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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999 ISBN 85-86087-51-3

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
FILOLOGIA E LÍNGUA PORTUGUESA

I SEMINÁRIO DE FILOLOGIA E
LÍNGUA PORTUGUESA

Ângela Cecília de Souza Rodrigues


Ieda Maria Alves
Norma Seltzer Goldstein

(Orgs.)

PUBLICAÇÕES
FFLCH/USP

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
FILOLOGIA E LÍNGUA PORTUGUESA

I SEMINÁRIO DE FILOLOGIA E
LÍNGUA PORTUGUESA

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch


Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert


Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

Chefe: Profa. Dra. Maria Helena Nery Garcez


Suplente: Prof. Dr. Benjamin Abdala Junior

CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITAS

Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)


Membros: Profa. Dra. Lourdes Sola (Ciências Sociais)
Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)
Profa. Dra. Sueli Angelo Furlan (Geografia)
Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)
Profa. Dra. Beth Brait (Letras)

Endereço para correspondência

COMISSÃO EDITORIAL COMPRAS

ÁREA DE FILOLOGIA E LÍNGUA PORTUGUESA HUMANITAS LIVRARIA – FFLCH/USP


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PUBLICAÇÕES
FFLCH/USP

Humanitas Publicações – FFLCH/USP – junho/1999


FFLCH

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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...

Copyright 1999 da Humanitas FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral,


sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP


Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

S 474 Seminário de Filologia e Língua Portuguesa (1:1997: São


Paulo)
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa/organizado
por Ângela Cecília de Souza Rodrigues, Ieda Maria Alves,
Norma Seltzer Goldstein.– –São Paulo: Humanitas/FFLCH/
USP, 1999.
184 p.
ISBN 85-86087-51-3
Textos apresentados durante o I Seminário de Filologia e
Língua Portuguesa, realizado em 19-20 de março de 1997 pelo
Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa.
1. Língua portuguesa 2. Filologia 3. Gramática funcional
4. Língua falada 5. Fonologia 6. Lingüística textual 7. Termi-
nologia I Rodrigues, Ângela Cecília de Souza II Alves, Ieda
Maria III Goldstein, Norma Seltzer.
CDD 469
469.15

HUMANITAS PUBLICAÇÕES FFLCH/USP


e-mail: editflch@edu.usp.br
tel.: 818-4593

Editor responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação editorial e capa


Mª Helena G. Rodrigues

Diagramação
Marcos Eriverton Vieira

Revisão
organizadoras / Simone Zaccarias

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................................................ 7

Mesa redonda de Filologia Portuguesa – Apresentação ...................................... 9


Heitor Megale

Subsídios para uma proposta de normas de edição


de textos antigos para estudos lingüísticos ................................................... 13
César Nardelli Cambraia

Critérios propostos para dupla leitura do tratado


ascético-místico “Castelo Perigoso” .............................................................. 25
João Antonio de Santana Neto

As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico ....................................... 41


Fernando Ozorio Rodrigues

Aspectos da variação gráfica no português arcaico: as variantes


consonantais no Livro de José de Arimatéia (cod ANTT 643) ...................... 55
Sílvio de Almeida Toledo Neto

Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações ..................................... 65


Erotilde Goreti Pezatti

Articulação de orações: a questão dos estados de coisas ................................... 83


Maria Helena de Moura Neves

As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista ................................... 97


Maria Luiza Braga

Metodologia de pesquisa em português falado ................................................. 109


Paulo de Tarso Galembeck

Lingüística histórica e fonologia não-linear ..................................................... 121


Gladis Massini-Cagliari

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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...

Marcas de interatividade no processo de textualização da escrita .................. 139


Luiz Antônio Marcuschi

O discurso não é uma camada ......................................................................... 157


Sírio Possenti

A função social da terminologia ....................................................................... 167


Enilde Faulstich

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

APRESENTAÇÃO

Nos dias 19 e 20 de março de 1997, o Programa de Pós-Graduação em


Filologia e Língua Portuguesa realizou o I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa,
ocasião em que foi lançado o número 01 da revista Filologia e Lingüística Portu-
guesa.
Os trabalhos do Seminário, referentes às diferentes áreas de concentração
do Programa, foram apresentados em quatro mesas-redondas e duas conferências.
Participaram das mesas-redondas os pesquisadores:
– Heitor Megale (USP), César Nardelli Cambraia (UFMG), João Santana
Neto (UCSAL), Fernando Osório Rodrigues (UFF) e Silvio Toledo (USP) – Filo-
logia do português (coord. Heitor Megale);
– Erotilde Goretti Pezatti (UNESP – São José do Rio Preto), Maria Helena
de Moura Neves (UNESP – Araraquara) e Maria Luiza Braga (UNICAMP) –
Gramática e funcionalismo (coord. Angela Cecília de Souza Rodrigues);
– Luiz Antonio Marcuschi (UFPE) e Sírio Possenti (UNICAMP) – Gramá-
tica e discursividade (coord. Helena Nagamine Brandão e Lineide do Lago Salvador
Mosca);
– Enilde Faulstich (UnB) e Francis Aubert (USP) – Terminologia e comuni-
cação (coord. Ieda Maria Alves).
As conferências foram ministradas por Paulo de Tarso Galembeck e Gladis
Massini-Cagliari, ambos da UNESP – Araraquara, que abordaram os temas Princí-
pios metodológicos do estudo da língua falada e Fonologia do português, respectiva-
mente.
Nos textos desta edição, o leitor encontrará os trabalhos apresentados no
Seminário.

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

MESA-REDONDA DE FILOLOGIA PORTUGUESA

César Nardelli Cambraia (Pós-graduando, USP)


João Antônio de Santana Neto (Pós-graduando, USP)
Sílvio de Almeida Toledo Neto (Pós-graduando, USP)
Fernando Osório Rodrigues (UFF)
Heitor Megale (USP-org.)

APRESENTAÇÃO

Com o lançamento do número 1 da revista Filologia e Língua Portuguesa, o


Programa de Pós-Graduação de Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, na pessoa de
sua coordenadora, Profa. Dra. Ieda Maria Alves, cria oportunidade ímpar para
esta mesa-redonda a respeito do problema das normas de transcrição para a edição
de textos portugueses antigos, principalmente daqueles existentes em manuscri-
tos, mas também dos incunábulos, que conheceram a imprensa em seus primórdi-
os. A limitação a manuscritos medievais e a incunábulos não exclui do trabalho
filológico cuidadoso os textos posteriores, manuscritos ou impressos. A restrição
deve-se tão somente ao fato de aqui apresentarem-se três pesquisadores que traba-
lham com manuscritos medievais e um, com incunábulo. A mesa traz também uma
comunicação sobre variação gráfica, trabalho filológico só possível com o próprio
manuscrito ou com edição extremamente rigorosa.
Todo pesquisador ou mesmo um simples leitor que alguma vez precisou
citar um texto desses, sem ter tido acesso ao manuscrito, dispondo tão somente de
edições, se teve a oportunidade e chegou a confrontar duas ou mais lições entre as
porventura existentes do mesmo texto, é testemunha da dificuldade de se efetuar
a escolha. Considerando que, dentro de uma coerência com os propósitos estabe-
lecidos, as diversas lições sejam fidedignas, ainda assim mantém-se a questão da
escolha de qual delas utilizar, em função do interesse que motiva a citação: se é
carrear documentação para informar sobre a História da época, a cultura, a men-
talidade ou a religião, se é demonstrar o emprego de algum recurso estilístico ou

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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...

literário, se é oferecer dados para estudos lingüísticos de fonologia, morfologia,


sintaxe, lexicologia ou semântica, ou ainda se é apresentar dados filológicos que
atendam a exigências da paleografia.
São conhecidos e têm sido extremamente úteis trabalhos de edição de ma-
nuscritos medievais e de incunábulos portugueses, com lição estabelecida por cri-
térios diversos. Há mesmo casos em que o mesmo editor segue critérios diferentes
ao editar dois textos da mesma natureza. Esta última observação significa que a
tendência à uniformização de critérios, largamente adotada, encontra dificulda-
des em sua própria aplicação. Tal uniformização tem atingido freqüentemente a
polimorfia, uma das características definidoras de fases mais antigas da História da
Língua Portuguesa. Por exemplo, se o mesmo texto apresenta ocorrências como:
diabolo, diaboo, diabo, uniformizar as duas primeiras de acordo com a terceira resul-
ta em omitir para o leitor a existência das duas primeiras formas, independente-
mente do número de ocorrências de cada forma. Dentre os interesses motivadores
da lição a ser estabelecida como acima referimos, para aqueles dois primeiros que
atendem à documentação para a História, a cultura, a mentalidade ou a religião,
ou ao emprego de recurso literário e estilístico, pode não haver tanto prejuízo, mas
não se pode dizer o mesmo em relação àquele cujo objetivo seja atender ao estudo
lingüístico. Neste caso, é fundamental que as diversas formas compareçam porque
só assim se documenta toda uma transição para o estudo da difusão lexical. Os
exemplos dessa natureza multiplicam-se: o emprego de chus ou chos ou ainda ch9 e
de magis ou mais no mesmo texto; formas diversas de homem, de bom, de boa e
outras: home), ome), home, ome; bõõ, bõ, boo, bo, bõa, boa; sem desprezar aquelas
ocorrências em que o traço da abreviação, marca ou não da nasalidade, cobre mais
de um grafema. Veja-se a redução a que se sujeitaria a palavra ocasiom, se a unifor-
mização apagasse as ocorrências: acajom, acajõ, acaijom, acaijõ, ocaijom, aqueijom,
oqueijom, oqueijõ, casion, caisiom, cajam, cajiam. Acrescente-se que a escolha de
uma das formas, em qualquer dos casos, ainda que recaísse sobre a forma com
número mais alto de freqüência, estaria apagando todas as outras.
Como se vê, a mesa-redonda tem árdua tarefa pela frente: apresentar os
tipos de edição, a escolha do tipo de edição, os motivos que pesam nessa decisão,
o problema mais crucial das normas de transcrição, a indispensável coerência in-
terna do quadro dessas normas e a demonstração da confiabilidade numa edição
rigorosamente estabelecida para o estudo lingüístico.
Para discutir toda essa gama de problemas inerentes ao rigor filológico do
estabelecimento de normas de transcrição comparecem pesquisadores que estão
“com a mão na massa”, trabalham com edição de texto medieval: César Nardelli

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Cambraia, com o Livro de Isaac (cód. alc. 461, olim CCLXX) em seu doutoramento;
João Antônio de Santana Neto, com Castelo Perigoso (cód. alc. 199, olim CCLXXVI
e 214, olim CCLXXV), em seu doutoramento, ou do século XVI: Fernando Ozório
Rodrigues, com As histórias de Trancoso (incunábulo de 1575 e 1595) ou com estu-
do de variação gráfica em manuscrito: Sílvio de Almeida Toledo Neto, com O
Livro de José de Arimatéia (Cód. ANTT 643), em sua dissertação de mestrado.

Heitor Megale

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

SUBSÍDIOS PARA UMA PROPOSTA DE NORMAS


DE EDIÇÃO DE TEXTOS ANTIGOS PARA
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS

César Nardelli CAMBRAIA*

RESUMO: Neste trabalho, discute-se a questão da edição de textos anti-


gos que possa ser utilizada para a realização de estudos lingüísticos. Na
primeira parte, defende-se a necessidade de realização de edições próprias
para lingüistas e justifica-se a opção por um tipo específico de edição – a
edição semidiplomática – como o mais adequado para esta finalidade. Na
segunda parte, apresenta-se, com os devidos esclarecimentos, um esboço
de proposta de normas de edição de textos antigos para lingüistas. Ilustra-
se esta discussão com exemplos da edição semidiplomática da obra medie-
val quatrocentista Livro de Isaac (cód. alc. CCLXX/461).

PALAVRAS-CHAVE: filologia portuguesa; crítica textual; edótica; lin-


güística histórica portuguesa.

1. EDITAR É PRECISO

É inegável que a validade de um estudo diacrônico do português esteja


diretamente relacionado à fidedignidade da fonte utilizada para a coleta de dados.
Assim sendo, qualquer diacronista terá necessariamente que lidar com o comple-
xo problema da escolha das fontes. Trata-se de um problema complexo porque,
quando mais pretérita for a fase da história do português analisada, menor será o
número de textos disponíveis e maior será a possibilidade de esses textos apresen-
tarem distorções devidas ao acidentado processo de transmissão manuscrita (“quem
diz cópia diz erro” (Spina, 1994, p. 114)). Além de ter que lidar com os problemas
gerados pelo processo de cópia, terá o estudioso que lidar também com o problema
da escolha da edição desses textos, pois nem toda edição de textos antigos é ade-
quada para o estudo lingüístico: muitos editores realizam intervenções no texto

* Universidade Federal de Minas Gerais. 13


CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...

editado com o objetivo de regularizar formas– desde grafemas até itens lexicais –
para facilitar a leitura às pessoas que não estejam habituadas a lidar com esse tipo
de texto, regularização esta que apaga e altera os traços lingüísticos presentes no
texto original.
À primeira vista, poder-se-ia pensar que a melhor solução para os estu-
diosos da história da língua portuguesa seria a consulta direta ao manuscrito, o
que eliminaria as intervenções dos editores e resguardaria a fidelidade em rela-
ção ao original. Aparentemente, esta seria a melhor solução, mas, na verdade,
não o é.
Em primeiro lugar, muito raramente um lingüista tem acesso direto a um
manuscrito, seja porque as instituições que o possuem não lhe permitem o aces-
so ao texto (o que é perfeitamente compreensível, já que indubitavelmente o
manuseio freqüente de um códice sempre leva a um desgaste do mesmo), seja
porque os textos com que deseja trabalhar se encontram em lugares diferentes e
distantes geograficamente (como tornar viável uma pesquisa que pressuponha a
consulta de um manuscrito na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, outro na
Arquivo Nacional da Torre do Tombo e outro no Museu Britânico?).
Em segundo lugar, mesmo que tivesse acesso ao manuscrito ou a um fac-
símile seu, a sua leitura pressuporia conhecimentos de natureza codicológica que
apenas um estudioso que tiver se debruçado detidamente sobre um dado texto
seria capaz de fornecer. Como cada manuscrito possui características próprias, a
sua compreensão exigiria que o lingüista fizesse um trabalho à parte com cada
manuscrito para, somente depois, passar à análise da linguagem do texto. Quanto
aos fac-símiles, fotografias ou cópias xerográficas, convém salientar que nem mes-
mo esses recursos são capazes de reproduzir com absoluta fidelidade as caracterís-
ticas de um original.
É por essas razões que se defende aqui que editar é preciso. A viabilização
dos estudos diacrônicos depende, sem dúvida, da realização de edições rigorosas e
fidedignas, que ofereçam o máximo possível de informações sobre o texto, repro-
duzindo, na medida do possível, todas as características do original e efetuando
apenas aquelas intervenções que se fizerem necessárias para a inteligibilidade do
texto (como, por exemplo, o desdobramento de abreviaturas). Através da realiza-
ção desse tipo de edição, estar-se-ia transpondo o problema da localização do texto
(pois, editado em livro, poderia ser remetido para qualquer lugar), o problema da
conservação do manuscrito (uma consulta feita por um estudioso de crítica textu-
al seria suficiente para a elaboração rigorosa de sua edição, o que permitiria a
vários estudiosos das mais variadas áreas terem acesso ao texto) e o problema do

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

conhecimento técnico necessário para a leitura de um manuscrito (o estudioso


responsável pela edição do texto forneceria todas as informações pertinentes em
sua edição, a fim de que o lingüista possa consultar o texto editado com segurança,
mas também possa conferir, ele mesmo, em um fac-símile – algo imprescindível em
uma edição que objetive permitir a análise da linguagem –, todas as dúvidas que
surgirem).1
Mas, se editar é preciso, qual é o tipo de edição mais adequado ao estudo
lingüístico? É o tema de que se trata a seguir.
Em seu manual de crítica textual, Spina (1994, p. 84-88) diferencia 4 tipos
de edição:2
(a) reprodução mecânica, que consiste na reprodução do manuscrito por
procedimentos mecânicos (como fotografia, xerografia, etc.);
(b) reprodução diplomática, que consiste na reprodução tipográfica do texto
manuscrito, mantendo-se todas as características (os grafemas, as abre-
viaturas e seus sinais, a separação vocabular, etc.) do original;
(c) transcrição diplomático-interpretativa (ou semidiplomática), que con-
siste na transcrição do original, fazendo-se um série de melhoramentos
do ponto de vista da leitura, tais como adoção dos critérios atuais de
separação vocabular, desdobramento das abreviaturas, pontuação do
texto, entre outras; e
(d) texto crítico, que consiste no estabelecimento da forma genuína de um
texto a partir das cópias existentes, segundo as leis e normas da crítica
textual, facilitando-se a sua leitura e tornando-o inteligível.
A opção por um destes tipos fundamenta-se principalmente no público a
que se destina a edição. Para um público com conhecimento de codicologia e de
paleografia, certamente a reprodução mecânica seria satisfatória, na medida em
que se poderia não apenas ter acesso ao texto como também às suas características
formais (disposição no papel, tipo de letra, etc.). Entretanto, essa mesma edição
seria certamente de difícil acesso a um público que, mesmo conhecedor da língua
da época, não tivesse experiência anterior com a escrita medieval (e seu complexo
sistema de abreviaturas).
Quando se tem em mente como principal público-alvo (mas não o único)
lingüistas, o tipo mais adequado parece ser a edição semidiplomática, pois esse

1
Consultar também as justificativas de Duarte (1986, p. 18-22) para a dupla edição (paradiplomática e
interpretativa) dos documentos em português da Chancelaria de D. Afonso III.
2
Azevedo Filho (1987, p. 29-35) também defende serem estes os quatro tipos de edição.

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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...

tipo de edição, em uma versão um pouco mais conservadora3 do que como defini-
da por Spina (1994), tem como vantagem respeitar ao máximo as características
do original, fazendo-se, no entanto, pequenas intervenções (sempre assinaladas!)
com o objetivo de viabilizar a leitura ao seu público. Embora voltada para um
público em especial, isto não significa que estudiosos de outras áreas não possam
também utilizá-la: este tipo de edição serve também, por exemplo, a pesquisadores
de literatura ou historiadores, que, com um pequeno esforço inicial para se habitu-
arem ao sistema de transcrição adotado, certamente não encontrarão maiores di-
ficuldades na leitura do texto.

2. PROPOSTA DE NORMAS DE EDIÇÃO DE TEXTOS PARA


LINGÜISTAS E SUA JUSTIFICATIVA

Esta seção está divida em duas partes: inicialmente, apresentam-se, em


linhas gerais, as normas desejáveis para uma edição de textos antigos que permita
a realização de um estudo minucioso da língua em que foi escrito, expondo-se
também as justificativas para a adoção de cada uma das normas; em seguida, assi-
nalam-se alguns problemas que têm aparecido na aplicação desta proposta na edi-
ção da obra Livro de Isaac (cód. alc. 461), que se encontra em andamento (cf.
Cambraia (em preparação)).

2.1 AS NORMAS E SUAS JUSTIFICATIVAS

NORMAS JUSTIFICATIVAS
Norma geral ® Manter o máximo possível Possibilita uma análise do texto nos níveis
de características do original grafemático, fonético-fonológico, morfoló-
gico, sintático, semântico e lexical.

3
Conferir, por exemplo, a edição semidiplomática d’A Vida do Cativo Monge Confesso preparada por Cambraia &
Lobo (1995).

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Respeitar todas a) Variantes posicionais: Pode fornecer informações de natureza fo-


as particularida- < > x < >, nético-fonológica (p. ex., distribuição de
des grafemáticas < > x < > x < >, alofones; variação fonológica) e morfoló-
existentes no < > x < >, gica (p. ex., fronteira de palavras).
original < > x < >, etc.
b) Forma e posição dos Pode fornecer informações de natureza fo-
diacríticos nético-fonológica (p. ex., assimilação de
nasalidade).
c) Transcrição dos grafe- Evita a confusão gráfica que ocorre ao co-
mas <@> e <W> sem locar, sobre um mesmo caractere, pingo e
pingo, como no original acento agudo (quando há plica no original).
d) Separação inter- e in- Pode fornecer informações de natureza gra-
travocabular femática relevante para o estudo da histó-
ria da ortografia (p. ex., a passagem da se-
paração intravocabular em final de linha
baseada em critério estético (independente
do limite de sílaba) para critério fonético-
fonológico (respeitando o limite de sílaba))
e fonético-fonológica (p. ex., no caso da se-
paração intervocabular, fronteira de vocá-
bulo fonológico).
e) Sinais de pontuação Pode fornecer informações de natureza fo-
nético-fonológica (p. ex., unidade de ento-
nação), sintática (p. ex., fronteira de sin-
tagma) e semântica (p. ex., interpretação
de passagens).
f) Uso de maiúsculas x Pode fornecer informações de natureza sin-
minúsculas tática (p. ex., fronteira de oração) e semân-
tica (p. ex., ênfase no sentido da palavra
pelo uso de maiúscula).
Desenvolver a) Indicando em itálico Viabiliza a leitura, mas alertando o leitor
abreviaturas as letras acrescentadas para o fato de se tratar de interpretação do
editor.
b) Tomando-se como re- Impede a projeção de traços lingüísticos
ferência as formas desen- de outras fases
volvidas existentes no
manuscrito
Manter as variantes fonológicas, morfoló- Possibilita investigação dos processos de
gicas e sintáticas variação e mudança dos quais os textos
podem ser testemunhos.

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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...

Assinalar as a) No caso de acréscimo, Possibilita a detecção de casos de forma es-


correções efe- colocando a seqüência en- pontânea substituída por forma menos es-
tuadas pelo co- tre parênteses uncina- pontânea (p. ex., ausência de concordân-
pista com si- dos duplos no ponto cia, posteriormente reparada).
nais especiais4 assinalado no original:
<< >> (para trecho
em entrelinha) e <{ }>
(para trecho nas margens)
b) No caso de supressão, Possibilita investigação do processo de có-
colocando a seqüência eli- pia/composição do texto através de esco-
minada no original entre lhas.
chaves duplas: {{ }}
Marcar as in- a) No caso de acréscimo Alerta o leitor para possíveis acidentes típi-
tervenções fei- por conjectura, colocando cos do processo de transmissão manuscrita,
tas pelo editor a seqüência entre parên- deixando bastante claro tratar-se de inter-
com sinais teses uncinados simples venção do editor.
especiais no ponto pertinente do
original: < >
b) No caso de supressão
por conjectura, colocando
a seqüência entre chaves
simples: { }
c) No caso de supressão
homotelêutica, colocando
a seqüência entre colche-
tes duplos: [[ ]]
Assinalar trechos de leitura duvidosa entre Alerta o leitor para o fato de que, embora
parênteses: ( ) tenha proposto uma leitura para um dado
trecho, o editor não tem absoluta certeza
dela, podendo haver outras leituras.
Assinalar trechos mutilados, mas cuja lei- Alerta o leitor para o fato da passagem em
tura for reconstituível, com colchetes sim- que se encontra o trecho poder ter várias
ples: [ ]. Assinalar trechos mutilados ou interpretações em razão da ausência de
de leitura impossível entre colchetes com elementos.
pontos precedidos por uma cruz (haverá
tantos pontos quanto forem as letras
ilegíveis): V [...]
Numerar as linhas do texto de 5 em 5 de Facilita a localização de palavras a partir
maneira contínua do glossário exaustivo.

4
Os sinais utilizados para assinalar inserções e supressões variam muito de edição para edição. Uma proposta
unificadora que dê conta das especificidades de cada manuscrito ainda está por ser elaborada.

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

2.2 PROBLEMAS NA REALIZAÇÃO DA PROPOSTA

Um primeiro problema diz respeito à diferenciação entre erro do copista e


variação lingüística. Não é de todo simples a identificação do que seja um erro
decorrente do processo de cópia e do que seja um caso de alteração na forma de
uma palavra motivada por variação lingüística. Confira-se o par de dados abaixo,
extraído do cód. alc. CCLXX\461:

A B

or<aç>oes (fólio 43 recto linha 6) \enho<r> (fólio 47 recto linha 2)

Por um lado, a seqüência < or<aç>oes > em A parece ser um caso de erro
(omitiram-se duas letras no interior dessa palavra), por se tratar de ocorrência
única no manuscrito e, além disso, por a forma em questão não ser relacionável
aos processos fonológicos de que se tem notícia na história do português (haveria,
no entanto, a hipótese de se tratar de forma abreviada, mas seria necessário admi-
tir que o traço reto seria, ao mesmo tempo, sinal de abreviatura da seqüência < aç
> e sinal de nasalidade da(s) vogal(is) da sílaba final). O mesmo, por outro lado,
não pode ser dito da seqüência < \enho<r> > em B, pois a queda do / r / em final
de palavra é um processo atestado na língua portuguesa (conferir, por exemplo, a
forma popular “sinhô”) e essa seqüência poderia estar revelando que esse processo
já estava em curso no português quatrocentista.
Um segundo problema consiste na diferenciação de maiúscula e minús-
cula. E⌠m alguns casos, faz-se essa distinção sem qualquer problema, dada a dife-
rença existente no traçado de uma e de outra. Entretanto, casos há em que só a
proporção de uma letra em relação às outras na palavra parece ser um meio para
diferenciá-las. Examinem-se os dados abaixo:

A B

fólio 78 recto fólio 52 recto fólio 28 recto fólio 28 recto


11 linha linha 4 linha 26 linha 25

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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...

Em A, percebe-se claramente a diferença entre um < T > e um < t >,


uma vez que o traçado dos dois é bem distinto; mas, em B, só mesmo o confronto
do dígrafo com os outros elementos da palavra em que ocorre é capaz de permitir
identificar se se trata de um < FF > ou um < ff >.
Um terceiro problema está relacionado à interpretação de certos sinais de
abreviatura. Há casos em que uma determinada forma aparece apenas abreviada
no texto que se está editando, o que dificulta determinar como deve ser desdobra-
da por não haver forma que lhe sirva de referência. Exemplifica esse problema o
dado a seguir:

fremo\a ou fermo\a (fólio 66 verso linha 19)

O fato de, através da análise das abreviaturas no manuscrito, ficar claro


que a abreviatura presente nessa palavra pode ser desenvolvida como < re > ou
< er > torna ainda mais difícil optar por uma das duas possibilidades, sobretudo
sabendo que o processo de metátese do / r / era atuante na fase arcaica do portu-
guês (Nunes, 1945, p. 163). Ainda enquadrando-se nesse terceiro tipo de proble-
ma, há o caso do traço reto que pode ser interpretado como abreviação de conso-
ante nasal, mas também como apenas marca de nasalidade. Confiram-se os dados
a seguir:

A B

pe_@_tenc@a (fólio 27 recto linha 1) pen@+tenc@a (fólio 26 verso linha 8)

Levando-se em conta que houve, na história do português, um processo de


síncope da nasal alveolar intervocálica (Williams, 1991, p. 81), não seria impossí-
vel que a seqüência em A – < pe_@_tenc@a > –, ao invés de consistir em uma forma
com marca de abreviatura da consoante nasal intervocálica, pudesse estar repre-
sentando, na verdade, uma variante de B – < pen@+tenc@a > – afetada pelo proces-
so de síncope (sem o [n], portanto).

20
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Um quarto problema diz respeito à determinação da posição da marca de


nasalidade. Por se tratar de um processo de escrita manual, a posição da marca de
nasalidade nem sempre é de fácil determinação, como, por exemplo, na palavra a
seguir:

Ja@+uu (fólio 43 recto linha 20)

Nessa palavra, é difícil estabelecer se o traço reto que marca nasalidade


está (a) sobre o primeiro <u >, (b) sobre o segundo, (c) entre os dois ou (d)
sobre os dois. Embora a maior parte da marca esteja sobre o segundo <u >,
convém lembrar que, no processo de escrita manual, a pressa ou desleixo pode
fazer com que a marca fique um pouco depois de onde se intencionava pô-la (tal
como acontece hoje em dia ao se colocar um acento sobre uma vogal um pouco
mais adiante do que sobre o seu centro). Mesmo sabendo que, por razões etimo-
lógicas, era de se esperar que a marca estivesse sobre o primeiro <u > (a referi-
da palavra vem do lat vulg. JA_JU_NUS (Cunha, 1996, p. 454.)), pois é nele que teria
recaído a nasalização anterior à síncope do [ n ]; ainda assim não se pode despre-
zar a possibilidade de o copista ter coberto os dois grafemas com a marca porque
a nasalidade de um teria se espraiado para o outro também, ou seja, a determina-
ção da posição da marca é relevante para o estudo lingüístico porque pode estar
revelando o espraiamento do traço de nasalidade de um vogal para suas vizi-
nhas.
Um quarto problema consiste na determinação do inventário de grafe-
mas. Embora o sistema de representação gráfica na fase arcaica do português
não fosse exatamente “fonético” (Cagliari, 1996), não se pode deixar de reco-
nhecer a importância das variações na grafia como “pista” (e não como testemu-
nho irrefutável) para a percepção de fenômenos de natureza fonético-fonológica
na língua da época – o que torna a fidelidade na transcrição dos manuscritos um
imperativo na edição de textos para lingüistas. Tal fidelidade passa certamente
pela determinação do inventário de grafemas utilizados, para que, na transcri-
ção, represente-se de maneira diferenciada cada um dos grafemas utilizados pelo
escriba. A dificuldade está na identificação de quantos eram esses grafemas, já
que não é toda e qualquer diferença na forma que indicaria grafemas diferentes:
porque a escrita era manual, a reprodução de um mesmo grafema sempre gerava
diferenças.

21
CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...

O último problema que será abordado aqui (o que não quer dizer que os
problemas sejam apenas estes...) diz respeito à distância entre as palavras. Como
foi dito acima, é relevante manter o sistema de separação vocabular original dos
manuscritos porque ele pode fornecer informações sobretudo de natureza fonético-
fonológica (o sistema de separação parece basear-se no vocábulo fonológico e não,
como o atual, no vocábulo formal). Porém, também pelo fato de a escrita ser manu-
al, a distância não é sempre a mesma, o que suscita dúvidas sobre duas seqüências
estarem ou não juntas. Consultem-se os dados que se seguem:

A B C

que deus (fl. 89 recto que he ? (fl. 89 recto quea (fl. 89 recto
linha 1) linha 16) linha 5)

Em A, não parece haver dúvida de que as duas palavras estejam claramen-


te separadas por espaço; em C, também parece ser indubitável que as duas pala-
vras estejam juntas; mas, em B, a história é outra. Embora a distância entre as duas
palavras em B não indique nitidamente se devem ser consideradas como estando
juntas ou separadas, pois estão numa distância menor do que a em A e maior do
que em C, o fato de o traço de abreviatura da primeira estar tocando a segunda
poderia sugerir que estejam juntas. Mas a questão não é tão simples: por estar a
seqüência em B no final de linha, poderia ter o copista diminuído a distância para
que ambas coubessem na linha sem que houvesse a intenção de escrevê-las junto.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, não há dúvida de que a adoção de critérios mais rigorosos do que os


do passado na edição (de preferência, semidiplomática) de textos antigos seja um
imperativo se se deseja permitir um estudo adequado da linguagem presente nes-
ses textos. Entretanto, é preciso sempre ter cautela em relação às conclusões che-
gadas com base na análise desses textos, uma vez que seu trajeto do passado aos
dias de hoje é sempre acidentado. Por melhor que seja uma edição de um texto
antigo, dificilmente será definitiva, já que há uma relação dialética entre Filologia

22
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

e Lingüística Histórica: o rigor da edição permite o avanço do conhecimento sobre


a história da língua e esse avanço permite a revisão dos critérios utilizados nas
edições, que, refeitas, trarão novos avanços e assim sucessivamente.

BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO FILHO, L. A. de (1987) Iniciação em crítica textual. Rio de Janeiro/São Paulo,


Presença/Edusp.
CAMBRAIA, C. N. (Em preparação) Livro de Isaac: edição e estudo do cód. alc. 461. Tese de
doutorado. São Paulo, FFLCH-USP.
________& LOBO, T. (1995) Edição diplomático-interpretativa d’A Vida do Cativo Monge
Confesso. São Paulo, FFLCH-USP. (Mimeo.)
CASTRO, I. (1991) Curso de história da língua portuguesa. Lisboa, Universidade Aberta.
CUNHA, A. G. da (1996) Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. 2. ed. 7.
impr. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
DUARTE, L. F. (1986) Os documentos em português da chancelaria de D. Afonso III (edição).
Lisboa, Universidade de Lisboa.
NUNES, J. J. (1945) Compêndio de gramática histórica portuguesa. 3. ed. Lisboa, Livraria Clás-
sica Editora.
SPINA, S. (1994) Introdução à edótica: crítica textual. 2. ed. rev. e atual. São Paulo, Ars
Poetica/Edusp.
TEYSSIER, P. (1993) História da língua portuguesa. 5. ed. Lisboa, Sá da Costa.
WILLIAMS, E. B. (1991) Do latim ao português. 5. ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

ABSTRACT: In this paper, the issue of editing old texts for the purpose of linguistic
studies is discussed. In the first part, the necessity of preparing editions specific
for linguists is defended and the choice of a particular type of edition – the
semidiplomatic edition – as the most adequate for this purpose is justified. In the
second part, a sketch of a proposal of rules for editing old texts for linguists is
presented. This discussion is illustred with examples taken from the semidiplomatic
edition of the fifteenth century work Livro de Isaac (cód. alc. CCLXX/461).

KEYWORDS: Portuguese philology; textual criticism; Portuguese historical


linguistics.

23
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

CRITÉRIOS PROPOSTOS PARA DUPLA LEITURA DO


TRATADO ASCÉTICO-MÍSTICO ‘CASTELO PERIGOSO’

João Antonio de SANTANA NETO*

RESUMO: Este trabalho apresenta os critérios propostos para dupla leitu-


ra do tratado medievo Castelo Perigoso. A primeira é uma leitura crítica
seguida, em rodapé, do aparato crítico do tipo negativo; a segunda, uma
leitura com atualização ortográfica, constando, ao pé de página, as notas
esclarecedoras quanto às fontes e quanto à significação de alguns vocábu-
los.

PALAVRAS-CHAVE: filologia portuguesa; edição crítica; critérios; Cas-


telo Perigoso.

Ao se iniciar uma edição de texto, deve-se definir em primeiro lugar qual é o


seu objetivo: publicação ou trabalho acadêmico, pois esse é fundamental para esta-
belecer o tratamento a ser dado ao texto. Um trabalho que visa ao pesquisador difere
de um que objetiva divulgar o texto através de uma publicação.
Determinado o objetivo principal do trabalho e observando o que o mate-
rial permite, deve-se pesquisar o tipo de edição que melhor se aplica a esse objeti-
vo: paleográfica, diplomática, crítica, modernizada, genética.
A princípio parece que o problema tem uma solução fácil. Realmente
seria se a definição dos critérios fosse rígida para cada tipo de edição. Infeliz-
mente não é bem assim. Para cada tipo de edição há alguns critérios que são mais
ou menos aceitos sem grandes questionamentos, contudo não se pode generali-
zar, pois cada texto constitui um “universo” de possibilidades e só se pode definir
os critérios a serem utilizados a partir da escolha do tipo de edição e do público-
alvo.
Quando se iniciou o trabalho com o tratado ascético-místico medievo Cas-
telo Perigoso, objetivava-se realizar uma edição crítica com forte tendência moder-
nizadora. No decorrer dos trabalhos, verificou-se que tal fato comprometeria ou

* Universidade Católica de Salvador e Universidade do Estado da Bahia. 25


SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...

mesmo inviabilizaria uma descrição lingüística posterior que tomasse como base
esse trabalho.
Uma edição não é definitiva nem é um fim em si mesma, pelo contrário, é
um ponto de partida para estudos posteriores que o texto permita: literários, histó-
ricos, lingüísticos, semióticos, entre outros.
Tendo em mente a afirmativa anterior, opta-se por uma dupla leitura para o
texto Castelo Perigoso, pois à luz do estudo da mística do Castelo Perigoso, desenvol-
vido anteriormente, pode-se inferir que o texto que ora se edita há de interessar a
teólogos, a místicos, a religiosos, em geral, aos historiadores especializados ou não
em Idade Média, bem como ao leitor comum estudioso desse aspecto da cultura
medieval. A tais interesses sobrepõe-se o do lingüista que busca elementos grafe-
máticos, fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos para documentar a
história da língua ou para fundamentar teorias e confirmar hipóteses. Exige-se
pois do trabalho de edição que, além de preservar a autenticidade dos testemu-
nhos, evite, por todos os meios possíveis, veicular já não apenas erros de transcri-
ção, mas toda e qualquer imprecisão que pudesse permitir interpretações errô-
neas.
A preocupação com a fidelidade ao texto é levada a tal ponto que, não
bastasse a lição crítica rigorosa com o indispensável aparato crítico, apresenta-se
mais uma lição em que a atualização ortográfica deixa mais à vontade o leitor
porventura menos informado acerca do estado de língua à época em que se copia-
ram os testemunhos.
Na primeira leitura, moderadamente conservadora, de modo a não modifi-
car os traços fonológicos do texto, se bem que regularizadora, de acordo com os
critérios a seguir explicitados, procurou-se manter a ortografia do manuscrito base
e as marcas de flutuação da língua, embora com intervenções como a inserção de
pontuação e de acentuação, o desenvolvimento das abreviaturas, a separação de
palavras segundo o modelo atual, entre outras. Tomou-se como base os critérios
adotados por Lança (1994, p. 57-67), uma vez que nesse trabalho a pesquisadora
edita dois tratados pertencentes aos mss. 199 e 214, sob a orientação do Prof. Dr.
Luiz Fagundes Duarte.
Na segunda, com atualização ortográfica, de modo a fornecer aos não acos-
tumados à língua portuguesa medieval uma visão do conteúdo do texto, alguns
poucos critérios também foram estabelecidos, conforme explicitação a seguir,
objetivando esclarecer as intervenções realizadas. Localizada no verso da folha,
visa a possibilitar justaposição de ambas as leituras.

26
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Tomou-se como texto base o ms. 199 (A), uma vez que a cronologia clara-
mente o permite. O ms. 214 (B), posterior, é apenas utilizado para a elaboração do
aparato crítico.

NORMAS DE TRANSCRIÇÃO

1. LEITURA CRÍTICA

1.1 VOCALISMO

1.1.1 Os grafemas alógrafos <i> e <j>, bem como o grafema <y>, ocorrem
indistintamente no ms. 199 ora com valor vocálico (vida / vjda / vyda) ora
com valor semi-vocálico (leixa, maior / frujto, mujtos, muj / fruyto, mayor).
Optou-se por uma regularização dos mesmos no sentido da forma mais
moderna atestada no texto, ou seja, pela transcrição de todos eles por
<i>.
1.1.2 As vogais geminadas ou duplas são mantidas em todos os casos: etimoló-
gicas ou não (neste último caso, porque geralmente se trata de marcas de
abertura ou de acento da vogal), orais ou nasais.

treevas, doores, cãaes, mãaos

1.1.3 As vogais nasais são todas conservadas, sendo marcadas por til, <m> ou
<n>.
1.1.3.1 Em posição não final as vogais nasais são marcadas com <m> ou <n>.
Uniformiza-se o uso de <m> ou de <n> antes de consoante labial ou de
todas as outras consoantes, respectivamente, mesmo que no manuscrito
ambas ocorram indiferenciadamente.

mu)do / mundo : mundo


penite)cia / penitencia : penitência
cõssiguo / comsiguo : conssiguo
tenpestade : tempestade
e)tender : entender

27
SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...

1.1.3.2 Em hu)u) / hu)a, algu)u) / algu)a e nehu)u) / nehu)a as vogais são marcadas por
til; a substituição do til por <m> em hu)a conduziria à confusão com uma
consoante que na época ainda não teria sido desenvolvida.

hu)u, hu)a, algu)u, algu)a, nenhu)u, nenhu)a

1.1.3.3 Em posição final, a nasalidade da vogal é representada com <m>, exceto


para vogais duplas.

be)( : bem
comu)u) :comu)u
podenlha : podem-lha
nõ / nom : nom
bõõ : bo)o

1.1.3.4 As vogais nasais seguidas de <s>, em posição final, são transcritas com
til.

be)es, boos, homees

1.1.3.5 As vogais nasais do manuscrito correspondentes a formas que posterior-


mente foram desnasalizadas são conservadas com a marca do manuscrito,
ou seja, com til, quando figuram.

viir , jejuar, vermes, verme, boa, guãbanças

1.1.3.6 Aparecem no manuscrito as formas <nh> e <~h> (ex.: miha / minha).


Usa-se a forma <nh> no texto crítico, constando no aparato a forma
<~h>.

mjha , miha , minha : minha


sãha, sanha, sãnha : sanha, sãnha
nehuu : nenhuu

28
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

1.2 CONSONANTISMO

1.2.1 Os grafemas alógrafos <u> e <i> com valor consonântico são transcri-
tos respectivamente como <v> e <j>, uma vez que ocorrem no manus-
crito com estes valores.

dauid : David
uida : vida
igreia : igreja
deseio / desejo : desejo
seia / seja : seja

1.2.2 São conservadas todas as consoantes, que preenchem as seguintes condi-


ções:
1.2.2.1 As consoantes simples, mesmo nos lugares onde atualmente se usam du-
plas.

pesoa, necesario, morese, tera

1.2.2.2 As consoantes geminadas ou duplas, etimológicas ou não.

soll, ssombra
fallssos
peccadores

1.2.2.3 O h inicial e medial, exceto nos artigos definidos e pronomes oblíquos de


3ª pessoa.

horaçom, amehúde

1.3 ABREVIATURAS

As abreviaturas, quer em português quer em latim, são desenvolvidas em


itálico; o sinal tironiano é substituído pela conjunção copulativa “e” e “et”, respec-
tivamente, sem qualquer indicação; tal procedimento é adotado também para a
abreviatura latina “s.”, significando scilicet.

29
SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...

1.4 LIGAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PALAVRAS

A ligação de palavras sujeita-se ao modelo atual, sempre que tal não afete
o seu valor semântico; o mesmo critério é adotado para a separação, quer através
da sua deslocação, quer através da introdução de apóstrofo e de hífen.

cõtente : contente
oenxempro : o enxempro
susoditas : suso-ditas
dauomdamça : d’avondança

1.5 ACENTUAÇÃO E USO DA CEDILHA

1.5.1 No manuscrito não existem acentos, salvo o traço sobreposto às vogais,


indicador de nasalidade, e as piclas. São colocados para facilitar a com-
preensão.
1.5.2 O emprego da cedilha é regularizado de acordo com a norma atual, uma
vez que tal não afeta o valor fonético da forma em que ocorre, e conserva-
do quando inicial, exceto antes de vogal anterior.

façe : face
penitençia : penitência
comparacom / comparaçom : comparaçom
çugidade

1.6 MAIÚSCULAS

É adotado o critério atual de distribuição de letras maiúsculas.

ds : Deus
dauid : David
agostinho : Agostinho
auangelho : Avangelho

30
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

1.7 ACRÉSCIMOS

1.7.1 Os acréscimos textuais nas entrelinhas ou nas margens são inseridos no


texto e assinalados no aparato crítico (exceto quando não pertencem ao
texto, sendo então indicados e transcritos apenas no aparato).
1.7.2 Utilizam-se os parênteses uncinados para indicação dos acréscimos feitos
por conjectura, como também para inclusão de letras sobrepostas por si-
nal fixo e escritas a partir da haste do t.

<homem>
avondantem<en>t<e>
g<r>aças, out<r>as

1.7.3 Restitui-se o h inicial entre parênteses uncinados de acordo com a norma


vigente atual.

ora : <h>ora
auer : <h>aver

1.8 OUTRAS INTERVENÇÕES

1.8.1 São colocadas entre chaves as exclusões conjecturais de elementos consi-


derados interpolados.

{lhe}

1.8.2 Utilizam-se os colchetes duplos para as exclusões homeotelêuticas.

... nom [[diz]] faz ou diz ...

