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BOLETIM I 75

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jul./dez. 2019

Incluída no SNPG – nível A


(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
REITOR
Sérgio Carlos de Carvalho
VICE-REITOR
Décio Sabbatini Barbosa
DIRETORA DO CLCH
Viviane Bagio Furtoso
VICE-DIRETORA
Ana Heloisa Molina
REDAÇÃO
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira

CAPA
Bianca Matos Ferreira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E COMPOSIÇÃO


Maria de Lourdes Monteiro

CONSELHO EDITORIAL
Volnei Edson dos Santos
Paulo Bassani
Celso Vianna Bezerra de Menezes

PARECERISTAS
Dr. Francisco Moreno Fernandes - Univ. Alcalá de Henares - España
Dr. Aquiles Cortes Guimarães - UFRJ
Dr. Jesús Castilho - Univ. de Valladolid - España
Dr. José Oscar de Almeida Marques - UNICAMP
Dr. José Nicolau Julião - UFRRJ
Dra. Salma Ferraz - UFSC
Dr. Otávio Goes de Andrade - UEL

PUBLICAÇÕES
BOLETIM, CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – LONDRINA-PR. - BRASIL, 1980

1980, (1) 1993, (24,25) 2005 (48,49) 2018, (72, 73 )


1981, (2,3) 1994, (26,27) 2006, (50,51) 2019, (74, 75 )
1982, (4,5) 1995, (28,29) 2007, (52,53)
1983, (6,7) 1996, (30,31) 2008, (54,55)
1985, (8,9) 1997, (32,33) 2009, (56,57)
1986, (10,11) 1998, (34,35) 2010, (58,59)
1987, (12,13) 1999, (36,37) 2011, (60,61)
1988, (14,15) 2000, (38,39) 2012, (62,63)
1989, (16,17) 2001, (40,41) 2013, (64,65)
1990, (18,19) 2002, (42,43) 2014, (66,67)
1991, (20,21) 2003, (44,45) 2016 (68,69)
1992, (22,23) 2004, (46,47) 2017 (70,71)
ISSN 0102-6968

I
BOLETIM 75

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jul./dez. 2019
Incluída no SNPG – nível A
(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina – nº 75 – p. 1-178 - jul./dez. 2019
Indexado por / Indexed by
ISSN 0102-6968
Sociological Abstracts SA
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA


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Publicação semestral / Bi-annual publication


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Biblioteca Central da UEL


Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada pela Biblioteca Central da UEL


Boletim / Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade Estadual de

Londrina. – V. 1 (1980)- . – Londrina : a Universidade, 1980- .
v.; 21 cm

Semestral

Descrição baseada em: v. 25 (jan./jun. 1994)

ISSN 0102-6968

1. Sociologia – Periódico. 2. História – Periódico. 3. Letras – Perió-


dico. 4. Filosofia – Periódico. 1. Universidade Estadual de Londrina.

CDD 301.05
CDU 301:4:I(05)
SUMÁRIO

O CONTROLE IDEOLÓGICO CONSERVADOR NA


EDUCAÇÃO APÓS O GOLPE DE 2016................................. 7
Silvia Alves dos Santos (UEL- CECA)
Laís Negrão de Souza (G- UEL)

RUBEM FONSECA NO SÉCULO XXI: AVALIAÇÃO DOS


CONTOS RECENTES DO AUTOR SOB A PERSPECTIVA
DAS MASCULINIDADES........................................................ 31
Luiz Carlos Santos Simon (UEL- CLCH)

MEMÓRIA, IDENTIDADE E ALTERIDADE NA HISTÓRIA


DE VIDA DE UMA IMIGRANTE ALEMÃ (BRASIL, SÉCULO
XX)............................................................................................. 53
Priscila Ferreira Perazzo (USCS)
Barbara Heller (UNIP)
Karla Yolanda Covarrubias Cuéllar (Universidade de Colima
(UdeC), México)
Vilma Lemos (USCS)

EM BUSCA DA HETEROGENEIDADE CONSTITUTIVA


DO SUJEITO TRADUTOR...................................................... 83
Mayara Stéphanie Barbieri dos Santos (PG-UEM)
Edson Carlos Romualdo (UEM)

INFLUÊNCIA DAS POLÍTICAS NEOLIBERAIS NA


FORMULAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS E HABILIDADES
NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR – BNCC
DO ENSINO MÉDIO.............................................................. 105
Cezar Bueno de Lima (PUC-PR)
Ângela Maria de Sousa Lima (UEL)
Diego Oliveira de Lima (PG- PUC-PR)
A MULHER NEGRA COMO ESPAÇO DE MEMÓRIA
COLETIVA NA PEÇA: ENGRAVIDEI, PARI CAVALOS E
APRENDI A VOAR SEM ASAS................................................ 137
Maria Júlia Werneck de Oliveira (PG-UEL)

TRABALHO E EDUCAÇÃO: OS LIMITES DA CIDADANIA


CAPITALISTA........................................................................... 153
Ana Paula Oliveira Silva de Fernández (UNILA)
Daniela Elis Dondossola (UNILA)
O CONTROLE IDEOLÓGICO CONSERVADOR NA
EDUCAÇÃO APÓS O GOLPE DE 2016

Silvia Alves dos Santos1


Laís Negrão de Souza2

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar como a conjuntura política do
Brasil, após o golpe parlamentar de 2016, favoreceu o avanço de projetos educativos
ultraconservadores que foram, paulatinamente, se consolidando na agenda educacional,
entre eles, o destaque para o movimento Escola sem Partido. As áreas sociais, após o golpe,
entre elas, a educação, a cultura e a saúde sofreram significativas reestruturações que
passaram pelo corte de verbas, justificados pela aprovação da PEC dos gastos públicos,
fechamento de secretarias e políticas assistidas, além de reformas que dificultarão a
formação escolar das novas gerações, como é o caso da Reforma do Ensino Médio.
Observamos que o controle ideológico conservador na educação é resultante do
acirramento da luta de classes na sociedade em favor da acumulação e o fortalecimento
do capital e que, por isso mesmo, tende a usar a educação como elemento mobilizador
da produção de consensos que nem sempre atendem aos interesses da classe trabalhadora.
Palavras- chave: Educação. Escola Sem Partido. Controle ideológico.

Abstract: The purpose of this paper is to analyze how the political conjuncture of Brazil,
after the parliamentary coup of 2016, favored the advancement of ultraconservative
educational projects that was gradually consolidating in the educational agenda, among
them the School without Party. The social areas, after the coup, among them education,
culture and health have undergone significant restructuring that goes through the cut of
funds, justified by the approval of the PEC of the public expenses, closure of secretaries
and assisted policies, besides reforms that will make difficult the education of the new
generations, as is the case of the High School Reform. We observe that conservative
ideological control in education results from the intensification of the class struggle in
society in favor of the accumulation and strengthening of capital and that therefore
tends to use education as a mobilizing element in the production of consensuses that do
not always serve the interests working class.
Keywords: Education. School Without Party. Ideological control.

1 Professora de Políticas e Gestão no Departamento de Educação da Universidade Estadual


de Londrina – UEL – Londrina – Paraná – https://orcid.org/0000-0002-0647-750X
2 Estudante do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Londrina – UEL – Londrina
– Paraná - https://orcid.org/0000-0002-0017-5738

7 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
Introdução

Este artigo tem como objetivo analisar como a conjuntura


política brasileira trouxe implicações para a educação, principalmente
depois do golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, além de
propor descrever como o governo do presidente Michel Temer, com
a ajuda de aliados, agravou a crise política e educacional no país.
Ao longo da história da educação brasileira, em muitos
momentos, o conhecimento erudito, clássico esteve disponível
somente para a elite do país. Sendo assim, podemos dizer que a
socialização plena do conhecimento acompanha as condições da
luta de classes na sociedade. Saviani (2017) aponta que a educação
brasileira sempre foi objeto de disputa por espaço, especialmente
porque a agenda educacional sempre esteve subordinada à questão
política.

De fato, acreditar que estão dadas em nossa sociedade as condições


para a realização plena da educação é assumir uma atitude idealista.
Inversamente, nesta sociedade, é realista quem considera a
política como a prática dominante a qual se subordina a educação
(SAVIANI, 2017, p. 230).

A proposta desse ensaio é desenvolver uma análise sobre as


implicações dos processos reformistas recentes para o trabalho do
professor nas escolas públicas e que tende a alcançar também as
universidades. Para tanto, propomos, num primeiro momento,
discutir a conjuntura política do país após o impeachment em 2016
e como esse movimento atingiu a agenda educacional brasileira,
destruindo uma série de conquistas históricas. Num segundo
momento, a intenção é mostrar como essa conjuntura política
contribuiu para o avanço de propostas ultraconservadoras que
alcançaram as práticas escolares e universitárias.

8 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
Conjuntura Política recente no Brasil e os ataques à consolidação
da democracia

A história da democracia brasileira, desde o seu princípio, foi


marcada por golpes de Estado, e entendemos como golpe a definição
trazida pelos autores como sendo:

[...] a derrubada de um governo constitucionalmente legítimo,


podendo ser violento ou não. É golpe porque promove uma ruptura
institucional, contrariando a normalidade da lei e submetendo o
controle do Estado a alguém que não foi legalmente designado para
o cargo (LOMBARDI; LIMA, 2017, p. 1).

Normalmente, os golpes de estado que ocorreram no Brasil


foram marcados por uma profunda crise econômica, que, unida
a uma crise política, levantaram bandeiras e discursos, muitas
vezes, inflamados por apelos sociais que nem sempre objetivavam
a transformação das relações de poder e de desigualdade existentes.
Segundo Alves (2017, p. 136),

O Estado democrático de Direito da Constituição-Cidadã de 1988


foi mais uma promessa de civilização que uma realidade efetiva
dum sistema político deformado historicamente pelo clientelismo
e corrupção dos financiamentos privados para campanhas políticas.

O último golpe que a nação brasileira vivenciou foi a retirada


da presidenta Dilma Rousseff do poder em 2016. Na verdade, essa
ruptura com os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) é o ponto
mais alto de um longo movimento contrário às ações de governos
neodesenvolvimentistas na América Latina. Nos períodos em que
o país esteve governado pelo PT, os setores mais conservadores da
sociedade foram incisivos em tentativas de derrubada da legitimidade

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da democracia representativa garantida pelas urnas, que conduziu
um metalúrgico à Presidência da República; o que, analiticamente,
demonstra que a sociedade brasileira ainda se organiza e preserva
as relações de classe e que estas ainda são determinantes para a
manutenção do poder e da governabilidade.
Os governos do PT (Lula e Dilma) foram marcados pelo
projeto “neodesenvolvimentista”, que tem como marco a conciliação
de classes. E, apesar de a presidenta deposta ter realizado grandes
acordos de coalizão, que consequentemente privilegiaram a
elite brasileira, parece-nos que não foi o suficiente para conter a
crise econômica, social, política e institucional que seu governo
atravessou. Alves (2017, p. 146) aponta, ainda, que

A instabilidade política, a degradação das contas públicas, falta de


investimentos privados e a política de ajuste fiscal do ministro Lévy
indicado por Dilma aprofundaram a recessão da economia brasileira
em 2015, criando condições propícias para o golpe de 2016.

A burguesia conservadora, desde as vitórias dos governos do


PT na política brasileira, se sentiu ameaçada e, para garantir seus
privilégios, juntamente com os poderes políticos e com a mídia de
massa, iniciaram a arquitetura de um golpe para que o impeachment
pudesse acontecer. A mídia teve papel fundamental nesse processo
de consolidação de um consenso em torno do lema de “combate
à corrupção” para que de fato as políticas sociais redistributivas
deixassem de ganhar espaço e consequentemente houvesse a queda
de governos que fomentavam o avanço do consumo da classe
trabalhadora. Segundo Lombardi e Lima (2017, p. 24), “A estratégia
consiste na transformação dos processos jurídicos em espetáculos
midiáticos, para que no momento em que a sentença for proferida,
corações e mentes tenham sido ganhos pela tese do “combate à
corrupção”.

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O papel da mídia também é, segundo Previtali e Fagiani.
(2017), defender os interesses da classe que ela está representando.
A ação midiática acabou propagando ideias ultraconservadoras,
preconceitos e discriminações em toda a sociedade. Já durante
as eleições, atacava constantemente a presidenta Dilma, que, ao
contrário do desejo midiático, e de alguns setores da população, foi
reeleita no segundo turno do pleito eleitoral de 2014.
Com a reeleição de Dilma Rousseff em 2014, a estratégia dos
setores dominantes foi aprofundar de forma significativa os efeitos
internos da crise econômica que assolava o país, para que assim a
presidenta não conseguisse superar a crise e ficasse cada vez mais
impossibilitada de governar.
Outro fator, de peso internacional, que exerceu grande
influência para a retirada de Dilma do poder, foi a presença do Brasil
nos BRICS, grupo formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África
do Sul com o objetivo de firmar e ampliar relações comerciais,
fato que não agradou aos Estados Unidos, que, historicamente,
teve influência política e econômica na América do Sul e, por sua
vez, via esse grupo como um movimento que poderia ameaçar sua
expansão político-econômica em nível mundial. Moraes (2017, p.
66) comenta

Analisando a determinação internacional, os norte-americanos


consideram o grupo formado pelo Brasil, Rússia, China, Índia e
África do Sul (BRICS), uma ameaça a sua economia no mundo,
pois esses cinco países têm a metade da população do planeta e
representa 46 por cento da economia mundial com a Rússia e a
China fazendo negócios sem usar o dólar.

Segundo Moraes (2017), para que esses tipos de acordos


sofram desestabilidades e a economia norte-americana possa se

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fortalecer ainda mais, os Estados Unidos, historicamente, costumam
gerar conflitos em várias partes do mundo. Não é a primeira vez
que o governo norte-americano se infiltra na política brasileira. No
golpe que ocorreu em 1964 no Brasil, ficou clara a presença dos
Estados Unidos ao lado dos militares, por receio de que a ameaça
comunista viesse a ganhar força. A conjuntura política mostra que
só não interferiram antes porque o governo Lula, apesar de algumas
ações em benefício da população, ainda seguia instruções de Wall
Street e do FMI. Na avaliação de Moraes (2017), o próprio Partido
dos Trabalhadores contribuiu, em parte, para que a instabilidade
política ocorresse no governo de Dilma Rousseff, porque, nos 13
anos de governo, em vez de fortalecer os movimentos sociais e os
sindicatos, usou as políticas sociais apenas como moeda de troca,
utilizando dos programas emergenciais como troca de benefícios.
Percebemos que, enquanto havia um cenário favorável para
a acumulação de lucro que garantia o poder e o status quo da
burguesia brasileira, as relações político-institucionais mantinham-
se alinhadas. No momento em que há ações que ameaçam romper
essa estrutura, colocando a classe trabalhadora como consumidora
de produtos, antes consumidos apenas pela burguesia, o cenário
começa a mudar o rumo. Há, evidentemente, o acirramento da
luta de classes e toda forma de impedir a socialização das riquezas
produzidas pela humanidade.

[...] essa burguesia nacional, que comanda de forma articulada


com os donos do poder do capitalismo global, tem o máximo de
interesse em reproduzir a submissão econômica e política do país
e em manter o seu povo numa condição de pura força de trabalho
para alimentar o mercado mundial (VILLEN, 2017, p. 111).

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Com a queda da presidenta Dilma, assumiu o governo
seu vice Michel Temer, da ala conservadora do antigo PMDB. A
articulação em torno da tomada da Presidência da República contou
com, além dos espetáculos ensejados pela mídia, um poder judiciário
que se mostrou sedento pela manutenção de seus privilégios e incapaz
de agir em favor da democracia, revivida recentemente com o pleito
eleitoral de 2014, que conduzia pela segunda vez Dilma Rousseff
ao poder.
Logo que tomou posse como presidente da república, Michel
Temer, em aliança com os partidos que apoiaram o golpe, começou
a introduzir as pautas reformistas, cujos objetivos retiravam direitos
dos trabalhadores conquistados historicamente. As primeiras ações
foram em torno da reforma trabalhista e previdenciária. Ambas as
propostas, na visão de Bezerra Neto e Santos (2017), só servem
para penalizar o trabalhador e ampliar o lucro de corporações
empresariais.
Outra medida tomada pelo governo Temer foi a aprovação da
PEC n. 95, denominada de PEC dos gastos públicos, que congela os
investimentos nas áreas sociais, entre elas, educação e saúde, por um
período de 20 anos. Medidas como essas reforçam o entendimento
de que houve um golpe parlamentar com claro intuito de frear os
investimentos públicos em políticas de diminuição da desigualdade
no país, como vinham ocorrendo, nos governos petistas.
Apesar de um curto mandato, Temer encaminhou ações que
destituíram desde secretarias importantes até ministérios, como, por
exemplo, o da Cultura, fundindo-o com outra pasta. Secretarias
ligadas aos direitos humanos e à cultura foram fortemente atacadas
por discursos na mídia e por parlamentares de que se tratava de pastas
ocupadas por militantes, e não por técnicos. Santos e Malanchen
(2017, p. 185) afirmam que o governo Temer “tratou de cortar

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verbas para setores sociais e ampliou o poder de repressão dos órgãos
controladores ligados ao aparelho do Estado”.
Outra hábil decisão de Temer, aproveitando a conformação
da sociedade com os discursos da mídia elitista, foi sedimentar a
crença de que a saúde e a educação pública estavam em crise e que a
melhor forma para resolvê-la era privatizando parte desses serviços;
porém, Santos e Malanchen (2017, p.186), numa crítica a essa onda,
acreditam que “[...] deflagrá-las a própria sorte do ávido poder do
mercado, é deliberar pela sua extinção enquanto direito público
social, garantido na Constituição de 1988”.
Ao tomar várias medidas de arrocho ou retirada de direitos
trabalhistas e de serviços sociais, historicamente prestados pelo
Estado, Temer deixa claro seu projeto de governo alinhado com os
interesses do capital financeiro, em sua grande parte, estruturado
dentro do próprio meio parlamentar, com o apadrinhamento de
grupos empresariais que circulam e sustentam a política brasileira.
Bezerra Neto e Santos (2017, p. 173) apontam

A atual política de austeridade econômica praticada pelo governo


golpista, embasada no corte de investimentos no campo social
empurram o país para um enorme abismo, no qual se destaca
o aumento do desemprego, a inadimplência, o crescimento da
pobreza, a desaceleração da economia e, por consequência, a
inevitável recessão, ao contrário do que pensam e pregam os
incompetentes gestores do campo econômico, aniquilando de uma
vez por todas os direitos sociais conquistados com muita luta pelos
movimentos organizados da sociedade brasileira, reconhecidos e
assegurados pelos governos do Partido dos Trabalhadores.

Depreendemos das articulações que levaram ao golpe e das


consequências deste para a vida dos trabalhadores, de modo geral, que
não há no país um projeto que contemple a promoção de políticas

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sociais que atendam às necessidades das populações mais vulneráveis
economicamente. O que há são ações e medidas reformistas que
fomentam o acirramento da luta de classes, materializada no avanço
de discursos e práticas de violência e desqualificação dos direitos
humanos, entre eles, o direito à educação e à saúde.

O lugar da escola pública em tempos de obscurantismo

Como vimos anteriormente, as definições e práticas da


política parlamentar trazem sérias repercussões para as áreas sociais,
das quais a educação nos parece ser a mais atingida, se observarmos
a quantidade de discursos descreditando a importância das escolas e
das universidades públicas como espaço de produção e socialização
do conhecimento científico.
Apesar de a escola existir desde o período medieval, foi
somente depois da Revolução Francesa que ela “passa a ser entendida
como um instrumento para transformar súditos em cidadãos”
(SAVIANI, 2017, p. 223). Para esse autor, a escola é um lugar
político, porque se parte do entendimento de que a educação
traz em seu bojo um projeto político, qual seja, o da formação da
humanidade, pois

A importância política da educação reside, enfim, no cumprimento


de sua função própria que consiste na socialização do conhecimento.
E, especificamente no caso da escola, sua importância política
reside no cumprimento de sua função própria: a socialização do
saber elaborado, sistemático, assegurando às novas gerações, a plena
apropriação das objetivações humanas mais ricas representadas pela
produção científica, filosófica e artística (SAVIANI, 2017, p. 230).

15 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
O objetivo de promover a humanização do homem por
meio da educação sistematizada esbarra nas iniciativas recentes que
descreditam os espaços privilegiados historicamente de desenvolver
as ferramentas para o ensino e a transformação necessária na
sociedade, visando à ampliação do acesso ao saber. Saviani (2017,
p. 224) reforça que “[...] ao mesmo tempo em que espera e exige
da escola a formação para a democracia traduzida no objetivo
da formação para o exercício da cidadania, inviabiliza essa tarefa
impedindo a escola de realizá-la”.
No Brasil, pós-golpe, podemos observar claramente o avanço
e a consolidação de discursos e de práticas que caminham para aquilo
que Duarte (2018, p. 1) denominou de obscurantismo beligerante:

Trata-se da difusão de uma atitude de ataque ao conhecimento


e à razão, de cultivo de atitudes fortemente agressivas contra
tudo aquilo que possa ser considerado ameaçador para posições
ideológicas conservadoras e preconceituosas. Essa atitude vai além
da defesa de posições de direita, caracterizando-se pela disseminação
de um ambiente de hostilização verbal e física a qualquer ideia ou
comportamento considerados “esquerdizantes”, “vermelhos” ou
“imorais”.

Percebemos que o poder governamental vem tomando


medidas contrárias aos propósitos da educação, normas que
afetam a escola não só financeiramente, como é o caso da PEC do
congelamento de gastos, mas também o caso de projetos como Escola
sem Partido e a Lei 13.415/2017 da Reforma do Ensino Médio.
O congelamento de gastos por 20 anos, aprovado ainda
no governo Temer, “significa o desmonte da escola pública, da
universidade pública, o fim do programa Ciência Sem Fronteira na
modalidade graduação, que eliminou 35 mil bolsistas, a redução
dos recursos do Fies” (ORSO, 2017, p. 240). Todas essas formas de

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desmonte têm efeitos diretos na educação, na saúde, na contribuição
previdenciária e na realização de novos concursos públicos.
Outra medida que contribui para a desqualificação da
formação da sociedade brasileira é a nova Reforma do Ensino Médio.
A aprovação da Lei n. 13.415/2017 prevê a organização do Ensino
Médio por meio de itinerários formativos, a saber: “I - linguagens e
suas tecnologias; II - matemática e suas tecnologias; III - ciências da
natureza e suas tecnologias; IV - ciências humanas e sociais aplicadas;
V - formação técnica e profissional” (BRASIL, 2017).
Esses novos saberes pautam-se em aprendizagens denominadas
significativas, mas que são adaptáveis ao contexto econômico que
requisita indivíduos ajustados às demandas emergenciais do
capitalismo em constante mudança. No âmbito do currículo escolar,
caracterizam-se pela adoção de práticas de “sucesso” decorrentes da
experiência individual.
Apesar de, aparentemente, ser uma boa proposta com o viés
da autonomia para a escolha do percurso formativo, a Reforma,
juntamente com o congelamento de investimentos, trará fortes
prejuízos à educação das novas gerações, visto que “estabelece uma
série de mudanças, dentre elas a elevação da carga horária de aula,
sem recursos para contratação de professores, investimentos em
infraestrutura e formação profissional” (ORSO, 2017, p. 248).
O Ensino Médio brasileiro sempre foi o gargalo das políticas
públicas no Brasil, porque para muitos representa a terminalidade
de um processo formativo. A Reforma aprovada no governo Temer
contribui para reforçar esse problema que é histórico, além de
promover a ampliação da ignorância por meio da oferta de um tipo
de ensino em que se prevê certificação intermediária, contratação
de professores pelo “notório saber”, desqualificação das disciplinas
da área de ciências humanas, entre outras ações.

17 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
As consequências para a formação escolar da classe
trabalhadora que frequenta as escolas públicas serão ainda mais
danosas. As possibilidades de avançar nos estudos e cursar o ensino
superior nas universidades públicas, que também estão sob ataques
de movimentos conservadores na sociedade brasileira, serão ainda
mais passíveis de concorrência e competitividade.
Com a flexibilização da estrutura curricular que a lei da
Reforma do Ensino Médio apresenta, podemos perceber que esta
“[...] acaba com a possibilidade de universalização dos conhecimentos
científicos historicamente acumulados” (ORSO, 2017, p. 255).
Diante disso, podemos afirmar que há claramente exposto o objetivo
de desmonte da escola pública, das universidades e do conhecimento
científico como bens a serem socializados para todos.
Com uma legislação para o ensino médio, voltada para a
adaptação ao mercado, cada vez mais volátil, é compreensível que
ganhe espaço um tipo de formação cada vez mais adaptada ao
mercado e desinteressada da ciência. O problema é que esse tipo
de formação revigora a teoria das competências e habilidades, cuja
essência pauta-se no desenvolvimento de práticas individualizadas,
caracterizadas pelo mercado como “exitosas ou não”.
Na direção de propostas que tendem a comprometer a
formação acadêmica das novas gerações com base na produção e
socialização da ciência, também temos o avanço das proposições em
torno do projeto Escola Sem Partido, que, em nosso entendimento,
“[...] é a escola dos partidos de direita, os partidos conservadores e
reacionários que visam manter o estado de coisas atual com todas
as injustiças e desigualdades” (SAVIANI, 2017, p. 231).
O movimento Escola sem Partido foi criado em 2004 e
se mostra como uma organização preocupada com uma suposta
doutrinação ideológica que ocorre no âmbito escolar. Os defensores
do projeto pregam que a educação escolar está sendo contaminada

18 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
ideologicamente pelos partidos com orientação marxista. Percebe-
se é que, novamente, a escola pública se encontra no seio do jogo
político, cujos interesses dependem do tipo de projeto de nação,
podendo ser encaminhado mais ao campo conservador ou laico.
Algebaile (2017) aponta que, no site e em textos do movimento
Escola sem Partido, há uma clara preocupação com discussões
no interior da escola, sobre assuntos políticos, socioculturais e
econômicos, principalmente com temas que problematizam a
conjuntura dominante e assuntos como as questões de gênero,
orientação sexual e os variados modelos de família.
Os apoiadores do movimento acreditam que, ao abordar tais
assuntos, que ainda são tabus em nossa sociedade, os professores
estariam incitando os alunos a abandonar a religião e a desenvolver
apelos sexuais. Porém, Penna (2016, p. 99) argumenta que

Discutir gênero em sala de aula não é isso. É problematizar a


violência doméstica. É trazer para a sala de aula a representação
de famílias de diferentes configurações. É permitir que as pessoas
de diferentes orientações sexuais se percebam representadas, e não
silenciadas, no conhecimento produzido nas escolas.

Por mais que afirmem que essa educação sexual seja perigosa
para a formação de crianças, jovens e adolescentes, muitos países
desenvolvidos têm em seu currículo a Educação Sexual, orientados
pela própria UNESCO, que é um organismo multilateral alinhado
aos interesses do capital, conhecido por ser o braço direito da
ONU na questão de educação, “[...] reconhece a educação para a
sexualidade como uma abordagem culturalmente relevante para
ensinar sobre sexo e relacionamento de uma forma ‘cientificamente
precisa, realista e sem julgamentos’” (RATIER, 2016, p. 36).
Com a força do movimento em âmbito nacional, começaram
a tramitar em diversos municípios projetos de lei que seguiam os

19 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
moldes do Escola sem Partido. Segundo Queiroz e Espinosa (2017),
no ano de 2016, onze (11) estados já estudavam e encaminhavam
projetos de leis, contendo os pressupostos do movimento.
Percebemos que, por trás das pautas desses projetos de leis, estão os
setores ultraconservadores da sociedade, juntamente com a bancada
parlamentar evangélica, os quais se autodenominam defensores dos
valores da chamada “família tradicional”.
Santa Bárbara, Cunha e Bicalho (2017) afirmam que, a
intenção do projeto, na realidade, é acabar com qualquer perspectiva
de diálogo e de construção de um pensamento crítico. Então,
entendemos que um currículo que, supostamente, se coloca como
neutro, acaba se alinhando com os interesses da classe dominante.
Na verdade, o nome Escola sem Partido nos parece uma
falácia e percebemos, com Frigotto (2017, p. 31), que

[...] trata-se da defesa, por seus arautos, da escola do partido absoluto


e único: partido da intolerância com as diferentes ou antagônicas
visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de
liberdade; partido, portanto da xenofobia nas suas diferentes facetas:
de gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres etc. Um partido que
ameaça os fundamentos da liberdade e da democracia.

Entendemos que os propositores do Escola sem Partido


desejam, com esse tipo de movimento, transformar a escola em local
alheio aos problemas da sociedade, colocando alunos e professores
em uma situação de patrulha do que se ensina e aprende, onde o
que reina parece ser uma concepção positivista de mundo, para que
assim continue a preservar a ordem e o progresso do capital.
Queiroz e Espinosa (2017) apontam que o movimento
pretende implantar um projeto nas escolas que revigore o
conservadorismo de classe, em contraponto aos trezes anos em

20 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
que o país vivenciou a ampliação de políticas públicas de apoio à
diversidade cultural do país.
Frigotto (2017) faz uma análise muito relevante do Escola
sem Partido, quando afirma que este ameaça a vivência social e
promove uma liquidação da escola pública como espaço de direitos
e respeito à diversidade.
Todas as medidas aplicadas pelo governo de Michel Temer e
dadas como continuidade no governo Bolsonaro, como a Reforma
do Ensino Médio, o congelamento de gastos e o próprio Escola
sem Partido, são na verdade efeitos colaterais da forma como o
capital encontra meios de se reestruturar e manter sua dominação
na formação do capital cultural da sociedade.

As implicações da conjuntura política no trabalho do professor

Com as novas políticas para a agenda educacional, aprovadas


pelo governo e que servem diretamente ao capital, fica cada vez mais
claro que o objetivo é minar o papel do professor, fazendo com que
este profissional seja um executor das propostas ultraliberais, muito
em voga nos discursos do cotidiano.
Aceitar projetos como a Reforma do Ensino Médio ou
movimentos como o Escola sem Partido sem ao menos questionar
suas origens e suas implicações seria negar os propósitos da educação
como área formativa, seria ir contra uma educação que “[...] possibilite
reflexão crítica e emancipação dos sujeitos sociais” (PREVITALI;
FAGIANI, 2017, p. 94). O que esse movimento parece indicar é que
o professor trabalhe sob uma falsa imparcialidade, para que assim
os alunos saiam da escola, despolitizados e sem consciência crítica,
porque essas características não parecem ser requisitos atrativos para
o mercado de trabalho.

21 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
A própria Reforma do Ensino Médio aprovada desvaloriza o
trabalho do professor, porque, além de não prever sequer a garantia
da formação em nível superior para atuar, considerando que poderá
ser por “notório saber” na área específica, há que acrescentar aquilo
a que Sanfelice (2017, p. 274) chama a atenção:

Reforça a fragmentação e hierarquia do conhecimento escolar, não


trata de questões basilares, condições objetivas e infra-estruturais
das escolas, a profissionalização e valorização dos profissionais da
educação, a relação discente-turma-docente, a inovação nas/das
práticas pedagógicas, entre outros aspectos.

Em relação ao movimento Escola sem Partido, ficam


claras a criminalização do professor e a forma como os líderes
desse movimento pretendem, paulatinamente, calar a voz desse
profissional nas salas de aula, porque entendem que “[...] o professor
que vem dos segmentos populares ou os ‘intelectuais de esquerda’
que atuam nessas escolas são ameaçadores” (RAMOS, 2017, p. 82).
A situação se mostra ainda mais grave quando observamos
que o projeto de lei encaminhado em muitos municípios já
fora rejeitado pelo Supremo Tribunal Federal como um projeto
inconstitucional. A proposta denominada Lei da Mordaça tende a
colocar uma série de restrições para a atuação docente, dificultando
a liberdade de cátedra, bem como a socialização de conhecimentos
comprovados pela ciência, ao longo da história da humanidade.
Mattos e Magaldi et al (2017) afirmam que na prática o que
o movimento pretende é criminalizar “qualquer” atividade docente
que debata sobre sexualidade e desigualdades de gênero, e combate
a preconceitos e os chamados temas contemporâneos presentes
nos currículos escolares, e que fazem parte da cultura da sociedade
brasileira.

22 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
A l é m d o s f a t o re s j á m e n c i o n a d o s re f e re n t e s à
inconstitucionalidade do projeto Escola sem Partido, podemos
acrescentar que este fere, também, os princípios legais garantidos
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação n. 9.394/96 em vigência.
A inconstitucionalidade pode ser reforçada, porque, em seu texto,
a Lei garante a liberdade de ensino e aprendizagem, o respeito ao
pluralismo de ideias e, em seu artigo, 26 consta que o currículo da
educação nacional deve conter o estudo da realidade social e política
(BRASIL, 1996).
Concordamos com Freitas e Souza e Oliveira (2017), quando
afirmam que um dos problemas mais graves do projeto é o fato de
setores da sociedade intervirem na autonomia escolar e no exercício
da docência, confundindo a educação formal com a informal e, ao
mesmo tempo, desejarem colocar crenças religiosas em um ambiente
que constitucionalmente é laico.
Um exemplo dessa criminalização do professor foi o fato de
que uma das primeiras medidas do movimento foi disponibilizar um
espaço em seu site público para que pais e alunos pudessem denunciar
qualquer prática do docente que considerassem doutrinadoras.
Além disso, há orientação às famílias para processar os professores
e/ou escolas por danos materiais e morais sofridos. Também em
seu anteprojeto de lei em âmbito nacional e municipal, prevê que
em sala de aula deve conter um cartaz com os deveres do professor
e para “conscientizar” o aluno de que ele tem o direito de não ser
doutrinado. O professor é colocado “[...] no lugar do elemento
perigoso, que precisa ser contido, calado e ‘amordaçado’ para não
ameaçar e contrariar a liberdade de consciência e de crença dada pela
educação familiar” (SANTA BÁRBARA; CUNHA; BICALHO,
2017, p. 108).

