Você está na página 1de 49

e

ISBN 85 08 01174 1 1 RRI!;f=fiffil


NCiPIOv

A Autora apresenta urna vlsllo panoramica


das sociedades indígenasno continente sul-
•amerlcano, focalizando o significado e a lógica
das relacoes dos indios com o mundo natural,
social e sobrenatural, através de considoracoes Alcida
RitaRamo
sobre territorialidade, trabalho e lazer, rela<;:oes
de parentesco, controle social e cxprossoes
religiosas. A diversidade cultural dos povos
indígenr1sé enfatizada ao serem comparadase
relativizadas as suas práticas culturais, vistas
como produtos de processoshistóricos
-
.. SOCIEDA
distintos. Essadiversidade é mantida apesar dos
eteítos dostrutivos 'do contato que sociedades '
indígenas tem sido obrigadas amanter com as
sociedadesnacionais que as envolvem.
Alcida Rita Ramosé professora de
Antropología da Uníversidade de Brasílla. Tem
ampla experiencia de campo com os tndíos
Yanomami de Roraima e é autora do Hierarqula
e simbiose (Relacóes intertrib0ís no Brasil). INDÍGEN
.Árca,r.,
de, t/de/'eM 'e, du-oo&1nze,
• Antropología • Civilizacllo • História ...
• Sociología

(!}ll/Ml,r , tf/W.l& tÍa, J•b-te,


• Administracllo • Artes • Ciéncías
• Comunicacoes • Direilo • Educac1!o• Estética
• Filosofía • Geografía • Literatura • Política
• Psicología
Dlrt~lo
BonJomlnAbdoloJunior
SomlroYoussef Compedelll
t Sumário
Prepara,10 do texto
Pedro Cunha Júnior
Arto
j 1 . lntrodu<;a 7
Objc10 e objetivo 7
Coordena~lo e
(mlolo)
proJoto gráfico ' O concci10 de lribo 10
Ant0nlodo AmoralRocho
Arto,flnal Divcrsiclaclee scmelhan~a 11
llenó Etleno Ardonuy
Josovo
l Souso Fernandes 2 . A importancia do t erritório 13
C■p■
Ary Normanhe Possc da tcrrn 13
Limites 1crri1oriais 14
A e'8casscz social de recursos 16
O 1crri16rio nn cultura 18

3 . Sistemas económ icos 23


As no~ócs de lrnbnlho e lazcr 23
Pcnúrin ou fartura? 28
Produ~ao 30
O saber da produ~iío 35
Rcciprocidadcversus acumuln~üo 37
' l)islribui~flo e consumo 41

4 . A lógica das relacoes soc iais 46


O locnl de rcsid~ncia 47
As unidades rcsitlcnciais 51
O casamcnto SS
Socializn~iio 58
ISBN 85 08 01174· 1
5 . Organizacao poi ítica 60
1988 Conlrolc social 61
Todos os dlrellos rosorvodos Pode,· 65
Editora Allco S.A. - Ruo Borftodo lguopo, 110 Autoriclaclc 67
Tel.: (PABX)270.0322- ColxoPostol 8656
End. Telegráfico "Bomllvro·- Sao Poulo pcsccn traliza~flo 69
6. Religiao e a ordem do mundo 78

~,.
Xamanismo 80
Fciti~ario 83
Conccp¡;iio do cosmos 85
,. Messinnismo 87

7. Conclusao 90
8. Vocabulário crítico 93

9 . Bibliogr af ía comentada 95
11

"
11

11

11

' "''
M

"1
'"
141

,..
'"
1'1/

H!I

A Kon,l..,, wanl, pala lnopl••~••


,..,.

'-- ro
1
6

1 GRUPOSINDÍGENAS
1
(J
,.
1
",, Introdu~ao

,,

'\ Este livro só póde ser escrito gra~as ao acúmulo das


,, e 11e\ "....,,.
I experiencias tle muito s pesquisadores de campo que pas-
·, saram pelas várins fases da constru\)ao de urna etnografía,
( pelas frus trn~oes gcradas da falta de comunica~ao inicial,
,i pelas prirncirns gra1ifica~oes crnocionais e intelcctuai s quan -
\
,' Argonuna do os índios se revelararn bons amigos e informantes , e
( até pe las incertezas, descobcrtas, ang(istias e dcmon stra9ocs
1
de for9a de von1aclc que acompanhani a clabora~íío dos
,: ( resuliaclos ua vivencia no campo. Va lemo-nos aquí dos
\ inúmcros csfor90s de análise e s(ntesc nn busca do nexo
1 .¡,
i
'I cultural de muita s sociedades indígenas, mesmo que a gran-
, ~ de maioria de les lcnha que permanecer on611imapor for~a
,~ w dn na1ureza de um trabnlho resumido como este .

l. Plaroo: 2. Tlrlyó: 3. Cubco/Tukano: 4. Mokú: 5. Yanomon,I: Objeto e objetivo


6. Molongong: 7. Lamiste (Ouóchuo): 8. Canelos (Quichua);
9. Xuar: 10. T0kúna: 11. Morúbo: 12. Mundurukú; 13. Tenete•
háro; 14. Conelo: tS. Urubu-Koopór: 16. Xlkrln/ Koyopó; 17. Ga- Fazemos ncstc cstudo a tentativa de suprir uma ncccs-
vl0es; 18. Krnhó: 19. Aplnoyé: 20. Xeronto: 21. Porlntlntlm; 22.
Slrlonó: 23. Namblquoro: 24. Bor0ro: 25. Mehlnákú; 26. Kronoka• sidade didáiic¡¡, No cnsino de sociedades ditas, com bas-
r0re: 27. Toplropé; 28. Xovonte: 29. Kodlwóu: 30. TorGna: 31. tante infelicidaclc, ''primitivasº contarnos com obras ou
Guuronf/Kolwá: 32. Kalngang.
especializadas denrnis ou muito gcrais; ternos monogrníins
.r • ..,
'
e artigos de especialistas que, praticamente, requerern do dadcs indígenas sul-amcricanas sao -tratadas aqui do scu
lcitor igual espccializa~íio;ternos trabalhos geogrnlicamcntc próprio ponto de vista e níio dnquclc dos pulses aos quais
gcrnis, como Sociedades rribais,de Marshall Snhlins, que est3o involuntariamente ligadas.
engloba povos do mundo intciro e dcscnvolve cliscusslles
bastante complexas, principalmente com rela~ao no asstm- .• Historkamentc, o continente su(..americanocomo um
lodo tcm fornecicloum grande Jeque de diversidadc de sis-
to parentesco; ternos tarnbérn outros, como o livro de Julio 1emas sociopolílicos.Encontramos ncle sociedades de ca9a-
Cesar Melalli, Indios tlo Brasil, que se rcs1ringe~s popula• dorcs, pescadores e colctorcs vivcndo em comunidades alta-
~ocs indlgcnas de um só pals e trata o assunto ele mancira mente móvcis, desfrutando de sistemas culturais bascados
cxlremnmenteacessível, mas, por isso mesmoe ncccssarin - na posse coletiva de um tcrritório, na distribui~üo igualih\·
mcnte, perdenclo cm pro[undidacle. ria de recursos, cm formas acéfalas de organiza~íiopolíti-
Tentamos,pois, chcgarn um rncio•tcrmo,procurando ca; popula~ocs organiwdas cm 11ldc ias permanentes, com
urna unidadc de estudo intcrmcdi6ria: ncrn o mundo intciro. agricultura acompanhada de ca~a. pesca e co.lcta, onde o
nem urn só país, mas um subcontinentc. Bsse subcontinentc governo desccntrnlizado niio permite o exerclcio de for~a
é a Amfrica do Sul nao-andina, que j,í se consagrou na 0 11 ~omina9üo de uns membros sobre os outros; cacicados
profiss,lo antro1,o lógica como urnu unidadc relevante de hicrárquicos, com ccotraliza~ao de poder coordenando mna
cstudos etnológicos - ns chamadas sociedades das "tcrras vasta rede de comunidades intcr-relacionadas, sem (alar
baixns sul•nrncricanns".A mclhor justificativa parn deJi.. c111cidadcs-Esinclose impérios como o incaico e scus pre·
mitar, dcssc modo, o objeto destc trabalho, cxcluindo-sc cursores.
,íreascomo a andina,cst,\ no fato de que as sociedadesdas A invasao curopéia tevc o cfcito de· erradicar muitas
tcrrns baixas aprescntam carnctcrfsticas comuns bcm muis das difcrcn9as sociopolíticas que cxistinm antes do século
marcadas entre si do que quando comparadas com socic• XVI. Com a dcpopuln~ño cm massa que se seguiu a con•
dades de outras regioes. quis1a,os muigos cackados da rcgiao do Caribe, que un.tes
Por out1·0 Indo, a rculidnde ctnognílica é tul que tor• manlinhnm complexos sistemas de cstratifica~ño,foram re•
na artificial um corte cm termos de frontciras nacionais. duzidos a pequenas comunidades acé[alas, depauperadas,
,, Para muitas da< popula~ócs indígenas sul-amcricnnas as desbnratadas e dependcntes do poderio curopeu. Passaram,
diviSOesentre os vflrios paísessíio, no mínimo, irrc1cva
n- entiío, a se asscmclhnr cada vez majs As culturas ama•
tcs, chcgando a ser até bastante inoportunas cm alguns zónicas que hojc conhcccmos. Da costa atlántica, o cxodo
I' casos. pois poclcm dividir sociedades, promovenctocisocs indígena se dcu par.a o interior do continente, c111busca
ou dificuldadcs de comunica~ao e accsso, as vezcs, entre de áreas ele rc[úgio onde pudcsscm escapar a doe119ase
'1
parenles que por acaso vivcm de ambos os lados de urna escravidiio, ao menos por 11 lgu111tempo. No proccsso de
frontcira. Por exemplo, enquanto os Yanomnmi transitam recuo, csscs grupos foram grandemente afctaclos em suas
,, entre a Venezuela e o Brasil, ignorando linhas clivisórias, culturas e sistemas sociopolíticos.
,. os Xuar se veern apanhados entre os dois fogos cla guerra Tudo indica, pois, c,uc a conquista européia produziu
de frontcira entre o Equador e o Pcru. Portanto, ns socic- umn ccrta uniformiznyiiocullurnl, dcstrnindo, cmbora par•
,1
10 11