1.8.3 As rasuras são assinaladas no aparato crítico.


1.8.4 São conservadas as formas todollos, todollas, el-rei e os artigos llo, lla, llos,
llas.

31
SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...

1.9 PONTUAÇÃO E DIVISÃO DO TEXTO

1.9.1 Sempre que possível, são mantidos os lugares de pontuação do manuscri-


to, mas introduzem-se ou suprimem-se sinais de pontuação sempre que
isso for necessário para a compreensão do texto; pela mesma razão, os
sinais de pontuação do manuscrito são adaptados a formas modernas.
1.9.2 É mantida a divisão do texto (tanto para a primeira quanto para a segun-
da partes) em capítulos numerados, em negrito. Registram-se os caldei-
rões (⊄), mas nem sempre coincidem com a paragrafação usual adotada.
1.9.3 Empregam-se os colchetes retos para indicação da mudança de fólio e de
face (recto e verso).

[1r]

1.9.4 Na “Tábua dos Capítulos”, como os fólios não são numerados no manuscri-
to, empregam-se os colchetes retos para indicação da mudança de fólio e de
face (recto e verso) com a numeração em algarismos romanos.

[IVr]

1.9.5 As mudanças de linhas não são apontadas.

1.10 CITAÇÕES

1.10.1 O Texto apresenta muitas citações bíblicas, de Padres da Igreja, provérbi-


os, etc., algumas inclusive em latim. Para facilitar a leitura, sempre que
possível, as citações figuram entre aspas.
1.10.2 Nas transcrições em latim conserva-se o uso dos grafemas <u> e <i>,
quer com valor vocálico, quer com valor consonântico.

1.11 APARATO CRÍTICO

1.11.1 No aparato aparecem as intervenções do editor, as variantes de B e as


lições das leituras anteriores. Localizado no rodapé da página a que diz

32
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

respeito, é introduzido pelo número da linha, seguem-se a lição crítica e o


separador ], à frente do qual são apresentadas as siglas dos testemunhos
da tradição (A e B) e das leituras dos editores com as respectivas lições;
tratando-se de um aparato negativo, apenas são dadas as lições divergen-
tes e, nos casos de intervenção editorial, a lição de A.

2. Avangelho] A: auangelho, B: evangelho

1.11.2 As abreviaturas desdobradas no texto em itálico não são indicadas no


aparato crítico.
1.11.3 Como C (Magne) segue a norma de acentuação da Academia Brasileira
de Letras de 1943, só são apontadas as divergências quando o vocábulo já
figura no aparato crítico.
1.11.4 O emprego da cedilha antes de vogal anterior só é apontado quando o
vocábulo deve constar no aparato crítico por outro motivo.
1.11.5 Quando a palavra ou trecho não figura no testemunho, usa-se o sinal ∅
para indicar a inexistência.
1.11.6 É utilizado o número 9 para representar a abreviatura que corresponde a:
inicial con- (9tra = contra), final -us, -os (deuem9 = devemos, se9 =
seus). Este é o único sinal de abreviatura registrado no aparato crítico.
1.11.7 Não são apontados os diferentes registros e/ou leituras para:

he (C: é)
a (ha, a); o (ho, o)

1.11.8 Todos os casos não previstos nesses critérios, ou que levantem alguma
dúvida, são anotados, um a um, no aparato crítico.

2. LEITURA COM ATUALIZAÇÃO ORTOGRÁFICA

2.1 VOCALISMO

2.1.1 As vogais simples ou geminadas são regularizadas conforme a ortografia


atual.
door : dor

33
SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...

2.1.2 As vogais nasais, quer em posição medial quer em posição final, são repre-
sentadas de acordo com a ortografia moderna.

mudo : mundo
bees : bens

2.1.3 Os ditongos orais ou nasais estão representados nas formas atuais.

coraçom : coração

2.2 CONSONANTISMO

As consoantes simples, geminadas ou duplas são transcritas conforme os


hábitos ortográficos atuais.

çugidade : sujidade
sage : saje
pollo : pelo

2.3 ABREVIATURAS

As abreviaturas, quer em português quer em latim, são desenvolvidas sem


qualquer indicação, como também o sinal tironiano é substituído pela conjunção
copulativa “e” e “et”, respectivamente.

2.4 LIGAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PALAVRAS

A ligação e a separação de palavras sujeitam-se ao modelo atual.

2.5 ACENTUAÇÃO E USO DA CEDILHA

2.5.1 Introduzem-se os acentos conforme a ortografia vigente.


2.5.2 O emprego da cedilha é regularizado de acordo com a norma atual.

34
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

2.6 MAIÚSCULAS

É adotado o critério vigente de distribuição de letras maiúsculas.

2.7 ACRÉSCIMOS

2.7.1 Os acréscimos textuais nas entrelinhas ou nas margens são inseridos no


texto sem qualquer indicação.
2.7.2 Utilizam-se os parênteses uncinados para indicação dos acréscimos feitos
por conjectura.

<nos>

2.7.3 Inserem-se sem indicação as consoantes para grupos próprios ou impró-


prios quando o hábito atual o exige.

corruta : corrupta

2.8 OUTRAS INTERVENÇÕES

2.8.1 São colocados entre chaves as exclusões conjecturais de elementos consi-


derados interpolados.

{lhe}

2.8.2 Utilizam-se os colchetes duplos para as exclusões homeotelêuticas.

... nom [[diz]] faz ou diz ...

2.8.3 As rasuras não são assinaladas.


2.8.4 Figuram em itálico, no texto, palavras estrangeiras.

donjon

35
SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...

2.8.5 As palavras gramaticais são atualizadas.

ca : porque
dês i : então

2.8.6 As palavras lexicais estão conservadas, constando em nota de rodapé ou a


forma atual ou o significado.
2.8.7 Os substantivos próprios são atualizados.

Salomom : Salomão
David : Davi
Sam Lucas : São Lucas

2.8.8 Para as formas verbais, os sufixos modo-temporais e número-pessoais são


atualizados.

discorreo : discorreu

2.9 PONTUAÇÃO E DIVISÃO DO TEXTO

2.9.1 Sempre que possível, são mantidos os lugares de pontuação do manuscrito,


mas introduzem-se ou suprimem-se sinais de pontuação sempre que isso for
necessário para a compreensão do texto; pela mesma razão, os sinais de
pontuação do manuscrito são adaptados a formas modernas.
2.9.2 É mantida a divisão do texto (tanto para a primeira quanto para a segun-
da partes) em capítulos numerados, em negrito.
2.9.3 Empregam-se os colchetes retos para indicação da mudança de fólio e de
face (recto e verso).

[1r]

2.9.4 Na “Tábua dos Capítulos”, como os fólios não são numerados no manuscri-
to, empregam-se os colchetes retos para indicação da mudança de fólio e de
face (recto e verso) com a numeração em algarismos romanos.

[IVr]

36
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

2.9.5 As mudanças de linhas não são apontadas.

2.10 CITAÇÕES

O Texto apresenta muitas citações bíblicas, de Padres da Igreja, provérbios,


etc., algumas inclusive em latim. Para facilitar a leitura, sempre que possível, as
citações figuram entre aspas.

2.11 NOTAS

2.11.1 Figura em notas de rodapé a significação contextual de palavras que po-


dem gerar dúvidas e/ou apresentam dificuldade de compreensão. Em al-
guns casos, apenas consta a forma atual, para as palavras lexicais.

teme = respeita, reverencia


temeu = teve medo
guarnido = guarnecido
consirar = considerar

2.11.2 As notas referentes à Bíblia são indicações da fonte, seguidas ou não da


citação latina em itálico. Para os evangelistas coloca-se a atribuição da
autoria, seguida da indicação do capítulo e versículo. Para as Epístolas e o
Antigo Testamento são apontados em latim os livros, seguidos da infor-
mação do capítulo e do versículo.

JOÃO, c. 23, v. 20
JOÃO, Apocalypsis, c. 1, v. 5
PAULO, Epistula ad romanos, c. 4, v. 25
Liber Isaiae, c. 53, v. 2-3

2.11.3 As notas referentes aos Padres da Igreja, provérbios, filósofos e outros são
indicações de fontes retiradas da edição de Brisson (1974) e figuram sem
destaque. Conservam-se as abreviaturas.

PL Patrologiae Latinae
PG Patrologia Graecae

37
SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...

Proverbes Proverbes Français Anterieurs au XVe Siècle


Dic. de Spiritualité Dictionnaire de Spiritualité

Santo AGOSTINHO, Tractatus XLVIII, PL 35, 1741C


São BERNARDO, Vitis mystica, PL 184, 641C
São BASÍLIO, Homilia in Ps. 29, PG 29, 318C
MORAWSKI, Proverbes, 2094
OVÍDIO, Artis Amatorie, Bk. II, 1, 107

2.11.4 Os demais casos não foram abreviados.

The Ancrene Riwle, p. 63

2.11.5 As notas referentes a outros manuscritos, fontes possíveis de Frère Robert,


são retiradas da edição de Brisson (1974), e também figuram sem indica-
ção. Utilizam-se abreviaturas.

La Somme La Somme le Roi


Le Tresor Le Tresor de l’Âme

La Somme, f. 117v
Le Tresor, f. 4r

BIBLIOGRAFIA

LANÇA, M. M. (1994) Para uma edição de dois tratados cartusianos do ‘Castelo Perigoso’: ‘Das
Penas do Inferno’ e ‘Das Alegrias do Paraíso’. Dissertação de Mestrado. Lisboa, Universida-
de Nova de Lisboa.
MAGNE, A. (1942) ‘Castelo perigoso’. Revista Filológica, 4, Rio de Janeiro, p. 183-202.
_______. (1942) ‘Castelo perigoso’. Revista Filológica, 5, Rio de Janeiro, p. 81-7.
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_______.[14..?] ‘Castelo Perigoso’. In: CÓDICE ALC. 214. Lisboa, Biblioteca Nacional.

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

SANTANA NETO, J. A. de (1997) Duas leituras do tratado ascético-místico ‘Castelo Perigoso’.


Tese de Doutoramento. São Paulo, Universidade de São Paulo.

ABSTRACT: The present work presents the proposed criterions for double
reading of medieval work Castelo Perigoso. The first is a critical reading and
some critical apparatus in footnote, the second is an updated orthografical reading
and footnote information about the sources and meanings of a few words.

KEYWORDS: Portuguese philology; critical edition; criterions; Castelo Peri-


goso.

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

AS HISTÓRIAS DE TRANCOSO:
UM PROJETO DE TEXTO CRÍTICO

Fernando Ozorio RODRIGUES*

RESUMO: O presente artigo propõe a discussão de alguns problemas de


normas de transcrição de textos antigos. Trata-se do projeto de texto críti-
co da obra Contos e histórias de proveito e exemplo, do escritor português
Gonçalo Fernandes Trancoso, obra impressa na segunda metade do século
XVI.

PALAVRAS-CHAVE: normas de transcrição; texto crítico; campo biblio-


gráfico; histórias de Trancoso.

1 – No texto desta comunicação pretendemos discutir alguns problemas de


normas de transcrição relativos a uma obra impressa no século XVI, os Contos e
histórias de proveito e exemplo, de autoria do escritor português Gonçalo Fernandes
Trancoso.
Este trabalho vem sendo desenvolvido como tese para a obtenção do título
de Doutor, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na área de Crítica Textual
e de História da Língua Portuguesa. O trabalho está dividido em três partes princi-
pais. A primeira parte consiste na determinação do texto crítico da obra de Tran-
coso; na segunda parte será realizada uma descrição de fatos da língua de Trancoso
que possa contribuir com dados para a elaboração de uma gramática da língua
portuguesa do século XVI; na terceira parte o objetivo é fazer um levantamento do
vocabulário de Trancoso, também com o sentido de contribuir para os estudos
lexicográficos da língua.
Neste texto serão discutidos alguns problemas relacionados à determina-
ção do texto crítico, considerando-se o projeto de texto que pretendemos realizar.
Mas antes de entrarmos nessa questão, consideramos interessante que sejam da-
das algumas informações sobre o autor e a obra.
2 – Sobre o autor, Gonçalo Fernandes Trancoso, são escassas as informa-
ções biográficas. O que existe de concreto é o relato de próprio punho que faz no

* Universidade Federal Fluminense. 41


RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.

“Prólogo” dirigido à Rainha de Portugal,1 texto com que abre os seus Contos. Nesse
relato refere-se Trancoso ao fato de que residia em Lisboa, no ano de 1569, quan-
do se abateu sobre a cidade uma epidemia de peste que dizimou boa parte da
população. Neste acidente ele perdeu a esposa, dois filhos e um neto, além de ter
socorrido muitos doentes e ter ajudado a sepultar muitas vítimas fatais. Confessa
ainda o autor que, para não cair em depressão por causa do abatimento que tomou
conta de sua pessoa, resolveu escrever contos de aventuras e histórias de proveito
e exemplo, para desenfadamento ou recreação dos que lessem ou ouvissem suas
histórias.
Assim, pela idade dos filhos e neto falecidos, pode-se inferir que tenha
nascido entre 1515 e 1520. Seu falecimento deve ter-se dado antes de 1585, pois a
edição dos Contos feita nessa data traz os privilégios concedidos não mais a Gon-
çalo Fernandes Trancoso, mas a seu filho Afonso Fernandes Trancoso.
Além desses fatos sabe-se que há uma outra obra editada pelo autor,
intitulada Regra geral para aprender a tirar pela mão as festas mudáveis no ano.
Trata-se de um texto de orientação para os que têm interesse em saber as datas
do calendário litúrgico da Igreja Católica, a partir de um método que consiste
em usar os cinco dedos das mãos.2 Outras referências sobre a vida do escritor
citadas por seus biógrafos são em geral baseadas em hipóteses, sem fundamenta-
ção documental.
Não obstante a escassez de dados biográficos do autor, é importante ressal-
tar que Trancoso viveu numa época áurea da Literatura Portuguesa, tendo sido
contemporâneo de Luís de Camões, Bernardim Ribeiro, João de Barros e vários
outros expoentes. É preciso destacar ainda que o século XVI foi um importante
momento da história da língua portuguesa, momento de transição entre a feição
arcaica e a moderna do idioma.
3 – A impressão mais antiga que se conhece dos Contos e histórias de provei-
to e exemplo data de 1575. Nessa edição foram publicados 31 contos, divididos pelo

1
A Rainha de Portugal, a quem se dirige Trancoso, era D. Catarina d’Áustria, esposa de D. João III e avó e
tutora de D. Sebastião. D. Catarina foi regente do Reino de Portugal entre 1557 – data do falecimento de D.
João III – e 1562, quando passa a regência ao cardeal D. Henrique e recolhe-se a um convento.
2
Por iniciativa de Luciano Pereira da Silva, a Imprensa da Universidade de Coimbra publicou em 1925 um
edição deste texto de Trancoso, sob o título A regra geral das festas mudáveis. Discutindo a autoria e a data de
primeira impressão da Regra Geral, Luciano Pereira da Silva informa que o texto teria sido composto por
Trancoso em data anterior a 1565, mas que sua publicação só se deu em 1570. Informa ainda que desta
primeira edição existem dois exemplares, um no acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa e outro no da Biblio-
teca Pública e Distrital de Évora.

42
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

autor em duas partes: a Primeira Parte contendo 20 contos e a Segunda Parte com
os restante 11 contos. Estes mesmos contos teriam sido reproduzidos em duas
outras edições, datadas, respectivamente, de 1585 e 1589. Dessas duas edições
há referências entre os estudiosos dos textos antigos portugueses, mas não há
informação sobre a existência de exemplares. O conjunto total dos contos que
hoje se conhecem – o total de 41 contos – só aparece publicado em 1595. Nessa
edição aparecem, portanto, os 10 contos relativos à Terceira Parte. Pelos dados
de que pudemos dispor até agora em nossa pesquisa, trata-se da quarta edição
dos Contos, edição póstuma, e nela já encontramos problemas de texto que se
refletirão em todas as edições sucessivas da obra, até o século XVIII, quando o
autor passa a conhecer o ostracismo e a sua obra deixa de despertar interesse.
Da edição de 1595 existe um exemplar no acervo da Biblioteca Pública e Distrital
de Évora.
Na colação que efetuamos entre as edições de 1575 e de 1595, além das
inúmeras lacunas e alterações no texto, pudemos notar a eliminação de dois con-
tos da Primeira Parte e um conto da Segunda. Percebemos ainda que um dos con-
tos da Primeira Parte, que foi eliminado, está em conjunção narrativa com o elimi-
nado da Segunda Parte. Neste há referência a conto da Terceira Parte que consti-
tuiria com os outros dois uma trilogia narrativa. Mas a trilogia não se concretizou,
pois entre os contos da Terceira Parte nenhum dá seqüência à trilogia. Fica, por-
tanto, a conclusão de que a obra completa se constituiria pelo menos de 42 contos.
Sabe-se, porém, que a recuperação de textos suprimidos é quase impossível, tendo
em vista um hábito comum entre os impressores das obras antigas de destruir os
manuscritos dos autores.
A razão da supressão dos contos ainda não temos bem apurada, mas pelo
conteúdo do parecer do Frei Bertolomeu Ferreira, inquisidor responsável pela li-
beração da obra para publicação, na edição de 1595, é de se supor que a ação da
censura eclesiástica produziu esses cortes profundos na obra de Trancoso, muti-
lando-a em sua inteireza de origem.3
Outro fato interessante sobre as primeiras edições dos Contos de Trancoso
é o relacionado à edição de 1575. Até bem pouco tempo a crítica literária de
Portugal sabia da existência desta edição, mas não se conhecia nenhum exemplar.

3
É o seguinte o texto do parecer do Frei Bertolomeu Ferreira, impresso na segunda folha da edição de 1595: “Por
mandado de S.A. vi a Primeira, Segunda, & Terceira, parte dos contos do Trancozo, & emmendado como vai,
(grifo nosso) não tem cousa, contra a fé, & bõs costumes, & contem bõs auisos, & proueitosos nem tem cousa,
porque se não deua de imprimir.”

43
RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.

Foi o Professor Serafim da Silva Neto que divulgou a descoberta de um exemplar,


quando consultava o acervo da Coleção Oliveira Lima, pertencente à Biblioteca
da Universidade Católica de Washington. Descoberto o exemplar, a Biblioteca
Nacional de Lisboa, por iniciativa do saudoso Professor João Palma-Ferreira, pu-
blicou uma edição fac-similada do texto, em 1982. É a última edição da obra de
Trancoso.
4 – Gonçalo Fernandes Trancoso é praticamente um autor desconhecido no
quadro da Literatura Portuguesa. A rigor, são poucos os livros de história literária
que fazem referência aos seus Contos. Da mesma forma, raríssimas são as antologias
de textos literários portugueses em que constem textos de sua autoria. Mas uma
rápida pesquisa sobre a sua obra permite verificar que nem sempre foi assim, mas
que, muito pelo contrário, os Contos e histórias de proveito e exemplo já tiveram ampla
aceitação do público leitor. Para uma época de poucas obras impressas em Portugal,
Trancoso atingiu a invejável marca de aproximadamente 20 reedições até o século
XVIII. Portanto um verdadeiro bestseller.
Pelas informações que se podem colher, as histórias de Trancoso caíram no
gosto popular, ganharam versões na tradição da oralidade, viraram folclore e até
hoje são divulgadas. No Brasil, esta divulgação acontece principalmente nas re-
giões interioranas e mais especificamente na região Nordeste, por força da litera-
tura de cordel.
5 – Do ponto de vista literário, Trancoso é considerado o iniciador do con-
to em Portugal. Segundo os estudiosos da matéria literária, ele não teria criado um
estilo próprio de fazer literatura, mas teria transportado para a Literatura Portu-
guesa um modelo criado pelos contistas italianos renascentistas, principalmente
Boccaccio. Foi, portanto, o primeiro que, em Portugal, adotou o gênero e produziu
histórias de acordo com o gosto da época. É intensa a polêmica entre os estudiosos
sobre ter sido Trancoso um escritor de modelos originais ou um mero copiador de
modelos já praticados por italianos e espanhóis. A leitura dos argumentos apre-
sentados pelas correntes antagônicas é rica e interessante, mas foge aos objetivos
da nossa pesquisa e, conseqüentemente, deste texto.4
Seja como for, não há dúvida de que Trancoso teve amplo público leitor. E
um rápido exame do conteúdo de suas histórias, considerando-se o seu projeto
discursivo, permite ao pesquisador entender a razão de sua popularidade. Os con-

4
Para uma leitura a respeito deste assunto, consulte-se Manuel Ferro, Aspectos da recepção do Decameron nos
contos e histórias de Trancoso, estratto di “Estudos italianos em Portugal”, números 51/52/53, 1988/89/90.

44
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

tos desenvolvem temas em que aparecem personagens representativos dos mais


variados tipos sociais: reis, nobres, fidalgos, cavaleiros e damas das cortes, religio-
sos dos mais variados graus hierárquicos, comerciantes, sábios das universidades,
homens e mulheres do povo, e até bandidos e salteadores. Tais personagens são
inseridos em tramas que permitem ao narrador concluir o relato ou com um pre-
ceito ético-religioso; ou com um dito popular, cunhando uma linha de conduta
moral; ou ainda com um valor moral de acordo com os princípios e valores de sua
época. Quer dizer, sempre afinado com o seu projeto de escrever contos e histórias
de proveito e exemplo. Ora, os temas assim desenvolvidos, comprometidos com
os valores éticos, religiosos e morais, tinham ampla aceitação da Igreja, chegan-
do a funcionar como textos educativos. Há informações dando conta de que os
Contos de Trancoso chegaram a ser adotados como textos para a catequese das
crianças.
Além disso, é preciso destacar que Trancoso foi um excelente contador de
histórias. Seus textos talvez não possam ser considerados como grandes modelos
literários, principalmente se comparados aos modelos clássicos produzidos em sua
época. Mas a sua técnica narrativa é muito interessante e criativa, pois lhe permite
estar no texto, dirigir-se freqüentemente ao leitor, produzir várias digressões a res-
peito das condutas humanas e fazer juízos de valor sobre os procedimentos dos
personagens. Em suma, faz-se passar por um narrador presente no texto, junto ao
leitor, dinamizando o relato, tornando-o vibrante e, ao mesmo tempo, argumenta-
tivo e emocional.
No depoimento do Professor Palma-Ferreira, se alguma limitação existe em
Trancoso, quanto a seu projeto de fazer literatura, esta consiste no fato de ter
ficado o nosso contista no nível de explorar as oposições comportamentais huma-
nas numa linha maniqueísta, entre o bem e o mal, de acordo com a feição religiosa
própria da moralidade da época pós-tridentina. Realmente, faltou ao contista luso
a capacidade de explorar as contradições do espírito humano, o que lhe permitiria
trabalhar no nível da ironia e do desmascaramento dos vícios e hipocrisias, como
fez, por exemplo, o grande Boccaccio.
6 – Feitos esses esclarecimentos sobre a vida e a obra de Trancoso, passe-
mos à discussão dos problemas de normas de transcrição do texto. Neste sentido a
primeira questão a ser considerada é a que trata do modelo de edição que se pre-
tende produzir. A definição deste modelo de edição será fundamental para a pro-
posição das normas de transcrição. No momento, a orientação que nos parece
mais pertinente é a que foi dada pelo Professor Ivo de Castro em palestra que
proferiu no Colóquio de Crítica Textual Portuguesa, realizado em Paris de 20 a 24

45
RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.

de outubro de 1981.5 Ao tratar dos modelos de edições de textos portugueses an-


tigos, ou, mais especificamente, ao considerar o anseio corrente entre os filólogos
lusos de se criar um modelo geral de edição desses textos, Ivo de Castro propõe
que a questão seja considerada do ponto de vista da estratégia da transcrição, a
partir de um plano geral de edição.
Localizando os problemas de transcrição entre duas vertentes mais comuns,
os partidários da conservação dos textos antigos e os defensores da modernização e
atualização desses textos, demonstra o eminente filólogo as virtudes e os defeitos das
edições produzidas a partir de um e outro enfoque. Passa, então, a considerar que
uma atitude mais conservadora ou tendente à modernização por parte do editor vai
decorrer da estratégia que adote dentro do plano geral de edição. E para chegar
conscientemente a um plano geral de edição, recomenda o Professor que o editor
faça um rigoroso estudo do campo bibliográfico em que o texto está inserido, ou seja,
deve o editor saber quais as características editorias específicas do texto; deve ter
identificado o público leitor a que se destina o texto; deve ter inventariadas as edi-
ções existentes com suas respectivas chancelas.
Analisando-se o texto de Trancoso, podem ser verificados os seguintes da-
dos. Trata-se de um texto impresso na segunda metade do século XVI. A língua de
Trancoso, se possui traços de feição arcaizante, está predominantemente veicula-
da com os traços do português moderno. As características de impressão, quanto
ao sistema alfabético empregado, guardam os hábitos criados e desenvolvidos pe-
los impressores do século XVI, hábitos muitas vezes em discordância com as normas
traçadas pelos gramáticos e ortógrafos da época, mas que estavam em consonância
com as necessidades e peculiaridades do texto impresso.6 Neste sentido, a nosso ver,
estão plenamente justificadas atitudes de transcrição modernizadoras do texto, que
expurguem hábitos ortográficos sem implicações fonológicas ou ortoépicas e dêem
ao texto uma feição adequada à leitura por um leitor contemporâneo.

5
CASTRO, Ivo de e RAMOS, Maria Ana. (1986) Estratégia e táctica de transcrição. In Actes du Colloque Critique
Textualle Portugaise. Paris, Fondation Calouste Gulbenkian / Centre Culturel Portugais, p. 99-122.
6
A filóloga Maria Leonor Buescu, da Universidade de Lisboa, em palestra proferida no mesmo Colóquio acima
referido, afirma o seguinte: “O impressor é, portanto, aquele que detém a técnica e, com ela, o poder de ditar
a lei ortográfica. E a ortografia submete-se, de algum modo, a uma tecnocracia dominadora e imparável. À
anarquia ortográfica do escrivão, sujeito à sua imaginação e até a projectos e iniciativas individuais por vezes
caprichosas e discordantes ou mesmo dependentes da fantasia ornamental e simbólica do espírito medieval,
sucede a supremacia da vaga tipográfica avassaladora e tão capaz de recusar propostas como de impor costu-
mes. Sempre, porém, no sentido duma regularização.” (Problemas de transcrição dos textos gramaticais do
século XVI, in Actes du Colloque Critique Textuelle Portugaise. Paris, Fondation Calouste Gulbenkian / Centre
Culturel Portugais, 1986, p. 199-200).

46
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Analisando-se as edições recentes colocadas à disposição do público leitor,


verifica-se que o texto de Trancoso teve duas edições, ambas de iniciativa do cita-
do Prof. Palma-Ferreira. A primeira delas, publicada em 1974, é uma edição in-
tegral do texto, tendo sido realizada com base na edição de 1624, a partir de um
exemplar existente na Biblioteca Nacional de Lisboa. O editor modernizou o texto
do ponto de vista ortográfico, adotando o sistema ortográfico vigente em Portugal,
e deu-lhe uma feição crítica, na medida em que o redimensionou em parágrafos,
marcou o discurso direto e o indireto e o pontuou de acordo com a leitura que fez
do texto. Tem sido este o texto de Trancoso usado por muitos lingüistas e, princi-
palmente, por estudiosos da literatura, folcloristas e etnógrafos. Além, é claro, de
todo leitor interessado em obras desse gênero. Com alguma dose de sorte, ou em
forma de encomenda, é possível que ainda sejam encontrados exemplares desta
edição nas livrarias do ramo.
A outra edição é a que nos referimos acima. Trata-se do fac-símile do exem-
plar da edição de 1575, pertencente à Coleção Oliveira Lima, da Universidade
Católica de Washington. O fac-símile foi publicado em 1982, pela Biblioteca Na-
cional de Lisboa, e dele se fizeram mil exemplares. Desta edição constam apenas
os 31 contos da Primeira e Segunda Partes da obra.
Ora, tomando-se as duas edições recentes, observa-se que o campo bibliográ-
fico da obra de Trancoso apresenta lacunas que necessitam de ser preenchidas para
que os Contos tenham uma edição que satisfaça ao universo possível de leitores.
Primeiro porque a edição de 1974, ainda que reproduzindo os contos das três partes
da obra, estava viciada em seu texto-base, a edição de 1624. Como nos referimos
anteriormente, já na quarta edição, em 1595, foram suprimidos três contos, 2 da
Primeira Parte e 1 da Segunda, além de inúmeras outras alterações de texto. Por
outro lado, a leitura crítica feita pelo Prof. Palma-Ferreira, embora tenha encami-
nhado, a nosso ver, de maneira bastante adequada vários problemas de entendimen-
to do texto de Trancoso, apresenta inúmeras situações de desvirtuamento do sentido
original do texto, por omissão de termos, por substituição de outros, por inadequa-
ção de pontuação e, conseqüentemente, de leitura.7

7
Um pequeno exemplo para comprovar a nossa afirmação pode ser encontrado logo nas primeiras linhas do
Conto I, da Primeira Parte. Nas edições de 1575 e 1595 o texto é: “Que diz q( todos aquelles que rogão aos
Sanctos que roguem por elles, tem necessidade de fazer de sua parte por conformarse com o que querem que os
Sanctos lhe alcancem”. A versão dada pelo Prof. Palma-Ferreira é: “Que diz que todos aqueles que roguem
(grifo nosso) aos Santos, que roguem por eles. Têm necessidade de fazer de sua parte por conformar-se com o
que querem que os Santos lhe[s] alcancem”.

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RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.

7 – Partimos, assim, do princípio de que a nossa edição tem de prever, em


seu plano geral, o preenchimento dessas lacunas. Para isso, a estratégia das normas
de transcrição terá de ser definida de forma a atender aos traços característicos do
texto – texto impresso na segunda metade do século XVI – e, ao mesmo tempo,
atender às necessidades de um público leitor que ainda não conhece o texto in-
tegral dos Contos. Temos, em síntese, de preencher um campo bibliográfico que
permita a lingüistas, estudiosos da literatura, lexicógrafos, etnógrafos, folcloristas
e público leitor em geral usar o texto para suas análises ou para sua fruição, poden-
do tirar dele os dados necessários para as suas conclusões, sabendo estar traba-
lhando com uma margem bastante ampla de segurança.
8 – Assim, trabalhando com os elementos que temos à nossa disposição,8 a
primeira norma que determinamos foi adotar o texto da edição de 1575, como
texto-base para a transcrição dos 31 contos relativos à Primeira e Segunda Partes
da obra, e o texto da edição de 1595, como texto-base para a transcrição dos 10
contos da Terceira Parte.
Em segundo lugar, como o projeto de pesquisa prevê a edição de um texto
crítico, a transcrição do texto será feita com o aparato necessário que indique
todas as iniciativas do editor. Ou seja, a paragrafação do texto, a indicação do
discurso direto e indireto, a adoção das normas de pontuação vigente, a hifeni-
zação de pronomes enclíticos e mesoclíticos, o desenvolvimento das abreviatu-
ras, a separação de formas antes escritas juntas, a fusão de formas antes escritas
separadas, etc.
Na transcrição das formas, do ponto de vista ortográfico, adotaremos o
sistema ortográfico em vigor no Brasil, relativamente ao emprego das letras e ao
emprego dos acentos gráficos. Assim, serão eliminadas letras dobradas sem valor
fonológico; será normalizado o emprego da letra h e das letras que representam
as consoantes constritivas alveolares e palatais; será feita a adequada substitui-
ção da letra u, com valor consonantal, pela letra v e da letra v, com função
vocálica, pela letra u; da mesma forma será substituída a letra i, com valor
consonantal, pela letra j e a letra j, com função vocálica, pela letra i; também se
substituirá sempre a letra y pela letra i; igualmente, todas as vezes que aparecer
o símbolo & será substituído pela letra vogal e, hoje usada para representar a

8
Temos dois fac-símiles da edição de 1575. Um deles é cópia obtida junto à Biblioteca da Universidade Católica
de Washington. O outro é um exemplar da edição realizada pela Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1982. Da
edição de 1595 temos um fac-símile, produto de uma cópia de microfilme obtido junto à Biblioteca Pública e
Distrital de Évora.

48
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

conjunção aditiva; e serão acentuados os vocábulos de acordo com as normas


em vigor.
Procuraremos ainda normalizar a grafia das vogais e encontos vocálicos
nasais, de acordo com as normas em vigor. Quanto às vogais não acentuadas,
principalmente as altas e médias, a iniciativa de transcrição também será no
sentido de registrar os vocábulos de acordo com as formas adotadas no registro
atual. Esta iniciativa estará, entretanto, condicionada a aspectos fonéticos, fo-
nológicos, ortoépicos e prosódicos relativos à língua do século XVI que diferen-
ciarem dos aspectos da língua atual. No texto de Trancoso observa-se um certo
polimorfismo gráfico dessas vogais, o que parece caracterizar mera diferenciação
ortográfica, sem implicação no âmbito da sonoridade. Mas verificam-se também
registros regulares de formas com determinada vogal que não correspondem ao
registro atual. Este fato justifica a atitude cautelosa na transcrição dessas for-
mas.
O projeto de texto crítico, como se disse anteriormente, tem objetivos
relativamente amplos, pois pretende preencher inúmeras lacunas do campo bibli-
ográfico da obra de Trancoso. Uma dessas lacunas é a que se relaciona ao leitor
lingüista, interessado em todos os elementos que possam servir à sua pesquisa,
seja no âmbito da fonologia, da morfologia, da sintaxe, do discurso ou do léxico.
Neste sentido, em que pesem as iniciativas de transcrição que visem à moderni-
zação do texto, haverá por parte do editor a preocupação permanente de manu-
tenção das formas no registro que delas fez o autor, como documento da língua
do século XVI. Será ainda tomada a iniciativa, no aparato crítico preparatório
do texto, de se registrar toda e qualquer alteração efetuada pelo editor nas for-
mas dos textos-base, para que não se perca a memória dessas formas. Por fim,
serão registradas também as alterações realizadas nas formas em que se verifi-
quem falhas de impressão.
9 – Para ilustração dos procedimentos de transcrição textual acima refe-
ridos, apresentaremos abaixo, em transcrição diplomática, o Conto XX da Pri-
meira Parte dos Contos e histórias de proveito e exemplo, de Gonçalo Fernandes
Trancoso.

Que he hu(a carta do Autor a hu(a senhora, com que acaba a primeira
parte destas historias & contos de proueito & exemplo. E logo começa a
segunda, em que estam outras historias notaueis, graciosas, & de muito gos-
to, como se vera nellas.

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RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.

Senhora

Agora me deram hu( recado de parte de vossa merce, em que me pedia


lhe mandasse hum, A b c, feito de minha mão, que queria aprender a
ler, porq( se acha triste quando ve senhoras da sua calidade, que na
Igreja rezam por liuros, & ella nam: verdadeiramente folgo, que deseja
saber ler para rezar, que he bom. Porem ja que o nam apre(deu na meni-
nice em casa do senhor seu pay com seus yrmãos, deue agora conten-
tar-se com as cõtas, pois nam sabe ler, & por ellas rezando muitas vezes
a saudaçam Angelica, que o Anjo disse a Virgem nossa Senhora, & a
oraçam do Pater noster, que Christo nosso Senhor ensinou a seus
discipulos, he tam bom, & basta tanto, que nam ha mais que desejar,
nem melhores orações que rezar: & certo estas tem ventagem a todas,
vossa merce deue vsar dellas, & deixar o desejo de saber ler, pois ja he
casada, & passa de vinte annos de idade. Porem se este conselho nam
lhe parece bom, ou ainda que o he, se a nam satisfaz, por obedecer a
seu rogo, fazendo o que me pede lhe mando aqui com esta hu( A b c,
que vossa merce, apre(da de cor, & sabido, leuemente com ajuda de
Deos aprendera o mais que lhe for necessario. O qual he q( o A, quer
dizer, que seja Amiga de sua casa. E o B, Bem quista da vezinhãça. E o
C, Charidosa com os pobres. E o D, Deuota da Virgem. E o E, Entendi-
da em seu officio. E o F, Firme na Fee. E o G, Guardosa de sua faze(da. E
o H, Humilde a seu marido. E o I, Imiga de mixiricos. E o L, Leal. E o
M, Mãsa. E o N, Nobre. E O, Onesta. E o P, Prudente. E o Q, Quieta. E
o R, Regrada. E o S, Sesuda. E o T, Trabalhadeira. E o V, Virtuosa. E o
X, Xpaã. E o Z, Zelosa da honra. E quando teuer tudo isto anexo a si, q(
lhe fique proprio, crea que sabe mais letras que todos os filosofos. E
porque confio em vossa merce que o esprime(tara & achara certo, nam
me alargo: mas rogo a nosso Senhor a tenha de sua mão, & a my me dé
graça com que o sirva. Em Lisboa, a tres de Abril de 1570. annos.

Graças a Deos.

10 – Para atender ao plano geral de edição do texto, realizaremos, em rela-


ção ao fragmento acima, os seguintes procedimentos:
10.1 – A paragrafação do texto e o emprego dos sinais de pontuação ade-
quados às normas recomendadas na língua portuguesa contemporânea;
10.2 – A alteração gráfica das formas, de acordo com as normas atuais em
vigor, especificamente no que diz respeito às letras u e v, i e y, & e e, à letra

50
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

h, à simplificação das letras dobradas (letras consoantes e letras vogais), à


normalização gráfica das vogais e ditongos nasais, à normalização de vogais
altas e médias não acentuadas e à normalização de letras maiúsculas e mi-
núsculas;
10.3 – O emprego dos acentos gráficos de acordo com as normas em vigor;
10.4 – A junção de formas antes escritas separadas;
10.5 – A escrita por extenso das formas abreviadas;
10.6 – A hifenização de pronomes enclíticos;
10.7 – O aportuguesamento de expressões em latim;
10.8 – O acréscimo de forma omitida no original por falha de impressão.
11 – Para concluir, apresentamos o fragmento acima, transcrito de acordo
com o projeto de texto crítico que pretendemos produzir:
1 Que é u(a carta do autor a u(a senhora com que acaba a Primeira Parte destas histó-
rias e contos de proveito e exemplo. E logo começa a Segunda em que estão outras
histórias notáveis, graciosas e de muito gosto, como se verá nelas.
2 Senhora.
3 Agora me deram um recado de parte de Vossa Mercê em que me pedia lhe
mandasse um ABC feito de minha mão, que queria aprender a ler, porque se
acha triste quando vê senhoras de sua calidade que na igreja rezam por livros e
ela não.
4 Verdadeiramente folgo que deseja saber ler para rezar, que é bom. Porém, já que
o não aprendeu na meninice em casa do senhor seu pai com seus irmãos, deve
agora contentar-se com as contas, pois não sabe ler e por elas rezando muitas
vezes a saudação angélica, que o Anjo disse à Virgem Nossa Senhora, e a oração
do Padre-Nosso, que o Cristo Nosso Senhor ensinou a seus discípulos, é tão bom
e basta tanto que não há mais que desejar nem melhores orações que rezar.
5 E certo estas têm ventagem a todas, Vossa Mercê deve usar delas e deixar o
desejo de saber ler, pois já é casada e passa de vinte anos de idade.
6 Porém, se este conselho não lhe parece bom, ou, ainda que o é, se a não satis-
faz, por obedecer a seu rogo, fazendo o que me pede, lhe mando aqui com esta
um ABC, que Vossa Mercê aprenda de cor. E, sabido, levemente com ajuda de
Deus, aprenderá o mais que lhe for necessário.
7 O qual é que o A quer dizer Amiga de sua casa; e o B, Benquista de sua vizi-
nhança; e o C, Caridosa com os pobres; e o D, Devota da Virgem; e o E, Enten-
dida em seu ofício; e o F, Firme na fé; e o G, Guardosa de sua fazenda; e o H,
Humilde a seu marido; e o I, Imiga de mexericos; e o L, Leal; e o M, Mansa; e

51
RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.

o N, Nobre; e o O Onesta 9; e o P, Prudente; e o Q, Quieta; e o R, Regrada; e o


S, Sisuda; e o T, Trabalhadeira; e o V, Virtuosa; e o X, Xpã 10; e o Z, Zelosa da
honra.
8 E quando tiver tudo isto anexo a si que lhe fique próprio, crea que sabe mais
letras que todos os filósofos.
9 E porque confio em Vossa Mercê que o exprimentará e achará certo, não me
alargo, mas rogo a Nosso Senhor a tenha de Sua mão, e a mi me dê graça com
que O sirva.
10 Em Lisboa, a três de abril de 1570 anos.
11 Graças a Deus.
12 – Por fim é interessante destacar a estratégia discursiva adotada pelo
autor para produzir este texto de caráter comportamental, texto dirigido às mu-
lheres casadas de sua época. Numa atitude ainda meio confusa quanto à figura do
autor e do narrador, desconhecendo técnicas que seriam mais tarde desenvolvidas
pelos grandes prosadores, a autor cria a figura de uma senhora a pedir ao narrador
um ABC para aprender a ler. De acordo com os padrões comportamentais da épo-
ca, o pedido talvez fosse um pouco insólito, pois quem pedia era uma mulher casa-
da e com mais vinte anos de idade, num contexto social extremamente restritivo
quanto ao espaço da mulher. Neste momento é que se estabelece a posição do ser
do discurso com competência para aconselhar procedimentos comportamentais,
pelo expediente que consistiu em substituir o ABC de alfabetização por um ABC
de moralidades. Seguem-se, então, as regras de conduta das mulheres casadas,
regras que assimiladas e postas em prática farão da senhora mais sábia que os filó-
sofos.
Pode-se concluir, portanto, que, além de um excelente material de labora-
tório lingüístico e literário, os Contos e histórias de proveito e exemplo, de Gonçalo
Fernandes Trancoso, contêm extensos filões para a pesquisa etnográfica relativa à
sociedade portuguesa no século XVI.

9
Neste preceito de letra O, inserimos o artigo definido antecedendo o nome da letra, artigo que não aparece no
texto-base, a nosso ver, por falha de impressão, pois ocorre antecedendo todas as outras letras. Obviamente,
mantivemos a grafia onesta, sem h, para não descaracterizar o ABC de moralidades.
10
Em xpã, lê-se cristã. Foi curiosa a maneira como o autor adjetivou o termo de origem grega, usado na tradição
da Igreja para designar o Cristo: XPTO.

52
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

BIBLIOGRAFIA

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Colloque de Critique Textualle Portugaise. Paris, Fondation Calouste Gulbenkian / Centre
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ma-Ferreira. Lisboa, Biblioteca Nacional.
________. (1974) Idem. Texto integral conforme a edição de 1624. Prefácio, leitura de texto,
glossário e notas por João Palma-Ferreira. Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda.
________. (1595) Idem. Lisboa, Casa de Simão Lopez.
________. (1923) Trancoso: Histórias de proveito e exemplo. 2. ed. In Antologia Portuguesa,
organizada por Agostinho de Campos. Paris-Lisboa, Livraria Aillaud e Bertrand.

ABSTRACT: This article proposes the discussion about problems concerning


the transcription rules of ancient texts. Actually, it is a critical edition project
about the book Contos e histórias de proveito e exemplo, by the portuguese
writer Gonçalo Fernandes Trancoso. The original text was edited in the second
half of the XVIth century.

KEYWORDS: transcription rules critic edition; bibliography; historys by Tran-


coso.

53
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

ASPECTOS DA VARIAÇÃO GRÁFICA NO PORTUGUÊS


ARCAICO: AS VARIANTES CONSONANTAIS NO LIVRO
DE JOSÉ DE ARIMATÉIA (COD. ANTT 643)

Sílvio de Almeida TOLEDO NETO*

RESUMO: Com o propósito de ampliar estudo mais meticuloso sobre a


grafia do português arcaico, desenvolvemos dissertação de mestrado
intitulada Variação grafemática consonantal no Livro de José de Arimatéia
(Cod ANTT 643), a fim de examinar a variação gráfica de algumas conso-
antes, com base em critérios fornecidos por compêndios de Gramática His-
tórica, aplicados a resultados quantitativos, cuja freqüência pode ser ava-
liada.