23 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
Santa Bárbara, Cunha e Bicalho (2017) apontam que os
elaboradores e defensores do projeto Escola sem Partido se utilizam
de termos como neutralidade científica para que possam ter controle
sobre a atividade docente e para que atuem somente na produção
de subjetividades normalizadas.
Ao que parece, o movimento tem como objetivo que o
professor transmita o conteúdo sem contextualizá-lo, que não haja
por parte desse professor nenhuma ação que possa se aproximar
de uma posição ou reflexão crítica indutora de um debate sobre
determinados temas. Consideramos que, ao encaminharem tal
projeto, seus defensores acabam por subestimar a própria autonomia
de pensamento dos alunos, como se não fossem sujeitos partícipes
do processo de ensino-aprendizagem.
Num contexto em que tem se mostrado tão adverso à
ciência produzida e sistematizada historicamente, o desafio como
sujeitos que ensinam e aprendem no interior das escolas, em suas
diferentes realidades, mostra que a luta em favor da escola e da
universidade pública como espaço do conhecimento científico a ser
socializado precisa ser ampliada, conscientizando a sociedade dos
feitos históricos dessas duas instituições que, ao longo de séculos,
têm formado as gerações.

Considerações Finais

O avanço do conservadorismo burguês no Brasil, após o


golpe de 2016, mostrou-nos mais uma vez que o capital, ao sentir-se
ameaçado em sua capacidade de dominação, sempre encontra meios
de se reestruturar e construir consenso em torno da necessidade de
sua perenidade.

24 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
A criação de consensos passa, necessariamente, pela produção
de discursos, em sua maioria, difundidos pela mídia, apelativos,
de caráter emocional e subjetivo, na tentativa de viabilizar um
determinado projeto de sociedade. Não por acaso, a escola e
as universidades públicas, que recebem parcela significativa da
população mais carente, passaram a ser frequentemente atacadas
em sua função social. Nesses espaços institucionais, a promoção do
debate de ideias e a socialização daquilo que a humanidade produziu
passam a ser vistos como algo ameaçador a uma determinada ordem
social: a ordem do poder do capital, que requer dos indivíduos a
adaptação a realidades, muitas vezes, degradantes à sua condição
humana e ao seu pensamento crítico e autônomo.
Nesses tempos de criminalização da escola, dos professores
e do serviço público, precisamos estar abertos ao diálogo com
a sociedade, saber ouvir, debater, criar espaços para o debate de
ideias, de modo a fomentar ações de respeito à pluralidade e não ao
extermínio de posicionamentos contrários. Esse desafio precisa ser
articulado com base no bom senso, mas também se fundamentando
em bases conceituais que expliquem o movimento da história e suas
contradições.
A resistência aos projetos que desqualificam a escola, a
universidade pública e os conhecimentos científicos deve ser o norte
das lutas daqueles que acreditam em outra sociedade, mais justa,
igualitária e fraterna. A construção dessa sociedade impõe desafios
que somente a coletividade e o entendimento das relações de classe
podem superar. Por isso a importância da educação como elemento
mobilizador de transformações sociais.
Os movimentos sociais que têm se manifestado pela
inconstitucionalidade do projeto Escola sem Partido ou mesmo os
movimentos no campo da educação contra a Reforma do Ensino

25 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
Médio tendem, na medida da capacidade de organização, a construir
uma agenda de lutas em torno do direito à livre expressão, que ao
fundo nos chama para a luta em favor da democracia e da preservação
de avanços humanos que tivemos ao longo da história. A luta pela
democracia passa pela garantia de uma educação escolar laica,
sistematizada e comprometida com a emancipação dos indivíduos.

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29 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
30 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 7-30 – jul./dez. 2019
RUBEM FONSECA NO SÉCULO XXI: AVALIAÇÃO
DOS CONTOS RECENTES DO AUTOR SOB A
PERSPECTIVA DAS MASCULINIDADES

Luiz Carlos S. Simon1

RESUMO: Com uma carreira que já ultrapassa cinquenta anos, Rubem Fonseca
continua produzindo e publicando: nas duas primeiras décadas do século XXI, muitos
títulos surgiram, como: Pequenas criaturas, Axilas e outras histórias indecorosas e o
recente Calibre 22. A fertilidade do autor provoca um cenário interessante na literatura
contemporânea, ao ressaltar que diferentes gerações cresceram sob diferentes circunstâncias
e práticas sociais. A proposta desse artigo é avaliar as estratégias de Rubem Fonseca com
foco específico sobre questões ligadas às masculinidades e às atitudes dos homens diante
da violência e da sexualidade. O artigo traz à luz os contos publicados em Calibre
22, de 2017.
PALAVRAS-CHAVE: Rubem Fonseca; contos; masculinidades

ABSTRAC: With a career that goes beyond fifty years, Rubem Fonseca is still writing and
publishing: in the two first decades of 21st century, many titles arose, such as Pequenas
criaturas, Axilas e outras histórias indecorosas and the recent Calibre 22. This author’s
fertility produces an interesting scenery in contemporary literature as it remarks that
different generations grew under different circumstances and social practices. The purpose
of this article is to evaluate Rubem Fonseca’s strategies with specific focus on issues related
to masculinities and men’s behaviour in face of violence and sexuality. The article aims
to bring light to the short stories published in Calibre 22, published in 2017.
KEYWORDS: Rubem Fonseca; short stories; masculinities

Já na primeira leitura de Calibre 22, volume de contos de


Rubem Fonseca publicado em 2017, surge a impressão de que há
algo novo nas narrativas do autor. A violência sempre se afirmou
como marca do contista que estreou em 1963, com o livro Os
prisioneiros. Tanto que a ele se apegou muito cedo a caracterização
de uma “narrativa brutalista” fornecida por Bosi (s.d., p.18) em

1
Professor do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de
Londrina.

31 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 31-52 – jul./dez. 2019
1974, pouco mais de dez anos após essa primeira publicação. Depois
disso, a identificação firmou-se como avaliação sem grandes riscos
no território da crítica literária. Não se pretende aqui divergir do
peso com que a violência cobre o conjunto da obra de Rubem
Fonseca, que já ultrapassa 50 anos de produção, nem propor que,
no volume mais recente em discussão, as cenas de violência tenham
desaparecido, perdido impacto ou lugar central nos contos.
O título da publicação e sua capa podem bastar para
confirmar a permanência da representação de práticas violentas. O
título, homônimo do título de um dos contos, remete ao diâmetro do
projétil da arma, que, em variadas marcas e modelos, é muitas vezes
disparada pelas personagens das narrativas. Assim, é de se esperar
que o título eleito abranja satisfatoriamente o conjunto dos contos
reunidos no livro, o que faz pressupor a preservação da temática
da violência. A capa, de concepção realista e em sintonia com a
diegese de diversos contos incluídos no livro, reproduz a fotografia
de um revólver repartido: a parte posterior do cano está desligada
do restante do corpo da arma, causando a impressão de um disparo
e sugerindo que esta parte final do cano corresponde a um projétil;
no espaço em que o revólver está partido, há um quadrado vermelho
contendo o título do livro e a assinatura do autor; o quadrado
vermelho tem seus limites misturados com uma tinta também
vermelha espalhada de forma irregular sobre o fundo da capa, que
é branco, o que sugere sangue espirrado. A capa remete, portanto, a
uma identificação de Rubem Fonseca com a atmosfera da violência:
a arma de fogo, a assinatura e a cor vermelha parecem confirmar
essa expectativa. É no modo de abordar a temática e conectá-la
com a questão das masculinidades que se pretende ressaltar alguns
deslocamentos na trajetória de Rubem Fonseca.
A retomada de alguns contos do autor publicados na obra
emblemática que é Feliz Ano Novo, de 1975, permite aproximação

32 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 31-52 – jul./dez. 2019
maior do foco do estudo aqui apresentado. No livro, a violência
irrompe de forma implacável. Não há qualquer condescendência
no retrato das relações sociais nem na composição das personagens
que desempenham diferentes papéis, mas invariavelmente sem
compromisso mútuo entre elas (MILLINGTON, 2007, p. 170),
nas relações conturbadas ali representadas. Ninguém está imune à
crueldade que cerca as cenas.
No conto que dá título ao volume, os ladrões invadem a casa
dos ricos e matam vários participantes da festa de réveillon; uma das
mulheres, antes de ser assassinada, é ainda estuprada sem qualquer
comiseração do matador ou do narrador: “A gordinha estava na
cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou
de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida,
mal paga” (FONSECA, 1975, p. 13); outra mulher tem seu dedo
arrancado à dentada para que o anel pudesse ser recolhido.
Em “Corações solitários”, conto em que a violência não se
materializa em termos de tiros disparados e jorro de sangue, mas
que expõe o cinismo e a crueldade que percorrem as relações sociais,
numa redação de jornal dirigido a um público leitor feminino, os
homens incorporam nomes de mulheres, o que integra a estratégia
editorial de reforçar preconceitos e estereótipos contra o público-
alvo. Em outra passagem, o editor e proprietário do jornal tem sua
homossexualidade desmascarada sem que o narrador-personagem,
um dos jornalistas, se compadeça dos conflitos de identidade sexual
experimentados. Tais conflitos, aliás, são ridicularizados ao longo
da narrativa inteira.
Nas duas partes de “Passeio noturno”, um executivo casado
sai com seu automóvel potente pelas ruas da cidade para aliviar
tensões. O passeio – que, pelo termo utilizado, poderia insinuar
uma inocente atividade de lazer – é insuficiente para lhe assegurar o

33 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 31-52 – jul./dez. 2019
relaxamento. É preciso atropelar e matar mulheres para que o gozo
se torne completo. À espera do marido em casa, a esposa constitui o
típico retrato da mulher fútil. Não se esboça na caracterização dela
nem das transeuntes atropeladas o menor traço de solidariedade.
Por fim, em “Dia dos namorados”, o detetive é recrutado
para a missão de auxiliar um banqueiro em episódio que tem o
envolvimento também de um travesti. Aqui até a voz é dada a
Viveca: “Eu sou um homem sim, mas desde criança minha mãe
me vestia de menina e eu sempre gostei de brincar de bonecas. Eu
sou um homem porque me chamo Jorge, só por isso, minha alma
é de mulher e eu sofro por não ser mulher [...] Sou uma infeliz”
(FONSECA, 1975, p. 64). Esse discurso, que ainda se estende
por mais algumas linhas, não é suficiente para que o detetive e os
policias se intimidem ou sintam compaixão pelo drama da travesti.
O detetive investe violentamente contra Viveca com a finalidade
de revelar sua artimanha de chantagem conjugada com roubo, o
que a leva à prisão.
Esses contos de Feliz Ano Novo, livro selecionado por sua
grande representatividade e relevância no âmbito da fase que garantiu
a projeção da carreira de Rubem Fonseca, ilustram a crueldade e a
falta de complacência com que o autor construiu suas narrativas e
suas personagens. Pode-se afirmar que o percurso do autor é muito
identificado com essas marcas de exibição de força do mundo
masculino. Não é por acaso que, nos estudos das masculinidades,
tantas vezes se estabelecem articulações entre os homens e as práticas
de violência, como ponderam Connell (2005, p. 83) e Welzer-Lang
(2004, p. 113). Tal exibição de força concretiza-se muitas vezes
com manifestações de violência que deixam de reconhecer qualquer
restrição a seus alvos: mulheres, homossexuais e travestis; são todos
atingidos indistintamente. E, ainda, como recurso para manter

34 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 31-52 – jul./dez. 2019
distância do maniqueísmo, inexiste qualquer inclinação para que
o quadro seja interpretado como um painel composto por vítimas
(mulheres, homossexuais e travestis, ou, ainda, pobres, oprimidos e
desvalidos) e algozes (os homens, ou ricos, opressores e poderosos).
O estudioso britânico Millington (2007, p. 174), a propósito de
análise dessa fase dos contos de Rubem Fonseca, observa que o
recurso à violência não é exclusividade dos homens mais pobres.
É quanto à composição desse quadro que podem sobressair alguns
componentes novos a partir da leitura de Calibre 22. Para a avaliação
daquilo que considero uma reorientação da trajetória do contista,
são essenciais olhares tanto para os contos do volume que deixam
de se concentrar tão destacadamente na violência física quanto
para aqueles que apresentam a violência contra a mulher sob novas
perspectivas.
O volume Calibre 22 contém vinte e nove contos. À exceção
do conto homônimo, o mais longo do livro que possui quarenta
páginas, os textos são curtos: alguns não chegam a duas páginas
completas. Do total de contos, dois terços, dezenove, chamam a
atenção, correspondendo a algum desvio em relação ao padrão dos
textos de Rubem Fonseca. Nove deles se abstêm de expor a violência
física. São eles: “Fantasmas”, “Camisola e pijama”, “Anuro”, “Cibele”,
“Ópera, foder e sanduíche de mortadela”, “Corriqueiro”, “Satiríase e
impotência”, “O chapéu-panamá” e “A busca”. Oito contos possuem
manifestações claras em relação a alguma forma de violência contra
a mulher – seja esta violência física ou simbólica – cometida por
homens: “Um homem de princípios”, “Colégio”, “Homem não
pode bater em mulher”, “Amor proibido”, “O morcego, o mico e
o velho que não era corcunda” – tanto o primeiro quanto a parte
II -, “A busca” e “Calibre 22”. Além desses contos, há, ainda, a
narrativa “Carnaval”, que, embora não se enquadre nos tópicos

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arrolados – ausência de violência e reação à violência contra a
mulher –, contribui para que se esboce um padrão diferente para
as masculinidades sob a perspectiva de Rubem Fonseca. Ali, existe
violência praticada por um homem, mas a personagem age sob a
pressão da esposa que lhe cobra insistentemente uma reação, uma
vingança. Cabe também esclarecer que entre os contos do livro
sobressaem textos, como “Colégio” e “O morcego, o mico e o velho
que não era corcunda”, que apresentam, com certo destaque, o
enfoque da discordância quanto à violência ou à discriminação de
homossexuais masculinos, lésbicas e transexuais. Para que o texto
não ficasse demasiadamente longo e em decorrência da especificidade
desses relacionamentos, resolvi suprimir essa parte, guardando-a para
projetos futuros. Breves comentários dos contos citados serão úteis
para avaliar em que medida a produção recente do autor permite se
pensar em alteração na representação dos homens.
É necessário esclarecer que o conjunto das narrativas
de Calibre 22 não é homogêneo quanto à apresentação das
masculinidades: os contos deixados de fora da relação há pouco
discriminada indicam que algumas vezes persistem representações
mais convencionais dos homens. É o caso de “Fantasmas”, narrativa
que abre o volume. Embora não haja no conto referências a atos
violentos praticados por homens, o formato da autoapresentação
do narrador-personagem, um homem rico que se faz passar por
psicanalista e constrói grande clientela, não dá margens para uma
interpretação da figura masculina livre de certos estereótipos: “Troco
de carro todo ano, moro num prédio na praia, o andar inteiro,
tenho duas mulheres, amantes, elas querem casar comigo, ou com
qualquer outro, mulher quer casar, mas homem que se casa é um
idiota.” (FONSECA, 2017, p. 8). A trajetória da personagem aponta
para uma perpetuação do poder: ele nasce rico, não precisa estudar

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nem trabalhar e obtém êxito ao assumir uma falsa identidade de
psicanalista. É nessa condição “profissional” que ele entra em contato
com duas mulheres que acreditam ver fantasmas. Assim como ele se
recusa a casar e mantém a convicção de que mulher quer casar com
qualquer um e que “homem que se casa é um idiota” – convicções
que fixam modelos masculinos e femininos –, o suposto psicanalista
não vê os fantasmas e ainda considera acertada a internação das
duas mulheres em hospital psiquiátrico com tratamento através de
eletrochoque. Se não se pode garantir que ele é o responsável pela
internação, não há também discordância quanto ao tratamento e
à violência cometida contra elas. Por outro lado, o modo com que
o conto é construído abre caminho para leituras que questionem
certas práticas masculinas. Narrado em primeira pessoa, o conto é
uma confissão: o protagonista, na condição de um falso psicanalista,
é declaradamente um impostor, um fantasma de que o leitor deve
desconfiar. Ao desmascarar a si mesmo, cria-se a brecha para que suas
opiniões – incluindo aquelas sobre mulheres, homens e casamento
– sejam desautorizadas. Assim, como desdobramento, ganha força a
ideia de que a condição hegemônica da masculinidade (CONNELL,
2005, p. 77) é uma situação a ser questionada, desconstruída.
No conto “Satiríase e impotência”, a figura de um psicanalista
volta à cena. Aqui, porém, não ocupa mais a posição de narrador-
personagem. O conto é marcado por um homem que vai em busca da
psicanálise para solucionar sua compulsão por mulheres, que consiste
em quantidade e simultaneidade. Vem à tona o padrão masculino
exposto por Victor J. Seidler (1991), segundo o qual o sexo se tornou
uma experiência quantitativa. Ao chegar ao consultório, o homem
depara-se com uma psicanalista, que, a princípio, atrai o olhar do
cliente compulsivo para os dotes físicos por ele valorizados: “seios
pequenos, nádegas firmes, coxas...” (FONSECA, 2017, p. 121). O

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leitor, nesse momento, assim como o próprio protagonista, já prevê:
haverá um envolvimento entre ambos, e a compulsão não será curada.
Parcialmente correto: o relacionamento, de fato, se concretiza; eles
se casam, mas a obsessão com quantidade e simultaneidade de
mulheres é resolvida; o outrora compulsivo encontra felicidade na
monogamia e na exclusividade. Esta espécie de conversão para um
comportamento amoroso e sexual caracterizado pela exclusividade,
que aparece também no conto “O chapéu-panamá”, remete ao mito
da conquista, segundo o qual a posse de muitas mulheres exalta a
figura do homem e seu reconhecimento como detentor de poder.
Trata-se daquilo que Ramos (2000, p. 48) aponta como “afirmação
de potência”, obtida por meio da sexualidade. O mito é abalado
nos dois contos com uma revalorização da fidelidade, sem que se
abdique da satisfação sexual: “nossa vida sexual é maravilhosa”, depõe
o narrador-personagem de “Satiríase e impotência” (FONSECA,
2017, p. 124). Acompanhando esta conversão, surge o discurso de
rever concepções sobre as mulheres: em “O chapéu-panamá”, antes
de encontrar a mulher especial, o narrador-protagonista categorizava
as mulheres como “fáceis”, “chata burrinha”, “chata inteligente”,
“falastronas”; depois de conhecer Maria (e é curiosa a ironia de que a
mulher especial tem um nome dos mais comuns), aquelas categorias
perdem toda relevância. Cabe, enfim, destacar que a decisão dos dois
protagonistas representa um novo rumo, em contraste com tantos
personagens masculinos de fases anteriores de Rubem Fonseca, que
se caracterizam pela coleção de mulheres simultâneas. Com esses
retratos masculinos, Rubem Fonseca contribui para combater aquilo
que Connell (2016, p. 102) também combate: a crença de que os
homens não conseguem mudar.
Entre os contos do autor que não recorrem à violência,
sobressaem ainda “Camisola e pijama” e “Corriqueiro”. No
primeiro, retoma-se o ambiente da redação de uma revista, recurso

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algumas vezes explorado nas narrativas de Rubem Fonseca. O editor
pressiona Zacarias, o narrador-personagem que também é contista,
a entregar um conto erótico para a edição de um número cujo prazo
de fechamento está próximo. Segundo o editor, o erotismo seria o
grande interesse dos leitores. O contista, porém, resolve desafiar tal
expectativa e envia uma narrativa intitulada “História de amor”. Nela
um casal, após o jantar, resolve ir para a cama; ela veste a camisola
enquanto ele anuncia que vestirá o pijama. E aí surge o desfecho: “O
conto termina assim. Com essa frase: ‘O quarto fica em completa
escuridão’” (FONSECA, 2017, p. 34). O editor, obviamente, recebe
muito mal o conto e demite Zacarias. O conto, entretanto, faz um
sucesso enorme, impulsionando as vendas da revista, e o contista é
readmitido pelo editor. Ao final de “Camisola e pijama”, Zacarias
faz algumas reflexões em que questiona a mudança de paradigmas
e os novos direcionamentos para a literatura alardeados pelo editor.
De qualquer modo, o erotismo, reivindicado como grande atrativo
para a literatura, é superado pela vida banal, tão comum e cotidiana
quanto as roupas de dormir.
É nessa ênfase na vida cotidiana que se constrói o conto
“Corriqueiro”. Aqui, patrão e empregada doméstica – Rizoleta
– conversam sobre trivialidades, como, por exemplo, o uso da
cebola nas refeições, defendido pela funcionária e rechaçado por
seu empregador. Em determinado momento, torna-se objeto das
conversas o namoro entre a empregada e um motoboy. Rizoleta
conta que o namorado lhe pediu para morar em sua casa; ela,
apesar de se mostrar satisfeita com o namoro, nega o pedido, com
a seguinte justificativa: “‘Ele vai comer a minha filha’” (FONSECA,
2017, p. 127). Ela ainda afirma saber que aquilo seria normal, que
acontecia sempre. O patrão, por sua vez, estranha, nem tanto o
que poderia acontecer entre padrasto e enteada, mas o fato de que
aquele envolvimento era entendido como normal ou inevitável. A

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falta de sintonia entre as classes sociais aqui supera uma eventual
solidariedade entre homens. A voracidade das conquistas sexuais
empreendidas pelos homens encontra limites. O conto, mesmo em
sua aparente despretensão, dá um passo decisivo para mostrar que
nem tudo nos desempenhos masculinos é, ou deveria ser interpretado
como normal. “Corriqueiro” confirma, assim, a rejeição de duas
marcas das masculinidades ressaltadas por Ramírez (1995, p. 76):
a agressividade e a sexualidade sem controle.
Na esfera das reações à violência cometida por homens contra
mulheres, podem ser localizadas também algumas ambiguidades,
assim como foi dito a respeito do conto “Fantasmas”. Narrativas
como “Um homem de princípios” e “Colégio” são exemplos
significativos dessa inconstância. Na primeira, o narrador-
personagem é um matador profissional, um tipo frequente nos
contos da carreira de Rubem Fonseca. Por si só, sob a perspectiva
das masculinidades, a profissão do protagonista já constitui uma
demonstração de adesão à violência, o que representa uma espécie
de entrave para identificarmos nele qualquer esboço de um papel
masculino diferenciado, novo ou alternativo. Não haveria ainda,
aqui, o que Murphy (1994, p. 1) prevê como possibilidade na análise
das produções literárias: localizar “outras imagens, outros papéis,
outras opções” para os homens. No entanto, um dos “princípios”
do matador é recusar-se a matar mulheres. O reconhecimento
da mulher como alguém que está livre de ser seu alvo pode ser
interpretado como uma forma de código segundo o qual matar
mulheres adquiriria o estatuto de uma monstruosidade ímpar, uma
vez que nem mesmo um matador profissional admitiria cometê-la.
No conto “Colégio”, a ser comentado mais detalhadamente
adiante, um menino faz enorme esforço para defender um colega de
escola homossexual contra outros colegas violentos que o torturam.
O menino, inconformado com a truculência do grupo, é capaz de

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perceber outra forma de violência de que sua própria mãe é vítima:
“Eu vou para o colégio e fico lá coçando o saco. Meu pai é porteiro
de um prédio e fica o dia inteiro coçando o saco também enquanto
a minha mãe não para de trabalhar.” (FONSECA, 2017, p. 38). As
reações em defesa do colega nem se comparam ao modo com que
ele entende a vida da mãe; ele apenas reconhece que a mãe enfrenta
um árduo trabalho doméstico, enquanto ele, o filho, e seu pai estão
desincumbidos dessas responsabilidades, reafirmando práticas
desequilibradas no universo doméstico, assim como questionam
Nolasco (1997, p. 20), Baubérot (2013, p. 210) e Connell (2016, p.
125). Enfim, pode-se ler essa situação das seguintes maneiras: o filho
apenas reconhece como a mãe é sacrificada, mas não se movimenta
para alterar o estado de coisas; ou, ao menos o filho reconhece o
sacrifício da mãe, e é possível que sua condição de adolescente e de
estudante o leve a agir também em outras circunstâncias de injustiça
ou de violência.
No conto “Homem não pode bater em mulher”, o problema
da violência contra a mulher assume, como o título indica, lugar
central. O narrador é um homem com mais de cinquenta anos,
aposentado por invalidez depois de ter a perna amputada em
decorrência de um atropelamento. Com a amputação, vieram
uma perna mecânica com a qual ele se adaptou e muletas às quais
ele não recorria. Ele mora em um apartamento pequeno e tem
muitos vizinhos e relata, ainda no início do conto, uma mudança
de comportamento após a perda da perna: “[...] passei a ver tudo
o que acontecia em torno de mim” (FONSECA, 2017, p. 42). Se
aparentemente há pouca conexão entre o apartamento e o prédio
em que ele mora e a concentração maior nos acontecimentos ao
redor, a narrativa rapidamente estabelece esses elos ao deslocar o
foco para os vizinhos. Primeiro, o narrador-personagem se detém

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em um casal de velhos. Em seguida, a atenção é concentrada em
outro casal: um homem grande com cabeça grande e uma mulher
magra com rosto miúdo.
Há uma peculiaridade nesse casal: “Ela vivia com manchas
roxas no rosto e nos braços” (FONSECA, 2017, p. 42). Antes
de relatar desconfiança ou certeza de que as manchas roxas eram
resultado das surras que o homem aplicava na mulher, o protagonista
interpela separadamente a esposa e depois o marido. Em ambas as
ocasiões, as frases não se completam: a mulher sai correndo, sem
esperar o protagonista concluir sua pergunta; o homem desfere-lhe
um soco no rosto também interrompendo sua fala. A atitude do
marido remete à ideia de que a mulher consiste em uma propriedade
do homem (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 34), o que lhe
permitiria, inclusive, recorrer à violência como medida corretiva, na
relação entre homens e mulheres, questão apresentada por Machado
(2004, p. 47) e Virgili (2013, p. 86). O protagonista vai então à
polícia e já sem dúvidas, denuncia o homem pelas agressões à esposa.
Torna-se claro que a ida ao distrito policial não é uma atitude de
autodefesa ou de autoproteção: “Odeio homem que bate em mulher,
se bater em mim eu me incomodo um pouco, mas o sujeito que
bate em mulher me enche de ódio.” (FONSECA, 2017, p. 43). O
casal é intimado a depor, mas ambos negam a violência. Na mesma
noite, a surra é repetida e ouvida pelo protagonista que, em vez de
procurar novamente o casal e protestar à porta do apartamento deles
contra aquela violência, toma outra decisão apenas aparentemente
enigmática: ele consulta o saldo bancário. O objeto a ser comprado
somente é esclarecido algumas linhas adiante: “Foi fácil dar um tiro
naquela cabeça grande. Ele caiu duro no chão do corredor. Fui para
o meu apartamento. Tirei a perna e deitei feliz. Dormi como um
anjo” (FONSECA, 2017, p. 44).

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Um detetive até o procura em seu apartamento para investigar
o assassinato, mas o protagonista, enfim, recorre às muletas e finge
surdez, o que logo o afasta da condição de suspeito ou de alguém
que poderia contribuir com informações sobre o caso. A morte do
homem da cabeça grande fica sem solução, mas a viúva, encontrada
pelo protagonista tempos depois no corredor do prédio, sem
manchas roxas no rosto nem nos braços, sorri para ele. É óbvio
que, nesse conto, a violência não se restringe ao homem da cabeça
grande. O protagonista, ao assassinar o agressor da própria esposa,
também recorre à prática violenta e comete um crime. Ainda é
preciso ressaltar que entre o protagonista e a mulher espancada
não havia qualquer vínculo: ela não era amiga, parente, amante ou
objeto de desejo. O que o conto faz é exacerbar a perturbação com
uma situação revoltante para muitos, é expor um tipo de indignação
visceral que se contrapõe ao comodismo ou à omissão de tantas
outras pessoas. Ao trazer o problema da violência contra a mulher
para o lugar central do conto, Rubem Fonseca, desde o título,
também dá destaque e relevância à questão, entrando em sintonia
com um papel social fundamental na agenda contemporânea. Nesse
sentido, a ausência de um vínculo de intimidade entre o protagonista
e a vítima constitui fator que acentua a gravidade do problema: em
outros termos, é preciso, de uma vez por todas, reconhecer que a
questão está atrelada a uma dimensão política (VIRGILI, 2013,
p. 83), que não deve estar restrita ao campo de preocupações das
mulheres e é preciso deixar de ver essas manifestações de barbárie
como práticas menos significativas de nossa vida social.
O conto “Amor proibido” apresenta uma novidade quanto à
sua estrutura: o texto é narrado mais uma vez em primeira pessoa,
mas é um dos dois do volume que contém uma narradora. Essa
particularidade é expressiva, pois os contos de Rubem Fonseca

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– tanto aqueles do início de sua carreira quanto os mais recentes –
são muito centrados em figuras masculinas. Escolher uma mulher
como narradora de um conto representa, portanto, sair da zona
de conforto, para tentar apreender quais seriam as perspectivas
femininas diante das questões focalizadas. Pode-se, então, avaliar a
opção do autor como um movimento para ampliar os modos de ver
o mundo, sem que se baseie exclusivamente no olhar dos homens.
O título do conto também guarda suas curiosidades. Há um
toque melodramático: aliás, coincidentemente é o título de uma
telenovela em andamento, em 2018. Além disso, desponta certa
ambiguidade: o amor proibido seria o relacionamento entre o padre e
a mãe da narradora-personagem ou o envolvimento entre o religioso
– após já ter se tornado bispo – com uma amante jovem? Alguns
desdobramentos da narrativa podem alimentar essa ambiguidade.
A narradora exime-se de demonstrar ressentimentos ou conflitos
quanto ao fato de ser filha de um padre. Ela reproduz os discursos
do pai, nos momentos em que ele visita a casa onde a filha mora com
sua mãe, acerca de justificativas para não reconhecê-la como filha,
ou sobre a história da igreja católica no que se refere ao celibato.
A reprodução desses discursos não aponta nem para uma aceitação
irrestrita das ideias do pai nem para a sua contestação.
A partir da metade do conto, porém, há certa mudança
de foco, até porque as visitas do pai começam a se tornar mais
raras. Diminuem as visitas, diminuem as reproduções do discurso
religioso, diminui o foco mais intenso sobre o pai. Começa a surgir
uma atenção para a casa e, sobretudo, para a mãe: “Notei que o
meu pai e a minha mãe envelheciam de maneira diferente. Ele
tinha setenta anos e ela, cinquenta e cinco, mas parecia mais velha
do que ele. Creio que as honrarias e reverências rejuvenesciam o
meu pai” (FONSECA, 2017, p. 85). A primeira frase é muito

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significativa, pois aponta a percepção e a revelação do desequilíbrio
nos percursos do pai e da mãe. Nesse sentido, o fato de o pai ser
padre e depois bispo importa menos, pois a perspectiva ali é a
da filha. Assim, tratava-se de pai e de mãe, ou ainda dos pais nas
condições de homem e mulher. O antropólogo Courtine (2013, p.
565-566), ao analisar as confluências entre as masculinidades e o
ideal da preservação do vigor físico, indica que uma das formas com
que os homens manifestam a perseguição a esse ideal é a negação
do envelhecimento. O que se observa no conto é a decrepitude da
mãe e o rejuvenescimento do pai, o que acentua o descompasso do
relacionamento e incomoda a filha.
Nesse momento, a narrativa abre espaço para rememorações
da mãe quanto ao início do idílio com o padre. O tom do
discurso materno é de amargura, pois se registra o decréscimo dos
comparecimentos: a princípio, diários, depois semanais e naquele
momento as visitas não chegavam a ocorrer sequer uma vez por mês.
As falas da mãe incluem a conscientização da própria velhice e, enfim,
a revelação de que o bispo tem uma amante jovem. A narradora não
demonstra surpresa nem qualquer outra exaltação com a revelação.
Na visita seguinte, o pai almoça com as duas mulheres; e no dia
seguinte ao almoço, surge a notícia de que o bispo amanhecera
morto em sua casa, por ingestão de veneno; as investigações não
conseguiram apurar as circunstâncias da morte, mas o suicídio foi
cogitado. O final do conto é sutil: “Eu e minha mãe não fomos ao
funeral do papai [...]. Minha mãe fez operação plástica no rosto.
Remoçou, ficou muito bonita” (FONSECA, 2017, p. 86). Em
“Amor proibido”, a manifestação da violência é muito diferente do
que aquela que ocorre em “Homem não pode bater em mulher”.
A ausência da violência física não significa, porém, ausência
de violência. O que o padre faz, ao longo de muitos anos, forçando

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o silêncio e a reclusão da mãe da narradora, já constitui uma forma
de violência. Quando surge a amante jovem, é como se fosse um
tiro de misericórdia. Assim, embora haja circunstâncias religiosas
em torno do relacionamento, as atitudes do padre diferem muito
pouco das práticas de vários homens casados que confinam suas
próprias esposas ou amantes, mulheres com quem eles mantêm
duradouras relações extraconjugais, sem lhes permitir uma vida
plena. Se para a mãe qualquer reação, depois de tantos anos, seria
difícil, para a filha, não. Não é à toa que a sutileza do desfecho
converge para a insinuação de que a autoria do envenenamento
não era tão misteriosa.
Outros quatro contos do volume abordam a violência contra
a mulher sem, contudo, pôr a temática como central nas narrativas.
Trata-se das duas partes de “O morcego, o mico e o velho que não era
corcunda”, “A busca” e “Calibre 22”. No primeiro conto, as alusões
à violência aparecem logo no início. O protagonista, um idoso, está
na fila do supermercado quando outro homem tenta passar à sua
frente. A funcionária reage antes mesmo do idoso, o que enseja
reflexões do narrador: “As mulheres são mais atentas, cuidadosas?
Mais honestas?” (FONSECA, 2017, p. 101). Diante da insistência
do freguês oportunista, a moça resolve chamar o segurança do
supermercado, o que enfim resolve o problema. Em seguida, o
narrador-personagem ressalta a semelhança entre o homem e Clark
Gable, ator norte-americano denunciado tardiamente por estuprar
a atriz Loretta Young, ainda na primeira metade do século XX.
Não há aqui, nem no episódio da fila nem na comparação, uma
reação explícita da personagem do velho. A solidariedade com a
funcionária e as reflexões resultantes da cena postas em evidência pelo
narrador propiciam críticas a atitudes de homens que variam entre a
deselegância e a violência. Cabe ainda o registro de que a reação da