cialmente, n grande diversidadc que há quinhcntos anos pl'essionar as autoridades ou (ontcs de recursos financciros
atrás c~istia na América do Sul. pelo trnbalho de ussist!ncia ao maior número possfvel de
índios, é conveniente considerar aldeias da mesma socie-
dnde como se fosscm "tribos" diferentes; ou, na questiio
O conceito de tribo • da dcnHirca9iíode tcrras, quando se qucr retalhar um ter-
ritório, é útil nfirmnrque quem vive nclc süo utribos" di-
Com a conquista, os europeus, e depois deles as nas- versas, mesmo quando ess.as '1tribos" nao passam de
eentes nacionalidades sul-americanas, passaram u catego- grupos locais ele unrn mesma sociednde ou de sociedades
rizar as populn~Oesindígenas: os mansos e os bravos, os cultural e historieamente tfio próxinrns que se torna sem
Tupi e os "Tapúya", os selvagense os civilizados. Passa-sc sentido unrn tnl separn~íío.
a aplicar o conceito ele trlbo, que sobreviveuna linguagcm
colidiana, foi apropriado pela retórica dominante e se insi-
nuou igualmente no discurso cientilicCl. Por sua impre- Diversidade e seme lhan1¡;a
cisi1o, por sua plasticidadc altamente manipulávcl, por ser
um termo utilizado por conquistaclores para se referir a Tentur caracterizar cm bloco ns sociedades indígenas
conquistados, o termo tribo nüo é cmpregado aquí. no continente sul-nmcricnno, mesmo cxcluinclo os Andes,
~ correr o risco de generalizar sobre uma realidndc que,
Segundo Morton Fried, tribos sao entidades criadas
t pela siluayño de colonialismo ou de Qutro tipo ele domi-
na~iio vinda de fora. Rcsultam do rcarrnnjo das unidades
apesar de tudo, ninda é nltamentc diversificada. Nlio há
duas sociedades indígenas igu:lis. Mesmo quando ocupam
e rela9ócs sociopoHticas subscqUentcs ~ conquista, quer zonas ecológicas scmclhnntcs, etas mnnlcm sun individua-
militar, qucr polílka, ou cconOmica. lidndc, tanto no plano das rela,ócs sociais como no campo
simbólico. Portanto, nño é poss{vel explicar a lógica so-
Na América do Sul, o conecito de tribo, dependenclo ciocultural dessas sociedades simplesmcntc por !atores eco-
dos interesses cm jogo, tcm sido aplicado elasticamente, lógicos ou por determina,ocs cconomicas.
para englobar vários grupos indígenas, inclependentemente
da presc,wa ou nusfü1ciade vincula~ocsentre eles ou tcm Entretanto, quando comparados as popula9oes na-
. contraldo, para excluir grupos que siio cultural' social
srdo cionnis cm que estiio encravados, os povos indfgenas aprc-
scntam alguns denominadores comuns que os diferencian,
e politicnmcnte próximos. Os agentes desses feítos ;.,m si-
,. do, pri11cipal111e111c,
missionários e runcionários governa-
delns. Sendo produtos de processos históricos distintos dos
que mal'cam ns sociedades ocidcntais, eles desenvolvcram
mcntais. Agrupar compulsoriamente socieclnclcsindígenas umn série de características que lhes dlio uma fei,ao pró-
diversasnuma mesma missüoou ''redu~ao'',jgnorandodi• pria e que contrnslam fortcmente com nquclns. Sao cssas
ícren9as e divcrg~nciaspor vezcs proíundas, tem sido uma caraetcrísticus que serao ac¡ui focalizadas, desde a orga-
prática missionária bastante difundida. A ilus6ria "tribo'' nizu~lio da produ,ao ut6 a rela\'a0 dos homens com o
dos "Tapúya", por cxemplo, foi uma tal invcn~aodos cha- sobrenatural, passanclo por (ormas de residencia e matri-
mados civilizados. Por outro lado, se o que importa é im- monio e sistemas polhicos. A enrase clnda ncssa busca de
u
denominadores comuns está na preocupa9ao de desvendar

(
a lógic" dos sistemas sociais desses povos que, muilos
séculos antes da chcgada dos europeos ao Novo Mundo,
já haviam resolvido p1·oblemasque hojc afligcm as popu-
2
la~Oesrcgionais e nacionais, cspccial
rncntc na Amaz611
ia.
e importante (azcr aqui uma ressalva. A divisfio de
A importancia do
unrndada socicdadc humona cm sistema econOrnico,sis-
ternn religioso, social, político ele. só se juslifiea corno um
território
ar1iffcio neccssário a cleseri9aoe análisc. Quan10 mais nao