PALAVRAS-CHAVE: filologia; lingüística histórica; grafemática; fono-


logia.

Quem quer que venha a ler texto executado no período arcaico da Língua
Portuguesa (i.e. do séc. XIII a meados do séc. XVI) depara-se com um emaranhado
caótico de grafias onde, muita vez, a mesma palavra aparece freqüentemente no
mesmo texto sob formas diferentes (Huber, 1986, p. 43). Aliás, esta primeira im-
pressão fica mais forte na medida em que parece haver um consenso entre os
estudiosos, de que a escrita da Língua Portuguesa foi caótica desde o seu surgimen-
to até meados do século XX.1
Apesar de ser este o quadro que se delineia de forma geral, são os próprios
compêndios de Gramática Histórica da Língua Portuguesa que, em uma análise
mais detida de casos específicos, fornecem critérios para a distinção entre os casos
de variação gráfica. Sob este enfoque, são diversas as causas apontadas para tentar
explicar a variação gráfica do português arcaico. De modo geral, os fundamentos
determinantes da variação podem ser divididos pelo menos em duas categorias

* Universidade de São Paulo.


1
V. Cagliari (1996, p. 2): “Existe absoluto consenso entre os estudiosos, segundo o qual a ortografia da Língua
Portuguesa foi um caos, até o estabelecimento das normas que passaram a vigorar após as reformas ocorridas
no século XX e que começaram a existir, de fato, somente após a Segunda Guerra Mundial.” 55
TOLEDO NETO, Sílvio de Almeida. Aspectos da variação gráfica no português arcaico...

bastante amplas: a primeira comporta as grafias variantes de uso distinto e a se-


gunda comporta as grafias variantes de uso equivalente.
Na primeira categoria, grafias variantes podem hipoteticamente represen-
tar realizações fônicas distintas de um mesmo vocábulo, porque funcionariam como
indicadores das variantes contextualmente condicionadas de um determinado fo-
nema. Para admitir como plausível esta hipótese, não se pode esquecer de que,
pelo sistema de escrita, não se quer efetuar a transcrição fonética das variações de
pronúncia da língua, antes, como afirma Cagliari (1996, p. 9, n. 9), o objetivo da
ortografia é neutralizar a variação lingüística, quando muito podendo espelhar
mais de perto a fala de um de seus dialetos do que de outros. Portanto, hipóteses
que se levantam quanto à relação entre variações gráficas e pronúncia só podem
ser muito gerais.
Além da distinção com base fonética, existe a distinção com base etimoló-
gica ou pseudo-etimológica. Nestes casos, a grafia que tenta restaurar a forma
latina ou grega do vocábulo não visa à fidelidade de pronúncia, mas evidencia a
erudição do escriba, atento ao modelo latino e às tradições gráficas decorrentes
deste sistema.
Na segunda categoria, enquadram-se grafias variantes que são equivalen-
tes para indicar determinado fonema. Esta equivalência pode decorrer de tradi-
ções gráficas do escriba, quando há diferentes grafias para um mesmo fonema ou,
em certos casos, da perda de distinção fonológica. No primeiro caso, a escolha de
uma ou de outra grafia é estilística e, portanto, não resulta de qualquer distinção
entre variantes gráficas. No segundo caso, a confusão ocorre entre grafias que,
inicialmente, representavam fonemas diversos, os quais, no processo da evolução
da língua, perdem a distinção.
Portanto, a concepção do sistema de escrita do português arcaico como
ausente de critérios fundamentar-se-ia em resultados que abrangem um espectro
muito amplo e indeterminado de corpora, em que ainda não é possível encontrar
coerência, senão quando se levam a cabo estudos mais minuciosos de textos em
particular. Como esclarece Maria Ana Ramos:

“a impressão da grafia medieval desordenada procede de imagens genéricas


de diversos textos, de diferentes lugares. Actualmente, com análises mais
meticulosas de cada texto tendo presente a natureza, a localização, o am-
biente e as características da produção, é possível obter descrições de fre-
qüência e de distribuição mais seguras que, pouco a pouco, apagam a falta
de rigor da grafia medieval e anunciam comportamentos que obedecem a
modelos padronizados.” (Ramos, 1993, p. 238)

56
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Concebendo a importância de ampliar o estudo mais meticuloso da grafia


do português arcaico, visto que os estudos já realizados2 solidificam inegavel-
mente as bases de reflexão referentes não só a problemas específicos dos corpora,
mas também ao esclarecimento de questões da própria Lingüística Histórica,
desenvolvemos a dissertação de mestrado intitulada Variação grafemática conso-
nantal no Livro de José de Arimatéia (Cod ANTT 643), com o propósito de
explorar o caso específico de variação gráfica das consoantes, com base nos cri-
térios acima explicitados, fornecidos pelos compêndios de Gramática Histórica.
Mas, em vez de serem aplicados a quadros gerais e, portanto, exemplificativos,
os critérios mencionados aplicam-se a resultados quantitativos, cuja freqüência
pode ser avaliada.
Escolheu-se o Livro de José de Arimatéia (= LJA) como texto-base de estu-
do por ser este um dos raros casos de texto literário do português arcaico cuja
datação e localização encontram-se extremamente bem definidas, o que torna os
resultados da pesquisa importantes não só para o estudo da grafia e suas implica-
ções na Fonologia, Morfologia e Sintaxe, como para a própria Sociolingüística do
português arcaico.
Especificamente quanto ao texto-base, o estudo do polimorfismo gráfico
contribui muita vez para a datação do léxico do códice, dado que permite iden-
tificação da vitalidade de grafias arcaizantes, por um lado, e de grafias mais mo-
dernas, por outro e também contribui para a Crítica Textual, na medida em que
fornece parâmetros bastante seguros para a normalização de grafias variantes no
texto.
Damos agora uma breve notícia sobre as principais características do texto-
base. O LJA é o MS. 643 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT 643),
Lisboa, elaborado entre 1543 e início de 1544, provavelmente em Lisboa, a mando
de Manuel Álvares, corregedor da ilha de São Miguel, e oferecido ao rei D. João III
de Portugal. Cópia tardia (Castro, 1987, p. 1123) de um exemplar em pergaminho e
iluminado, encontrou-o Manuel Álvares na freguesia de Riba d’Âncora, em poder
de huã velha De muy antiga idade (f.o 1v), durante o período em que o pai, o licenciado
Sebastião Álvares, exercia o cargo de corregedor na região de Entre Douro e Minho,
entre 1527 e 1536 (Castro, 1976/1979, p. 173-83).

2
V. Rosa Virgínia Mattos e Silva, A representação gráfica n’A mais antiga versão portuguesa dos Diálogos, in
Estruturas trecentistas (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985), p. 65-101; e Ramón Lorenzo, A
lingua da Crónica troiana e as diferenças entre copistas, in Crónica troiana (A Corunha, Fundación Pedro
Barrié de la Maza, conde de Fenoza, 1985), p. 81-167.

57
TOLEDO NETO, Sílvio de Almeida. Aspectos da variação gráfica no português arcaico...

A cópia quinhentista foi organizada por Manuel Álvares, que redigiu apro-
ximadamente uma décima parte do texto, tendo participado da redação mais nove
punhos diferentes, que trabalharam simultaneamente, com variado grau de in-
tervenção. Quanto ao problema da datação do códice quinhentista, este é resol-
vido com muita exatidão por Ivo Castro (1976/1979, p. 173-83), fundado em
informações de cunho codicológico, paleográfico e histórico, uma vez que a úni-
ca data constante da cópia inscreve-se no cólofon, reprodução cuidadosa do
manuscrito de Riba d’Âncora, que declara ter este sido feito a mando de Joam
Sanchez, mestre-escola de Astorga, no início do século XIV. O texto deste exem-
plar perdido descende da tradução peninsular de um manuscrito francês da Es-
toire del Saint Graal,3 primeira parte de um dos grandes ciclos de romances fran-
ceses em prosa referentes à Matéria da Bretanha:4 a Post-Vulgata.5 O LJA relata o
transporte do Graal desde Jerusalém até Inglaterra por José de Arimatéia e seu
filho Josefes.
Antes de estar no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o ms. 643 perten-
ceu à Cartuxa de Évora, proveniente da biblioteca do arcebispo D. Teotônio de
Bragança (Castro, 1993, p. 409). Considerou-se o LJA como perdido até 1902,
quando foi descoberto por Cornu e descrito por Otto Klob,6 embora anteriormen-
te tenha sido consultado por Varnhagen, mencionado por Reinhardstoettner,

3
Segundo Bogdanow (1966, p. 156-8), a Estoire del Saint Graal da Post-Vulgata não difere substancialmente da
Estoire, que compõe a primeira parte do ciclo da Vulgata. Desta, existem 59 manuscritos divididos em um grupo
de redação mais curta e outro de redação mais longa. O LJA alterna ou combina as duas redações. O único
manuscrito francês existente que faz o mesmo é Rennes, Bibl. Mun., 2427, que é considerado o texto mais
próximo daquele que Joam Vivas teria traduzido (Castro, 1993, p. 411).
4
Matéria de Bretanha, é, segundo Norris Lacy (1991, p. 315), a denominação tradicional dada à matéria literária
derivada da grande e da pequena Bretanha, e de presumida ascendência céltica. A denominação é utilizada
primeiramente nos versos de Les Saisnses, do poeta francês Jean Bodel: “Ne sont que trois materes a nul home
entendant: / De France et de Bretagne et de Rome la Grant; / Et de ces trois materes n’i a nule semblant / Li
conte de Bretaigne sont si vain et plaisant / Cil de Rome sont sage et de sens aprendant / Cil de France sont
voir chascun jour apparant.” (v. 6 a 11, ap. Régnier-Bohler 1989, p. II, n. 1). Divide-se a matéria literária digna
de ser cantada em Matéria da França (canções de gesta), de Roma (romances da antigüidade clássica) e da
Bretanha (lais bretões e romances). O assunto principal, mas não exclusivo, da Matéria da Bretanha é Artur.
5
Segundo Bogdanow (1991, p. 364), o ciclo da Post-Vulgata é uma reelaboração da Vulgata, ciclo de romances
arturianos em prosa composto entre 1230 e 1240 por autor anônimo, mas atribuído a Robert de Boron. Desse
ciclo restam somente fragmentos dispersos em francês e traduções. Compunha-se de uma Estoire del Saint
Graal, à qual seguiam um Merlin e uma Suite du Merlin, traduzida para o português, castelhano e inglês. Fechavam
o ciclo a Queste del Saint Graal e a Mort Artu, de que resta a tradução quase integral em português e parcial em
castelhano.
6
Ver Beiträge zur Kenntnis der spanischen und portugiesischen Gral-Litteratur, Z. r. Ph., 26 (1902), p. 168-91.
O códice também é descrito por Pere Bohigas Balaguer em Los textos españoles y gallego-portugueses de la Demanda
del Santo Grial, Madrid, 1925, p. 29-33.

58
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Menéndez y Pelayo e Carolina Michaëlis de Vasconcelos (Carter, 1969, p. 34).


Após publicações fragmentárias,7 o LJA foi publicado integralmente em 1969 por
Henry Hare Carter, em edição paleográfica intitulada The portuguese book of Joseph
of Arimathea, paleographical edition with introduction, linguistic study, notes, plates &
glossary.
Do LJA, escolheu-se uma amostragem constituída por todos os vocábulos
do inventário aberto restringindo-se o estudo aos dez casos mais freqüentes de
variação gráfica consonantal encontrados. O total geral destes casos perfaz apro-
ximadamente 20.296 ocorrências. Quanto à freqüência de ocorrências considera-
da dentro desse total geral, os casos estudados de variação gráfica obedecem à
seguinte ordem, segundo o fonema que representam: lateral dental-alveolar /l/ =
19,1%, fricativa-ápico-alveolar surda /§/ = 18,7%, fricativa labial surda /f/ = 16,2%,
fricativa predorsodental surda /s/ = 12,4%, lateral vibrante-múltipla dental-alve-
olar /r#/ = 9,3%, oclusiva velar sonora /g/ = 7,6%, oclusiva velar surda /k/ = 6,2%,
fricativa ápico-alveolar sonora /½/ = 4,6%, fricativa palatal sonora /Z/ = 3,0% e
oclusiva labial sonora /b/ a par de fricativa labial sonora /v/ e de fricativa bilabial
sonora /B/ = 2,7%.
Para chegar a esta classificação geral, digitou-se integralmente o texto da
edição paleográfica; em seguida, organizaram-se listas em ordem alfabética de to-
dos os vocábulos pertencentes ao inventário aberto; por fim, dispuseram-se os
vocábulos do inventário aberto com mais de uma grafia em 69 tabelas, subdividin-
do as ocorrências segundo a posição em que ocorrem no vocábulo e também o tipo
de variação.
Em cada um dos casos de variação, é possível identificar grafias mais fre-
qüentes, denominadas formas-padrão, e grafias menos freqüentes, denominadas
variantes destas formas-padrão. Entre forma-padrão e variante, estabelecem-se
equivalência e distinção que indicam as tendências gráficas do corpus.
A diferença ou semelhança de freqüência entre a forma-padrão e variante ou
variantes é que fundamenta a formulação de hipóteses sobre os casos de grafias dis-
tintas (do ponto de vista fônico ou etimológico) ou equivalentes (grafismo ou neu-
tralização). Com base nestes critérios, chega-se à conclusão de que, no corpus, exis-

7
Pere Bohigas Balaguer, Los textos españoles y gallego-portugueses de la Demanda del Santo Grial, Madri, 1925, p.
105-7 (f. 1r-2r), p. 113-7 (f. 8v-9r), p. 107-9 (f. 262r-263v), p. 109-10 (f. 304r-305r); Kimberley S. Roberts, An
Anthology of Old Portuguese, Lisboa, s/d: p. 47-9 (f. 57v-58v); José Joaquim Nunes, Uma Amostra do Livro de
Josep Ab Arimatia, Revista Lusitana, XI (1908), p. 229-37 (f. 100v-110r); José Joaquim Nunes, Crestomatia
Arcaica, 7. ed., Lisboa, 1970, p. 74-9 (f. 105r-110r).

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TOLEDO NETO, Sílvio de Almeida. Aspectos da variação gráfica no português arcaico...

tem trinta e um casos de grafismo, dez casos de neutralização, doze casos de distin-
ção com base etimológica e sete casos de distinção com base fonética.
O processo de análise dos resultados fica mais claro quando tomamos como
exemplo os três casos de variação gráfica consonantal mais freqüentes no LJA
segundo o fonema que representam: lateral dental-alveolar /l/, fricativa-ápico-
alveolar surda /§/ e fricativa labial surda /f/.
Um exemplo de caso de grafismo é o das grafias da consoante lateral den-
tal-alveolar em posição inicial absoluta (e.g. ledo ~ lledo). Observa-se que o uso da
grafia <l> nesta posição justifica-se tanto do ponto de vista da realização fônica
como do ponto de vista etimológico, o que pode causar a sua alta freqüência. Com
a predominância justificada de <l>, a grafia <ll> poderia ser considerada um
mero grafismo decorrente apenas do capricho dos copistas. Há, porém, autores
que atribuem provável valor fonológico distinto ao dígrafo <ll> em posição inici-
al absoluta, afirmando que pode talvez indicar pronúncia de um som mais longo
“do que o l moderno inicial”, o que teria possivelmente evitado a queda do l-
inicial quando o vocábulo em que ocorria ligava-se ao anterior, terminado em
vogal, em estreita união sintática (Williams, 1973, § 30, 2, b); outros afirmam que
o uso do dígrafo caracteriza a “energia” do l- inicial (Vasconcelos, 1928, p. 21).
Parece que a primeira hipótese não se sustenta diante do fato de que as consoantes
duplas do latim simplificam-se na passagem para o português, além de, em latim,
não ocorrerem em início de vocábulo, o que não justifica uma base etimológica ou
fonológica para este uso, como já foi referido. A hipótese da intensidade sonora
poderia justificar o uso de <ll> em posição Inicial Absoluta, mas não fica clara
esta opção, visto que o uso de <ll> inicial ocorre em proporção bem menor do
que <l> na mesma posição, o que parece indicar ser ele um grafismo.8
Para a maior parte dos estudiosos, o uso da grafia <ll> nas posições de
travamento silábico e em posição final absoluta deve ter função distintiva do pon-
to de vista fonológico: considerando a realização fonética de /l/ é velar [É] em
ambas essas posições, a função do grafema <ll> parece ser a de enfatizar a distin-
ção a par de outras posições no vocábulo em que a realização fonética de /l/ é
dental [l].9 No corpus, a grafia <ll>, principalmente em posição final absoluta,
ocorre com freqüência elevada o bastante, em relação a <l> na mesma posição,

8
Além disso, Duarte Nunes de Leão (1983, p. 141) recomenda “que nunca dobremos a primeira letra de algu)a
dicção, porque a nenhu)a vogal nem consoante podem proceder duas letras semelhantes. Porque a primeira
não teria que ferir nem letra, a que se ajuntar, o que não pode ser.”
9
Com a hipótese da função distintiva fonética do <ll> em posição de Travamento Silábico e Final Absoluta
concordam Cuesta (1971, p. 369), Coutinho (1974, p. 74), Huber (1986, § 245, 2, a), Vasconcelos (1928, p.

60
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

para indicar que o seu uso não parece ser ocasional. Em posição de travamento
silábico, como o emprego do dígrafo apresenta freqüência baixa em relação a <l>,
impõe-se maior reserva em aceitar que indique [É], apesar de que pode ser usado
distintamente por alguns copistas ou então ser um grafismo.
Com freqüência acentuadamente baixa, representa-se a consoante fricativa
predorsodental surda /s/10 pelo grafema <s> em posição inicial absoluta (e.g. çima
~ cima ~ sima) e medial (e.g. viçosa ~ visosa). Há confusão com a grafia represen-
tante da consoante ápico-alveolar surda/§)/? Pode-se cogitar se a confusão gráfica
indicaria a neutralização entre fonemas apicais e predorsais, que, na época de re-
dação do códice, já não teriam valor distintivo para alguns copistas. Parece que a
confusão já ocorria em 1543 e inícios de 1544, quando foi redigido o códice, dado
que se registra, por volta de 1550, o início da confusão em textos escritos e em
1574, Pero de Magalhães de Gândavo considera como um dos vícios mais freqüen-
tes do português a confusão de pronúncia entre c, s, z (Teyssier, 1990, p. 50). Logo,
o uso da grafia <s> poderia representar intervenção de um traço da confusão de
pronúncia existente no século XVI.
A grafia <ff> em posição Medial pode ser pseudo-etimológica (e.g. confor-
tar ~ conffortar < lat. confo(rta#re) ou etimológica (e.g. offerecer ~ offerecia < *
offeresce(re, incoativo de offerre). Enquanto a maior parte das variantes ocorre em
vocábulos cujo étimo apresenta consoante intervocálica simples, representada,
em latim, por <f> ou <ph>, apenas um caso (oferecer) decorre de consoante
intervocálica longa, representada em latim por <ff>. Daí se conclui que naqueles
casos, o uso de duplo f pode ser mero grafismo ou pode decorrer da analogia com
casos em que há base etimológica. Não só quando há fundamentação etimológica

21), Williams (1973, § 30, 2, c). Por outro lado, Leif Sletsjøe (1954-55), a partir de exame de 530 documentos
incluídos na coleção Portugaliae Monumenta Historica (Diplomata et Chartae) questiona se a grafia <ll>, tanto
em posição Travamento Silábico como Final Absoluta, caracteriza notação do l velarizado antes do século XIV
e conclui que os resultados obtidos são pouco favoráveis a essa hipótese. E o gramático Duarte Nunes de Leão
(1983, p. 141) afirma que “não dobraremos a letra final de algu)a palavra, porque a última não teria vogal, a
que fosse atada. Assim que erram os que escrevem...quall, mill, e outras assim.”
10
Segundo Teyssier (1990, p. 49), o galego-português medieval possuía quatro fonemas sibilantes: /ts/ (ex: cen),
/s/ (ex: sen), /dz/ (ex: cozer) e /z/ (ex: coser). Por volta de 1500, as duas africadas /ts/ e /dz/ perderam o seu
elemento oclusivo inicial, mas a oposição entre os dois pares de fonemas continuava a manter-se, porque o seu
ponto de articulação não era o mesmo. As duas predorsodentais eram pronunciadas com a ponta da língua
virada para baixo, e a parte anterior do seu dorso próxima dos dentes de cima e as duas ápico-alveolares eram
pronunciadas com a ponta da língua próxima dos alvéolos. Por volta de 1550, no entanto, confusões começam
a aparecer nos textos entre cada uma das predorsodentais e a ápico-alveolar que lhe corresponde: encontra-se
ç em vez de -ss-, -ss- em vez de ç, z em vez de -s- e -s- em vez de -z- e, em fins do século XVI o português
comum reduziu a dois os quatro fonemas, e essa redução fez-se em favor das predorsodentais.

61
TOLEDO NETO, Sílvio de Almeida. Aspectos da variação gráfica no português arcaico...

para o uso de dígrafo, mas também quando é usado por analogia pode-se pensar
em hipercorreção, na medida em que o grafema <ff>, apesar de não se distingüir
fonologicamente de <f>, pretende reproduzir a grafia latina, verdadeira ou não,
do vocábulo.11
Com base nos exemplos apresentados, podemos dizer que a análise e classi-
ficação de casos específicos de variação gráfica demonstra que é possível sistema-
tizar os tipos de variação existentes com os instrumentos teóricos fornecidos pela
Gramática Histórica, o que não responde a todas as dúvidas suscitadas, mas orde-
na um pouco mais o quadro do sistema de escrita do português arcaico. Por meio
de minucioso processo de ordenação, pode-se observar mais claramente, nos casos
de variação gráfica estudados, as preferências por formas-padrão em vez das for-
mas-variantes, o que indica, já nesta época, uma forte tendência à uniformização
gráfica, mais do que à confusão, como se pode pensar em princípio.

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11
No caso do vocábulo oferecer, o uso do grafema <ff> seria justificado segundo o ponto de vista etimológico
defendido por Duarte Nunes de Leão (1983, p. 120), pois esse vocábulo inclui-se entre os que dobram as letras
porque originam-se de vocábulo latino composto da preposição ob.

62
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

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ABSTRACT: Due to the relevance of expanding more accurate studies about


ancient portuguese orthography, we wrote our thesis, Variação grafemática
consonantal no Livro de José de Arimatéia (Cod ANTT 643), in order to
examine graphic variation of some consonants, based on criteria furnished by
manuals of Portuguese Historical Grammar, which are applied to quantitative
results.

KEYWORDS: philology; historical linguistics; graphematics; phonology.

63
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

GRAMÁTICA E FUNCIONALISMO:
A DISJUNÇÃO ENTRE ORAÇÕES

Erotilde Goreti PEZATTI*

RESUMO: Este estudo fornece uma descrição detalhada do comporta-


mento sintático-semântico das conjunções coordenativas alternativas no
português falado, ou mais especificamente da relação de disjunção. O fun-
damento teórico aplicado na análise das conjunções é o funcional, particu-
larmente o enfoque denominado Gramática Funcional (GF) de Dik (1980).
O texto se organiza em três partes. Na primeira, discutem-se os dois tipos
semânticos de disjunção, a inclusiva e a exclusiva, e as condições possíveis
para sua manifestação nos enunciados do córpus. Examina-se, na segunda
parte, a coordenação de orações; já na seção 3, apresentam-se algumas
considerações finais.

PALAVRAS-CHAVE: coordenação; conjunção; disjunção; alternativa.

APRESENTAÇÃO1

O objetivo deste estudo é fornecer uma descrição detalhada do comporta-


mento sintático-semântico das conjunções coordenativas alternativas no portu-
guês falado, ou mais especificamente da relação de disjunção, tradicionalmente
denominada de alternância.
O fundamento teórico que aplicamos na análise desse juntivo é o funcio-
nal, particularmente o enfoque denominado Gramática Funcional (GF), de Dik
(1980). A GF trata a coordenação sob a forma de expansão de elementos da estru-
tura em séries coordenadas de elementos similares. O seguinte esquema fornece
uma representação formal desse processo.

* Universidade Estadual Paulista – UNESP – São José do Rio Preto.


1
Este trabalho é uma versão simplificada do estudo intitulado As estruturas coordenadas alternativas, apresenta-
do no IX Seminário do Projeto de Gramática do Português Falado, realizado em dezembro/95, em Campos do
Jordão-SP, que será publicado em NEVES, M. H. M. (org.). Gramática do português falado. v. 7, 1997. 65
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações

α→ α1, α 2, ...., α n (n≥ 2)

Essa representação opera sobre algum elemento a, expandindo-o numa sé-


rie n-ária de elementos coordenados do mesmo tipo. Podem-se distinguir dois ní-
veis de disjunção: (i) no nível da oração, a disjunção de termos; (ii) no nível do
período, a disjunção de predicados ou orações, conforme se pode verificar pelos
exemplos (1-2), extraídos do córpus.

(1) filosofia do direito... o que estuda?... estuda o fenômeno jurídico... aprofundan:do a


partir... dos conhecimentos... científicos...ou da própria dogmática... do direito...
(EF, RE, 337, l. 266)
(2) não tem importância que a gente chama de análise ou chama de interpretação o
importante é que o processo se realize (EF, POA, 278, l. 211)

Este trabalho se limita ao exame do juntivo ou, simples e duplo, que man-
tém alta freqüência no córpus, já que não ocorre nenhum caso de outros conecto-
res duplos como ora...ora, quer...quer, seja...seja e às vezes...às vezes. A esse propósi-
to, é interessante assinalar a ocorrência de um único caso, contido em (3), em que
se usa um conector duplo misto, ou seja, ao invés de uma conjunção repetida,
conforme prevêem as convenções normativas, utilizaram-se dois conectores dis-
tintos para efetuar a correlação.

(3) um conhecimento que aprofunda mais aqueles outros DOIS ... seja como conheci-
mento num é? sociológico... ou conhecimento.. normativo... lógico-normativo...
(EF, RE, 337, l. 269)

A ocorrência de seja...seja manifesta, na realidade, uma forma de repetição


do predicado verbal, que parece estar se gramaticalizando como juntivo e cuja
associação com ou é freqüentemente licenciada, com valor concessivo, como é
possível verificar numa oração como Sejam os réus ricos ou pobres, a justiça tem que
se aplicar. (3), entretanto, manifesta uma ocorrência em que dificilmente se pode
interpretar seja como verbo.
O universo de pesquisa é uma amostragem representativa do córpus míni-
mo do Projeto de Gramática do Português Falado, composto por três tipos de in-
quérito: Elocuções Formais (EF), Diálogo entre Informante e Documentador (DID)
e Diálogo entre dois Informantes (D2), colhidos em cinco capitais brasileiras. São

66
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

eles: de Porto Alegre: EF-278, DID-045, D2-291; do Rio de Janeiro: EF-379, DID-
328, D2-355; de São Paulo: EF-405, DID-234, D2-360; de Recife: EF-337, DID-
131, D2-005; de Salvador: EF-049, DID-231, D2-098.
Para facilitar o tratamento de grandes quantidades de dados empíricos,
empregam-se alguns programas do Pacote Varbrul (Sankoff, 1975), mais especi-
ficamente, o Makecell, para o levantamento de freqüências simples e o Crosstab
para o exame de dados que exigem o cruzamento de dois fatores relevantes para
a análise.
Este texto se organiza em três partes. Na primeira são abordados os dois
tipos semânticos de disjunção, a inclusiva e a exclusiva e as condições possí-
veis para sua manifestação nos enunciados do córpus. Examina-se, na segunda
parte, a coordenação de orações. A seção 3 foi reservada para as considerações
finais.

1. DISJUNÇÃO EXCLUSIVA E INCLUSIVA

O sistema de conjunções e, particularmente, das conjunções disjuntivas,


na evolução do latim para o português, apresentou uma redução no seu inventá-
rio. Havia, no latim, duas conjunções fundamentais para indicar a disjunção, aut e
vel. A primeira expressava a contraditoriedade ou disjunção exclusiva (A ou B,
mas não AB) e a ausência de associação em todos os termos, seja como conjunção
simples (A ou B), seja como dupla (ou A ou B). Vel, por sua vez, expressava disjunção
inclusiva ou simples alternância.
Das conjunções disjuntivas latinas, o português só conserva, do ponto de
vista do significante, a geral aut, tendo a outra desaparecido por completo. Dado
o valor disjuntivo ‘exclusivo’ de aut, tudo parece indicar que, em princípio, o ou
(< aut) português foi considerado pelas gramáticas como dotado de um valor
equivalente ao de seu étimo latino, isto é, fundamentalmente ‘exclusivo’. Mais
tarde, sem dúvida, as gramáticas corrigiram seu valor, atribuindo à partícula ou
tanto o sentido específico como o ‘inclusivo’, pertencente a vel. Por isso, passou-
se a considerar que o português não dispunha de duas marcas diferentes para
indicar relações de exclusão e inclusão e que estavam ambas representadas pela
conjunção ou, cabendo ao contexto a responsabilidade de determinar se se trata
de um ou outro sentido. Como no caso das conjunções latinas, sempre se consi-
derou, em português, que a repetição reiterada da conjunção ou apenas introdu-

67
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações

zia uma certa ênfase ou algum outro tipo de alteração estilística no significado
disjuntivo, sendo a especificação de seu valor exclusivo ou inclusivo um traço
unicamente contextual.
Em todas as descrições da coordenação disjuntiva subjaz a convicção ge-
neralizada de que o sistema português supõe uma redução de uma distinção se-
mântica existente em latim, ao desaparecer um dos dois significantes diferencia-
dos, com a conseqüente ampliação semântica da partícula que se manteve com o
fim de expressar com uma só forma o significado do que antes era expresso por
duas. O que parece apresentar-se como uma redução do sistema funcional latino
em sua evolução para o português é, na verdade, uma sobrevivência do sistema,
com mudança parcial dos recursos significantes.
Se em latim a disjunção exclusiva e a inclusiva tinham como traço expres-
sivo duas partículas distintas, sendo o recurso da repetição delas antes de cada
membro coordenado uma mera variante estilística, o português, com uma única
partícula disjuntiva (variantes à parte), utiliza esse recurso não como uma varian-
te enfática (ou de algum outro matiz), mas com um valor distintivo equivalente ao
que opunham as duas partículas latinas. Os significados ‘disjuntivos’ exclusivo e
inclusivo estão perfeitamente delimitados em português em seqüências como (4) e
(2), que aqui se repete.

(4) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF, RJ,
379, l. 205)
(2) não tem importância que a gente chama de análise ou chama de interpretação o
importante é que o processo se realize (EF, POA, 278, l. 211)

Em (4) estabelecem-se duas possibilidades únicas para não procriar: evitar


filhos com qualquer tipo de contraceptivo ou ser castrado, sem opção a nenhuma
outra. Há aí uma disjunção exclusiva. (2), pelo contrário, manifesta uma disjunção
inclusiva: pode-se chamar de análise, interpretação ou qualquer outro nome que,
sem ser um ou outro, implique os dois.
Parece evidente que uma análise do valor funcional do que se pode consi-
derar dois nexos (disjuntivos) em português, o ou (simples) e ou...ou (duplo), per-
mite comprovar a existência de duas formas diferentes que têm como significados
diferenciados a inclusão e a exclusão respectivamente. Diferentemente do sistema
latino, no português, a partícula não-marcada é a que comporta o significado pri-
mário inclusivo. A forma ‘...ou....’ pode representar tanto a inclusão quanto a ex-
clusão; já ‘ou...ou...’, somente a exclusão (Oliveira, 1995).

68
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Nosso córpus aponta 68 ocorrências de ou simples, correspondente a 88,3%


do total geral, contra apenas 9 casos (11,6%) de ou duplo. A pequena incidência
de ou duplo pode ser explicada pelo seguinte fato. O caráter não-marcado da for-
ma simples ‘...ou...’ faz com que suas possibilidades de ocorrência abarquem tam-
bém as da forma ‘ou...ou’ (duplo), além de suas próprias, já que a exclusão, como
parte de seus valores semânticos, poderia ser derivada do contexto. Ou duplo nun-
ca significa outra coisa que não a exclusão, seja qual for o contexto, mas é possível
empregar ou simples (forma não-marcada), em contextos em que a interpretação
exclusiva é claramente explícita e não-ambígua, quando se tornaria redundante o
uso de ou duplo. É, por exemplo, o caso das formas imperativas ou interrogativas,
normalmente destinadas, por seu próprio caráter, a obter uma única resposta, con-
forme se observa em (5) e (5a).

(5) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo?
(DID, SP, 234, l. 228)
(5)a. ? a senhora acha que ou há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo
tipo?

Ou simples é, pois, polissêmico e seu uso inclusivo e exclusivo varia de


acordo com a construção em que aparece. Na forma afirmativa, com conteúdos
factuais de visão particularizante, o ou é sempre exclusivo, como se pode notar
pelo exemplo (6) abaixo. É também exclusivo quando junta duas asserções negati-
vas, como (7), ou quando uma é afirmativa e a outra negativa, como (8). Na forma
interrogativa, em que cada um dos termos é o escopo da interrogação, também é
possível só a interpretação exclusiva, como demonstra (5).

(6) para um leigo... pode parecer eu falando assim na sociologia jurídica é que
estuda...não é? essa realidade em adequação: com a lei ou a lei em adequação com
a realidade (EF, RE, 337, l. 165)
(7) O Brasil não enviou a contrapartida ou a obra não andou. Por isso o Banco Mun-
dial suspendeu as liberações2.
(8) se a:: fruta... eh se eles iam conseguir a fruta ou não... (EF, SP, 405, l. 120).
(5) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo?
(DID, SP, 234, l. 228)

2
Não houve esse tipo de ocorrência no córpus analisado.

69
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações

Em sentenças afirmativas, entretanto, em que os dois elementos ligados


pelo conector são interpretados como sinônimos ou quase sinônimos, a disjunção
é inclusiva, conforme se observa em (9).

(9) são pessoas ... distribuídas... nas mais diferentes... assessorias... ou nos mais dife-
rentes órgãos... (DID, RE, 131, l. 160)

Ou simples é ainda inclusivo quando a construção disjuntiva for o escopo


da negação, como em (2) e (10) ou o escopo da interrogação, como em (11).

(2) não tem importância que a gente chama de análise ou chama de interpretação o
importante é que o processo se realize (EF, POA. 278, l. 211)
(10) não negamos nunca atender a um doente ou outro que chegue mesmo fora do
horário ou que seja extra (DID, SSA, 231, l. 226)
(11) qual seria o motivo pelo qual ... eles::...começaram... a pintar ou a esculpir... estas
formas ... (EF, SP, 405, l. 152)

De qualquer forma, o que se nota é que, com relação às formas disjuntivas


latinas, houve, no português, uma inversão do caráter das formas marcadas e não-
marcadas. Em latim a forma marcada (vel) era a inclusiva e a não-marcada (aut), a
exclusiva; já no português, a forma marcada (ou A ou B) é a exclusiva, e a não-
marcada (A ou B), ambígua. Além disso, não se pode falar de redução do sistema
funcional de coordenação alternativa na evolução do latim para o português, mas
simplesmente de uma redução de formas e, conseqüente duplicação da única res-
tante, para permitir uma dupla oposição funcional no sistema.

2. A DISJUNÇÃO ENTRE ORAÇÕES

É importante notar que ou tem sido freqüentemente tratada como opera-


dor lógico, e daí como a evidência mais fundamental para estruturação lógica ine-
rente da linguagem natural. No entanto, ou compartilha um conjunto muito mais
abrangente de funções do que a conjunção lógica de proposições.
O levantamento no córpus aponta para um total de 24 ocorrências de ora-
ções coordenadas por meio da conjunção ou. Observa-se que a grande maioria dos
casos constitui ocorrências de ou simples (83,3%); ou duplo aparece apenas em
quatro casos, listados abaixo.

70
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

(12) que eu cheguei em casa, vi televisão e depois vim pra cá pra, pra conversar ou dessa
maneira ou ir prum cinema ou prum teatro, (D2, RJ, 355, l. 87)
(13) prefiro ficar assi/a a aqui assistindo televisão ou dormindo ou lendo jornal (DID,
SP, 234, l. 98)
(4) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF, RJ,
379, l. 205)
(14) ou aquele que foi... diz que foi ele que fez... tomou a/ (que) fez aquilo ou então e::
é o pai ou a mãe aquele que não estiver presente (D2, SP, 360, l. 265)

Na verdade dois desses exemplos são casos de polissíndeto, descaracteri-


zando o ou duplo, já que não se percebe uma obrigatoriedade de escolha entre as
duas alternativas implicadas nas ocorrências (12) e (13) acima. São repetição pura
e simples da conjunção ou que pode perfeitamente ser elidida, conforme paráfrase
em (12a) e (13a). O mesmo não se pode dizer de (4) e (14).

(12)a.que eu cheguei em casa, vi televisão e depois vim pra cá pra, pra conversar dessa
maneira, ir prum cinema, prum teatro
(13)a.prefiro ficar assi/a a aqui assistindo televisão, dormindo, lendo jornal

Assim, a incidência de ou duplo fica restrita a apenas duas ocorrências.


Essa pouca incidência se explica pelo fato de seu uso se tornar redundante em
construções que não admitem senão a interpretação exclusiva. Isso ocorre, por
exemplo, com sentenças interrogativas em que cada um dos termos está no escopo
da interrogação, sendo por isso normalmente destinadas a obter uma única res-
posta. É o que se observa em (5-8), repetidas aqui, e (15).

(5) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo?
(DID, SP, 234, l. 228)
(8) se a:: fruta eh se eles iam conseguir a fruta ou não... (EF, SP, 405, l. 120)
(15) depende se essa definição é uma simples re, devolução, repetição daquilo que o
professor disse ou se essa definição tem um caráter de elaboração própria, então, aí,
nós estaremos em nível bem mais complexo (EF, POA, 278, l. 59)

Quanto ao valor exclusivo e inclusivo, observa-se uma equiparação, já que


obtivemos exatamente 12 ocorrências de uso inclusivo e 12, de exclusivo, corres-
pondendo cada um a 50% do total dos casos.

71
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações

O levantamento mostrou ainda que 83,3% das ocorrências (20 casos) apre-
sentam sujeitos idênticos nas duas orações coordenadas, e apenas 4 casos (16,6%)
exibem sujeitos diferentes, como (16).

(16) na medida... em que acabava a caça do lugar OU (que) em virtude da da época do


ano no inverno por exemplo... os animais iam hibernar outros... imigravam para
lugares mais quentes eles também precisavam acompanhar... o a migração da caça
se não eles iam ficar sem comer... (EF, SP, 405, l. 71)

A identidade de sujeitos acarreta, obviamente, uma grande porcentagem


(66,6%) de sujeitos nulos, representados por anáfora zero, e anáforas pronomi-
nais na segunda oração coordenada, contra apenas 25% de sujeitos lexicais, con-
forme se observa respectivamente em (4) e (17) abaixo. Dois casos dizem respei-
to a sujeitos inexistentes, ou seja, sujeito de infinitivo, conforme exemplificado
em (18).

(4) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF, RJ,
379, l. 205)
(17) a senhora acha que houve alguma evolução ou:: ou que tenha regredido o cinema
atualmente? (DID, SP, 234, l. 359)
(18) criar uma pessoa... ou criar uma imagem... é mais ou menos a mesma coisa (EF, SP,
405, l. 190)

Há um único caso em que o sujeito da segunda oração é pronominal, ape-


sar de não idêntico ao da primeira oração, como (5) (repetida aqui), e três casos
em que, embora idênticos, os sujeitos aparecem na forma lexical, como exemplifi-
cada em (19).

(5) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo?
(DID, SP, 234, l. 228)
(19) é através exatamente... desse fator... de união: e de integração... que os indivíduos
se AJUSTAM... ou que os indivíduos... pro eh: procuram levar ... a cabo... levar
adiante... suas melhores... ou suas: mais justas... reinvidicações (DID, RE, 131, l.
68)

72
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Afirma R. Lakoff (1971) que o emprego da conjunção ou pode causar


uma relação sintática simétrica ou assimétrica entre os membros coordenados.
No primeiro caso, as duas alternativas são mutuamente exclusivas mas equiva-
lentes e independentes uma da outra, permitindo assim a mudança de ordem;
já no uso assimétrico, a segunda alternativa depende da primeira, por isso a
inversão é bloqueada. Assim, a ordem de disjuntos assimétricos reflete a prio-
ridade de uma oração sobre a outra, ou a dependência do segundo em relação
ao primeiro: o conjunto primário, independente, precede o secundário, depen-
dente.
Em opções independentes, a ordenação dos disjuntos é irrelevante. Para
duas opções independentes, das quais pelo menos uma é verdadeira, seria tão
razoável dizer “se não B, então A”, quanto dizer “se não A, então B”. A orde-
nação livre das orações-ou reflete a falta de prioridade de uma opção sobre a
outra.
Se, contudo, as duas opções não são independentes uma da outra, então há
a interferência de outro fator. Ou ‘assimétrico’ reflete a dependência de uma das
alternativas sobre a outra. Os dois membros da disjunção não precisam ainda ser
mutuamente exclusivos em si mesmos, isto é, quando se diz (20), não significa que
os dois eventos descritos não poderiam ambos ocorrer, mas implica que há um rela-
cionamento unidirecional entre eles.

(20) Todo fim de semestre, José envia um capítulo pronto de sua tese ou no dia seguinte
seu orientador liga reclamando.

Considerando “Todo fim de semestre João envia um capítulo pronto de sua


tese” como A, e “seu orientador liga reclamando” como B, pode-se argumentar
usando somente a coordenação alternativa assimétrica “se não A, então B”. Sabe-
se, na verdade, que, no mundo real, A não somente é temporalmente anterior,
mas realmente exerce uma influência causal em B, e que o contrário não pode ser
verdadeiro: de modo algum a reclamação subseqüente do orientador influencia o
envio prévio de um capítulo pronto da tese por José.
Como vimos, a ordem icônica de palavras pode explicar a maioria das
diferenças entre disjunção simétrica e assimétrica. Com o juntivo ou, a assime-
tria linear da ordem de palavras está aberta à interpretação icônica, já que não
há uma relação semântica assimétrica inerente entre os dois membros da
disjunção.

73
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações

Os dados mostram que prevalece, no córpus, o uso simétrico, como exem-


plificado em (13), repetida aqui, já que a maioria das ocorrências (18 casos corres-
pondentes a 75%) permite inversão de ordem.

(13) prefiro ficar assi/a a aqui assistindo televisão ou dormindo ou lendo jornal (DID,
SP, 234, l. 98)

Há, no entanto, casos (6 ocorrências, correspondentes a 25%) que não


permitem a inversão dos elementos coordenados. Em alguns a assimetria se deve a
uma relação lógica de causa/conseqüência estabelecida entre as duas asserções: a
segunda se apresenta como conseqüência da primeira, conforme se observa em (4)
acima.
A impossibilidade de inversão se deve também a outro fator de assimetria
que é a prioridade de uma oração sobre a outra. No córpus analisado encontra-
mos ocorrências constituídas de uma asserção afirmativa seguida de uma negati-
va. Ora, a afirmação tem prioridade lógica sobre a negação: primeiramente se
afirma algo para depois negá-lo. Assim, temos assimetria, e conseqüentemente
ordem obrigatória, em (21), repetida abaixo, não sendo possível a paráfrase em
(21a.).

(21) para então... ele dizer... se há malignidade ou não nesse nódulo (EF, SSA, 49, l.
90)
(21)a.?para então... ele dizer...se não há malignidade nesse nódulo ou há.

Observamos haver identidade percentual entre a incidência de constru-


ções subordinadas e a de pares com mudança potencial de ordem, de modo que
dos 18 casos com membros permutáveis, 14, equivalentes a 82,3%, são orações
subordinadas, conforme exemplo (22).

(22) toda aquela assistência médica hospitalar... que os sindicatos vem habitualmen-
te cumprindo ou que vem/ os sindicatos se propõem a fazer... (DID, RE, 131, l.
250)

No entanto, não se exclui a possibilidade de ocorrerem, na condição de


subordinação, duas orações coordenadas que não admitem mudança potencial de
ordem, como se observa em (21) acima.

