os direitos sejam para todos e todas.
Isso implicará que abandonemos a linha retilínea e contínua do progresso e
assumamos a lógica inclusiva/envolvente de uma espiral.
77
libertação de todas as opressões humanas, a modernidade, de acordo com San-
tos (2001) pode ser entendida como um Projeto Sócio Cultural. Este projeto
emerge no processo de desagregação da ordem feudal, ganha contornos mais
definidos com a filosofia iluminista e é posto em operação ao se converter em
instrumento da expansão capitalista. Desde as grandes navegações essa alian-
ça Projeto Sócio Cultural da Modernidade e Capitalismo tem se aprofundado
e a cada crise ou contradição que se configura no desenrolar histórico vem
demonstrando uma grande capacidade de reorganização e atualização de sua
lógica. E qual seria essa lógica a que estamos nos referindo? Para refletirmos a
respeito comecemos por buscar entender o sentido da modernidade.
78
mediado por uma técnica, por um distanciamento radical entre sujeito (aquele
que conhece) e objeto (aquilo que é conhecido) oferece a base para a criação
de tecnologias capazes de potencializar a capacidade dos homens de colocar a
natureza sob seu controle, sob seu domínio e ao seu serviço. A promessa do de-
senvolvimento é a possibilidade de crescente satisfação das necessidades huma-
nas. É essa promessa que funciona como atração para adentrarmos o Labirinto.
Ocorre que essa satisfação nunca é alcançada, está sempre se renovando.
A lógica que rege o Labirinto é a da acumulação e não da suficiência. Sempre é
possível ir mais longe do que já se foi – como no bordão do personagem Buzz
Ligthyear no filme Toy History que sempre exclamava: “ao infinito e além!”.
Ou seja, a lógica é a produção e recriação de sociedades insatisfeitas, como
ponderou a filosofa Agnes Heller:
79
3. De um modo geral, podem ser consultados postos em operação. À palavra desenvolvimento, em diferentes contextos foi
como uma boa amostra da discussão, entre acoplado um adjetivo, seja na perspectiva da crítica ou da reforma – desigual,
outros: Santos (1997, 2001, 2010), Harvey
periférico, competitivo, equilibrado, justo, como liberdade, com equidade, sus-
(1992), Giddens (1991), Escobar (2005), Mig-
nolo (2007, 2008), Touraine (1999), Wallesrs- tentável, sustentado, emancipatório, etc. – no entanto nenhum consegue es-
tein (2002), Latour (1994), Stengers (2002) e capar da força substantiva que lhe define como hierarquização, produção de
Norgaard (1994).
desigualdades e diferenças.
A crítica ao modo de operar da modernidade tem se fortalecido nos úl-
timos anos, sobretudo a partir do processo de descolonização que tem sido
empreendido em diferentes áreas de saber e espaços de lutas produzidos no
interior da dinâmica social. A intensificação dessas críticas sinaliza para al-
guns estudiosos não só a configuração de uma crise dos fundamentos da mo-
dernidade, mas principalmente a possibilidade de ocupar lugar na arena das
disputas sociais outros saberes e fazeres antes invisibilizados. Nesta perspec-
tiva é que se colocam os estudos vinculados antropologia da modernidade, da
opção descolonial ou ainda àqueles vinculados às chamadas epistemologias do
sul.3 Em que pese diferenças significativas entre essas abordagens, é comum
entre elas a crítica à força semântica da palavra desenvolvimento e a necessi-
dade de superarmos essa ideia-força que nos coloniza e aprisiona no labirinto
moderno. Esteva (2000), afirma que esta é uma das palavras mais tóxicas já
produzidas, pois seu processo de descontaminação é muito difícil. Podemos
ainda acrescentar que essa contaminação se faz por diferentes e silenciosas e
viciantes toxinas, expelidas nas escolas, nas fábricas, nas universidades, nos
laboratórios, nos lojas, no cinema, na televisão, enfim em quase todos os es-
paços onde as relações capitalistas governam.
Olhemos com cuidado para essa palavra que costumamos usar cotidia-
namente sem pensar na extensão do sentido que ela carrega e no seu poder
tóxico. Olhando para suas raízes etimológicas percebemos que ela traz em sua
morfologia a ideia de negação, de ação contrária, separação e retirada. Como
argumenta Couto,
80
mantém inteiro como formação ontológica, como ser, como organismo. 4. Ainda que alguns estudiosos tenham
No caso que nos interessa, “desenvolver” um ecossistema é tirar sua elaborado conceitos mais amplos de desen-
volvimento, tal como o Índice de Desenvol-
auto-defesa, é fragilizá-lo (2007, p. 375).
vimento Humano, construído pelo econo-
mista indiano Amarthya Sem, e economista
Etimologicamente desenvolvimento significa desvencilhar-se, expandir- paquistanês Mahbub, eles não conseguiram
escapar tanto do desenvolvimento, como
-se rompendo os vínculos, as ligações. É importante ter sempre em conta que
do mais reduzido desenvolvimento eco-
as palavras não são neutras, elas são carregadas de conteúdo, que revelam as nômico. Por isso, estão substancialmente
suas intencionalidades. Ou seja, condenados.
81
6. Síntese do texto disponível em: http:// diante de nossos olhos5. E o que é ainda mais indicativo desse não reconhe-
www.novacartografiasocial.com/downloa cimento é que essa autorização de extermínio é dada não só aos indivíduos,
ds/fasciculos/10-ncsa-alcantara.pdf
mas ao Estado. Para ilustrar, vejamos o trecho a seguir retirado do documento
produzido pelo Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara
82
tra forma de sociedade. No entanto, no desenrolar do projeto moderno essa
igualdade não foi convertida em favor da emancipação, ela operou no sentido
de criar subjetividades homogêneas, mutilando e destruindo singularidades,
suprimindo diversidades. Os humanos – enquanto tipo ideal moderno – apre-
sentam-se destituídos de toda a sua originalidade. Reduz-se o plural ao múl-
tiplo. No múltiplo, somos simples exemplares, somos idênticos. Não existimos
a partir de uma cultura particular. A globalização aprofunda esse processo de
homogeneização, aspecto que pode ser observado a partir das festas que se
produzem nas grandes cidades e nas suas periferias ao redor do mundo, nas
comidas, nas roupas que se consome.
Essa homogeneização é naturalizada e a partir dela passamos a negar o
diferente, o Outro, nos o desconsideramos. Não há possibilidade de estranha-
mento, de aproximação. O que não é igual, não é reconhecido. Um exemplo
bastante significativo desse processo de homogeneização e reificação é o uso
que fazemos da palavra natureza. Quando falamos “natureza” estamos falando
de um ente abstrato, sem característica identificável, sem identidade, sem ori-
ginalidade. Quando falamos natureza estamos nos incluindo? Estamos falando
dos rios, ou dos mares? Das florestas, ou seres que nelas habitam? Das savanas
da África ou das geleiras do Ártico? Provavelmente estamos falando de todos
e de nenhum ao mesmo tempo. Estamos tomando como concreto algo que só
é possível enquanto abstração, estamos reificando a natureza e suas múltiplas
identidades, característica e lógicas constituintes.
Essa reificação é o motor que mantem operante o desencanto do mundo,
a ausência de todo mistério, produz o aprisionamento a um único horizonte,
nos mantem no Labirinto.
83
não reconhecimento do Outro humano cria as condições de reprodução de de-
sigualdades sociais que são necessárias à operação do projeto sócio cultural da
modernidade, parece sinalizar também os limites desse mesmo projeto. Mas é a
emergência do Outro não humano que parece evidenciar a impossibilidade da
manutenção da aliança fundadora desse projeto de colonização que foi posto
em operação pela modernidade: razão-ciência-tecnologia-desenvolvimento.
A emergência da problemática ambiental parece abrir uma fissura nas estrutu-
ras desse projeto moderno de colonização.
As proposições que constituem a ideia força, ou a palavra texto do De-
senvolvimento sustentável, traduzem, a partir da chave de leitura que estamos
propondo, os esforços de atualização da lógica de operação do desenvolvi-
mento cujo objetivo é manter de pé e em funcionamento o Labirinto Moderno.
A ideia de ser possível como alternativa ao desenvolvimento tradicio-
nalmente hegemônico a construção de um Desenvolvimento Sustentável tem
reunido os interesses mais diversos – desde os mais conservadores aos que
se dizem os mais progressistas – ao ponto de estabelecer um consenso que
tem ocultado a contradição que ela traz em seus termos. Desenvolvimento
sustentável é uma expressão suave, aos ouvidos de muitos. Quase redentora.
Para confirmar isso basta ver a frequência com que se recorre a ela, a fim de
demonstrar que a saída para a humanidade e para o planeta é a promoção do
desenvolvimento sustentável. Não esqueçamos que o substantivo permanece.
Apenas lhe foi agregado outro adjetivo.
Todos os adjetivos acoplados têm força secundária. Não há como pro-
mover desenvolvimento local, se o que move as ações de desenvolvimento
implica em desenraizamento e negação do pertencimento; como realizar de-
senvolvimento humano, se as pessoas são as que menos interessam ao mundo
do capital; como garantir desenvolvimento social, se para o mercado o impor-
tante são indivíduos e não a sociedade; como sustentar a ideia de desenvol-
vimento sustentável, se já cada vez mais é evidente para os povos indígenas,
os africanos e afrodescendentes e, por aqueles de lutam cotidianamente para
não serem devorados pelo Minotauro, que sozinho nada é sustentável, nada
se sustenta. Para existir é necessário estar na teia da vida. A lógica do desen-
volvimento opera em sentido contrário, trabalha para destruir a vida de outros
seres vivos, a fim de sustentar-se.
84
O desenvolvimento da mesma forma que o Desenvolvimento Sustentável
está nu desde a sua criação. Ele nunca esteve envolvido com ninguém e em
nada. Ele é DES-envolvido. E para conquista-lo é preciso entrar no Labirinto.
Ser um indivíduo desenvolvido, desvinculado de tudo, encerrado em si mesmo,
proclamando
nada receber de outrem a não ser o que já está em mim, como se desde
toda eternidade, eu já possuísse o que me vem de fora. Nada receber ou
ser livre (LÉVINAS, 1988, p. 31).
85
Resta ainda examinar um aspecto que consideramos muito importante
para compreendermos o papel colonizador da lógica desenvolvimentista que
se mantem como eixo das proposições vinculadas à promoção do Desenvolvi-
mento Sustentável. Trata-se da apropriação e potencialização do poder instru-
mental inerente ao conceito de Meio Ambiente.
Como se usa hoje o conceito de meio ambiente ele se coaduna a uma vi-
são da natureza que está de acordo com o sistema urbano industrial. Todo
o importante para o funcionamento deste sistema se converte em parte
do meio ambiente. O principio ativo desta conceptualização e o agente
humano e suas criações, ao passo que a natureza fica relegada a uma con-
dição ainda mais passiva. O que circula é matéria prima, produtos indus-
triais, dejetos tóxicos, “recursos”. A natureza se reduz a um ente estático,
um mero apêndice do meio ambiente. Junto com a deterioração física da
natureza presenciamos sua morte simbólica. O que se move, cria, inspira
a vida, quer dizer o seu principio organizador, reside agora no meio am-
biente (ESCOBAR: 1998, p. 369 – tradução livre feita pelos autores).
86
é objeto. E objeto é passível de qualquer manipulação, pode ser tirado de um
lugar e posto em outro de acordo com os interesses de que o domine e/ou o
possua. Assim, desvia-se o curso de rios para atender a especulação imobiliá-
ria, promovem-se urbanizações forçadas, deslocam-se populações, inundam-
-se grandes áreas de terras para construir hidrelétricas, e pouco interessa a
vida das comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas que habitavam
nelas, em nome do desenvolvimento o poder público (e também a sociedade
imobilizada no Labirinto) é condescendente com a prática de trabalho escravo,
com a homofobia com o racismo; com extermínio de jovens, sobretudo os
negros e pobres, com a violência contra as mulheres.
Meio ambiente como simulacro de vida, e vida sem espanto, pois todos
e tudo foram homogeneizados, aprisionados no interior de um obscurantismo
esclarecido que conspira para nos manter dentro do Labirinto ou como ope-
rários da sua reforma. Talvez possamos pensar que conspiração é um termo
muito forte para uma lógica que não parece ter um sujeito operante. Mas é essa
sua força. Tudo se move no sentido da
87
7. Crisol é um recipiente onde se derrete Então a liberdade desse Um, tomado como ser reificado e sem identidade,
o metal para apurar as suas qualidades. não encontra limites.
Neste texto, a crisol é uma metáfora para
Presos no Labirinto Moderno, cercados por uma natureza una, desen-
significar que interrogaremos a Educação
Ambiental, colocaremos em questão seus cantada e morta, ainda podemos vislumbrar uma saída desde meio ambiente
limites, possibilidades e otimismo. hostil? Pensamos que sim, e ainda mais, pensamos que o fato de nos perceber-
mos como prisioneiros já oferece oportunidade de encontrarmos uma saída.
Claro que este Labirinto é forte e cheio de armadilhas e estas só serão vencidas
com muita reflexão, criatividade e cooperação – único caminho que temos
contra a naturalização da prisão. Posturas que implicam o permanente esforço
de se compreender como integrante da teia da vida, e compreender, então, que
dela muitos Outros tomam parte e estão envolvidos.
Como propusemos no inicio do texto a ideia de envolvimento pode ser
o fio de Ariadne a orientar nossa caminhada rumo saída do Labirinto. Aqui
vamos trazer a discussão dessa ideia como possibilidade dela se constituir no
eixo da práxis da Educação Ambiental. A partir do envolvimento a Educação
Ambiental pode se converter em um espaço crítico cooperativo de imensa
potência libertadora.
88
A natureza como unidade não existe. Temos naturezas perpassadas por feixes 7. Crisol é um recipiente onde se derrete
de sentidos e tempos. Meio ambiente não é algo separado, destacado dessas o metal para apurar as suas qualidades.
Neste texto, a crisol é uma metáfora para
naturezas, mas um conjunto de significados de movimentos, de humanos e significar que interrogaremos a Educação
não humanos, de seres vivos e não vivos, enfim um feixe de relações visíveis, Ambiental, colocaremos em questão seus
invisíveis, imaginárias. limites, possibilidades e otimismo.
Assim sendo, o meio ambiente não existe desde uma data ou existirá
eternamente. Ele é feito e refeito a cada instante segundo a configuração das
relações entre os humanos e os não humanos, das relações estabelecidas ou
por se estabelecer na complexa teia da vida.
A essa visão de meio ambiente articula-se, pois uma compreensão de
ser humano, como um ser genérico, nascido com a idade moderna, sem lugar,
sem memória, porque a vida para ele é tão somente o tempo presente, e o que
lhe preocupa é sua liberdade sem responsabilidade e sua autossuficiência. Ao
articular uma compreensão do humano, opera ao mesmo tempo uma compre-
ensão de Direitos Humanos que reivindica o direito de afirmar que a sua vida é
hierarquicamente superior a de todos os outros seres. Dessa ótica, não há sen-
tido nenhum em falar em interdependência dos direitos humanos econômicos,
sociais, culturais, ambientais e sexuais – DHESCAS.
O que dá lastro a essa concepção de direitos humanos é o cumprimento
dos deveres.
89
As posições estagnadoras de direitos humanos trabalham com a ideia de
que direitos humanos – e também quem atua com eles – se confundem
com a defesa de “bandidos e marginais”, num extremo; e no outro, que
direitos humanos conformam uma ideia tão positiva e tão fantástica
que é síntese do que de mais belo a humanidade produziu. Pelas duas
pontas, imobiliza: seja porque tocar no assunto compromete negativa-
mente; seja porque tocar na ideia a “estraga” (CARBONARI, 2008, p. 33).
90
vimento? Será que estão inscritos entre os que criticam empreendimentos do
desenvolvimento na lógica de que busquem ser sustentáveis? Será que perce-
bem que a lógica que move um também move o outro. E que ambos operam
na produção e reprodução de necessidades, movimento inerente ao modo de
produção capitalista?
Com essas perguntas em mente, nos parece que as atividades de educação
ambiental têm sido marcadas por uma “ilusão pedagógica” ou um disfarçado
(quem sabe ingênuo?) comprometimento com o modo de produção capitalista.
Ilusão pedagógica que não reconhece os limites emancipatórios inerentes ao
desenvolvimento sustentável, e por isso reforça, na sua práxis, a crença no
trabalho instrumental e fragmentado dos indivíduos enquanto promessa de
uma sempre adiada libertação. Trabalho individual não gera envolvimento,
por isso não tem lastro suficientemente forte para transformar valores, hábitos
e atitudes, mas apenas para criar uma zona de conforto em que os indivíduos
se alojam, encerrando-se cada um sobre seu ato:
Movida por ações desse tipo, a educação ambiental acaba por escamo-
tear as lutas ambientais, políticas, sociais, culturais, econômicas, que estão
presentes na esfera da vida cotidiana, aonde se faz a resistência e a luta
91
contra o Minotauro. Ao escamotear essas lutas e resistências a Educação Am-
biental acaba contribuindo para a legitimação do modelo econômico e social
hegemônico. O que vemos por trás das ações pontuais é um movimento que
vai da aceitação da ordem econômica dominante a no máximo a sua virtual
negação; não chegam a se constituírem em um movimento orientado para
superá-lo. Então, continua preso ao do dualismo do certo e do errado, do
sustentável e do insustentável.
De modo geral, as proposições e práticas relacionadas à educação am-
biental que tem predominado nas escolas são de natureza funcional. A edu-
cação ambiental tem exercido o papel de realocar o lixo que o capital produz,
criando uma estética abstrata do reciclado, uma vez que tais produtos não
manifestam as contradições e os conflitos que estão por trás deles. E abstrata,
ainda, porque não possui vínculos com a identidade social dos grupos para os
quais se dirigem ao mesmo tempo em que reforça e evidencia a situação de
desigualdade e hierarquização. A estética do reciclado trabalha no sentido de
alimentar a inferioridade, a subalternidade, a exclusão de seus consumidores,
ao mesmo tempo em que os mantêm na cadeia do consumo. Afinal a palavra
re-ciclagem, não esta propondo a continuidade de um ciclo? Não traz em si a
proposta de re-entrada no processo produtivo, no ciclo da produção? E cabe
ainda perguntar, de qual processo produtivo estamos falando?
Promover a crise nas práticas de educação ambiental é questionar tam-
bém a promoção da adaptação. De várias formas a batalha empreendida pela
Educação Ambiental em favor do desenvolvimento sustentável opera no sen-
tido da adaptação ao modelo dominante, hegemônico. É nesta perspectiva que
consideramos as mais diversas práticas e orientações votadas para a produção
de nichos de mercados que se pretendem sustentáveis. Encontrar um nicho
significa encontrar um espaço de acomodação dentro do ciclo produtivo, que
como analisamos não é sustentável. Não tem sentido dispender energias para
“‘encontrar o nicho’. [Pois] o nicho é a tumba, o lugar adequado no mercado”
(BENGOA, 2002, p. 68). Aliás, a defesa da ideia de que o segredo é encontrar
o nicho nos traz à memória o texto de Bertold Brecht, “Se os tubarões fossem
homens”, onde ele imagina como seria a vida dos “peixinhos” se os tubarões se
comportassem como homens. Já no trecho final, depois de dizer que certamen-
92
te os tubarões construiriam gaiolas para abrigar os peixes pequenos (prisões 8. Importante salientar que o princípio co-
como as do Labirinto?), observa o poeta: operativo não é sinônimo de consenso, de
adaptação.
Se os tubarões fossem homens também acabaria a ideia de que todos os 9. Sísifo, é considerado na mitologia Grega
peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e o fundador da importante cidade de Corin-
to. Por ter traído um segredo de Zeus, foi
seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores até
condenado por este ao inferno depois de
poderiam comer os menores. Isso seria agradável para os tubarões, pois morto, e lá deveria cumprir o castigo, eter-
eles, mais frequentemente, teriam bocados maiores para comer. E os no, de fazer avançar sem parar montanha
peixinhos maiores detentores de cargos, cuidariam da ordem interna acima uma grande pedra que ao atingir o
cume despenhava-se montanha abaixo,
entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, polícias, constru-
quando então ele reiniciava a tarefa.
tores de gaiolas, etc.
Então, não seria essa proposta de encontrar o nicho a isca do capital para
manter todos dentro do Labirinto, pensando que estão caminhando no sentido
de sair dele? Não estaria o “nicho” funcionando como um espaço de reprodu-
ção de saborosos alimentos para os Tubarões?
Levar a educação ambiental a uma crise é um esforço de coloca-la na pers-
pectiva da permanente autocrítica, da vigilância propositiva em relação às arma-
dilhas do Labirinto. É, também, ser intransigente, com a nossa prática educativa,
é não se conformar e não se acomodar com que estamos fazendo. E mais, é colo-
car-se numa posição de enfrentamento e superação dos modos de ser e de pensar
fundados em hierarquias, no poder, no silenciamento, na dominação, no interesse
e na colonização. É colocarmos numa posição de confronto ao processo de elimi-
nação do Outro humano e não humano, fundando desta forma possibilidades de
nos envolvermos com esses Outros buscando tornar possível o impossível.
Pensando a partir da ideia-chave envolvimento “trata-se ao mesmo tem-
po de mudar de vida e transformar o mundo, de revolucionar o indivíduo e de
unir a humanidade” (MORIN, 1999, p. 188). É colocar a nossa “cunha” na crise
civilizacional, para ampliar o máximo possível a fissão em vista da abertura de
espaço para o novo. E uma das possibilidades de se fazer isso é sentir-pensar-
-viver uma pedagogia da cooperação.
Mas o que vem a ser a pedagogia da cooperação? É um modo de vivenciar
a educação, no qual
93
os integrantes de um grupo devem aceitar o fato de que só serão capa-
zes de alcançar seus objetivos se os demais também alcançarem os seus
próprios (DUCK, 2007, p. 210).
94
perceber as inúmeras e complexas conexões que marcam a interdependência
entre os seres vivos. É um esforço permanente de construção de uma práxis
que opere fora da lógica da exclusão, pois como lembra Boff,
95
a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no
fundo, somos os mais bonitos (2008, p. 65-7).
Ser livre e autônomo, dessa forma, é muito mais do que respeitar a ‘cerca’
da liberdade dos outros – no sentido de que ‘minha liberdade vai até onde
inicia a liberdade do outro’ –, reduzindo a liberdade a uma espécie de
propriedade privada e privatista. Trata-se de compreender a liberdade e
a autonomia como processo de constituir-se com os outros, desde os ou-
tros, para si e para os outros. A liberdade, dessa forma, é construção subs-
tantiva da subjetividade aberta e relacional (CARBONARI, 2007, p. 178).
Não por fim, mas para terminar, pensamos que muitos dos que nos acompa-
nharam até aqui, poderiam concluir consigo mesmos, “sim, pode ser…” e na
sequencia se virem acossados pela legitima pergunta: mas como fazer? Como
encontrar ou tecer o fio de Ariadne?
96
A educação ambiental fundada no princípio crítico-cooperativo busca
construir possibilidades, pensar em termos éticos e estéticos que não estão no
horizonte, mas para além dele. Ela faz a crítica ao que se vê, mas anuncia o
ainda não visto, a utopia, o que precisa ser construído e reconstruído constan-
temente, pois entende que a
97
Reênciasfer ácasbilogr
ALVES, Rubem. O amor que acende a lua. 13. ed. Campinas: Papirus, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
CAERO, Víctor Bascopé. Terra e água: a vida no seio da Pachamama. In: SUSIN, Luiz
Carlos; SANTOS, Joe M. G. dos. Nosso planeta, nossa vida: ecologia e teologia. São
Paulo, Paulinas, 2011, p. 175-181.
98
______. Sujeitos de direitos: questões abertas e em construção. In: SILVEIRA, Rosa M.
Godoy et. al. Fundamentos teóricos-metodológicos da educação em direitos hu-
manos. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2007, p. 169-186.
COUTO, Hildo Honório do. Ecolinguística: relações das relações entre língua e meio
ambiente. Brasília: Thesaurus, 2007, p. 367-378.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994.
99
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa:
Edições 70, 1988.
______. Ética e Infinito: diálogos com Philippe Nemo. Tradução de João Gama. Lisboa:
Edições 70, 2000.
________. Coloniality: The Darker Side of Modernity. In. Coloniality and Modernity/
Rationality - Cultural Studies, 2007, vol. 21, nos. 2–3, pp. 155–67.
100
_______. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós modernidade. São Paulo:
Cortez, 2001.
STENGERS, Isabelle. A invenção das Ciências Modernas. São Paulo: Editora 34, 2002.
TORRES, Carlos Alberto. Novos pontos de partida da pedagogia política de Paulo Freire.
In: TORRES et AL (Org.). Reinventando Paulo Freire no século 21. São Paulo:
Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2008, p. 41-55.
101
102
Júlio Pompeu
Doutor e Coordenador do Curso de Direito da Universidade Federal do Espirito
Santo. Professor do Mestrado em Direito e em Gestão Pública. Coordenador
Adjunto do Curso de Aperfeiçoamento de Educação em Direitos Humanos.
6
A ÉTICA ENTRE FINS E MEIOS: MAQUIAVEL
Júlio Pompeu
Ética e política parecem não mais combinar, como água e óleo. Tornou-se
coisa de que não se gosta sequer de falar e, de desgosto em desgosto, de de-
silusão em desilusão, entregamos a condução de nossas vidas nas mãos de
pessoas nem sempre dignas de confiança. Ante a desilusão, quando muito, é
aceitável que falemos da política como ela deveria ser. Tentar encará-la como
ela é, é assumir o risco de decepcionar-se pela incapacidade de nosso Estado
converter as promessas políticas em realidade na vida dos súditos que somos.
Não parece haver ética na política tal qual ela é, mas apenas na política tal
qual ela deveria ser. Será?
Muitos não conhecem a obra de Maquiavel, mas já ouviram falar na frase
“os fins justificam os meios”. E já aprenderam a associar esta frase a um tal de
Maquiavel, um italiano meio cínico. Ignora-se o autor, mas não a frase. Ela
tornou-se o lema dos maquiavélicos. Bordão dos ardilosos.
Ser maquiavélico seria não dar muita atenção para a conduta praticada,
mas apenas para os resultados que queira alcançar. Seria ter um descompro-
misso total com qualquer regra de conduta, para com qualquer limitação mo-
ral ou até mesmo legal. Alguém que é capaz de qualquer coisa para alcançar
seus desejos, pouco importando o que ou quem esteja no meio do caminho.
Este tipo de interpretação não só da frase atribuída a Maquiavel, mas de
sua obra como um todo, rendeu ao autor a fama de imoral (contrário à moral)
ou, no mínimo, de amoral (produtor de discurso onde a moralidade se encontra
ausente). Mas nem imoral, nem amoral, Maquiavel nos seus conselhos polí-
ticos faz apelo a uma ética. Não à ética posta até então, ética cristã fundada
em princípios inquestionáveis, dogmas e verdades universais, mas a uma ética
comprometida com o que ele chama de “verdade efetiva das coisas”, uma ética
inspirada na vida como ela é e não em como ela deveria ser.
Esta verdade maquiavélica, a fundamentação primeira de sua ciência,
pressupõe uma ruptura com os fundamentos filosóficos dominantes até então
e que, de maneira bastante contundente, ainda encontramos nas nossas repre-
104
sentações contemporâneas do mundo. Refiro-me ao idealismo e, em especial, 1. Metafísica: do grego metà (além de),
à sua versão cristã. mais physis (mundo físico). Aquilo que está
além do mundo físico. Já que para os gre-
Ser um idealista segundo o senso comum é ser um sonhador, alguns
gos o mundo físico é aquele que podemos
acrescentariam ingênuo, de uma maneira geral, o idealista seria alguém que perceber e com ele nos relacionar através
ama o mundo tal qual ele é, mas como ele deveria, idealmente, ser. Numa con- dos nossos cinco sentidos, então o mundo
metafísico seria também o suprasensível,
cepção filosófica, o idealismo não é tão diferente assim. De Platão a autores
algo para além de nossa visão, tato, olfato,
contemporâneos encontramos uma série de obras políticas e éticas, de filóso- paladar e audição.
fos e, mais recentemente, de escritores que nos falam não do mundo como ele
é, mas como ele deveria ser. Sua empreitada filosófica é a de nos fazer crer
que o mundo ideal que nos anunciam é não só possível ou, em certos casos,
existente em uma instância metafísica1 qualquer, como é muito melhor do que
o mundo em que efetivamente vivemos.
Transpondo tais crenças para a ética, se para tudo no mundo há uma
forma ideal a ser conhecida e usada como referência, para a ética não seria
diferente. Haveria um conjunto de regras, modos de ser, pensar e agir ideais,
que uma vez seguidos grantiriam a qualquer um em qualquer situação ou lu-
gar uma ação correta. Se erramos, é por desconhecermos os ideais. Conecê-los,
seria a fórmula para uma vida de acertos. Será?
Maquiavel desconfia de ideais e, portanto, de uma ética idealista. Ele
observa que uma atitude pode ser correta para algumas pessoas em algumas
circunstâncias e prejudicial para outras em outras circunstâncias. Imagine um
indivíduo que siga a ética cristã, que aconselha a dar a outra face quando de
um tapa recebido. Se a face esbofeteada uma segunda vez for a dele e somente
a dele, sua atitude pode ser considerada correta, mas imagine se este cristão
convicto for o príncipe de um país invadido em suas fronteiras do leste, o que
deverá fazer, permitir a invasão das fronteiras do oeste também?
O idealismo e uma ética de princípios fazem sentido como um conjunto
de regras a serem seguidos em toda e qualquer circunstância somente se os
seus fundamentos, que são ideais metafísicos, mundo inexistentes, não mu-
darem. Se, ao contrário, o mundo não respeita princípios, se na vida dos ho-
mens as coisas não se dão como na física, em que os corpos se movimentam
obedecendo a leis constantes e imutáveis, então obedecer sempre a princípios
que fizeram sentido para alguém em algum momento pode ser ineficaz ou até
mesmo perigoso.
105
A imagem de um mundo onde até mesmo a moral obedece a leis como as
da física é a representação cristã do mundo, onde Deus, ser onipotente, onipre-
sente e onisciente, apresenta-se como princípio da ordem ideal. “O homem, com
seu livre arbítrio, peca, afrontando a ordem, mas Deus tudo vê, tudo pode e há
de lhe castigar, diz o crente. Mas Maquiavel substitui Deus pela Fortuna. Antiga
deusa associada ao caos e à aleatoriedade. È o mesmo que dizer que o mundo
não é um cosmos regido por um princípio ordenador bom, mas que el é um caos
de encontro e desencontros regido por uma deusa caprichosa e inconstante.
Mas o que faz da vida uma eterna luta contra a Fortuna? A deusa é
apenas uma alegoria, uma metáfora para, de forma mais palatável, apresen-
tar suas idéias. O mundo é regido pela incerteza, mas não por culpa de uma
deusa antiga, mas em consequência da natureza humana. Maquiavel acredita
que todos nós possuímos uma natureza e que, portanto, para além de nossas
diferenças culturais e singularidades individuais, há algo que nos assemelha
em nossos modos de agir e de pensar. Esta natureza humana lhe dará uma
nova bse de certeza para opor-se à metafísica idealista. Em outras palavras, se
Platão e outros tantos recorriam à metafísica para a firmarem que suas idéias
eram corretas, Maquiavel fundamentará sua verdade na natureza humana. A
natureza humana é o substituto moderno da metafísica.
Para ele a natureza humana se resume a um disposição de espírito pre-
dominante: o desejo. Somso desejantes e desejo é falta. Ninguém deseja o que
tem, apenas o que não tem. Por aquilo que temos, ao contrário, nutrimos certo
desprezo. Isto significa que, seja lá qual for a vida que temos, estamos de algu-
ma maneira dispostos a trocá-la por outra que não temos. Não somos movidos
pelos benefícios da vida presente, mas pelas promessas da vida futura. O desjo
funciona em nós como um princípio de corrupção de toda e qualquer forma de
vida. Causa da inconstância e da vida regida pela fortuna.
Em sendo a vida compartilhada ou, mais especificamente, a política re-
gida pelos desejos que levam cada uma a corromper a forma atual de vida que
leva, então a resposta à pergunta fundamental da ética: “o que é a coisa certa
a se fazer?”, não pode se basear em princípios. Isso seria ignorar a natureza
humana, os desejos e a “verdade efetiva das coisas”.
Em substituição a princípios, uma ética baseada na disposição de agir de
cada indivíduo para afrontar e vencer as incertezas da vida: a virtu. Mas o que
106
é ser virtuoso? Muitos reponderiam que é ser bondoso, honesto, dizer sempre
a verdade e respeitar os mais fracos. Nada disso traduz a virtú de Maquiavel.
Literalmente, a palavra significa virtude, mas a virtude dos antigos romanos.
Os bons exemplos do passado que Maquiavel exalta são, com freqüência, ro-
manos. Há virtuosos de outros povos, mas não há povo mais virtuoso que o
romano. É sua cultura que Maquiavel enaltece. Mas quem eram eles, na sua
opinião? Todo o mito fundador de Roma e os valores enaltecedores do cidadão
romano giram em torno da guerra. Os romanos eram, sobretudo, um povo
belicoso. Filhos de Marte, o deus da guerra.
Clausewitz, o general prussiano qu e no começo do século XIX escreveu
“Da Guerra”, afirmava que a guerra era o domínio da incerteza. Tal qual a polí-
tica construída por homens desejantes na visão maquiavélica. O espírito guer-
reiro é o da impetuosidade e da clara avaliação das circunstâncias para a ção
eficaz contra esta incerteza. Se sempre soubéssemos como as coisas acontecem
ou aontecerão, seria fácil saber o que fazer para vencer os desafios da vida, mas
como as ações e acontecimentos são incertos, então para conquistarmos o que
desejamos é preciso uma boa capacidade estratégica para tentar se antecipar
aos acontecimentos. Considerando que não há gênio que dê conta de toda a
incerteza da política ou da guerra, essa limitação da visão estratégica requer a
coragem ou impetuosidade como condição da ação, pois no final das contas,
por mais que planejemos, por mais que sejamos prudentes em nossas ações, na-
vegamos sempre num mar de incertezas dominado por uma deusa caprichosa.
Mas virtú ou ralismo e ímpeto dizem respeito a atributos que Maquiavel
enaltece, não nos informa sobre como avaliar a boa e a má ação. Seu critério é
simples: os resultados. Uma ação será boa ou má em razão do que ela ocasio-
nar e não por uma conformidade ou desconformidade a uma regra qualquer.
Como na guerra, o objetivo alcançado é o que conta. Este novo princípio de
avaliação é traduzido pela fatídica frase: “os fins justificam os meios”.
Ela encontra-se ao final do capítulo XVIII do Príncipe, cujo título é “In
che modo e principi abbino a mantenere la fede: Quomodo fides a principibus
sit servanda”. O tema é jurídico e moral: até que ponto o príncipe deve manter
a palavra empenhada? Moral por motivos óbvios, jurídico porque a palavra do
príncipe é lei. Manter a palavra é manter a lei, tratados, acordos internacionais
e assim por diante. É palavra pública, não apenas privada.
107
Ao responder à pergunta, Maquiavel distingue, em termos morais, duas
ordens de palavras e de condutas: a dos homens comuns e a dos príncipes.
No caso dos homens comuns é correto que a palavra empenhada deva ser
mantida. Era inclusive princípio jurídico e regra de solução de conflitos entre
cidadãos ao seu tempo. Mas no caso dos príncipes a situação seria diferente.
A regra que nos impõe a manutenção da palavra empenhada, a observa-
ção da fé, da caridade, da humanidade e da religião é moral e seu propósito é
tornar viável a vida entre iguais. Ela visa a convivência num ambiente onde a
violência entre os homens esteja, de alguma forma, controlada. Pressupõe al-
gum tipo de ordem social já existente e minimamente funcional. Exige, enfim,
uma ordem onde determinadas atitudes possam gerar com certeza determina-
das consequências.
Em sendo a política esse cenário violento de incertezas, então agir de
acordo com a caridade, fé, humanidade etc. é fórmula certa do fracasso. Ex-
põe-nos a inimigos que não vêm diante de si nenhuma destas limitações. Mas
se, ao contrário, a guerra entre nós foi controlada, então um comportamento
sem limites seria desagregador e ameaçaria a paz conquistada.
Em suma, a ética idealista, fundamentada em um princípio metafísico
de ordem e traduzida em leis ou princípios a serem serpre observados é acei-
tável para os homens comuns, que vivem em um cenário político onde uma
ordem tenta se impor. Não a ordem metafísica de Deus ou assemelhados, mas
a ordem mundana das leis do príncipe e do Estado. Mas para o príncipe, esse
governante do caos e da incerteza, um agir por princípios levaria a resultados
catastróficos não só para sua vida, mas para a de seus súditos. Nos atos dos
governantes, sem prévias que se lhes sejam aplicáveis, penas uma ética onde
as ações são avaliadas pelos resultados faria sentido.
Mas que resultado? Por certo não um resultado individualisticamente
avaliado, mas um resultado politicamente interessante, no caso, a conservação
e engrandecimento do Estado. Por sermos desejantes tendemos a corromper
nossos modos de vida, mas de corrupção em corrupção, corremos o sério risco
de perdermos o Estado que nos é tão caro. Se tendemos a revolucionar nossos
modos de existência política, então devemos nos esforçar ou para manter o
status quo ante o risco iminente de uma mudança que piorará nossas vidas ou
para melhorar nossa existência, eis uma necessidade imperiosa. A necessidade
108
da manutenção do Estado e da vida harmoniosa é o que atribui a súditos e prín- 2. MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários à
cipes o dever de desempenhar papéis diferentes. Necessidade é a palavra-chave. primeira década de Tito Lívio. Brasília: Ed.
UnB, 2008. Pág. 6
Os príncipes devem agir com realismo. Razão prática que lhe permitiria
perceber que a política é a arte do possível e não uma ação livre e desimpedida
dos desejos. Tudo é necessidade na vida pública do príncipe. Se os homens
agem ou por ambição, ou por necessidade, então esta última parece ser o
grande imperativo dos príncipes e não a primeira. Se “a necessidade, por sua
vez, muitas vezes nos obriga a empreendimentos que a razão nos faz rejeitar”2,
então o príncipe está sempre obrigado, por necessidade, a agir de forma dife-
rente dos demais homens e ter sua própria moral.
Podemos conceber a política como um jogo ou como uma guerra. Am-
bas as imagens referem-se a formas de enfrentamento entre seres desejantes.
Ambas possuem regras. A diferença é que no jogo as regras são anteriores aos
embates. Elas pressupõem a sua aceitação prévia como condição para a rea-
lização dos embates. Já na guerra, as regras também existem, apesar do dito
popular de que no amor e na guerra valeria tudo. O que não há é regra prévia.
Pacto anterior ao embate sobre como este ocorrerá. Mas há regras. Elas são
conseqüência das formas disponíveis para submeter o inimigo.
O fato de a política ser conseqüência da natureza humana faz com que
ela também possua suas regras, às quais chamamos de bom senso, realismo,
às vezes pragmatismo, mas que Maquiavel chama de prudência. A moral do
príncipe é a prudência, cujo imperativo são os resultados e seu tribunal, a
história. Já para os súditos, a moral é a obediência à lei por princípio, cujo
tribunal é o comum, com juízes conhecedores e aplicadores de leis e carrascos
sadicamente eficientes.
Para o príncipe a política seria como uma guerra, já para o súdito, como
um jogo. Curiosamente, para quem joga, há mais liberdade do que para quem
luta. O príncipe está regido pelas tantas necessidades que a guerra lhe impõe,
seu ritmo, as batalhas, o local. Pouco ou quase nada é resultado de sua esco-
lha livre. É muito mais conseqüência dos passos certos e errados, das jogadas
prudentes ou dos erros estratégicos.
Isto nos coloca diante de duas morais e não na ausência de moral. Ma-
quiavel não é um autor amoral, mas de duas morais. Do súdito e do príncipe.
Do jogo e da guerra. O mesmo Maquiavel a quem se atribui afirmar que os fins
109
3. Acima das leis. justificam os meios é o mesmo que repreende a corrupção das repúblicas e que
aponta o desrespeito às leis por parte dos súditos como o maior mal que uma
república pode experimentar. O mesmo Maquiavel que louva os feitos militares
e políticos cruéis e violentos do príncipe César Bórgia, repreende o republicano
Girólamo Savonarola que, para proteger amigos, desrespeitou uma lei que ele
mesmo havia promulgado.
Para bem compreender a polêmica afirmação de que “os fins justificam
os meios”, é preciso perceber que ela é dita como conselho ao príncipe. Que,
por ser então considerado legibus solutos3, não tinha o hábito de compreender-
-se como alguém a ser julgado por nada, nem mesmo pela história. Ao afirmar
que os resultados da conduta serão levados em conta para julgar o príncipe,
Maquiavel não está afirmando a plena liberdade daquele. Não está dizendo:
“façais o que quiserdes, pois sois o príncipe”. Mas, ao contrário: “sejais res-
ponsável e prudente; vós não podeis fazer o que quereis, pois sois o príncipe”.
A ética de Maquiavel é a dos resultados. Ela visa uma forma de organiza-
ção política na qual os súditos sejam afetados positivamente. Os fins que jus-
tificam os meios são fins políticos que justificam meios também políticos. Os
grandes exemplos de grandes homens são histórias de fundação, fortalecimen-
to e salvação de Estados e povos. Decisões tomadas muitas vezes em momentos
de perigo e risco para a sobrevivência do Estado e de seu povo. A ética de Ma-
quiavel não é mesquinha, pois a grandeza do Estado, gerada pela ambição do
príncipe, é também benefício para o povo por ele governado. Não há nenhuma
decisão política que afete apenas ao príncipe. Há sempre conseqüências boas
ou más para o Estado e, portanto, para todos. Este é o alerta dos fins que jus-
tificarão os meios: teus atos afetam muitos e estes muitos o julgarão conforme
sejam bem ou mal afetados. Esta responsabilidade é fundamental na ética de
Maquiavel. É para esta responsabilidade que o príncipe deve ser alertado. É por
ela que ele não pode observar uma conduta baseada somente em princípios.
110
for, poderá praticá-los com menores escrúpulos. Contudo, não deverá 4. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Vários.
preocupar-se com a prática notória daqueles vícios sem os quais é di- Capítulo XVI.
fícil salvar o Estado; isto porque, se se refletir bem, será fácil perceber
que certas qualidades que parecem virtudes levam à ruína, e outras que
parecem vícios trazem como resultado o aumento da segurança e do
bem-estar4.
Se o príncipe não fosse responsável por seus atos, se eles não afetassem
outros, então afirmar que os fins justificam os meios seria um salvo conduto
ao egoísmo desenfreado, à ambição livre. Mas a ambição do príncipe não
deve ser livre, mas responsável, pois afeta a outros. Maquiavel tem um fim
específico que aponta o julgamento do príncipe: a segurança e o bem-estar.
Estes os fins que justificam meios. Estes os fins que substituem princípios
como orientadores de condutas políticas de homens desejantes, mas de quem
se espera responsabilidade.
Por várias vezes Maquiavel elogia o ato de Brutus que, para manter a re-
pública, sacrificou a vida dos próprios filhos. Ele chega a ditar um conselho: “é
preciso imolar os filhos de Brutus”18. Este se viu na difícil situação de flagrar
os próprios filhos conspirando contra a república. Não titubeou e condenou-os
à morte. Este exemplo, segundo Maquiavel, salvou a república. Eis um agir
ético e responsável segundo a ética maquiavélica. Por princípio, teria feito o
oposto: quem não condenaria um pai que mata os filhos? Pensando nas con-
seqüências para a república, matou-os. Os fins justificaram os meios.
111
5. MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários à letras e das artes honradas e úteis à espécie humana; e assim os ímpios,
primeira década de Tito Lívio. Brasília: os furiosos, os ignorantes, os ociosos, os covardes e os inúteis5.
Ed. UnB, 2008. Pág. 10.
112
Cristiana Mara Bonaldi
Doutora e Professora na UFF- Universidade Federal Fluminense.
7
A ESCOLA, O MÉDICO E O JUÍZ:
EDUCAÇÃO, BIOPOLÍTICA E PRODUÇÃO DE COLETIVOS.
114
Deixamos, assim, de considerar algumas questões fundamentais: Seriam 1 HECKERT, A. L. C. ROCHA, M. L. A maqui-
tais impasses efetivamente indesejáveis?! Seria mesmo possível afastar do naria escolar e os processos de regulamen-
tação da vida. Revista `sicologia e Socieda-
campo escolar as variações, as crises, o que difere?! Seria possível, e desejável,
de; 24, p.88, 2012.
que os processos em curso no cotidiano escolar se desenrolassem de forma
linear, estável, invariável, previsível e sem tensionamentos?!
Heckert e Rocha (2012) chamam atenção para a importância de situar a
questão da “indisciplina”, por exemplo, no contexto da vida e dos processos
de formação em curso:
115
2. PELBART, Peter Pál. Vida capital: en- vida no cotidiano escolar. Denúncias aos Conselhos, como o tutelar, por exem-
saios de biopolítica. Editora Iluminuras plo, de situações de indisciplina, enfrentamento entre as crianças e suposta
Ltda, 2003.
“negligência” das famílias, também apresentam-se mais comuns a cada dia.
Conselho Tutelar, Guarda Municipal, Polícia Militar, são instituições con-
vocadas cotidianamente a participar na solução dos impasses escolares. Si-
tuações cotidianas que terminam por serem decididas na justiça também não
são raras… O que está acontecendo com a nossa capacidade de negociação, de
escuta, de produção de debate, de argumentação, de discussão dos impasses?!
Diante disso, faz-se fundamental a produção de outros olhares, olhares
capazes de questionar, de problematizar tais práticas no sentido da desnatura-
lização de um cotidiano escolar cada vez mais pasteurizado, individualizante,
medicalizado e judicializado e do fortalecimento dos coletivos, das redes teci-
das nos encontros entre os que fazem a educação acontecer.
Como afirma Pélbart2 (2009):
Muito cedo o próprio Foucault intuiu que aquilo mesmo que o poder
investia – a vida – era precisamente o que doravante ancoraria a resis-
tência a ele, numa reviravolta inevitável.
116
encaminhamentos. Estes profissionais especialistas são, em geral, convocados 3. CAPONI, S. Biopolítica e Medicalização
para solucionar o suposto problema de enquadramento dos indivíduos que de dos normais. Physis Revista de Saúde Cole-
tiva, Rio de Janeiro, 19 [ 2 ]: 529-549, 2009.
alguma forma perturbam o “bom e linear” andamento da vida escolar. É exata-
mente neste momento que os saberes PSI têm sido convocados a dar respostas. 4. FOUCAULT, Michel. Os anormais. São
Tratamentos, treinamentos, terapias… Saberes considerados superiores, saberes Paulo: Martins Fontes, 2001.
que portam a força da hierarquia e que, muitas vezes, terminam por produzir
5. FOUCAULT, Michel. Os anormais. São
desqualificação dos saberes produzidos no cotidiano de trabalho nas escolas. Paulo: Martins Fontes, 2001.
Os saberes do especialista, nesta configuração, atuam de forma a se sobre-
por, então, aos saberes das pessoas que vivem o cotidiano da escola. Professo- 6. CAPONI, S. Biopolítica e Medicalização
dos normais. Physis Revista de Saúde Co-
res, estudantes, merendeiras, porteiros, faxineiras, coordenadores, supervisores, letiva, Rio de Janeiro, 19 [ 2 ]: 2009, p. 532.
diretores… Pessoas que no seu dia a dia inventam formas de fazer escola… Ex-
periências, saberes, estórias, afetos que perdem a importância frente às novas
ofertas de terapias e medicamentos que prometem “o comportamento desejado”
e processos de aprendizagem supostamente lineares. A conversa, o diálogo, os
espaços coletivos são, assim, colocados de lado, abrindo espaço para outras
formas, reducionistas, ilusórias e imediatistas, de superação das dificuldades.
Alguns autores como Caponi3(2009), chamam atenção para a crescente
medicalização dos chamados anormais4. Torna-se, segundo ela, fundamental
analisar os efeitos do que chamou de uma psiquiatria ampliada, surgida por
volta do século XIX. Uma certa ciência do comportamento que teve como refe-
rência a distinção entre normalidade e desvio. Trata-se de novas estretágias de
gestão biopolítica dos corpos e das populações através da chamada “medicina
do não patológico”5.
Para Caponi6,
117
7. PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta, prometem moldar os sujetos e colocá-los em padrões considerados úteis para
uma vida. Trópico, 2007. o modelo contemporâneo.
Pélbart7(2007), trata da medicalização da existência como um entre os
8. PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta,
uma vida. Trópico, 2007. P. 4 possíveis mecanismos de atualização do biopoder. A medicalização da vida
como algo capaz de reduzir a vida à sobrevida: “A sobrevida é a vida humana
9. PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios
reduzida a seu mínimo biológico, à sua nudez última, à vida sem forma, ao
de biopolítica. Editora Iluminuras Ltda,
2003.p. 24. mero fato da vida, à vida nua”8.
Porém, ainda segundo Pélbart9(2009), para além de processos bioló-
10. PELBART, Peter Pál. Vida capital: en- gicos, vida
saios de biopolítica. Editora Iluminuras
Ltda, 2003. p.25.
inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto
11. PELBART, Peter Pál. Vida capital: en- de produção material e imaterial contemporânea, o in telecto geral. Vida
saios de biopolítica. Editora Iluminuras
significa inteligência, afeto, cooperação, desejo10.
Ltda, 2003. p. 25.
Dessa forma, afirmamos a vida como algo que escapa às normas e que se
produz nos encontros. Assim, afirmamos o espaço escolar como espaço de
produção de vida, de saberes, de afetos, de conversa, de solidariedade.
Afirmamos que a vida…
118
cotidianas, dos saberes produzidos cotidianamente por todos aqueles que de 12 COIMBRA, C. M. B.; LOBO, L. F.; NASCI-
alguma forma habitam o espaço escolar. Olhar de outro jeito tudo aquilo que, MENTO, M. L. “Por uma invenção ética para
os Direitos Humanos.” Psicologia clíni-
num primeiro momento, se apresenta como ameaça à uma suposta ordem es-
ca 20.2 (2008): 89-102.
tabelecida… Duvidar das intenções desta “ordem”…
É evidenciando o que difere, dando visibilidade às invenções mais
cotidianas deste coletivo formado por estudantes, trabalhadores, familiares,
comunidade, gestores, que conseguiremos produzir brechas, rachaduras, nos
modos biopolíticos de operar. Processos de subjetivação capazes de diferir dos
modos de viver contemporâneos - tão individualizantes, tão normatizadores -
tendo como norte a produção e o fortalecimento dos coletivos.
Fundamental que o diálogo seja uma prática constante, que o debate e o
tensionamento sejam desejáveis no sentido de tentar evidenciar cada vez mais
a diversidade de posições e exercitar o compartilhamento de decisões. Aposta-
mos na atualização de direitos humanos produzidos nos movimentos da vida.
Apostamos na atualização de direitos humanos produzidos nas composições
onde a hierarquização seja enfraquecida e emerja o diálogo e o coletivo como
rede solidária e de produção de processos de formação mais cooperativos,
solidários e potentes.
Dessa forma, afirmamos com Coimbra, Lobo e Nascimento (2008)12 que:
119
Reênciasfer ácasbilogr
COIMBRA, C. M. B.; LOBO, L. F.; NASCIMENTO, M. L. “Por uma invenção ética para os
Direitos Humanos.” Psicologia clínica 20.2 (2008): 89-102.
PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. Editora Iluminuras Ltda, 2003.
PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta, uma vida. Trópico, 2007.
120
Jair Teixeira dos Reis
Auditor Fiscal do Trabalho, Professor Universitário. Autor do livro Curso de
Direitos Humanos publicado pela Editora Ferreira, 2012.
8
O DIREITO FUNDAMENTAL AO NÃO TRABALHO E A
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
1. Introdução.
122
1.1 Histórico do Trabalho Infantil.
123
1. A exemplo: o Movimento Nacional dos 1.1.2. Contexto Nacional
Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que
surgiu em 1985 em São Bernardo do Cam-
Desde seu “descobrimento”, o Brasil avançou radicalmente em sua economia,
po, um importante centro sindical do país,
e a Pastoral da Criança, criada em 1983 passando por muitas fases político-administrativos e vários foram os momentos
pela Conferência Nacional dos Bispos do históricos vividos pelas crianças e adolescentes brasileiros, para hoje serem re-
Brasil - CNBB, envolvendo forte militân-
conhecidos como sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento.
cia proveniente dos movimentos sociais
da igreja católica. (Disponível em: <http:// Acompanhando as ideias internacionais, o ordenamento jurídico brasilei-
www.promenino.org.br/Ferramentas/Con- ro teve uma significativa mudança na área trabalhista com a criação da Con-
teudo/tabid/77/ConteudoId/70d9fa8f solidação das Leis do Trabalho (CLT), instituída através do Decreto-Lei nº 5.452
-1d6c-4d8d-bb69-37d17278024b/Default.
aspx>. Acesso 08.jun./2013,
de 1o de maio de 1943, que nos seus artigos 402 a 410 apresentam disposições
sobre as condições de trabalho do menor de 18 anos de idade.
Várias Constituições foram promulgadas e muitas leis infraconstitucio-
nais foram criadas e principalmente com a Constituição da República Fede-
rativa do Brasil – CRFB/88, promulgada em 05 de outubro de 1988, é que
as Crianças e os Adolescentes foram reconhecidos como sujeitos de direitos,
conforme determina no art. 227:
124
instituído pela Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do 2. Art. 226 da CF/88. A família, base da so-
Adolescente - ECriad, o qual em seu art. 4º disciplina que: ciedade, tem especial proteção do Estado.
125
A legislação brasileira relativa à regulamentação do trabalho infantil
remonta ao ano de 1891, quando o Decreto n. 1.313 definia que os menores
do sexo feminino, com idade entre 12 e 15 anos e os do sexo masculino, na
faixa entre 12 e 14 anos, teriam uma jornada diária máxima de 7 horas e fi-
xava uma jornada de 9 horas para os meninos de 14 a 15 anos de idade. Até
o advento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – Decreto-Lei n. 5.453,
em 1943, vários dispositivos regularam a idade mínima para o trabalho, des-
tacando-se o Primeiro Código de Menores da America Latina, de 1927, que
vedava o trabalho infantil aos 12 anos de idade e proibia o trabalho noturno
aos menores de 18 anos. A CLT tratou da matéria de forma abrangente, defi-
nindo inicialmente a idade mínima de 12 anos, alterando posteriormente para
14 anos, e estabelecendo as condições permitidas para a realização. (REIS,
2011, p. 15-16).
O Estatuto da Criança e do Adolescente pauta-se pelos princípios da
descentralização político-administrativa e pela participação de organizações
da sociedade, além de ampliar as atribuições do Município e da comunidade
e restringir as responsabilidades da União e dos Estados, pois aqueles estão
mais próximos às crianças, adolescentes e jovens, por isso têm mais condi-
ções para protegê-las.
O Estatuto revela-se como um conjunto de princípios e normas prescri-
tos pelo Estado brasileiro para a administração dos direitos da infância e da
juventude, considerados como prioridade nas ações estatais, haja vista serem
nossas sementes de futuro (BARROSO FILHO, 2013).
Como se percebe neste breve histórico, tamanha importância foi dada
ao acompanhamento do desenvolvimento das crianças e dos adolescentes no
seio da sociedade. Todavia, os procedimentos de autorização do trabalho do
adolescente apresentam-se ainda com incoerência normativa considerando o
princípio da proteção integral à criança e adolescente.
Para uma melhor compreensão deste capítulo queremos registrar que, de acor-
do com Henrique Savonitti MIRANDA (2007, pág. 188-189) surgirão os termos
126
“Gerações” ou “Dimensões” dos Direitos Humanos. Todavia, entendemos que
os Direitos Humanos não surgiram simultaneamente, mas em períodos distin-
tos conforme aspirações de cada ocasião, tendo esta consagração se dado de
forma progressiva e seqüencial nas cartas constitucionais bem como em trata-
dos. Isto não quer dizer que tais direitos surgiram em seqüência generacional.
Pois com o surgimento de novos direitos não ocasionou a extinção ou revoga-
ção dos anteriores, assim preferimos o termo “Dimensão” por não ter ocorrido
uma sucessão desses direitos, afinal, atualmente, todos eles coexistem.
No mesmo sentido, para André Ramos Tavares (apud MIRANDA, 2007,
pág. 188-189), até os dias atuais, podemos relacionar a existência de qua-
tro dimensões de direitos fundamentais. Note-se que a grande maioria da
dogmática constitucionalista prefere utilizar-se da expressão “gerações” para
designar os vários grupos de direitos trazidos à lume ao longo dos tempos. To-
davia, cremos que a expressão geração traz em seu bojo a ideia de renovação e
sucessão, o que não ocorre com os direitos fundamentais, pois o surgimento de
novos direitos não exclui os anteriormente prestigiados, vindo, ao contrário,
somarem-se a eles.
Conforme Alexandre de Moraes (2011, pág. 25), modernamente, a doutrina
apresenta-nos a classificação de direitos fundamentais de primeira, segunda e
terceira gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a
ser constitucionalmente reconhecidos, e destaca a classificação de Celso Bandeira
de Mello (1995, p. 39-206);
127
Reitera Moraes (2011, pág. 25) que os direitos fundamentais de primeira
geração são os direitos e garantias individuais e políticos clássicos (liberdades
públicas), surgidos institucionalmente a partir da Magna Carta. Já os direitos
fundamentais de segunda geração, que são os direitos sociais, econômicos e
culturais, surgidos no início do século XX, que são os relacionados com o
trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice etc.
Por fim, como direitos de terceira geração os chamados direitos de solidarieda-
de ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado
(dentre eles o meio ambiente do trabalho), uma saudável qualidade de vida,
ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos,
que são, no dizer de José Marcelo Vigliar (1997, p.42), os interesses de grupos
menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há vínculo jurídico
ou fático muito preciso.
Para Reis (2011, pág. 17) o trabalho é tão antigo quanto o homem. Em
todo o período da pré-história, o homem é conduzido, direta e amargamente,
pela necessidade de satisfazer a fome e assegurar sua defesa pessoal. Ele caça,
pesca e luta contra o meio físico, contra os animais e contra os seus semelhan-
tes, tendo como instrumento as suas próprias mãos.
Segundo Reis (2011, pág. 30) o vocábulo trabalho
128
Com objetivo de produzir ou desenvolver algum bem ou serviço –
O esforço utilizado terá como finalidade a produção ou desenvolvimen-
to de algum bem ou prestação de algum serviço.
129
que a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento. Com efeito, do
texto da Declaração de 1986, da ONU, infere-se que a inclusão sócio laboral é
componente essencial do desenvolvimento.
Artigo 32
Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de estar protegida
contra a exploração econômica e contra o desempenho de qualquer
trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que
seja nocivo para sua saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental,
espiritual, moral ou social.
Os Estados Partes adotarão medidas legislativas, administrativas, sociais
e educacionais com vistas a assegurar a aplicação do presente Artigo.
Com tal propósito, e levando em consideração as disposições pertinentes
de outros instrumentos
internacionais, os Estados Partes deverão, em particular:
- Estabelecer uma idade ou idades mínimas para a admissão em empregos;
- Estabelecer regulamentação apropriada relativa a horários e condições
de emprego;
- Estabelecer penalidades ou outras sanções apropriadas a fim de asse-
gurar o cumprimento efetivo do presente Artigo.
130
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Grifamos.
Já, o art. 7º, inc. XXXIII, com a alteração dada pela Emenda Constitucio-
nal nº 20/1998, a Magna Carta estabelece as seguintes vedações:
131
Reênciasfer ácasbilogr
ARAÚJO JÚNIOR, Francisco Milton. MARANHÃO, Ney Stany Morais. Considerações so-
bre o Combate à Exploração do Trabalho Infantil: Bosquejo Histórico, Proteção Ju-
rídica e Realidade Humana. In: NOCCHI, Andréia Saint Pastous; VELLOSO, Gabriel
Napoleão; FAVA, Marcos Neves (organizadores).
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. São Paulo: LTr, 2013.
BARROSO FILHO, José. Do ato infracional. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, 1
nov. 2001. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/2470>. Acesso em:
24.mai.2013.
CECATO, Maria Áurea Baroni. Direitos Humanos do Trabalhador: para além do pa-
radigma da Declaração de 1998 da OIT. Disponível em http://www.redhbra-
sil.net/documentos/bilbioteca_on_line/educacao_em_direitos_humanos/21%20-
-%20Cap%202%20-%20Artigo%2013.pdf, acesso em 6 de outubro de 2013.
132
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: Teoria geral, comentá-
rios aos artigos 1º e 5º da Constituição da República Federativa do Brasil,
doutrina e jurisprudência. 9ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011.
REIS, Jair Teixeira dos. Curso de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Ed. Ferreira, 2012.
REIS, Jair Teixeira dos. Manual Prático de Direito do Trabalho. 3 ed. São Paulo: LTr, 2011.
VIGLIAR, José Marcelo. Ação Civil Pública. São Paulo: Atlas, 1997.
