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Política

Social I

Mirian Cristina Lopes


Políticas
Social I

Mirian Cristina Lopes

IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
L854p

Lopes, Mirian Cristina


Políticas sociais públicas / Mirian Cristina Lopes. - 1. ed. - Curitiba
[PR] : Iesde, 2020.
90 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6605-6

1. Política social. 2. Políticas sociais públicas. 3. Bem-estar social. I.


Título.
CDD: 361.61
20-65667
CDU: 364-7

Todos os direitos reservados.

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Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Mirian Cristina Lopes Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Especialista em Análise da Questão
Social e graduada em Serviço Social pela mesma
universidade. Professora em instituições de ensino
superior, produtora de materiais didáticos, palestrante
e ministrante de cursos de capacitação continuada em
instituições públicas e privadas. Atua na implantação
de projetos de extensão comunitária e como técnica
de Serviço Social. Temas de interesse: políticas sociais,
novas alternativas em educação e cultura política e suas
relações com a desigualdade brasileira.
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SUMÁRIO

UNIDADE 1
1 Fundamentos sócio-históricos da política social 9
1.1 O nascimento das políticas sociais na sociedade capitalista 9
1.2 A origem e a organização das políticas sociais no Brasil 14
1.3 Políticas públicas setoriais 21

2 As políticas afirmativas e os distintos sociais 31


2.1 O nascimento das políticas afirmativas 31
2.2 Distintos sociais x minorias sociais 37

UNIDADE 2
3 O serviço social e as políticas sociais 62
3.1 O projeto ético-político do serviço social e a garantia de direitos
sociais 62
3.2 Articulação histórica entre serviço social e políticas sociais 66
3.3 O trabalho do assistente social na política de assistência social 69

UNIDADE 3
4 As políticas sociais na era dos desmontes de direitos 75
4.1 Avaliação de políticas sociais 75
4.2 Reformas e contrarreformas 79
4.3 Perspectivas para os tempos atuais 82

Gabarito 87
Vídeo APRESENTAÇÃO
A política pública social é um instrumento imprescindível ao serviço
social, pois é por meio dela que os assistentes sociais constroem os
encaminhamentos necessários para a efetivação dos direitos constitucionais,
principalmente no que diz respeito ao direito à assistência social.
Com este livro você compreenderá que o direito à assistência social
se materializa por intermédio da sua política. E esta objetiva, entre outros
propósitos, a concretização do Estado democrático de direito e, na mesma
linha, a universalização da seguridade social brasileira. Essa perspectiva
requer dos profissionais do serviço social uma postura interventiva, crítica,
ética, criativa e politicamente comprometida com a classe trabalhadora.
Desse modo, reforçamos a importância da leitura integral de todos os
capítulos, pois eles oferecem um amplo leque de informações a respeito da
origem e da organização da política pública social, bem como sobre vários
outros elementos essenciais à compreensão do universo da garantia de
direitos e em relação ao trabalho dos assistentes sociais.
O livro também aborda conteúdos sobre fenômenos e fatos sócio-
históricos e socioculturais que podem nos ajudar a compreender as
dinâmicas de discriminação, violência e criminalização, as quais constituem
o cotidiano de vida de diversos grupos historicamente excluídos.
Em suma, este estudo oferece conhecimentos gerais e específicos para
que possamos compreender a importância das políticas públicas e das
políticas públicas sociais. Os capítulos estão divididos de modo a levar ao
entendimento da origem, da operacionalidade, das potencialidades, das
limitações, das contradições postas no campo do debate dos direitos sociais
e, principalmente, de onde e em que medida os assistentes sociais podem
fazer a diferença.
Desejamos que você aproveite esta oportunidade de aprimoramento.
Bons estudos!
UNI
DA
DE
- Fundamentos sócio-históricos
da política social

- As políticas afirmativas e os
distintos sociais
1
Fundamentos sócio-históricos
da política social
As políticas sociais ocupam um lugar significativo na história das
sociedades, pois é por meio delas que a humanidade tem conse-
guido avançar no enfrentamento às desigualdades sociais. Para o
serviço social, esse é o ponto central do debate da importância das
políticas públicas sociais.
É nesse sentido que a leitura deste capítulo se faz essencial,
visto que você terá acesso aos fenômenos e fatos sócio-históricos
que fizeram parte da construção e da organização das políticas so-
ciais, desde o seu nascimento.

1.1 O nascimento das políticas sociais


Vídeo na sociedade capitalista
As políticas sociais emergiram na Europa, na segunda metade do sé-
culo XIX, como medidas de Estado direcionadas a aquietar os reclames
populares que se ampliavam significativamente com os novos níveis
de desigualdade gerados pela implantação do sistema capitalista. Esse
foi um período da história contemporânea marcado pelo agravamento
das mazelas sociais já vivenciadas pelas populações e pelo nascimento
de novos tipos de precariedade de vida.

Segundo José Paulo Netto (2005), autor que estuda a origem da extre-
ma desigualdade social, configurou-se um período inédito da história mun-
dial, dado que a dinâmica da pobreza passou a se generalizar na Europa
e nos demais países onde o processo de industrialização se instaurava.
Se não era inédita a desigualdade entre as várias camadas so-
ciais, se vinha de muito longe a polarização entre ricos e pobres,
se era antiquíssima a diferente apropriação e fruição dos bens

Fundamentos sócio-históricos da política social 9


sociais, era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então
se generalizava. Pela primeira vez na história registrada, a pobre-
za crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de
produzir riquezas. (NETTO, 2005, p. 153, grifos do original)

Esse contexto se apresentou, primeiro, na Europa e, depois, avan-


çou para vários países do globo, conforme ampliou-se o processo de
industrialização. A pobreza que já existia foi exacerbada e novas condi-
ções sociais, como desemprego e violência, passaram a fazer parte do
cotidiano da vida social. O sistema capitalista passou a se apresentar
como um modelo de produção que, à medida que criava riquezas (para
os donos dos meios de produção), produzia desigualdades ainda mais
extremas para a maioria da população – os que só tinham a mão de
obra como força para sobrevivência.

Devido às as características do novo sistema, os trabalhadores não


possuíam meios para produzir, pois o acesso a bens e serviços passou
a depender exclusivamente da dinâmica salarial. Assim, quem não ti-
nha acesso a emprego, passou a viver aquém de condições dignas de
vida. Os pobres não podiam mais contar com a divisão alimentar ad-
vinda da produção de engenho e tampouco dispunham de meios para
produzir no novo modelo econômico.

Desse modo, o novo sistema econômico – que surgiu em sua fase


concorrencial – alterou as formas de organização sociais existentes,
bem como configurou novas relações sociais, conjuntura que fez nas-
cer os conflitos de classe.

A nova condição de extrema pobreza, o alto nível de exploração dos


trabalhadores e a ausência de efetivas possibilidades de negociação
entre as classes sociais foram os fatores que conduziram os traba-
lhadores a iniciar movimentos de resistência e de luta contra a lógica
industrial, ou seja, contra os moldes de acumulação de lucro, funda-
mentados na exploração das capacidades de trabalho dos proletaria-
dos (mais-valia), que resultavam em níveis extremos de injustiça social.
A constituição de um fragmentado, miserável e “indigno” pro-
letariado, acabou por gerar, progressivamente, um processo
verdadeiramente revolucionário, constitutivo da modernidade
liberal, permitindo que o livre acesso à força de trabalho tornas-
se a base, a partir da qual se reestruturou toda a “questão social”.
O protagonismo dos atores sociais, o proletariado pauperizado,
no cenário da época, altera, portanto, o estatuto do pauperismo

10 Políticas sociais públicas


para “questão social”. Isso põe no centro da luta de classe como
fator determinante do surgimento da “questão social” enquanto
tal e a necessária consciência política da classe trabalhadora de
que somente a superação da sociedade capitalista permite a su-
pressão da “questão social”. (CASTEL, 1995, p. 15 apud GUERRA;
ORTIZ; VALENTE; FIALHO, 2007)

Ao fim do século XIX, a insatisfação com o processo de industrializa-


ção e urbanização já desencadeava diversos movimentos reivindicató-
rios em toda a Europa. Com apoio de alguns intelectuais da época, os
trabalhadores se organizaram, construíram ciência de sua condição de
classe e cravaram o início das lutas contra as desigualdades sociais cria-
das pelo capitalismo. Deixaram de aceitar que as problemáticas sociais
fossem contrapostas apenas com ações de cunho caritativo, paliativo
ou repressivo e passaram a exigir do Estado respostas mais efetivas
diante das suas precárias condições de vida.

Assim nasceram as políticas sociais, em pleno auge da expansão e


do aprimoramento da exploração capitalista e no contexto do surgi-
mento da pressão exercida pela organização dos trabalhadores – com
vistas à exigência de direitos. Políticas estatais requeridas como res-
posta às demandas a ele impostas.

Contexto de exploração e de luta que, segundo Meirelles (2017,


p. 14), resultou no nascimento da questão social, conceito muito utili-
zado pelo serviço social para explicar a raiz da desigualdade, e que, na
visão da autora, deve ser entendido como o “resultado da exploração
do trabalho pelo capital e da concentração de renda e propriedade que
configuram a desigualdade social”.

É importante considerar que o fato de as políticas sociais terem


emergido da pressão do movimento dos trabalhadores proletariados
não significou que elas tenham sido criadas para atender apenas aos
interesses dessa classe. Em meio ao “campo de tensões entre os inte-
resses do proletariado e da burguesia” (NETTO, 2003, p. 16), os capita-
listas perceberam que, além de aquietar a pressão dos trabalhadores,
as políticas sociais também poderiam ser utilizadas para alavancar a
própria economia, ou seja, para os seus próprios interesses.

E nessa direção, as elites econômicas e políticas da época conduzi-


ram o Estado a criar um sistema de proteção social que também ser-
viu aos seus interesses capitalistas. A Alemanha, por exemplo, foi um

Fundamentos sócio-históricos da política social 11


dos países europeus que, com os reclames sociais, pensou um novo
modelo de Estado, voltado a implantar políticas sociais capazes de po-
tencializar o modo de produção capitalista, ao mesmo tempo em que
garantiria algum bem-estar ao todo da população.

Um projeto político de desenvolvimento capaz de criar um Estado


com base em uma ciência administrativa, capaz de promover um
bem-estar social que implicasse a orientação de uma economia, volta-
da à prática do mercantilismo, que, em suma, “gerisse eficientemente
os impostos, intervisse com os instrumentos apropriados, técnicos, ad-
ministradores e experts setoriais” (BRAGA, 1999, p. 194-195).

Esses novos modelos de Estado, capazes de intervir mais efetiva-


mente no social, foram chamados de Estado de bem-estar social, e
passaram a ser implantados por meio de medidas interventivas (po-
líticas públicas), tanto para reduzir desigualdades quanto para im-
pulsionar planos de desenvolvimento econômico. Nesse ínterim, na
segunda metade do século XIX, as políticas sociais foram implantadas
em diversos países da Europa, sendo arranjadas de modo diferencia-
do em cada território.

Segundo Draibe e Henrique (1988), desde então os países capita-


listas aprenderam que em determinados períodos históricos é pre-
ciso equiparar a distribuição de renda para movimentar a base da
economia e, ao mesmo tempo, impedir que os trabalhadores prole-
tariados organizem uma revolução social. O que fez surgir um tipo de
cidadania controlada, que tem suas facetas de concretude (WILENSKI,
1975; QUADAGNO, 1988).

Contudo, para Marshall, o grau contraditório que constitui as políti-


cas públicas sociais não se efetiva como um total impedimento à cria-
ção de uma cidadania completa, visto que:
o processo de ampliação progressiva da cidadania, manifestado
na ampliação desses direitos, faz com que a igualdade formal e
abstrata pressione no sentido da igualdade real e concreta, ao
menos até que as diferenças existentes entre os indivíduos, no
que se refere às suas condições de vida, não ofendam a concep-
ção prevalecente em cada sociedade do que é ou não tolerável.
(MARSHALL, 1950, p. 36)

Segundo Wolf (2015), os quatro modelos de Estado de bem-es-


tar social que foram criados na Europa Ocidental influenciaram
várias outras nações que, posteriormente, também implantaram

12 Políticas sociais públicas


experiências de Estados de proteção social. Os modelos matrizes
apresentam as seguintes tipificações: o modelo anglo-saxão (Irlan-
da e Reino Unido), o modelo continental (Alemanha, Áustria, Bél-
gica, França, Luxemburgo e Países Baixos), o modelo escandinavo
(Dinamarca, Finlândia e Suécia) e o modelo mediterrâneo (Espa-
nha, Grécia, Itália e Portugal).

O modelo anglo-saxão caracteriza-se pelo papel residual do Estado


que, mediante o recolhimento de impostos, assegura o pleno funciona-
mento do sistema econômico e algumas das necessidades fundamen-
tais dos grupos sociais que vivenciam níveis de miséria e de pobreza. O
processo é pouco efetivo com relação ao enfrentamento real das desi-
gualdades sociais.

No modelo continental, o Estado assume um papel interventivo su-


perior ao do mercado, como mecanismo de resposta às necessidades
individuais fundamentais. Esse processo é realizado por meio do pa-
gamento de contribuições mais igualitárias. Nesse modelo de Estado
verifica-se maior regulamentação do mercado de trabalho e níveis de
desigualdade mais reduzidos.

O modelo escandinavo garante benefícios sociais, independente-


mente do pagamento de contribuições, financiados por meio de impos-
tos. Verifica-se um grau elevado de coesão social, com níveis reduzidos
de miséria e de pobreza.

Por fim, no modelo mediterrâneo os benefícios e serviços sociais


são bem reduzidos. O acesso à maioria dos benefícios existentes varia
em função do tipo de ocupação e, portanto, do valor de contribuição
pago por cada sujeito. Há, também, benefícios concedidos, indepen-
dentemente do pagamento de contribuições. Nesse modelo, verifica-se
uma parcela expressiva da sociedade vivendo em situação de vulnera-
bilidade, além de ser notável a maior incidência de práticas clientelistas
e níveis extremos de desigualdades sociais, se comparados aos demais
modelos (WOLF; OLIVEIRA, 2016).

O nascimento das políticas sociais desenhou novos tipos de so-


ciedade, principalmente no que diz respeito ao exercício efetivo
da cidadania, pois ainda que os sistemas de proteções sociais im-
plantados não tenham sido suficientes para que os trabalhadores
pudessem construir “estratégias para confrontar, na mesma me-
dida, as estruturas do poder econômico instauradas no âmbito do

Fundamentos sócio-históricos da política social 13


Estado”, é inegável que as “políticas sociais garantiram aos traba-
lhadores, o acesso a melhores condições de vida e de participação
na agenda política” (LOPES, 2014, p. 133).

1.2 A origem e a organização das


Vídeo políticas sociais no Brasil
Como estudamos na seção anterior, os modelos de proteção social
passaram a ser implementados com a concepção de que o Estado deve
se impor como mediador da relação capital/trabalho, a fim de intervir
com vistas à proteção social dos sujeitos que se encontrem em situação
de risco e/ou vulnerabilidade social.
Filme
Para tal, instituíram-se tipos de entendimento e prática de Estado
Para compreender me-
voltados ao bem-estar social das nações, uma alteração significativa
lhor as experiências da
humanidade com relação na história da humanidade, contexto que resultou tanto da organiza-
às grandes guerras, vale
ção dos trabalhadores e da reorganização estratégica do capitalismo,
a pena assistir a série de
documentários intitulada após sofrerem o questionamento dos movimentos populares quanto
O Mundo em Guerra.
às desigualdades criadas, quanto das experiências pós-guerras, que
Disponível em: https://www. alteraram a forma de pensar o social na maioria das sociedades que
dailymotion.com/video/xzgnf6.
Acesso em: 28 jul. 2020. compõem o globo.

No que concerne à realidade brasileira, ainda há divergência a res-


peito da existência ou não da implantação de um Estado de bem-estar
social no Brasil. A literatura se apresenta heterogênea e diversificada
com relação à definição de um padrão brasileiro de proteção social,
dado que a experiência brasileira, no que se refere às políticas sociais,
é ainda muito recente (em termos históricos).

Também, há de se considerar que a maioria dos estudos realizados


tem focado o aspecto da denúncia, no que diz respeito à importância
das políticas sociais para a efetividade de direitos (estudos sociais) e/ou
sobre a ausência delas (diagnósticos). Segundo Vianna e Silva (1989),
1
isso ocorre porque a “política social brasileira não tem sido examinada,
Também denominado Estado de 1
no seu conjunto, sob a ótica analítica do Welfare State” .
bem-estar social.
Em comparação com os tipos de Estado de bem-estar social implan-
tados em outros países, identificam-se, no Brasil, semelhanças e distin-
ções no que diz respeito à configuração das políticas sociais. Em suma,
questiona-se a real implantação de um Estado de bem-estar social no
país, dado que a realidade brasileira apresenta tipos incompletos de

14 Políticas sociais públicas


cidadania: cidadania regulada; cidadania cooptada; cidadania residual
e cidadania fragmentada (ABRANCHES, 1982; DRAIBE, 1995; ESCOREL,
1993; SANTOS, 1987).

A cidadania regulada refere-se à cidadania oriunda de um sis-


tema de estratificação ocupacional, e não de um entendimento de
código de valores políticos. Dito de outro modo, trata-se de um tipo
de cidadania ditada e fiscalizada pelo sistema estatal, por meio de
medidas de padronização do que é ser cidadão (indústria cultural,
mecanismos de policiamentos etc.). Já a cidadania cooptada se ca-
racteriza pelo controle do entendimento dos benefícios sociais, no
sentido de materializá-los, não como direito, mas como privilégio
(apesar de garantidos pelo Estado).

Na mesma linha de análise, observa-se que a cidadania residual é


aquela que se institui com o beneficiamento de determinados grupos,
com base em critérios de renda mínima, com vistas ao privilegiamento
de grupos de risco (crianças, gestantes, nutrizes, deficientes e idosos).
E a cidadania fragmentada traz luz ao debate acerca da dualidade
existente entre uma minoria rica que vive na extrema riqueza e é con-
templada por diversas oportunidades da vivência cidadã e uma maioria
pobre que vive à margem do exercício da cidadania (ABRANCHES, 1982;
DRAIBE, 1991; ESCOREL, 1993; SANTOS, 1987).

Os países latino-americanos objetivaram construir, até os anos


1970, as estruturas básicas de seus modelos de Estados de bem-estar
social; porém, iniciaram o movimento de modo descontextualizado das
suas particularidades. Uma tentativa de encaixe de modelos de Estado
não encaixáveis em suas realidades.

A influência do contexto internacional deu tom à realidade bra-


sileira, no sentido de ensaiar a implantação de um Estado de bem-
-estar social. Foram criados direitos políticos, algumas políticas de
saúde e se desenhava a construção de medidas voltadas ao ordena-
mento de recursos para o financiamento da previdência social. Em
alguns estados brasileiros, por exemplo, já se debatia proposições
de medidas interventivas mais amplas no campo da habitação, ali-
mentação e da nutrição (DRAIBE, 1995).

Contudo, o que realmente se efetivou foi a influência internacio-


nal de um Estado configurado por reformas institucionais voltadas a
modificar e reestruturar a máquina estatal, sob a perspectiva do “pri-

Fundamentos sócio-históricos da política social 15


vilegiamento e do planejamento direto, da racionalização burocrática
e da supremacia do saber técnico sobre a participação popular”. Esse
período demarca a passagem do Estado populista para o tecnocrático
(PEREIRA, 2002, p. 135).

Na sequência, o Estado brasileiro foi regido pelo regime militar que,


de 1964 a 1985, restringiu e eliminou os poucos direitos existentes na
época, como os direitos políticos – um exemplo foi o Ato Institucional
n. 5 (AI-5), instaurado em dezembro de 1968, pelo general Costa e Sil-
va, que decretava a suspensão das atividades do Congresso Nacional e
autorizava a perseguição a opositores. Ao total, foram promulgados 18
atos institucionais que eliminaram significativamente a perspectiva de
um Estado de direito e de bem-estar social, modelo de Estado que se
instaurava pelo mundo (NAPOLITANO, 1998).

Além da retirada dos direitos políticos, houve forte repressão a


qualquer manifestação de opinião diversa à do regime, ou seja, a li-
berdade de expressão não era permitida. Em termos econômicos, os
militares buscaram empréstimos com o capital estrangeiro e instau-
raram medidas de corte de despesa, como a redução dos salários e
dos direitos dos trabalhadores, o aumento de tarifas dos serviços pú-
blicos e a restrição de crédito, o que proporcionou, inicialmente, o
fortalecimento da economia nacional, mas, posteriormente, em 1985,
resultou na quebra do país, devido à crise instaurada pelo montante
da dívida internacional.
Neste período o país foi governado por militares como os gene-
rais Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emilio Garrastazu
Médici, Ernesto Geisel e João Baptista Figueredo. Vale ressaltar
que no governo Médici conhecido como “Anos de Chumbo” de-
vido ao aumento da repressão e censura o país também passou
por um “Milagre Econômico” com o objetivo de desenvolvimento
era conseguido com grandes projetos financiados pelo capital
externo, com isso, de 1968 a 1973 a economia brasileira cresceu
a uma média de 12% ao ano, os fatores que contribuíram foram
os empréstimos externos e investimentos estrangeiros, a expan-
são industrial (automóveis e eletrodomésticos), aumento das ex-
portações industriais e produtos agrícolas (soja, laranja), mas os
salários ficaram baixos a mortalidade infantil aumentou, cresceu
a miséria da população e também foi a época das grandes obras
entre elas, a ponte Rio – Niterói e a estrada Transamazônica, foi
também nesta época que o Brasil sagrou-se tricampeão mundial
de futebol no México em 1970 todos esses “fatores positivos” era

16 Políticas sociais públicas


usado pelo governo militar como propaganda a seu favor. ‘O país
vai bem, mas o povo vai mal (Reconhecimento de Médici em visi-
ta ao nordeste)’. (BOULOS JR., 2009, p. 232-233)

A resistência ao regime ocorreu, inicialmente, por meio da organiza-


ção de estratégias de fuga do forte sistema de controle instituído pelos
militares (Serviço Nacional de Informação – SNI). Artistas manifestavam
crítica ao cenário opressor com peças, poesias e festivais de música
que continham mensagens implícitas, jornalistas elaboraram jornais
alternativos, como O Pasquim, e panfletos que ofereciam conteúdos
teóricos e menções ideológicas, sindicalistas, estudantes e intelectuais
se organizaram e planejaram atos de resistência e enfrentamento ao
regime. O movimento conhecido como Diretas Já foi a organização que
reuniu diversos grupos de oposição ao regime militar, instituiu passea-
tas e diversas manifestações.