74
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Casos como esses representam uma incidência percentual de apenas 11,7%


(2 ocorrências) do total de orações subordinadas (17 casos), que são coordenadas
entre si.
As orações subordinadas se comportam como termos e nesse caso exercem
funções sintáticas diversas no predicado de nível superior, tanto como argumentos
quanto como satélites. Observem-se os exemplos abaixo de encaixamento.

(23) mas é preciso que eu aplique, que eu utilize os sinais de trânsito na hora certa ou
que eu tenha a habilidade de passar mais rápido pelo guardinha (EF, POA, 278, l.
197)
(15) a categoria do conhecimento (inserção nossa) depende se essa definição é uma definição
simples, re, devolução, repetição daquilo que o professor disse ou se essa definição tem
um caráter de elaboração própria (EF, POA, 278, l. 59)
(10) não negamos nunca atender a um doente ou outro que chegue mesmo fora do
horário ou que seja extra (DID, SSA, 231, l. 226)

Observe-se, agora, a inserção de orações coordenadas na posição de satéli-


tes de diversas circunstâncias:

(13) prefiro ficar assi/ a a aqui assistindo televisão ou dormindo ou lendo jornal (DID,
SP, 234, l. 98)
(16) na medida... em que acabava a caça do lugar OU (que) em virtude da da época do
ano no inverno por exemplo... os animais iam hibernar outros... imigravam para
lugares mais quentes eles precisavam acompanhar... o a migração da caça se não
eles iam ficar sem comer... (EF, SP, 405, l. 71)

Com relação às orações independentes (7 casos), constata-se que a inver-


são da ordem é irrelevante já que 3 ocorrências a permitem e 4 não, conforme
exemplificado em (14) e (24) respectivamente.

(14) ou aquele que foi... diz que foi ele que fez... tomou a/ (que) fez aquilo ou então e:: é o pai
ou a mãe aquele que não estiver presente (D2, SP, 360, l. 265)
(24) elas são:... complementa:res ou não: Eduardo? (EF, RE, 337, l. 79)

Segundo R. Lakoff (1971), é necessário que os membros coordenados pelos


juntivos e, ou e mas tenham um tópico comum. Na maioria das sentenças que

75
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações

envolvem disjunção, seja no nível da coordenação de termos, seja no nível da


coordenação de orações, cumpre-se a condição da necessidade de tópico comum
em virtude de uma manifestação explícita desse tipo de identidade na superfície
da sentença e, sem dúvida, tem muito a ver com isso a regra de identidade sintáti-
ca e semântica dos constituintes coordenados, de Schachter3. Outras seleções,
como repetição de estrutura por anáfora zero ou pronominal, também constituem
mecanismos relacionados com a necessidade de um tópico comum, geralmente
inscrito na representação superficial da sentença.
Quando não manifesto explicitamente, o tópico comum pode derivar-se de
combinações mais ou menos complexas de pressuposições e deduções, que expli-
cam, então, a ocorrência de (25). Esta, por sua vez, não representa uma disjunção
entre elementos manifestos, ligados por ou. A sua paráfrase, contida em (25a),
permite obter o tópico comum por pressuposição e, desse modo, a sentença (25)
não viola a condição da identidade tópica.

(25) João acabou a tese ou você não sabe?


(25)a.Você pode me responder se o João terminou a tese, ou, porque você não sabe, você
não pode me responder?

Sweetser (1991), na realidade, reinterpreta a condição de identidade tó-


pica entre os membros da disjunção e os casos de simetria e assimetria de R.
Lakoff, mostrando que o juntivo ou atua tanto no nível do conteúdo, quanto no
epistêmico ou mesmo no do ato de fala, rotulados de “disjunções retóricas” por
Lakoff.
No domínio do conteúdo, empregar ou indica que um dos disjuntos deve
descrever o genuíno estado de coisas no mundo real; repetem-se, portanto, dois
estados de coisa. Assim, a interpretação de (26),

(26) há muita... discussão aí entre posições opostas de que se o Japão seria uma econo-
mia ou um país desenvolvido (EF, RJ, 379, l. 223),

3
Investigando a relação entre a CCC e a Condição da Estrutura Coordenada (Coordinate Structure Constraint)
de Ross (1967), Schachter (1977) mostra que a condição que propõe pode dar conta de todos os casos de
conjunção agramatical que a regra de Ross pretende explicar, embora o reverso não seja verdadeiro: certos
fatos residuais que permaneceram sem explicação adequada na proposta de Ross, assim como exceções a sua
regra, encontram abrigo natural na CCC.

76
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

como ‘discute-se muito sobre’, ou “o Japão é uma economia desenvolvida” ou “o


Japão é um país desenvolvido”, descreve a situação verdadeiramente. O mesmo
ocorre em (4),

(4) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF, RJ,
379, l. 205)

cuja interpretação de ‘ou se evita filhos por algum meio anticonceptivo’ ‘ou se é
castrado’, descreve verdadeiramente o futuro estado de coisas.
A relação entre estados de coisa é o único emprego de ou tratado sistema-
ticamente pelos estudiosos e gramáticos, que ignoram as outras funções, como a
de juntor de inferências (uso epistêmico) e de atos de fala (uso ilocucionário).
Cabe ressaltar que, no córpus analisado, só se registraram casos de coordenação
no domínio do conteúdo.
Observe-se agora a sentença contida em (27).

(27) O orientador de João vai ligar amanhã reclamando, ou (então) ele já enviou um
capítulo pronto de sua tese.

A interpretação provável de (27) é que os dois membros da disjunção são


conclusões epistêmicas tiradas da evidência disponível e não como estados al-
ternativos possíveis do mundo real. Seria difícil imaginar uma leitura de conteú-
do inteligível para (27): as duas orações não expressam alternativas possíveis do
mundo real, mas alternativas epistêmicas normais. Presume-se que uma predi-
ção proposta sobre o comportamento futuro de alguém está baseada em alguma
inferência do que de fato ocorre habitualmente. Contudo, desde que não ofere-
cemos usualmente predições com a intenção de que sejam consideradas incorre-
tas (pelas razões de Grice, 1975), o falante não pode, cooperativamente, estar
oferecendo alternativas genuínas. O que está em discussão em (27) não são al-
ternativas do mundo real, mas somente alternativas epistêmicas e uma não tem
prioridade definida sobre a outra (cf. Sweetser, op. cit.). A mesma interpretação
epistêmica se aplica a (28) que, diferentemente de (27), contém orações disjun-
tas em relação simétrica.

(28) A.– João entregou a tese no prazo?


B.– A gráfica atrasou a encadernação ou ele não fez as correções a tempo.

77
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações

Observe, agora, a sentença (29):

(29) Entregue a tese no prazo ou você perde a bolsa.

Na disjunção assimétrica acima, o segundo membro da coordenação dá


suporte para o enunciado expresso no primeiro membro, de modo que o receptor
é obrigado a escolher entre seguir a ordem dada ou ver realizar-se a segunda força
ilucionária, que é um ato de ameaça. Como presumivelmente o receptor desejará
afastar a segunda alternativa, o efeito da disjunção é o de uma ordem reforçada. A
interpretação da disjunção como ato de fala representa ordens, sugestões e per-
guntas, como se reinterpreta, nos termos de Sweetser, o exemplo acima contido
em (29).
Note-se, ainda, que é impossível estender a interpretação de Charaudeau
(1992), válida para a disjunção de estados de coisa, para a disjunção nos níveis
epistêmico e ilocucionário. Como vimos, na interpretação desse autor, a disjunção
pressupõe a existência de uma terceira asserção mais geral, posta ou pressuposta. No
caso da disjunção epistêmica, a conclusão que se deduz poderia representar essa
asserção, mas no caso da disjunção no nível ilocucionário, não parece haver uma
terceira asserção, porque, nesse nível, não há realmente relação disjuntiva.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O juntivo ou do português deriva diretamente da forma latina aut, original-


mente o termo não-marcado de uma oposição com vel, uma vez que, enquanto o
primeiro ligava membros mediante uma relação indiferentemente exclusiva ou
inclusiva, o segundo, o termo marcado da oposição, ligava unicamente membros
alternativos em relação de inclusão. Apesar da redução de itens funcionais, em
virtude do desaparecimento de vel, concluímos que, na gramática do português,
sobrevive o sistema funcional. Nesse caso, o recurso formal para a manutenção
das relações semânticas de inclusão e de exclusão, de que lançou mão o português,
é uma reduplicação do juntivo ou, termo marcado, em oposição à forma simples,
empregada indiferentemente para ambas as situações. Pode-se dizer, então que, na
ausência de vel, a gramática do português compensou a perda de informação en-
volvida na oposição latina com uma mudança estrutural parcial dos recursos for-
mais, preservando, funcionalmente, as distinções semânticas básicas.

78
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

O estatuto polissêmico da forma simples explica sua maior incidência e um


uso muito mais generalizado no córpus examinado que abrange os casos em que a
forma dupla poderia ser empregada. A baixa freqüência da forma dupla do juntivo
justificou-se plenamente no fato de que o contexto fornece a base para um uso não
ambíguo da relação de exclusividade, de modo a tornar-se redundante o seu em-
prego. Disso se conclui que o uso da forma dupla fica circunscrita somente aos
casos absolutamente ambíguos de disjunção, em relação ao eixo semântico inclu-
são-exclusão.
Uma característica que o juntivo alternativo compartilha com outros co-
nectores coordenativos, principalmente aditivos e adversativos, é uma condição
de equivalência estrutural entre partes dos membros coordenados, que os dados
analisados aqui cumprem exemplarmente. Tal exigência, representada na Condi-
ção do Constituinte Coordenado, postulada por Schachter (1977), formaliza-se
na identidade simultânea de função semântica e de função sintática. Na coorde-
nação de orações, em que os membros disjuntos auxiliam na organização da estru-
tura textual, nem sempre a identidade está explícita na superfície sentencial, caso
em que a exigência de um tópico comum (R. Lakoff, 1971) se cumpre mediante
combinações de pressuposições e deduções.
Outra característica que o juntivo alternativo compartilha com os aditivos
e adversativos é que as relações que estabelecem entre termos e orações podem ser
simétricas ou assimétricas, dependendo da possibilidade de inversão potencial da
ordem dos elementos em disjunção. Já nesse âmbito, a relação de dependência
causal afasta o significado da disjunção dos limites impostos pela natureza de co-
nexão estrita de um operador lógico.
Os casos de disjunção a que se impõe uma relação formal assimétrica entre
os membros coordenados obedecem ao princípio geral das convenções icônicas da
ordem de palavras. No nível de orações, a ordem enunciada é paralela à ordem dos
eventos descritos, inclusive em termos de causalidade, na medida em que eventos
precedentes são a causa de eventos subseqüentes, mas não o contrário. Quando se
tratar de ordenação de premissas lógicas, não se obedece a nenhum princípio tem-
poral, mas algum fato precede logicamente o outro. O fato de a prioridade epistêmica
refletir-se na ordenação icônica das palavras, do mesmo modo que a prioridade
temporal dos eventos, na relação de disjunção, justifica-se, segundo Sweetser (1991)
na modelação difusa da expressão lingüística do mundo interno com base na expres-
são do mundo “real” externo.
Embora o juntivo ou possa ser analisado como um operador lógico, as fun-
ções que exerce no âmbito funcional-discursivo ultrapassam as meramente fun-

79
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações

cional-veritativas, inerentes ao domínio lógico: estende-se desde o domínio do


conteúdo, em que liga dois estados de coisa, ao domínio do mundo lógico-epistê-
mico e do mundo dos atos de fala.

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80
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

ABSTRACT: This paper describes in detail the syntactic-semantic functions of


alternative coordenative conjunctions in spoken Portuguese and, in a more espe-
cific way the distinction relation traditionally named alternative conjunction. A
functional theorical basis is applied, particularly Dik’s Functional Grammar
(1980). The content is organised in three parts: discussion of the two semantic
types of disjunction, namely inclusive and exclusive disjunction and its possible
conditions of ocurrence in the corpus; coordenative clause combination; final
conclusions.

KEYWORDS: coordenation; conjunctions; disjunction; alternative.

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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

ARTICULAÇÃO DE ORAÇÕES: A QUESTÃO


DOS ESTADOS DE COISAS

Maria Helena de Moura NEVES*

RESUMO: O estudo examina as construções complexas, buscando cote-


jar a natureza das predicações que entram em relações temporais, causais,
condicionais e concessivas. Essas organizações são analisadas dentro do
quadro da gramática funcional, que entende como interna à gramática as
escolhas que o falante faz para distribuir a informação dentro do enuncia-
do.

PALAVRAS-CHAVE: articulação de orações; estado de coisas; funcio-


nalismo.

Pensar a gramática da língua, dentro de um quadro funcionalista, é pensar


a língua em uso, ou seja, a comunicação verbal. Isso pode parecer trivial e gasto,
mas tem sua profundidade.
Uma explanação sobre a comunicação verbal, por exemplo, pode fazer-se
nos moldes daquelas lições muito divulgadas pela Teoria da Comunicação nos
seus inícios, “áureos albores”, décadas atrás: um circuito com falante e ouvinte
em cada ponta (no registro gráfico, dois bonequinhos), um canal, codificação,
decodificação, mensagem, ruídos, etc. Presente a física, que responde pelos sons,
presente a ciência lingüística que preparou uma teoria dos signos (desde os es-
tóicos), presente até a psicologia, no respaldo à consideração das funções men-
tais.
Mas falante e ouvinte permanecem como “bonequinhos”, quem sabe má-
quinas aparatadas para codificar e decodificar mensagens, atribuir significado ati-
vamente e passivamente, afinal, produzir e interpretar enunciados. Colocar tudo
isso numa perspectiva pragmática é pouco, e é falso. Pragmática como visão exter-
na, como recurso de configuração, como mais uma relação sígnica (a do signo com

* Universidade Estadual Paulista – UNESP – Araraquara/CNPq. 83


NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.

seus usuários), além das outras – consideradas, elas sim, básicas, porque produto-
ras do significado – é, apenas, discurso de lingüista.
O circuito não é tão simples, a ponto de nem ser simples circuito. O falante
sente a força da situação de comunicação antes mesmo de planejar seu enunciado,
e isso complica tudo. Cada diferente interlocutor que ele tenha, por exemplo, é
direcionador fundamental do próprio plano de seu enunciado.
Vale para ele, como bem se deduz do modelo de interação verbal proposto
por Dik (1989), a própria expectativa que ele supõe que seu ouvinte tenha sobre o
que ele vai dizer, assim como a avaliação que ele tenha do potencial que seu ouvin-
te reúne para interpretar o que ele possa dizer. Isso do seu lado, como enuncia-
dor. Porque ele sabe, ainda, que a interpretação que seu enunciado poderá gerar
será também condicionada pela avaliação que seu interlocutor, ao receber o enun-
ciado, faça da intenção, bem como do potencial informativo do emissor que o
produziu.
Há um complexo de fatores enredado no esquema que apresentei, aqui,
bastante simplificado. Já está, por exemplo, em Peirce (1987), a indicação compli-
cadora da noção de signo, segundo a qual o signo, do lado do receptor, é uma
unidade perceptiva na qual o sentido é dominante, é figura, enquanto a forma é
recessiva, é fundo; e, do lado do emissor, pelo contrário, é uma unidade que tem
como figura a forma, e como fundo o sentido. Isso gera tensões que configuram o
signo, que é dialógico – isto é, que tem duas contrapartes, o emissor e o receptor –
dentro do esquema perceptivo complexo, diferente do velho circuito, que abriga,
na percepção, uma parte forte (a figura) e uma parte débil, que serve apenas de
contraste (o fundo). No caldo da mistura se chega a leis perceptivas, que são resul-
tantes da combinação:

a) de forma e sentido;
b) quanto ao emissor e ao receptor;
c) enquanto figura ou enquanto fundo.

Essas leis refletem os diferentes esquemas de predomínio perceptivo: pre-


domínio da forma do enunciador sobre o sentido captado pelo enunciatário, ou vice-
versa. Podemos falar, por exemplo, nas leis da redundância e da pressuposição (em
que a forma do emissor é figura) e nas leis do subentendido e da preferência (em que
é o sentido captado pelo receptor que é figura).
Pense-se em como tudo isso se complica, realmente, na interlocução, espe-
cialmente pela fugacidade do papel de emissor ou de receptor, que não apenas se

84
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

alternam em velocidade incontrolável, mas, ainda, se remontam muito freqüente-


mente.
As tensões não se assentam e não se deixam ver de modo que se permita
uma organização estudada de cada turno de interação, nem ocorrem sempre com
o mesmo grau de intensidade. Mas a organização do texto – chamemo-lo assim –
sempre responderá, ao menos minimamente, às exigências geradas nessas tensões,
que englobam, por exemplo, as possibilidades de perda de elementos pelo receptor,
ou de maior ou menor disposição deste para reagir e responder, ou de maior ou
menor conhecimento que este tenha das circunstâncias e das convenções, e assim
por diante.
E aí chegamos à questão da organização do enunciado – no qual, com cer-
teza, haverá elementos e características que o tornam adequado à complicada
troca que é a interação lingüística. Assim, o falante, à parte as restrições que a
língua lhe impõe, naquele núcleo duro das restrições do sistema, compõe seus
enunciados fazendo escolhas comunicativamente adequadas, dentro do complexo
leque de opções que possui. Por exemplo, cabe ao falante tematizar e rematizar, e
já por aí ele imprime sua marca ao funcionamento da gramática.
Vou usar aqui o tema “articulação de orações” – que foi o concertado entre
os participantes desta mesa-redonda – para ilustrar minhas reflexões. Ora, para
dizer que a renúncia de um governador foi causada pela descoberta de sua implica-
ção na questão dos precatórios, o falante pode tematizar a causa dizendo “Como foi
descoberta sua implicação, ele renunciou” ou tematizar a conseqüência, como em
“Ele renunciou porque sua implicação foi descoberta”, em ambos os casos ativando um
esquema de pressuposição, e em ambos os casos reservando à causa a posição de
satélite, na proposição (Dik, 1989). Ou pode, ainda, tematizar a causa, mas de
modo a enfatizar o rema como conseqüência, como em “Sua implicação foi desco-
berta, então ele renunciou”, ou, ainda, “Sua implicação ficou tão evidente que ele re-
nunciou”.
Dentro da gramática funcional, as escolhas que o falante faz para distri-
buir a informação dentro do enunciado – noções vistas em muitas outras análi-
ses como devidas a uma perspectiva pragmática – são entendidas como internas
à gramática. As escolhas acima, às quais me referi apenas como questão de dis-
tribuição de tema e rema dentro de cada frase, têm, então, de ser avaliadas no
que representam para o discurso em que aparecem. O “fluxo de atenção” (Cha-
fe, 1987), por exemplo, é invocado para analisar-se a “embalagem” que o con-
teúdo ideacional recebe sob pressão dos aspectos cognitivos e sociais. Uma em-
balagem como “A descoberta da implicação de Fulano na questão dos precatórios

85
NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.

causou sua renúncia”, para o conteúdo exemplificado há pouco – embalagem na


qual só ocorrem o predicador e argumentos, sem satélites (sem circunstantes) –
é adequada se, para o fluxo de informação do enunciado, é adequado esse arran-
jo de categorias como “tópico e comentário”, “informação dada e informação
nova”, “unidades de entoação”, etc. O fluxo de informação determina tanto a
ordenação linear dos sintagmas na frase como a própria escolha do arranjo da
predicação a ser ordenada, em termos de:

a) escolha da natureza do predicado;


b) seleção dos argumentos;
c) eleição dos satélites.

O “fluxo de atenção”, por sua vez, garante a eficiência comunicativa: ga-


rante, por exemplo, o fato de, do lado do ouvinte, o sentido chegar a figura, corres-
pondendo à intenção e à expectativa do falante quando selecionou a forma do seu
enunciado.
Como aponta De Lancey (1981), os eventos descritos no discurso e as en-
tidades neles envolvidas não têm todos a mesma importância comunicativa, e a
organização discursiva dispõe de mecanismos capazes de marcar a relevância rela-
tiva desses eventos e dessas entidades que se seguem no discurso. E isso se obtém
pelo equilíbrio entre as pressões externas e a pressão das estruturas, que entram
em competição de modo dinâmico (Du Bois, 1985), que o falante acerta e contro-
la, ao produzir seu enunciado.
A ordenação linear dos constituintes é um dos domínios responsáveis
pela manutenção do fluxo de atenção, pelo que representa de controle do flu-
xo de informação, assim como é um dos domínios responsáveis pela tematiza-
ção e pela rematização. Mais no fundo, porém, como observei acima, a própria
escolha de determinadas predicações e relações que deverão ser postas em seqüên-
cia entra na determinação do grau em que se pode obter a atenção do ouvinte.
São essas duas questões que nos vão ocupar aqui, restritas à articulação de
orações e localizadas na questão da escolha e arranjo das predicações que se
articulam.
No exame que se faz das frases compostas e complexas no Grupo Sintaxe I
do Projeto “Gramática do Português Falado” estabeleceram-se grupos de fatores a
ser investigados nos diferentes tipos de combinações, de modo que fosse possível o
confronto de resultados, e, assim, uma interpretação controlada desses resultados.

86
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Também para evitar distorções nas interpretações, fez-se uma delimitação equili-
brada do corpus por inquéritos1. Cada um dos membros da equipe trabalhou com
um tipo de articulação: eu investiguei as construções lato sensu causais (causais,
“explicativas”, condicionais e concessivas), Maria Luíza Braga investigou também
construções adverbiais – as construções temporais – e Erotilde Pezatti estudou as
construções alternativas.
No percurso feito para se chegar a uma avaliação geral das diferentes
construções, partiu-se do exame da natureza das predicações. Esse exame tem
ponto de partida na análise dos predicados escolhidos, com base em Dik (1989).
O predicado – que designa propriedades ou relações – se aplica a um certo nú-
mero de termos – que se referem a entidades – produzindo uma predicação, que
designa um estado de coisas, ou seja, uma codificação lingüística (e possivel-
mente cognitiva) que o falante faz da situação. Um exemplo é uma predicação
com o predicado remeter e os termos o Senado, a questão e o Judiciário, configu-
rando-se um estado de coisas em que entram em relação esse predicado escolhi-
do e as três entidades, que desempenham, cada uma, um papel semântico (agen-
te, objeto, recebedor, respectivamente). Um estado de coisas é concebido como
algo que pode ocorrer em algum mundo (real ou mental), e, assim, está sujeito a
determinadas operações, isto é, pode: ser localizado no espaço e no tempo; ter
uma certa duração; ser visto, ouvido, ou, de algum modo, percebido. Consti-
tuintes como o Senado, a questão e o Judiciário, que são exigidos pela semântica
do predicado, são argumentos, enquanto outros possíveis constituintes como no
Brasil, ou neste mês, que apenas trazem informação suplementar, são denomina-
dos satélites. Às proposições são aplicados, ainda, operadores ilocucionários, como,
por exemplo, DECLARATIVO ou INTERROGATIVO. A proposição revestida
de força ilocucionária constitui a cláusula (a frase), que corresponde a um ato de
fala, e que pode ser descrita em termos de uma estrutura subjacente. O sistema
de regras de expressão da língua determina a forma, bem como a ordem dos
termos e o padrão entonacional dos constituintes, isto é, determina a realização
superficial dessa estrutura.

1
O corpus examinado é o corpus mínimo do Projeto NURC (Norma Urbana Culta), constituído de quinze
inquéritos, cinco de cada tipo: D2 (Diálogos entre dois interlocutores), DID (Diálogos entre documentador
e informante) e EF (Elocuções formais). O confronto com corpus escrito se vale do banco de dados disponí-
vel no Departamento de Lingüística da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Campus de Araraquara,
para os projetos “Dicionário de usos do português contemporâneo do Brasil”, coordenado por Francisco da
Silva Borba, e “Gramática de usos do português contemporâneo do Brasil”, coordenado por Maria Helena
de Moura Neves.

87
NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.

Como se explicitou mais acima, é o predicado o primeiro nível que é exigi-


do, para que se organize uma estrutura subjacente de cláusula. O nível 2 é a predi-
cação, o nível 3 é a proposição e o nível 4 é o ato de fala. Para a tipologia semân-
tica dos estados de coisas (predicações), há parâmetros como ± dinâmico, ±
télico, ± momentâneo, ± controle, ± experiência. Os dois traços mais gerais
(concernentes a “dinamismo”) configuram eventos [+din] e situações [-din],
respectivamente. A combinação desses traços com o traço controle leva à tipo-
logia: ação (evento) [+din] [+con]; processo (evento) [+din] [-con]; posição
(situação) [-din] [+con]; estado (situação) [-din] [-con]. Uma subtipologização
atribui traços concernentes a telicidade aos estados de coisas dinâmicos:

■ realização (evento, ação) [+din] [+con] [+tel], como em Determinei estudos


acurados.
■ atividade (evento, ação) [+din] [+con] [-tel], como em O operador transfere
energia para o conjunto.
■ mudança (evento, processo) [+din] [-con] [+tel], como em Os próprios lundus
cantados se transformaram em verdadeiros maxixes.
■ dinamismo (evento, processo) [+din] [-con] [-tel], como em A riqueza não au-
menta.

A verificação das expressões lingüísticas codificadoras dos estados de coi-


sas revela uma seleção, feita pelo falante, que vai ter conseqüências na organiza-
ção do texto, pelo que representa de base para “empacotamento” do conteúdo
ideacional (a que há pouco me referi), constituindo uma primeira determinação
para aspectos lingüísticos ligados às escolhas de tema/rema, dado/novo, figura/
fundo, todas elas implicadas no fluxo de informação do enunciado, e todas elas
determinantes da ordenação dos enunciados.
Na questão das construções complexas, que aqui se examinam, procurou-
se cotejar a natureza das predicações que entram em relações temporais, causais,
explicativas (causais entre frases), condicionais e concessivas, apresentando-se os
resultados no Quadro 1, com resumo no Quadro 2.

88
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Quadro 1: NATUREZA DA PREDICAÇÃO

ORAL ( NURC ) ESCRITO (VÁRIOS)


PREDICAÇÃO

IS
IS

S
IS

S”

IS
IVA

IVA

RA
NA

USA

RA
IVA

PO
ESS

ESS
ICIO

PO
CAT
CA

TEM
TEM
NC

NC
ND

PLI
CO

CO
CO

“EX
CONSTRUÇÕES
ADVERBIAIS N A N A N A N A N A N A N A
ESTADO 34% 44% 55% 58% 36% 54% 42% 53% 39% 23% 46% 41% 15% 9%
ATIVIDADE 37% 38% 29% 13% 38% 22% 26% 23% 39% 50% 18% 11% 36% 43%
DINAMISMO 11% 6% 4% 11% 13% 6% 9% 10% 8% 9% 18% 9% 14% 17%
POSIÇÃO 3% 3% 7% 7% 3% 6% 10% 7% 4% 1% 10% 6% 5% 1%
REALIZAÇÃO 6% 3% 3% 0% 3% 6% 7% 1% 10% 17% 4% 1% 18% 20%
MUDANÇA 3% 4% 2% 2% 1% 6% 1% 5% 0% 0% 2% 2% 12% 10%
∅ 6% 2% 0% 9% 6% 0% 5% 1% 0% 0% 2% 30% 0% 0%
N ORAÇÃO NÚCLEO
A ORAÇÃO ADVERBIAL

Quadro 2: NATUREZA DA PREDICAÇÃO – RESUMO

ORAL ( NURC ) ESCRITO (VÁRIOS)


PREDICAÇÃO
IS

S
IS

S”

IS

IS
IVA

IVA
NA

USA

RA

RA
IVA
ESS

ESS
ICIO

PO

PO
CAT
CA

TEM

TEM
NC

NC
ND

PLI
CO

CO
CO

“EX

CONSTRUÇÕES
ADVERBIAIS N A N A N A N A N A N A N A
[ +CONTROLE] 46% 44% 39% 20% 44% 34% 43% 31% 53% 68% 32% 18% 59% 64%
[ -CONTROLE] 48% 54% 61% 71% 50% 66% 52% 68% 47% 32% 66% 52% 41% 36%
[ +TÉLICO] 9% 7% 5% 2% 4% 12% 8% 6% 10% 17% 6% 3% 18% 20%
[ -TÉLICO] 85% 91% 95% 89% 90% 88% 87% 93% 90% 83% 92% 67% 82% 80%
[ +DINÂMICO] 37% 47% 38% 26% 55% 40% 43% 39% 57% 76% 42% 23% 80% 90%
[ -DINÂMICO] 57% 51% 62% 65% 39% 60% 52% 60% 43% 24% 56% 47% 20% 10%
∅ 6% 2% 0% 9% 6% 0% 5% 1% 0% 0% 2% 30% 0% 0%

89
NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.

Verificou-se que uma série de características opõe as construções de rela-


ções temporais às construções de relações lato sensu causais (as causais propria-
mente ditas, as condicionais e as concessivas):

a) só as temporais têm maioria de predicações com o traço [+ controle] (N =


53% e A = 68%, na modalidade oral; N = 59% e A = 64%, na modalidade
escrita); nas construções lato sensu causais as predicações com o traço [+ con-
trole] vão de 18% a 44%, em A, e de 32% a 46%, em N;
b) as temporais têm maioria expressiva de predicações com o traço [+ dinamis-
mo] (N = 57% e A = 76%, na modalidade oral; N = 80% e A = 90%, na
modalidade escrita), enquanto nas construções lato sensu causais, as predicações
com o traço [+ dinamismo] vão de 27% a 47%, em A, e de 37% a 55%, em N;
c) embora as temporais também tenham maioria de predicações não-télicas, ne-
las a prevalência do traço [– télico] é menor que nas outras (predicações télicas
entre 10% e 20% nas temporais, e entre 2% e 12% nas causais lato sensu);
d) só as temporais têm mais predicações de atividade que de estado em ambas as
orações, e tanto na modalidade escrita como na oral;

Quanto à distinção entre linguagem escrita e linguagem oral, que foi exa-
minada apenas para as concessivas e as temporais, o que se verificou foi que não
há diferenças significativas quanto aos três traços (dinamismo, controle e telicida-
de), mas que, nas temporais, a ocorrência dos traços telicidade e dinamismo é mais
acentuada na modalidade escrita, o que, na verdade, se pode atribuir à natureza
dos dois tipos de corpus em exame, já que o material oral é basicamente conversa-
cional.
Outro cotejo que mereceu atenção foi entre as causais do tipo tradicional-
mente chamado “subordinado” (relação entre proposições, nos termos de Dik,
1989) e as do tipo tradicionalmente denominado “coordenado”, as chamadas “co-
ordenadas explicativas” (relação entre atos de fala). Verificou-se que há mais
predicações télicas, na oração satélite, nas construções em que a relação causal se
dá entre proposições (12%) do que nas construções em que a relação causal se dá
entre atos de fala (6%). Pelo contrário, há mais predicações télicas, na oração
nuclear, nas construções em que a relação causal se dá entre atos de fala (8%) do
que nas construções em que a relação causal se dá entre proposições (4%).
Outra comparação interessante pôde ser estabelecida levando-se em conta
os dados obtidos na língua oral, para as construções coordenadas alternativas (com
a conjunção ou), os quais estão apresentados nos Gráficos 1 e 2.

90
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Gráfico 1: CONSTRUÇÕES ALTERNATIVAS – NATUREZA DA PREDICAÇÃO

50%

45%

40%

35%

30%

25%

123456
123456
20% 123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
15% 123456
123456 123456
123456 123456
123456 123456
123456
123456 123456
123456
123456 123456
10% 123456
123456
123456 123456
123456
123456 12345
12345123456
123456 12345123456
123456
123456 12345123456
123456
123456 12345123456
123456
123456
5% 123456
12345 12345
12345123456
123456
12345 12345123456
123456
12345 12345123456
123456
12345 12345123456
123456
12345 12345123456
0%123456
12345
123456 12345123456
123456 0%
0% 123456
12345 12345123456

1a. Oração 2a. Oração


12345
12345
ESTADO 12345
12345 POSIÇÃO
12345
12345
12345
ATIVIDADE 12345 REALIZAÇÃO
12345
12345
12345
12345
DINAMISMO 12345 MUDANÇA

91
NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.

Gráfico 2: CONSTRUCÕES ALTERNATIVAS – NATUREZA D PREDICAÇÃO (RESUMO)

90%

80%

70%
123456
123456
123456
123456
123456
123456
60% 12345 123456
123456
12345 123456
12345 123456
12345 123456
12345 123456
12345 123456
12345
12345 123456
123456
50% 12345 123456
12345
12345 123456
123456
12345
12345 123456
123456
12345 123456
12345
12345 123456
123456
40% 12345
12345 123456
123456
12345 123456
12345 123456
12345 123456
12345
12345 123456
123456
12345 123456
30% 12345
12345 123456
123456
12345 123456
12345 123456
12345
12345 123456
123456
12345 123456 12345
12345 123456 12345
12345 123456 12345
20% 12345
12345 12345 123456
123456 12345
12345
12345
12345
12345 123456
123456
12345
12345
12345
12345 12345
12345
123456
123456 12345
12345
12345 12345 123456 12345
10% 12345
12345 12345 123456
123456 12345
12345 12345
12345 123456 12345
12345
12345 123456
12345 12345 123456 12345
12345
12345 12345
12345
123456
123456 12345
12345
12345 12345 123456 12345
12345 123456
0%

1a. Oração 2a. Oração


12345
12345
12345
12345
12345 [+ CONTROLE] [- TÉLICO]

12345
[- CONTROLE] [+ DINÂMICO]
12345
12345
12345 [+ TÉLICO] [- DINÂMICO]

Pode-se verificar que as construções alternativas se aproximam das tempo-


rais na prevalência de predicações de atividade sobre predicações de estado, en-
quanto, nas construções lato sensu causais, prevalecem, em geral, as predicações
de estado sobre as de atividade.
Por outro lado, entre as construções lato sensu causais, as condicionais são
as que mais se aproximam das alternativas, o que tem significado relevante, se se
levar em conta que ambos os tipos envolvem pressuposição (García, 1994). Veja-
se a correspondência:

92
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

a) entre uma construção do tipo “se ... (então) ...” e uma construção do tipo
“ou ... ou não...”, como em
• eu acho que se sair antes das seis horas da manhã sai melhor. (D2, SSA, 98, l.
126)
° = eu acho que ou sai antes das seis horas da manhã ou sai pior (=não sai
melhor)
b) entre uma construção do tipo “se ... não ...” e uma construção do tipo
“ou ... ou ...”, como em
• eu acho que se sair antes das seis horas da manhã não sai pior
° = eu acho que ou sai antes das seis horas da manhã ou sai pior

Quanto à combinação de predicações, os dados obtidos estão no Quadro 3,


com resumo no Gráfico 3:

Quadro 3: COMBINAÇÃO DE ORAÇÕES

ORAL ( NURC ) ESCRITO (VÁRIOS)


Natureza das
predicações
IS

S
IS

S”

IS

IS
IVA

IVA
NA

N-A
USA

RA

RA
IVA
ESS

ESS
ICIO

PO

PO
CAT
CA

TEM

TEM
NC

NC
ND

PLI
CO

CO
CO

“EX

CONSTRUÇÕES
ADVERBIAIS

E–E 17% 33% 21% 26% 5% 28% –––


A–E 15% 18% 17% 13% 12% 14% 14%
E–A 10% 6% 8% 8% 18% 8% 9%
A–A 15% 5% 12% 10% 26% 5% 14%
D–A 6% 0% 1% 2% 1% 0% –––
A–D 3% 0% 3% 0% 1% 1% 5%
D–E 4% 0% 7% 5% 3% 3% 5%
E–D 1% 9% 1% 5% 4% 1% –––
Outras [ -TÉL] 16% 22% 13% 20% 8% 32% 9%
[ +TÉL] [ -TÉL] 6% 5% 3% 7% 5% 5% 5%
[ -TÉL] [ +TÉL] 4% 2% 12% 3% 12% 1% 7%
[ +TÉL] [ +TÉL] 3% 0% 1% 0% 5% 2% 11%
[ ∅ ] [ +TÉL] 0% 0% 1% 1% 0% 0% –––

93
NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.

Gráfico 3: COMBINAÇÃO DE ORAÇÕES – RESUMO

100%

90%

80%

70%

CONSTRU˙ ES ADVERBIAIS
60%

50%

40%

30%

20%

10%

0% 0%
0%
C O N D IC IO N A IS C O N C E SSIV A S C A U S A IS O R A L " EX P LIC A T IV A S" T E M P O R A IS C O N C E SSIV A S T E M P O R A IS
OR A L (N U R C ) OR A L (N U R C ) (N U R C ) OR A L (N U R C ) OR A L (N U R C ) ES C R IT O ES C R IT O
( V ˜ R IO S) ( V ` R IO S)

C OM BIN A ˙ E S D E P R E D IC A ˙ ES

2 P RED [ - T É L] 1 P RED [ + T É L] 2 P RED [ + T É L]

Mais uma vez se observa que as temporais se opõem às demais construções


adverbiais, aquelas que envolvem relações lógico-semânticas: as temporais combi-
nam, mais que as outras, duas predicações télicas.
Outra verificação é que as temporais apresentam 0% de combinação esta-
do-estado na modalidade escrita, e apenas 5% na modalidade oral, embora as
predicações de estado sejam altamente ocorrentes nesse corpus. Na verdade, en-
quanto em todas as outras construções adverbiais, a combinação mais ocorrente é
estado-estado, nas temporais a combinação mais ocorrente é atividade-atividade,
tanto na modalidade escrita como na oral.
No cotejo entre modalidade oral e modalidade escrita, o que se observou
foi que, nas temporais, a modalidade escrita tem mais combinação de duas

94
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

predicações télicas (12%) do que a oral (5%), o que, na verdade, tem explicação
na natureza interativa do corpus oral.
Algumas indicações devem, ainda, ser dadas, quanto às diferenças ligadas à
subtipologização das diversas construções examinadas. Assim, pode-se apontar
que:

a) o pequeno número de predicações télicas que ocorre nas construções


condicionais e concessivas se restringe aos subtipos factual e contrafactual: 35%
das condicionais factuais, por exemplo, têm pelo menos uma predicação télica;
b) podem ser télicas as predicações temporais

– com nuança causal, como em

• Mudou de conversa quando alguém perguntou pelas dicas. (REA)

– com nuança concessiva (= mesmo quando), como em

• Além do mais, fui criado na beira da praia e, mesmo quando fui viver na
capital, durante muitos anos, jamais abandonei o hábito de me vestir de acordo
com o clima. (VEJ)

mas não podem ser télicas as temporais com nuança condicional (eventual), como
em

• Não se conformam quando eu digo que não tenho mulher. (Q)

Afinal, o que, em linhas gerais, se conclui da investigação é, em primeiro


lugar, que as orações temporais, que são sempre satélites da predicação – já que
fazem localização temporal dos estados de coisa – têm características básicas dife-
rentes das orações do tipo causal lato sensu, que podem funcionar como satélites
de proposição, e, mesmo, de atos de fala. Essa função de localização temporal dos
estados de coisas implica grande freqüência de escolha de predicações com os
traços + dinamismo e + controle. Além disso, a ancoragem temporal das predica-
ções envolve, mais do que a expressão de relações lógico-semânticas entre propo-
sições e atos de fala, predicações do tipo télico, as quais, no caso das relações
lógico-semânticas, se restringem à expressão de factualidade. Outro dado conclu-

95
NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.

sivo se refere à maior vocação das predicações de estado para exprimir relações
lógico-semânticas, a ponto de não ocorrer no corpus nenhum caso de duas predi-
cações de estado na combinação entre satélite temporal e predicação nuclear.
Por outro lado, a investigação põe em evidência o complexo jogo que cons-
titui a organização dos enunciados, a qual aciona esquemas que o falante organiza
em camadas, desde a seleção de predicado até o revestimento ilocucionário da
frase. Desse modo, dentro das regras organizacionais que estão à disposição no
sistema, o enunciador, dirigido pelas necessidades da comunicação, que envolvem
distribuição de informação com organização das relevâncias, organiza suas cons-
truções mediante escolhas que sejam comunicativamente adequadas. Nessas sele-
ções, controla o fluxo de informação, dosando e alocando, por exemplo, diferentes
tipos de estados de coisas no enunciado.

BIBLIOGRAFIA

CHAFE, W. L. (1987) Cognitive Constraints on Information. In TOMLIN, R. Coherence


and Grounding in Discourse. Amsterdam, John Benjamins, p. 21-51.
DE LANCEY, S. (1981) An Interpretation of Split Ergativity and Related Patterns. Lan-
guage, 57, n. 3, p. 626-57.
DIK, C. S. (1989) The Theory of Functional Grammar. Dordrecht-Holland/ Cinnaminson-
U.S.A., Foris Publications.
DU BOIS, J. W. (1985) Competing Motivations. In HAIMAN, J. (ed.) Iconicity in Syntax.
Amsterdam, John Benjamins, p. 343-65.
GARCÍA, A. L. (1994) Gramática del Español. I – La oracion compuesta. Madrid, Arco
Libros.
PEIRCE, C. S. (1987) Obra lógico-semântica. Madrid, Taurus.

ABSTRACT: This paper focuses upon the complex constructions, in order to


compare the nature of the predications which take part in temporal, causal, con-
ditional and concessive relations. These arrangements are analysed within the
functionalist approach, which considers that the speaker's choices concerning the
distribution of information in the utterance must be included in the grammar.

KEYWORDS: clause combining; state of affairs; functionalism.

96
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

AS ORAÇÕES DE TEMPO SOB UMA


PERSPECTIVA FUNCIONALISTA

Maria Luiza BRAGA*

R E S U M O: Neste artigo, investigo as orações de tempo no português do


Brasil. Inicialmente considero as propostas funcionalistas para a classifica-
ção dos processos de articulação das orações. A seguir, examino os fatores
que impedem a mudança da ordem das orações que constituem o enuncia-
do de tempo.

PA L AVRAS-C H AVE: oração de tempo; dependência e encaixamento;


posição.

As abordagens funcionalistas em lingüística, dada sua concepção de lin-


guagem como instrumento de comunicação, priorizam a investigação do texto.
Este é concebido como uma unidade semântica (Halliday, 1985) e para ele, em
princípio, a questão da dimensão não deveria se colocar. Como a grande maioria
dos textos, no entanto, se constitui de dois ou mais enunciados, torna-se crucial
entender a maneira como estes se combinam. A este respeito, numerosas ques-
tões podem ser levantadas: são as partes que compõem uma sentença intercam-
biáveis livremente? Existe uma ordem preferencial para cada tipo de oração?
Assumindo que haja uma ordem não-marcada, como explicar as ocorrências
marcadas? Quais as diferenças gramaticais entre orações coordenadas e subordi-
nadas? Podem as relações semânticas ser sinalizadas independentemente de uma
conjunção?
Neste trabalho, considero as duas primeiras perguntas, restringindo-me às
orações de tempo. Inicialmente caracterizo as chamadas orações subordinadas
adverbiais; na segunda parte, identifico a ordem neutra das orações de tempo,
procurando explicitar os mecanismos que inibem a alteração da ordem em que se
dispõem. A conclusão é apresentada a seguir.

* Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. 97


BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.