133
Alline Pedra Jorge Birol
Advogada, Pós Doutora em Direito (UFSC), Doutora em Criminologia (Univer-
sité de Lausanne, Suiça), Consultora de Organizaçõoes Internacionais (ICMPD,
UNODC, PNUD) em projetos de cooperação técnica com o Ministério da Justiça.
9
TRÁFICO DE PESSOAS ENQUANTO VIOLAÇÃO DE 1. O Protocolo de Palermo foi adotado pela
DIREITOS HUMANOS Assémbleia Geral das Nações Unidas, Reso-
lução 55/25, e entrou em vigor em 25 de
dezembro de 2003.
Alline Pedra Jorge Birol
Lucicleia Souza e Silva Rollemberg 2. Na data de 08 de novembro de 2013, 158
países membros das Nações Unidas eram
estados-parte do Protocolo.
135
e (c) relativa ineficácia da justiça criminal que não está ainda preparada para
identificar e enfrentar as situações de tráfico de pessoas (Dijck, 2005). Demanda
por serviços sexuais e outros serviços, tais como serviços domésticos e no setor
de turismo, atuam como fatores de atração para os países de destino, assim como
a violência familiar, o desemprego, problemas financeiros, dentre outros, atuam
como fatores de expulsão nos países de origem (Dijck, 2005; Pedra J.B., 2008).
Observa-se, no entanto, que a condição de vulnerabilidade é uma das prin-
cipais razões pelas quais as pessoas acabam se tornando vítimas de tráfico de
pessoas e que, por sua vez, têm uma grande dificuldade de denunciar essa forma
de violência para as autoridades ou até mesmo de buscar apoio em organizações
de assistência às vítimas, por razões diversas tais como o medo, a vergonha e
até mesmo o desejo de não voltar para sua condição sócioeconômica anterior.
É o tráfico de pessoas, dessa forma, fenômeno extremamente subnoti-
ficado, cujas cifras são desconhecidas e dificilmente podem, até mesmo, ser
estimadas. Inclusive, quando denunciado, nem sempre a justiça criminal está
preparada para registrá-lo como tal, fazendo com que os casos que chegam no
sistema também passem despercebidos ou “etiquetados” de outras maneiras.
Este trabalho tem o objetivo de descrever o marco conceitual e legal
desta violação de direitos humanos. Neste sentido, o trabalho aborda as espe-
cificidades e as lacunas da legislação brasileira. O trabalho também destaca a
questão da subnotificação dessa forma de violência e suas principais razões.
Na sequência, traz estatísticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas de acor-
do com pesquisas e dados oficiais de órgãos da justiça criminal, que de forma
bastante rudimentar tentam descrever o tráfico de pessoas no mundo e no
Brasil, muito embora a subnotificação e a impropriedade dos sistemas que re-
gistram essas informações dificulte bastante esta tarefa. E por fim, o artigo traz
recomendações, sem pretensões conclusivas, devido à complexidade do tema.
Nos termos do Protocolo de Palermo, que por sua vez foi adotado, com seus
devidos ajustes pela Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
tráfico de pessoas é:
136
o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhi-
mento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras
formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade
ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamen-
tos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá,
no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas
de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou
práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.
137
4. Críticas têm sido feitas ao tipo penal do de entrada no local de destino. Faz parte ainda do elemento ação a trans-
tráfico de pessoas previsto no art. 231 e ferência, que é o ato de facilitar o trânsito entre países, regiões, cidades ou
231-A. Dentre elas, a de que o legislador
locais. E, finalmente, alojar ou abrigar significa dar abrigo ou alojamento às
esqueceu de prever um dos elementos do
tráfico, que é o meio coercitivo, violento, pessoas traficadas, ainda que durante a viagem, nos locais de trânsito, ou nos
fraudulento, etc, fazendo com que o mes- locais de exploração.
mo se equipare à definição de contrabando
No que diz respeito aos meios, a ameaça, a força ou outras formas de
de migrantes, não de tráfico de pessoas. A
outra é a de que o tipo penal criminaliza coação (física, moral ou psicológica) podem ser empregadas para obter o con-
a prostituição, ainda que indiretamente sentimento da pessoa traficada para o transporte e/ou a exploração. O con-
(Castilho, 2008). sentimento obtido desta maneira é obviamente viciado. O rapto é o sequestro
da pessoa traficada, ou sua manutenção em cárcere privado no intuito de
transportá-la para fins de exploração. A fraude e o engano acontecem quando
o traficante usa de artifícios fraudulentos como contratos de trabalho falsos,
promessas de emprego, casamento, para obter o consentimento da pessoa tra-
ficada. O abuso de autoridade ou da situação de vulnerabilidade ocorre quan-
do o traficante usa do seu poder (por exemplo, numa relação hierárquica) ou
da posição de vulnerabilidade da pessoa a ser traficada (dificuldade financeira
ou familiar) para coagí-la ou obter o seu consentimento com o transporte. E,
finalmente, a entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra é também um
dos meios utilizados para convencer, por exemplo, os pais a entregarem seus
filhos, em troca de um determinado valor.
No que diz respeito à exploração, o Protocolo e a Política Nacional re-
conhecem expressamente as seguintes modalidades: (1) a exploração da pros-
tituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, (2) o trabalho ou
serviços forçados, (3) escravatura ou práticas similares à escravatura, (4) a
servidão e (5) a remoção de órgãos.
A legislação penal brasileira, no entanto, ainda não contempla todas as
modalidades de tráfico de pessoas, mas tão somente o tráfico de pessoas para
fins de exploração sexual.
O tráfico de pessoas para fins de exploração sexual (1) está previsto nos
arts. 231 e 231-A do Código Penal. O art. 231 define o tráfico internacional para
fins de exploração sexual como a ação de
138
promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que
nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual,
ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro.
E o art. 231-A define o tráfico interno para fins de exploração sexual como a
conduta de “promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território
nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual.”4
As outras formas de exploração estão previstas em outros tipos penais, fa-
zendo com que a exploração em si possa ser punida, mas não necessariamente
a mercantilização da pessoa, que se configura com a Ação (recrutamento, trans-
porte, etc), o Meio (engano, fraude, coerção) e que são anteriores à exploração.
É o caso do tráfico de pessoas para fins de trabalho ou serviços forçados (2),
escravatura ou práticas similares à escravatura (3), modalidade de exploração
que poderá ser punida nos termos do art. 149 do Código Penal, que define o tipo
penal da “redução a condição análoga à de escravo”. Reduzir alguém a condição
análoga à de escravo significa submeter esta pessoa a trabalhos forçados ou
a jornada exaustiva e/ou sujeitá-la a condições degradantes de trabalho, e/ou
restringir, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com
o empregador ou preposto. Significa ainda cercear o uso de qualquer meio de
transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho e/
ou manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documen-
tos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Portanto, este tipo penal poderá incidir no caso do tráfico de pessoas com
esta finalidade, punindo, no entanto, a conduta da exploração, mas não os atos
anteriores a esta que são o recrutamento, o transporte, a utilização de meio
fraudulento para convencer a vítima ou de violência. Com isto os casos em que
a exploração não se concretize, ou os casos tentados, acabam sem punição.
O tráfico de pessoas para fins de servidão (4) significa submeter uma
pessoa a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, sujeitá-lo a condições
degradantes de trabalho, no âmbito doméstico. É também confundida com o
casamento servil, quando a pessoa traficada se casa com alguém que promete
uma relação conjugal saudável, mas que acaba por obrigar a pessoa a realizar
as tarefas domésticas e/ou a ter relações sexuais com o mesmo, ainda que
139
5. Mendicância são diversas atividades contra a sua vontade. De acordo com a legislação brasileira, pode ser também
através das quais uma pessoa pede a um interpretado como forma de trabalho escravo.
estranho dinheiro, sob a justificativa de sua
O tráfico de pessoas para fins de remoção de órgãos (5), por sua vez,
pobreza ou em benefício de instituições re-
ligiosas ou de caridade. A venda de peque- encontra relativa guarida na Lei do Transplante, quer seja a Lei n° 9.434/97,
nos itens como flores e doces nos sinais, que criminaliza toda forma de extração de órgão, tecido ou parte do corpo
limpar vidros, estacionar ou vigiar carros,
sem autorização dos parentes ou do paciente em vida. Não obstante, a lei de
auxiliar com as compras em supermercado,
apresentações artísticas (circenses, tocar transplantes não tipifica os atos anteriores, tais como o transporte da pessoa
instrumentos musicais) nas ruas podem ser com vida ou do cadáver para fins de extração de órgãos, o uso da fraude em
também considerados como mendicância. relação à vítima, que é convencida em vida a extrair parte de seu corpo, em
Destacamos, todavia, que a mendicância
como forma de exploração se configura
troca de vantagem.
quando grupo organizado ou indivíduos Finalmente, tanto o Protocolo de Palermo como a Política Nacional de
transportam e coagem pessoas, principal- Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas não são taxativos, abrindo a possibili-
mente crianças e adolescentes, mas não só,
dade para outras formas de exploração. Pesquisas de campo têm, inclusive,
para que fiquem nas ruas pedindo dinheiro
ou comercializando pequenos produtos, identificado outras modalidades de tráfico de pessoas, tais como o tráfico de
restringindo sua liberdade e retendo, todo pessoas para fins de mendicância5 ou adoção ilegal6; o tráfico de pessoas para
ou em parte, o fruto desta mendicância
fins da prática de crimes7 (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
(Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
140
balhar na indústria do sexo, mas não na prostituição. Por fim, o quarto nível de 8. Seguindo a definição do Estatuto da
vitimização diz respeito às vítimas que, antes da sua partida, sabiam que iriam Criança e do Adolescente (Lei Federal n.
8.069/90), a criança é a pessoa que tem en-
trabalhar como profissionais do sexo, mas que desconheciam até que ponto iam tre 0 e menos de 12 anos, e o adolescente,
ser controladas, intimidadas, endividadas, exploradas. (Aronowitz, 2001). entre 12 e menos de 18 anos.
O risco é, portanto, o de se obter uma definição de tráfico que estabeleça
hierarquias morais informadas por valores morais, que acabem por se traduzir
em barreiras legais e/ou práticas na defesa dos direitos humanos das vítimas
de tráfico de pessoas (Anderson & Davidson, 2002).
Daí a inteligência da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas quando exclui qualquer forma de consentimento (obtido sob ameaça,
violência, fraude, etc., ou não) como elemento para se identificar uma situação
de tráfico de pessoas.
No que diz respeito especificamente à criança e ao adolescente,8 nos
termos do Protocolo, o segundo elemento, quer seja o Meio, não é necessário
para se configurar o tráfico de pessoas fazendo com que, obviamente, mais
uma vez o consentimento seja irrelevante, o que é natural dada à condição de
incapacidade da vítima. Basta, portanto, a Ação e a Finalidade da exploração
para que a criança ou o adolescente sejam considerados pessoas traficadas.
141
9. Lerner (1980) inclusive explica os sen- Outro sentimento comum é a culpa, pois as vítimas de tráfico de pessoas,
timentos de culpa e a falta de reconheci- particularmente o internacional, acreditam que de alguma maneira poderiam
mento da condição de vítima, por parte da
ter evitado e deveriam ter suspeitado que as “promessas” de uma vida melhor
própria vítima, com a teoria da crença num
mundo justo. Segundo o autor, as pesso- em outro país eram falsas (Secretaria Nacional de Justiça, 2005; Secretaria
as estão sempre procurando explicação e Nacional de Justiça & Organização Internacional do Trabalho, 2007; Secretaria
acreditam que os eventos são previsíveis e
Nacional de Justiça, Escritório das Nações Unidas de Drogas e Crime & Asso-
controláveis. Acreditam, portanto, que têm
o que merecem, o que significa dizer que ciação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude, 2009). Ain-
caso se comportem corretamente, terão re- da, pessoas traficadas não se reconhecem como vítimas (Tyldum, 2010). Elas
sultados positivos, e que caso se comporta- acreditam ter contribuído de alguma forma para a sua própria vitimização.9
rem negativamente, as consequências serão
negativas. Esta crença é um mecanismo psi-
Enquanto imigrantes ilegais, em alguns casos de tráfico internacional,
cológico que o ser humano desenvolve no elas acreditam que serão presas se denunciarem o crime para a polícia e, por-
intuito de se sentir seguro e no controle de tanto, se percebem mais enquanto violadoras da lei do que enquanto vítimas
suas vidas. No entanto, a vitimização abala
(Secretaria Nacional de Justiça, 2005; Secretaria Nacional de Justiça & Organi-
esta crença e demonstra a imprevisibilidade
e a aleatoriedade dos eventos. A reação psi- zação Internacional do Trabalho, 2007; Secretaria Nacional de Justiça, Escritó-
cológica do indivíduo é portanto a de acre- rio das Nações Unidas de Drogas e Crime & Associação Brasileira de Defesa da
ditar que fez por merecer, mantendo a sua
Mulher, da Infância e da Juventude, 2009). O comportamento discriminatório
crença, e por conseguinte, seu sentimento
de segurança, inabalável. É um mecanismo de autoridades policiais e da justiça, nesta seara, pode também contribuir para
psicológico de defesa que o ser humano este sentimento. (Anti-Slavery International, 2002).
desenvolve para restituir seu sentimento de Não ao menos, vítimas de tráfico de pessoas são mais vulneráveis e têm
segurança e controle sobre sua vida, que é
necessidades especiais. O crime do tráfico de pessoas gera impactos severos
importante para a sobrevivência.
na saúde física e mental das vítimas (Zimmerman et al., 2003). Pessoas trafi-
cadas relatam stress e ansiedade como consequência das violências e ofensas
que sofreram durante o transporte para o país de destinho e no momento da
exploração (Zimmerman et al., 2003).
A natureza continuada do crime, em que as vítimas de tráfico de pessoas
ficam “nas mãos” do agressor, geralmente por longos períodos, possibilitando in-
timidação, violência e tortura, provoca o medo de represálias e pela segurança de
suas famílias caso as vítimas denunciem (Secretaria Nacional de Justiça, 2005;
Secretaria Nacional de Justiça & Organização Internacional do Trabalho, 2007).
Finalmente, o medo de retornar para o mesmo lugar de onde decidi-
ram sair, normalmente sem dinheiro, reduz ainda mais a possibilidade das
vítimas de tráfico de pessoas denunciarem este tipo de crime para a polícia
(Pedra J.B., 2013).
142
5. Medindo o Tráfico de Pessoas: Tarefa Difícil 10. A exemplo: Escritório das Nações Uni-
das sobre Drogas e Crime (UNODC), Orga-
nização Internacional do Trabalho (OIT),
Ao tentar descrever e mensurar o fenômeno do tráfico de pessoas, não há como se Centro Internacional para o Desenvolvi-
ignorar as dificuldades e os desafios que existem para tanto, no Brasil e no mundo. mento de Políticas Migratórias (ICMPD), a
No início do século XXI, Salt (2000) já mencionava a carência de dados Organização Internacional para a Migra-
ção (OIM), Organização para a Segurança
oficiais sobre tráfico de pessoas. Na opinião do autor, em regra, os dados eram
e Cooperação na Europa (OSCE), e Comis-
coletados por instituições, metodologias e tecnologias diversas e em tempos são Européia (CE).
diferentes, impossibilitando sua sistematização e comparação dentro de um
mesmo país, que dirá entre diversos países. A exemplo, o Vienna Forum of 11. A exemplo: Anti-Slavery Internatio-
nal, La Strada International, e no Brasil
UN.GIFT (2008) relata ser, atualmente, impossível comparar estatísticas crimi- a ASBRAD.
nais de tráfico de pessoas, pois muitos dos países signatários do Protocolo de
Palermo estão ainda na fase de adaptação da sua legislação interna ao Proto-
colo, dentre estes o Brasil.
Ainda, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime
(UNODC, 2009), os sistemas das instituições de segurança pública e justiça cri-
minal são construídos no intuito de otimizar as suas necessidades operacionais.
O primeiro Diagnóstico brasileiro sobre Tráfico de Pessoas realizado pela
Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça em 2012 (Ministério da
Justiça, 2013), cuja fonte principal de informação foram dados oficiais, tam-
bém deixa clara a impropriedade dos sistemas de informação das instituições
da segurança pública e justiça criminal no Brasil. Há uma variedade muito
grande de categorias e de formas de registros, praticamente impossibilitando a
comparabilidade destes dados.
A confusão entre tráfico de pessoas, contrabando de migrantes, imigra-
ção irregular e, às vezes prostituição, bem como a ausência de legislação espe-
cífica, também dificultam a coleta de dados sobre o assunto.
Por outro lado, o número de pesquisas acadêmicas e relatórios de orga-
nismos internacionais e/ou intergovernamentais10 e de organizações não go-
vernamentais11 têm aumentado, mas recebido críticas sobre a confiabilidade e
a validade desses dados considerados extra-oficiais (van Dijck, 2005).
No Brasil, particularmente, a Secretaria Nacional de Justiça tem se de-
dicado ao estudo do tema, sendo esta inclusive uma das ações do II Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
143
Soma-se a isso o fato de que o tráfico de pessoas é uma das formas de
criminalidade subnotificada, por razões diversas como a desconfiança do
sistema de polícia e justiça, o receio da pessoa traficada de ser discrimina-
da ou incriminada, particularmente como imigrante irregular, nos casos de
tráfico internacional, o medo de ser deportado ou expulso, a vergonha e o
medo da humilhação (Aebi, Aubusson de Cavarlay, Barclay, Killias, et al.,
2010; Anti-Slavery International, 2002; Goodey, 2003; UNODC, 2008), o des-
conhecimento sobre a sua condição de vítima, a falta de informação sobre
os mecanismos de denúncia e até mesmo o medo de represálias (Pedra J. B.,
2008), como foi explorado no item anterior. Isto tudo intensifica a ausência
de dados sobre um fenômeno que além de ontologicamente subnotificado, é
registrado impropriamente, fazendo com que o crime permaneça oculto, ao
menos estatisticamente.
Nesse sentido, a contribuição tanto das organizações não governamen-
tais como dos organismos internacionais tem sido muito importante, pois na
ausência de dados quantitativos oficiais, são esses relatórios que contribuem
para o conhecimento e o reconhecimento do fenômeno.
144
finição ainda conceitual e legal do tema, em alguns países, inclusive o Brasil,
torna a tarefa de mensurá-lo e compará-lo quase impossível.
Desta forma, os dados apresentados a seguir têm o objetivo de informar
sobre o fenômeno, ainda que de forma relativa, não necessariamente de men-
surá-lo ou quantificá-lo.
Uma das primeiras inquietações no que diz respeito ao tráfico de pessoas
é o perfil da vítima, principalmente para a elaboração de políticas de preven-
ção. Em síntese, mulheres, adolescentes e crianças são registradas com mais
frequência como vítimas do tráfico de pessoas, somando 75% das vítimas,
entre os anos de 2007 e 2010. Este dado é revelado pelo Relatório Global do
UNODC (2012a), segundo o qual o tráfico de pessoas é um crime com uma
forte conotação de gênero, sendo a principal parcela de vítimas identificadas
constituída por mulheres adultas (UNODC, 2012a: 26).
Pesquisas realizadas no Brasil também confirmam que a maioria das ví-
timas registradas é do sexo feminino (Leal & Leal, 2002; Colares, 2004; Se-
cretaria Nacional de Justiça e Organização Internacional do Trabalho, 2007;
UNODC, 2009; Ministério da Justiça, 2013); oriundas de classes populares,
com baixa escolaridade, que habitam espaços urbanos periféricos com carên-
cia de saneamento, transporte, moram com algum familiar, têm filhos (Leal &
Leal, 2002; Hazeu, 2008) e exercem atividades laborais de baixa rentabilidade,
como cabelereira, esteticista, auxiliar de enfermagem, professora de ensino
fundamental, vendedora, secretária e doméstica (Leal & Leal, 2002; Colares,
2004; Secretaria Nacional de Justiça, 2005).
Dados do Ministério da Saúde, cuja fonte é o Sistema de Informação de
Agravos de Notificação (SINAN), por meio da notificação compulsória, in-
formam também que a maioria das vítimas de tráfico de pessoas registradas
é de mulheres e adolescentes do sexo feminino, com baixa escolaridade,
solteiras e residentes da zona urbana. Por exemplo, no ano de 2011 foram
identificadas um total de 65 vítimas do sexo feminino e 15 do sexo mascu-
lino (Ministério da Justiça, 2013). Demonstram ainda que a faixa etária de
maior incidência é entre os 10 e 29 anos, havendo todavia uma maior inci-
dência de vítimas, cerca de 25%, na faixa etária de 10 a 19 anos, reforçando
a informação do Relatório Global, segundo o qual as adolescentes somam
de 15% a 20% das vítimas mundialmente (UNODC, 2012a). Uma pequena
145
12. Texto original: “There is no specific and parcela das entrevistadas ou das vítimas identificadas em processos crimi-
exclusive demand for trafficked persons, nais citados nessas pesquisas afirmou já ter exercido a prostituição no Brasil
only demand for labour/services of vulne-
(Colares, 2004; Secretaria Nacional de Justiça, 2005; Hazeu, 2008).
rable and unprotected persons” (Davidson,
2013). Tradução das autoras. Pessoas traficadas do sexo masculino são mais comumente identificadas
na modalidade trabalho escravo/trabalho forçado, segundo o Relatório Global
do UNODC. Todavia, pesquisa na área de fronteira revelou que mulheres tam-
bém estão sendo traficadas para o Brasil para fins de trabalho escravo na in-
dústria textil e para servidão doméstica (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
Observa-se, desta forma, que o perfil pode variar de acordo com a mo-
dalidade de exploração e com as condições de vulnerabilidade de cada pessoa
traficada. Como afirma Davidson (2013) “não há demanda de pessoas trafica-
das, mas tão somente demanda de trabalho/serviços de pessoas vulneráveis e
desprotegidas”.12 Isto significa dizer que não há um público alvo ou perfil espe-
cífico. O crime de tráfico de pessoas mercantiliza e coisifica a vítima, fazendo
com que as características pessoais sejam irrelevantes; o que determina é a
utilidade para a qual aquela pessoa se presta. É definitivamente a situação de
vulnerabilidade que vai determinar se esta ou aquela pessoa é uma potencial
vítima de tráfico de pessoas ou não.
E quais são os grupos que podem estar em situação de vulnerabilidade?
Crianças e adolescentes, naturalmente, por uma questão de desenvolvimento
pessoal, são vulneráveis. Mulheres, em algumas sociedades, mais do que em ou-
tras. Isto depende do grau de empoderamento, acesso à educação e ao trabalho,
acesso aos direitos civis, políticos e sociais, que diferem em cada sociedade. Mi-
grantes em geral também são considerados como um público vulnerável, prin-
cipalmente aqueles que estão em situação irregular (UNODC, 2012b). Minorias
étnicas, indígenas, pessoas com deficiência e a população LGBT podem também
estar em situação de vulnerabilidade em alguns contextos (ICMPD, 2011).
Há ainda aqueles grupos que são mais vulneráveis a depender da mo-
dalidade de exploração. Por exemplo, adolescentes do sexo masculino (ho-
mosexuais e heterosexuais) são traficados para fins de exploração sexual em
determinados locais. Pessoas com deficiências podem estar mais vulneráveis
à modalidade do tráfico para fins de exploração na mendicância. Refugiados
políticos e ambientais, pelo fato de estarem na condição de refugiados, são
mais vulneráveis que outras pessoas (UNODC, 2012a).
146
Resumidamente, os relatórios internacionais, nacionais e outras pesqui- 13. Um deles e talvez o mais conhecido foi
sas realizadas informam que a forma de exploração mais vulgarmente iden- a Operação Bisturi da Polícia Federal que
desarticulou um grupo organizado que le-
tificada no contexto do tráfico de pessoas é a sexual, nas Américas, Europa
vava as vítimas de Recife/PE para a remo-
e Ásia Central, enquanto que na África, Meio Oriente, Sul e Leste da Ásia e ção de órgãos na África do Sul, mediante
Pacífico, mais casos de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo foram promessa de recompensa. A última inte-
grante do grupo foi presa em maio de 2013,
detectados (UNODC, 2012a).
mas o grupo foi desarticulado em 2003. Fo-
No Brasil, no que diz respeito ao tráfico internacional, a predominância ram 27 indiciados e condenados (Diário de
da modalidade de exploração sexual é confirmada por dados do Ministério Pernambuco, 04 de maio de 2013).
das Relações Exteriores/Divisão de Assistência Consular (MRE/DAC) reve-
14. Tais como casos de pacientes declara-
lados no Diagnóstico Nacional (Ministério da Justiça, 2013), no qual das dos com morte encefálica em Poços de Cal-
475 vítimas de tráfico internacional de pessoas, brasileiros identificados pela das e Taubaté, cujos órgãos foram retirados
rede consular no exterior, 337 foram vítimas da modalidade exploração se- e transplantados sem a observância das
formalidades necessárias e o caso da im-
xual e 135 da modalidade trabalho escravo, além de três pessoas cuja forma
portação das córneas, onde se identificou a
de exploração é ignorada. realização de depósitos em dinheiro para a
No Brasil, observa-se um crescente aumento do número de pessoas es- realização dos transplantes (Comissão Par-
lamentar de Inquérito, 2004).
trangeiras, de ambos os sexos, traficadas para fins de trabalho escravo. O
Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas na Área de Fronteira revelou a presença
de estrangeiros, por exemplo, de bolivianos que estão sendo traficados para
o Brasil para fins de trabalho escravo. (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
Ademais, o Relatório Global do UNODC também informa que o número
de casos de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo registrados tem
aumentado, assim como tem aumentado a capacidade das autoridades locais
de identificar esta forma de exploração (UNODC, 2012a).
Nas Américas, particularmente, 44% dos casos de tráfico de pessoas de-
tectados tinha como finalidade o trabalho escravo (UNODC, 2012a).
Outras modalidades, como o tráfico para fins de remoção de órgãos, ex-
ploração da mendicância, casamento servil, conflito armado e adoção ilegal,
foram raramente identificados. O tráfico para fins de remoção de órgãos con-
siste em 0.2% dos casos e foi detectado em 16 países participantes do Relatório
Global do UNODC, enquanto que as outras modalidades somam 6% dos casos,
sendo que em 1.5% dos casos as vítimas eram traficadas para fins de explora-
ção na mendicância (UNODC, 2012a).
O Diagnóstico Nacional de Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça,
que coletou dados de 2005 a 2011, identificou tráfico de pessoas para explo-
147
15. O modus operandi é uma expressão do
ração sexual e trabalho escravo (Ministério da Justiça, 2013). Não obstante, a
latim que siginifica o modo de operação
que no contexto do tráfico de pessoas é a fonte de informações do Diagnóstico Nacional foi oriunda dos dados oficiais
maneira como os autores da conduta do de enfrentamento ao tráfico de pessoas, fornecidos pelas instituições do sis-
tráfico de pessoas ou os grupos organizados tema de justiça criminal, que coletam os dados de acordo com a legislação
operam e executam suas atividades.
penal em vigor.
16. A criminalidade feminina é tema que A Polícia Federal, em 2003, identificou casos de tráfico de pessoas para
ainda envolve muitos tabus, dentre estes a fins de remoção de órgãos, segundo notícias midiáticas13, bem como a Co-
discussão sobre os papéis do homem e da
missão Parlamentar de Inquérito com a finalidade de investigar a atuação de
mulher na sociedade. Há teorias que afir-
mam que há mulheres que delinquem, mas organizações criminosas atuantes no tráfico de órgãos humanos.14
que tendo em vista seu papel pre-deter- E pesquisa realizada na área de fronteira identificou mais casos registra-
minado na sociedade, estas são com me- dos de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e trabalho escravo,
nos frequência alvo de desconfiança e de
mas também identificou situações de tráfico de pessoas para fins de servidão
investigações da polícia. Veja por exemplo
Steffensmeier e Allan (1996). doméstica, mendicância, prática de ilícitos e até casos de tráfico de jogadores
de futebol (Secretaria Nacional de Justiça, 2013).
No que diz respeito ao modus operandi15, a maioria dos recrutadores
identificados no Brasil, em 2002, era do sexo masculino (Leal & Leal, 2002),
enquanto que em 2005, pesquisa destaca as
148
Importante destacar análise estatística do Relatório Global do UNODC 17. Vale notar, no entanto, que os países
(2012a), segundo o qual o envolvimento de mulheres no tráfico de pessoas, é mais desenvolvidos têm também uma maior ca-
pacidade de identificar e registrar casos de
frequente em casos de tráfico de crianças e adolescentes do sexo feminino, refor-
tráfico de pessoas
çando a idéia de relações afetivas ou de confiança entre traficados e traficantes.
O ICMPD destaca o caso das pessoas traficadas que se tornaram aliciadoras: 18. Fonte: UNODC, 2009. O Relatório Glo-
bal de 2012 também traz a mesma consta-
tação (UNODC, 2012a).
Redes que transformam pessoas antes exploradas em aliciadoras, em
uma estratégia que, além de facilitar o contato, não exporia os verda-
deiros financiadores do tráfico” (ICMPD, 2011: 56).
Hazeu já observava isto em 2008, quando dizia em sua pesquisa sobre tráfico
de pessoas do Brasil para o Suriname que
149
19. Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Figura 2: Países de Origem e de Destino de Pessoas Traficadas18
Roraima,Tocantins, Rio de Janeiro, São Paulo,
in North America, Central
Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia, Pernambu- in Western and Central Europe America and the Caribbean in the Middle East
co, Ceará, Maranhão, Rio Grande do Norte, Sub-Saharan Africans 15% 0% 20%
East Asians 7% 27% 35%
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. South Americans 6% 3% 1%
Eastern Europeans and Central Asians 5% 1% 10%
South Asians 1% 1% 23%
Sub-Saharan
Africans
South
Americans
Flows of 1% or less of
detected victims at destination
Fonte: UNODC, 2009. O Relatório Global de 2012 também traz a mesma constatação
(UNODC, 2012a).
150
Excepcionam-se as vias ferroviárias que no Brasil raramente transportam pessoas.
Pesquisas de 2002 e 2004 demonstraram que, aparentemente, a rota de-
terminava os perfis das pessoas traficadas. Por exemplo, crianças e adolescentes
traficadas eram observadas com mais frequência nas rotas intermunicipais e
interestaduais (Leal & Leal, 2002; Colares, 2004). Já na área de fronteira, crian-
ças e adolescentes são traficados para o exterior para fins de exploração sexual.
Isto por causa da proximidade geográfica com os países fronteiriços da América
do Sul, sendo a linha divisória entre um país e outro, às vezes, tão somente uma
rua. Ademais, “cruzar fronteiras” é um ato tão ordinário nessas regiões e tão
pouco vigiado, que inclusive crianças e adolescentes transitam de um país para
outro aleatoriamente, sem que a documentação necessária esteja disponível
(Secretaria Nacional de Justiça, 2013). A mesma pesquisa identificou, principal-
mente, que as rotas seguem o fluxo da mobilidade, das formas de exploração
econômica e são impulsionadas pelas situações de vulnerabilidade das pessoas.
Desta forma, pode-se concluir que as rotas são transitórias (ICMPD, 2011)
e que acompanham as formas de exploração econômica, não havendo mais
um padrão a partir do século XXI, em virtude da globalização e da dimensão
atual da mobilidade humana.
Mas, o Brasil tem uma característica interessante e que dificulta ainda mais
o enfrentamento ao tráfico de pessoas, ou seja, é um país de origem, trânsito
e destino de vítimas de tráfico de pessoas. As estatísticas revelam que vítimas
brasileiras são encontradas no exterior e que vítimas estrangeiras são encontra-
das no Brasil (UNODC; 2012a). Enquanto que brasileiros são identificados como
vítimas de tráfico para fins de exploração sexual na Europa Ocidental (Ministé-
rio da Justiça, 2013), paraguaias foram identificadas no Brasil como vítimas da
mesma modalidade exploratória (Secretaria Nacional de Justiça, 2013). No que
diz respeito à exploração laboral, bolivianos, paraguaios, peruanos, chineses e
bengalis foram identificados no Brasil, (Secretaria Nacional de Justiça, 2013)
assim como brasileiros foram identificados na Europa Ocidental como vítimas
de tráfico para fins de trabalho escravo (Ministério da Justiça, 2013).
Finalmente, o número de casos de tráfico de pessoas identificados ao
longo da última década nos mais diversos países do mundo tem sido motivo
de polêmica. Cifras como milhares de vítimas e milhões de dólares têm sido
levantadas a partir de estimativas feitas por organismos internacionais como a
151
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crime (UNODC) na tentativa de se mensurar o fenômeno.
No entanto, ponto pacífico entre os pesquisadores e gestores públicos é
que os casos que chegam ao sistema de segurança pública e justiça criminal
são somente a ponta do iceberg, sendo a subnotificação, dentre outras ques-
tões apontadas, fator que dificulta a identificação do fenômeno do tráfico de
pessoas no Brasil. Além do que, o sistema de justiça criminal funciona como
um funil, onde o número de casos identificados pela polícia é muito inferior ao
número de casos reais, o número de processos distribuídos no poder judiciário
é também inferior ao número de inquéritos policiais instaurados e o número de
condenações chega a ser dez vezes menor que o número de casos.
Para se exemplificar, o Diagnóstico Nacional de Tráfico de Pessoas revela que
o número de inquéritos policiais instaurados por tráfico internacional de pessoas
é duas vezes superior ao número de processos judiciais distribuídos. No caso do
tráfico interno, a diferença é de cerca de oito vezes (Ministério da Justiça, 2013).
O Diagnóstico referido revela também que o número de processos judiciais
distribuídos pelo crime de redução análoga à condição de escravo é cerca de
cinco vezes superior ao crime de tráfico de pessoas (Ministério da Justiça, 2013).
Enquanto 200 processos de tráfico de pessoas (internacional e interno) foram
distribuídos no período de 2005 a 2011, 940 foram distribuídos por trabalho
escravo, possivelmente demonstrando que o fenômeno do trabalho escravo tem
sido mais reconhecido no território nacional, talvez por causa da política de
erradicação do Ministério de Trabalho e Emprego (MTE), que data de 1995.
7. A Guisa de Conclusão
Este artigo demonstra que apesar do Brasil ter ratificado o Protocolo de Pa-
lermo, com exceção do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, as
outras formas de exploração não foram ainda observadas pela legislação penal
vigente. Felizmente, a ausência dessa legislação penal não tem impedido a
atuação do poder público que, seguindo os parâmetros internacionais previs-
tos no Protocolo de Palermo, vem empreendendo ações balizadas pelo texto da
152
Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, lançada por meio do
Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006.
Mais recentemente, em fevereiro de 2013, foi lançado o II Plano Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas que alinhado às perspectivas dos três
eixos norteadores da política, ou seja, prevenção, repressão e responsabiliza-
ção dos autores do crime, bem como a assistência e proteção às vítimas, possui
115 metas que serão executadas pelos órgãos envolvidos até o ano de 2016.
De qualquer sorte, apesar de muitas ações que vêm sendo empreendidas
pelo Governo Federal, inclusive, com o apoio de organismos internacionais e
da sociedade civil organizada, ainda há muito que se fazer para o enfrenta-
mento do fenômeno do tráfico de pessoas no Brasil.
Em síntese, a revisão da literatura apresentada neste artigo revela que a
ausência de legislação adequada e que abranja o tráfico de pessoas para outros
fins que não a exploração sexual, a subnotificação devido ao medo das vítimas
de denunciar, a falta de conhecimento dos profissionais que atendem as víti-
mas de tráfico de pessoas e que, inclusive, os impede de reconhecê-las como
tal, contribuem para o desconhecimento desse fenômeno no Brasil.
Desta feita, necessária a mudança na legislação penal brasileira, no que
diz respeito à previsão das outras modalidades de exploração, no caso do trá-
fico de pessoas, que não somente a exploração sexual prevista nos artigos 231
e 231-A do Código Penal Brasileiro. Neste aspecto, aguarda-se aprovação do
Projeto de Lei (PLS 479) que tramita no Senado Federal com esse propósito.
Ademais, é imperioso que os operadores da justiça criminal, dentre estes
os que compõem o sistema de segurança pública, sejam continuamente capa-
citados e treinados, particularmente aqueles que atuam nas áreas de fronteira,
nos aeroportos internacionais e nas estradas federais ou estaduais que ligam
os estados da federação.
Assim, será possível propiciar dedicação especial às vítimas de tráfico
de pessoas no sentido de encorajá-las a denunciar e a participar da instrução
probatória, aumentando as chances de se perseguir e punir os traficantes.
Será, portanto, com a disponibilização ou facilitação às vítimas dos
meios para se recuperarem dos traumas, se sentirem protegidas e empoderadas
a tomar decisões, estando bem informadas, que passarão, então, a colaborar
153
com a justiça criminal e a denunciar essa forma tão cruel de violação dos
direitos humanos.
Nesse sentido, o ciclo do tráfico de pessoas somente poderá ser descon-
tinuado com o apoio, a disponibilização e facilitação de acesso aos meios de
proteção e atendimento às vítimas.
Como se pode depreender, este estudo não tem a pretensão de esgotar o de-
bate sobre o tráfico de pessoas, mas contribuir para a reflexão do tema que repre-
senta uma das mais graves formas de violação dos direitos humanos no mundo.
154
Reênciasfer ácasbilogr
BLANCHETTE; Thaddeus Gregory; SILVA, Ana Paula da. On bullshit and the trafficking of
women: moral entrepreneurs and the invention of trafficking of persons in Brazil.
Dialectical Anthropology, v.36, n. 1-2, p. 107-125. 2012.
COLARES, M. Tráfico de Seres Humanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará.
Brasília: Ministério da Justiça. 2004.
155
DAVIDSON, Julia O’Connell. Trafficking: Known Unknowns and Unknown Knowns. Apre-
sentação no Dialogue Forum Research Goes Politics. Viena: 27 de junho de 2013.
DIJCK, M. van. Trafficking in Human Beings: a Literature Survey. Report to the 6th
Framework Programme of the European Commission, 2005.
FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2008.
GOODEY, J. Migration, crime and victimhood: responses to sex trafficking in the EU.
Punishment & Society, v. 4, n.5, Thousand Oaks: Sage Publications, 2003.
MELVIN, J. Lerner. The Belief in a Just World: A Fundamental Delusion. Nova York:
Plenum Press, 1980.
156
Ministério da Justiça. Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas: consolidação dos
dados de 2005 a 2011. Brasília, 2013.
PEDRA J. B., Alline (2008). Empowering Victims of Human Trafficking: the Role of Sup-
port, Assistance and Protection Policies. HUMSEC Journal, Issue 2. Disponível em:
<http://www.etcgraz.at/cms/fileadmin/user_upload/humsec/Journal/Pedra.pdf>
Pedra J.B., Alline. Criminal Justice, Victim Support Centers and the Emotional
Well-Being of Crime Victims. 2010. Tese (Doutorado) Universidade de Lausanne,
Instituto de Criminologia e Direito Penal.
PEDRA, J.B., Alline. Human Trafficking; victims’ identification and profiling in Brazil.
International Perspectives in Victimology, v. 7, n. 2, p. 18-24, 2013.
Secretaria Nacional de Justiça; Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime;
Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude. Posto de
Atendimento Humanizado aos Migrantes: Sistematização da experiência de um
ano de funcionamento do posto. Brasília: Ministério da Justiça, s.d.
157
SHAPLAND, J.; DUFF, P.; WILLMORE, J. Victims in the criminal justice system. Gower:
Cambridge studies in criminology, 1985.
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Toolkit to combat trafficking in
persons. Nova York: UNODC, 2008.
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Anti-Human Trafficking Manual
for Criminal Justice Practitioners. Module 2. Nova York, Vienna: UNODC, 2009.
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) (2012a). Global Report on Traf-
ficking in Persons 2012. Nova York: UNODC, 2012a
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) (2012b), Issue Paper on Abuse of
a Position of Vulnerability and Other Means within the Definition of Traffick-
ing in Persons. 2012b. Disponível em: <http://www.unodc.org/unodc/en/human-
trafficking/publications.html?ref=menuside>. Acesso em: 20 de junho de 2013.
VIENNA FORUM OF UN.GIFT. 2008, Vienna. 024 Workshop: Quantifying Human Traf-
ficking, its Impact and the Responses to it. The Vienna Forum to fight Human
Trafficking, 13-15 February 2008, Austria Center Vienna.Background Paper 024.
WALLER, I. The police: first in aid? In LURIGIO, Arthur J.; SKOGAN, Wesley S.; DAVIS,
Robert C. (Eds.). Victims of Crime. Problems, Policies, and Programs. Thousand
Oaks: Sage Publications. 1990. p. 139-155
MELVIN, J. Lerner. The Belief in a Just World. A Fundamental Delusion. New York: Ple-
num Press, 1980.
158
159
Humberto Ribeiro Junior
Doutor em Sociologia e Direito pela UFF. Mestre em Filosofia e Teoria do Di-
reito pela UFSC. Professor e pesquisador nas áreas de criminalidade, violência
e segurança pública.
10
AS VIOLAÇÕES SISTEMÁTICAS AOS DIREITOS 1. Sistema de informações Penitenciárias
HUMANOS POR MEIO DOS PROCESSOS DE do Ministério da Justiça. Dados de dezem-
bro de 2012. Disponível em <http://goo.gl/
CRIMINALIZAÇÃO SELETIVA: O CASO DAS mOawdu>. Acesso em: outubro de 2013.
POLÍTICAS PENITENCIÁRIAS CAPIXABAS
2. Cf. RIBEIRO JÚNIOR, Humberto. Encar-
ceramento em massa e criminalização
Humberto Ribeiro Júnior
da pobreza no Espírito Santo: as políticas
penitenciárias e de segurança pública do
governo de Paulo Hartung (2003-2010).
1. Introdução Vitória: Editora Cousa, 2012
161
4. BARATTA, Alessandro. Criminologia crí- Portanto, uma das conclusões a que chegamos, por meio dos dados esta-
tica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de tísticos coletados em confronto com a base teórica utilizada, foi a de que esta
Janeiro: Revan, 2002. p. 41-42.
política de encarceramento não atingiu igualmente os indivíduos pertencentes
a todos os estratos sociais, ela teve um direcionamento claro para determina-
dos grupos divididos por cor e por classe.
No entanto, tendo em vista os objetivos daquela pesquisa, não foi pos-
sível desenvolver mais adequadamente o debate em torno das razões que de-
terminam esta criminalização seletiva de parcela da população. Desta forma, a
proposta deste artigo é a de recuperar e atualizar os dados sobre o encarcera-
mento no Espírito Santo para procurar compreender como se dão os processos
de criminalização e se realmente eles se orientam por uma seleção desigual dos
indivíduos de acordo com seu status social.
Para tanto, utilizaremos neste artigo o arcabouço teórico da criminologia
crítica a fim de tentar ultrapassar a barreira construída, em grande medida, pela
ideologia da defesa social que ainda vigora nos meios jurídicos como modelo
teórico explicativo do fenômeno da criminalidade e das formas de combatê-la.
Diante disso, se comprovada a hipótese de que o sistema de justiça crimi-
nal vigente se direciona seletivamente para os grupos que compõem as classes
sociais mais baixas, teremos elementos suficientes para demonstrar como ele
se constitui em um instrumento de violação sistemática dos Direitos Humanos.
162
sempre segundo um método científico ou experimental e com o auxílio das 5. ANDRADE, Vera Regina. Sistema penal
estatísticas criminais oficiais.
5 máximo x cidadania mínima: códigos da
violência na era da globalização. Porto
Deste modo, na busca das “causas da criminalidade”, uma série de res-
Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 35
postas podem ser construídas a partir de um método estritamente científico,
como é o caso da afamada teoria desenvolvida por Cesare Lombroso, que afir- 6. Este cientista, partindo de métodos es-
tritamente científicos (observação e exper-
mava a hipótese do criminoso nato, ou seja, de que as causas da criminalidade
imentação) chegou ao resultado de que as
estariam no próprio homem.6 causas da criminalidade estão na própria di-
Portanto, a ideologia da defesa social compreende a criminalidade como mensão anátomo-fisiológica do indivíduo.
uma realidade ontológica anterior ao Direito Penal, cabendo a este apenas Deste modo, a partir da comparação entre
grupos de criminosos e não criminosos ele
identificá-la e positivá-la. Assim, seria possível descobrir as causas do crime e conseguiu construir uma espécie de “man-
colocar a ciência a serviço do seu combate, em defesa da sociedade.7 ual” capaz de identificar criminosos, por
Tendo este raciocínio como premissa básica desta ideologia, é possível exemplo, pelo formato e tamanho de olhos,
nariz, orelhas, membros, etc. Apesar deste
estruturar seu conteúdo a partir de uma série de princípios: 1) princípio da
teoria sofrer inúmeras críticas atualmente,
legitimidade, segundo o qual o Estado, como expressão da sociedade, é o ente é comum a sua reprodução por mecanismos
legitimado para reprimir a criminalidade (defender a sociedade); 2) princípio mais sofisticados como têm feito grupos de
pesquisadores da área de neurociências ao
do bem e do mal, que toma o desvio criminal (crime e criminoso) como o mal,
buscar determinadas disfunções biológicas
enquanto a sociedade constituída é o bem (cidadão de bem); 3) princípio da naturais no cérebro de indivíduos que com-
culpabilidade, para o qual o delito é expressão de uma atitude interior repro- eteram crimes. Ademais, insta ressaltar que
vável contrária a valores sociais mesmo que ainda não transformadas em lei; outras teorias, tidas como mais progressis-
tas, que trabalham a criminalidade a partir
4) princípio da finalidade ou prevenção, que trata a pena como tendo não
de causas sociais (pobreza, por exemplo),
apenas uma função retributiva, mas também uma função de prevenção de ou- partem dos mesmos pressupostos que as
tros crimes, seja pela contramotivação da norma penal em abstrato, seja pelo teses lombrosianas.
processo de ressocialização; 5) princípio do interesse social, segundo o qual
7. ANDRADE, Vera Regina. op. cit. p. 35.
os interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os
cidadãos, condições essenciais à existência da sociedade.8 8. BARATTA, Alessandro. Criminologia
Um último princípio que deve ser destacado é o (mito) da igualdade. A crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio
de Janeiro: Revan, 2002. p. 42.
ideologia da defesa social propugna que o direito penal protege igualmente
todos os cidadãos contra as ofensas aos interesses sociais e que a aplicação 9. Ibid. p. 162.
do direito penal é igual para todos, na medida em que quaisquer violadores
das normas jurídicas têm igual chance de se tornarem sujeitos dos processos
de criminalização.9 Ou seja, isso significaria dizer, por exemplo, que ricos e
pobres são igualmente protegidos pelo direito penal e que criminosos de cola-
rinho branco e assaltantes de rua têm as mesmas chances de serem submetidos
aos rigores da lei penal, processual penal e de execução penal.
163
10. Noção da qual deriva a ideia de que a Há alguns anos, no entanto, surgiu no âmbito da sociologia jurídica um
prisão serviria como forma de ressocializar novo paradigma criminológico, orientado pelo método materialista histórico-
o indivíduo com defeitos de socialização.
-dialético, que procurava uma resposta diferenciada aos modelos liberais, tais
como o da defesa social. Neste sentido, construíram-se as teses da chama-
da criminologia crítica, capitaneada, em grande parte, pelo sociólogo italiano
Alessandro Baratta.
A criminologia crítica constrói seu raciocínio não buscando as causas da
criminalidade e suas respostas, mas sim buscando compreender os chamados
processos de criminalização, ou seja, os processos a partir dos quais determi-
nados sujeitos são criminalizados enquanto outros não o são.
Para tanto, deve-se estabelecer a crítica a todos os princípios basilares
à ideologia da defesa social, em especial os da igualdade, do interesse social,
e da culpabilidade. A criminologia crítica tenta, em primeiro lugar, desnatu-
ralizar a noção de crime demonstrando que o modo pelo qual determinadas
condutas são definidas como crime dependem de interesses concretos de classe
e não são simplesmente afrontas aos valores sociais. Ademais, a definição dos
crimes, a aplicação e a execução do direito penal são orientadas por um crité-
rio de seleção desigual dos sujeitos de acordo com seu status social e não por
um princípio de igualdade.
Esta abordagem da criminologia crítica deve-se, em grande parte, à te-
ses construídas pela doutrina do labeling approach, ou etiquetamento. Esta
teoria busca ultrapassar as noções de crime e criminalidade construídas, por
exemplo, a partir da lógica dos “defeitos de socialização”, segundo a qual o
indivíduo infringe uma norma social (natural) por não ter sido suficientemente
ou corretamente socializado.10
A doutrina do labeling approach, por outro lado, não centra suas análises
no comportamento desviante, mas sim no comportamento rotulado como des-
viante. Deste modo, tenta-se perceber que não há nada natural ou intrínseco
a um comportamento que o classifique como antissocial. Nem mesmo o fato
de um comportamento ser considerado um delito pela legislação penal torna
possível a sua classificação como criminoso.
O labeling approach demonstra que importa menos a ação que o status
atribuído à ação ou àquele que age. Assim, por exemplo, ao considerarmos,
lado a lado, uma pessoa que praticou um furto e uma que praticou um crime
164
contra a ordem financeira, o primeiro é rotulado como criminoso ao passo 11. FRADE, Laura. O que o congresso
que o segundo não. Os tratamentos dados pela legislação penal, pelo siste- brasileiro pensa sobre a criminalidade.
2007. Tese (Doutorado em Sociologia).
ma de justiça criminal e pelo cidadão comum são completamente distintos
Departamento de Sociologia, Universida-
nos dois casos. de de Brasília, 2007.
Como exemplo, vale citar a pesquisa realizada por Laura Frade sobre as
12. Ibid. p. 101-102.
representações do legislativo federal brasileiro sobre crime e criminalidade.11
Segundo os dados analisados, a visão dos congressistas é a de que crime está
relacionado com baixa escolaridade, sujeira, inferioridade, indisciplina, deso-
cupação, doença, desordem, etc.
Deste modo, verifica-se que quando pensam em crime, eles não pensam
em crimes de colarinho branco, corrupção, enfim, crimes praticados pela
elite, isso não é rotulado como crime, ainda que esteja previsto em lei. Nas
palavras da pesquisadora:
165
13. BARATTA, Alessandro. Criminologia crí- Neste sentido, Baratta afirma que
tica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2002. p. 86.
esta direção de pesquisa [labeling approach] parte da consideração de
14. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao di- que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do
reito penal brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas
Revan, 2002, p. 116.
abstratas até a noção de instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições
penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delin-
quente pressupõe, necessariamente o efeito da atividade das instâncias
oficiais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse
status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento
punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas mesmas ins-
tâncias.13 (grifo nosso)
166
Baratta afirma que “o status de criminoso é distribuído de modo desigual en- 15. BARATTA, Alessandro. op. cit. p.162.
tre os indivíduos” e conclui que, contrariamente a toda aparência, “é o direito
16. SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra N.
desigual por excelência”.15 Os direitos humanos como fundamento do
Para a manutenção desta desigualdade, importante esclarecer que o pro- minimalismo penal de Alessandro Baratta.
cesso de criminalização manifesta-se em três momentos: primeiramente cabe in: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (Org.)
Verso e Reverso do Controle Penal: (Des)
ao legislador definir quais os bens que serão tutelados pelo direito penal (cri-
Aprisionando a Sociedade da Cultura Pu-
minalização primária); depois, cabe à polícia selecionar os indivíduos que serão nitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux,
submetidos a um inquérito policial e, posteriormente, a um processo penal, ca- 2002. p.16.
bendo ao juiz exercer a mesma seletividade (criminalização secundária); e, por
17. BISSOLI FILHO, Francisco. Punição e di-
fim, operam os mecanismos de execução penal ou das medidas de segurança.16 visão social: do mito da igualdade à reali-
Este processo atua nos campos da quantidade e da qualidade. A seletivi- dade do apartheid social. in: ANDRADE,Vera
dade quantitativa diz respeito ao número de condutas rotuladas como crimino- Regina Pereira de. (Org.). Verso e Reverso
do Controle Penal: (Des)Aprisionando a
sas e ao de autores em relação aos quais é atribuída a condição de criminoso. Já
Sociedade da Cultura Punitiva. Florianó-
a seletividade qualitativa relaciona-se com a não inclusão de todas as condutas polis: Fundação Boiteux, 2002. p.78-79.
socialmente nocivas como criminosas, e com a não classificação de todos os
18. Cf. ANDRADE, Vera Regina. Sistema pe-
sujeitos que praticam atos delituosos como pessoas criminosas (rotulamento).17
nal máximo x cidadania mínima: códigos
Importante ressaltar que, com relação à aplicação e execução da lei pe- da violência na era da globalização. Porto
nal, esta crítica é construída a partir de duas variáveis: 1) a da impossibilidade Alegre: Livraria do Advogado, 2003. e BA-
estrutural de o sistema penal operacionalizar toda programação da lei penal RATTA, Alessandro. Criminologia crítica e
crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janei-
a partir das agências responsáveis por executá-lo (polícia, judiciário, poder
ro: Revan, 2002.
executivo); e 2) diante desta incapacidade os processos de criminalização são
orientados por uma seleção desigual de pessoas segundo seu status social.18
Isso significa dizer que não é possível investigar todos os crimes que
acontecem a todo o momento, e, mesmo se isso fosse possível não seria pos-
sível processar e julgar todos estes casos e, por fim, não seria possível execu-
tar todas estas penas. Diante disso, selecionam-se aqueles que serão clientes
habituais do sistema penal – no caso, a esfera da população das classes mais
baixas, pertencentes à minorias, etc.
Desta forma, o método utilizado pela criminologia crítica permite anali-
sar os mesmos dados cotidianamente divulgados a partir de olhares distintos
daqueles construídos pela ideologia da defesa social. Por exemplo, ao perceber
que a maior parte da população carcerária é composta por negros e pobres ela
não chega à conclusão de que a pobreza ou a cor são “causas do crime” e que,
por isso, as agências penais devem atuar preventivamente sobre estes grupos.
167
19. As reflexões deste tópico foram par- Com este mesmo dado, a sua conclusão é a de que este é o grupo selecionado
cialmente inspiradas no segundo capítulo para ser objeto dos controles penais.
do livro Encarceramento em massa e cri-
Assim, a partir do método da criminologia crítica, buscar-se-á analisar os
minalização da pobreza no Espírito San-
to. Cf. RIBEIRO JUNIOR, Humberto. op. cit. dados sobre o encarceramento no Espírito Santo, notadamente os relativos ao
p. 47 e segs. período do governo de Paulo Hartung (2003-2010), a fim de identificar em que
medida sistema de justiça criminal capixaba atua de maneira desigual sobre os
20. Conforme o Instituto Jones dos Santos
Neves (ISJN), neste ano o índice teria chega- crimes praticados por indivíduos pertencentes às classes vulneráveis.
do a 43,2 homicídios por 100 mil habitantes.
168
governo de Paulo Hartung e mantida pelo de Renato Casagrande foi respon- 23. A fim de manter a integridade da com-
sável por um aumento exponencial do número de encarcerados no Espírito paração, nesta soma foram excluídos os
presos provisórios sob custódia da Polícia
Santo. Eram 2.920 presos em dezembro de 2002 contra 10.191 em junho de Judiciária, uma vez que esses dados não
2010 23 e 14.733 em dezembro de 2012. eram disponíveis em 2002. O total de en-
Deve-se ressaltar, entretanto que essa expansão do encarceramento teve carcerados em junho de 2010 era de 10.803.
169
26. Dados do InfoPen. e junho de 2010 houve um salto súbito de 1.923 novos negros e pardos presos.
Neste mesmo período, a população carcerária branca aumentou em 336, uma
27. MANSO, Bruno Paes. Entre o crime or-
diferença proporcional de 5,72 vezes.26
ganizado e crack. Estadão. São Paulo, 08
novembro 2009. Notícias. Disponível em: Curioso que neste mesmo semestre os únicos crimes que tiveram um au-
<http://blogs.estadao.com.br/crimes-no- mento numérico tão grande como o total de encarceramentos foram aqueles
-brasil/tag/rodney-miranda/> Acesso em:
relacionados ao tráfico de entorpecentes. Este havia se tornado o principal foco
outubro de 2010.
da política de segurança pública capixaba da época, como mostra uma entre-
vista concedida em novembro de 2009 pelo então secretário Rodney Miranda:
170
Somando-se os percentuais de crimes contra a pessoa e crimes contra os 28. MACHADO, Nara Borgo Cypriano. Usu-
costumes, não se chega a 20% dos detentos em 2010. Crimes contra a adminis- ário ou traficante? a seletividade penal na
nova Lei de Drogas. In: Anais do XIX Encon-
tração pública chegam a 0,65% do total neste mesmo ano.
tro Nacional do Conpedi, Fortaeza, 2010.
No entanto, é sintomático o fato de que sejam os crimes da Lei de Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2011.
Drogas que sofreram maior crescimento no período em que houve o maior Disponível em: < http://www.conpedi.org.
br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3836.
crescimento da população negra e parda. Segundo análises recentes, como
pdf>. p. 1098-1111.
da pesquisadora Nara Borgo C. Machado,28 a Lei 11.343/06 introduziu uma
nova dinâmica no trato aos crimes de uso e de tráfico de drogas que se 29. Previsto no artigo 33, caput, é carac-
orienta com mais clareza para uma punição desigual das classes sociais terizado pelas seguintes condutas: impor-
tar, exportar, remeter, preparar, produzir,
mais altas e baixas. fabricar, adquirir, vender, expor à venda,
Uma das novidades da nova Lei de Drogas (11.343/06) teria sido a sua oferecer, ter em depósito, transportar, tra-
aparente descriminalização do uso de drogas. Ao menos não há para este a zer consigo, guardar, prescrever, ministrar,
entregar a consumo ou fornecer drogas,
pena privativa de liberdade, pois como afirma o art. 28, caput, e § 1º:
ainda que gratuitamente, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou ou regulamentar.
trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em
30. Deve-se ressaltar que, por meio da
desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às Resolução 05/2012, publicada em 16 de
seguintes penas: fevereiro de 2012, o Senado Federal sus-
I - advertência sobre os efeitos das drogas; pendeu a execução da expressão “vedada a
conversão em penas restritivas de direitos”,
II - prestação de serviços à comunidade;
contida no parágrafo 4º do artigo 33 da
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Lei 11.343/06. Isso ocorreu em virtude da
§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, decisão pela inconstitucionalidade do dis-
positivo concedida pelo Supremo Tribunal
semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena
Federal no Habeas Corpus 97.256/RS. Por-
quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência fí- tanto, a afirmação contida neste parágrafo
sica ou psíquica. se restringe ao período em tela.
171
31. MACHADO, Nara Borgo Cypriano. Usu- Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz aten-
ário ou traficante? a seletividade penal derá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às
na nova Lei de Drogas. In: Anais do XIX
condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pes-
Encontro Nacional do Conpedi, Fortaeza,
2010. Florianópolis: Fundação Boiteaux, soais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (grifos nossos)
2011. Disponível em: < http://www.conpe
di.org.br/manaus/arquivos/anais/fortale
Desta forma, a lei reforça a tese de que, mais do que simplesmente a
za/3836.pdf> p. 1104.
quantidade de substância proibida, importa a classe social do agente. Afinal,
32. ZACCONE, Orlando. Acionistas do uma mesma quantidade de droga apreendida na casa de uma pessoa de classe
nada: quem são os traficantes de drogas. média e de uma pessoa de classe pobre poderá provocar um tratamento bem
Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 19-20.
distinto. Não é à toa que, como afirma Nara Machado,
172
que envolvem o delito. Como demonstra a pesquisa “Tráfico e Constituição, 33. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Tráfico e
um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Constituição, um estudo sobre a atuação
da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do
Federal no crime de drogas”, nas varas criminais do Distrito Federal, quase Distrito Federal no crime de drogas. Dis-
70% dos processos referem-se a presos com quantias inferiores a 100 gramas ponível em: <http://goo.gl/pOGTy7> Aces-
de substância proibida. No Rio de Janeiro, esse índice é de 50%.33 so em: outubro de 2013.
173
Desta forma, se o sistema penal é orientado por uma aplicação desigual
da lei penal e das penas de prisão, uma discussão que deve ser feita é em que
medida esta prática da penalização está de acordo ou não com os princípios de
direitos humanos e se existem alternativas à essa prática da violência punitiva
institucionalizada.
174
divíduos em função de seu status social e não de sua conduta, percebe-se que 37. SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra N.
a função punitiva se realiza fora do direito e não de acordo a lei anterior que Os direitos humanos como fundamento do
minimalismo penal de Alessandro Baratta.
define o crime; e o princípio do devido processo legal, na medida em que o
in: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (Org.)
criminoso será definido a partir de seus aspectos físicos, seu local de moradia, Verso e Reverso do Controle Penal: (Des)
de circulação, sem qualquer cuidado com o direito de defesa, de produção de Aprisionando a Sociedade da Cultura Pu-
nitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux,
provas, ou, muito menos, de garantia de um julgamento justo.