! seja, o sistema linear da escrita ocidcntal dificulta, ou


mesmo impede, a aprcsc111a9aosimullt.nca de um lodo
complexo, formado de v(oriasparles in1imarnen1e inlerli-
gadas, tornando indispensável ?, compreensiio proceder-se
"por parles''. E unicamcnlc por cssa razao que fazemos
aquí unrn divisüo das sociedades indígenas cm seus sis-
Para as sociedades ind1~, nas a !erra é mui10 mais do
que simples mcio de subsistencia. Ela representa o suporte
temas componentes. Porém devc ficar claro que, na rea-
da vida social e está diretamenle ligada ao sistema de
lidadc, é impossívcl alivar-sc o sistema económico scm
cren~s e conhccirncnto. Nao é apenas um recurso na-
que o social, o político 011 oulros enlrem cm a9iio e
tural mas - e 1iío importante quanto este - um recurso
vice-versa. No processo ele dcscri~ao de um sistema eco- sociocullural.
nómico, é nccess,írio fazer frcqllcnlcs men,óes a questócs
ele pnrcnlcsco, de política, de conhecimenlo, de cren9as e
'
valores, corno rica demonstraclo nas páginns que se
seguem. Posse da terra
Comeccmos, por1an10,pela no9iio ele territorialidade
e a rcla~llo com o mcio :unbicnlc, para clepois rocali- Scndo um recurso naturnl vinculado ~ vida social
zarrnos ns rela,óes socinis, us relt19<iespolíticas e os sis- como um todo, a tcrra níio é e nao pode ser objeto de
,,, propriedade individual. De fato, a no;üo de propricdade
temas de crc11 9as. Ao longo clo lrabalho há a preocupa;iio
ele jndicar que cssassocicdndes nao vivem no vácuo, ncm
privada da 1erra nao existe nas sociedades indígenas.
em redomas de vidro, mas sim cm mcio a tremendas No passado, quando nüo havia grandes prcssocs de
:¡ prcssóes a elas impostas pelas vicissiludcs do contalo que rora sobre a qunnlidadc de !erra a ser utilizada para cada
sao for,nclas a lcr com as sociedades nacionais onde se socicdadc indígena, a ques1áo da manulcnvíio de frontciras
inserem. terriloriais nao chcgava a se colocar de mancira cate-
.. ··l górica. Todos linhum o clircilo de utilizar os recursos do
,¡ meio ambiente na fonna de cava, pesca, coleta e agri-
cuilurn, scm que divisas rígidas íossem manlidas entre
J
,
14 15

aldcias e mesmo entre sociedades vizinhas. Embora o pro- ncm tíio permanentes que i.nibam uma mudan9a de local
doto do trabalho pudessc ser individual, ou, melhor di- e rearranjos espaciais. O que existe, geralmcnte, é um con-
zendo, familiar, o acesso aos recursos era colctivo. E, senso partilhado por comunidades vizinhas de que é etica-
atualmentc, quando todus ou quasc todas as sociedades mcnte incorrcto utilizar os recursos de outra comunidade
indígenas da América clo Sul se vecm cercadas pelas so-
ciedades nncionnis cm cxpansiio, sofrcndo rcdu~ócs nrnitas
' sem consultá-la ou informá-la. O tra9ado cxato desses Ji.
mites pode nao ser do conhecimcnto ou do intcresse da
vezes dramá ticas de seus territórios tradicio11a
is e tendo popuh19ao, porém há uma prnxe rcconhccida e observada
que descmpenhar um novo cnc;,rgo, que é a dcfcsa de
por todos. Ternos, por cxcmplo, o relato de lrving
frontciras, mesmo assim a terra que lites resta continua
scndo objeto ele propriedade ou possc comunal ele cada Goldman sobre os índios Cubco (Kobéwa), grupo ribci-
grupo c nao propricdcdc de indivíduos. Em outras pa- rinho do Alto Uau¡,és da Co16mbia e do Brasil, no
lavras, o modelo ociclcnlal de propricdadc individual nao noroeste nmazOn
ico:
foi ndotado pelas sociedades indígenas. Ao contrário, as Deve sor explicado quo a dlscussao de frontelras nAo flul
reivindicas,oes que p¡,rtem das popula~óes indígenas anle naturolmonto dos Cuboo: ola ó puxoda pelo etnólogo. Os
as autoridades nacionais cnCatizamo grupo como um todo Rubeo nAo a6o zelosos do frontelros o raramente t@mpro•
e niio individuos isolados; isso núo só com rcla~iio a de- -1 blomoscom olos, omboroos conho~om[ . .. ] Com rospol to
limita~iio ju~tn de tcrrilórios, como também cm qucstócs ti t erro, ostomos lidondo mnls com dominio do que com
de assistcncia médica, cduca9üo e outros beneficios 11que propriedado [ . .. J O dominio ó sancionado por trudlc0os
de orlgem que narram precisamente do onde vle ram os
tem dircito.
prlmol ros Mcostro ls e suas vlogons o oldoomontos subso-
q0ontes. ~ com hose nossas tradlc6•• que as peosoas
podom dlzor: "Esto é o nosso torro· .
Limites terrltorlai s
Sobre os Urnbu-Kaapór, grupo Tupi do Marnnhiio,
Considcra9iics de limites tcrritoriais niio silo cslrnnhas diz Darcy Ribeiro, autor do livro Oirá sai a procura de
as tradi9oes das socicd11dcsindígenas. O que é cstranho é De11s,e que os visitou cm J948 e 1950:
o sentido de cxclusividade e de policiamenlo de um dado
Embora nAo hoja qualquer ldéla do proprlododo sobre o tar-
tcrritório; essc sentido vcrn lhes sendo imposto por íor9a rltórlo tr ibal ou do dlvlsno do mesmo ontre os várlos gru•
das invas6cs e dos saques de suas terras pelas popula9ócs pos locols, cada aldelo, na prátlco, cobro umo corto Orco
nacionais ou por interesses alienígenas. Tradicional111c ,11e, em suas atlvldodcs do coca, coleto e posca, de modo que
é muito comum existir o reconhecimento lácito dos con- raramente os co~ndoros do grupos locols diferentes se en,
íins geográficos dos tcrritórios de cu9<1,de coleta ou de controm no moto. Esto dlvlsfto nnturnl do terrltórlo trlbnl
,, pesca das cornuni(laclcs que compficm uma dada sociedade
lo l posslbllltodo polo suo oxtonsAo o Imposto pelo no-
cessldado quo enfronto cedo grupo do conheceroxaustlvo•
ou sociedades vizinhas. Porém, esses limites nao sao tíío mento suo áron paro que ns atlvldades oco,,C.mlc&s soJom
rígidos que impossibilitcm o ucesso a oulras comunidades, produtlvos.
16 17