1. AS ORAÇÕES DE TEMPO

A abordagem gramatical tradicional inclui as orações iniciadas por conec-


tivo subordinativo temporal entre as subordinadas adverbiais. A título de exem-
plo, observem-se as caracterizações oferecidas por Rocha Lima e Cunha, apresen-
tadas abaixo respectivamente:

“É papel da oração temporal trazer à cena um acontecimento ocorrido an-


tes de outro, depois de outro ou ao mesmo tempo que outro. Para cada um
desses aspectos possui a oração temporal, quando desenvolvida, conjun-
ções apropriadas.” (1965, p. 283)

(as orações subordinadas adverbiais) “funcionam como adjunto adverbial


de outras orações e vêm normalmente introduzidas por uma das conjun-
ções subordinativas... classificam-se em temporais, se a conjunção é subor-
dinativa temporal.” (1970, p. 409-12)

Matthiessen e Thompson (1988) questionam a inserção das temporais no rol


das subordinadas. Baseando-se na proposta desenvolvida por Halliday, distribuem
as orações em dois grandes blocos: o das subordinadas (encaixadas, na terminologia
de Halliday) e o das orações combinadas por parataxe ou por hipotaxe. Para efetuar
esta caracterização, valem-se dos traços encaixamento e dependência, como revela
o quadro abaixo:

parataxis hipotaxis subordinação


encaixamento - - +
dependência - + +

O uso dos traços listados acima – encaixamento e dependência – embora


recorrente entre os funcionalistas, tem variado segundo a proposta e conveniênci-
as dos diferentes autores. Hopper e Traugott (1993), por exemplo, reproduzem o
quadro acima e o interpretam à luz do paradigma da gramaticalização. A parataxe,
por envolver orações mais frouxamente vinculadas, seria um processo menos
gramaticalizado do que a subordinação, grau máximo do processo, por exibir ora-
ções intimamente integradas: uma das orações, a subordinada, não só funciona
como constituinte da outra, a matriz, como pode também ter suas propriedades
gramaticais determinadas pela mesma matriz. A hipotaxe, por seu turno, ocupa a

98
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

posição intermediária e inclui as orações que codificam circunstâncias (tempo,


causa, condição, concessão, etc.). Elas se teriam originado da reanálise de sintagmas
adverbiais e não constituem um bloco totalmente homogêneo no que diz respeito
ao grau de integração, “um continuum que se correlaciona com sua função.” (1993,
p. 176)
Foley e van Valin também usam os traços encaixamento e dependência,
mas atribuem diferentes rótulos à combinação dos mesmos e, mais importante,
incluem as chamadas orações adverbiais entre as subordinadas como mostra o
quadro abaixo

coordenação subordinação co-subordinação


encaixamento - + +
dependência - + -

Sustentam eles que

“subordinate nexus is the type in which one junct is embedded in the other,
and, consequently, the juncts function as composite unit. Subordinate nexi
are wide spread in languages.... Subordinate nexus at the peripheral layer is
very common in many languages. The best-known examples are adverbial clau-
ses (itálico meu) in which a clause is subordinated and function as an adver-
bial modifier of the main clause.” (1984, p. 249)

O argumento utilizado por Foley e van Valin para justificar a caracterização das
adverbiais como subordinadas é rejeitado por Matthiessen e Thompson (1988). De-
fendem os últimos que as chamadas subordinadas adverbiais, diferentemente das
encaixadas, que funcionam como um constituinte da oração matriz, não se compor-
tam como um advérbio ou adjunto de sua oração ‘principal’. Estas orações não pode-
riam ser substituídas por um SPREP que preserve o mesmo sentido:

“When we replace one of them with a prepositional phrase in context,


trying to preserve part of the meaning, we will typically find that the
complement of the preposition is a nominalization, not an ordinary noun,
and this is quite significant.” (1988, p. 280)

Além do mais, continuam, as orações adverbiais podem combinar-se ou


com uma única oração ou com uma seqüência de orações. No primeiro caso, ainda
se poderia falar em uma função de advérbio, mas não no segundo:

99
BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.

“When one clause combines with just one other clause, it may seem to
function as an adverbial, although it does not. But when one clause combi-
nes with a combination of clauses, it is quite clear that there is no single
clause it could be an embedded constituent part of.” (1988, p. 280)

Examinei os dados do português oral à luz dos argumentos apresentados


por Matthiessen e Thompson e verifiquei que eles se sustentam parcialmente.
Com efeito, a substituição da oração de tempo por um SPREP cujo núcleo não seja
uma nominalização é restrita e leva em consideração o tipo de predicado. Abaixo
apresento uma das poucas ocorrências1 em que a paráfrase foi possível:

(1)
Inf: Quando era no meu tempo, a gente andava de bicicleta
(DID, POA, 045, p. 12)
No meu tempo, a gente andava de bicicleta

Quanto ao segundo argumento, vale mencionar que em português também


encontrei ocorrências em que uma oração de tempo se vinculava não a uma outra
oração, mas a uma seqüência de orações, como ilustra o trecho seguinte:

(2)
Inf: ...quando chegou o balê russo aqui em São Paulo eles pediram que a alunas da
Prefeitura que éramos nós... aquele grupo todo fosse fazer cena num dos nú-
meros que eles apresentam era Pássaro de Fogo me parece... (DID, SP, 281, p.
110)

Em outras ocorrências, um conjunto de orações de tempo vincula-se a ape-


nas uma oração núcleo, como mostra o exemplo seguinte. Observe que a conjun-
ção da segunda oração de tempo não vem explicitada, cabendo ao ouvinte recuperá-
la:

1
Os dados examinados neste artigo foram extraídos das amostras de fala que constituem o acervo do Projeto
NURC. Foram investigados os seguintes inquéritos:
Rio de Janeiro São Paulo Porto Alegre Recife Salvador
DID 328 234 045 131 251
D2 355 360 291 005 098
EF 379 405 278 337 049

100
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

(3)
Inf: ...foi buscar umas galinha e trouxe tudo dentro de um saco. Encheu dois saco
de galinha. Quando ele chegou em casa e começou a tirar aquelas galinha, era só
galinha morta que saía (DID, POA, 045, p. 17-8)

Há ainda uma terceira opção que consiste na vinculação de dois conjuntos


de orações, um deles consistindo de orações de tempo:

(4)
Inf: ...é notar ... que quando eu pergunto o que estuda a sociologia do direito eu pode-
ria perguntar também o que estuda a sociologia jurídica e eu estaria fazendo a
mesma pergunta... (EF, REC, 337, p. 05)

Este comportamento não é específico das orações de tempo. Os enuncia-


dos condicionais e os modais hipotéticos também exibem o mesmo leque de op-
ções no que diz respeito à configuração sintagmática das orações que os compõem,
como demonstraram Ferreira (1997) e Amparo (1997), respectivamente. Estes
aspectos, embora relevantes, não serão aprofundados aqui. Aceito, porém, na li-
nha de Halliday e de Matthiessen e Thompson que as chamadas adverbiais cons-
tituem um processo distinto do das encaixadas, razão pela qual a partir de agora
passo a me referir à(s) oração(ões) que com elas se combinam como oração núcleo
à semelhança de Amparo (1997), Crocci de Souza (1996), Decat (1993), Ferreira
(1997), e Neves (1997).

2. A POSIÇÃO DAS ORAÇÕES DE TEMPO

No discurso oral examinado, as orações de tempo tendem a ocorrer ante-


postas à oração núcleo com que se articulam. Meus achados divergem, portanto,
dos encontrados por Crocci de Souza (1996), uma vez que no discurso escrito a
ordem neutra parece ser a posposição. Tais diferenças referendam as descobertas
prévias de Decat (1993) que mostrou que a ordem das orações de tempo nas nar-
rativas varia segundo o registro. As diferenças entre fala e escrita, no que tange
aos dois registros, embora sutis, têm-se revelado consistentes. Com efeito, as ora-
ções condicionais e as modais-hipotéticas introduzidas por como se, examinadas
por Ferreira (1997) e Amparo (1997), respectivamente, exibem distribuição simi-

101
BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.

lar. A posposição das condicionais e a anteposição das modais hipotéticas, or-


dem marcada, são mais prováveis na escrita do que na fala. As discrepâncias na
distribuição parecem explicar-se pelas características diferenciadas dos dois pro-
cessos.
As orações antepostas circunscrevem a moldura temporal em que se ins-
tancia o estado de coisas codificado pela oração núcleo que se pospõe a ela. Já as
pospostas servem para delimitar, restringir a asserção codificada pela oração nú-
cleo. Este efeito parece decorrer da posição e independer da língua em questão.
Thompson (1985) e Ford (1988), por exemplo, já haviam salientado a correlação
entre efeito de sentido e posição, ao estudarem as orações hipotáticas de realce no
inglês.
Os trechos (1), (2), (3) e (4), acima, ilustram ocorrências de anteposição,
enquanto que (5) abaixo exemplifica a posposição:

(5)
Loc. É tão melhor...basta olhar a estrada que você vê, não é? (RINDO) A Ba...
A Castelo Branco, por exemplo, chama a atenção quando você chega...
(D2, SSA, 098, p. 10)

A manipulação das orações que constituem o enunciado de tempo, mor-


mente quando descontextualizado, sugere que a ordem das mesmas, em numero-
sas circunstâncias, poderia ser revertida sem prejuízo para a gramaticalidade. Cer-
tas ocorrências, espontaneamente produzidas, parecem comprovar esta possibili-
dade, como mostra o exemplo abaixo. Em uma curta seqüência, a falante reitera
um mesmo conteúdo proposicional, valendo-se praticamente da mesma configu-
ração sintagmática, alterando, no entanto, a ordem das orações de tempo face a
núcleo:

(6)
DOC: ... e tal eu gostaria de saber que tipo de filme a senhora mais aprecia...
tá? e:: o que mais chama atenção da senhora para ir ao cinema quando
a senhora vai que a senhora disse que vai poucas vezes ao cinema.
INF: é.
DOC: né? Então eu gostaria de saber quando a senhora vai ao cinema... o que
mais precisa conter o cinema para levar a senhora até ele?
(DID, SP, 281, p. 111)

102
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Face a ocorrências semelhantes a esta, cabe indagar se a posposição e a


anteposição são irrestritametne intercambiáveis ou se existem princípios sistemá-
ticos associados ao uso de uma certa ordem.
O exame empírico dos dados mostra que há um conjunto de orações,
algumas antepostas, outras pospostas, cuja ordenação não admite manipulações.
No primeiro grupo, sobressaem aquelas que funcionam como um tópico senten-
cial.
A possibilidade de uma oração poder codificar o tópico foi sustentada por
Haiman (1985) após verificar que, em numerosas línguas não relacionadas, as
prótasis condicionais eram sinalizadas pelos mesmos morfemas, ou morfemas se-
melhantes, utilizados na acodificação de tópicos sentenciais:

“The protasis forms a background against which a comment is proffered....a


conditional protasis is to logical informational structure what a topic is to a
more general kind of informational structure: the groundwork for some
forthcoming addition to the scene.” (apud Sweeteser, 1991, p. 125)

Comentando a posição de Haiman, Sweetser indaga em que medida a pos-


sibilidade de funcionar topicamente seria uma propriedade não das condicionais,
em particular, mas das adverbiais antepostas.
Com relação aos enunciados que me interessam, vale ressaltar que apenas
algumas poucas orações funcionam como tópico, tratando-se, pois, de opção alta-
mente marcada. A mudança da ordem nestas circunstâncias vê-se bloqueada, já
que a posição, juntamente com as frouxas relações com a oração núcleo seguinte,
é que permite identificar a oração anteposta como um tópico sentencial. O exem-
plo abaixo ilustra o que estou afirmando:

(7)
Inf: .. está claro até aí?... então, (es)tá entendido até aqui. Bom, agora, extrapolação.
Vejam que quando nós estamos falando em compreensão, é a primeira ginástica
mental que o indivíduo faz com a informação. (EF, POA, 278, p. 10)

Dentre as orações pospostas, a metade não admite a reversão da ordem. Os


fatores que impedem a alteração são de natureza distinta, alguns tendo a ver com
o processamento cognitivo. Os adendos, tradução para afterthoughts, incluem-se
neste rol. Segundo Chafe (1988), eles são motivados pela necessidade que o falan-
te sente de precisar, delimitar, explicar um enunciado concebido como uma unida-

103
BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.

de semanticamente auto-suficiente e produzido como uma unidade entonacional


final de sentença. Esta necessidade leva-o, então, à produção de uma nova oração.
A pausa e a freqüente inserção de marcadores discursivos entre as orações atestam
o caráter tardio da segunda.

Inf:... pão é uma coisa que eu não tenho por hábito comer... eu não sei se é porque
eu... eu fico com remorsos até de comer o pão... sabe?... Quando eu como.
(DID, RJ, 328, p. 144)

Por vezes o adendo atende a uma função metalingüística, isto é, o falante


parafraseia um item lexical referido previamente sob a forma de uma oração de
tempo.

Inf: ...pelo menos nos últimos anos tem havido um acordo entre a classe patronal
e a classe trabalhadora a fim de que se evite o chamado dissídio coletivo...
quando não há um acordo entre patrões e empregados. (DID, REC, 131, p. 02)

Até o momento considerei aquelas ocorrências em que a ordem e função se


interdeterminam mutuamente. Há, porém, outros fatores que explicam a posição
sem que estejam forçosamente correlacionados ou à posposição ou à anteposição
da oração de tempo, como o estão as funções de adendo e de tópico sentencial.
Estou me referindo à presença do item então, e do focalizador só.
Ao estudar a trajetória de então, sob a perspectiva da gramaticalização,
Martelotta (1994) atribui-lhe seis usos: seqüencial, introdutor de informações li-
vres, retomador de assunto, conclusivo, alternativo e intensificador. Com relação
ao primeiro, assevera:

“Minha hipótese é que, assim como ocorre com o operador a í, o uso se-
qüencial de então é proveniente do uso anafórico deste elemento, pois su-
bentende-se que então (= neste momento) alude ao momento em que se
conclui o evento anterior. Ocorre aí uma gramaticalização por pressão de
informatividade nos moldes do que está desenvolvido em Traugott & Kö-
nig, em que se pode inferir, de determinados contextos em que ocorre então
anafórico um valor seqüencial de base temporal.” (1994, p. 138).

O exame dos enunciados temporais mostra que então pode ocorrer quer na
oração de tempo posposta, imediatamente após o conectivo subordinativo quan-

104
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

do, como mostra o trecho (8), quer na oração núcleo posposta, iniciando-a, como
ilustram as orações em (9).

(8)
Loc: eles me deram de volta uma série de duplicatas pra que eu assinasse e, eu e o
fiador... e isso então foi entregue de volta e eu esperei uns dois ou três dias
até que fosse aprovado quando então eles me abriram uma conta bancária e
nessa conta. (D2, RJ, 355, p. 100)

(9)
Inf: Naquele tempo do...quando eu estava estudando, acho que uns vinte anos atrás
no Belas Artes, então tinha (concerto) todos meses ou toda semana, vinha
muito pianista estrangeiro. (DID, POA, 045, p. 22)

Inf: a gente aproveita e dá uma voltinha, né?...ou também quando tem uns amigos de
São Paulo que vêm pra ca, então a gente aproveita e se reúne aquele dia, né?
(DID, POA, 045, p. 08)

Loc 1: quando sai.. aquela folia assim de correr atras dela então ela... se cala um
pouco. (D2, SP, 360, p. 142)

Os exemplos acima exibem alguns dos usos do então no discurso oral con-
temporâneo. (8) exemplifica um uso adverbial, parafraseável por na ocasião. Esta
acepção dilui-se nos trechos de (9), tornando-se problemático identificar a leitura
predominante, se temporal, se seqüencial.
Sob a perspectiva da gramaticalização tais exemplos são bastante ricos. Por
um lado, eles testemunham a coexistência das diferentes fases do processo da gra-
maticalização num momento da língua, o que levou Castilho (1997) a afirmar que
“registros desta modalidade (sincronia) guardam uma sorte de ‘memória históri-
ca’”. Por outro lado, além de confirmarem a hipótese de Martelotta, mostram que
o processo de gramaticalização começa por se instanciar em contextos restritos,
no caso o enunciado de tempo, e potencialmente ambíguos, isto é, capazes de
abrigarem leituras polissêmicas de um mesmo item.
Quanto à ordem, o que importa salientar é que a oração em que ocorre o
item então, seja ela a oração de tempo ou a núcleo, vem sempre à direita e não
pode ser deslocada à esquerda. O que impede a mudança da ordem é uma restri-
ção de caráter mais geral, qual seja, o funcionamento anafórico, seqüencial de um

105
BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.

item. Com efeito, só se pode identificar uma anáfora ou uma seqüenciação após a
menção do referente que se recupera ou ao qual se segue outro. Este mesmo fator
é que dá conta de exemplos como os seguintes:

(10)
Inf: Pronto o camarão, exatamente quando aquele queijo fica todo derretido, envol-
ve o camarão. (D2, POA, 291, p. 10-1)

Por fim há a considerar a ocorrência da focalização de um dos constituintes


da oração núcleo por meio de só, como exemplificam os trechos seguintes:

(11)
Loc: 2: mas eu não vejo televisão, já lhe disse; eu só vejo a televisão quando tem
futebol. (D2, REC, 05, p. 09)

Inf: Quando ele chegou em casa e começou a tirar aquelas galinha, era só galinha
morta que saí.a (DID, POA, 045, p. 17-8))

O primeiro exemplo em (11) mostra que a anteposição de quando tem fute-


bol propicia um enunciado gramatical, mas com significado diverso daquele que se
obtém com a posposição. Quanto ao segundo trecho, os impedimentos à antepo-
sição são reforçados pela clivagem da oração núcleo e pelo fato de a noção de
tempo estar codificada em duas orações adverbiais coordenadas entre si. Sob a
perspectiva da ordem, interessa salientar que a focalização de um constituinte da
oração núcleo por meio de só, venha ela anteposta ou posposta à oração de tempo
com que combina, parece ancorar uma certa ordem, impedindo posteriores mani-
pulações.

3. CONCLUSÃO

Neste artigo, investiguei as orações de tempo no português falado no Bra-


sil. Inicialmente, considerei as propostas mais recorrentes de classificação das ora-
ções na literatura funcionalista. À semelhança de Halliday e de Matthiessen e
Thompson, defendo que as orações de tempo iniciadas por conectivo subordinati-
vo não exibem o traço encaixamento, razão pela qual considerei-as como um caso

106
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

de hipotaxe de realce. A seguir, examinei aquelas ocorrências em que a ordem


das orações que constituem o enunciado de tempo não pode ser alterada. Mos-
trei que, com relação às orações que funcionam como tópico sentencial e aden-
do, posição e função se interdeterminam mutuamente. A posição é um dos cri-
térios identificadores da função. Por fim, estudei aqueles enunciados em que
ocorre o seqüenciador então ou o focalizador só. Mostrei que estes elementos
cristalizam a ordem das orações que constituem o enunciado em pauta, sem que
sua ocorrência esteja, todavia, categoricamente associada ou à oração núcleo ou
à oração de tempo.

BIBLIOGRAFIA

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Tese de Doutorado. PUC-RJ.
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ROCHA LIMA, C. H. (1965) Gramática normativa da língua portuguesa. 11. ed. Rio de Janeiro,
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D. (ed.) Meaning, form and use in context. Proceedings of the 1984 Georgetown University
Roundtable on Linguistics. Washington, D.C., Georgetown University Press.

ABSTRAC T: In this article I examine time clauses in spoken Brazilian Portu-


guese. The article has two parts: in the first, I consider functional proposals to
deal with the processes of clause combining; in the second one I investigate the
constraints which inhibit the positional variability of time clauses.

K E Y W O R D S: time clause; dependency and embbeding; order.

108
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

METODOLOGIA DE PESQUISA
EM PORTUGUÊS FALADO

Paulo de Tarso GALEMBECK*

R E S U M O: Este trabalho discute a metodologia da pesquisa em língua fala-


da. Para a consecução desse objetivo, são apresentadas as características da
língua falada e, a seguir, expõem-se os princípios do método empírico-indu-
tivo e do funcionalismo. Encerra o trabalho o exame dos procedimentos para
a realização de pesquisas em língua falada e dos temas em que se desdobra
esse tema.

PA L AVRAS-C H AV E: língua falada; metodologia de pesquisa; empirismo;


indução; funcionalismo.

1. CARACTERÍSTICAS GERAIS DA LÍNGUA FALADA

A língua falada tem, como uma de suas características mais evidentes, o fato
de ser planejada localmente, no momento de sua execução. Isso confere a ela um
caráter fragmentário, que pode ser verificado tanto no plano de construção da frase
ou enunciado como no da seqüência de assuntos. Para verificar falta de continuida-
de no plano da construção do enunciado, verifique-se o exemplo a seguir:

(Ex. 01) (...) o [meu irmão] mais novo... fez o curso de Agronomia em Piracicaba... foi
trabalhar na fazenda... acabo::u se desentendendo com meus pais... então
hoje ele é agrônomo do Estado... trabalhando no:: Instituto de:: Pesca... no
Posto de Piscicultura de Americana (...)
(EF, SP, 208, l. 149-54)

Nota-se, no exemplo anterior, que o informante fala em “jatos”: cada jato


corresponde a uma porção do enunciado e essa porção é relativamente isolada das
demais; exceto então, não há conectivos. Há muitas pausas (indicadas pelas reti-

* Universidade Estadual Paulista – UNESP – Araraquara. 109


GALEMBECK, Paulo de Tarso. Metodologia de pesquisa em português falado.

cências) e alongamentos (de::), os quais também constituem marcas de planeja-


mento local.
O mesmo caráter fragmentário é encontrado no plano da seqüência de as-
suntos:

(Ex. 02) (...) em mil novecentos e trinta e nove em janeiro eu::... fui operado de apên-
dice... estava na Casa de Saúde Santa Inês quando houve um:: parto de uma
japonesa menor de idade... mãe solteira... ((pigarreou)) sendo mãe solteira...
a ... própria mãe da parturiente ou seja a avó da criança... tentou estrangular
arecém-nascida (...)
(EF, SP, 208, l. 158-63)

O informante está relatando um fato e introduz as informações que julga


necessárias para que o ouvinte possa contextualizar e compreender o fato narrado:
a operação de apêndice; o parto de uma japonesa; o fato de a japonesa ser menor de
idade e mãe solteira; a tentativa de estrangulamento. Esses fatos – embora relacio-
nados entre si – sucedem-se sem um plano previamente definido.
Outra característica da língua falada é o fato de haver um contexto co-
mum partilhado entre os interlocutores, já que a interação falada pressupõe a
identidade temporal (conversações telefônicas, apenas a identidade temporal).
A essa identidade temporal e espacial corresponde o engajamento numa tarefa
comum, qual seja, a construção do texto conversacional. Por causa desse engaja-
mento, são freqüentes as marcas da presença do próprio falante (atestada pelos
pronomes e formas verbais da primeira pessoa) e do ouvinte (pronomes de segun-
da pessoa e marcadores de busca de aprovação discursiva: né?, sabe?, entende? e
assemelhados):

(Ex. 03) L2 eu:: eu lhe perguntaria aídentro desse problema... você não possui uma...
um controle — digamos assim — em cima de você você deve produzir tanto
num dia... ou... ou existe isso ou digamos um dia de chuva esta um dia horrível
para trabalhar um dia que você está indisposto você poderia pegar voltar para
sua casa entrar num cinema distrair um pouco, entende?... que (que você)
você poderia fazerisso?
L1 não... pode perfeitamente eu acho que::essa::essa::...essaresponsabilidade...
elanoséatribuída...inclusive::dentro da profissão de vendas o que:: interessa
é::...faturar... entende?... para eles pouco importa:: às vezes a::
(D2, SP, 062, l. 251-62)

110
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

A presença das formas assinaladas constitui um índice do envolvimento


recíproco e simultâneo do interlocutor com o desenvolvimento do ato conversa-
cional. Esse envolvimento também pode ser verificado no âmbito do desenvolvim-
ento do tópico ou assunto da conversação: uma das propriedades do texto conver-
sacional é a centração, ou fato de os interlocutores terem a atenção voltada para a
construção desse assunto.
Na seqüência do trabalho, será discutida a metodologia de pesquisa em lín-
gua falada, a partir das características enunciadas.

2. METODOLOGIA DE PESQUISA EM LÍNGUA FALADA

2.1 O MÉTODO EMPÍRICO-INDUTIVO

As características da língua falada, a extrema variabilidade que define essa


modalidade de língua e o fato de o material de estudo ser obtido em situações reais
de interação espontânea e não-planejada impõem a adoção do método empírico-
indutivo. Com efeito, os dados coletados excluem, por si, o uso de um modelo
formal estabelecido previamente, a partir de hipóteses formuladas aprioristicamen-
te e de intuições sem correspondência com a realidade. Em outros termos: a fluidez
e a falta de planejamento prévio requerem uma metodologia específica, que dê
conta dos fenômenos peculiares a essa modalidade de língua. Esses fenômenos,
extremamente variados (e até mesmo imprevisíveis), excluem um método baseado
unicamente em categorias “prontas” e pré-estabelecidas. Mais que adequar os fatos
da língua falada a determinados padrões ou gabaritos, cabe ao analista criar e recri-
ar continuamente categorias que tenham uma correspondência real com o objeto
do seu estudo. Isso porque os fenômenos que mais de perto caracterizam a língua
falada têm uma correspondência direta e imediata com o contexto, e a situação de
enunciação e com as condições de produção do enunciado, e não com as categorias
do sistema lingüístico (em sentido estrito).
Essa postura metodológica, aliás, é defendida pela funcionalista americana
Sandra Thompson, em entrevista concedida à professora Rosália Dutra: “Na ver-
dade, qualquer estudo empírico de uma língua está muito mais voltado para ques-
tões de rigor ou precisão metodológica que um estudo não-empírico. O enfoque
funcionalista é bastante empírico e nesse sentido muito mais rigoroso do que um

111
GALEMBECK, Paulo de Tarso. Metodologia de pesquisa em português falado.

enfoque baseado exclusivamente em intuições. No entanto, há uma aura de objeti-


vidade envolvendo esses modelos formais atuais, a impressão de que se está sendo
objetivo ao estudar um sistema como tal. E isso, eu acho, não tem nada a ver com
precisão ou rigor metodológico.” (Dutra, 1993, p. 227)
Há dois pontos a serem salientados na elocução de S. Thompson. O primei-
ro é a questão do rigor ou precisão metodológica que decorre do estudo empírico da
língua. Ao contrário do que comumente se acredita, o método hipotético-dedutivo
não constitui uma garantia prévia de rigor científico, já que algumas hipóteses flu-
em de dados intuitivos, sem correspondência direta com a realidade. Outro ponto
que merece realce é a verificação de que os modelos formais não são, em si, objeti-
vos. Aliás, opera-se, a este respeito, um notável equívoco, pois muitos confundem
formalização com rigor científico. Ora, o estudo empírico vem demonstrar, exata-
mente, que há (particularmente na língua falada) fenômenos que escapam à forma-
lização. É preciso, então, considerar que a preocupação obsessiva com a formaliza-
ção conduz ao mascaramento de dados e, ademais, que há dados relevantes para o
estudo da língua falada que escapam a qualquer tentativa de formalização: é o caso
de certas noções relevantes, como cooperação, participação conjunta, contexto,
entre outras. Trata-se de noções pré-teóricas, sem dúvida, mas não menos relevan-
tes para o estudo da língua falada.
O que foi dito não deve ser visto como uma recusa prévia de hipóteses e da
formalização dos dados. Ao contrário, é preciso considerar que podem ser formula-
das hipóteses, desde que elas não correspondam a meras intuições, mas a dados
reais recorrentes no córpus. Da mesma forma, não se descarta liminarmente a for-
malização dos dados. Ocorre, porém, que a formalização não constitui um objetivo
em si, mas tão-somente um meio para a explicação dos fenômenos. Cabe acres-
centar, ademais, que a preocupação excessiva com a formalização pode escamo-
tear alguns fenômenos que escapam a qualquer classificação em categorias pré-
existentes.
A prevalência do método empírico-indutivo nos estudos da língua falada foi
também salientada por Marcuschi (1986, p. 07): “Quanto à característica metodo-
lógica básica, a AC [Análise da Conversação] procede por indução: inexistem
modelos apriori. Ela parte de dados empíricos em situações reais. Daí não conside-
rar como adequado os materiais de “conversações” extraídas de obras literárias,
filmes, peças de teatro ou novelas de TV, por mais fiéis que pareçam, já que estas
serão sempre construções reproduzindo nossa intuição da fala real. Esse primado do
empírico dá à AC uma vocação naturalística com poucas análises quantitativas,
prevalecendo ainda as descrições e interpretações qualitativas.”

112
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

A citação do Prof. L. A. Marcuschi reitera o primado do empírico nos estu-


dos concernentes à língua falada e postula, ademais, a inexistência de modelos
prévios; os modelos devem ser estabelecidos a partir dos dados obtidos. O citado
Autor também enfatiza que nos estudos da língua falada prevalecem as descrições e
interpretações qualitativas e que neles há, portanto, poucas análises quantitativas.
Apesar do que é expresso nessa última observação, pode-se admitir que os estudos
da língua falada conduzem a análises quantitativas, baseadas na freqüência dos
dados e na probabilidade da ocorrência dos mesmos.
O que foi dito nos parágrafos anteriores não deve ser interpretado como a
recusa de qualquer referencial teórico ou metodológico no estudo da língua falada.
Ao contrário, as características da língua falada constituem, por si, balizas que ori-
entam o estudo dessa modalidade de língua e impedem uma visão distorcida dos
assuntos tratados. Há que se considerar, ademais, os princípios da gramática fun-
cional, teoria centrada na interação entre os usuários e na competência comunica-
tiva dos mesmos.
A seqüência do trabalho expõe, resumidamente, os princípios da Gramática
Funcional e a pertinência dos mesmos nos estudos da língua falada.

2.2 PRINCÍPIOS DA GRAMÁTICA FUNCIONAL

Dik (1989, p. 5 e ss.) estabelece os seguintes princípios para o estudo da


língua falada:

a) as línguas naturais constituem instrumentos de interação social e têm


por função estabelecer comunicação entre os seus usuários;
b) o correlato psicológico de uma língua natural é a competência comuni-
cativa dos usuários, ou seja, sua habilidade para entrar em interação com outro
usuário por meio da linguagem;
c) o sistema lingüístico não existe por si, nem funciona isoladamente, pois é
parte da realidade social e psicológica que cerca o indivíduo;
d) a linguagem é adquirida na interação;
e) o componente “central” da organização lingüística é o pragmático.

Os postulados da Gramática Funcional representam um referencial teórico e


metodológico conveniente para o estudo da língua falada, à medida que consideram

113
GALEMBECK, Paulo de Tarso. Metodologia de pesquisa em português falado.

a língua um instrumento de interação e comunicação entre os usuários, valorizan-


do, em conseqüência, a capacidade de os usuários utilizarem a linguagem para en-
trar em interação com outros usuários. Essas idéias representam um alargamento
considerável da noção de competência lingüística formulada por Chomsky, a qual
se baseava na capacidade de um falante-ouvinte ideal formular (gerar) frases que
nunca proferiu anteriormente, de compreender frases que nunca tenha ouvido e de
distinguir frases gramaticais de outras agramaticais. O modelo de Chomsky valoriza
o saber lingüístico internalizado pelo falante (conjunto de regras); esse saber, inato
ao falante, constitui verdadeiramente uma marca da espécie humana e não pode
ser atingido pela via empírico-indutiva. Ora, a competência do falante não se exer-
cita numa situação idealizada, nem pode ser verificada inabstracto, mas ocorre numa
situação real de troca de mensagens entre dois indivíduos, os quais interagem soci-
almente. Por isso mesmo, não basta explorar o código, nem considerá-lo instru-
mento de comunicação, mas se torna necessário levar em conta outros elementos
igualmente relevantes, como o referente, o contexto, o canal de comunicação, o
código. Cabe reconhecer, ademais, que esse conjunto integrado de elementos não é
estático, mas possui um dinamismo intrínseco, devido à interação que entre eles
ocorre. Esse dinamismo, aliás, pertence a todas as formas de interação verbal, mas
se torna muito mais evidente na fala.
Esse alargamento de posições permite que se fale não mais em competência
lingüística, mas em competência comunicativa, que abrange não só a construção e
o reconhecimento de frases aceitáveis ou “bem formadas”, mas também a capaci-
dade de construir unidades mais amplas que a frase e reconhecer a adequação des-
sas unidades às condições de uso em situações reais e de forma articulada com
outros códigos (não-verbais) (Fonseca e Fonseca, 1977, p. 60).
Essa ampliação do conceito de competência (da competência do sistema
para a da comunicação e da interação) é essencial para o estudo da língua falada
enquanto instrumento de interação efetiva entre dois ou mais interlocutores. Isso
porque é na fala que se torna mais evidente o papel da língua como instrumento
de interação entre os usuários, parte integrante de um dado contexto social e
psicológico. É nessa modalidade de língua, aliás, que o uso dos elementos lingüís-
ticos e paralingüísticos se torna mais dinâmico, pois o falante vê-se compelido a
ajustar esses elementos às diferentes situações de comunicação e ao contexto.
Por isso mesmo, a competência comunicativa não é inata, nem depende apenas
de esquemas mentais prévios ou de estímulos exteriores, mas se exercita e desen-
volve na própria interação. Nesse sentido, a competência comunicativa é tam-
bém interativa.

114
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Evidentemente, o alargamento de posições (do sistema para a interação e da


frase para o texto) acarreta uma mudança nas diretrizes metodológicas dos estudos
lingüísticos. O problema se coloca porque é preciso abandonar a prospecção do
geral, do estável, do categórico, em favor do estudo de unidades problemáticas, que
só se definem a partir do uso efetivo. Além disso, cabe abandonar a postura do
estudioso que se dedica ao levantamento de um objeto autônomo e bem caracteri-
zado, para um estudo de vários planos que se entrecruzam e se embricam (o fonoló-
gico, o morfossintático, o discursivo-textual).
Pode-se argumentar que sem a busca do estável e do constante e sem um
objeto autônomo e delimitado não seria possível falar em estudo científico da lín-
gua. O problema é que a busca da unidades estáveis e autônomas não condiz com a
extrema variabilidade de língua falada. Caberá partir não das unidades em si (en-
quanto unidades autônomas), mas do processo interativo, ao uso que dessas unida-
des se faz em situações reais de interação. Essa postura permite ordenar o aparente
caos da língua falada, pois não há a preocupação de encaixar os elementos em
categorias prontas e pré-determinadas, mas em verificar o papel desses elementos
no estabelecimento e desenvolvimento da interação verbal. É o primado do
discursivo, do pragmático, sobre o lingüístico (em sentido estrito), da interação
sobre o sistema.
O que foi dito anteriormente não deve ser encarado como uma recusa
liminar e deliberada da formalização e da categorização. O que se pretendeu afir-
mar é que a classificação e a formalização não devem impor modelos fechados e
prontos, com categorias previamente definidas. A formalização e a categorização
são necessárias, mas não como ponto de partida, pois a elas chega-se após a orde-
nação e classificação dos dados. A postura inversa (ou seja, partir-se da teoria e
dos conceitos genéricos) não consegue dar conta dos fenômenos próprios da lín-
gua falada.

2.3 EXECUÇÃO DA PESQUISA EM LÍNGUA FALADA

A execução da pesquisa abrange três fases: a) a preparação da pesquisa; b) a


execução dos inquéritos; c) a exegese e análise dos materiais recolhidos.
Na primeira fase, ocorre a definição prévia da área e/ou dos informantes que
se constituirão em objeto da pesquisa. É preciso que a definição de uns e outros
corresponda diretamente ao objetivo do trabalho de investigação. Por exemplo, se
houver interesse em estudar a linguagem dos migrantes nordestinos na área metro-

115
GALEMBECK, Paulo de Tarso. Metodologia de pesquisa em português falado.

politana de São Paulo, caberá selecionar um ou mais bairros que apresentem con-
centração de habitantes originários do Nordeste e, também, escolher informantes
que vivam nessas comunidades e sejam oriundos daquela região. Após a delimita-
ção da área, caberá efetuar estudos acerca de sua história e de suas características
físicas e humanas, como forma de compreender melhor os traços de sua população.
Caberá, também, definir o material a ser coletado (entrevistas, conversações casu-
ais, etc.), de acordo com a finalidade da pesquisa e as características dos informan-
tes. Uma pesquisa acerca do léxico, com certeza, requererá a realização de uma
entrevista com perguntas dirigidas para a obtenção de informações específicas. Ainda
nessa fase inicial (preparação da pesquisa) caberá capacitar a equipe de documen-
tadores ou inquiridores, discutindo com eles os procedimentos para a execução dos
inquéritos (datas, horários, formas de conduzir os inquéritos), e orientando-os a
respeito da utilização dos equipamentos de gravação.
Na segunda fase serão postas em execução as diretrizes e metas fixadas no
parágrafo anterior, para a obtenção do material gravado. Para que as gravações
tenham maior autenticidade, deverão ser realizadas junto à própria comunidade,
evitando-se, assim, locais “artificiais”, como os estúdios de gravação.
A terceira fase será dedicada à transcrição e análise do material recolhido.
A transcrição é necessária como forma de facilitar a análise desses materiais, mas
não exclui a audição das fitas, necessárias para compreenderem-se as característi-
cas da língua falada. Recomenda-se a indicação de alguns fenômenos característi-
cos da fala (pausas, truncamentos, alongamentos, elevação da voz, entoação). Essa
modalidade de transcrição é básica, mas permite as indicações complementares
necessárias a cada estudo, como a duração das pausas e a delimitação dos segmen-
tos fônicos.
Na fase de análise, são levados em conta os fatores já definidos na caracteri-
zação dos informantes da pesquisa (sexo, idade, procedência, grau de instrução,
profissão), bem como são determinados os fenômenos variáveis e as variantes por
eles apresentadas (por exemplo, tratamento de segunda pessoa: tu, você, o senhor;
concordância verbo-sujeito: ausência ou presença de marcas). A esse respeito, cabe
acrescentar o seguinte: é preciso selecionar fenômenos variáveis que sejam produ-
tivos no córpus e apresentem diferentes possibilidades de realização. De nada adi-
antará estudar a regra de concordância verbal na fala culta, pois os casos em que
não se realiza a concordância são irrelevantes; da mesma forma, não é produtivo o
estudo da oposição em textos falados ir + infinitivo x formas flexionadas (na
indicação do futuro), pois as segundas formas (farei, amarei) têm seu emprego
restrito a textos escritos.

116
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Após a determinação dos fenômenos variáveis e de suas variantes, cabe


quantificar os dados e efetuar a análise estatística (com base em percentuais) ou
probalilística (com base na freqüência de ocorrências). Após a quantificação dos
dados, vem a ordenação e classificação dos dados obtidos, efetuando-se uma análi-
se de base qualitativa ou interpretativa.

2.4 CAMPOS DE PESQUISA

A língua falada constitui um terreno amplo e fértil para o desenvolvimento


de pesquisas, pela variedade de aspectos a partir dos quais ela pode ser considerada.
O campo mais produtivo e gratificante é o que concerne aos traços característicos
da língua falada, os quais vêm enumerados a seguir:

a) traços fônicos e prosódicos, especialmente quando denotam ênfase ou


emocionalidade, ou marcam o limite dos enunciados;
b) processos de construção e reconstrução do texto falado: continuidade
e descontinuidade tópica ou temática, articulação tema-rema (ou tópico-co-
mentário), processos de reconstrução discursiva (paráfrase, correção, repeti-
ção);
c) processo interacional (relações interpessoais e intersubjetivas) e recursos
para o envolvimento do ouvinte;
d) elementos característicos da língua falada (pausas, interrupções, trunca-
mentos de palavras ou enunciados, anacolutos, falsos começos);
e) estrutura do texto conversacional (turnos e seqüências, procedimentos
de gestão do turno, modalidades de passagem do turno).

Também é bastante produtivo o estudo do emprego de elementos lexicais e


morfossintáticos, especialmente quando feito em comparação com textos escritos.
Nesse caso, pode-se verificar o papel funcional desses elementos na construção de
ambas as modalidades de textos.
Outro campo de pesquisas é o uso “estilizado” da língua falada, no cine-
ma, no teatro ou em diálogos ficcionais. Nesse caso, pode-se verificar como os
recursos próprios do falado (espontaneidade, falta de planejamento, envolvi-
mento entre os interlocutores) são empregados na criação de um diálogo simu-
lado ou fictício.

117
GALEMBECK, Paulo de Tarso. Metodologia de pesquisa em português falado.

COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS

Este trabalho enfatiza, inicialmente, que o estudo da língua falada deve se-
guir o método empírico-indutivo, partindo do exame das ocorrências para as inter-
pretações qualitativas. Essa postura metodológica, aliás, decorre da própria nature-
za da língua falada, que é caracterizada pela extrema variabilidade e fluidez. Essa
variabilidade impede, aliás, a adoção de categorias e modelos formais previamente
definidos e traz consigo a necessidade de uma teoria que flua dos casos e correspon-
da diretamente a eles.
As características da língua falada também conduzem à ampliação do con-
ceito de competência, vista não só como a capacidade de gerar e compreender
frases bem formadas, mas como a capacidade de utilizar a língua para interagir com
outros seres humanos. De acordo com essa postura, é preciso considerar não só os
dados de um sistema fechado e constante, mas como esses elementos são utilizados
em uma situação real de interação. Essa postura coincide com os postulados do
funcionalismo, teoria que fornece o embasamento metodológico para os estudos de
língua falada.
Foram expostos, também, os procedimentos para a execução de pesquisas
em língua falada e, bem assim, tratou-se do campo – bastante amplo e variado –
que se oferece ao estudiosos dessa modalidade da língua.

BIBLIOGRAFIA

DIK, S. C. (1989) The theory of functional grammar. Part I: The structure of the clause. Foris,
Dordrecht, Providence.
DUTRA, R. (1993) O discurso e a gramática: uma entrevista com Sandra THOMPSON.
D.E.L.T.A. – Revista de Documentação em Lingüística Teórica e Aplicada, 9, v. 2.
FONSECA, F. I. e FONSECA, J. (1977) Pragmática lingüística e ensino do português. Coimbra,
Almedina.
MARCUSCHI, L. A. (1986) Análise da conversação. São Paulo, Ática.

118
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

ABSTRAC T: This paper discusses the methodology of the research in spoken


language. To attain this goal, the basic features of spoken language are exposed
and then the principles of the empirical-inductive method and Functional Grammar
are also presented. In sequence, examines the procedures for the accomplishment
ofresearches in spoken language and the themes which comes from this field.

K E Y W O R D S: spoken language; methodology of research; empiricism; induction;


functionalism.

119
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

LINGÜÍSTICA HISTÓRICA & FONOLOGIA


NÃO-LINEAR

Gladis MASSINI-CAGLIARI*

RESUMO: Proposta de um casamento viável entre as informações colhi-


das nos trabalhos de Filologia e os novos enfoques da Fonologia Não-linear
e da Lingüística Histórica, exemplificada através da análise do acento lexical
em Português Arcaico. Este tipo de trabalho de pesquisa mostra uma nova
abordagem nos estudos de Fonologia Histórica, abrindo novos caminhos
para pesquisas futuras.

PALAVRAS-CHAVE: lingüística histórica; fonologia não-linear; filologia;


português arcaico; acento.