2002. p. 19
Em suma, isso demonstra, a violação direta de, pelo menos, quatro arti-
gos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: o artigo VII, que garante 38. BARATTA, Alessandro. Princípios do di-
a igualdade perante à lei e a proteção contra qualquer discriminação; o artigo reito penal mínimo: para uma teoria dos
direitos humanos como objeto e limite da
IX, que proíbe a prisão arbitrária; o artigo X, que garante um julgamento jus- lei penal. Tradução de Francisco Bissoli Fi-
to, igualitário e realizado por um tribunal independente e imparcial; e o artigo lho. mimeo. Disponível em: <http://goo.gl/
XI, que garante a presunção de inocência e a reserva legal. YCcsdu>. Acesso em: novembro de 2013.
175
39. Ibid. p. 4-5.
Atento a essas questões, o criminólogo crítico Alessandro Baratta, em um
artigo intitulado Princípios do direito penal mínimo: para uma teoria dos direi-
tos humanos como objeto e limite da lei penal,38 tenta debater esta crise do siste-
ma penal e, a partir do marco dos direitos humanos, procura apontar alguns ca-
minhos que possam ser trilhados a curto e médio prazo em busca de superá-la.
Com este objetivo, inicialmente o autor resgata os resultados de suas
pesquisas para demonstrar que o sistema penal é absolutamente incapaz de
cumprir as funções declaradas por seu discurso oficial (baseado na ideologia
da defesa social, tal como discutimos anteriormente). Em seguida, ele constrói
uma forma de pensar os fundamentos de uma política criminal orientada pelos
direitos humanos.
Deste modo, ele verifica que se analisados os sistemas punitivos em suas
manifestações empíricas, em sua organização e em suas funções reais, algumas
constatações básicas podem ser alcançadas: 1) a pena é uma violência institu-
cional; 2) os órgãos que atuam na organização da justiça criminal (judiciário,
legislativo, órgãos de execução e investigação) não tutelam interesses comuns da
sociedade, mas de grupos dominantes e socialmente privilegiados; 3) o funciona-
mento da justiça penal é altamente seletivo, seja na proteção dos bens jurídicos,
nos processos de criminalização e aprisionamento; 4) o sistema punitivo produz
mais problemas do que procura resolver, uma vez que reprimem e agravam as
relações de conflito existentes, além de criar outras; 5) ele é absolutamente ina-
dequado para desenvolver as funções socialmente úteis declaradas em seu dis-
curso oficial – sendo uma violência útil apenas do ponto de vista da reprodução
do sistema social existente e da manutenção das relações de poder e produção.39
Diante disso, torna-se possível dizer que o sistema punitivo aparece
como um suporte importante da violência estrutural. Desta forma, lutar con-
tra esta violência estrutural e, portanto, afirmar os direitos humanos é lutar
contra o modo pelo qual a prática punitiva se dá atualmente. Nas palavras de
Alessandro Baratta,
176
reais historicamente determinadas […]. Desprendem-se daqui duas con- 40. Ibid. p. 5.
seqüências: a primeira é que uma política de contenção da violência
41. Neste sentido se encaixa a discussão
punitiva é realista só se inserida no movimento para a afirmação dos
contra a chamada “esquerda punitiva”, no
direitos humanos e da justiça social. Pois, definitivamente, não se pode sentido dado por Maria Lúcia Karan, que
isolar a violência concebida como violência institucional da violência busca sempre a criminalização de condutas
e o recurso ao sistema penal como forma
estrutural e da injustiça das relações de propriedade e de poder, sem
de aparente garantia de liberdades. A crí-
perder o contexto material e ideal da luta pela transformação do sistema tica feita é a de que, na medida em que o
penal, reduzindo-a a uma batalha sem saída nem perspectivas de êxito sistema penal atua seletivamente reprodu-
[…]. A segunda conseqüência é que as possibilidades de utilizar alter- zindo as relações de poder instauradas na
sociedade, ele não apenas não irá prote-
nativamente os instrumentos tradicionais da justiça penal para a defesa
ger essas liberdades como poderá produzir
dos direitos humanos são sumamente limitadas.40 novas violações pelo seu uso. Cf. KARAM,
Maria Lúcia. Esquerda punitiva. Discursos
Sediciosos, Rio de Janeiro, ano 01, vol. 01,
Portanto, devemos compreender que, não apenas é equivocado utilizar
p. 79-82, jan-jun, 1996.
os instrumentos da justiça penal para a defesa dos direitos humanos,41 como é
imperioso que a violência punitiva seja contida e limitada pelos princípios de 42. SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra N.
Os direitos humanos como fundamento do
direitos humanos, ante o reconhecimento da impossibilidade concreta de sua
minimalismo penal de Alessandro Baratta.
abolição a curto ou médio prazo. in: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (Org.)
Diante dessas questões, no texto já citado, Alessandro Baratta busca Verso e Reverso do Controle Penal: (Des)
resgatar a primazia dos direitos humanos como fundamento de uma política Aprisionando a Sociedade da Cultura Pu-
nitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux,
criminal alternativa que consiga conter e limitar a violência punitiva do Esta-
2002. p. 17.
do. Desta maneira, ele afirma a estratégia de uma mínima intervenção penal
orientada pelo respeito aos direitos humanos no marco do processo penal e da
execução da pena. Como explica Samyra Sanches,
177
43. BARATTA, Alessandro. Princípios do di- direito penal mínimo que se constituem, na verdade, em requisitos mínimos de
reito penal mínimo: para uma teoria dos respeito aos direitos humanos na produção, aplicação e execução da lei penal.
direitos humanos como objeto e limite da
Como nosso objetivo neste trabalho não é reconstruir detalhadamente to-
lei penal. Tradução de Francisco Bissoli Filho.
mimeo. Disponível em: <http://goo.gl/YCcs das as teses de Alessandro Baratta, indicaremos alguns desses princípios que en-
du>. Acesso em: novembro de 2013. p. 6. tendemos ser mais relevantes para a transformação deste sistema penal que em
sua forma atual se mostra como um violador sistemático dos direitos humanos.
44. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 7.
Diante dessas considerações, o primeiro passo para um programa de li-
45. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 8. mitação formal da violência punitiva implica em submetê-la ao princípio da
estrita legalidade, sendo assim, toda a violência punitiva deve ser restrita ao
46. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 9.
âmbito da lei, submetendo todas as “punições extralegais” e excessos come-
tidos pelo sistema penal às sanções correspondentes, sejam elas penais, civis,
administrativas, disciplinares, etc.43
Além disso, estas garantias contidas no princípio da legalidade devem
ser estendidas à situação do indivíduo em cada um dos subsistemas em que se
divide o sistema penal na forma de um princípio do primado da lei penal subs-
tancial. Assim, diante da ação da polícia, dentro do processo e da execução da
pena, a limitação dos direitos dos indivíduos não pode superar as restrições
previstas taxativamente pela lei penal para os delitos de que pode ser suspeito,
imputado ou condenado. Neste sentido, por exemplo, não se poderia permitir a
prisão processual de um indivíduo acusado de um crime cuja condenação não
acarretaria pena de prisão.44
Alguns princípios também deveriam restringir a própria produção da lei
penal. Desta forma, Baratta afirma um princípio de representação popular que
garanta a participação popular na formação da vontade legislativa, bem como
um princípio da resposta não contingente que garanta que a lei penal não seja
uma resposta imediatista problemas aparentes, mas um ato solene de resposta aos
problemas sociais fundamentais que se apresentam como gerais e duradouros em
uma sociedade – o que significa a proibição de uma legislação penal de emer-
gência ou de um populismo punitivo, como frequentemente se faz na prática.45
Outro limite à legislação penal diz respeito aos seus conteúdos. Para
Baratta, somente graves violações aos direitos humanos podem ser objeto de
sanções penais, sendo as penas proporcionais ao dano causado pela violação.
Este seria o princípio da proporcionalidade abstrata, uma das bases fundamen-
tais para um direito penal mínimo.
178
Ele deve ainda andar lado a lado com o princípio da subsidiariedade, 47. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 13.
segundo o qual uma pena só pode ser cominada se for possível provar que não
48. BARATTA, Alessandro. op. cit. p. 13.
existem outros meios não-penais de responder a tais situações de violação dos
direitos humanos.46
Ademais, por mais que a crítica rasa do senso comum normalmente rela-
cione este tipo de proposta com uma ausência de preocupação com a vítima,
dentre os princípios elencados por Baratta, um dos mais importantes é justa-
mente o princípio do primado da vítima. Porém de maneira oposta à lógica pu-
nitivista de “estatização e generalização do direito à vingança”, este princípio
orienta-se pela ideia de que seria injustificada a pretensão do sistema penal de
tutelar interesses gerais que vão além dos da vítima. E mais, o caminho propos-
to é o da privatização dos conflitos, procurando formas de restabelecer ao má-
ximo a condição anterior conturbada pelo delito. Nas palavras do próprio autor,
179
conduta criminal daqueles não imputáveis legalmente. Seja o caso daqueles
atualmente submetidos aos “manicômicos judiciais” das medidas de seguran-
ça, sejam as crianças e adolescentes não imputáveis criminalmente, sejam os
usuários de drogas submetidos às internações compulsórias.
Esses são alguns dos princípios elencados por Alessandro Baratta com
vistas à construção de um direito penal mínimo que respeite os direitos hu-
manos e contenha a violência punitiva. Isso significaria um empreendimento
radical de transformação do sistema penal e da sociedade moderna no sentido
de inverter, ao máximo, a lógica vigente em nossas sociedades atuais de um
sistema penal que funciona como um violador sistemático de direitos humanos
em um sistema que seja orientado por sua garantia.
Porém, ressalte-se que, mesmo se tratando de uma proposta radical, ten-
do em vista nossa realidade concreta, ela ainda é considerada uma das etapas
necessárias – e factíveis a curto e médio prazo – para criar as condições neces-
sárias para a abolição radical do sistema penal.
5. Considerações finais
180
a população negra e pobre, envolvida majoritariamente em delitos patrimoniais
e, mais recentemente, em crimes relacionados ao comércio ilegal de drogas.
Portanto, concluímos que a prática concreta do sistema de justiça cri-
minal não apenas se afasta completamente de seus princípios legitimadores,
como se manifesta na forma de um um mecanismo que promove violações
sistemáticas aos mais basilares princípios de direitos humanos.
Diante disso, como uma forma de apontar caminhos alternativos recor-
reu-se às teses do criminólogo crítico Alessandro Baratta em sua proposta de
construção de um direito penal de mínima intervenção fundamentado nos
princípios de direitos humanos. Esta, para ele, seria a melhor alternativa para,
a curto e médio prazo, transformar as práticas de criminalização seletivas e
desiguais do sistema penal e conter a violência punitiva estatal.
Esta transformação gradativa permitiria a busca de mecanismos alter-
nativos ao intervencionismo repressivo do sistema penal que fossem mais de-
mocráticos, igualitários, criativos e, acima de tudo, mais direcionados para o
respeito aos direitos humanos e para a solução real dos conflitos – em vez de
servir ao seu reforço e reprodução.
181
Reênciasfer ácasbilogr
________. Princípios do direito penal mínimo: para uma teoria dos direitos hu-
manos como objeto e limite da lei penal. Tradução de Francisco Bissoli Filho. mim-
eo. Disponível em: <http://goo.gl/YCcsdu>. Acesso em: novembro de 2013.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2002.
KARAM, Maria Lúcia. Esquerda punitiva. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, ano 01,
vol. 01, p. 79-82, jan-jun, 1996.
182
MANSO, Bruno Paes. Entre o crime organizado e crack. Estadão. São Paulo, 08 novem-
bro 2009. Notícias. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/crimes-no-brasil/
tag/rodney-miranda/> Acesso em: outubro de 2010.
183
Nara Borgo
Advogada. Mestre em Direito. Especialista em Direito Penal Econômico pela
Universidade de Castilla – La Mancha – Toledo, Espanha. Especialista em Di-
reito Penal pela Universidade Nacional de Mar del Plata - Argentina. Profes-
sora da Faculdade de Direito de Vitória.
11
DIREITOS HUMANOS:
COMO IDENTIFICAR SUAS VÍTIMAS E SEUS VIOLADORES
Nara Borgo
1. INTRODUÇÃO
185
1. DORNELLES, João Ricardo W. O que são Apesar do Brasil ser signatário da DUDH, aqui, “como no resto da Amé-
direitos humanos. São Paulo: Brasiliense, rica Latina, não existe uma arraigada tradição cultural de valorização dos
2006, p. 45.
direitos humanos”1.
2. Ibid, p. 47. Podemos afirmar que a atenção aos problemas gerados em virtude de
violações de direitos humanos no Brasil só foi “despertada” com as lutas opo-
3. LACERDA, Áurea Santos; FIDELIS, Vera
sicionistas aos regimes de exceção.
Lucia Chieppe. O que é educar em Direitos
Humanos? In: VELTEN, Paulo (Org). Educa- Não que não houvesse violação de direitos humanos antes da ditadu-
ção em Direitos Humanos II. Vitória: Uni- ra militar e que muitos movimentos não tivessem se levantado contra tais
versidade Federal do Espírito Santo, Núcleo opressões. Ao contrário, sempre houve quem lutasse por direitos humanos no
de Educação Aberta e à Distância, 2013, p.
123.
Brasil mas, segundo diversos doutrinadores, a questão dos direitos humanos
se tornou “ordem do dia”quando os movimentos sociais, contrários ao regime
militar, passaram a confrontar “um tipo de poder político que violentava siste-
maticamente os direitos mais elementares da pessoa humana”2.
Nesse sentido as lições de Lacerda e Fidélis3 que ensinam-nos que:
Faz-se necessário aliar uma nova teoria para novas práticas, tendo por
finalidade a promoção de todos e todas aos bens (educação, vida, saúde,
meio ambiente ecologicamente equilibrado, segurança, assistência etc.)
186
para uma vida em liberdade e dignidade. Para além das lutas jurídicas, 4. FABRIZ, Daury Cesar. Fundamentos His-
também as lutas políticas em busca desses bens e direitos .
4 torico-Filosófico da EDH. In: VELTEN, Paulo
(Org). Educação em Direitos Humanos.
Vitória: Universidade Federal do Espírito
Por fim, como ensinam Áurea Santos Lacerda e Vera Lúcia Fidellis5: Santo, Núcleo de Educação Aberta e á Dis-
tância, 2011, p. 58-59.
não individualmente.
187
frequentemente usa imagens e frases de efeito no sentido de transmitir a ideia
equivocada de os direitos humanos são destinados apenas a quem comete crimes.
Sobre o preconceito existente com relação à proteção dos direitos huma-
nos, acertadas são as palavras de Dornelles6, ao afirmar que:
A defesa dos direitos humanos está relacionada com todas as violações so-
fridas por uma ou mais vítimas, desde que tais violações tenham sido prati-
cadas pelo Estado.
Desta forma, quando a proteção dos “direitos humanos das vítimas” é
questionada, é preciso compreender quem são essas vítimas e quem violou
tais direitos.
Não se discute a necessidade de se garantir uma sociedade segura, assim
como não há discordância no sentido de que as vítimas da violência urbana
precisam de assistência. A própria Constituição da República assegura o direito
à segurança no art. 5º, que estabelece que:
188
A segurança é um direito de todos, estabelecido no Título II da CF/88, 7. O relatório do Caso 12.051 está disponível
que versa sobre os direitos e garantias fundamentais, portanto, deve ser asse- em: <http://www.cidh.oas.org/annualrep /
2000port/12051.htm>. Acesso em 25,
gurada pelo Estado, mas é necessário que se compreenda, como será demons- out. 2013.
trado, que quando estamos diante de violação de direitos humanos é preciso
que a responsabilidade seja estatal e não individual.
Não há dúvidas de que a violência urbana geracomoção social, principal-
mente quando o fato se torna conhecido nacionalmente, e que grande parte da
população, esteja ela vinculada ou não a uma entidade de proteção de direitos
humanos, se solidariza com a dor das vítimas.
Para estas pessoas, vítimas e familiares, entretanto, há um aparato estatal
que visa investigar o crime e punir o agressor. Assim, a polícia investiga, o
Ministério Público atua em favor da sociedade, o Juiz julga e, por fim, o Esta-
do busca amparar aqueles que sofreram algum tipo de violência por parte de
outro ser humano.
Nos casos de violência urbana (ou nos casos de crimes não violentos),
estamos diantede delitos que podem ser cometidos por qualquer pessoamas,
apesar de todas as consequências advindas da agressão, não estaremos dian-
te de violação de direitos humanos pois apenas o Estado pode ser o violador
de tais direitos.
Caberá ao Estado, nos casos acima mencionados, apurar os fatos e apli-
car as sanções cabíveis ao agressor. Havendoomissão estatal, a vítima de vio-
lência praticada por um indivíduopode pleitear a proteção internacional por
violação de direitos humanos, pois neste caso a responsabilidade que antes era
individual passa a ser também do Estado por ter se omitido quando deveria
agir em favor daquele que foi agredido.
Foi exatamente isso que aconteceu no Caso 12.051, apresentado à Comis-
são Interamericana de Direitos Humanos.
Trata-se do mais famoso caso de violência doméstica e familiar do Bra-
sil, em que a vítima, a senhora Maria da Penha Maia Fernandes, denunciou
a impunidade e ineficácia do sistema judiciário brasileiro diante da violência
doméstica contra a mulher.
Apesar de ter sido um caso entre particulares, eis que Maria da Penha foi
vítima de vários atos de violência praticados por seu ex-marido, a ausência de
resposta do poder judiciário brasileiro com relação à conduta do agressor fez
189
8. DORNELLES, João Ricardo W. op. cit. p. 59. com o Estado fosse condenado por negligência e omissão em relação à violên-
cia doméstica contra as mulheres brasileiras7.
9. FABRIZ, Daury Cesar. Fundamentos His-
As vítimas de direitos humanos, portanto, são todas as pessoas que ti-
torico-Filosófico da EDH. In: VELTEN, Pau-
lo (Org). Educação em Direitos Humanos. veram seu direito desrespeitado por algum órgão, funcionário(a) ou agente do
Vitória: Universidade Federal do Espírito Estado. Assim:
Santo, Núcleo de Educação Aberta e á Dis-
tância, 2011, p. 58-59
(…) Quando se fala em direitos humanos, não se pensa em realidades
10. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos estanques, compartimentada. Não se pensa que apenas os “bons” os
e o Direito Constitucional Internacional. “mocinhos da história”, têm direitos a serem preservados. Quando se
São Paulo: Saraiva, 2010, p.113.
luta pelos direitos humanos, pensa-se e atua-se integralmente tendo
11. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Cons- uma visão global da realidade em que vivemos8.
tituição e Internacionalização dos Direitos
Humanos. In: FABRIZ, Daury Cesar et al.
Desta forma, é preciso que se compreenda que todos os seres humanos
(Coord). O tempo e os Direitos Humanos.
Acesso: Vitória, 2011, p. 125. podem ser vítimas de violações de direitos humanos e que a defesa intran-
sigente de tais direitos não é sinônimo de impunidade, ao contrário, violar
direitos humanos é que deve ser repudiado por todas as nações.
Nas precisas lições de Fabriz9, podemos concluir que os direitos humanos:
190
A trajetória dos direitos humanos iniciou-se por uma compreensão jus- 12. O Direito Humanitário expressou, de
naturalista, expressante do ideário individualista que assinalou as revo- forma pioneira, que deve haver limites à
liberdade e autonomia dos Estados, mesmo
luções liberais do século 18, evoluindo no sentido da positivação cons-
na hipótese de Guerra. A Liga das Nações,
titucional dos direitos e garantias considerados fundamentais segundo segundo o Preâmbulo da Convenção, de-
a escala de valores sublimados pelas constituições da era moderna, cul- terminava que: “As partes contratantes, no
sentido de promover a cooperação interna-
minando por alcançar no presente século um coroamento transcendente
cional e alcançar a paz e a segurança in-
das fronteiras do Estado nacional, com a sua inclusão nos tratados, de- ternacionais, com a aceitação da obrigação
clarações, convenções, protocolos e demais instrumentos que compõem de não concorrer à guerra, com o propósito
a ordem jurídica internacional. de estabelecer relações amistosas entre as
nações, pela manutenção da justice e com
extremo respeito para com todas as obri-
Também se discute quais seriam os precedentes históricos da moderna gações decorrentes dos tratados, no que
sistemática de proteção internacional desses direitos e, ainda sob os ensina- tange à relação entre povos organizados
uns com os outros, concordam em firmar
mentos de Piovesan, tem-se que o Direito Humanitário, a Liga da Nações e a
este Convênio da Liga das Nações”. A Orga-
Organização Internacional do Trabalho12 são “os primeiros marcos do processo nização Internacional do Trabalho teve a
de internacionalização dos direitos humanos13”. finalidade estabelecer padrões internacio-
nais para as condições de trabalho.
Apesar dos marcos anteriores, acima mencionados, foi em decorrência da
Segunda Guerra Mundial, em meados do século XX, que foi consolidada a in- 13. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e
ternacionalização dos direitos humanos,visto que alguns países, em conjunto o Direito Constitucional Internacional, op.
com organizações não governamentais, conseguiram “garantir que a proteção cit, p. 115.
aos direitos humanos fosse uma das quatro metas prioritárias da Carta das
14. BEUST, Luis Henrique. O emergir dolo-
Nações Unidas”14. roso da consciência universal dos direitos
Após aCarta da Nações Unidassurgiram diversos tratados e convenções humanos. In: Os direitos humanos desa-
fiado o século XXI. Brasília: OAB, Conselho
internacionais que tutelam direitos humanos e, assim, os Estados passaram
federal, Comissão Nacional de Direitos Hu-
a ter maior responsabilidade com relação às violações de direitos humanos manos, 2010, p. 93.
ocorridas em seu território.
No âmbito do continente americano, por exemplo, foi criado o Sistema 15. A Comissão é um órgão principal e au-
tônomo da OEA, criado em 1959, cuja fun-
Interamericano de Direitos Humanos, que é um sistema regional de promoção ção é promover a observância e a defesa
e proteção de direitos humanos integrado por dois órgãos: a Comissão Intera- dos direitos humanso nas Américas. Realiza
mericana de Direitos Humanos15 e a Corte Interamericana de direitos Huma- visitas aos países, atividades ou iniciativas
temáticas, prepara relatórios sobre a situ-
nos16, que têm a função de monitorar o cumprimento das obrigações contra-
ação de direitos humanos em um país ou
ídas pelos Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). sobre um tema determinado, adota medi-
As normas que versam sobre direitos humanos, então, dirigem-se aos Es- das cautelares ou pedido de medidas provi-
tados, visando limitar a ação estatal e também estabelecendo ações aos poderes sórias à Corte IDH e realiza o processamen
191
Continuação da nota 15 Assim, cabe aos Estados, de acordo com as convenções e tratados assina-
12. O Direito Humanitário expressou, de dos, adotar disposições legislativas para tornar efetivos os direitos humanos.
forma pioneira, que deve haver limites à No que se refere às obrigações dos Estados frente aos tratados e con-
liberdade e autonomia dos Estados, mesmo
venções internancionais de direitos humanos, é preciso lembrar que tem a
na hipótese de Guerra. A Liga das Nações,
segundo o Preâmbulo da Convenção, de- obrigação de adotar todas as medidas necessárias para prevenir as violações de
terminava que: “As partes contratantes, no direitos humanos, bem como investigar, processar e sancionar os responsáveis
sentido de promover a cooperação interna-
por quaisquer violações.
cional e alcançar a paz e a segurança in-
ternacionais, com a aceitação da obrigação Neste sentido, cabe lembrar o caso de Damião Ximenes Lopes17, em que o
de não concorrer à guerra, com o propósito Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Huma-
de estabelecer relações amistosas entre as nos por violação de direitos humanos ocorrida dentro de uma clínica médica,
nações, pela manutenção da justice e com
extremo respeito para com todas as obri-
eis que Damião Ximenes morreu em virtude de ter sofrido violência dentro de
gações decorrentes dos tratados, no que uma clínica que deveria cuidar de sua saúde mental.
tange à relação entre povos organizados Os Estados também têm a obrigação de remediar violações de direitos
uns com os outros, concordam em firmar
humanos restabelecendo as situações ao estado anterior à violação oureparan-
este Convênio da Liga das Nações”. A Orga-
nização Internacional do Trabalho teve a do as conseqüências, caso não seja possível o restabelecimento.
finalidade estabelecer padrões internacio- Como já mencionado, caso descumpram a obrigação de respeitar e ga-
nais para as condições de trabalho.
rantir os direitos protegidos nas convenções internacionais de direitos huma-
13. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e nos, os Estados incorrem em responsabilidade internacional, podendo então
o Direito Constitucional Internacional, op. serem denunciados aos órgãos do sistema interamericano de proteção dos di-
cit, p. 115. reitos humanos (ou aos órgãos dos sistemas que fizerem parte, caso não seja
um país do continente Americano).
14. BEUST, Luis Henrique. O emergir dolo-
roso da consciência universal dos direitos É necessário compreender que não basta uma farta legislação que vise
humanos. In: Os direitos humanos desa- a proteção dos direitos humanos,é necessário que se garantam cada vez mais
fiado o século XXI. Brasília: OAB, Conselho
condições para o exercício desses direitos e, por isso, tão importante que se
federal, Comissão Nacional de Direitos Hu-
manos, 2010, p. 93. promova a educação em direitos humanos.
O problema, como como nos ensina Dornelles18, é que
15. A Comissão é um órgão principal e au-
tônomo da OEA, criado em 1959, cuja fun-
estamos acostumados com belos documentos históricos declarando ser-
ção é promover a observância e a defesa
dos direitos humanso nas Américas. Realiza mos todos iguais e livres. Estamos acostumados também ao fato e al-
visitas aos países, atividades ou iniciativas guns serem mais iguais do outros.
temáticas, prepara relatórios sobre a situ-
ação de direitos humanos em um país ou
sobre um tema determinado, adota medi- Por isso, precisamos mudar a forma de compreender os direitos humanos
das cautelares ou pedido de medidas provi- e trabalhar no sentido de se transformar a sociedade, conscientizando às pes-
sórias à Corte IDH e realiza o processamen-
192
to e análise de petições individuais, com o
soas para que conheçam os seus direitos, mas também no sentido de quebrar
objetivo de determiner a responsabilidade
os preconceitos existentes. internacional dos Estados por violações de
direitos humanos e também emite as re-
condações que considerer necessárias.
16. A Corte IDH foi instalada em 1979 e é
4. Considerações finais um órgão autônomo da OEA. O objetivo da
Corte é interpreter e aplicar a Convenção
O presente trabalho buscou analisar a quem se dirigem os direitos humanos e Americana e outros tratados interamerica-
nos de direitos humanos, por meio de sen-
quem pode ser responsabilizado internacionalmente por violações a tais direitos.
tenças sobre casos e opiniões consultivas.
Para tanto, foram feitos breves comentários sobre a educação em direitos
humanos no Brasil, importante para que se compreenda como a falta de infor- 17. Outras informações sobre o caso po-
mação faz com que grande parte da população desconheça seus direitos e, com dem ser obtidas em http://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/ximenes/agescidh.pdf.
isso, não consiga identificar as vítimas de direitos humanos e o responsável
e em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
por violar tais direitos. articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em:
No que se refere às vítimas de direitos humanos restou claro que não 25 out. 2013.
podem ser confundidas com as vítimas de crimes praticados por aqueles que
18. DORNELLES, João Ricardo W. op.
não são agentes estatais, pois no caso de violação de direitos humanos a res- cit. contra-capa.
ponsabilidade, em âmbito internacional, não pode ser individual.
Ao ser feito o estudo das vítimas, defendeu-se ainda que qualquer pessoa
pode sofrer violação de direitos humanos e que não se pode ter uma visão
compartimentada da sociedade, como se fosse dividia entre “bons” e “maus”
sujeitos, pois a luta por direitos humanos pressupõe a defesa intransigente de
todos contra ações ou omissões estatais que firam direitos humanos.
Nesse passo, restou claro que apenas o Estado pode ser responsabilizado
internacionalmente por violação de direitos humanos e que, ao ser signatário
de tratados e convenções internacionais, deverá cumprir uma série de obriga-
ções no sentido de promover e respeitar tais direitos.
Por fim, não há dúvidas de que apenas por meio da educação em direitos
humanos será possível fazer com que a sociedade tenha consciência de seus
direitos e só assim poderemos avançar no sentido de construir uma sociedade
livre e mais justa.
193
Reênciasfer ácasbilogr
BEUST, Luis Henrique. O emergir doloroso da consciência universal dos direitos hu-
manos. In: Os direitos humanos desafiado o século XXI. Brasília: OAB, Conselho
Federal, Comissão Nacional de Direitos Humanos, 2010.
BRASIL. Constituição [da] República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2012.
DORNELLES, João Ricardo W. O que são direitos humanos. São Paulo: Brasiliense, 2006.
FABRIZ, Daury Cesar. Fundamentos Historico-Filosófico da EDH. In: VELTEN, Paulo (Org).
Educação em Direitos Humanos. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo,
Núcleo de Educação Aberta e á Distância, 2011.
LACERDA, Áurea Santos; FIDELIS, Vera Lucia Chieppe. O que é educar em Direitos Hu-
manos?. In: VELTEN, Paulo (Org). Educação em Direitos Humanos II. Vitória: Uni-
versidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2013
194
Edgard Rebouças; Victor Gentilli e Rafael Paes
Professores do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Es-
pírito Santo e coordenadores do Observatório da Mídia: direitos humanos,
políticas, sistemas e transparência.
12
A LÓGICA DA EXCLUSÃO TEMÁTICA NO DEBATE
POLÍTICO SOBRE MÍDIA E DIREITOS HUMANOS
Edgard Rebouças
Victor Gentilli
Rafael Paes
196
de número 22 o título: “Garantia do direito à comunicação democrática e ao
acesso à informação para a consolidação de uma cultura em Direitos Huma-
nos”. Sendo esta diretriz dividida em dois objetivos estratégicos:
Isso quer dizer que o jornalista deve ter o compromisso não somente
deproduzir informação como também é responsável pela qualidade, pelo rigor,
precisão e correção dainformação. Já o artigo 13º determina que “O jornalista
deve evitar a divulgação de fatos: […] b) De carátermórbido e contrários aos
valores humanos” (FENAJ, 2007). Desse modo, o que é definido como corre-
çãoda informação passa, necessariamente, pela não produção e divulgação de
notícias que sejam contráriasaos valores humanos.
No âmbito do estado do Espírito Santo, onde os índices de criminalidade
são dos maiores no país e há uma grande apologia a isso em programas poli-
cialescos de rádio e televisão, há em tramitação desde 2012 um Plano Estadual
de Educação em Direitos Humanos e um Programa Estadual de Direitos Huma-
nos, sendo que ambos contemplam a temática da mídia como importante fator
de desrespeito e promoção de Direitos Humanos (SEADH, 2012/2013).
Há, no entanto, um grande descaso por parte do poder público e tratar tais
temáticas com mais profundidade, e os veículos e profissionais de comunicações
têm se aproveitado de tais aspectos com muita habilidade, focando basicamente
suas ações para a manutenção dos históricos desrespeitos aos direitos humanos.
197
1. Coirmão do Observatório da Mídia: direi- Este artigo tem por objetivo colaborar para o debate e trazer à tona uma
tos humanos, políticas, sistemas e transpa- temática tão menosprezada, sendo ao mesmo tempo tão importante para os
rência sediado na UFES.
processos sociais. Para tanto, serão expostas algumas premissas da postura
ética dos profissionais de imprensa, uma análise dos instrumentos de políticas
públicas na área e algumas sugestões para avanços em termos de respeito e
promoção de direitos humanos pela mídia.
1. O papel do profissional
198
da primeira edição do livro da citaçãoacima, de 1974, esclarece que o foco do
Observatório será o olhar sobre esse “serviço público”.
Em obra seminal, Adelmo Genro Filho (989) vê no jornalismo um po-
tencial valor na perspectiva daemancipação humana, como, por exemplo,
ao observar que a impossibilidade da objetividade pode servista como “sinal
da potência subjetiva do homem diante da subjetividade”. Em 2007, Sylvia
Moretzsohn,em um primeiro estudo mais denso sobre a obra de Adelmo Genro
Filho, observou que o jornalismo écentrado no singular. Esta percepção ofe-
rece uma possibilidade de uma alternativa ao fazer jornalísticomais completa,
subvertendo a lógica tradicional consagrada no conceito de “pirâmide inver-
tida”. A estenovo olhar de Adelmo, Sylvia avança em sua elaboração focando
na ideia de “jornalismo comoesclarecimento”.
Em livro originário de um trabalho sistemático de pesquisa realizado
nos Estados Unidos por um grupochamado de “jornalistas preocupados”, Ko-
vach e Rosenstiel (2003) listam resultado de pesquisa comcolegas referentes
ao que consideram elementos do jornalismo. A questão dos direitos huma-
nos nãoaparece diretamente na obra por tratar-se de trabalho realizado nos
EUA, ainda no final do século passadomas, principalmente, por focar em
profissionais que trabalham no chamado jornalismo de referência,também
conhecidos como qualitypapers. Mas vale observar a ideia clara que fazem
de si mesmos e do público:
199
Todos os jornalistas – da redação à sala da diretoria – devem ter um
sentidopessoal de ética e responsabilidade – uma bússola moral. Mais
ainda, eles tem uma responsabilidade dedar voz, bem alta, a sua cons-
ciência e permitir que outros ao seu redor façam a mesma coisa. Para
queisso aconteça, uma redação aberta é essencial para por em prática
todos os princípios discutidos nestelivro. Inúmeras barreiras dificultam
a tarefa de produzir notícias exatas, justas, equilibradas, dirigidas aoci-
dadão, independentes e corajosas. O esforço, porém, começa mal quan-
do não existe uma atmosfera quepermita às pessoas desafiar as ideias
em circulação, as percepções e os preconceitos. É preciso que osjorna-
listas se sintam livres, até mesmo encorajados, a falar alto e dizer: “Esta
matéria me parece racista”,“Chefe, você está tomando a decisão errada”.
Somente uma redação onde todos podem emitir seusdiversos pontos de
vista as notícias terão alguma possibilidade de antecipar e refletir, com
exatidão, ascrescentes e diversas perspectivas e necessidades da cultura
americana (KOVACH; ROSENSTIEL: 2003, p. 274).
2. Ataques ao PNDH-3
200
A difusão e compreensão ampla dos direitos humanos norteia a prática
do Estado brasileiro desde apromulgação da Constituição de 1988. É uma ação
que vai além dos governos, tanto que é clara apercepção que o PNDH-3 se
constitui em um avanço linear em relação aos dois anteriores, estesproduzidos
no governo Fernando Henrique Cardoso.
A despeito destes movimentos, o Brasil avançou pouco na produção de
uma real “cultura de direitoshumanos”. A prática de torturas mantém-se como
atividade corrente em dependências policiais. Preconceitos contra o negro, o
pobre, a mulher, homossexuais e tantos outros grupos sociais continuamarrai-
gados na sociedade. E é perceptível que estes preconceitos são realimentados
pelo que se podechamar de “sistema midiático”.
Ainda sobre a enxurrada de posicionamentos corporativistas contra o
PNDH-3, vale lembrar a cobertura do Jornal Nacional, da TV Globo, em 16 de
março de 2010, quando criticou a proposta da criação de uma regulamentação
do artigo 221 da Constituição – já previsto na mesma –, que imporia sanções
para concessionárias de rádio e TV que o violassem. Medida semelhante é
regulamentada para todos os demais serviços sob concessão do Estado, como
educação (ex.: fechamentos de escolas), saúde (ex.: intervenção em hospitais),
transporte (ex.: renovação de frota de ônibus), combustíveis (ex.: porcentagens
de etanol e gasolina) e vários outros.
Há ainda outra proposta no PNDH-3, esta falando mais fundo nos bolso
das concessionárias de rádio e TV: “suspender patrocínio e publicidade ofi-
cial em meios que veiculam programações atentatórias aos direitos humanos”
(SECRETARIA:2009, p. 167). Para quem acha que “bandido bom é bandido
morto”, banaliza o uso de câmeras escondidas e faz apologia cotidiana da
violência, realmente, trata-se de uma grande ameaça.
O fato de o PNDH ter nascido não da cabeça de meia dúzia de tecno-
cratas, mas de um conjunto de debates com parte da sociedade diretamente
interessada nas questões de direitos humanos já é um grande avanço. Mes-
mo que tenha sido uma parcela ínfima da sociedade a participar, já revela
que o caminho é este. No caso específico da mídia como um dos elementos
a serem tratados como fundamentais – mesmo tendo sido listada como a 22ª
diretriz entre 25 – mostra uma preocupação de pessoas ligadas a diversos
201
outros setores neste ponto tão presente na vida de cada um, mas que nor-
malmente não é debatido.
Os pontos listados nas recomendações são exatamente aqueles que pes-
soas e grupos ligados ao tema da democratização das comunicações vêm de-
batendo e reivindicando desde meados dos anos 1980, mas que quase nunca
avançavam para os demais setores da sociedade. Então, ver agora organiza-
ções de mulheres, negros, índios, deficientes, homossexuais, igrejas, educado-
res etc., incluindo temas como conteúdos de televisão, concessões ou publici-
dade em seus debates, para mim, representa um grandeavanço. Quanto ao que
o PNDH-3 vem se tornando efetivamente em termo de políticas públicas ou até
regulamentações, isso já é uma outra discussão.
Apesar de tudo, o PNDH-3 foi até modesto em termos de propostas
ligadas ao tema mídia e direitos humanos. Se somente aquilo que já esta na
Constituição levanta tantos questionamentos por parte dos empresários do
setor, o que ocorreria se todos os pontos realmente de interesse público fos-
sem colocados em pauta? A base da reclamação dos grupos midiáticos está
na lógica em si da atividade de mídia como algo de interesse privado: ma-
ximização dos lucros, redução de custos e nada de riscos. Tais elementos es-
tão embutidos nos programas televisivos que agridem claramente os direitos
humanos: têm grande audiência, e com isso uma grande receita publicitária;
são relativamente baratos de se produzir; e requentam fórmulas que histori-
camente já fizeram sucesso.
Qualquer ação que se oponha aos baratos-repetitivos-lucrativos produtos
midiáticos são tratados como uma ameaça. E para se “defenderem” dessa ame-
aça, empresários lançam mão de uma retórica do discurso-escudo. Colocam-se
na posição de vítimas e de únicos defensores da liberdade de expressão, dando
sempre como exemplo a censura exercida no período da ditadura (REBOUÇAS:
2006). No caso do PNDH-3 não há nada de censura, como não havia na classi-
ficação indicativa proposta pelo Ministério da Justiça, tampouco na criação do
Conselho Federal de Jornalismo, menos ainda nas proposta da Agência Nacio-
nal de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Saúde e da Organização
Pan-Americana de Saúde (Opas) para regulamentar a publicidade de alimentos
que causam obesidade em crianças.
202
3. Cortando pela raiz: o caso do Espírito Santo 2. Participantes efetivos do Grupo de Tra-
balho: Aliança Cristã Evangélica Brasileira;
Comissão de Direitos Humanos da Assem-
Por mais que o III Plano Nacional de Direitos Humanos tenha sido duramente
bleia Legislativa do Espírito Santo – ALES;
criticado pela grande mídia e por setores tradicionais, a Secretaria Especial de Associação dos Municípios do Espírito San-
Direitos Humanos da Presidência da República manteve sua posição na manu- to – AMUNES; Conselho Estadual de Direi-
tos Humanos - CEDH/ES; Conselho Nacio-
tenção do texto do Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, que havia
nal de Igrejas Cristãs do Brasil - CONIC-ES;
saído do acumulo de dois anos de debates e das resoluções da 11ª Conferência Conselho Regional de Psicologia - CRP-16;
Nacional de Direitos Humanos, alémde propostasaprovadas nas mais de 50 con- Conselho Regional de Serviço Social -
ferências nacionais temáticas, promovidas desde 2003 nas áreas de segurança CRESS-17; Defensoria Pública do Estado do
Espírito Santo – DPES; Federação Espírita
alimentar,educação, saúde, habitação, igualdade racial, direitos da mulher, juven- do Estado do Espírito Santo – FEEES; Fó-
tude, crianças e adolescentes,pessoas com deficiência, idosos e meio ambiente. rum Capixaba em Defesa da Liberdade e
No caso do processo de elaboração do Programa Estadual de Direitos da Tolerância Religiosa; Instituto Jones dos
Santos Neves – IJSN; Ministério Público do
Humanos (PeDH-ES) e do Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos
Espírito Santo – MPES; Ministério Público
(PeEDH-ES), no Espírito Santo, a situação foi bem diferente. O Governo do Es- Federal: Procuradoria da República no E.
tado optou por se antecipar às críticas, e por conta própria retirou pontos que do Espírito Santo MPF/ES; Ordem dos Ad-
vogados do Brasil - OAB-ES; Secretaria de
haviam sido elaborados a partir de uma série de reuniões e audiências públicas
Estado da Educação – SEDU; Secretaria de
do grupo de trabalho2 instituídoem 9 de janeiro de 2012 no Decreto nº 2944-R Estado da Justiça – SEJUS; Secretaria de Es-
pelo próprio governador Renato Casagrande. tado da Segurança Pública e Defesa Social
Incialmente programado para ser lançado em 10 de dezembro de 2012, – SESP; Secretaria de Estado de Assistência
Social e Direitos Humanos – SEADH; Se-
em solenidade no Palácio Anchieta, sede do Governo do Espírito Santo, a “ver-
cretaria Municipal de Cidadania e Direitos
são 4.0” do grupo de trabalho que contava com ampla representatividade da Humanos de Vitória - SEMCID/PMV; Sindi-
sociedade civil e de órgãos governamentais, após a inesperada ausência do go- cato dos Jornalistas Profissionais no Estado
do Espírito Santo - SINDIJORNALISTAS-ES;
vernador no evento, foi comunicado um adiamento sine datado lançamento.
Superintendência Estadual de Comunica-
Com a pressão das entidades envolvidas e até a ameaça de greve de fome ção Social – SECOM e Universidade Federal
do presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Gilmar Ferreira, em 23 do Espírito Santo - UFES
de janeiro de 2013 o governador anunciou a criação de outro grupo de trabalho,
desta vez com o objetivo de analisar tecnicamente a exequibilidade das diretri-
zes e recomendações do PeDH-ES e do PeEDH-ES, tal grupo seria encabeçado
pela Procuradoria-Geral do Estado. O prazo do trabalho seria de três meses. Pas-
sados exatos seis meses, para o dia 23 de julho foi marcada a apresentação da
análise ao grupo de trabalho original, do que viria a ser chamada de “versão 5.0”.
O ocorreu na sede da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direi-
tos Humanos na manhã daquele 23 de julho merece um parênteses: diante de
boa parte dos representantes das entidades que elaboraram o texto original do
203
PeDH-ES e do PeEDH-ES, com as versões impressas sobre a mesa, o projetor
já ligado para mostrar ponto-a-ponto as mudança, o subsecretrário de Direitos
Humanos Perly Cipriano, cinco minutos antes do início da apresentação, rece-
beu um telefonema solicitando que comunicasse aos presentes que a reunião
estava suspensa. Em 2 de setembro de 2013, um arquivo em PDF com a “versão
5.0” foi enviado aos membros do Conselho Estadual de Direitos Humanos, mas
sem anúncio de data para debate do mesmo.
No entanto o que mais surpreendeu, foi no dia 2 de dezembro de 2013,
quando da abertura da 5ª Semana Estadual de Direitos Humanos, a entrega
para algumas pessoas de um caderno com o texto impresso da “versão 6.0” do
PeDH-ES e do PeEDH-ES. Não houve um anúncio formal de que esta seria a
versão definitiva, sequer que seria publicada no Diário Oficial, além do detalhe
de não mais constar os nomes do governador e do vice-governador no expe-
riente, como havia nas versões anteriores.
Especificamente para o tema da mídia e direitos humanos, na sequência
será mostrada a involução das diretrizes consensuadas pelo grupo de trabalho
original ao longo de um ano. Em destaque, estão as exclusões decorrentes das
“versões 5.0”, de 2 de setembro de 2013; e “6.0”, de 2 de dezembro de 2013:
Ações Programáticas
204
5.2 Criar bancos de dados e portal sobre Direitos Humanos, com par-
ceria nospoderes Legislativo e Judiciário e na sociedade civil, com as
seguintes características:
a. informações claras às cidadãs e cidadãos sobre seus direitos;
b. canais para a denúncia de violações;
c. acesso a textos didáticos e legislação pertinente ao tema;
d. relação de profissionais e defensores(as) de Direitos Humanos;
e. informações sobre políticas públicas sendo desenvolvidas nos âmbitos
municipal, estadual e federal.
205
5.9 Propor projeto de Lei estadual e fomentar a criação de leis mu-
nicipais que interditem a liberação de verbas de publicidade oficial
a veículos de comunicação listados por violação de Direitos Hu-
manos por instâncias competentes de monitoramento.(Excluído na
“Versão 6.0”)
206
5.16 Estabelecer parcerias entre o Governo do Estado, organizações
comunitárias e empresariais, tais como rádios, canais de televisão e
agências de publicidade, bem como organizações da sociedade civ-
il, para a produção e difusão de programas, campanhas e projetos
de comunicação na área de Direitos Humanos, levando em consider-
ação o parágrafo 2° do artigo 53 do Decreto Presidencial nº 5.296 de
02/12/2004 (Decreto da Acessibilidade), sendo estas ações obrigatórias
para os veículos estatais.
207
5.20 Sensibilizar proprietários e proprietárias de agências de publicidade
e de veículos de comunicação, bem como as associações de classe da
área da comunicação social, para a produção e veiculação voluntárias de
conteúdos de promoção, informação, educação e entretenimento que se
constituam em campanhas de difusão dos valores e princípios relaciona-
dos aos Direitos Humanos.
208
strução da história recente do autoritarismo no Brasil, tendo em vista sua
utilização na Educação em Direitos Humanos, entre outros fins.
OBJETIVO 5.5.1
Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e
o cumprimento de seu papel na promoção da cultura como Direito Hu-
mano e de uma Cultura dos Direitos Humanos
Ações programáticas
209
5.5.1.3 Apoiar iniciativas federais no sentido de maior responsabili-
zação do setor de comunicação social.(Excluído na “Versão 5.0”)
210
OBJETIVO 5.5.2 3. Devido a esta série de alterações, um dos
Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à infor- autores deste artigo, representante da UFES
no Conselho Estadual de Direitos Humanos
mação
e membro do grupo de trabalho original
para elaboração do PeEDH e PeDH, solicitou
Ações programáticas formalmente ao Governo do Estado a reti-
rada de seu nome do documento final que
vier a ser publicado.
5.5.2.1 Fomentar o acesso de estudantes, professores(as) e demais profis-
sionais da educação às tecnologias da informação e comunicação.
211
5.5.2.7 Apoiar a regularização das rádios comunitárias e promover
incentivos para que se afirmem como instrumentos permanentes de
diálogo com as comunidades locais.(Excluído na “Versão 6.0”)
212
pressão de grupos de interessepouco preocupados com o respeito aos direitos
humanos também influenciou trechos do texto original do PeEDH-ES e do
PeDH-ES nas área de moradores de rua, gays, lésbicas, bissexuais e transgêne-
ros, bem como manifestações culturais e religiosas de raiz africana3.
3. Caminhos e possibilidades
Mas nem tudo são problemas. Em algumas áreas, é possível observar ações
importantes em preocupação com a temática da mídia e direitos humanos. O
exemplo mais evidente é o da Agência de Noticias dos Direitos da Infância
(Andi), focadona criança e no adolescente desde o início dos anos 1990. A
Andi conseguiu agregar uma razoável“massa crítica” no acompanhamento de
noticiários sobre o tema. E as ações concretas na superação dosproblemas tor-
naram-se referenciais. As oficinas com jornalistas e o prêmio “Jornalista Ami-
go da Criança”são experiências que merecem replicação e aperfeiçoamento.
Ainda no campo da defesa dos direitos da criança, tendo a mídia como
foco, há o Instituto Alana, com uma série de iniciativas de advocacy com es-
pecificidade na questão do consumismo infantil provocado pela publicidade; e
a Cipó – Comunicação Interativa, que realiza estudos, ações e seminários pela
garantia dos direitos de crianças, adolescente e jovens, com destaque para as
denúncias contra os programas policialescos de rádio e televisão na Bahia.
Em âmbito mais geral há o Coletivo Intevozes, que vem organizando
ciclos de formação em mídia e educação em direitos humanos, além de ser
um das principais entidades na defesa do conceito do direito humano à co-
municação. Na mesma linha, outra entidade atuante no país é a ONG Artigo
XIX, que organiza debates e ações sobre a aplicação do princípio especifico da
comunicação na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Outro exemplo a
ser enfatizado é o do Instituto Vladimir Herzog, entidade criada em 2009 com
a intenção de contribuir para a reflexão e produção de informação que garanta
o direito à vida e o direito à justiça.
A iniciativa que concentrava boa parte dessas atividades, e ainda agrega-
va vários outros setores da sociedade, era a Campanha “Quem financia a bai-
xaria é contra a cidadania”, vinculada à Comissão de Direitos Humanos da Câ-
213
mara dos Deputados. Reunindo políticos, acadêmicos, psicólogos, jornalistas,
advogados, igrejas progressistas, movimentos negro e LGBT, e mais uma gama
de atores sociais, a Campanha… ganhou destaque a tratar diretamente dos con-
teúdos de telenovelas, programas de auditório, publicidades e telejornais, ten-
do conseguido uma série de ações que levaram a mudanças nas programações
de grande emissoras de TV. Desde que uma ala político/religiosa conservadora
assumiu o comando da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputa-
dos, uma década de conquistas foi engavetada (REBOUÇAS, 2013).
Para dar uma dimensão de como o tema da mídia e dos direitos humanos
vem ganhando cada vez mais espaço, basta observar a programação do Fórum
Mundial de Direitos Humanos, realizado em Brasília no inicio de dezembro de
2013. Em três dias, foram realizadas XX mesas e seminários específicos:
214
• O projeto de Lei da Mídia Democrática como instrumento
de luta pelo direito humano à comunicação no Brasil
• Princípios da internet e o direito à privacidade e à
liberdade de expressão
• Estratégias de proteção à comunicadores
• Como utilizar as mídias sociais produzindo e veiculando uma mo-
bilização social dinâmica, interessante e atraente para os direitos
humanos LGBT?
• Roteiro de debates: os direitos Humanos e a diversidade como
pilares para a construção da comunicação pública
• O direito à liberdade de expressão por intermédio das
concessões de rádios comunitárias
• Medios de comunicación para el futuro
• Comunicação e direitos humanos
• Fui processado. O que eu faço?
• Como os meios de comunicação em geral podem contribuir
para a conscientização sobre os direitos humanos e aumentar
a autoestima em LGBT?
• Infância e comunicação: a imprensa e o debate sobre o
limite da idade penal
215
classificado em primeiro lugar nacionalmente na categoria Direitos Humanos
em edital do Ministério da Educação.
Uma postura presente em toda a ação desenvolvida por esta iniciativa
do Observatório da Mídia é preconizada porPaulo Freire (1983) em sua obra
Extensão ou comunicação?. O que se pretende é o diálogo, muitomais do que
a mera extensão extra-muros do “conhecimento” gerado na universidade. A
dialógica e adialética freire-habermasiana são compartilhadas por estudantes,
educadores e pesquisadores deComunicação, profissionais da imprensa e mili-
tantes de direitos humanos de forma profunda e continuada.
216
Reênciasfer ácasbilogr
DINES, A.. O papel do jornal e a profissão de jornalista. 9. ed. São Paulo: Summus, 2004.
KUCINSKI, B.. Jornalismo na era virtual: ensaios sobre o colapso da razão ética. São
Paulo: PerseuAbramo/Unesp, 2005.
217
_____ . Um caminhopossívelparaa participação da sociedadenos debates sobre o conteú-
do da televisão. In: FERREIRA, C. (Org.). Qualidadena TV: 10 anos da campanhaQuem-
Financia a Baixaria é Contra a Cidadania. Brasília: EdiçõesCâmara, 2013, p. 36-57.
218
Paulo Abrão
Secretário Nacional de Justiça, Presidente da Comissão de Anistia do Minis-
tério da Justiça, Professor da Faculdade de Direito da PUCRS e do Programa
Europeu de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Pablo de
Olavide (Espanha).
Marcelo D. Torelly
Pesquisador Visitante do Institute for Global Law and Policy, Harvard Law
School (Estados Unidos).
13
1. Uma versão anterior deste texto encon- MUTAÇÕES DO CONCEITO DE ANISTIA
tra-se publicada no apresentação da Revis- NA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO BRASILEIRA:
ta Anistia Política e Justiça de Transição,
no.07, publicada pelo Ministério da Justiça.
A TERCEIRA FASE LUTA PELA ANISTIA1
As opiniões expressas neste texto são de
seus autores, não necessariamente refletin- Paulo Abrão
do posições das instituições em que atuam.
Marcelo D. Torelly
2. Veja-se nosso: Abrão, Paulo & Torelly,
Marcelo D. “O programa de reparações
como eixo estruturante da justiça de tran- Neste breve texto procuramos sistematizar algumas teses defendidas em es-
sição no Brasil”, in: Reátegui, Felix (org.).
Justiça de Transição – Manual para a Amé-
tudos esparsos ao longo dos últimos cinco anos. Partimos da ideia de que
rica Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério o programa de reparações às vítimas da ditadura militar constitui o “eixo
da Justiça/ICTJ, 2011, pp. 473-516. O termo estruturante” da justiça de transição no Brasil2, promovendo os denominados
Justiça de Transição será utilizado em sen-
“direitos da transição3”. E, a partir daí, buscamos explicitar a ambiguidade da
tido amplo para referir-se aos mecanismos
disponíveis para lidar com o legado de vio- Lei de Anistia de 1979, enquanto processo social cujo legado e consequências
lência do passado: verdade, reparação, jus- seguem em disputa, ensejando um “paradoxo da vitória de todos”4, que se tra-
tiça e reforma das instituições.
duz em distintas concepções sobre a anistia no Brasil: de um lado, é lida como
3. Cf. Abrão, Paulo & Genro, Tarso. Os direi- impunidade e esquecimento, de outro, como liberdade e reparação5.
tos da transição e a democracia no Brasil: A aprovação da lei de anistia no Brasil em 1979, durante o regime mi-
estudos sobre a Justiça de Transição e a litar, é o marco jurídico fundante do processo de redemocratização. A forte
Teoria da Democracia. Coleção Fórum Jus-
e histórica mobilização social da luta pela anistia e pela abertura política é
tiça e Democracia, vol. 01. Belo Horizonte:
Fórum, 2012. Capítulo 2. de tal sorte que do conceito de anistia emana toda a concepção da Justiça de
Transição no Brasil. O conceito de anistia, enquanto “impunidade e esque-
4. Cf.: Torelly, Marcelo D. Justiça de Tran-
cimento” defendido pelo regime militar e seus apoiadores, seguiu estanque
sição e Estado Constitucional de Direito.
Belo Horizonte: Fórum, 2012. Capítulo 04, ao longo dos últimos anos, passando por atualizações jurisprudenciais. Por
item 4.3. outro lado, o conceito de anistia defendido pela sociedade civil na década
de 1970, anistia enquanto “liberdade”, seguiu desenvolvendo-se durante a
5. Cf.: Abrão, Paulo & Torelly, Marcelo D. democratização, consolidando-se na ideia de anistia enquanto “reparação”
“Resistance do change: Brazil’s persistent constitucionalizada no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais
amnesty and its alternatives for truth and
Transitórias de 1988.
justice”, in: Lessa, Francesca & Payne, Leigh
(org.) Amnesty in the Age of Human Rights Para além da exposição da síntese desta tese, o presente texto procurará
Accountability. Nova Iorque: Cambridge analisar também o momento atual da justiça transicional brasileira, com a
University Press, pp. 152-180 ou Payne,
articulação de novos movimentos sociais, com demandas por justiça junto ao
Leigh; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D.
(orgs.). A Anistia na Era da Responsabiliza- Supremo Tribunal Federal6 e na Corte Interamericana de Direitos Humanos7.
ção – o Brasil em perspectiva internacional Em acréscimo, serão enfocadas a nova posição da Câmara Criminal do Minis-
220
tério Público Federal8, a aprovação da Lei de Acesso à Informação9, a criação Continuação de nota 5.
da Comissão Nacional da Verdade e as primeiras condenações judiciais rela-
10 e comparada. Brasília/Oxford: Ministério
da Justiça/Universidade de Oxford, 2011.
cionadas aos crimes da ditadura militar .11
pp.212-248.
Tais elementos factuais, de acordo com o modelo de análise aqui propos-
to, consolidam a perspectiva social de uma ideia de anistia como “liberdade” e 6. Ação de Descumprimento de Preceito
como “reparação” e apontam para o surgimento de uma terceira fase de signi- Fundamental n.º 153/2008.
ficação social da ideia de “anistia” no processo transicional brasileiro, a qual 7. Caso Júlia Gomes Lund e outros vs. Brasil
chamamos de anistia enquanto verdade e justiça. (caso Araguaia). Sentença disponível em:
Estas percepções alteram, concretamente, os pressupostos da anistia en- http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/arti-
culos/seriec_219_por.pdf, bem como em:
quanto impunidade e esquecimento propagada durante o regime militar, inda
Revista Anistia Política e Justiça de Tran-
afirmada por setores e instituições conservadoras. sição, Brasília: Ministério da Justiça, n.º 04,
jul/dez 2010, pp. 402-554.
Com a proclamação da medida de exceção denominada Ato Institucional 10. Brasil. Lei 12.528 de 18 de novembro
n.º 05, em 13 de dezembro de 1968, a ditadura, estimulada pelo ambiente da de 2011.
Guerra Fria, passou a atuar sistematicamente na repressão de tais movimentos
11. Como na recente condenação à inde-
de resistência, gerando, inclusive, uma política oficial típica de Terror de Esta-
nização de vítimas proferida em segunda
do. Tal Política destinava-se a generalizar a tortura e a exterminar os membros instância contra Brilhante Ustra e a recente
da resistência armada13, a banir ou exilar líderes políticos e sociais identifi- abertura de processo criminal na Justiça
cados com as ideologias de esquerda do país, além de gerar um incalculável Federal do Pará, envolvendo o episódio da
Guerrilha do Araguaia.
número de atingidos por prisões, por demissões arbitrárias no setor púbico
e privado, por perseguição política, em sentido amplo. Ademais, promoveu 12. Skidmore, Thomas. The politics of mi-
cassações de direitos políticos, compelimento à clandestinidade, censuras, tor- litary rule in Brazil 1964-85. Nova Iorque:
Oxford University Press, 1988, p.23.
turas, desaparecimentos forçados e execuções sumárias.
221
13. É desta época que trata o caso Guerri- O movimento em favor da aprovação de uma anistia aos perseguidos
lha do Araguaia, acima referida. políticos já é presente desde o início do Golpe, mas se fortalece entre os anos
de 1974 e de 1975, liderado pelas mulheres. Após o momento mais crítico da
14. Viana, Gilney & Cipriano, Perly. Fome
de Liberdade. São Paulo: Fundação Perseu repressão, as mães de filhos mortos, as viúvas de maridos vivos, os familiares
Abramo, 2009. de desaparecidos, dos presos e exilados políticos, ocupam a arena pública em
busca de liberdade e de notícias para seus entes. O movimento pela anistia se
15. Cf.: Gonçalves, Danyelle Nilin. “Os múl-
irradia pela sociedade, abrangendo desde os militantes organizados que per-
tiplos sentidos da Anistia”, in: Revista Anis-
tia Política e Justiça de Transição. Brasília: maneceram no país, até o movimento estudantil e do meio cultural. Aliados
Ministério da Justiça,Jan/Jun 2009, pp. ao movimento popular operário insurgente, essas agremiações protagonizaram
272-295.
uma das maiores mobilizações sociais já registradas na história do Brasil.
16. Na apreciação do caso “Rio Centro”, em A palavra de ordem do movimento social é a “anistia ampla, geral e
1981, a lei de anistia de 1979 sofrerá uma irrestrita”, adstrita a todos os “crimes” políticos praticados na resistência con-
mutação jurisprudencial pela atuação do tra o regime. Essa fase, que chamamos de primeira fase da luta pela anistia
Superior Tribunal Militar, passando a ser
uma lei “ampla e irrestrita” a todos os tipos
caracteriza, portanto, a anistia “enquanto liberdade”. A luta social buscou o
de crimes, incluindo os crimes de Estado, e, resgate das liberdades públicas: civis e políticas. A propósito, uma das crônicas
forçosamente, até mesmo aqueles crimes políticas mais reconhecidas sobre o período, a relatar a histórica greve de fome
cometidos posteriormente à sua edição.
de 32 dias dos presos políticos, em todo o Brasil, em favor da aprovação da lei
17. O conceito de “legalidade autoritária” de anistia, leva o simbólico título de “Fome de Liberdade”14.
é do politólogo Anthony W. Pereira, tendo A ampla mobilização popular obrigou a ditadura a rever sua posição con-
sido amplamente desenvolvido em: Pereira, trária a qualquer anistia. Junto ao parlamento brasileiro bipartidário – que
Anthony W. Ditadura e Repressão – o au-
toritarismo e o Estado de Direito no Brasil,
funcionou de forma descontinuada, sob intervenções e com parte de senadores
Chile e Argentina. São Paulo: Paz e Terra, “biônicos” durante o período de exceção – o Movimento Democrático Brasileiro
2010, pp. 237-255. (MDB), partido da oposição consentida, formulou um projeto de lei de anistia
que tinha este condão: devolver a liberdade a todos aqueles que os Estado dita-
torial criminalizou. Não obstante, o governo militar apresentou outro projeto de
lei, que previa uma anistia aos “crimes políticos e conexos”, ou seja, uma anistia
bilateral, porém restrita, excluindo os crimes violentos contra a pessoa, os ditos
“crimes de sangue” praticados pela resistência15. Por apertada maioria de 206
a 201 votos, a anistia proposta pelo gabinete do governo militar foi aprovada.