A escassez social de recursos [ ... J Nfto há quolqupr tndlcacno ele dtferonctocAo pela
rlquozo.
Mesm o limitada s e cncravadas territorialmente como
Mesmo nnquclcs casos cm que existe ou cxistin dc-
estiio hoje as muil!ls sociedades indfgenas do continente
:sul-amcricano, chas ninda manu!m,basicamcnte, a mesma sigualdacle sociopolítica, co mo no sistem~ social do ~haco
antes da pcn etrn~ao ocidental, cssa dcs1gunldade nao se
rdn~o com n terrn e o meio ambiente que tinham
antes das restri~ocs que lbes 1€111sido impostas pelos tracluz c m termos ele maior 011 menor poder de nccsso a
Estados- na~ocs que as cnvolvcm. recursos naturni s. Se há {anura, todos se bcneliciam; se
hiÍ ' • ltn todos a soí rcm. Como veremos muis adiantc,
Tcmos, por cxomplo, a qucstño clu cscassez. No sis- cxistcm 'mecanismos culturais que implemcntnm a distl'i-
temu cconOmico ociclental, aclotaclo pelos países sul-ame- buil,ÜOregular de procluLos vitais por tocia a comuniclade,
ricanos, a cscassez de recursos é nrnis o resultado do como a carne, por cxemplo.
sistema soc iocconomico vigente do que ele uma limita~ao .Embora correuclo o risco de fugir ao aS-suntopresente,
1rntun1I. /1 própria tcrra foi tran sformada cm bem cscasso vale a pena elaborar um pou co a qucstao da escasscz com
no momento cm que passou a ser regida pelo principio rclal)".'ono problema da dcsigualdacle social. Esta, qua?do
da propriedade privada: somentc aquclcs com o suficiente cx\.ste cm sociedades indígenas, nao se dá a custa de priva-
poder aqui sitivo tcm accsso a cla. Nns sociedad es indí- ~ócs económicas de uns em beneficio de outros; gcralmcn-
genas isso nao acorre. A tcrru e scus recursos naturais te está vinculada u 1>rivilégiossociais, políticos ou rituais
scmprc pcrlcnccrant lis comunidade
s que os utilizam, de que níío envolvcm acumula¡;ao despropor ciona! ele bcns
modo que praticarncntcnño existe cscass.ez,socialmente matcriais ou acesso diferencial a recursos naturais.
provocada, dcsscs recursos. Se h(i cscasscz natural (por
" ,, cxcmplo, falla de terreno aproprindo para o plantío cm
As dcscri~ocs ctnogril!icas da s popula~s do Chaco
no século XVIII rclatam o comp lexo sistema intcrétnico
dado local), cla é partilh uda por todos. Sobre os fndios de cstrntificu~íío social que envolvia diversos grupos indí-
1 14
Mundurukú da rc¡;ifio do rio Tapaj ós, diz n esse respclto genas cncabc~ados pelos Ouaikurú 011 Mbayá. Estes, cria-
'
,. Robert Murphy no livl'o llead -/11111/
ers' heritt1gc1:
As ,oc;:assíío montldos openos po, dlreitos de usu•
dores de gado e de cavalos, tinham suprcmacin polltica
sobre uma vasta rcgiilo, mantendo subordinados outros
fruto; quondo n torra so oxoure, depols de dols onoa, efo grupos indígenas , agricultores. Suas incursocs gucrreiras
" retorna oo dornínio cornum. O produto dos roc;:as, da ca1to resultavam na captura de prisionciros de umbos os sexos,
14 o da poseo ó consldorado proprlodade do pessoo que tem que eram entao incorporado s h comunidades Ouaikurú.
Mj os roeos e quo matou os anlmols. Mas essos dlreltos por•
dom o sou significa do quondo vistos sob o prisma do siste-
1 Esscs prisionciros foram crroneamentc identificados como
eseravos pelo s curopcus que obscrvaram o fenllmcno. En-

tJ
ma de dtstrlbutcno. Todo comida que ontra na coso ó partl•
tretanto esscs mesmos observudores niio deixaram de pcr-
14j !hada pelo íarnillu extensa o. so houvor excedento, oste
é distribuido por todas ns cusas da aldelo. Nóo hó pessoo
• .
ccbcr cerios aspectos cruciai s que diferencinvam o sistema
nen, fornllln que pnsso fomo se os outros t6m comfdn
"l chaquenho do regime cscravocratn curopcu. No livro

"1
18
¡
Os Caduveos, de Guido Boggiani, encontramos n scguinte
j nidadcs cnvolvidas a se utilizar do território comum que
passageh1 sobre csse subgrupo Guaikurú: as contém, território cssc que toma umn importancia social
cxtraordinária. ll freqücntc, por cxemplo, duas ou mais
É vordado qua os Mboyá gostom multo do sous escrovos.
aldcias ligadas en 1re si por tais vfnculos se juntarcm du-
Jnmols mandam noles do modo Imperioso. nunca brlgam
com eles, ncm os costlgom, nem os vendom, emboro se rante uma dada época do ano para expedi¡;óes de cai;a ou
trotando de prlslonelros de guerra. Conflam no boa ft! do pesca cm locais determinados que podem ser freqUcntados
escravo e ~• contenlam com o que quiso, fazer por si du rante anos seguidos pelas mesmas pessoas ou por oulrns.
mesmo o rapartom com ele o que Mm. Entre os Yanomami do norte do Brasil e do sul da
Venezuela, como entre muitos grupos indfgcMs, o cspa90
A ci1a~1ío é ele Félix Azara, que viajou pela rcgiílo de
entre duas aldeias quaisquer é quase scmprc pontilhado ou
1781 n 1801. Azara termina o pnr(igrafo como comeutário:
por antigas r09as que ainda produzem alguma coisn, como
"Que con traste com o tratnmenlo que os curopeus diío nos
pupunha, ou por abrigos tcmporários, os tapiris , utilizados
nfricunos!". Os privilégios políticos dos Guaikurí, niío in-
por viajf,tes, ou por acampamcntos de verao (csta~ao seca)
clufam, pois, a domina~fio cconomicn sobre scus subord i-
cortad, ,s por trilhas que levam a outras aldeias, a outras
nados, nem se calcavnm na manipula~ao de recursos natu- . ~
unt,gas ro~as ou a outros acnmpamcntos. Um dos temas
rais 1ransformados cm bcns escassos; niio existía ncm cocr-
de conversa rnais rccorrcntcs entre pessoas da mesma al•
~üo pnn, o lrnb:1lho ncm accsso lli[crcncit,Iaos bcns pro•
duzidos. deia ou de aldeins diversas é o estado gcral e particular do
território: trocam-se noticias e anedotns sobre ca9ndas,
abundfincia ou escasscz destc ou daquelc produto, o pro-
gresso no amndurecimcnto deste ou daquclc fruto, as idas
O território na cultura e vindas dcstcs ou daquelcs moradores dcsta ou daqucla
aldcia, os sustos e as recompensas que a mata pode trazer,
Considern~oes de ordern social, ritual ou religiosa pe- os aspectos extranaturais ou sobrenaturais da floresta ou
snm igualmente na importílncia que o território tcm para dos rios ou das montnnhas, como, por exemplo, o encontro
as popula~ocs indfgcnas. O csL11belceimentode alian~as ocasional com espíritos na mala, c. muitos outros assuntos
matrimoniaisestá, muitas vczcs, diretnmentcvinculado lt
que rcvelam a inqucstionávcl importnncia do território, niío
disposi9áo espac ial dos vádos grupos locais. Se uma dada
socicdade proíbe ou descncoraja o casamcnto entre pessoas apenas como o sustentácu lo físico dessas popula~oes, mas
·¡ também •- e principalmente - como urna rcalidadc so-
1 residentes na mesma aldcia, o que é bastante comum na
ctnografiasul-amcri~'lna,isso neccssariamentcleva as vá- cialmente const ruida, e laborada e intensamente vivida.
1 , rias aldeias a se interligarem por la9os de cas,1mento. Esscs Para muitas sociedades indígenas, como os já mencio-
la90s, por sua vez, vem acompanhados de uma série de nados Cubco, o tcrritório grupal está ligado a uma história
obr iga~ocs múluas que trnnsccnclcm n mera unir.o conjuga! cultural. Essa história, rnuitns vezcs revestida de urna lin-
que lhes c.leuorigcm. Visitas recíprocas, prcsta¡;ócs de ser- guagcm mftico-rcligiosa, orienta e define os movimentos
vi9os vlirios, desde cconomicos a rituais, lcvam ns comu - cspac iais das aldeias de um sitio ocupado para outro novo.