Em suma, tratou-se de um capítulo peculiar da história brasileira


que deixou cicatrizes. O endividamento do setor público também foi
uma das heranças deixadas pelo regime militar, visto que na ten-
tativa de “compensar” a retirada dos direitos políticos, realizaram
descomunais empréstimos internacionais a fim de promover o cres-
cimento econômico e a modernização no país. Contudo, o equilíbrio
econômico instaurado não beneficiou a distribuição de renda e o
resultado foi a ampliação da desigualdade social no país. Contexto
que também exerceu forte influência na organização popular contra
as arbitrariedades do governo.

A transição do regime militar para o Estado democrático de direi-


to se deu mediante dois grandes marcos históricos: a eleição do novo
Vídeo
presidente da República, em 15 de janeiro de 1985 (empossa Tancre-
A série Os dias eram assim
do Neves, que logo adoece e acaba falecendo, e assume seu vice, José retrata o contexto viven-
Sarney), e a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988. ciado pela população
brasileira do período do
A Constituição Federal (CF) brasileira foi instaurada e, com ela, o país regime militar até o acon-
tecimento do movimento
inaugurou um amplo leque de direitos fundamentais – direitos retira- Diretas Já. Esse contexto
dos pela ditadura foram retomados e novos direitos instituídos, com histórico é de extrema
importância para o
base nos aprendizados resultantes do período ditatorial. nascimento das políticas
públicas sociais.
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi- Disponível em: https://
www.youtube.com/
dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
watch?v=eq5U8DKCzTE. Acesso
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: em: 28 jul. 2020.
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos

Fundamentos sócio-históricos da política social 17


termos desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei;
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desu-
mano ou degradante;
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo,
além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na
forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência
religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença re-
ligiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar
para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a
cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica
e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a ima-
gem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação [...]. (BRASIL, 1988)

Desse modo, a CF/1988 consagrou um novo modelo jurídico de so-


ciedade e de Estado, no qual o direito passa a ser entendido como in-
trínseco à condição humana. A Carta Maior passa a ser, portanto, o
principal instrumento com o objetivo de efetivação da cidadania. Um
dos marcos inéditos para a realidade brasileira se localiza nos artigos
constitucionais 203 (prevê os destinatários) e 204 (prescreve as ações
governamentais, a destinação de recursos que as diretrizes base de
funcionamento), transcritos a seguir.
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessi-
tar, independentemente de contribuição à seguridade social, e
tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência
e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de defi-
ciência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir
meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por

18 Políticas sociais públicas


sua família, conforme dispuser a lei.
Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social
serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade so-
cial, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas
com base nas seguintes diretrizes:
I - descentralização político administrativa, cabendo a coorde-
nação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a
execução dos respectivos programas às esferas estadual e muni-
cipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;
II - participação da população, por meio de organizações repre-
sentativas, na formulação das políticas e no controle das ações
em todos os níveis.
Parágrafo único. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal
vincular a programa de apoio à inclusão e promoção social até
cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, veda-
da a aplicação desses recursos no pagamento de: (Incluído pela
Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003);
I - despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emen-
da Constitucional nº 42, de 19.12.2003);
II - serviço da dívida; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42,
de 19.12.2003);
III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamen-
te aos investimentos ou ações apoiados. (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 42, de 19.12.2003). (BRASIL, 2003)

Assim, tivemos o nascimento da assistência social, prescrita como


política social pública, aprimorada pela Lei Orgânica da Assistência
Social (LOAS) em 1993, instituída como direito de todo cidadão que
dela tiver necessidade. Trata-se de um conjunto integrado de ações
estatais, voltado a assegurar os direitos sociais e o rompimento do
caráter conservador (assistencialismo e filantropia) atribuído às políti-
cas sociais nos anos que antecederam a CF/1988. A assistência social
objetiva desenhar e implantar novos tipos de entendimentos e práti-
cas diante da condição de vulnerabilidade e/ou risco social da popula-
ção brasileira (BRASIL, 1993).

A LOAS (Lei n. 8.742/1993) regulamenta os artigos 203 e 204 da


CF/1988, reafirmando a concepção de assistência social como políti-
ca pública universal e enfatizando a particularidade da necessidade e
obrigatoriedade de que sua gestão se efetive de modo participativo.

Desse modo, a responsabilidade da organização da assistência so-


cial passa a ser designada às diferentes esferas do governo, situando-as

Fundamentos sócio-históricos da política social 19


quanto à descentralização político-administrativa, à divisão com rela-
ção a coordenação e a execução das ações, bem como às competências
específicas da esfera federal, estadual e municipal. Coube também à
LOAS assegurar o espaço de participação da sociedade (as organiza-
ções não governamentais e os conselhos paritários e deliberativos),
diante do controle e da gestão das políticas sociais (BRASIL, 1993).

Na sequência dos marcos históricos que configuram a materiali-


zação da seguridade social no Brasil, apresenta-se a Política Nacional
de Assistência Social (PNAS), estabelecida em 2004, mais de uma dé-
cada após a promulgação da LOAS. A PNAS apresenta características
peculiares responsáveis pela potencialidade do real acesso às políticas
sociais e, portanto, pela efetivação da legalidade imposta pela LOAS.
Para tal, enfatiza: a perspectiva socioterritorial, ou seja, a identificação
e atuação diante das demandas, conforme as particularidades de cada
região brasileira (cidades, municípios e bairros); e a elaboração de es-
tratégias de atuação intersetorial, com vistas à constituição de serviços
articulados em rede e à centralização sociofamiliar (BRASIL, 2004).

De modo geral, a PNAS conduz atuações mais significativas quanto


à seguridade social e confere maior grau de eficiência, eficácia e efe-
tividade com relação à superação da desigualdade social brasileira. A
melhor identificação dos diferentes níveis de vulnerabilidade e de risco
Leitura (com base na realidade vivenciada em cada parte do território nacional)
A Lei Orgânica da e a visibilização social dos grupos historicamente oprimidos.
Assistência Social é um
dos principais instrumen- No ano seguinte da criação da PNAS, já em 2015, tivemos a ins-
tos interventivos com
tituição do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), enquanto
relação ao atendimento
das pessoas que vivem principal instrumento de implantação da PNAS. Um sistema que
em situação de extrema
unifica cerca de 50 artifícios técnicos e políticos com o intuito de
pobreza.
organizar e estabelecer ações, projetos e programas socioassisten-
Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ ciais. Uma das mais importantes propostas do sistema se refere ao
l8742compilado.htm. Acesso em:
direito de participação e protagonismo dos usuários da proposição
28 jul. 2020.
ao uso dos serviços (SPOSATI, 2006).

A base de operacionalização dos rumos e da gestão pública do SUAS


é normatizada pela Norma Operacional Básica (NOB/SUAS), também
aprovada em 2005. Essa norma estabelece: o estilo do sistema e suas
funções, bem como seu financiamento; as instâncias de articulação e
deliberação; e os níveis de gestão. Quanto aos princípios, é regida pela:
universalidade; padronização; tipificação de atendimentos; descentrali-

20 Políticas sociais públicas


zação político-administrativa; fiscalização e controle; articulação de co-
bertura com as demais políticas; manutenção do sistema democrático e
participativo, juntura institucional com órgãos de sistemas de defesa dos
direitos humanos; manutenção do sistema de gestão de pessoas e ges-
tão e controle social da atuação por níveis de complexidade protetiva.

Desse modo, com a CF/1988, a LOAS, a PNAS e o SUAS, o Brasil inau-


gura uma nova era de seguridade para seu povo. De modo direto e
indireto, estabelece o “tom e os rumos” do sistema de proteção social
brasileiro e se configura como um dos principais mecanismos de dis-
tribuição de renda do país. Incide a nível nacional, em processos am-
plos, dinâmicos e complexos de democratização do acesso à garantia
de direitos sociais, com base na garantia de condições de sobrevivência
(renda e autonomia), acolhida e vivência familiar.

1.3 Políticas públicas setoriais


Vídeo O século XXI tem sido demarcado por uma moderna gestão estatal
que resultou em maior efetividade da função do Estado, bem como na
democratização da participação cidadã – conferências, Conselhos de
Direito, sistema de prestação de contas com maior transparência.

A integração de novos atores da sociedade civil (do planejamento


à fiscalização da política pública), o estabelecimento de parcerias com
organizações sem fins lucrativos e a atuação particularizada, por meio
da definição de setores, também foram significativas transformações
desse período. Ao passo em que se ampliava a responsabilidade esta-
tal, com a criação de políticas sociais, também se fortalecia a pressão
do mercado para a terceirização dos serviços públicos.

Uma das dimensões da organização do Estado, que bem caracteriza


esse período, refere-se ao planejamento de ações e projetos direciona-
dos a determinados setores da sociedade, isto é, às políticas públicas
setoriais: setor agrário, saúde, assistência social, meio ambiente, entre
outros, como o setor de educação.

À medida que se constituíam os novos cenários no âmbito do


Estado, a aplicabilidade das políticas públicas foi se tornando mais am-
pla, complexa e organizada, com setores integrados, o que possibilitou
uma visão mais totalitária das problemáticas da sociedade e o melhor
encaminhamento das demandas.

Fundamentos sócio-históricos da política social 21


A divisão setorial é organizada com foco no desenvolvimento de
políticas que atendam às particularidades de determinados setores da
sociedade. Em outras palavras, as ações, os projetos e os programas
públicos abarcam recursos específicos referentes a cada setor: espe-
cialidade técnica, recurso próprio, tecnologias peculiares, base teórica
específica, bem como leis e diretrizes setoriais. Trata-se de um tipo de
divisão estratégica que potencializa o estabelecimento de objetivos,
plano de atuação, alocação de recursos econômicos e humanos.

Contudo, a divisão setorial requer avanços, visto que apresenta certa


propensão a desconexões e disputas entre setores, devido ao difícil mane-
jo das relações sociais, tanto na questão do entendimento da necessidade
de atuação interdisciplinar quanto da troca e do acompanhamento do ciclo
de atendimentos. A articulação entre atores e instituições – intersetoriali-
dade – é um desafio que compõe a aplicabilidade das políticas setoriais.

A intersetorialidade se refere a práticas de aproximação e conexão


entre diferentes setores. Trata-se, em suma, de uma estratégia que exige
uma práxis mais maturada, voltada a fomentar e promover ações coope-
racionais e integrativas, a fim de que as políticas públicas alcancem maior
eficiência, eficácia e efetividade. No entanto, isso dificilmente se efetiva
de modo integral, dadas as particularidades da cultura política brasileira,
que ainda apresenta fortes heranças do Brasil colonial.

A divisão setorial é um tipo de fragmentação estrutural que


compõe o atual modelo de Estado. As políticas setoriais são cria-
das e implementadas por meio de medidas que beneficiam o olhar
mais focalizado na especificidade e potencializam a objetividade no
trato de determinada problemática; contudo, na mesma medida,
podem se tornar um deficit de gestão quando aplicadas de modo
centralizado e desarticulado.
Assim, o que se observa no Estado, seja em órgãos federais,
estaduais e municipais é uma desarticulação na formulação e
implementação de políticas públicas que gera uma ineficiência
e ineficácia por parte do Estado, uma vez que se despedem re-
cursos para programas ou políticas para tratar públicos seme-
lhantes ou distintos que não atingem os resultados devidos.
(LIPPI, 2009, p. 21)

Contudo, as experiências têm sido mais positivas do que negativas.


A assistência social, por exemplo, é um setor que tem exercitado uma
divisão estratégica integrativa do funcionamento dos serviços e meca-

22 Políticas sociais públicas


nismos. As políticas sociais apresentam alta capacidade de articulação,
integração, ampliação e áreas de complexidade.

A assistência social, como direito constitucional, é gerida pelo Mi-


nistério do Desenvolvimento Social (MDS), órgão que objetiva atuar no
enfrentamento à pobreza e no combate da pobreza extrema, frente
que tem como base a PNAS. Em suma, compõem a gestão do MDS: o
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); o Fundo Nacional de Assis-
tência Social (FNAS); o Fundo Nacional de Combate e Erradicação da
Pobreza (FNCP); o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS); a
Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e o Conselho Nacional de Segu-
rança Alimentar e Nutricional (CONSEA). (BRASIL, 2018)

O MDS é o principal responsável pela coordenação e implemen-


tação do SUAS, estratégia de gestão compactuada com os estados e
municípios, mediante repasses de fundos de financiamento. As Or-
ganizações da Sociedade Civil (OSC) também integram esse sistema
unificado. A articulação entre gestores federais, estaduais, municipais
e sociedade civil é a estratégia de gestão organizacional que melhor
corresponde à necessidade de rede de proteção e promoção social
do país. O SUAS é extremamente moderno no que diz respeito à
sua gestão e operacionalização, visto que seu planejamento e insti-
tucionalização preveem a articulação de saberes e experiências do
planejamento à avaliação, a cooperação entre diferentes setores e a
participação de diferentes atores sociais.
O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) conta em sua es-
trutura com os órgãos de assistência direta e imediata ao Mi-
nistro de Estado: Gabinete da Ministro (GM); Assessoria Especial
de Controle Interno (AECI); Consultoria Jurídica (CONJUR); Se-
cretaria Executiva (SE); Secretaria Nacional de Assistência Social
(SNAS), que faz a gestão da Política Nacional de Assistência So-
cial e do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS); A Secre-
taria Nacional de Renda de Cidadania (Senarc), que executa a
Política Nacional de Renda de Cidadania e realiza as atividades
de gestão do Bolsa Família e do Cadastro Único para Programas
Sociais; A Secretaria Nacional de Promoção do Desenvolvimento
Humano (SNPDH) é responsável pela formulação e implemen-
tação de políticas e programas intersetoriais para a promoção
do desenvolvimento humano, em especial para primeira infân-
cia, adolescentes, jovens e idosos. Também coordena, super-
visiona e acompanha a implementação do Plano Nacional da
Primeira Infância; A Secretaria Nacional de Segurança Alimentar

Fundamentos sócio-históricos da política social 23


e Nutricional (Sesan), que implementa a Política Nacional de Se-
gurança Alimentar e Nutricional e realiza ações estruturantes e
emergenciais de combate à fome e de inclusão produtiva rural.
A Sesan exerce o papel de Secretaria Executiva da Câmara In-
tersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN); A Se-
cretaria de Inclusão Social e Produtiva (Sisp) é responsável pelo
planejamento, implementação e monitoramento de planos, polí-
ticas e programas de inclusão social e produtiva para os benefi-
ciários dos programas do MDSA; A avaliação e o monitoramento
das ações e programas desenvolvidos pelo MDS são atribuições
da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (Sagi), que
também realiza e divulga estudos e pesquisas e viabiliza ciclos
de capacitação de agentes públicos e sociais; Instituto Nacional
do Seguro Social que regula a Previdência Social, direito social,
previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988 entre os Di-
reitos e Garantias Fundamentais, que garante renda não inferior
ao salário mínimo ao trabalhador e a sua família nas seguintes
situações, previstas no artigo nº 201 da Carta Magna: I - cobertu-
ra dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; II
proteção à maternidade, especialmente à gestante; III proteção
ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
IV salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segu-
rados de baixa renda; V pensão por morte do segurado, homem ou
mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes. (BRASIL, 2018)

A gestão do SUAS é executada entre a União – que tem a responsa-


bilidade de formular, fiscalizar e coordenar as ações gerais do sistema
–, os estados e os municípios – que têm seus papéis desenhados pela
NOB/SUAS. O planejamento de gestão do SUAS prevê três níveis de
evolução, segundo as particularidades e capacidades dos municípios:
inicial, básico e pleno.

Nesse ínterim, o maior campo de responsabilidade cotidiana fica


a cargo dos municípios, que no nível inicial são responsáveis pela ga-
rantia de existência de conselhos de direito, bem como pelo controle
dos fundos e dos planos municipais de assistência social. Já no nível
básico, compete aos municípios gerir com autonomia a gestão da
proteção básica, e no nível pleno, o município assume a gestão total
de suas ações socioassistenciais.

A construção do processo de gestão descentralizada acontece tam-


bém por meio dos espaços de troca e partilha, por intermédio de suas
instâncias de pactuação: a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e as
Comissões Intergestores Bipartite (CIB):

24 Políticas sociais públicas


A CIT é um espaço de articulação e expressão das demandas
dos gestores federais, estaduais e municipais. Ela negocia e
pactua sobre aspectos operacionais da gestão do Suas e, para
isso, mantém contato permanente com as CIBs, para a troca
de informações sobre o processo de descentralização [...] cabe
a cada ente organizar a assistência social por meio do sistema
descentralizado e participativo denominado SUAS, de acordo
com sua competência, em consonância com Constituição Fede-
ral e os normas gerais exaradas pela União, de forma a otimizar
os recursos materiais e humanos, além de possibilitar a pres-
tação dos serviços, benefícios, programas e projetos da assis-
tência social com melhor qualidade à população. Ademais, vale
destacar que o Pacto de Aprimoramento do SUAS do quadriê-
nio 2014- 2017, aprovado por meio da Resolução nº 18 de julho
de 2013, do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS,
destinado à gestão municipal, prevê como prioridade a adequa-
ção da legislação municipal ao SUAS, tendo como meta a atua-
lização ou instituição por todos os municípios de lei que dispõe
acerca do respectivo Sistema. (IGD/SUAS, 2014)

Desse modo, a gestão setorial descentralizada tem se mostrado efe-


tiva na ampliação da capacidade de execução da PNAS e do SUAS, dada
a potencialidade à articulação prevista nos moldes da descentralização
e da perspectiva de cooperação entre governo federal, estadual e mu-
nicipal. Um tipo de gestão complexa e altamente refinada.

O MDS tem sido pautado para a exequibilidade da gestão da assis-


tência social, pelas seguintes frentes: gestão compartilhada; capacitação
permanente do apoio técnico (orientação e capacitação da equipe técni-
ca responsável pela implantação dos serviços); vigilância socioassistencial
(sistematização de dados e análise diante da demanda real e de serviços
prestados); tipificação de serviços e financiamento (normas e diretrizes);
efetivação do pacto de aprimoramento (ações de estruturação e aper-
feiçoamento do SUAS: planejamento e acompanhamento da gestão,
organização e execução dos serviços, programas, projetos e benefícios
socioassistenciais); entre outros, como a regulação do SUAS – elaboração
de leis, regras, normas, instruções, além da assessoria normativa para o
desenvolvimento da política de assistência social. (BRASIL, 2018)

A aplicabilidade da gestão descentralizada da política de assistência


social ocorre mediante implantação de programas e serviços que obje-
tivam garantir suporte de atendimento por tipificação de demanda, ou
seja, um leque de serviços voltados a prevenir situações de violação de

Fundamentos sócio-históricos da política social 25


direitos e outro leque de programas voltados a apoiar pessoas que já se
apresentam na condição de direito violado. Em outras palavras, o Ser-
viço de Proteção Social Básica e o Serviço de Proteção Social Especial.

O Programa Bolsa Família é o programa de assistência social


mais conhecido, devido à sua abrangência. Trata-se do programa de
transferência de renda mais amplo do mundo (abrange 50 milhões
de beneficiários), coordenado pelo MDS e articulado a outros progra-
mas e serviços, como: Proteção e Atenção Integral à Família (PAIF);
Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI);
População em Situação de Rua; Programa Bolsa Família; Convivência
e Fortalecimento de Vínculos; Equipes Volantes; Abordagem Social;
Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosos e
suas Famílias; Serviços de Acolhimento; Medidas Socioeducativas;
Situação de Calamidade Pública; Benefício de Prestação Conti-
nuada BPC; Acessuas Trabalho, assim como as Ações Estratégicas
do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.

Os programas e serviços são implantados por meio de mecanis-


mos públicos, bem como em entidades sem fins lucrativos que tenham
atuação direcionada ao atendimento assistencial de crianças e/ou
adolescentes, mulheres vítimas de abuso e/ou violência, pessoas com
deficiência, pessoa em situação de rua e idosos. Adentram esse univer-
so: unidades de acolhimento (Casa Lar, Abrigo Institucional, República,
Residência Inclusiva, Casa de Passagem), os Centros de Referência de
Assistência Social (CRAS), o Centro de Referência Especializado de Assis-
tência Social (CREAS), entre outros mecanismos, como os Centro-Dia de
Referência para Pessoa com Deficiência e suas Famílias.

Assim, a assistência social, como política setorial, por meio de


um diverso campo de ações, projetos e programas, busca fomen-
tar e promover novos cursos na condição de vida dos sujeitos que
se encontrem em situação de vulnerabilidade e/ou risco social.
Também desenvolve o papel de criar novas visões e valores diante
da desigualdade social, bem como instituir melhor distribuição da
renda construída socialmente.

Trata-se, portanto, de uma política complexa, ampla e moderna,


pois ainda que se trate uma política setorial, sua implantação apresenta
inúmeros elementos que a caracterizam como política que se articula
aos demais setores, tanto no que se refere à implantação intersetoriali-

26 Políticas sociais públicas


zada dos serviços e programas (se articula a demais políticas setoriais)
quanto à articulação de instituições e agentes.

Portanto, a assistência social pode ser considerada uma das políti-


cas setoriais que melhor apresenta potencial de efetividade, dada a sua
potencialidade de construção e intensificação de redes de atendimento
e suporte, bem como sua diversidade e qualificação de recursos huma-
nos empregados, além de sua competência na geração de instrumen-
tos, métodos e saberes inovadores. Principalmente no que se refere à
superação dos padrões sócio-históricos de ausência e/ou negligência
do Estado diante das condições do exercício da cidadania.