1. INTRODUÇÃO

Muito já se tem falado a respeito da história da Língua Portuguesa – o que


vem acontecendo desde antes do advento da Lingüística Moderna. Trabalhos de
grandes filólogos como José Leite de Vasconcellos, Carolina Michaëlis de Vascon-
celos, e, no Brasil, Serafim da Silva Neto, Celso Cunha, Augusto Magne, Antenor
Nascentes, José Machado e outros são prova dessa afirmação. Nesses trabalhos,
muitas informações a respeito da evolução de fenômenos fonológicos do portu-
guês desde o latim até os dias de hoje podem ser encontrados – uma tradição a ser
respeitada.
Na figura de eminentes professores desta Universidade de São Paulo, como
Theodoro Maurer Jr. e Isaac Salum, os trabalhos dos grandes filólogos e neogramá-
ticos começaram a ser re-interpretados dentro de uma perspectiva da Lingüística
Estruturalista.
Atualmente, na área de Fonologia do Português, são muitos os trabalhos
que podem ser citados. Nomes como Joaquim Mattoso Câmara Jr., Maria Helena
Mira Mateus, Leo Wetzels, Leda Bisol, Stephen Parkinson, Yonne Leite, Ernesto

* Universidade Estadual Paulista – UNESP – Araraquara. 121


MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.

d’Andrade, Joaquim Brandão de Carvalho, só para citar alguns, já são suficientes


para demonstrar o desenvolvimento da área.
Na área de Lingüística Histórica, o Brasil viveu, nos últimos anos, algo que
pode ser considerado como um renascimento, com a publicação de vários traba-
lhos importantes na área. Pode ser citado, primeiramente, o extenso trabalho de
Rosa Virgínia Mattos e Silva (1989) (sem esquecer os inúmeros trabalhos que esta
autora publicou e publica, desde sempre, sobre o Português Arcaico, podendo ser
apontada como uma das maiores especialistas no assunto), sob uma perspectiva
estruturalista, e Tarallo (1990a), Tarallo & Kato (1989) e muitos dos seus orien-
tandos (entre os quais Maria Aparecida Torres Morais, professora do Departa-
mento que patrocina este evento), em uma perspectiva gerativista, e Ilari (1992),
em uma perspectiva mais tradicional. Aqui mesmo na USP, existem os grupos dos
Profs. Drs. Heitor Megale e Ataliba T. Castilho.1
Pode-se ver, através deste pequeno panorama, que, tanto na área de Fono-
logia do Português atual, como na área de Lingüística Histórica, a Língua Portu-
guesa conta com muitos estudos já realizados por profissionais competentes. En-
tretanto, detendo-se na lista dos trabalhos publicados nessas duas áreas, vê-se que
quase não existem trabalhos sobre a Fonologia de fases passadas da língua (mérito
seja dado a Mattos e Silva, um dos poucos nomes dessa lista) e, quando existem,
são elaborados a partir de teorias fonológicas antigas, cujas metodologias já foram
substituídas por novas abordagens com muitas vantagens para os estudos da área.
Pode-se exemplificar este fato a partir da focalização de um período em especial da
história da Língua Portuguesa – e aqui me permito focalizar meu período favorito,
o trovadoresco. Como mostra o próprio trabalho de Mattos e Silva (1991, p. 46),
existem muito poucos estudos desenvolvidos pela Lingüística moderna a respeito
do Português Arcaico; e os outros estudos que existem são do século passado ou do
início deste século, na sua grande maioria:

“Não se pode dizer que o português arcaico não foi estudado. Pelo contrá-
rio. Dos estágios passados da história da língua portuguesa, é, certamente,
o mais estudado. O que, no entanto, deve ser marcado é que a bibliografia
numerosa que se construiu sobre este período se desenvolveu, sobretudo,
dos fins do século XIX para os meados do século XX. Na sua quase totali-
dade ela representa uma tradição de estudos filológico-lingüísticos própria

1
Cito apenas estes, porque os conheço mais de perto. Perdoem-me os que deixam de ser aqui citados, por um
imperdoável desconhecimento meu.

122
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

ao historicismo oitocentista: os métodos desenvolvidos pela Lingüística do


século XX pouco foram aplicados ao português arcaico. Tanto no que diz
respeito a possíveis estudos sincrônicos sobre essa fase pretérita, como no
que se refere a estudos de mudança lingüística, ou seja, de diacronia no
tempo real.”

Em relação ao estudo de fenômenos que exigemum tratamento em termos


de constituintes hierarquizados (como a prosódia, em geral), a situação é ainda
mais grave, uma vez que nem os inúmeros (e bons) estudos de Mattos e Silva se
aprofundam nestes aspectos – o que é compreensível, já que isto seria irrealizável
em relação a um corpus em prosa, como o da referida autora.
Não se trata de desprezar todo o conhecimento construído no final do sé-
culo passado e no início deste. O que se pretende aqui propor é que existe um
casamento viável entre as informações recebidas dos trabalhos dessa época e os
novos enfoques da Fonologia não-linear e da Lingüística Histórica. Não se trata de
criticar uma metodologia antiga, mas de abarcar o vasto conhecimento construído
a partir dela e reinterpretar informações de grande utilidade.2
Para exemplificar a viabilidade desse casamento aqui proposto entre Lin-
güística Histórica (em suas duas acepções, antiga e moderna) e Fonologia Não-
linear, será examinada a possibilidade de estudo de um fenômeno do Português
Arcaico: a acentuação lexical. Não serão apresentadas, no entanto, dada a escas-
sez de tempo, análises prontas; apenas serão apontados caminhos para se chegar a
elas.

2. ACENTUAÇÃO EM PORTUGUÊS ARCAICO

A relevância dos estudos dos fenômenos prosódicos do Português Arcaico


reside principalmente no seu ineditismo. Além disso, o Português Arcaico pode
ser considerado um ponto estratégico, no estudo da história da Língua Portuguesa:
é o momento crucial, no contínuo temporal da língua, em que o que antes era

2
O tipo de linha de pesquisa em Fonologia Histórica que aqui se propõe pode ser encontrada na tese de Douto-
rado, de minha autoria, intitulada “Cantigas de amigo: do ritmo poético ao lingüístico. Um estudo do percurso
histórico da acentuação em português” , cujo objetivo principal é traçar o percurso da acentuação portuguesa,
através da análise de três pontos cruciais no contínuo temporal da língua: latim, Português Arcaico e Portu-
guês Brasileiro (atual). As análises são efetuadas dentro de uma perspectiva fonológica não-linear, adotando
principalmente os modelos métrico de Hayes (1991) e lexical de Mohanan (1986).

123
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.

“latim” passa a ser identificado como “português”. Ao lado disso, este é um perío-
do em relação ao qual já pode ser encontrada documentação poética escrita em
português, essencial para a observação de fenômenos prosódicos – o que não se
pode tão facilmente encontrar em relação ao latim vulgar utilizado no espaço físi-
co onde, hoje, é Portugal.
Quando se tem como objetivo a investigação de elementos de um período
de uma língua quando ainda não havia tecnologia suficiente para o arquivamento
e transmissão de dados orais, a possibilidade de escolha entre material poético e
não-poético para constituição do corpus não se coloca. Como os textos remanes-
centes em português arcaico são todos registrados em um sistema de escrita de
base alfabética, sem qualquer tipo de notação especial para os fenômenos prosódicos,
fica praticamente impossível de serem extraídas informações a respeito do acento
e do ritmo do português deste período, a partir de textos escritos em prosa.
Já em relação a textos poéticos, ocorre o contrário, principalmente se estes
forem metrificados, isto é, se levarem em conta o número de sílabas e/ou a locali-
zação dos acentos em cada verso. Além de trazerem todas as informações necessá-
rias sobre os elementos segmentais (tanto quanto os textos em prosa), a partir da
observação de como o poeta conta as sílabas (poéticas) e localiza os acentos em
cada verso, podem ser inferidos os padrões acentuais e rítmicos da língua na qual
os poemas foram compostos. Da localização dos acentos poéticos, pode-se con-
cluir a localização do acento nas palavras, ou seja, os padrões de acento lexical da
língua, e, da concatenação desses acentos dentro dos limites de cada verso, os
padrões rítmicos da língua em questão. Além do mais, como diz Allen (1973, p.
103):

“... metrical phenomena cannot be ignored, since, especially in the case of


‘dead’ languages, the relationship between poetry and ordinary language
may provide clues to the prosodic patterning of the latter; and in any case
verse form is a form of the language, albeit specialized in function, and
entitled to some consideration as such.”

Como mostram alguns trabalhos recentemente desenvolvidos na área de


Fonologia não-linear (entre eles, Youmans, 1989; Prince, 1989; Halle, 1989; Kipar-
sky, 1989; Hayes, 1989; Verluyten, 1982) e outros não tão recentes mas ainda bas-
tante atuais, desenvolvidos a partir do modelo gerativo padrão de Chomsky & Halle
(1968; de agora em diante, SPE) (entre eles, Halle & Keyser, 1971, e Maling, 1973), a
escolha de textos poéticos para se estudar fenômenos prosódicos (e, em especial, o

124
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

ritmo) de uma língua, inclusive e principalmente em seus estágios passados, já se


provou adequada e eficaz, sobretudo quando se toma a descrição em um nível
“mais abstrato” (fonológico e não fonético).
Escolhidos os textos poéticos constitutivos do corpus, a próxima etapa
consiste em perscrutar o ritmo poético de cada texto, a fim de descobrir pistas do
ritmo lingüístico da época e, conseqüentemente, do processo de acentuação.
Neste ponto da pesquisa, pode ser reconhecida a importância da admissão de
conhecimentos advindos de trabalhos bastante tradicionais da Filologia Portu-
guesa.
É bastante conhecido na literatura especializada, em relação às cantigas
medievais portuguesas, o fenômeno batizado como Lei de Mussafia. A este respei-
to, diz Rodrigues Lapa:

“Há no nosso lirismo antigo uma particularidade de ordem métrica, mui-


to dèbilmente representada na poesia francesa e provençal: o facto de
poderem, em uma mesma composição e em uma mesma estrofe, misturar
versos agudos com graves, contados até a última sílaba.” (Lapa, 1929, p.
317-8)

“... o princípio rítmico dominante já no século XIII, sempre que havia mis-
tura de versos graves e agudos, era o de fazer o verso agudo o padrão da
medida. Contudo deverá notar-se, porque é um fenómeno característico
da antiga métrica portuguesa, que não são raros os casos em que, entre nós,
se alinhavam octossílabos e decassílabos agudos com setessílabos e novessí-
labos graves. É aquilo que impropriamente se chama a lei de Mussafia.”
(Lapa, 1981, p. 222)

Já Nunes (1972, p. XLVII-XLVIII) mostra que esta alternância de versos


graves com agudos podia ocorrer em dois sentidos opostos, nas cantigas de amor
por ele analisadas. No primeiro caso, os versos graves e agudos têm o mesmo nú-
mero de sílabas até a tônica; assim, as sílabas átonas de final de verso deveriam ser
desprezadas na contagem. No segundo caso (mais comum), os versos graves e
agudos teriam o mesmo número de sílabas aritméticas, mas não o mesmo número
de sílabas poéticas, já que, ao se contarem as sílabas somente até a tônica final, os
versos graves teriam uma sílaba a menos, de acordo com a tradição de contagem
de sílabas poéticas que seguimos até hoje. Este fato sugere que as sílabas átonas de
final de verso devem ser contadas para o estabelecimento da estrutura métrica do
poema.

125
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.

Alguns estudiosos procuraram dar explicações para este fenômeno de al-


ternância possível entre versos graves e agudos nas cantigas medievais. Para Lapa
(1929, p. 319), o motivo desta possibilidade estava na influência da versificação
latina:

“Os nossos trovadores conservaram o velho sistema de sílabas contadas,


vigente na métrica médio latina, dando-lhe ainda, para certos metros,
tanta ou maior importância do que ao acento final, tendo havido ne-
cessàriamente uma época em que a regra fundamental seria o isossilabis-
mo.”

Já para Cunha (1982, p. XV-XVI), a explicação para esta alternância pode-


ria estar na subordinação da estrutura rítmica do verso à estrutura musical da
cantiga:

“De quase totalidade da poesia trovadoresca profana falta (...) o acompa-


nhamento musical, mas o desconhecimento da melodia por que era canta-
da não nos impede de reconhecer que, feita para o canto, o seu ritmo devia
conformar-se ao deste. Os fatos são, aliás, bastante claros para que disso
possamos duvidar.
Recursos como transposição de acentos no interior e, principalmente, no
fim dos versos, que percebemos na poesia cantada dos nossos dias, do tipo
Serenô da madrugada
Maria, Mariá
deviam ser freqüentes nos cantares trovadorescos. Em última análise, a
chamada lei de Mussafia, ou seja, a correspondência de versos metrica-
mente distintos mas aritmeticamente iguais quanto ao número de sílabas,
não passa de uma subordinação da estrutura rítmica à estrutura musical.
Por exemplo, no dístico de Afonso, o Sábio,
E no nome de Maria
Cinque letras, no-mais, i á. (CSM 70)
a alternância de setessílabo com octossílabo desapareceria no canto pela
pronúncia Ma-ri-á.”

Porém, qualquer que seja a explicação para a possibilidade de alternância


desses dois tipos de versos (graves e agudos), a simples possibilidade da alternância

126
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

já traz inúmeros subsídios para a busca dos parâmetros do acento lexical do portu-
guês, naquela época. Como foi mostrado em Massini-Cagliari (1995), a considera-
ção desse fenômeno desde há muito apontado sobre o ritmo poético das cantigas
medievais portuguesas é a chave para a análise do acento no Português Arcaico.
Segundo Massini-Cagliari (1995), no CBN, existem três tipos de cantigas
de amigo, quanto à estrutura prosódica da última palavra dos versos: a) cantigas
cujos versos terminam sempre por oxítonas; b) cantigas cujos versos terminam
apenas por paroxítonas; c) cantigas cujos versos terminam em oxítonas e
paroxítonas. Quando o interesse principal é buscar pistas que apontem para fa-
tos elucidadores do ritmo da língua que construiu os poemas, por trás da estru-
turação rítmico-poética das cantigas, a análise pode ser centrada em um aspec-
to: o comportamento das sílabas átonas de final de verso, uma vez que este é um
contexto favorável à obtenção de pistas a respeito do acento em Português Ar-
caico. É fato já conhecido que pelo menos uma das sílabas do verso tem que ser
acentuada, nas cantigas medievais. Quando apenas uma recebe o acento poéti-
co, é sempre a última sílaba (poética); quando há mais de uma sílaba proemi-
nente, a última certamente o é.3 Desta forma, somente a análise das cantigas do
tipo c permitirá a observação do comportamento das átonas finais – anulado,
nos outros dois tipos, pela uniformidade prosódica das palavras finais de verso.
Sendo assim, todas as cantigas aqui consideradas tiveram os seus versos dividi-
dos em sílabas poéticas, contando-se da esquerda para a direita e desprezando a
pós-tônica final de verso, quando esta está presente. Elisões de vogais só foram
consideradas quando apontadas pelo próprio trovador (aqui representadas pelo
uso do apóstrofo – ’).4
Dentre as cantigas do tipo c, isto é, aquelas cujos versos terminam ora por
oxítonas e ora por paroxítonas, podem ser observados dois comportamentos diver-
sos das sílabas átonas de final de verso: em algumas cantigas, elas devem ser con-
tadas, como parte integrante dos versos, para que estes sejam isossilábicos (isto é,
para que possuam todos o mesmo número de sílabas poéticas); em outras cantigas,
elas devem ser desprezadas na contagem das sílabas poéticas.
Nas cantigas abaixo, pode-se observar que as sílabas átonas finais devem
ser desconsideradas na contagem das sílabas poéticas, para que os versos sejam

3
A este respeito, ver Massini-Cagliari (1995, p. 204-5).
4
A respeito de como deve ser efetuada a contagem das sílabas poéticas nas cantigas medievais portuguesas,
vejam-se Michaëlis de Vasconcelos (1912-13, p. 395-9), Nunes (1973, v. I:, p. 418), Lapa (1981, p. 230-1),
Cunha (1961, p. 91-2) e Massini-Cagliari (1995, p. 49-53).

127
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.

isossilábicos. Desta forma, a maneira de contar as sílabas poéticas, nestes trova-


dores, assemelha-se muito à usada comumente hoje em dia (cf. Castilho, 1850;
Spina, 1971).5

CBN 676
D. Joan D’Avoin

Cavalgava noutro dia (7)


per o caminho francês (7)
e ua pastor siia (7)
cantando com outras três (7)
pastores e non vos pês, (7)
e direi-vos toda via (7)
o que a pastor dizia (7)
aas outras en castigo: (7)
«Nunca molher crêa per amigo, (9)
pois s’o meu foi e non falou migo.» (9)

Pastor, non dizedes nada, (7)


diz ua delas enton; (7)
se se foi esta vegada, (7)
ar verrá-s’outra sazon (7)
e dirá-vos por que non (7)
falou vosc’, ai ben talhada, (7)
e é cousa mais guisada (7)
de dizerdes, com’eu digo: (7)
«Deus, ora veess’o meu amigo (9)
e averia gram prazer migo». (9)

5
Na apresentação das cantigas analisadas neste trabalho, será utilizada a seguinte convenção: entre parênteses,
à direita do verso, aparece o número de sílabas poéticas do mesmo. Nos versos marcados com *, as sílabas
poéticas estão sendo contadas somente até a última sílaba tônica, desconsiderando a última sílaba átona final,
para ressaltar a diferença entre a estrutura rítmica dos versos, apesar de terem o mesmo número de sílabas. A
transcrição ortográfica adotada é a de Nunes (1973).

128
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

CBN 678
D. João Soares Coelho

Per boa fé, mui fremosa, sanhuda (10)


sej’eu e trist’e coitada por en, (10)
por meu amigu’e meu lum’e meu ben, (10)
que ei perdud’e el mi [á] perduda, (10)
por que se foi sen meu grado d’aqui. (10)

Cuidou-s’el que mi fazia mui forte (10)


pesar de s’ir, porque lhi non falei, (10)
pero ben sabe Deus ca non ousei, (10)
mais seria-lh’oje melhor a morte, (10)
por que se foi sen meu grado d’aqui. (10)

Tan crua mente lh’o cuid’a vedar (10)


que ben mil vezes no seu coraçon (10)
rogu’el a Deus que lhi dê meu perdon (10)
ou sa morte, se lh’eu non perdoar, (10)
por que se foi sen meu grado d’aqui. (10)

Nas cantigas abaixo, porém, acontece o contrário: para que os versos sejam
isossilábicos, é preciso que todas as sílabas sejam consideradas, inclusive as átonas
de final de verso.

CBN 666
D. Joan d’Avoin

Vistes, madre, quando meu amigo (9)*


pôs que verria falar comigo ? (9)*
oje dia cuidades que venha ? (9)*

Vistes, u jurou que non ouvesse (9)*


nunca de min ben, se non veesse ? (9)*
oje dia cuidades que venha ? (9)*

129
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.

Viste’las juras que jurou enton, (10)


que verria sen mort’ou sen prison ? (10)
oje dia cuidades que venha ? (9)*

Viste’las juras que jurou ali, (10)


que verria, e jurou-as per mi: (10)
oje dia cuidades que venha ? (9)*

CBN 1261
Lourenço, jogral


Ua moça namorada (7)*
Dizia un cantar d’amor (8)
e diss’ela:
~ «Nostro Senhor, (8)
Oj’eu foss’aventurada (7)*
que oiss’o meu amigo (7)*
com’eu este cantar digo». (7)*

A moça ben pareçia (7)*


e en sa voz manselinha (7)*
cantou e diss’a meninha: (7)*
«Prouguess’a Santa Maria (7)*
que oiss’o meu amigo (7)*
com’eu este cantar digo». (7)*

Cantava mui de coraçon (8)


e mui fremosa estava (7)*
e disse, quando cantava: (7)*
«Peç’eu a Deus por pediçon (8)
que oiss’o meu amigo (7)*
com’eu este cantar digo». (7)*

O fato de haver flutuação no tratamento que os trovadores dão às sílabas


átonas finais levanta uma série de questões quanto à parametrização do ritmo do

130
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

PA – e permite que sejam formuladas hipóteses a respeito de qual seria o pé básico


do ritmo do português naquela época.
Partindo de uma interpretação desses dados com base na teoria métrica
paramétrica de Hayes (1991, 1995), em primeiro lugar, pode-se levantar a hipóte-
se de que, no período arcaico do português, a população seria mista (conforme a
concepção gerativista de “população mista” – Lightfoot, 1979, 1991): uma parcela
da população possui, como pé básico, o troqueu moraico (dentro dela, os trovadores
autores das cantigas em que as sílabas átonas de final de verso fazem parte da
estrutura métrica do poema, pois o pé básico da língua prevê uma posição para
esta sílaba), enquanto que outra parcela, minoritária (a dos autores das cantigas
em que as átonas finais são desconsideradas), adota o iambo como pé básico, hipo-
tetizando-se que as sílabas átonas finais das palavras seriam extramétricas, por
conterem vogais de marca de classe (em outras palavras, marca de gênero), pula-
das no momento da construção dos pés. Esta diferenciação quanto à escolha do pé
básico seria a responsável por haver duas maneiras de se fazer poesia (duas línguas
diferentes – duas poesias diferentes).
Entretanto, como mostra Massini-Cagliari (1995, p. 203), há um forte
argumento contrário a esta hipótese: a grande maioria dos trovadores (22 em
30) que utilizam a primeira estratégia versificatória aqui apresentada (ou seja, a
de desconsiderar as sílabas átonas de final de verso) também faz uso da segunda
estratégia (isto é, a de contar todas as sílabas, inclusive as átonas finais); por
outro lado, os trovadores que utilizam a segunda estratégia não compõem versos
de outra maneira. Isto quer dizer que, tanto em relação à sua língua (à estrutura-
ção do ritmo, portanto) quanto à maneira com que se utilizam dela para compor
versos, não há tanta distância assim entre estes dois grupos de trovadores. Em
termos gerativistas, o que se quer dizer com isto é que não é possível um mesmo
falante da língua possuir dois valores relativos ao mesmo parâmetro. É impossí-
vel “ligar” um valor paramétrico e “desligar” outro, de acordo com a situação.
Sendo assim, a única conclusão possível é que a população dos trovadores, como
um todo, possui um único pé básico, existindo, porém, duas maneiras de se uti-
lizar o ritmo produzido na língua pela escolha deste pé básico para compor ver-
sos.
O único pé proposto pela teoria métrica de Hayes (1991, 1995) que dá
conta de descrever o ritmo nos dois casos em questão é o troqueu moraico: a sua
escolha, por um lado, como contém uma posição átona no final, proporciona um
“espaço de ancoragem” para as sílabas finais de verso, quando estas são conside-
radas, e, por outro, fornece uma razão para a desconsideração das átonas finais,

131
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.

no outro caso – a própria atonicidade deste espaço. O iambo, por sua vez, não
daria conta de descrever os casos em que as sílabas átonas de final de verso
fazem parte da sua estrutura rítmica, por não possuir nenhum “lugar” para estas
sílabas. Assim, a diferença no modo de trovar dos dois grupos consiste em dife-
rentes escolhas para o nível prosódico de segmentação, para delimitar o verso. O
primeiro grupo (majoritário) elege o nível prosódico (cf. Nespor & Vogel, 1986)
mais baixo, o do pé (Σ), e é por isto que as sílabas átonas de final de verso podem
fazer parte da estrutura rítmica do verso (todos os elementos do pé devem ser
contados) – exemplo em (1a). O outro grupo, por outro lado, escolheu um nível
acima: as sílabas poéticas só podem ser contadas até a última tônica, ou seja, até
a última sílaba que tiver uma projeção (x) no nível superior ao dos pés (o da
palavra fonológica – ω) – exemplo em (1b).6

(1) a. (x) (x .) (x) (x) (x) (x .) → nível de delimitação do verso (Σ)


σ σ σ σ σ σ σ σ → nível de segmentação e contagem (σ)
Hu pa pa gay mui fre mo so

b. (x) ( x) (x) ( x ) → nível de delimitação do verso (ω)


(x) (x .) (x) (x) (x) (x .)
σ σ σ σ σ σ σ σ → nível de segmentação e contagem (σ)
Hu pa pa gay mui fre mo so

A observação do comportamento das proeminências das palavras no final


dos versos também fornece pistas da direcionalidade da construção dos pés e da
aplicação da Regra Final. Quanto à direcionalidade, um primeiro e apressado olhar
poderia, erroneamente, sugerir que, nas cantigas em que as sílabas átonas finais
são contadas, os pés rítmicos (no caso, troqueus moraicos) estariam sendo cons-
truídos da direita para a esquerda; por outro lado, nos poemas em que as sílabas
átonas finais não são parte constituinte do verso, poderia ser dito que a direciona-
lidade, na construção dos pés, seria aplicada na direção inversa: da esquerda para
a direita. Ora, esta é uma conclusão apressada e errônea, porque, caso houvesse
flutuação no valor do parâmetro da direcionalidade, poderia haver deslocamentos
na posição das proeminências das palavras, no interior dos versos, de um trovador

6
No exemplo abaixo, x representa uma sílaba proeminente no nível prosódico focalizado, enquanto que o ponto
representa uma sílaba não-proeminente.

132
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

para outro ou de uma cantiga para outra de um mesmo trovador – o que não
ocorre.
Deste modo, o fato de as proeminências das palavras ocuparem a mesma
posição, em qualquer cantiga em que apareçam e em qualquer posição em que
apareçam nas cantigas, prova que os troqueus moraicos são sempre construídos da
direita para a esquerda, uma vez que apenas a natureza das duas últimas sílabas da
palavra é que determina a posição do acento principal: se a última sílaba for pesa-
da, atrai o acento; se for leve, o acento recai sobre a penúltima – o que faz do ritmo
do PA um sistema sensível à quantidade das sílabas.7 Esta “janela de duas sílabas”
no final das palavras, sobre a qual o acento incide, em PA, prova que a Regra Final
é aplicada à direita, uma vez que recebe a proeminência principal da palavra o
último (x) no nível do pé.
Através da utilização de um modelo fonológico de princípios e parâmetros,
é possível realizar um mergulho no ritmo do PA, ressaltando aspectos importantes
da sua estruturação, por meio da análise da estrutura poética das cantigas de ami-
go. A adoção de uma teoria como esta, além de tornar possível este tipo de apro-
fundamento no passado das línguas, ainda possibilita que diferentes períodos pas-
sados de uma língua sejam comparados, sem que haja a necessidade de constitui-
ção de corpora de natureza semelhante. Por exemplo, ao final deste rápido mergu-
lho em um dos aspectos da prosódia do português em uma de suas fases pretéritas,
pode-se constatar que não houve grandes mudanças na regra de atribuição do
acento, do latim8 ao PA: o sistema continua sensível à quantidade das sílabas (em-
bora as distinções entre vogais tenham desaparecido) e continua a existir uma
“janela de duas sílabas” sobre a qual incide a acentuação principal (embora tenha
havido um deslocamento na posição desta “janela”: englobava a penúltima e a
antepenúltima sílabas da palavra, em latim, e a última e a penúltima, em PA).9
Portanto, por permitir que dados de diferentes épocas recebam o mesmo
tratamento teórico, o modelo de princípios e parâmetros consiste no principal
instrumental existente atualmente para observar as mudanças históricas em rela-
ção à prosódia. Desta maneira, quando estiverem disponíveis estudos da prosódia
do português em suas várias fases, será possível obter um panorama bastante com-

7
A este respeito, ver Massini-Cagliari (1995, p. 206).
8
Para uma abordagem fonológica do acento em latim, dentro das perspectivas métrica e prosódicas atuais, ver
Hayes (1985, 1991), Halle & Vergnaud (1987), Nespor & Vogel (1986) e Massini-Cagliari (1995).
9
Esta mudança deve-se à perda da extrametricidade da sílaba final das palavras, do latim ao PA. Sobre este
assunto, ver Massini-Cagliari (1995, p. 237-47).

133
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.

pleto de todas as mudanças paramétricas ocorridas. O caminho está aberto, embo-


ra nunca tenha sido trilhado, em relação aos períodos passados do português. Além
disso, será possível fazer previsões quanto a possíveis e impossíveis mudanças
prosódicas no futuro, com base na configuração paramétrica de cada período e sua
evolução.
Enfim, estas e outras são questões sobre as quais me debruço atualmente.
As questões são muitas, as dúvidas, numerosas e construtivas. Repito: o caminho,
longo mas agradável, está aberto.

3. CONCLUSÃO

Talvez sem faltar com a verdade possa ser dito que a Lingüística Histórica,
atualmente, no Brasil, encontra-se em um ponto em que é preciso ter a coragem
de olhar para trás e considerar o vasto conhecimento produzido pela Filologia
Portuguesa e, ao mesmo tempo, ter a lucidez de continuar sendo Lingüística. Como
diz Vieira (1987), mas em relação a um outro assunto que não este, é preciso
enxergar na “face do outro” refletida a “nossa própria face modificada”. No entan-
to, é também preciso que esta continue a ser a nossa face e não a do outro.
E tudo isto pode efetivamente ser posto em prática. Novos projetos na área,
como, por exemplo, os projetos desenvolvidos aqui na USP pelos Profs. Drs. Ataliba
Castilho e Heitor Megale (já citados) e o Projeto Integrado “Fonologia do Portu-
guês Arcaico”, coordenado por mim na UNESP de Araraquara, podem concreti-
zar esse sonho não tão distante. Iniciativas como essas podem trazer contribuições
no sentido de formar novos pesquisadores na área: alunos de Pós-Graduação (Mes-
trado e Doutorado) e de Graduação (Iniciação Científica). Além disso, projetos
dessa natureza contribuem também para um entrosamento entre pesquisadores e
grupos de estudo de diferentes universidades. São as diversas faces que, olhando-
se umas às outras, encontram, nos outros e em si mesmos, a igualdade do espelho
e a alteridade do outro.

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ABSTRACT: Proposal of a compromising match between information from


Philological studies and new approaches from Non-linear Phonology and Histo-
rical Linguistics. Medieval Portuguese lexical stress analisys is presented as an
exemple of this trial. This research shows a new approach in Historical Phonolo-
gy studies and other possibilities for further works in this field.

KEYWORDS: Historical linguistics; non-linear phonology; philology; medie-


val Portuguese; stress.

138
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

MARCAS DE INTERATIVIDADE NO PROCESSO


DE TEXTUALIZAÇÃO NA ESCRITA

Luiz Antônio MARCUSCHI*

RESUMO: O estudo mostra que é falsa a idéia bastante difundida de que as


marcas de interatividade inscritas na textualidade seriam um propriedade
típica da oralidade e não se apresentariam na escrita. Uma explicação aven-
tada para esse equívoco é a tendência de se analisar as marcas de interativi-
dade apenas na fala e não na escrita. Considerando os princípios do dialogis-
mo e da interlocução como próprios da língua e não de uma modalidade de
uso da língua, sugere-se que tanto a fala como a escrita apresentam marcas
de interatividade. O que diferencia essas marcas de interatividade na fala e
na escrita são as estratégias de sua realização e os elementos lingüísticos
utilizados. Também é mostrado que o grau de formalidade ou informalidade
de um texto é pouco relevante para diferenciar claramente a presença dessas
marcas. Em suma, baseado num conjunto de amostras de textos escritos, o
estudo busca mostrar que as marcas de interatividade não podem ser toma-
das como um critério distintivo entre fala e escrita.

PALAVRAS-CHAVE: marca de interatividade; língua falada; língua escri-


ta.

Enquanto você lê estas palavras, está tomando parte numa das


maravilhas do mundo natural. Você e eu pertencemos a uma
espécie dotada de uma admirável capacidade, a de formar idéias
no cérebro dos demais com esquisita precisão. Eu não me refiro
com isso à telepatia, o controle mental ou as demais obsessões
das ciências ocultas. Aliás, até para os crentes mais convictos,
estes instrumentos de comunicação são pífios em comparação
com uma capacidade que todos possuímos. Esta capacidade é
a linguagem.
Steven Pinker. O Instinto da Linguagem.

* Universidade Federal de Pernambuco. 139


MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.

1. ESCLARECENDO O TEMA

A tese a ser aqui ilustrada é a seguinte:1 o texto escrito apresenta traços de


interatividade que estabelecem uma relação direta do escrevente2 com seu
interlocutor. Porém, como a interatividade concretamente inscrita na textualidade
foi investigada quase que exclusivamente na fala, o seu desconhecimento na escrita
levou muitos autores a postularem que a escrita não apresentaria marcas de intera-
tividade explícita. Foi assim que se passou a caracterizar a escrita como a linguagem
do distanciamento e a fala como a linguagem da proximidade.
Quanto à escrita, tratar-se-ia, segundo alguns autores, de um duplo distan-
ciamento: por um lado, um distanciamento físico que se dava pela ausência do
interlocutor; por outro lado, um distanciamento funcional já que o escrevente se
envolveria com as idéias. A rigor, esta posição não seria de todo implausível, uma
vez que a ausência do leitor “desobrigaria” o autor de manifestar-se de forma dialogal
marcada, pois seu interlocutor não teria a palavra da mesma maneira que ocorre na
interação face a face.
Contudo, é essencial ter presente que quando se escreve, escreve-se para
alguém e este alguém (o outro, o interlocutor) está presente no horizonte do escre-
vente. Isto, em essência, equivale ao princípio do dialogismo como fenômeno uni-
versal em todos os usos da língua, seja na fala ou na escrita. Este aspecto diz respeito
ao princípio da interlocução presente também na escrita. A propriedade de inte-
ratividade é um aspecto inerente à própria língua e comprova a tese geral do
dialogismo.
Muitas vezes, a mencionada oposição distanciamento/proximidade foi tomada
como uma das bases (p. ex. por Koch/Österreicher, 1990) para identificar diferen-
ças tipificadoras da relação entre fala e escrita fundadas na natureza do envolvi-
mento (Tannen, 1982) implicado em cada modalidade. A fala teria como caracte-
rística o envolvimento com o interlocutor e a escrita, o envolvimento com o con-
teúdo. Não obstante essas posições, a interatividade é uma propriedade geral de
todo e qualquer uso da língua e não de uma das modalidades de uso. Pois ninguém
escreve/fala sem ter em mente um leitor/ouvinte, o que se expressa como proprie-
dade dialógica da linguagem, no dizer de Bakhtin.

1
Considerando não haver, no espaço de uma mesa-redonda, mais tempo e do que para a simples ilustração de tese
tão ambiciosa, deixo para outra oportunidade uma exploração mais detida que vise a uma comprovação. Portanto,
a expressão ilustrar não é mera força de expressão.
2
Uso aqui o termo “escrevente” para designar o autor na escrita, pois o autor na fala é o falante.

140
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

O interdiscurso sugere uma articulação acentuada entre os interactantes


numa relação do sujeito com seu discurso e com o provável (às vezes suposto ou
sugerido) discurso do outro. Na realidade, temos o texto como evidência da organi-
zação social realizada pela prática do uso da língua.
Outra observação que se pode fazer quanto ao próprio título desta exposi-
ção é a de que não há gramática sem discurso nem discurso sem gramática. O que
temos, sempre, é gramática e discurso. Assim, gostaria de entender a expressão
“gramática e discursividade” como afirmação conjuntiva e não como sugestão de
uma relação. Não se trata, portanto, de anular as diferenças entre fala e escrita, mas
de evidenciar a qualidade dessas diferenças.
Antes de mais nada, será conveniente lembrar que há várias maneiras de
entender o termo gramática. Imagino pelo menos três:

i. a primeira e mais conhecida noção de gramática é aquela que a toma como


equivalente a sintaxe da língua, tendo como unidade a frase ou então o sintagma;
ii. a segunda noção, mais ampla que a primeira, é a subentendida em expressões do
tipo “gramática de texto”, “gramática da conversação” e pode ser traduzida como
um conjunto de regras que expressam a sintaxe da textualização dessas unida-
des suprafrasais;
iii. a terceira maneira de entender gramática é a mais ampla de todas e a menos
conhecida; vem expressa na formulação de Wittgenstein quando fala na “gra-
mática de uma palavra” e envolve nisto os processos de construção de sentido
e não propriamente questões de sintaxe.

Aspecto comum a estas três noções de gramática é que todas elas têm a ver
com regras, ou melhor dito, regularidades, porém, mesmo assim, a noção de regra
não é unívoca. Sem maiores delongas, vamos admitir que regra seja uma espécie de
norma ou indicação de caminho, que pode ser seguida. Quanto ao verbo modal
pode na expressão “pode ser seguida”, vamos tomá-lo em duas acepções:

(a) é possível seguir e


(b) não é obrigatório seguir.

Com isto, admitimos a variabilidade e a heterogeneidade como pertinentes


à própria noção de regra, ou seja, regra não tem a ver com leis da natureza nem com
imposições. Pouco importa saber se se trata de regras constitutivas ou regulativas

141
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.

no sentido que dá Searle (1969) a estes termos. Tomamos a acepção wittgensteineana


de “indicador de caminho” (cf. Marcuschi, 1986).
É assim que não vamos nos referir aqui àquele conjunto de regras até certo
ponto inevitáveis no sentido estrito de regras da sintaxe, tal como expresso na
acepção definida em (i). Veja-se, por exemplo, a regra que determina a posição do
artigo no sintagma nominal na língua portuguesa. Nesse caso a regra diz que só a
posição de anterioridade é válida e nada mais. Quem não segue esta regra não fala/
escreve português; fala uma outra língua. Mas não nos referimos a regras tais como
as de concordância, pois elas são variáveis e podem ter realizações diversas, tal
como neste caso:

(1) a gente semo pobre mas nóis tem muita fé em Deus

A rigor, a variação é um traço significativo na língua e produz efeitos de


sentido no processo interativo, podendo ser usada de maneira expressiva, tal como
o fazem os escritores regionalistas e a literatura de cordel de uma maneira geral.
Não há dúvida de que a variação lingüística, quando usada na escrita, pode ser tida
como um recurso de efeitos de sentido, que não ocorrem na escrita padrão. Veja-se
a assepsia de que se reveste (2) quando confrontada com (1):

(2) Somos pobres, mas temos muita fé em Deus.

Não é destas questões que estarei tratando aqui. O interesse será identificar,
na escrita, marcas ou indícios que evidenciam atos de interatividade que sugerem
uma relação direta e intencional do autor com o suposto leitor, uma relação clara
entre um eu e um tu. Esta relação se manifesta como um tipo de envolvimento
interpessoal e pode apresentar-se de diferentes formas, com intensidade variada
nos diversos gêneros textuais. Quanto a isto vale ressaltar que o escrevente sempre
desenha um leitor para seu texto, mesmo que seja um leitor genérico. Os diversos
gêneros textuais distinguem-se em boa medida pelo tipo de receptor desenhado.
Neste sentido, é hoje consensual a idéia de que o destinatário é um aspecto central
na construção de qualquer tipologia textual.
Portanto, vamos supor aqui algo próximo à noção (ii) de gramática, admi-
tindo que uma das características do material lingüístico que cumpre a função de
indício de interatividade é o fato de não apresentar o mesmo grau de informatividade
que os outros materiais do texto, tanto na fala como na escrita. Ou seja, a interati-

142
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

vidade é um movimento que sugere envolvimento interpessoal e vem marcada na


superfície textual fazendo parte do próprio texto. Trata-se de uma especial relação
do sujeito com a linguagem e por isso mesmo produz efeitos de sentido, mas não do
ponto de vista do conteúdo factual.

2. POR UMA NOÇÃO DE INDÍCIO DE INTERATIVIDADE

No caso do texto escrito, tomarei como interatividade o movimento típico


e explícito do escrevente direcionado a um leitor pretendido. Assim, os indícios de
interatividade serão constituídos por aquelas expressões ou formas lingüísticas que
subentendem a presença de um leitor ao qual o escrevente está se referindo de
maneira clara e inambígua naquele momento. Sua relação com a gramática se deve
ao fato de estas expressões serem usuais na língua, ou seja, previstas e realizadas de
acordo com o sistema lingüístico.
Analisar indícios de interatividade no texto escrito não equivale a afirmar a
presença da fala na escrita, mas sim um movimento específico no processo de
textualização em que a presença do interlocutor está marcada na própria realização
textual. Nem se trata de sugerir que a escrita seja uma representação do falado, pois
o que se dá no caso da relação fala-escrita é uma relação um tanto diferente do
sujeito com a linguagem. Essa diferença se deve aos filtros a que essa relação se
acha submetida, ou seja, aos requisitos da textualização. Certamente, nem todos os
gêneros textuais terão marcas de interatividade na mesma intensidade e com evi-
dências tão claras. As cartas pessoais, por exemplo, são casos típicos de interativi-
dade, como na ocorrência (3):

(3) Carta pessoal (E002 – Corpus NELFE)

1 Niterói, 11/08/1991
2 Amiga A. P.
3 Oi!

4 Para ser mais preciso estou no meu quarto, escrevendo na


5 escrivaninha, com um Micro System ligado na minha frente (bem alto, por
6 sinal ). Está ligado na Manchete FM – ou rádio dos funks – eu adoro funk,
7 principalmente com passos marcados. Aqui no Rio é o ritmo do momento...e
8 você, gosta?
/.../

143
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.

9 Achei um barato sua carta, sabia? Você deve ter um humor


10 ótimo; eu também sou assim. É muito difícil eu não estar rindo; não fico
11 chateado por qualquer coisa. Aliás, carioca em geral é assim: com super bom
12 humor, sempre descontraído. Leva a vida na praia e discotecas. Por falar
13 nisso, estou louco que chegue logo o verão e ir à praia; um tempão que eu
14 não vou. Quem sabe se não vamos juntos à Boa Viagem heim A P. ?
15 Agora vou “entregar”: pelo que C. diz você deve ter um
16 corpo!... Não é só eu que ganha elogios, viu?!
17 Maneiro vocês me acharem um gato, fiquei super hiper feliz!
18 quem não gosta de ganhar elogios? Principalmente de “altas gatas” como
19 vocês! C. me mandou a foto da turma, cada gatinha!...
20 Pelo que soube o aniversário do C. foi demais e o seu quando é? Eu
21 faço 18 dia 07/11.
22 É acho que vou terminando......escreva!
23 Faz um favor? Diga pra M., A P. e C. que esperem, não demoro
24 a escrever
25 Adoro vocês!
26
27 OBS: Acho que vou mandar uma fita pra C., depois pede pra
28 ouvir! Não esquece, mas por enquanto não diz a ele, OK?

29 Um beijão!
30 Do amigo
31 P. P.
32 15:16h

Nesta carta, todas as partes em negrito sublinhado apresentam uma relação


interpessoal direta do escrevente com sua destinatária. Tudo se passa como se ele
estivesse na presença de sua interlocutora. Trata-se de um gênero que tem um
interlocutor definido, único, bem desenhado e íntimo. Além disso, há uma suposi-
ção de conhecimentos partilhados que sustenta uma série de assertivas que nos
escapam. Quanto a peculiaridades características da interatividade, veja-se a pró-
pria construção de boa parte da carta no estilo de pares adjacentes, como no caso
das linhas 7-8; 9-10; 20-21. Um indício de relação direta com interlocutor são
também os marcadores discursivos que nesta carta aparecem em abundância, p.
ex., nas linhas 8 (tag question); 9 (sabia?) 16 (viu) e 28 (OK) etc.
Por outro lado, um gênero como notícia jornalística tem uma audiência
genérica, leitor desconhecido e a intenção é informar. Neste caso a interatividade
vem menos marcada na própria textualidade. Não se verifica uma diretividade con-
creta com o leitor, já que ele é desenhado de forma genérica e seu interesse pela
notícia é simplesmente suposto. A explicitude que se nota na notícia revela que seu

144
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

autor parte do pressuposto de um partilhamento mínimo de conhecimentos. Con-


tudo, nota-se a existência de interatividade. Veja-se como isso se dá no exemplo
(4):

(4) notícia de jornal (E012 – Corpus NELFE)

Venezuela passa por crise,


2 mas PSDVA assegura parceria

3 Assim como o Brasil, a vizinha Venezuela enfrenta uma quebradeira


generalizada de bancos. O país com o qual a Petrobrás pode firmar um convênio para a
5 instalação da refinaria no Nordeste passa por uma das maiores crises financeiras de sua história.
Desde que o presidente Rafael Caldeira assumiu, 19 instituições financeiras quebraram. Mais de
7 cem prisões preventivas para banqueiros foram decretadas, mas todos fugiram do país. O
dinheiro que eles administravam também.
9 “A quebra do Banco Latino, um dos maiores da Venezuela, arrastou 60% do
sistema financeiro”, recorda o embaixador do Brasil na Venezuela, Clodoaldo Hugueney. A
11 causa da quebradeira num país que responde pela segunda maior reserva petrolífera da
América Latina encontra resposta na combinação de uma série de fatores: carteira de crédito
13 mal administrada, falta de supervisão que permitia operações perigosas e fraudulentas, além de
um controle rígido da política monetária.
15 Com a quebradeira, o presidente Rafael Caldeira se viu diante de duas
alternativas. Ou colocava o dinheiro do público nos bancos ou liquidava as instituições, o
17 que provocaria uma forte crise social, já que o dinheiro dos milhares de correntistas estava sob
ameaça de não regressar para seus donos. Ele optou pela primeira opção. Isso provocou aumento
19 de déficit público, crise cambial e desvalorização da moeda.
Os recursos começaram a sair do país. Em junho de 94, congelou-se, então o
21 câmbio. Isso impediu a alta da inflação, mas levou à queda das reservas, assim como derrubou
o Produto Interno Bruto, com conseqüências negativas para o sistema produtivo. Enquanto o
22 Fogad, espécie de seguro do sistema bancário, colocava dinheiro nos bancos por uma porta, os
banqueiros mandavam esse dinheiro embora do país por outra.
25 Com a abertura dos investimentos em petróleo para o setor privado, o país tem
esperança de gerar superávit comercial e estabilizar sua situação. Uma das pessoas que mais
27 acreditam na viabilidade da abertura do sistema petrolífero é o ministro das Minas e Energia;
Erwin Arrieta. Na semana passada, ele revelou que o país está explorando novas áreas, num
29 processo de expansão do setor. /.../
Fonte: secção de Economia do Jornal do Commercio – Recife

Este texto quase não apresenta relações diretas de interatividade, marcadas com
um discurso interpessoal do tipo visto na carta, mas se olharmos com calma, veremos
uma série de sugestões de relação com o leitor e, sobretudo um trabalho de explicitação
e explicação para o leitor convidando-o a partilhar algo que supostamente não lhe era
conhecido. Vejamos algumas marcas deste tipo de movimento:

145
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.

linhas 11-12: “A causa da quebradeira num país que responde pela segunda maior
reserva petrolífera da América Latina encontra resposta...