.,
20 21

A ordena,ño de grupos residenciais no longo dos rios obe- no~iles de autoclctermina,ao, de articula~ao sociopolílica,
dece a um modelo representado pela gigantesca cobra de viv~nciae crcn~as rcUgiosas,para nüo falar na própria
sucuri: a sua cabe,a corrcspondem os grupos locais mais existencia física do grupo. A rcdu~íio dos lerritórios indí-
importantes política e ritualmente, localizados rio abaixo: genas, que tcm siclo uma constante na história do conlato
li sua cauda, os menos importantes, localizados nas cabe• en11·cíndios e branco.~, tem rcpresenlado, cm cada caso
ceirns. O caso dos Numbiquara tamb~m é ilustrativo: se- específico, .violencias de v:lrias orclcns, com a priva;ao
gundo David Price, cm um ;,rtigo sobre polltica indigenista cultural, social, religiosa, moral, cconéimicae ecológica das
e política indígcnn, sociedades indígenas.
A queslíio da cxteusüo das tercas indígenas é suficien-
os vivos oforocem comida e bebido aos espírltos dos
temente importante para lhe dcdicnrmos aqui um mínimo
mortos e os ogradomcom o conto,o os espirilos,roclpro•
comente. ossoguromsaüde o bom-estorh aldelo. Segue
de aten,ño. Se cm latitudes subtropicais, semitcmpcradas
quo o lugar ondo os porontos süo enterrodos é segrodo, ou cm altitudes de clima temperado, como sao o sul do
e Já quo ostiio on torrodos na aldola. o oldelo ó sag rada. continente e o alliplano anclíno, ns popula9iks indígenas
Onde hó Nomblquera ontorrodo ó aldola, o ondo nfto h6 precisnn,"'cle toda a terra que 1cm e daquela que lhes foi
nlnguém ontorrodo1100ó aldolo, olndn quo oí vivom cln• lime.la/ a fion ele suprir as necessidudes da popula,üo atual
qüonto hobltontos. e fulurn, na regiiío amaz8nica o ra1or quanlidadc de terra
é ainda mais crucial. Como já é bem sabido, as condi9ócs
O c¡ué isso significu, na ¡mítica, é 11uecada sítio de aldcia ecológicas da maior parte da Amazonia sao lais que fazcm
está historica111e111evinculado a seus habitantes, de modo com que a explora,üo intensiva e ininterrupta de um de-
c¡uc o passar do tempo nao apaga o conhecimenlo dos terminado sítio leve i\ rápida cxausliio do solo e de outros
movimcntos do grupo, desde que se mantenha viva a mc- recursos naturais. O cullivo continuado ele uma mesma
mória dos anceslrnis. Estes cslfto, portanto, ligados ao ter- ro.u por muis ele trí,s anos conduz il eventual estcrilidade
ritório, scndo que o foco dessa rcla~ño é o local de habi- da \erra e il queda vertiginosa de produtividadc da lavourn.
rn,iío, islo é, a aldeia. Essa rcla;iío é, de fato, enfatizada Por sua vez, n riqueza da fauna e da flora amaz6nica nfio
socialmente, pois, "quando alguém morrc longe de uma
se cncontra de forma concentrada. As cspécics animais e
aldeia, o corpo é levado, se for neccssúrio,para ser enter- vcgelais siio muitas, mas dispersas. Nilo há concentru,ao
rado num lugar onde há mala boa, onde ro;as possam, rutu- ele animais em grandes números, como, por excmplo, o
ramcntc, ser fcitas", isto é, se nfio muna alclcin antiga, búfalo, em tempos pnssados, na América do Norte. Os ani-
cntao numa aldciu futura. mais pcrambulam por grandes distftncias individualmente;
Por todas essas razocs, rica claw por que o signili- existem algumas excc,oes, como a qucixada, que viaja em
cndo de lcrritorialidadc para as sociedades indígenas nao grupos de vinte ou trinla indivíduos, mas isso nao altera
é o mesmo que para as popula9oes nacionais que as ro- o pndrao amaz6nico de clispersaodas cspécies.
dciam. Extirpada de seu tcrrilório, uma sociedadc indígena Assim sendo, urna comunidadc indígena ncccssita de
tem poucas clrnnccs de sobrcvivcr como grupo cultural uma área utilizávcl bcm maior do que a que circunda a
aul6nomo. No terrilório estno inscritus as mais básicas nldeia e as ro~as. Para urna popula~üo relativamente pe-
22

quena como é, por cxcmplo, a Yanomami (aliás, uma das


maiores popula~oes indígenas que ainda vivem suas tradi-
~oes praticamenle inalteradas pelo contato), com cerca de
vinte mil pcssoas vivendo no Brasil e na Venezuela, a quan-
3 ,., .
tidndc de terca necessária foi cu idadosamente calculada cm,
aproximadamente, 750 hecturcs por habitante, o que é bem
Sistemas econom1cos
mais do que os 100 hectares por familia disll'ibufdos pelo
lncra a colonos na Amazonia. Tudo indica que cssn quan-
tidad e de tcrrn é indispensável nos Yanornami para que
scjam evitados desgastes socioeconOrnicos ou a exaustiío
de recursos naturais.
Limitar, pois, o 1erri16rio de ,1111grupo As imedia~s
do seu centro residencial, a aldeia, é condenar csse grupo
11 penúria permanente, privando-o dos recursos naturnis
que, por sua naturcza ecológica, acham-se espalhados por As no~oes de trabalho e lazer
grandes distancias, neccssitando, conseqüenlemente, de
uma cxplora~ño extensiva e nao intensiva. No Brnsil Sendo a esfera económica interpenctrada por outras
mesmo ternos inúmcros cxemplos de Indios que, havendo dimensoes da vida nas sociedades indígenas, a no~ao de
traba lho para clas nao é a mesma das sociedades ditas
perdido scus 1erri16rios originais, süo abrigados a utilizar,
para sobrevive,, o único recurso que lhes restou: o scu Ira • c~mplex~s, ou ocidentais. No processo de produl,llo econ6-
m,ca, seja ela ca9a, pesca, coleta, lnvoura ou qualqucr
balho, vendido barato, scniio mesmo dacio, nos rcgionais
invasores.
out~a, ~ trabalhador º!º se isola ele scus dcmais papéis e
obrigaoocs. Na produ~ao estlio sempre presentes eonsidera-
9oes ele ordcm social, ritual, religiosa, para citar apenas
as ma1s comuns e óbvias. Nao ex iste, porta nto o len6meno
da "alienayfio'', que é uma das caracteríslic~s mais mar-
eantes do proccsso de traba lho industrial. Na linha de mon-
tagem de uma fáb rica é irrelevante se 11111lrabalhador está
planejando uma festa de casame nto para a filha, se sua
mulhcr está cm vías de dar A luz, se ele é assfduo cm suas
obr iga9ocs religiosas, se tcm obedecido nos padrocs morais
de sua socicdadc. Enquun lo operário trabalhando na fábri-
ca, ele é rcduzido A sua utilidadc imediala, isto é, mera
pe~• neccssária no prncesso de produ9iío. Essc desmembra-
111cntodo traba lhndor cm produtor cconomico, de um lado,
'1