De um lado, o regime impôs à sociedade a anistia que lhe convinha: uma
anistia parcial e restrita, que excluía os ditos “crimes de sangue”, mas que
incluía dispositivos de sentido dúbio que seriam posteriormente interpretados
de forma estendida pelos tribunais militares responsáveis pela sua aplicação16,
segundo a legalidade autoritária vigente17.
222
Por outro lado, a sociedade civil obteve sua mais significativa vitória des- 18. Cf.: Torelly, Marcelo D. Justiça de Tran-
de a decretação do AI-5, ao alterar a correlação de forças sociais que obrigou sição e Estado Democrático de Direito. Co-
leção Fórum Justiça e Democracia, vol. 02.
o governo militar a aprovar alguma lei de anistia. A anistia, mesmo parcial, Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp. 184-198.
permitiu recompor muitos direitos políticos, a saber: a liberdade para a maior
parte dos presos políticos, o retorno ao país dos exilados, a readmissão de ser- 19. Por exemplo: Fico, Carlos. “A nego-
ciação parlamentar da anistia de 1979 e
vidores públicos expurgados para os seus postos de trabalho, a liberdade e o
o chamado ‘perdão aos torturadores’”, in:
direito à identidade para os que haviam sido compelidas à clandestinidade, etc. Revista Anistia Política e Justiça de Transi-
Estas primeiras medidas de liberdade, que são acompanhadas das primei- ção. Brasília: Ministério da Justiça, Jul./Dez.
ras medidas reparatórias, forjaram o ambiente para a retomada do processo 2010, pp. 318-332.
223
20. Diferentemente do caso espanhol, onde Em segundo lugar, não se pode olvidar que, ao falar-se de “oposição
uma anistia similar à brasileira é aprovada livre”, em 1979, falamos, na prática, de uma “oposição consentida”20. Os parti-
em um parlamento com possibilidade de
dos políticos não eram livres e muitos segmentos políticos não participaram do
oposição mais efetiva, integrado, inclusive,
pelo Partido Socialista. Para uma excelente “pacto”, pois somente depois da anistia é que ocorre o retorno à legalidade de
exposição crítica do caso espanhol, veja-se: algumas agremiações, bem como de importantes quadros políticos de oposição
Aguilar, Paloma. “A lei espanhola de anis-
que estavam exilados, banidos ou forçados a recolherem-se à clandestinidade.
tia de 1977 em perspectiva comparada: de
uma lei para a democracia a uma lei para Em terceiro lugar, não existia relação de igualdade ou equidade entre
impunidade”, in: Payne, Leigh; Abrão, Pau- os pretensos sujeitos do acordo. De um lado, os governantes e a força de
lo; Torelly, Marcelo D. (org.). A Anistia na suas armas; de outro, a sociedade civil criminalizada, presa: ou pelas grades
Era da Responsabilização – o Brasil em
perspectiva internacional e comparada.
de ferro ou pelas leis ilegítimas de exceção. Por último, quando se verbaliza
Brasília/Oxford: Ministério da Justiça/Uni- que a anistia para “os dois lados” seria uma condição para a reconciliação,
versidade de Oxford, 2011, pp. 394-427. revela-se, aí, a sua face autoritária, produzindo-se uma chantagem odiosa e
repressiva: a concessão de uma liberdade restrita somente seria admitida com
a condição da impunidade.
Os aspectos percebidos nesse suposto “acordo político”, no contexto da
aprovação da lei de anistia, definitivamente, não são suficientes para carregar
consigo as características e os efeitos éticos e normativos que caracterizam os
acordos firmados sob a liberdade e a democracia. Mesmo que os personagens
negociadores do “acordo” tenham considerado a anistia de 1979 como bilate-
ral, não cabe afirmar-se o mesmo quanto aos movimentos políticos articulados
pela sociedade civil.
Quanto ao déficit de juridicidade, a questão que se apresenta é a seguinte:
acordos políticos do passado autoritário podem ter o condão de afastar o exercício
de direitos humanos na democracia? Existe democracia sem direitos humanos?
Estes questionamentos não pretendem, de nenhuma maneira, deslegiti-
mar a luta política daqueles que, pelos meios institucionais disponíveis, atu-
aram pela aprovação da lei de anistia de 1979 em favor dos presos políticos,
mas sim, contextualizar o limite do possível à época. Procuram, portanto,
diferenciar o momento da contingência da transição de seu momento de jus-
tiça, no caso, de justiça de transição. Tais questionamentos contribuem para
elucidar os contornos claros deste eventual acordo: a atuação da oposição
consentida (restrita e limitada), que não pode ser traduzida historicamente
como um abrangente acordo social.
224
3. A Constituinte e a insurgência da “anistia como reparação”
225
21. O voto do Ministro Gilmar Mendes na Emenda Constitucional teve a intenção de “constitucionalizar” referido dispo-
ADPF 153 é uma importante leitura desta sitivo e reiterar a dimensão da anistia enquanto “impunidade e esquecimento”.
tese, a qual defende que a Emenda 26 vin-
Deve a Emenda Constitucional convocatória da Constituinte ser compre-
cula e limita o Poder Constituinte.
endida como uma limitação ao Poder Constituinte21? Uma espécie de limitação
22. A esse respeito, veja-se: Torelly, Marcelo apriorística à própria Constituição democrática22?
D. “A anistia e as limitações prévias à Cons-
O fato é que, independentemente de sua forma de chamamento, o Poder
tituição”, in: Constituição e Democracia
(UnB), Brasília, outubro de 2009, pp. 20-21. Constituinte brasileiro, materialmente, mostrou-se independente e não vincula-
do, como sói ser um espaço político desta natureza23. Como resultado, o processo
23. Neste sentido, veja-se: Paixão, Cris- constitucional consolidou-se como espaço de ampla discussão política e social,
tiano. “A Constituição em disputa: tran-
sição ou ruptura?”. In: Seelaender, Airton
levando ao abandono do texto-base produzido por uma comissão de notáveis,
(org.) História do Direito e construção do e pela redação de uma efetiva constituição democrática, marcada pelas lutas e
Estado. São Paulo: Quartier Latin, no prelo. contradições que todo processo político crítico, como o é a insurgência consti-
tucional, possui24. O debate da anistia não escapou ao alcance desse processo.
24. A esse respeito: Barbosa, Leonardo Au-
gusto Andrade. Mudança constitucional, O que ocorre é que a nova Constituição resultante da Assembleia Consti-
autoritarismo e democracia no Brasil pós- tuinte não previu, em seus dispositivos, os mesmo termos da anistia ambígua e
1964. Universidade de Brasília, Faculdade
bilateral, a anistia enquanto impunidade e esquecimento. Ao contrário, a Cons-
de Direito: Tese de Doutoramento, 2009.
tituição da República de 1988, faz referência, em seu Ato de Disposições Cons-
titucionais Transitórias, a uma anistia para os que foram atingidos por atos de
exceção, prevendo, inclusive, mais um conjunto de novos direitos reparatórios.
Portanto, a anistia constitucional dirigiu-se aos perseguidos políticos e
não aos perseguidores, omitindo-se quanto à anistia a crimes políticos e co-
nexos. A propósito, essa mesma Constituição democrática, de modo coerente,
declarou no rol dos direitos e garantias individuais (art. 5º) que ninguém será
submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (inc. III); bem
como que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura (inc. XLIII).
Ao que tudo indica, a Constituição corroborou o sentido da anistia en-
quanto liberdade, somando-a a uma dimensão de reparação. E determinou que
todos aqueles cidadãos atingidos por atos de exceção deveriam ser reparados
pelo Estado democrático.
Desta feita, o conceito de anistia defendido pela sociedade civil movi-
mentou-se constitucionalmente para o sentido de uma anistia enquanto liber-
dade e reparação, antagônico com o sentido de anistia enquanto impunidade
e esquecimento imposto pelo regime, seus cúmplices e seus intérpretes legais.
226
Temos, portanto, que, dentre os quatro pilares da justiça de transição, 25. Veja-se: ONU. “O Estado de Direito e a
quais sejam: verdade e memória; reformas das instituições, justiça e repara- Justiça de Transição em sociedades em con-
flito ou pós-conflito”. S/2004/626. Tradu-
ções25; este último foi efetivamente constitucionalizado em 1988. Essa con- ção disponível em: Revista Anistia Política
quista constitucional só foi possível a partir da mobilização na Constituinte, e Justiça de Transição. Brasília: Ministério
especialmente exercida pelos sindicatos e associações de servidores públicos da Justiça, Jan/Jun. 2009, pp. 320-350.
A ambiguidade da anistia de 1979, somada ao discurso social construído 28. Para um maior desenvolvimento da
ideia de “estado de negação”, veja-se: Co-
ao longo do Estado de Exceção estrutura, desta feita, os pilares da transição
hen, Stanley. Estado de Negación. Buenos
controlada, em três âmbitos distintos: politicamente, a negação da existência Aires: UBA/British Council, 2005.
de vítimas e a justificação da violência por meio da tese dos dois “demônios”,
que implica na inexistência de vítimas26; culturalmente, pela afirmação do es-
quecimento como melhor forma de tratamento do passado27, e; juridicamente,
pela garantia da impunidade por meio da lei de anistia.
Se, num primeiro momento, as forças sociais não foram capazes de su-
perar essa estratégia, o desenvolvimento do programa de reparações às víti-
mas no Brasil, gradualmente, significou uma primeira ruptura. O seu resulta-
do concreto é o de que um dos já citados pilares da transição controlada - a
pretensão ditatorial ao esquecimento -, é rompido. Afinal, somente foi e é
possível reparar aquilo que é objeto de conhecimento e consequente exercício
da memória. Assim, um primeiro resultado imediato do programa de repara-
ções é, por fim, um “estado de negação da violência de Estado” experimen-
tado pelo país28.
No Brasil insta constar duas comissões de reparação: a Comissão Espe-
cial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que funcionou entre 1995 e 2007,
e a Comissão de Anistia, atuante desde 2001 até os dias atuais. Para promover
reparação, o Estado, necessariamente, reconhece a existência de vítimas e suas
227
29. Um amplo panorama deste processo é narrativas. E, mais ainda, reconhece as graves violações contra os direitos
apresentado no nosso já referido texto “O humanos perpetradas contra a resistência à ditadura.
programa de reparações como eixo estru-
De forma menos imediata, as comissões de reparação passaram a produ-
turante da justiça de transição no Brasil”.
zir verdade e memória, tornando-se mecanismos justransicionais transversais.
Ao desfazer as narrativas oficiais sobre os crimes de Estado e reconhecer as
narrativas das vítimas, as comissões efetivavam o direito à verdade, diante das
violações de direitos humanos, mesmo antes de tal direito restar positivado no
ordenamento jurídico doméstico pelo disposto na lei de criação da Comissão
Nacional da Verdade. O processo de reparação resulta em um inédito acervo
de testemunhos e de registros de violência que compõem os arquivos das duas
Comissões de reparação29.
Mais ainda, as comissões iniciaram a implantação de projetos de resgate
da memória histórica das vítimas e passaram a promover diversas ações de
educação e direitos humanos em todo o Brasil. A esse relevante quadrante
histórico, de mais de 20 anos de conquista e afirmação da reparação e me-
mória contra o esquecimento; de enfrentamento ao negacionismo dos agentes
de repressão; de visibilidade às vítimas e seus relatos de violência sofrida; de
reconstrução de episódios históricos que vigiam sob versões oficiais deturpa-
doras da verdade factual; de construção crescente de um importante consenso
social sobre a existência e a gravidade dessas violações; e do surgimento de
novas mobilizações em torno da agenda da Justiça de Transição ainda pen-
dente, damos o nome de segunda fase da luta pela anistia.
Ao desenvolver ao máximo o processo de reparações, transversalmente
produzindo memória e verdade, a segunda fase da luta pela anistia caracteriza,
portanto, um momento em que a anistia é lida como liberdade e reparação. Nes-
ta fase, o conceito de anistia passou a ser debatido de forma mais direta e aberta.
Em 2007, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
lançou o livro relatório Direito à Memória e à Verdade, traçando, de forma sis-
tematizada, seus 12 anos de atuação e quase 400 casos reconhecidos de mortes
e desaparecidos praticados pela ditadura.
No mesmo ano, a Comissão de Anistia, empreende uma particular virada
hermenêutica. E, em deliberada disputa pela significação desse mecanismo
histórico de clemência, institui atos públicos de pedidos de desculpas oficiais,
em nome do Estado, a cada um dos ex-perseguidos e afetados pela violên-
228
cia do Estado de Exceção, por meio das chamadas Caravanas da Anistia30. 30. Vide: Abrão, Paulo; Carlet, Flávia et alli.
Se o conceito de anistia significava um gesto político do Estado direcionado a “As Caravanas da Anistia: um mecanismo
privilegiado da Justiça de Transição Bra-
perdoar os cidadãos enquadrados nos dispositivos legais da Doutrina de Segu-
sileira”. In: Revista Anistia Política e Justiça
rança Nacional, com a medida, a anistia ressignificada passou a constituir-se de Transição. Brasília: Ministério da Justiça.
em ato no qual o cidadão violado é quem perdoa o Estado pelos erros come- N.º 02. Jul./Dez. 2009, seção especial,
pp.110-149.
tidos contra ele no passado. A declaração de anistiado político torna-se um
ato oficial de reconhecimento do direito de resistência da sociedade contra o 31. Neste mesmo sentido, veja-se: Bag-
autoritarismo e a opressão. Se o significado da anistia, para alguns, reverbera- gio, Roberta. “Justiça de Transição como
va o esquecimento ou amnésia, agora ele passa, pela ação estatal de reconhe- reconhecimento: limites e possibilidades do
processo brasileiro”. In: Santos, Boaventura;
cimento, a revelar o protagonismo da reparação e da memória31. Abrão, Paulo; MacDowell, Cecília; Torelly,
No mesmo sentido dessa ressignificação institucional e política da ideia Marcelo D. (org.). Repressão e Memória
de anistia no Brasil, e, considerando iniciativas do Ministério Público Federal Política no Contexto Ibero-Brasileiro.
Brasília/Coimbra: Ministério da Justiça/Uni-
em ajuizar ações civis contra agentes torturadores da ditadura militar, a Co-
versidade de Coimbra, 2010, pp. 260-285.
missão de Anistia realizou uma Audiência Pública no Ministério da Justiça. A
iniciativa foi apoiada por mais de 30 entidades nacionais de direitos humanos, 32. Diante das reivindicações sociais e
das obrigações assumidas pelo Brasil em
com o objetivo de questionar o alcance e a interpretação da lei de anistia de
compromissos internacionais, a Comissão
1979 como regra de impunidade para os crimes contra a humanidade32. de Anistia do Ministério da Justiça pro-
O tema, que era considerado um tabu político, foi recolocado na pauta moveu a Audiência Pública “Limites e
nacional. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 153, inter- Possibilidades para a Responsabilização
Jurídica dos Agentes Violadores de Di-
posta pela Ordem dos Advogados do Brasil junto ao Supremo Tribunal Federal
reitos Humanos durante o Estado de Ex-
é um dos produtos mais imediatos desta mobilização interinstitucional. ceção no Brasil”, ocorrida em 31 de julho
Em 2009, com a ampliação do rol de atores sociais atuantes na pauta, de 2008. Foi a primeira vez que o Estado
brasileiro tratou oficialmente do tema
a sociedade civil mobilizada aprova junto à Conferência Nacional de Direitos
após quase trinta anos da lei de anis-
Humanos a proposta de uma “Comissão da Verdade e Justiça”. A pauta seria tia. A audiência pública promovida pelo
incorporada ao III Plano Nacional de Direitos Humanos33, e coadunaria, dois poder executivo, com a devida represen-
anos depois, na criação da Comissão Nacional da Verdade. tação de posições jurídicas e políticas di-
vergentes, rompeu com uma espécie de
Em 2010, os familiares dos mortos e desaparecidos no episódio da Guerrilha mito em torno do “tema proibido” e teve
do Araguaia, com apoio do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o condão de unir forças que se manifes-
conquistam uma sentença junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A tavam de modo disperso, articulando as
iniciativas da Ordem dos Advogados do
sentença declara o dever do Estado brasileiro de suspender todos os obstáculos
Brasil, do Ministério Público Federal de
jurídicos impeditivos do direito à proteção judicial das vítimas, inclusive na esfera São Paulo, das diversas entidades civis.
penal. E, ainda, de declarar a lei de anistia brasileira como uma clara autoanistia, Dentre estas, a Associação dos Juízes pela
incompatível com a jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Huma- Democracia, o Centro Internacional para
a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL),
nos, especialmente em relação às graves violações contra os direitos humanos34.
229
Continuação da nota 32 Como se percebe, na segunda fase da luta pela anistia, desde o trabalho
a Associação Nacional Democrática Na-
das comissões de reparação e das ações políticas de promoção da memória e
cionalista de Militares (ADNAM). E, ainda,
fomentou a re-articulação de iniciativas da verdade, resgata-se e amplia-se o leque de atores sociais mobilizados para
nacionais pró-anistia. A audiência públi- a agenda da justiça de transição34. Mobilizam-se os familiares dos mortos e
ca resultou em um questionamento junto desaparecidos, os movimentos dos presos e perseguidos políticos, o movimen-
ao Supremo Tribunal Federal, por meio
to dos trabalhadores civis demitidos em lutas paredistas, o movimento de ou-
de uma Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF n.º 153) pelo tros segmentos civis e militares sociais atingidos por atos de exceção. Enfim,
Conselho Federal da OAB. Ressalte-se que mobiliza-se toda uma agenda de entidades de direitos humanos que se volta à
a controvérsia jurídica debatida e leva-
temática com grande vitalidade.
da ao STF pela Ordem dos Advogados do
Brasil advinha, inclusive, do trabalho do Este momento de conscientização social sobre o passado gerou a corro-
Ministério Público Federal de São Paulo, são dos pilares do negacionismo e do esquecimento, restando funcional apenas
ao ajuizar ações civis públicas em favor o pilar da impunidade, assegurada nos dias de hoje pela persistência da leitura
da responsabilização jurídica dos agentes
torturadores do DOI-CODI, além das ini-
dada à anistia de 1979 pelos tribunais superiores brasileiros.
ciativas judiciais interpostas por familiares
de mortos e desaparecidos. A exemplo do
pioneirismo da família do jornalista Vladi-
5. Impunidades e Justiça de Transição
mir Herzog que, ainda em 1978, saiu vito-
riosa de uma ação judicial que declarou a
responsabilidade do Estado por sua morte A impunidade dos crimes de Estado perpetrados pela ditadura civil-militar
e afastou a versão oficial e inverídica de abrange duas dimensões. Uma, relativa ao conhecimento histórico das graves
seu suicídio.
violações aos direitos humanos e suas autorias individuais e institucionais. Ou-
33. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/ tra, à possibilidade jurídica de aplicação de sanções penais e civis a estes autores.
sedh/pndh3/pndh3.pdf Sobre o primeiro aspecto, a lei que institui a Comissão da Verdade pode
representar um avanço. Enquanto que as Comissões de reparação, por com-
34. Sobre a mobilização junto à Corte, ve-
ja-se: Kristicevic, Viviana; Affonso, Beatriz.
petência legal, apenas puderam reconhecer fatos e assumir a responsabilidade
“A dívida histórica e o caso Guerrilha do abstrata do Estado brasileiro pelas violações ocorridas36., a Comissão da Verda-
Araguaia na Corte Interamericana de Di- de tem poderes para sistematizar, pelo menos, as graves violações aos direitos
reitos Humanos impulsionando o direito
humanos (torturas sistemáticas, desaparecimentos forçados, execuções sumá-
à verdade e à justiça no Brasil”. In: Payen,
Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. rias, genocídios e massacres) e identificar sua autoria individual e institucional.
(org.). A Anistia na Era da Responsabi- Isso significa que a Comissão da Verdade tem poderes para apurar todas
lização – o Brasil em perspectiva inter- as violações ocorridas, verificando um certo grau de responsabilidade, uma
nacional e comparada. Brasília/Oxford:
Ministério da Justiça/Universidade de Ox-
responsabilidade individual em sentido amplo. Não uma responsabilidade es-
ford, 2011, pp. 344-390. tritamente jurídica ou judicial, mas sim, no escopo do exercício do direito à
verdade que é pertencente às vítimas e a toda a sociedade. O próprio Supremo
Tribunal Federal brasileiro negou o direito à proteção judicial das vítimas,
230
impedindo a investigação criminal dos fatos cobertos pela lei de anistia, mas 37. A esse respeito, veja-se: CELS/ICTJ. Ha-
afirmou o direito da sociedade ter acesso à verdade. cer Justicia. Buenos Aires: Siclo XXI, 2011.
E, neste aspecto, o Brasil diferenciou-se da tradição latinoamericana de 38. Sobre o caso chileno, veja-se: Collins,
associar verdade e justiça. “No hay verdad sin justicia”, expressa o Estado Cath et alli. “Verdad, justicia y memoria:
argentino que, em 2005, por meio de sua suprema corte, declarou a lei local las violaciones de derechos humanos del
pasado”. In: Informe Anual sobre Derechos
de anistia inconstitucional. Com isso, foi possível abrir processos contra cerca
Humanos en Chile 2011. Santiago: Univer-
de mil agentes da ditadura, sendo que 250 já foram condenados por crimes sidad Diego Portales, 2011, pp 19-53.
graves, entre outros, o próprio ex-ditador Jorge Videla37.
O Chile, mesmo não revogando sua lei de anistia, reconheceu e cumpriu 39. Veja-se: Lessa, Francesca. “Barriers to
justice. The Ley de Caducidad and Impuni-
a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para abrir inves- ty in Uruguay”. In: Lessa, Francesca; Payne,
tigações e condenar casos de graves violações aos direitos humanos, os quais, Leigh A. (org.). Amensty in the Age of Hu-
como já dito, escapam ao alcance das leis de anistia38. O Uruguai condenou man Rights Accountability – comparative
and international perspectives. Nova Ior-
Juan Bordaberry, seu último ditador, por atentado contra a democracia e por ser
que: Cambridge University Press, 2012, pp.
responsável por crimes de desaparecimento forçado. Isto, além de incentivar a 123-151, bem como Skaar, Elin. “Impuni-
realização de um intenso debate sobre a promoção de justiça, ante a outras vio- dade versus responsabilidade no Uruguai:
o papel da ley de caducidad”. In: Payne,
lações39. O Peru indiciou e sentenciou Alberto Fujimori40. A Guatemala abriu dois
Leigh; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. A
julgamentos por acusações de genocídio contra o ex-ditador, Efraín Ríos Montt41. Anistia na Era da Responsabilização. Bra-
São medidas que expressam, para as sociedades destes países, que a lei é sília/Oxford: Ministério da Justiça/Universi-
igual para todos, inclusive para aqueles que um dia estiveram em posição de dade de Oxford, 2011, pp. 428-469.
231
42. Schwartz, Herman. The struggle for
Contextualidade, por sua vez, implica que os mecanismos são aplicados
constitutional justice in post-communist
Europe. Chicago: Chicago University Press, conforme as características históricas, políticas e de cada transição local. Por
2002. exemplo, as ditaduras na América Latina ocorreram no contexto da Guerra
Fria, estimuladas por uma das potências do mundo bipolar contra a expansão
do poder da outra. No caso brasileiro, lutava-se contra a expansão do pen-
samento socialista e das idéias de esquerda. As ditaduras do Leste Europeu,
por sua vez, são contextualmente diferentes das do Cone Sul. As eventuais
democracias que insurjam do processo da Primavera Árabe serão, igualmente,
distintas. Esses padrões contextuais devem ser levados em conta tanto para a
integração de políticas interestatais, quando para sua diferenciação.
Para a América Latina, que possui défices históricos na consolidação do
Estado de Direito, é particularmente caro que o sistema de Justiça participe do
processo de democratização da sociedade e das instituições. E, assim, supere um
conjunto de jurisprudências autoritárias para afirmar os direitos humanos vi-
sando vocacionar-se para a superação de uma concepção institucional de con-
trole social repressivo rumo a uma concepção de segurança e justiça protetiva
da emancipação social. Por sua vez, no Leste Europeu, o deságio residia na pró-
pria construção de sistemas de justiça vinculados ao ideário constitucionalista42.
Se estas diferenças contextuais interregiões são relevantes, as distinções
intrarregionais também merecem atenção. É preciso registrar que a cooperação
entre as justiças dos países sul-americanos, por exemplo, tem sido vital para a
promoção de justiça. A posição do Brasil sobre justiça de transição tem, assim,
reflexos em nível regional, vez que perpetradores de outros países latinoame-
ricanos estão em território nacional e suas extradições dependem da compre-
ensão jurídica que o Brasil assume sobre a sua própria anistia.
232
sejam superados os obstáculos jurídicos para a responsabilização judicial dos 43. Um exemplo pode ser encontrado em:
agentes perpetrados de crimes contra a humanidade . 43 Mourão, Alexandre et alli. “Os aparecidos
políticos: arte ativista e justiça de transi-
Se, na primeira fase da luta pela anistia, os movimentos sociais deman- ção”. Em: Revista Anistia Política e Justiça
davam liberdade, e, na segunda, reparação e memória, estes novos movimen- de Transição. Brasília: Ministério da Justiça,
tos sociais avançam ainda mais a agenda da transição, inaugurando a terceira n.º 06, jul./dez. 2011, no prelo.
233
46. Huntiginton, por exemplo, define os A decisão do Supremo Tribunal Federal baseou-se, em síntese, em três
dois casos como emblemáticos do modelo argumentos: 1º) Por ser bilateral, a lei de anistia brasileira não se trataria de uma
de “transição por transformação”. Cf.: Hun-
autoanistia, como outras da região; 2º) Contra a anistia brasileira não se aplicaria
tington, Samuel. The third wave. Norman:
Oklahoma University Press, 1993. a tipologia de crimes contra a humanidade; e 3º) Tratando-se de uma lei de re-
conciliação, somente o Poder Legislativo poderia modificá-la. Coincidentemente,
47. Como recentemente afirmado pela ti-
essas foram as mesmas fundamentações recentemente utilizadas no julgamento
tular da Comissão Nacional da Verdade,
Rosa Cardoso. Cf.: “Revisão da Anistia de- do magistrado espanhol Baltazar Garzón, o que permite corroborar a por muitos
pende da opinião pública”. In: O Estado de alegada similitude entre o processo transicional brasileiro e espanhol46.
S. Paulo. Disponível em: http://www.esta- Particularmente temos leitura crítica a esta decisão pelos seguintes mo-
dao.com.br/noticias/impresso,revisao-da-
-anistia-depende-de-opiniao-publica-diz-
tivos: (I) ela reconhece, no regime iniciado após o golpe de Estado em 1964, os
rosa-cardoso-cunha,873966,0.htm. elementos essenciais de um Estado de Direito; (II) considera legítimo o pacto
político contido na Lei de Anistia que, mesmo sendo medida política, teria o
condão de subtrair um conjunto de atividades delitivas da esfera de atuação
do poder judiciário; (III) consequentemente, como efeito prático, negou o di-
reito à proteção judicial aos cidadãos violados em seus direitos fundamentais
pelo regime militar, por meio de exercício de controle de constitucionalidade;
(IV) reconhece que a lei de anistia e a emenda Constitucional convocatória da
Constituinte são as bases do Estado Democrático de Direito no Brasil; (V) ignora
que anistiar os “dois lados” em um mesmo ato não anula o fato de que o regime
estaria anistiando a si próprio; (VI) não leva em conta os tratados e convenções
internacionais em matéria de direitos humanos, especialmente a jurisprudência
da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já havia declarado como in-
válidas as autoanistias e a anistia a graves violações contra os direitos humanos;
(VII) omite-se quanto ao tratamento consoante os precedentes do próprio tribu-
nal constitucional pátrio, em sede da imprescritibilidade dos crimes de desapa-
recimento forçado, forjados nos casos de extradição de repressores argentinos.
Assim, o fato é que a decisão do STF tornou a lei de 1979, em sua
dimensão de “impunidade”, formalmente válida no ordenamento jurídico de-
mocrático brasileiro, estabelecendo uma continuidade direta e objetiva entre o
sistema jurídico da ditadura e o da democracia.
Evidentemente, é muito cedo para se saber em que medida esta terceira
fase da luta pela anistia no Brasil tem – ou terá – a força política necessária
para alterar este estado das artes. Mas o certo é que, como nos demais países
da região, somente a atuação social poderá ensejar tal alteração47.
234
Essa possibilidade de nova ressignificação do conceito de anistia, no 48. Cf.: “Verdade e Justiça em perspectiva
Brasil, rumo à Verdade e a Justiça, constitui-se em momento de reflexão sobre comparada”. José Zalaquett responde Mar-
celo D. Torelly. In: Revista Anistia Política
as conexões entre a política e o direito e envolvem um conjunto de aspectos e Justiça de Transição. Brasília: Ministério
muito interessantes: da Justiça, n.º 04, Jul./Dez. 2010, pp. 12-29.
235
49. Justiça Federal. Seção do Pará. Sub- A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Guer-
seção Marabá. 2ª Vara. Autos n.º 4334- rilha do Araguaia” também foi elemento determinante para a alteração da
29.2012.04.01.3901.
posição institucional do Ministério Público Federal que, após defender a anis-
tia enquanto impunidade no julgamento da ADPF n.º 153, passa, agora, a
buscar alternativas para contornar tal interpretação. E, a partir daí, processar,
pelo menos, as mais graves violações praticadas contra os direitos humanos,
incorporando, em sua atuação institucional, importantes aportes da doutri-
na do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Propiciando, então, um
deslocamento gradual do modelo de impunidade espanhol para o modelo de
responsabilidade parcial chileno.
Finalmente, tivemos, recentemente, a primeira denúncia criminal aceita
pela Justiça Federal do Brasil, no estado do Pará49.
Aos somarem-se ao contexto dos novos atores sociais, atualmente mo-
bilizadas, essas mudanças institucionais insurgem-se justamente contra o úl-
timo sustentáculo da estratégica de saída dos agentes do regime militar de
1964: a perpetuação da impunidade. Embora ainda muito recente, esse novo
cenário que se desenha é o mais favorável para a Justiça de Transição no
Brasil desde a redemocratização.
236
-se, assim, o enorme potencial político que o conceito de anistia tem em nossa
transição para a expansão das liberdades públicas.
Segundo, a tese que considera que o processo de reparação às vítimas
foi o eixo estruturante da justiça de transição no Brasil. Mesmo tratando-se
de um processo tardio, quando comparado com o dos países vizinhos, temos
que seu fluxo de seguimento nunca cessou. E desenvolveu-se, gradualmente,
com o somatório de forças ocorrendo justamente na medida que o processo
de reparação corroia dois dos pilares de sustentação da estratégia de saída do
regime (a negação da existência de vítimas e a imposição do esquecimento).
Engendrando, inclusive, o atual questionamento do pilar da impunidade.
Terceiro, a luta pela anistia atravessa gerações e consolida-se como mar-
co de formação de nossa identidade democrática. É por meio desta luta que
a sociedade se mobiliza para mudar um conjunto de alegados elementos de
conformação de nossa identidade nacional. Como exemplo, temos a premissa
do “homem cordial”, avesso à ruptura, que é apropriada e distorcida pela estra-
tégia de saída do regime por meio de um “acordo político”. É esta luta que nos
leva a refutar a ilação de que somos um povo pacífico, somente porque temos
um número de vítimas fatais menor em nossa ditadura que nas de alguns dos
países vizinhos, o que nos leva à falácia da “ditabranda”. E, sobretudo, a ideia
de que é possível esquecer o passado e olhar para o futuro como se o mundo
se iniciasse neste mesmo instante.
Quarto, o processo transicional brasileiro nos deixa claro que somen-
te um amplo trabalho político e jurídico é capaz de superar o legado e os
reflexos das culturas autoritárias advindas dos regimes de exceção. E que é
função do Direito das democracias do presente romper com as pretensões das
transições controladas.
Quinto, o legado de direitos que a Justiça de Transição vem consoli-
dando, no Brasil e no mundo, é um patrimônio comum da humanidade, que
deve ser cultivado e universalizado. No plano doméstico, o enfrentamento ao
autoritarismo deve ser estendido a outras causas e a outros períodos. O direito
à verdade e ao acesso à informação é, sem dúvida, um exemplo por excelência
do que esta conclusão pretende apontar. Todos nós temos direito a um Estado
transparente e que preste contas a população sobre seus atos. Esse é um caso
de legado transicional que deve ser universalizado. No plano internacional,
237
resta clara a consolidação de uma norma global de responsabilização indivi-
dual. Seja no plano civil, seja no plano criminal, nenhuma pessoa pode ser
considerada inalcançável pelo devido processo legal, nem ser excluída da res-
ponsabilidade por seus atos, principalmente quando estes implicam em graves
violações contra os direitos humanos.
As experiências de justiça de transição nos demonstram que a palavra
“justiça” não existe no singular, vez que pode ser praticada de distintas manei-
ras. Não obstante, parece-nos claro que a noção de crimes contra a humanida-
de – impassíveis de anistia e imprescritíveis –, ajuda a consolidar um padrão
mínimo de justiça efetivamente capaz de promover a proteção dos direitos
humanos no âmbito global.
238
Paulo Velten
Doutorando em Direito na UNESA. Coordenador do Colegiado do Curso de
Direito da UFES. Coordenador do Curso de Aperfeiçoamento do Curso de Edu-
cação em Direitos Humanos.
14
O MODUS OPERANDI DA DITADURA MILITAR E A
SEGURANÇA NACIONAL
Paulo Velten
O golpe militar de 1º de abril de 1964, que este ano completa 50 anos, deve
ser analisado a partir de vários eventos simultâneos em todo mundo, dentre
os quais, deve-se ressaltar polarização das forças políticas entre os Estados
Unidos da América e União Soviética, a assim chamada “guerra fria” acabou
por se materializar através do tratado de Yalta, que configurou um bloco ca-
pitalista que, capitaneado pelos EUA, praticava a política econômica liberal
juntamente com Japão e Europa Ocidental. Em oposição, o bloco comunista
que liderado pela União Soviética dominou a Europa Oriental.
Quanto à América Latina, como citado por Valter Pires Pereira, a “adesão
ao bloco capitalista foi praticamente a única saída” (PEREIRA, 2005, p.30)
apesar das tentativas de forças políticas de países sul americanos de desven-
cilharem-se desta submissão, como nos governos de Velasco Alvarado (1968-
1975) no Peru, Salvador Allende (1970-1973) no Chile e Fidel Castro em Cuba.
Neste macro contexto, forjado no Nacionalismo Americano, iniciou-se
um programa sistemático de militarização do poder político na América Lati-
na. Baseada numa retórica alarmista e apocalíptica: o liberalismo “persuadiu
milhões de americanos a interpretar seu mundo em termos insidiosos levando-
-os a estabelecer políticas domésticas e globais que tentavam conter a ameaça
comunista”. (PEREIRA, 2005, p.24).
Baseada neste contexto histórico, o presente artigo pretende abordar o
modo de agir violador de direitos humanos que caracterizou o regime político
instituído a partir do golpe de estado de 01 de abril de 1964 e que perdurou até os
idos de 1986, cujos métodos produziram efeitos que se fazem sentir ainda hoje.
Este modus operandi é marcado pela busca da legitimação dos atos
ditatoriais através de processos judiciais. Esta prática foi possível graças à
transformação e introdução do conceito de violação da segurança nacional no
240
1. HABEAS CORPUS N. 26.155 com acórdão
ordenamento jurídico. Outrora relegado às ameaças externas, passou então a
redigido nos seguintes termos: Atendendo
ser atribuído a cidadãos opositores ao regime vigente, revelando assim a exis- a que a mesma paciente é estrangeira e a
tência de um razoável consenso entre os militares e o judiciário. sua permanência no país compromete a se-
Estigmatizado, o Governo João Goulart pretendia reformas de base (agrária e gurança nacional, conforme se depreende
das informações prestadas pelo Exmo. Sr.
de educação) que passaram a ser vistas como políticas comunistas. Dá-se o golpe,
Ministro da Justiça em casos tais não há
que através do Ato Institucional Número 1 se autodenominou revolução vitoriosa. como invocar a garantia constitucional do
O golpe preservou o funcionamento do sistema judicial no Brasil, tanto habeas corpus, à vista do disposto no art.
2 do decreto n. 702, de 21 de março deste
que a justiça eleitoral continuou a funcionar normalmente durante a ditadura,
ano: Acordam por maioria, não tomar co-
tanto na eleição indireta do primeiro presidente, referendado no cargo após nhecimento do pedido.
dois dias de campanha, como nas eleições de governadores que se sucederam
durante a ditadura. Evidencia-se assim, a disposição do judiciário de aplicar
a legislação produzida durante o regime militar, comportamento que perdura
mesmo após o fim do referido regime. Senão vejamos:
241
Após o golpe, os governos militares que se sucederam mantiveram-se
atentos à legislação vigente e inovaram com a edição de novas leis, bem como
com a edição de decretos-leis e atos institucionais.
Quando da deposição do governo João Goulart, vigorava a Lei 1.802/53,
que regulava especificamente da defesa nacional, a proteção dos limites territo-
riais; no ambiente interno de espionagem. Em 13 de março de 1967, foi editado o
Decreto Lei 314 que alterou a citada lei e passou a responsabilizar o cidadão pela
segurança nacional, além de acrescentar novos tipos penais. Para além, em 20 de
março de 1969, o Decreto Lei 510 criou novas modalidades de prisão e a incomu-
nicabilidade do preso, e, em 21 de outubro de 1969, com os Decretos Lei 1001 e
1002, instituíram-se o novo código penal e de processo penal que, respectivamen-
te, entre outras coisas, inovava ao instituir a prisão perpétua e a pena de morte.
Estas manipulações da lei durante o período ditatorial forjaram situações
que produziram conseqüências desastrosas para a Justiça brasileira, conforme
se pode observar na pesquisa “Brasil Nunca Mais”, dentre as quais deve-se
ressaltar: - a denúncia e julgamento por leis excepcionais de mais de sete mil
cidadãos brasileiros por discordarem do regime; - a modificação da competên-
cia justiça comum para a justiça militar para julgamento de crimes cometidos
por cidadãos por ato civis; - atribuição ao cidadão e não mais ao Estado a
responsabilidade pela segurança nacional; – de provocar verdadeira confusão
entre a honra do mandatário e a honra da nação ao tipificar crime de crítica à
autoridade constituída; - ao punir como atos subversivos e contra a segurança
nacional atividades legais; - estabelecer a prisão preventiva por iniciativa do
encarregado do inquérito; - a restrição do número de testemunhas de defesa
por acusado; - chegando ao absurdo de criar a possibilidade de prisão perpétua
e pena de morte, e, por derradeiro, a suspensão do habeas corpus.
Dessa forma, a Segurança Nacional passou de acessório à própria razão
de ser do golpe; a segurança de um sistema político, saindo do campo teórico
e passando a ser a régua de medir a legalidade; no dizer de Bicudo “tornou-se
uma espécie de palavra chave, um conceito inserido na linguagem comum a tal
ponto que ninguém mais indagava o seu sentido.”
Finalmente, em 17 de dezembro de 1978, foi promulgada a Lei 6.620.
A assim chamada nova Lei de Segurança Nacional substituía os decretos leis
citados anteriormente com a pretensão de substituir os instrumentos excep-
242
2. Art. 5º - Caberá, privativamente, ao Presi-
cionais que se fizeram indispensáveis para manter o regime militar, e ainda,
dente da República a iniciativa dos projetos
paralelamente, mas no mesmo caminho foi promulgada também a Emenda de lei que criem ou aumentem a despesa
Constitucional Nº.11, de 13 de outubro de 1978, que tinha por finalidade a cas- pública; não serão admitidas, a esses pro-
sação, em breve, do regime de leis excepcionais. A nova lei abrandava as penas jetos, em qualquer das Casas do Congresso
Nacional, emendas que aumentem a despe-
anteriores, bem como suprimia a pena de prisão perpétua e pena de morte.
sa proposta pelo Presidente da República.
Portanto a análise da transmutação do referido conceito é o ponto ne-
vrálgico para entender o modus operandi do regime militar, que se constituiu 3. Art 7º - Ficam suspensas, por 6 (seis) me-
ses, as garantias constitucionais ou legais
em verdadeiro indutor do comportamento doutrinário das gerações seguintes.
de vitaliciedade e estabilidade.
§ 1º - Mediante investigação sumária, no
prazo fixado neste artigo, os titulares des-
3. Medidas Arbitrárias sas garantias poderão ser demitidos ou
dispensados, ou ainda, com vencimentos
e as vantagens proporcionais ao tempo de
Outros procedimentos característicos de governos totalitários também foram serviço, postos em disponibilidade, aposen-
impostos pelo governo militar, vejamos: tados, transferidos para a reserva ou refor-
mados, mediante atos do Comando Supre-
- Com o golpe e a consequente limitação dos poderes do congresso, as
mo da Revolução até a posse do Presidente
leis, principalmente as orçamentárias, passaram a ser elaboradas pelo Presiden- da República e, depois da sua posse, por
te, que, com decretos leis de vigência imediata, tornou-se “dono” do orçamento decreto presidencial ou, em se tratando de
público, conforme preconizado no art.5º 2 do Ato Institucional Nº1. Essa me- servidores estaduais, por decreto do gover-
no do Estado, desde que tenham tentado
dida, que para muitos é de governança, demonstra o caráter autoritário de um contra a segurança do País, o regime de-
regime, uma vez que um país será tão democrático quanto for seu orçamento. mocrático e a probidade da administração
- Ainda no AI-1, em seu artigo 7º 3, cassou os direitos políticos dos opo- pública, sem prejuízo das sanções penais a
que estejam sujeitos.
sitores e até mesmo de aliados. Estabeleceu a suspensão das garantias cons-
titucionais ou legais de vitaliciedade e da estabilidade como forma de, numa 4. Os golpistas na exposição de motivos
penada, minar eventuais resistências do judiciário e dos servidores públicos, do AI-1 afirmavam que tomavam medidas
urgentes no sentido de drenar o bolsão co-
uma vez que, poderiam ser demitidos ou aposentados por investigações sumá-
munista infiltrado na cúpula do governo e
rias perpetradas pelo comando revolucionário supremo, no caso de decisões nas suas dependências administrativas em
contrárias à segurança do país; ou ainda, e por contraditório que possa pare- que pretenderia bolchevizar o país, em cla-
cer, por decisões contra o regime democrático4 ou a probidade administrativa. ra alusão à ditadura comunista.
Ressalte-se que o dispositivo foi, de fato, muito utilizado, tendo em vista que,
já sob a égide do AI-5, cassou aos Ministros do Supremo Tribunal Federal Her-
mes Lima, Vitor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, além de quase quinhentos
deputados e dois mil funcionários públicos, expulsando ainda de suas cátedras
sessenta e seis professores universitários, entre eles Caio Prado Jr, Florestan
Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, bem como inúmeros estudantes.
243
- Introduziu dispositivo que limitou o controle jurisdicional dos atos
derivados do AI-1 ao exame de formalidades extrínsecas, inovação que veda-
va a apreciação da conveniência e oportunidade dos fatos que o motivaram;
excluindo ainda a possibilidade de apreciação judicial do próprio ato, preceito
replicado até os dias atuais no que diz respeito a ações contra a fazenda pú-
blica, notadamente no que diz respeito às limitações atuais quanto ao deferi-
mento de liminares contra o Estado.
- No campo Universitário, a influência também foi grande, conforme
Regina Celi Frechiani Bitte “criou-se no sistema universitário uma visão tec-
nicista da educação, própria dos militares que se encontravam no poder, um
sistema baseado no modelo administrativo das grandes empresas e vinculando
a educação ao progresso técnico e científico, contrário a autonomia universi-
tária” (BITTE, 2006, p.44), idéia esta tida como contrária à falta de disciplina e
autoridade, prejudicial à ordem e à democracia.
- Com o ato institucional No. 5 e a suspensão das garantias constitucio-
nais, notadamente do habeas corpus, consolidou-se o maior retrocesso legis-
lativo que já se impôs a uma nação, reconduzindo o povo brasileiro a séculos
anteriores ao próprio descobrimento (a criação do habeas corpus data de 1215).
4. A Repressão no Processo
Na vida daqueles que foram processados, o dano foi ainda maior, conforme
revelou o Projeto Brasil Nunca Mais que, sob a batuta insuspeita de Dom Paulo
Evaristo Arns, denunciou, entre inúmeras mazelas, infindáveis excessos legais
e absurdos processuais como descritos a seguir:
244
constam dos autos os respectivos mandados de prisão, violando as-
sim o princípio da legalidade.
• que 681 pessoas entre os anos 1964 e 1968, 1937 pessoas entre os anos
de 1969 e 1974 e 210 pessoas entre os anos de 1974 e 1979 foram con-
denados em primeira instância sob o argumento da segurança nacional.
Desta forma, descortinar tais fatos, servirá para que as gerações futuras pos-
sam, identificando-os, refutá-los; e para que se tenha uma história contada de-
mocraticamente. Poder-se-á entender, ainda, como a ideologia criada, replicada
até os dias atuais através de conceitos jurídicos impostos e incutidos nas gerações
que se seguiram, contaminam o modo de vida de uma nação inteira pois quanto
maior o consenso entroe as elites civis-militares sobre o funcionamento da dita-
dura, maior o grau de continuidade autoritária no funcionamento do golpe.
De todo o exposto, conclui-se que o estudo do modo de agir ditatorial,
para além de estancar a continuidade do método, pode servir como parâmetro
para que nas escolhas do presente não tomemos o caminho do passado.
245
Reênciasfer ácasbilogr
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad.: Robert Raposo. São Paulo: Cia
das Letras, 1989.
________A condição humana. Trad. Roberto Raposo, Rev. Adriano Correia. 11.ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2010.
ARNS, Paulo Evaristo (Org.). Brasil Nunca Mais. Petrópolis. Vozes, 1985.
BICUDO, Hélio, Lei de Segurança Nacional, Edições Paulinas – São Paulo, 1986.
BICUDO, Hélio. Lei de segurança Nacional. Leitura Critica. São Paulo: Edições Pau-
linas,1986.
BRASIL; OLIVEIRA, Juarez de. Lei de Segurança Nacional. 2ª Ed. São Paulo: Sa-
raiva, 1984.
PEREIRA, Valter Pires e Marvilla, Miguel (Org.) Ditaduras não são eternas: memórias
da resistência ao golpe de 1964, no Espírito Santo / textos de Ana Gabrecht,
Valter Pires Pereira, Ueber José de Oliveira; Vitória: Flor & Cultura: Assembléia Le-
gislativa do Estado do Espírito Santo, 2005 ISBN 85-88909-26-X
246
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão autoritarismo e o estado de direito no
Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
247
Ricargo Gueiros Bernardes Dias
Doutor em Direito pela UGF/University of California (San Francisco),
Mestre em Direito pela UGF/UERJ. Professor de Direito Constitucional e Pro-
cesso Penal da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Visiting Rese-
archer da Univeristy of California.
15
“UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA INCORPORAÇÃO
DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL:
OS DESAFIOS AINDA PRESENTES”
1. Introdução
249
O estudo mais detido da estrutura escalonar do ordenamento jurídico
brasileiro é ponto de partida para outras indagações que permanecem, igual-
mente, presentes no meio acadêmico-jurídico.
O tema em especial, demonstra a preocupação, sempre válida, da coloca-
ção pátria em meio ao quadro internacional que se amolda em clara preocupa-
ção com a defesa dos direitos humanos e os mais diversos e coletivos valores.
Nesta quadra da historia, ainda há resistência a que a incorporação es-
colhida pelo legislador tenha sido consentânea com as exigências políticas da
época, mas que não podem, ainda assim, ser suplantadas por teorias que visam
a alçar voos mais altos.
250
devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fun- 1. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.
dado sobre essa norma fundamental .
1 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 219.
251
4. KELSEN, Hans. Teoría pura del derecho.
dinâmica (problematização do ordenamento jurídico), igualmente imprescindí-
México: Universidad Nacional Autónoma
de México, 1982. p. 202. vel para o estudo do direito posto. Lapidar a passagem na qual
5. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e que una norma determinada pertenezca a un orden determinado se basa
do estado. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes,
en que su último fundamento de validez lo constituye la norma fundante
1998. p. 163.
básica de ese orden.
6. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e con-
senso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
E prossegue,
limitada por uma norma mais alta que é o fundamento último de va-
lidade de uma norma dentro de um sistema normativo, ao passo que
uma causa última ou primeira não tem lugar dentro de um sistema de
realidade natural 5.
252
cido, faz-se necessário compreender de que modo a opção constituinte acaba 7. Op. cit. p. 72.
por influir na recepção de normas jurídicas internacionais, incorporadas ao
8. MÜLLER, Friederich. Quem é o povo? São
ordenamento pátrio por meio de cláusulas havidas no texto constitucional.
Paulo: Max Limonad, 2003. p. 108.
Se, por um lado, tem-se o conhecimento dos trâmites necessários desde
a celebração de um tratado até o depósito deste na esfera internacional (e pro- 9. STRECK, Lenio Luiz. Ciência política e
mulgação na esfera interna), é também verdade que a limitação de sua hierar- teoria geral do estado. 3 ed. Porto Alegre,
2003. p. 135.
quia em termos de direito interno é capaz de apresentar sérias controvérsias, se
não se compreende como motivação política esta ou outra forma de inserção,
como mais a frente se verá.
Trata-se de um problema já referido por Lenio Streck6, como uma das
dificuldades encontradas no Brasil. Isto é, a ausência de uma verdadeira teoria
das fontes não consegue dimensionar os problemas havidos pela não com-
preensão do estamento galgado por determinada norma jurídica dentro do
ordenamento pátrio; e de que forma sua hierarquia se faz possível a depender
do órgão legiferante ou do procedimento já previamente estabelecido. Mais
abaixo se apontará a mudança trazida no bojo da Emenda Constitucional n.
45/04, ao prever procedimento específico (semelhante ao de votação de emen-
da constitucional) para tratados versados em direitos humanos.
A abertura ao plano internacional do ordenamento jurídico brasileiro
deve ser acompanhada, igualmente, das alterações legislativo-constitucio-
nais provocadas pelos anseios constituintes (originários ou derivados, sem
adentrar na polêmica).
Indagar o critério de pertença de uma norma é saber conferir-lhe, de acor-
do com os mandos constitucionais postos, de que modo passa a ser válido no
sistema jurídico o preceito normativo legislado, ou se se preferir, incorporado.
Contudo, ainda que possa parecer antipático aos olhos de tantos, sobre-
pujar a vontade constitucional de disciplinar ou não em espaço interno o rele-
vo dado a esses pactos é igualmente repudiar o texto constitucional e desven-
cilhar-se dos critérios adotados pelo constituinte, representante democrático
das escolhas de um povo, se assim se entender o texto constitucional. Seria,
outrossim, desrespeitar a Constituição, contra o que deve-se montar guarda, a
fim de que não sejam cometidos abusos.
O próprio Bobbio leva a crer em que questionar “qual é o fundamento da
norma fundamental num ordenamento jurídico positivo?”7 é redundar no vazio
253
10. JEVEAUX, Geovany Cardoso. Direito
de que tais perguntas transcendem o ordenamento jurídico positivo, pois seria
constitucional: teoria da constituição. Rio
de Janeiro: Forense, 2008. p. 296. o mesmo que buscar a justificação em sentido absoluto do poder.
Assim, também, com Friederich Müller 8, pode-se dizer que a legitimida-
de do poder constituinte do povo só é possível se houver a incorporação das
pretensões deste ao texto (Vertextung) da Constituição, tendo por interlocutor
o povo enquanto instância de atribuição, sendo que o procedimento democrá-
tico de pôr em vigor a Constituição dirige-se ao povo ativo. Sem, obviamente,
descurar do cerne constitucional (democrático, por excelência) observado pelo
povo-destinatário dos direitos.
O alerta vem, mais uma vez de Lenio Streck quando aduz:
254
se o eixo vertical que fundamenta a estrutura jurídica interna. De outro modo, 11. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8
no plano internacional, a inexistência de um órgão único supranacional e san- ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2009. p. 369.
cionador, possibilita a que só seja possível a mantença do direito internacional
através dos acordos bi ou plurilaterais, pelos quais se obriga o próprio Estado. 12. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8
Quanto ao conteúdo, a preocupação da ordem interna em normatizar a ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2009. p. 378.
conduta dos indivíduos, dos sujeitos nacionais, sendo que no direito interna-
cional a atenção se volta aos interesses supranacionais. 13. JEVEAUX, Geovany Cardoso. Direito
Em posição mais moderada, propugna-se pela obrigatoriedade das leis constitucional: teoria da constituição. Rio
no âmbito interno, e pela incidência da regra do pacta sunt servanda, em de Janeiro: Forense, 2008. p. 297.
âmbito internacional.
Nenhuma das duas teorias dualistas (ou pluralistas), todavia, está imune
a críticas, em especial, quanto à lógica de sua construção. Com supedâneo em
Kelsen, não se pode aceitar que dois complexos de normas formem um siste-
ma normativo unitário, delimitados nos respectivos domínios de validade, um
em face do outro. Para tanto, seria, ainda, necessário, um terceiro e superior
ordenamento, que os delimitasse e os coordenasse. Eis que “a determinação do
domínio de validade é a determinação de um elemento de conteúdo do ordena-
mento jurídico inferior pelo superior”11.
Assim sendo, duas apenas são as construções possíveis de modo a ajustar
o direito interno e o direito internacional: ou se concebe o direito interna-
cional como ordem jurídica delegada pela ordem interna, incorporada a esta;
ou como uma ordem jurídica total que delega nas ordens jurídicas internas,
supraordenada a estas e abrangendo-as a todas como ordens jurídicas parciais.
A diferença existente entre as duas construções monistas reside em que,
a seguir o pensamento kelseniano, aquela que toma o direito interno como
fundamento de validade para a ordem internacional, pressupõe-se que a pri-
meira constituição histórica, cujo ordenamento forma o ponto de partida da
construção, é um fato gerador de direito. De outro lado, a teoria monista que
sustenta o primado da ordem internacional sobre a interna, não toma qualquer
ordem interna como ponto de partida, senão que se sustenta na própria ordem
internacional o fundamento de validade, pressuposta por virtude da qual o
costume é um fato gerador de direito12.
Para Jellinek e Wenzel, ficaria a cargo das Constituições estatais estabe-
lecer o modo de conclusão dos tratados e de que modo seria feita a incorpo-
255
14. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8 ração da ordem internacional na ordem interna13. A se adotar a teoria monista
ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, com primado da ordem interna deve-se, antes de tudo, reafirmar a soberania
2009. p. 374.
do Estado. Esta soberania é a pressuposição de uma ordem normativa como
15. RESEK, José Francisco. Direito interna- ordem suprema cuja validade não é dedutível de nenhuma ordem superior.
cional público: curso elementar. 13 ed. São Nesse último caso, apenas se reconhece o direito internacional como
Paulo: Saraiva, 2011. p. 127.
ordem jurídica delegada pela ordem interna, apenas válido com relação ao
16. Em crítica aguda à resistência à incor- Estado, se reconhecida por este. Em linhas gerais, o fundamento de validade
poração dos Tratados internacionais sobre do direito internacional é, para esta versão da teoria monista, encontrado na
Direitos humanos, embora pouco destoante ordem jurídica interna.
dos lindes do afirmado neste ensaio, confe-
rir LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Direitos
A teoria monista com primado da ordem internacional foi encampada
humanos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, por Hans Kelsen, e, segundo ela, o conhecimento da unidade do Direito interno
2011. pp. 24-26, passim. e do Direito internacional toma por ponto de partida este último como ordem
jurídica válida. Nesta toada, calha considerar o princípio da efetividade, “que
é uma norma do Direito internacional positivo”, a qual
256
O ponto fulcral da questão é observar tratar-se de política a prevalência, 17. BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à
adotada a teoria monista, do direito interno ou do direito internacional. Se o pró- constituição do brasil. São Paulo: Saraiva,
1988. p. 262.
prio Estado é quem se obriga no plano internacional, dele parte a maior ou menor
vontade de reduzir sua soberania e submeter-se às regras pactuadas em nível 18. Pérez Luño, citado por André Ramos Ta-
horizontal com demais Estados. De fato, não há qualquer móvel que o obrigue a vares, sustenta que “no processo de cons-
titucionalização dos direitos fundamentais
se limitar mais ou menos em plano internacional, senão a sua vontade política.
o positivismo teve um papel importante
Nesses tempos, porém, em que a busca pelo pacifismo se faz contundente, ao colocar a exigência de uma concreção
e a necessidade de ajuda externa mútua é cada vez mais evidente, os laços cria- jurídica dos ideais jusnaturalistas, para
dos em nível supraestatal suplantam as diferenças culturais, étnicas religiosas dotá-los de autêntica significação jurídico-
-positiva. Contudo, os acontecimentos po-
ou de qualquer ordem e acabam por exigir de cada Estado um posicionamento líticos se encarregaram de evidenciar, em
mais firme de inserção na ótica globalizada que se tem vislumbrado16. Com certas ocasiões, de forma trágica, a necessi-
Kelsen, é possível afirmar a existência da Weltanschauung em matéria de sub- dade de situar a fundamentação do sistema
da liberdades públicas em uma esfera que
missão ou não aos tratados internacionais e em que grau no direito interno.
ultrapassa o arbítrio da jurisdição interna
Na concepção subjetivista, se prevalente o Eu soberano, não se afigura de cada Estado”. In TAVARES, André Ramos.
possível conceber uma realidade externa, um mundo exterior, desvinculado que Curso de direito constitucional. 10 ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 553.
seja da representação e da vontade do Eu interno. Tal concepção conduz, ine-
vitavelmente, ao solipsismo, levando a crer em que as coisas só existem através
e a partir da ordem jurídica do próprio Estado. Destarte, a soberania do Estado
exclui a soberania dos demais. Na mundividência objetivista, por outro lado,
parte-se do mundo exterior real para conceber o Eu como parte integrante do
mundo, valendo-se como ordem parcial incorporada ao direito internacional.
É, contudo, necessário asseverar que qualquer das duas concepções
encontra locus favorável em qualquer Estado que se possa dizer soberano. Já
não mais há qualquer lógica que possa subverter o pensamento diretivo do Es-
tado, a não ser a própria política, a qual toma as rédeas da direção normativa.
Não há entre os dois sistemas qualquer exclusão ou opção de um que seja mais
ou menos correto. Sob qualquer ponto de vista, está alijada da ciência jurídica
a decisão por uma ou outra formulação de predominância do sistema interno
ou do sistema internacional.
Pelo que se viu alhures, agregando-se ao expendido as teorias de relação
entre o direito interno e o direito internacional, parece que, com o advento da
Emenda Constitucional n. 45/2004, optou o constituinte brasileiro, adotando a
teoria monista, por fazer prevalecer a ordem interna, porquanto esta estabele-
ceu, de antemão, o procedimento necessário para a incorporação dos tratados
257
19. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de di- internacionais sobre direitos humanos a nível constitucional, do que se pode
reito constitucional. 7 ed. São Paulo: Sarai- deduzir a sistemática quanto aos demais acordos internacionais.
va, 2012. pp. 656-675, passim.
A EC n. 45/04 surge como marco delimitador do mecanismo de incor-
20. Representativo da defesa desta teoria, poração porque, pela primeira vez, dita o procedimento necessário para que
o eminente professor Celso Albuquerque os direitos humanos, pactuados na esfera externa, alcancem status de normas
Mello.
constitucionais, pacificando a celeuma, ao menos num primeiro momento (e
21. No Brasil, Antônio Cançado Trindade e no nível legislativo), existente na doutrina e na jurisprudência.
Flávia Piovesan perfilharam o entendimen- Crendo em que a crescente intensificação das relações internacionais
to de hierarquia constitucional a ser atribu- possa, um dia, levar à supremacia da comunidade internacional, logo após a
ída aos tratados que versem sobre Direitos
humanos.
promulgação da Constituição de 1988, aduzia Celso Ribeiro Bastos que, vindo
a consumar-se, em sua inteireza a noção de submissão dos Estados às normas
22. Entendimento que restou esposado no internacionais, heteronomamente impostas, “estará superada a própria noção
paradigmático julgamento do RE 466.343/
de Estado”. De modo que, “a organização política da humanidade terá assu-
SP, de relatoria do ex-Ministro Cezar Pelu-
so, julgado em 3 de dezembro de 2008. mido uma natureza e feição profundamente diversa daquelas dominantes em
nossos dias” 17, 18.