Contudo, além de ainda estar em processo de implantação, na


atual conjuntura (governo de Jair Bolsonaro), tem sofrido desmontes
diversos, o que a impossibilita de cumprir o seu papel integral de
política de seguridade social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As políticas sociais são instrumentos essenciais a toda sociedade que
tenha como meta a efetivação da democracia e/ou ao menos a ampliação
da igualdade social. No serviço social, as políticas sociais ocupam lugar
central, pois é por meio delas que os/as assistentes sociais desenvolvem
a maior parte da sua atuação cotidiana.
Não há como desenvolver um trabalho com vistas à emancipação
humana sem os meios que possam concretizá-la. Portanto, as políticas
sociais são instrumentos insubstituíveis (ao menos nas sociedades ca-
pitalistas), visto que são capazes de promover os acessos necessários
à garantia de condições mais dignas de vida, sejam econômicas, sociais,
culturais, habitacionais, educacionais, relacionadas ao equilíbrio do psico-
lógico humano e/ou à proteção social contra situações de violência, maus
tratos e negligências sociais diversas.
O nascimento das políticas sociais também é um marco no que diz
respeito às conquistas efetivadas pelos trabalhadores. Demonstra a
força da organização popular com relação ao avanço da humanidade,
tendo em vista que suas lutas resultaram no aprimoramento de di-
versos setores da sociedade.
Nesse sentido, também comprova que o rumo social das nações não
pode ser deixado apenas nas mãos dos grupos que historicamente ocu-
pam os espaços de poder, dado que estes só voltam sua atenção aos gru-

Fundamentos sócio-históricos da política social 27


pos menos favorecidos quando se sentem afetados drasticamente, sejam
pelas crises econômicas que freiam a economia, seja pela violência que se
exacerba devido à condição de extrema desigualdade social.

ATIVIDADES
1. O contexto europeu do século XIX foi marcado por experiências de
guerra, alterações no modo de produção, radicalizações diversas
nos tipos de Estado e por intensos conflitos de classes; conjuntura
social, econômica e política que desencadeou níveis extremos de
desigualdade social, como o nascimento do desemprego e da pobreza
extrema. Com essas experiências, a Europa compreendeu que não
seria possível desenvolver-se enquanto sociedade sem medidas com
relação à má distribuição de renda. Dado o contexto, qual foi a principal
medida tomada pelos países europeus?

2. Além de ser a carta que formalizou o fim do regime ditatorial e a


retomada da democracia no Brasil, a Constituição de 1988 inaugurou
uma nova era para os brasileiros, no que diz respeito à proteção social.
A nova proposta de seguridade social traz a assistência social como
direito a quem dela precisar. Nesse sentido, em qual lei encontra-se
fundamentada essa proposta de proteção social?

3. Uma das principais características do novo sistema de proteção


social brasileiro é a sua dimensão organizacional estruturada por
setores de atuação (educação, meio ambiente, habitação, saúde,
assistência social etc.). Um elemento que resultou da própria
característica democrática da Constituição de 1988, visto que a
integração de novos atores da sociedade civil no planejamento e na
fiscalização da política pública passou a ser fomentada e garantida
como direito. Tendo em vista o contexto apresentado, explique o
motivo de essa organização ser setorializada.

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WILENSKY, H. The Welfare State and equality: structural and ideological roots of public
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WOLF, P. J. W. Os Estados de Bem-Estar Social da Europa Ocidental: tipologias, fundamentos
e evidências. 296f. Dissertação (Mestrado em Economia) - Instituto de Economia da
UNICAMP, Campinas, 2015.

30 Políticas sociais públicas


2
As políticas afirmativas
e os distintos sociais
Este capítulo aborda a política afirmativa no contexto da sua
relação com a desigualdade social e sua importância e perspectiva
frente à garantia de direitos. A fim de fornecer um arcabouço mais
completo, apresentaremos alguns dos fenômenos e dos fatos que
configuram dinâmicas sociais de discriminação, violência e crimina-
lização na vida de grupos historicamente excluídos.
Ofereceremos suportes para a compreensão das políticas afir-
mativas, enquanto medidas que visam amenizar e/ou eliminar as
desigualdades sociais advindas de processos discriminatórios histó-
ricos. Nesse sentido, apresentamos alguns elementos constituintes
da história de grupos sociais distintos, com maior ênfase na política
afirmativa voltada à pessoa com deficiência e à pessoa idosa.

2.1 O nascimento das políticas afirmativas


Vídeo As sociedades são alteradas e aperfeiçoadas conforme os fatos e
os processos vivenciados ao longo da história. Na mesma direção, as
políticas públicas são resultados desses processos, portanto, também
evoluem. Sua criação, revisão e inovação resultam das transformações
sociais impostas pelos grupos que constituem a sociedade.

Nesse ínterim, as políticas públicas surgiram como instrumentos


voltados a implementar respostas às necessidades sociais. São medi-
das sociais interventivas oriundas tanto do resultado das lutas sociais
travadas pela organização popular quanto das ações impostas pelos
grupos dominantes para manter uma estrutura social que lhes perpe-
tue em postos de poder.

Dito de outro modo, as políticas públicas e sociais continuam a


ser implantadas em diferentes realidades e por diferentes projetos

As políticas afirmativas e os distintos sociais 31


de governo, em diversos países do globo, e um dos últimos aprimo-
ramentos nesse quesito faz referência às políticas afirmativas, que
visam intervir na organização das sociedades em prol de enfrentar
as desigualdades sociais históricas.

O debate sobre as políticas afirmativas nasceu nos Estados Unidos,


com os grupos e movimentos sociais americanos que, na década de
1960, ganharam força com reivindicações pela efetivação de uma de-
mocracia ampliada que realmente viabilizasse a igualdade de oportuni-
dades a todos, principalmente entre brancos e negros.
A ação afirmativa não ficou restrita aos Estados Unidos. Expe-
riências semelhantes ocorreram em vários países da Europa
Ocidental, na Índia, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África
do Sul, Argentina, Cuba, dentre outros. Na Europa, as primei-
ras orientações nessa direção foram elaboradas em 1976, uti-
lizando-se frequentemente a expressão ação ou discriminação
positiva. Em 1982, a discriminação positiva foi inserida no pri-
meiro Programa de Ação para a Igualdade de Oportunidades da
Comunidade Econômica Europeia. (MOEHLECKE, 2002, p. 199)

Os movimentos que efervesceram nos Estados Unidos rapidamen-


te também foram protagonizados na Europa e, posteriormente, na
América Latina. A principal bandeira de luta enfatizava a supressão das
leis segregacionistas e requeria o comprometimento do Estado para
com o desenvolvimento de medidas que afirmassem condições iguali-
tárias de desenvolvimento aos grupos historicamente excluídos.

Assim, a reivindicação por políticas afirmativas passou a integrar


o debate das políticas públicas e foi fortemente abraçada pelos mo-
vimentos sociais. Os diálogos e embates tiveram como conquista a
implantação de cotas obrigatórias de inclusão, leis de incentivo, pro-
gramas e ações de enfrentamento à discriminação de sujeitos e grupos
que, por sua condição de raça, gênero, etnia, religião, orientação sexual
e/ou prática cultural, são historicamente excluídos e/ou negligenciados
no sistema estrutural das sociedades.

No contexto brasileiro, o debate das políticas afirmativas teve início


ao final da década de 1960, conforme materializado na proposta de lei
criada pelos técnicos do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior
do Trabalho, em 1968. Tal proposta versava sobre a instituição obrigató-
ria de cotas para contratação de negros e negras em empresas privadas,
como uma medida de enfrentamento ao contexto de discriminação ra-
cial existente no mercado de trabalho brasileiro (SANTOS, 1999).

32 Políticas sociais públicas


A proposta, contudo, não foi aprovada. Somente após a promul-
gação da Constituição Federal de 1988 os movimentos sociais bra-
sileiros tiveram acesso a meios e condições reais para projetarem a
criação de políticas afirmativas. Os princípios constitucionais foram
materializados por um conjunto de políticas públicas voltado ao en-
frentamento da desigualdade social e ao desenvolvimento da eman-
cipação dos brasileiros.

A imposição de parâmetros técnicos e de profissionalização para


implementação de políticas públicas, por exemplo, foi uma das princi-
pais mudanças geradas pelo aparato constitucional, visto que possibi-
litou que a perspectiva do direito imperasse sobre as antigas práticas
que constituíam a cultura política brasileira. Essas práticas foram usa-
das por séculos pelas elites políticas e econômicas para condicionar a
maior parte da população brasileira a depender de ações de benevo-
lência, de caridade e de negociações de favores (LOPES, 2014).

Esse processo de superação de muitas das práticas políticas


imediatistas, fragmentadas, restritas e excludentes protagonizou
no país o exercício da proteção social integral, da democracia e dos
direitos humanos, por meio de atuações preventivas e do comba-
te processual da desigualdade social brasileira (de modo direto e
indireto); elemento que se constitui como prova concreta de que as
políticas públicas e sociais se caracterizam como uma das principais
frentes de resposta às injustiças sociais.

Os aprendizados resultantes das experiências diante da nova


conjuntura imposta pelo acesso às políticas públicas alteraram, tam-
bém, os tipos de reivindicações, dado que a implantação das políti-
cas públicas e sociais oportunizou à população brasileira a vivência
da era dos direitos e, portanto, a participação no processo de cria-
ção da coisa pública. A partir do momento que a era do favor perdeu
espaço para a era dos direitos, uma parte representativa da popula-
ção brasileira passou a ampliar suas bandeiras de lutas e a instaurar
novos marcos reivindicatórios.

Na década de 1990, o movimentos negro, feminista e outros grupos,


bem como os movimentos sociais, passaram a exigir do Estado brasi-
leiro políticas públicas e sociais que pudessem transcender as ações
já existentes, com relação à efetivação de direitos. Assim, entrou em
pauta a necessidade de uma inclusão pensada sob a ótica das peculia-
ridades que constituem os diferentes.

As políticas afirmativas e os distintos sociais 33


Como resultado desses processos, tivemos o nascimento das polí-
ticas afirmativas no Brasil, caracterizadas por um conjunto de ações,
projetos e programas estatais e privados voltados ao pagamento de dí-
vidas históricas; estas advindas de discriminações e exclusões arcaicas
oriundas do berço da maioria das sociedades.

Essas políticas sociais seriam voltadas a amparar, de modo in-


1 tegral, as necessidades peculiares dos sujeitos e dos grupos que
Invisibilidades que marcaram e tiveram e/ou ainda têm formação identitária comprometida, prin-
ainda marcam a vida de milhões cipalmente com relação à ausência de valor e de respeito às suas
de brasileiros (as) que consti-
características peculiares. Sujeitos que, por sua cor, raça, cultura,
tuem a população-alvo das polí-
ticas afirmativas, principalmente práticas, características linguísticas e/ou físicas, orientação sexual,
as populações que residem em prática cultural e/ou seus valores, foram e ainda são excluídos, ne-
aglomerados, favelas e regiões
gligenciados e/ou desamparados legalmente.
de distanciamento de estruturas
essenciais como o saneamento A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (BRASIL, 2005), por
básico.
exemplo, é umas das macropolíticas que tem em sua estrutura medi-
das voltadas à afirmação de direitos dos sujeitos e dos grupos histori-
Glossário camente excluídos. A PNAS é uma política pública social especializada,
transgênero: termo que faz particularizada, desmercadorizável, genérica e universalizante. Sua
referência aos sujeitos que não
implantação proporcionou a identificação de demandas sociais histo-
se identificam com o gênero que 1
diz respeito ao seu sexo biológico. ricamente invisibilizadas , além de ter abarcado territorialidades e
É importante pontuar, também, intersetorialidades nunca antes priorizadas na história do Brasil.
que a questão de identidade de
gênero não está necessariamente A vivência do leque de acessos proporcionado pelas políticas públi-
relacionada com a orientação cas sociais como a PNAS resultou em aprimoramentos diversos para
sexual dos sujeitos.
a população brasileira, visto que abrangem aspectos para além do
econômico. Essa é uma condição essencial para a afirmação de direi-
2 tos das populações historicamente excluídas, visto que o preconceito
LGBTQIA+ é a sigla utilizada estrutural é um impeditivo à constituição de outros tipos de capitais
para fazer referência a lésbicas,
como o capital social e o capital cultural.
gays, bissexuais, travestis,
transexuais,transgêneros, queer Configuram o público-alvo das políticas afirmativas os sujeitos e gru-
e intersex e assexuados. No livro
pos vítimas de preconceitos históricos, como as negritudes, os indígenas e
História da Sexualidade, Foucault
oferece um excelente material as mulheres. Incluem-se, também, as vítimas de discriminações por ques-
para quem busca compreender tões mais contemporâneas, como os sujeitos transgêneros e os demais
a raiz dessas questões. As 2
autoras Simone de Beauvoir, sujeitos que compõem as populações LGBTQIA+ , idosa, em situação de
Saffioti e Altmann também rua, dentre outros, e a pessoa com deficiência. Sujeitos que, por sua con-
abarcam, de modo significativo, dição étnica, religiosa, de gênero, de sexualidade, por características
o debate acerca do gênero e da
sexualidade. linguísticas, físicas e/ou culturais, são discriminados pelos demais gru-
pos da sociedade e, portanto, ignorados e/ou excluídos de processos

34 Políticas sociais públicas


sociais que são essenciais ao desenvolvimento de um aprimoramento
humano mais justo e igualitário.

Discriminações estruturais configuram uma dura realidade que se


manifesta em séculos de histórias de vidas prejudicadas. Esse contex-
to de vida se materializa em números absurdos de vidas retiradas em
todo o mundo e, no Brasil, aumentam mais a cada dia.

O povo indígena, por exemplo, é um dos grupos brasileiros que


mais necessita de políticas afirmativas. Além do genocídio que eliminou
milhões de indígenas nos tempos do Brasil Colônia, reduzindo essa po-
pulação em 90%, na atualidade continuam sendo assassinados cerca
de 100 indígenas por ano. Mesmo após 500 anos de história, o Brasil
continua a desrespeitar e a eliminar os verdadeiros donos do território
nacional (CIMI, 2018).

A demarcação das terras dos povos indígenas é uma promessa


constitucional que ainda não se cumpriu, e a população indígena conti-
nua sendo assassinada. O Estado brasileiro é o maior responsável pelo
genocídio indígena. Primeiro porque a não demarcação deixa a popu-
lação indígena vulnerável diante dos conflitos gerados pela disputa da
terra; segundo por não punir efetivamente os culpados pelos crimes
cometidos contra os povos indígenas; terceiro porque garante supor-
te aos interesses dos ruralistas, agropecuaristas e garimpeiros (grupos
que visam tomar posse das áreas onde vive a população indígena);
quarto porque não concretiza políticas públicas que sejam mais efeti-
vas para a afirmação da cultura indígena; e, por último, porque o Esta-
do ainda se apresenta como uma instituição que reforça, em diversos
aspectos, concepções e práticas indigenistas, racistas e etnocêntricas.

O povo negro recebe do Estado e da sociedade um tratamento


ainda pior, visto a falta de demarcação de terra ao povo de origem
africana, que ergueu as bases deste país por meio do trabalho es-
cravo. A eles foram destinados os territórios periféricos, os cortiços,
as favelas e as encostas dos morros localizados no meio urbano, ou
seja, há segregação social. Ao povo negro foi destinado o trabalho
mais pesado, o salário mais baixo, a desqualificação da beleza, a
criminalização da cultura, a prostituição, a naturalização da violência
contra seus corpos e a miséria.

As mulheres continuam a ser vítimas de feminicídio, sendo assassi-


nadas pelo simples fato de serem mulheres, e o Brasil ocupa o 5º lugar

As políticas afirmativas e os distintos sociais 35


dentre os países que apresentam os maiores índices de feminicídio no
mundo. A maioria das vítimas são negras e pobres que vivenciam coti-
dianamente diversos tipos de exclusão e violência devido a uma cultura
estrutural machista e patriarcal que impõe a ideia da superioridade do
masculino sobre o feminino. A elas tem sido destinada a naturaliza-
ção do abuso e a responsabilização pelo estupro de seus corpos. Elas
compõem o maior grupo populacional do mundo, mas são minoria nos
espaços e postos de poder (CIMI, 2018).

As mulheres carregam fardos extremos, são condenadas à sub-


missão ao masculino e à procriação como função social, têm suas
liberdades condicionadas, são reprimidas em seus pensares, este-
reotipadas segundo a vontade masculina e agredidas quando se
posicionam no enfrentamento. E, assim, se estabelece a violência
contra a mulher, enquanto resultado de uma construção social es-
trutural de desigualdade nas relações de força e poder entre ho-
mens e mulheres. Um construto que se reproduz pela cultura e que
culmina na morte de milhões de mulheres.

Os casos de discriminação contra as negritudes, os povos indíge-


nas e contra as mulheres, contudo, têm sido debatidos com mais fre-
quência na atualidade. Com o advento da internet, o mesmo pode ser
dito sobre a discriminação contra a população LGBTQI+; uma conquista
comprovada da militância incansável e histórica dos movimentos so-
ciais que representam esses grupos populacionais.

Esse sujeitos computam séculos de luta e avançaram tanto na pu-


blicitação de suas pautas quanto em relação a produções científicas no
campo da luta pela efetivação de seus direitos. Tal contexto se compro-
va com o quantitativo de produções acadêmicas existentes acerca des-
sas temáticas, bem como pela frequência com que o debate aparece
nas redes sociais e nos demais espaços de produção e disseminação
de conhecimento e comunicação.

Quanto à população em situação de rua, compreendemos que


já é um campo bastante demarcado pelo senso comum, em relação
a uma consciência social coletiva que afirma seu próprio precon-
ceito e discriminação diante dessa parcela da população. Observa-
mos, também, certa priorização dessa pauta na abrangência dos
debates, dada a atual conjuntura pandêmica em que vivemos: o
surto de Covid-19.

36 Políticas sociais públicas


Nas próximas seções, daremos maior ênfase à pessoa com deficiên-
cia e à pessoa idosa, pois entendemos que a discriminação desses dis-
tintos grupos sociais ainda se estabelece de modo mais velado e, por
vezes, mascarado. Mas, antes, pontuaremos um importante debate
acerca do uso dos termos: distintos sociais e minorias sociais.

2.2 Distintos sociais x minorias sociais


Vídeo Aos poucos, o debate das políticas afirmativas também ganhou
prioridade nos espaços acadêmicos e ampliaram-se as pesquisas volta-
das ao levantamento das condições de existência de grupos inicialmen-
te intitulados minorias sociais – não em relação à quantidade, mas no
sentido do abarcamento dos direitos.

O termo minorias sociais está em debate no campo das ciências so-


ciais, visto que há discordância acerca da real adequação do uso desse
termo para fazer referência aos grupos excluídos por suas característi-
cas peculiares. Ele tem sido usado para retratar uma dimensão quanti-
tativa da realidade e para tipificar grupos e classes sociais.

Essa confusão terminológica oculta detalhamentos importantes acerca


dos diferentes debates, além de não contribuir para o desenvolvimento
da consciência da maioria da população, com relação à ausência de igual-
dade de oportunidades. No sentido de fomentar o debate, enfatiza-se a
necessidade de se eleger um termo que realmente possa fazer jus aos
grupos que requerem uma proteção especial e particularizada, no que diz
respeito às vulnerabilidades que vivenciam. Um termo que expresse que
a diferença não pode ser “utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao
revés, para a promoção de direitos” (PIOVESAN, 2005, p. 38).

Para melhor compreensão desse debate, cabe observarmos o


exemplo das mulheres. Estas são quantitativamente majoritárias em
quase todas as nações do globo e, juntas, formam o maior grupo de
indivíduos do planeta, ao mesmo tempo que são minoria com relação
aos sujeitos que possuem melhores salários. No mesmo tipo de exer-
cício comparativo, são minoria entre os sujeitos que ocupam cargos
de melhor prestígio e nas profissões nas quais a mecânica, a física e
as tecnologias imperam. Pertencem ao grupo que mais sofre violência
de gênero e computam o maior quantitativo de vítimas de morte por
agressão do mundo. São, portanto, minorias ou maiorias sociais?

As políticas afirmativas e os distintos sociais 37


Vejamos, também, outros elementos: a vivência de uma mulher
rica é extremamente diferente da de uma mulher pobre; há, inclusi-
ve, significativa divergência entre a vida de uma mulher branca e de
uma negra, assim como existem diferenças significativas no campo
do acesso entre as mulheres que são mães e as que não são respon-
sáveis por crianças e/ou adolescentes. Observamos distinção, ainda,
entre mulheres que são as únicas mantenedoras de seus lares e as
que dividem as responsabilidades com companheiros ou companhei-
ras. Cabe considerar que, se essa mulher for pobre, negra e lésbica,
apresentará particularidades bem distintas das demais mulheres no
que se refere à igualdade de oportunidades.

Em outras palavras, de acordo com o nosso entendimento, o termo


minorias sociais não representa a realidade que se pretende debater.
Desse modo, entendemos a urgente necessidade de se construir um
conceito que realmente retrate as particularidades que envolvem os
sujeitos e grupos-alvo das políticas afirmativas. Essa é uma condição
essencial para o avanço do debate, dado que as políticas públicas de-
pendem da aprovação de propostas de leis que podem ser alavancadas
e/ou vetadas pelo entendimento popular.

Neste livro, portanto, empregaremos o termo distintos sociais para


definir os grupos que apresentam exclusões históricas com relação ao
impedimento de desenvolvimento econômico, social e cultural, devi-
do a questões de preconceito e intolerância às suas particularidades
étnicas, de gênero, de raça, de religião, de tipo linguístico, de cultura
territorial e condição saúde mental e/ou física.

A escolha se deve ao fato de que a palavra distinção parece ofe-


recer melhores condições de abarcar os sujeitos para os quais as
políticas afirmativas foram criadas, pois remete ao entendimento de
que há diferenças em evidência, ou seja, particularidades com rela-
ção a algo e/ou alguém.

Fazendo uso do termo distintos sociais, acreditamos abrandar o


ofuscamento causado pelo termo minorais sociais, diante das diferen-
ças presentes nos grupos sociais. Além disso, cremos atenuar o ocul-
tamento do termo minorias com relação às particularidades existentes
entre os sujeitos do mesmo grupo.

Desse modo, compõem os distintos sociais os grupos historica-


mente discriminados, violentados, vulgarizados, marginalizados e/ou

38 Políticas sociais públicas


excluídos de seus direitos devido à intolerância social histórica empre-
gada diante das suas diferenças: mulheres, negros e negras; indígenas;
quilombolas; pessoas com deficiência; população LGBTQIA+; morado-
res de favelas; população em situação de rua e população idosa.