l
l4
, l5

e cm ser social, de ot1tro, cssn alicnac;iioenfim, niio existe cm risco a vida da crin119a.Siío csscs aíins do cacador que
nas sociedades indígenas. Mais importante ainda é o fato iráo consumir a carne e dar o vcredito: se a carne for de
de que nestas sociedades é o produtor que controla os boa qualidadc, a crian~a vivcrá; scnüo, morrerú.
meios de produ~iío, e o <1ue ele procluz niio lhe é nlhcio, Vista pelo prisma puramente cconomicista, cssn ca,a-
como uma mercadoria o é para o operário.
da nao representaría mais do que mna mancira floreada
Quando um índio vai ca~r, ele leva consigo nilo s6 de fornecer carne i\ aldcia. Empobrecedora como seria tal
arco, flechas e outros instrumentos,mas tambémurnaséric visiio,pois, quando muito, relegaría ii categoría de detalhes
de clircitos e obriga~es engendrados na vida familiar e aspectos culiuruis muit~ importantes para aqueles que vi-
comunit;'iriaque irño inCluir na sua ntivicladeccon6mica: vem essu cultura, ch, também tcria o dcfoilo de minimizar
que animais procurar, qucm na sua aldeia pode 011 ndo a interdependencia das esferas du vida indígena. O ca~ador
comer tnl ou qual animal, quais as conseqüSnciasde suas Sanumá niio pode ignorar - e ncm ele nem ninguém igno-
u~ócs rituais anteriores a ca~ada e uma séric ele outras ra - que tcm responsabilidades para com o novo filho
consiclcra~es, aparentemente inclcpendcntesda produ~ao e para com ns entidades sobrcnaturais, que requerem a~es
económica, mas cuja importftnciaé decisiva no seu descm- e utitudes cspeciais, mesmo cm contextos que rotinciramcn-
penho. O trabalhaclornuma sociedade indígena nüo é com- tc siio tito prosaicos como uma ca~ada. O cn~udorSanumú
partimcntalizaclo; ele é urn ser social 101al cm todas as tcrn ludo isso em mente quando procura matar um animal
esferas ele sua vida. que nao represente tabu corno alimento e que seja ade-
A guisa de ilustra9iio, podemos evocar o exemplo de <1uudo i\ ocasiao por ter 11111nome apropriado para um ser
urn tipo de ca~ada ritual entre os Indios Snnumá, subgrupo humano, o que ncm scmprcocorrc.
Yanomami do norte do tcrritório de Roraima. Alguns días Sendo tao intrincadamente ligado a assuntos niio-cco-
depois que nasce uma criunya fisicamcnlc normal e em n6mieos, o trabalho cm sociedades indígenas nao repre-
condi~es sociais tamb6m normais, o pal vai ca9ar. O ani- senta, cstrilamente falnndo, o lado oposto, u contrapartida
mal que ele matar será o ep6nimo da crian9a, isto é, esta do lazer. O sistema de produc;ííoé organizado de tal ma-
será chamada pelo nome dado il espécic da ca~a morta. neira ~te permite a qucm procluzu liberdade de manifestar
Em otllras palavras, o pai sal a ca9ar, literalmente, o nomc conviv idade, tendencias estéticas, gratifica~iío física ou
de seu filho (ou filha) recém-nascido. Essa ca~ada se re- o que uc1·que csteja cnvolvido em atividadcs de laier,
veste de grandes cuidados, pois é mislicamentc sobrccar- ísso no proccsso mesmo ele produzir. Assim como nao
regada de perigos, cm parte porque a crian~a rccebcrá do existe uma clivisiiosocial entre classe ociosu e classc traba-
animal, além do nomc, também um cerio espirilo que se lhadora, tarnbém niío existe uma divisilo tempornl entre
instala em scu corpo. O pai dcve, pois, evitar ao máximo tempo produtivo (trnbalho) e tempo recreativo (lazcr).
manusear o animal abatido; earrcga-o para a aldcia pen- Um grupo ele ca~adores muna trilha da floresta nilo
durndo cm clpó e passa-o imediatumcntc para os scus está compelido a obedecer a um horário íixo, dentro do
aíins, ou scja, os parentes consangüíneos de sua mulhcr. qual é proibido divergir da atividade central, parar de tra-
Ncm ele ncm eln podcm comer a carne, sob pena de wrcm balhar 011 conversar com os companheiros. Eles tem a li-

27
26

berdadc inconleslávcl de trocar comenh\rios, de parar para em mcio a conversas animados, piadas ou cantigas des•
descansar quando assim o decidem, de interromper II ca9a• contraídas. Também há fruslra~ocs, como uma ca~ada sem
da quando algo intercssanle surge, como, por exemplo, a ca~a abatida mas os efeitos delas nao chcgam a se com-
dcscobcrta de mcl ou pegadas ele inimigos no caminho. De parar com os de mn din perdido no traba.lho da f{tbrica,
mancirn scmelhaute, um grupo ele mulhercs que vai ~ ro9a com salário descontado. Essa experiencia cslí1 reservada
[azer limpcza ou buscar manlimentos nao se limita apenas ilqueles indígenas que se veem obrigados a recorrer ao
a isso. Grande quanlidadc de informa¡¡óes, mcxcricos, de- sistema salarial dos brancos, quando suas terras lhcs roram
sabafos etc. é trocada no caminho, como também sao cole• tomadas parcial ou totalmente, impossibilitanclo a ccnti-
tados pro<lutoscomo ras ou cipó para fazer ccstns. Uma nuidnde de um sistema que se rcproduziu por tempo ime-
expcdil,iiOro1incira de cn9a ou uma ida ~ ro9a poclemcon- moria1.
sumir a maior parte do dia, isso porque, comumcntc, cssas Podcriamos dizer que nns sociedades indígenas cada
sa[das cnvolvcm ulividadcs mullivariadas. um estabelecc o scu "fiin de semana" próprio cm c¡ualquer
faso nao qucr dizcr que os Indios sejam indolentes e dia que lhe aprouvcr. Se um ca~ador trouxe bastante camc
nao gostcm de (azcr esfor90. S6 c¡uem participou de unia para casa onlcm, ele nao precisa voltar a ca~ar hoje ou
ca9ada, ou de uma expcdi9iío de coleta, ou do cuidado amanhíí. Se uma mulhcr Coi 1t ro9a e trouxe um carrcga•
de uma ro9u, sabe avaliar o grau de exaustiío física de tais mento de vários produtos e passou hoje o dia intciro ralan•
atividadcs. Há qucm diga, mnl informada ou mal-intcncio- do a mandioca que ~crá trnnsformada no bciju dos pró-
nadamenlc, que ca~a,·, pescar, colernr nao é trabalho, é ximos tres ou quatro dias, cla niio necessitn vallar a ro9a
esparte. Se por trnbr.lho cntendem a rolinu alienanlc do amanhii. Entretanto, a imagcm do fim de semana nao 6
assalariado, definida pelo cxe,·cicio do csfor~o físico ou lolahncnle válida, pois queni nao vai i\ ca9a, nem i\ pesca,
mcnt;dcm lroca de remunera~üomonctária.o qual, afínul, nem 11ro9a tcm vários outros a(azercs que aguardan, sua
acaba resultando no csfacelamcnlodo trnbalbador como ser vez, além do descanso puro e simples: um novo conjunto
social tolal, enlilo o termo trnbalho nfto é adequado para de arco e flechas para polir e emplumar, uma nova caba9a
descrcvcr o processo produtivo das sociedades indígenas e para a úgua, uma panela de barro para ser trocada nn
tnlvcz necessitcmos de um outro vocábulo. Certamenlc, o próxima festa, uma nova rede parn o filho que está crcs-
significado da pnlavrn trabalho, como ele é entendido cm cendo o precisa de sua própria rede de dormir, urna cesta
nossa sociedade, nao é inlciramcntc aplicável a essas socie- nova para carrcgar lenha, um balaio chcio de algodlío
dades. Enquunto entre nós apenas uns poucos privilegiados bruto para desfiar, 011 umn sessüo xamanística para a cura
podem dizc1·que gostam do que fazcm, que scu trabalho de um docnlc. Tudo isso 6 (cito scm pressa, sem pressiio,
é um prazer, nas sociedades indígenas há scmpre um grnu entrecortado de periodos de repouso solitário ou intera~úo
maior ou menor de gratificayüo social na maioria das informal com outros.
atividadcs produtivas. Nulurnlmentc, há tarcfas ma!i-1Dlc s
e pesadas, como cortar e carregar lcnhn, cobrir um tclhado
í: claro que ncm ludo é trabalho, nem os indios pas-
1 ou ralar mandioca horas a fio. Porém ns pessoas se desem-
sam o tempo todo ocupados com a chamada "lula pcln
sobrevivSncia", sem tempo puramuis nadu. Existcm, certa-
barayam desses encargos gcralmenle cm boa companhia.