23. Esta a posição adotada pelo Supremo
Tribunal Federal quando ainda precoce a
discussão da matéria, anteriores, os julga-
dos, à EC n. 45, seguindo jurisprudência 3. A incorporação de tratados internacionais sobre Direitos
firmada na Corte. Cf. RE 80.004/SE, Rel. humanos: as teorias existentes.
Min. Xavier de Albuquerque, julgado em 1º
de junho de 1977; ADI 1.080/DF, Rel. Min.
Celso de Mello, julgada em 4 de setembro Com a ratificação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de
de 1997. Desta última, é possível extrair o São José da Costa Rica – Decreto 678/92) e com a adesão brasileira ao Pacto In-
seguinte trecho da ementa: “Os tratados ou
ternacional de Direitos Civis e Políticos (Decreto 592/92), interessante discussão
convenções internacionais, uma vez regu-
larmente incorporados ao Direito interno, frequentou o meio acadêmico e doutrinário, indo parar na jurisprudência da
situam-se, no sistema jurídico brasileiro, Suprema Corte. Tratava-se, pois, de indicar a hierarquia assumida pelos trata-
nos mesmos planos de validade, de eficácia dos internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro,
e de autoridade em que se posicionam as
leis ordinárias, havendo, em consequência,
tendo surgido várias vertentes, entre as quais19: a) supraconstitucionalidade20;
entre estas e os atos de Direito internacio- b) hierarquia constitucional21; c) supralegalidade22; d) status de lei ordinária23.
nal público, mera relação de paridade nor- Duas colocações devem anteceder as explicações pertinentes a cada uma
mativa. Precedentes.” E ainda se asseverou
dessas vertentes. Em primeiro lugar, deve-se ter ciência do escopo em observar
que a resolução de conflito antinômico so-
mente seria possível através dos critérios de o grau hierárquico ocupado por tratados que versem sobre direitos humanos,
cronologia (lex poster derogat lex anterior) pois, do contrário, assumirão eles mesmos status da legislação ordinária.
e de especialidade. Curioso notar, a esse respeito, o art. 98 do Código Tributário Nacional
(CTN), segundo o qual “os tratados e convenções internacionais revogam ou
258
modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes 24. A este propósito, interessante conferir
sobrevenha” (grifou-se). O preceito normativo em tela não somente aduz a res- a discussão traçada entre os Ministros do
Supremo Tribunal Federal quando do julga-
peito da revogação por incorporação superveniente de tratados internacionais mento do HC 87.585, de relatoria do Min.
em matéria tributária, o que se assemelharia à adoção do mesmo grau hierár- Marco Aurélio, julgado em 03.12.2008.
quico, havendo derrogação por critério cronológico, como, ainda, passado este
25. Apenas para situar, conferir, entre ou-
momento, condicionaria as demais legislações futuras, limitando o legislador
tros, TAVARES, André Ramos. Curso de
na elaboração normativa. É dizer, se incorporado, assume um caráter suprale- direito constitucional. 10 ed. São Paulo:
gal, condicionando a atividade legiferante. Saraiva, 2012. pp.544-572; BULOS, Uadi
Há, pois, desde a década de 40, previsão, infraconstitucional, diga-se de Lammêgo. Curso de direito constitucional.
6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. pp. 698-712.
passagem, a respeito da incorporação de tratados que fugissem ao plano ordiná-
rio legislativo. Veja-se que tão somente abrange a matéria tributária, o que não 26. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de di-
se cogitava até a promulgação da vigente Carta Magna e, em especial, após o reito constitucional. 7 ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2012. p. 658.
advento da EC n. 45/04, quanto a tratados e convenções sobre direitos humanos.
Em segundo lugar, mister consignar a diferença substancial provocada
pela inserção do § 3º no artigo 5º da Magna Carta. A previsão de procedimento 27. CRFB, art. 5º, § 2º. Os direitos e ga-
semelhante ao exigido para emendas constitucionais não pode ser olvidada rantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e
pelos estudiosos do direito. Parece claro que, a seguir o quórum previsto, al- dos princípios por ela adotados, ou dos
cançará o tratado sobre direitos humanos o mesmo grau hierárquico das de- tratados internacionais em que a República
mais normas constitucionais, o que inviabiliza entendimento acerca da teoria Federativa do Brasil seja parte.
de supraconstitucionalidade24.
28. CRFB, art. 5º, § 1º. As normas definido-
Segundo alguns doutrinadores, entretanto, a tão só presença do § 2º, ras dos direitos e garantias fundamentais
no art. 5º, permitindo a extensão do rol de Direitos Fundamentais e o art. têm aplicação imediata.
4º, inciso II, todos da Constituição Federal, já seriam permissivos claros de
que tais acordos internacionais devessem assumir hierarquia constitucional,
quiçá, supraconstitucional.
Voltando às teorias até então apresentadas pela doutrina25, a primeira
delas incorpora os tratados internacionais sobre direitos humanos com status
supraconstitucional, conferindo-lhes aplicabilidade imediata. Nas palavras de
Bidart Campos, citado por Gilmar Mendes,
259
29. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de di- cionalmente, nada tenemos que objetar (de lege ferenda) a la ubicación
reito constitucional. 7 ed. São Paulo: Sa- prioritaria del derecho internacional de los derechos humanos respecto
raiva, 2012. p. 661.
de la Constitución26.
30. CRFB, art. 5º, § 3º. Os tratados e con-
venções internacionais sobre direitos hu- Ocorre, todavia, que, algumas sérias implicações traz a adoção da re-
manos que forem aprovados, em cada Casa
ferida tese. A uma, que a rigidez constitucional, desenvolvida pelo princípio
do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos da supremacia forma e material da Constituição, impediria a adequação da
membros, serão equivalentes às emendas tese diante do quadro apresentado pelo ordenamento jurídico brasileiro. A
constitucionais. duas, que, a prevalecer, impediria o controle de constitucionalidade dos atos
internacionalmente pactuados, o que levaria ao questionamento de que, em
vindo a se descumprir o iter procedimental de incorporação dos tratados, qual
a solução seria adotada? Ainda, no plano material, a adequação aos direitos e
garantias fundamentais já trazidos no seio constitucional.
A tese de atribuição de hierarquia constitucional enxerga no § 2º do
art. 5º 27 da Magna Carta uma cláusula aberta de recepção de direitos outros
subscritos pelo Brasil, no plano internacional, conferindo-se, ademais, aplica-
bilidade imediata, desde a ratificação, dispensando-se a intermediação legisla-
tiva, em leitura do § 1º do mesmo art. 5º 28.
Em caso de conflito, adotar-se-ia o princípio do in dubio pro homini
ou fazendo prevalecer o princípio da dignidade humana, com o consectário
da norma mais favorável à pessoa humana. Cançado Trindade asseverou que
“a normativa dos tratados de Direitos humanos em que o Brasil é parte tem efe-
tivamente nível constitucional e entendimento contrário requer demonstração”29.
Tal doutrina esvaziou-se com o advento da EC n. 45/04, a qual, conforme já
se disse, trouxe procedimento próprio de incorporação de tratados sobre direitos
humanos, a nível constitucional 30. A exigência de aprovação através de quórum
especial no Congresso Nacional mitiga a adoção da vertente esposada pelo autor.
A vigência do mesmo parágrafo terceiro reflete, para alguns, que não
pode, todavia, entender-se possível o plano meramente ordinário dos tratados
incorporados. Isso porque, ao prever quórum especial, ter-se-ia ressaltado o
caráter especial dos tratados sobre direitos humanos em relação aos demais
tratados, os quais assumem, incontestavelmente hierarquia ordinária.
Destarte, a terceira vertente assenta-se na posição intermediária de ditos
tratados, é dizer, acima do nível ordinário, da legislação comum, mas abaixo
260
do nível constitucional, somente alcançado se aprovado, no Congresso Nacio- 31. TIBURCIO, Carmen. Conflito entre fon-
nal, de acordo com o procedimento prescrito. tes: os casos da prisão do depositário infiel
e devedor fiduciante e as leis uniformes de
Por fim, a quarta e última vertente, já superada, como se verá abaixo,
Genebra: comentários à súmula vinculan-
pela jurisprudência e pela doutrina, atribuía aos tratados incorporados o nível te 25. Revista de Direito Bancário e do
semelhante ao da legislação ordinária. Mercado de Capitais. São Paulo, v. 50, p.
245, out. 2010.
Uma preocupação não pode deixar de ser externada e, inclusive, chegou
a ser aventada em várias decisões da Suprema Corte quando se debruçaram os
Ministros sobre a temática ora posta em discussão. A caracterização dos trata-
dos e convenções internacionais, para fins de abrangência ou não da temática
dos direitos humanos poderá, num futuro próximo, gerar sérias dúvidas aos
estudiosos do Direito. Isto porque deve ficar entendido que nem sempre os
acordos internacionais são claramente extensores do rol dos direitos humanos,
abordando, por vezes, indiretamente a questão, ou, ainda, apenas fazendo re-
ferência. Saber se versa ou não sobre direitos humanos o tratado ratificado e
a ser incorporado no ordenamento pátrio poderá causar transtornos tanto no
momento da votação parlamentar, quando se buscará aferir o procedimento
adequado de votação, ou como no controle de constitucionalidade, realizado
pela Suprema Corte brasileira.
Não se pode, ademais, perder de vista que defensores há que encontrarão
em todo e qualquer tratado internacional algum ponto a fim de reivindicar o
caráter humanitário trazido em seu bojo, para fins de benefícios que poderão
ser alcançados de acordo com o status hierárquico assumido. A deturpação na
apreensão dos fins do Direito das gentes introduzido no solo tupiniquim não
pode descambar para o alvedrio de motivações ideológicas ou oportunistas,
senão de que deverá haver profícua proteção de aspectos humanistas exis-
tentes a nível internacional, plano este que busca o Estado brasileiro ocupar,
alinhando-se às demais potências com os mesmos e bem definidos escopos.
261
sua história, praticou uma espécie de isolacionismo no tocante sua parti-
cipação no cenário internacional. Não faz, assim, tanto tempo que o Brasil
passou a ratificar um número mais substancial de tratados internacionais.
Isso, portanto, é uma (apenas uma!) das razões que levaram a jurisprudência
a tardar em mostrar suas primeiras balizas quanto à incorporação e posição
hierárquica dos tratados internacionais. Além disso, não se olvida que os
diferentes tratamentos – concedidos pelos mais diversos Estados – também
corroboram para uma falta de sistematização. Com isso (e também por outros
motivos), a problemática da antinomia no âmbito internacional encontra
percalços além daqueles vistos em um ordenamento jurídico interno, como
esmiuçado acima.
De uma forma ou de outra, nosso leading case sobre a matéria remonta
ao período anterior à Constituição de 1988, como fizemos menção em nota
anterior. Estávamos no ano de 1977, quando o Supremo Tribunal Federal apre-
ciou o Recurso Extraordinário 80.004. Tratava-se de analisar a Convenção
de Genebra, especificamente, a Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas
Promissórias. Discutia-se o conflito entre o Decreto-Lei n. 427/69 e o referido
Tratado Internacional (promulgado pelo Decreto n. 57.663/66).
Tratava-se, portanto, de averiguar a questão do critério hierárquico, uma
vez que, quanto ao critério temporal, não haveria maiores dúvidas e que, no
tocante à especificidade, percebeu-se que ambas as normas possuíam natureza
semelhantes.
Curiosamente, a princípio, o Ministro Xavier de Albuquerque inclinava-
se a posicionar os tratados internacionais em posição superior ao da legislação
infraconstitucional. Entretanto, após o voto-vista do Ministro Cunha Peixoto,
o Supremo Tribunal Federal, por maioria, entendeu que as normas em conflito
possuiriam mesma posição hierárquica, razão pela qual a solução do conflito
de normas não deveria ser outro senão ao já utilizado se normas internas fos-
sem, ou seja, lex posterior derrogat legi priori.
É só após a promulgação da Constituição de 1988 é que a discussão volta
ao palco da jurisprudência. E isso se dá porque, pela primeira vez, uma norma
constitucional pátria resolve tratar, mesmo que timidamente, da matéria.
Como já salientado, o § 2º do art. 5o preceituava originariamente (e ainda
preceitua) que
262
os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros 32. RHC 79785. Relator Min. Sepúlveda
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados Pertence. Julgamento: 29.03.2000.
263
crático, parecia haver uma certa resistência do Supremo Tribunal Federal em
aceitar uma hierarquia constitucional de uma norma (seja internacional, ou
não), que não fosse proveniente de um poder constituinte. Estava claro que
a resistência não estava no caráter transfronteiriço da norma. Esse caráter
veio a acalentar as discussões. Aliás, não fosse isso seria desnecessário maior
esforço hermenêutico.
E essa resistência ficou claramente demonstrada logo após os primeiros
casos analisados pelo Supremo Tribunal Federal. Interessantes as palavras de
Sepúlveda Pertence ao relatar o primeiro processo32 em que teve a oportunida-
de de examinar a questão de forma mais exauriente. É que o
tema foi encarado pelo Tribunal duas vezes, pelo menos: a primeira,
no HC 72.131, 23.11.95, Moreira Alves - relativa à compatibilidade da
prisão civil do depositário infiel ou equiparado com o art. 5º, LXVII, CF,
e com o Pacto de São José - e na ADinMC 1.480, 25.9.96, Celso de Mello
- acerca da constitucionalidade da Convenção 158 da Organização In-
ternacional do Trabalho. Ambos os acórdãos lamentavelmente ainda
aguardam publicação. Mas, no primeiro, fiquei vencido, dada a inteli-
gência restritiva que empresto à permissão constitucional da prisão do
depositário infiel, independentemente da superveniência da Convenção
Americana; e, no segundo, a nitidez das posições ficou um tanto com-
prometida com a circunstância de a Convenção possuir caráter progra-
mático - como a mim e a outros juízes pareceu - ou, pelo menos, admitir
interpretação conforme, que exclua qualquer pretensão de eficácia ple-
na e imediata (Inf. STF, n. 82) como entendeu a maioria (ver ementa do
voto condutor do Ministro Celso de Mello, transcrito no Inf. STF 135).
264
O fundamento-base poderia ser resumido em um raciocínio: “que, ao
menos no Brasil, o tratado internacional não pode ultrapassar os limites im-
postos pela Constituição da República. E a razão para tanto, está na natureza
estável do texto constitucional”. Em outras palavras, o exercício hermenêutico,
a nosso ver, derivou de uma intenção predisposta em colocar a Constituição
acima de qualquer outra norma. Utilizou-se, inclusive, o argumento de que o
art. 59 da CF já deixava claro o caráter rígido da Carta.
Perceba o leitor que nem sequer estamos, aqui, entrando no mérito da
questão dos direitos e garantias fundamentais. Queremos dizer, não há esforço
persuasivo, de nossa parte, em demonstrar que a posição do STF deveria ser
diferente em razão da importância dos direitos envolvidos. O que estamos a
dizer é que, independentemente do grau de relevância do assunto, não fosse a
intenção predisposta, não se poderia interpretar dessa forma.
Disso, podemos tirar duas conclusões: 1) essa intepretação nos leva a
uma inocuidade do § 2º do art. 5o (ao menos quanto ao assunto que estamos
a tratar), na esteira do que relatamos acima; 2) para mudar o cenário, seria
necessário lidar com a rigidez da CF.
E essa barreira (no que toca ao problema da rigidez), precisaria ser ul-
trapassada mediante uma emenda constitucional. Essa mudança vem com a,
já mencionada, “reforma do judiciário”, mediante a qual é inserido o § 3º do
art. 5o. Interessante. Poder-se-ia optar pela mudança da redação do § 2º, já
que, pela nossa conclusão, o dispositivo seria inócuo. Optou-se, entretanto,
em criar subsequente parágrafo, como se o dispositivo constitucional original
não precisasse de um esclarecimento e, sim, de um aditamento (o que não nos
parece fosse o caso).
A nova redação, contudo, não foi bastante, em termos jurisprudenciais,
para esclarecer o tema (ao menos para o STF). Como já transcrevemos, diz o
§ 3º do art. 5o:
265
33. Informativo STF n. 498. E, aqui, a história se repete. A história da resistência a que nos referimos
nos parágrafos anteriores. Mas, agora, a situação (hermenêutica) nos parece
34. Íntegra do voto do Recurso Extraordi- mais séria. É que se o problema era a rigidez (e a rigidez é derivada exatamente
nário 466.343.
do grau de dificuldade – em termos comparativos – da aprovação da emenda
constitucional), ele seria sanado com a promulgação da EC 45/04.
A resistência, entretanto, dessa vez, não parece ter-se dado tanto em ra-
zão do caráter da rigidez, mesmo porque foi precisamente esse aspecto que a
EC 45/04 veio superar. A resistência, como veremos abaixo, parece ter tido um
motivo mais técnico-processual, qual seja, o fato de não se estar analisando, in
casu, um tratado aprovado sob a força do § 3º do art. 5º da CF. Isto é, o máximo
que o STF poderia ter realizado (e, infelizmente, o fez muito timidamente) seria
um esclarecimento obiter dictum, quanto a esse novel parágrafo constitucional.
Ao analisar o Recurso Extraordinário 466.343, cuja relatoria foi incumbi-
da ao Min. Cezar Peluso, houve uma divergência significativa. O Min. Gilmar
Ferreira Mendes salientou
Por sua vez, o Min. Celso de Mello, divergindo nesse ponto, afirmou que
266
celebrados pelo Brasil (ou aos quais nosso País aderiu) entre a promul- 35. Idem.
gação da CF/88 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter
36. Idem.
materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido
transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade33.
267
37. Note-se que, até a presente data, ape- E mais: o ministro relator chega a antecipar eventual futuro voto a res-
nas um tratado internacional foi aprova- peito da precisa posição hierárquica dos tratados internacionais:
do segundo os novos ditames: Decreto nº
6.949, de 25.8.2009, que trata “sobre os Di-
reitos das Pessoas com Deficiência e de seu Em relação aos casos futuros e a eventual caso posto perante o novo
Protocolo Facultativo, assinados em Nova Código Civil, já antecipo, para excluir a terceira alternativa, minha po-
Iorque, em 30 de março de 2007.”
sição de que vou reconhecer caráter supralegal ou caráter constitucional
ao Tratado.36
A palavras finais deixam clara a dúvida que ainda paira sobre a temática.
Mas como vimos, a discussão não enfrentou, de forma minimamente
exauriente, a questão do § 3º do art. 5º da CF. Arriscaríamos a dizer que, nesse
ponto, o Supremo Tribuna Federal se posicionará de forma mais homogênea e,
quiçá, como ratio decidendi. Como parece adiantar (uma vez mais em caráter
obiter dictum) o Min. Gilmar Mendes no discutido RE 466.343:
268
quanto à aplicação do (então) inócuo § 2º do art. 5º da CF, que agora possui,
ao menos, a eficácia de alçar os tratados internacionais a um nível supralegal.
269
Não vemos maior óbice; mesmo porque a proposta de Resolução nada
mais faz do que equiparar a aprovação dos tratados (nos ditames do § 3º do
art. 5º da CF) ao processo de formação das emendas constitucionais. Importa só
frisar, uma vez mais, que essa proposta não guarda qualquer relação quanto à
discussão da hierarquia dessas normas, como defendem alguns doutrinadores.
5. Conclusão
Para concluir, poderíamos resgatar o velho chavão: “sem pretender esgotar tema,
objetivamos…”. Mas não se trata disso. Nunca se “esgota” um tema. Achamos
que é uma espécie de uma falsa humildade e/ou hipocrisia acadêmica, pois se
estaria admitindo que o assunto (e pior: a conclusão desse assunto) não poderia
ser revisto. O (pseudo) esgotamento significaria uma desnecessidade de futuras
reflexões sobre o tema. E, admitir isso, nos levaria a um engessamento de uma
ciência (notadamente a relativa às ciências sociais) que possui (e possuirá) uma
eterna mutação, o que implica reanálises perenes. Quem afirma isso, de duas
uma: ou disse menos do que gostaria de ter dito (talvez por falta de tempo); ou,
realmente, crê que um dia esgotará um assunto (o que julgamos menos provável).
Nossa breve conclusão relata mais uma preocupação do que eventuais
sugestões. Desde o surgimento da Constituição de 1988, a problemática do
posicionamento hierárquico no tocante aos tratados internacionais já estaria,
a princípio, resolvido. A redação do § 2º do art. 5º da CF já seria, por si, bas-
tante para concluir que os tratados que versassem sobre direitos e garantias
fundamentais (e, aqui, não pretendemos adentrar na eterna discussão que os
diferencia dos direitos humanos, no sentido conceitual) poderiam ser equipa-
rados às emendas constitucionais.
E, nesse sentido, reforçamos nosso entendimento de que para chegar-
se a essa conclusão não precisaríamos investigar com maior profundidade
as noções principiológicas extraídas da teoria constitucional, tampouco dos
princípios internacionais dos direitos humanos. Bastaria um exercício herme-
nêutico mais simplório.
Mas o Supremo Tribunal Federal sempre foi resistente desde os primeiros
julgados; talvez, como salientamos, derivado de uma cultura de momento.
270
Uma cultura derivada de um afã que pairava nos primeiros momentos da eu-
foria de quem ganhou um novo guardião.
Mas não bastasse a frustrada tentativa do § 2º do art. 5º da CF, a situação
(hermenêutica), a nosso ver, se agrava quando, mesmo após o surgimento do §
3º do mesmo dispositivo, o Supremo Tribunal Federal, quase dez anos depois,
não ter ainda um posicionamento claro a respeito do tema, o que não se deu
por falta de oportunidade.
O debate acerca dos aspectos do direito civil, tal como os princípios
do direito cambiário e os institutos atinentes à prisão civil ganharam mais
a atenção dos Ministros que, propriamente, assentar o status hierárquico de
tratados internacionais sobre direitos humanos ao serem incorporados ao
ordenamento pátrio.
Nesse sentido, mesmo que, de forma intelectualmente prepotente (ou
mesmo ingênua) concluíssemos pelo esgotamento do tema, pouco adiantaria.
É que, em nossa investigação, nossa principal conclusão é que a questão não
foi sequer examinada pelo STF (ao menos como ratio decidendi).
Se, contudo, conforme acreditamos, voltar o debate a ocupar a pauta do
judiciário, merecerá da Suprema Corte uma revisão crítica dos posicionamen-
tos até então esposados, para fins de garantir maior coerência na incorporação
dos tratados internacionais, bem como o respeito às balizas estipuladas cons-
titucionalmente, máxime quanto ao §3º do art. 5º da Magna Carta.
271
Reênciasfer ácasbilogr
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Critérios científicos para a solução dos conflitos
aparentes entre tratados internacionais e a Constituição Federal. Revista dos Tri-
bunais, São Paulo, v. 855, p. 30, jan. 2007.
JUBILUT, Liliana Lyra. A aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelo
STF. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, v. 72, p. 78, out. 2009.
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
KELSEN, Hans. Teoría pura del derecho. México: Universidad Nacional Autónoma de
México, 1982.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Direitos humanos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
272
RESEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 13 ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
STRECK, Lenio Luiz. Ciência política e teoria geral do estado. 3 ed. Porto Alegre, 2003.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
273
274
Martha Lucía Olivar Jimenez
Discente do curso de Educação em Direitos Humanos
16
LAS INMUNIDADES DE ESTADO EXTRANJERO Y LA
PROTECCIÓN DE LOS DERECHOS HUMANOS EN LA
PAUTA DEL JUDICIARIO BRASILEÑO
1. MADRUGA F., Antenor P., A renúncia à 1. Los progresos en la jurisprudencia brasileña en materia de
imunidade de jurisdição pelo estado bra- inmunidades de Estado extranjero
sileiro e o novo direito da imunidade de
jurisdição, Rio de Janeiro:Renovar, 2003,
pp.203 e 204. No hay ninguna duda en la relación simbiótica entre la doctrina y la jurispru-
dencia en la búsqueda de soluciones innovadoras a los problemas que surgen
2. Op. Cit. P. 200.
día a día y en la incuestionable evolución del derecho que de allí resulta. Esa
afirmación gana proporciones mayores en la materia que nos ocupa. Entre los
asuntos que más han interesado a los jueces brasileños y para los cuales han
buscado auxilio en la doctrina nacional y extranjera pueden destacarse de un
lado, el constante esfuerzo por diferenciar claramente competencia internacional
e inmunidad de jurisdicción y de ejecución, examinando el fundamento de los
privilegios (1.1), y de otro la determinación de reglas de procedimiento que deben
ser observadas en los conflictos en que interviene un Estado extranjero (1.2).
276
En la relación primaria, en caso de no existir oposición del Estado ex- 3. La problemática mayor reside, usualmen-
tranjero a la jurisdicción interna, el procedimiento será realizado a partir de las te, en la ejecución de una eventual senten-
cia condenatoria del Estado extranjero.
reglas materiales y procedimentales aplicables a al caso concreto. Al no existir
la excepción preliminar de inmunidad, cabrá al juez, a partir del analisis de 4. MADRUGA F., Antenor P., A renúncia à
fondo de la cuestión, tomar la decisión según los supuestos de hecho y de imunidade de jurisdição pelo estado bra-
sileiro e o novo direito da imunidade de
derecho argumentados y aplicables3.
jurisdição, Rio de Janeiro:Renovar, 2003,
Por otro lado, en la relación secundaria – en la cual exista el conflicto pag.203 e 204.
internacional – la inmunidad se clasifica como una cuestión independiente de
la cuestión de fondo. O sea, antes de resolver el problema de fondo que nortea 5. Mandat d’arret du 11 avril 2002 (Repu-
blique Democratique du Congoc. Belgique),
el litigio, el juez debe evaluar si el Estado demandado es inmune a la jurisdic- arrêt C.I.J. Recueil 2002.p.3.
ción nacional4.
Desde el prisma procedimental, las controversias relativas al tema de 6. Mandat d’arret du 11 avril 2002, nota 9.
277
8. LIEBMAN, Enrico Túlio, Manual de Di- La Corte hizo tal afirmación al constatar que los dos conceptos, jurisdic-
reito Processual Civil, trad. Port. Foren- ción e inmunidad, están íntimamente relacionados generando muchas veces
se, 1984, v.1, n.24, p.55, apud CARNEIRO,
Athos Gusmão, Jurisdição e competência,
confusión por lo que se hace necesario garantizar la prevalencia lógica del
14 ed., São Paulo:Saraiva, 2005, p.67. primero sobre el segundo: la inmunidad jurisdiccional solamente será un obs-
táculo procesal en el momento en que sea constatada y no en el momento
9. Apelação Civil 9696–3 Genny de Olivei-
en que es manifestada por el Estado interesado y eso ocurre si el tribunal es
ra v. RDA, Aci 9696–3/SP São Paulo, D.J.
12/10/1990, p 11045. competente para decidir la cuestión.
La doctrina brasileña trabaja el concepto de jurisdicción y competencia
10. MADRUGA FILHO, Antenor Pereira, op. a partir de la concepción de que “La jurisdicción actúa como la manifestación
cit., 201.
de la potestad del Estado. Es al mismo tiempo, poder, función y actividad”. La
competencia, por su vez, posee una dimensión de naturaleza interna, o sea,
representa “la medida de la jurisdicción8”
Los tribunales brasileños no constituyen una excepción al problema
como se puede constatar en la propia decisión 9696–3 Genny de Oliveira,
donde el Ministro Relator Sydney Sanches confundió los dos conceptos al
ver en el artículo 114 de la Constitución de 1988 una alteración del régimen
de la inmunidad.
En esa ocasión el voto del Ministro Francisco Rezek fue claro al determi-
nar que tal disposición se refería exclusivamente a las reglas de jurisdicción/
competencia del juez nacional y en ningún momento debía interpretarse como
consagrando el principio de la inmunidad relativa de jurisdicción9.
Como bien lo afirma uno de los especialistas brasileños en materia de in-
munidades, Antenor Pereira Madruga Filho, la competencia constituye siempre
una limitación de la jurisdicción, al no existir un orden jurídico supranacional
capaz de centralizar decisiones e imponer eficazmente límites al poder de cada
uno de los Estados le corresponde a cada uno de ellos establecer los límites
de su jurisdicción10. Compartimos la posición del citado autor cuando afirma
que procesalmente el examen de la inmunidad de jurisdicción constituye una
cuestión plenamente independiente de la decisión de mérito del conflicto. Así
el juez deberá verificar primero si la causa está dentro del ámbito de su com-
petencia de conformidad a la ley interna, para solamente después evaluar si el
Estado reo es inmune a la jurisdicción nacional.
278
Para el Profesor Cândido Dinamarco tres ordenes de motivos orientan la 11. DINAMARCO, Cândido Rangel. Insti-
acción del Estado al determinar las reglas de competencia: tuições de direito processual civil. 2ª ed.,
São Paulo: Malheiros, v. 1, 2002
1º. La imposibilidad o dificultad para ejecutar en territorio extranjero
ciertas decisiones de los jueces nacionales;
2º. La irrelevancia de muchos conflictos frente a los intereses que al Es-
tado le corresponde preservar;
3º. La conveniencia política de mantener ciertos padrones de respeto
recíproco con relación a otros Estados.
Tales motivos llevan a excluir del poder judicial ciertas cuestiones por
inviabilidad, por ausencia de interés o por conveniencia internacional11. Es en
esta última cuestión que la doctrina encaja las inmunidades.
La competencia internacional de los tribunales brasileños se encuentra
determinada fundamentalmente, no exclusivamente, en la constitución, en la
Ley de Introducción del Código Civil y en los artículos 88 (competencia concu-
rrente) y 89 (competencia exclusiva) del Código de Procedimiento Civil.
En los últimos años los esfuerzos del Supremo Tribunal Federal se han
concentrado en definir claramente el concepto independientemente de las in-
munidades dando lugar a una jurisprudencia digna de mención. A pesar de los
esfuerzos muchos jueces de instancias inferiores continúan a confundir juris-
dicción e inmunidad, declarando frecuentemente extinto el proceso sin citar el
Estado extranjero al entender que está amparado en el privilegio.
279
12. RO 85 – RS (2009/0044482–3), Dje El análisis de la jurisprudencia de los Superiores Tribunales brasileños,
17/08/2009, pag.2–11. principalmente aquella mas reciente, así como el excelente trabajo ya realiza-
do por Antenor Pereira Madruga Filho, permiten determinar el procedimiento
13. Vid, entre otros, el RO 70 RS de 2008.
que viene siendo observado en los controversias en que interviene un Estado
14. RO 74 – RJ (2008/0076862–4), Dje extranjero particularmente en calidad de demandado.
08/06/2008, p.1 a 35.
1º. La citación del Estado. Esta es, sin lugar a dudas, una de las cues-
tiones que más ha suscitado dudas en los jueces, en particular sobre la na-
turaleza del acto como bien lo señalaba el Ministro Relator João Otávio de
Noronha, en el Recurso Ordinario 85 de 200912 al analizar la diferencia entre
citación, notificación e intimación dadas las consecuencias procesales que
cada una presenta.
Deja claro el Ministro relator en su voto que no se trata de citación en
el sentido estricto de la palabra y en el sentido del art. 213 del CPC brasileno,
una vez que los efectos de la citación, en particular, la angularización de la
relación jurídica, no estarían presentes.
Tampoco se trataría de intimación, acto por el cual se da a conocer al
destinatario los actos y términos del proceso, conforme el art. 234 del CPC bra-
sileno, una vez que la comunicación al Estado extranjero por el juez nacional,
no criaría onus a las partes.
La propuesta enumerada por el RO 85, es la de caracterizar tal acto como
atípico en el ordenamiento brasileño, por no generar onus y no producir efec-
tos frente al Estado extranjero. El relator la caracteriza como siendo una “co-
municación procesal” no tipificada en nuestras normas jurídicas, pero que no
genera efectos procesales en los moldes de la citación y /o intimacción.
En general los tribunales han preferido la citación en la Embajada.13 Mas
el Supremo Tribunal Federal , basado en la naturaleza jurídica de las embaja-
das y en leyes existentes, defiende la citación al Ministerio de Relaciones Ex-
teriores del Estado extranjero directamente. Opción también corroborada por
las decisiones recientes del Superior tribunal de Justicia, como lo demuestra la
decisión del RO 74–RJ (2008/0076862–4)14, al afirmar que el estado extranjero,
aún cuando si configure acto de imperio, tiene la prerrogativa de renunciar a
la inmunidad motivo por el cuál há de ser realizada la citación”.
280
Ahora bien, la doctrina mayoritaria así como la jurisprudencia de los Tri- 15. Vid entre otros, los Recursos Ordiná
bunales Superiores (STF Y STJ) coinciden en afirmar que no se puede declarar rios n.57–RJ (2007/0081639–4), Dje
14/09/2009; e n.74 – RJ (2008/0076862–4)
inepta la petición inicial contra un Estado extranjero desde el comienzo, pues
Dje 08/06/2009.
aún cuando aparentemente la situación se encuadre dentro de las hipótesis en
que será declarada la inmunidad el Estado extranjero podrá renunciar siempre 16. RO 64–SP (2008–0003366–4). Dje
23/06/2008.
al privilegio e someterse a la jurisdicción territorial.15
Mediante el Recurso Ordinario n. 6416 se consagra, en la jurisprudencia 17. RO 64–SP, op.cit.
brasileña, la necesidad de actuación del Estado extranjero para que se mani-
fieste a respecto de su inmunidad, antes de la extinción del proceso. En este 18. Vid. Comentários DINAMARCO Cândido.
Op.cit. p.203.
sentido, el recurso mencionado consagró el entendimiento de que:
281
19. En este mismo sentido vid las decisiones cambia radicalmente si el Estado extranjero contesta la acción e inclusive si
RO N. 69. recorre de la decisión, ya que en tales situaciones se está reconociendo la com-
22. Publicado en el Dje 14/09/2009, Este viene siendo el entendimiento mayoritario de la jurisprudencia pa-
pág. 24–43. tria contemporánea.
282
Lo interesante es que esa confusión aún está presente particularmente 23. RO n. 57 –RJ (2007/0081639–4), pag.34.
en las instancias inferiores del poder judicial en Brasil. En el recurso n. 57–RJ
24. RO n. 57 op.cit., pag. 34.
(2007/0081639–4)22, el Ministro Sidnei Benetti , en su voto vista, busca dejar
clara la cuestión al construir su raciocinio a partir de la necesaria calificación 25. BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio,
jurídico-procesal de la decisión judicial, reconociendo la inmunidad. “Questões procedimentais das ações contra
Estados e organizações internacionais”, in A
Para el referido magistrado, el juez al extinguir el proceso deberá hacerlo
imunidade de jurisdição e o judiciário bra-
con base en la ausencia de condición de la acción, sileiro. Coord. Mario Garcia e Antenor Perei-
ra Madruga Filho, CEDI:Brasília, 2002, p. 216.
diferentemente de competencia interna, la falta de competencia implica
falta del derecho de acción, o incluso la ausencia de este derecho en
caso de existir anteriormente.23
283
26. Corte Internacional de Justicia CIJ, 2. Los desafíos de los tribunales brasileños en materia de
affair Alemanha vs Itália, 2008/44. inmunidades de Estado extranjero
284
Cogens que pueda ser imputable a un Estado extranjero27. Existe en todas ellas
la llamada “cláusula delictual”: El Estado extranjero no podrá invocar la inmu-
nidad de jurisdicción en controversias relativas a la indemnización por daños a
la integridad física de personas o daños a bienes causados por un acto u omi-
sión que le puedan ser atribuidas, si tal acto u omisión se ha producido, en todo
o en parte, en el territorio del Estado de foro y si el perpetrador directo estaba
presente en dicho territorio en el momento en que se produjo el acto u omisión.
Idealizada originalmente para ser aplicada en casos de accidentes de
tránsito en los que interviniesen agentes diplomáticos amparados por los pri-
vilegios de la Convención de 1961, el dispositivo ha sido utilizado en situa-
ciones mucho más complejas e, por que no decirlo, insólitas relacionadas a
actos de agentes del “servicio secreto” de un Estado extranjero. Así, entre las
controversias más famosas en que se reconoció la aplicación de la cláusula
resultando en el rechazo del privilegio, pueden ser mencionados sólo en Esta-
dos Unidos Lettelier y Moffit v. República de Chile, Liu v. República de China.
Ante la falta de previsión expresa, las víctimas de violaciones de dere-
chos fundamentales atribuidos a Estados extranjeros han recurrido a la cláu-
sula delictual e inclusive han tratado de vincular el acto en cuestión al des-
conocimiento de obligaciones contractuales sin obtener resultados favorables
En la primera hipótesis, debido a la exigencia de realización del acto en el
territorio del Estado de foro, lo que impide al juez analizar violaciones que
se hayan perpetrado en el territorio del Estado acusado o en un tercer Estado.
En el segundo caso por la falta de identidad del acto con la previsión legal.
De tal manera que la situación es bastante crítica para quien intenta ingresar
en un país dotado de legislación sobre inmunidades con una demanda ante
los tribunales sobre la alegación de violación de derechos fundamentales. Un
triste ejemplo de ello es el caso Bouzari v. Iran ante los tribunales canadienses.
Estados Unidos es el único país a adoptar una legislación específica per-
mitiendo a los tribunales analizar las demandas contra Estados extranjeros por
actos imputables a ellos realizados fuera de las fronteras americanas. En efecto
en 1996 el Foreign Sovereign Immunities Act de 1976 fue modificado por el
Antiterrorism and Effective Death Penalty Act (FSIA terrorism exception o State
Sponsored Terrorism Exception). Este último instrumento otorga a los ciudada-
nos americanos víctimas de lesiones personales o muerte, derivadas de actos de
285
28. Irak fue retirado en 2003. tortura, asesinatos extrajudiciales, sabotaje de aeronaves o toma de rehenes,
cometidos en territorio extranjero e imputables a un Estado, la posibilidad de
29. La más célebre sin duda fue concedida
buscar reparación en las Cortes Americanas. El principal límite a tales acciones
en el proceso Flatow v. Islamic Republic of
Iran, que daría origen a una modificación es que el Estado demandado debe ser considerado “financiador” (sponsor) de
de legislación conocida como la enmien- terrorismo de acuerdo con una lista elaborada por la Secretaria de Estado. En
da Flatow : Civil liability for acts os state
esa lista figuran actualmente Cuba, Irán, Corea del Norte , Libia, Siria y Sudan28.
sponsored terrorism Act. Esa enmienda
creó una base legal para que las victimas Entre 1996 y 2000 muchas demandas fueron presentadas e indemni-
pudiesen iniciar una acción contra el ofi- zaciones pulposas fueron concedidas29 que no fueron fácilmente ejecutadas
cial, empleado o agente del Estado extran- al enfrentar el privilegio de la inmunidad de ejecución por parte del Estado
jero que perpetra el acto. Además creaba
una base legislativa federal para ese tipo de
extranjero y la negativa inicial del gobierno americano de autorizar la utili-
acción, Independiente de La legislación del zación de bienes congelados de propiedad de esos Estados para tales fines. En
Estado de la federación de residencia de las enero de 2008 una nueva enmienda legislativa fue aprobada por el Congreso
victimas. Es pertinente aclarar que el FSIA
motivada por algunas interpretaciones de la enmienda Flatow realizadas por
se analiza en demandas contra Estados,
contra individuos existen otros dos instru- Cortes Federales. El National Defense Authorization Act modifica el FSIA en el
mentos jurídicos: el ACTA y el TVPA Torture sentido de crear una nueva sección que deja claramente establecido en ámbito
Victim Protection Act de 1991. federal el derecho de acción privada contra un Estado extranjero sobre la base
30. Entre los multiples comentarios sobre el
de la enmienda Flatow. Tal legislación no soluciona el problema de individuos
caso ver: Gavouneli Maria y Bantekas Elias, que buscan indemnización por violaciones de derechos fundamentales impu-
Prefecture of Voiotia v. Federal Republico f tables a Estados extranjeros en contextos totalmente diferentes.
Germany case 11/2000 – International de-
Es en los Estados carentes de legislación especial donde los Tribunales
cisions, en AJIL, 95, 2001, p.98.
han tomado la iniciativa de buscar soluciones concretas e innovadoras a las
demandas de víctimas de derechos humanos. Tales esfuerzos encuentran fun-
damento, parcial o totalmente, en el derecho internacional. Fueron los jueces
griegos los pioneros de esa corriente que encontró eco rápidamente en los
tribunales italianos. En el célebre caso Distomo de 1997, prefectura de Voiotia
y otros v. República Federal de Alemania30, el Tribunal de primera instancia
después de determinar la jurisdicción sobre el conflicto apoyándose en las
normas de la Convención de Basilea y en el derecho consuetudinario, utiliza
la noción de Jus Cogens para apartar el privilegio de la inmunidad estatal. En
efecto, de acuerdo con la sentencia, los crímenes de guerra, como son conside-
rados los hechos que originan la demanda, constituyen violaciones de normas
imperativas de derecho internacional que no pueden ser consideradas actos
soberanos amparados por la inmunidad de Estado. De otra parte, continua la
decisión, actos de tal naturaleza deben ser considerados nulos y prohibidos
286
a la luz del derecho Internacional de tal forma que toda conducta a su favor 31. La decisón Ferrini dio lugar a una biblio-
debe ser considerada una forma de cooperación con una violación del derecho grafia extensa entre la cual cabe destacar
los artículos de Andrea Bianchi. Ver entre
internacional. El tribunal de segunda instancia acompañaría la decisión, así muchos otros su comentário sobre La de-
como la Corte Suprema en 2000. Posteriormente un Tribunal Especial recha- cisión en AJIL, vol. 99, 2005, PS. 242–248.
zaría esas conclusiones sin que esto afectase su importancia y repercusión.
32. La corte de Casación afirmo en su sen-
Desde 2004, con la decisión de la Corte de Casación en el caso Ferrini
tencia que Itália podría ejercer su jurisdic-
v República Federal de Alemania31, los tribunales italianos desarrollaron una ción frente a demandas presentadas por
jurisprudencia constante en el sentido de no conceder el privilegio de la inmu- personas que durante La Segunda Guerra
nidad de jurisdicción a Estados extranjeros que enfrenten acusaciones de vio- Mundial hubiesen sido deportadas a Ale-
mania y sometidas a trabajos forzados en
lación de normas de Jus Cogens principalmente cuando se trata de crímenes la industria armamentista. La sentencia
de guerra32. La particularidad de la posición italiana radica en la invocación Ferrini fué confirmada por otras decisiones
constante de los principios del Derecho Internacional consuetudinario, entre emitidas el 29 de mayo y El 21 de octubre
de 2008.
los cuales está la inmunidad de jurisdicción de Estado extranjero cuyo alcance
no es mas absoluto, y en el reconocimiento de una jerarquía superior a las 33. CIJ, 17 de enero de 2011 – solicitud de
normas imperativas – Jus Cogens – sobre las demás disposiciones del Derecho Grécia para ser reconocido como Estado in-
terveniente en el Proceso RFA v Itália.
Internacional por representar la garantía de valores universales que trascien-
den los intereses nacionales individuales. Tal superioridad genera como con-
secuencia necesaria la imposibilidad de conceder un privilegio que amenace la
integridad de tales valores.
La actitud italiana generó protestas de la República Federal de Alemania,
Estado especialmente afectado por las decisiones, que fueron sostenidas por
el Primer Ministro Berlusconi sin modificar la posición del Poder Judicial. Tal
situación motivó en diciembre de 2008 el depósito de una demanda ante la
Corte Internacional de Justicia cuya fundamental acusación radica en la viola-
ción de la regla consuetudinaria de la inmunidad de Estado extranjero. Grecia
acaba de someter a la Corte una solicitud para intervenir en el proceso invo-
cando intereses jurídicos indirectos relacionados al ejercicio de la jurisdicción
que sus tribunales pueden ejercer en virtud del Derecho Internacional y que
podrían ser afectados por una decisión internacional33.
Si bien es cierto que la decisión de la Corte Internacional de Justicia
es importante para la evolución posterior de las posiciones favorables a una
mayor garantía de los derechos fundamentales y del reconocimiento de la
superioridad de las normas imperativas, es imposible ignorar los intereses po-
líticos que están en juego y que pueden motivar una posición conservadora
287
34. Entre los autores más importantes se de los privilegios estatales. Muchos autores han apuntado las consecuencias
encuentra Christian Tomuschat nefastas que en su opinión tendría una decisión favorable a la prevalencia
de las normas imperativas, con la posibilidad de una aumento inusitado de
35. Vid RO nº 57_RJ (2007/0081639–4).
Dje14/09/2009, pp.2–43. demandas contra Estados Extranjeros por hechos pasados34. Otros consideran
esa situación infundada.
Lo que es cierto es que el conflicto República Federal de Alemania v.Italia
fue una oportunidad para que el Tribunal Internacional enfrente claramente
ciertas cuestiones que hasta ahora han sido evitadas.
288
es de extrañar que acusaciones de violación de derechos fundamentales hagan 36. RO nº 64_SP (2008/0003366-4), Dje
23/06/2008, pp.2-17.
parte de esa nueva tendencia, lo que ha conducido los jueces a hacer un aná-
lisis más profundo de las razones que justifican la concesión de inmunidad.
En 2008 el Superior Tribunal de Justicia examinó el Recurso Ordinario 64 SP36
que recuerda el caso Distomo. Ese recurso tiene origen en una demanda contra
el Estado Alemán presentada por un francés naturalizado brasileño, Salomón
Simón Frydman, en que solicita indemnización por los actos cometidos contra
él y su familia de etnia judaica durante la ocupación de Francia por las fuer-
zas alemanas. En la sentencia, cuya Relatora es la Ministra Nancy Andrighi,
se reconoce el interés de la jurisdicción brasileña en actuar en la represión de
ilícitos como los descritos en la demanda.
Dos razones justifican la posición del Tribunal: en primer lugar, la exis-
tencia de representación del Estado extranjero en el territorio brasileño que
autoriza la aplicación del artículo 88 I del Código de Procedimiento Civil y en
segundo lugar, el hecho que la Constitución Brasileña tiene como un principio
fundamental el respeto a la dignidad de la persona humana, fuera del com-
promiso adquirido en el ámbito internacional de garantizar la prevalencia de
los Derechos Humanos, la autodeterminación de los pueblos y el repudio al
terrorismo y al racismo. Los actos practicados por el ejercito alemán durante
la ocupación son de esa naturaleza y cuando dirigidos contra ciudadanos bra-
sileros, inclusive los naturalizados, interesan al Estado Brasileño y pueden ser
juzgados por sus tribunales.
A continuación la decisión se refiere a la inmunidad de Estado Extranje-
ro considerando que no representa una regla aplicable de manera automática,
mas un derecho que puede o no ser ejercido por el Estado, por lo cual el pro-
ceso no puede extinguirse sin manifestación del mismo. La decisión concluye:
289
37. Recursos Ordinarios 62 RJ, 66 RJ, 72 RJ De los casos analizados por el Superior Tribunal de Justicia que merecen
y 74 RJ entre otros. destaque están las demandas de indemnización contra la Republica Federal de
Alemania por la muerte de pescadores en la costa brasileña causada por ata-
ques de submarino durante la segunda guerra mundial37. A pesar que en todas
las decisiones el Tribunal consideró que ante un acto de guerra la inmunidad
de Estado debe ser reconocida por tratarse de un típico acto de Imperio, la
discusión sobre el conflicto entre inmunidad y violación de derechos funda-
mentales y normas imperativas fue iniciada.
En el RO 74 RJ, cuya decisión es de mayo de 2009, el Ministro Salomón
en su voto vista reconoce la competencia de los Tribunales Brasileños para
dirimir el conflicto y hace un relato pormenorizado de la evolución de la
cuestión, citando las decisiones griegas e italianas como pioneras. Sostiene de
otra parte, que en el caso concreto es irrelevante la caracterización del acto
como de imperio o de gestión puesto que constituye un crimen de guerra (ya
tipificado en la época como tal) contrario a normas de Jus Cogens y en ese
caso el principio de la inmunidad de Estado presenta una excepción justifica-
da en la necesidad de proteger tales dispositivos y garantizar su prevalencia.
Para el Ministro la inmunidad de jurisdicción es incompatible con violación
de normas imperativas, la Constitución Brasileña consagra la obligación de
garantizar el respeto a los Derechos Fundamentales y concluye que por tales
motivos no se debe conceder la inmunidad en este caso.
El enfrentamiento entre inmunidad de jurisdicción y violación de Dere-
chos Humanos también fue planteada últimamente en casos de deportación
de ciudadanos brasileños. Siendo la decisión de un Estado de admitir o no el
ingreso de una persona en su territorio un típico acto de imperio, uno de los
demandantes evitó de discutir el acto en sí para atacar los abusos cometidos
por los agentes gubernamentales durante el procedimiento. En la sentencia
emitida en el Recurso Ordinario 70 RS, de 27 de mayo de 2008, el Tribunal
manda citar el Estado Extranjero para que se manifieste y compruebe, si es
el caso, que el acto es de imperio garantizando el privilegio de la inmunidad.
El demandante ingresaría posteriormente con un recurso (Agravo de Ins-
trumento) al considerar que la citación por el Tribunal de Primera Instancia
y la posterior manifestación del Estado extranjero habrían ocurrido de forma
incorrecta. En las palabras del demandante: “El propio contenido de la ma-
290
nifestación hace evidente que la parte demandada no conoce los reales mo-
tivos de la acusación objeto del proceso una vez que la demanda judicial no
confronta, en ningún momento, el derecho del Estado Extranjero de vedar el
ingreso de extranjeros que no cumplen con las exigencias documentales, así
como aquellos que se encajan en los perfiles delineados como peligrosos, sino
que se refiere a la forma abusiva y violadora de los derechos humanos en que
la prohibición del ingreso en el país fue hecha”. El objetivo del recurso es el de
garantizar que el Estado acusado vá a tener conocimiento pleno de la acusa-
ción y así tener oportunidad de defenderse debidamente.
3. Consideraciones finales
291
Reênciasfer ácasbilogr
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio, “Questões procedimentais das ações contra Esta-
dos e organizações internacionais”, in A imunidade de jurisdição e o judiciário
brasileiro. Coord. Mario Garcia e Antenor Pereira Madruga Filho, CEDI:Brasília, 2002.
_____. Instituições de direito processual civil. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, v. 2, 2002.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Fabris, 1998.
LIEBMAN, Enrico Túlio, Manual de Direito Processual Civil, trad. Port. Forense, 1984.
MADRUGA F., Antenor P., A renúncia à imunidade de jurisdição pelo estado brasi-
leiro e o novo direito da imunidade de jurisdição, Rio de Janeiro:Renovar, 2003.
292
Gilberto Fachetti Silvestre
Doutorando em Direito na USP e Professor Direito na Universidade Federal
do Espirito Santo.
17
A DIGNIDADE HUMANA COMO CRITÉRIO DE JUSTIÇA EM
DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
294
Nenhum tema é tão fascinante e polêmico no campo da teoria e filosofia 1. “Nós, representantes do povo brasileiro,
jurídicas quanto àquele que envolve o estudo da justiça, e, por via reflexa, da reunidos em Assembléia Nacional Consti-
tuinte para instituir um Estado Democrá-
lei justa. Seu fascínio está no fato de que a justiça é a justificativa à obediên- tico, destinado a assegurar o exercício dos
cia da lei; e sua polêmica gira em torno da acusação positivista de que é um direitos sociais e individuais, a liberdade,
conceito irracional, territorial e relativista. a segurança, o bem-estar, o desenvolvi-
mento, a igualdade e a justiça como va-
O que se quer é analisar como os direitos humanos são padrões aplica-
lores supremos de uma sociedade fraterna,
dos pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro como fatores que determinam pluralista e sem preconceitos, fundada na
o que é justo. harmonia social e comprometida, na or-
Nesse sentido, é preciso estabelecer como a lei pode contribuir à uni- dem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos,
versalização do conceito de justiça. Ora, o Direito é uma síntese do bem, da sob a proteção de Deus, a seguinte Cons-
paz, da liberdade, da convivência, da igualdade, da solidariedade. Ou seja, os tituição da República Federativa do Brasil”
valores fundamentam e dão sentido ao Direito (que deve ser um reflexo de tais (sem itálico no original). Além disso, serve
de paradigma, também, o caput do art. 37
valores). Há, assim, certo ideal que foi, entre nós, universalizado e que se con-
da Constituição, que fortalece o vínculo
sagrou positivamente: trata-se de um paradigma ideológico-normativo, que factual entre Direito e Moral e reforça a ne-
não é construção meramente relativista e subjetiva, senão algo objetivo e que cessidade de um vínculo conceptual com a
Moral para a exata compreensão do Direito:
se encontra, no caso brasileiro, por exemplo, no Preâmbulo da Constituição,
“Art. 37. A administração pública direta e
dentre tantos outros dispositivos.1 indireta de qualquer dos Poderes da União,
Essa idéia de paradigmas ideológico-normativos é bem representada pe- dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-
los diversos direitos humanos, reunidos sob o império do princípio da dignida- cípios obedecerá aos princípios de legalida-
de, impessoalidade, moralidade, publicida-
de da pessoa humana. É justamente aqui que se encontra a aproximação com
de e eficiência […]” (sem itálico no original).
a justiça, que é a finalidade do Direito. É a partir de tais paradigmas que se
determina, objetivamente, quando o Direito é justo ou injusto.
Mas, de que trata os referidos paradigmas? Ora, todos eles – liberdade,
igualdade, fraternidade, justiça, segurança jurídica, pluralismo, dignidade etc.
– possuem um ponto central em comum: o ser humano; eles representam a
preocupação com a preservação do homem. Nada é mais importante para um
sistema social e para um sistema de controle social do que as pessoas, indi-
vidualmente consideradas, que o compõe. Assim, o ser humano é um super-
valor, do qual derivam todos os outros valores (KAUFMANN, 2002, p. 145).
Veja, então, que o ser humano, enquanto valor, ou seja, em sua dignidade
ou humanidade, é o denominador comum de toda valoração. Sendo o valor
universal, não há que se falar de relativismo ou irracionalidade numa noção de
justiça que leve em consideração, exatamente, o homem. Dessa maneira, será
possível um conceito universal e racional de justiça se pautado nesse denomi-
295
nador comum que é o valor “ser humano”, que pode, numa linguagem axio-
lógica, ser designado a partir do conceito de dignidade da pessoa humana. Em
suma, qualquer conceito de justiça deve ter em seu centro a pessoa humana.
Por isso, é possível entender o bom Direito (rectius, justo) como aquele
que propicia a realização da dignidade do indivíduo. Ou seja, Direito justo é
aquele que proporciona o bem-estar, pois não é outro o resultado quando se
pensa em realização da dignidade do indivíduo. Quando realizado, o indivíduo
torna-se feliz. Logo, justiça é felicidade! Porém, justiça aqui não é vista como
a felicidade interna do indivíduo, isto é, um estado de espírito. A noção que
aqui se tem de felicidade está relacionada com a realização da “humanidade”,
ou seja, da dignidade do indivíduo.
A justiça vista como felicidade, na acepção que aqui é dada, está bem
distante daquela noção dada por Kelsen (2000, p. 09), de que justiça é um
julgamento subjetivo de valor, “dando como significado de felicidade de um
homem aquilo que ele considera que isso seja”. Na verdade, a justiça não será
aquilo que um sujeito considera como algo que lhe dá satisfação e felicidade;
a justiça tem a ver com a realização da condição humana da pessoa, e isto em
nada é relativo: o homem se realiza plenamente quando tem sua dignidade, ou
seja, condição humana, respeitada.
Esse é, pois, o conceito de justiça que se tem universalizado: a realização
da condição humana do sujeito, isto é, de sua dignidade, o que lhe provoca
a boa sensação de uma felicidade que pode ser sentida por todos aqueles que
têm sua condição humana respeitada. Nesse ínterim, urge questionar o que
os Tribunais aplicam como sendo o justo, ou, em outras palavras, a idéia do
que seja justiça aqui defendida é a mesma orientação seguida pelos tribunais
brasileiros? Para responder a tanto, nas curtas linhas que seguem, utilizou-se
como amostragem algumas decisões da Suprema Corte brasileira, que, de certa
maneira, representa a essência de todo o Judiciário do país.
Antes, porém, é preciso compreender perfeitamente o Direito em seu sen-
tido axiológico. A partir daí será possível determinar a importância e o alcance
da justiça para o conhecimento jurídico.
O conteúdo do Direito deve estar de acordo com o ideal de Direito, e o Di-
reito ideal é aquele que é justo. Para Radbruch (2000, p. 47), “a idéia do direito
296
não pode ser outra senão a justiça”. Assim, os valores que o Direito consagra
dão-lhe conteúdo, fazendo-o justo.
Reale (1987, p. 127) bem caracteriza, da seguinte forma, o “espírito epo-
cal” de nossos tempos:
297
“HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RA-
CISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM
DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros ‘fazendo
apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias’ contra a comuni-
dade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90)
constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e
imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da
prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-
se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a ex-
ceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.
3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o ma-
peamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções
entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos,
altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que
todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas
entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo.
A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conte-
údo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo
que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.
5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de
que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam
raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar
a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e
morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo,
sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas
que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos
princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, base-
ada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica
convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais
que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa into-
lerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e
constitucional do País. […]. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia
298
como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura 2. STF, HC 82.424/RS, Tribunal Pleno, Rel.
ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que Min. Moreira Alves, Rel. p/ Acórdão Min.
Maurício Corrêa, j. em 17.09.2003, DJ
o acompanham. […]. Prevalência dos princípios da dignidade da pes-
19.03.2004.
soa humana e da igualdade jurídica. 15. ‘Existe um nexo estreito entre
a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar 3. STF, Ext. 811/Peru, Tribunal Pleno, Rel.
Min. Celso de Mello, j. em 04.09.2002, DJ,
termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo
28.02.2003, p. 09.
da lembrança sobre o esquecimento’. No estado de direito democrático
devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a
prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória
dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que
permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de
torpeza inominável. […]. Ordem denegada”.2
299
4. STF, ADPF-QO 54/DF, Tribunal Pleno, da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação
Rel. Min. Marco Aurélio, j. 27.04.2005, DJ da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de
31.08.2007, p. 29.
feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do
5. STF, RE 359444/RJ, Tribunal Pleno, crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de pre-
Rel. Min. Carlos Velloso, Rel. p/ Acórdão ceito fundamental. ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO
Min. Marco Aurélio, j. em 24.03.2004, DJ
DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – PROCESSOS EM CURSO – SUSPEN-
28.05.2004, p. 07.
SÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito
fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da
gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final
do Supremo Tribunal Federal. ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – IN-
TERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – AFASTAMENTO – MI-
TIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao
qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de
preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal rela-
tivamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez
no caso de anencefalia”.4
300
SAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE
VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSITUCIONALIDADE DO USO DE
CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS
PARA FINS TERAPÊUTICOS. DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO.
NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDA-
MENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E
AO PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA
TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE
BIOSSEGURANÇA CONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM
RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS. IMPRO-
CEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO. I — O CONHECIMENTO CIENTÍFICO, A
CONCEITUAÇÃO JURÍDICA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E
SEUS REFLEXOS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA LEI
DE BIOSSEGURANÇA. As “células-tronco embrionárias” são células
contidas num agrupamento de outras, encontradiças em cada embrião
humano de até 14 dias (outros cientistas reduzem esse tempo para a fase
de blastocisto, ocorrente em torno de 5 dias depois da fecundação de um
óvulo feminino por um espermatozóide masculino). Embriões a que se
chega por efeito de manipulação humana em ambiente extracorpóreo,
porquanto produzidos laboratorialmente ou “in vitro”, e não espontane-
amente ou “in vida”. Não cabe ao Supremo Tribunal Federal decidir so-
bre qual das duas formas de pesquisa básica é a mais promissora: a
pesquisa com células-tronco adultas e aquela incidente sobre células-
tronco embrionárias. A certeza científico-tecnológica está em que um
tipo de pesquisa não invalida o outro, pois ambos são mutuamente com-
plementares. II — LEGITIMIDADE DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-
TRONCO EMBRIONÁRIAS PARA FINS TERAPÊUTICOS E O CONSTITU-
CIONALISMO FRATERNAL. A pesquisa científica com células-tronco
embrionárias, autorizada pela Lei n° 11.105/2005, objetiva o enfrenta-
mento e cura de patologias e traumatismos que severamente limitam,
atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida
de expressivo contingente populacional (ilustrativamente, atrofias espi-
nhais progressivas, distrofias musculares, a esclerose múltipla e a lateral
amiotrófica, as neuropatias e as doenças do neurônio motor). A escolha
301
feita pela Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou desapre-
ço pelo embrião “in vitro”, porém u’a mais firme disposição para encur-
tar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no
âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo
qualifica “a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça” como valores supremos de uma sociedade mais
que tudo “fraterna”. O que já significa incorporar o advento do consti-
tucionalismo fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira co-
munhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade
em benefício da saúde e contra eventuais tramas do acaso e até dos
golpes da própria natureza. Contexto de solidária, compassiva ou frater-
nal legalidade que, longe de traduzir desprezo ou desrespeito aos con-
gelados embriões “in vitro”, significa apreço e reverência a criaturas
humanas que sofrem e se desesperam. Inexistência de ofensas ao direito
à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-
-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se
destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se
acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos àfeli-
cidade e do viver com dignidade (Ministro Celso de Mello). III - A PRO-
TEÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À VIDA E OS DIREITOS INFRA-
CONSTITUCIONAIS DO EMBRIÃO PRÉ-IMPLANTO. O Magno Texto
Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante
em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana
um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma
concreta pessoa, porque nativiva (teoria “natalista”, em contraposição
às teorias “concepcionista” ou da “personalidade condicional”). E quan-
do se reporta a “direitos da pessoa humana” e até dos “direitos e garan-
tias individuais” como cláusula pétrea está falando de direitos e garan-
tias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos
fundamentais “à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie-
dade”, entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o
timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento
familiar). Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de
transpasse de poder normativo para a legislação ordinária. A potencia-
302
lidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante
para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas
ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três
realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a
pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana
embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei
de Biossegurança (“in vitro” apenas) não é uma vida a caminho de outra
vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar
as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem
factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito
infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvol-
vimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana ante-
riores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum.