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funcionária do supermercado é imediata e está longe da intimidação
que acometeu Loretta Young, em ocorrência obviamente muito
mais grave. Outros tempos. Na segunda parte do conto homônimo,
há uma brevíssima referência à violência contra a mulher: “quem
maltrata homossexuais e mulheres não merece viver” (FONSECA,
2017, p. 109). A referência remete ao conto anterior, o que não deixa
de significar um reforço da necessidade de reagir à violência e ainda
constrói a correlação de duas vítimas de ações masculinas violentas.
“A busca” é um conto em que a violência é exposta
gradativamente. Até a primeira metade da narrativa, o foco recai
sobre João, um adolescente rico e órfão, que parece ter como maior
problema de sua vida a gagueira, quando se depara com a colega de
escola de quem ele gosta. Até que ele resolve sair de táxi num dia e
encontra uma mulher à espera do mesmo carro. Os dois resolvem
compartilhar a condução, e a mulher inicia um longo relato,
narrando ao menino a história de sua vida, desde o namoro com
um rapaz rico, passando pelo casamento com o mesmo homem, o
nascimento do filho, a compulsão por doces e a obesidade, a fuga
do marido com o filho, até a procura desesperada para reencontrar o
filho. Ao final do relato, torna-se claro para João que aquela mulher
era sua mãe, dada como morta logo após o parto. O marido, pai
de João, abandonara a mulher quando ela se tornou obesa e para
o filho, que carregara consigo, apresentava a versão de que ela
morrera no parto. João, criado pelo pai, vivia em um universo em
que aquela mulher obesa era um ser estranho. As namoradas do pai
eram mulheres lindas, a casa tinha conforto e vários empregados,
o dinheiro não faltava. Após a morte do pai, o comportamento do
adolescente já previa, porém, uma abertura, um afastamento de
determinados valores paternos. O garoto reconhece a dedicação da
empregada principal e lhe dá certas regalias. Essa atitude explica

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possivelmente a ideia de compartilhar o táxi com aquela mulher
estranha. Quanto à violência sofrida pela mãe, abandonada porque
se tornou obesa, privada de conviver com o filho, sua história, por
mais mirabolante que seja, firma-se como contraponto às supostas
felicidade e normalidade de muitas famílias.
Em “Calibre 22”, a violência contra a mulher é uma questão
ainda mais discreta. O conto tem como foco principal o mistério
em torno de assassinatos que envolvem os proprietários de uma
revista com grande prestígio. Como se trata de uma narrativa mais
longa, há espaço para a inclusão de outras histórias. Uma dessas
histórias é o caso de dona Raimunda, acusada de matar o marido
que lhe batia quase diariamente. O detetive Mandrake, personagem
ilustre nas narrativas de Rubem Fonseca, que é aqui retomado, é
o maior protetor de dona Raimunda. Em meio às investigações
sobre o mistério principal focalizado no conto, Mandrake trabalha
pela absolvição da cliente que ainda guarda no rosto as marcas
das surras do marido: os dentes quebrados. A vitória no caso vem
acompanhada da gentileza do detetive que a leva em casa após o
julgamento e ainda lhe dá dinheiro para o tratamento dentário.
A simpatia de que Mandrake desfruta entre os leitores de Rubem
Fonseca se harmoniza com a simpatia demonstrada pelo detetive na
causa de dona Raimunda. O combate à violência contra a mulher
ganha um reforço de peso.
A antropóloga Fátima Cecchetto, em pesquisa realizada já
no século XXI, afirma que os estudos de masculinidades dirigem
maior atenção para a sexualidade do que para a violência (2004,
p. 54). Acredito ser difícil avaliar onde o foco dos debates recai
predominantemente. Assim como penso que muitas vezes é difícil
desvincular essas questões – sexualidade e violência – quando o que
se pretende examinar são as masculinidades. Ambas as temáticas são

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partes constitutivas que têm grande relevância para a interpretação
das ações masculinas. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que
elas frequentemente se misturam no desempenho dos homens,
sobretudo se se considerar a violência como um conjunto de atos
mais amplo.
No que se refere à literatura, especialmente a contemporânea,
a convergência entre sexualidade e violência é bastante comum. A
imagem do assaltante, que, no conto “Feliz Ano Novo”, estupra uma
moça na casa invadida não é um caso raro, uma exceção. Rubem
Fonseca tornou-se famoso por explorar as duas temáticas com grande
habilidade. O autor transitou bem entre leitores relativamente
despretensiosos e a crítica exigente. A capa de seu livro recente,
Calibre 22, não ignora esse apelo mercadológico. Os contos incluídos
no livro, porém, abrem espaço para o debate e para a expressão de
outros valores que são acrescentados aos territórios da sexualidade e
da violência. Ao dar centralidade a esses tópicos em alguns contos,
ou ao inserir reflexões em entrechos secundários das narrativas, o
autor contribui para dar visibilidade a atos e falas de homens que
já não são meras reproduções de modelos conservadores de apenas
algumas décadas atrás. Acredito que não seja o caso de louvar essas
produções mais recentes em detrimento dos contos do início da
carreira. Nem mesmo de avaliar os textos de agora como produtos
de uma transformação radical da trajetória do autor. Tanto na
perspectiva do interesse pela investigação das masculinidades quanto
no exercício de cercar a produção literária de um olhar crítico, cabe
saudar a iniciativa e persistir à procura de expressões que desafiem
o mundo em que vivemos.

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Referências

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MEMÓRIA, IDENTIDADE E ALTERIDADE
NA HISTÓRIA DE VIDA DE UMA IMIGRANTE
ALEMÃ (BRASIL, SÉCULO XX)

Priscila Ferreira Perazzo 1


Barbara Heller2
Karla Yolanda Covarrubias Cuéllar3
Vilma Lemos4

RESUMO: Investigando sujeitos em situação de imigração, reconhecemos representações


sociais conflituosas entre a imagem que fazem de si e as produzidas à sua revelia.
Analisamos a narrativa oral de história de vida de uma mulher imigrante alemã no
Brasil e a importância da sua memória para sua existência social e cultural. Refletimos
sobre identidade-alteridade desse sujeito em sua relação dialógica. Buscamos compreender
como narradores constroem suas identidades sociais por meio de suas narrativas de
histórias de vida e de alteridade. Concluímos, a partir da análise do discurso, de
referenciais teóricos sobre identidade, memória e narrativas orais, que a identidade dos
narradores da própria história constrói-se a partir de seus relatos.
PALAVRAS-CHAVE: Memória; Identidade; Alteridade; Narrativas Orais; Histórias
de Vida; Imigração

ABSTRACT: While researching people in a situation such as immigration, conflicting


social representations between the image of themselves and those produced by default are
noticeable. We analyze the oral narrative of a German immigrant woman in Brazil
about her life and the importance of her memory to consolidate her sociocultural existence
in such a situation. We also reflect on subject matters of identity and otherness in its
dialogical process. We tried to understand how narrators express their social identities
through narratives of their life stories and otherness. It was concluded, by discourse
analysis and theorical references of identity, otherness, memory, and oral narratives, that
the memory and identity of narrators of its own history are built through their reports.
1
Doutora em História Social e Docente do PPGCOM da Universidade Municipal São
Caetano do Sul (USCS), responsável pelo Laboratório Hipermídias da USCS.
2
Doutora em Teoria Literária e Docente do PPGCOM da Universidade Paulista (Unip).
3
Doutora em Ciências Sociais, Pesquisadora do Centro Universitário de Investigações Sociais
(CUIS) e Docente do Programa de Doutorado em Ciências Sociais, da Universidade de
Colima (UdeC), México. Professora visitante da Universidade Municipal de São Caetano
do Sul (USCS).
4
Doutora em Linguística e docente aposentada da Universidade Municipal São Caetano do
Sul (USCS). Pesquisadora associada do Laboratório Hipermídias da USCS.

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KEYWORDS: Memory; Identity; Otherness; Oral Narratives; Life Stories;
Immigration

Introdução

O fenômeno da imigração em escala mundial remonta a


tempos tão antigos que mal conseguimos datar seu início. Esse
fenômeno faz parte da história da humanidade que busca sempre
por melhores condições de vida e de convivência entre seus pares.
São inúmeras as causas que levam a esses deslocamentos e provocam
rupturas muitas vezes severas nas vidas das pessoas. Alguns fatores
como impossibilidade de trabalho, falta de confiança nos regimes
que deveriam garantir a vida e a preservação das gerações mais
jovens, violências simbólica e física contra manifestações do corpo
e da vida em geral, perseguições políticas etc. são motivos diversos
que levam pessoas, famílias ou grandes contingentes de população
aos deslocamentos, forçados ou não.
No episódio da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
para ficar no exemplo mais próximo do assunto de que iremos
tratar nesse texto, além das mortes de milhões de pessoas em todos
os continentes, a guerra também provocou, em números e em
experiências significativas, a imigração, o deslocamento e o refúgio
de tantas outras pessoas. Mesmo após o conflito, os movimentos
de deslocamento continuaram intensos. As péssimas condições de
vida na Europa da pós-guerra provocaram novos êxodos e refúgios.
Consideramos aqui os processos imigratórios como fluxos dinâmicos
e de mudanças e percebemos que grupos sociais imigrantes inventam
e reinventam espaços imaginários e simbólicos para situar suas
memórias (APPADURAI, 2001).

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A reconstrução das memórias coletiva e individual dessas
pessoas, por meio da organização sistemática de suas histórias e
trajetórias, pode nos contar muito sobre os processos de migração,
de deslocamento e de refúgio pelo mundo. São experiências que não
cessam e continuam acontecendo de forma intensa no século XXI.
Sob a perspectiva das experiências dos deslocamentos, da
imigração, das experiências de refúgio e de como as memórias e
as narrativas orais de histórias de vida nos permitem perceber os
sentidos, as práticas e as temporalidades dessas experiências delas,
nos propomos, nesse artigo, a analisar a narrativa discursiva oral
de história de vida de Marta5, nascida em Dresden, Alemanha, em
1930, gravada em vídeo para a pesquisa Comunicações Culturais, com
apoio FAPESP, em 2011. O que nos interessa prontamente é sua
memória de imigrante alemã, que se deslocou duas vezes da Europa
para o Brasil, no período de sua infância e juventude.
Em 1934, a menina e sua mãe imigraram para o Brasil, após
o pai, considerado comunista, ser morto pelos nazistas. Nessa época,
o governo getulista dava início às políticas que ora favoreciam,
ora expunham os estrangeiros que procuravam nesse novo lugar
segurança e estabilidade, fossem eles judeus, alemães, japoneses,
italianos etc. Como em outros países latino-americanos, a política
imigratória adotada a partir de 1934 “[...] dificultava o processo
de acomodação desses milhares de refugiados [...]” (CARNEIRO,
2018, p. 12).
A ascensão do nazifascismo na Europa, na década de 1930,
é um dos exemplos históricos que provocaram imigrações por
inúmeros motivos. Muitas pessoas começaram a imigrar já no
início da década. Correndo perigo de vida, judeus e não judeus,

5
Chamaremos a personagem dessa história, cujos relatos de memória vamos analisar, apenas
de Marta, a fim de não precisar identificar a pessoa, com seu nome verdadeiro.

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perseguidos em diversos Estados europeus, deixaram para trás seus
bens, seus familiares, seus amigos, suas origens, suas culturas e, até
mesmo, suas nacionalidades.
Podemos inserir a trajetória de Marta, aos quatro anos de
idade, nesse contexto mundial, pois, de acordo com Carneiro
(2018, p. 11), entre o fim do século XIX e início do XX, famílias
ou indivíduos deixaram seus países de origem, sobretudo na Europa,
em busca de melhores condições de vida. Muitos acreditavam que
assim conseguiriam

[...] um nível de vida mais elevado em uma nova terra onde


pudessem se estabelecer. Foi com esse espírito que muitos italianos,
alemães, poloneses e russos vieram “fazer a América” no Brasil.
Calcula-se que, entre 1825 e 1925, cerca de sessenta milhões de
cidadãos deixaram a Europa para se estabelecerem em territórios
americanos. Até então, esses indivíduos se locomoviam livremente,
ainda que forçados por condições miseráveis de ordem econômica
e existencial [...].

Voltando à história de Marta, em 1938, com a mãe já falecida,


no Brasil, a menina, então adotada pelos tios imigrantes alemães,
retornou com a família para a Alemanha. Nesse mesmo ano, o
governo Vargas já assinara diversos decretos de restrições às atividades
de estrangeiros no Brasil. Entre eles, proibia-se falar a língua
estrangeira em público e promover reuniões ou organizações de
estrangeiros. Essas medidas atingiram diretamente as comunidades
de imigrantes alemães e japoneses no Brasil (PERAZZO, 1999) e
deve ter contribuído para a decisão do regresso da família.
Logo depois eclodiu a Segunda Guerra Mundial na Europa
e a família viveu os horrores desse conflito, na cidade de Dresden.
Em 1948, conseguiu novamente retornar ao Brasil, deixando pela
segunda vez seu país de origem, então destruído pela guerra.

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Em ambas as vezes em que Marta teve de deixar a Alemanha
e imigrar para o Brasil veio em busca de segurança, uma vez
que era forçada a sair por motivos que podem ser considerados
perseguição política, na primeira vez, devido à ascensão de Hitler
e à perseguição ao seu pai e, desastre, mesmo que não natural, na
segunda, considerando as péssimas condições de vida na Alemanha
por conta da destruição do país após a guerra. O processo de
divisão do território alemão entre os Aliados agravou sua situação,
pois Dresden, onde vivera até então, tornou-se parte da Alemanha
Oriental, ocupada e administrada pelos soviéticos. Esses episódios
são representativos das ironias e contradições das trajetórias da
história, da complexidade das histórias de vida e das diferentes
temporalidades que, sabemos, nunca são lineares, tampouco
objetivas: na primeira vez, Marta imigra por ser considerada filha
de comunistas; na segunda, para não permanecer sob o domínio
dos comunistas.
Marta e sua mãe chegaram ao Brasil em 1934, quando
o governo getulista dava início às políticas que ora favoreciam,
ora expunham os estrangeiros que procuravam nesse novo lugar
segurança e estabilidade, fossem eles judeus, alemães, japoneses,
italianos etc. Como em outros países latino-americanos, a política
imigratória adotada a partir de 1934 “[...] dificultava o processo
de acomodação’ dessas pessoas (CARNEIRO, 2018, p. 12). Em
1938, já no Estado Novo, o governo de Vargas assinou diversos
decretos de restrições às atividades de estrangeiros no Brasil. Entre
eles, proibia-se falar a língua estrangeira em público e promover
reuniões ou organizações de estrangeiros. Essas medidas atingiram
diretamente as comunidades de imigrantes alemães e japoneses no
Brasil (PERAZZO, 1999).
A história de Marta foi registrada a partir da proposta das
Narrativas Orais de Histórias de Vida, que tem como perspectiva

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os ensinamentos da História Oral, a fim de usufruir do “[...]caráter
comunicativo da memória, bem como da cultura e dos imaginários
sociais, das perspectivas da constituição de discursos e das narrativas”.
Tais relatos são tratados como “[...]narrativas dos sujeitos, artífices
da própria história [...]” e consistem na “expressão de lembranças”
desses sujeitos que acionam a própria capacidade de relembrar
(PERAZZO, 2015, p. 122).
A memória é fragmentada porque nos deixa ver apenas os
elementos selecionados pela lembrança, no presente da narração.
A memória tem a ver com a tarefa de registrar nossas experiências,
seja consciente ou inconscientemente. Para Vergara (2004), o
ato de recordar (ou relembrar) implica em apreender os aspectos
da reconfiguração da linguagem em um sentido criativo, pois
recordamos apenas certas coisas, certos detalhes, em detrimento de
outros. Por isso afirmamos que, embora a memória seja fragmentada,
é ela que provê, nas narrativas orais, os elementos que aparecem
intermitentemente, mas sempre com continuidade. São distintos
os elementos que os narradores, em nosso caso, a narradora Marta,
seleciona para a confecção de um tecido de lembranças. As estratégias
de representação da memória constituem o cenário da identidade
social de Marta, imigrante, que pode ser reconhecido pelo seu texto
oral (VERGARA, 2004), ou seja, por sua Narrativa Oral de História
de Vida (PERAZZO, 2015).
Considerando a identidade uma construção que se edifica
com a própria performance narrativa (VERGARA, 2004, p. 71; 73
e 75), o que nos chama a atenção nas Narrativas Orais de História
de Vida de Marta é que ela mesma busca os fios condutores dessa
trama. Se não pode memorizar alguns detalhes do modo como
gostaria de contá-los, passa a fazer uso de sua habilidade de imaginá-
los, recriá-los e improvisar esse relato como texto, como tecido

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narrativo. Nesse momento, sua memória de narradora funciona
como uma engrenagem que articula as partes da história que sua
narrativa entrelaça e constrói, proporcionando, a quem a escuta, a
possibilidade de recriar as cenas e os cenários em uma sequência
passível de compreensão. A recordação, portanto, se converte em
desejo de memória (VERGARA, 2004).
Desse modo, identificamos uma relação intrínseca entre
memória e identidade. Uma vez que a alteridade é parte do processo
construtivo da identidade individual e coletiva dos sujeitos, podemos
compreender as narrativas de memória de Marta como seu processo
de construção identitária na sua condição de imigrante no Brasil e
os significados que ela atribuiu à alteridade, a partir de seu sistema
de diferenciação, como assimilação subjetiva (GIMÉNEZ, 2009).
Eis o que pretendemos com esse texto e as reflexões a seguir:
compreender, a partir da experiência de Marta, como narradores
podem construir suas identidades sociais por meio de suas narrativas
de histórias de vida e das narrativas de alteridade.
O relato de Marta é permeado pelos mais diversos conflitos.
Desse modo, procuramos dividir o texto e nossas interpretações
a partir das próprias temporalidades da memória de Marta. No
primeiro item, “Marta conta sua história de vida”, apresentamos
exclusivamente seus dados biográficos. Em “A Alteridade acompanha
a construção da nossa identidade”, item dois, procuramos discutir
como a alteridade acompanha a construção da identidade da
narradora. Na terceira parte, “Eu, imigrante, e a minha percepção
do Outro: a alteridade” e na quarta, “Eu alemã, imigrante e a minha
percepção do Outro, quando não sou mais a mesma que não é
mais eu mesma”, respectivamente, discutimos as transformações
de sentidos de alteridade da narradora ao se identificar imigrante e
expressar sua percepção sobre o Outro, e nesse movimento, perceber-

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se também como o Outro em sua terra natal. Por fim, discutimos
a identidade possível diante dos movimentos de alteridade da
narradora e como seus deslocamentos e as mudanças no tempo da
vida e no tempo da história foram construídas em sua memória.
Os mesmos conceitos são retomados, mas com ênfase nos excertos
específicos da entrevistada, selecionados no artigo para conferir
organicidade ao seu depoimento e às análises que estamos sugerindo.

Marta conta sua história de vida

Em 1934, Marta e sua mãe imigram para o Brasil, com


destino a Santo André, onde já se encontravam outros parentes,
como sua tia Elza, irmã de sua mãe, casada então com Cristovão6.
Sua mãe decidiu mudar-se para o Brasil após o falecimento do
marido, em decorrência das torturas enquanto esteve preso em seu
país de origem, logo após a ascensão de Hitler, em 1933. Segundo
Marta, ter sido “metido em política” foi a causa do encarceramento
e morte de seu pai, o que nos permite inferir ter se tratado de um
opositor ao regime nazista, tão logo ele se instalou.
É esse episódio que a depoente recorda quando justifica a
decisão de sua mãe, recém-viúva, para vir ao Brasil, acompanhada
por uma filha ainda tão pequena: “[...] se o marido foi morto pela
alguma coisa, a mulher também não fica, e meu tio era muito (…)
inteligente e ele falou: ‘Vamos pagar a passagem para [virem] para
cá’.” Foi assim que mãe e filha de apenas quatro anos vieram para o
Brasil, ao encontro de seus familiares, com as passagens pagas pelo
tio Cristovão.

6
Manteremos também os nomes fictícios para os familiares.

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Em 1938, a mãe de Marta contraiu tifo e faleceu. A menina
passou a ser criada pelo casal Elza e Cristovão, respectivamente,
irmã de sua mãe e cunhado. O casal já tinha um filho, nascido em
1934, no Brasil. A partir de então, Marta passou a chamar os tios
de “pai” e “mãe” e, o primo, de “irmão”.
Nesse mesmo ano, Marta conta que Cristovão desenvolveu
câncer no rim. A preocupação com a doença e outros aborrecimentos
e desentendimentos por conta dos negócios no frigorífico da família
levaram o casal e seus dois filhos de volta à Alemanha. Cristovão
chegou a ser operado em São Paulo, mas os médicos não lhe
creditaram muito tempo de vida, considerando-se os tratamentos
possíveis na época no Brasil. Cristovão concluiu, segundo Marta,
que seria melhor morrer na Alemanha para poder rever os irmãos,
que ainda estavam lá.
Marta não explicita em seu relato o ambiente de vigilância e
controle que o Estado Novo de Vargas implantava no Brasil sobre
os imigrantes. As chamadas Leis de Nacionalização (PERAZZO,
1999) do governo Vargas foram decretadas em 1938 e proibiram
estrangeiros de falar suas línguas maternas em público, organizarem-
se em partidos políticos ou mesmo em associações culturais. Essas leis
atingiram diretamente as colônias de imigrantes alemães e japoneses
no Brasil, o que pode nos explicar o retorno da família à Alemanha,
às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial que, assim
como as demais, percebiam o clima de hostilidade e vigilância que
começavam a se instalar no país. Com eles seguiram também outro
irmão de sua mãe com a família (esposa e dois filhos). Marta conta:
“Nós voltamos, de vontade própria, pagando um navio polonês. No
navio até fiquei doente com dois ouvidos inflamados e uma médica
polonesa me tratou muito bem, que não ficou sequela nenhuma.
Na Alemanha, (...) botaram a gente num campo de desinfecção”,

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prática muito comum durante os fluxos migratórios, na primeira
metade do século XX, nos portos europeus e também nos brasileiros.
A família retornou para Dresden, sua cidade natal, mas antes
ficou em um hotel em Leipzig, uma vez que era necessário realizar
concurso e assistir às aulas preparatórias para obter autorização e
abrir um novo negócio, dessa vez, uma peixaria.
As duas crianças, Marta e João, passaram a frequentar a escola
alemã, onde entraram em contato com as práticas nazistas exigidas
pelo regime alemão. Segundo Marta, seu tio, a quem já chamava de
pai, também se viu obrigado a se filiar ao Partido Nazista. Os parentes
e amigos lhe diziam: “‘Ou você entra ou você tem um inferno, eles
não vão te deixar em paz!’. Então meu pai entrou”.
Em fevereiro de 1945, Dresden foi completamente destruída
pelo bombardeio dos Aliados. Marta relata detalhadamente os
horrores daqueles dias e também seu desespero com a situação na
qual se encontrava aos 15 anos de idade. E conclui: “Olha, isso são
coisas que não desejo pra pra ninguém. Para ninguém”. Com o fim
da guerra, Dresden foi ocupada pelos russos e integrou a Alemanha
Oriental. A família permaneceu na Alemanha até 1948, quando
conseguiu retornar para o Brasil: “E a gente tratou logo de voltar
pro Brasil, levamos três anos pra fazer papelada, tudo”.
Para efeito de clareza, passaremos à análise dos trechos do
relato já expostos, suficientes para pensar a identidade do imigrante.

A Alteridade acompanha a construção da nossa identidade

Segundo Gomes (2004, p. 11), atualmente nos deparamos


com uma prática da “produção de si” que engloba “um diversificado
conjunto de ações”, que vão desde os diários e as autobiografias,

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até mesmo a “[...] constituição de uma memória de si, realizada
pelo recolhimento de objetos materiais, com ou sem a intenção de
resultar em coleções”. Muitas vezes, a organização dessa memória
visa à “guarda de registros que materializem a história do indivíduo
e dos grupos a que pertence”. Esse pode ser o caso das narrativas
orais de histórias de vida de pessoas comuns, ou de imigrantes como
aqui viemos a trabalhar, considerando esses relatos como “atos
biográficos”, nos quais as pessoas “evidenciam a relevância de dotar
o mundo que os rodeia de significados especiais, relacionados com
suas próprias vidas, que de forma alguma precisam ter qualquer
característica excepcional para serem dignas de ser lembradas”.
Assim:

O ponto central a ser retido é que, através desses tipos de práticas


culturais, o indivíduo moderno está constituindo uma identidade
para si através de seus documentos, cujo sentido passa a ser alargado
(GOMES, 2004, p. 11).

Segundo Gomes (2004, p. 12), os procedimentos de


registro e guarda da memória individual ganham atualmente
legitimidade por se inserir no campo da memória social e até
mesmo da História. A ideia de que todo indivíduo é social, mas
também singular, permitiu a constituição de espaços nos quais os
relatos de si ganham importância pela “[...] singularidade que se
traduz pela multiplicidade e fragmentação do próprio indivíduo e
de suas memórias através do tempo [...]”. Assim, “[...] os registros
de memória dos indivíduos modernos são, de forma geral e por
definição, subjetivos, fragmentados e ordinários como suas vidas”
(GOMES, 2004, p. 13).
Outros autores também trabalham com as noções sugeridas
por Gomes (2004), a saber, Giménez (2009), que considera cultura e

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identidade indissociáveis, do mesmo modo que mantém essa relação
com a memória. Para o autor, a memória é útil e pertinente para
compreender o árduo e dinâmico trabalho de seleção, reconstrução,
transfiguração ou de reinterpretação que a memória individual
provoca nos sujeitos e a memória coletiva provoca nos grupos sociais.
Concebemos que ambas as memórias, individual e coletiva,
coexistem e são interdefiníveis. Elas se situam em contextos
culturais específicos, ou seja, têm seus tempos e seus espaços e se
referem sempre aos nossos marcos de referência (HALBWACHS,
1990). Desse modo, a memória é uma construção social, é
memória construída a partir de um “estoque” de conhecimentos e
de representações sociais, que mantemos em nós, seja em âmbito
individual, seja em social. Mas também pode ser uma memória
constituinte (processual e móvel), configurando-se como conteúdo
de nossas identidades (GIMÉNEZ, 2009).
Por outro lado, ao nos referimos à identidade, no sentido
estrito, estamos tratando da identidade individual, aquela que é
formada por atores individuais como os únicos que têm consciência,
memória e psicologia próprias, diferentemente das identidades
coletivas, cujos grupos sociais carecem de consciência de si mesmos
(GIMÉNEZ, 2001, p. 9).
Em outras palavras, a identidade, em princípio, está na
subjetividade individual das pessoas (é sentida e vivida), mas é
também na construção social que se dá por meio de processos
dinâmicos de diferenciação social com os Outros. Ou seja, a
identidade é indiscutivelmente construída por processos de
alteridade (GIMÉNEZ, 2009), cujo conceito passamos a discutir.
A alteridade acompanha a construção da nossa identidade
em processos sempre relacionais e dialógicos. O Outro é parte
constitutiva de quem somos, uma vez que a identidade e a alteridade
coexistem em um incessante diálogo subjetivo que se refere aos
processos de assimilação e diferenciação (GIMÉNEZ, 2009).

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Nesse processo construtivo de identidade, a alteridade está
associada ao Outro, ou seja, os sujeitos se apropriam de certos tipos
de diferenciação como raça, gênero, religião, classe ou grupo social.
Ou de elementos de oposição, como posicionamento ideológico
e político; ou, ainda, por ignorar características da cultura, como
as práticas sociais, os hábitos e as visões de mundo que, de uma
maneira ou de outra, movem-se estrategicamente, como peças de um
jogo de xadrez, para lhe dar sentido e possibilitar o entendimento
de uma determinada ordem social. Algumas dessas marcas estão
em oposição à percepção de que os sujeitos têm de si mesmos e do
mundo (PEREZ; PÉREZ; DELGADILLO; GARCÍA, 2014). Por
exemplo, ainda segundo esses mesmos autores, um espaço pode
ser percebido a partir de um critério de diferenciação, oposição ou
cultura como reconstruído, desconhecido, híbrido, indefinido ou
indeterminado e pode gerar medo ou incerteza. Os hábitos de alguns
podem parecer novidade, oposição ou estranheza para os Outros.
Desse modo, entendemos por alteridade o contínuo processo
de assimilação e diferenciação social que os sujeitos fazem do mundo
a partir de suas características culturais específicas, ao mesmo
tempo em que esse processo de diferenciação social contribui para
a construção das suas identidades individuais e também para a
construção de identidades coletivas, ou seja: identidade e alteridade
constituem a identidade dos atores sociais.
Neste artigo, como já explicitamos, refletimos sobre a
identidade e a alteridade de Marta, uma imigrante alemã no Brasil
que retorna à Alemanha, mas que não se vê mais nem como alemã
de origem, nem como brasileira. Sua narrativa7 de história de vida
é nossa fonte de análise.
7
Marta fala bem o alemão e fala mal o português. Sua escolaridade formal foi em alemão e
por isso também consegue ler na língua materna, o que não ocorre com o português. Todavia
contou sua história em português, mantendo sotaque e estruturas de frases como da língua
alemã. Preferimos adaptar a fala de Marta para o português, a fim de que nosso leitor pudesse
compreender melhor o que ela conta. Em alguns casos possíveis de compreensão mantemos
os erros do português.

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Eu, imigrante, e a minha percepção do outro: a alteridade

A partir do relato de Marta, selecionamos trechos nos quais


a narradora se refere aos brasileiros, quando ela chegou ao Brasil,
na condição de imigrante alemã:

Quadro 1: Percepção do outro na chegada ao Brasil (visão da alemã


para os brasileiros)
Marta: Do navio não me lembro, mas nós embarcamos em Antwerpen,
Antwerpen [Antuérpia em alemão] é da Bélgica, um porto. Eu não me lembro
o nome. Outro dia pensei de lembrar e não lembrei. (...) E, quando nós
chegamos na viagem ela [a mãe] costurou, fez tricô, roupa pra um ursinho
que meus pais tinham comprado pra mim num natal antes. Quando nós
desembarcamos, no Rio... em Santos eu vi umas pessoas trabalhando nos cais,
pretos, eu perguntei minha mãe: ‘Eles não tomam banho?’

Pergunta: Você nunca tinha visto ninguém preto?

Marta: Cinco anos8, né? Criança de cinco anos não presta!


Pergunta: Ficou surpresa com alguma coisa...?

Marta: Com uma empregada que roubou tudo que eu tinha trazido da
Alemanha de brinquedo.

Pergunta: A empregada era brasileira? Ou era...

Marta: Bidu! (...)


Marta: O câncer [de mau pai/tio]operou aqui em São Paulo, ele sobreviveu.
Fizeram uma transfusão de sangue de um negro, perto dele. Meu pai nunca,
é... Meu tio, vamos dizer, nunca fez diferença entre judeus, coisa e tal e tam,
tam, tam. E ele sempre... no frigorífico também tinha negros trabalhando e
meu pai sempre tratou muito bem. Meu tio. Não, é meu pai, caramba!

Fonte: Depoimento de Marta, Santo André, 2013. Acervo HiperMemo/USCS.


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Marta nasceu em 1930 e chegou ao Brasil em 1934. No entanto, em determinados momentos
de sua fala, diz ter cinco anos no momento da chegada. Essas imprecisões fazem parte do
processo de rememoração.

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Nestes recortes do relato de Marta, evidenciam-se o
estranhamento do europeu com o habitante local, especialmente com
o negro, cuja cor da pele a fez associar com “falta de banho”, e com
a empregada doméstica, a quem acusa de roubo de seus brinquedos.
Trata-se de uma memória do presente sobre o passado, atualizado
no ato da fala. Ocorre que tais enunciados acionam duas maneiras
distintas de perceber o Outro: no primeiro caso, uma característica
do corpo (pele pigmentada) por diferenciação de raça, como dizem
os autores Perez, Pérez, Delgadillo e García (2014); mesmo contado
como uma reação de criança, infantil, o que Marta nos faz perceber
é que a convivência com pessoas negras era tão incomum em sua
vida na Europa, que a fez associar o corpo “preto” à ideia de sujeira.
No segundo caso, o da empregada, a alteridade é dada também pela
diferenciação, mas por tipo de trabalho (doméstico) e da prática
acontecida (roubo). Nesta referência, como o trabalho doméstico
é associado a mulheres de baixa renda, especialmente nessa época,
percebe-se a desconfiança e o menosprezo com os brasileiros, pois
apenas a doméstica brasileira, entre os funcionários que a menina
entrou em contato, teria sido capaz de roubar seus brinquedos. A
maneira como responde à pergunta do entrevistador: “Bidu!”, indica
o tom de que brasileiros são “obviamente” ladrões.
Temos, então, duas naturezas distintas de estranhamento: a
racial e a social. Neste depoimento, observamos que a percepção do
Outro, daquele que cometeu o roubo, é de uma pessoa brasileira.
A alteridade também é dada por outra característica da identidade,
a diferença da nacionalidade do Outro, em oposição à sua própria.
Importante notar que o enunciado seguinte, “a transfusão de
sangue de um negro” vem acompanhado de um complemento, como
se quisesse amenizar seu constrangimento com preconceito racial:
“meu tio nunca fez diferença entre judeus, coisa e tal e tam, tam,

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tam”. Ora, se de fato o tio a que Marta se refere não fizesse mesmo
distinção entre judeus e não judeus, o enunciado não teria razão de
ter sido pronunciado. Se ele é negado, é porque existe seu oposto,
ainda que de forma velada. Talvez a expressão “sangue de negro” seja
uma memória importante da depoente e não de seu familiar que traz,
novamente, para o discurso, a referência às pessoas de outra etnia.
Sabemos que a linguagem é ideológica e que é por meio dela
que os pensamentos e as narrativas se organizam. Para acionar suas
memórias de décadas atrás, o que indica a circulação entre diferentes
temporalidades, Marta ativa a consciência do tempo presente e,
assim, modula o que é aceito socialmente, ao transferir para o Outro,
seu próprio tio, algo que lhe pertence: a importância atribuída às
diferenças etnicorraciais. Finalmente, a onomatopeia “tam tam tam”
substitui outras etnias. Trata-se de uma enumeração inacabada, mas
sugerida, que deve ser completada pelo interlocutor.
A memória pode ser responsável por permitir nos movimentar
nessas diferentes temporalidades da própria história: entre o presente
e o passado.
Marta é uma mulher de pele branca e sua primeira experiência
visual com a população negra no Brasil, ainda criança, lhe causou
surpresa. Sua expressão seguinte: “E ele [o pai] sempre, no frigorífico
também tinha negros trabalhando e meu pai sempre tratou muito
bem” atesta seu esforço de matizar as diferenças entre sua origem
e as da população negra que encontra no país de destino, mas em
condições subalternas, pois são os prestadores de serviços à sua
família. O testemunho permite ver a alteridade entre o Eu e o
Outro, significando que ser branco e ser negro atende ao princípio
da identidade própria e da identidade do Outro, a partir da diferença
de raça.