28
29
mcnlc, compcti9ocs, danl,lls, rituais diversos. Porém eles
nao sao destinados n compensar horas de taina diária e ces ns coslas quando se desloen de um local para ou1ro.
restabcli:cer as for~as dos lrabalhadorcs para que possam lsso nao quer dizcr pobreza.
continuar a lraba lhar ; siio parte ele um todo cultural no Como belll aponta o nnlropólogo norte-americano
qua! enlrn, também, a produ~fio econ6mica. A periodici- , Marshall Sah lins cm seu lrabi1lho sobre sociedades de ca-
dadc dessas a1ivicladcs nao está diretn ou inlrinsecamente ~adorcs e co lctorcs, o concci10 de pobreza niío se aplica a
ligada i\ rotina do lrnbalho, mas sim a considcra90es de sociedades onde lodos os membros sao igualmenle aqui-
ordcm ecológica (como us fcsrns sazonais dn colhcita), de nhondos com número e lipo semclhan les de bens malcriais .
ordem religiosa (como uma scssao xamanís1ica propicia- lsso implica que, assim como a riqueza, a pobreza é uma
tória), ou está relacionada i\ nrn1urn9ño físico-social das rclaciío social, is10 é, ela só 1cm significado cm co111ras
1e
pcssoas (como ri1uais de pubcrcladc, de nomina~ño ou com a nao-pobreza. Alguém só é pobre porque conlrnsta
cxéquias funcrárias), i\ conveniéncia ele reencont,·os sociais com qucm é rico.
en1rc aldcias ou enlrc grupos distintos (como cerios tor- O 1rabalho de Sahlins 1cm o méri10 de desmisti[icar
neios vcrbais ou corporais), i\ imporlfincia política de certos prccisame111ea no~ao, ainda aceita por alguns, do nalivo
inelivíduos ou fuc~ocs etc. ele. De foto, muilns vczcs cssas desprovido, semprc cm busca de alimcnlo, ocupado de-
ocasiocs demandam tal csfor90 produ 1ivo, na prcparal,ijo mais com o cslomago para se dedicar a cabc~a, incapaz,
de alimcn10s e ou 1ros bens, que seriam co111raproducen1cs enfim, ele construir obras de arte ou cultura sofislicada. Ao
se o seu objc livo fossc o descanso do lrnbalho. desfaz.er essc mal-cnlcodido, Sahlins 1ambém indica que o
. Lazcr e ~rabalho_ "ª,ºsiío, porlanto, facilmcntc sepa- goslo pela acumula~ilo de bcns mnlcriais niío é universal,
nem algo dado pe la naturcza, mas simplcsmcnte um valor
rávc1s nas sociedades rnd,gcnas. Se é falsa a 009ao de que .,
os índios cslíio ctcrmuncnlc ocupados uprocura de nlimcn- cullura l carnc1erís1ico das sociedades de consumo .
tos, scm tempo ,pal'aativicladcsmais criativas tnmbérné Para fundumenlar a sua urgumema~íio, ele seleciónou
falsa a idéia comumcnlc ventilada de que o ínclio é prcgui- algumas sociedades australianas cujo meio ambiente desér-
~oso, niío lrabalhn, vive no ócio. lico é considerado dos mais prectlrios da Terra. Com os
1 '
dados que cxislcm sobre csscs grupos, Sahlins demons1ra
que o suslcnlo dessus popu la~oes é satisía loriamcnte con-
Penúria ou fartura? seguido com o máximo de cinco 011 seis horas diárias de
lrabalho, is10 é, de busca de alimentos e ma1érias-primas.
Na rcalidadc, as demandas económicas ele uma socic- O res10 do lempo é u1ilizt1donao para conslruir obras mo-
dade indígena silo minúsculas quanclo comparadas com as numeniais aos cleuses, aos mortos ou ao mercado consu-
de uma socicdade induslrial, que, para garanlir a sua pr6- midor, ou sis1cmas complexamcn1e nao iguulilários, mas
pria con 1im1idadc, neccssita criar semprc novas demandas simplesmen1c para cada um fazcr o que bem entender,
de mercado. O acervo material ele uma sociedade indígena dentro dos padrocs élicos vigentes no local.
é rela1ivamcn1c limitado, scndo que, cm alguns casos, umn
A quantifica~ílo da produ~iio cm sociedades indígenas
familia pode , li1cra l11lcn1c,carrcgar lodos os seus perlen •
ainda é algo relativamenlc cscasso na literatura antropoló-

JO 31

gica e, por1an10, niio há abundOncia de cifras para demons- o de ccrtas outras nas das mulheres. O mais comum é a
trar aq uilo que percebemos quando couvivemos com essas seguinle divisño: os homens se cncarrcgam da ca~a. da
sociedades. Porém os dados que tcmos sao altamente ins- derrubada preparatória para uma nova ro~a, da fcitura de
1ru1ivo~.como aquclcs apresentados pelo anlropólogo fran- instrumentos ele ca~; as mulheres plantam, cuich1m da
}
ces Jocques Lizot , cm scu artigo sobre popula~ño, recursos ro~a, colhem os alimentos, coletam produtos silvestres,
e guerra, com reh\~üoa duas comunidadesYanomamina cozinham, buscam água. Ambos os sexos podem pescar e
Venezuela. Diz Uzot: "Para comcrem bas1a111crazoavel- prodúzir utensílios domésticos; como pescar e que utcnsflios
mcnlc, basta que os Yanomami traba lhcm, diariamente , produzir é urna questiio de op~ilo cultural. Enguanto algu•
entre I hora e 58 minutos (mulheres) e 2 horas e 51 mi- mas sociedades desisnam aos homens n pesca com armadi-
nutos (homens), esfor~o mínimo para chcgarcm a este lhas, timbó ou outras técnicas de maior rendimento e ils
honro so resultado". Essas horas de trabalho se rcferem ao mullieres a pescaría de linha e anzol próximo a nldeia,
ano inteiro e incluem alividacles de agricultura, ca,a, pesca outras sociedades nao ín1.cm quulqucr dislin~iío dcsse tipo.
e coleta. Mesmo considera ndo as demais horas de trabalho Enquanto numa sociedade a cestarin é at ividade masculina
nccessárias u confec~üo de instrumentos, utcnsflios, ador- e a tccelagem atividade feminina, em outra pode ser o
nos, i\ prcpara~ao de alimentos e a conslru~íto ele casas, oposto e cm oulra aindn é indiferente. Mesmo nn lavoura,
ainda assim Lcmos que concluir que a vida indígena rtño M casos de sepnra~ao até de produtos que s6 podem ser
é, absolu111mc111c, uma constante lutn pela sobreviv8ncia. plantados por mulhcrcs e outros por homens, como entre
os Mundurukú, e mullos ouu·os cm que homens e mulberes
se engajnm igualm ente no planlio, 1111limpcza, na colhcita,
Prodm;iio no transplante etc.
.J
Quase todas as sociedades indfgeuas da América do
Oc modo a facilitar esta aprescn ta~iío, é convcnie111.c Sul prnticam agricuhurn, umns de forma mais elaborada,
tratar o processo proclutivo como se fosse dividido cm oulras ele rnanciramnis rudimcntar.Ela pode ser a ativi-
rases: produ~iio, distribui~iío e consumo. Na rcalid¡1dc, dade económica principal ou apenas complcmentar '¾í'm l
cmbora exista urna ccr ta separa~ao temporal e espncial sistema produtivo mnis dependente da ca~u. pesca ou f'b1c-
cnlrc cssns trCs fases, elas cnvolvcm as mesmas pessons~ 1a. Enqua nto parn os Xavante do Mato Grosso a ca~a é
náo há produlorc s versus consumido res, e muito menos
de grande importnncia e sem a coleta eles talvez nem
intcrmcdiúrios, comer ciante s profissionais entre eles. O que
11111homem ou urna mulhcr produzcm todos os demais [isi-
pudcssem sobrcvivcr, dizem os Tiriyó do Suriname que
camcnle capazes podem produzir. A divisao do trabalho cm podem vivcr scm camc, mas sem beiju niío.
1
sociedades indígenas raramente cnvolve especializa~es que Em grande parte da área nüo-andina do con1i11en1e,
excedam considera~oes de sexo e idadc. f especialmente na Amaz6nia e outras regioes tropicais, a
A divisiío sexual do lrnbalho varia cm detalhcs de técnica agl'fcola mais uliliiadn é a que pnssou a ser conhe-
urna socicdadc para outra, mas existe uma tendencia geral cida por coivara, comprcendcndo a derrnbada de uma por-
para a concen1ra1,1iode certas tarefas nas miíos dos homens ~noda mala, gera lmcntc cm círcu lo, a qucimada das ár -
/•