Temos aqui um trabalho do escrevente que explicita uma informação


parenteticamente para que seu leitor partilhe um conhecimento interessante, tal-
vez por ele ignorado. A exclusão dessa informação não traz prejuízo ao conjunto da
notícia. A informação é apenas um auxílio para o leitor que foi desenhado pelo
escrevente como provavelmente ignorando aquele fato.

linhas 20-23: “Os recursos começaram a sair do país. Em junho de 94, congelou-se,
então o câmbio. Isso impediu a alta da inflação, mas levou à queda das reservas, assim
como derrubou o Produto Interno Bruto, com conseqüências negativas para o sistema
produtivo.”

Nesta seqüência se dá um movimento nítido que visa a orientar o leitor quando


usa expressões de natureza indicial para o texto (dêiticos textuais: “ isso”); uma objeção
e um reforço (“mas... como...”), apontando conseqüências (“com conseqüências...”).
No caso deste segmento temos uma atividade de auxílio ao leitor levando-o a perceber
a qualidade de cada aspecto na informação. Esse tipo de didatismo na informação é
encontrado em muitos artigos de jornais. A rigor, trata-se de algo perfeitamente dispen-
sável já que estava implicado nos parágrafos anteriores. Contudo, é útil para marcar
uma determinada relação do escrevente com seu público.

3. ALGUNS DOS TIPOS DE INDÍCIOS DE INTERATIVIDADE

Feitas estas considerações iniciais, vejamos alguns detalhes de como a inte-


ratividade se manifesta na escrita e quais suas marcas ou indícios. Nem todos os
indícios de interatividade serão aqui tratados. Apenas alguns deles serão mostrados
de maneira sistemática. Trata-se, neste momento, de uma proposta programática
que deverá ser retomada para posterior elaboração.

3.1 INDÍCIOS DE ORIENTAÇÃO DIRETIVA PARA UM INTERLOCUTOR DETERMINADO

Trata-se da referência ao leitor com marcas por vezes nítidas, tais como as
que apareceram na carta acima citada. Estes marcadores interacionais ou discursi-

146
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

vos diretos que estabelecem relações imediatas com o leitor são comuns a alguns
poucos gêneros textuais. Não aparecem no noticiário jornalístico (a menos que
pretenda uma ruptura com o gênero e um efeito de sentido especial, tal como ocor-
re com o Jornal Notícias Populares que busca o sensacionalismo).
Também são comuns, neste caso, as perguntas diretas (no geral de caráter
retórico), mas às vezes nitidamente funcionais sugerindo a seleção de tópico. Isto é
comum em Teses e Dissertações Acadêmicas, bem como em artigos científicos. Por
exemplo:

(5) trechos de teses:

n Qual a nossa intenção ao defendermos esta posição relativamente à extração


de minerais? Simplesmente de efeito econômico.
n Por que nos esforçaríamos tanto na prova desses três postulados que parecem
tão evidentes?
n Desde quando somos obrigados a reconhecer que a visão marxista da História
não tem mais sentido? Nunca, pois isto é independente da...

Vejamos o caso de um texto que busca comentar um livro em jornal. O


segundo parágrafo inicia assim:

(6) 135 - NELFE


/…/
“Seria, portanto, possível refletir civilizada e aprofunda-
damente sobre o amor? Por incrível que pareça, sim. Do
mesmo modo como se pode cogitar sobre a dor: não que ela
vá passar ou que nossa tolerância a ela vá aumentar, apenas
que é possível pensar sobre os rigores da agonia enquanto o
corpo estrebucha. Manuel Bandeira não dedicou os mais
líricos versos à tuberculose que o corroía? Assim também
as mais lúcidas observações sobre o amor vieram de criaturas
transidas por penosas convulsões passionais. Gente como
Dante, Petrarca, Rousseau, Stendhal, Goethe, Proust ou
Oscar Wilde. Uma galeria e tanto não? E eu só nomeei
alguns membros do vasto clube dos corações solitários.
Pois, senhoras e senhores, membros do clube, eis a pauta

147
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.

da próxima reunião: leitura obrigatória dos “Ensaios de


Amor” do sócio sr. Alain de Botton, seguida de discussão
aberta em plenário. Com a inspiração do livro, os senhores
sócios poderão experimentar se reflexões cerebrais sobre o amor
podem ou não surtir calafrios na espinha, dilatação dos va-
sos, aquecimento do rosto, transpiração, tremores, arrepios
e ondas de eletricidade do corpo. /…/

(Fonte: SEVCENKO, Nicolau. Corações Solitários. Folha de São Paulo,


23 de março de 1997, Caderno Mais!)

Trata-se de uma resenha-comentário de um livro recém-publicado. Este é


um gênero textual que se dirige a todos os leitores do jornal que possam estar inte-
ressados na questão tratada pelo livro comentado.

3.2 INDÍCIOS DE PREMONIÇÃO FACE A LEITORES DEFINIDOS

As formas de manifestação desses indícios são muitas e às vezes elas consti-


tuem um encadeamento de elementos que constróem um ciclo completo conten-
do: (a) proposta de uma tese (uma espécie de declaração de intenções): “A tese a ser
aqui defendida é...” ; (b) defesa ou explicitação da proposição: “Os argumentos desta
tese são os seguintes...” ; (c) antevisão de objeções (reconhecimento de alternativas):
“Certamente haveria objeções a esta tese... duas delas seriam...” ; (d) resposta às obje-
ções (justificação da escolha de uma determinada posição); “Embora plausíveis, es-
tas objeções podem ser rebatidas na medida que...” . Isto constitui uma ação dialógica
em que o escrevente envolve o seu interlocutor diretamente na construção do ar-
gumento. Dissertações e Teses acadêmicas chegam a fazer deste aspecto um cacoete.
Vejamos este exemplo extraído de uma tese de doutoramento3 num capítulo que
trata precisamente do tema aqui em pauta e revela um intenso diálogo entre o
escrevente e sua audiência:

3
Trecho extraído da Tese de doutorado, “O Modo Heterogêneo de Constituição da Escrita” , de Manoel Luiz Gonçal-
ves Corrêa, IEL, UNICAMP, Campinas, março de 1997, p. 345-7.

148
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

(7) Extrato de uma tese de Doutoramento

1 “Do que foi discutido no capítulo 4, poderíamos


2 talvez ser levados a concluir que o eixo da dialogia com o
3 já falado/escrito não se distingue do eixo da representação
4 do código escrito institucionalizado. Afinal, este último
5 pertence ao já escrito /.../

6 Do mesmo modo, a partir do que discutimos no


7 capítulo 3, poderíamos também ser levados a concluir
8 que o eixo da dialogia com o já falado/escrito recobre o
9 eixo da representação da gênese da escrita. Afinal, este
10 último tem diretamente a ver com a representação da
11 gênese da escrita. /.../

12 Nenhuma das duas objeções procede. /.../ Muito


13 teríamos a perder, porém. /.../

14 A serem aceitas essas objeções, dois riscos


15 sobressaem: o de ver o modo heterogêneo de constituição
16 da escrita como simples interferência da oralidade na escrita
17 /.../ ou o de ver esse modo de constituição como simples
18 reprodução de modelos da língua escolarizada /.../ Tanto na
19 hipótese da interferência como na reprodução vemos
20 imediatamente renascer a concepção da escrita como
21 produto e como produto de sua própria autonomia. /.../

22 Para evitar esses riscos, reservamos um terceiro


23 eixo às remissões ao já falado/escrito. A especificidade
24 desse eixo em relação aos demais é a de estar ligado a uma
25 dimensão constitutiva da linguagem em geral /.../ a da
26 dialogia /.../ ”

Não parece necessário fazer longos comentários a este exemplo, pois aqui
estão claras as marcas de interatividade, inclusive na relação com o leitor crítico
que pode ter outras opiniões que as do autor da tese.

149
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.

3.3 DE SUPOSIÇÃO DE PARTILHAMENTO OU DE


CONVITE AO PARTILHAMENTO

Muitas vezes, o escrevente tem em mente um leitor com o qual ele dialoga
supondo nele conhecimentos específicos. Este é o caso de muitos artigos científicos
em que os escreventes agem na suposição de um leitor especializado. As marcas de
suposição de um tal partilhamento são, por exemplo, os verbos na 2ª pessoa do plural
ou então os verbos epistêmicos do tipo, “sabemos”, “compreendemos”, “achamos”, “jul-
gamos” etc. e, mais freqüentemente, os advérbios característicos de uma modalização
epistêmica que sugere partilhamento de pressupostos ou conhecimentos:

– todos sabemos que...; admitindo que..


– sabidamente...
– reconhecidamente..
– é verdade que...
– é certo que...

Outro é o movimento que se evidencia como convite ao partilhamento de


conhecimentos de suposições e conhecimentos. Neste caso, o escrevente desenha
um interlocutor que não necessariamente partilha os conhecimentos necessários
ao entendimento dos conteúdos expostos.
Comum no caso de sugestão de necessidade de partilhamento são as explici-
tações de sentidos de palavras. Este movimento faz crer que os elementos explica-
dos não seriam do conhecimento do interlocutor ou que eles tomam sentidos espe-
ciais na exposição de tal modo que sua informação se torna importante.
Como exemplo, pode-se considerar várias passagens iniciais desta exposição
em que tentei definir alguns termos com os quais nem todos concordam, mas que
foram por mim convidados a pelo menos temporariamente ver a questão daquele jeito.
Também se dá o caso em que frisamos a importância de um dado fenômeno
e sugerimos ser relevante que nosso leitor também considere aquilo como relevan-
te. Veja-se este caso:

(8) Introdução ao A Riqueza das Nações, de Adam


Smith, Vol. I, p. 11
“ É interessante notar nesse ponto que, embora acessória à
preocupação central da obra, a teoria do valor apresentada

150
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

em A Riqueza das Nações iluminou sob vários ângulos o


fenômeno da formação de preços. Por um lado, /.../ Por outro
lado, /.../”

3.4 INDÍCIOS DA FALA DE UM INTERLOCUTOR COM O QUAL SE DIALOGA

Este movimento do escrevente é conhecido como a sugestão de presença da


alteridade ou proposição de uma alteridade efetiva, como no caso do exemplo a
seguir, que é um texto com a situação extrema.

(8) Artigo de Jornal:

SOBRE COMO ENTREVISTAR UM PREFEITO NEGRO

Marilene Felinto

Versão original Versão dialogada


E agora, prefeito? O que o senhor MF: E agora, prefeito? O que o senhor tem achado dessa atmosfera de “E Agora, José?”.
tem achado dessa atmosfera de “E agora, P:
José?”. Ã-hã, é. Drummond, do poema MF: Ã-hã, é.
“José”, que diz assim: “E agora, José? A festa P:
acabou, a luz apagou, o povo sumiu...”. O MF: Drummond, do poema “José”, que diz assim: “E agora, José? A festa Acabou, a luz
senhor? É? Mas o seu caso se agrava ou se apagou, o povo sumiu...”.
suaviza pelo fato de o senhor ser negro? P:
Ã? Hum-hum. É, o senhor disse, MF: O senhor?
é verdade, que seria prefeito de todas as P:
raças. Acontece que o senhor é negro. O MF: É? Mas o seu caso se agrava ou se suaviza pelo fato de o senhor ser Negro?
senhor acha que vai receber qual dos dois P:
tipos de tratamento: à la O.J. Simpson ou MF: Ã?
o outro, como o que deram àquele prefeito P:
americano negro, Marion Barry, que se MF: Hum-hum.
envolveu com drogas e foi condenado? P:
Não, ninguém está incriminando MF: É, o senhor disse, é verdade, que seria prefeito de todas as raças. Acontece que o
o senhor de antemão. Só que os fatos es- senhor é negro. O senhor acha que vai receber qual dos dois tipos de tratamento: à la
tão aí: a Prefeitura de São Paulo, quando o O.J. Simpson ou o outro, como o que deram àquele prefeito americano negro, Marion
Barry, que se envolveu com drogas e foi condenado?
senhor era secretário de Finanças, fez lista
P:
irregular de dívidas judiciais, com suposta
MF: Não, ninguém está incriminando o senhor de antemão. Só que os fatos estão aí: a
motivação dolosa, e valendo-se de inter-
Prefeitura de São Paulo, quando o senhor era secretário de Finanças, fez lista irregular
pretações elásticas da constituição.
de dívidas judiciais, com suposta motivação dolosa, e valendo-se de interpretações
Como? Sim, claro, o senhor vai ex- elásticas da constituição.
plicar tudo à CPI. Mas aqui eu só quero P:
saber se o senhor, um negro, acha de bom- MF: Como?
tom servir de escudo a um branco, Paulo P:
Maluf? MF: Sim, claro, o senhor vai explicar tudo à CPI. Mas aqui eu só quero saber se o senhor,
Não são? Hum. Ninguém está di- um negro, acha de bom-tom servir de escudo a um branco, Paulo Maluf?
zendo que o senhor ou ele são culpados P:
de antemão. Mas ele era seu superior na MF: Não são?
época. O Senado? Sei. E o Banco Cen- P:
tral, que autorizaram as operações, é ver- MF: Hum. Ninguém está dizendo que o senhor ou ele são culpados de antemão. Mas ele
dade. Mas ministros do Supremo já disse- era seu superior na época.
ram que essas aprovações não retiram o P:

151
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.

caráter ilegal do procedimento da prefei- MF: O Senado?


tura paulista. Ah, é. Sei. Hum-hum. Ã- P:
hã. MF: Sei.
Mas o senhor acha que seu caso P:
se agrava porque o senhor é negro? Ããã. MF: E o Banco Central, que autorizaram as operações, é verdade. Mas ministros do Su-
Como eu já lhe disse, houve o caso do pre- premo já disseram que essas aprovações não retiram o caráter ilegal do procedimento
feito americano.. Ã? Como foi? Teve jor- da prefeitura paulista.
nal aqui que deu em manchete “Prefeito P:
negro americano condenado por uso de MF: Ah, é.
drogas”, incluindo o adjetivo “negro”. P:
Como? Ah, sim. MF: Sei. Hum-hum. Ã-hã.
Não estamos, não estamos nos Es- P:
tados Unidos, claro. Mas, por isso mesmo, MF: Mas o senhor acha que seu caso se agrava porque o senhor é negro?
não é pior, prefeito? Aqui é todo mundo
P:
mulato, misturado. O senhor diria que al-
MF: Ããã. Como eu já lhe disse, houve o caso do prefeito americano..
guém seria poupado aqui só por ser negro
P:
e rico? Foi assim com o O.J.
MF: Ã?
O senhor veja o caso de Pelé, a quem
P:
foi negado o título de cidadão de Brasília,
porque ele não quis reconhecer a filha, que MF: Como foi? Teve jornal aqui que deu em manchete “Prefeito negro americano conde-
é, aliás, a cara dele. Por falar em família, o nado por uso de drogas”, incluindo o adjetivo “negro”.
senhor considera explicado o caso do alu- P:
guel do carro à sua esposa? Hein? Ah. MF: Como? Ah, sim.
Hum-hum-. Ããã. P:
O senhor acha justo o Brasil tra- MF: Não estamos, não estamos nos Estados Unidos, claro. Mas, por isso mesmo, não é
tar negros e brancos como iguais nessa pior, prefeito? Aqui é todo mundo mulato, misturado. O senhor diria que alguém
hora? (Afinal houve Collor e PC, brancos). seria poupado aqui só por ser negro e rico? Foi assim com o O.J. O senhor veja o caso
Ou o senhor acha que exigem mais corre- de Pelé, a quem foi negado o título de cidadão de Brasília, porque ele não quis reco-
ção pública de negros, exatamente por se- nhecer a filha, que é, aliás, a cara dele. Por falar em família, o senhor considera
rem negros? Por que o senhor está servin- explicado o caso do aluguel do carro à sua esposa?
do de escudo para Maluf? O senhor acha P:
que ele, branco, faria a mesma coisa pelo MF: Hein? Ah. Hum-hum-. Ããã.
senhor, um negro? Hum. P:
O senhor não acha que dã entre- MF: O senhor acha justo o Brasil tratar negros e brancos como iguais nessa hora? (Afinal
vistas demais para dizer tão pouco? O se- houve Collor e PC, brancos). Ou o senhor acha que exigem mais correção pública de
nhor lembra o José do poema, prefeito: que negros, exatamente por serem negros?
“(···) Está sem discurso / (···) Sozinho no P:
escuro (···) / Sem cavalo preto / que fuja a MF: Por que o senhor está servindo de escudo para Maluf? O senhor acha que ele, bran-
galope (···)”. co, faria a mesma coisa pelo senhor, um negro?
O senhor é da opinião de que negro tem P:
que dar exemplo, para reforçar a auto-es- MF: Hum. O senhor não acha que dá entrevistas demais para dizer tão pouco? O senhor
tima das crianças negras? O senhor acha lembra o José do poema, prefeito: que “(···) Está sem discurso / (···) Sozinho no
que vai servir de exemplo de auto-estima escuro (···) / Sem cavalo preto / que fuja a galope (···)”. O senhor é da opinião de que
para as crianças negras? O senhor acha o negro tem que dar exemplo, para reforçar a auto-estima das crianças negras?
quê, prefeito? Hein? Ã-hã. Ah, sim. Hum- P:
hum. Ããã. Sei. MF: O senhor acha que vai servir de exemplo de auto-estima para as crianças negras?
P:
MF: O senhor acha o quê, prefeito?
P:
MF: Hein?
P:
MF: Ã-hã. Ah, sim.
P:
MF: Hum-hum. Ããã. Sei.

Fonte: Folha de S. Paulo, 25/03/1997:3,2

Como se nota, aqui há um caso extremo em que as marcas de interatividade


com um locutor determinado, o prefeito, se acham dadas na forma dialógica e até
na maneira de supor respostas (que podemos imaginar e até variar).
Isto também se manifesta em certas formas características de citações que
são endossadas ou revidadas. A citação surge quase que como um turno do

152
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

interlocutor suposto. Nem toda a citação (discurso direto) pode ser tida como um
caso de interatividade, mas toda a citação é um caso de heterogeneidade, polifonia,
alteridade, intertextualidade ou interdiscursividade. Mais do que um caso de “he-
terogeneidade mostrada” como aponta Authier-Revuz, trata-se de um “dialogismo
mostrado”, nos termos de D. Maingueneau.
Veja-se o caso das linhas 9-10 do exemplo (4). Ali, o embaixador do Brasil
na Venezuela é citado, mas com o mesmo status que o resto do parágrafo sob o
ponto de vista funcional, o que se dá com o verbo “recorda”, funcionalmente
constativo (na terminologia de Austin).
O movimento específico a que aqui me refiro é aquele que aparece em abun-
dância em textos acadêmicos. Ali é comum se apresentar a opinião de alguém e
então endossá-la ou criticá-la com alguns argumentos que retomam o citado. O
interlocutor não está ali apenas como uma informação a mais, mas como um par-
ceiro do debate em andamento. São formas que sugerem a emergência de um outro
(não o autor) como enunciador no texto.

3.5 INDÍCIOS DE OFERTA DE ORIENTAÇÃO E SELETIVIDADE

A designação aqui dada a este tipo de indício não é muito clara, mas o
fenômeno é simples. Trata-se do uso de dêiticos textuais, notas de pé de página etc.,
como indícios claros de interatividade.
Quanto às notas de pé de página, temos fórmulas que se dirigem explicita-
mente a um leitor, tais como:

– “* sobre o conteúdo desse termo, ver o livro de Pareto...”


– “** confira com os dados da tabela 15 trazidos na p. 68”

Vejamos agora o caso dos dêiticos textuais (DT). Esses dêiticos fazem refe-
rência a algo dentro do texto, seja uma porção do texto ou um conteúdo. Sua
referenciação não é pontualizada, ao contráro, por exemplo, das anáforas. Um as-
pecto importante dos DT é o fato de mostrarem como concebemos o texto enquan-
to um objeto no qual e sobre o qual agimos. O texto é visto como um espaço em
que as coisas estão distribuídas e situadas (essas coisas são as proposições, os con-
teúdos etc.) de maneira que o texto é ao mesmo tempo real e virtual. Por outro
lado, o texto é também um tempo, seja ele o tempo da ação do produtor (“depois eu

153
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.

falarei sobre isso” ) ou do leitor (“como você viu no início de sua leitura” ) ou do conteú-
do (aqui não cabe outra posição). O escrevente, ao usar esses indícios, está sugerindo
ao seu leitor uma orientação cognitiva (um enfoque) preferencial.
Vejamos algumas das realizações desses indícios que podem revelar interati-
vidade.
Nas cartas:
1. fico por aqui (E001)
2. Por aí você vê porque eu demoro tanto (E002)
3. Para que possamos comprovar tal fato… (E005)

Nas atas:
1. outro assunto abordado foi a… (E007)
2. Para tanto foi nomeado… (E007)

Texto jurídico:
1. … que no final assina, fez esta petição (E008)
2. pelos motivos práticos e jurídicos abaixo aduzidos (E037)
3. pelo instrumento de mandato anexo (E058)
4. As funções acima discriminadas (E058)

Artigo científico:
1. Essa posição é controvertida (E019)
2. O que foi dito até aqui é suficiente para… (E019)
3. Penso, aqui, nos… (E019)
4. Foi tendo em vista tudo o que se acaba de afirmar que escolhemos (E040)
5. Considerando o que aí fica dito (E040)
6. Como já foi sugerido antes, de passagem, (E040)
7. ao responder a questão colocada acima (E054)
8. este último dado indica que…/E054)
9. essas especulações são, como viram, muito limitadas (E054)

4. OBSERVAÇÕES FINAIS

Esses indícios de interatividade revelam que o escrevente age na suposição


de um envolvimento multiorientado, ou seja, envolve-se

154
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

(a) com seu interlocutor (“uma objeção possível seria...” )


(b) com seu tema (“os argumentos para esta tese são...” )
(c) consigo mesmo (“meu interesse...” )
(d) com práticas sociais específicas (para contato pessoal usa-se uma car-
ta)

Portanto, mais do que simples presença de estratégias de textualização típi-


cas da fala nos processos de textualização da escrita, parece que estas marcas são
um aspecto central do processamento lingüístico de um modo geral. Assim, é pos-
sível imaginar que o processamento textual (enquanto movimento de produção e
recepção de texto numa perspectiva cognitiva) tem muito de comum na fala e na
escrita. Tudo leva a crer que a interatividade é um aspecto que diz respeito não
tanto às modalidades de uso da língua, mas à relação do escrevente/falante com a
língua.
Outra conseqüência sugestiva, decorrente das teses acima, é uma nova vi-
são nas relações fala-escrita no aspecto da formalidade-informalidade. Observe-se
que na posição aqui defendida fica implícito que formalidade (questão de estilo)
não necessariamente acarreta distanciamento do interlocutor, nem elimina auto-
maticamente as marcas de interatividade. É assim que um dos textos mais formais,
qual seja o acadêmico, apresenta alto índice de marcas de interatividade.
Também é de salientar que a presença de marcas de interatividade não é um
indício de presença da fala na escrita, mas de uma projeção da escrita dimensiona-
da para uma determinada audiência. Os indícios de interatividade na escrita são
sobretudo uma marca do escrevente a respeito de sua relação com a língua. A
dialogicidade será tanto maior quanto mais definido for o interlocutor. Veja-se o
caso das cartas pessoais ou dos bilhetes e cartões.
Em suma, as marcas de interatividade na escrita e na fala atuam como ope-
radores de orientação cognitiva sugerindo perspectivas de interpretação preferen-
cial por parte do escrevente/falante. Mais do que simples marcas estilísticas são atos
de fala (formas de ação) que fazem propostas, negociações, contratos e definem
posicionamentos para uma relação intersubjetiva ou interação comunicativa mais
eficaz. Retornando à epígrafe de Steven Pinker, que abre o primeiro capítulo do
livro O instinto da linguagem, podemos concluir dizendo que as marcas de interativi-
dade na escrita estão entre as estratégias mais eficazes de que se lança mão para
produzir o efeito de “esquisita precisão” no processo comunicativo.

155
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.

BIBLIOGRAFIA

AUTHIER-REVUZ, J. (1982) Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments


pour une approche de l’autre dans le discours. DRLAV, 26, p. 91-151.
BAKHTIN, M. (1929) (1986) Marxismo e filosofia da linguagem. 3. ed. São Paulo, Hucitec.
CORRÊA, M. L. G. (1997) O modo heterogêneo de constituição da escrita. Tese de Doutorado.
Campinas, IEL/UNICAMP.
KOCH, P. e OSTERREICHER, W. (1990) Gesprochene Sprache in der Romania: Franzözisch
Italienisch, Spanisch. Tübingen, Niemeyer.
MARCUSCHI, L. A. (1986) Seguir uma regra. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 10, p. 87-
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PINKER, S. (1995) El instinto del lenguaje. Cómo crea el lenguaje la mente. (Trad. do original
inglês: The language instinct. How the mind creates language, 1994). Madrid, Alianza Edi-
torial.
SEARLE, J. (1969) Speech acts – An essay in the philosophy of language. Cambridge, Cambridge
University Press.
TANNEN, D. (1982) Oral and literate strategies in spoken and written narratives. Language,
58, 1.

ABSTRACT: This article discusses the widespread misconception that the inte-
ractive markers inscribed in textuality are a typical feature of orality and not to be
found in writing. One explanation for this erroneous idea is the tendency to analyze
interactive markers only in speech and not in writing. By considering the principles
of dialogism and interlocution as pertaining to language and not as a mode of
language use, it is suggested that speech, as well as writing, present interactive
markers. What differentiates these interactive markers in speech and writing are
the strategies for their realizations and the linguistic elements utilized. It is also
shown that the degree of formality or informality of a text is of little relevance for
clearly differentiating the presence of these markers. Based on a varied sample of
written texts, this article shows that interactive markers cannot be taken as a
criterion for distinguishing between speech and writing.

KEYWORDS: interactive markers; oral language; written language.

156
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

O DISCURSO NÃO É UMA CAMADA

Sírio POSSENTI*

RESUMO: Este texto defende a idéia de que o discurso não deveria ser
entendido como mais um nível lingüístico, mas antes como um efeito que
se produz através da exploração sistemática de certos mecanismos da lín-
gua. Tal efeito resulta de uma posição do locutor e materializa uma certa
ideologia.

PALAVRAS-CHAVE: discurso; efeito de sentido; níveis de linguagem.

O tema da mesa é gramática e discurso, suponho. Tema difícil por muitas


razões, mas, especialmente, porque há mais de uma acepção (na verdade, há vári-
as acepções, pouco semelhantes entre si) para cada um desses termos. Sou dos que
pensam que ainda é necessário deixar claro do que é que se fala, apesar de todas as
desconfianças que hoje circulam em relação a esta tentativa, vindas das descons-
truções e das psicanálises. Antigamente, chamava-se a isso “definir os termos”.
Mas, apesar dessa minha crença, não vou definir os termos previamente. Aposta-
rei que o título, se não informa positivamente sobre a posição assumida, pelo me-
nos exclui algumas das possíveis dentre as correntes.
Usualmente, diante de um tema como este, minha posição seria procurar
descobrir uma formulação problemática em alguma das versões da Análise do Dis-
curso Francesa, com o objetivo de fustigá-la. Este tem sido meu procedimento, nos
últimos tempos. É que meu modo de gostar daquela teoria é especialmente criticar
formulações que estejam em dívida excessiva com o estruturalismo e com a mes-
mice do sujeito assujeitado. No entanto, hoje, embora de forma provavelmente
não totalmente ortodoxa, vou assumir basicamente a defesa de uma das posições
da Análise do Discurso Francesa (SD). O título desta comunicação e a resenha de
um argumento de Paul Henry deveriam deixar isso claro, embora os outros mate-
riais apresentados possam ser acusados de pouca ortodoxia, coisa que se poderia
confirmar também pela ausência de um certo sotaque. Dito isto, vamos ao tema.

* Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – CNPq. 157


POSSENTI, Sírio. O discurso não é uma camada.

É bastante intuitiva, se não propriamente conhecida, a seguinte concepção


de Jakobson relativa aos níveis de linguagem:

“... existe, na combinação das unidades lingüísticas, uma escala ascendente


de liberdade. Na combinação dos traços distintivos em fonemas, a liberdade
do locutor individual é nula; o código já estabeleceu todas as possibilidades
que podem ser utilizadas na língua em questão. A liberdade de combinar os
fonemas em palavras é circunscrita, é limitada à situação marginal da cria-
ção de palavras. Na formação das frases a partir de palavras, a coerção que o
locutor sofre é menor. Enfim, na combinação de frases em enunciados, a
ação das regras coercitivas da sintaxe pára e a liberdade de todo locutor
particular aumenta substancialmente, ainda que seja preciso não subestimar
o número de enunciados estereotipados” (apud Pêcheux, 1969, p. 72).

Se fosse aceito esse ponto de vista, talvez se pudesse dizer que não existe
nenhuma relação entre gramática e discursividade, que se trata, exatamente, de
dois domínios distintos. Talvez, complementares. (Além disso, cada pesquisador
de uma dessas áreas poderia dizer, nos corredores, que, quando lhe aparece um
aluno não muito talentoso, ele o remete a pesquisadores do outro domínio...).
Uma das ressalvas a esta conclusão poderia vir dos estudiosos da gramática do
texto e/ou da conversação, se defendessem que, na expressão “gramática do texto/
conversação”, a palavra “gramática” significa mesmo ‘gramática’, e a palavra “texto/
conversação” significa (ou seja, é um outro nome de) ‘discurso’. Talvez Benveniste
considerasse que se trata de um abuso de termos, tanto quanto atribuir uma lin-
guagem às abelhas. Talvez, alguns analistas do discurso considerassem que se trata
de uma forma de ilusão sobre a imanência.
A concepção de Jakobson apresentada acima é correlata de outra concep-
ção corrente segundo a qual as línguas se organizam em camadas (sintaxe, semân-
tica, pragmática/discurso), não apenas com a finalidade de explicar algumas ca-
racterísticas da construção das seqüências, mas também sua interpretação. Uma
das suposições é a de que, na interpretação, as camadas mais internas, além de
terem prioridade, têm a óbvia garantia proporcionada pelas regras da gramática.
Ou seja: haveria interpretações impostas pela gramática (ou, pelo menos, inter-
pretações limitadas pela gramática). O procedimento seria: quando a sintaxe é
suficiente para garantir a interpretação, fica-se na sintaxe. Apenas se a sintaxe
falha é que se passa para a camada semântica. E o procedimento se repete: se a
semântica não dá conta de uma interpretação, então, e só então, passa-se para a
camada pragmático-discursiva.

158
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Segundo esta orientação, é obvio – isto é, a questão é tomada como se o


fosse – que a diferença de sentido entre sentenças como “José ama Maria” e “Ma-
ria ama José” é depreensível com base em fatores sintáticos. Já a ambigüidade
(sintática) de enunciados como “O livro o menino leu” se eliminaria com base em
critérios semânticos (isto é, não exclusivamente sintáticos – considerando fatores
como restrições de seleção ou compatibilidades, ambos mecanismos relacionados
com sistemas de referência culturais, certamente). Mas, a ambigüidade de “festa
de 15 anos”, por exemplo, só se resolveria pragmático-discursivamente, já que
nenhuma restrição sintática e nenhuma restrição semântica impõem como exclu-
siva uma interpretação (que, no entanto, é a que ocorre usualmente), sendo repri-
midas de fato todas as outras alternativas.
Esta concepção, que Dascal chamou alhures de “cebolar”, fornece um pro-
tocolo de leitura que vale por sua explicitude, mas, certamente, só funcionaria se
a língua fosse um sistema autônomo, embora com brechas (que alguns lamentari-
am) que exigiriam o apelo a fatores não-lingüísticos, por isso mesmo considerados
pragmático-discursivos.
É basicamente contra esta concepção de discurso (tida freqüentemente como
se fosse óbvia ou única – o discurso recobrindo aquilo de que a lingüística não dá
conta) que vou falar aqui. Assumo que, se esta é uma concepção de discurso que
circula, e se esta é, mesmo, a concepção dominante de discurso (ao lado da consi-
deração de discurso simplesmente como “língua em uso”), e, até mesmo, se ela
não é uma concepção de pouca relevância, mesmo assim, esta não é a única con-
cepção. Diria que nem mesmo é a mais interessante.
Quero tentar deixar clara a relação entre língua e discurso segundo um
modo de ver o problema que pode ser atribuído à AD, mas que não é, de fato,
exclusividade dela, no essencial. Quereria fazer isso apresentando sumários de
análises (efetuadas por outros pesquisadores, não necessariamente com os mes-
mos compromissos), ao invés de apenas alinhar argumentos de ordem teórica ou
ideológica.
Para que fique também claro que não se trata apenas de AD, os dois primei-
ros exemplos que vou apresentar são resultantes de análises teóricas que, se se
aproximam da AD no resultado, não se confundem com ela (pelo menos, nenhum
praticante totalmente ortodoxo da AD aceitaria que se trata da mesma coisa). No
entanto, diria que o efeito é o mesmo, no sentido de que essas análises mostram
que o que se pode chamar de discurso não é nem complemento da língua, nem
resulta do simples uso da língua. Nem mesmo como se se tratasse de um domínio
a ser explicado por regras ou princípios de texto ou de conversação. Espero que

159
POSSENTI, Sírio. O discurso não é uma camada.

fique claro que, embora sempre haja um suporte lingüístico para um discurso, nem
sempre o mesmo recurso da língua está a serviço do mesmo discurso.
Meu objetivo, é, assim, tentar mostrar que a noção de discurso nem
se opõe à de gramática, nem é desta um mero complemento. O discurso é
entendido, aqui, como algo – um efeito de sentido, uma posição, uma ideolo-
gia – que se materializa através da língua, embora não em uma relação biunívoca
com recursos de expressão da língua. É pela “exploração” de características da
língua que a discursividade se materializa (para usar os termos de Kress (1985,
p. 29), “o discurso emerge no e através do texto”). Ou seja, o discurso se
constitui pelo trabalho com e sobre os recursos de expressão, que produzem
determinados efeitos de sentido em correlação com condições de produção
específicas. Freqüentemente, se não sempre, esta investidura dos recursos de
expressão não é clara para o locutor ou para o ouvinte/leitor – ou seja, os
interlocutores podem não ter acesso consciente às manobras que executam e
aos efeitos que assim (se) produzem.
Seja, para começar, o seguinte exemplo analisado por Kress (1985).
Trata-se de uma emissão jornalística por TV (grifo as passagens mais relevan-
tes para a análise):

LOCUTOR: A primeira partida da excursão altamente controversa dos


Springbok da Nova Zelândia produziu dois vitoriosos hoje: os Sul-africanos
e a polícia. Os Springbok tiveram a mais fácil das partidas, aniquilando Poverty
Bay por 24 a 6. Mas, as forças da polícia neozelandesa que guardavam o
campo em Gisbourne tiveram que enfrentar dúzias de raivosos manifestantes
que cantavam slogans antiapartheid, sopravam apitos que causavam a interrup-
ção do jogo e fizeram duas tentativas de invadir o campo. Aqui está a reporta-
gem especial via satélite de hoje:

REPÓRTER 1: As coisas começaram bastante pacíficas, com uma marcha


em direção à cidade. Mas a calma não durou muito. Policiais preocupados
tentaram proteger a parte de trás da cerca, que era vulnerável, mas os refor-
ços não chegaram a tempo. Os manifestantes derrubaram a cerca, e havia um
só grupo de policiais tentando segurá-los. Muitos subiram numa ladeira escor-
regadia e começaram a derrubar a cerca. Disputas violentas se seguiram. Mais
disputas, agora mais violentas, irromperam. A confrontação durou várias
horas. Muitas pessoas disseram que foram feridas na contenda. A manifestação
terminou tarde nesse dia, depois que 13 foram presos.

160
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

REPÓRTER 2: Também em outras partes do país outras pessoas foram presas.


Manifestações como a Auckland esta noite dão a medida da comoção da
nação hoje, e de como os grupos contrários à excursão marcaram o dia de hoje
como o da vergonha da Nova Zelândia. Jornal JW, falando da Nova Zelândia,
para o jornal A Testemunha Ocular.

Não retomarei aqui a análise completa de Kress, mas apenas alguns aspec-
tos, exatamente os que são relevantes para a questão da relação (ou não) entre
gramática e discursividade. Diz Kress que um texto revela sua organização ideoló-
gica (isto é, um discurso) na seleção e organização de sua estrutura sintática. A
questão básica, para ele, é o modo pelo qual os eventos são retratados causalmen-
te. Tais eventos podem aparecer em formas transativas (com agente, ação e alvo
expressos na superfície textual) ou em formas não-transativas (ficando não-ex-
presso pelo menos o agente). Neste caso, os eventos aparecem como se não hou-
vesse uma ação, como se se causassem a si mesmos, ou como se decorressem de
uma ação não-especificada. O modo de apresentar os eventos não é uma questão
de verdade ou de realidade, mas um modo de o locutor integrar a ação em seu
sistema ideológico.
No texto em análise, de maneira geral, cláusulas transativas completas ocor-
rem quando os agentes são os manifestantes; as transativas com outros agentes
ocorrem com agente apagado. Numericamente, as cláusulas não- transativas do-
minam o texto. É claro, assim, que a seleção do traço de transatividade é sistemá-
tica, embora, vale repetir, provavelmente não seja consciente. As estruturas dis-
cursivo-ideológicas se realizam no texto de uma certa forma, e a presença ou au-
sência de um traço não é uma questão de acaso, mas a expressão de um sistema
ideológico e um discurso específico de autoridade.
Além da sistematicidade das construções sintáticas referidas, o mesmo
discurso se realiza pela seleção de um léxico recheado de metáforas militares, de
batalha: há um inimigo, e há um amigo protetor. A polícia guarda o campo que
os manifestantes querem invadir. O efeito é que os ouvintes são levados a ver a
narração como se simplesmente “narrasse os fatos como ocorreram” – o que as
imagens (obviamente, selecionadas) confirmam. O efeito é que os antifascistas e
antiracistas são apresentados como violentos e agressivos, e os policiais que os
reprimem, como guardiães da ordem. Qual a relação entre gramática e discursi-
vidade? No caso, um certo discurso, uma determinada ideologia se materializa/
veicula pela seleção sistemática de uma ou de outra estrutura sintática, confor-
me o fato de que se trata. Ou seja: o discurso que se veicula neste texto se

161
POSSENTI, Sírio. O discurso não é uma camada.

veicula exatamente pela seleção de determinados recursos da sintaxe. O mesmo


discurso (a mesma posição ideológica) poderia, é certo, ser materializada/veicu-
lada de outra forma, exatamente porque não há uma relação biunívoca entre
discurso e gramática, assim como, evidentemente, as mesmas manobras sintáti-
cas podem servir a outros discursos.
O segundo exemplo que desejo apresentar é uma análise de Lavandera
(1985), que vai na mesma direção do exemplo de Kress, embora Lavandera
estivesse se fazendo outra pergunta. Trata-se da análise de um trecho de um
pronunciamento feito no México pelo então presidente argentino Alfonsin.
Os trechos que importam vêm citados, seguidos de um sumário da análise de
Lavandera:

“Durante varios anos la Argentina padeció la acción de grupos terroristas


que se autoassignaron – com la soberbia propia de las mentalidades autoritarias
y mesiánicas – la función de decidir qué tipo de sociedad debíamos tener los
argentinos y el cómo hacerlo.”

Pode-se observar que o agente que provoca o “padecimento da Argentina”


aparece
a) em posição remática (para não ser mitigado);
b) profusamente avaliado com termos negativos (soberba, autoritárias,
messiânicas);
c) como sujeito de uma ação expressa por um verbo finito, no tempo que
mais caracteriza a narrativa (pretérito de “autoassignaron”).

“Eligieron la via de la violencia armada”

O agente (uma análise em termos de coesão textual, por exemplo, revela


isso facilmente) é o mesmo do verbo “autoassignaron” (i. é, grupos terroristas), de
forma que é o mesmo discurso que continua.

“Y así se engendró el círculo vicioso de la violencia.”

A ação de engendrar aparece expressa em forma passiva (ou, alternativa-


mente, indeterminada no que se refere a seu agente) – mas “asi” remete a toda a
emissão anterior, ou seja, às ações dos grupos terroristas. A noção semântica de
círculo vicioso obriga a supor a ação de duas causas ou pontos de partida, um dos

162
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

quais leva ao outro, e o outro ao um, e assim sucessivamente. Mas, para o círculo
vicioso em questão, o falante só identifica um dos dois participantes, devendo a
existência de outro ser inferida a partir da própria expressão “círculo vicioso”. O
que importa destacar aqui é que, como esse círculo vicioso é o da violência, “vio-
lência” faz coesão com “grupos terroristas”. Assim, a coesão feita por “asi” e por
“violência” acaba explicitando apenas os mesmos agentes anteriormente mencio-
nados.

“Y por más de una década fueron violadas en mi país los derechos funda-
mentales del hombre.”