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Identidade é uma construção social, cultural e, também, uma
construção temporal, que é marcada pela diferenciação social e
cultural com o Outro, e acionadas pelos movimentos da memória,
mas identidade também é relacional, pois sem processos de alteridade
não haveria identidade.
Neste testemunho, podemos ver, novamente, uma apreciação
de identidade relacionada à questão étnica: a transfusão de sangue
de uma pessoa negra para uma branca, alemã. Essa memória sugere
não apenas a diferenciação racial, mas também social, em que negros
estão em posição inferiorizada no contexto brasileiro. Nesse mesmo
depoimento, ela tenta amenizar sua expressão de matiz racista,
quando retoma a convivência pacífica com negros no ambiente de
trabalho e o bom tratamento que seu tio lhes dava, na condição de
patrão.
O outro argumento refere-se ao tratamento indiferenciado
de seu tio aos alemães e judeus. Aqui vemos um jogo de identidades
entre brancos, negros, alemães e judeus com diferentes posições
sociais, condições históricas e papéis no trabalho. Essas são outras
maneiras de entender a alteridade e, portanto, as identidades dos
Outros, desde a própria identidade da narradora e desde seu presente.

Eu alemã, imigrante e a minha percepção do Outro, quando


não sou mais a mesma

Em se tratando de alteridade, estamos buscando nos relatos da


imigrante alemã para o ABC Paulista as suas próprias noções sobre
o Outro. É comum imigrantes acionarem diversas formas de ver o
Outro e o mundo, pois, no movimento do deslocamento, assumem
diferentes posições conforme se deslocam e encontram-se muitas
vezes com muitos Outros. Na história de Marta, há uma situação

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interessante que podemos chamar de dupla imigração, ou seja, ela
vem para o Brasil em 1934, retorna para a Alemanha quatro anos
mais tarde e imigra novamente para o Brasil em 1948. Essa volta
não fora prevista quando se deu o primeiro deslocamento. Assim, ao
regressar para Alemanha em 1938, o que Marta e a família encontram
por lá são outros alemães. E assim percebemos também em seu relato
como se constrói esse Outro alemão, de feições nazistas, descritas pela
lembrança de uma mulher aos 81 anos que construiu sua identidade
entre a nacionalidade alemã e a de imigrante e residente no Brasil:

Quadro 2: Percepção do Outro no retorno à Alemanha (da imigrante


que foi ao Brasil para os alemães)
Meu irmão, primo, João, tinha nascido na hospital Santa Catarina, em São
Paulo, só que meus pais naquela época... os meus pais... ninguém... não
registrava ninguém. Foi tudo assim. Só que ele tinha papel de batizado. E
sobre este papel de batizado nós fomos repatriados da Alemanha para Brasil.
Minha avó, que já tinha falecido em 1935 aqui [em Santo André, Brasil], que
veio em 1928 pra cá, falou que nunca mais ia sair daqui [Santo André, Brasil],
que aqui era bom, era sol, era tranquilo, tudo gostoso e (...) voltamos pra cá
depois de andar três anos que nem ciganos na Alemanha.
Lógico! Na escola, em todo o lugar. Êh! Aqui, quando toca o hino nacional,
você não tem que levantar? Lá é mesma coisa, e ainda Hi Hitler!. É, (...)
ignorância, mas tudo bem. [Marta levanta o braço fazendo o gesto da saudação
nazista].
Fonte: Depoimento de Marta, Santo André, 2013. Acervo HiperMemo/USCS.

Assim, observamos nestes excertos a imagem híbrida do Brasil
aos olhos da alemã: a informalidade, caracterizada pela ausência de
documentos formais civis (certidão de nascimento), comumente
substituídos pelo religioso (batismo). E, também, as características
que até hoje são anunciadas como marcas positivas do Brasil: ser
bom, ter sol, ser tranquilo, ser “gostoso”.

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As memórias da infância escolar dos dois países equivalem-se
para a narradora: enquanto na Alemanha as crianças deviam fazer a
saudação nazista, no Brasil põem-se de pé para ouvir o hino nacional.
O enunciado - “É (...) ignorância, mas tudo bem” - é paradoxal:
condena o gesto, uma vez que ele é “ignorante”, mas é imediatamente
neutralizado com a expressão “mas tudo bem”.
Tais considerações reforçam as hipóteses desenhadas no
primeiro quadro: é a própria Marta quem ainda compartilha sua
formação nos bancos escolares nazistas, mas tal herança é muito
conflituosa. Imigrante no país cheio de sol e de tranquilidade,
apesar do Estado Novo, aprende apenas durante sua maturidade,
no período pós-guerra, que o nazismo e o preconceito racial devem
ser banidos, mas apesar de seus esforços, a ideologia comparece,
marcada no discurso.
Este é outro exemplo de identidade por diferença de
nacionalidade. Ser reconhecido como brasileiro era suficiente e,
de certo modo, contribuía para recuperar o direito de morar em
um país em que a pessoa - com outra nacionalidade de origem -
não nasceu. Observamos, no depoimento, o reconhecimento da
identidade do Outro para conseguir um papel, um objetivo. Nesse
caso, brasileiro era seu primo, a quem considerava como irmão, por
ter sido adotada pelos tios.
Temos aqui um exemplo de identidade de nacionalidade
e identidade que é dada pela apropriação cultural; dois tipos
de identidades que mudam e são negociadas pelos migrantes
transnacionais. Eles exigem ambas identidades para enfrentar suas
condições de vida. Tais identidades funcionam como alteridades
devido à forma como as pessoas as utilizam, ou seja, a identidade e
a alteridade fazem parte da mesma condição, ambas coexistem pela
diferenciação social e cultural (GIMÉNEZ, 2009).

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Os símbolos culturais são significativos para mostrar,
reproduzir ou intensificar qualquer identidade, seja cultural, nacional
ou geopolítica. Nesse testemunho, a referência ao hino nacional
do Brasil é muito significativa, pois a narradora compara-o com
a saudação nazista. Ambos parecem indicar uma referência a cada
uma das nações que a imigrante viveu e a ambígua construção de
identidade entre o Estado alemão, quando morou lá, o contexto da
Segunda Guerra Mundial e a sua permanência no Brasil por muito
mais tempo em sua vida. No movimento dessas temporalidades,
existe uma identidade forçada, coerciva, de acordo com o
testemunho.
6. Eu, alemã, imigrante: a identidade possível
A alteridade, como veremos a seguir, acompanha a construção
das identidades. A construção identitária de Marta somente se
torna possível ao transitar pelas relações entre ela (Eu) e o Outro,
e mesmo entre ela e ela mesma, como sendo ora uma, ora a Outra.
E assim, ela narra:

Quadro 3: Percepção de si (construção da identidade)


Marta: E ele queria abrir um negócio, mas lá, minha mãe como era, minha
tia, como era desenhista, aqui [mas] tinha trabalhado na Alemanha dez anos
antes de ter vindo para o Brasil, ela não arranjou serviço porque nós tinha
chegado do Brasil [e] eles [alemães] achavam que era espionagem, então meu
tio procurou um serviço de negócios (...) ai resolveram ir na casa da cidade
de Dresden onde minha mãe, minha avó os irmão tinham conhecimento e
tinham nascidos lá.
Marta: Aqui no Brasil, ninguém pensa em guerra, ninguém fala. Meu tio não
tinha conhecimento da situação política da Alemanha. Como ele tinha um
câncer, no... no... no coiso, no rim que tinha operado, os médico deram dois
anos de vida. E, como tinha encrenca na família, sociedade desfeito, ele falou:
“Eu vou morrer na Alemanha. Vou rever meus irmãos”. Tinha duas irmãs e
um irmão lá, e aí a família toda... Meu tio, (...) irmão da minha mãe, grudou
na gente e foi junto. Lá, depois de um ano, rebentou [arrebentou] a guerra,
mas ninguém estava sabendo disso. Nossa família estava muito desligada de
política.

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Marta: Depois nós fomos morar num porão, do outro lado da rua um... Que
nem uma fazenda antiga, que tinha os quadros bem grandes, de... de... de
pedras, um porão que salvou a nossa vida mais tarde. De lá nós subimos no
primeiro andar. De lá, nós fomos pra mais pra trás, mas no mesmo lugar, era
uma fazenda de antigos reis da Alemanha que nós alugamos um quarto, um
primeiro andar de um inspetor lá daquela fazenda. Era um quarto meu, uma
sala, um quarto dos meus pais, uma cozinha grande e um quarto no segundo
andar. (...) Nós ficamos grã finos!
Marta: Porque falaram que ele era nazista que ele tinha entrado lá. Era
obrigado, ele tinha um negócio no centro da cidade, se algum dia você num
[não] dança como o regime demanda, tua vida vira um inferno, então...Mas
não era nada de... de... de politicagem coisa tal.
Marta: “Ou você entra ou você tem um inferno, eles não vão te deixar em
paz!”. Então meu pai entrou. Até ele fez umas escritas... ajudou umas pessoas
que vinham fugindo da Rússia, pra nossa cidade ajudar a encaminhar, escrever
umas coisas, mas nada de politicagem. (...) Ah!...
Pergunta: O seu pai, o marido da dona Elza, e ela, eles não se metiam em
política?

Marta: Não! Não se metiam em...

Pergunta: Eles obedeciam ao nazismo porque eram obrigados?

Marta: Era obrigação. Todo mundo era obrigado. Esse meu tio teve que entrar
no partido...

Pergunta: Nazista!

Marta: Nazista porque o amigo dele falou: “Ou você entra ou você tem uma
inferno aqui”.
Marta: Agora um fato que eu lembro, (...) eu ia na escola, meu irmão também
já. Um dia tinha desfile de soldados na rua. Nós chegando [há] pouco tempo
do Brasil, [achamos] bonito e ficamos na janela do primeiro andar, no nosso
andar, né? E sem bandeira lá fora também, de repente [alguém] bateu na porta
[e perguntou] por que a gente não levantou o braço pra saudar a bandeira?
[Marta levanta o braço fazendo o gesto da saudação nazista]

Pergunta: E a bandeira é da suástica mesmo?

Marta: É. Era na guerra. Meu pai falou assim pro [para o] fulano: “Nós estamos
chegando [há] pouco tempo do Brasil e nós não sabia”. Eu sei que ele levou
uma bronca, ele ficou “P” da vida, mas passou. Então o regime era feio lá.

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Marta: E a gente foi sobrevivendo, depois nós chegamos no sul da Alemanha.
Em um, uma cidade, outra cidade, outra cidade até que nós chegamos num
campo que estava tudo junto. Era um lugar de loucos que antigamente tinha
umas salas enormes com vinte banheiras, que era uma beleza, e o governo
da, da, os que mandavam na Alemanha, era os francês, ingleses, russos e
americanos, alimentavam a gente com uma sopa de manhã, sopa de ___[não
se compreende a palavra] . Isso foi quase no fim, (...) Daí, a gente, meu pai
nesse intervalo, meu tio, foi atrás da papelada para voltar para o Brasil. Como
eu tinha outro nome e não era filha dele, o governo brasileiro lá, os polit... os
generais lá tinham um papel lá em Berlim, falaram que eu tinha que ficar na
Alemanha.

Pergunta: Era o governo alemão que não deixava?

Marta: Não! Não, não, não, não. Brasileiro. Que não queria eu, junto com a
família. Aí meu pai falou: “Tudo bem, ela fica? Nós fica! E o brasileiro fica de
fome também aqui, que é meu filho, é brasileiro, ele vai morrer de fome aqui,
junto com a gente. A menina eu não deixo, que a mãe dela faleceu no Brasil
e a mãe dela falou pra mim para eu cuidar da menina’ [barulho de estalar os
dedos] Falaram: ‘Então ela vai junto!’ (...)
Marta: Quem entrou primeiro lá na aldeia, [foram] os americanos. E minha
mãe mostrou o modelo 19 [documento de identidade brasileiro para os
estrangeiros] para os americanos e tudo bem. Depois os americanos saíram e
entrou os russos, mas já sem guerra e o modelo 19 de minha mãe foi rasgado.
Russo é (...)

Pergunta: Pode falar.

Marta: Não! (...)

Pergunta: Mas por que sua mãe tinha modelo 19? Não é de estrangeiro?

Marta: Ela morava aqui!

Pergunta: Ah, ela mostrou o modelo 19 daqui, não da Alemanha. Como se


ela fosse...

Marta: Brasileira.

Pergunta: Ah!

Marta: Pra tapear, e os americanos ela tapeou, eles nem revistaram a casa,
também não tinha nada pra revistar na fazenda. (...)
Fonte: Depoimento de Marta, Santo André, 2013. Acervo HiperMemo/USCS.

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Os trechos até aqui compilados mostram a dupla construção
da identidade de Marta: a familiar e a nacional. Órfã de pai e mãe,
é adotada por seus tios, mas, apesar de oscilar entre nomeá-los ora
de pai/mãe, ora de tio/tia, recebe o acolhimento de filha em um
momento crucial durante a guerra: por ela, todos ficariam retidos
na Alemanha, ainda que os demais pudessem voltar ao Brasil. Seus
enunciados trazem as marcas das diferenças de sua posição na família.
Nesse momento Marta era alemã e seu irmão/primo era brasileiro,
condições diferentes que os colocavam em possibilidades diferentes
dentro da própria família.
Em suas memórias, até mesmo o filho natural do casal passaria
as mesmas privações que ela, mas no enunciado seguinte, em que ela
conta que a família não retornaria ao Brasil sem ela, a diferença entre
ela e seu irmão/primo novamente comparecem: “E o brasileiro fica
de fome também aqui, que é meu filho, é brasileiro, ele vai morrer
de fome aqui, junto com a gente”.
Suas idas e vindas entre Brasil e Alemanha a fizeram estranhar,
mas sem nunca esquecer, os rituais exigidos para a sobrevivência
da família. Não acenar a bandeira publicamente em um desfile no
país bávaro era razão suficiente para a família ter sido intimidada.
A justificativa que protegeu a família foi a falta de intimidade com
os rituais nazistas, uma vez que haviam acabado de se estabelecer
no velho/novo país.
Finalmente, nos chama a atenção a lembrança da queda do
nazismo, com a entrada dos americanos, seguida pela dos russos,
em Dresden, onde a família de Marta se estabelecera. A confusão
gerada pelo documento de identidade “Modelo 199” materializa
a ambiguidade da situação em que todos se encontravam. Para os

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Na época, era comum chamarem o documento de identidade de estrangeiro apenas por
carteira “Modelo 19”.

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americanos, a condição de serem “imigrantes no Brasil” contribuiu
para a liberação da família. Nesse momento, o Brasil já tinha
assumido seu papel junto aos Aliados tanto no final da guerra,
quanto no período pós-guerra. Mesmo que de maneira oportunista,
a ambiguidade sempre comparece quando o imigrante ou estrangeiro
tem de se movimentar entre a terra natal e o lugar de destino.
No entanto, não podemos nos esquecer que a depoente
está narrando situações traumáticas de uma infância acontecida
muitas décadas antes. Nessa etapa da vida, ela já sabia que havia
perigo e vigilância sobre as ações da família. Como o trauma gera
silenciamentos, entre outras reações (POLLACK, 1989), é possível
considerar que apenas ao contar sua história é que esses episódios
vieram à superfície. Saídas do subterrâneo da memória (POLLACK,
1989) permitem compreender a difícil construção de sua identidade
nacional – brasileira ou alemã – e também sua relação com a
educação nazista.
Não é à toa que a palavra “nazista” é a que deixa de ser
enunciada num primeiro momento, mas completada no diálogo pela
entrevistadora. Marta diz: “Era obrigação. Todo mundo era obrigado.
Esse meu tio teve que entrar no partido...”. E a entrevistadora
completa o termo: “Nazista!”. Marta confirma: “Nazista porque o
amigo dele falou: ‘Ou você entra ou você tem uma inferno aqui’”.
Apesar do silenciamento da palavra, Marta a representa por
meio do gesto típico da saudação nazista. Por duas vezes, durante o
depoimento, ao tratar desse assunto, o braço de Marta se levanta na
representação gestual. Não queremos aqui dar a entender que isso
configura adesão, mas, sim, um gestual presente não apenas em suas
lembranças, na memória, ou em suas palavras, mas também em seu
corpo. Percebemos, assim, como o ato de nomear as coisas amplia
o discurso quando gesto e corpo também comunicam.

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Tais elementos parecem ser suficientes para reforçarmos
a hipótese da ambiguidade da depoente no que se refere à sua
identidade. Como herdeira dos ensinamentos do nacional-
socialismo, enxerga os negros e a doméstica que conhece no Brasil
como Outros, como sujeitos inferiores, mas como apre(e)nde que
tal ideologia não é digna sequer de menção, deixa transparecer, em
seus rompantes de memória, alguns vestígios de sua cultura primeira.
Ora confundida como espiã, ora como simpatizante do
nazifascismo, Marta materializa também outra ambiguidade: o da
confiança. Surpresa com a forma com que sua família fora percebida
quando regressou à Alemanha, experimentou a incerteza de não
ser mais aceita como cidadã. Bauman (2013, p. 13) justifica esse
movimento entre sua família ser aceita ou vista com desconfiança:
“[...] sem controle político, o poder torna-se fonte de grande
incerteza, enquanto a política parece irrelevante para os problemas
e temores das vidas das pessoas”. Em uma Europa em plena guerra,
sob um regime totalitário e genocida que se alastrava por todo
o continente, as possibilidades de sobrevivência de milhões de
habitantes eram escassas. Além da sorte e do acaso, eram necessários
vultosos recursos financeiros e boas relações internacionais para
garantir rotas de fuga, vistos de entrada e de saída, esconderijos
relativamente seguros etc.
Como a família de Marta, pouco estruturada economicamente,
fez o percurso Alemanha-Brasil mais de uma vez, nas décadas de
1930 e 1940, é possível imaginar por que os seus conterrâneos
alemães a consideraram favorável ao regime nazista, ainda que seu
tio tivesse sido obrigado a se filiar ao partido.
Nem sempre é possível distinguir o algoz da vítima, uma vez
que a vigilância da “modernidade sólida”, para novamente referenciar
Bauman (2013), quando se refere ao século XX, transformava com

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muita eficácia a oposição e resistência em colaboracionismo. Em
troca de proteção e alguma garantia de sobrevida, homens e mulheres
das mais variadas idades, nacionalidades e crenças religiosas aderiam
ao partido, delatavam vizinhos, amigos, parentes. Portanto, a família
de Marta pode até ter se aproximado do regime, uma vez que a
ênfase do relato recai não apenas no esforço de seus tios manterem
a família viva e unida, mas também de reverem a pátria, poderem se
despedir dos amigos no país de origem, permitirem que as crianças
frequentassem escolas alemãs, ainda que sentissem constrangimento
em saudar os nazistas publicamente.
Vigiados, ainda que sem conhecer de onde exatamente vinha
o perigo, Marta e seus parentes aprenderam a se comportar tanto
na Alemanha como no Brasil. De certo modo também podendo ser
vistos como sobreviventes, adaptaram-se aos costumes de ambos os
locais e assim garantiram o bem maior: a vida.
Nesse processo de construção da identidade social de Marta,
por meio de sua memória, expressa em narrativas orais, foi possível
observar a alteridade, como sustentam os autores Perez, Pérez,
Delgadillo e García (2014), associada a certos tipos de diferenciação,
traços de oposição e marcas de desconhecimento, pelos quais a
imigrante outorgou sentido ao seu mundo subjetivo e ao seu mundo
social, ao seu lugar de destino e de vida, por duas vezes: a cidade de
Santo André, na região de ABC Paulista, no Brasil.

Conclusões

O objetivo deste texto foi compreender como narradores


podem construir suas identidades sociais por meio de suas narrativas
de histórias de vida e das narrativas de alteridade. Apresentamos

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parte das narrativas de uma mulher, de origem alemã, imigrante no
Brasil. Sua memória e sua identidade são construídas a partir de suas
narrativas orais de histórias de vida e possibilitaram a análise de uma
comunicação mediadora de relações de alteridade imprescindíveis
para sua existência social e cultural em múltiplos lugares de destino.
Entendemos que não é possível refletir sobre a alteridade
sem antes considerar que esta é parte do processo construtivo da
identidade individual e coletiva dos sujeitos. Com essa análise do
discurso de Marta, demonstramos um jogo de identidades e de
alteridades. As narrativas de Marta nos permitiram ver alteridade
como componente da identidade, do mesmo modo que pudemos
compreender os significados que tal identidade atribui à alteridade.
A ideia central foi mostrar que os sujeitos de uma determinada
cultura sabem quem são porque se percebem diferentes do Outro.
Marta se reconhece como sujeito social quando se vê diferente do
Outro, do brasileiro, do negro ou do alemão nazista. A sua identidade
se construiu por processo de diferenciação social.
Ilustramos com a narrativa de Marta que a identidade do
Outro, mesmo que pareça distinta, é, de certo modo, a mesma
identidade. Mostramos que, ao ser reconhecida como brasileira
– na sua condição de imigrante, com seus direitos de imigração,
precisamente por ter a identidade do Outro – a alemã –, pôde tomar
decisões favoráveis à sua condição social.
E, por fim, concluímos que existem diferentes movimentos
de identidade em um único sujeito. A identidade e a alteridade
coexistem devido às formas como as pessoas as utilizam, fazendo
delas uma transação cultural em uma dupla construção da identidade,
que, no caso de Marta, se movimenta entre uma identidade brasileira
e outra alemã, movimentando-as conforme favoreçam a condição
de ser imigrante.

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EM BUSCA DA HETEROGENEIDADE
CONSTITUTIVA DO SUJEITO TRADUTOR

Mayara Stéphanie Barbieri dos Santos1


Edson Carlos Romualdo2

RESUMO: Neste artigo, discute-se a tradução como um processo inacabado que


pode ser demonstrativo da heterogeneidade constitutiva do sujeito tradutor, aportados
principalmente por Derrida (2002) quanto à tradução e Authier-Revuz (1990) e
Bakhtin (1990) quanto à concepção de sujeito e linguagem. Nosso corpus de trabalho
é o livro Os funerais do coelho branco (2014), de Nenê Altro, sua versão para a língua
inglesa e um arquivo de possibilidades. A partir do arcabouço teórico, apresentamos
uma análise qualitativo-interpretativista de um excerto do texto em um confronto com
a versão e possibilidades propostas para ele no processo de escolha do tradutor. Nossas
discussões possibilitaram um olhar para a alteridade constitutiva do tradutor pela
hetegeroneidade marcada em seu processo de tomada de decisões.
Palavras-chave: tradução; heterogeneidade constitutiva; heterogeneidade mostrada.

ABSTRAT: In this paper, we discuss translation as an unfinished process that could


be evidence to the constitutive heterogeneity of the translator. We base our research
on the works of Derrida (2002), concerning translation, and Authier-Revuz (1990)
and Bakhtin (1990), as of language and subject concepts. Our corpus consists of the
book Os funerais do coelho branco (2014), by Nenê Altro, its translation to English
and a possibilities archive. From this theoretical basis, we present a qualitative and
interpretative analysis of a portion of the text in conflict with its translation and its
possibilities, made in the translator’s process of choice. Our discussion enabled a look
into the translator’s constitutive alterity, through the manifest heterogeneity present in
the decision-making process.
Keywords: translation; constitutive heterogeneity; manifest heterogeneity.

1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá
(UEM).
2
Professor Associado Nível C do Departamento de Teorias Linguísticas e Literárias da
Universidade Estadual de Maringá (UEM).

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Introdução

A tradução tem sido estudada por meio de diferentes olhares


ao longo dos anos. Nos Estudos da Tradução, encontramos três
principais categorias que demonstram as mudanças nas reflexões e
teorias, que foram revistas e refutadas através de debates constantes.
As principais vertentes são conhecidas como prescritivismo,
descritivismo e vertente crítica, em que o conceito de tradução e
como ela deve ser feita se amplia e se transforma. Podemos traçar
um panorama dos Estudos da Tradução partindo das contribuições
de Catford (1980), que percebia a tradução como uma substituição
de material linguístico de uma língua para outra. Na vertente
prescritivista, pensa-se em equivalência linguística como objetivo a
ser alcançado, assim como correspondência formal entre os textos,
e acredita-se na superioridade do texto chamado original. Teoriza-
se uma essência ao texto original a qual o tradutor deve ser fiel. A
vertente descritivista não se limita ao material linguístico, mas traz
discussões sobre a função do texto e o objetivo da tradução. De
acordo com essa concepção, a tradução é responsável pela sobrevida
da obra, porém, não consegue transpor seu sentido essencial, tocando
somente em pontos do original. Posteriormente, a vertente crítica
traz à discussão as condições de produção e recepção dos textos,
considerando o leitor. Sob essa luz, passa-se a conceber uma língua
dinâmica em que mais de um sentido se faz possível, ao invés de
uma essência intraduzível.
Teorias mais recentes, inspiradas principalmente na corrente
desconstrutivista proposta pelos estudos de Derrida (2001; 2002),
olham para a tradução como uma transformação de um texto em
outro e concebem a possibilidade de mais de um sentido possível
para todos os textos. Nega-se a ideia de uma essência que deve

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ser descoberta e transposta pelo tradutor e introduz-se a noção
de interpretação do leitor. Nessa concepção mais pós-moderna,
descentralizada, a tradução é vista como um processo – não como
instância estática a ser descoberta pelo bom tradutor, mas como
um processo inacabado, sendo ele entremeado pela alteridade e
suas condicionantes.
Somos consoantes a essa visão, e adotamos as ideias de Arrojo
(2003) quanto ao mito da univocidade do sentido ou estaticidade
do texto. A autora nos remete ao conceito de interpretação e leitura
(ARROJO, 2003, p. 22-23), pois ressalta que os leitores interpretam
textos de diferentes pontos de vista, em diversos contextos, e que
um texto nunca será lido da mesma forma, já que o enunciador não
tem controle sobre o seu dizer ou sobre a recepção dele.
Além disso, partimos das contribuições de Derrida
(1972/2001), que postula o jogo de relações em que o sentido está
sempre adiado. Segundo Derrida, os sentidos se fazem na différance,
tanto “adiar” quanto “ser diferente” (RODRIGUES, 2000, p.
198), em que os signos se definem em um jogo de relações. De
acordo com Boito (2013, p. 14), “há sempre um imbricamento de
sentidos, onde os rastros dos elementos remetem a outros rastros
que, por sua vez, se inserem em outros jogos de relações, em meio
a teias de sentidos, num processo de significação (...)”. Isto é, os
sentidos são (re)construídos em um jogo de relações que se refere ao
imbricamento de sentidos, uma teia de rastros de significados que
remete a outros rastros, visto que nenhum elemento funciona como
signo sem se relacionar a outros signos. Para Derrida (1972/2001),
esse encadeamento faz com que um signo só se constitua a partir
dos outros. A différance, portanto, entre línguas, culturas, sujeitos,
contextos, é a condição para a significação. Esse jogo de relações
denota a fluidez da linguagem e como seus efeitos de sentido podem

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ser descontruídos para então serem reconstruídos, transformados,
ressignificados a todo tempo, no meio social.
À luz da concepção de tradução que elegemos, trazemos
a problemática do momento de tomada de escolhas no processo
tradutório. Como mencionado anteriormente, a língua apresenta
mais de uma possibilidade para construção de sentidos, e o
tradutor se vê com mais de uma opção possível ao traduzir, e deve,
inevitavelmente, fazer uma escolha final em sua prática. Escolher
uma possibilidade implica em não escolher outras, o que pode
revelar marcas da alteridade que constitui o sujeito tradutor. Neste
artigo, partimos dos seguintes questionamentos para direcionar
nossa análise: Como o processo tradutório pode revelar marcas
da heterogeneidade constitutiva desse sujeito? Como podemos
encontrar essa alteridade a partir das escolhas (finais e descartadas)
do tradutor?
Assim, nosso objetivo é explorar de que forma a tradução
como processo inacabado pode apresentar marcas da heterogeneidade
constitutiva do sujeito tradutor. Para tal, analisamos um excerto da
tradução e das possibilidades de tradução do livro Os funerais do
coelho branco de Nenê Altro (2014), com escopo nas marcas da
alteridade do tradutor. Na seção seguinte, explanamos definições
de sujeito, dialogismo e heterogeneidade constitutiva e mostrada,
para então apresentarmos os dados e uma proposta de análise
fundamentada através do arcabouço teórico discutido.

Dialogismo e heterogeneidade na tradução

A explanação de nossa concepção de tradução como processo


inacabado e dinâmico nos permite pensar a língua como propôs

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Bakhtin, como uma “corrente evolutiva ininterrupta” (1990, p. 91),
sempre em transformação, sem nenhum indício de um sistema de
normas imutáveis, mas como uma prática social desempenhada por
sujeitos sócio-historicamente constituídos.
Dessa forma, considerando esse aspecto fluido e social da
língua, o dialogismo bakhtiniano torna-se fundamental para a
continuidade de nossa reflexão. Para Bakhtin (1990), o dialogismo
é o princípio constitutivo da linguagem e implica na relação
permanente e ininterrupta entre vozes sociais e ideologias presentes
na enunciação, em um diálogo constante. Não há neutralidade na
língua, toda palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de
um sentido ideológico ou vivencial (BAKTHIN, 1990, p. 96), o
que nos permite entender o aspecto social como condição essencial
para a linguagem. É a partir desse ponto de vista que consideramos
o sujeito como, primordialmente, ser socialmente organizado.
Nossa concepção de sujeito o insere no mundo real, em processos
semióticos e ideológicos, e o percebe descentralizado, constituído
pela história e pela alteridade. Bakhtin afirma que “a língua, no seu
uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à
vida” (1990, p. 97). Neste sentido, o sujeito que faz uso da língua,
de forma prática, o faz sendo perpassado por discursos ideológicos
e dialógicos, em que a presença de vozes sociais – Outros – se faz
intrínseca.
A noção de sujeito que adotamos fica ainda mais evidente
quando pensamos no sujeito que traduz. O tradutor é, antes de
traduzir de fato, leitor de um texto. Consideramos então a definição
de Olher (2010, p. 114) de tradução como a materialização de
uma leitura, que, por sua vez, é interação e apresenta múltiplas
possibilidades interpretativas para o leitor. O sujeito que lê, interage
com o texto, interpreta e traduz, é perpassado pela linguagem, por

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seu contexto social imediato, por ideologias e por diversos Outros
que o constituem. Neste sentido, cada tradutor, sendo sujeito
social e sujeito da linguagem, interpreta as línguas e as traduzem
de acordo com suas próprias vivências, criando, invariavelmente,
um texto novo, transformado. Em outras palavras, o tradutor se
posiciona ao fazer escolhas no processo tradutório, visto que suas
escolhas são influenciadas pelo contexto, intertextos e, mas não só,
sua visão de mundo como leitor. É possível afirmar, portanto, que
não há transparência nas escolhas, múltiplas como podem ser, pois
há sempre um posicionamento ideológico refletido por elas.
Tomando como ponto de partida as concepções apresentadas,
no que tange à tradução e ao sujeito social e dialógico, buscamos
entender a heterogeneidade do processo, através das contribuições
de Authier-Revuz (1990, 2004).
A heterogeneidade postulada por Authier-Revuz (1990,
2004) parte do conceito já mencionado de dialogismo, de Bakhtin. A
autora baseia-se na concepção de Bakhtin de que o diálogo permeia
a linguagem; não só o diálogo face a face, mas a relação interna
do discurso com as vozes sociais que o constituem, fazendo com
que todas as palavras da língua sejam inevitavelmente carregadas,
ocupadas, habitadas, atravessadas ( AUTHIER-REVUZ, 1990,
p. 27). Para a autora, somente o Adão mítico, o primeiro homem
criado no mundo, teria produzido uma língua sem um já-dito, sem
uma história na fala do outro. Segundo esse pensamento, todos os
outros seres sociais, em contato com a língua, recebem e produzem
discursos que já existem, que são socialmente sustentados, que já
foram ditos por outros/Outros.
Conforme Authier-Revuz, a heterogeneidade constitutiva é o
princípio formador do sujeito e do discurso, visto que não é formado
somente pelo eu, mas por Outros. Através dessa perspectiva, o nosso

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dizer nunca é um, mas sim múltiplo, constituído por outras vozes,
outras concepções, Outros. Retomamos o sujeito descentralizado,
que, apesar de viver na ilusão de ser uno, é constituído e interpelado;
a não interpelação é impossível.
Na tentativa do sujeito de se afirmar como ser único,
Authier-Revuz menciona a concepção de Freud da “ferida narcísica”
(AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28), que implica na ruptura com a
ilusão do eu como centro de um sujeito que “não é mais senhor de
sua morada”. A autora explica que o sujeito que necessita se definir
como eu uno, circunscreve o Outro em seu discurso, negociando
com ele, como se pudesse se definir ao negar o Outro, contudo, acaba
por reconhecer a existência da alteridade em si ao tentar negá-la.
Authier-Revuz (1990, p. 26) designa esse processo como denegação,
que denota a heterogeneidade constitutiva do sujeito por meio da
negociação que buscaria negar sua onipresença.
Authier-Revuz (1990) defende a ideia de um sujeito dividido,
talhado, resultado de uma estrutura complexa, não homogêneo.
Como são sujeitos que produzem linguagem, a própria construção
de sentidos, feita por intermédio da língua, é, também, heterogênea.
Os sentidos podem ser múltiplos, mesmo se tratando de um
indivíduo só, já que ele traz o Outro para a produção de sentidos e
torna o processo mais amplo. Nessa perspectiva, entendemos que o
sujeito tradutor, por ocupar um entre-lugar, um entre-línguas, traz
diversas vozes para a sua construção de sentidos e, portanto, para
o seu traduzir. A alteridade é constituinte do próprio processo de
traduzir, e pensar no sujeito heterogêneo que traduz implica um
processo intrincado, cheio de conflitos entre escolhas.
A denegação do tradutor acontece no entre-línguas, lugar
que desloca a noção de fixidez, pois apresenta vozes dissonantes,
historicamente situadas, entre original e tradução, entre a língua do

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“outro” e a “sua” língua, (OLHER, 2010, p. 124-125). De acordo
com Boito (2013, p. 17-18),

Se pensarmos que o tradutor exerce um papel ativo na leitura e


na produção da tradução, não podemos negar que sua voz estará
sempre presente no texto traduzido, em todas as suas escolhas.
Trata-se de um processo de decisão no qual o tradutor se vê em
meio a diferenças e, na busca por termos que sejam coerentes
com sua leitura do texto de partida, encontra-se no entre-lugar
da indeterminação, em um caminho onde os aspectos culturais e
ideológicos operam ativamente (...).