O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa
no sentido biográfico a que se refere a Constituição. IV — AS PESQUI-
SAS COM CÉLULAS-TRONCO NÃO CARACTERIZAM ABORTO. MATÉ-
RIA ESTRANHA À PRESENTE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALI-
DADE. É constitucional a proposição de que toda gestação humana
principia com um embrião igualmente humano, claro, mas nem todo
embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana, em se
tratando de experimento “in vitro”. Situação em que deixam de coincidir
concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecun-
dado) não for introduzido no colo do útero feminino. O modo de irrom-
per em laboratório e permanecer confinado “in vitro” é, para o embrião,
insuscetível de progressão reprodutiva. Isto sem prejuízo do reconheci-
mento de que o zigoto assim extra-corporalmente produzido e também
extracorporalmente cultivado e armazenado é entidade embrionária do
ser humano. Não, porém, ser humano em estado de embrião. A Lei de
Biossegurança não veicula autorização para extirpar do corpo feminino
esse ou aquele embrião. Eliminar ou desentranhar esse ou aquele zigoto
a caminho do endométrio, ou nele já fixado. Não se cuida de interrom-
per gravidez humana, pois dela aqui não se pode cogitar. A “controvér-
sia constitucional em exame não guarda qualquer vinculação com o
problema do aborto.” (Ministro Celso de Mello). V — OS DIREITOS FUN-
303
DAMENTAIS À AUTONOMIA DA VONTADE, AO PLANEJAMENTO FA-
MILIAR E À MATERNIDADE. A decisão por uma descendência ou filia-
ção exprime um tipo de autonomia de vontade individual que a própria
Constituição rotula como “direito ao planejamento familiar”, funda-
mentado este nos princípios igualmente constitucionais da “dignidade
da pessoa humana” e da “paternidade responsável”. A conjugação cons-
titucional da laicidade do Estado e do primado da autonomia da vonta-
de privada, nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa. A opção do casal
por um processo “in vitro” de fecundação artificial de óvulos é implícito
direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretar para esse casal o
dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os embriões
eventualmente formados e que se revelem geneticamente viáveis. O
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana opera por modo
binário, o que propicia a base constitucional para um casal de adultos
recorrer a técnicas de reprodução assistida que incluam a fertilização
artificial ou “in vitro”. De uma parte, para aquinhoar o casal com o di-
reito público subjetivo à “liberdade” (preâmbulo da Constituição e seu
art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade. De outra banda,
para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se
por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assis-
tência físico-afetiva (art. 226 da CF). Mais exatamente, planejamento
familiar que, “fruto da livre decisão do casal”, é “fundado nos princípios
da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável” (§ 7º
desse emblemático artigo constitucional de nº 226). O recurso a proces-
sos de fertilização artificial não implica o dever da tentativa de nidação
no corpo da mulher de todos os óvulos afinal fecundados. Não existe tal
dever (inciso II do art. 5º da CF), porque incompatível com o próprio
instituto do “planejamento familiar” na citada perspectiva da “paterni-
dade responsável”. Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gê-
nero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao
direito fundamental que se lê no inciso II do art. 5º da Constituição. Para
que ao embrião “in vitro” fosse reconhecido o pleno direito à vida, ne-
cessário seria reconhecer a ele o direito a um útero. Proposição não
autorizada pela Constituição. VI — DIREITO À SAÚDE COMO COROLÁ-
304
RIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA DIGNA. O § 4º do art. 199 da
Constituição, versante sobre pesquisas com substâncias humanas para
fins terapêuticos, faz parte da seção normativa dedicada à “SAÚDE”
(Seção II do Capítulo II do Título VIII). Direito à saúde, positivado como
um dos primeiros dos direitos sociais de natureza fundamental (art. 6º
da CF) e também como o primeiro dos direitos constitutivos da seguri-
dade social (cabeça do artigo constitucional de nº 194). Saúde que é
“direito de todos e dever do Estado” (caput do art. 196 da Constituição),
garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados como “de
relevância pública” (parte inicial do art. 197). A Lei de Biossegurança
como instrumento de encontro do direito à saúde com a própria Ciência.
No caso, ciências médicas, biológicas e correlatas, diretamente postas
pela Constituição a serviço desse bem inestimável do indivíduo que é a
sua própria higidez físico-mental. VII — O DIREITO CONSTITUCIONAL
À LIBERDADE DE EXPRESSÃO CIENTÍFICA E A LEI DE BIOSSEGURAN-
ÇA COMO DENSIFICAÇÃO DESSA LIBERDADE. O termo “ciência”, en-
quanto atividade individual, faz parte do catálogo dos direitos funda-
mentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de
expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou
genuíno direito de personalidade. Por isso que exigente do máximo de
proteção jurídica, até como signo de vida coletiva civilizada. Tão quali-
ficadora do indivíduo e da sociedade é essa vocação para os misteres da
Ciência que o Magno Texto Federal abre todo um autonomizado capítu-
lo para prestigiá-la por modo superlativo (capítulo de nº IV do título
VIII). A regra de que “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvi-
mento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas” (art. 218, ca-
put) é de logo complementada com o preceito (§ 1º do mesmo art. 218)
que autoriza a edição de normas como a constante do art. 5º da Lei de
Biossegurança. A compatibilização da liberdade de expressão científica
com os deveres estatais de propulsão das ciências que sirvam à melhoria
das condições de vida para todos os indivíduos. Assegurada, sempre, a
dignidade da pessoa humana, a Constituição Federal dota o bloco nor-
mativo posto no art. 5º da Lei 11.105/2005 do necessário fundamento
para dele afastar qualquer invalidade jurídica (Ministra Cármen Lúcia).
305
6. ADI nº. 3510/DF, Tribunal Pleno, Rel. VIII — SUFICIÊNCIA DAS CAUTELAS E RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELA
Min. Ayres Britto, j. em 29/05/2008. LEI DE BIOSSEGURANÇA NA CONDUÇÃO DAS PESQUISAS COM CÉ-
LULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. A Lei de Biossegurança caracteriza-
se como regração legal a salvo da mácula do açodamento, da insufici-
ência protetiva ou do vício da arbitrariedade em matéria tão religiosa,
filosófica e eticamente sensível como a da biotecnologia na área da
medicina e da genética humana. Trata-se de um conjunto normativo
que parte do pressuposto da intrínseca dignidade de toda forma de
vida humana, ou que tenha potencialidade para tanto. A Lei de Bios-
segurança não conceitua as categorias mentais ou entidades biomédi-
cas a que se refere, mas nem por isso impede a facilitada exegese dos
seus textos, pois é de se presumir que recepcionou tais categorias e as
que lhe são correlatas com o significado que elas portam no âmbito
das ciências médicas e biológicas. IX — IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
Afasta-se o uso da técnica de “interpretação conforme” para a feitura
de sentença de caráter aditivo que tencione conferir à Lei de Biossegu-
rança exuberância regratória, ou restrições tendentes a inviabilizar as
pesquisas com células-tronco embrionárias. Inexistência dos pressu-
postos para a aplicação da técnica da “interpretação conforme a Cons-
tituição”, porquanto a norma impugnada não padece de polissemia ou
de plurissignificatidade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada
totalmente improcedente”.6
306
QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA ESSENCIAL DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA — ALGUNS PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDE-
RAL E DA SUPREMA CORTE AMERICANA SOBRE O DIREITO FUNDA-
MENTAL À BUSCA DA FELICIDADE — PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA
(2006): DIREITO DE QUALQUER PESSOA DE CONSTITUIR FAMÍLIA,
INDEPENDENTEMENTE DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU IDENTI-
DADE DE GÊNERO — DIREITO DO COMPANHEIRO, NA UNIÃO ESTÁ-
VEL HOMOAFETIVA, À PERCEPÇÃO DO BENEFÍCIO DA PENSÃO POR
MORTE DE SEU PARCEIRO, DESDE QUE OBSERVADOS OS REQUISI-
TOS DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL — O ART. 226, § 3º, DA LEI
FUNDAMENTAL CONSTITUI TÍPICA NORMA DE INCLUSÃO — A FUN-
ÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO — A PROTEÇÃO DAS MINORIAS
ANALISADA NA PERSPECTIVA DE UMA CONCEPÇÃO MATERIAL DE
DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL — O DEVER CONSTITUCIONAL DO
ESTADO DE IMPEDIR (E, ATÉ MESMO, DE PUNIR) “QUALQUER DIS-
CRIMINAÇÃO ATENTATÓRIA DOS DIREITOS E LIBERDADES FUNDA-
MENTAIS” (CF, ART. 5º, XLI) — A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS E O FORTALECIMENTO DA JURISDIÇÃO CONSTI-
TUCIONAL: ELEMENTOS QUE COMPÕEM O MARCO DOUTRINÁRIO
QUE CONFERE SUPORTE TEÓRICO AO NEOCONSTITUCIONALISMO —
RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. NINGUÉM PODE SER PRIVADO
DE SEUS DIREITOS EM RAZÃO DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL. — Nin-
guém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem so-
frer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivode sua orientação
sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber a igual
proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído
pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável
qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a
intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em
razão de sua orientação sexual. RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO
DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR. — O Supremo
Tribunal Federal — apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva e
invocando princípios essenciais (como os da dignidade da pessoa huma-
307
na, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da
intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade) — reconhece
assistir, a qualquer pessoa, o direito fundamental à orientação sexual,
havendo proclamado, por isso mesmo, a plena legitimidade ético-jurí-
dica da união homoafetiva como entidade familiar, atribuindo-lhe, em
conseqüência, verdadeiro estatuto de cidadania, em ordem a permitir
que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes con-
seqüências no plano do Direito, notadamente no campo previdenciário,
e, também, na esfera das relações sociais e familiares. — A extensão,
às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união
estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela
direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igual-
dade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado
constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os
quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de
inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1º, III,
e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir
suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do
mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar. — Toda pessoa
tem o direito fundamental de constituir família, independentemente de
sua orientação sexual ou de identidade de gênero. A família resultan-
te da união homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe
os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações que se mos-
trem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões he-
teroafetivas. A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DO AFETO COMO UM
DOS FUNDAMENTOS DA FAMÍLIA MODERNA. — O reconhecimento do
afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um
novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio concei-
to de família. Doutrina. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E BUSCA
DA FELICIDADE. — O postulado da dignidade da pessoa humana, que
representa — considerada a centralidade desse princípio essencial (CF,
art. 1º, III) — significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte
que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em
nosso País, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que
308
se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada 7. RE nº. 477554 AgR/MG, 2ª Turma, Rel.
pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. — O princípio Min. Celso de Melo, j. em 16/08/2011.
309
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CI-
VIL PÚBLICA. GRATUIDADE DE TRANSPORTE PARA PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA MENTAL. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE (ART.
330, I, DO CPC). ALEGADO CERCEAMENTO DE DEFESA. ANÁLISE DE
MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. 1. A violação reflexa e oblíqua da
Constituição Federal decorrente da necessidade de análise de malferi-
mento de dispositivos infraconstitucionais torna inadmissível o recurso
extraordinário. Precedentes: RE 596.682, Rel. Min. Carlos Britto, Dje de
21/10/10, e o AI 808.361, Rel. Min. Marco Aurélio, Dje de 08/09/10. 2.
Os princípios da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa
e do contraditório, da motivação das decisões judiciais, dos limites da
coisa julgada e da prestação jurisdicional, quando a verificação de sua
ofensa dependa do reexame prévio de normas infraconstitucionais, re-
velam ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal, o que, por si
só, não desafia a abertura da instância extraordinária. Precedentes: AI
804.854–AgR, 1ª Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 24/11/2010, e
AI 756.336–AgR, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 22/10/2010.
3. In casu, o acórdão recorrido assentou: “PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TU-
TELA. PRETENSÃO DE DETERMINAÇÃO À PERMISSIONÁRIA DE SER-
VIÇO PÚBLICO PARA O TRANSPORTE GRATUITO DE PESSOAS POR-
TADORAS DE DEFICIÊNCIA MENTAL. IMPROVIMENTO AO RECURSO.
I – Nos termos do art. 203, IV, da Constituição Federal, ‘a assistência
social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de con-
tribuição à seguridade social, e tem por objetivos […] a habilitação e
reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
integração à vida comunitária; […]’. O transporte dos deficientes físicos
promove a sua integração à vida comunitária e o Colendo Supremo Tri-
bunal Federal através de seu venerando Tribunal Pleno, julgando a ADI
3768/DF, na qual foi relatora a eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA, em
julgamento de 19/09/2007, conforme DJ de 20–10–2007, afastou a exi-
gência de fonte de custeio quando se trata de transporte capaz de viabi-
lizar a concretização da dignidade da pessoa humana e de seu bem-es-
tar. Fundamentando-se diretamente na Constituição Federal, o direito
310
ao transporte gratuito de deficientes afasta a necessidade de fonte de 9. AI 847845 AgR/RJ, 1ª Turma, Rel. Min.
custeio; II – Ademais, ‘qualquer cidadão sabe que, independentemente Luiz Fux, j. em 11/12/2012.
311
maneira que o bom Direito é aquele que consagra valores capazes de realizar
esse ideal de realização e felicidade para todos os homens. O Direito deve per-
mitir a realização plena das potencialidades de todos os homens. E para tanto,
necessária a consagração de valores que repercutam em mecanismos para a
promoção da dignidade das pessoas.
É exatamente o que se verifica nas decisões supracitadas: a preocupação
central foi com a preservação do núcleo central da pessoa humana, qual seja,
sua dignidade. A preocupação com os direitos fundamentais demonstra a re-
levância da preservação do ser humano. Dessa maneira, os valores que fazem
referência ao homem são os critérios de avaliação do Direito (função da justi-
ça), e naquelas decisões foram bem empregados perfeitamente nesse sentido,
pois se insurgiram contra atos que feriam a dignidade humana.
São esses valores que nos unem como comunidade através da lei, como
bem demonstra Dworkin (1999, p. 492):
O STF está preocupado com o conteúdo da lei, quer dizer, pretende que
ela seja boa, isto é, justa. Para tanto, a dignidade humana é utilizada como o
parâmetro para a constatação da constitucionalidade dos atos normativos, o
312
que significa dizer, resumidamente, que as normas devem estar de acordo com 11. Cite-se, a título de exemplo, o Preâm-
os paradigmas contidos na Constituição. Tais paradigmas, ou parâmetros – bulo, o art. 1º, o art. 5º, o caput do art. 37,
dentre tantos outros.
bem representados por aqueles valores contidos em diversos dispositivos cons-
titucionais11 –, derivam, como já dito, de um super-valor, que é o ser humano.
Aí foi localizado o núcleo da noção de justiça.
O que se quer dizer aqui é que a noção de justiça contida naquelas decisões
nada mais é do que a aplicação dos valores constitucionais que protegem o homem.
3. Conclusão
313
Reênciasfer ácasbilogr
AMARAL, Francisco. Direito civil – introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MESQUITA, Gil Ferreira. O devido processo legal em seu sentido material: breves consi-
derações. In.: Revista de Informação Legislativa. Ano 43, nº. 170. Brasília: Senado
Federal, abr./jun. 2006, pp. 209–220.
MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade humana. In: MORAES, Maria
Celina Bodin de (Coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Ja-
neiro: Renovar, 2006, pp. 01–60.
RADBRUCH, Gustav von. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 1987.
314
Carmelinda de Souza Oliveira
Discente do Curso Educação em Direitos Humanos, Graduada em Pedagogia,
Pós-graduada em Alfabetização e Letramento e Gestão Escolar.
18
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: ESTRATÉGIAS PARA
COMBATER OS ESTEREÓTIPOS E PRECONCEITOS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
1. Introdução
316
Desse modo, justifica-se a pertinência desse tema, considerando-o de
suma importância para a área da Educação, por possibilitar maior conheci-
mento sobre educar em Direitos Humanos. Busca-se redefinir e criar novas es-
tratégias para combate aos estereótipos e preconceitos iminentes no contexto
escolar infantil.
Para elaboração do artigo, optou-se pela pesquisa bibliográfica. Desse
modo, de acordo com Lakatos e Marconi (1987), este tipo de pesquisa possi-
bilita ao pesquisador entrar em contato direto com os materias e registros de
outros autores que abordam a sua problemática de discussão, visando dar base
e ênfase à temática de estudo.
Nessa perspectiva, Cervo e Bervian (1976) afirmam que todo tipo de
pesquisa em qualquer área do conhecimento, supõe e exige pesquisa biblio-
gráfica prévia, seja para fazer o levantamento da situação em questão, para
realizar a fundamentação teórica ou ainda para justificar os limites e contri-
buições da mesma.
A pesquisa bibliográfica será realizada em revistas de educação e livros,
procurando fazer um levantamento de dados relevantes que abordam a temá-
tica do artigo, com o intuito de aprimorar, desenvolver novos conhecimentos
e revisionar as estratégias que têm sido utilizadas para combater estereótipos
e preconceitos na educação.
No decorrer do artigo será apresentado (dando ênfase à educação infan-
til) um breve histórico dos direitos humanos no Brasil, as leis que amparam a
educação em direitos humanos nessa modalidade de educação e estratégias de
combate aos estereótipos e preconceitos na educação infantil.
317
A Constituição de 1934 estabeleceu algumas franquias liberais, intitulan-
do garantias individuais e estatuindo normas de proteção social ao trabalhador.
A Constituição de 1946 redemocratizou o país, restaurando os direitos e
garantias individuais, sendo estes, até mesmo ampliados, do mesmo modo que
os direitos sociais. Essa constituição garantiu os Direitos Humanos.
O Brasil, ao ratificar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948, assumiu um compromisso internacional em promover uma educação
pautada no reconhecimento dos Direitos Humanos.
A Constituição de 1967, entretanto, trouxe inúmeros retrocessos, su-
primindo a liberdade de publicação, tornando restrito o direito de reunião,
estabelecendo foro militar para os civis, mantendo todas as punições e ar-
bitrariedades decretadas pelos Atos Institucionais. Essa Constituição, embora
determinasse o respeito à integridade física e moral do detento e do presi-
diário, reduziu a idade mínima de permissão para o trabalho para 12 anos;
restringiu o direito de greve; acabou com a proibição de diferença de salários,
por motivos de idade e de nacionalidade; restringiu a liberdade de opinião e de
expressão, recuando no campo dos chamados direitos sociais.
A Constituição de 1969 somente começou a vigorar com a queda do Ato
Institucional -5, em 1978. Essa constituição retroagiu, ainda mais, já que teve
incorporadas ao seu texto legal, as medidas autoritárias dos Atos Institucio-
nais, não foram respeitados os Direitos Humanos.
A Constituição de 1988 veio para proteger os direitos humanos, o que
poderia ter se efetivado ainda na Constituição de 1946, considerada uma bela
Constituição caso não tivesse sido derrubada pela ditadura. A Constituição de
1988 foi uma “Constituição cidadã” porque promoveu dignidade ao brasileiro,
possibilitando que o mesmo tivesse cidadania.
Segundo Sader (2007), foi durante a ditadura militar que o tema dos
direitos humanos ganhou espaço de destaque. A temática passou a disputar
espaço no discurso hegemônico, no plano nacional, visando garantir igual-
dade de direitos, proteção da integridade física, direito a afirmar diferenças.
Com a repressão à ditadura, a educação em direitos humanos obteve uma
grande conquista, porquanto, no movimento de resistência política, valeu-se
do discurso democrático. A partir de então, as escolas passaram a incorporar o
tema; cursos específicos passaram a fazer parte de currículos, palestras espe-
318
cíficas; entidades voltadas diretamente para a questão dos direitos humanos,
com publicações, espaços na imprensa, promoção de personalidades que se
notabilizaram na sua defesa.
No entanto, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a
educação já era considerada responsável por expandir plenamente a persona-
lidade humana, reforçar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais.
Enfatize-se que essa educação deve prevalecer em todo o ensino elementar,
portanto, deve ter inicio ainda na Educação Infantil.
319
No Art.206, prevê em relação ao ensino:
320
Ainda nesse mesmo capitulo na Seção II, que trata da Educação Infantil,
relata que:
321
socialização. As primeiras experiências da vida são as que mar-
cam mais profundamente a pessoa. Quando positivas, tendem
a reforçar, ao longo da vida, as atitudes de autoconfiança, de
cooperação, solidariedade, responsabilidade.
322
Em 2006 foi concluído o Plano Nacional de Educação em Direitos Huma-
nos (PNEDH), o qual se destaca como política pública em dois sentidos prin-
cipais: primeiro, consolidando uma proposta de projeto de sociedade baseada
nos princípios da democracia, cidadania e justiça social; segundo, reforçando
um instrumento de construção de uma cultura de direitos humanos, entendida
como processo a ser apreendido e vivenciado na perspectiva da cidadania ativa.
De acordo com PNEDH:
323
De acordo com as leis apontadas acima, pode-se constatar que a Edu-
cação em Direitos Humanos deve fazer parte dos currículos disciplinares da
Educação Infantil. Os profissionais dessa modalidade de ensino têm de elabo-
rar estratégias para combater os estereótipos e preconceitos que surgem no
cotidiano escolar.
A Educação Infantil é considerada a base da educação básica, por possi-
bilitar à criança o primeiro convívio social. Dessa forma, o individuo começa
a construir sua aprendizagem estabelecendo as bases de sua personalidade, da
sua inteligência, da sua vida emocional e principalmente da sua socialização.
324
A educação em direitos humanos (EDH) é um desafio de todos os mem-
bros da escola, devendo ser vivenciada e colocada em prática no cotidiano
escolar. Favorecer esse tipo de educação é promover a igualdade e dignidade
humana, o respeito às diferenças, a consolidação da democracia e, principal-
mente, o reconhecimento do ser humano.
Tomando como base essa perspectiva, Klein (2013), deixa bem claro em
relação à EDH dentro da sala de aula, que:
325
educacionais voltados para os direitoshumanos capazes de hu-
manizar sua própria metodologia (LACERDA, 2013, p.124).
326
cançados com metodologias de projetos que visam àparticipação
da escola bem como da comunidade (LACERDA, 2013, p.125).
327
dos em valores éticos, nos quais atitudes racistas e preconceituosas não
podem ser admitidas. […] É importante evitar as preferências e escolhas
realizadas porprofessores e outros profissionais, principalmente quando
os critérios sepautam por posições preconceituosas e padrões de beleza
dominantes:crianças brancas e de cabelos lisos e olhos claros são mais
acolhidas, acalentadas, elogiadas, lembradas, em detrimento das crian-
ças negrasque ficam esquecidas.
Não silenciar diante de atitudes discriminatórias eventualmente obser-
vadasé outro fator importante na construção de práticas democráticas
e decidadania para todos e não só para as crianças. A criança discri-
minada, rejeitada pelos colegas por causa da cor escura de sua pele,
de seu cabelocrespo, precisa ser ouvida e acolhida, ao mesmo tempo
em que atividades pedagógicas precisam ser desenvolvidas para tratar
do assunto com todas as crianças. O não silenciamentoem situações de
discriminaçãoracial e outras informa para todos, adultos e crianças, que
essas atitudessão inadmissíveis quando se acredita em uma educação
humanitária e derespeito à diversidade.
[…] Relações pautadas em tratamentos desiguais podem gerar danosir-
reparáveis à constituição da identidade das crianças, bem comocompro-
meter sua trajetória educacional (SANTANA, 2010, p.18-19).
Para Dorneles (2010), os brinquedos das salas de aula também são con-
siderados um fator de estereótipos e preconceitos, argumentando que normal-
328
mente os bonecos e bonecas quando sai do parâmetro considerado normal são
rejeitados pelas crianças. A autora afirma:
Sendo assim, a autora considera que quando a criança brinca com bo-
necos diferentes ela aceita com mais facilidade as pessoas que não se parecem
com ela e começa a refletir sobre a maneira de relacionar com os outros.
Em relação ao brincar, Lima (2010) considera que:
329
Portanto, educar com intuito de promover o respeito á diversidade cul-
tural e a promoção dos direitos humanos é um grande desafio que precisa ser
superado pelas escolas. Precisamos encontrar métodos eficazes que combatam
os estereótipos e preconceitos da educação infantil, como vimos é nessa mo-
dalidade do ensino que a criança constrói a sua identidade, seus padrões de
comportamento e principalmente, o reconhecimento ao outro. Neste sentido,
Santana (2010), apresenta algumas questões que devemos colocar como fun-
damentais para promover uma educação pautada nos direitos humanos, são
abordadas pela autora as seguintes questões:
5. Considerações finais
330
Os educadores têm que estar atentos para criar estratégias de combate às
violações dos direitos das crianças, sempre buscando trabalhar as diferenças
de cada um no contexto escolar. Dessa maneira, as crianças aprenderão atra-
vés da socialização a respeitar, reconhecer e aceitar o outro.
Assim, torna-se imprescindível que os profissionais da educação tenham
uma formação pautada na Educação em Direitos Humanos. Nesse sentido, cabe
aos educadores procurarem cursos de capacitação e atualização relacionados
a essa temática, mas para isso, faz-se necessário que o Ministério da Educação
e as instituições de ensino superior considerem a Educação em Direitos Hu-
manos como uma Politica Educacional, ofertando cursos e formação continu-
adanessa área para todos os profissionais que trabalham no contexto escolar.
As instituições de ensino superiordevem programar na grande curricular,
das graduações ofertadas, um eixo norteador ou uma disciplina, para ensinar os
futuros educadores a importância de promover esse tipo de educação.
331
Reênciasfer ácasbilogr
332
de dezembro de 1948. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/
ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 03.ago.2013.
CERVO, Amado Luiz; BERVIAN, Pedro Alcino. A pesquisa: noções gerais. In: ___. Me-
todologia Científica: para uso dos estudantes universitários. São Paulo: Mc-
Graw-Hill do Brasil, 1976. cap. 3, p. 65-70.
333
DORNELES, Leni Vieira. “Tu não podes ser princesa”: corpos, brinquedos e subjetivi-
dades. In: BRANDÃO, Ana Paula; TRINDADE, AzoildaLoretto da (orgs.). Modos de
Brincar: cadernos de saberes, fazeres e atividades. Rio de Janeiro: Fundação
Roberto Marinho, v.5, 2010, p. 31-36. Disponível em: <http://www.acordacultura.
org.br/sites/default/files/kit/MODOSBRINCAR-WEB-CORRIGIDA.pdf>. Acesso em:
27.out.2013.
JÚNIOR, Wilson Camerino dos Santos. Ensaio sobre estratégias didáticas da educação
emDireitos Humanos no espaço escolar. In: VELTEN, Paulo (org.). Educação em
Direitos Humanos. Vitória: Universidade Federal do espírito santo, núcleo de edu-
cação aberta e à distância, 2011. cap. 4, p. 84-117.
LACERDA, Áurea Santos; FIDELIS, Vera Lucia Chieppe. O que é educar em Direitos Hu-
manos? In: VELTEN, Paulo (org.). Educação em Direitos Humanos II. Vitória: Uni-
334
versidade Federal do espírito santo, núcleo de educação aberta e à distância, 2013.
cap. 10, p. 120-126.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Pesquisa. In: ___. Metodologia
do trabalho científico. 2.ed. São Paulo: Atlas, 1987. cap. 2, p. 44-79.
LIMA, Heloisa Pires. A percepção das relações raciaisna Educação Infantil. In: BRAN-
DÃO, Ana Paula; TRINDADE, AzoildaLoretto da (orgs.). Modos de Brincar: cader-
nos de saberes, fazeres e atividades. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho,
v.5, 2010, p. 87-90. Disponível em: <http://www.acordacultura.org.br/sites/default/
files/kit/MODOSBRINCAR-WEB-CORRIGIDA.pdf>. Acesso em: 27.out.2013.
RAIZER, Eugênia Célia. Sistema Internacional e Nacional de Proteção aos Direitos Hu-
manos. In: VELTEN, Paulo (org.). Educação em Direitos Humanos II. Vitória: Uni-
versidade Federal do espírito santo, núcleo de educação aberta e à distância, 2013.
cap. 3, p. 32-43.
SANTANA, Patrícia Maria de Souza. “Um abraço negro”: afeto, cuidado e acolhimen-
to na Educação Infantil. In: BRANDÃO, Ana Paula; TRINDADE, AzoildaLoretto da
(orgs.). Modos de Brincar: cadernos de saberes, fazeres e atividades. Rio de
Janeiro: Fundação Roberto Marinho, v.5, 2010, p. 17-22. Disponível em: <http://
www.acordacultura.org.br/sites/default/files/kit/MODOSBRINCAR-WEB-CORRIGI-
DA.pdf>. Acesso em: 27.out.2013.
335
Jane Fernandes da Costa
Pedagoga e Supervisora Escolar . Pós graduada em Educação Especial e em Lín-
gua Brasileira de sinais. Discente do Curso de Educação em Direitos Humanos.
19
DIREITOS HUMANOS E O PROFESSOR
NA SALA DE AULA
1. Introdução
337
permitem, inclusive, avaliar alunos e alunas e utilizar da autoridade
da função para exigir o cumprimento das regras e normas sociais. Por
outro lado, tais poderes não lhes garante o direito de agir de maneira
injusta, desconsiderando, por exemplo, os direitos relativos a cidadania
de seus alunos e suas alunas (ZENAIDE. 2008. p.165).
No mês de outubro de 2013, dez professores que trabalham nas seis escolas
estaduais do município de Bom Jesus do Itabapoana — RJ, responderam a um
questionário sobre o tema: A violência e o professor na sala de aula, como
338
forma de demonstrarem que a violência sofrida pelo professor no dia-a-dia
na sala de aula é algo real e já tem sido abordada em diversas salas de debate
institucionais e governamentais.
Ao distribuir o questionário, selecionamos professores que lecionavam
matérias distintas, com tempo de atuação no magistério e em diferentes mo-
delos de sala de aula. Ainda selecionamos profissionais com formação no
Ensino Médio, Superior, Pós-graduação e Mestrado, sendo que a maioria dos
profissionais são pós-graduados e, apesar de alguns também trabalharem em
escolas municipais e particulares, todos os entrevistados têm experiência na
rede estadual. Afinal, a heterogeneidade é importante para determinar a ve-
racidade dos fatos, mostrando que os argumentos comuns ou não entre os
professores não se dão pelo fato de serem mais experientes no magistério
ou não, ou porque tenham se formado há muito tempo ou recentemente, ou
ainda pelo tipo de graduação.
Foram distribuídos 10 questionários nas 6 escolas estaduais do município
de Bom Jesus do Itabapoana – RJ, totalizando 60 questionários. Contudo, em
uma das escolas, 4 profissionais se negaram a responder e não mencionaram
o motivo. Portanto os dados serão coletados dos 54 questionários respondidos
pelos profissionais da educação, atuantes dentro da sala de aula que atende-
ram e responderam à nossa solicitação.
Quanto à satisfação, dos 54 professores, observe o gráfico 1, 5 pro-
fessores, ou seja, 9 % responderam que estão muito satisfeitos; 28 profes-
sores, ou seja, 49 % que estão satisfeitos; 5 professores, ou seja 9 % que
nem satisfeito, nem insatisfeito; 13 professores, ou seja 23 % que estão
insatisfeito e 6 professores, ou seja 10 % que estão muito insatisfeito,
demonstrando que de modo geral os profissionais da educação estão satis-
feitos com a sua profissão.
No que se refere a mudança de profissão, observe o gráfico 2, 22 pro-
fessores, ou seja, 42 % responderam sim, mudariam se houvesse esta opção,
enquanto 34 professores, ou seja, 58 %, responderam que não mudariam, mos-
trando que os profissionais da educação estão aos poucos desistindo da profis-
são, apesar da maioria ainda demonstrarem interesse.
339
Gráfico 1. Representação satisfação dos professores quanto a sua profissão
9%
10% Muito satisfeito
Satisfeito
49% Nem satisfeito, nem insatisfeito
Insatisfeito
23% Muito insatisfeito
9%
Sim
58% 42%
Não
Sim
55% 45%
Não
340
Em se tratando de profissionais que sofreram algum tipo de agressão
dentro ou fora da sala de aula, dos 54 professores, conforma observamos no
gráfico 3, apenas 25 professores disseram que já foram agredidos dentro da
sala de aula, mas no momento de assinalar, alguns que assinalaram que não
sofreram agressão nem dentro ou fora da escola, nessa pergunta mostraram
que haviam sim sofrido algum tipo de agressão. Observe o gráfico 4: dos 54,
apenas 25 professores, ou seja, 45 % responderam que nunca foram agredidos
e os 31, ou seja, 55 % restantes assinalaram que já foram agredidos. Observa-
se a seguinte distribuição: 20 professores, ou seja, 36%, agressão verbal; 6
professores, ou seja, 11%, agressão material; 2 professores, ou seja, 3%, agres-
são tanto verbal quanto física; 2 professores, ou seja, 3%, agressão física e 1
professor, ou seja, 2%, não se manifestaram. Contudo nesta pergunta podemos
concluir que o professor se confunde ao responder questionamentos deste tipo.
Fica parecendo que a agressão verbal não é significante, já que a cada dia isso
se torna mais comum dentro e fora da sala de aula.
Verbal Física
45% 36%
Material Não respondeu
Verbal e física Nunca fui agredido
2% 3% 3% 11%
341
lho de mesmo nível hierárquico, ou seja, 5 %, e apenas 1 professor colega de
trabalho com hierarquia superior a sua, ou seja 3 %. Como podemos observar
são os alunos os responsáveis pela maioria das agressões, e ainda, que 87% das
agressões vêm de casa se somarmos as dos alunos com os seus progenitores
ou responsáveis.
77%
Colega do trabalho de mesmo nível hierárquico
Progenitor ou responsável legal por aluno
Aluno
Colega de trabalho com hierarquia superior a sua
Auxiliares/ técnicos em atividades escolares
5% 3% 5% 10%
32% 26%
Diariamente Semestralmente
Semanalmente Anualmente
6% Mensalmente Menos que uma
10% vez ao ano
13%
13%
342
Dos 31 professores, observe o gráfico 7, 2 professores, ou seja, 7 % res-
ponderam muito pouco; 2 professores, ou seja 7% pouco; 6 professores, ou
seja 19 % mais ou menos; 19 professores, ou seja 61 % muito e apenas 2
professores, ou seja 6 % responderam que não influencia. Provando que a
maioria dos professores que sofrem agressão, se sentem insatisfeitos e por que
não dizer desmotivados.
61%
Muito
Não influencia
Muito pouco
Pouco
6%
Mais ou menos
19% 7%
7%
343
Os professores ou a maioria admitem que as agressões interferem em
sua qualidade de vida. Dos 31 professores, observe o gráfico 9, 3 professores,
ou seja, 10 % responderam muito pouco; 5 professores, ou seja 16 % pouco;
7 professores, ou seja 23 % mais ou menos; 11 professores, ou seja 35 % muito
e 5 professores, ou seja 16 % responderam que não influencia.
16% 10%
Muito pouco
16% Pouco
Mais ou menos
Muito
35% 23% Não influencia
344
Gráfico 10 Representação das providências relatadas pelos professores após as agressões
15% 23%
Comunicou somente a direção Ocorrência (não mencionou qual)
4% 15% Comunicou a direção, supervisão escolar e pais Pais
11% 7% Registro de ocorrência policial e Conselho tutelar Conversa individual com o aluno
Apenas Registro policial Comentou com a colega
8% 8%
Ocorrência na escola - formulário próprio Não responderam a pergunta
8% 8%
8%
345
Se os pais ou responsáveis, são comunicados após agredir o professor.
Todos os os 23 professores opinaram, 5 professores disseram que sim e 8 pro-
fessores disseram que não e 3 professores acrescentaram no questionário a
resposta ás vezes. Mostrando que na maioria das vezes o pai ou responsáveis
são comunicados.
Dos 56 profissionais que responderam ao questionário, 32 professores
disseram que sim, que conheciam algum tipo de dispositivo legal que os de-
fenda em caso de agressão e 16 professores disseram que não e 8 não respon-
deram. Dos 32 que disseram que sim, 8 professores responderam “Polícia”, 1
professor “Desacato ao professor e medidas contidas no Estatuto da Criança e
do Adolescente”, 1 professor “para agressão verbal eu não conheço”, 7 profes-
sores, Boletim de Ocorrência por desacato a servidor público no exercício da
função, 1 professor Conselho tutelar, Polícia e Ministério Público, 1 professor
Constituição e Código Penal, 1 professor Estatuto do servidor do Rio de Janei-
ro, 1 professor Decreto lei 2848/40 – art. 331 do Código Penal, 1 professor “não
sei de cor, preciso pesquisar”, 1 professor Crime de lesão Corporal, 1 professor
Relato a autoridades competentes, 1 professor Ronda Escolar e Conselho tute-
lar, 1 professor “Telefone”, 1 professor não respondeu e 1 professor “Delegacia
da mulher, pois o Direito Civil assegura melhor o Direito do aluno, o nosso não
tanto, o Conselho tutelar usa desses direitos e não vê que os alunos irritam o
professor e fazem questão disso”. Optei por não colocar gráfico para transcre-
ver a resposta dos profissionais, cada profissional tem uma opinião acerca das
leis que possam o defender em caso de agressão, podemos observar são poucos
o que realmente sabem o que fazer.
Totalizaram 17 professores, ou seja, 31 % responderam que a relação
professor aluno, observe o gráfico 12, é muito boa; 33 professores, ou seja
59% boa; 3 professores, ou seja 5 % regular e 3 professores, ou seja 5% não
responderam. Provando que a maioria dos professores não tem problemas de
relacionamentos com seus alunos e ao responder o porquê, disseram pelo res-
peito, amizade, diálogo e etc.
346
Gráfico 12 Representação da relação de professor e aluno
5%
5%
31% Muito boa
Boa
Regular
Não respondeu
59%
5%
5%
29% Muito boa
Boa
Regular
Não respondeu
61%
347
Gráfico 14 Representação da relação de professor com seus colegas superiores.
5%
6%
Muito boa
Boa
39% 50%
Regular
Não respondeu
3. Considerações finais
Este trabalho teve por objetivo abordar a violência com o professor na sala
de aula, como forma de compreender os agentes da violência sofrida por esse
profissional dentro da sala de aula. Dediquei-me a realizar esses estudos com
intuito de comprovar que o professor precisa, e muito, de um olhar especial de
348
todos que se dedicam a proteger o ser humano de ser exposto a situações de
risco e da degradação da integridade humana.
Sabemos que os problemas enfrentados pelos professores não são recen-
tes e acontecem principalmente por causa da pouca valorização da educação
como possibilidade de construção de sujeitos que são capazes de criticar, par-
ticipar e com condições intelectuais melhoradas. Acreditamos ainda que essa
pouca valorização desse profissional não está totalmente associada à falta de
vontade por parte dos políticos e sim à incompetência de muitas administra-
ções que este país tem e já teve.
A maioria dos professores, por fim, acabaram admitindo terem sofrido
algum tipo de agressão dentro da sala de aula, contudo percebemos que não
sabem o que fazer diante da situação e muito menos como podem se defender.
Os Direitos humanos são os direitos e liberdades básicas de todos os seres
humanos, nos dá a ideia de liberdade de pensamento, de expressão, e a igual-
dade perante a lei. Esses conhecimentos precisam chegar até o professor, para
que ele possa retomar o seu papel de educador, e seja o mediador entre pais e
escola, pois educar é uma tarefa de todos.
349
Reênciasfer ácasbilogr
350
Irene Alexandra de Oliveira
Discente do Curso Educação em Direitos Humanos, Graduada em Pedagogia,
Pós-graduada em Alfabetização e Letramento.
20
FORMAÇÃO DOCENTE EM DIREITOS HUMANOS NO
CURRÍCULO SUPERIOR DO CURSO DE PEDAGOGIA DE UMA
INSTITUIÇÃO PRIVADA DA REGIÃO SUL CAPIXABA
1. Introdução
352
Na metodologia utilizou-se, num primeiro momento, a pesquisa biblio-
gráfica em revistas de educação, livros e mídias, procurando fazer um levan-
tamento de dados relevantes que abordassem a temática do artigo, buscando
entender como o tema DH está sendo discutido na formação do docente.
Nessa perspectiva, Cervo e Bervian (1976) afirmam que todo tipo de pes-
quisa supõe e exige pesquisa bibliográfica prévia, seja para fazer o levantamen-
to da situação em questão, para realizar a fundamentação teórica ou ainda para
justificar os limites e contribuições da própria, em uma área do conhecimento.
Num segundo momento, foi feita uma análise documental, sendo a mes-
ma o ponto central da temática de estudo. Seguindo esta linha de raciocínio,
Silva et.al (2009, p.4556), aborda que:
353
No trabalho será apresentada a importância da formação docente em
direitos humanos com implicações no currículo, sendo realizada uma análise
das temáticas da grade curricular do curso de pedagogia de uma instituição
privada de ensino Superior do Espírito Santo.
[…] promover processos educativos que sejam críticos e ativos e que des-
pertem a consciência das pessoas para as suas responsabilidades como
cidadão/cidadã e para a atuação em consonância com o respeito ao ser
humano. Educar dentro de um processo crítico-ativo significa modificar
as atitudes, as condutas e as convicções, mas não pela imposição dos
valores e sim por meios democráticos de construção e de participação
que busquem possibilitar a experiência cotidiana desses direitos.
354
Visando promover esse tipo de educação, torna-se imprescindível para
a formação do educador, ainda segundo o mesmo autor, que a prática peda-
gógica seja:
Para Tavares (2007, p.401–402), a EDH requer uma metodologia que se-
lecione os seguintes instrumentos:
355
Recamán (2013) enfatiza a necessidade de reconhecer o legítimo papel
educacional de formar sujeitos capazes de ter objetivos mais consolidados em
relação a sua contribuição neste mundo complexo e adverso. Nesta dimensão,
professores e demais profissionais da educação, para além de ministrarem suas
disciplinas e seus saberes específicos, precisam ver-se num processo dialético e
global de modo a transcender os elementos imediatos de seus fazeres cotidianos.
Dessa maneira, torna-se essencial ressaltar a importância de uma área
como a dos DH contemplarem abordagens interdisciplinares e multidimensionais
em seus conteúdos teóricos e práticos. Para Tavares (2007, p.499) a EDH tem que:
356
a. a universidade, como criadora e disseminadora de conhecimento, é institui-
ção social com vocação republicana, diferenciada e autônoma, comprometi-
da com a democracia e a cidadania;
b. os preceitos da igualdade, da liberdade e da justiça devem guiar as ações
universitárias, de modo a garantir a democratização da informação, o aces-
so por parte de grupos sociais vulneráveis ou excluídos e o compromisso
cívico-ético com a implementação de políticas públicas voltadas para as
necessidades básicas desses segmentos;
c. o princípio básico norteador da educação em direitos humanos como prática
permanente, contínua e global, deve estar voltado para a transformação da so-
ciedade, com vistas à difusão de valores democráticos e republicanos, ao forta-
lecimento da esfera pública e à construção de projetos coletivos;
d. a educação em direitos humanos deve se constituir em princípio ético-
político orientador da formulação e crítica da prática das instituições de
ensino superior;
e. as atividades acadêmicas devem se voltar para a formação de uma cultura
baseada na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos
humanos, como tema transversal e transdisciplinar, de modo a inspirar a
elaboração de programas específicos e metodologias adequadas nos cursos
de graduação e pós-graduação, entre outros;
f. a construção da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão deve ser
feita articulando as diferentes áreas do conhecimento, os setores de pesquisa e
extensão, os programas de graduação, de pósgraduação e outros;
g. o compromisso com a construção de uma cultura de respeito aos direitos
humanos na relação com os movimentos e entidades sociais, além de grupos
em situação de exclusão ou discriminação;
h. a participação das Instituições de Ensino Superior na formação de agentes
sociais de educação em direitos humanos e na avaliação do processo de
implementação do PNEDH (p. 38–39).
357
e políticos, elaborando programas específicos e metodologias de ensino que
respeitem os DH nas relações com movimentos, entidades sociais e grupos
excluídos e discriminados.
Ainda, são abordadas no documento 21 ações programáticas, entre as
quais está propor a temática da educação em direitos humanos para subsidiar
as diretrizes curriculares das áreas de conhecimento e incentivar a elaboração
de metodologias pedagógicas de caráter transdisciplinar e interdisciplinar para
a EDH nas Instituições Superiores.
Para Pozer (2012, p.4) é preciso:
[…] tenha como elemento constituinte uma natureza dinâmica, que consi-
dere tanto os conteúdos curriculares disciplinares, quanto aqueles inúmeros
conteúdos necessários à construção do ser, do saber e do fazer do professor
ou professora, que se volte para a promoção de processos emancipatórios
358
comprometidos com a ruptura de determinados modelos de sociedade e de
educação excludente, mediante os quais muitos grupos sociais foram histori-
camente alijados da produção e da apropriação dos bens materiais e culturais.
Neste tópico será realizada uma análise reflexiva e crítica sobre as principais
disciplinas que estão relacionadas aos direitos humanos da grade curricular do
curso de graduação em pedagogia, de uma instituição privada e superior do
Espírito Santo. Serão analisadas as seguintes disciplinas: Educação Inclusiva,
Educação e Problemáticas da Sociedade Contemporânea, Pedagogia Diferen-
ciada, Habilidades Comunicativas, Ética e Relações Humanas e Orientação de
Estágio Supervisionado nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental II.
359
3.1 Educação Inclusiva
360
Outra questão importante são as bases normativas que orientamo de-
senvolvimento dessa disciplina. Percebeu-se que o currículo não possui todas
as legislações que amparam a educação inclusiva, apenas a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional 9394/96 é mencionada no meio de livros que
falam sobre Necessidades Educacionais Especiais, é importante destacar a rele-
vância dessas legislações no desenvolvimento da educação, evidenciando sua
participação na construção de uma sociedade mais justa.
Nesse cenário, apontamos como referencial a Constituição Federal de
1988, instituto mais importante do ordenamento jurídico, a lei 7.853 de 1989
que assegura o pleno desenvolvimento dos direitos das pessoas portadoras
de deficiência, o Estatuto da criança e do adolescente de 1990, Declaração
de Salamanca de 1994, o decreto nº 3.298 de 1999, que regulamenta a Lei nº
7.853/89 ao dispor sobre a Politica Nacional para Integração da Pessoa Por-
tadora de Deficiências definindo a educação especial como uma modalidade
transversal a todos os níveis e modalidades de ensino, enfatizando a atuação
complementar da educação especial ao ensino superior.
Considerando tal problema, ressalta-se também o Plano Nacional da
Educação lei 10.172 de 2001 que estabelece vinte e oito metas e objetivos
para educação inclusiva, a resolução número 2 de 11 de setembro de 2001
que institui as Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Bá-
sica, o decreto 3.956 de outubro de 2001, que promulga a Convenção Inte-
ramericana para eliminação de todas as formas de discriminação contra as
pessoas portadoras de deficiência (convenção da Guatemala), a lei nº 10.436-
02 que reconhece a língua de sinais como um meio legal de comunicação e
expressão, os decretos 5.626/05 que integra o ensino de libras no currículo
superior e o decreto 6.571 de 2008, revogado pelo decreto 7.611 de 2011, que
dispõe sobre a educação especial, o atendimento educacional especializado
e dá outras providências.
Entretendo é preciso especificar que a formação teórica não subsidia
uma formação capaz deformar sujeitos conscientes e críticos da realidade que
se encontra inserido, assim compreende-se a necessidade de uma articulação
desses dois polos, assim como se considera importante a atualização constante
e periódica dos conteúdos do currículo superior.
361
3.2 Educação e problemáticas da sociedade contemporânea
362
Atentamo-nos nesse tópico a apresentar a fragilidade quanto ao trata-
mento dos DH, referindo-se a sua participação na construção do currículo e
sua abordagem nas disciplinas como conteúdo norteador dos conteúdos prag-
máticos. Nesse sentido Carbonari (2011, p.19) afirma que:
[…] campo que se ocupa da reflexão sobre a moralidade humana recebe a de-
nominação de ética. Esses dois termos, ética e moral, têm significados próxi-
mos e, em geral, referem-se ao conjunto de princípios ou padrões de conduta
que regulam as relações dos seres humanos com o mundo em que vivem.
Segundo Puig (1998, p.15), uma educação pautada nos princípios éticos
deve ser convertida em constante reflexão individual e coletiva, visando permitir
a elaboração de forma racional e automática dos princípios relacionados aos va-
lores e o enfrentamento pelo individuo de forma critica dos conflitos da realidade.
363
Pode-se considerar que na disciplina ao aborda as Relações Humanas
deveria estar inserido os DH como base do ensino voltado para cidadania, para
Lodi e Araújo (2007, p.69), o cidadão precisa aprender a:
A autora deixa claro que o estudante tem o direito de ter acesso aos
conhecimentos contemporâneos, portanto, cabe às instituições apresentar re-
ferencias condizentes com a temática de ensino. Nesse sentido Klein (2013,
p.49) reafirma que:
364
médio da educação e da aprendizagem que osseres humanos desenvol-
vem recursos cognitivos, morais, afetivos, sociais paraa compreensão e
consecução de todos os outros direitos humanos.
4. Considerações finais
365
Neste sentido, julga-se necessário que a instituição reformule sua estrutura
curricular, atentando-se para estudos recentes, visando estabelecer estratégias
que auxiliam os futuros educadores a solucionar as problemáticas desenca-
deadas nessa análise.
Portanto, cabem as instituições de ensino superior inserir em suas grades
curriculares a EDH de maneira multidimensional e interdisciplinar, contem-
plando-a em diversas áreas do conhecimento, no sentido de possibilitar uma
formação ao docente capaz de compreender a realidade na qual está inserido,
visando promover uma educação voltada para cidadania.
366
Reênciasfer ácasbilogr
367
_______. Decreto Nº 3.298, de 20 de Dezembro de 1999. Regulamenta a Lei no
7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração
da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras
providências. Brasília: 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/d3298.htm>. Acesso em: 15.out.2013.
368
________. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Traba-
lho nomeado pela Portaria Ministerial nº 555, de 5 de junho de 2007, prorrogada
pela Portaria nº 948, de 09 de outubro de 2007.MEC/SEESP. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/politica.pdf.>. Acesso em: 22.out.2013.
CERVO, Amado Luiz; BERVIAN, Pedro Alcino. A pesquisa: noções gerais. In: ___. Me-
todologia Científica: para uso dos estudantes universitários. São Paulo: Mc-
Graw-Hill do Brasil, 1976. cap. 3, p. 65-70.
369
DIAS, Adelaide Alves. Direitos Humanos na Educação Superior (introdução). In: FER-
REIRA, Lúcia de Fátima Guerra; et. al. (Org.) Direitos Humanos na Educação Su-
perior: Subsídios para a Educação em Direitos Humanos na Pedagogia. João
Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2010, p. 17-25.
LODI, Lucia Helena; ARAÚJO, Ulisses F. Ética, cidadania e educação: escola, democracia
e cidadania. In: LOID, Lucia Helena (cood.). Ética e cidadania: construindo va-
lores na escola e na sociedade. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Básica, 2007, cap. 5, p. 67-84.
370
MOLL, Jaqueline. Um paradigma contemporâneo para a educação integral. Pátio –
Revista Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, Ano XIII, ago/out 2009.
PUIG, Josep Maria. Ética e valores: métodos para um ensino transversal. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 1998.
RECAMÁN, Dorcas Rodrigues Silva. Educação em Direitos Humanos: nos caminhos dos
problemas, dilemas, e da aprendizagem em serviço numa perspectiva cidadã. In: VEL-
TEN, Paulo (org.). Educação em Direitos Humanos II. Vitória: Universidade Federal
do espírito santo, núcleo de educação aberta e à distância, 2013. cap. 4, p.140-151.
371
Roberta Silva de Andrade
Formada em Educação Física Licenciatura/Bacharel pelo Centro Universi-
tário São Camilo/ES. Especialista em Educação Inclusiva pela FACEL e em
Informática na Educação pelo IFES. Discente do Curso Aperfeiçoamento em
Educação em Direitos Humanos.
21
OS DIREITOS HUMANOS SOB A PERSPECTIVA DE
CHAUÍ E SANTOS: CONTRIBUIÇÕES PARA O
CONTEXTO ESCOLAR
1. Introdução
373
ocidental e no senso comum. Em síntese ocorre que os direitos humanos são
parte da hegemonia que consolida e legitima a opressão contra os grupos so-
ciais oprimidos (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 42).
Todo exposto acima, traz uma reflexão que necessita ser enfatizada no
contexto escolar: de que maneira, os direitos humanos poderão ser utilizados
de forma contra-hegemônica? Para que tal questão seja melhor detalhada, é
necessário realizar algumas considerações:
• A leitura dos fatos históricos não devem ser realizadas de modo line-
ar e orientada para um resultado preconizado. A vitória dos direitos
humanos, assim como de muitos acontecimentos históricos, são re-
sultados de diversas competições que são reconfiguradas de acordo
com o interesse do poder regulatório. (Ilusão teleológica, CHAUÍ e
SANTOS 2013, pág. 45).
• A noção de superioridade dos direitos humanos em relação aos de-
mais termos éticos e políticos, incita a uma reflexão crítica acer-
ca das razões dessa superioridade, assim como se esse mérito dos
direitos humanos se traduz efetivamente em emancipação humana
(Ilusão triunfalista, CHAUÍ e SANTOS 2013, pág. 46).
• A contextualização é um aspecto primordial para se entender o ob-
jetivo de determinada ação. Um mesmo termo pode ser utilizado
de maneiras diversas/contraditórias para a obtenção de determinado
objetivo. Tal circunstância, ainda está muitas vezes presente na po-
lítica de direitos humanos.
374
• Quando CHAUÍ e SANTOS (2013, pág. 49) se referem ao termo
monolitismo. A ênfase agora, é a respeito da negação das tensões
das teorias dos direitos humanos. Diante de tal abordagem, ganha
destaque a pertença dos direitos humanos em duas coletividades.
Uma mais complexa, que pode ser analisada por meio de decla-
rações internacionais e outra mais restrita circunscritas dentro de
um Estado.
• O antiestatismo nos traz uma questão bastante interessante. O
Estado passa de uma posição negativa (alvo) a uma positiva (re-
alizando prestações que traduz direitos). Com o estado sendo um
ator de promoção de direitos humanos e alvo de intensos deba-
tes sobre os direitos humanos, conforme abordam CHAUÍ e SAN-
TOS (2013, pág. 51), ocorre uma dificuldade de análise quanto as
transformações operadas no poder político pelo neoliberalismo. O
resultado disso é:
[…] o que conta como violação dos direitos humanos é definido pelas
declarações universais, instituições multilaterais (tribunais e comissões)
e organizações não governamentais (predominantemente baseadas no
Norte) (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 54).
375
3. Direitos humanos sob o aspecto tensional e correlações com o
contexto escolar
Universal x Fundacional
É interessante como na sociedade o termo universal é utilizado. No geral, ele
coloca para todas as pessoas as mesmas condições independente do contexto.
Já o fundacional é mais restrito, único (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 57).
Considerando tal perspectiva, no contexto escolar ocorre uma ênfase na igual-
dade. Como considerar iguais indivíduos marcados pela diferença? Essa é uma
questão que grandes reflexões. A escola, tem reproduzido os paradigmas do-
minantes e vinculada a essa questão não é diferente, ela reproduz e na maioria
das vezes, não questiona quais as raízes de tal questão. Muito abordada no
meio escolar, está o termo globalização e, para explicar a universalização da
igualdade, entender a amplitude de tal termo é imprescindível:
376
Todo o exposto anteriormente, designam um viés hegemônico que não é 1. A posição anti-Estado, foi considerada
abordado no contexto escolar. A igualdade, produto também dos direitos hu- democrática, enquanto teve cunho libe-
ral, oitocentista em face do autoritarismo,
manos, necessitam de uma abordagem diferenciada, que abranja a diferença.
mas, quando, a partir de 1980 intenciona
desmantelar o Estado social, ela passa a ser
Direitos individuais x Direitos coletivos vista como antidemocrática (CHAUÍ e SAN-
TOS, 2013, pág. 67).
Retomando a discussão acerca das diferenças encontradas no contexto escolar,
observa-se que nesse mesmo espaço, ainda persistem estereótipos e preconcei-
tos para com os povos indígenas, os afrodescendentes, gays e lésbicas. Nesse
sentido, ganha destaque uma abordagem a respeito dos direitos (individuais
e coletivos). Conforme, CHAUÍ e SANTOS (2013, pág. 60), “os povos só são
reconhecidos na medida em que são transformados em Estado” e que as de-
clarações, dentre as quais a Declaração Universal dos Direitos do Homem das
Nações Unidas, só conhece dois sujeitos de direito: o indivíduo e o Estado.
Diante de tais fatos, ocorre que nos dias atuais, existe um movimento de
afirmação de identidade do público acima citado, pelo fato dos mesmos serem
discriminados, excluídos e o mais emblemático, não terem sido durante mui-
to tempo, protegidos pelos direitos humanos. Todas essas questões suscitam,
maiores reflexões no contexto escolar, afim de avaliar as concepções atribu-
ídas durante muito tempo para com esses públicos e ainda, analisar de que
maneira as ações afirmativas públicas que vem sendo desenvolvidas.
Estado x anti-Estado
Os direitos humanos colocaram para a sociedade, uma expressão denominada
anti-Estado1. Para o contexto escolar, o Estado é o detentor de certo poder e
responsável pelas políticas públicas, além de ser responsável pelos direitos hu-
manos. Nesse sentido, ocorre a necessidade de enfoque nos diversos tipos de
direitos: políticos, cívicos, econômicos e sociais, esses dois últimos dependem
de prestações do Estado para se efetivarem. Essas formas de apresentação dos
direitos, necessitam de maiores esclarecimentos no contexto escolar, afim de se
refletir acerca da colocação que se faz na sociedade de que os direitos cívicos e
políticos são determinados contra o Estado e a supressão do autoritarismo estatal.
No contexto escolar é necessário frisar que devido a ascencão dos direitos
humanos, ocorreu uma alteração de denominação:
377
[…] esta transformação ocorreu na passagem do Estado liberal ou de
direito para o Estado social de direito, para o Estado de bem-estar, no
Norte global, ou para o Estado desenvolvimentista ou neodesenvolvi-
mentista do Sul global (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 66).
[…] a correlação de forças – dentro e fora dos governos – pode ser pro-
fundamente alterada pela pressão organizada a partir da sociedade civil
(CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 74).
378
Diante dessa importância da sociedade civil, cabe a escola perceber e enfatizar
a importância da articulação da sociedade civil junto a ações governamentais,
afim de consolidar inovações institucionais, como por exemplo, as “clínicas de
testemunho”, fruto de reivindicações sociais, e que objetivam promover apoio
psicológico às vítimas de violência do Estado (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 74).
379
formas de exclusão e inclusões que os grupos dominantes impunham sob a
égide da igualdade.
380
ao desenvolvimento teve na sua base ideias semelhantes às que viriam a ser
consagradas na teoria da independência” (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 86).
Juntamente com o boom do desenvolvimento, ocorreram problemas de ordem
climático e ambientais, com consequências para a saúde (cancro) e para diversas
populações indígenas (concentração de terras, grilagem, etc.). Assim, “a articulação
entre os diferentes fatores de crise deverá levar urgentemente à articulação entre
os movimentos sociais que lutam contra eles” (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 90).
Concernentes aos direitos acima considerados, cabe ressaltar que o con-
texto escolar, necessita enfatizar dois direitos humanos essenciais: a saúde e
o direito de ser (indígena). Quanto ao primeiro, verifica-se que devido as con-
centrações de terra em campos de monocultura (soja, cana-de-açúcar, algodão,
etc) e a necessidade de produção em larga escala, “o processo produtivo agrí-
cola brasileiro está cada vez mais dependente dos agrotóxicos e fertilizantes
químicos” CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 97). E ainda, “o Brasil vem ocupando
o lugar de maior consumidor de agrotóxicos do mundo, alguns deles já proi-
bidos noutros países” (CHAUÍ e SANTOS, 2013, pág. 97).