Ao menos até que se amplie e o debate seja aprofundado, enten-


demos que a homogeneização do que não é homogeneizável pode
comprometer a efetivação da igualdade de oportunidades. As políticas
afirmativas resultaram de movimentos sociais históricos que, diante
da ausência de igualdade de oportunidades e da homogeneização das
diferenças, têm provocado a sociedade para novos pensares. Desse
modo, entendemos que o uso do termo minorias sociais é um desservi-
ço às lutas desses grupos sociais.

2.2.1 A pessoa negra


O Brasil é comprovadamente um dos países mais desiguais do mundo,
configuração que está diretamente relacionada ao seu processo de coloni-
zação exploratória. O país foi fundado (política, econômica e socialmente)
por meio da exploração de seus recursos humanos, materiais e naturais.

A população negra foi a que mais sofreu exclusões, violências, negli-


gências e explorações de diversos tipos durante esse processo, o qual
teve como prioridade a escravização, a tortura, a desterritorialização, a
concentração de renda, a intolerância às diferenças culturais e a exclusão
de acesso a bens e serviços, bem como à riqueza socialmente produzida.

O povo negro foi a base braçal do desenvolvimento do Brasil, o que


se deu por meio da força de trabalho dos 4 milhões de negros trazidos
à força ao território brasileiro durante o processo de escravização (do
século XVI ao XIX). A escravidão forjou processos disciplinares com base
no medo da morte, estabeleceu condutas e imposições hierárquicas,
definiu tipos de impedimento para o uso dos espaços sociais, além de
ter maquinado visões, valores e ações entre brancos e negros.

A população escrava foi impedida de frequentar a escola por longos


períodos na história e, mesmo após liberta, não dispôs de mecanismos
efetivos para a emancipação social, dado que escravidão não se tra-
tou apenas de um sistema relacionado à economia. As desigualdades
sociais resultantes do Brasil colônia se expressam na atualidade em
indicadores sociais muito desiguais.

As políticas afirmativas e os distintos sociais 39


Segundo os dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), dos 34 milhões de trabalhadores que declaravam
cor e raça em 2016, identificou-se que 19,4% dos trabalhadores com
carteira assinada são brancos, enquanto 14,1 milhões são negros. Com
relação ao campo de trabalho, os dados apontam que áreas como me-
dicina, engenharia, docência no ensino superior, odontologia e aviação
são 90% ocupadas por trabalhadores brancos. Na contramão, as áreas
de cultivo e cultura (cana-de-açúcar, dendê, cacau, camarão), cria-
douros, limpeza e segurança, bem como instalação de cabos e fiação,
telemarketing e obras são ocupadas majoritariamente por negros, em
média 80% (IBGE, 2018a).

A discrepância entre brancos e negros é alarmante; os ecos da


escravidão ainda são presentes na atualidade, mesmo após terem
se passado 130 anos da instauração da Lei Áurea. No que se refere
às condições de cargos e salários, por exemplo, os negros (as) com-
põem o grupo dos sujeitos que recebem os menores salários, mes-
mo quando ocupam o mesmo cargo e/ou desenvolvem a mesma
atividade que as pessoas brancas.

Quanto ao acesso e à permanência na educação, a Pesquisa Na-


cional por Amostra de Domicílios, realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, demonstra que o maior índice
de analfabetos ainda se localiza na população negra. Os dados apon-
tam que a população branca acessa e conclui processos educacionais
(nível fundamental e médio) duas vezes mais que a população negra.
Com relação à formação universitária, os dados são ainda piores, visto
que menos de 10% da população negra ou parda conclui cursos univer-
sitários (IBGE, 2018b).

Essas diferenças se acentuam ainda mais se observadas pelo aspec-


to regional e pela faixa etária dos sujeitos: 7,2% dos adolescentes de
15 anos ou mais são analfabetos. Desses, 4,2% são brancos e 9,9% são
pretos ou pardos. Com relação aos jovens maiores de 18 anos, o anal-
fabetismo atinge 7,7% (4,4% brancos e 10,6% pretos ou pardos). Entre
os adultos de 25 anos ou mais, 8,8% são analfabetos (4,9% brancos e
12,4% pretos ou pardos) (IBGE, 2018b).

Ainda sobre os dados apresentados pelo IBGE, outra parcela de da-


dos indica a diferença da condição racial entre negros e brancos de 40
anos ou mais, visto que, dos 12,3% que não são alfabetizados, 6,8%

40 Políticas sociais públicas


são brancos e 17,8% são negros ou pardos. A população idosa é a que
mais apresenta níveis de analfabetismo, dado que, dos 20,4% dos bra-
sileiros analfabetos 11,7% são brancos e 30,7% são negros ou pardos.
Quanto ao aspecto regional, a dissonância é ainda mais extrema. Na
região Sudeste, por exemplo, 25,6% das pessoas brancas concluíram
o ensino superior e apenas 9% de negros ou pardos apresentaram a
mesma realidade (IBGE, 2018b).

O quadro apresentado compõe retratos de duas realidades mui-


to peculiares do Brasil, isto é, os negros e negras compõem o maior
grupo de analfabetos do país e, devido às históricas ausências de
oportunidades e acessos, são obrigados a iniciarem as atividades de
trabalho ainda na infância (se evadem da escola, pela necessidade
de contribuir para a economia do lar). Além de receberem os meno-
res salários, computam a maioria dos trabalhadores que executam
serviços braçais, contexto que compromete profundamente as suas
possibilidades de ascensão social.

Com uma vivência de constante inferiorização no mundo do traba-


lho e da escola, esse grupo reside em habitações precárias e represen-
ta os sujeitos que mais morrem por motivo de assassinato, bem como
formam o maior núcleo de encarcerados do país. São historicamente
discriminados pela cor da sua pele e foram tardiamente cobertos pelos
sistemas de proteção estatal e, portanto, computam o maior índice de
mortalidade precoce do mundo.

No outro grupo localizam-se brancos e brancas que apresentam o


maior índice de alfabetizados do país e compõem a parcela da popula-
ção que possui o maior capital financeiro. Demonstram uma realidade
de 90% de acesso e permanência na escola e na universidade, residem
em territórios adequados, vivenciam experiências que potencializam
o desenvolvimento humano desde a infância (esportes, viagens, canto
dança, violão, violino, piano, pintura, jogos tecnológicos, línguas estran-
geiras, cursos), apresentam ascensão profissional precoce e, dentre ou-
tras características, pertencem ao grupo que historicamente apresenta
os melhores índices de qualidade de vida.

Sendo assim, diferente do que se apresenta nos discursos de senso


comum, as políticas sociais afirmativas que beneficiam as negritudes
não são uma ajuda a negros (as) por serem pobres, tampouco uma me-

As políticas afirmativas e os distintos sociais 41


dida voltada exclusivamente ao combate à discriminação. As políticas
afirmativas objetivam o pagamento da dívida histórica diante das pre-
cárias condições de construção de capital social e econômico de negros
e negras que foram engendradas desde a origem da nação.

O comprometimento da construção do capital social é uma das


principais questões a ser compreendida no debate das políticas afirma-
tivas, visto que se trata do impedimento e/ou da dificuldade de estabe-
lecer melhores condições de desenvolvimento social. O capital social é
um tipo de poder que só pode ser construído mediante o acesso a bens
e serviços (saúde, educação, trabalho, habitação), a tipos de interações
e espaços sociais. Também corresponde aos tipos de experiências edu-
cacionais e culturais, bem como aos demais tipos de acesso ou não
acesso em estruturas sociais, construtos que, em sua maioria, foram
negados ao povo negro.

O capital social pode determinar a condição de vida na sociedade,


visto que pode ser transmutado para outros tipos de capital, como
o capital econômico e cultural. Em suma, são conjuntos de recursos
que podem ser adquiridos de berço pelo capital social, cultural e
econômico da família e aprimorados ao longo da vida, ou construí-
dos com alianças e redes de relações estratégicas que resultem em
tipos de empoderamento (afetivas, políticas, econômicas, simbóli-
cas, culturais, entre outras).

O desenvolvimento de um sujeito ou de uma sociedade tem re-


lação com os tipos de conhecimento que experienciam e estrategi-
camente movimentam (aplicam, negociam e trocam). Segundo Pierre
Bourdieu (1980, p. 2),
o capital social é o conjunto de recursos, efetivos ou potenciais,
relacionados com a posse de uma rede durável de relações, mais
ou menos institucionalizadas, de interconhecimento e de reco-
nhecimento. O volume de capital social que um agente particular
possui depende da extensão da rede de ligações que ele pode
mobilizar e do volume de capital econômico, cultural ou simbóli-
co, possuído por cada um daqueles a quem ele está ligado.

É com vistas no enfrentamento desses tipos de desigualdades es-


truturais que se localizam as políticas afirmativas, ou seja, não se trata
de políticas permanentes, como a previdência ou a assistência social,

42 Políticas sociais públicas


pois uma vez que seja obtido o objetivo, deixam de ser imperativas.
As políticas afirmativas possuem caráter transitório, visto que têm o
intuito de amenizar as barbaridades instituídas contra o povo negro e
contra outros distintos sociais.

Quando a realidade brasileira demonstrar equiparação entre bran-


cos e negros no ambiente universitário, assim como nos cursos majo-
ritariamente ocupados por pessoas brancas, por exemplo, não haverá
mais a necessidade da política. Quando assim for, será possível afirmar
que negros e negras tiveram a mesma oportunidade de construção de
capital social e, portanto, condições igualitárias de conquistar poder,
intelectual, econômico e cultural.

O debate brasileiro sobre a necessidade de criação de políticas afir-


mativas para o povo negro teve grande influência da 3° Conferência
Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e formas
correlatas de Intolerância, promovida pela ONU, em 2001, na cidade de
Durban, na África do Sul. O fomento à criação de cotas e de outras me-
didas provocou diversos movimentos e ações que resultaram na cria-
ção de projetos e órgãos voltados ao enfrentamento da intolerância e à
efetivação da igualdade racial (MORENO, 2009).

A política afirmativa mais conhecida pela população, de modo ge-


ral, é a cota racial, voltada a garantir a entrada de negros e negras no
ensino superior e conceder bolsas como benefício para permanência
na instituição. As cotas e bolsas sociais são conquistas do movimento
negro brasileiro, que fez o reclame pelo direito ao estudo universitário.

Outras políticas afirmativas também seguem criando espaço de de-


bate e concretização e, em suma, visam amenizar e eliminar as exclusões
sociais advindas de processos discriminatórios históricos. Para tal, a im-
plantação das políticas afirmativas se dá de modo articulado às demais
políticas de proteção social e é efetivada por meio de ações, projetos e
programas. Configuram-se medidas que abrangem a implementação de
cotas, bolsas e empréstimos de recursos financeiros, valoração, fomento
e incentivo à cultura peculiar dos grupos discriminados socialmente.

As políticas afirmativas, portanto, são essenciais, urgentes e impres-


cindíveis. Podem promover mudanças significativas na sociedade, visto
que são projetadas tanto para o enfrentamento direto quanto para a
prevenção. Sua necessidade se justifica pelo fato de que a constância

As políticas afirmativas e os distintos sociais 43


da discriminação determina tipos de construções de capitais econômi-
cos, culturais e sociais. É uma dívida histórica que precisa ser paga ou
ao menos amenizada pela nação brasileira, visto que as milhões de vi-
das prejudicadas e extintas não podem ser refeitas.

2.2.2 Pessoa com deficiência


Desde os primórdios da humanidade, a pessoa com deficiência
recebe trato social indigesto e, na maioria dos povos e culturas, por
muitos séculos, foram compreendidas como seres defeituosos, que de-
veriam ser segregados, excluídos ou até mesmo exterminados. O trato
3 para com essa parcela da população sempre esteve regado de valores
Segundo Goffman (1988), construídos em bases preconceituosas e estigmatizantes .
3

o estigma é um construto
social, ou seja, um tipo de No que se refere à história mundial dos povos e das nações, a exclu-
entendimento sobre o outro que são, o abandono, a exploração ou até mesmo o extermínio de recém-
não condiz com a realidade e
que, em suma, está relacionado -nascidos com deficiência foram práticas desenvolvidas durante muitos
à desqualificação, à negação séculos. Há registros, por exemplo, de povos nômades e de tribos in-
ou à não aceitação do outro. O
dígenas que abandonavam as pessoas com deficiência à própria sorte.
estigma resulta da cultura social
estabelecida, daquilo que cada Elas acabavam tendo suas vidas encerradas pela fome ou pelo ataque
sociedade estabelece enquanto de animais ferozes. Há, também, registros de tribos que exterminavam
sinônimo do que considera
crianças nascidas com deficiência em cultos de purificação por acredi-
desejável e aceitável com
relação a atributos individuais e tarem que elas eram detentoras de maldições que poderiam assolar a
coletivos. O estigma normatiza tribo (CARMO, 1991).
modos de perceber e lidar com
determinados tipos de pessoas, Na Grécia Antiga, por exemplo, o povo espartano (mundialmente
ou seja, há uma dimensão reconhecido pela habilidade de guerra) cultuava a beleza física, a força
subjetiva, ao mesmo tempo que
se materializa em ações diretas e a perfeição como atributos essenciais para a formação de seu povo.
contra o ser estigmatizado. Desse modo, a decisão de vida ou morte dos nascidos com deficiência
Quem é estigmatizado e quem
cabia ao julgamento do conselho de Esparta.
detém o poder de estigmatizar
são definidos pelo contexto A rejeição à pessoa com deficiência, fosse física ou mental, também
sociocultural de cada povo.
era muito comum na Roma Antiga, havendo uma tolerância aos que
passavam à condição de deficiência devido às mutilações de guerra (a
estes, cabia ao Estado o sustento, e ao todo da sociedade, a aceitação).
Contudo, aos nascidos na condição de deficiência, o Estado romano
autorizava legalmente o extermínio (SILVA, 1997).

O cristianismo também foi um dos responsáveis pelo modo com


que diversas sociedades construíram seus valores e dogmas relaciona-
dos ao tratamento para com as pessoas com deficiência. Em alguns pe-

44 Políticas sociais públicas


ríodos da história, a deficiência passou a ser entendida como produto
do pecado e, devido a isso, muitas crianças foram assassinadas.

Já em outros períodos, o cristianismo influenciou o estabeleci-


mento da piedade, ou seja, a necessidade de defender a manutenção
da vida da pessoa com deficiência, como demonstração de boa fé.
Contudo, independentemente dos períodos históricos influenciados
pelos princípios do cristianismo, permaneceram as práticas segrega-
cionistas, bem como a exclusão, o julgamento, a exploração e a negli-
gência das pessoas com deficiência.

Outro significativo exemplo de como o preconceito para com


a pessoa com deficiência se altera segundo o contexto vivenciado
por seu povo é o advento da industrialização. O sistema capitalista
protocolou a pessoa com deficiência na condição de inútil diante
do desenvolvimento da humanidade. Além disso, ampliou a con-
cepção de deficiência, passando a se enquadrar na condição toda e
qualquer pessoa que não apresente a eficiência e a produtividade
requeridas pelo sistema econômico.

A partir do século XVIII, o sistema produtivo passou a determinar o


sistema educacional, ou seja, uma escolarização padronizada, voltada
à formação básica para o trabalho. Nesse contexto, a pessoa com de-
ficiência também passa a ser excluída, sob a justificativa de que não
estaria apta a ensinar ou aprender. Não poderiam, por conseguinte,
produzir e, desse modo, não teriam necessidade e tampouco priorida-
de à escolarização (SILVA, 1997).

Ainda que a condição de deficiência seja tão antiga quanto a própria


humanidade, tanto na história antiga e medieval quanto na contempo-
raneidade o preconceito contra a pessoa com deficiência tem sido uma
prática humana. Reproduzido ao longo dos séculos e por diferentes so-
ciedades, o preconceito reproduz valores que desqualificam, exploram,
negligenciam, isolam, segregam e marginalizam a pessoa com deficiência.

Segundo Figueira (2008), as primeiras instituições voltadas a prestar


algum tipo de suporte específico para as pessoas com deficiência de-
correram de uma atitude diante dos numerosos corpos mutilados nos
períodos de guerra. Os primeiros serviços de que se tem registro ocor-
reram na Roma Antiga, que passou a destinar aos soldados mutilados
tipos de atendimento próximos ao hospitalar, realizados em locais que,
com o passar dos anos, vieram a se tornar instituições estatais.

As políticas afirmativas e os distintos sociais 45


Demais tipos de deficiência começaram a ter algum tipo de atendi-
mento em instituições de caridade, a maioria sob o controle da Igreja
Católica. Assim, aos poucos, as sociedades passam a institucionalizar o
atendimento hospitalar e criaram instituições voltadas ao desenvolvi-
mento do exercício da caridade e da benevolência para com as pessoas
com deficiência (FIGUEIRA, 2008).

Em sua maioria, eram instituições que tinham o objetivo de pres-


tar algum tipo de atendimento às pessoas com deficiência em prol da
manutenção da vida. Os serviços eram precários, realizados em áreas
afastadas e isoladas, onde vivia a maioria da população. Tais institui-
ções e procedimentos serviram também para reproduzir a prática de
segregação social desses distintos sociais.

No Brasil, a primeira instituição de que se tem registro na presta-


ção de algum tipo de atendimento à pessoa com deficiência foi a Igreja
Católica, com a “roda do expostos” e as “casas de muchachos”. A roda
dos expostos era feita de minijanelas alocadas nas laterais das portas
das igrejas centrais, nas quais se anexava uma base giratória, projetada
para que fosse possível passar um bebê da área externa para a interna
(LOPES, 2010). O sistema tornava possível o abandono na madruga-
da, de modo que se mantinha oculta a identidade de quem depositava
a criança (além das crianças nascidas com deficiência, também eram
abandonados filhos gerados por mães solteiras e filhos tidos como bas-
tardos, gerados fora do casamento).

A casa dos muchachos era composta por abrigos que acolhiam


crianças geradas em relações sexuais de homens brancos ou negros
com mulheres indígenas (em maioria relações abusivas); entre as
crianças abrigadas, havia as com deficiência. Nessas casas só podiam
permanecer até a adolescência, o que as direcionava a um futuro de
abandono e negligência na juventude, visto que a vida nas ruas dos
centros urbanos era o que lhes restava.

Posteriormente, Dom Pedro II, influenciado pelas ideias europeias


de renovação, fundou no Brasil três importantes instituições de aten-
dimento à pessoa com deficiência. Essas instituições priorizavam aten-
dimento a crianças do gênero masculino que fossem cegas, surdas e/
ou mudas e, também, prestavam atendimento às vítimas mutiladas da
guerra. Essas iniciativas ocorreram entre os anos de 1854 a 1956, com
a criação de instituições de internamento hospitalar e a criação de insti-

46 Políticas sociais públicas


tuições educacionais, como o Instituto Nacional de Educação de Surdos
(INES), voltado ao desenvolvimento da educação para pessoas com de-
ficiência no Brasil (FIGUEIRA, 2008).

Em suma, as instituições mencionadas eram mal organizadas e


apresentavam estruturas e serviços precários, com crianças vivendo
em situações de miséria, violência e descaso. Para os adultos, sur-
giram instituições hospitalares (hospícios e asilos de internamento),
onde diversos tipos de procedimentos violentos eram empregados,
bem como experiências com drogas medicamentosas e severas práti-
cas punitivas voltadas a tentativas de padronização comportamental
e ao controle sobre as pessoas com deficiência mental. As institui-
ções educacionais de não internamento não apresentavam barbáries
como as hospitalares, contudo, também reproduziam a prática da se-
gregação e da reprodução do preconceito.

Segundo Arbex (2013), o Hospital Psiquiátrico Colônia, fundado em Livro


1903 (localizado na cidade de Barbacena – MG), foi uma das maiores O livro intitulado o
Holocausto Brasileiro,
instituições voltadas ao internamento de pessoas com deficiência. Mais além de apresentar uma
conhecido como Hospício Colônia, apresentava uma estrutura de 16 pa- excelente pesquisa para
quem deseja se aprofun-
vilhões independentes, com capacidade para 200 leitos. Todavia, em dar no entendimento dos
1961 já contava com cerca de 5 mil pacientes, número que continuou direitos humanos, é um
excelente material para
a aumentar, visto que, na década de 1960, o local passou a ser usado compreender o modo
pelo regime militar como campo para aprisionamento de diferentes como o Estado e a socie-
dade brasileira trataram,
perfis de sujeitos, dados como loucos. por séculos, a questão
da deficiência e o modo
Estima-se que 70% das pessoas que foram internadas à força nunca como as instituições de
haviam antes apresentado nenhum sinal de deficiência mental; eram internamento hospitalar
psiquiátrico foram multiu-
pessoas que não se enquadravam nas regras sociais e que, cada vez tilizadas no país.
mais, eram marginalizadas pela sociedade (opositores políticos, mili- ARBEX, D. São Paulo: Geração
tantes partidários, desempregados, pessoas em situação de extrema Editorial, 2013.
pobreza, pessoas em situação de rua, crianças abandonadas, profissio-
nais do sexo, jovens que engravidavam de “nobres homens casados”
da sociedade, herdeiros de heranças disputadas por outros parentes,
usuários de psicoativos, questionadores, tímidos e muitos descenden-
tes de escravos, ou seja, os tidos como improdutivos).

Arbex (2013) detalha que os internos recebiam castigos disciplinares


bárbaros, como espancamentos, aplicação descontrolada de injeções de
medicamentos, choques elétricos, impedimento alimentar, banhos de
banheira, banho de fezes, estupro de seus corpos, além de constantes

As políticas afirmativas e os distintos sociais 47


retiradas desnecessárias de significativas quantidades de sangue e inter-
venções cirúrgicas no cérebro. O suporte oferecido pelo Estado brasilei-
ro à população com deficiência foi, por séculos, a medicina do cárcere,
da barbárie, da negligência e da violação dos direitos humanos.