As decisões tomadas sinalizam as vozes da alteridade que


constituem esse tradutor. Ele materializa Outros no discurso, vozes
que estão inseridas na sociedade e na história, e busca um controle
sobre o seu dizer que não possui. As marcas, os traços, presentes na
tradução podem ser chamadas de heterogeneidade mostrada, como
postulado por Authier-Revuz (1990). Ela se refere à representação,
no discurso, da constituição do sujeito, nesse caso, o sujeito tradutor.
A heterogeneidade mostrada se comporta como um fragmento, uma
ruptura na linearidade da cadeia do dizer que permite um vislumbre
do constitutivo (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 30-32).
Em geral, todo o processo de tomada de decisão pelo
qual passa o tradutor não aparece no resultado final, já que, na
tradução em si, o leitor tem acesso somente à decisão final do sujeito
tradutor. Podemos constatar vislumbres e levantar hipóteses sobre
a constituição desse sujeito, mas o que se tem acesso, marcado
no discurso, é a decisão tomada. Entretanto, nossos dados,
mostrados a seguir, apresentam uma janela maior para olharmos a
heterogeneidade constitutiva do tradutor, já que possuímos registro
de marcas do processo.

90 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
Os dados

Nosso corpus compreende um excerto do livro Os funerais


do coelho branco, texto de partida escrito em língua portuguesa, a
versão para a língua inglesa escolhida para esse excerto e as anotações
feitas durante o momento da tradução em um arquivo à parte, que
foi denominado pela tradutora como “arquivo de possibilidades”.
Durante o ano de 2017, no curso de bacharelado em Tradução
de uma universidade paranaense, a tradutora cursou a disciplina de
Estágio Curricular Supervisionado em Tradução I e, nessa disciplina,
verteu para a língua inglesa o livro mencionado. Juntamente com
o processo tradutório, foi construído o “arquivo de possibilidades”,
mostrando as reflexões, as “idas e vindas” da tradutora até chegar
à sua escolha final A título de informação, chamamos “versão”
uma tradução que parte da língua materna do tradutor para uma
língua estrangeira; entretanto, nesse artigo, essa diferença não foi
considerada essencial e usamos os dois termos sem discriminá-los.
Os funerais do coelho branco é uma produção independente
do autor Nenê Altro, com três publicações esgotadas (2005, 2009
e 2014); ela é toda escrita em versos e trata de uma compilação de
textos e trechos de textos do blog do autor, que incluem poemas,
reflexões e pedaços de letras de canções.
No livro escolhido, a personagem principal não tem nome; é
um homem alcoólatra, sem esperança, que fala sobre sua vida, sobre
amor, sobre expectativas e (des)ilusões de forma sarcástica, irônica
ou com humor negro.

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Proposta de análise

Nossa proposta de análise, de caráter qualitativo-


interpretativista, pelo percurso que apresentamos, baseia-se nos
conceitos de dialogismo, heterogeneidade constitutiva e tradução
pós-moderna. Partimos do excerto do texto em português, passamos
para a tradução e analisamos as possibilidades de versões marcadas
pela tradutora no momento de tradução do texto. Para tanto,
olhamos para a ordem das possibilidades consideradas e para os
diferentes escopos ponderados em cada opção, levantando hipóteses
sobre a alteridade do sujeito, sobre o que influencia suas escolhas.
O trecho escolhido para análise é o que se segue:
(01) Aqui se escreve um testamento.
Aqui se faz aqui se paga.
Aqui se nega um juramento.
Aqui se nasce aqui se mata.
(…)
(ALTRO, 2014, p. 13)

No trecho em português, podemos identificar alguns


elementos que poderiam apresentar um desafio para a tradução. Por
exemplo, a metrificação do trecho, a rima, a repetição de palavras, sua
constituição com sujeito indeterminado. Podemos identificar uma
estrofe estruturada em uma quadra com rima ABAB (testamento e
juramento; paga e mata), porém há rimas internas com “aqui se” que
se repetem tanto no começo dos quatro versos quanto no interior
do segundo e quarto versos, além do artigo indefinido “um” no
primeiro e terceiro versos. Além disso, encontramos uma estrutura
sintática complexa, que traz o pronome oblíquo “se”, atuando como
índice de indeterminação do sujeito na posição de próclise, já que

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o advérbio “aqui” o atrai para antes do verbo, que está sempre na
3ª pessoa do singular no tempo presente do indicativo (escreve, faz,
paga, nega, nasce, mata).
Quanto à construção de sentido, pensando no primeiro
verso, interpretamos o ato de escrever um testamento como uma
preparação para uma morte inevitável e uma tentativa de organizar
o que acontecerá depois. O segundo verso traz a expressão popular
da língua portuguesa “aqui se faz aqui se paga”, que se relaciona
com a ideia de vingança ou com a ideia de sofrer as consequências
de seus atos, ou seja, estamos diante de acontecimentos motivados
por ações primeiras. O eu lírico pode estar falando de si mesmo,
da própria personalidade, ou estar fazendo menção a um contexto
mais geral sobre a lei do retorno ou sobre a lei de Talião.
Já no terceiro verso, “aqui se nega um juramento”,
consideramos a noção de traição, quando há quebra de promessas
ou de confiança. Esse verso pode fazer alusão ao ato de voltar atrás
em sua palavra, prometer e não cumprir, jurar e dizer que não jurou.
Como mencionado, não podemos dizer se o eu lírico fala sobre si
mesmo – considerando-se a pessoa que nega o juramento –, sobre
outro indivíduo ou mesmo sobre uma ideia mais generalizada, já que
todas essas interpretações são possíveis. No último verso do trecho,
“aqui se nasce aqui se mata”, usa-se dois verbos, um referente à vida
e outro referente à morte. Porém, o eu lírico usa o verbo “matar”
quando o ciclo natural da vida seria nascer e morrer. Ele escolhe usar
um verbo mais agressivo, mais ativo, em que a ação do indivíduo
é mais clara.
Pensamos nessa estrofe, portanto, como um reflexo do
pessimismo dessa personagem, que pensa em matar e em morrer,
em traição e consequências, sem demonstrar esperança de melhoria.
Mesmo que mencione o verbo “nascer”, não o relaciona à alegria ou

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à esperança, não comemora um nascimento, mas somente indica
uma ação introdutória que, de forma inexorável, acabará em morte.
Com essa interpretação em mente, voltamos o olhar para a
versão do trecho para a língua inglesa, como se segue:
(02) Here one writes a testament.
Here one’s eye’s for an eye.
Here one denies a sentiment.
Here one kills and one dies.
(...)

Na tradução, observamos algumas especificidades relevantes.


A forma do trecho também é versificada, também é uma estrofe
estruturada em uma quadra e com rima ABAB (testament e
sentiment, eye e dies, apesar desse último par não ser uma rima
perfeita, já que o verbo “dies” precisa da desinência verbal “s” para
conjugação correta na 3ª pessoa do singular), e também possui rima
interna, demonstrada pelo ditongo /aɪ/ nas palavras “writes”, “eye”,
“denies” e “dies”. Percebemos o cuidado da tradução em incluir a
forma como uma preocupação do processo.
A atenção com a construção sintática também pode ser
observada no uso dos dois apóstrofos no segundo verso, um
demonstrando o caso genitivo (de posse) e o segundo se referindo
à abreviação do verbo “to be” na terceira pessoa do singular (is). A
repetição de palavras – “here one” – no começo dos quatro versos,
além do uso de “one” para marcar o sujeito indeterminado também
podem ser demonstrativos do cuidado com a forma do trecho. Outro
indicativo é a escolha das palavras “testament” e “sentiment” que
rimam, mas não seriam a escolha mais óbvia para “testamento” e
“juramento”, já que “will” é o termo mais usado para testamento e
“oath” ou “vow” são mais comuns para traduzir juramento.

94 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
Quanto à construção de sentidos do trecho em inglês,
observamos duas escolhas que poderiam direcionar a interpretação
do leitor para um caminho diferente da (nossa) interpretação do
trecho em português. O uso de “sentiment”, cuja tradução literal
poderia ser sentimento, pode indicar uma negação diferente do “jurar
e dizer que não jurou” que havíamos conjecturado previamente.
Negar um sentimento pode se referir a um indivíduo que sente e diz
não sentir, ou que se recusa a acreditar em determinado sentimento,
proveniente de si mesmo ou de outros. Ademais, se pensarmos na
noção de traição, que havíamos posto antes, negar um sentimento se
torna uma traição mais pessoal, mais profunda, já que “sentiment”
pode fazer alusão ao sentimento do eu lírico, que, ao ser negado,
pode se sentir ferido de forma mais pessoal. Essas são possibilidades
de construção de sentidos, o que não inviabiliza o trabalho realizado,
pois reafirmamos que defendemos a multiplicidade de leituras e
traduções, e não acreditamos na dicotomia do certo e errado na
interpretação.
A segunda escolha tradutória que escolhemos destacar é
a decisão de usar dois verbos de morte ao invés de um de vida e
outro de morte. A escolha final da tradução foi “here one kills and
one dies”, em que “kill” pode ser traduzido como o verbo matar e
“dies” como o verbo morrer. Apesar de o texto de partida trazer o
verbo “nascer”, ele não completa o ciclo com “morrer”, mas com
“matar”; em inglês, a tradução apresenta a marca da interpretação
da leitora-tradutora, que lê a personagem como pessimista, que não
aponta para a alegria do nascer, mas para a violência de matar, e
escolhe trazer o verbo “die” ao invés de “nascer”, o que direciona a
leitura para um caminho ainda mais sombrio do trecho.
Em geral, essa escolha final da tradutora seria tudo o que
teríamos acesso, e nossa análise basear-se-ia somente nos trechos
colocados até aqui. Porém, devido à natureza de nossos dados, temos

95 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
a possibilidade de olhar para o processo – ou uma parte maior do
processo – tradutório, através do “arquivo de possibilidades” criado
no momento da tradução. Consideramos esse arquivo um exemplo
de denegação, postulada por Authiez-Revuz (1990), que nos permite
um olhar para a negociação do sujeito com o Outro, um fragmento
de sua heterogeneidade constitutiva.
Para esse trecho, o arquivo de possibilidades traz as seguintes
anotações:
(03) What goes around comes around
What is born is killed

You reap what you sow


You begin you end

To get a taste of your own medicine


To get to live to get to die

Here one writes a will


Here one reaps the sown
Here one denies a vow
Here one gets lives and kills

Here is an eye for an eye


Here is one kills and dies

Here one writes a testament


Here one’s eye’s for an eye
Here one denies a sentiment
Here one kills and dies

Testament – sentiment
Bequest

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Todas as possibilidades listadas no arquivo trazem vislumbres
da heterogeneidade constitutiva do sujeito-tradutor, que, na tentativa
de circunscrever os sentidos, negocia com o Outro constitutivo
para tentar controlar seu discurso, no esforço de controlar a leitura
e interpretação do leitor. A ferida narcísica, as marcas de que esse
sujeito não é uno, mas descentrado, causam a busca pelo domínio
do sujeito, pela autonomia do seu discurso, o que não pode ser
alcançado.
O arquivo de possibilidades demonstra essa tentativa de
cercear o Outro constitutivo ao considerar diversas formas de
traduzir, no entre-lugar que se encontra o tradutor. A construção
do raciocínio da tradutora é demonstrada na ordem em que as
possibilidades aparecem. A tradução não começa pelo primeiro verso
da estrofe (“Aqui se escreve um testamento”), mas pela expressão
popular (Aqui se faz aqui se paga) no segundo verso. Observamos
a descontrução da estrofe ao unir os versos 2 e 4, que rimam, para
a partir deles, seguir para a tradução dos versos 1 e 3. Reconhece-se
o verso “Aqui se faz aqui se paga” como o mais importante, talvez
por seu estatuto de expressão conhecida na sociedade brasileira;
constrói-se toda a tradução a partir desse verso e sua rima.
A identificação da influência cultural na estrofe em português
faz com que o sujeito-tradutor busque diferentes expressões que
possam causar um efeito de sentido parecido à expressão em
português. Assim, dispomos das expressões “What goes around
comes around” (sugestão de tradução: o que vai, volta), “You reap
what you sow” (sugestão de tradução: você colhe o que semeia), “To
get a taste of your own medicine” (sugestão de tradução: provar do
seu próprio remédio) e, finalmente, “eye for an eye” (sugestão de
tradução: olho por olho). Começar pela expressão cultural pode
ser indicativo de um sujeito que se preocupa com tradução cultural

97 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
e procura uma alternativa para a expressão popular na cultura de
chegada ao invés de traduzir de forma literal; porém, esse mesmo
sujeito pode ser motivado pela ideia de equivalência que regia a
vertente prescritivista, como mencionado na introdução desse artigo,
visto que busca pela equivalência na cultura de chegada ao invés de
criar um verso novo e transformado.
Após as possibilidades de expressões que possuam efeitos
de sentidos parecidos com “aqui se faz aqui se paga”, podemos ver
a desconstrução da estrofe ao trazer o verso “aqui se nasce aqui se
mata” em seguida, com o objetivo de manter as rimas próximas. Para
a tradução desse verso, as opções foram: “What is born is killed”,
“You begin you end”, “To get to live to get to die”, “Here one gets
lives and kills”, “Here is one kills and dies” e “Here one kills and
dies”. A progressão do pensamento é relevante aqui, já que passa de
uma busca por literalidade para opções mais criativas. A primeira
opção usa o verbo nascer e o matar (to be born – kill) exatamente
como o verso em português, para passar então para um verbo de
começo e um de final (begin – end), o que se transforma nos verbos
viver e morrer (live – die), para só então haver a exclusão do verbo
com carga mais positiva, o que dá espaço para dois verbos de morte
aparecerem (kill – die).
Essa transição da tradução literal para uma tradução mais pós-
moderna pode ser marca do Outro do senso comum que constitui
a tradutora, baseado em concepções de tradução que permeiam
o mundo – por exemplo, que a tradução deve ser substituição
linguística e quanto mais literal melhor – em confronto com o
Outro da universidade, o Outro que passou por anos de estudo
formal, matriculado no último ano da faculdade de Letras, cursando
o bacharelado de tradução com uma perspectiva desconstrucionista
na qual há permissão de materializar sua leitura. São confrontos

98 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
constitutivos do sujeito dividido e talhado, proposto por Authier-
Revuz (1990).
A primeira estrofe completa que temos no arquivo de
possibilidades é: “Here one writes a will / Here one reaps the sown /
Here one denies a vow / Here one gets lives and kills.” Essa primeira
tentativa de montar a estrofe já apresenta algumas características que
serão mantidas na escolha final. Por exemplo, a repetição das palavras
“here one” no começo dos versos, que demonstra a preocupação
desse sujeito em manter uma equivalência formal com o verso em
português além da marcação do sujeito indeterminado, que, em
inglês, pode ser feito com a palavra “one”, para não precisar marcar
um sujeito como “he” ou “she”.
Entretanto, nessa primeira estrofe completa, também
observamos problemas gramaticais, além da rima. O verso “Here one
gets lives and kills” não se encaixa nas regras normativas propostas
para a língua inglesa, já que “gets” e “lives” não podem aparecer um
seguido do outro e ambos conjugados de acordo com a 3ª pessoa
do singular (com a desinência “s”). Seria preciso escolher um dos
verbos, ou adicionar o “to” entre eles, para que o segundo verbo fique
no indicativo (“gets to live”). Outro elemento que destacamos desse
trecho é a tentativa de rimar “vow” (juramento) com “sow” (semear),
que têm ortografias muito parecidas, mas pronúncias distintas
(vow: /vaʊ/ e sow: /səʊ/). Além disso, o verso “Here one reaps the
sown” pede que o verbo “sow” esteja no particípio, o que dificulta
até mesmo a semelhança ortográfica nos versos. Há ainda, com a
tentativa de rimar “vow” com “sown” e “will” e “kills”, a mudança
da estrutura da rima do trecho em português, que é ABAB, para
ABBA, mas tais opções se mostram mal-sucedidas e são descartadas
pela tradutora.

99 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
A preocupação com a rima se mostra bastante importante para
a tradutora, que pode estar sendo influenciada por suas concepções
de um texto escrito em versos, talvez perpassada por um Outro
com noções mais tradicionais do conceito de poesia. Na tradução
pós-moderna, busca-se descontruir a ideia de texto poético como
precioso, já que essa concepção inibe tradutores de sequer tentarem
traduzir esse tipo de texto. Porém, essa busca da tradutora pela rima
pode ser mais uma marca de sua heterogeneidade constitutiva, que,
mesmo com anos de estudos pós-modernos, ainda é influenciada
por noções mais tradicionais.
A próxima marca, “Here is an eye for an eye / Here is one
kills and dies”, traz uma busca maior por possibilidades semânticas,
mesmo que ainda cerceada pela necessidade de manter a rima.
Apresenta-se, pela primeira vez, a leitura mais pessimista do verso
determinado pelos dois verbos de morte. Além disso, é o primeiro
registro da lei de Talião, que será mantida na escolha final. Há a
tentativa de usar “here is” para marcar a indeterminação do sujeito,
mas essa opção é logo substituída por “here one” outra vez, no
próximo registro.
Os últimos registros dão a impressão de estarem fora de
ordem. Primeiro há a estrofe, muito parecida com a escolha final:
“Here one writes a testament / Here one’s eye’s for an eye / Here
one denies a sentiment / Here one kills and dies”. A única diferença
entre essa opção e a decisão final é a falta do segundo “one” no
último verso, que na escolha final fica “Here one kills and one dies”.
Somente depois da estrofe é que aparecem as palavras “Testament –
sentiment”, como que testando a rima, aparentemente especulando
se os efeitos de sentido da combinação são próximos o suficiente do
texto de partida; e, por último, “Bequest”, como uma descoberta
tardia de outra possibilidade para a palavra “testamento”. A presença

100 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
dessa palavra sozinha parece uma desistência de tentar criar outra
possibilidade, já que a rima com “testament” funcionou.
Nessa última estrofe, podemos ratificar o quão complexa
é a constituição heterogênea da alteridade do sujeito-tradutor.
Afinal, conseguimos levantar hipóteses sobre diversas preocupações
do sujeito entre-línguas, que dá atenção simultânea a maiores
possibilidades semânticas (na adição, por exemplo, das palavras
“testament” e “sentiment”, assim como os dois verbos que se
relacionam à morte), à gramática normativa e à forma estética de
um trecho escrito em versos.
Por meio da heterogeneidade mostrada, pudemos levantar
hipóteses sobre a heterogeneidade constitutiva do sujeito analisado.
As questões em confronto em sua alteridade envolvem a literalidade
nas primeiras opções e a interpretabilidade demonstrada nas
possibilidades mais próximas da escolha final. Essas observações
podem nos remeter tanto a um Outro constitutivo, baseado no
senso comum da busca por uma verdade essencial através de uma
hipotética unicidade da tradução, quanto a um sujeito circunscrito
por sua realidade social, já que está na faculdade de tradução e
estuda com escopo pós-moderno de descontrução e reconstrução
de sentidos. Também encontramos marcas de um sujeito que
valoriza estilo, forma gramatical, rima e estética, acima do caráter
mais usual ou popular de algumas escolhas, talvez atravessado por
um Outro que se baseia na ideia de literatura – principalmente em
se tratando do discurso poético – como portadora de uma forma
preciosa, intraduzível, posta em um pedestal. Entretanto, o Outro
pós-moderno, que acredita na tradução como a materialização de
uma leitura, similarmente se faz presente.

101 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
Considerações finais

A tomada de escolhas que revolve e envolve o processo
tradutório indica a busca do sujeito pelo controle de seu dizer,
através do processo de denegação em que negocia com o Outro
constitutivo. O domínio do seu discurso não é alcançado, já que
faz parte de um ciclo contínuo e heterogêneo de significações. A
busca pela perfeição utópica na tradução implicaria um sujeito
tradutor fora do fluxo contínuo e inacabável da língua, isento de
(re)significações e interpelações – uno, unívoco e inequívoco, o que
acreditamos não ser possível.
Neste artigo, não tivemos o objetivo de listar os Outros que
constituem o tradutor. Vale a pena ressaltar que, através do que
é mostrado no discurso, temos fragmentos que podem remeter
à heterogeneidade constitutiva (AUTHIER-REVUZ, 1990), e
partindo desses fragmentos, levantamos hipóteses sobre o que
pode estar em jogo nas relações de sentido construídas no processo
tradutório. Nosso objetivo foi explorar como a tradução como
processo inacabado pode apresentar marcas da heterogeneidade
constitutiva do sujeito tradutor e, para cumpri-lo, levantamos
indícios de confrontos entre o tradicional e o pós-moderno, o
senso comum e o acadêmico, mas não tivemos a pretensão de
esgotar as influências altamente complexas do sujeito em questão.
As possibilidades e escolhas analisadas aqui são resultado da
heterogeneidade que constitui o sujeito tradutor, que nos apontam
para processos de construção e desconstrução de sentidos tão
heterogêneos quanto o próprio ser do mundo.

102 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
REFERÊNCIAS

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do documentário “Lixo Extraordinário”. Maringá: UEM, 2013. 96
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104 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 83-104 – jul./dez. 2019
INFLUÊNCIA DAS POLÍTICAS NEOLIBERAIS
NA FORMULAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS E
HABILIDADES NA BASE NACIONAL COMUM
CURRICULAR – BNCC DO ENSINO MÉDIO

Cezar Bueno de Lima1


Ângela Maria de Sousa Lima2
Diego Oliveira de Lima3

RESUMO: Este artigo, utilizando-se de análise documental e pesquisa bibliográfica de


documentos da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) do
relatório nº 45 do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), pretende
discutir as implicações da aprendizagem baseada em competências e habilidades na
Base Nacional Comum Curricular. A aprendizagem na lógica do desenvolvimento
de competências e habilidades vem tornando-se hegemônica e desloca o conceito de
aprendizagem para o de treinamento e domínio de competências. Teóricos como Miguel
Arroyo e Jurjo Santomé nos provocam a refletir sobre a influência do neoliberalismo
sobre o modelo de aprendizagem em questão. O artigo elabora uma reflexão das políticas
internacionais e da lógica das competências e habilidades vinculando-as à emergência
do pensamento neoliberal com a intenção de provocar a análise crítica sobre esta forma
de ensinar e aprender nos currículos das escolas no Brasil.
Palavras-chave: Educação; Competências; Habilidades; Neoliberalismo.

ABSTRACT: This article, using documentary analysis and bibliographic research of


documents of the Organization of Economic Cooperation and Development (OECD)
of report N. 45 of the International Student Assessment Programme (PISA), intends
to discuss the implications of skills-based learning and Skills in the common national
Curriculum Base. Learning in the logic of skills and skills development has become a
hegemonic and shifts the concept of learning to training and mastery of competencies.
Theorists such as Miguel Arroyo and Jurjo Santomé provoke us to reflect on the influence
of neoliberalism on the learning model in question. The article draws up a reflection
and analysis of international politics and the logic of competences and skills linking

1
Doutor em Ciências Sociais. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos
e Políticas Públicas da PUCPR. Email: czarbueno@gmail.com
2
Doutora em Ciências Sociais. Professora titular do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Estadual de Londrina. Email: angellamaria@uel.br
3
Graduado em Filosofia, Pedagogia e mestrando em Direitos Humanos e Políticas Públicas
- PPGDH/PUCPR. Email: dolima@solmarista.org.br

105 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
them to the emergence of neoliberal thinking with the intention of provoking and to
broaden the critical analysis of this way of teaching and learning in the curricula of
schools in Brazil.
Key words: Education; Competencies; Skills; Neoliberalism.

Introdução

A educação e consequentemente a escola não podem ser


consideradas como organizações neutras e despolitizadas. No
contexto da homologação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC, 2018), que orientará a aprendizagem das escolas públicas
e privadas do país nos próximos anos, emerge a necessidade de
análise deste documento de caráter normativo em nível nacional,
discutindo seus conceitos e intencionalidades filosóficas, sociológicas
e pedagógicas.
A proposta deste artigo visa ampliar as discussões sobre
os conceitos de competências e habilidades e o modo como as
organizações internacionais tendem a influenciar e homogeneizar
as políticas educacionais. Para isso, utilizaremos de pesquisa
documental e bibliográfica, articulando trechos de documentos
oficiais da Organização de Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), do Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes (PISA) e do Banco Mundial, incluindo reflexões
de teóricos da educação como Arroyo (2013), Machado (2002),
Santomé (2013), Saviani (2016), Santos (1997), para relacionar os
conceitos de competências, habilidades e neoliberalismo.
A BNCC homologada em dezembro de 2018 fixa como meta
o desenvolvimento de competências e habilidades, respondendo
ao enfoque derivado de avaliações internacionais formuladas pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico

106 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
(OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de
Alunos (PISA).
Sob este aspecto, o artigo levanta as seguintes indagações:
qual a influência do neoliberalismo na educação? Quais são os
fundamentos da aprendizagem por competências e habilidades?
Como a política educacional orientada pela abordagem de
aprendizagem por competências e habilidades torna-se um
paradigma hegemônico?
Em razão das indagações elencadas, o texto organiza-
se em quatro partes: Educação em tempos de neoliberalismo;
Competências e habilidades sob a lógica neoliberal; Centralidade das
competências e habilidades na OCDE; Pisa: avaliação global como
caminho hegemônico da meritocracia; O trabalho como princípio
educativo, além de breves considerações finais.

Educação em tempos de neoliberalismo

O neoliberalismo vincula o campo da educação à lógica


da competitividade para o mercado internacional, estimulando a
abertura dos sistemas educativos e das universidades ao financiamento
empresarial com foco no desenvolvimento de pesquisas utilitárias,
com ênfase na produtividade econômica.

O neoliberalismo torna-se ideologia dominante numa época em que


os EUA detêm a hegemonia exclusiva no planeta. É uma ideologia
que procura responder à crise do estado nacional ocasionada de
interligação crescente das economias das nações industrializadas por
meio do comércio e das novas tecnologias. Enquanto o liberalismo
clássico, da época da burguesia nascente, propôs os direitos do
homem e do cidadão, entre os quais, o direito à educação, o
neoliberalismo enfatiza mais os direitos do consumidor do que

107 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
as liberdades públicas e democráticas e contesta a participação do
estado no amparo aos direitos sociais. Representa uma regressão
do campo social e político e corresponde a um mundo em que
o senso social e a solidariedade atravessam uma grande crise. É
uma ideologia neoconservadora social e politicamente. Por isso,
afina-se facilmente na sociedade administrada dos chamados países
avançados, em que o cidadão foi reduzido a mero consumidor, e
cresce no Brasil e em outros países da América Latina, vinculando-se
à cultura política predominantemente conservadora (MARRACH,
1996, p. 1).

O economicismo e o mercantilismo como filosofias


dominantes para a organização da sociedade tendem a ser vistos
como uma lógica aceitável que determina as questões relacionadas à
educação, hierarquizando as iniciativas educacionais ao determinar
o que será legítimo ou não nas relações de ensino-aprendizagem.
Os sistemas educativos que adotam o modelo neoliberal assumem
posturas mercadológicas com foco na empregabilidade e no mercado
financeiro, subordinando as relações do processo educativo às
necessidades do sistema econômico.
Salomé (2013), ao referir-se a certos conceitos imputados
como fundamentais no pensamento neoliberal, mostra como eles
são utilizados:

[A] estratégia-chave neste redirecionamento dos sistemas educativos


é o emprego de conceitos e expressões que em seguida são divulgados
e impostos com muito sucesso [...]. Esses conceitos, devidamente
ressignificados com base nos marcos teóricos com os quais estes
órgãos econômicos trabalham, são de uma importância notável
para redirigir e aplicar suas filosofias e seus modelos produtivistas
também nas instituições escolares (SANTOMÉ, 2013 p. 99).

108 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
As narrativas em questão têm como objetivo comum a
propagação da ideologia neoliberal que visa acelerar a criação
do mercado da educação com base na introdução de dinâmicas
competitivas em todos os níveis do sistema educativo, desde a
educação infantil até a universitária. Segundo a autora, a política de
competências e habilidades e a “competitividade entre instituições
escolares e docentes visa atrair os melhores estudantes às escolas
privadas e às escolas públicas conveniadas”, uma articulação em busca
de satisfazer as necessidades da crise econômica que vê na escola uma
oportunidade de mercado a fim de transformar a educação em um
negócio a serviço do capital (SANTOMÉ, 2013, p. 99).
A última versão da BNCC atua nesta direção. A proposição
dos conceitos de competências e habilidades desloca a aprendizagem
para o desenvolvimento de competências.

[...] as condições pedagógicas devem estar orientadas para o


desenvolvimento de competências. Por meio da indicação clara
de que os alunos devem “saber” (considerando a constituição dos
conhecimentos, habilidades atitudes e valores) e, sobretudo, do
que devem “saber fazer” (considerando as mobilizações desses
conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver
demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da
cidadania e do mundo do trabalho), a explicitação das competências
oferece referências para o fortalecimento das ações que assegurem
as aprendizagens essenciais definidas na BNCC (BRASIL, BNCC,
2018, p. 13).

Esta perspectiva de aprendizagem confere ao conhecimento


educativo uma feição mercantilista, cuja atribuição é responder às
necessidades impostas pela lógica capitalista no âmbito da OCDE.
Nesse contexto de submissão da aprendizagem aos pressupostos da
economia neoliberal,

109 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Os sistemas educativos a serviço de governos que apostam em
modelos econômicos neoliberais também são contemplados de
modo simplista como o conjunto de possibilidades oferecidas a cada
pessoa para que ela se capacite e tenha melhor empregabilidade no
mercado de trabalho; ou seja, uma educação para poder participar
do mercado de trabalho e dele obter os maiores benefícios
econômicos possíveis. As necessidades empresariais passam a
ser o referente que condiciona tanto a duração da escolarização
obrigatória, como, principalmente o currículo obrigatório a ser
cursado as especialidades que são oferecidas e, por sua vez, o
controle para decidir os níveis de qualidade e excelência dos sistemas
educativos (SANTOMÉ, 2013, p. 95).

Em consequência, as perspectivas do mundo do trabalho e de


educação são reduzidas à empregabilidade. O papel da educação,
especialmente na etapa do Ensino Médio, de acordo com as
necessidades do mercado financeiro, serve para formar e moldar os
profissionais que respondam às necessidades neoliberais imediatas.
A BNCC, enquanto documento oficial de caráter normativo,
veiculada rotineiramente pela mídia, passa a orientar os currículos
escolares, as políticas nacionais de formação de professores e
as políticas nacionais de produção de materiais e tecnologias
educacionais. A partir de sua homologação, impõem-se mudanças
significativas na educação brasileira. Sob este ponto de vista, é
importante desvelar a lógica das competências e habilidades, sob
imposição de um paradigma hegemônico imposto e difundido
pelo programa de avaliação internacional dos estudantes, o Pisa,
que emergiu da OCDE.

110 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Competências e habilidades na lógica neoliberal de reprodução
do capital

Na análise da lógica da aprendizagem pautada no
desenvolvimento de competências e habilidades, retomaremos
alguns aspectos históricos importantes.
Segundo Machado (2002), a crise do modelo produtivo
vigente até os anos de 1980, hegemonizado pelo paradigma fordista-
taylorista, supõe pensar uma nova lógica de funcionamento nas
formas de produção e reprodução do capital. Até este período, o
modelo vigente pautava-se por meio da distribuição do trabalho em
postos fixos e estruturados de forma ampla na produção. O primado
da qualificação profissional para o exercício do trabalho em postos
fixos, tendo como princípio educativo a formação de profissionais
com profundidade e especialização em determinada área, começa
a ser substituído pela necessidade de trabalhadores autônomos,
com mais criatividade, com espírito de liderança, multifuncionais,
empreendedores e capacidade para resolver problemas, aptos para
dar respostas rápidas e encontrar caminhos e soluções diante dos
novos desafios, ou seja, um trabalhador polivalente, flexível e híbrido
(MACHADO, 2002).
Os postos fixos de trabalhos e a formação de profissionais
destinados a executar as mesmas profissões ao longo da vida, cuja
centralidade do papel da escola era prepará-los e levá-los a escolher
uma profissão duradoura, foram progressivamente questionados em
razão da exigência de reestruturação produtiva de recorte neoliberal.
Esse novo contexto econômico-tecnológico tende a exigir políticas
favoráveis à emergência de formas de produção, organização e de
formação flexíveis do trabalho.