381
E continuam:
4. Considerações finais
382
Reênciasfer ácasbilogr
383
Nina Mary Lopes Cunha
Discente do Curso de Educação em Direitos Humanos. Graduada
em Letras, com especialização em Literatura e Ensino para Jovens e
Adultos. Professora no Estado e no Município de Itapemirim
22
O MENOR/ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI
E OS DESAFIOS PARA UMA EDUCAÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS
1. Introdução
385
Resquícios desses direitos, assim com algumas ideias sobre a sua exis-
tência, vieram posteriormente com a influência e ecos das revoluções inglesa,
francesa e americana, no reconhecimento e na positivação dos direitos es-
senciais à pessoa humana. Nos tempos modernos, grande parte da doutrina
jurídica mundial já abriga “gerações” de direitos fundamentais.
Na Inglaterra, outros documentos foram de fundamental importância,
como o Petition of Rights, de 1628, que reclama a necessidade de consenti-
mento na tributação, o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e
a proibição de detenções arbitrárias (FERREIRA FILHO, 1998, p. 12). Da mesma
forma, a Lei de habeas corpus, de 1679, protegia a liberdade de locomoção,
inspirando ordenamentos do mundo todo (COMPARATO, 2003, p. 86).
Doutos vigilantes da garantia constitucional dos direitos humanos esta-
belecem três “dimensões” de direitos fundamentais. Outros constitucionalistas
propõem uma quarta dimensão/existência ou concordância quanto ao seu real
conteúdo. O que prevalece é a sucessão em que efetivam esses direitos funda-
mentais. Sempre surgem direitos novos ou perspectivas novas sobre direitos já
reconhecidos, sempre objetivando uma maior proteção à pessoa humana e o
aperfeiçoamento da aplicação prática desse direito.
386
apenas de pesquisa acadêmica de bases teóricas, mas principalmente das lutas
contra o poder. Nesse sentido Norberto Bobbio (1992, p. 5) afirma que:
387
Os “direitos naturais” mantêm um traço do jus-naturalismo como se es-
ses direitos fossem fruto de uma revelação, não levando em consideração a
sua construção histórica. A expressão “direitos públicos subjetivos” surge com
a intenção de delimitar os direitos considerados essenciais à pessoa humana,
dentro de um marco positivista (PÉREZ LUÑO, 1999, p. 33). É parte integrante
do conceito de Estado Liberal, estabelecendo limites e atuando junto ao poder
político, sem ater-se ao mundo das relações entre particulares (MARTÍNEZ,
1999, p. 28), deixando de abranger parte substancial das situações em que seja
necessário lutar por tais direitos.
Há, também, a concepção francesa das “liberdades públicas”, tanto as
que se referem e dependem do Estado, como as existentes entre particulares,
consideradas públicas, com proteção do Direito (ISRAEL, 2005, p. 14). O limite
desse conceito está na ausência dos direitos sociais e econômicos. Entende-se
não ser adequado o seu uso ou o seu correlato, “liberdades fundamentais”,
termo também ao gosto dos franceses.
O Direito anglo-saxão utiliza-se da nomenclatura “direitos morais”, de
conotação jusnaturalista, vinculada à ideia do Estado Liberal, deixando de
lado os direitos de participação política, assim como os direitos sociais, cul-
turais e econômicos (MARTÍNEZ, 1999, p. 35). Ainda muito aplicada nos dias
atuais é a concepção dos “direitos dos povos” para determinar seu destino, no
campo político, social, cultural, econômico, o direito de se relacionar com ou-
tros Estados e direito à paz, não abrangendo, entretanto os direitos das pessoas
individuais, concretas, insubstituíveis (MIRANDA, 2000, p. 68).
Outras concepções definem que, a rigor, não há um problema “direitos
humanos”, pois, o problema de base estaria na existência de uma sociedade desi-
gual e injusta, na qual a própria proposição de algo como direitos humanos seria
a confissão da existência da negação de direitos essenciais como direitos econô-
micos, direitos sociais, direitos políticos, culturais e outros. Não haveria, a rigor,
“direitos humanos”, mas direitos próprios e específicos de cada pessoa humana.
De qualquer forma, os direitos humanos têm a sua dimensão histórica e
não foram revelados para a humanidade em um momento de luz, mas sim con-
quistados e construídos ao longo da história humana, através das evoluções,
das modificações na realidade social, na realidade política, na realidade indus-
trial, na realidade econômica, enfim, em todos os campos da atuação humana.
388
O jurista Perez Luño (1999, p. 48) ressalta que:
389
to jurídico da Constituição da República dependem que sejam garantidos pelo
aparelho do Estado responsável por sua implementação.
Embora tenha existido grande avanço, neste período, não se pode falar
ainda em direitos considerados universais, ou seja, comuns a toda e qual-
quer pessoa apenas por pertencer à raça humana, pois os direitos eram meras
concessões reais, podendo ser revogados, ou seja, não constituíam um limite
permanente na atuação do poder político.
390
acolhimento de menores — abrigos, casas-lares e famílias acolhedoras cadas-
tradas. Das 2.754 unidades em operação, incluindo-se os três tipos de acolhi-
mento, os promotores visitaram 2.370. Dentre os 2.598 abrigos e casas-lares,
os promotores estiveram em 2.247 deles. Já entre os 156 órgãos que cadastram
e preparam as famílias acolhedoras, os promotores estiveram em 123. Dessa for-
ma, foram visitadas, ao todo, 86,1% das unidades de acolhimento de todo o país.
No Brasil, até a data da pesquisa, 29.321 crianças e adolescentes esta-
vam em acolhimento institucional, afastados provisoriamente da família ou
sob guarda do Estado. Um dos principais problemas apontados pelos dados
do levantamento é a ausência do guia de acolhimento, o documento que in-
dica a autorização judicial do encaminhamento do menor e, por conseguinte,
do devido trâmite de seu processo. Há casos em que para uma criança ser
encaminhada a uma instituição de acolhimento ou a uma família acolhedora
é necessária a autorização do juiz. Com a dificuldade da Justiça em acom-
panhar um universo de mais de 30 mil casos de violência contra menores,
o que acontece é o encaminhamento informal de crianças e adolescentes às
unidades. O relatório mostra que 27,9% dos abrigos visitados por promotores
informaram receber crianças sem a devida guia de acolhimento, de forma que
27,9% dos abrigos visitados por promotores informaram receber crianças sem
a devida guia de acolhimento.
Os Procedimentos Administrativos Disciplinares (PAD) são instrumentos
para estabelecer as sanções em casos de mau comportamento de internos,
porém, o que se constata é que em 56% das unidades visitadas não se aplica
o PAD antes das punições. A prática recorrente implica em abusos como as
suspensões de banhos de sol ao ponto de adolescentes passarem mais de 300
dias sem sair das celas e ficar ao ar livre.
Outro dado importante sobre o qual se debruça o estudo é quanto às me-
didas que reivindicam punições mais rigorosas aos menores de idade, inclusive
com a proposta de redução da maioridade penal. A absoluta falta de estrutura
do sistema que já não consegue atender à população atual ficaria ainda mais
comprometido com o aumento da clientela. Não há estrutura física nem recur-
sos humanos disponíveis para viabilizar o acesso dos adolescentes infratores ao
estudo e às atividades profissionalizantes, o que é a principal deficiência desse
modelo. Sem a perspectiva de participar de atividades sócio-educativas a rotina
391
ociosa do adolescente se torna parecida à de um presidiário. A responsabilidade
penal começa, de fato, aos 12 anos, numa realidade vivida pelo adolescente
infrator que é a reprodução do sistema carcerário. Sendo aprovada a proposta
de redução da maioridade penal, acontecerá, apenas, a transferência de jovens
adolescentes para as prisões sem solução do problema que, ao contrário, poderá
ser agravado por falta de vagas nos cárceres, nas prisões e nas penitenciárias.
As normativas do Sistema Nacional de Atendimento Sócio-educativo
ao Adolescente em Conflito com a Lei - Sinase – são indicativos que agregam
esforços com vistas a ajustar um sistema intersetorial que depende essencial-
mente da articulação de diferentes órgãos do poder público. Há bons exemplos
de melhorias no atendimento sócio-educativo, com base no respeito aos direi-
tos humanos e com ênfase na educação. Enquanto a maioria das unidades de
internação de menores/adolescentes em conflito com a Lei é instalada em con-
dições inadequadas, convivendo com superlotação, com a falta permanente
de meios humanos e materiais para subsistirem, na Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania do Senado já estão prontas para votação três propostas de
emenda à Constituição com a redução da maioridade penal. O tema da maio-
ridade penal aos 16 anos, por força da visão de impunidade aos infratores tem
apoio considerável na opinião pública.
Duas dessas propostas flexibilizam a maioridade de acordo com a gra-
vidade do delito, e uma terceira impõe a idade limite de 16 anos para que
alguém seja considerado inimputável. Há, por outro lado, projeto de decreto
legislativo no Senado propondo plebiscito sobre o assunto, a ser feito junto
com as eleições gerais de 2014.
392
Esses dados foram coletados por meio de pesquisa realizada por promo-
tores de Justiça em todo o país, entre março de 2012 e março de 2013. Ao todo
foram visitadas 392 unidades de internação e de semiliberdade para adoles-
centes e jovens em cumprimento de medidas sócio-educativas.
No relatório, intitulado: Um Olhar Mais Atento às Unidades de Inter-
nação e de Semiliberdade para Adolescentes, pela Comissão de Infância e
Juventude do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), constatou-se
que a maior parte das Unidades descumpre o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, deixando de separar os internos provisórios dos definitivos, por idade
e pelo tipo de infração cometida: um ambiente que impede qualquer prática
de reeducação.
Por outro lado, há repercussões entre políticos, empresários, intelectuais
e jornais, para a redução da maioridade penal. O ardor das manifestações
pela maioridade apoia-se no aumento dos crimes praticados por crianças e
adolescentes, inclusive com armas de fogo, às quais têm facilidade de acesso.
São crianças ou pré-adolescentes, de 10 a 12 anos, em número crescente,
em assaltos e ameaças com revólver. No primeiro semestre deste ano, a PM
apreendeu 170 armas em Teresina, 60% delas estavam nas mãos de menores
de 11 e 12 anos.
Em Belo Horizonte apreensões de armas com menores aumentaram mais
de 20%, de 2011 para 2012, segundo o Tribunal de Justiça de Minas. Consta-
tam-se pelas ocorrências policiais mudanças no perfil dos menores infratores,
praticando crimes com mais violência, ameaçando as suas vítimas de morte.
A facilidade de acesso às armas contribui para esse quadro ao qual se junta,
também, em muitos casos, a sensação de impunidade. Pela legislação vigente,
como não há ações coordenadas planejadas, adolescentes infratores podem
ficar internados de três meses até três anos..
A ineficiência do sistema é constatada pela quantidade de fugas e pela
reduzida ou quase nenhuma reinserção. As práticas de manutenção das unida-
des de internação de adolescentes no Brasil ainda não chegaram ao patamar
dos direitos humanos. A realidade social e a precariedade estrutural pública
não estão adequadas para garantir a aplicação de direitos humanos básicos a
essa população, já ceifada de direitos fundamentais como a liberdade indivi-
dual para dispor de si mesmo.
393
Cumpre aplicar política de direitos humanos nas práticas administrati-
vas das unidades de internação de adolescentes com programas de extensão
aos quais os internos se vinculem, com acompanhamento e orientação, com
respeito às diferenças. Falta uma proposta para ampliar execução pedagógica
dos direitos humanos, no método pelo qual educando e educadores se educam.
Os orçamentos públicos, em nome da segurança pública, podem conter inves-
timentos sociais passíveis de serem executados em sistemas educacionais de
internação e não somente no espaço de unidades de internação e repressão.
O educador, o disciplinador e a equipe da unidade devem ser contempla-
dos na formação de agentes de reeducação social com base nos direitos huma-
nos, possibilitando desfazer a imagem e o pensamento de que o adolescente
não é punido. Primeiro, a realidade social que produz a situação em que o
adolescente começa a vender droga, a roubar e a encontrar alguém que “coloca
uma arma na sua mão” revela um menor infrator.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990) é uma referência necessária, sua função efetiva precisa ir além da
intenção firmada no texto da lei. Ele prevê medidas socioeducativas, como
oficinas profissionalizantes e acompanhamento de educadores que não são
executadas por falta de estrutura, recursos humanos, financeiros e materiais.
Ao todo, percorreram 88,5% das unidades de internação e de semiliber-
dade para adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas
para constatarem o que está no relatório ao CNMP que aponta que a “relação
entre o espaço físico da unidade de internação e a qualidade do atendimento
socioeducativo é imediata”. Esses dois fatores são os principais motivos para as
rebeliões nas unidades de internação, de acordo com o documento.
Ressalte-se então que dois principais motivos para os descontentamen-
tos, em sua maioria, são com relação às condições básicas de existência e
as práticas de disciplinas, problemas que estão na raiz das lutas por direitos
humanos no mundo. Urge reavaliar a pedagogia socioeducativa e articular
as relações humanas da disciplina necessária com a prática do respeito aos
direitos humanos.
Reunidos em alojamentos superlotados não se pode esperar ressocializa-
ção de menores/adolescentes ociosos durante o dia e sem oportunidade para
o estudo, o trabalho ou prática de atividades esportivas reeducativas. Espaço
394
físico reduzido e falta de infra-estrutura criam lugares de permanente con-
fronto, não estimula na socialização, tudo conspira e às vezes explode em
deflagração de rebeliões nas unidades de internação. O local e as condições da
internação não se dão de forma condizente com a política de direitos huma-
nos que o Brasil respeita, inclusive com garantias asseguradas em acordos e
convenções internacionais. Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad), os
menores que cometem atos infracionais graves, como crimes previstos no Código
Penal, podem cumprir medidas socieducativas em unidades de semi-liberdade,
quando o menor pode participar de atividades externas como a escola, ou interna-
ção, que é a punição mais severa.
Entre março de 2012 e março de 2013, houve 103 rebeliões nas unidades
de internação brasileiras. 20,2% das casas para menores infratores foram afe-
tadas com algum motim nesse período. Em 70,7% das rebeliões ocorridas no
País, houve vítimas lesionadas.
As rebeliões mais violentas ocorreram no Sudeste, onde houve registro
de lesão corporal em 88% das rebeliões. O menor percentual de rebeliões com
vítimas com lesões corporais foi registrado no Sul: 27,3%. Nesse período de
um ano ocorreram 129 evasões nas unidades inspecionadas pelo Ministério
Público, com a fuga de cerca de 1.560 internos.
395
estão crimes contra o patrimônio, como roubo e furto. De acordo com o le-
vantamento, 36% dos entrevistados afirmaram estar internados por roubo. Em
seguida aparece o tráfico de drogas (24%).
A pesquisa “Panorama Nacional, a Execução das Medidas Socioeducati-
vas de Internação” foi realizada pelo Departamento de Monitoramento e Fisca-
lização do Sistema Carcerário (DMF) e pelo Departamento de Pesquisas Judici-
árias (DPJ). O levantamento foi realizado por uma equipe multidisciplinar que
visitou, de julho de 2010 a outubro de 2011, os 320 estabelecimentos de inter-
nação existentes no Brasil para analisar as condições de internação de 17.502
adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em restrição de liberdade.
Durante essas visitas, a equipe entrevistou 1.898 adolescentes internos.
Dos jovens entrevistados, 74,8% faziam uso de drogas ilícitas, sendo o
percentual ainda mais expressivo na Região Centro-Oeste, onde 80,3% dos
adolescentes afirmam ser usuários de drogas. Em seguida está a Região Sudes-
te, com 77,5% de usuários.
Um caso serve de referência para a necessidade de compreensão quanto
à importância do conteúdo Direitos Humanos nas unidades de internação.
O Centro Integrado de Atendimento Sócio-educativo (Ciase) foi flagrado em
série de violações aos direitos da criança e do adolescente. O secretário-exe-
cutivo do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CO-
NANDA), Benedito Rodrigues dos Santos, disse, na época, em maio de 2009,
que o Ciase talvez fosse a pior unidade de internação já visitada pelo órgão.
“Era como se tivéssemos voltado à Idade Média, ao tempo das masmorras.
É um lugar onde o estado de direito não chegou ainda”, relatou Benedito o
secretário do CONANDA.
O pesadelo encontrado motivou a elaboração da “Carta de Vitória”, en-
dereçada aos governos estadual, federal e municipal, ao Tribunal de Justiça do
Estado, entre outros, solicitando providências.
A comoção com a barbárie do CIASE foi o tema central da 174ª. Assem-
bleia Ordinária do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescen-
te, Vitória-ES, com audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado. O
órgão se mobilizava face à denúncias de crueldades nas mortes de dois inter-
nos da Unidade de Internação Socioeducativa (Unis) no período de um mês,
além de novo espancamento tendo por vítima outro adolescente.
396
As inspeções do CONANDA ouviram os adolescentes internos, servido-
res, operadores do sistema de segurança e justiça. O que se constatou e foi
expresso no documento refere-se a uma situação incompatível com as dire-
trizes do Estatuto da Criança e do Adolescente – Ecriad quanto às condições
mínimas de dignidade humana. Identificou-se graves violações dos direitos
dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, “desde a apre-
ensão do adolescente, aplicação e execução da medida, tanto em meio aberto
quanto em meio fechado, envolvendo distintas instâncias do Sistema de Ga-
rantia dos Direitos.”
Os espaços onde ainda são confinados esses adolescentes, nessa unidade,
que não é muito diferente das demais existentes no País, remetem às prisões
medievais. Vê-se extrema precariedade das instalações prediais das unidades
de internação, que operam com superlotação, insalubridade, sem iluminação
e ventilação, rede elétrica danificada, condições sanitárias sub-humanas, ali-
mentação imprópria para o consumo e para a faixa etária.
São condições indignas que afrontam o princípio da dignidade humana,
portanto, em afronta, também, aos princípios dos direitos humanos pelo risco
à saúde e à própria vida dos adolescentes internados nessas unidades.
Dentre as violações dos direitos dos internos estabelecidos no artigo 124
do Ecriad, identificamos a falta de acesso ao atendimento. Há impedimen-
tos para que a população em questão possa ter acesso a outras perspectivas
de ocupação do tempo que resgatem as determinações dos direitos humanos
básicos e fundamentais, mediante a aplicação dos programas já existentes.
Direito à saúde, à educação, à profissionalização, a atividades de lazer, a meios
de comunicação, à visita e contatos com familiares, aos objetos necessários à
higiene e asseio pessoal são, também do âmbito dos direitos humanos.
Se a maioria dos adolescentes aponta a existência de lesões corporais
decorrentes da ação policial no ato de apreensão, bem como de espancamentos
nos procedimentos de revista semanal realizados nas unidades de internação
pelo grupo de agentes socioeducativos, esta já é uma situação que demanda
maior dinamismo das políticas públicas de direitos humanos referentes aos
adolescentes internos.
Os “choquinhos”, acompanhados de práticas de desnudamento e agres-
sões físicas com cassetetes e projéteis de borracha; revistas íntimas abusivas
397
em mulheres, mães ou familiares dos internos, com desnudamento, agacha-
mento e outras situações de constrangimento não educam. Tudo isso viola por
inteiro o pressuposto universal dos direitos humanos.
Nos centros de triagem permanecem adolescentes por tempo superior ao
legalmente previsto, não há separação, alguns estão em regime de internação
provisória e outros já com medidas de internação, ou até situações de transfe-
rência de outras unidades por medida de segurança. Na unidade feminina de
internação, adotava-se o procedimento de manter adolescentes em regime de
internação provisória no mesmo espaço com as que já cumprem medidas de
privação de liberdade.
Era de tamanha gravidade as condições sub-humanas desses adolescen-
tes que o CONANDA indicou a necessidade de decretar, de imediato, Situação
de Emergência para a adoção de medidas. Passado o clamor do momento, os
problemas continuam, em decorrência da negação de direitos humanos e da
falta de uma educação voltada especificamente para essas situações.
7. Conclusão
398
concreta e objetiva dessa população que conforma a faixa crescente dos ado-
lescentes internos. Uma segunda negação aos direitos humanos ocorre na in-
ternação que deixa o adolescente infrator privado de acesso a um tratamento
digno, de acordo com a lei.
Seria elementar, no Estado Democrático de Direito, que os menores/ado-
lescentes em conflito com a Lei pudessem conhecer o processo legal pelo qual
foram condenados até para que, em programa mais amplo, viessem a integrar
programas socioeducativos estruturados a partir de um entendimento que re-
force a aplicação de medidas de meio aberto e de semi-liberdade, no limite das
possibilidades, evitando-se as práticas de internamento.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente já re-
comendou à Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Espírito Santo, por
exemplo, para que se garantam os direitos dos adolescentes com relação ao
devido processo legal, “…criando estruturas e procedimentos necessários a esta
finalidade, destacando a criação de promotorias especializadas para atuar em
varas da infância e da juventude e instauração de procedimentos administra-
tivos para apurar as irregularidades na execução das medidas socioeducati-
vas”, de acordo com a proposta da Carta de Vitória. A perspectiva que essas
medidas se inscrevem demanda, por necessidade, por integração dos órgãos
responsáveis pela efetividade do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança
e do Adolescente, sob a ótica e as normas do respeito aos direitos humanos.
E nessa integração a inserção da educação em direitos humanos, no con-
junto das medidas já apontadas nos estudos assinalados, é ponto de apoio
significativo para uma política mais humana no processo de penalidades so-
cioeducativas de menores infratores.
399
Reênciasfer ácasbilogr
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 1 ed. 12. tir. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_
leitura&artigo_id=5414> . Acesso em 02 de outubro de 2013.
<http://www.conjur.com.br/2013-ago-08/menor-infrator-submetido-mesmas-condi-
coes-presidiario-mostra-cnmp>Acesso em 05 de outubro de 2013
<http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/legislacao/outras/2011_03_22_Resolu-
cao-139-do-Conanda.pdf>. Acesso em 01 de outubro de 2013.
400
Daniela Simiqueli Durante
Mestranda em História Social das Relações Políticas/UFES.Professora da Rede
Municipal de Anchieta/ES. Discente do Curso de Educação em Direitos Humanos
23
CIGANOS: DIREITOS HUMANOS E EDUCAÇÃO
1. Introdução
Esta é a história de um povo itinerante que chegou aos Bálcãs nos tem-
pos medievais e gradualmente se foi espalhando por todo o continente
europeu e para além dele. Quando bateram à porta da Europa Ocidental,
em jeito de peregrinos, despertaram uma imensa curiosidade e suscita-
ram proliferação de teorias sobre as suas origens. Só muito mais tarde se
tornou possível deduzir da sua língua onde tinha começado a diáspora.
Ao longo dos séculos, apesar de constantemente expostos a múltiplas
influências e pressões, conseguiram preservar uma identidade própria e
demonstrar notável capacidade de adaptação e sobrevivência. Com efeito
quando consideramos as vicissitudes por que passaram — pois a história
que vamos relatar é em grande medida a história do que outros fizeram
destruir a sua diferença – somos forçados a concluir que a sua maior pro-
eza foi precisamente terem conseguido sobreviver (FRASER, 1997, p. 07).
402
não dispomos de muitas fontes escritas e, além disso, percebemos que sempre
o “outro” contou a história dos ciganos (estes eram ágrafos e não constam
registros realizados por eles) o que dá uma grande margem para especula-
ções provenientes da ignorância, preconceito e incompreensão. Podemos citar
como exemplo o médico baiano Alexandre de Mello Moraes Filho (1843–1919)
considerado um dos pioneiros sobre os estudos da tradição cigana na cultura
brasileira. Em suas obras O Cancioneiro dos Ciganos e Os Ciganos no Brasil
percebemos as concepções deterministas típicas da segunda metade do século
XIX onde o valor social do indivíduo era mensurado pela sua utilidade social
ou capacidade biológica. Certamente, tais concepções impediram o autor de
compreender a essência do ser cigano.
Segundo os estudos, há uma forte afinidade entre a morfologia da língua
Romani e o Sânscrito o que determinou uma descendência hindu aos ciganos.
Não se sabe quando em que região da Índia ocorreu esta dispersão. As razões
para a emigração também são misteriosas. Há diversas hipóteses para os an-
tepassados dos ciganos. Entre elas que eles seriam descendentes dos Banjara
“uma raça mista de mercadores ambulantes que formavam um exemplo do
que se costuma chamar de “tribos de criminosos errantes” da Índia” (FRASER,
1999, p. 31). Outra vertente acredita que os ciganos seriam descendentes de
guerreiros Jat e Rajput. Acredita-se também em diversas ascendências, o que
justificaria a diversidade de tipos físicos das populações ciganas na atualidade.
403
principalmente ursos, e indivíduos que liam a sorte e previam o futuro cha-
mados de Athinganoi.
A migração para a Grécia ocorreu possivelmente pela expansão dos
turcos otomanos. No século XIV surgem relatos da presença de ciganos no
Peloponeso e nas ilhas gregas. Simão Simeónis, um frade franciscano, visi-
tou a ilha de Creta em 1323 e descreve um povo que poderia ser identificado
como cigano:
Vimos também aí uma raça de fora da cidade, que servia o rito grego e
se dizia da família de Chaym [Ham]. Raramente ou nunca paravam num
lugar mais de trinta dias, andando sempre a vaguear e a fugir, como se
malditos por Deus, passado o trigésimo dia mudavam de campo para
campo com suas tendas oblongas, negras e baixas, como as dos árabes,
e de caverna para caverna (Ibid., 1999, p. 55).
404
com algum real ou auto-atribuído título de nobreza: conde, duque ou
voivode, e há notícia de “alguns” reis ciganos. Apresentavam-se como
penitentes ou peregrinos, com cartas de apresentação ou salvo-condutos
de reis, príncipes e nobres, e até do papa, nas quais estes pediam que
se fornecesse aos ciganos a melhor acolhida possível, hospedagem, ali-
mentação e dinheiro (MOONEN, 2008, p. 21).
405
que as autoridades tivessem que sustentar depois a quase sempre nu-
merosa prole cigana (Ibid., 2008, p.32).
406
nos”, ou as mulheres de lerem a buena-dicha (isto é, prever o futuro
lendo a sina na palma da mão). As referências a crimes de sangue eram
bastante raras (COSTA, 2006, p. 17).
407
A segunda Onda migratória dos ciganos para o Ocidente ocorreu no
século XIX. Acredita-se que a abolição da escravidão cigana na Romênia, a
miséria que se encontrava grande parcela da população européia e as duas
grandes guerras ocasionaram sucessivas migrações internas e externas. No-
vamente, as políticas anticiganas foram acionadas, chegando ao seu ápice
na Alemanha nazista com o holocausto cigano conhecido por Poraimos (que
significa Devoração). O sangue cigano representava uma ameaça ao ideal
ariano o que culminou em uma selvagem perseguição aos ciganos. O tradi-
cional ódio aos ciganos associada ás teorias de “higiene racial” e criminal
culminaram no extermínio de mais de 500.000 vidas em campos de concen-
tração vítimas de inanição, trabalho excessivo, doenças, câmaras de gás e
abusos médicos.
408
e sentimentos muito diferentes entre si, e que, no entanto, continuam a ser
tratadas como pessoas idênticas” (REZENDE, 2000, p. 07).
Ao descreverem a cultura cigana, os ciganólogos se deparam com alguns
impasses: estariam tratando de uma cultura homogênea e isolada? O gadjé
(não-cigano) tem uma verdadeira compreensão desta cultura? Todorov ques-
tiona os critérios de julgamento que devemos utilizar em culturas diferentes:
3. Os ciganos na contemporaneidade
409
participação na construção do processo histórico é negligenciado de modo
ostensivo até os dias atuais, “não existindo órgãos governamentais e legis-
lação específicos que tutele os interesses dessa minoria” (COSTA e SILVA,
2009, p.439), o que impede o acesso a direitos fundamentais como atenção
básica à saúde, à documentos de identificação civil obrigatórios e ao ensino/
permanência na escola.
Por não possuírem o mesmo tipo de organização social dos outros gru-
pos classificados como tradicionais, e particularmente por seu noma-
dismo, os ciganos possuem bastante dificuldades de se inserirem em
estruturas sociais normativas que lhe garantam acesso a equipamentos
sociais (SIMÕES, 2007, p.641).
410
Desde homossexuais, camponeses, pentecostais ou viciados em flipe-
rama, até as expressões mais contundentes de uma tradição cultural
peculiar, como uma minoria indiana em West End, famílias de migran-
tes latinos nas bordas de Miami, ou até mesmo “ciganos modernos” na
periferia de belo Horizonte – todos vêm mostrar limites que nos criam
um certo “mal estar”. (REZENDE, 2003, P.18)
[…] essas diferenças culturais não coincidem entre si, nem formam ter-
ritórios claramente delimitados em que fosse possível verificar uma so-
breposição perfeita entre diversos ingredientes. Qualquer indivíduo é
pluricultural (TODOROV, 2010, p.69).
Assim, não podemos tratar de uma cultura cigana homogênea com cos-
tumes e tradições e dialetos idênticos. “Não existem culturas puras; pelo con-
trário, todas elas são mistas (ou “híbridas” ou “mestiças”)”. (Ibid.).
Estando de acordo que a cultura é um processo que se constrói, entende-
mos que as práticas sociais são diversificadas e variadas:
411
Qualquer sociedade é pluricultural. Aquelas que estão impregnadas pelo
ódio e pelo preconceito impedem o avanço das ideias democráticas e, contri-
buem paraa perpetuação da barbárie.
4. Educação cigana
412
Vários ensaios e relatórios documentam a discriminação de crianças
ciganas nas escolas mistas: os professores dão pouca importância ou
nenhuma atenção aos alunos ciganos, considerados “casos perdidos e
irrecuperáveis!, que por isso são colocadas nos bancos raseiros da sala.
Os alunos ciganos são ridicularizados por seus colegas não-ciganos,
por causa do seu vestuário mais pobre, por causa da sua aparência
física (mais escura), por serem supostamente sujas ou cheias de pio-
lhos, pelo fato de não saber falar direito a língua nacional, por serem
supostamente ladrões ou filhos de ladrões, por não saberem contar
direito, etc” (MOONEN, 2008, p. 74).
5. Considerações finais
413
A construção de uma escola democrática e cidadã precisa conhecer os
seus alunos. Ao compreender as diferenças culturais e os diversos olhares que
compõem a sociedade brasileira, estaremos avançando em políticas públicas
mais eficientes e justas que atendam os diversos segmentos que representam
a sociedade brasileira.
414
Reênciasfer ácasbilogr
CASA-NOVA, Maria J. A relação dos ciganos com a Escola Pública: contributos para
a compreensão sociológica de um problema complexo e multidimensional. Dispo-
nível em: http:// www.eses.pt/interaccoes. Acesso 20/11/2008.
MACHADO, Lia Osório. Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, es-
paços vazios e a idéia de ordem (1870-1930). In: CASTRO, Iná Elias; GOMES, Paulo
César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: Conceitos e Temas. 8.ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p.309-352.
SIMÕES, Sílvia R.F. Ciganos: perspectivas e desafios emergidos na busca por direitos
fundamentais. Anais do II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e
democracia, UFSC, Florianópolis, 2007.
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Pe-
trópolis: Vozes, 2010.
415
Elaine Cristina Gireli Alves
Discente do curso de Educação em Direitos Humanos.
24
ESTUDO DE CASO DE UM ALUNO AUTISTA:
SUJEITO DE DIREITOS
1. Introdução
417
2. Definindo o papel da educação especial
418
Na Constituição da República Federativa do Brasil (1988), teremos alguns
capítulos direcionados inteiramente à educação especial, como:
Art. 206 – O ensino será ministrado com base nos seguinte princípio:
I — Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.
419
sistema comum de educação a todas as crianças, jovem e adulto com neces-
sidades educacionais especiais discriminatórias, criando comunidades solidá-
rias, constituindo uma sociedade inclusiva e atingindo a Educação Para Todos.
3. Conhecendo o autismo
Segundo Wing (1989), autismo é uma síndrome definida por alterações pre-
sentes desde idades muito precoces, tipicamente antes dos três anos de idade,
e que se caracteriza sempre por desvios qualitativos na comunicação, na inte-
ração e no uso da imaginação.
O autismo foi descrito pela primeira vez em 1943, pelo Dr. Leo Kanner
(médico austríaco, residente em Baltimore, EUA), em sua publicação intitulada
Distúrbios do Contato Afetivo.
3.1 Incidência
3.2 Causas
420
Já que as causas não são totalmente conhecidas, o que pode ser reco-
mendado em termos de prevenção do autismo são os cuidados gerais a todas
as gestantes, especialmente cuidados com ingestão de produtos químicos, tais
como remédios, álcool ou fumo.
O autismo não é uma condição de “tudo ou nada”, mas é visto como um con-
tinuum, que vai do grau leve ao severo.
A definição de autismo adotada para efeito de intervenção é que o autismo
é uma alteração do comportamento que consiste em uma tríade de dificuldades:
421
3.5 Dificuldades de socialização
422
3.7 Como é feito o diagnóstico de autismo
O diagnóstico de autismo deve ser feito por uma equipe de profissionais com
experiência no diagnóstico dessa síndrome.
O diagnóstico de autismo é feito, basicamente, através da observação
do comportamento.
Não existem testes laboratoriais específicos para a detecção do autismo.
Por isso, diz-se que o autismo não apresenta um marcador biológico.
Normalmente, solicitam-se exames para investigar condições (possíveis
doenças) que têm causas identificáveis e podem indicar outras síndromes as-
sociadas ao autismo, como: a síndrome do X-frágil, Fenilcetonúria, Esclerose
Tuberosa, Moébius Dow, etc.
Quanto mais precocemente for iniciada uma intervenção pedagógica,
mais oportunidades de desenvolvimento as pessoas com autismo terão.
RELATO DA MÃE
Quando tudo começou…
“Quando tinha um ano e meio, comecei a desconfiar que ele fosse surdo.
Nós o chamávamos, mas ele não respondia”.
423
a organizações que defendem os direitos e promovem a cidadania plena das
pessoas com autismo e suas famílias.
Mudanças de rotina e mudança de percurso costumam perturbar bastante
a criança autista. Sabendo dessa característica do autista, sua mãe acredita que
a mudança de um estado para outro (moravam no estado do Pará-PA), talvez
tivesse sido a razão pela qual o seu filho, inicialmente, não tivesse conseguisse
se adaptar à primeira escola no município de São Mateus-ES, no qual perma-
neceu por menos de 30 dias.
A escola, lugar onde se educa para a vida em sociedade, para o respeito
às leis e para o cumprimento dos deveres de cidadão, declarou que não poderia
continuar com um aluno autista, alegando despreparo dos seus professores em
lidar com crianças autistas. Não sabia a determinada escola que os sujeitos de
direitos se constroem de forma processual e em interação com outros huma-
nos, com o ambiente cultural e o ambiente natural.
Infelizmente esse não é um caso excepcional. Está na lei, mas o direito
das crianças autistas estudarem em escolas regulares com a atenção devida é
ainda um sonho distante.
Sendo assim, foi procurada outra escola para que o aluno, com calendá-
rio escolar atrasado não perdesse o ano. Essa outra escola o recebeu, fez sua
matrícula e imediatamente solicitou à Secretaria Municipal de Educação que,
com urgência, enviasse uma professora de apoio. Com a demora em chegar a
bidocente, foi preciso acionar a defensoria pública para que, amparada pelos
direitos do autista, interviesse junto à Secretaria Municipal e escola. A partir
de então foi disponibilizado uma professora para ajudar a professora regente
na execução das atividades.
424
A professora contratada pela rede municipal buscou através do método
educacional TEACCH, que é o mais eficaz para atender o aluno com autismo,
uma rotina diária, tendo na sala o mínimo de informação possível nas paredes.
A docente trabalhou com estratégias comportamentais, metodologias específi-
cas, com atividades significativas e adequações didático-pedagógicas necessá-
rias, contribuindo para avanços no relacionamento social, na comunicação com
o aluno no âmbito escolar, a atingir as características peculiares do autista.
No inicio dos trabalhos, em observação da linguagem escrita do aluno,
o mesmo chegou à escola com garatujas desordenadas, rabiscos e linhas pa-
ralelas e sequenciais, reconhecendo apenas as letras do seu nome. Hoje, após
meses de dedicação, o aluno já se encontra em nível silábico alfabético.
Consegue ler palavras simples e compreender o sentido das mesmas. No
entanto, sua leitura se apoia quase exclusivamente na estratégia da decodi-
ficação, o que consiste à linguagem oral. O aluno apresenta dificuldades de
articulação em algumas palavras, emitindo palavras soltas.
O recurso utilizado faz com que o aluno fique concentrado mais tem-
po na atividade, o que pode ser um grande ganho. Essa ferramenta tem
se mostrado cada vez mais efetiva na educação de pessoas com autismo,
proporcionando, além da comunicação, um conhecimento de mundo que
favorece o processo de educação: atividade planejada considerando a ludi-
cidade e a criatividade.
Para Scott, Clark & Brad (2000), a abordagem mais recomendada para
ensinar pessoas com autismo é aquela que usa apoios visuais. Os alunos fre-
quentemente demonstram certa força no pensamento concreto, nas rotas de
memória e na compreensão das relações visoespaciais, enquanto demonstram
dificuldades no raciocínio simbólico, comunicação e atenção. Figuras e pistas
escritas podem ajudar os alunos a aprenderem a se comunicar e a desenvol-
verem autocontrole.
Durante os meses trabalhados com o aluno autista, foi possível perceber
que o tempo de concentração é muito reduzido, devido a um repertório restrito
e pouco criativo de interesses e atividades. Além do mais, seus focos de aten-
ção, com frequência mudam rapidamente de um objeto para outro; alguns dias
ele conseguia se envolver nas atividades, realizá-las e noutros não conseguia
assimilar e executar as atividades planejadas.
425
No que se refere à socialização do aluno autista, ponto crucial do autis-
mo, fica difícil realizar uma avaliação mais precisa, devido à inconstância de
seu desempenho nos relacionamentos interpessoais.
426
fessores para atuar em sala de aula com alunos DI, ela disse que a capacitação
é feita através das reuniões de estudo mensais com os bidocentes e, para os ou-
tros professores, vem através da proposta do curso de formação que implicará
em uma ação direta na comunidade escolar como um agente multiplicador.
Com relação ao planejamento, o bidocente tem direito a cinco planejamentos
semanais e pelo menos um deles acompanhado pelo pedagogo, que é quem
acompanha e conhece os alunos por eles atendidos. (“de preferência que esse
planejamento seja junto com o professor regente”).
Quanto à adaptação curricular, disse que deve haver sempre que ne-
cessário, sendo garantida e legitimada pela LDB, Lei 9394/96. Agora, quanto
à adequação ou adaptação de currículos e avaliações, depende de como é o
aluno, quais suas necessidades e especificidades, só podendo isso ser realizado
após uma avaliação diagnóstica. O professor especialista que atua na sala de
recursos pode colaborar e orientar nas adaptações.
Quanto às acomodações físicas, o município está estruturando as esco-
las mais antigas, pois nem todas possuem adequações. “As que têm sala de
recursos multifuncional recebem uma verba para acessibilidade e as que não
têm podem solicitar ao setor de construção da prefeitura o serviço para a aces-
sibilidade, como por exemplo: alargamento de portas, corredores, entradas e
adequação de banheiros entre outros”.
5. Conclusão
427
Algumas propostas político-educacionais nos dão a impressão de que
as deficiências estão consolidadas nos indivíduos, ou seja, eles não teriam
capacidade de ler, escrever, se socializar, não conseguindo se desenvolver e
progredir. Dessa forma, faz-se com que a inclusão desses alunos não aconteça
nas instituições de ensino, sendo valorizado apenas um ensino especializado,
individualizado e adaptado.
Para que isso não aconteça é de grande importância que o aluno seja
acompanhado por profissionais bem instruídos para que possa obter sucesso
em sua vida. Mas, além desses profissionais, também é preciso que, tanto a
escola em todos os segmentos, quanto as políticas vigentes acerca da educação
especial e famílias estejam caminhando juntas. É preciso que a escola tenha
o conhecimento das especificidades dos alunos com necessidade educacionais
especiais, pois assim, o educador conseguirá saber e entender as dificuldades
e buscar cada vez mais recursos, materiais e projetos que possam ajudar o
desenvolvimento desses alunos.
É necessário que as instituições de ensino reorganizem práticas escolares,
planejamento, currículo, avaliação, valorizando a capacidade de cada criança,
garantindo assim os seus direitos de acesso à educação de qualidade.
A escola abordada neste estudo de caso, diante da chegada do primeiro
aluno autista, superou desafios, promoveu acomodações físicas e eliminou
preconceitos ao reconhecer que o autismo faz parte da diversidade humana.
A escola buscou, ainda, conhecer as características da criança relatada neste
estudo, além de trazer para a professora bidocente uma experiência ímpar e
transformadora para sua prática pedagógica.
Através deste trabalho, foi possível perceber que a educação escolar deve
estar sempre pautada nas leis e consciente do seu papel na sociedade, pois, não
basta apenas aceitar a criança especial, colocando-a no espaço escolar, é pre-
ciso promover o convívio social, o convívio familiar, direito a uma identidade,
à liberdade, à singularidade e à dignidade de ser humano como sujeito de sua
própria história, em promoção à cidadania.
428
Reênciasfer ácasbilogr
429
Valdineia Gomes das Chagas
Assistente Social com especialização em Saúde Coletiva e Discente no Curso
de Educação em Direito Humanos.
25
VIOLÊNCIA URBANA NA PERSPECTIVA DOS
DIREITOS HUMANOS
1. Introdução
431
de casas com muros altos com modernos equipamentos de segurança na ten-
tativa de enfrentamento à violência (ODÁLIA, 1985).
Entretanto, percebe-se que nas regiões periféricas não há as mesmas
condições de segurança e nem de enfrentamento à violência em seu cotidia-
no. Isso é percebido na ausência ou insuficiência de equipamentos e serviços
instalados para o atendimento dos moradores, como: unidades de saúde,
escolas, lazer, habitação, saneamento básico, dentre outros. Esses serviços,
quando instalados pelo Estado, dão-se através de lutas e conquistas dos
movimentos sociais.
A autora ZALUAR (1994), destaca que esse fato é marcado no território
pela distribuição desigual de equipamentos e serviços, o que se caracteriza
por um tipo de violência sofrido pelas classes menos abastadas. Outro tipo
de violência é o estigma que os moradores dessas áreas periféricas sofrem, já
que essas regiões são consideradas e citadas, especialmente, pela mídia como
lugares de violência e de autores da violência, e não daqueles que também
são vítimas da mesma.
Sendo assim, realizou-se este trabalho intitulado “Violência Urbana na
perspectiva dos Direitos Humanos”, com o objetivo de verificar o impacto da
violência urbana em áreas periféricas do Município de Vitória/ES. Delimitou-
se o Bairro da Penha como cenário do estudo, devido às diversas manifesta-
ções da violência, dentre eles, conflitos entre “gangues” rivais, pelas disputas
do domínio do tráfico de drogas na região. A repercussão dos assassinatos
na mídia aumenta uma sensação de insegurança, provocando a resposta do
Estado em ocupar, com a Polícia Militar, o bairro. O clima de insegurança e
de possíveis conflitos propicia a inacessibilidade dos moradores quanto aos
serviços e políticas públicas. Em períodos de conflitos, a população teme a cir-
culação na região e os equipamentos sociais como escolas e unidades de saúde
não funcionam. Não funciona também o transporte público, que em períodos
de conflitos não fazem todo o itinerário na região, como por exemplo, na
parte mais alta do bairro, dificultando o deslocamento dos moradores a outras
regiões da cidade.
Para alcançar o objetivo proposto neste trabalho, buscou-se compreender
o fenômeno da violência urbana, bem como verificar como se deu o seu sur-
gimento, além de informações mais recentes de conflitos violentos na região.
432
Para isso, foi realizado um levantamento bibliográfico, através de livros e
artigos, o qual tratará o fenômeno violência urbana como uma manifestação
e atos violentos advindas da acumulação desigual da riqueza socialmente pro-
duzida. Para abordar o processo de surgimento do bairro, bem como a violên-
cia na região, será realizada a pesquisa documental baseada em jornais e sites
(Jornal Gazeta Online, PMV, IBGE, entre outros).
As motivações para realização deste trabalho surgiram em razão de ex-
periências e aproximações do tema e da realidade vivenciada na região. A
aproximação com o tema se deu, também, em razão da graduação em Serviço
Social, na qual foi possível participar de algumas pesquisas sobre violência, a
partir do que foram percebidas lacunas a serem preenchidas acerca de estudos
e pesquisas sobre esta temática e seu impacto nesse território.
Outra motivação foi o fato de esta pesquisadora ter trabalhado durante
03 anos no Curso de Especialização em Segurança Pública da UFES, o que me
propiciou a participação em debates, palestras e leituras relacionadas à vio-
lência e à segurança pública, contribuindo assim para o interesse em estudar
o assunto. E, finalmente, por ser moradora do Bairro Santos Dumont que fica
muito próximo do Bairro da Penha e constantemente nos deparamos com no-
tícias de conflitos e assassinatos na região.
A perspectiva científica de base utilizada para se chegar aos fins preten-
didos neste trabalho será o materialismo histórico. Nela, o modo de produção
é o que determina o processo social e político.
Gil (2007, p. 40) ressalta que:
433
2. A violência no contexto histórico
434
peste negra que, vinda da Ásia em 1348, dizimou cerca de um quarto 1. […] Do ponto de vista econômico, me-
da população europeia – e ter-se-á o quadro que vai erodir o regime diações de natureza mercantil penetravam
as relações básicas da economia feudal en-
feudal, que parecera tão estável entre os séculos XI e XIV (NETTO &
tre os próprios senhores (a terra começou a
BRAZ, 2007, p.71). ser objeto de transação mercantil) e entre
senhores e servos (as prestações em traba-
lho e espécie começaram a ser substituídas
Nesse contexto, a partir da queda do sistema feudal, as lutas entre as clas-
por pagamentos em dinheiro) (NETTO &
ses fundamentais do modo de produção, proprietários fundiários e camponeses, BRAZ, 2007, p. 71).
aprofundaram-se drasticamente a partir de então, já que os primeiros, para
compensar a redução do excedente econômico de que se apropriavam, tratavam
de acentuar a exploração dos produtores diretos1; e também entre os senhores
instalaram-se conflitos que derivaram em verdadeiro banditismo, configurando
um cenário de confrontos sociais que invadirá o século XVI (NETTO & BRAZ,
2007). Isto como consequência da expulsão dos camponeses de suas terras de
forma violenta pelos senhores, agravando sua condição de manutenção à sua
subsistência, pois não detinham mais a terra como objeto de seu trabalho e não
conseguiam inserir-se nas oficinas manufatureiras com a rapidez para satisfa-
zer as suas necessidades sociais. Assim, foram transformados em “mendigos”,
“ladrões” e “vagabundos”, devido a essas circunstâncias e à organização do tra-
balho na manufatura, que exigia disciplina em suas novas formas de relações
sociais de produção, estas de natureza e mediações mercantis (MARX, 2003).
Para controlar a classe camponesa, no fim do Século XV e início do Sé-
culo XVI, surgiram legislações na Europa contra a vadiagem.
435
2. […] A alienação presente na sociedade As transformações no âmbito do trabalho fazem com que a relação entre
“penetra a consciência dos agentes” ere- o criador e a criatura apareça invertida; a criatura passa a dominar o criador.
gindo-se como “sério obstáculo” para que
A essa inversão dá-se o nome de alienação2. Ela é própria da sociedade em que
pudessem estruturar sua consciência social
e política (Martinelli, 1989:115). Conduz ao ocorre a divisão do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção;
fortalecimento da identidade atribuída pelo naquelas em que ocorre a exploração do homem pelo homem, sendo neces-
capitalismo, afirmando “sua função econô-
sário para o surgimento e consolidação do sistema capitalista de produção
mica de fundo ideológico, mais que sua fun-
ção social” (sic). Traduz-se em uma “identi- (NETTO & BRAZ, 2007).
dade reificada” que reproduz a “consciência Nessa perspectiva, a divisão do trabalho e da cooperação nas oficinas
metafísica da burguesia”, incorporando-a tornava os trabalhadores mais produtivos. Porém, a apropriação em pou-
num típico jogo de espelhos, como se fos-
se parte da própria superestrutura (MARTI-
cas mãos dos instrumentos de trabalho provocava transformações súbitas
NELLI apud IAMAMOTO, 2008, p. 286). e violentas no modo de produção, de vida e de trabalho da população
rural expropriada.
3. […] contratado o trabalhador por um sa-
lário diário de, digamos R$ 30,00 (expres-
são do valor real da mercadoria força de Mas essa luta, originalmente, se trava mais entre grandes e pequenos
trabalho de circunstancias do contrato), a proprietários de terras do que entre capital e trabalho assalariado; por
jornada estipulada pelo capitalista só terá outro lado, quando trabalhadores são suprimidos por instrumentos de
sentido para ele se, ao cabo dessa jornada, o
trabalhador produzir um valor superior (ex-
trabalho, ovelhas, cavalos, etc, os atos de violência diretamente aplica-
cedente) ao equivalente aqueles R$ 30,00; dos constituem prelúdio da revolução industrial (MARX, Livro primeiro,
com efeito, o capitalista jamais contrataria Vol I, 1999, p. 490).
um proletário para lhe restituir somente o
valor expresso no salário: seria o mesmo
que trocar seis por meio dúzia; assim, na Marx (1999) afirma que a máquina revolucionou o contrato de trabalho
jornada, contém-se um tempo suplementar estabelecido entre capitalista e trabalhador. Na medida em que, com o surgi-
de trabalho no qual o proletário produz o
mento da industrialização no século XVIII, o trabalho humano passou a ser
valor que excede o equivalente aqueles R$
30,00. É desse valor excedente (que se de- empregado no manuseio das máquinas, que foram criadas e desenvolvidas
signa como mais-valia) que o capitalista se com o propósito de aumentar a produção e consequentemente a mais-valia3.
apropria (NETTO & BRAZ, 2007, p. 100-101). Passou-se então, o capitalista, a empregar mão de obra feminina e infantil
,
nas indústrias, uma vez que não havia a necessidade de força muscular para
trabalhar com as máquinas.
Assim, o poderoso meio de substituir trabalho e trabalhadores, a ma-
quinaria, transformou-se imediatamente em meio de aumentar o número de
assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador, sem
distinção de sexo e idade, sob o domínio direto do capital (MARX, Livro Pri-
meiro, Vol I, 1999, p.451).
436
Os trabalhadores, com o tempo, passaram a questionar sobre o prolon- 4. Um modo de ampliar o tempo de tra-
balho excedente consiste na extensão da
gamento desmedido da jornada diária de trabalho (mais-valia absoluta4) a que jornada de trabalho sem alteração de sa-
estavam submetidos nas indústrias, passando assim a submeter-se à mais- lário: aumentando-se a duração da jornada
valia relativa5 como alternativa imposta pelos capitalistas. (dez, doze, catorze horas etc), conserva-se a
mesma duração de tempo de trabalho ne-
Quando a rebeldia crescente da classe trabalhadora forçou o Estado a di-
cessário e se acresce o tempo de trabalho
minuir coercitivamente o tempo de trabalho, começando por impor às fábricas excedente. Esse modo de incrementar a pro-
propriamente ditas, num dia normal de trabalho, quando, portanto, se tornou dução de excedente a ser apropriado pelo
capitalista designa-se como produção de
impossível aumentar a produção de mais-valia, prolongando o dia de traba-
mais-valia absoluta (NETTO, 2007, p. 108).
lho, lançou-se o capital, com plena consciência e com todas as suas forças, a
produção da mais-valia relativa, acelerando o desenvolvimento do sistema das 5. Quando não dispõe de condições po-
máquinas (MARX, Livro Primeiro, Vol I, 1999, p.467). líticas que lhes permitam a ampliação
da jornada de trabalho, os capitalistas
Somando-se a essa percepção do trabalhador frente à intensificação do
tratam de encontrar meios e modos de
trabalho, tem-se um movimento da classe trabalhadora que vai de encontro à reduzir no seu interior, a parte relativa
instalação e manutenção de máquinas na indústria que ocupavam postos de ao trabalho necessário: se se mantém
um limite para a jornada (por exemplo:
trabalho e disciplinavam tarefas específicas a fim de otimizar o tempo de tra-
oito horas), o que se reduz no tempo de
balho e a produção de mercadorias. Assim sendo, um dos primeiros movimen- trabalho necessário se acresce no tempo
tos da classe trabalhadora contra a classe capitalista, já na industrialização, de trabalho excedente. Com essa alter-
foi a revolta e tentativa de destruição dos instrumentais de trabalho, ou seja, nativa, tem-se a produção de mais-valia
relativa (NETTO, 2007, p. 109).
da própria máquina6.
Dessa forma, verificamos que a divisão da sociedade em classes, a apro- 6. A luta entre o capitalista e o trabalhador
priação dos meios de produção e, consequentemente, a exploração do trabalho remonta à própria origem do capital. Res-
soa durante todo período manufatureiro.
pelos capitalistas, não foi aceita de forma pacífica pelos trabalhadores. Pode-se
Mas só a partir da introdução da máquina
caracterizar esta exploração e subordinação do processo de trabalho pelo ca- passa o trabalhador a combater o próprio
pitalista como um ato eminente de violência, pois afeta a classe trabalhadora instrumental de trabalho, a configuração
nos mais diversos setores da vida social, envolvendo indivíduos e coletivida- material do capital. Revolta-se contra essa
forma determinada dos meios de produ-
des, objetividades e subjetividades. Chega-se à modernidade não como um pe- ção, vendo nela o fundamento material do
ríodo histórico pautado na igualdade social, mas que atinge as ideias, as gentes modo capitalista de produção (MARX, Livro
e as coisas, e a natureza de suas relações sociais de produção (IANNI, 2004). Primeiro, Vol I, 1999, p. 488).
437
O capitalismo caracteriza-se pelo desenvolvimento intenso e extensivo
das “forças produtivas”, isto é, capital, tecnologia, força de trabalho,
divisão do trabalho social, planejamento e violência; simultaneamente
ao desenvolvimento das “relações de produção”, compreendendo os
princípios jurídico-políticos da liberdade, igualdade e propriedade, or-
ganizados no contrato e codificados em instituições tais como a empre-
sa, a corporação e o conglomerado, o mercado e o Estado; bem como
em outros institutos codificados em termos jurídico-políticos, entre os
quais estão aqueles relativos ao ensino, saúde, previdência, trabalho,
sindicato, partidos e outros (IANNI, 2004, p. 143).
438
O autor Odália (1985), ao estudar a temática da violência, cria a seguinte 7. O Estado, dessa forma, tem dupla face:
tipologia: 1) violência institucional; 2) violência política; 3) violência revolu- uma para servir e para garantir direitos a
todos os cidadãos, possibilitando a crítica,
cionária; e, 4) violência social. o diálogo e a negociação; uma outra para
Para esse autor, a Violência Institucional é entendida como uma relação dominar e controlar os subalternos que
de força natural, como se na natureza as relações fossem de imposição. Con- não tem a mesma capacidade de se defen-
der que os poderosos. De um lado, o Estado
tudo, a violência não se institucionaliza apenas por esse lado, existem outras
democrático, instância da lei e da justiça;
formas mais dinâmicas, por serem transformáveis passíveis de serem institu- de outro, o Estado burocrático, instância
cionalizadas, como, por exemplo: do controle e do poder policial. Quando o
uso desse poder acumulado em qualquer
órgão do Estado é excessivo, arbitrário,
A institucionalização da miséria, do sofrimento, da dor, da indiferença chama-se a isso “violência institucional”
pelos outros, da ignorância, do não saber sobre si e sobre sua sociedade, (ZALUAR, 1996, p. 45).
não ocorre porque o homem é mau […] mas pelo simples fato de que
8. A violência política do terrorismo é uma
uma sociedade estruturada para permitir que a competição, o suces-
prática que existiu sempre. Durante mui-
so pessoal individualizado, sejam os parâmetros de aferição do que o tos séculos, porém, o assassinato político
homem é não pode, evidentemente, preparar o homem para ver o seu foi como que um instrumento reservado a
pequena minoria – representada por famí-
semelhante outra coisa que não um concorrente ou uma presa a ser
lias que viviam do e para o poder político.
devorada. (ODALIA, 1985, p. 35). […] eram os laços de sangue que definiam
e permitiam pertencer aos pequenos clãs,
Zaluar (1996) acrescenta que esse tipo de violência surge no Estado Mo- que se perpetuavam no poder político. O
assassinato político como forma de criar
derno7, na medida em que este possui “o monopólio da violência legítima”,
dinastias e sucessões perpassa por toda a
passando a arbitrar os conflitos e a exigir o cumprimento de suas decisões antiguidade, pela Idade Média e pela his-
judiciais. Nesse sentido, é o sistema jurídico que estabelece as normas de com- tória moderna. O povo permanecia alheio
a esses crimes, o que se explica pela sua
portamento, “o que é permitido e o que é proibido”. Estas normas compreen-
impossibilidade de participar ativamente
dem o conjunto de leis de um país, em seu desenvolvimento histórico, expli- da vida política. Sem uma consciência clara
citando a institucionalização da violência. As leis consagram os limites de do que ocorria, a tudo assistia indiferente-
violência permitidos a cada sociedade (ODALIA, 1985). mente. Poucas vezes era o povo chamado a
participar de uma vida política reservada a
Já por violência política, não se deve compreender unicamente a ação poucas famílias e, quando o era, funciona-
terrorista8, ou ações de direita ou de esquerda, cujas atividades são divulgadas va mais como uma massa de manobra com
ou camufladas pelo sistema. Esse tipo de violência assume formas variadas: escassa consciência do que ocorria. O as-
sassinato político, dessa maneira, pode ser
pode ser um assassinato político, a invasão de um país por outro, o desapareci-
considerado, nesses tempos, como um pri-
mento de dissidentes, legislação eleitoral que frauda a opinião pública, leis que vilégio de nobres que se entredevoravam,
não permitem às classes sociais, especialmente o operariado, organizarem seus visando a conquista ou a manutenção de
sindicatos. Ela aparece e é sentida por todos, está em todas as nações; nenhum poder (ODALIA, 1991, p. 49-50).
439
9. […] por revolução entendo toda trans- A violência revolucionária é inquestionavelmente, uma violência po-
formação que afeta de maneira essencial lítica; no entanto, ela destaca-se de tal forma que, muitas vezes, a palavra
as estruturas sociais, econômicas, políticas
e culturais, de uma sociedade. A revolu-
“revolucionário9” é usada para justificar movimentos políticos que estão longe
ção deve ser compreendida como um fe- de ser revolucionários. Dessa forma, torna-se essencial distinguir a violência
nômeno global, sua ação e consequências política da violência revolucionária. A explicação, segundo o autor, está no
devem repercutir sobre toda a sociedade
fato de que nenhuma classe social abre mão de seus privilégios, de seu poder,
(ODALIA, 1985, p. 64).
da possibilidade de guiar uma sociedade, apenas obedecendo a um processo
10. “Tomo, como exemplo, a poluição am- histórico de transferência de poderes normal e pacífico (ODALIA, 1985).
biental. É uma violência social e atinge, E, finalmente, a violência social que consiste em certos atos violentos
praticamente, toda população. Todos nós
temos consciência de suas consequências
que atingem, seletiva e preferencialmente, alguns segmentos da população,
terríveis para o homem e para natureza. principalmente os mais desprotegidos, cujos atos são apresentados e justifica-
No entanto, somos obrigados a suportá-la dos como condições necessárias para o futuro da sociedade. Como exemplo,
porque – na lógica do sistema capitalista de
temos a violência social de cunho estrutural10. Esses atos se disseminam por
produção -, impedi-la seria antieconômico
– especialmente, para os países subdesen- todas as partes, eles se oferecem quando abrimos um jornal ou quando assis-
volvidos” (ODALIA, 1991, p. 39). timos à televisão. Eles estão na discriminação racial, nas diferenças entre as
classes sociais, na fragmentação do trabalhador, nos preconceitos políticos, na
separação dos sexos, e assim por diante (ODALIA, 1985).
Perceber um ato como violência demanda do homem um esforço para su-
perar sua aparência de ato rotineiro, natural e como que inscrito na ordem das
coisas. O autor afirma também que o ato violento não traz uma identificação. O
mais óbvio dos atos violentos, a agressão física, pode envolver tantas sutilezas e
tantas mediações que pode ser descaracterizado como violência. Mas quando fa-
lamos de violência, sua face mais imediata é a que exprime pela agressão física,
tanto que atinge diretamente o homem tanto naquilo que possui (ODÁLIA, 1985).
440
Segundo Moraes (1985), em áreas urbanas menores, as pessoas estão
mais próximas umas das outras, valendo-se de um espaço menos ameaçador.
Entretanto, nos grandes centros urbanos, o poder exercido sobre esse espaço é
do capital e, consequentemente, das macro-organizações político-econômicas.
A forma de distribuição dos habitantes nos espaços das grandes cidades man-
tém relação com a divisão social do trabalho. Ao observar o espaço físico das
grandes cidades percebe-se que quem manda são as grandes fábricas e isto
se agrava quando o Estado Capitalista protege o capital, deixando de lado a
qualidade de vida do trabalhador.
441
Essa urbanização acelerada, decorrente da industrialização, altera dras-
ticamente a estrutura, expressando as contradições de seu espaço e assim as
cidades expandem-se adquirindo uma forma urbana até então desconhecida.