Outras instituições brasileiras também apresentavam tamanha


barbárie, descaso e violência contra a pessoa com deficiência, como
o Hospital de Neuropsiquiatria Infantil de Oliveira. Este foi fechado
em 1976, devido ao gigantesco número de extermínios de crianças
e adolescentes, mas após o encerramento das atividades da institui-
ção, os internos foram encaminhados à Colônia, ou seja, a barbárie
não cessou. A Colônia chegou a completar 115 anos de funciona-
mento e, após seu fechamento, os sobreviventes foram transferi-
dos para abrigos com melhores condições e, por direito, passaram a
receber indenização do Estado. Antes de ter suas atividades encer-
radas, a Colônia registrava cerca de 16 mortes por dia, ou seja, um
verdadeiro campo de guerra (ARBEX, 2013).

A privação da liberdade, a negligência de direitos, a violência extre-


ma e a morte se materializaram por décadas como estratégias para iso-
lar e eliminar esses grupos peculiares. Colônia e Oliveira são exemplos
das barbáries cometidas pelo Estado contra a pessoa com deficiência,
com respaldo de especialistas e do todo da sociedade.

A história da institucionalização da pessoa com deficiência, contudo,


também registra acertos, principalmente no que diz respeito às insti-
tuições educacionais de não internato. Diferente dos hospitais e dos
manicômios, as escolas especiais desbravaram caminhos que possibi-
litaram a visibilidade da pessoa com deficiência por vieses diferencia-
dos dos historicamente adotados. Ainda que de algum modo também
tenham instaurado atendimentos segregadores e, em muitos casos, a
reprodução da ideia de desqualificação desses sujeitos (diante do de-
senvolvimento da sociedade), não se pode deixar de valorar a sua im-
portância positiva, visto que as instituições educacionais instauraram
uma nova era para a pessoa com deficiência no país.

Dentre as instituições pioneiras, destacam-se: Instituto Benjamin


Constant (IBC – 1854); Instituto de Cegos Padre Chico (1928), em São Pau-
lo; Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1931); Sociedade Pestalozzi
de Deficiência Física, em Minas Gerais (1935); Associação de Assistência
à Criança Defeituosa (AACD – 1950), em São Paulo; Escola Municipal de

48 Políticas sociais públicas


Educação Infantil e de 1º grau para Deficientes Auditivos Helen Keller
(1952); Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) do Rio de
Janeiro (1954); e Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de
São Paulo (1961). Essas instituições foram responsáveis pela abertura da
luta pelos direitos da pessoa com deficiência no Brasil.

No entanto, foi somente em meados da década de 1980 que a rea-


lidade da pessoa com deficiência começou a ter alterações realmente
significativas no Brasil, visto que a era da cidadania tornou possível mate-
rializar as ações preconizadas pelos movimentos em prol do debate dos
direitos da pessoa com deficiência. A Constituição de 1988 (BRASIL, 1988)
demarcou a inclusão de diversas garantias de direitos para as pessoas
com deficiência, além de situá-las entre os demais leques de direitos, no
que diz respeito ao tripé do sistema de seguridade social brasileiro.

Além dos direitos e das garantias fundamentais, a CF/88 abarca cer-


ca de dez artigos direcionados à legalização dos direitos da pessoa com
deficiência, com relação à proteção integral: previdência social; assis-
tência de saúde, assistência social; educação; cultura; desporto; infân-
cia e adolescência; acessibilidade; participação e organização popular;
trabalho; comunicação e informação; constituição familiar; entre ou-
tras garantias voltadas à promoção, à proteção e ao asseguramento da
cidadania plena (e equitativa), exercício de todos os direitos humanos
e liberdades fundamentais de todas as pessoas com deficiência, sob a
perspectiva da dignidade humana.

Nesse ínterim, em 1989, institui-se uma das leis federais de maior abran-
gência no que diz respeito aos direitos da pessoa com deficiência. A Lei n.
7.853 (regulamentada pelo Decreto 3.298, de 1989) – que dispõe sobre a
inclusão, proteção, apoio, integração social e garantia de acessibilidade à
pessoa com deficiência – institui a Coordenadoria Nacional para Integração
da Pessoa Portadora de Deficiência, define o preconceito contra a pessoa
com deficiência como crime e dá outras providências (BRASIL, 1989).

Na década de 1990, alterações importantes se deram no âmbito na-


cional, como a edição da Lei n. 7.853, a instituição da Coordenadoria Na-
cional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) e o
estabelecimento do Benefício de Prestação Continuada (PBC), em 1993.
Ainda, a implantação das Conferências Nacionais dos Direitos das Pes-
soas com Deficiência e a instituição do passe livre em coletivos interesta-
duais, em 1994, a isenção de IPI na aquisição de automóveis adaptados

As políticas afirmativas e os distintos sociais 49


à pessoa com deficiência, em 1995, e a criação do Conselho Nacional dos
Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (Conade), em 1999.

Nos anos 2000, outra grama de direitos foi inaugurada, com a im-
plantação da Secretaria Nacional, em 2010; a criação da Lei Federal n.
10.048 e da Lei n. 10.098/2000, que tratam da implantação de aces-
sibilidade, e a edição da Lei n. 10.436, em 2005, que dispõe sobre
a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Ocorre, também, a Convenção
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, da ONU, aprovada em
julho de 2008 pelo Decreto Legislativo n. 186 e promulgada pelo De-
creto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, com equivalência de emen-
da constitucional. Este foi um marco extremamente relevante para o
movimento das pessoas com deficiência, visto que tornou possível a
alteração dos termos portador de deficiência e portador de necessida-
des especiais para pessoas com deficiência.

Desse modo, as pessoas com deficiência e suas famílias têm demar-


cado constitucionalmente seu leque de direitos e seguem promovendo
novas conquistas de garantia de seus direitos fundamentais, por meio
da construção de agendas na esfera política. A pessoa com deficiência
segue no questionar das institucionalizações segregadoras, na luta pela
responsabilização da sociedade para com suas demandas e na busca
da ampliação e do estabelecimento de sua cidadania plena.

Nesse sentido, as políticas afirmativas ocupam um lugar essencial


diante da materialização dos direitos das pessoas com deficiência,
dado que, por meio delas, a efetivação do direito humano pode ser
especificada segundo as particularidades desses grupos, na forma de
políticas públicas preferenciais.

A experiência das políticas afirmativas tem sido um grande ampa-


ro, visto que elas realmente promovem a inclusão efetiva com relação
à igualdade de oportunidades e à equiparação da justiça social. Já se
observam significativos avanços, principalmente no que se refere à im-
plementação de cotas e à efetivação de leis que criminalizam práticas
discriminatórias. Essas medidas tendem a garantir a inclusão da pes-
soa com deficiência no mercado de trabalho, a fim de que possa cons-
truir sua autonomia perante a efetivação de suas necessidades básicas,
contudo, não garantem o extermínio da discriminação e tampouco o
reconhecimento e/ou a valoração dessa camada da população.

50 Políticas sociais públicas


Dentre as medidas afirmativas que estão em vigência na realidade
contemporânea brasileira, localizam-se: a reserva de um número de-
terminado de vagas a serem preenchidos em concursos públicos – Lei
n. 8.112 (BRASIL, 1990) –; a criminalização de qualquer procedimento
discriminatório na admissão da pessoa com deficiência em empresa
privada – Lei n. 7.853 (BRASIL, 1989) –; e o estabelecimento de cota
obrigatória para contratação de pessoas com deficiência em empresas
de grande porte – Lei n. 8.213 (BRASIL, 1991).

Outro exemplo bem atual é a Lei n. 13.409 (BRASIL, 2016), que passa
a incluir a pessoa com deficiência na Lei de Cotas destinadas ao ingres-
so nas universidades federais de ensino superior, implantada pelos Ins-
titutos Federais de Ensino Superior (IFES), em 2017. A proposta de lei
foi apresentada ao Ministério da Educação pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR), instituição que tem reserva de vagas para a pessoa
com deficiência desde 2008, como uma das ações do seu programa de
políticas afirmativas. No Paraná, 21,86% da população apresenta algum
tipo de deficiência, o que equivale a dois milhões de paranaenses com
deficiência; destes, menos de 1% cursam o ensino superior (UFPR, 2018).

Como visto, as políticas afirmativas brasileiras estão em processo


de implantação, avaliação e replanejamento. Elas são conquistas es-
senciais à efetivação dos direitos da pessoa com deficiência. Contudo,
ainda estão longe de efetivarem a justiça social e a eliminação da des-
criminação, dado que questões como a falta de acessibilidade ainda
são realidade em todo território nacional e tendo em vista, também,
que muitas crianças ainda estão excluídas do sistema educacional pú-
blico, sob a justificativa de que as instituições não têm condições de
se preparar para o atendimento das peculiaridades que a condição de
deficiência requer. O acesso a bens e serviços ainda apresenta diversas
barreiras, e a eliminação do preconceito social requer mudanças que
ainda podem levar séculos para ocorrer na cultura brasileira.

A população com deficiência constitui em um montante de mais de 45


milhões de brasileiros, parcela populacional que ainda não conta com seus
direitos garantidos. Uma situação que ainda configura uma realidade so-
cial de ausências de oportunidades de trabalho, educação, moradia digna,
acessibilidade e tratamentos especializados de saúde, bem como ausência
de acessos a bens, serviços e outros direitos fundamentais (IBGE, 2010).

As políticas afirmativas e os distintos sociais 51


O preconceito e a falta de efetividade com relação ao gozo de direi-
tos comprovam que ainda serão necessárias muitas políticas públicas
e sociais direcionadas a afirmar os direitos da pessoa com deficiência.
Afinal, corrigir séculos de erros e crimes contra as pessoas com defi-
ciência exigirá tempo, prioridade de pauta e medidas que possibilitem
mudanças culturais diversas. O pré-conceito contra esse grupo popula-
cional está enraizado nos pensares e nas práticas cotidianas, por isso,
é preciso realizar mudanças estruturais.

2.2.3 Pessoa idosa


A pessoa idosa foi compreendida de diferentes maneiras ao longo
da história da humanidade. Nos primórdios, o entendimento do papel
social da pessoa idosa foi bastante ambíguo, visto que em algumas cul-
turas se valorizava a sabedoria construída ao longo de uma vida, e os
idosos eram vistos como anciãos que deveriam ser consultados antes
de grandes decisões.

Já em períodos mais primitivos, eles eram entendidos como fardos.


Algumas tribos em situação de escassez ou necessidade de mudança
de território, por exemplo, abandonavam seus idosos à própria sor-
te quando estes não conseguiam acompanhar as atividades do grupo.
Nesses casos, havia a compreensão de que a pessoa idosa se tornava
um fardo que poderia atrasar e/ou colocar a sobrevivência do grupo
Livro em risco em situações mais complexas.
Simone de Beauvoir publicou, Um fato comum na maioria das culturas antigas era que não se consi-
em 1979, um livro sobre o
envelhecimento. O material foi derava uma pessoa idosa por sua idade cronológica, mas segundo o as-
produzido com uma didática pecto de sua aparência e sua capacidade física para desenvolver tarefas
que nos permite compreender
cotidianas. Uma pessoa de 40 anos poderia ser considerada idosa, visto
o olhar da sociedade para a
pessoa idosa e também o olhar que em alguns períodos da história não se vivia muito mais do que isso;
da pessoa idosa sobre o próprio no entanto, há registros históricos de pessoas idosas que passaram dos
processo de envelhecimento.
120 anos, como é possível observar em diferentes passagens bíblicas.
BEAUVOIR, S. A velhice: realidade
incômoda. 2. ed. São Paulo: Outro ponto comum à maioria dessas sociedades é o fato de que
DIFEL, 1979.
a velhice feminina não obtinha o mesmo valor que a masculina, pois o
valor agregado à mulher sempre esteve correlacionado à sua capacida-
de reprodutiva. Desse modo, assim que atingiam o período da meno-
pausa, perdiam seu valor social (BEAUVOIR, 1960).

Os judeus são, sem dúvida, o povo que mais apresenta registros de


valoração da pessoa idosa, o que pode ser observado em diversas pas-

52 Políticas sociais públicas


sagens bíblicas como em uma das passagens do livro de Jó que, ao tratar
sobre a questão do poder do entendimento, afirma que “nos anciões está
a sabedoria, e, na longa idade, a inteligência” (JÓ 12:12, 2011). Além do
poder político que exerciam, tinham por suas gerações certa veneração,
dado que eram compreendidos como os porta-vozes de Deus. O desres-
peito a um ancião judeu poderia ser punido com a morte.

Na mesma direção, o povo asiático também cultuava respeito e gra-


tidão por seus idosos que, independentemente da idade que alcança-
vam, continuavam a ser respeitados e detinham total controle sobre
suas famílias. Essa cultura de valoração à pessoa idosa se estendeu
para a contemporaneidade, o que pode ser confirmado pelas leis em
vigência, que permitem aos pais asiáticos processarem os filhos em
caso de desatenção e/ou desamparo (MELO, 2013).

Os povos da antiguidade clássica grega e romana cultuavam a força,


a beleza e a fertilidade, portanto, compreendiam a velhice como uma
fase cruel, inútil e fraca da vida. Temiam a velhice, ao mesmo tempo
que compreendiam o valor da experiência de seus anciãos. Em Esparta
e em Atenas, por exemplo, a pessoa idosa era honrada, respeitada e
suas decisões raramente questionadas (JAEGER, 2001).

Nas populações latino-americanas, a valoração da pessoa idosa


sempre se fez presente na maioria dos períodos históricos. A valoração
da experiência e o culto à ancestralidade fazem parte da maioria dos
povos que habitam a América Latina. Na mesma direção, Brasil também
apresenta registros de valor a seus idosos em sua fundação, dos povos
que constituíram a nação, fossem portugueses, africanos, espanhóis,
italianos, asiáticos, judeus, alemães ou indígenas (SANTOS, 2015).

O tratamento da sociedade para com a pessoa idosa, contudo, so-


freu significativas alterações a partir da Revolução Industrial, principal-
mente nos países onde o sistema capitalista passou a configurar todas
as esferas da vida. O capitalismo instaurou valores e práticas neces-
sários à efetivação da produção; em outras palavras, aquele que não
pode ser considerado adequadamente produtivo, passa a ser enten-
dido como inútil e, portanto, descartável. O papel da pessoa idosa no
que tange o desenvolvimento da sociedade passa a ser o de peso so-
cial, aqueles que além de não produzir conforme as necessidades do
capital, ainda geram gastos às famílias (que passam a se configurar de
modo nuclear) e ao Estado (BLESSMANN, 2003).

As políticas afirmativas e os distintos sociais 53


Saiba mais
Desse modo, a partir do século XVIII, a vida da pessoa idosa passa
Nos tempos da Revolução a ter configurações jamais vistas na história das sociedades. Primeira-
Industrial, as condições de tra-
balho eram abusivas, precárias mente, porque os moldes de produção capitalista passam a exigir mão
e insalubres. As jornadas de de obra capaz de trabalhar por longos períodos sem descanso e em
trabalho eram extensas e sem velocidade padronizada, com pouca ou nenhuma alimentação. Foi um
intervalos para alimentação ou
descanso, variando de 10 a 18 período de extrema exploração da massa de trabalhadores. A quem
horas trabalhadas. Não havia não detinha os meios para produzir (capital) não restou saída a não
uma legislação trabalhista e,
ser submeter-se às precárias condições de trabalho, a fim de garantir a
portanto, cada fábrica instituía
suas próprias regras organizacio- própria sobrevivência.
nais e comportamentais.
Diante do novo contexto, o lugar da pessoa idosa passou a ser o
da desqualificação, uma configuração bem diferente da vivenciada em
épocas anteriores, pois no novo modelo econômico eram descartados
devido à sua condição física; à sua experiência de vida também não foi
4
dado valor algum. O capitalismo trouxe moldes de produção jamais
“O termo remete o entendimento
vistos na história e tecnologias nunca antes experimentadas, o que re-
do carácter enigmático existente nos
moldes de produção capitalista, ou forçava a ideia de que o passado já não encontrava lugar. A própria
seja, processos que instituem uma relação da humanidade com o tempo se transformara e iniciou-se a
relação social determinada entre 4
mercantilização da vida.
os próprios homens, que assume,
para eles, a forma fantasmagórica Assim, aos poucos, a população idosa foi descartada do merca-
de relação entre coisas [...]. Aqui,
os produtos do cérebro humano do e, portanto, desqualificada socialmente, situação que a levou a se
parecem dotados de vida própria, tornar cada vez mais dependente de seus familiares. Diante da au-
como figuras independentes que sência de trabalho e emprego, não havia condições de se manter. No
travam relação umas com as outras
e com os homens. Assim se apre- novo modelo de vida, a desigualdade social se apresentou extrema
sentam, no mundo das mercadorias, para a maioria da população, e a vida se complexificou de tal modo
os produtos da mão humana. A
para os idosos que a maioria das sociedades passou a abandonar ou
isso eu chamo de fetichismo, que
se cola aos produtos do trabalho institucionalizar seus anciãos. Junto com o nascimento da sociedade
tão logo eles são produzidos capitalista, nasce a estigmatização da pessoa idosa e, com isso, o pre-
como mercadorias e que, por isso,
é inseparável da produção de
conceito contra a fase da velhice.
mercadorias. Esse caráter fetichista O modo como as sociedades alteram o trato para com seus idosos,
do mundo das mercadorias surge,
como a análise anterior mostrou, do conforme os momentos históricos políticos vivenciados, bem como sob
caráter social peculiar do trabalho a influência dos moldes econômicos instituídos, demonstra que o pre-
que produz mercadorias”(MARX,
conceito social é algo criado pela própria sociedade e reproduz-se por
2013, p. 147-148).
gerações através de valores e hábitos culturais (ELIAS, 2001).

A exclusão da pessoa idosa do sistema produtivo capitalista re-


sultou em diversas mazelas para esse grupo populacional. A des-
qualificação, o abandono, a perda do sentido de pertencimento, a

54 Políticas sociais públicas


pobreza e a negligência quanto à sua necessidade de acesso à saú-
de foram fatores desumanos que levaram a sociedade a ter de de-
senvolver novos mecanismos para responder a essa demanda. Em
outras palavras, o envelhecimento na sociedade capitalista é uma
expressão da “questão social” e, portanto, responsabilidade do Es-
tado, dado que este é o responsável pela mediação das situações
em que há conflitos de interesses entre capitalistas e trabalhadores
(CUNHA; JUSTINO, 2015; BIEGER et al., 2013).

Como vimos, a questão do envelhecimento não pode ser analisada


de modo descontextualizado dos aspectos socioeconômicos, políticos
e culturais que configuram a realidade de um povo, dado que o enve-
lhecimento apresenta elementos sociais complexos que ultrapassam
questões fisiológicas e/ou biológicas. É justamente nesse campo mais
amplo e complexo que as políticas públicas fazem grande diferença na
vida da pessoa idosa (GRANDO; STURZA, 2016).

A questão da proteção à pessoa idosa e o leque de direitos que


estão previstos para ela são resultado de movimentos sociais, grupos
e indivíduos que direta ou indiretamente lutaram por direitos. A luta
pelos direitos humanos cumpre papel significativo na história, no que
diz respeito à imposição de novos valores e entendimentos acerca dos
direitos da pessoa humana. Organizações internacionais, como a ONU,
tiveram forte influência na luta por direitos de alguns sujeitos e deter-
minadas camadas populacionais (criança e adolescente, pessoa com
deficiência, pessoa idosa, mulheres, negritudes e indígenas).

Nesse contexto, destaca-se a Assembleia Mundial sobre Envelheci-


mento, realizada pela ONU, na cidade de Viena, em 1982. Esta foi uma
mobilização política que teve como resultado o fomento internacional
à priorização de elaboração de respostas às demandas apresentadas
pela condição de pessoa idosa. A assembleia instaurou a primeira
agenda política internacional de desenvolvimento de políticas públicas
voltadas ao contexto da garantia de direitos da pessoa idosa.

No Brasil, temos como marco histórico a Lei Eloy Chaves, de 1923,


considerada a base do sistema previdenciário brasileiro, visto que ins-
taurou a Caixa de Aposentadorias e Pensões, ou seja, inseriu de modo
mais direto a pessoa idosa no leque das políticas públicas. Contudo,
foi somente com a Constituição Federal de 1988 que a população ido-

As políticas afirmativas e os distintos sociais 55


sa, juntamente a outros sujeitos sociais, conquistou suporte jurídico de
proteção mais ampliado (SOARES; FERNANDES, 2012).

Por meio da CF/1988, o Brasil inaugura uma nova era para a pessoa
idosa, visto que, para além dos direitos fundamentais (vida, alimenta-
ção, moradia, saúde, educação), ela enfatiza e particulariza um sistema
de proteção. Em suma, ela apresenta a pessoa idosa enquanto sujei-
to de direitos e enfatiza que suas necessidades peculiares devem ser
atendidas. A Carta Magna brasileira teve papel fundamental, pois foi
por meio dela que a proteção à pessoa idosa se tornou lei e ganhou
força na agenda política brasileira.

Desde então, a sociedade e o Estado brasileiro passam a reconhe-


cer o fato de que a justiça social e a universalidade de direitos só se
tornam realidade quando reconhecidas as particularidades de alguns
grupos distintos, como os idosos, que têm sido desprivilegiados e ex-
cluídos de várias dimensões da vida nos novos modelos de sociedade
(CAMARANO; PASINATO, 2004).

Após 1988, muitas outras medidas foram implantadas, mas duas


merecem destaque, dado o nível de importância e a solidez diante da
garantia de direitos da população idosa. A Política Nacional do Idoso
(PNI), implantada em 1994, é uma das mais importantes, visto que, me-
diante seus princípios e diretrizes, várias outras políticas, programas e
projetos são implantados. Alguns exemplos são: o pagamento de sub-
sídios econômicos para os idosos maiores de 65 anos que não apre-
sentem condições de prover sua subsistência, por meio do Benefício
de Prestação Continuada (BPC); a garantia de reserva de 3% de vagas
reservadas nos programas habitacionais; a gratuidade no transporte
público; o direito prioritário a atendimento em unidades de saúde, en-
tre outros (BRASIL, 1994).