111 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Nesta perspectiva, formar e educar desenvolvendo diversas
competências e habilidades vêm responder às necessidades
empresariais de funcionários que possam colaborar com as empresas
no enfrentamento de múltiplos desafios. Em outras palavras, passa-
se a demandar trabalhadores dotados de diversas competências e
habilidades a fim de se encaixarem no perfil das empresas, aceitarem
flexibilidades de funções, e por que não flexibilidades até mesmo
nos direitos trabalhistas diante de situações de crise financeira
(RAMOS, 2001).
A lógica das competências e habilidades foi sendo constituída
como um saber-fazer prático, não estático, porém, híbrido e passivo
ao mesmo tempo e, ainda, favorável à formação e profissionalização
rápidas de um trabalhador flexível. No âmbito da OCDE e do
PISA, tais pressupostos converteram-se em narrativa hegemônica.
No campo da educação, as normativas internacionais respondem ao
primado da necessidade localizada do capital o qual, por meio das
grandes corporações econômico-financeiras, opera uma forma de
globalismo hegemônico. Para Santos (1997, p.14), compreendida
como:

[...] o processo pela qual determinada condição ou entidade local


estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a
capacidade de designar como local outra condição social ou entidade
rival. [...]. As implicações mais importantes desta definição são
as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condições do sistema
mundo ocidental não existe globalização é sempre a globalização
bem-sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, não
existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma
raiz local, uma imersão cultural especifica.

No tocante à educação, escreve Frigotto, a lógica das


competências e habilidades converte-se em ideologia globalizada

112 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
a serviço do capital, com o intuito de incutir na sociedade e nos
trabalhadores uma nova forma de pensar acerca da inclusão no
mercado formal de empregos. Nesse contexto, a teoria do capital
humano busca conferir ao conhecimento (desenvolvimento
de competências) a garantia para a inserção no mercado de
trabalho a qual resulta, muitas vezes, em falsa promessa de
empregabilidade. Parece que a intencionalidade, neste caso, é
imputar a responsabilidade pelo desemprego, pela não entrada nas
universidades públicas como responsabilidade dos próprios sujeitos
que passam a ser vistos como não competentes, não hábeis e não
empregáveis (FRIGOTTO, 1995).
A aquisição de determinadas competências e destrezas
apreendidas como habilidades pressupõe um tipo de formação que
tende a fortalecer a competitividade entre estudantes e trabalhadores,
uma vez que o desempenho individual é identificado como mérito
na grande vitrine neoliberal que expressa a narrativa da competição
e da concorrência em escala planetária. Para Arroyo, “supõe da
nossa parte desmistificar as crenças na relação direta entre o
domínio de competências escolares e a empregabilidade”. Segundo
o autor, olhando para a aprendizagem na escola como movimento
de resistência e crítica “devem-se trazer os mundos do trabalho e
a lógica das competências e habilidades para serem discutidas na
centralidade da ação dos mestres e alunos. Organizar projetos de
estudos e/ou temas interdisciplinares sobre a história do trabalho”,
sobre as crises do trabalho, sobretudo dos paradigmas fordistas,
tayloristas (ARROYO, 2013, p.105).
Nessa direção, é importante aprofundar as discussões
em torno das concepções políticas que pautam as noções de
competências e habilidades da BNCC, cujo efeito é a precarização
do trabalho e da escolarização, especialmente para as juventudes da
classe trabalhadora.

113 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Influências da OCDE na construção das noções de competências
e habilidades da BNCC

No plano internacional, a lógica das competências e


habilidades ganha força a partir da década de 1990, sendo difundida
como paradigma hegemônico por organismos internacionais como
a OCDE e o Banco Mundial. Todos os esforços financeiros foram
canalizados no intuito de provocar aceitabilidade social deste
paradigma. Porém, a aceitação global desse paradigma requer
a produção de discursos e slogans que reverberam constructos
ideológicos com o intuito de conferir legitimidade às certas
concepções hegemônicas de verdade e de mundo burguesas (MARX,
2005).
O Banco Mundial, como instituição financeira internacional
responsável em conceder empréstimos aos países em desenvolvimento
como Brasil, em 1996, divulgou um documento intitulado
Prioridades e estratégias para a educação, salientando que a educação
básica no país deveria pautar suas ações na direção de proporcionar:

[...] conhecimentos, habilidades e atitudes para funcionar


eficazmente na sociedade. Competências básicas em áreas gerais, tais
como a expressão oral, conhecimentos de informática, habilidades
de comunicação e resolução de problemas, podem ser aplicados em
uma ampla gama de ambientes de trabalho e podem permitir que
as pessoas adquiram habilidades e conhecimentos específicos para o
emprego no local de trabalho (BANCO MUNDIAL, 1996, p.107).

De acordo com estas proposições e determinações do Banco


Mundial, os saberes emanados da escola serviriam como instrução
e treinamento dos estudantes centradas no conhecimento e no
treinamento prático, no saber-fazer utilitarista, dissociado da cultura
geral e coletiva.

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Outro documento determinante deste período e que funciona
como paradigma hegemônico da proposta de ensino-aprendizagem
focada nas competências é o Relatório da Comissão Internacional
sobre Educação para o Séc. XXI da Unesco, coordenado por Jacques
Delors. O relatório em questão tornou-se um documento referencial
para os países comprometidos com o desenvolvimento da economia
global aliado ao processo educacional. A centralidade lógica do
discurso das competências e habilidades apresenta quatro pilares da
educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver
juntos e aprender a ser. Estes pilares deveriam orientar as reformas
curriculares nos diferentes sistemas educativos.

Os empregadores substituem, cada vez mais, a exigência de uma


qualificação, a seu ver ainda muito ligada à ideia de competência
material, pela exigência de uma competência que se apresenta como
uma espécie de “coquetel individual”, [...] torna-se evidente que
as qualidades mais subjetivas, inatas ou adquiridas, muitas vezes
denominadas “saber ser” pelos dirigentes empresariais, combinam-se
ao saber e ao saber-fazer para compor a competência exigida. Isso
demonstra a ligação que a educação deve manter entre os diversos
aspectos da aprendizagem (DELORS, 2012, p.77).

Assim, os mecanismos internacionais preconizam, sobretudo,


a partir dos anos 1990, um determinado padrão de escola pública,
pontuando os seguintes objetivos: a instrução da educação e dos
currículos escolares em direção às demandas e necessidades do
mercado; a educação como um meio de subsistência e força produtiva
submetida à lógica capitalista; a redução da ação educativa como
treino, disseminando o paradigma individualista e competitivo; a
atuação do professor como treinador de competências e habilidades.
Arroyo argumenta que a política das competências provoca
sérias implicações na autonomia da atuação docente e na forma
como os profissionais da educação passam a ser vistos:

115 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Se como docentes nos prestamos a reduzir os educandos à
mercadoria, a empregáveis, reduzindo os conhecimentos a
habilidades para o emprego, estaremos reduzindo nosso trabalho e a
própria docência à mercadoria. Seremos tratados como mercadoria
nas políticas de salários, de carreira. Estaremos reproduzindo uma
das concepções que legitimam a desvalorização de nosso trabalho
docente. Resulta politicamente inconsequente lutar pela valorização
dos profissionais do conhecimento se submetemos os alunos à
mercadoria e reduzimos nossos ensinamentos a treinar empregáveis.
A sociedade e as políticas nos tratam com o mesmo padrão com
que tratam e tratamos os educandos. Se os mercantilizamos
seremos mercantilizados nos conhecimentos que lecionamos. Nossa
docência transforma-se em treinamento (ARROYO, 2013, p. 107).

Dentro da lógica da ação docente, limitada ao treinamento


de competências e habilidades, na concepção de que os estudantes
são mercadorias, impera o individualismo, intencionado a formar
profissionais competitivos. Entre os docentes é possível que esse
processo contribua para romper as relações coletivas e sociais no
âmbito do trabalho, favorecendo comportamentos e ações que levem
os professores a vislumbrar e identificar seus pares inseridos em um
mero contexto competitivo e avaliativo de habilidades docentes.
Observa-se, ainda, um deslocamento da aprendizagem
dos conhecimentos produzidos historicamente em direção a um
movimento que os ignora ou os subestima, secundarizando o direito
ao pensar, uma vez que obriga o docente a ensinar habilidades
úteis e pragmáticas para atender prioritariamente as demandas do
mercado. Neste contexto, abre-se a possibilidade de processo de
redefinição das identidades profissionais docentes, que tendem a
ser desvinculadas em relação à garantia do direito ao conhecimento
processual e histórico comprometido com a formação para a
cidadania (ARROYO, 2013).

116 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Em muitas situações, as premissas com foco na educação,
enunciadas pela OCDE, dizem respeito à política de competências
e habilidades centradas nas necessidades das grandes empresas. O
documento relativo à parceria escolas e empresas é ilustrativo. O
documento em questão trata de uma nova parceria promovida pela
OCDE (1992), propalado em uma Conferência realizada entre os
chamados Países Baixos, expressando o seguinte teor:

[...] a multiplicação das relações entre escolas e as empresas deve-se


à definição de objetivos comuns para ambos os parceiros. Como a
indústria abandona as estruturas formais da produção em massa,
ela precisa de trabalhadores que tenham uma grande flexibilidade,
que sejam capazes de resolver problemas e tomar iniciativas.
Muitos educadores têm as mesmas inspirações para seus alunos
e descobriram que as empresas podem ajudá-los a desenvolver
projetos educacionais interessantes (OCDE, 1992, p.2).

Por meio da responsabilização da escola no atendimento às


demandas laborais da indústria, a OCDE institucionaliza e confere
materialidade aos fundamentos da política das competências
e habilidades, determinando o caminho que as instituições
educacionais devem trilhar na formação dos estudantes. Sob este
ponto de vista, a sobreposição dos interesses das grandes empresas no
campo escolar demanda a necessidade da produção de conteúdos e
de estratégias de aprendizagem filiarem-se à hegemonia do paradigma
neoliberal.
Segundo Laval, os processos de formação escolar foram
reduzidos à mera qualidade de instrução e treino dos estudantes para
que estes atendam às necessidades das empresas e à sua capacitação
em competências genéricas para que tenham habilidades em um
auto grau de aplicabilidade em diferentes contextos e trabalhos.
“Neste sentido, a escola é intimada a adaptar seus alunos aos

117 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
comportamentos profissionais que lhes são reclamados mais tarde”
(LAVAL, 2003, p. 60).
No âmbito da OCDE, o marco definidor para implantar a
política desejada de forma hegemônica deu-se em 1997, quando
a organização propõe, por meio do projeto Definição e Seleção de
Competências-Chave (DeSeCo), redirecionar seus fundamentos e
difundir novos marcos na lógica das competências. Esta iniciativa
foi determinante para a implementação e definição dos critérios
de elaboração das provas do PISA para avaliar e comparar diversos
países. O argumento utilizado foi a necessidade de uma definição
conceitual que pudesse orientar os processos de medição dos sistemas
de ensino destes países, proporcionando “um marco que pode guiar
uma extensão, a longo prazo, de avaliações de novos domínios de
competências” (OCDE, 2005b, p.2).
De acordo com a definição postulada pelo documento
“competência é mais do que conhecimento e destreza”, pois
“envolve a habilidade de enfrentar demandas complexas,
apoiando e mobilizando recursos psicossociais em um contexto
particular” (OCDE, 2005b, p.2). Este discurso dá a entender que
a aprendizagem precisa desenvolver a formação de trabalhadores
que aceitam sua autorresponsabilização no funcionamento de uma
engrenagem desumanizada, associada a valores individualistas. É
importante ressaltar a relação entre o teor político e as técnicas
de aprendizagem com foco nas competências, com o discurso de
reforço à meritocracia.

118 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
PISA: avaliação global como caminho hegemônico da
meritocracia

A lógica das competências e habilidades se impôs ou se
materializou na forma de avaliação internacional em larga escala,
apresentada aos países dentro do Programa Internacional de
Avaliação de Alunos (PISA). Este Programa, subordinado à OCDE,
aplica a avaliação externa em intervalos de três anos, com provas
para estudantes de 15 anos, avaliando também professores, diretores
e pais/responsáveis. Vale ressaltar que, como a aplicação da prova
é por amostragem, seus resultados revelam uma parte real e não o
todo do diagnóstico da aprendizagem do país.
Os resultados são divulgados em boletins trienais publicados
pela OCDE, chamados Pisa em Foco4. O propósito é aferir, em
caráter comparativo internacional, o desempenho dos estudantes
e dos sistemas de educação dos países que aplicam as provas. Os
resultados apresentados nos boletins têm por finalidade revelar os
indicadores de aprendizagem e desempenho dos estudantes em três
áreas de conhecimento que, de acordo com a definição da OCDE,
adquirem centralidade no processo educativo, a saber: Leitura e
escrita, Matemática e Ciências.
O Programa de Avaliação gera Relatórios e os envia no
formato de recomendações aos países, com o intuito de contribuir
com a qualificação dos sistemas de ensino. A lógica das competências
e habilidades, que nos parece mais uma política intencional de
formação para o mercado de trabalho, como descreve a própria
OCDE, mereceu destaque no Relatório de 2014:

4
No Brasil, os boletins são traduzidos e divulgados pelo Inep. Em Língua Portuguesa, apenas
os boletins 01 ao 38 foram traduzidos, os demais encontram-se no site da OCDE nas versões
em Língua Inglesa e Francesa, para acessar os boletins e os demais documentos da OCDE
em Língua Portuguesa: http://portal.inep.gov.br/pisa-em-foco Acesso em 15/08/2018.

119 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Esses resultados mostram a importância de proporcionar aos alunos
a oportunidade de atingir um alto nível de competência desde cedo
e garantir que eles mantenham esse nível à medida que progridem
ao longo da vida. A aquisição de habilidades é em si um desafio,
mas o uso de habilidades é outra. Habilidades não utilizadas são
habilidades perdidas. Os sistemas de ensino que oferecem um alto
nível de competência aos seus alunos devem, portanto, garantir
que essas habilidades sejam usadas após a conclusão da escolaridade
obrigatória, a fim de obter melhores benefícios sociais e profissionais
quando os alunos deixam o sistema (OCDE/PISA em Foco, 2014,
nº.45, p.3 – tradução nossa do francês).

O objetivo de orientar os sistemas educacionais, aliados à


lógica das competências e habilidades, permite-nos afirmar que
há manifesta intenção de viabilizar condições mais favoráveis
à reprodução e à ampliação do modo de produção capitalista
flexível e informacional. A aceitação desta lógica, conforme as
determinações impressas na escola do PISA/OCDE, contribui
para difundir modelos e métodos de ideologia avaliativa em escala
global. O reconhecimento e a responsabilização de cada país pelos
seus resultados pressupõem o compromisso político de formular
uma nova diretriz para a Educação Básica, subordinada à lógica das
competências e habilidades. Este é o caso da BNCC, especialmente
o documento formulado no final do governo Temer, destinado a
difundir uma base comum para o Ensino Médio.
Sob este ponto de vista, o PISA converte-se em mecanismo
político-ideológico de legitimação de novos arranjos produtivos,
caracterizados pela precarização das relações de trabalho. Em termos
educativos, o novo modelo de educação expresso na BNCC do
Ensino Médio, atrelado aos princípios de desregulamentação das
relações de trabalho, já presentes na Lei nº 13.415/2017, assim
como na Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) e na Lei da

120 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Terceirização (nº 13.429/2017), desconsidera princípios educativos
democráticos e inclusivos voltados à emancipação dos sujeitos e
iniciativas de formação crítica, limitando-se a responsabilizar escolas,
professores e estudantes a desenvolverem competências e habilidades
restritas ao mercado de trabalho, ou seja, um modelo meritocrático
de orientação curricular para determinar escolas meritocráticas.

O desenvolvimento das competências e habilidades como um


processo político de escolarização

Teóricos da educação como Miguel Arroyo (2013) e Jurjo
Santomé (2013) criticam a lógica das competências e habilidades,
apontando suas principais lacunas e implicações para os sistemas
educacionais. Os desafios de alfabetização e do letramento no
processo de ensino aprendizagem fazem emergir, para além daqueles
princípios inscritos e avaliados no PISA, estudos, pesquisas e
ações pedagógicas que disponibilizem às infâncias e juventudes
conhecimentos que vão além do ensino limitado a ressaltar aspetos
técnicos da linguagem (STREET, 2014).
Como evidenciado, o desenvolvimento de competências e
habilidades não é um processo neutro de escolarização e, tampouco,
algo desvinculado de um contexto social, mas cumpre uma função
política dentro dos sistemas de ensino. Deste modo, esta função
destoa de uma concepção de escola como um espaço contextualizado
e formador de consciências plurais, sobretudo, no que se refere a
uma aprendizagem contextualizada e que busca trabalhar conceitos e
ferramentas metodológicas questionadoras das desigualdades sociais
e comprometidas com o exercício da cidadania. Nesta direção, para
Santomé (2007):

121 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Obviamente dentre suas grandes metas, a educação tem de
contemplar a melhoria da produtividade e o crescimento econômico
do país, mas sem que tais objetivos obriguem a relegar a um segundo
plano a contribuição para um ótimo desenvolvimento integral da
pessoa, o avanço da solidariedade, de uma integração social cada
vez maior e de um maior compromisso com a sustentabilidade do
planeta; conseqüentemente, um projeto educativo a serviço de
uma sociedade democrática que deve ter como marco de referência
a vigilância aos direitos humanos. É um erro enorme e gerador de
injustiças sociais muito significativas transformar a educação em
uma mercadoria (SANTOMÉ apud TORRES, 2007, p.97).

O sistema econômico neoliberal tem exigido pessoas um tanto


apátridas, ou seja, seres humanos formados para se preocuparem
exclusivamente com seus interesses individuais, uma vez que já não
se compartilham outros valores e diagnósticos diferentes e outras
perspectivas não hegemônicas dentro da escola. Com isso, perde-se
a noção do bem comum, a esperança de ver, interpretar e resolver os
problemas de outra maneira, fora do paradigma neoliberal calcado
no individualismo, na competição (SANTOMÉ, 2013).
Segundo Arroyo (2013), quando o processo de ensino
aprendizagem é orientado pelo desenvolvimento ou treino de
competências e habilidades, a escola inclina-se a violar os Direitos
Humanos, uma vez que nega o direito à aprendizagem plural e
contextualizada. Para o autor:

[...] a fragilidade do cientificismo progressista e futurista que


predomina nos currículos e a superioridade das noções elementares
que recebem [...] mostram que seu direito ao conhecimento
vai muito além do domínio de habilidades de letramento e
numeramento (ARROYO, 2013, p. 254).

122 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
O sistema escolar, quando organizado apenas para responder
a determinadas necessidades impostas, desumaniza os “sujeitos da
educação” que passam a incorporar:

[...] de maneira seletiva os fatos, memórias, a formação social,


política e econômica apenas dentro de uma perspectiva hegemônica
dominante que possa responder às necessidades da política de
competências e habilidades, ocultando memórias e conhecimentos
tidos como menos importantes, negativos e ou não legítimos, como
os conhecimentos das minorias sociais” (ARROYO, 2013, p. 271).

O direito ao conhecimento não pode ser reduzido a uma visão


pragmática da educação e do aprender limitada a disponibilizar um
rol de competências e habilidades, capacidades técnicas aplicadas
dentro das empresas, universidades e/ou situações sociais. O direito
ao conhecimento, escreve o autor, implica partir das indagações mais
desestabilizadoras do viver com as crianças e adolescentes que já se
defrontam e explicitam seus significados” (ARROYO 2013, p.123).
Para tanto, é necessário ir além do cientificismo neoliberal para
conhecer e reconhecer o real vivido, sua pluralidade de experiências e
as formas de viver em sociedade. A preocupação central do percurso
escolar é abrir-se às múltiplas experiências, que vão além das noções
de habilidades e letramento:

A criança que chega à escola dominará habilidades de letramento,


noções elementares de matemática e de ciências, o que é um direito,
porém ignorará os significados de suas formas de viver, de morar,
de ter ou não alimentação, proteção, de experimentar espaços e
relacionamentos humanos ou inumanos (ARROYO, 2013, p. 123).

Aqui reside uma das críticas contundentes dirigidas à


última versão da BNCC do Ensino Médio de 2018. Orientada

123 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
pelo desenvolvimento de competências, determinará a formação
dos sujeitos no país. Porém, se faz necessária a ampliação do
conceito de aprendizagem para além do desenvolvimento de
competências. Do contrário, as desigualdades sociais tendem ao
acirramento e os sujeitos da aprendizagem, sobretudo, entre as
classes economicamente menos favorecidas, poderão ser estimulados
à passividade no sentido de se culpabilizarem no contexto de uma
lógica meritocrática altamente desigual.
Diante de uma conjuntura política, social e econômica
marcada pelo ativismo conservador e a hegemonia econômica
neoliberal, percebe-se no campo do conhecimento o pragmatismo
do fazer mecânico, em detrimento ao direito de pensar. Assim,
a constelação dos poderes políticos hegemônicos, que impõe
vereditos e práticas educacionais limitadas ao ensino de habilidades
úteis, pragmáticas, híbridas e flexíveis, para atender às demandas
do mercado, interfere e redefine nossas identidades profissionais.
Quando o conhecimento secularizado (saber pensar e saber fazer)
é desvalorizado, corremos o risco de, ao invés de potencializarmos
nossa liberdade e emancipação pelo conhecimento, recairmos à
condição de escravos das demandas do mercado. No tocante à
realidade das classes, o trabalhador que a escola formará, “quanto
menos ele souber e mais eficiente for, mais controlável e mais
desvalorizado será” (ARROYO, 2013, p. 108-109).
Nessa perspectiva, projetos pedagógicos focados na política
de competências deixam em aberto, o que nos parece intencional, a
seleção de conteúdos que respondam às necessidades do mercado e
das classes mais favorecidas economicamente. Saviani, autor crítico
do esvaziamento dos conteúdos escolares e ao abandono da cultura
letrada, afirma que não há neutralidade na educação, logo, se faz
necessário um sistema público de ensino que assegure mais que o

124 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
desenvolvimento de habilidades, a socialização do saber sistematizado
e atrelado às práticas sociais. Para o autor, o conhecimento enquanto
processo humano emancipatório está condicionado à prática social
(SAVIANI, 2008).
O autor argumenta que o trabalho educativo “é o ato de
produzir, direta e indiretamente, em cada indivíduo singular,
a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto de homens” (SAVIANI, 2013, p.13), algo muito além de
um treinamento técnico subordinado à perspectiva meritocrática.
Para Saviani:

[...] o homem não se faz homem naturalmente; ele não nasce


sabendo ser homem, vale dizer, ele não nasce sabendo sentir, pensar,
avaliar e agir. Para saber pensar e sentir, para saber querer, agir ou
avaliar, é preciso aprender, o que implica o trabalho educativo
(SAVIANI, 2016, p. 63).

A escola representa uma instituição não naturalizada do


processo de formação humana e, ao mesmo tempo, não se reduz
à lógica de treinamento, como almeja a perspectiva neoliberal.
Enquanto equipamento humanizador dos estudantes o papel da
escola é resgatar saberes produzidos historicamente, considerando
a dimensão integral destes sujeitos sociais e políticos.
Para Saviani, a educação deveria ser avaliada como algo além
da medição de competências, incorporando valores e critérios de
medição do impacto social dessa educação:

Na consideração dos saberes envolvidos na educação cumpre levar


em conta que eles implicam igualmente educadores e educandos
os quais se põem numa relação prática determinada socialmente
como momento da prática social global tendo nesta, portanto, o
seu ponto de partida e seu ponto de chegada. Como tal, a prática

125 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
educativa assume o caráter de mediação no seio da prática social não
se justificando, pois, por si mesma, mas pelos efeitos que produz
no âmbito da prática social global por ela mediada. Sua eficácia
é aferida, portanto, pelas mudanças qualitativas que provoca na
prática social. Os agentes educativos são, então, antes como depois,
mas também durante o ato educativo, agentes sociais cuja qualidade
se modifica por efeito do trabalho pedagógico (SAVIANI, 2016,
p. 69).

A educação, voltada a produzir impacto social e transformação


dos sujeitos educativos, exige projetos político-pedagógicos que
superem a pedagogia da destreza e os princípios educativos limitados
a adaptar e a responder às necessidades técnicas do mercado
de trabalho capitalista. Por fim, dentre as metas da educação,
não podemos desconsiderar o universo do trabalho, ou negá-lo.
Entretanto: como não promover um saber utilitarista?

Atualidade do trabalho como princípio educativo

A educação como princípio educativo discutida por Gramsci


e, posteriormente retomada por Saviani, parece-nos um caminho
adequado, considerando que

O trabalho é um princípio educativo na medida em que determina,


pelo grau de desenvolvimento social atingido historicamente, o
modo de ser da educação em seu conjunto. Assim entendido, aos
modos de produção correspondem modos distintos de educar
com uma correspondente forma dominante de educação. Em um
segundo sentido, o trabalho é princípio educativo na medida em
que coloca exigências específicas que o processo educativo deve
preencher em vista da participação direta dos membros da sociedade
no trabalho socialmente produtivo. Finalmente o trabalho é
princípio educativo, num terceiro sentido, à medida que determina

126 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
a educação como modalidade específica e diferenciada de trabalho:
o trabalho pedagógico (SAVIANI, 2016, p. 76).

Para Saviani (2016), o nível de desenvolvimento atingido
pela sociedade contemporânea coloca a exigência de um repertório
mínimo de conhecimentos e destrezas, sem os quais os cidadãos
não poderiam participar ativamente da vida em sociedade. Neste
sentido, o desenvolvimento de competências e habilidades estariam
para além do desenvolvimento tecnicista e seletivo subordinado ao
fundamento do neoliberalismo. Poderia ser um caminho possível à
promoção de uma educação que discuta o modo como a sociedade
atual ainda é referência para a organização de sistemas escolares
alinhados ao ideal do trabalho como princípio educativo em uma
perspectiva integral da formação humana (SAVIANI, 2016).
Nesta lógica de Saviani (2016), a política de ensino-
aprendizagem estaria centrada no princípio do trabalho, incluindo
as linguagens escritas e a Matemática já incorporadas na vida da
sociedade atual; as ciências da natureza, cujos elementos básicos
são primordiais para a preservação do planeta e para uma ação
responsável do homem no mundo, buscando a preservação
da própria espécie humana de modo a permitir ao educando
compreender as transformações operadas por suas ações sobre o meio
ambiente, impondo limites à realização de atividades que extraiam
as riquezas do planeta de forma desenfreada.
Embora a última versão da BNCC do Ensino Médio esteja
estruturada a partir de conceitos de competências e habilidades,
estes devem ser ressignificados em vias de incorporar as exigências da
vida em sociedade como propostos por Gramsci, e não do mercado
de trabalho:

127 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o
princípio educativo imanente à escola elementar, já que a ordem
social e estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada
na ordem natural pelo trabalho. O conceito do equilíbrio entre
ordem social e ordem natural sobre o fundamento do trabalho, da
atividade teórico-prática do homem, cria os primeiros elementos
de uma intuição do mundo liberta de toda magia ou bruxaria, e
fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma
concepção histórico-dialética do mundo (SAVIANI, 2016, p. 78).

Aprender a ler, escrever, contar e dominar as ferramentas


das ciências e das tecnologias modernas, bem como das Ciências
Naturais e das Ciências Sociais constituem um pré-requisito para
compreender o mundo em que se vive e incorporar a própria ação do
trabalho no sentido ontológico. Essa leitura permite aos estudantes
formularem um posicionamento crítico acerca das formações sociais
fundamentadas no mundo do trabalho. Em relação aos estudantes
inseridos na Educação Básica, por exemplo, escreve Saviani:

[...] já não basta dominar os elementos básicos e gerais do


conhecimento que resultam e ao mesmo tempo contribuem para
o processo de trabalho na sociedade. Trata-se, agora, de explicitar
como o conhecimento (objeto específico do processo de ensino),
isto é, como a ciência, potência espiritual, se converte em potência
material no processo de produção. Tal explicitação deve envolver
o domínio não apenas teórico, mas também prático sobre o modo
como o saber se articula com o processo produtivo (SAVIANI,
2016, p. 79).

De acordo com as explanações do autor, cabe à escola articular


o conhecimento teórico produzido historicamente com a prática
social, potencializando novas formas de o homem atuar sobre o
mundo. Entender como a ciência é aplicada no processo produtivo
e conceber como as leis da natureza da Física ou da Química,

128 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
por exemplo, podem contribuir com novas formas de produção
socialmente mais justas e ambientalmente sustentáveis, representa
uma das materializações possíveis quando se concebe o trabalho
como princípio educativo no Ensino Médio.
Para Saviani (2016, p. 80),

“não se trata de reproduzir na escola a especialização que ocorre


no processo produtivo” – e, tampouco, limitar-se ao atendimento
de exigências do sistema capitalista desumanizado. O horizonte
educacional forjado no espaço escolar deve “propiciar aos alunos
o domínio dos fundamentos das técnicas diversificadas utilizadas
na produção, e não o mero adestramento em técnicas produtivas”.

Para tanto, a concepção de educação pautada na categoria


trabalho como princípio educativo mostra-se estranha à pedagogia
do adestramento de competências que se procura difundir por
meio da última versão da BNCC do Ensino Médio e da Resolução
CNE/CP nº 03/2018 no sistema capitalista no Brasil atual. A
questão principal é recuperar os fundamentos do trabalho a serem
desenvolvidos de modo a difundir e problematizar determinadas
exigências sócio-históricas, de modo que os estudantes do Ensino
Médio consigam perceber as contradições capitaneadas por
princípios e políticas neoliberais, possibilitando-os a compreender
criticamente os desdobramentos que tendem a afetar negativamente
a pluralidade de concepções acerca do mundo social no contexto
das sociedades contemporâneas

129 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
Considerações Finais

Diante do atual cenário das políticas educacionais com


significativas mudanças curriculares de recorte neoliberal, emerge
a necessidade de uma análise crítica atinente à força e ao poder de
influência de grupos ideologicamente dominantes, como o Banco
Mundial, sobretudo por meio da OCDE e do PISA, relativos à
implementação de orientações educacionais que utilizam jargões
discursivos como qualidade da educação, protagonismo juvenil,
projetos de vida e direito de escolha de itinerários educativos, porém
revelam em suas raízes econômico-políticas estruturas educacionais
mercantilistas, competitivas e socialmente excludentes.
É possível estabelecer relações entre os modelos educacionais
neoliberais, descritos nos documentos internacionais e na última
versão da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio,
em especial no que tange aos objetivos de implementação e
materialização de políticas voltadas à formação de professores,
de produção de material didático e de orientações voltadas às
reformulações curriculares, principalmente voltadas à formação das
juventudes da classe trabalhadora.
Esse processo tem sido canalizado pelo discurso supostamente
inovador das competências e habilidades dirigidas aos estudantes do
Ensino Médio, no intuito de prepará-los a realizar tarefas mecânicas
e que, em regra, demandam a ocupação em postos de trabalhos
flexíveis, rotativos e precarizados, de acordo com as exigências em
curso capitaneadas pela lógica capitalista de produção, na sua versão
neoliberal.
Esse modelo de educação proposto tende a deslocar o foco
principal da educação, que deveria ser projetado numa perspectiva de
educação integral, na direção de percursos educativos subordinados

130 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
à lógica do adestramento funcional, polarizadores e classistas, cujo
efeito é produzir modelos educacionais seletivos, meritocráticos e
injustos.
Os modelos educacionais democráticos e socialmente
inclusivos devem avaliar criticamente os pressupostos, os conceitos
e as intencionalidades hegemônicas das políticas de competências e
habilidades advindos da OCDE/PISA, da BNCC/Ensino Médio de
2018, da Resolução CNE/CP nº 03/2018 e da Lei nº 13.415/2017.
O contexto atual de expansão das desigualdades econômicas e
de crise do reconhecimento da democracia participativa/deliberativa
não deve ser pretexto de negação da centralidade das formas de
organização da sociedade que reconhecem, lutam e procuram
assegurar a importância da implementação consciente dos princípios
educativos, dentre eles, a matriz do trabalho omnilateral, no sentido
de não reduzi-lo ao utilitarismo meritocrático, excludente e matriz
de vulnerabilidades.
Logo, propõe-se uma opção que considere o processo educativo
na perspectiva da indissociabilidade entre as dimensões técnicas e
sociais consideradas imprescindíveis para o desenvolvimento integral
dos estudantes, no caminho da emancipação e da libertação dos
sujeitos, em vias de diminuir as desigualdades e não as legitimar.
Assim, teme-se que a concretização de documentos como a
BNCC/Ensino Médio de 2018, a Resolução CNE/CP nº 03/2018 e
a Lei nº 13.415/2017 no campo da escola pública podem inviabilizar
discussões que permitam (re)produzir nos sujeitos da educação
aquilo que foi produzido pela história humana, impossibilitando
uma formação de base científica que articule de forma unificada,
num complexo compreensivo, as ciências humano-naturais que
estão modificando profundamente as formas de vida com reflexões
filosóficas, sociológicas, políticas, éticas-estéticas.

131 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
É importante registrar que as Diretrizes Curriculares
Nacionais do Ensino Médio de 2012 (Resolução CNE/CP nº
02/2012), produzidas democraticamente e com a participação de
vários movimentos sociais, já focavam estes pressupostos e estas
reflexões plurais, por exemplo, quando fundamentavam o processo
educativo no trabalho como princípio educativo, na pesquisa como
princípio pedagógico e nos direitos humanos como norteador
social. Mesmo que o referido documento tenha sido revogado pela
Resolução CNE/CP nº 03/2018, que atualiza a Lei nº 13.415/2017,
outros referenciais curriculares basilares continuam em vigor, dando
suporte às conquistas que os movimentos sociais já conseguiram
materializar na Constituição Federal de 1988 e na LDB/1996.
No contexto destes referenciais basilares, que podem orientar
os professores na direção dos direitos humanos e de uma perspectiva
integral do trabalho, tem-se ainda a Resolução nº 4, de 13 de julho
de 2010, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais
para a Educação Básica, as Diretrizes Nacionais para a Educação em
Direitos Humanos (Resolução CNE nº. 1), de 30 de maio de 2012
e outras diretrizes nacionais importantes conquistadas nesta mesma
década. Elas podem ser reconfiguradas em orientações curriculares
básicas neste momento, no intuito de auxiliar na organização
do processo educativo para além das exigências de adaptação ao
mercado de trabalho, substanciando dimensões mais integrais, que
contribuam para desenvolver de forma plena a pessoa humana e
possibilitem pela experiência da escola pública o exercício de sua
cidadania de forma consciente.