Segundo Lavandera, a expressão “por mais de uma década” alude ao perío-


do no qual membros das Forças Armadas, com a ajuda das forças policiais e de
forças paramilitares e parapoliciais, violaram direitos humanos de milhares de ar-
gentinos.
Observe-se que os violadores não são nomeados. São identificados apenas
muito indiretamente por um advérbio de tempo em posição temática (por mais de
uma década), que, além disso, não exclui necessariamente o primeiro agente no-
meado. Mais importante: o objeto da violação (os direitos fundamentais do ho-
mem) é colocado em posição remática, deixando assim definitivamente fora de
foco os responsáveis por tal ação.
A pergunta de Lavandera é: como explicar que Alfonsin tenha “escolhido”
esta estratégia discursiva? Pode-se responder que o fazia por compromisso com os
militares, por posição ideológica própria, ou por outra razão qualquer. O que é
relevante, aqui, tanto quanto a resposta, é verificar que há uma sistematicidade no
agenciamento de recursos sintáticos, e que é dessa sistematicidade que decorre
um tratamento diferente dado aos dois agentes das ações de que se trata nesse
pronunciamento político. Em resumo, o discurso que condena os terroristas expli-
citamente não pode condenar os militares e paramilitares com a mesma explicitude
– e é nisto que reside, ou é assim que se materializa, um discurso (um efeito de
sentido) e não outro.
Finalmente, meu terceiro exemplo, o que considero mais explícito para a
tese que estou defendendo. Num dos trabalhos certamente mais importantes da
primeira fase da AD, Henry (1975) discute a questão das relativas – restritivas e
explicativas – e, após repassar inclusive as várias hipóteses de explicação (gera-
ção) das duas estruturas propostas pela GGT de então, assume que, na verdade,
não se trata de uma questão de diferença sintática, mas sim de uma mesma estru-

163
POSSENTI, Sírio. O discurso não é uma camada.

tura sintática, que será interpretada como restritiva ou como explicativa a depen-
der do processo discursivo que ela estiver materializando.
Vejamos alguns detalhes desta proposta que concerne, diga-se, a um pro-
blema que poderia ser reconhecido como tipicamente sintático. A primeira idéia
mobilizada por Henry é a de que a língua – a langue – é apenas relativamente
autônoma. Por um lado, isto significa dizer que não há uma língua para cada dis-
curso - caso em que ela não teria autonomia alguma – e, por outro, isso significa
que a língua pode estar sujeita a um funcionamento determinado de alguma forma
também de seu exterior – isto é, não necessariamente o funcionamento de uma
estrutura lingüística obedece apenas a fatores que são exclusivamente da ordem
da langue. As fronteiras entre o que releva da língua e o que releva das formações
discursivas não pode ser assinalado a priori. Ou seja, cada discurso concreto é
duplamente determinado – pela ordem própria da langue e pelas formações
discursivas.
Conhece-se a relevância da noção de paráfrase para a AD, especialmente
na formulação de Pêcheux e Fuchs (1975). A relação parafrástica entre várias
superfícies discursivas é considerada por eles como nada menos que a própria matriz
do sentido. Um caso particular de relação entre superfícies discursivas é aquele em
que uma seqüência relaciona-se com ela mesma. É o que ocorre nos casos de reto-
mada e de reformulação. Ora, duas formulações materialmente diferentes podem
estar relacionadas por uma relação de paráfrase discursiva mesmo que não apare-
çam no mesmo contexto. Chame-se a colocação de uma seqüência em relação
com ela própria de relação intra-seqüência. É, por exemplo, o caso da relação
entre um pronome e um nome (um pronome não pode preceder um elemento que
lhe dá sua referência). Fora dessa relação específica, uma seqüência pode relacio-
nar-se consigo mesmo da mesma forma que se relaciona com qualquer outra se-
qüência. Temos, no caso, uma relação inter-seqüência, isto é, uma relação entre
duas seqüências distintas.
Quando se diz que a produção do sentido repousa sobre a possibilidade de
relacionar uma seqüência a uma formação discursiva, isso não significa que, na
leitura de um texto, seja necessário confrontá-lo materialmente com outro texto
(daí a relevância da noção de memória discursiva). A noção de paráfrase pode
operar sem que ela se realize materialmente, isto é, mesmo que não seja sob a
forma de uma relação material de diferentes seqüências efetivas. Tal relação pode
inclusive operar fora da consciência daquele que escreve, escuta ou lê. Isso se deve
ao fato de que a materialidade das formações discursivas não se reduz à materialidade
das seqüências discursivas.

164
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

É então possível, diz Henry, que uma formulação possa ser posta global-
mente em relação com outra (ser saturada) como se essa relação fosse uma relação
intra-seqüência, quando, devido à autonomia relativa da língua, uma relação in-
ter-seqüência deve necessariamente aparecer. É o que produz o efeito subjetivo de
anterioridade, de implicitamente admitido, chamado em AD de pré-construído.
Esse efeito é característico do funcionamento restritivo da relativa. Em resumo, só
se pode falar de um funcionamento restritivo ou explicativo de uma relativa, e não
de uma relativa como sendo restritiva ou explicativa.
Seguindo Henry, pode-se resumidamente dizer que o pronome relativo re-
presenta a relação entre o antecedente e a relativa como uma relação intra-
seqüencial, mesmo que esta relação não esteja explicitada em outros lugares no
interior da seqüência. Assim, o que separa o funcionamento restritivo do funcio-
namento explicativo é que a outra modalidade de pôr em relação duas seqüências,
a relação inter-seqüências, é apagada pela relação intra-seqüência. Ao contrário,
no funcionamento explicativo, a relação inter-seqüências não é apagada.
Em resumo: o funcionamento explicativo apresenta uma relação inter-se-
qüência como se se tratasse de uma relação intra-seqüência. Assim, continua Henry,
o funcionamento explicativo só é possível em dois casos:
a) a relação entre o antecedente e a explicativa faz parte da ordem das
evidências gerais (remete a propriedades da natureza, por exemplo – “o cachorro,
que é um animal, é carnívoro”);
b) a relação entre o antecedente e a relativa é efetivamente explicitada no
contexto anterior da seqüência.
Assim como, nos casos analisados por Kress e por Lavandera, o discurso
(ou: uma posição) explicava certas características da sintaxe, o mesmo ocorre
no exemplo analisado por Henry. É porque se trata de certo discurso que o su-
porte lingüístico é o que é. Se mudarmos de posição – se nos colocarmos como
leitores –, poderemos dizer que o efeito de sentido (o discurso) se produz em
decorrência de certos fatos de sintaxe, relacionados com determinadas condi-
ções de produção.
Gostaria de dizer, para encerrar, que, certamente, Henry trataria hoje desta
questão em termos de interdiscurso. Ou seja, no caso da explicativa, trata-se da
introdução de outro discurso no discurso do locutor, o que não ocorre na restritiva.
Vale anotar que, certamente, este não é o único exemplo de fenômenos desse
tipo.

165
POSSENTI, Sírio. O discurso não é uma camada.

BIBLIOGRAFIA

GADET, F. e HAK, T. (orgs.) (1990) Por uma análise automática do discurso. Campinas, Edi-
tora da Unicamp.
HENRY, P. (1975) Constructions relatives et articulations discursives. Langages, 37. Paris,
Didier-Larousse, p. 81-98.
KRESS, G. (1985) Ideological structures in discourse. In VAN DIJK, T. (org..) Handbook of
discourse analysis. London, Academic Press Inc. v. IV. p. 27- 42.
LAVANDERA, B. (1985) Decir y aludir: una propuesta metodológica. Filologia, XX. Buenos
Aires, Universidad de Buenos Aires. p. 21-31.
PÊCHEUX, M. (1969) Análise automática do discurso. In GADET, F. e HAK, T. (orgs.)
(1990), p. 61-161.
PÊCHEUX, M. e FUCHS, C. (1975) A propósito da análise automática do discurso: atuali-
zação e perspectivas. In GADET, F. e HAK, T. (orgs.) (1990), p. 163-252.

ABSTRACT: This paper argues that discourse should not be taken as another
linguistic level, but otherwise as an effect that is produced through systematic
exploration of certain language resources. Such effect results from the speaker’s
position and, in fact, expresses an ideology.

KEYWORDS: discourse; effect of meaning; linguistic levels.

166
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

A FUNÇÃO SOCIAL DA TERMINOLOGIA

Enilde FAULSTICH*

RESUMO: O presente trabalho faz parte de uma investigação mais ampla,


que tem como objetivo a descrição de terminologias de língua portuguesa,
na variante brasileira, sob a perspectiva socioterminológica. Para a siste-
matização das variantes terminológicas, usamos como parâmetro os princí-
pios da variação lingüística que nos permitem reclassificar as variantes en-
contradas, até então, em corpora provenientes dos discursos das linguagens
científicas e técnicas, que analisamos.

PALAVRAS-CHAVE: socioterminologia; variantes terminológicas; ter-


minologia; discurso.

1. SÍNTESE DA EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO


NA ÁREA DE TERMINOLOGIA

Algumas reflexões nos conduzem a retornar às origens da constituição da


terminologia como disciplina. O desenvolvimento teórico surge de um ponto de
vista mais estreito – e nem por isso desprezível – de E. Wüster, por volta de 1931,
em Viena. Engenheiro, industrial e professor, ele defendia tese de que a terminolo-
gia era disciplina prescritiva e, por isso, instrumento para a eliminação das ambi-
güidades nas comunicações científicas e técnicas. Com esse pensamento, Wüster
demonstrava preocupações de ordem puramente metodológica e normativa. Sua
postura foi mais além no que diz respeito às restrições lingüísticas à terminologia,
uma vez que para ele não deveriam existir, para uma mesma noção, nem denomi-
nação plurivalente, portanto, homonímia e polissemia, nem denominações múlti-
plas, no caso, sinonímia. Anos depois, a criação das grandes bases de dados, volta-
das para atender às necessidades de intercomunicação, inaugura os dicionários
eletrônicos em que a tradução passa a ser a área privilegiada. Surgem, assim, os
grupos de terminólogos da francofonia, primordialmente, na Bélgica, com o Euro-
dicautom, e no Canadá, Québec, com o Termium e o BTQ.

* Universidade de Brasília. 167


FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.

A concepção terminológica na Europa e no Canadá enfatiza a relação da


terminologia com outras disciplinas, tais como, a lógica, a informática, a docu-
mentação, a lingüística e, dentro desta, a semântica. Iniciam-se pesquisas sistemá-
ticas sobre a “palavra” que aparecia nos discursos das linguagens de especialidade
das diversas línguas, assim como sobre “palavras novas” que surgiam para denomi-
nar novos conceitos provenientes do avanço científico e tecnológico. Tornava-se
emergente a sistematização de conceitos e palavras em dicionários, mas não nos
gerais e, sim, em obras que, de maneira precisa, descrevessem e sistematizassem o
conjunto de informações que respondessem à comunicação objetiva entre profis-
sionais do saber científico e tecnológico. Nesse contexto, o sentido de “palavra”
torna-se muito difuso e a denominação “termo” reassume sua conceituação lógi-
co-semântica1, passando a denominar toda unidade com significação própria no
interior de uma área do conhecimento.
Em síntese, podemos dizer que os novos conceitos científicos e tecnológi-
cos precisavam ser resumidos numa expressão denominadora (termo) para que a
referência pudesse ser conhecida. Neste momento, a palavra e seu significado
(sema), que ocupam primeiro lugar na descrição lexicográfica, cedem vez para a
observação dos objetos, para a denominação das coisas (onoma) que surgem e que
exigem um “marco divisionário” (terminu) entre a língua geral e a especialidade
criada (Faulstich, 1997). Assim, a disciplina terminologia define-se como estudo
sistêmico da denominação de conceitos que pertencem a áreas especializadas da
experiência humana.
Por sua vez, essa disciplina entra nas Universidades e em outras institui-
ções acadêmicas fortemente ligada à lingüística e aos programas de tradução e
com estrita relação com a informática. Desse modo, os trabalhos mais moder-
nos, além de levar em consideração o estudo de sistemas conceituais e de repre-
sentar redes conceituais, estabelecem denominações que facilitam a comunica-
ção profissional.
No momento, vivemos a fixação da disciplina Terminologia nos progra-
mas de Universidades nacionais e internacionais, de acordo com os dois princi-
pais eixos que ela apresenta: disciplina teórica e prática do saber-fazer termino-
lógico.

1
Digo “reassume” porque o conceito de termo, tal como entendido hoje, já era utilizado desde séculos anteri-
ores, como afirma Verdelho (1995, p. 218): “... no período renascentista, surgem outras obras do tipo lexico-
gráfico, motivadas pelos saberes científicos ou pela organanização e sistematização do conhecimento das coi-
sas, das pessoas, dos lugares e não expressamente orientadas pela informação lingüística.”

168
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

De acordo com Cabré (1993, p. 53), uma organização completa da termi-


nologia em um contexto sociopolítico e lingüístico específico deve prever a resolu-
ção dos seguintes aspectos:
a) a planificação, coordenação e administração dos recursos terminológicos;
b) o trabalho terminológico propriamente dito, por meio da elaboração de traba-
lhos sistemáticos de terminologia especializada;
c) a normalização dos termos, que supõe a fixação das formas consideradas pa-
drão, assim como a valorização das que se utilizam concorrentemente para
designar um mesmo conceito;
d) a difusão dos termos padronizados e a resolução de problemas a partir de con-
sultas relativas aos termos;
e) a implantação da terminologia nos meios de trabalho e em áreas de atividade;
f) a formação em terminologia, capaz de preparar profissionais para atuar no
mercado das línguas.
Eu acrescento a estas seis tarefas mais uma que está diretamente rela-
cionada às questões que dizem respeito à normalização. Trata-se do reconheci-
mento da variação terminológica nos diversos espaços lingüísticos em que a ter-
minologia é planificada, difundida e implantada. No meu modo de entender, a
principal função da normalização terminológica é a de harmonizar num espaço
sociocultural e lingüístico as diversas manifestações de forma que um conceito
tenha. Neste sentido, a seleção de uma forma standard, ao lado de outras for-
mas variantes concorrentes, deve ser decidida no seio da comunidade em que
tais formas ocorrem, por meio, por exemplo, da freqüência de uso. É preciso que,
à luz de critérios sociais e político-lingüísticos, se criem regras para a padroniza-
ção de termos, porém sem rejeitar as variantes que também são denominações
resultantes do uso.
Por outro lado, a postura prescritivista e, de certa forma, preconceituosa,
que nasce da vontade de uma única (pseudo-)autoridade lingüística de que um
termo é melhor do que outro, é inconveniente num trabalho de pesquisa lingüísti-
ca que prevê o desenvolvimento de um planejamento horizontal e vertical para a
difusão e implantação de terminologias.
Um trabalho que leve em conta o planejamento lingüístico de línguas deve
tratar o plano teórico como fundo para as análises científicas, porém deve obser-
var que na perspectiva social “o estudo das relações de papéis, dos complexos de
papéis, da compartimentalização de papéis e do acesso a papéis em comunidades
de fala e complexos de fala é realmente um assunto muito prático, no dizer de

169
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.

Fishman (1974, p. 38), quando este lingüista se refere às agências de planejamento


lingüístico, destinadas a promover o uso de línguas nacionais para propósitos edu-
cacionais, governamentais ou tecnológicos.
Nossa preocupação, ao fixar cada vez mais na Universidade de Brasília a
linha de pesquisa em léxico e terminologia e ao formar pessoal em terminologia, é de
natureza lingüística e social, portanto, socioterminológica, ao considerar que a vari-
ação é um dos postulados fundamentais para a decisão de normalização de termi-
nologias no contexto sociocultural brasileiro. O princípio seguido nas pesquisas é,
por conseguinte, o do funcionamento social da terminologia.
A socioterminologia nasce como uma nova corrente, depois que Boulanger
declara, em 1991, no seu artigo Une lecture socio-culturelle de la terminologie, que a
perspectiva socioterminológica tem o papel de “atenuar os efeitos prescritivos exa-
gerados de certas proposições normativas”.2 Ele estava preocupado com o ponto
de vista puramente prescritivo em que a terminologia se estruturara.
Mais tarde, Auger esclarece que “a nova corrente chamada sociotermino-
logia, em reação às Escolas hipernormalizadoras desconectadas das situações lin-
güísticas específicas de cada país, tem suas origens no cruzamento da sociologia da
linguagem e da harmonização de línguas”.3
O conceito de normalização de terminologias está diretamente relaciona-
do àqueles que aparecem nas Normas ISO, principalmente na que trata de
harmonização de conceitos e termos. Apesar de tratar-se de uma norma internaci-
onal, nós observamos que a decisão final sobre a forma dos termos deve considerar
os critérios de cada comunidade lingüística em questão, uma vez que a evolução
dos conceitos e dos termos nas línguas e nas comunidades lingüísticas é um fenô-
meno diversificado. (cf. Faulstich, 1994). Assim sendo, os princípios de normaliza-
ção de terminologias devem coincidir com os de harmonização 4 destas no sistema
lingüístico em que as terminologias são criadas ou estão inseridas. É sabido que das

2
No original de Boulanger, à página 25 aparece: “vient atténuer les effets prescriptifs exagérés de certaines
propositions normatives”. [No texto, a tradução para o português é nossa]
3
Para Auger (1993, p. 53): “un nouveau courant appelé socioterminologie, en réaction avec les Écoles
hypernormalisatrices déconnectées des situations linguistiques propres à chaque pays, qui tire ses origines du
croisement de la sociologie du langage et de l’aménagement des langues”. [No texto, a tradução livre para o
português é nossa]
4
Na Norma ISO 1087, 1990 (E/F), o termo harmonização está definido como “harmonisation des notions:
Réduction des différences entre deux ou plusieurs notions”, com a seguinte nota: “L’harmonisation totale des
notions peut amener la fusion de plusieurs notions” e como “harmonisation des termes: Désignation, dans
plusieurs langues, d’une même notion par des termes qui reflètent les mêmes caractères ou par des termes dont
la forme est similaire”.

170
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

bases greco-latinas origina-se um percentual muito grande de termos científicos e


técnicos, constituindo o grego e o latim, por isso, o fundo conceptual do objeto do
conhecimento, o qual será definido em função da atividade que usa a terminolo-
gia. Por tudo que foi dito, o próprio termo normalização se presta a ambigüidades
que merecem ser comentadas.
Para Cabré 5 , o termo normalização é válido para expressar a ação de redu-
zir a uma ‘norma’ distintas possibilidades de concorrência, e mais: a palavra nor-
malização possui, de entrada, dois significados diferentes: um relativo à extensão
do uso de língua (se devolve à ‘normalidade’ uma língua que se falava em uma
situação deteriorada); outro que se refere à fixação da forma de referência consi-
derada mais adequada (se estabelece um tipo designativo).
No dizer de Depecker (1995), a normalização tem pelo menos dois senti-
dos: o de normalização técnica, que é a normalização dos objetos industriais cuja
intervenção se dá nos procedimentos de fabricação ou de utilização dos produtos.
São feitas normas, principalmente, para assegurar a confiabilidade dos produtos,
para permitir sua troca e sua comercialização no mundo. O outro sentido é o de
normalização terminológica, que se ocupa da descrição de regras de fabricação
desses produtos, uma vez que, para ele, é necessário construir terminologias que
designem exatamente os objetos em causa. [...] E é preciso que o mesmo termo
seja empregado para o mesmo conceito ao longo de toda a norma e de uma norma
a outra.
Depecker chama ainda atenção para outro conceito metodologicamente
útil, que é o de harmonizar. No seu ponto de vista, harmonizar quer dizer pôr em
correspondência os termos uns com os outros no seio da mesma língua e entre
línguas, gerenciando os usos.
Auger (1984), ao tratar da normalização terminológica, observa que o
termo normalização serve tanto para designar a fixação de variedades pelas vias
da auto-regulação, como para denominar a intervenção de uma organização em
ordem para estabelecer a preferência de uma forma em relação a outras. Como
podemos constatar, a ação de intervir coincide muito mais com procedimentos
de normativização do que de harmonização, pois, ao normativizar uma expres-
são, a denominação terminológica estará sendo monitorada em função do “bom
uso da língua” e não em função pura e simples do uso socioterminológico da
língua.

5
Op. cit., cap. VI.

171
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.

2. A NORMA DIANTE DA VARIAÇÃO TERMINOLÓGICA

Talvez, a representação de nossas idéias, por meio de razões proporcionais,


sejam elucidativas. Para isso, consideramos que a base norma pode ser representa-
da nas seguintes formulações:

normal: normalizar :: normativo: normativizar e


normalizar: normalização :: normativizar: normativização

Um uso normal tende a normalizar-se no meio da comunidade que o adota;


por sua vez, um uso normativo resulta da recomendação de uma “autoridade” que
prescreve qual deve ser o “bom uso” da língua e na língua e, comumente, tal
recomendação aparece registrada nos documentos prescritivos e normativos. Nes-
te contexto, o termo normalização é ambíguo, porque tanto pode significar o pro-
cesso de tornar normal os usos lingüísticos, quanto pode significar um processo
impositivo de “bom uso”. A este último significado cabe mais a expressão normati-
vização, neologismo que poderia substituir o termo lingüístico normalização. O con-
ceito de normalização está mais relacionado ao de padronização e de uniformiza-
ção e, até mesmo, ao de harmonização lingüística do que ao de imposição.
Nos estudos modernos de terminologia, um termo pode estar normalizado
no sistema intralingüístico ou pode estar harmonizado com equivalentes interlin-
güísticos. Serve de exemplo para o primeiro caso o par lipoestático e lipostático, em
que lipoestático pode ser considerado o termo normal, concorrendo com a varian-
te lipostático, num verdadeiro processo de acomodação às estruturas morfofonê-
micas da língua portuguesa. Há de se considerar que um dos parâmetros para a
normalização é a variação, pois esta última atua com variáveis diretamente dentro
dos formantes do termo, provocando mudança quer na forma, quer no significado
terminológico. No par citado, a mudança atua na juntura de dois formantes de
composição, por meio da assimilação de um fonema vocálico átono, que se encon-
tra na posição posterior da juntura, por outro que lhe antecipa. No entanto, é
preciso manter-se atento para verificar se é esta última forma aquela que se nor-
malizará na língua. Contrariamente à maneira como se processa a variação no par
anteriormente citado, em lipoaspiração e lipaspiração, a segunda vogal, na juntura,
é a assimiladora.
Na harmonização interlingüística, encontram-se interessantes exemplos se
os termos, todos pertencentes a línguas neolatinas, têm formantes equivalentes,

172
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

como na seqüência com prefixo grego andr(o): androgen (catalão), andrógino (es-
panhol), androgène (francês), andrògino (italiano), andrógeno (português), an-
drogen (romeno) e como na seqüência com formantes latinos: agricultura (cata-
lão), agricultura (espanhol), agriculture (francês), agricoltura (italiano), agricul-
tura (português), agricultura (romeno).
Quando uma língua toma de empréstimo de outra língua – primordialmen-
te do inglês – um termo, a harmonização entre os sistemas se faz de maneira con-
fusa se a língua que recebe o novo termo não tiver uma política lingüística
normalizadora para acomodação de neologismos estrangeiros. Um bom exemplo,
entre muitos outros, é o termo técnico disc-jóquei, assim registrado no Novo Dici-
onário Aurélio da Língua Portuguesa (1986); esta forma, que tem a segunda ex-
pressão do composto harmonizada com o sistema do português, mantém a primei-
ra como na língua de origem.

3. VARIAÇÃO EM TERMINOLOGIA

Ao discutir o conceito de norma culta ou padrão, Travaglia (1996, p. 63-


6) 6 aponta alguns preconceitos, relacionados a uma postura ideológica, como o de
que “dentre as multiplicidades de formas de expressão, só uma é correta e todas as
demais são erradas”. Para argumentar, comunga com o pensamento de Castilho
(1988) quando este “lembra que isso implica conceber a norma culta como esta-
belecida por um conjunto de regras rígidas, quando em realidade isso não é o que
acontece. Há uma flutuação entre parâmetros diversos tais como ‘português escri-
to X português falado’, ‘português formal X português coloquial’, ‘português da
região A X português da região B’ etc. Ou seja, mesmo para a norma culta há, de
acordo com cada situação específica de interação comunicativa, uma variedade
de formas consagradas pelas pessoas com prestígio social, sobretudo por aquelas
com prestígio cultural, que direta ou indiretamente acabam definindo a forma de
prestígio por se agruparem de um modo ou outro aos grupos sociais de prestígio
econômico e político.”

6
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação. Uma proposta para o ensino de gramática no 1° e 2° graus. São
Paulo, Cortez, 1996. [Ao citar Ataliba T. de CASTILHO (1988), Travaglia refere-se ao artigo “Variação lingüística,
norma culta e ensino da língua materna”. In Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o 1° e 2°
graus – Coletânea de textos. Vol. I, São Paulo, SEE-SP/Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas.

173
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.

Até então as terminologias têm sido tratadas como provenientes exclusiva-


mente de grupos de prestígio científico e tecnológico e por que não dizer, de pres-
tígio econômico e político e, em decorrência disso, um único termo tem sido inter-
pretado como um cânon da comunicação. Esta interpretação traz como conse-
qüência uma visão distorcida da realidade lingüística, chegando ao ponto de se
considerar esse grupo vocabular como pertencente a uma ‘língua de especialidade’
e não como um recorte da língua geral na qual estão as linguagens de especialida-
de.
Convém observar que terminologia é disciplina que deve explicitar o se-
mantismo do termo como signo lingüístico que é. No dizer de Cabré (1993, p. 52),
“o código terminológico é uma parte peculiar do código léxico da gramática de
uma língua, portanto, na descrição completa de uma língua, não pode faltar a
terminologia.”
Como produto de variação, as variantes terminológicas classificam-se de
acordo com sua natureza lingüística. A sistematização dessas variantes é tarefa da
socioterminologia, cujo estatuto fica assegurado pela análise da diversidade de
termos que ocorre nos planos vertical, horizontal e temporal da língua. Em outras
palavras, a diversidade de uma língua pode efetuar-se em pelo menos três planos:
1. toda língua é historicamente diversificada e, dada a mudança lingüística, um
estado de língua no tempo 1 é diferente de um estado de lingua no tempo 2; 2.
toda língua é socialmente diversificada tanto pela origem geográfica quanto pela
origem social dos locutores; 3. toda língua é estilisticamente diversificada, os locu-
tores vão modificando sua maneira de falar de acordo com as situações sociais em
que se encontram (Boutet, 1989).
Para que se estabeleçam padrões socioterminológicos existentes na funcio-
nalidade da terminologia das linguagens de especialidade, é preciso, antes de tudo,
reconhecer que o estudo da terminologia está em relação direta com o estudo da
língua na qual os termos são usados. O modelo que consideramos mais adequado,
por conseguinte, é o funcionalismo lingüístico cuja abordagem é orientada para os
fenômenos lingüísticos em si. Essa perspectiva tem como objeto científico descre-
ver e explicar os próprios fenômenos lingüísticos, trabalho a ser feito pelo pesqui-
sador variacionista.
Para Scherre (1996, p. 39-40), em sociolingüística, o pesquisador variacio-
nista tem uma série de tarefas a cumprir, como identificar os fenômenos lingüísti-
cos variáveis de uma dada língua, inventariar suas variantes, levantar hipóteses
que dêem conta das tendências sistemáticas da variação lingüística [...], identifi-
car, levantar e codificar os dados relevantes, entre outras.

174
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

Nesse sentido, o modelo sociolingüístico funcionará como um guia para o


exame da funcionalidade socioterminológica cujo corpus é a linguagem de especi-
alidade. Observe-se, todavia, que socioterminologia não é sociolingüística. A pri-
meira se ocupa da variação social por que passa o termo nos diversos níveis e
planos hierárquicos do discurso científico e técnico. A sociolingüística, por sua
vez, trata da variação social por que passa a língua geral, no decorrer de sua sincro-
nia, em vista da mudança que poderá vir a ocorrer.
Embora socioterminologia e sociolingüística tenham objetos de análise di-
ferenciados, vem desta última mais um ponto de vista que merece ser considerado:
“os fenômenos lingüísticos variáveis, aqueles expressos por duas ou mais variantes,
apresentam tendências regulares passíveis de serem descritas e explicadas por res-
trições de natureza lingüística e não-lingüística.” (Scherre, 1996, p. 40)
Então, que tarefas devem ser cumpridas pelo pesquisador variacionista, es-
pecialista em terminologia, para responder aos princípios de descrição e de análise
de terminologias? Para os fins desta comunicação, selecionaram-se duas tarefas,
quais sejam identificar os fenômenos lingüísticos variáveis em terminologia e
inventariar as variantes terminológicas até então encontradas.

4. OS FENÔMENOS LINGÜÍSTICOS VARIÁVEIS EM


TERMINOLOGIA. CLASSIFICAÇÃO DAS VARIANTES
TERMINOLÓGICAS.

Em terminologia, os fenômenos variáveis ocorrem no sistema interno da


língua na qual estão redigidos os textos de especialidade. Trata-se, portanto, de
variação regular intrínseca e não de variação superficial, sob a forma de “como
registrar o termo”. Somente na dimensão vocabular de um corpus textual, de prefe-
rência especializado, é possível avaliar o que varia e como as terminologias variam.
Normalmente, na língua geral, as variantes se comportam como variáveis
dependentes, dentro de um processo de variação, a caminho de concretizar-se
como mudança. Nas linguagens de especialidade, a análise é comumente feita de
forma inversa. À expressão que já está estabelecida como termo, no discurso cien-
tífico ou técnico de maior prestígio, é atribuído o maior peso de valor ideológico,
resultando como o termo preferido, o recomendado, que pode ser registrado nos
dicionários terminológicos. Essa postura concretiza uma visão ultrapassada que
ainda prevalece nos estudos de terminologia.

175
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.

A variação nas linguagens de especialidade comporta, de um lado, as va-


riantes lingüísticas propriamente ditas e as variantes de registro, e de outro a sino-
nímia, assim como os empréstimos. A diferença básica que estabelecemos para
distinguir variante de sinonímia é que uma variante terminológica é forma concorren-
te, lingüística ou exclusiva de registro, que corresponde a uma das alternativas de
denominação para um mesmo referente num contexto determinado; por sua vez,
um sinônimo terminológico é uma entidade de coocorrência textual (Faulstich, 1996)
que resulta de escolha deliberada do autor para fazer variar a denominação a um
mesmo referente, num mesmo contexto.
Como método para inventariar as variantes terminológicas, criaram-se cri-
térios de sistematização, que dividem as variantes em dois grandes grupos.
VARIANTES TERMINOLÓGICAS LINGÜÍSTICAS, em que o fenôme-
no propriamente lingüístico determina o processo de variação.
VARIANTES TERMINOLÓGICAS DE REGISTRO, em que a variação
decorre do ambiente de ocorrência, no plano horizontal, no plano vertical, no
plano temporal em que se realizam os usos lingüísticos dos termos.
A classificação das variantes terminológicas lingüísticas obedece aos se-
guintes princípios:
a) a interpretação semântica é a base para análise do termo;
b) as unidades terminológicas complexas (UTCs) são analisadas sob o ponto
de vista funcional;
c) os subsistemas da língua portuguesa constituem o fundo lingüístico de
análise;
d) os usos escrito e oral dos termos são levados em conta.

Assim, as variantes terminológicas lingüísticas classificam-se em:


1. variante terminológica morfossintática, a que apresenta alternância de es-
trutura de ordem morfológica e sintática na constituição do termo, sem que o
conceito se altere, como em lombo-d’acem e lombinho-do-acém.7 A variação se
apresenta em um dos formantes do termo, normalmente no sufixo.
2. variante terminológica lexical, em que a forma do item lexical sofre comuta-
ção, mas o conceito do termo se mantém intato, tais como, i) pressão seletiva e

7
Padronização de cortes de carne bovina. Brasília, MA/SNAD/SIPA, 1990.

176
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

pressão de seleção, na linguagem do melhoramento genético de plantas; ii) aten-


tado violento ao pudor e atentado ao pudor, da área do direito penal. Em i) a
variação se processa na substituição de uma parte do item lexical por outro
com estrutura semelhante, formando uma mesma unidade terminológica. As-
sim, o adjetivo se expande em locução adjetiva, formada de preposição mais
adjetivo, ou ocorre o contrário, a locução se reduz a um adjetivo. Tanto a
forma expandida quanto a reduzida têm função de predicar a base. No exem-
plo ii), o apagamento de um dos elementos de predicação reduz a extensão do
termo, mas não simplifica o significado, porque a base preserva o conceito
inerente ao termo naquele contexto, o mesmo ocorre em melhoramento genético
florestal e melhoramento florestal.
3. variante terminológica fonológica, aquela cujo registro pode surgir de formas
decalcadas da fala, como estrupo e estrupro, em relação a estupro, termo da área
do direito penal, de grande ocorrência na linguagem do noticiário policial,
assim como lipoestático e lipostático da área médica.
4. variante terminológica gráfica, a que se apresenta sob forma gráfica diversifi-
cada de acordo com as convenções da língua, como pólen e polem, na lingua-
gem da botânica, bem como cãibra e câimbra na linguagem médica. Este tipo
de variação decorre da forma de registro do termo.

A classificação das variantes terminológicas de registro obedece aos se-


guintes princípios:
a) os termos são recolhidos no discurso real da linguagem de especialidade;
b) os termos pertencem à variedade socioprofissional;
c) os termos são recolhidos de textos, de procedência diversificada, que
tratam do mesmo assunto;
d) os termos são recolhidos de discursos com maior ou com menor grau de
formalismo, que tratam do mesmo assunto;
e) os termos são recolhidos de textos redigidos em épocas diferentes, que
tratam do mesmo assunto;
f) os usos escrito e oral são levados em conta.

As variantes terminológicas de registro classificam-se em:


1. variante terminológica geográfica, aquela que ocorre no plano horizontal de
um país, isto é, nas diferentes regiões em que se fala a mesma língua. Pode

177
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.

decorrer de polarização de comunidades lingüísticas geograficamente limita-


das por fatores políticos, econômicos ou culturais, ou de influências que cada
região sofreu durante sua formação. Servem de exemplos os termos da lingua-
gem médica caxumba, usado no centro-oeste, sudeste e sul do Brasil e papeira,
termo usado no norte e nordeste do Brasil, assim como em Portugal. Outros
exemplos: aipim (sudeste e sul do Brasil), macaxeira e mandioca (centro-oeste,
norte e nordeste do Brasil), termos da área de legumes.
2. variante terminológica de discurso, a que decorre da sintonia que se estabe-
lece entre elaborador e usuários de textos mais formais ou menos formais, como
parotidite epidêmica, que é um termo específico do discurso científico, da área
da medicina; junta de descarga, termo próprio do discurso técnico, da área de
mecânica de automóveis; planta de proveta, termo próprio do discurso de vulga-
rização científica, da área de melhoramento genético de plantas. Este tipo de
variante ocorre no plano vertical do discurso de especialidade e tem por meta
estabelecer o máximo de simetria na comunicação.
3. variante terminológica temporal, aquela que, no processo de variação e de
mudança, em que duas formas (X e Y) concorrem durante um tempo, se fixa
como a preferida. Serve de exemplo o termo já em desuso, da área de biologia,
macrogameta que foi substituído, no discurso da biotecnologia, por gameta femi-
nino, assim como microgameta que cedeu lugar para gameta masculino.

5. A TERMINOLOGIA NO DISCURSO

TEXTO 1 – DISCURSO CIENTÍFICO

Plasmídios da Agrobacterium tumefaciens (Mantell, 1994)

O desenvolvimento de plasmídios de Agrobacterium como sistema de ve-


tores para plantas é uma progressão natural dos estudos neste organismo: em
primeiro lugar, pela doença de plantas associada com eles e, em segundo lugar,
com respeito à semelhança dos sintomas da doença com certos tipos de câncer.
Quando os detalhes da verdadeira relação entre a bactéria e a planta hospedeira
ficaram elucidados, foi verificado o seu potencial como vetor. Hoje sabemos que
a Agrobacterium e seus plasmídios Ti evoluiram apenas visando o benefício da
bactéria. A planta infectada produz uma proliferação localizada de células não

178
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

diferenciadas que, sob a direção da informação genética integrada da bactéria


(DNA) produz metabólitos que são utilizados pela bactéria de vida livre Agro-
bacterium Tumefaciens como sua única fonte de nitrogênio e carbono (Figura 4.1).
O potencial dos plasmídios Ti de Agrobacterium como vetores deriva da capaci-
dade da bactéria de certa forma transferir e integrar de modo estável, um seg-
mento de DNA do plasmídio no genoma nuclear da planta, em um sistema natu-
ral de vetor.

Características da infecção da «galha da corôa»

A doença da galha da corôa é uma infecção que atinge principalmente


fruteiras jovens por Agrobacterium tumefaciens. No Reino Unido são poucos os sur-
tos e os sintomas são fracos mas, em outros locais, especialmente nos Estados Uni-
dos, as perdas são mais severas. A infecção ocorre em locais que apresentam feridas
na planta, embora ferimentos não sejam um requisito essencial para a infecção; de
fato, o acesso a um constituinte primário da parede celular pode desencadear a
instalação da doença. A bactéria é necessária para que ocorra a infecção, mas sua
presença constante não é necessária para a subseqüente manutenção da galha.
Material a partir de uma galha desenvolvida pode ser removido e mantido em cul-
tura esterilizada, livre de bactérias por períodos consideráveis de tempo, até vários
anos. Além disso, contrariamente às células normais de plantas, estas células
tumorais podem crescer em um meio de composição química definida não conten-
do auxinas e citoquininas (hormônios de crescimento de plantas) e, os genes res-
ponsáveis por este fenômeno também residem no segmento de DNA transferido.
A doença é conhecida e estudada há longo tempo mas o conhecimento da interação
bacteriana foi obtido através de (i) um intenso estudo da própria bactéria e (ii) o
desenvolvimento de técnicas extremamente sensíveis para a detecção de segmen-
tos específicos de DNA.
Petit et al., (1970) observaram que existem duas famílias de bactérias e as
galhas da corôa que elas causam são diferentes com respeito a produção dos dois
diferentes aminoácidos que foram chamados de octopina [N-a-(D-l carbo-
xietil)-L-arginina] e nopalina [N-a-(1,3-dicarboxipropil)-L-arginina]. A capacida-
de de produzir tais «opinas» é especificada pelo DNA transferido pela bactéria e
não pelo genoma de planta hospedeira; na verdade, as plantas não são capazes de
metabolizar estes produtos. A capacidade de produzir tumores em plantas e a espe-
cificidade da opina produzida foi mostrada ser associada com a existência na bacté-
ria de um plasmídio grande, o Ti (indutor de Tumor) (Tabelas 4.1 e 4.2). Bactérias
não virulentas (incapazes de produzir tumores em plantas suscetíveis) não carre-
gam o plasmídio Ti. A transferência do plasmídio de uma linhagem virulenta para

179
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.

outra não-virulenta, não resulta na modificação da linhagem avirulenta para viru-


lenta; além disso, ela agora pode utilizar a opina específica produzida no tecido da
galha da corôa que ela produziu. A capacidade de linhagens virulentas transferi-
rem o plasmídio Ti é dependente de uma opina específica codificada pelo plasmí-
dio. Uma procura da presença de plasmídio Ti no genoma de células tumorais
infectadas não deu resultados positivos inicialmente porque as técnicas não eram
suficientemente sensíveis e, como revelado mais tarde, apenas um pequeno seg-
mento do plasmídio Ti, o T ou DNA Transferido (T-DNA), é integrado no geno-
ma nuclear da planta hospedeira (Chilton et al., 1977; Thomashow et al., 1980;
Lemmers et al., 1980).

TEXTO 2 – DISCURSO DE VULGARIZAÇÃO CIENTÍFICA

Agrobacterium tumefaciens manipula genes de plantas (Gander, 1996)

Vamos ver como esta bactéria sobrevive na natureza e como ela pode ser
útil para a modificação ou engenharia genética de plantas de interesse para a soci-
edade. Em condições naturais, a agrobactéria causa tumores em plantas dicotile-
dôneas (plantas que mostram, após a germinação, duas pequenas folhinhas, por
exemplo feijão e cenoura. Plantas como o milho ou o trigo, que mostram, após a
germinação, somente uma folhinha, são chamadas de monicotiledôneas). Estes
tumores são conhecidos desde a primeira metade do século XIX e, na época, foram
chamados de “papos”. Hoje, estes tumores são conhecidos como “galhas de coroa”,
e inicialmente foram considerados um modelo interessante para investigar os fato-
res que causam tumores e como estes podem se desenvolver. Durante estas investi-
gações, estabeleceu-se que a entidade molecular responsável pela formação dos
tumores em plantas é um plasmídeo. Lembrem-se: plasmídeos são elementos circu-
lares do material genético de bactérias. O que a agrobactéria faz é um espetacular
ato de “colonização genética”. [... ] Durante a infecção, um pedaço do plasmídeo é
infiltrado no próprio genoma da planta hospedeira. Genes responsáveis pela for-
mação de tumores, presentes no DNA do plasmídeo, começam a funcionar. As
células da planta hospedeira passam então a se dividir descontroladamente e a
sintetizar substâncias que são essenciais para a sobrevivência da própria agrobacté-
ria que causou o tumor.
Alguns representantes da comunidade científica se perguntaram se esta
capacidade de agrobactéria, de inserir parte de seu material genético em plantas,
não poderia ser utilizada para introduzir outros tipos de genes. Eles, então, substi-
tuíram aqueles genes responsáveis pela formação dos tumores (afinal: quem quer

180
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999

comer um tumor?) por outros de interesse econômico, por exemplo, os que têm
alto valor nutricional. Quando a bactéria é modificada é colocada na presença de
células vegetais, ela introduz o transgene nas mesmas. Em seguida, sob condições
especiais de laboratório, estas células se dividem formando uma nova planta, con-
tendo e expressando o transgene de interesse. A estratégia funciona: nossa planta-
modelo produz sementes com um valor nutricional elevado. [...] Veja bem, neste
caso, os cientistas não inventaram nada de novo; apenas um mecanismo já existen-
te na natureza foi modificado e utilizado em benefício da sociedade.

O processo de coesão lexical nos dois textos se realiza por meio de relações
semânticas em que os referentes são registrados por termos da linguagem de espe-
cialidade, registrados em dois discursos diferentes.
O termo em relevo nos dois textos é Agrobacterium tumefaciens que, embora
registrado com a nomenclatura latina, equivale a bactéria tumefaciente. Todo o con-
texto esclarece de que bactéria se trata.
Enquanto no texto 1, o primeiro parágrafo informa o conceito e a função
da bactéria, no texto 2, de início, está explicitada a função da bactéria, que é a de
causar “tumores em plantas dicotiledôneas”. Supondo que o leitor não saiba que
plantas são essas ou que não se lembre do conceito, os autores elucidam nos pa-
rênteses, por meio de uma definição reduzida e exemplos, o que são plantas
dicotiledônias, relacionando-as ao co-hipônimo plantas monicotiledôneas. O mesmo
vai ocorrer no texto 1, quando se apresentam, nos parênteses, equivalências como:
informação genética = DNA; citoquinina = hormônio de crescimento de plantas; Ti
= indutor de Tumor; bactérias não virulentas = incapazes de produzir tumores em
plantas suscetíveis; DNA Transferido = T-DNA etc.
No texto 2, informa-se que “este tipo tumor” [termo genérico ou
hiperonímia] é conhecido hoje como “galha da coroa” e que, lá pelo século XIX,
era chamado de “papo”. Trata-se de variantes diacrônicas em que Y [galha da
coroa] assumiu a posição de X [papo]. No texto 1, encontra-se a informação de
que “a doença da galha da coroa é uma infecção ...”. Assim, no processo de repe-
tição lexical, os termos podem estruturar-se conceitualmente da seguinte forma:
doença [significado genérico], infecção [significado específico em relação à doen-
ça], galha da coroa [significado específico em relação à infecção]. Ainda no texto
2, ocorre o termo “opinas” cujo conceito genérico abriga os específicos de “octopina”
e “nopalina”.
Os textos, ricos em termos, ficam como sugestão para estudos da termino-
logia científica.

181
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.

6. CONCLUSÃO

A descrição de terminologias deve considerar os contextos em que estas


são produzidas. É preciso analisar os diversos tipos de discursos científicos e técni-
cos para compreender a função dos termos ali. O pesquisador deve reconhecer
a(s) norma(s) como parâmetro(s) para identificação de variantes terminológicas
e, dessa forma, desmitificar o ponto de vista de que a terminologia é uma disciplina
prescritiva, cujos termos são gerados à base de monossemias. Cabe ao pesquisador
em terminologia, consciente das variedades que dão a dimensão de pluralidade do
nosso país, analisar como se processam as comunicações entre membros da socie-
dade, capazes de gerar conceitos diferenciados para um mesmo termo ou de gerar
termos diferentes para um mesmo conceito.

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ABSTRACT: the present study makes parts of a broader investigation which


aims at describing the terminology of the Portuguese language within the scope of
the Brazilian variant, according to the socioterminological perspective. For syste-
matizing the terminological variants, we use as a parameter the principles of the
linguistic variation which allow us to reclassify variants found up to the moment
in corpora from scientific and technical discourses.

KEYWORDS: socioterminology; terminological variant; terminology; discourse.

183
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.

Ficha Técnica

Divulgação Humanitas Livraria – FFLCH/USP


Mancha 11,5 x 19 cm
Formato 16 x 22 cm
Tipologia GoudyOISt BT e AGaramond
Papel off-set 75 g/m2 (miolo)
e cartão palha 180 g/m2 (capa)
Montagem Charles de Oliveira/Marcelo Domingues
Impressão da capa Pantone 110 U e Pantone 320 U
Impressão e acabamento Gráfica – FFLCH/USP
Número de páginas 184
Tiragem 500

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