A PNI prioriza a garantia de espaço de participação na formulação


de políticas públicas por meio da criação de conselhos representativos,
bem como impõe a redução do atendimento asilar, propõe e habilita
a capacitação de agentes na área da geriatria e gerontologia, além
de fomentar a pesquisa sobre o envelhecimento. É, sem dúvida, um
dos documentos mais importantes para esse grupo populacional. Do
mesmo modo, o Estatuto do Idoso, promulgado em 2003, é um mar-
co sem precedentes na história da pessoa idosa, dado que detalha
e determina a quem cabe a responsabilização da garantia dos direi-

56 Políticas sociais públicas


tos, criminaliza a negligência e/ou a violência contra a pessoa idosa
e instaura oposição a qualquer tipo de preconceito, maus tratos e
marginalização, como também regula o azilamento enquanto última
medida, isto é, somente quando esgotadas as demais possibilidades
de suporte e apoio (BRASIL, 2003).

O Estatuto do Idoso também cumpre o papel imprescindível de di-


vulgação dos direitos da pessoa idosa. Desse modo, fomenta mudanças
socioculturais com relação ao trato e à própria concepção de pessoa
idosa, abandonando entendimentos preconceituosos, simplistas e/ou
desqualificantes. Tais medidas fortalecem a concepção da pessoa idosa
enquanto sujeito de direitos que vivencia etapas da vida, como outra
que também tem suas particularidades, mas que, em suma, detém o
direito ao exercício da cidadania plena.

O Brasil tem aproximadamente 20 milhões de pessoas idosas, nú-


mero que tende a ser ampliado, visto que a nova era de direitos, os
avanços medicinais e a nova concepção de vida da pessoa idosa in- 5
cluem na sociedade novos modos de ser e viver enquanto pessoa ido-
Essa reforma previdenciária alte-
sa, ou seja, quanto mais se firmam condições dignas para a vida da ra significativamente a questão
pessoa idosa, maior tempo de vida teremos (BRITO, 2008). da aposentadoria, instaurando
retrocessos na perspectiva dos
Segundo o art. 230 da CF/1988, “a família, a sociedade e o Estado direitos sociais, como: extensão
têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participa- do tempo de trabalho pré-apo-
sentadoria; redução do valor
ção na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantin- dos benefícios; destruição dos
do-lhes o direito à vida” (BRASIL, 1988). avanços conquistados pelo ser-
vidores públicos com relação às
Nesse contexto, as políticas afirmativas cumprem papéis im- suas previdências próprias, pois
prescindíveis diante da perspectiva de vida da população idosa, passam a ser equiparados ao sis-
tema previdenciário dos demais
pois, ainda que o aumento do tempo de vida da população brasilei-
trabalhadores; eliminação da
ra se configure como uma conquista da sociedade com relação ao maioria das chances de acesso a
cuidado para com seus idosos (as), a atual configuração brasileira pensão por morte; descarac-
terização das particularidades
de retrocesso do campo dos direitos sociais, com toda certeza, im-
antes previstas na previdência
plicará uma futura nação com percentual numeroso de idosos sem para os trabalhadores rurais,
o suporte que lhes é necessário para uma vida digna. que passam a ser igualados aos
trabalhadores do meio urbano,
5
A recente reforma previdenciária , tramitada em 2019, é um dos o que poderá levá-los ao não
exemplos significativos do contexto apresentado, dado que, contradi- acesso à previdência social, visto
que as novas alterações impõem
toriamente, distancia o acesso dessa parcela da população à aposenta- às famílias agricultoras a
doria em um país onde o sistema econômico não garante oportunidade obrigatoriedade da contribuição
mensal de modo individual.
de trabalho e emprego para os idosos.

As políticas afirmativas e os distintos sociais 57


Desse modo, surge o seguinte questionamento: como será garanti-
da a subsistência da população idosa pobre, visto que não encontrarão
espaço no mercado de trabalho e tampouco lhes será possível acessar o
benefício da aposentadoria? Quem o Estado privilegia com esse tipo de
medida e quem ele desfavorece? Diante da perspectiva de conflito de
classes, podemos afirmar que o empresariado, os políticos de carreira
e o grupo de idosos e idosas pertencentes à elite econômica brasileira
não devem encontrar motivos para se preocuparem com essa questão,
visto que suas aposentadorias não dependem de mínimos sociais. É a
classe trabalhadora que depende, exclusivamente, desse tipo de be-
nefício para garantir sua sobrevivência no período de envelhecimento.

Assim, as políticas afirmativas se tornam ainda mais determinantes,


pois, por meio delas, é possível configurar estratégias específicas para
a garantia da universalidade de direitos, tendo em vista que a igualda-
de de direitos só pode ser efetivada se consideradas as dimensões que
caracterizam as necessidades particulares da pessoa idosa. Particulari-
dades como ausência de subsídios econômicos que lhes garantam con-
dições dignas de sobrevivência, acesso a atendimento especializado de
saúde. Essas são algumas das questões que podem ser solucionadas,
ao menos em parte, por meio da implantação das políticas afirmativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O debate das políticas afirmativas é permeado por discussões contra-
ditórias, visto que uma significativa parcela da sociedade continua a insis-
tir no entendimento de que as políticas sociais redistributivas já seriam
suficientes para o pagamento da dívida histórica do Estado e da sociedade
diante dos grupos historicamente excluídos. No entanto, isso não se com-
prova na realidade social, visto que existem outros condicionantes para
além do econômico que impedem a efetivação da cidadania plena das
pessoas com deficiência.
Há, também, questionamentos sobre as condições efetivas do Estado
em implementar as políticas afirmativas. Um tipo de discurso que tende
a reproduzir a ideia de que o Estado estaria prejudicando a população
em geral em detrimento dos distintos sociais e insiste em ignorar o fato
de que as ações e as políticas afirmativas objetivam o abrandamento dos
danos sócio-históricos causados aos sujeitos.
Esses posicionamentos, contrários à efetivação de políticas afirma-
tivas, ignoram o fato de que a realidade comprova a necessidade de

58 Políticas sociais públicas


proteção social a sujeitos e grupos que sofrem desrespeito, marginaliza-
ção, preconceito, discriminação e estigmatização social. Nesse sentido,
é preciso se atentar ao fato de que a compreensão das políticas sociais
afirmativas requer a apropriação da dinâmica da sociedade e suas re-
lações sócio-históricas e, portanto, as suas implicações com relação a
esses grupos específicos.
Por fim, cabe enfatizar que as políticas afirmativas são essenciais à
efetivação dos direitos dos grupos historicamente excluídos de opor-
tunidades de acesso a direitos, bens e serviços públicos. Elas visam
amenizar e/ou eliminar as exclusões sociais advindas de processos
discriminatórios históricos. Tratam-se, portanto, de um tipo de “reco-
nhecimento”, por parte do Estado e da sociedade, de sua responsa-
bilidade diante dos prejuízos causados aos sujeitos que compõem o
grupo dos distintos sociais. Essa parcela populacional, além de histo-
ricamente excluída, sofre cotidianamente as dores (físicas e emocio-
nais) geradas pelo preconceito e pela discriminação.

ATIVIDADES
1. Qual é a relação das políticas afirmativas com a raiz da desigualdade
social brasileira?

2. Quais são as inconsistências presentes no uso do termo minorias


sociais?

3. A quem se destinam as políticas afirmativas?

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As políticas afirmativas e os distintos sociais 59


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As políticas afirmativas e os distintos sociais 61


UNI
DA
DE
- O serviço social e as
políticas sociais
3
O serviço social e as
políticas sociais
Este capítulo apresenta elementos para que você possa com-
preender melhor a relação do serviço social com as políticas
sociais, tendo como foco principal a política de assistência social.
Assim, oferecemos conteúdos relacionados ao processo de
reconceituação da profissão, bem como elementos que eviden-
ciam a importância da política social ante a garantia de direitos e a
possibilidade de reestruturação da cultura política brasileira.

3.1 O projeto ético-político do serviço


social e a garantia de direitos sociais
Vídeo O serviço social é uma profissão centenária, fortemente marcada
pelas relações contraditórias que caracterizam a disputa de classes. A
profissão foi instaurada no Brasil, na década de 1930, por iniciativa de
uma parcela da elite brasileira que se dedicava a encaminhar três gran-
des objetivos:

1º. acelerar o desenvolvimento do capitalismo no país, com base


nos moldes de desenvolvimento das grandes potências mundiais;

2º. reorganizar a sociedade brasileira com vistas a criar algum


tipo de resposta às problemáticas sociais criadas pelo processo de
industrialização;

3º. garantir a “entrada ao céu”, por meio de ações de benevolência,


de acordo com os postulados religiosos que seguiam.

Nesse período da história, o Brasil avançava em relação ao processo


de implantação do capitalismo. A economia, que até então era basea-
da na agroexportação, ou seja, era fortemente marcada pela produção

62 Políticas sociais públicas


do campo, passava a ser produzida de modo industrial nos grandes
centros urbanos. Dessa maneira, passamos a ter uma estrutura social
pautada na industrialização.

Esse fato resultou na migração de grande parte da população de


trabalhadores do campo para os centros urbanos – alguns pela falta de
alternativas, como o caso dos produtores rurais que, diante da lógica
industrial, foram impedidos de permanecer no mercado; outros pela
crença de acessar melhores condições de vida, conforme anunciavam
os governantes do país.

Contudo, a vida nos grandes centros urbanos industrializados não


correspondia ao que a população do campo almejava, visto que, além
de não haver emprego para todos, como era anunciado nos diversos
territórios do país, também não existia qualquer planejamento e/ou
organização das cidades em relação à migração fomentada.

Esse contexto resultou no nascimento de diversas problemáticas


1
sociais e na complexificação das já existentes, como o desemprego, a
Nas sociedades patriarcais, ou
ausência de moradia, o nascimento da miséria absoluta, a ampliação
seja, naquelas organizadas com
dos níveis de pobreza, o surgimento da população em situação de rua base em concepções machistas
(adultos e crianças), o uso desenfreado de psicoativos (álcool e outras e sexistas, o trabalho do cuidado
e as tarefas educativas são
drogas), as novas práticas de violência, o surgimento de novas doenças destinadas somente à mulher.
(físicas e emocionais), entre outros. Parte-se do pressuposto de que
essas seriam tarefas inapro-
Diante do novo quadro social, surgiram as primeiras escolas priadas aos homens – ideias
de serviço social. O objetivo era capacitar e especializar grupos de implantadas ideologicamente
1 para garantir a perpetuação do
mulheres para que pudessem desenvolver o trabalho de amenizar os
poder masculino e subalterniza-
efeitos causados pela nova fase de implantação do capitalismo. Desse ção da mulher.
modo, em 1936, foi criada em São Paulo a primeira escola de serviço
2
social no Brasil (BATTINI, 2016). 2
No período de seu surgimento, a profissão desenvolvia atividades A primeira escola foi coordenada
por duas sócias do Centro de Es-
voltadas a enquadrar a população pobre aos modelos de vida idealiza-
tudos de Ação Social vinculado à
dos pelas elites políticas e econômicas da época. Em suma, as profissio- Igreja Católica: Albertina Ferreira
nais não tinham o entendimento de que o novo modelo econômico era Ramos e Maria Kiehl. A ideia de
criação das primeiras escolas
o grande responsável pelos problemas sociais que se apresentavam
surge pela iniciativa de alguns
e, então, cumpriam a função requerida pelo Estado e pelo mercado: movimentos católicos brasileiros,
julgavam e buscavam controlar, enquadrar e aquietar a população que os quais desejavam atuar em
prol do social sob a influência
não estava inserida no novo modelo de sociedade. das práticas sociais que já eram
Dessa maneira, o serviço social desenvolveu por muitas décadas desempenhadas na Europa
(BATTINI, 2016).
suas atividades a fim de servir exclusivamente aos interesses das elites.

O serviço social e as políticas sociais 63


3 Como não ocorria uma conscientização da raiz das desigualdades so-
Karl Marx é considerado um dos ciais, as primeiras assistentes sociais não questionavam a essência do
mais importantes intelectuais
capital e, assim, desenvolviam ações profissionais especializadas no
do mundo, visto que produziu
um conjunto articulado de maquiamento dessas desigualdades.
explicitações metodológicas
acerca da sociedade capitalista. Contudo, ao final da década de 1960, esse modelo de atuação passou a
Além de traduzir a lógica ser questionado por um grupo de assistentes sociais, as quais, além de es-
capitalista, a fim de denunciar o tarem frustradas com o trabalho paliativo que realizavam, tiveram contato
capital como sistema gerador de
desigualdades sociais, participou com movimentos sociais que cresciam na América Latina e demarcavam o
3
ativamente do movimento confronto do capitalismo, sob a influência das produções de Karl Marx .
dos trabalhadores, fundando,
inclusive, a primeira organização Esses movimentos sociais resultaram da organização dos trabalha-
socialista do mundo. dores proletariados, que, no contexto brasileiro, demarcaram a luta
contra o capitalismo e, consequentemente, contra o governo militar
4 instaurado em 1964.
Processo iniciado formalmente 4
É ainda nesse contexto que nasce o movimento de reconceituação
em 1979, no Congresso
Brasileiro de Assistentes Sociais, do serviço social, processo no qual a categoria profissional questionou
amadurecido nos anos seguintes as bases conservadoras que deram origem à profissão. Como resulta-
por meio do aprimoramento
do desse processo, esses trabalhadores passaram a se compreender
acadêmico da profissão e con-
solidado enquanto hegemônico como classe trabalhadora. Com isso, o serviço social reconfigurou suas
em 1993, pela instituição do bases teóricas e práticas interventivas.
novo Código de Ética do Serviço
Social. O processo de ruptura com a identidade profissional, demar-
cado pelo ideário capitalista, conduziu a profissão a configurar um
Livro novo projeto profissional que tivesse como objetivo a construção de
O livro Serviço Social, me- uma nova ordem societária. Desse modo, as antigas práticas empi-
mórias e resistências con-
tra a ditadura apresenta
ristas, reiterativas, paliativas e burocratizadas (orientadas pela ética
depoimentos de algumas liberal-burguesa e fundamentadas nas teorias vinculadas à tradição
das assistentes sociais
que foram torturadas
positivista) aos poucos foram substituídas por práticas menos conser-
no período do governo vadoras e mais combativas.
militar no Brasil.
Certa de que a estrutura e a dinâmica do capitalismo determinavam
CFESS. Brasília: CFESS, 2017.
Disponível em: https:// o agravamento e o surgimento de novas problemática sociais, a catego-
issuu.com/cfess/docs/livro-
ria profissional lutou com o movimento dos trabalhadores em prol do
memoriaseresistenciascontradi.
Acesso em: 28 set. 2020. fim do governo militar. Um processo de luta, de resistência e de morte
que não pode ser esquecido, como relata Ana Maria Santos Rolemberg
Côrtes: “no dia 7 de junho de 1974, fui sequestrada, algemada, encapuza-
da e imediatamente imobilizada e ameaçada de morte por seis homens
armados. E isso foi só o começo do processo de tortura” (CFESS, 2017).

Assim, na passagem da década de 1970 à de 1980, o serviço social


brasileiro debateu e construiu seu projeto ético-político. Além disso,

64 Políticas sociais públicas


incorporou matrizes teóricas e metodológicas marxistas e inaugurou
um novo modo de atuar diante da desigualdade social. Desse processo
emergiu um projeto ético-político voltado a assegurar que o novo rumo
de atuação da profissão fosse demarcado por ações e projetos interven-
tivos, que contribuíssem para a emancipação da classe trabalhadora.
Os projetos profissionais apresentam a autoimagem de uma
profissão, elegem os valores que a legitimam socialmente, de-
limitam e priorizam seus objetivos e funções, formulam os re-
quisitos (teóricos, práticos e institucionais) para o seu exercício,
prescrevem normas para o comportamento dos profissionais
e estabelecem as bases das suas relações com os usuários de
seus serviços, com as outras profissões e com as organizações e
instituições sociais privadas e públicas (inclusive o Estado, a que
cabe o reconhecimento jurídico dos estatutos profissionais).
(NETTO, 1999, p. 4)

Portanto, podemos dizer que as principais conquistas do processo


de reconfiguração profissional foram:
•• a aproximação da profissão com os movimentos sociais;
•• o rompimento com a ética conservadora;
•• o aprofundamento da perspectiva crítica analítica; 5
•• o referendamento das bandeiras de luta dos trabalhadores O termo questão social é
aqui utilizado para fazer
organizados; referência ao fator que gera e/
•• a participação da profissão na construção da nova constituinte; ou amplia as desigualdades e
mazelas sociais, isto é, à relação
•• a aprovação de novas diretrizes curriculares; contraditória entre capitalistas e
proletários. Contraditória porque
•• a consolidação de uma nova identidade profissional;
ambos constroem toda a riqueza
•• a instituição de um código de ética firmado em princípios social produzida, mas, devido à
emancipatórios; ideologia burguesa que sustenta
o capitalismo, apenas os capita-
5
•• a alocação da questão social como objeto de atuação da profissão; listas se apropriam dela.
•• o início do processo de implantação das políticas públicas e so-
ciais promulgadas pela Constituição Federal de 1988.

Leitura

A leitura integral do Código de Ética do/a Assistente Social (Lei n. 8.662/1993) é essencial
aos estudantes e profissionais do serviço social, visto que todo seu agir profissional é
regido pela lei que regulamenta a profissão.

BRASIL. Brasília: Conselho Federal de Serviço Social, 2012. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_
CFESS-SITE.pdf. Acesso em: 28 set. 2020.

O serviço social e as políticas sociais 65


3.2 Articulação histórica entre serviço
Vídeo social e políticas sociais
Com a nova Constituição Federal de 1988 deu-se início ao projeto
de redemocratização do Brasil. Esse processo foi direcionado majori-
tariamente pelos princípios fundamentais da Carta Cidadã: soberania
popular, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa, bem como pluralismo político.
Leitura
Nesse contexto e devido à experiência interventiva histórica da pro-
É de fundamental
importância a leitura fissão no enfrentamento da desigualdade social e ao novo engajamen-
da Constituição Federal
to aos movimentos pró-democráticos, o serviço social foi requerido a
Brasileira de 1988, ao me-
nos dos artigos relaciona- iniciar o processo de criação e implantação do leque de políticas públi-
dos à assistência social,
cas, o qual era voltado à materialização do novo tripé da seguridade
visto que, pela primeira
vez na história brasileira, social brasileira: saúde, assistência e previdência social.
a assistência social passa
a ser legislada enquan- Assim, a partir da década de 1990, o serviço social passou a se dedi-
to direito de todos os
car intensamente à criação de marcos legais que pudessem dar susten-
cidadãos, sem qualquer
exigência de contribui- tabilidade à nova concepção de assistência social como política pública
ção prévia – ou seja, um
de direito, que deveria ser garantida a todos que dela precisem. O pro-
direito a ser acessado por
quem precisar. cesso foi norteado pelas diretrizes da Constituição Cidadã, principal-
BRASIL. Diário Oficial da União, mente no que diz respeito à instituição da assistência social, entendida
Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 como política universal de responsabilidade estatal.
out. 1988. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/ A profissão assumiu ainda a linha de frente na implantação de di-
constituicao/constituicao.htm.
Acesso em 13 mar. 2020. versos sistemas e mecanismos sociais, por exemplo, a Lei Orgânica da
Assistência social (LOAS), o Sistema Único da Assistência Social (SUAS)
e, dentre outros, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Desse
modo, as políticas públicas sociais se constituíram como campo central
de atuação do serviço social.

Podemos considerar as políticas sociais como meios pelos quais


os assistentes sociais concretizam as diretrizes constitucionais que
versam sobre a seguridade social da parcela mais empobrecida e vul-
nerável da população brasileira. Elas são a porta de entrada para a ga-
rantia dos direitos, sendo as ferramentas utilizadas pelas profissionais
do serviço social para executar o enfrentamento da questão social e
de suas expressões, conforme estabelecido na lei que regulamenta a
profissão e no seu código de ética profissional.

66 Políticas sociais públicas


Trata-se de uma relação indissociável, visto que que a política
social é o que materializa o sistema de seguridade social no Brasil
e que o serviço social é a profissão que majoritariamente operacio-
naliza essa seguridade:
constituímos coletivamente uma profissão que reconhece a
luta de classes e o seu antagonismo histórico, que, no modo de
produção capitalista, apresenta a contradição entre o avanço
do crescimento da riqueza socialmente produzida e, como con-
traponto, a ampliação progressiva de desigualdades, ou o que
Marx (1989) chamou de Lei Geral de acumulação capitalista.
Conformamos uma categoria profissional que se posiciona co-
letivamente no sentido de estimular o fortalecimento da classe
trabalhadora, em especial dos mais subjugados, discriminados,
vulnerabilizados pela desigualdade, pela discriminação de raça,
de gênero, de etnia, e direciona sua práxis, ou sua prática, com
clareza de direção social, orientada pela perspectiva de novas
formas de sociabilidade, onde seja possível a efetiva superação
dessas desigualdades. (PRATES, 2016, p. 3)

Contudo, cabe ponderar que, por mais comprometida que a


profissão seja em relação ao uso das políticas sociais na perspec-
tiva de direitos, há um elemento constitutivo da política social que
aponta para outra direção, tratando-se de um fato que independe
do esforço profissional.

Para compreender melhor esse ponto, é necessário ter em vista


que a política pública reflete as disputas de classes. Sendo assim, ao
mesmo tempo que a seguridade social brasileira se refere a uma con-
quista da classe trabalhadora, visto que por meio dela se efetiva o
leque de direitos pelos quais tanto lutaram, ela também se constitui
como estratégia capitalista para manutenção do controle burguês so-
bre a organização dos trabalhadores.

As elites políticas e econômicas mantêm a estrutura social capitalista


de modo estratégico, uma vez que veem nas políticas sociais um modo
de assegurar os direitos mínimos necessários à sobrevivência da força de
trabalho de que tanto precisam. Além disso, sabem que essas políticas
funcionam como amenizadoras da sede de luta dos trabalhadores.

Pode-se dizer que as políticas sociais evitam que o proletariado se


organize em prol de uma revolução social que tenha como frente a

O serviço social e as políticas sociais 67


derrubada da ordem burguesa. Nesse ponto, configura-se a principal
contradição que permeia a atuação profissional cotidiana dos assis-
tentes sociais: ao mesmo tempo que efetivam direitos, também tra-
balham a favor do capital. Portanto, sua atuação tem potencialidade
e limites bem definidos.