A Educação em Direitos Humanos, como um paradigma construído


com base nas diversidades e na inclusão de todos/as os/as estudantes,
deve perpassar, de modo transversal, currículos, relações cotidianas,
gestos, “rituais pedagógicos”, modelos de gestão. Sendo assim, um

132 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
dos meios de sua efetivação no ambiente educacional também
poderá ocorrer por meio da (re)produção de conhecimentos
voltados para a defesa e promoção dos Direitos Humanos (BRASIL,
Parecer CNE/CP nº 08/2012, p. 521).

Significa afirmar com o Parecer CNE/CP nº 08/2012 e com


a Resolução nº. 1/2012, por exemplo, que há brechas curriculares
que ainda permitem aos professores transgredir orientações
fundamentadas exclusivamente em competências por áreas de
conhecimento voltadas à adaptação dos sujeitos ao mercado de
trabalho, como objetivam os pressupostos da BNCC/Ensino Médio
de 2018. Por meio destas, necessita-se reorganizar currículos
inclusivos que garantam o direito social de ensinar dos professores
e o direito de aprender das juventudes da classe trabalhadora nas
escolas públicas.

REFERÊNCIAS

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Aprovou as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos.
Resolução nº. 1, de 30 de maio de 2012. Inserido em: http://portal.mec.
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Acesso em 02/05/2018.

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Seção: 1 | Página: 21. MEC/CNE/CEB. Disponível em: http://www.in.gov.
br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/51281622.
Acesso em 03/09/2019.

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Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Brasília: DF, 2010.

BRASIL. BNCC-Ensino Médio. A área de Ciências Humanas e Sociais


Aplicadas. Competências específicas de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas para o Ensino Médio. Ciências Humanas e Sociais Aplicadas
no Ensino Médio: competências específicas e habilidades Inserido em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf.Acesso em: 02/09/2019. p.461-580).

BRASIL. Lei nº 13.415/2017. Altera as Leis nº 9.394/1996, que


estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e 11.494/2007, que
regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação
das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de
01/05/1943, e o Decreto-Lei nº 236/1967; revoga a Lei nº 11.161/2005;
e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino
Médio em Tempo Integral. Brasília/DF. MEC/CNE, 2017.

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de Educação - PNE e dá outras providências. Brasília/DF. MEC/CNE,
2014.

BRASIL. Resolução CNE/CP nº 02/2015. Define as Diretrizes


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de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de
segunda licenciatura) e para a formação continuada. MEC. CNE. Brasília.

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136 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 105-136 – jul./dez. 2019
A MULHER NEGRA COMO ESPAÇO DE MEMÓRIA
COLETIVA NA PEÇA: ENGRAVIDEI, PARI CAVALOS
E APRENDI A VOAR SEM ASAS

Maria Júlia Werneck de Oliveira 1

RESUMO: Este artigo tem o propósito de apresentar uma breve análise da representação
da mulher negra que atua como espaço de memória coletiva em uma peça do teatro
negro contemporâneo:Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas. Partindo de
um breve histórico do negro no teatro brasileiro, passando por Abdias Nascimento com
o Teatro Experimental do Negro até chegar ao grupo Os Crespos de São Paulo, com o
teatro contemporâneo, o estudo propõe um olhar a partir da ressignificação do corpo
negro, de questões que permeiam suas subjetividades. Um importante papel que a arte
negra contemporânea assume, de alargamento do projeto inicial de Abidas Nascimento,
apresentando esse teatro negro para o Brasil e também para o mundo.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher negra; Teatro negro contemporâneo; Memória coletiva;
Abdias Nascimento; Os Crespos.

ABSTRACT: This paper has as goal to present a brief analysis of the representations of
the Black woman that acts as space of collective memory in a contemporary theatrical
play: Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas. Starting from a brief
background of black people in Brazilian theatre, going through Abdias Nascimento with
the Experimental Black Theatre and arriving at a group called Os Crespos de Sao Paulo,
with contemporary theatre, this study offers a look through the ressignification of the
black body, of questions that are among their subjectivities. An important role that the
black contemporary art assumes, of enlarging the initial project of Abdias Nascimento,
presenting this black theater to Brazil and even to the world.
KEYWORDS: Black woman; Contemporary black theatre; Collective memory; Abdias
Nascimento; Os Crespos.

Introdução

Pensar no corpo negro como lugar de experiência estética a


fim de trazer à tona questões que permeiam sua realidade é estar

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Estadual
de Londrina.

137 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
diante de uma lacuna, pois raramente temos exemplos de grupos
teatrais que produzem algo nesse sentido. Falta-nos informação,
divulgação, espaço, e mesmo com inúmeras dificuldades econômicas
e políticas, a herança do teatro negro de Abdias Nascimento nunca
esteve tão viva e pulsante como no teatro negro contemporâneo. A
Cia os Crespos de São Paulo é um exemplo disso. Trata-se de um
coletivo composto por atores negros, que realiza pesquisas cênica e
audiovisual, além de promover debates e intervenções públicas. A
peça da Cia Os Crespos a ser exposta neste artigo tem a direção de
Lucelia Sergio e Sidney Santiago Kuanza e dramaturgia de Cidinha
da Silva. No drama, seis mulheres negras são surpreendidas em seus
respectivos cotidianos em um prédio. Não há diálogo entre elas, e
também não se conhecem, mas possuem desejos semelhantes.

O NEGRO NO TEATRO BRASILEIRO

Abdias Nascimento (2019) recupera uma fala de Procópio


Ferreira em que esse diz que, no teatro brasileiro, “há duas regras
que ninguém pode mudar. A de que todo negro tem que ser
criado, e a de que todo padre tem que ser bom” (FERREIRA apud
NASCIMENTO, 2019, p.149). Quando o negro ocupa o papel de
criado em cena, reproduz o papel de subalternidade que é reservado
a ele pela sociedade nas vivências cotidianas. A história do teatro
brasileiro repete para Abdias a terrível situação da cultura africana
e do negro impostas por uma sociedade colonial e escravocrata e
que continua sendo fortemente mantida pela sociedade de classes
no sistema capitalista.
Desde o princípio da atividade teatral no Brasil, em que os
autos sacramentais encenados por José de Anchieta tinham como

138 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
foco fazer os índios assimilarem o cristianismo, o negro foi deixado
de lado. Os africanos não tiveram o mesmo “privilégio” como Abdias
bem coloca, como os índios. A figura do negro engraçado surgiu
posteriormente, tinha a função de fazer o branco rir. À época, ser um
ator teatral era considerado atividade mais baixa que a de prostituta
ou crimonoso, logo não era aconselhado a um branco e às mulheres
o teatro como profissão.
A partir do momento em que o teatro passou a ser visto
e reconhecido como atividade decente, os negros sumiram dos
palcos e passaram a entrar no teatro apenas para depois do final
do espetáculo, para limpar a sujeira de todo o local. As peças que
eram escritas na época e encenadas apresentavam apenas a vida, os
costumes, a estética, as ideias, os problemas e os desejos da classe
dominante completamente clara. Abdias afirma que mais da metade
da população de origem africana não existia para o teatro brasileiro.
Um negro de origem africana em uma peça, só se fosse em algum
papel exótico,subalterno,grotesco, privado de qualquer humanidade
ou alguma significação artística:
Personagens tipificadas nas empregadinhas brejeiras,
reboladeiras, de riso e acesso fácil; mães pretas chorosas,estereotipadas,
amesquinhando o profundo e verdadeiro sofrimento das mulheres
negro-africanas; negros idosos, pais-joãos dos quais a dignidade
e o respeito, pela imposição do servilismo, uma domesticação
exibidas e proclamadas como qualidade genética da raça negra;
com mais frequência, o que se via, eram os moleques gaiatos,
fazendo micagens, carregando bandeja e levando cascudos. Tudo
não passava da caricatura do negro que a sociedade cultivava, até
que em 1944 fundei no Rio de Janeiro o Teatro Experimental do
Negro (NASCIMENTO, 2019, p.153-154).

139 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
Abdias ressalta que, se antes de 1888, a escravidão e a ideologia
de superioridade branca eram formas de exclusão do negro da cena
brasileira, após a abolição, o racismo continuou em uma literatura
dramática que ignorou o potencial humano do negro, sua densidade
dramática, seu lirismo e criatividade presentes em sua cultura original
africana. Ele ainda afirma que a literatura dramática convencional
no Brasil, até pouco tempo, baseava-se no que se fazia na Europa.
Rocha (2017) apresenta informações muito importantes no
que se refere à trajetória do negro no teatro brasileiro. Ele apresenta
o teatro como fruto de uma sociedade e de um tempo histórico, em
que produz e reproduz valores, símbolos, signos, saberes, modos de
vida, e salienta que tanto pode ser espaço de preservação da cultura
hegemônica quanto espaço de oposição, de forma a agir contra
essa hegemonia. Em seu livro O negro no teatro brasileiro, Mendes
(apud Rocha, 2017) traz um tipo de teatro negro que foi presente na
segunda metade do século 16: as representações de autos profanos
durante o período do Natal: a Congada, as Taieiras, o Quicumbe,
os Quilombos, que constituíam danças dramáticas originárias da
África e que foram reelaboradas no período colonial sob influência
dos autos franceses e portugueses da Idade Média.
Também existiram, segundo a autora, companhias teatrais
especializadas com elenco em sua maioria formados por negros e
mestiços,escravos ou libertos que encenavam personagens brancas
com rostos e mãos pintados de branco. Isso se explica pelo fato de
que ser ator nesse período era considerado algo desprezível e baixo.
Já no século 19, quando o teatro alcançou um lugar de refinamento
para as classes dominantes, os negros e mestiços foram retirados de
cena. Mendes menciona ainda que, entre os séculos 19 e início do
20, acontecia um tipo de teatro chamado de comédia de costumes,
inspirados no teatro francês de Molière: no Brasil, tivemos como

140 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
um dos maiores nomes Martins Pena, porém os negros apareciam
em suas peças como personagens menores e sem humanidade,
secundários e sem valor dramático, a exemplo das peças Juiz de Paz
na Roça (1843) e O Cigano (1845), em que os personagens não
têm nome, são chamados de “um mulato escravo” “dois negros”,
entre outros.
Já no teatro romântico brasileiro, também encontramos,
de acordo com a autora, personagens negros estereotipados, como
em José de Alencar na peça O Demônio Familiar, que, apesar de
ter nome, o personagem Pedro apresenta-se como um ser ingrato,
malicioso, mentiroso, malandro. Mais uma demonstração do quão
racista e perversa foi a história do teatro brasileiro. O estereótipo
da “mulata sensual” também aparece na personagem Carlota
da peça Gonzaga ou a Revolução de Minas. Ainda, no conhecido
Teatro de Revista, uma série de estereótipos foram reproduzidos
nos personagens negros: mulata sensual, malandro festeiro, mulato
capoeirista briguento, entre outros. Podemos perceber, nesse breve
histórico, que a sociedade racista que esteve à frente do teatro
brasileiro não permitiu que houvesse um protagonismo negro, sendo
apenas com a CNR (Cia negra de revistas), fundada em 1926 pelo
baiano João Cândido que os negros e negras começaram a aparecer
como protagonistas, e nisso reside a originalidade do grupo, que
obviamente foi recebido com racismo, acusados de imitarem peças
francesas, porém, ainda assim, o grupo não ultrapassou a imagem
estereotipada dos negros. É importante ressaltar que foi o primeiro
grupo em que os negros atuaram como personagens principais da
elaboração e execução de atividades teatrais, sendo esse um dos
territórios artísticos que era reservado apenas aos brancos, excluindo
os negros. Foi considerada uma iniciativa precursora do negro
como protagonista nas artes. Porém, foi com Abdias Nascimento,

141 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
em 13 de outubro de 1944, que o teatro negro realmente se fez
de forma mais marcante e revolucionária diante do breve passado
aqui apresentado. É diante do exposto que a importância do TEN
(Teatro Experimental do Negro) foi fundamental para o rompimento
do status-quo e o teatro negro contemporâneo em seus inúmeros
grupos pelo Brasil representam hoje a continuação de um belo
trabalho iniciado por Abdias em 1944, sendo o TEN fundado, no
final da Segunda Guerra Mundial e da ditadura do Estado Novo,
duas décadas depois da CNR. Abdias havia sido militante da Frente
Negra Brasileira, uma organização política e de massas, que deu a ele
experiência de organização e também política. O grupo de Abdias,
em suas peças e atuação dos palcos, buscava superar os estereótipos
que foram muito reproduzidos tanto na comédia de costumes
quanto no teatro de revista em torno das personagens negras. As
peças do TEN buscavam desvincular-se de tipos, como: o escravo,
o malandro, a mulata sensual. Os negros do TEN não eram apenas
protagonistas mas também trabalhavam sua carga dramática em
cena.
Um exemplo seria a peça Sortilégio de Abdias Nascimento, que
apresenta um personagem negro cristão, Emanuel, que absorveu os
valores eurocêntricos e que tem como contraponto o negro que segue
o candomblé,que rejeita todos os valores da “cultura do opressor”.
Segue um trecho de Emanuel em crise:
Que mironga é esta no meu pescoço? Quem está tentando
me enfeitiçar?Não acredito em macumba, já disse. (pausa, reflete).
Sempre debochei dessa canjira...(pausa longa) Mas... e se tudo
for verdade? Se as coisas que estou vendo e sentindo estiverem
acontecendo mesmo? Afinal de contas... é o culto do meu povo...
Só porque me diplomei na universidade devo desprezar a religião do
meu sangue?...Se algum Orixá estiver tentando me livrar da cadeia
dos brancos? (NASCIMENTO,1979, p.93)

142 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
Notamos como o trecho evidencia a importância de
questionamento da cultura do opressor que há muito permeia a
nossa cultura. Emanuel começa a questionar esses valores, esses
saberes. Passa a ser protagonista de sua história. Apesar de há muito
tempo narrativas e discursos serem feitos de maneira a negar a forma
material e simbólica da população negra, o TEN e agora o teatro
negro contemporâneo constituem importantes elementos para a
difusão da arte negra dentro e fora do Brasil, a exemplo da memória
coletiva negra em Engravidei (2014):

ENGRAVIDEI, PARI CAVALOS E APRENDI A VOAR SEM


ASAS

A peça Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas,


de Cidinha da Silva (2014), faz parte da trilogia intitulada “Dos
Desmanches aos Sonhos”, presente na primeira edição da Revista
Legítima Defesa, assinada pela companhia Os Crespos. Para Ferreira
(sem data), no texto dramático, nos deparamos com os relatos de
seis personagens negras: a DJ, a Dona do Salão de Cabeleireiros, a
Puta, a Princesa do Carnaval, a Alcoólatra e a Moradora de Rua.
Como é indicado no próprio texto, “as personagens não dialogam,
nem são necessariamente vizinhas, sendo o prédio uma alegoria
da cidade, onde tudo se cruza, mas pouca coisa conversa entre si”
(SILVA, 2014, p. 108). Acrescentamos que a alegoria da cidade
pode ser entendida também como o espaço de coexistência desses
corpos negros diaspóricos. Assim como no espaço diaspórico, os
depoimentos, discursos e anseios das mulheres se entrecruzam: na
peça, todas as personagens externam suas vivências afetivas e de
solidão permeadas por violências de cunho machista e racista.

143 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
A MULHER NEGRA COMO ESPAÇO DE MEMÓRIA
COLETIVA

Por muito tempo a arte foi associada a grupos que exerciam


certa dominação por grupos considerados menorizados, como a
população negra, já exposto no início dessa análise. Ocorreu um
silenciamento sistemático da sua história, e há um certo tempo que
esse movimento tem gerado o desejo de reapropriação da história
oficial: agora as mulheres negras irão falar,serão protagonistas de
sua arte na cena contemporânea. Sempre houve uma tentativa de
apagamento da memória cultural do povo oprimido por uma cultura
hegemônica. Bernd (2017, p.381) relaciona isso a um conceito que
ela chama de vestígios memoriais:
Entre memória e esquecimento, o que sobra são os vestígios,
os fragmentos do vivido, o qual jamais pode ser recuperado na sua
integralidade. De onde a preocupação dos regimes totalitários em
“apagar os rastros” para que seus atos arbitrários não possam ser
lembrados. Mas sempre sobra algum rastro que a sensibilidade dos
escritores consegue retraçar e incorporar à matéria poética. Desse
modo, se nossa memória é um receptáculo de resíduos, a literatura
também o é, constituindo-se de intrincadas redes intertextuais que
contêm vestígios, fragmentos de leituras feitas ao longo da vida e que
emergem em textos da contemporaneidade. Os textos literários nos
ensinam que as reminiscências se recompõem através dos vestígios,
sendo que os espaços lacunares são completados com a invenção,
o empréstimo e a imaginação já que o vivido é limitado no tempo,
enquanto o acontecimento lembrado é sem limites, para retomarmos
uma vez mais os ensinamentos incontornáveis de W. Benjamin para
os estudos da memória e dos rastros (BERND, 2017, p. 381).
Podemos entender esse movimento como do texto literário
relacionado à própria cena contemporânea na peça – Engravidei-,as

144 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
cenas recuperam a memória de inúmeras mulheres que se observam
em suas narrativas. Champagnat (2018) menciona que o papel
da literatura nesse processo de memória e recuperação por meio
de literatura (que aqui percebemos pela cena dramática) é o de
permitir às memórias subterrâneas de subir à superfície da sociedade,
suscitar questionamentos a respeito do silenciamento sistemático
de séculos que antecederam essa redescoberta. Sabemos que essas
memórias pouco interessam ao discurso hegemônico capitalista, que
reproduz uma estética branca, preconceituosa em relação à classe,
gênero, religião, entre outros. Essas recordações revelam um mundo
permeado por violências físicas e psicológicas contra as mulheres
negras, uma realidade propícia para desencorajar essas mulheres
de sua beleza e importância. No entanto, as cenas do espetáculo
apresentam a violência e, posteriormente, a superação dessas
mulheres, conquistada de forma independente e com pouca ajuda
da sociedade, graças principalmente a si mesmas, sem nenhuma
idealização.

Memórias
Já no prólogo, a dramaturgia inicia de maneira a ressaltar a
força de todas as mulheres que irão compor as cenas posteriores:

Prólogo
(As atrizes estão sentadas no proscênio, de frente para o cenário,
enquanto o público entra. Elas usam apitos para indicar o 3º sinal. No
cenário, vemos a seguinte inscrição:
“Engravidei e Pari cavalos, Pari com força, Pari sem dor. Pari
entre um sonho e outro. Depois virei outra pessoa. Em respeito a mim
mesma, Aprendi a voar sem asas.”
Maria Tereza)

145 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
A inscrição já introduz as narrativas fortes que virão:
engravidar, parir cavalos (o animal remete à ideia de força), parir
com força, dor, voar por si mesmas, sem a ajuda de ninguém(voar
sem asas). Iremos observar como algumas cenas se dão e atuam como
espaço de memória coletiva.

A DJ
DJ
Várias mulheres vivem em mim. Uma mulher que sabe da sua
condição no mundo e que muitas vezes está alheia a isso; uma mulher
que agarra tudo que vem à sua frente, outra sem paradeiro; uma mulher
sufocada, uma mulher desgostosa da vida com muita sede de viver; uma
fêmea extremamente vulnerável e triste, algumas vezes conformada,
outras revoltada, às vezes até feliz; sábia, determinada, forte; uma
mulher carente de amor, que ama. Porque o Amor é colírio, desembaça
os olhos. Amor é água que brota e não cessa, irradia, fertiliza e floresce.
Quem crê no amor tem fé, aquela luz que não se vê, mas guia.
Ao mencionar a primeira frase: “Várias mulheres vivem
em mim”, notamos o quanto a fala da DJ corrobora para a
ideia de uma cena que se propõe como um desabafo subjetivo e
particular, e ganha uma dimensão coletiva, uma vez que extrapola
o desabafo dessa mulher negra e passa a ser o de muitas mulheres
negras que se percebem nessa fala. Nesse ponto, verificamos que
o teatro ocupa esse lugar de confronto: “O teatro continua sendo
o único lugar de confrontação do público consigo mesmo como
coletividade” (RANCIÈRE, 2012, p.11). O teatro representa essa
forma de comunidade, de coletividade, e obviamente, falamos de
coletividade de mulheres negras, desnudadas em suas subjetividades
e reconhecendo-se muitas nas várias mulheres que permeiam a peça.

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A PUTA

O MARIDO A ENGRAVIDAVA, A BARRIGA CRESCIA E OS


MENINOS NASCIAM.
Com 32 anos ela tinha 08 filhos consigo, mas pariu 13, 05
morreram. Dois ela perdeu para a fome, um morreu doente, parecia
até que tinha herdado a amargura dela. Os gêmeos ela perdeu de
tanta pancada, quando ainda estavam no ventre.
(A Puta escova os dentes do manequim. Depois esfrega seu corpo
com raiva, enquanto fala.)
Quando os primeiros vieram, ela pensava na falta de futuro
deles, como seria alimentar mais uma boca, como faria para protegê-
los das pancadas do marido, e seu coração se desfazia em água.
Parece que com a chegada dos mais novos a água empedrou de vez
deixando-a com aqueles olhos vidrados.
Ela não tinha apoio de ninguém quando o marido a
espancava. Quando batia na mulher, ele gritava que pagara um dote
de escrava para tê-la, não um dote de esposa.
(Na TV vemos a seguinte inscrição, também projetada no
cenário:
Em Angola, ela havia gostado de um rapaz, que por sua vez
também foi apaixonado por ela. Mas ele era mestiço e o pai dizia que
a alma do pretendente era de branco e os brancos sempre maltratam os
pretos. Foi por isso que o pai a entregou a um escuro, bem preto.)
(A Puta se senta no vaso sanitário, carregando o manequim.
Ela o esbofeteia.)
Quando o marido foi embora com a vizinha branca de 18
anos, ela se sentiu aliviada. Sentiu que poderia descansar o corpo
das porradas. E, quando tinha tempo de sentar no vaso sanitário,
se perguntava: será que em branca ele bate também?

147 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
(A Puta agride o manequim e o desmonta, enquanto fala.)
A bacia da privada é meu lugar de descanso desde que foste
embora dessa casa. Tua partida me deu o direito de cagar em paz.
Às vezes, penso em afogar-te na água do banho, mas, peço ajuda a
Deus e desisto. Tu te afogarás em tua própria baba nojenta.
(Ela desiste de matá-lo e remonta o manequim.)
Qual nada! Como posso te maltratar se não consigo sequer
deixar-te na rua à tua própria sorte?
O que eu quero traste velho, é que chegue o tempo da minha
aposentadoria para que eu não precise conviver mais com a sujeira
dos homens.
(A puta cobre o manequim com a toalha e o leva embora,
enquanto fala.)
O marido nunca a beijou na boca. Foi melhor assim. Beijo
para ela era sagrado. Sagrado como a boca de um filho repousada
em seu rosto, ou a sua, desejando boa noite ao filho.
Ela não ama ninguém. Só ama os filhos. Amor é ilusão de
telenovela brasileira.
(Todas as TVs são ligadas e vemos cenas de telenovelas nacionais.
Aos poucos as TVs vão se apagando e só resta ligado o aparelho da
Princesa do Carnaval. Na tela da televisão e também no cenário, vemos
a seguinte inscrição:
Marrom não é branco. E numa realidade cacheada, cada
fio de cabelo é uma alegoria que me quer tornar bela. Triste é que
a imagem refletida ainda não reconhece a quarta-feira de cinzas.)
Notamos que a personagem colocada como puta apresenta
a solidão da mulher negra de várias formas: primeiramente com
a morte da mãe e o abandono do pai. Posteriormente abandonada
pelo marido negro que prefere uma mulher branca (ela até fica
aliviada pois estava diante de inúmeras violências, apanhava mesmo

148 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 137-152 – jul./dez. 2019
grávida, era constantemente ofendida por ser negra, e obviamente
foi preterida pela mulher branca- a saga de muitas mulheres negras.
Porém, ao se tornar puta e preferir a solidão e o amor dos filhos a ter
um novo companheiro, a solidão ganha um novo sentido, que para
ela representa a chance de ser feliz e a descrença no amor, colocado
como ilusão de ficção de novela.
Percebemos que a cena da Puta assim como a cena da DJ
configuram-se como espaços estéticos que contribuem para uma
emancipação não só da mulher negra, que se vê nas respectivas
cenas e se fortalece no processo de reconhecimento, identificação
e memória coletiva com suas vivências, sendo apresentadas nos
“palcos”, sendo arte, mas também do teatro negro como um todo,
que aparece como forma de questionar uma linguagem artística
hegemônica na cena. O indivíduo emancipa-se, o teatro também:
A emancipação, por sua vez, começa quando se questiona
a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as
evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do
fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição. Começa
quando se compreende que olhar é também uma ação que confirma
ou transforma essa distribuição das posições. O espectador também
age, tal como o aluno ou o intelectual; Ele observa, seleciona,
compara interpreta. Relaciona o que vê com muitas outras coisas
que viu em outras cenas, em outros tipos de lugares. Compõe seu
próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si.
Participa da performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por
exemplo, à energia vital que esta supostamente deve transmitir para
transformá-la em pura imagem e associar essa pura imagem a uma
história que leu ou sonhou, viveu ou inventou. Assim, são ao mesmo
tempo espectadores distantes e intérpretes ativos do espetáculo que
lhes é proposto (RANCIÈRE,2012, p.17).

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As cenas rapidamente descritas e analisadas são força de
memória coletiva negra, trazem à tona questões importantes
colocadas na forma do drama, provocando o espectador a fazer o
que Rancière (2012) propõe: observar, selecionar, interpretar essas
realidades ali postas. Na cena da Puta, por exemplo, a observação
da cena, o comportamento e as falas da prostituta: “Com 32 anos
ela tinha 08 filhos consigo, mas pariu 13, 05 morreram. Dois ela
perdeu para a fome, um morreu doente, parecia até que tinha
herdado a amargura dela. Os gêmeos ela perdeu de tanta pancada,
quando ainda estavam no ventre.” Constatamos que se trata de uma
realidade cruel e presente no cotidiano de inúmeras mulheres negras.
O espectador é convidado a partilhar dessa realidade, narrada em
terceira pessoa pela atriz: “ela tinha 08 filhos (...) dois ela perdeu
para a fome(...)”. O recurso de contar em terceira pessoa coloca
cada tipo social de diferentes mulheres negras encenadas na peça
em uma coletividade, não é uma história individual de sofrimento
e abandono do corpo negro feminino, é uma história coletiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao reconhecer-se em algumas dessas histórias, o espectador


de Engravidei pode também compor a sua, em um processo de
identificação ou empatia.Uma potência de arte que ressignifica a
vivência negra e permite novos olhares e perspectivas da realidade.
É crucial perceber e valorizar como grupos de teatro negro
contemporâneos têm colaborado para a expansão da estética
negra,iniciada por Abdias Nascimento,em um processo contínuo de
reelaboração, empoderamento e protagonismo, colocando o teatro
negro como arte que passa a ter sua marca definitiva na história do
teatro brasileiro.

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Referências:

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FERREIRA, Lorena Ribeiro. Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar


Sem Asas: reflexões acerca da afetividade e solidão da mulher negra.
Darandina- Programa de Pós-Graduação em Letras e Estudos Literários
da UFJF Volume II, n.2.

NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância


pan-africanista. Prefácio de Kabengele Munanga; texto de Elisa Larkin
Nascimento e Valdecir Nascimento. 3ª ed. rev. São Paulo: Editora
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NASCIMENTO, Abdias. Sortilégio II: Mistério negro e zumbi redivivo. Rio


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dramaturgias negras em São Paulo, perspectivas históricas, teóricas e
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ROCHA, Gabriel dos Santos. O Drama Histórico do Negro no Teatro


Brasileiro e a luta antirracismo nas artes cênicas (1840-1950). Sankofa,
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TRABALHO E EDUCAÇÃO: OS LIMITES DA
CIDADANIA CAPITALISTA

Ana Paula Oliveira Silva de Fernández1


Daniela Elis Dondossola2

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a categoria trabalho e a


educação na perspectiva marxiana e marxista, identificando os limites da cidadania
na sociedade capitalista, considerando a frequente relação feita entre a educação para
o alcance da cidadania. Porém é necessário entender os fundamentos da emancipação
política e humana para fins de uma interlocução crítica a respeito da educação no
capitalismo. Desenvolveremos reflexões sobre constituição do homem como ser social, além
de revisões teóricas sobre o trabalho no modo de produção capitalista, e a relação entre
trabalho e educação, para finalmente pontuar as contradições e limites da cidadania
no capitalismo e o papel da educação.
PALAVRAS-CHAVE: trabalho; educação; cidadania; emancipação.

ABSTRACT: This article aims to analyze the category work and education in
the Marxian and Marxist perspective, identifying the limits of a citizenship in the
capitalist society. This is because, in general, education is daily related to the realization
of citizenship in this society. However, it is essential to understand the link between
citizenship and political and human emancipation for the purpose of a critical dialogue
about education in capitalism. To this end we develop reflections on the constitution of
man as a social being. We conduct theoretical reviews of labor in the capitalist mode of
production, the relationship between labor and education, to finally conduct an analysis
of the contradictions and limits of citizenship in capitalism and the role of education.
KEYWORDS: work; education; citizenship; emancipation.

1
Assistente Social na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e
Discente do Programa de Pós-Graduação, Stricto Sensu, em Sociedade, Cultura e Fronteiras,
nível de Doutorado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus
de Foz do Iguaçu. E-mail: anap.oliveirasilva@gmail.com
2
Assistente Social na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e
Discente do Programa de Pós-Graduação, Stricto Sensu, em Serviço Social, nível de Mestrado
da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus de Toledo. E-mail:
daniela.dondossola@gmail.com

153 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
INTRODUÇÃO

A educação é sempre ovacionada por suas potencialidades em


relação à cidadania e ao acesso ao trabalho. No entanto, essa relação
não deve ser automatizada uma vez que o acesso à educação não
garante cidadania e realização do trabalho. Além disso, é importante
destacar o significado destas categorias no sistema capitalista. Assim
como o trabalho, categoria central, a educação é um fenômeno social,
histórico e de múltiplas determinações, ou seja, é importante refletir
sobre as relações existentes entre o trabalho, a educação e a cidadania
nesta sociedade. Portanto constituímos como objetivo geral deste
trabalho, a pesquisa sobre os fundamentos teóricos que balizam a
categoria trabalho e a constituição da educação no capitalismo, e sua
interface com a cidadania. Para tanto, estruturamos este artigo em
três partes: na primeira, refletimos sobre a constituição do homem
como ser social, na segunda, o trabalho no modo de produção
capitalista, e por fim, contradições e limites da cidadania burguesa
e o papel da educação.

CONSTITUIÇÃO DO HOMEM COMO SER SOCIAL

A proposta desta seção é pesquisar o processo de constituição


do homem na história tendo como base para análise a ontologia
marxiana, que é de fundamental importância para compreender
o trabalho e a educação. Sendo assim, neste primeiro momento,
pretendemos apreender a categoria trabalho e como ela atua na
transformação da natureza e, consequentemente, na constituição
do Ser Social, em sua passagem – através do salto ontológico – do
meramente biológico para o social. Buscamos, dessa forma, traçar

154 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
um caminho para revelar a relação entre educação e trabalho
na construção da sociabilidade humana no modo de produção
capitalista. Para Tonet (2005a, p. 136), “[…] assim como a
linguagem e o conhecimento, também a educação é, desde o
primeiro momento, inseparável da categoria trabalho”.
Tendo como fundamento as contribuições de Lukács (2011)
sobre a ontologia do Ser Social, partiremos da categoria trabalho
como destaque, por considerá-la fundante do Ser Social, sendo uma
atividade permanente e indissociável da existência humana, além
de ser ela que impulsiona toda a dinâmica da vida em sociedade.
É importante destacar que é através do enfoque que Lukács dá
à categoria trabalho que se torna possível, no campo teórico,
compreender como se dão os processos sociais em sua essência,
abrangendo a dinâmica da vida humana na natureza e suas diversas
formas de sociabilidade.
A constituição do homem enquanto Ser Social acontece por
meio do trabalho e do aperfeiçoamento deste, quando o próprio
homem é responsável pela construção de sua história. Utilizando-
se de sua capacidade teleológica de idealizar antecipadamente seus
atos, através do ato laborativo, o homem transforma a natureza
– e, neste processo, por ela é transformado – em matéria útil para
satisfazer necessidades (do estômago ou da fantasia) e isto é o que vai
diferenciar o ser social já constituído do ser meramente biológico.
Essa inferência é corroborada por Lukács (2011) ao parafrasear
Marx (1983):

Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho,


por isso, uma condição de existência do homem, independente
de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de
mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto,
da vida humana (p. 4-5).