442
ção, com particularidades nas cidades dos países periféricos” (SÁ apud SILVA,
2005, p. 33). Trata-se da particularidade do:
443
11. A população estimada de Vitória no ano 2.3 A violência urbana no bairro da penha
2013 é de 348.268 habitantes. Enquanto
a capital Rio de Janeiro é de 6.320,446 no
É certo que a causa da violência urbana não se deve a um único fator, mas sim
mesmo ano (IBGE, 2013).
a um conjunto de fatores. Um exemplo disso é a capital, Vitória, que mostra
12. As desigualdades se revelam quando um elevado índice de homicídios em comparação com outras capitais, como
as pessoas são sistematicamente excluídas
por exemplo, Rio de Janeiro. Apesar de Vitória11 possuir um número expres-
dos serviços, benesses e garantias, tidos
em geral como direitos sociais de cidada- sivamente menor de habitantes e uma malha urbana menos complexa que a
nia, oferecidos ou assegurados pelo Estado, do Rio de Janeiro, dados levantados por pesquisadores mostram Vitória como
ou ainda quando não conseguem exercer uma das capitais mais violentas do país.
direitos civis ou humanos, os chamados di-
reitos formais das constituições nacionais
O Mapa da Violência realizado por Waiselfisz (2012) traz uma tabela das
e demais leis escritas ou das declarações regiões metropolitanas por taxas de homicídios em 100 mil habitantes. Esse
universais do homem. Aparecem igual- documento aponta que o município de Vitória ocupou a 4º posição no ano de
mente quando as pessoas não conseguem
2010, mostrando-se como uma das mais violentas capitais do país, enquanto a
ou não são capazes de exercer sua crítica
a essas leis e, principalmente, ao funciona- capital do Rio de Janeiro ocupou a posição 22º. As cidades de Maceió, Belém,
mento efetivo do sistema de justiça […]. Por João Pessoa e Salvador ocuparam respectivamente as posições de 1º, 2º, 3º, 4º
isso esses direitos não são reais e apontam
e 5º lugares com relação às taxas de homicídios.
para o descompasso entre a letra da lei e as
práticas institucionais, um problema ainda É certo que a má distribuição de renda, riqueza e recursos urbanos de
grave no país (ZALUAR, 2004, p. 151). toda ordem (serviços e equipamentos coletivos) mostram a desigualdade12
existente na sociedade e, nesse contexto, podemos destacá-los como um dos
grandes fatores da violência urbana (LIRA, 2004).
Assim, para darmos ênfase à questão da violência urbana no Bairro da
Penha, objeto deste trabalho, faz-se necessária breve referência do desenvol-
vimento da capital do Estado, Vitória, município que apresenta aproximada-
mente 348.268 habitantes.
444
malha urbana da região estende-se em todas as direções. No entanto, os limites
do município com a baía e o oceano, limitaram seu crescimento horizontal,
pois, caso não houvesse essa delimitação geográfica, ela ligar-se-ia efetiva-
mente com os municípios limítrofes (Vila Velha, Cariacica e Serra) (PMV, 2010).
A organização do Município de Vitória em bairros é regulamentada pela
Lei 6.077/2003, assim como a divisão da cidade em regiões administrativas.
Dessa forma, Vitória está dividida em oito regiões administrativas.
Dentre essas regionais, o Bairro da Penha encontra-se na regional IV
que compreende 12 bairros no total: Joana D’arc, Tabuazeiro, Maruípe, São
Cristóvão, Santa Marta, Andorinhas, Santa Cecília, Santos Dumont, Bonfim,
Da Penha, Itararé e São Benedito.
O Bairro da Penha está situado no Município de Vitória/ES, tendo por
limites os bairros Itararé e Bonfim. A ocupação inicial do bairro da Penha se
deu na década de 1950, orientada pelo Sargento Carioca, considerado uma
liderança para os moradores. Ele demarcava e indicava os lotes a serem ocu-
pados, incentivando os processos de invasão. Os primeiros moradores eram
pessoas das proximidades e migrantes do interior do Estado, norte de Minas
Gerais, norte do Rio de Janeiro e do sul da Bahia (PMV, 2013).
O perfil inicial do bairro era de muita pobreza, as casas construídas eram
de estuque ou de madeira, cobertas por folhas de coqueiro ou palha, aos pou-
cos foram construindo barracos de madeira que foram substituídas no decorrer
de vários anos por casas de alvenaria (PMV, 2013).
O Bairro da Penha apresenta as características físicas e sociais de uma co-
munidade pertencente a uma região de periferia, na qual é possível encontrar
todas as contradições sociais, como: tráfico de drogas, segregação, ausência do
Estado no que tange às políticas públicas, entre outros fatores, exprimindo de
forma clara as principais causas da violência urbana.
445
“A violência e a expectativa dela deixaram muitos traços na paisagem
urbana atual”. […] Os modernos condomínios de São Paulo, Nova York,
Los Angeles e outras cidades, com sua segregação espacial, seus altos
muros ou cercas e guardas de segurança na entrada – para não mencio-
nar os cães e os sistemas de alarme – são outro sinal da expectativa da
violência (OLIVEIRA, 2002, p. 42).
446
criminoso. De acordo com informações da Secretaria de Segurança Pública
do Estado (Sesp), duas gangues rivais trocavam tiros na região. […] Ao che-
gar ao local indicado, policiais foram surpreendidos com o tiroteio. Após
o tiroteio que deixou um policial militar ferido no Bairro da Penha, o poli-
ciamento no bairro foi reforçado. […] mais de 50 homens reforçam a segu-
rança em viaturas e a pé e motos na região (GAZETA ONLINE, 31/07/2013).
447
13. Educação especial para alunos superdo- nesses momentos o transporte público não circula em grande parte do bairro,
tados ou com deficiência. como é mostrado na reportagem abaixo:
Nudec’s 0 0 0
Cajun 01 0 0
Casa Lar 0 0 01
Educação Especial13 0 01 0
Educação Especial14 0 0 01
EJA 0 0 01
EMEF 01 0 03
448
Continuação da tabela 1
CEMEI 0 0 02
EEEM 0 0 01
EEEFM 0 01 0
Unidade de Saúde 01 0 01
Hospital 0 02 01
Telecentros 0 0 01
Linhas de Ônibus 01 01 10
Total de equipamentos 04 04 14
449
3. Conclusão
O estudo sobre a temática da violência urbana não pode ser dissociado da es-
trutura e superestrutura do modo de produção capitalista na qual se sustenta a
sociedade contemporânea. Isto porque se agravaram nesse contexto o processo
de segregação socioespacial e as manifestações da violência urbana, oriun-
das da divisão social do trabalho, impedindo frações da classe trabalhadora o
acesso ao trabalho, quando estas são expropriadas dos objetos e dos meios de
trabalho para sua manutenção.
Nessa perspectiva de análise, compreender a violência urbana que se
manifesta no Bairro da Penha, é entender as relações de produção construídas
historicamente pelos homens, enquanto ser social, para além de classificar sua
condição de bairro periférico, mas entender o que o faz assim ser. Nesse sen-
tido, é necessário também compreender o lugar que os moradores ocupam na
divisão do trabalho e na correlação de forças, nas lutas sociais.
Assim, apresentou-se, aqui, que a violência no Bairro da Penha está as-
sociada ao tráfico de drogas e a coerção que este impõe perante a esta comu-
nidade, o qual busca através da violência exercer o seu domínio na região, o
que altera o cotidiano dos moradores, trazendo prejuízos em relação ao acesso
aos seus direitos, dificultando o acesso aos serviços públicos e do exercício do
seu direito de ir e vir.
O Estado, ao enfrentar essa problemática, atua de forma localizada e
temporária no que diz respeito à violência na região. Atua de forma insu-
ficiente quanto a garantir serviços na área de educação, saúde, habitação,
segurança, lazer, etc. Isso contribui para o aumento da violência e para a se-
gregação social, pois ao mesmo tempo em que está inserida no espaço urbano,
está também isolada/segregada socialmente.
450
Reênciasfer ácasbilogr
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. Ed. São Paulo: Altas, 2007.
JORNAL GAZETA ONLINE. Mulher de chefe do tráfico atrás das grades. Vitória,
30 de mar. De 2012. Disponível em: < http://gazetaonline.globo.com/_conteu-
do/2012/03/noticias/a_gazeta/dia_a_dia/1172189-mulher-de-chefe-do-
-trafico-atras-das-grades.html>. Acesso em: 10 out. 2013.
451
LIRA, Pablo. Índice de Violência Criminalizada (IVC). 2004. Disponível em: www.
forumsegurança.org.br/referencias/geografia-do-crime-geoprocessamento-
-do-ivc-1. Acesso 10 de out de 2013.
MENDONÇA, Júlio César. Cidadão de Vitória: Ser ou não ser protagonista de si, eis
a questão. Monografia (Especialização em Segurança Pública) – UFES. 2007.
MORAES, Regis de. O que é Violência Urbana. 5 Ed. Editora Brasiliense, São Paulo. 1985.
NETTO, P. J. & BRAZ, M. Economia Política: uma introdução crítica. 4. ed. São Paulo:
Cortez, 2008. (Biblioteca básica de serviço social; v.1).
ODALIA, Nilo. O que é Violência. São Paulo: Cultural e Editora Brasiliense S.A, 1985.
452
VALENÇA - Organizador/editor: Márcio Moraes Valença. Cidade (i) Legal: Entrevista
com José Borzacchiello da Silva: O mercado de trabalho e a cidade brasileira. Edi-
tora Maud. 2008.
_________. Da revolta ao crime S/A. 3ª Ed. São Paulo: Moderna, 1996. (Coleção
Polêmica).
453
Marlene Aparecida da Silva,
Penha Beltrame, Vanda Maria Moreira
Graduadas em Pedagogia, com especialização em Educa-
ção Especial e Inclusiva. Atuantes no Ensino Regular pela
rede estadual de ensino e na APAE- São Mateus. Discentes
no Curso de Educação em Direitos Humanos.
Camila Côgo
Especialista em Gestão Pública. Assistente Social, Profes-
sora na UNISAM e Tutora Presencial do Curso EDH.
26
DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA INCLUSÃO
EDUCACIONAL NO CONTEXTO DO ENSINO REGULAR
1. Introdução
455
Para tal, o Gestor deverá desenvolver um trabalho de sensibilização jun-
to aos alunos, professores e comunidade escolar, antes mesmo do aluno espe-
cial ingressar na escola, para que seus direitos sejam garantidos e a inclusão
aconteça de fato.
No decorrer do trabalho ficará mais claro que nem todas as escolas apre-
sentam um especialista em Educação Inclusiva no seu quadro de profissionais,
cabendo ao docente, ao gestor e aos pedagogos essa função, em que buscarão
através de mecanismos próprios a integração do deficiente junto aos demais e
a sua devida participação no processo de ensino-aprendizagem.
456
A evolução da Educação Especial passou por várias etapas. A primeira 1. Na etapa de extermínio, a pessoa com
etapa é a denominada “etapa do extermínio” , ou seja, aquela em que a pessoa
1 necessidades especiais não tinha direito
a vida. Isso aconteceu principalmente nos
excepcional não tinha o direto sequer à vida.
tempos primitivos, quando os nômades
Essa foi uma etapa chamada “etapa filantrópica”, quando o indivíduo deslocavam-se constantemente em busca
com deficiência era tratado como uma eterna criança, ou o eterno doente sem de alimento e o deficiente era visto como
empecilho MARIZ (apud SOUZA,2008, p.07).
cura, com invalidez e incapacidades permanentes e por isso deveria ser tratado
de forma assistida filantrópica. 2. Com a transformação política e econô-
A atual etapa é a “etapa científica”2, quando a pessoa especial é alguém mica da Revolução Burguesa, houve avan-
que deve ser vista como deficiente, parte de uma educação especial, ou seja, ço na medicina e inicia as discussões acerca
das causas e efeitos da deficiência, com
esse aluno visto como uma pessoa limitada, mas potencialmente capaz e in-
base na herança genética, como origem dos
dependente. Nessa visão, os “grandes inimigos” da Educação Especial, é o distúrbios físicos e intelectuais. Assim, no
preconceito, a improvisação, a rotulação, a segregação e o tecnicismo. ano de 1784 iniciou a educação para surdos
e à abertura de um Instituto para crianças
A Etapa Científica da Educação Especial veio à tona devido aos estudos
cegas, e foram feitas melhorias nos méto-
de ordem científica, ideológica e cultural que provocam na sociedade, refle- dos de ensino para a área visual e auditiva.
xões sobre estas pessoas, chamando a atenção sobre sua condição de sujeito Posteriormente, no século XIX, Louis Braille
– ser pensante, social, desejante, mostrando os efeitos perniciosos de sua se- criou o Sistema Braille e surgiu a Educação
Especial na forma de assistência segre-
gregação e dos rótulos que a caracterizaram. gativa nas primeiras instituições assisten-
A partir daí, o acesso dessas pessoas à escola regular começou a tomar cialistas (LIMA, 2012,p. 01).
vulto, como opção cada vez maior de estratégia de atendimento.
457
A integração “temporal” refere-se à disponibilidade de oportunidades
que existe para que a pessoa com deficiência permaneça mais tempo com seus
companheiros sem deficiência e os resultados positivos que se espera obter
através das ações institucionais e sociais.
Quando se abrange a integração “instrucional”, revela-se a instrumenta-
lização do espaço, para que receba esse tipo de indivíduo, dando-lhe condições
de executar suas atividades, de aprender o que lhe for inerente à vida pessoal,
social e profissional.
A integração “social” refere-se ao relacionamento entre essas pessoas e seus
companheiros dentro do grupo social, na escola e na comunidade como o todo.
A integração é um fenômeno complexo e vai muito além de colocar ou manter
alunos com necessidades especiais em classes regulares. É parte do atendimento
que atinge todos os aspectos do processo educacional (MEC, 1994, p. 79).
Para que quaisquer dessas formas de integração ocorram efetivamente, tor-
na-se premente a identificação de forças restritivas à viabilização desse processo.
No âmbito educacional brasileiro, de acordo com os estudos da Secretaria
de Educação Especial (1994, p. 112), destacam-se: (1) preconceitos em relação
ao aluno com deficiência; (2) insuficiência na infraestrutura adequada; (3)
inadequação na capacitação de professor do sistema regular de ensino para
atuarem junto ao alunado com necessidades especiais; (4) insuficiência de ma-
teriais didático-pedagógicos e de equipamentos. Sobre preconceito, Pompeu
(2011, p. 20) destaca que:
458
Tais fatores têm funcionado como obstáculo à concretização, no processo
de integração. Apesar disso, existem, em alguns estados brasileiros, experiên-
cias bem sucedidas que o têm viabilizado, ainda de modo empírico.
Ainda, ao se repensar a filosofia educacional, de modo a valorizar e res-
peitar as diferenças individuais, deve-se lembrar que o princípio de integração
busca não só a inserção do aluno no ambiente o menos restrito, mas também
a sua aceitação pelo grupo onde está inserido.
Esta filosofia não deve ser generalizada e mal compreendida, inserindo-
se indiscriminadamente todos os alunos com deficiência em classe regular.
Neste sentido, a criação de ambientes mais segregativos é, às vezes, necessária.
A consulta às comunidades ou órgãos representativos formados pelos próprios
alunos com deficiência deve sempre ser feita.
Quanto à normalização, refere-se à questão de se proporcionar a esses
alunos condições de vida as mais próximas possíveis de outras pessoas, a fim
de que possam desenvolver ao máximo suas potencialidades.
Pereira (1980, p. 46) assinala que, enquanto a integração é um processo,
a normalização a partir dos direitos humanos é um objetivo. Dentro deste prin-
cípio, a Escola Regular deve possibilitar-lhes meios de acesso, nesse espaço
físico, o que se vê frequentemente é a presença de “barreiras arquitetônicos”
que impedem o aluno com deficiência física, por exemplo, de locomover-se
com facilidade. São, então, necessárias adaptações criativas da Escola, dentro
de uma filosofia de “normalização”, para poder receber esse aluno.
Percebe-se que a individualização valoriza as diferenças individuais, sejam
as diferenças entre os com deficiência, se comparados aos ditos sem deficiência,
sejam as diferenças entre os com deficiência, quando comparados entre si.
Individualizar o ensino significa atender às necessidades de cada um, dar
o que cada um precisa para o seu desenvolvimento pleno.
Estes princípios norteadores visam, em última instância, à preparação
para o exercício da cidadania. O princípio de legitimidade visa à participação
das pessoas com deficiência ou de seus representantes legais, na elaboração e
formulação de políticos, planos e programas (BRITO, 2002,p. 19).
O princípio da efetividade dos modelos de atendimento educacional
embasa a qualidade das ações educativas e envolve três elementos: infraes-
trutura (administrativa, recursos humanos e materiais); hierarquia do poder
459
(interno e externo às instituições envolvidas); e consenso político (ideologias
educacionais) (MEC, 1995, p. 90).
O princípio sociológico da interdependência visa ao pleno desenvolvi-
mento das pessoas com necessidades especiais, através de um trabalho em par-
ceria, envolvendo educação, saúde, ação social e trabalho (BRITO, 2002,p. 18).
O princípio epistemológico da construção do real “refere-se à concilia-
ção entre o que é necessário fazer para atender às aspirações e interesses dos
indivíduos com deficiência e à aplicação dos meios de toda ordem, que então
disponíveis” (MEC, 1995).
E, por fim, o princípio do ajuste econômico com a dimensão refere-se “ao
valor que se deve atribuir à dignidade dos portadores de necessidades espe-
ciais, como seres integrais” (BRITO, 2002,p. 19).
Falar de inclusão é inicialmente fazer um caminho até o direito, haja vista que
há a Lei de Inclusão. Esse processo não é apenas verbal, mas uma realização
legal do que eticamente possa representar a inclusão.
Liberdade e igualdade já não são os ícones da atualidade.
A segurança jurídica – e seus conceitos essenciais, como o direito adqui-
rido – sofre o sobressalto da velocidade, do imediatismo e das interpretações
pragmáticas, embaladas pela ameaça do horror econômico. As fórmulas abstra-
tas da lei e a discrição judicial já não trazem todas as respostas. O paradigma ju-
rídico, que já passara, na modernidade, da lei para o juiz, transfere-se agora para
o caso concreto, para a melhor solução, singular ao problema a ser resolvido.
O discurso acerca do Estado atravessou, ao longo do século XX, três fases
distintas: a pré-modernidade (ou Estado liberal), a modernidade (ou Estado
social) e a pós-modernidade (ou Estado neoliberal). A constatação inevitável,
desconcertante, é que o Brasil chega à pós-modernidade sem ter conseguido
ser liberal nem moderno. Herdeiros de uma tradição autoritária e populista,
elitizada e excludente, seletiva entre amigos e inimigos – e não entre certo e
errado, justo ou injusto –, mansa com os ricos e dura com os pobres, chega-se
ao terceiro milênio atrasados e com pressa.
460
A Constituição acenou com uma democracia participativa e esta só
se fará quando todos os brasileiros tiverem condições de acompanhar e de
influenciar a tomada das decisões políticas em todos os níveis do desempe-
nho estatal.
O Estado contemporâneo – ou o que sobrar dele – será cada dia mais éti-
co se o protagonismo individual vier a ser estimulado, mediante efetiva
cobrança de compostura e zelo de seus agentes (NALINI, 2006, p. 118).
461
específica ou relacionadas a condições, disfunções, limitações ou defi-
ciências, abrangendo dificuldades de comunicação e sinalização dife-
renciadas dos demais alunos bem como altas habilidades/ superdotação
(BRASIL, 2005,p. 29).
462
ção da liberdade não está em contradição com a presença de um conjunto cen-
tral de valores. Pelo contrário, o conjunto garante, justamente, a possibilidade
da liberdade humana, coloca-lhe fronteiras precisas para que todos possam
usufruir dela, para que todos possam preservá-la.
O terceiro ponto refere-se ao caráter abstrato dos valores abordados. Éti-
ca trata de princípios e não de mandamentos. Supõe que o homem deva ser
justo. Porém, como ser justo? Ou como agir de forma a garantir o bem de
todos? Não há resposta predefinida. É preciso, portanto, ter claro que não
existem normas acabadas, regras definitivamente consagradas. A ética é um
eterno pensar, refletir, construir.
De acordo com Mantoan (2003, p. 49), existem várias opções de aten-
dimento educacional para a pessoa com necessidades educacionais especiais,
conforme nos parágrafos anteriores, mas essas opções só existem em docu-
mentos oficiais porque existiam primeiro na prática. Ainda, a mesma autora
afirma que esse é o percurso da Educação Especial no Brasil: acontecer primei-
ro no cotidiano e depois pela mobilização de pais, professores, especialistas e
instituições se transformarem em ações públicas legitimadas pela força da lei.
O processo de inclusão das pessoas com necessidades educacionais es-
peciais em salas do ensino regular precisa, portanto, respeitar a personalidade
de cada um, considerando o estilo próprio de cada criança aprender, seu ritmo
e sua vivência. Vale ressaltar que esse critério não deve valer apenas para o
aluno incluso, mas para qualquer criança da escola.
463
vimento da inclusão, portanto, convoca a todos, não só a escola, para serem
corresponsáveis e solidários no acolhimento e desenvolvimento das pessoas
com necessidades educacionais especiais (MANTOAN, 2003).
Vale destacar que o contexto escolar aponta como um novo rumo à educação
contemporânea, pois ela engloba profissionais que possam trabalhar unidos,
frente à necessidade de uma educação de qualidade, que perceba o aluno en-
quanto cidadão, corroborando para que sua formação seja crítica e reflexiva.
Nesse intento, o professor não está sozinho no trato com os alunos ne-
cessidades especiais, o gestor deve ser seu principal parceiro, subsidiando a
sua formação e o seu atendimento a esse aluno tão especial. Para que ele se
integre ao trabalho docente, é necessário que o reconheça através de reuniões
e planejamentos, fidedignamente.
Se considerar que educar é um ato político e que o professor deve ser capaz
de conceber como um agente de mudanças do contexto social, o seu papel
profissional extrapola o de mero repassador de conhecimentos para se trans-
formar, sobretudo, em formador de cidadãos e um multiplicador da educação
em direitos humanos.
464
Na educação inclusiva, a sua atuação, segundo as diretrizes do MEC
(1994), deve ser comprometida com as condições da escola e com a qualidade
de sua formação acadêmica.
Essa formação torna-se cada vez mais importante porque nos municípios
brasileiros mais carentes, é ele, o professor, a única autoridade, o que exige a
responsabilidade de não só conduzir o processo de ensino-aprendizagem, mas,
também, de intervir como orientador familiar, função para a qual nem sempre
está preparado. Quando isso ocorrer, ele, o professor, deverá receber auxílio de
um profissional especialista: psicólogo, psicopedagogo, pedagogo especializa-
do em Educação Inclusiva.
Constata-se, na realidade educacional, que as escolas, geralmente, e prin-
cipalmente, não possuem em seu quadro de profissionais médicos, assistentes
sociais e psicólogos, que seriam, em primeira instância, os especialistas indi-
cados para acompanhar o desenvolvimento dos alunos com deficiência. En-
tretanto, pedagogos e especialistas em Educação (Administrador, Orientador,
Supervisor e Inspetor) buscam se qualificar na área, fazendo cursos de espe-
cialização também em Educação Especial e Educação Inclusiva. Nesse sentido,
atualmente, são esses profissionais que dão assistência direta a estes alunos,
dentro do que lhes compete conforme a sua formação.
Também se constata que algumas escolas de ensino regular, que possuem
um número elevado de alunos com deficiência, buscam lhes integrar em suas
turmas e fazem a devida assistência em horário inverso, previamente consen-
tido pelas famílias.
Assim, o aluno assiste às aulas em um turno e tem um acompanhamento
auxiliar em outro horário, a ser combinado com os pais.
Além dos alunos, estes profissionais especializados dão assistência aos
respectivos pais, mostrando que estes devem ser motivados aos estudos tam-
bém em casa. Por isto o acompanhamento nas atividades de casa é um grande
aliado ao sucesso do aluno com deficiência.
465
viamente organizadas à partir da necessidade real da criança, tais como:
adaptações motoras, atividades adequadas a modalidade de aprendiza-
gem correspondente, vivências sensório-motoras, construções referentes
ao campo conceitual e orientações à família e a escola (GARBINI, 2007).
5. Considerações finais
Não adianta pensar que incluir é colocar apenas o deficiente na sala de aula e
tentar conviver com esta realidade. É muito mais. É compreender que a edu-
cação inclusiva não pode ser discriminatória, exclusiva. Deve-se entender que
toda criança/adolescente/jovem é um sujeito singular, único, social e histórico
de direitos, principalmente o direito de ter acesso à educação.
466
É preciso que o docente mude a forma de olhar a educação, e com ela
a inclusão, deixar “cair” tantas barreiras. Tornar as dificuldades em possi-
bilidades, mudar as posturas de alguns colegas que ainda não entenderam
que o princípio da inclusão é um desafio, não apenas da escola, como de
toda a sociedade.
Na realidade o educador prestará assistência não somente aos alunos
com deficiência, ele necessitará trabalhar nas turmas em que esses alunos
estão, junto aos demais, a aceitação do outro com suas diferenças, por isto,
a educação inclusiva precisa estar sempre atenta e aberta para a diversida-
de, para o diferente.
Refletir sobre a inclusão significa mudança de atitudes, de paradigmas
e de idealizar um aluno como se todas as pessoas fossem iguais e não fossem
seres históricos e contextualizados.
Cabe pensar que a capacidade de muitos educadores deve ser ampliada
para estar engajados neste processo que deve ser responsável, pois não basta
“jogar” a criança deficiente na escola regular e não oferecer a ela subsídios
que atendam às suas necessidades. É por isto que o processo de inclusão não
acontece do dia para a noite, mas uma coisa é possível idealizar, ela pode já
estar acontecendo e é acontecendo à inclusão que ela pode se corporificar e ir
quebrando as resistências.
467
Reênciasfer ácasbilogr
468
LIMA, Sandra Vaz de. Etapas da Organização da educação especial. Artigonal, Publi-
cado em: 24/07/2012. Disponível em: http://www.artigonal.com/educacao-artigos/
etapas-da-organizacao-da-educacao-especial-6077675.html. Acesso em 03 de
nov. 2013.
MANTOAN, M. T. E. Inclusão Escolar. O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Mo-
derna. 2003.
NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006.
PEREIRA, Olívia da Silva et al. Educação Especial: atuais desafios. Rio de Janeiro: In-
teramericana, 1980.
469
Wilsiane Hammer,
Maria Aparecida Klippel
Discentes do curso de Educação em Direitos Humanos
27
DESENVOLVIMENTO HUMANO NA PERSPERTIVA DA
INCLUSÃO E IGUALDADE
1. Introdução
2. Desenvolvimento
471
1. Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de: Em relação à legislação, destaca-se como marco jurídico-institucional
I — participar da elaboração da proposta fundamental a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB nº 9394/96),
pedagógica do estabelecimento de ensino;
aprovada, em 20 de dezembro de 1996. (JOSÉ; COELHO, 2002).
II — elaborar e cumprir plano de trabalho,
segundo a proposta pedagógica do estabe- O objetivo desse documento foi iniciar um processo de mudanças em to-
lecimento de ensino; dos os níveis da educação, que foram reorganizados em educação básica — que
III — zelar pela aprendizagem dos alunos;
abarca a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio — e ensino
IV — estabelecer estratégias de recuperação
para os alunos de menor rendimento; superior. A LDB dedica um capítulo à formação de professores, assinalando os
V — ministrar os dias letivos e horas-aula es- fundamentos metodológicos, os tipos e as modalidades de ensino, bem como
tabelecidos, além de participar integralmente as instituições responsáveis pelos cursos de formação inicial dos professores.
dos períodos dedicados ao planejamento, à
Também, o artigo 131 a LDB estabelece as incumbências dos professores, inde-
avaliação e ao desenvolvimento profissional;
VI — colaborar com as atividades de articula- pendentemente da etapa escolar em que atuam (RODRIGUES, 2006).
ção da escola com as famílias e a comunidade. O artigo 13 da LDB é reservado exclusivamente aos docentes. Pelo me-
nos, são seis as incumbências dos docentes, isto é, dos profissionais de ensino
que têm cargos ou funções específicas ou especializadas na escola.
O atual e grande desafio posto para os cursos de formação de professores
é o de produzir conhecimentos que possam desencadear novas atitudes que
permitam a compreensão de situações complexas de ensino, para que os pro-
fessores possam desempenhar de maneira responsável e satisfatória seu papel
de ensinar e aprender para a diversidade (DUARTE, 2000).
Para tanto, faz-se necessária a elaboração de políticas públicas educacio-
nais voltadas para práticas mais inclusivas, a formação de professores atentos
às novas exigências educacionais e a definição de um perfil profissional, ou
seja, com habilidades e competências necessárias aos professores de acordo
com a realidade brasileira (FERREIRA, 2006).
Essas parecem ser, hoje, medidas urgentes a serem adotadas para que
ocorra uma mudança no status quo da educação inclusiva.
Assim, cabe ao professor, ter uma personalidade adequada ao tipo de
trabalho que irá desenvolver. Precisa demonstrar grande habilidade diante das
situações imprevistas, contornando os problemas com firmeza, serenidade e
cordialidade. O professor deve ser flexível, ter entusiasmo e revelar espírito
criador; ser sincero e gentil com seus alunos, revelando consideração, respeito
e verdadeiro interesse por todos (ARANHA, 2002).
O que realmente é necessário e obrigatório para a escola é oferecer serviços
complementares, adotar práticas criativas na sala de aula, adaptar o projeto pe-
472
dagógico, rever posturas e construir uma nova filosofia educativa. Essa mudança
não é simples. Na verdade ainda é difícil encontrar professores que afirmem estar
preparados para receber em classe um estudante com necessidades especiais.
Resumindo, pode-se dizer que o professor deve valorizar a diversidade
como aspecto importante no processo de ensino-aprendizagem. Além disso,
ele deve ser capaz de construir estratégias de ensino, bem como adaptar ativi-
dades e conteúdos, não só em relação aos alunos considerados especiais, mas
para a prática educativa como um todo, diminuindo, assim, a segregação, a
evasão e o fracasso escolar (CARNEIRO (1999).
A tarefa do professor é muito complexa. Vai trabalhar com crianças que
apresentam problemas sérios; vai ajudar crianças que precisam se adaptar; vai
fornecer-lhes os elementos de adaptação ao mundo (ARANHA, 2002).
A fim de realizar um trabalho eficiente, o professor de crianças com
necessidades especiais, além de experiência em classes comuns, precisa ter
vivências sociais, pois não pode atuar sozinho. Deve fazer parte de uma equipe
na qual todos os membros trabalhem em uníssono, desempenhando sua im-
portante missão de educar a criança especial.
Esse professor deve também possuir uma boa formação técnica no cam-
po a que se propõe assistir, pois traduzirá, em métodos e processos de ensino,
todas as indicações dos médicos e técnicos que atendem à criança.
De acordo com Ferreira (2006), algumas atitudes básicas do professor são:
473
Para Gordon (1999), é fundamental a integração da criança à comunida-
de, englobando todas as atividades sociais (festas cívicas e religiosas, excur-
sões, jogos, teatro, biblioteca), nas quais ela aprende a:
• alimentar-se sozinho;
• repousar;
• vestir-se;
• usar adequadamente o banheiro;
• cuidar da limpeza do corpo e do vestuário;
• reconhecer o valor de uma alimentação apropriada.
• respeitar as regras de segurança em casa (prevenir-se contra objetos
cortantes, o fogo, a eletricidade) e na rua (andar pela calçada, obe-
decer às faixas e sinais de trânsito);
474
3. Conversando sobre o desenvolvimento humano na
perspertiva da inclusão e igualdade
O nascimento de uma criança especial, seja qual for o tipo de deficiência, traz
à tona uma série de complicações advindas de sentimentos de culpa, rejeição,
negação ou desespero, modificando as relações sociais da família e sua pró-
pria estrutura. Isso faz com que os seus membros venham a procurar ajuda
profissional no sentido de buscar informações, desabafar, propiciar um melhor
desenvolvimento da criança e recuperar a organização interna.
Cabe, aqui, relacionar as dificuldades iniciais sobre o isolamento social
que acontece desde o nascimento da criança. Conforme Blascovi-Assis (1997),
citado por José (2002), esse isolamento pode começar a diminuir quando os
pais entram em contato com outros pais que passam pela mesma problemática,
isto é, têm um filho deficiente. A solidão e o isolamento social que atingem os
pais por ocasião do nascimento acabam por atingir posteriormente a própria
criança e o adolescente ou adulto especial, na medida em que ele depende da
família ou da escola para alimentar seu relacionamento social.
Não é de intenção atribuir às famílias os problemas de integração e par-
ticipação social desses indivíduos. A idéia é levantar subsídios da importância
do papel da família no âmbito educacional, favorecendo a conscientização e a
ação da mesma (SAMARA, 1998).
É fundamental que o professor aborde com os familiares temas como a
vida social, as amizades, a participação passiva ou ativa em atividades culturais
(como teatro, cinema, esportes) e as férias escolares. Blascovi-Assis (1997), ci-
tado por José (2002), chama a atenção para a não percepção dos pais para a im-
portância de determinadas atividades sobre o desenvolvimento de seus filhos.
O objetivo maior da escola com a família deve ser atender às suas ne-
cessidades, transmitindo informações, abrindo espaço para que haja troca de
experiências entre mães e pais e discutindo abertamente temas como infân-
cia, adolescência, escolaridade, trabalho, lazer, integração social, sexualidade.
Quando esclarecida, a família pode contribuir de forma muito mais efetiva
para a independência de seu filho, o que sem dúvida, seria importante para a
conquista de sua própria independência.
475
Na educação inclusiva não se espera que o aluno com deficiência se
adapte à escola, mas que a escola como um todo se transforme de forma a
possibilitar a inserção desse aluno em seu ambiente. A escola é também um
lugar do cuidado, da atenção, do tomar conta. E esse tomar conta exige um
compromisso individual do professor com cada aprendiz, um compromisso
que garanta o diálogo com todos os diferentes. Uma pedagogia das diferenças
é uma pedagogia construtiva que busca a interação, a variedade, a riqueza da
diversidade que faz parte da natureza humana.
Sabe-se que as famílias, muitas vezes, se surpreendem com a indepen-
dência do filho em determinadas situações. A família atribui à escola parte da
responsabilidade pela programação social do filho deficiente.
Fica evidente que há necessidade de orientação, informação e esclareci-
mentos sobre os temas desenvolvimento e socialização, para, desta forma, cla-
rificar e definir os papéis da família e da escola como partes ativas no processo
da integração social do deficiente. É a partir de um trabalho conjunto que a
criança, adolescente ou adulto com DM poderá atingir uma maior autonomia
e satisfação pessoal.
4. Adaptações curriculares
476
• Como e quando aprender;
• O que o aluno deve aprender;
• Que formas de organização do ensino são mais eficientes para o
processo de aprendizagem;
• Como e quando avaliar o aluno.
477
5. Conclusão
478
Reênciasfer ácasbilogr
ARANHA, Maria Salete Fábio. A inclusão social da criança com deficiência. Criança
Especial. São Paulo, Editora Roca 2002.
RODRIGUES, David A. Dez Idéias (Mal) Feitas sobre a Educação Inclusiva. In: David
A Rodrigues (Org.). Inclusão e Educação: Doze Olhares sobre a Educação Inclusiva.
São Paulo: Summus Editorial, 2006. p.299-318.
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998.
479
Carla da Costa Rodrigues,
Jéssica Moreira Cândido Guerra,
Wagner da Cunha Oliveira
Discentes do curso de Educação em Direitos Humanos.
28
A INCLUSÃO DO CADEIRANTE ATRAVÉS DA
ACESSIBILIDADE
1. Introdução
481
Sabe-se que existe penalidade para qualquer cidadão que negar ou ne-
gligenciar os direitos à educação. Qualquer escola, pública ou particular, que
negar matrícula a um aluno com deficiência, comete crime punível com reclu-
são de 1 (um) a 4 (quatro) anos” (art. 8º da Lei 7.853/89).
Por tudo isso, escolhemos acompanhar o dia-a-dia de um cadeirante, que
estuda na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio “Job Pimentel”,
no primeiro ano do ensino médio, turno matutino, trabalho por meio do qual
iremos demonstrar que direitos básicos foram negados.
Vemos nos dias atuais, muitos debates sobre a inclusão dos deficientes, acessi-
bilidade em locais públicos e cotas em concursos públicos, mas essas conquis-
tas, tão debatidas hoje por estudiosos e especialistas, foi, por séculos, negadas
às pessoas como direitos de igualdade de acesso e inclusão na sociedade. Os
deficientes físicos na história da humanidade sempre foram vítimas de se-
gregação, pois o julgamento de sua incapacidade física era vista como uma
anomalia a ser exterminada. Desde a Roma Antiga até o século XV, as crianças
com anomalias eram jogadas nos esgotos. Na idade média, essas pessoas en-
contravam abrigos nas igrejas, mas sempre foram isoladas do convívio social.
Do século XVI até o século XIX, as pessoas com deficiência física recebiam
abrigos em asilos e albergues, porém não recebiam tratamento médico Ade-
quado, o que tornavam esses espaços verdadeiras prisões.
Por muitos anos, os deficientes físicos sofreram todo tipo de preconcei-
to, devido à limitação do corpo. Esse cenário de segregação e sofrimento dos
deficientes só mudaria a partir do século XX, mais precisamente no ano de
1948, com a assinatura de um documento na Assembleia Geral das Nações
Unidas conhecido como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse
documento, feito logo após o momento pós-guerra, que deixou muitas conse-
quências ruins em todo o mundo — em que, na segunda guerra, uma raça se
declarava superior a outra — propunha-se uma nova visão de comportamento
ético entre as nações, entre os seres humanos, sem distinção de raça, cor ou
religião. O objetivo desse documento seria tratar as diferenças com igualdade,
482
respeitando a individualidade de cada pessoa. Citemos o primeiro artigo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Nesse artigo, vemos claramente que todos têm iguais direitos, sem dis-
criminação de cor, raça ou condição social. A partir de momentos com esses,
as famílias dos deficientes, inclusive, começaram a despertar em si sobre esses
direitos que os deficientes físicos sempre tiveram, assim como todas as pessoas
sem problema físico, mas que nunca foram respeitadas.
No Brasil, as pessoas com deficiência tiveram um início de reconheci-
mento de suas necessidades primeiramente com a criação da Associação de
Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), que foi instituída primeiramente na
cidade do Rio de Janeiro em 1954, e que atende há milhares de pessoas espe-
ciais em muitas partes do território brasileiro.
Em 1978, os deficientes tiveram uma grande conquista, a criação da
1ª emenda na Constituição Federal, no tocante aos direitos das pessoas com
deficiência: “É assegurada aos deficientes a melhoria da condição social e eco-
nômica especialmente mediante educação especial e gratuita”.
Mais tardiamente, no ano de 1982, ocorreu a aprovação do Programa
de Ação Mundial para Pessoas com Deficiência, cuja finalidade segundo o
contexto da ação, seria promover medidas eficazes para a prevenção da defici-
ência e para a reabilitação e a realização dos objetivos de “igualdade” e “par-
ticipação plena” das pessoas deficientes na vida social e no desenvolvimento.
Essas ações, no cenário mundial, refletiram de modo efetivo no Brasil, re-
sultando em diversas medidas, pelo menos no tocante a legislação do país, dando
igualdade de direitos aos portadores de deficiência. A respeito, podemos citar o
artigo 23 da Constituição Federal de 1988 que diz em seu capítulo segundo que:
483
Assegura-se, assim, o direito das pessoas portadoras de deficiência na
área da saúde, bem como os benefícios do Estado e o direito à acessibilidade.
Um ano após essa inserção, foi editada a Lei n.° 7.853, que criava a
Coordenadoria Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência no âmbito do Mi-
nistério da Justiça. Tal coordenadoria estabelecia os princípios e as diretrizes
da Política Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência que trata de várias
áreas: saúde, educação, formação profissional, trabalho (estabelecia cotas sem
especificar percentual) e recursos humanos.
A Lei de número 10.048 da Constituição Federal, criada no ano de 2000,
trouxe mais uma vitória aos portadores de deficiência e também às pessoas
que necessitam de prioridades como idosos, gestantes e lactantes. Nela vemos
dispostas normas e critérios para a promoção da acessibilidade dessas pessoas
a locais públicos e empresas concessionárias.
3.1 Acessibilidade
484
Outro importante decreto institucionalizado na lei de número 10.098,
de 19 de dezembro de 2000, em seu artigo 8º considera condições gerais
para a acessibilidade:
I — acessibilidade: condição para utilização, com segurança e autono-
mia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das
edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios
de comunicação e informação, por pessoa portadora de deficiência ou com
mobilidade reduzida.
Duarte e Cohen (2004) acreditam que a acessibilidade deve ser universal
e não somente para os deficientes. Destacam que não somente os deficientes,
mas também os idosos, mães com seus bebês em carrinhos, pessoas que tem-
porariamente estão impedidas de se locomoverem e que recorrem ao uso de
muletas sofrem com a falta de acessibilidade na arquitetura urbanística.
Santos (2004) destaca que a acessibilidade é um dos principais fatores que
rege a inter-relação entre a sociedade e os indivíduos portadores de deficiências,
influenciando em vários aspectos diretamente ligados a direitos dos cidadãos.
Somente com a conscientização, tanto do poder público com do privado,
e das pessoas em geral, em reconhecerem as dificuldades por parte do portador
de deficiência, pode-se conceber espaços de convívio social preparados para
recebê-los da maneira como se deveria.
3.2 Inclusão
485
A educação nos dias atuais está se tornando cada vez mais inclusiva.
Mesmo com tantas dificuldades de preconceito, falta de infraestrutura e aces-
sibilidade, os educadores têm se preocupado em participar de capacitações que
os trabalhem da melhor maneira para incluir ao aluno em sala de aula, mesmo
que para isso necessite de um apoio de um cuidador, um auxiliar de sala que
o ajude com o aluno.
O processo de inclusão deve começar dentro de cada um de nós, acolhen-
do a essas pessoas que enfrentam tantos obstáculos em seu cotidiano e que
necessitam tanto de uma inclusão de modo material, de apoio às suas necessi-
dades, como de uma inclusão afetiva.
3.3 Deficiência
486
3.5 Causas
4. Metodologia
487
atendimento de alunos cadeirantes. Planejamos e optamos pelo projeto de um
banheiro adaptado, até porque já possuímos rampa e, pra construir uma maior,
ficaria muito caro. O projeto foi elaborado em 2010 e aprovado em 2013 pelo
MEC. Nossos alunos cadeirantes passam pela mesma metodologia dos outros
alunos, porém suas avaliações são elaboradas de acordo com a capacidade
de cada aluno. Em relação a inclusão, acredito que seja excelente, porém só
acontecerá de uma maneira concreta quando as escolas tiverem recursos su-
ficientes para adaptações imediatas do ambiente físico para atender alunos e
professores em acesso à formação continuada, de acordo com as necessidades
especiais de cada aluno e professor.”
Além das declarações da pedagoga, também conversamos com a cui-
dadora Eliana da Crua Silva Cabral. A mesma acompanha e auxilia o aluno
Vinícius de Freitas Pereira fazendo com ele as atividades que o mesmo não
consegue fazer sozinho. Ajuda na locomoção, estimula atividades de lazer e
ocupacionais dentre muitas outras tarefas. A cuidadora nos relata: “Está sendo
pra mim uma experiência impar. É gratificante e, ao mesmo tempo, difícil ser
uma cuidadora, até porque o aluno Vinícius é muitas vezes inseguro, inquieto,
mas ao mesmo tempo carente e sinto que de alguma ou de várias maneiras
tenho sido alguém que o ajuda. Sinto que ele gosta de minha presença. Ele me
liga e manda mensagens até nos finais de semana ou horários nos quais não
estou na escola. Sinto que ele sente-se seguro ao meu lado, e que suas dificul-
dades ele procura sempre superar.”
Diante das dificuldades de acessibilidades de alunos cadeirantes, foi ela-
borado um questionário fechado, no intuito de colher informações sobre a re-
alidade dos cadeirantes em que procuramos conhecer melhor o aluno Vinícius
de Freitas Pereira, para saber quais são suas maiores dificuldades em locomo-
ção pela cidade e na escola, o que é preciso melhorar, como está o atendimento
prioritário, e se estão cumprindo as leis necessárias para uma boa qualidade de
vida. A opção por questionários estruturados deu-se em parte pela facilidade
de coletar dados e também pela liberdade do respondente em acrescentar ob-
servações pessoais às respostas, enriquecendo o trabalho.
Primeiramente, procurou-se identificar as necessidades dos usuários de
cadeiras de rodas de maneira a entender o universo que o cerca e conhecer
suas dificuldades, suas escolhas e necessidades. Nesta primeira parte foi ex-
488
tremamente enriquecedora, pois, a partir destas informações pode-se conhecer
de maneira profunda o que eles pensam e como se comportam. O cadeirante
Vinícius relatou toda sua dificuldade para locomoção de sua casa à escola:
“Às vezes o que mais me incomoda é a falta de respeito das pessoas. Até moro
próximo a uma faixa de pedestre e a distância para a escola nem é tão grande,
porém, muitas vezes, tenho que esperar vários minutos para atravessar a faixa
e chegar à escola. As pessoas não cadeirantes deveriam ter mais consciência
com a gente”. Assim, durante o questionário foi possível observar as dificul-
dades pelas quais os usuários de cadeira de rodas passam em seu dia-a-dia.
Vinícius nos relata ainda: “Infelizmente não temos muitas rampas. As lomba-
das são muito altas, tornando isso muito difícil para mim que tenho muitas
dores no braço, sem falar nos motoristas que não nos respeitam muitas vezes
na faixa de pedestres. Acredito que os governantes precisam ter bom senso e
cumprir a lei que diz: todos têm o direito de ir e vir”. Mas infelizmente isso
ainda não acontece no nosso país. É dever do poder público tomar alguma
providência para melhorar a vida dessas pessoas.
4.1 Resultados
Causa da lesão
Essa primeira pergunta foi de grande valia, pois o resultado foi impressionante
quanto à questão da imprudência no trânsito. Todos os deficientes físicos que
participaram do questionário tiveram suas vidas interrompidas por causa de
acidente automobilístico. Acidentes de trânsito causam 40% dos casos de pa-
ralisia. As causas externas têm sido fatores expressivos no número de lesões
medulares, traumatismos crânio-encefálico e amputações. A população jovem,
nesses casos, é a mais afetada.
489
Como está a acessibilidade onde você estuda?
A questão teve como objetivo saber qual era a relação do aluno com a escola.
Felizmente o aluno respondeu que sua escola vem desenvolvendo melhorias, e
que está feliz com as mudanças. Sua acessibilidade vem em ordem crescente:
“Os últimos anos não eram assim, minha mãe muitas vezes tinha que estar
junto comigo para que eu pudesse desenvolver minhas atividades”.
490
Atendimento prioritário está sendo respeitado em relação ao deficiente físico?
Segundo o Art. 9°, as instituições referidas no art. 1° devem estabelecer em
suas dependências alternativas técnicas, físicas ou especiais que garantam
atendimento prioritário para pessoas portadoras de deficiência física ou com
mobilidade reduzida, temporária ou definitiva, idosos, com idade igual ou
superior a sessenta e cinco anos, gestantes, lactantes e pessoas acompanhadas
por criança de colo mediante guichê de caixa para atendimento exclusivo.
Vinícius respondeu que: “Em muitos lugares, as pessoas fingem que não
estão me vendo para não ceder seus lugares. Aqui na porta da minha casa,
por exemplo, mesmo com uma placa em que diz respeitar os cadeirantes, ou
seja, a proibição de estacionamento de carros, eles estacionam, e, muitas ve-
zes, minha mãe ou avó têm que sair procurando o dono do veículo para tirar
da frente e a gente entrar”. Além da dificuldade que muitos sentem com suas
limitações, somam-se os problemas para conseguir viver com dignidade em
locais sem condições.
Acha que o Brasil possui todas as leis necessárias à boa qualidade de vida
do deficiente físico?
“Não, é preciso melhorar muito ainda, infelizmente todos percebemos que isso
existe somente no papel porque na vida real é bem diferente.”
491
No questionário foi possível observar as dificuldades pelas quais o alu-
no Vinícius, usuário de cadeira de rodas, enfrenta por falta de infraestrutura
adequada na sua cidade. Nas escolas foram percebidas a luta pela melhoria
de sua infraestrutura.
5. Conclusão
492
Reênciasfer ácasbilogr
RIBAS, João Baptista Cintra, O que são pessoas deficientes. São Paulo: Brasiliense, 2003.
COHEN, Regina. Estratégias para a Promoção dos Direitos das Pessoas Portadoras
de Deficiência. http:www.direito013.pdf. Acesso em 30.10.2013.
DUARTE, Cristiane Rose; COHEN, Regina. Guia turístico de acessibilidade: uma pro-
posta metodológica, 2004. Disponível em: http://www.congressocidades.com.br/
images/Artigo3.doc Acesso em 30.10.2013.
GUGEL, Maria Aparecida, Waldir Macieira da Costa Filho, Lauro Luiz Gomes
493
Ribeiro, (org.). Deficiência no Brasil: uma abordagem integral dos direitos das pessoas
com deficiência - Florianópolis : Obra Jurídica, 2007.
RESENDE, Ana Paula Crosara e SILVA, Idari Alves da. Manual de Acessibilidade: como
fazer certo e fácil. Uberlândia: Editora Grafy; Brasília: CORDE, 1999.
494
Lívia Matielo, Verônica Timoteo,
Bárbara Ferreira
Discentes do curso de Educação em Direitos Humanos.
29
DIREITOS HUMANOS E A PESSOA COM DEFICIENCIA:
PANORAMA NACIONAL DAEDUCAÇÃO
INCLUSIVA NO BRASIL
Lívia Matielo
Verônica Timoteo
Bárbara Ferreira
1. Introdução
O tema em questão tem como objetivo principal abordar a temática dos di-
reitos da pessoa com deficiência no contexto histórico, bem como a educação
inclusiva, pois entende-se que a educação é um direito fundamental que tem
sido tematizado ao longo da historia da humanidade, por documentos, movi-
mentos, campanhas de afirmação e legitimação de direitos do homem. È nesse
contexto histórico que se resgata a educação como um lugar de exercício da
cidadania e da garantia de direitos, através do que é preconizado pela De-
claração Universal dos Direitos Humanos, uma sociedade mais justa em que
valores fundamentais são resgatados como igualdade de direitos e o combate
a qualquer forma de discriminação.
Nessa concepção de direitos humanos, a ONU em 1975 estabelece a
Declaração Universal dos Direitos da Pessoa com Deficiência, assim a Decla-
ração se tornou ponto de partida para a defesa da cidadania e do bem-estar
dessas pessoas. A mesma assegura direito essencial à própria dignidade hu-
mana. As pessoas com deficiência, independente da origem, natureza e gravi-
dade de suas incapacidades, têm os mesmos direitos que os outros cidadãos,
o que implica no direito de uma vida decente, tão normal quanto possível.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela
ONU em 2006, da qual o Brasil é signatário, estabelece que os Estados - Par-
tes devem assegurar um sistema de educação inclusiva em todos os níveis de
ensino, em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social
compatível com a meta da plena participação e inclusão, adotando medidas
para garantir que:
496
a. As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema edu- 1. ONU. Convenção das Nações Unidas para
cacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com Pessoas com Deficiência.
497
3. GUGUEL, Maria Aparecida. História da pessoa com deficiência recebia um tratamento desumano, cruel e degradan-
pessoa com deficiência o Direito ao Traba- te, sendo consideradas pessoas inferiores em relação às outras. No período
lho. Florianópolis: Obra Jurídica, 2007.
Pré-historico não se tem indícios de como os grupos se comportavam em
4. IDEM. relação às pessoas com deficiência. Nesse período, os homens não plantavam
para o seu sustento e não havia comida em abundância. Seria praticamente
5. BORNIN, Daniela Queila dos Santos. A
impossível às pessoas com deficiência sobreviverem a um ambiente desfa-
dignidade da pessoa humana e igualdade:
breve estudo sobre a declaração universal vorável a elas.
dos direitos humanos e a pessoa com defi- Os povos hebreus consideravam indignos aqueles que eram cegos, cor-
ciência. 2009. cundas e coxos. Para eles, segundo suas crenças, essas pessoas eram consi-
deradas demoníacas. Assim, suas impurezas expressariam sinais corporais
que cristalizavam a evidência de maus espíritos3. No Egito antigo, as pes-
soas com deficiência integravam as diferentes classes sociais como faraós,
nobres, artesãos e escravos. Platão e Aristóteles, em suas obras, respecti-
vamente nas obras intituladas “Republica” e a “Política”, discorrem que as
pessoas nascidas “disformes” eram eliminadas, tanto por abandono quanto
jogado em apriscos.
A República, livro IV, 460c — Pegarão então os filhos dos homens su-
periores e levá-los-ão para o aprisco para junto de amas que moram a
parte, num bairro da cidade: os dos homens inferiores, e qualquer dos
outros que sejam disformes, escondê-los-ão em lugares interdito e ocul-
tos como convém4.
498
As Leis romanas não eram favoráveis a pessoas com deficiência. De 6. FREITAS, Soraia Napoleão. O direito à edu-
acordo com a Lei das XII Tabuas, autorizava-se aos patriarcas matar seus cação para a pessoa com deficiência: con-
siderações acerca das políticas públicas. In:
filhos com deformidades físicas, por afogamento. Com o surgimento do Cris- BAPTISTA, C; JESUS, D. (Org.). Avanços em
tianismo, passou-se a um período marcado pela visão assistencialista e ca- Políticas de Inclusão: O contexto da edu-
ritativa, surgindo, então, os primeiros hospitais que abrigavam indigentes e cação especial no Brasil e em outros países.
Porto Alegre: Mediação/CDV/ FACITEC, 2009.
pessoas com deficiência.
No contexto histórico da pessoa com deficiência, tanto na idade média
quanto moderna, era evidente a exclusão, eliminação e a separação dessas pes-
soas da família e a ridicularização das mesmas em eventos públicos. Somente
após a revolução francesa, com a defesa humanista, a sociedade começou a
perceber que as pessoas com deficiência precisavam de atenção especializada.
Com a evolução da medicina, houve a busca por medicamentos que
curassem os indivíduos. Nessa busca de cura acontece o surgimento de orga-
nizações que estudam os problemas de cada deficiência, com ênfase em torno
da reabilitação5.
De acordo com Freitas (2009, p. 224):
499
7. LANNA, Mário Cléber Júnior. As primeiras Em 1932, são criadas as sociedades Pestallozzi e, em 1954, as Associações de
ações e organizações voltadas para as pes- Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), ambas criadas pela sociedade civil,
soas com deficiência. 2011
com ações voltadas para a assistência na área da saúde e da educação. Com o
8. Declaração Universal dos Direitos Humanos. surto de poliomielite no país, são criados os primeiros centros de reabilitação
como a ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação), fundada em
1954, e também a AACD Associação de Assistência a Criança Defeituosa (hoje
Associação de Assistência a Criança Deficiente) de São Paulo.
500
A Constituição Federal Brasileira de 1988, a nossa Lei maior, em seu arti- 9. MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O Direito
go 6°, dispõe sobre os direitos sociais, dentre os quais está o ensino universal. à Educação. p 45.
Também está explícito nos artigos 205 a 214 que compete a União, legislar, de 10. BRASIL. Estatuto da Criança e do Ado-
forma privativa, sobre as diretrizes e bases da educação nacional. Desse modo, lescente E Legislação Congênere. 2011
a efetivação da educação enquanto um direito fundamental ao desenvolvi-
11. IDEM.
mento pleno do ser humano, como um instrumento de transformação social, é
compreendida como um direito à própria dignidade do homem. Nesse sentido,
Regina Muniz discorre que:
501
A política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência,
prevista no Decreto 3298/99, adota os seguintes princípios:
502
degradantes, prevenção contra a exploração, à violência e o abuso, entre outros.
Em relação à educação de pessoas com deficiência, a citada Convenção dispõe
que, para a realização desse direito, os Estados signatários deverão assegurar que:
4. Educação Inclusiva
503
12. Diretrizes Nacionais de Educação Espe- escola comum que ofereça uma educação diferenciada a todos, em função de
cial na Educação Básica (2001, p.35). suas necessidades e num marco único e coerente de planos de estudos.
A Política Nacional de Educação Especial no Brasil prevê alternativas
13. (MEC/SEESP, 2001)
que priorizam o atendimento educacional às pessoas com necessidades edu-
14. BRUNO E MOTA (2001) BRUNO & cacionais especiais.
MOTA. Programa de capacitação e recursos
As Diretrizes Nacionais de Educação Especial na Educação Básica afirma
humanos do Ensino Fundamental: defici-
ência visual. Vol. 2. Brasília: Ministério da que “os serviços de educação especial podem ser oferecidos em classes espe-
Educação, Secretaria de Educação Especial, ciais, escolas especiais, classes hospitalares e em ambientes domiciliar”12. As
2001. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, Resolução
CNE/CEB nº 2/2001, no artigo 2º, determinam que:
504
Contudo, para o processo de inclusão de pessoas com necessidades edu-
cacionais especiais acontecer, precisam ser tomadas algumas medidas como:
preparação da comunidade escolar, Oferta de cursos de capacitação e aperfei-
çoamento em educação especial para professores de classe comum.
O Plano Nacional de Educação – PNE, Lei nº 10.172/2001, destaca que “o
grande avanço que a década da educação deveria produzir seria a construção
de uma escola inclusiva que garantisse o atendimento à diversidade humana”.
Ao se estabelecer objetivos e metas para que os sistemas de ensino favo-
reçam o atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos, apon-
ta-se um déficit referente à oferta de matrículas para alunos com deficiência
nas classes comuns do ensino regular, à formação docente, à acessibilidade
física e ao atendimento educacional especializado.
505
• Participação da família e da comunidade;
• Acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários e equipa-
mentos, nos transportes, na comunicação e informação;
• Articulação intersetorial na implementação das políticas públicas.
506
Os sistemas educacionais seguem oferecendo respostas homogêneas, que 16. Fogaça, Jennifer. Educação Inclusiva.
não satisfazem às diferentes necessidades e situações do alunado, o que (SILVA e RETONDO, 2008, p. 2).
Uma escola inclusiva tem suas vantagens, pois ela respeita, é igualitária,
é promovida por valores para a sociedade com resultados visíveis de paz social
e cooperação. Contudo, o discurso da educação inclusiva se contradiz à reali-
dade educacional, pois as escolas têm sido caracterizadas por salas superlota-
das, instalações físicas insuficientes e docentes com pouco preparo para aten-
dimento especializado. Silva e Retondo (2008) cita Bueno (1999), dizendo que:
507
17. (MONTE E SANTOS: 2004, apud Munhóz os mesmos possam se movimentar nas salas de aula. Assim também, sanitá-
p 57). Educação infantil no sistema educa- rios, pátios, bibliotecas e outros devem ser acessíveis.
cional inclusivo.
A escola necessária deve estar pautada na formação de sujeitos de direi-
18. IDEM. tos críticos e atuantes, que lutam em prol de seus direitos e ideais e da busca de
uma formação adequada. Uma escola onde o aluno possa refletir sobre o res-
peito ao próximo, e também que leve à emancipação o individuo, tornando-o
capaz de questionar os padrões sociais e políticos do nosso país.
As escolas inclusivas representam um marco favorável para garantir a igual-
dade de oportunidades e a completa participação. Elas contribuem para uma edu-
cação personalizada, fomentam a solidariedade entre todos os alunos e melhora
a relação custo-benefício de todo o sistema educacional. A educação inclusiva
implica uma visão diferente da educação comum, compreendendo uma diversifi-
cação de ofertas que assegurem que todos os alunos obtenham as competências
básicas estabelecidas no currículo escolar. As escolas inclusivas devem promover
o favorecimento de atividades de valorização do respeito às diferenças, de uma
cultura de paz e de uma sociedade mais justa e solidária, garantindo a todos o
direito à educação e à igualdade de oportunidades e o direito à participação.17
508
5. Considerações Finais
509
Reênciasfer ácasbilogr
BRUNO E MOTA (2001) BRUNO & MOTA. Programa de capacitação e recursos hu-
manos do Ensino Fundamental: deficiência visual. Vol. 2. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Especial, 2001.
510
FREITAS, Soraia Napoleão. O direito à educação para a pessoa com deficiência: consi-
derações acerca das políticas públicas. In: BAPTISTA, C; JESUS, D. (Org.). Avanços em
Políticas de Inclusão: O contexto da educação especial no Brasil e em outros países.
Porto Alegre: Mediação/CDV/ FACITEC, 2009
LANNA, Mário Cléber Martins Júnior. As primeiras ações e organizações voltadas para
as pessoas com deficiência.2011.
MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O Direito à Educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
Cartilha do Censo 2010 – Pessoas com Deficiência / Luiza Maria Borges Oliveira /
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) / Secretaria
Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD) / Coorde-
nação-Geral do Sistema de Informações sobre a Pessoa com Deficiência; Brasília:
SDH-PR/SNPD, 2012.
511
www.neaad.ufes.br
(27) 4009 2208