Nesse ínterim, há de se considerar que o órgão que domina


a contratação do serviço social é o próprio Estado, ou seja, uma
instituição que segue a ordem capitalista. Da mesma maneira, os
outros espaços de atuação não fogem à lógica do controle sobre a
vida da população, visto que também se localizam em espaços de-
marcados pelo capital, como a responsabilidade social privada e as
instituições comandadas pela organização da sociedade civil (OSC),
associações, institutos etc.

Assistentes sociais são, portanto, trabalhadoras e trabalhado-


res assalariados, proletários inseridos na divisão social e técnica do
trabalho conforme os moldes capitalistas de sociedade. Como já dito,
eles atuam em campos diversos (Estado, empresas e OSC) e, por con-
sequência, assumem o desafio constante de encaminhar a população
atendida para a efetivação de seus direitos, lembrando-se que, embora
sejam medidas necessárias, não são suficientes à transformação social
de que precisam os trabalhadores.

Por fim, nessa relação contraditória há ainda um elemento


que se destaca e que alimenta a capacidade de constância da pro-
fissão diante dos desafios: é o fato de que, por meio das políti-
cas sociais, os profissionais do serviço social conseguem instituir
processos socioeducativos capazes de proporcionar a real participação
dos sujeitos e dos movimentos sociais nos procedimentos decisórios
que dizem respeito à construção da coisa pública.

Na mesma linha, esse elemento também tem sido capaz de provo-


car pensares e instituir práticas passíveis de contribuir para a formação
e para a organização de sujeitos políticos emancipados (processo que
pode ser observado frequentemente na ação de assistentes sociais que
atuam principalmente com os movimentos sociais). Esse contexto com-
prova que a profissão está no caminho certo, visto que a política social
se configura como força motriz para novos rumos sociais.

68 Políticas sociais públicas


3.3 O trabalho do assistente social na
Vídeo política de assistência social
Antes mesmo do nascimento das primeiras escolas de serviço social
em 1936, a prática interventiva da assistência ao social já era desen-
volvida no Brasil por alguns grupos de mulheres (que posteriormente
galgaram o processo de profissionalização).

Essa temporalidade histórica demarca o fato de que a profissão


apresenta um acúmulo centenário em relação à experiência de
atuação no enfrentamento da desigualdade social. Apesar de os
objetivos e objetos interventivos da profissão se apresentarem de
modo diferenciado em períodos distintos da história social brasilei-
ra, o fato é que a relação do serviço social com a assistência social
sempre foi e sempre será indissociável.

Vale enfatizar que a atuação dos assistentes sociais na sua gênese


profissional era extremamente diferente da atividade atual, visto que
nos primórdios as profissionais atuavam no social a fim de corrigir,
ajustar, enquadrar e controlar os indivíduos pobres, para que estes não
incomodassem e não atrapalhassem o projeto das elites de moderniza-
ção do país. Trata-se de um período da história social da profissão que
computa mais de 50 anos de trabalhos dedicados, quase que totalmen-
te, em prol dos interesses dos donos do capital.

Como visto nas seções anteriores, o quadro foi alterado a partir das
transformações societárias demarcadas pelo fim do governo militar e
pela abertura da era de direitos, promulgados pela Carta Cidadã de
1988. Nesse período da história social brasileira, o serviço social já se
apresentava reconfigurado e focado em trabalhar em prol da emanci-
pação dos trabalhadores.

É nesse contexto social e político que a profissão abarcou para si


a responsabilidade da implantação de uma nova concepção de assis-
tência social, passando a considerá-la uma política pública de prote-
ção social. Desde então, o trabalho dos assistentes sociais tem sido
fortemente marcado pelo enfrentamento da desigualdade em uma
perspectiva mais revolucionária (autonomia, liberdade e emancipação).

O serviço social e as políticas sociais 69


A assistência social continuou a ser um campo privilegiado da pro-
fissão, uma vez que é na área da assistência que estão presentes as
demandas mais complexas, isto é, as condições mais precárias de vida
e os níveis mais altos de vulnerabilidade e de risco social, abarcando os
elementos que fazem parte da vida de milhões de brasileiros.

Desse modo, a assistência social assume lugar de grande impor-


tância para o serviço social, pois as novas reconfigurações a alocaram
como uma das três principais políticas públicas de seguridade social
do Brasil (saúde, assistência e previdência social). Com isso, refere-se a
uma política pública que deve ser garantida como direito de todos os
cidadãos que dela possam precisar.

Sendo assim, a assistência social é um direito que não exige con-


tribuição prévia, o que significa que sua característica mais mar-
cante é o fato de ser uma política pública universal, devendo ser,
portanto, garantida pelo Estado, conforme assegura a Constituição
Federal de 1988. Trata-se de uma política pública de extrema rele-
vância social por conta de sua real necessidade para a efetivação
da cidadania e da democracia.

Como direito, a assistência social demarcou uma nova era para


a sociedade brasileira, pois, além de se constituir como uma impor-
tante porta de segurança social para a maioria dos brasileiros, ela
também inaugura um novo modo de atuação dos assistentes diante
das desigualdades sociais. A partir desse momento, velhos hábitos
culturais que tanto demarcaram a cultura política brasileira, como
mandonismo, clientelismo, nepotismo e primeiro-damismo, passam
a ser questionados.

Segundo Couto (2013), essa é uma transformação social histórica,


uma conquista da classe trabalhadora, um marco civilizatório e uma
promessa de descolamento das velhas práticas políticas das elites.
Para o autor, a nova concepção de assistência social tornou possível
aos menos favorecidos exigir melhores condições de vida, além de via-
bilizar a representação popular, ou seja, o poder de participar da cons-
trução da coisa pública, tendo alcançado então a conquista de alterar
essa política que tem extremo impacto social.

A política de assistência social é, sem dúvida, o principal instrumen-


to dos assistentes sociais, visto que sua estrutura geral oferece meios
para que os assistentes sociais possam encaminhar adequadamente as

70 Políticas sociais públicas


demandas sociais das famílias e dos sujeitos atendidos. Isso pode ser
feito de modo articulado a outras políticas públicas (saúde, educação,
habitação, previdência, meio ambiente etc.) e caracterizado conforme
os níveis de complexidade de cada demanda (atenção básica e média
e/ou alta complexidade).

O trabalho é realizado por meio da implantação de serviços, pro-


jetos e programas sociais que podem ser de curta, média ou longa
permanência, tanto na área urbana quanto na rural. A lógica de aten-
dimento é organizada segundo os níveis de complexidade e de risco
social dos sujeitos, o que é identificado por meio de entrevistas, escuta
qualificada, visitas domiciliares, estudos sociais e acompanhamento
permanente das famílias e dos sujeitos que vivem sozinhos.

Esses profissionais têm como base o complexo articulado de leis e


diretrizes que normatizam e dão direcionamento à execução da polí-
tica de assistência – por exemplo, PNAS, LOAS e SUAS. Essa execução
deve ser realizada na perspectiva do enfrentamento e da superação
de vulnerabilidades sociais, o que remete ao entendimento de que a
assistência social não se configura somente como uma resposta às
necessidades sociais (pobreza, miséria, desemprego, violência etc.),
mas também como campo favorável para o desenvolvimento huma-
no (orientação, inclusão, capacitação, fomento, integração, valorização
etc.). Como podemos ver nos Parâmetros propostos pelo Conselho
Federal de Serviço Social, “a consolidação do processo coletivo de tra-
balho de assistentes sociais na política de Assistência Social não está
desvinculada das lutas pela garantia de um Estado democrático, com-
prometido com os direitos da classe trabalhadora” (CFESS, 2011, p. 30).

Assim, os profissionais do serviço social ocupam lugar de centrali-


dade na implantação da política de assistência social. Atuam (ou deve-
riam atuar) em primeiro lugar para assegurar à população o acesso aos
mínimos sociais necessários a uma sobrevivência digna, o que exige
acesso a bens e serviços que possam atender as suas necessidades
emergenciais, como a condição de miséria, e as suas necessidades
mais históricas, como o exercício efetivo da cidadania.

Desse modo, não se trata de uma área de fácil atuação, pois a


assistência social é um campo fortemente marcado pelas particu-
laridades que configuram o desenvolvimento do capitalismo no
Brasil e no mundo. Campo onde se expressam os conflitos da rela-

O serviço social e as políticas sociais 71


ção capital x trabalho. Assim, diz respeito a uma política que pode
ser usada tanto pela classe trabalhadora para qualificar o cotidiano
e aprimorar o futuro quanto pelas elites políticas e econômicas para
perpetuar a má distribuição de renda (o que historicamente ocorre
por meio de projetos de governo que ampliam os níveis de seletivida-
de e de reducionismo já existentes na política de assistência social).

Em suma, é preciso compreender que o fato de a assistência social


ser institucionalizada e legalmente normatizada como política univer-
sal descentralizada, que tem como objetivo efetivar a seguridade social
da população, não garante que ela seja concretizada na íntegra. Cabe
considerar que a política pública é uma conquista dos trabalhadores,
mas também um espaço norteado pela lógica neoliberal.

Essa conjuntura, segundo Behring (2009), apresenta-se na criação


e na imposição de uma política reformista disfarçada de política de
assistência social. Isso pode ser observado no desvio de recursos, na
terceirização da responsabilidade estatal, no sucateamento dos recur-
6 sos e, principalmente, na perspectiva reducionista que tem demarcado
Aqui fazemos referência ao as políticas sociais desde a década de 1990, quando a implantação das
debate da mundialização do 6
medidas macroeconômicas , oriundas dos países imperialistas, come-
capital (vulgo globalização),
temática de extrema relevância çaram a ser implantadas no Brasil.
para a compreensão da influên- Contudo, mesmo diante das contradições e dos desafios que demar-
cia do capitalismo sob o Estado
brasileiro. cam o campo da assistência social, esses profissionais têm realizado um
excelente trabalho com vistas à luta pela efetivação de direitos. Esse
contexto pode ser comprovado por meio das diversas competências
construídas pela profissão para atuação na política de assistência social:
[...] apreensão crítica dos processos sociais de produção e repro-
dução das relações sociais numa perspectiva de totalidade; análi-
se do movimento histórico da sociedade brasileira, apreendendo
as particularidades do desenvolvimento do capitalismo no País e
as peculiaridades regionais; compreensão do significado social da
profissão e de seu desenvolvimento sócio-histórico nos cenários
internacional e nacional, desvelando as possibilidades de ação con-
Saiba mais
tidas na realidade e, dentre outras, a identificação das demandas
A Constituição Federal de 1988 presentes na sociedade, visando a formular respostas profissionais
prevê, em seus artigos 203 e para o enfrentamento da Questão Social, considerando as novas
204, a assistência social a quem
articulações entre o público e o privado. (CFESS, 2009, p. 17-18)
dela necessitar, independen-
temente de contribuição à Portanto, o trabalho dos assistentes sociais se comprova
seguridade social.
imprescindível ante a luta pela efetivação da política de assistência so-

72 Políticas sociais públicas


cial, conforme preconizam a Constituição Cidadã e as regulamentações
normativas que a organizam. Mediante tamanho desafio, a profissão
tem se agarrado a duas armas principais: o seu atual código de ética
profissional e a lei que regulamenta a profissão – ou seja, as duas gran-
des diretrizes para sua atuação no serviço social brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, a relação do serviço social com as políticas sociais foi
configurada desde os primórdios da profissão e reconfigurada conforme
os processos de redemocratização do Brasil avançaram.
São, portanto, indissociáveis e encontram, em ambos os espaços (po-
lítica social e serviço social), desafios constantes, pois nem mesmo as
transformações societárias que possibilitaram o avanço da democracia
e do exercício da cidadania no país foram suficientes para eliminar por
completo as antigas práticas que historicamente demarcam o campo da
assistência social.
Tem-se, então, que as antigas práticas, de cunho funcionalista e fe-
nomenológico, ainda resistem no campo da assistência social e, por isso,
configuram-se como constantes desafios, uma vez que ameaçam tanto a
evolução dos processos emancipatórios quanto a hegemonia da centrali-
dade da questão social enquanto objeto interventivo.
Esse processo tem se mostrado cada vez mais desafiador, visto que
muitos governos assumem uma postura conservadora e articulada ao
ideário neoliberal. Esses elementos configuram uma conjuntura de amea-
ça aos direitos constitucionais e, na mesma medida, repercutem em signi-
ficativos retrocessos à profissão e ao país.

ATIVIDADES
1. Quando surgiram as primeiras escolas de serviço social no Brasil e
em que medida o surgimento da profissão tem relação com o ideário
capitalista?

2. O que é política social e qual a sua relação com a democracia?

3. Dentre as competências profissionais construídas pelo serviço social,


quais são consideradas indispensáveis à atuação na política de
assistência social?

O serviço social e as políticas sociais 73


REFERÊNCIAS
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http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/ssrevista/article/view/28150. Acesso em: 28 set.
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Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009, p. 301-322.
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Final_Grafica.pdf. Acesso em: 28 set. 2020.
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2017. Disponível em: https://issuu.com/cfess/docs/livro-memoriaseresistenciascontradi.
Acesso em: 28 set. 2020.
COUTO, M. Pensar o pensamento, redesenhando fronteiras. In: MACHADO, C. E. (org.).
Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013. Pensar a Cultura.
NETTO, J.P. A construção do projeto ético-político do serviço social. Brasília: CEAD/ABEPSS/
CFESS, 1999. Disponível em: https://ssrede.pro.br/wp-content/uploads/2017/07/projeto_
etico_politico-j-p-netto_.pdf. Acesso em: 28 set. 2020.
PRATES, J. C. 80 anos de serviço social no Brasil: as construções e os desafios à profissão.
Textos e Contextos, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 1-9, jan./jul. 2016. Disponível em: http://
repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/14815/2/80_anos_de_Servico_Social_no_
Brasil_as_construcoes_e_os_desafios_a_profissao_80_years_of_Social_Work_in_Brazil_the.
pdf. Acesso em: 14 set. 2020.

74 Políticas sociais públicas


UNI
DA
DE
- As políticas sociais
na era dos desmontes de
direitos
4
As políticas sociais na era
dos desmontes de direitos
Este capítulo apresenta um conjunto de debates que con-
tribuirão para o nosso processo formativo com relação à atual
conjuntura das políticas públicas sociais no Brasil.
Além disso, a leitura deste capítulo oferece debates que podem
nos auxiliar na compreensão do modo como os profissionais de
serviço social se mantêm resistentes diante dos diferentes encami-
nhamentos demandados pelo Estado brasileiro.

4.1 Avaliação de políticas sociais


Vídeo A avaliação de políticas públicas é uma prática que herdamos de outros
países. As primeiras iniciativas surgiram na década de 1930, nos Estados
Unidos, porém, a concepção era sucinta e distante da noção de avaliação
que temos atualmente (ALMEIDA, 2008).

As avaliações eram mais simples e muito mais quantitativas do que


qualitativas, ou seja, o processo avaliativo resultava em quadros de da-
dos que sinalizavam algumas problemáticas quanto à previsão orça-
mentária. As primeiras avaliações americanas foram construídas para
avaliar os efeitos dos investimentos em programas educacionais com
relação ao rendimento escolar dos estudantes.

Aos poucos, a prática também foi abraçada por outros países. Por
volta da década de 1970, por exemplo, a França inaugurou novos sis-
temas avaliativos que ampliaram a concepção de avaliação de políti-
cas sociais. Os novos modelos abrangiam problemáticas de Estado, de
território e agregavam dados sobre os usuários dos serviços públicos.
Essas experiências demonstraram que a avaliação de políticas públicas
poderia ser uma importante ferramenta para o entendimento aprofun-
dado das desigualdades sociais (ALMEIDA, 2008).

As políticas sociais na era dos desmontes de direitos 75


Em suma, a maioria das experiências de avaliação de políticas pú-
blicas surgiu pela iniciativa estatal, a fim de avaliar a real eficiência dos
impactos gerados pela destinação de recursos. O fato é que a avaliação
de políticas públicas é uma ferramenta que tanto pode servir aos in-
teresses do capital quanto dos trabalhadores, visto que existem dife-
rentes modos de realizá-la – pode apontar elementos que necessitam
de maior atenção e investimento, como também pode ser usada para
justificar cortes nos investimentos voltados ao social.

Desse modo, a avaliação de políticas públicas só é efetiva quan-


do os critérios avaliativos são definidos com vistas a contemplar a
identificação das necessidades sociais da população. Nesse sentido,
a avaliação deve priorizar a identificação de elementos que contri-
buam para que o país possa avançar no enfrentamento às desigual-
dades sociais. Ainda, deve ser usada para demonstrar onde, como
e quando determinados programas, projetos e ações devem ser de-
senvolvidos e transformados, se necessário.

Contudo, dependendo do tipo de governo, a avaliação pode ser


conduzida para manter a realidade social de desigualdade. Se ava-
liado apenas em índices quantitativos, um programa de extrema
importância social, por exemplo, pode ser encerrado, caso sua efe-
tividade seja medida pelo número de integrantes, e não pelas trans-
formações sociais geradas.

Um projeto voltado a cotas raciais, por exemplo, pode demorar a


concretizar resultados que possam ser demonstrados em dados quan-
titativos consideráveis. Afinal, é preciso tempo para que se altere pro-
blemáticas sociais que existem desde os primórdios do Brasil Colônia.
Um exemplo a ser considerado é a disparidade existente entre brancos
e negros no que se refere ao acesso à educação superior.

Conforme os dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia


e Estatística (IBGE), as cotas raciais promoveram um aumento significa-
tivo da entrada da população negra no ensino superior. Ocorreu um
aumento de 2,2%, em 2000, para 9,3%, em 2017, da população preta
e parda que concluiu a graduação. Esse aumento comprova a eficácia
das políticas de cotas raciais, bem como revela que o processo avalia-
tivo só tem sentido quando realmente é construído para averiguar a
efetividade de mudança na realidade social, e isso leva tempo.

76 Políticas sociais públicas


Diante do exposto, os profissionais do serviço social têm realizado
significativos debates a fim de que a dimensão qualitativa seja o ele-
mento que configure as avaliações estatais demandadas sob o social.
Assim, tem-se como premissa que as avaliações referentes à efetivida-
de das políticas públicas sociais tenham como ponto de partida três
importantes eixos avaliativos:

• O nível de efetividade de participação da população nos processos decisórios, isto


é, a efetividade da democracia participativa constitucional.
• O tipo e a abrangência dos serviços públicos estatais, ou seja, a efetividade do
direito à assistência social e o nível de comprometimento estatal para com a uni-
versalidade da política de assistência social.
• O tipo de ampliação e complexificação das demandas sociais com relação aos
níveis de desigualdade social.

Nesse ínterim, a avaliação de políticas sociais deve ser medida pelo


nível de efetividade dos princípios constitucionais que versam sobre a
seguridade social brasileira. Isso só pode ser avaliado quando conside-
rado os desmontes dos direitos constitucionais e a constante terceiriza-
ção das demandas sociais por parte do Estado. Entre os vários desafios
existentes no campo da efetividade de direitos estão a ausência de
recursos humanos e econômicos e a precariedade dos mecanismos
socioassistenciais.

Deve-se compreender então que não basta constatar a pobreza


existente, as avaliações devem servir para compreender os diferentes
níveis de desigualdade, as particularidades existentes em cada cultura,
território, conjuntura social, econômica e política.

Afinal, além dos dados de efetividade quanto aos direitos concre-


tizados, as avaliações de políticas sociais devem ser construídas de
modo que possam promover sínteses dos obstáculos e desafios que
ainda se configuram como impeditivos ao exercício da cidadania plena.
Isso deve ser feito de modo que não se descaracterize a importância do
Estado como gestor das políticas sociais, visto que esse é um discurso
que interessa ao capital.

Portanto, cabe ao profissional de serviço social se apropriar


das diferentes perspectivas avaliativas, a fim de se tornar capaz de

As políticas sociais na era dos desmontes de direitos 77


questionar e, se possível, barrar instrumentos avaliativos parciais,
pontuais, imediatistas e desconectados da realidade concreta.
Nesse sentido, ele deve se debruçar na construção de instrumen-
tos avaliativos que tenham como base a perspectiva emancipatória.
Além da adoção de uma determinada perspectiva de avaliação,
temos ainda uma dupla tarefa: a de reposicionar os instrumen-
tos de avaliação em um novo marco que se pretende participati-
vo e pedagógico, e, portanto, gerador de mudanças e criar novos
indicadores capazes de dar conta de outras dimensões, de natu-
reza mais qualitativa, relacionadas aos aspectos sociais, políticos
e institucionais envolvidos no processo de implementação dos
programas sociais. (ALMEIDA et al., 2008, p. 100)

Como ponto de partida, Boschetti (2009) sugere que o processo de


compreensão de uma realidade social, na perspectiva emancipatória,
pode ser construído por meio de diferentes instrumentos, que em
essência podem ser diferenciados entre instrumentos que avaliam e
instrumentos que analisam as políticas sociais:
•• Análise: deve-se examinar o quadro institucional e os elemen-
tos que dão forma à política analisada, de modo que seja possí-
vel examinar e criticar todas as partes, bem como compreender
o todo – conformação e estrutura. Nessa etapa, o objetivo cen-
Livro tral não é identificar os efeitos e as implicações na realidade,
O livro Da avaliação de mas sim analisá-la em sua complexidade (BOSCHETTI, 2009).
programas sociais à consti-
tuição de políticas públicas •• Avaliação: imbrica estabelecer parâmetros que possam demons-
apresenta os tipos de trar o nível de eficácia e efetividade dos objetivos, da intenção, do
concepções e perspecti-
vas avaliativas com mais desempenho e o alcance dos objetivos traçados pela política. O
propriedade. que requer, em suma, concretizar um valor ou julgamento sobre
ALMEIDA, S. S. et al. Rio de Janeiro: o significado e os efeitos das políticas sociais (BOSCHETTI, 2009).
UFRJ, 2008.
A prática de avaliação de políticas públicas envolve conhecer,
compreender, descrever, analisar e criticar determinada realidade,
segundo a conjuntura social, política, cultural, econômica, geográ-
fica e ambiental que caracteriza a história social de cada povo. O
processo de compreensão das realidades sociais somente se ma-
terializa quando os assistentes sociais têm em mente que toda e
qualquer política social resulta da relação de disputa de diferentes
projetos societários – projeto de exploração e acúmulo de lucro das
elites e projeto de emancipação dos trabalhadores.