155 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
A concepção de trabalho, no sentido ampliado, permite ao
homem o desenvolvimento de habilidades manuais que contenham
um sentido criativo. Para isso, o homem necessita lançar mão de um
esforço físico e mental para posteriormente reconhecer que o produto
final de sua atividade foi construto dele, caracterizando, assim, a
atividade teleológica que é própria do homem. Ou seja, conforme
explica o autor, no fim do processo de trabalho, o homem obtém
um resultado que já existiu em sua imaginação anteriormente, e,
portanto é ideal, transformando uma matéria natural naquilo que
objetivou, “deste modo é enunciada a categoria ontológica central
do trabalho: através dele realiza-se, no âmbito do ser material
uma posição teleológica que dá origem a uma nova objetividade”
(LUKÁCS, 2011, p. 7).
É em Marx que Lukács busca fundamento para afirmar que só
existe teleologia no trabalho, pois é no trabalho (modelo da práxis) o
único espaço possível de materializar uma dada teleologia. É apenas
na concretização das ações humanas para obter os bens necessários
para a manutenção de sua vida que os homens terão condições de
se reconhecer como seres sociais, tornando possível a construção
do conhecimento.
Neste sentido, a partir das possibilidades de objetivações
contidas nos atos humanos, é necessário levar em consideração a
causalidade (que diz respeito ao movimento das coisas, às leis naturais
dos objetos físicos, biológicos e sociais), que é caracterizada pela
realidade objetiva decorrente da materialização de uma finalidade
pensada. É nesta realidade que se manifestam as ações teleológicas,
quando pela apropriação dos nexos causais – decorrentes desta
produção – poderão alterar o produto final.
O homem pôde – por meio dos nexos causais existentes
– eleger alternativas que permitiram a materialização das ações

156 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
idealizadas, o que possibilita que ele desenvolva várias alternativas
para alcançar seu objetivo, propiciando ampliar novas capacidades.
Vale destacar que a consciência nasce a partir do processo de
sociabilidade fundado pelo trabalho. Através da concretização das
finalidades postas no processo de produção e reprodução da vida
em sociedade, terá o trabalho papel fundamental pela capacidade
criadora do homem, direcionando para novas possibilidades e
estimulando-o a fazer escolhas e a tomar decisões entre alternativas.
Isto se dá pelo alcance da constituição de uma teleologia secundária
(não apenas na relação entre homem e natureza, mas também entre
os próprios homens), onde seu ponto alto é o alcance da liberdade3.
Desta forma, compartilhando as afirmações de Tonet (2005a),
é importante destacar que sendo o trabalho uma atividade social –
por mais que em alguns momentos ele possa ser realizado de forma
isolada –, a sua efetivação só pode ser alcançada se o indivíduo tiver
capacidade de se apropriar de conhecimentos, habilidades, valores,
comportamentos que são comuns ao grupo.
Tonet (2015) traz a reflexão de que, quando Marx analisa o
ato que funda o Ser Social (o trabalho), ele constata que este ato é
uma síntese entre subjetividade e objetividade, entre a consciência
e a realidade objetiva. Tal síntese ocorre pela atividade prática
desenvolvida pelo ser, no entanto, o que demarca sua essência é a
práxis sob a forma de trabalho. Desse modo, fica evidenciado que a
3
“O fenômeno da liberdade neste momento, portanto, só pode ser rastreado aqui em sua
gênese ontológica. Dito a partir de uma primeira aproximação, a liberdade é aquele ato da
consciência que dá origem a um novo ser, posto por ela (…). Com efeito, se pretendemos
falar da liberdade de uma maneira razoável como momento da realidade, seu fundamento
consiste, em primeiro lugar, numa decisão concreta entre diversas possibilidades concretas;
se a questão da escolha é posta num nível mais alto de abstração, se é separada inteiramente
da concretude, ela perde toda conexão com a realidade e se torna uma especulação vazia. Em
segundo lugar, a liberdade é uma vontade – em última instância – de transformar a realidade
(o que, em determinadas circunstâncias, inclui a conservação de dada situação); o que significa
que a realidade, enquanto objetivo da transformação, deve ser preservada, mesmo na mais
ampla abstração” (LUKÁCS, 2011, p. 108).

157 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
divisão entre o trabalho manual e o intelectual não é natural, e sim
um “[…] resultado de determinada forma de relacionamento que
os homens estabelecem entre si no processo de transformação da
natureza” (TONET, 2015, p. 206).
Neste sentido, Tonet (2015) amplia a reflexão indicando que
é preciso examinar o ato do trabalho mais de perto para perceber
que sua realização implica algumas outras categorias, as quais: a
socialidade4, a linguagem5 e a educação. Para esta última categoria, o
autor mostra que a diferença que existe entre os homens e os animais
é que nós, homens, não nascemos determinados a realizar atividades
necessárias à nossa existência. Necessitamos aprender o que fazer,
ou seja: precisamos de uma atividade intencional prévia, além da
existência de alternativas para desenvolver tal atividade, certamente
porque o trabalho implica teleologia, e isto não é biologicamente
predeterminado e, sim, conscientemente assumido.

Daí a necessidade da educação, vale dizer, de um processo de


aquisição de conhecimentos, habilidades, comportamentos,
valores, etc. que permitam ao indivíduo tornar-se apto a participar
conscientemente (mesmo que essa consciência seja limitada) da vida
social (TONET, 2015, p. 207).

Assim, vemos que a distinção entre trabalho e educação


se dá no sentido de que o trabalho é que faz a mediação entre o
homem e a natureza. Apenas ele tem a função de produzir os bens
necessários para a existência humana e, por sua vez, a educação é
que faz a mediação entre os próprios homens, ainda que ela esteja
relacionada com o próprio trabalho.

4
“O trabalho é sempre um ato social. Por mais que ele seja realizado por um indivíduo só,
inteiramente isolado, sua natureza é sempre social” (TONET, 2015, p. 207).
5
“Toda atividade social implica comunicação, coordenação de atividades. Por isso a linguagem,
não importa sob que forma, se faz presente já neste primeiro momento do trabalho” (TONET,
2015, p. 207).

158 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
O TRABALHO NO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

Como descrito anteriormente, o trabalho, como protogênese


da existência humana, teve papel fundamental na constituição do
Ser do Ser Social. Porém, sinalizamos um ponto muito importante
principalmente na ascensão e consolidação do modo de produção
capitalista (com a produção de excedentes). Quando o trabalho
livre e assalariado se faz presente neste novo cenário, tem-se um
distanciamento cada vez maior da capacidade teleológica sobre o
trabalho; atribuindo mais valor na relação entre coisas do que na
relação entre os homens. Como consequência, vê-se a expansão do
individualismo na sociedade capitalista; a necessidade de produção e
consumo se torna mais relevante e há uma substituição da satisfação
do ser pelo ter. A capacidade criativa do homem também se distância
dele e, assim, perde-se a dimensão do humano.

A força de trabalho em ação, o trabalho mesmo, é, portanto, a


atividade vital peculiar ao operário, seu modo peculiar de manifestar
a vida. E é esta atividade vital que ele vende a um terceiro para
assegurar-se dos meios de subsistência necessários. Sua atividade
vital não lhe é, pois, senão um meio de poder existir. Trabalha para
viver. Para ele próprio, o trabalho não faz parte de sua vida; é antes
um sacrifício de sua vida. É uma mercadoria que adjudicou a um
terceiro. Eis porque o produto de sua atividade não é também o
objetivo de sua atividade. O que ele produz para si mesmo não é
a seda que tece, não é o ouro que extrai das minas, não é o palácio
que constrói. O que ele produz para si mesmo é o salário, e a seda, o
ouro, o palácio reduzem-se, para ele, a uma quantidade determinada
de meios de subsistência, talvez uma jaqueta de algodão, alguns
cobres ou o alojamento no subsolo (MARX; ENGELS, 2011, p.
30-31).

159 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
À medida que o Ser Social se desenvolve e se distancia da
natureza em sua forma mais pura, mais complexas se tornam as
relações entre os homens. O preço pago pelo desenvolvimento da
humanização do homem neste modo de produção é a desigualdade
nas mais diversas manifestações. Em determinadas condições
histórico-sociais, o produto do trabalho e da imaginação do homem
passa a fazer parte da vida humana como elemento integrante do
seu próprio corpo. Nessas condições, as relações entre sujeito/
objeto aparecem invertidas – o objeto passa a controlar o sujeito.
Surge, portanto, o fenômeno da alienação6, próprio da sociedade de
consumo, sob a divisão social do trabalho e a propriedade privada
dos meios de produção. É nesta sociedade que o produto da atividade
do homem não lhe pertence mais, e ele é expropriado à medida
que passa a haver a relação de exploração do homem pelo homem.
Enfatizamos que é na constituição do modo de produção
capitalista que há uma inversão de valores. As reflexões de Marx
(1983) indicam que, no modo de produção capitalista, o dono
do capital tem papel fundamental, uma vez que ele controla todo
o processo de trabalho e vigia para que os meios de produção
sejam aplicados adequadamente pelo trabalhador, sem desperdício
de matéria-prima e poupando os instrumentos de trabalho. Ao
trabalhador resta apenas a venda – por um valor diário – de sua
força de trabalho, como se fosse qualquer mercadoria integrante da

6
“Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, qual o trabalhador só pode se apossar com os
maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto tanto
aparece como estranhamento (Entfremdung) que, tanto mais objetos o trabalhador produz,
tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto do capital.
Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto do seu trabalho como [com]
um objeto estranho estão todas estas consequências. Com efeito, segundo este pressuposto
está claro: Quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais
poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais
pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos o [trabalhador] pertence a
si próprio” (MARX, 1982, p. 81).

160 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
fábrica: assim, o capitalista detém não apenas o capital, mas também
o trabalho excedente.

Mas o operário, cujo único recurso é a venda de sua força de


trabalho, não pode abandonar toda a classe dos compradores, isto
é, a classe capitalista, sem renunciar à vida. Não pertence a tal ou
qual patrão, mas à classe capitalista e cabe-lhe encontrar quem lhe
queira, isto é, tem de achar um comprador nessa classe burguesa
(MARX; ENGELS, 2011, p. 32).

Esta nova relação com o trabalho no modo de produção


capitalista é datada entre o final do século XVIII e início do
século XIX, período que se consolidou o capitalismo industrial no
mundo, principalmente em decorrência da Revolução Industrial
na Inglaterra. A partir deste período, o capital passa a ser visto
como uma relação social e o capitalismo como um determinado
modo de produção que tem um marco importante não apenas pela
troca monetária, mas principalmente pela dominação do processo
de produção, caracterizando, assim, o domínio do capital sobre o
trabalho.

O advento da indústria moderna conduziu a uma crescente


simplificação dos ofícios, reduzindo a necessidade de qualificação
específica, viabilizada pela introdução da maquinaria que passou a
executar a maior parte das funções manuais. Pela maquinaria, que
não é outra coisa senão trabalho intelectual materializado, deu-se
visibilidade ao processo de conversão da ciência, potência espiritual,
em potência material. Esse processo aprofunda-se e generaliza-se
com a Revolução Industrial levada a efeito no final do século XVIII
e primeira metade do século XIX (SAVIANI, 2007, p. 158)

O trabalho assume outra conotação, principalmente quando


produz valores de uso para obtenção de valores de troca e, com

161 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
isso, acrescenta-se ao processo a produção de mais-valia para a
acumulação e a transformação de dinheiro em capital. Neste
contexto de exploração, o trabalho desumaniza o homem, negando
a ele toda a sua propriedade criadora. A contradição que se apresenta
é: à medida que a riqueza aumenta para os donos dos meios de
produção, aumenta também a pobreza do vendedor da força de
trabalho. Assim, como indica Marx, a desigualdade social é inerente
ao modo de produção capitalista.
Nesta direção, Saviani (2007) nos mostra que foi no
desenvolvimento da produção que se conduziu à divisão do trabalho
e consequentemente à apropriação privada da terra, o que provocou
uma ruptura da unidade vigente nas comunidades primitivas. Esta
apropriação privada da terra gerou a divisão dos homens em classes:
a classe dos proprietários e a dos não proprietários. Para o autor,
este acontecimento é de suma importância para compreender a
dimensão ontológica do homem. Como já indicamos anteriormente,
o trabalho é que define a essência humana. Isso nos leva a entender
que não é possível o homem viver sem trabalhar, já que não tem sua
existência garantida pela natureza sem que ele mesmo haja sobre
ela, transformando-a para suprir suas necessidades.
Saviani (2008) reforça a afirmação de que a origem da
educação coincide com a origem do próprio homem, no entanto,
a conexão da educação com a estruturação da sociedade de classes
é que origina a forma escolar de educação.
A divisão entre os homens em classes provocará também uma
divisão na educação. Para Saviani (2007), a partir do escravismo,
configuram-se duas modalidades de educação: uma direcionada
para a classe proprietária, identificada como educação dos homens
livres “[…] centrada em atividades intelectuais, da arte da palavra e
nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar” (SAVIANI, 2007,

162 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
p. 155) e que deu origem à escola7; e a segunda para os escravos e
serviçais, que foi integrada ao próprio processo de trabalho.
É junto com o surgimento da sociedade de classes
que se institucionaliza tanto a educação como o processo de
aprofundamento da divisão do trabalho. Com esta divisão dos
homens em classe, a educação também passa a ficar separada,
diferenciando aquela destinada à classe dominante daquela que a
classe dominada pode usufruir. “A educação dos membros da classe
que dispõe de ócio, de lazer, de tempo livre passa a organizar-se na
forma escolar, contrapondo-se à educação da maioria, que continua
a coincidir com o processo de trabalho” (SAVIANI, 2007, p. 156).

Como consequência dessa profunda transformação no processo


de trabalho, todos os aspectos da vida social sofrerão enormes
mudanças. As atividades humanas já existentes serão modificadas
e outras surgirão para fazer frente a novas exigências. No caso da
educação, ela será “privatizada”, vale dizer, organizada para atender
a reprodução da sociedade de modo a privilegiar os interesses
das classes dominantes. Uma forma de educação para aqueles
que realizam o trabalho manual e que são as classes exploradas
e dominadas (a ampla maioria). Outra forma para aqueles que
realizam o trabalho intelectual e que fazem parte das classes
exploradoras e dominantes (uma pequena minoria) (TONET,
2015, p. 209-210).

Portanto, é no modo como se organiza o processo de produção


que foi possível que a escola também se organizasse como um espaço
separado da produção. Assim, o autor enfatiza que, na sociedade
de classes, a relação entre educação e trabalho tende a se manifestar
7
“A palavra escola deriva do grego e significa, etimologicamente, o lugar do ócio, tempo
livre. [...] Desenvolveu-se, a partir daí, uma forma específica de educação, em contraposição
àquela inerente ao processo produtivo. Pela sua especificidade, essa nova forma de educação
passou a ser identificada com a educação propriamente dita, perpetrando-se a separação entre
educação e trabalho” (SAVIANI, 2007, p. 155).

163 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
de maneira que haja uma separação entre escola e produção. Esta
divisão refletiu ao longo da história na separação entre o trabalho
manual e intelectual. Sendo assim, após o surgimento da escola, para
o trabalho manual continuou a ser oferecida uma educação que se
realizava simultaneamente ao processo de trabalho e, por outro lado,
destinada ao trabalho intelectual passou-se a ter a educação de tipo
escolar. Nestes termos, podemos citar o que Marx sinalizava com
relação à intensificação da divisão do trabalho com a modernização
da indústria, e consequentemente como esta separação influenciaria
diretamente no acesso a um determinado tipo de educação para a
classe trabalhadora.

Por meio da maquinaria, dos processos químicos e de outros


modos, a indústria moderna transforma continuamente a base
técnica da produção e com ela as funções dos trabalhadores e as
combinações sociais do processo de trabalho. Com isso, revoluciona
constantemente a divisão do trabalho dentro da sociedade e lança,
ininterruptamente, massas de capital e massas de trabalhadores de
um ramo de produção para outro. Exige, por sua natureza, variação
do trabalho, isto é, fluidez das funções, mobilidade do trabalhador
em todos os sentidos. […] Já vimos como essa contradição
absoluta elimina toda tranquilidade, solidez e segurança da vida
do trabalhador, mantendo-o sob a ameaça constante de perder os
meios de subsistência ao ser-lhe tirado das mãos o instrumental de
trabalho […] (MARX; ENGELS, 2011, p. 96).

Neste cenário, Lombardi (2008) aponta que o desenvolvimento


da indústria é que determinou a transformação de todo o aparato
escolar, que até então era dominado pela educação familiar, gremial
e religiosa. Aliado às transformações decorrentes da Revolução
Industrial e do desenvolvimento teórico do liberalismo, podemos
perceber a institucionalização e ampliação do aparato escolar. Assim,
a influência de pensadores liberais incidiu na maneira como se passou

164 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
a atribuir à educação e ao conhecimento a responsabilidade de
criar condições de igualdade entre todos os cidadãos. Tal afirmação
aparece na introdução do material intitulado “Textos sobre educação
e ensino, de Marx e Engels” (2011, p. 17):

Nos países em que isso foi possível, o ensino passou paulatinamente


a depender do Estado, posto que se considerou como uma
necessidade social que os cidadãos teriam de satisfazer pelo simples
fato de serem cidadãos. Porém, esse processo se realizou com uma
lentidão considerável e se foi obtida foi, precisamente, pela pressão
do movimento operário, que neste e em outros setores, colocou em
primeiro lugar reivindicações que conduziram a uma igualdade
efetiva de todos os cidadãos. Somente no final do século, começa
a consolidar-se um aparato escolar de dependência estatal, gratuito
e amplo, e somente em alguns países – França, por exemplo. Em
outros – na Espanha a incapacidade da burguesia e do Estado
burguês – ou sua especial estrutura – motivou um processo
muito mais complexo e quebrado onde amplos setores privados
se encarregaram de fazer o que os poderes públicos não podiam
e/ou não queriam realizar. […] Desde o princípio viu-se que o
ensino podia converter-se em um dos meios fundamentais de
dominação ideológica e, portanto, em um instrumento essencial
para alcançar e consolidar a hegemonia da classe no poder. O estado
de classe estava intimamente ligado ao ensino de classe. Ainda que
não sem tensões, o aparato escolar se convertia em um apêndice
da classe dominante (sem grifos no original).

Esta institucionalização e a necessidade de ampliação do


aparato escolar levou a uma crescente dependência do Estado, sob a
justificativa liberal de que a educação deveria ser abarcada no sentido
de uma necessidade social, como um direito de todos os cidadãos.
Lombardi (2008) considera que Marx e Engels não duvidavam
da necessidade de instituições públicas serem responsáveis pela
educação, porém repudiavam o controle estatal sobre elas. Esta

165 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
negação se dava no sentido de impedir que a burguesia, que já
controlava diversos campos, passasse a dominar também o sistema
educacional.
Para Lombardi (2008), o mérito de Marx e Engels sistematiza-
se em alguns princípios que desvelam o caráter revolucionário de suas
propostas para a educação. O primeiro está na centralidade dialética
do trabalho enquanto princípio educativo e dá origem à proposta
da educação omnilateral8 em oposição à unilateral, impressa na
educação burguesa. Este tipo de educação deve abarcar a educação
intelectual, produção material e instrução com exercícios físicos
e trabalho produtivo. Esta medida tem o objetivo de eliminar a
diferença entre trabalho manual e intelectual e entre concepção e
execução, fazendo com que todos os homens tenham a possibilidade
de compreender o processo de produção integralmente. Outro
princípio defendido por Marx e Engels era a relação entre educação
e sociedade “[…] expressa quer na análise do caráter ideológico e
utilitário da educação na sociedade burguesa, quer como projeto
de construção de uma sociedade igualitária” (LOMBARDI, 2008,
p. 21).
Esta transformação da educação proposta por Marx implicaria
em uma profunda mudança no modo de produzir dos homens,
alterando também a divisão social do trabalho e, consequentemente,
eliminando a diferenciação entre trabalho intelectual e trabalho
manual, fazendo com que paulatinamente se reaproximasse ciência
e produção.

8
O conceito de omnilateralidade é de grande importância para a reflexão sobre educação em
Marx. Tal conceito se refere à formação humana oposta à unilateral burguesa, que é provocada
pelo trabalho alienado, por relações de estranhamento e pela divisão social do trabalho.
Trata-se de um rompimento amplo e radical com o homem restrito da sociedade capitalista.

166 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
CONTRADIÇÕES E LIMITES DA CIDADANIA BURGUESA
E O PAPEL DA EDUCAÇÃO

Ao tentar compreender o movimento histórico em que se


constitui o ser social – a partir da compreensão do trabalho sob as
bases da ontologia marxiana – tem-se a preocupação de entender
a forma como o homem se desenvolveu e construiu os alicerces de
sua formação no plano histórico e social. Tal percurso nos possibilita
avançar na apreensão da categoria educação e seu papel mediador na
formação do ser social. Deste modo, como sinalizado por Dallago
(2014), a educação é parte constitutiva da vida em sociedade e é
por meio de sua interface com o trabalho que ela se apresenta das
mais diversas formas e nas mais diversas culturas, guardando, em
seu íntimo, o sentido ontológico de formação do Ser Social. Por este
motivo é de suma importância apreender sua ontologia e seu papel
na vida social. Assim como explicita Sader (2008), no prefácio da
obra de Mészáros Educação para além do Capital:

Ao pensar a educação na perspectiva da luta emancipatória, não


poderia senão restabelecer os vínculos – tão esquecidos entre
educação e trabalho, como que afirmando: diga-me onde está
o trabalho em um tipo de sociedade e eu te direi onde está a
educação. Em uma sociedade do capital, a educação e o trabalho
se subordinam a essa dinâmica da mesma forma em que uma
sociedade em que se universalize o trabalho – uma sociedade em
que todos se tornem trabalhadores –, somente aí se universalizará
a educação (p. 17).

Partindo deste direcionamento (em que refletimos sobre


trabalho e educação – suas aproximações e distanciamentos),
traçaremos uma reflexão sobre a questão da cidadania. Para isto,
faremos uma importante distinção entre a concepção de emancipação

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política e emancipação humana, de modo que a primeira vai ocorrer,
no âmbito da nossa sociedade, sob a tutela do capital e do Estado, e
a segunda apenas poderá ocorrer, em uma outra forma de sociedade9,
que não a que vivemos até hoje.
Na sociedade de classes organizada para manutenção da
ordem vigente, onde sempre prevalecerá os interesses da classe
dominante, a educação não pode ser considerada único elemento
emancipatório. Nestes moldes, ela tem justamente o papel oposto,
a educação se apresenta como reprodutora das relações sociais
dominantes. É por este motivo que se faz necessário compreender
o lugar da educação neste modo de produção, para não aceitar o
discurso de cidadania como horizonte formativo, sem incorporar
os limites impostos pelo capital.
Nesta perspectiva, segundo Tonet (2005b), na
contemporaneidade, a cidadania tornou-se um lugar comum no
discurso pedagógico. “É comum ouvir-se falar, por estes autores, em
educação cidadã, educar para a cidadania, formar cidadãos críticos”
(p. 470). Para o autor, embora haja diferenças ao tratar do tema,
de maneira geral, a cidadania tem sido utilizada como sinônimo de
liberdade. Embora assumidos os aspectos positivos e fundamentais
na história da humanidade, pode-se incorrer no risco de entendê-la
como uma liberdade limitada.
No intuito de situar a abrangência e a importância do
conceito cidadania, não iremos aprofundar a historicidade do
termo nem buscaremos definir a etimologia do conceito desde
9
De acordo Tonet (2005), “[...] emancipação humana, para Marx, nada mais é do que um
outro nome para comunismo, embora a primeira enfatize a questão da liberdade e o segundo
o conjunto de uma nova forma de sociabilidade. Por que, então não fazer uso desta última
categoria? Porque, ao nosso ver, ela foi tão deformada pelos embates da luta ideológica que
torna extremamente difícil uma discussão mais serena a seu respeito. Preferimos então utilizar
a categoria da emancipação humana até pelo fato de que esta categoria põe imediatamente no
centro da problemática a questão da liberdade que também é posta com chave na perspectiva
liberal” (p. 79).

168 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
os seus primórdios, que datam a partir dos hebreus, das Cidades-
Estados gregas e de Roma. Nossa sinalização do conceito abordará
brevemente a definição de cidadania na sociedade contemporânea,
a partir da definição liberal de Marshall (1967), em sua obra
Cidadania, Classe Social e Status. Salientamos que o autor escreveu
sobre cidadania na realidade histórica e sociológica da Inglaterra,
em torno dos anos 1950, devendo-se considerar o tempo e o espaço
a que se limitava.
Marshall (1967) dividiu o conceito de cidadania em
três elementos: direito civil, político e social, relacionando o
desenvolvimento da cidadania a cada um destes três direitos que
surgem linearmente, nos séculos XVIII (os direitos civis), XIX
(direitos políticos) e XX (direitos sociais). Para ele, a cidadania
define-se em um processo histórico de unificação e de especialização.
O conceito moderno de cidadania formulado por Marshall
está essencialmente vinculado ao Estado; ou seja, o indivíduo
precisa necessariamente estar ligado a estes três direitos (concedidos/
referendados) pelo Estado para obter status de cidadão, ligando desta
forma a condição de cidadania diretamente aos manejos do Estado.
Logo, compreendemos que a noção de cidadania moderna
destrói o vínculo do indivíduo com a comunidade, a relação
individual do “cidadão” passa a ser com o Estado e não com a
comunidade/classe à qual pertence.
Porém, mesmo que a cidadania moderna seja derivada da
sociedade capitalista, o conceito não pode ser restrito a este tipo de
sociabilidade. De acordo com Tonet (2005a), quando analisamos a
cidadania por meio dos direitos civis, políticos e sociais, fica evidente
que eles resultam das lutas dos trabalhadores contra a burguesia, e
que não são consentimentos dados espontaneamente pela burguesia
para a classe trabalhadora. Assim, segundo Coutinho (1999, p. 42),

169 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
Cidadania é a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou
(no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se
apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as
potencialidades de realização humana abertas pela vida social em
cada contexto historicamente determinado. […] A cidadania não é
dada aos indivíduos de uma vez para sempre, não é algo que vem de
cima para baixo, mas é resultado de uma luta permanente, travada
quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando
um processo histórico de longa duração.

Iasi (2013) também faz uma crítica a esta concepção de


cidadania e de evolução de direitos compreendida por Marshall.
Para o autor, não basta a consolidação desses direitos enquanto um
conjunto de instituições de acesso à justiça, ou com uma gama de
legislações vigentes, para que haja um quadro institucional que se
permita o “florescer dos direitos sociais” (IASI, 2013, p. 184).
Notamos, portanto, que, no âmbito da efetivação da tríade
dos direitos, existe uma certa prevalência dos civis sobre os políticos
e sociais, “por que são os direitos políticos e sociais que se atrasam
em sua efetivação? […] porque são os sociais entre eles que se adiam
indefinidamente sem se realizar, mesmo no quadro de uma efetivação
de direitos políticos” (IASI, 2013, p. 184). A partir desta observação,
é possível compreender que o que determina o ritmo dos direitos
são as correlações de forças estabelecidas na luta de classes aliadas
à capacidade de mobilização dos movimentos sociais e populares.
Todavia, este ritmo não é determinado apenas por estes dois fatores,
mas também pela resistência das classes dominantes, não apenas
por seu conservadorismo e vontade de manter a ordem vigente,
mas também por vincular cada campo do direito ao ser do capital.
“Não é, portanto, surpreendente que o capitalismo exija direitos
civis, aceite conviver com direitos políticos e, sempre que pode, se

170 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
contraponha aos direitos sociais como ameaça aos direitos civis e às
liberdades políticas (…)” (IASI, 2013, p. 185).
Em sua obra Sobre a questão judaica, de 1844, Karl Marx faz
uma crítica às revoluções burguesas e ao idealismo hegeliano quando
indica as insuficiências da emancipação política10. Marx considera
que a emancipação política significa um grande progresso, como uma
derradeira etapa da emancipação humana na sociedade capitalista.
Para ele, a emancipação política é o estágio mais avançado a que se
pode conseguir alcançar em uma sociedade desigual e exploradora,
necessitando, portanto, de uma emancipação mais ampla – que
abarque até mesmo a emancipação política – capaz de emancipar,
além do proletariado, toda a sociedade.
Para Paulo Netto e Braz (2007), no período revolucionário
a burguesia condensou um projeto de emancipação humana que
ficou marcado pela bandeira da Igualdade, Liberdade e Fraternidade,
no entanto:

[…] a emancipação possível sob o regime burguês, que se consolida


nos países da Europa Ocidental na primeira metade do século XIX,
não é a emancipação humana, mas somente a emancipação política.
Com efeito, o regime burguês emancipou os homens das relações
de dependência pessoal vigentes na feudalidade; mas a liberdade
política, ela mesma essencial, esbarrou sempre num limite absoluto,
que é próprio do regime burguês: nele a igualdade jurídica (todos são
iguais perante a lei) nunca pode se traduzir em igualdade econômico-
social – e, sem esta, a emancipação humana é impossível (PAULO
NETTO; BRAZ, 2007, p. 19).

Tais aproximações com a discussão sobre estas duas concepções


(emancipação política e humana) nos leva aos apontamentos de
10
“Desde as Glosas Críticas, de 1844, até a Crítica do Programa de Gotha, Marx enfatizou
a diferença radical existente entre emancipação política e emancipação humana” (TONET,
2005b, p. 7).

171 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
Tonet (2005a, p. 154), quando indica que, embora não haja uma
vinculação direta entre o capital e as objetivações democrático-
cidadãs, elas integram um conjunto da sociabilidade cuja matriz está
constituída pelas relações que os homens estabelecem entre si sob o
núcleo do capital, e que se manifestam na emancipação política. O
autor esclarece ainda que não devemos nos limitar a desqualificar e/
ou menosprezar a importância da emancipação política, pois ela teve
e terá grande importância na história da humanidade, até mesmo na
luta pela superação do capital. Porém, o cuidado se deve a limitar
a sociabilidade democrático-cidadã (emancipação política) como
objetivo maior e último da humanidade.
A verdadeira emancipação humana, entendida como um
momento histórico para além do capital, tem como direção
reparar os problemas sociais pretensamente apolíticos que estão na
sociedade civil, espaço este onde a burguesia opera não permitindo
a autoconstrução humana plenamente livre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É nesta direção que devemos compreender que uma atividade


educativa que tenha o objetivo de contribuir para a formação de
homens livres e sujeitos de sua própria história deve ter o objetivo de
alcançar a emancipação humana e não se limitar apenas à cidadania.
É neste meio contraditório e prolixo que a educação se
encontra tanto exercendo papel de protagonista como de vilã, isto
porque, segundo Tonet (2005),

Em uma sociedade de classes, o interesse das classes dominantes


será sempre o pólo determinante da estruturação da educação.
O que significa que ela será configurada de modo a impedir

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qualquer ruptura com aquela ordem social. Em conseqüência,
a educação, quer formal, quer informal, sempre terá um caráter
predominantemente conservador (TONET, 2005b, p. 478).

Todavia, esclarecemos, com Mészáros (2008), que, para que


seja possível pensar uma educação efetivamente a favor de processos
emancipatórios para a humanidade, primeiramente deve-se partir da
compreensão de que não há como pensar processos de reformulação
da educação sem realizar uma profunda transformação em todo o
quadro social. Não há como aceitar uma noção de reforma que
se proponha a realizar correções marginais sem alterar de fato as
estruturas da sociedade, conformando-se com as exigências da
lógica do capital. As reformas educacionais apenas remediam as
implicações catastróficas da ordem social vigente, não extinguindo
seus “fundamentos causais antagônicos e profundamente enraizados”
(MÉSZÁROS, 2008, p. 26).
Em suma, o desafio fundamental posto para a educação
pública na sociedade de classes é apresentado por Saviani (2008),
quando pontua que o desenvolvimento da educação entra em
contradição com as exigências limitadoras da sociedade de classes
capitalista, ao mesmo tempo que exige a universalização escolar,
não a realiza plenamente, pois como instrumento de manutenção
da ordem o acesso aos seus fundamentos implicaria na sua própria
superação, ou seja, o acesso de todos às escolas públicas – organizadas
com o mesmo padrão de qualidade – viabilizaria a aproximação
dos saberes por parte dos trabalhadores. Logo, sendo a sociedade
capitalista fundada na apropriação privada dos meios de produção,
consequentemente, o trabalhador (despossuído dos meios de
produção) não poderá ter acesso ao saber.

173 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
Em suma, na sua radicalidade, o desafio proposto pela sociedade
de classes do tipo capitalista à educação pública só poderá ser
enfrentado em sentido próprio, isto é, radicalmente, com a
superação desta forma de sociedade. A luta pela escola pública
coincide, portanto, com a luta pelo socialismo, por ser este uma
forma de produção que socializa os meios de produção superando
sua apropriação privada. Com isso socializa-se o saber viabilizando
sua apropriação pelos trabalhadores, isto é, pelo conjunto da
população. (SAVIANI, 2008, p. 257)

A educação formal precisa se desprender do chão da lógica do


capital e ir em direção das práticas educacionais mais abrangentes,
pois

O papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de


estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições
objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos
indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social
metabólica radicalmente diferente (MÉSZÁROS, 2008, p. 65).

Em síntese, sob as reflexões de Tonet (2005b), entendemos


que é preciso ter conhecimento consistente e profundo da natureza
da emancipação humana, que é o objetivo que se pretende
atingir. Além do mais, é necessário também fazer a distinção entre
cidadania, emancipação política e humana, no intuito de construir
argumentos concretos que permitam amparar a convicção de que a
emancipação humana tem uma finalidade superior e possível e não
apenas desejável, isto é, o domínio sólido a respeito da finalidade da
educação não garante que ela seja emancipadora, porém, a ausência
desse fundamento contribui para a desorientação desta atividade.
Nesta direção, sob a orientação dos subsídios para a atuação
de assistentes sociais na Política de Educação (CFESS, 2013) sob
a fundamentação de Carlos Nelson Coutinho, compreendemos

174 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 75 – p. 153-177 – jul./dez. 2019
que a concepção de emancipação que deve basear a compreensão
de educação, e que deve orientar a atuação das(os) assistentes
sociais, neste campo, depende da garantia do respeito à diversidade
humana, da “[…] afirmação incondicional dos direitos humanos,
considerando a livre orientação e expressão sexual, livre identidade de
gênero […]” (p. 22). A condição para uma educação emancipadora
será alcançada por processos de luta constituídos por sujeitos
coletivos, os quais qualificam a democracia como um processo e
não como um valor liberal. Esta perspectiva democrática constitui
as bases para a construção de processos de emancipação humana,
e, consequentemente, uma educação fundada nesta compreensão.

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