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OPINIÃO

Estudos de sociologia influenciam da medicina à matemática


“Sem entender quem somos, como pensamos e vivemos, é impossível gerar renda e bem-estar.”
Sob o argumento de privilegiar o ensino de profissões que, em suas palavras, “gerem renda para a
pessoa, bem-estar para a família, que melhore a sociedade em volta dela”, Abraham Weintraub,
anunciou a intenção do governo em reduzir o volume de recursos destinados às áreas de Filosofia e
Sociologia.
Uma vasta gama de instituições que agregam intelectuais atuantes nas áreas manifestou sua
discordância em relação à proposição do governo, ressaltando a
importância dos conhecimentos e a formação de profissionais em
filosofia e sociologia para a compreensão de quem somos, como
pensamos, onde vivemos, no que cremos, que tradições cultuamos
e, por fim, onde trabalhamos, quanto recebemos pelo nosso
trabalho, como nos alimentamos, moramos e educamos nossos
filhos.
Essas questões incômodas tocam muito profundamente os cientistas sociais desde os primórdios desta
ciência. Elas são um problema clássico de pesquisa teórica, empírica e aplicada, e, a despeito das
aceleradas mutações da sociedade contemporânea e do progresso das ciências sociais, mantém-se
desafiadoramente atuais.
A preocupação de compreender e tornar mais justa e igual uma sociedade como a brasileira, carregada
de contradições e de profundas desigualdades, foi, desde o seu surgimento, o foco central da ciência
social de nosso País.
Por isso, os produtos do trabalho dos sociólogos estão presentes na atuação de praticamente todas as
profissões, inclusive os médicos e veterinários mencionados pelo ministro, os quais, é necessário
lembrar, não prestarão adequadamente seus serviços se não compreenderem a sociedade em que atuam,
suas características, problemas e necessidades específicas. Esse conhecimento só pode se realizar com
a colaboração de cientistas sociais.
Desse modo, embora muitos não se deem conta, quase tudo do que foi feito no sentido de melhorar a
vida dos brasileiros também se deve ao trabalho de cientistas, entre os quais os sociólogos, que
colocaram o conhecimento que produziram a serviço do bem-estar dos cidadãos, notadamente os mais
pobres. Não há uma única ação dessa natureza que não conte com a atuação interdisciplinar de
profissionais de áreas diversas, e os sociólogos são presença muito constante nessas iniciativas de
cooperação interdisciplinar.
sem entender quem somos, como pensamos e vivemos, é impossível gerar renda e bem-estar, como
sugere o ministro Weintraub.
Os exemplos da contribuição dos sociólogos ao País, são, portanto, inúmeros. A apresentação de
apenas um deles é suficientemente ilustrativa do quanto é necessário conhecer melhor os produtos do
trabalho desses intelectuais e cientistas, para emitir juízos críticos sobre sua atuação, sobretudo no que
se refere à participação naquelas ações qu minimizam os danos que as múltiplas formas de exclusão
causam às populações mais vulneráveis.
Refiro-me ao trabalho de pesquisa sociológica orientada à aplicação prática realizada na Escola de
Sociologia e Política de São Paulo, entre os anos de 1993 e 1938, pelos professores Davis e Lowrie,
que buscou conhecer o cotidiano econômico das famílias de São Paulo com a finalidade de estabelecer
a renda média mínima necessária para a subsistência. Os cientistas sociais americanos, em conjunto
com os médicos do então Instituto de Higiene, dirigido à época por Geral de Paula Souza, observaram
e estudaram os dispêndios de centenas de lares proletários da capital paulista por vários meses. Ao fim
dessas pesquisas, conseguiram estabelecer um valor que representava a necessidade de consumo básica
de uma família operária no período de um mês. O método utilizado foi o das conhecidas Pesquisas de
Padrão de Vida.
Pois bem, esse mesmo método, com atualizações decorrentes do progresso técnico e científico ocorrido
nestas longas décadas, ainda é o suporte das essenciais pesquisas de padrão de vida do IBGE, que
servem de referência para a determinação do salário mínimo nacional – sintomaticamente, os
levantamentos também se encontram sob ameaça de não serem mais realizados, considerados
excessivamente dispendiosos.
Além disso, a sociologia contribuiu decisivamente, e esperamos que continue a contribuir, para a
elaboração da vasta gama de políticas públicas que recobrem do sistema de aposentadorias à
mobilidade urbana, habitação, saúde e educação.
A sociologia é uma prática científica sofisticada e necessária. Para bem realizar seu trabalho, ela deve
necessariamente revelar aqueles aspectos da sociedade nos quais a desigualdade se manifesta de forma
mais dura e insidiosa. É verdade que os quadros que ela, com grande frequência, apresenta são
desagradáveis à vista de quem exerce o poder incumbente. Eles demonstram a desigualdade em seus
traços mais brutos e desumanos, às vezes desvelando a ultrapassagem das fronteiras nas quais termina
a civilização.
A difusão dos cursos de ciências sociais e assemelhados pulveriza em todos os estratos da população
o conhecimento que permite compreender em profundidade a sociedade, e apontar as ações para torna-
la mais igualitária e sustentável. De outra parte, o ensino dessa disciplina no nível médio, permite aos
muitos jovens a iniciação aos métodos de compreensão crítica da vida social, um direito de todos.
A sociologia é assim uma ciência que expõe a sociedade ao cidadão, e também contribui para tornar a
vida em comum melhor. Por esses motivos, ela é uma ciência incômoda para aqueles que detém, ou
buscam deter, alguma forma de privilégio.
Essa característica a faz fundamental.
Este texto não reflete necessariamente a opinião de Carta Capital.

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