78 Políticas sociais públicas


Artigo

http://www.cressrn.org.br/files/arquivos/V6W3K9PDvT66jNs6Ne91.pdf

No artigo Avaliação de políticas, programas e projetos sociais, da autora Ivanete


Boschetti, publicado no livro Serviço Social: Direitos Sociais e Competências
Profissionais, em 2009, é possível apreender as diferentes práticas na avalia-
ção de políticas sociais.

Acesso em: 7 out. 2020.

4.2 Reformas e contrarreformas


Vídeo Reformas e contrarreformas estatais são estratégias usadas corri-
queiramente pelas elites políticas e econômicas. Essas estratégias
ocorrem a fim de garantir que os interesses econômicos prevaleçam
sobre os sociais, as tradicionais famílias da elite seguem durante gera-
ções em cargos políticos com o objetivo de fazer uso do Estado como
máquina para perpetuar o domínio desse espaço de poder.

O Brasil apresenta um histórico de reformas e contrarreformas de


diferentes tipos, geralmente, são ações voltadas ao empoderamento
da economia mundial e local, bem como em função de ocultar as de-
sigualdades sociais geradas por consequência de seus interesses de
perpetuação de poder.

A política social compõe um campo de contradições, ora como su-


porte essencial à seguridade social de milhões de brasileiros, ora como
estratégia das elites para reproduzir os níveis exploratórios necessá-
rios à manutenção do capital. Esse universo não pode ser analisado
sem o contexto da evolução do capitalismo, uma vez que em cada fase
novas políticas de Estado são implantadas.

Segundo Netto (2007), o capitalismo apresenta diferentes fases de


desenvolvimento:

• Fase 1: demarcada pelo seu surgimento (século XVIII), que se apresentava como um
capitalismo mais primitivo, de características concorrenciais.
• Fase 2: inaugurada no século XX, quando começou a fase monopolista, com os siste-
mas de monopólios.
• Fase 3: atual estágio de desenvolvimento do sistema, conhecido como capitalismo
imperial. Nessa fase, o sistema projeta sua expansão em nível mundial, para assegurar
a perpetuação do poder dos países imperialistas, por meio da exploração dos países
tidos como periféricos.
As políticas sociais na era dos desmontes de direitos 79
O Brasil adentra essa história como território de exploração de re-
cursos naturais e humanos. Logo, remete ao entendimento de que o
Brasil foi construído sob as rédeas do ideário capitalista, ou seja, suas
estruturas políticas, econômicas e sociais foram construídas para servir
aos interesses neoliberais.

O processo de exploração do Brasil foi pincelado por ideais de-


senvolvimentistas de modernidade e ao mesmo tempo por princípios
conservadores, pois o branco europeu se entendia como uma raça
superior. Como tal, sentia-se no direito de inferiorizar e escravizar a
população nativa brasileira, os negros africanos e seus descendentes.

O contexto ideológico burguês foi reproduzido na estrutura es-


tatal brasileira, nas formas jurídicas e em todos os espaços que re-
gulam a vida social e explica o motivo pelo qual as políticas sociais
ocupam papel central no debate da garantia de direitos sociais.
Além disso, explicita de que modo essas políticas têm sido usadas
2 para manter a cultura política do favor, da servidão, do complexo
2
de vira-lata e de outras heranças do Brasil Colônia, que ainda con-
O complexo de vira-lata é um
discurso criado pelas classes figuram a cultura política brasileira.
dominantes para exaltar os
países imperialistas, seus povos O contexto sócio-histórico apresentado se fez necessário para de-
e suas culturas e diminuir os monstrar que os conflitos de classe existem no Brasil desde os seus
países tidos como periféricos na primórdios, ou seja, a desigualdade como uma característica própria
ordem mundial.
do capitalismo se concretizou no país com base em duas classes distin-
tas. A primeira, classe dos trabalhadores, levantou o país às custas de
muita exploração (negros, indígenas e, posteriormente, imigrantes); e a
segunda, classe burguesa, tomou posse dos lucros que resultaram de
toda a riqueza produzida.

Dado o entendimento de que a economia, a política e a ideologia


burguesa sempre foram indissociáveis no Brasil, talvez fique mais fá-
cil compreender por que as políticas sociais adentram no contexto
das reformas e contrarreformas. Contudo, antes de avançarmos cabe
considerar que o termo contrarreforma foi criado para diferenciar as
alterações nas políticas de Estado, segundo os interesses de quem
elas servem.

O termo reforma estatal foi muito usado pelo movimento dos traba-
lhadores para fazer referência às conquistas alcançadas com relação
a benefícios e ampliações de direitos sociais. O contexto da década de
1988, por exemplo, explicita bem esse tipo de reforma. Todavia, quan-

80 Políticas sociais públicas


do se trata de mudanças instauradas de cima para baixo – impostas
pelo capital para reduzir e/ou eliminar direitos em prol de ampliar o
lucro –, entende-se que se trata de contrarreformas.

Nesse aspecto, ressalta-se a contrarreforma do estado brasileiro,


iniciada na década de 1990 pelos países imperialistas para mundializar
o capital. Processo que ocorreu por meio da implantação de um paco-
te de medidas conservadoras e regressivas, que foram abraçadas pela
elite política e econômica brasileira como estratégia de enfrentamento
ao leque de direitos conquistados pela classe trabalhadora em 1988.

Segundo Behring (2008), tratou-se de uma reforma neoliberal que,


desde então, tem se constituído como um dos grandes impeditivos
para a efetivação da cidadania brasileira, considerando que o pacote
de medidas contrareformistas alteraram profundamente as condições
de vida da classe trabalhadora. Quadro que pode ser compreendido
pelos altos níveis de desemprego gerados, além da redução de direitos
desenhados pelas flexibilizações nas condições de trabalho e pelo des-
monte de vários dos direitos de seguridade social.

A contrarreforma iniciada na década de 1990 continua em implan-


tação sob o discurso de que a empresa privada realizaria melhor os
serviços que são de responsabilidade estatal. Os capitalistas instau-
ram a ideia de Estado incompetente que precisa ser reformado e,
enquanto a ideia se espalha, avançam ferozmente nos processos de
privatização do serviço público. Um tipo de discurso que oculta, por
exemplo, o fato de que os investimentos em políticas públicas têm
sido insuficientes, enquanto os investimentos em políticas econômi-
cas esbanjam investimentos.

Assim, o capital internacional abarcou grande parte dos setores de


utilidade pública e exerceu, portanto, controle sobre setores essenciais,
como energia, água, telecomunicação, educação e saúde. O discurso
assume novas roupagens a cada fase do capital, mas em essência:
argumenta-se que o problema estaria localizado no Estado, e por
isso seria necessário reformá-lo para novas requisições, corrigin-
do distorções e reduzindo custos [...] enquanto isso a política
econômica corroí aceleradamente os meios de financiamento do
Estado brasileiro através de uma inserção na ordem internacional
que tem deixado o país à mercê dos especuladores do mercado
financeiro, de forma que todo o esforço de redução de custos pre-
conizado escoou pelo ralo do crescimento galopante das dívidas
interna e externa. (BEHRING; BOSCHETTI, 2009, p. 152)

As políticas sociais na era dos desmontes de direitos 81


O governo de Fernando Henrique Cardoso, assim como o atual go-
verno de Jair Bolsonaro, expressam bem o contexto apresentado so-
bre a afinidade com o mercado internacional. Quadro que se confirma,
dado que as reformas de Estado instauradas por esses governos se
mostraram em consonância com o ideário neoliberal e dissonantes do
projeto de garantia de direitos objetivada pelos trabalhadores.

Nesse ínterim, são instauradas medidas restritivas, cortes de recur-


sos e até mesmo eliminação de direitos sociais, em função de ampliar
investimentos no capital financeiro internacional. Como resultado temos
a precarização dos mecanismos e dos serviços públicos brasileiros, a pri-
vatização dos direitos e a troca de políticas sociais de caráter permanen-
te por políticas pontuais, restritivas, emergenciais e compensatórias.

De política pública ampla, complexa e universal, como bem expli-


citado na Constituição Federal, aos poucos, a política social tem sido
desconfigurada e transformada em uma política frágil, uma “ambulân-
cia que vai recolhendo os mortos e feridos que a política econômica vai
continuamente produzindo” (BEHRING, 2008, p. 248).

A inversão desse quadro só pode ser construída por meio da mani-


festação popular – somente a sociedade pode frear os intuitos neolibe-
rais. Processo que requer apropriação de informações sobre como as
coisas realmente funcionam, que valor têm e o que pode ser feito para
evitar que o desmonte das políticas sociais continue a ocorrer. Nesse
campo entram os assistentes sociais, uma vez que possuem a compe-
tência socioeducativa para orientar e oferecer suporte à organização
da sociedade, com vistas a emancipação e a luta.

4.3 Perspectivas para os tempos atuais


Vídeo O Brasil é ainda um país que se expressa por meio de níveis ex-
tremos de desigualdades sociais, raciais, étnicas, de gênero e de se-
xualidade. A riqueza produzida socialmente não é distribuída de modo
equitativo e as políticas sociais têm uma forte adversária que se articula
e se instaura na contramão da efetivação dos direitos sociais. Ou seja,
a perspectiva neoliberal ainda permanece hábil e imponente na função
de projetar desigualdades sociais.

O Estado de direitos, promulgado na Constituição de 1988, tem sido


desmontado pelas políticas econômicas, que, em suma, continuam a

82 Políticas sociais públicas


ser impostas como prioritárias pela sociedade burguesa. Sociedade
composta pela elite econômica e política que se mostra indiferente às
mazelas sociais que produz.

Consequentemente, as desigualdades se materializam em extremos


níveis de miséria, desemprego, ausência de saneamento, habitação dig-
na, desnutrição, analfabetismo, racismo, sexismo, violência, problemas
de saúde, morte precoce de jovens e outras expressões da chamada
questão social. Conceito este que deriva do quadro sócio-histórico de-
senhado pela relação conflituosa entre capitalistas e trabalhadores. O
conflito tem resultado na morte de milhões de brasileiros pobres, visto
que as armas mais poderosas (capital financeiro, o capital social e o
capital cultural) sempre estiveram sob o domínio das elites.

Contudo, não podemos negar que muito já foi conquistado pelos tra-
balhadores, haja visto a Carta Cidadã e o leque de direitos que ela pres-
creve. O que nos revela o fato de que a organização popular ainda é a
única alternativa que se apresenta efetiva no enfrentamento à perspecti-
va neoliberal. Os vetos e as contrarreformas só ocorrem mediante a con-
testação ferrenha dos movimentos sociais e demais grupos organizados.
A educação popular tem se constituído num paradigma teóri-
co que trata de codificar e descodificar os temas geradores das
lutas populares, busca colaborar com os movimentos sociais e os
partidos políticos que expressam essas lutas. Trata de diminuir
o impacto da crise social na pobreza, e de dar voz à indignação
e ao desespero moral do pobre, do oprimido, do indígena, do
camponês, da mulher, do negro, do analfabeto e do trabalhador
industrial. (GADOTTI, 2007, p. 26)

Trata-se de um campo de luta que precisa de reforço, empodera-


mento que só virá quando a maioria da população brasileira tomar
consciência de seu lugar de classe. Esse processo se realiza por meio
de medidas socioeducacionais pautadas na perspectiva emancipató-
ria, ou seja, é preciso construir instrumentos, técnicas, programas e
projetos que garantam o entendimento da importância do exercício
efetivo da cidadania plena.

Inegavelmente, as elites avançam rumo ao desmonte de direi-


tos, mas também recuam mediante à organização popular, uma
vez que, como diz o velho ditado, preferem “entregar os anéis a
perder os dedos”. Se assim agem, também demonstram que re-
ceiam que os trabalhadores reencontrem modos de se reorgani-

As políticas sociais na era dos desmontes de direitos 83


zar. Nesse contexto, reforça-se a importância da educação popular
como frente estratégica de resistência profissional.
Educar para outros mundos possíveis é educar para conscienti-
zar, para desalienar, para desfetichizar. O fetichismo da ideologia
neoliberal é o fetiche da lógica burguesa e capitalista que conse-
gue solidificar-se a ponto de fazer crer que o mundo é natural-
mente imutável. O fetichismo transforma as relações humanas
em fenômenos estáticos, como se fossem impossíveis de serem
modificadas [...] assim fazendo, estamos assumindo a história
como possibilidade e não como fatalidade. Por isso, educar para
outros mundos possíveis é também educar para a ruptura, para
a rebeldia, para a recusa, para dizer ‘não’, para gritar, para so-
nhar com outros mundos possíveis. Denunciando e anunciando.
(GADOTTI, 2007, p. 26)

O espaço institucional deve continuar a ser o nosso campo de ocu-


pação, assim como as políticas sociais devem ser prioritárias em nossas
ações de resistência. No entanto, não podemos esquecer de que as
políticas estão sob o controle do Estado, instituição que historicamente
também nos condiciona, ou seja, nossas melhores chances de luta se
encontram na prática da educação popular.
Livro
A educação como ação se implanta no cotidiano, do planejamento
O livro Pedagogia do
Oprimido, do autor Paulo
à avaliação das ações, que têm como ponto de partida o fato de que
Freire, apresenta os ninguém ensina ninguém, educamos a nós mesmos mediatizados pelo
grandes fundamentos
da perspectiva crítica
mundo. O que remete ao entendimento de que uma das estratégias
educacional. possíveis de enfrentamento aos desmontes de direitos é ampliar ao
FREIRE, P. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz máximo as práticas socioeducativas.
e Terra, 2011.
Processo educacional que pode ser construído pelos assistentes
sociais no cotidiano de atuação, nos mecanismos institucionais e fora
deles, nos diálogos realizados, nos atendimentos individuais e nas in-
tervenções realizadas com coletivos. Educação popular que se projeta
ao promover espaços de debate e de visibilidade das pautas levantadas
pelos movimentos populares.
Os usuários do serviço social em geral não têm acesso ou do-
mínio do conhecimento sobre os seus direitos (civis, políticos e
sociais), a lógica a partir da qual esses se estruturam e os meios
de exercê-los. O resultado é que não acessam, nem usufruem
desses direitos. (SILVA, 1999, p. 114)

84 Políticas sociais públicas


A ampliação da prática socioeducativa orienta a população so-
bre os direitos fundamentais, além de possibilitar a ela melhor
compreensão das estruturas sociais e das disputas de poder que
a envolvem. Dimensão educativa que prioriza o desenvolvimento
de sujeitos e coletivos com relação ao exercício da cidadania, da
política e da organização popular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das conquistas efetivadas por meio da luta dos trabalhadores
e dos incessantes movimentos quanto à primazia da cidadania, o Brasil
continua a ser regido pelas elites políticas e econômicas que, em suma,
preocupam-se apenas com o crescimento e a expansão de seus investi-
mentos e lucros. O que remonta à classe trabalhadora uma série de pre-
juízos, visto que, a cada conjuntura econômica e política, novas estratégias
de desmonte de direitos são engendradas pelos neoliberais.
A atual conjuntura tem demonstrado que o governo brasileiro vigen-
te assumiu o ideário neoliberal, com o conjunto de valores conservado-
res e elitistas que o constitui. Quadro que tem resultado em constantes
ameaças aos direitos conquistados em 1988, principalmente com relação
à seguridade social brasileira. Só no ano de 2019, diversas contrarrefor-
mas foram efetivadas sobre as estruturas sociais, econômicas e políticas.
A reforma da previdência social, as alterações no regime CLT e as propos-
tas de lei que estão em tramitação no congresso nacional, apontam que
o país tem priorizado os interesses do capital e, para tal, tem rumado ao
desmonte de vários direitos fundamentais.
Nesse contexto, a profissão tem se organizado a fim de manter re-
sistência no enfrentamento ao retrocesso das políticas sociais. O apoio
aos trabalhadores é fundamental, uma vez que esse é o nosso lugar de
classe e é nosso compromisso ético-político, conforme prescrito na lei
que regulamenta a profissão.

ATIVIDADES
1. Por que avaliar políticas sociais?

2. Qual a diferença entre reforma e contrarreforma estatal?

3. Qual a importância da educação popular?

As políticas sociais na era dos desmontes de direitos 85


REFERÊNCIAS
ALMEIDA, S. S. de et al. Perspectivas Teóricas de Avaliação de Políticas Sociais: participando
do debate. In: Da avaliação de programas sociais à constituição de políticas públicas: a
área da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
BEHRING, E. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. 2. ed.
São Paulo: Cortez, 2008.
BEHRING, E.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. 6. ed. São Paulo: Cortez,
2009.
BOSCHETTI, I. Avaliação de políticas, programas e projetos sociais. In: Serviço social:
direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CEFESS/ABEPSS, 2009.
GADOTTI, M. Paulo Freire e a educação popular. Proposta: Revista trimestral de Debate da
Fase, n. 113, p. 21-27, jul./set., 2007.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Somos todos iguais? O que dizem as
estatísticas. Retratos, a revista do IBGE, n. 11, maio/2018.
NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e serviço social. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
SILVA, M. L. L. da. Um novo fazer profissional. In: Capacitação em serviço social e política
social: módulo 4 – o trabalho do assistente social e as políticas sociais. Brasília: CEAD, 1999.

86 Políticas sociais públicas


GABARITO
1 Fundamentos sócio-históricos da política social
1. A criação de políticas sociais públicas foi a principal medida tomada
pelos países europeus, no contexto da segunda metade do século XIX,
para aliviar a pressão dos movimentos operários e evitar a organização
de uma revolução em nível mundial contra o sistema capitalista. Desse
modo, optaram em amenizar os males sociais, a fim de que seus
interesses econômicos pudessem ser mantidos.

2. Encontra-se regulamentada na Lei Orgânica da Assistência Social,


de 1993, instituída como direito de todo cidadão que dela tiver
necessidade. Essa lei se materializa por meio de um conjunto integrado
de ações estatais voltado a assegurar os direitos sociais.

3. A divisão das políticas sociais públicas por setores tem o objetivo de


abarcar as diferentes necessidades sociais, oriundas dos diferentes
territórios brasileiros. Um tipo de divisão estratégica que potencializa o
estabelecimento de objetivos, plano de atuação, alocação de recursos
econômicos e humanos, dado que se planeja a aplicabilidade da
política social segundo as particularidades de cada região brasileira.

2 As políticas afirmativas e os distintos sociais


1. Em suma, as políticas afirmativas objetivam o pagamento da dívida
histórica das nações diante da ausência e/ou da precariedade de
condições de construção de capital social, econômico e cultural com
que tiveram de sobreviver os grupos historicamente discriminados,
desde os primórdios da constituição do Brasil.

2. O termo não consegue abarcar o contexto que se deseja retratar, visto


que demonstra uma confusão terminológica que oculta detalhamentos
importantes acerca dos grupos historicamente excluídos. Além disso,
não contribuir para o desenvolvimento da consciência da maioria da
população, com relação à ausência de igualdade de oportunidades.
Para alguns, o termo retrata uma dimensão quantitativa da realidade;
para outros, remete a tipificações de grupos. Resumindo, em algumas
áreas da ciência, esse termo é utilizado para fazer referência a grupos
historicamente excluídos, já em outras tem sido empregado para
identificar classes sociais, bem como a quantidade de sujeitos que
compõe um determinado grupo da sociedade.

Gabarito 87
3. As políticas afirmativas têm como alvo os distintos grupos sociais que
historicamente foram e são discriminados pela sociedade. Sujeitos que
por suas características peculiares são ignorados, massacrados e/ou
excluídos de processos sociais: mulheres; negros e negras; indígenas;
quilombolas; pessoas com deficiência; população LGBTQIA+; moradores
de favelas; população em situação de rua; idosos, entre outros.

3 O serviço social e as políticas sociais


1. As primeiras escolas de Serviço Social foram criadas em 1936, na
cidade de São Paulo, com o objetivo de capacitar e instrumentalizar
grupos de mulheres para o desenvolvimento do assistencialismo
estatal. A relação da profissão com o capitalismo se dá no fato de que a
profissão foi criada para amenizar e esconder as problemáticas sociais
criadas pelo capitalismo, visto que inicialmente julgavam e buscavam
controlar a população diante das adversidades vivenciadas.

2. Política social é um instrumento estatal que resulta da luta de classes e


que no Brasil se particulariza como direito universal, ou seja, caminho
de viabilização de um dos alicerces que dão base ao tripé da seguridade
social brasileira. As políticas sociais concretizam as diretrizes
constitucionais que versam sobre a seguridade social, sendo a porta
de entrada para a garantia dos direitos e as ferramentas utilizadas
pelos profissionais do serviço social para executar o enfrentamento da
questão social e de suas expressões, conforme estabelecido na lei que
regulamenta a profissão e no seu código de ética profissional.

3. Devido ao acúmulo centenário de experiência da profissão diante


da implantação de políticas sociais, o serviço social desenvolveu
potencialidades muito particularizadas. Na atualidade, a categoria
profissional dispõe de um leque de habilidades teóricas e práticas
capazes de dar concretude a análises sociais na perspectiva da
totalidade. Vejamos algumas das principais: a capacidade de analisar o
social para além do que ele aparenta, potencialidade para apreensão
do funcionamento das estruturas que dão base à organização das
sociedades capitalistas e a capacidade de identificar demandas sociais
criadas pela “questão social”.

88 Políticas sociais públicas


4 As políticas sociais na era dos desmontes de
direitos
1. Deve ser usada para demonstrar onde, como e quando determinadas
ações, programas e projetos devem ser desenvolvidos e transformados,
se necessário.

2. O termo reforma estatal faz referência às medidas de alteração estatal


voltadas a dar concretude a benefícios e ampliações de direitos
sociais. A contrarreforma diz respeito às mudanças instauradas na
organização do estado para reduzir e/ou eliminar direitos em prol de
ampliar o lucro.

3. A educação popular é um importante instrumento para apreender e


compreender as raízes da desigualdade e as estruturas que as geram.
Ela contribui para a redução do impacto da pobreza, além de gerar
processos que garantem voz à indignação dos distintos grupos sociais:
pobres, oprimidos, indígenas, trabalhadores em geral e trabalhadores
do campo, mulheres, negritudes, analfabetos, pessoas em situação de
rua, pessoas com deficiência etc.

Gabarito 89

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