••
33
32

vorcs e dos arbustos cortados e o plantío de mudas acelera-do de erosíío e latcriza~os pela a,ao clireta dos raios
ou sementes de mandioca-brava ou mandioca -doce, bana- sol~r~s, na fa~ta de cobertura floresta! protetora. A pro-
nns, vilrins cspécies de tubércu los, milho, rumo, algodilo e d~t,v,dade ca, rapidamente, até que a única coisa que
outros produtos. A seqücncia das várias fases desse proccs- arnda crcsee por algum tempo é capirn para pasto, se nao
so é regida pelo sistema sazona!: a derrubada e a queimada for logo arruinado por prngas diversas. O gado, se vier
nos meses de seca; o planlio no infcio cl:1schuvas. n~aba por destruir de uma vez o solo e eliminar as possi'.
b1hdades ele reflorestamcnlo natural. Quanto maior for n
Ao contrár io das críticas ventiladas por nlguns agró- escala de produ~iío e de área clcsmatadn, maior a clevas-
nomos e tecnocratas,o sistema de coivnrn,longc de ser tn~iio dos solos e menor a chance de rcjuvcnescimcnto dos
irracional, é o que melhor se adapta ~s condi,;6es ecoló- recursos naturnis.
gicas dos trópicos úmidos, pelo menos na Amazonia. A
arqueóloga norte-americana Belly Meggers, cm seu livro As popula~cs regionais níio-indlgenas da Amaz6nia
Amazórria: " ilus,io ele 11111paraíso, expoe com clareza as e alllllres aprend_crarncom os fndios as técnicas de eoivara,
caracterlsticas e vantagens dessc tipo de agricultura, desde •~ias, ao eontráno dcstcs, 1cm grande densidnde demográ-
os benefícios das cinzus da vegeta~áo q ueimada, da diver- fica. O_ resultado é que cssas popula~oes requercm cada
sidade e zonenmento das plantas cullivndas, do pousio da vez mais tcrra para sustenlnr cada vez mais gente, chegan-
lcrrn quando as ro~as velhas se tornam improdutiva s, até clo a. um ponto cm que csbarrnm nos territórios indígenas
o aspecto fundamental da densidade clcmogrMica dos hubi- e os 111vadem.Portanto, quer seja por iniciativa de grandes
tanlcs dessas rcgiócs. pr~jetos agr?pecuários; ~espons,1veis pela elimina~iio ,·ápi-
dn e sumál'la de vashssunas áreas norcstais no Brasil e
O importante nessc sistema é utilizar um espa~ rela-
cm oulros países do conti nente, quer seja pelo avan9o mais
tivamente pequeno por lempo limitado; quando, depois de lento e graclativo da popu la,íío regional em busca de solos
dois ou trés anos, o solo· comc~a a se cxaurir e a invasfio
culliváv:i s, o falo é que as sociedades indígenas, que até
de crvas que mnmcia a primeira fase do rejuvenescimcnlo agora tcm se mostrado as únicas que sabcm lidar com o
da mala toma impratieávcl o trnbalho de limpczn, a ro~a
delicado jogo ecológico dos trópico s úmiclos, acabam per-
é abandonada, permitindo, assim, que a floresta se rccom-
dcndo suas matas até enllio cuidado samente manliclas. E
ponha, o que pode levar vinle, cinc¡üenla 011 eem anos,
com n floresta clesaparecc m também a anta, a queixada,
dependenclo das carnctcrísticas espccílicas de cada mi-
a paca, o veado, uma quantidadc enorme de pássaros,
crorregiao. Uma popu la~ao pequena pode se permitir man-
roedores, anfibios, assim como frutas, nozes, c,ocos, larvas,
ter /irens nao cultivadas, buscando oulrns novas periodi-
mel, fibras, cipós, madcira, Colhns e outras fontes crnciais
eamenle, evitando também com isso uma queda de produ-
ele nlimcnta~ao e maté,'ias-prima s indlgenas.
tividade. Porém, se a popula~ao é densa demais, logo
enormes cxtcnsoes da floresta seriío cortadas para dar Encurrnlados em áreas pcqucnas dcmais para susten-
lugar a mais e maiores r~as, scm que haja tempo para a tar n sua popula~ao os grupos indígenas que cnCrentam
rccupcrnvaodas áreas csgotndns. O resultado sao solos redu~oes de terrilório acabam por se abrigar a buscar
depauperados, dcstilufclos do seus nutrient es pelo prncesso emprego fora. prcjudicando a sua proclu~.ao doméstica.
34
35

Um cxcmplo, cnlrc rnuitos, é fornccido por Egon Schadcn, excrnplo, 1irar nlgo da r~ a de alguém sem permissáo pode
que fala sob,·c o círculo vicioso cm que fornm npanh;1dos ser motivo de confrontos corpo a carpo. lsso nao significa
os Guaraní e out1·osgrupos do Mato Grosso do Sul. Esscs que sao negados alimentos a qucm tem fome; indica, sirn,
ínclios tc111vivido cm condi9óes de dependencia do mer- que quern plantou é dono do produto, e cssc fato eleve ser
cado regional. Para suprir suas neccssi dadcs de vcsluiírio, respeitado. Porém todo anfitrifio dú carta branca a qual•
alimenta,ao etc., nccessitam ele <linhciro, tem que trabalhar qucr visitnnte parn se servir de sun r~a. Além clisso, quan-
fo1·n,na "changa'\ ou servi~o l'Cmun erado. A changa con- do uma determinada família ou comunidade tcrn cxccsso ele
siste cm trabalho assalariado nas fozcnclase sitios rcgionais produ, ño, clo convida outra família ou comunidade vizi-
que coincide com a fase cm que as próprias ro~as dos nha para partilhar dos alimentos. Se alguém está com falta
Indios prccisam de mnior atcn9iío.Quanto mais se atrasam de produtos pode também ser convidado a utilizar os ele
no lrabalho das ro9as, menos produ~fio 1ém, e 111ai s dcpcn- parcntcs ou amigos.
dcntcs ficam do trabalho assnlnriado. Esse círculo vicioso Onde há acesso a mercados rcgionais, o excedente é
é o principal rcspons:ívcl pela dcsintegra9iio cullun,I e geralmcnte vendido. Mas cm situn,óes como a dos Makú
destribalizn9ao dos grupos Guarnn/ do sul de Mato Grosso. do río Negro ou dos Yanonrnmi, afastados espacial e cul-
Porém, se forcm mantidas as comli~lles neccssárias Luralmcnto do proccsso mercantil dos brancos, a prática
para a produ~iío agrlcola tradicional e racional, as popula- comum de nivelar fallns e cxccssos ocasionais é recorrer
9/lcs indfgcnas conseguiriio, de mancirn gcral, dosar aclc- ao sistema de rcciprocicladcentre famUiase comunidades.
<1uadnmcntco que clcvcm plantar pnra ntcnclcrlis ncces-
sidadcs locais, scm graneles crros de cálculo por falta ou
por cxccsso.
O saber da produ~ao
Nn muio ria das sociedades indígenas, cnquanto a ca~a,
a pesca e a coleta tém suas modalidades colctivás e indi- O processo produtivo, qucr seja na forma de ca9a,
viduais, a lnvoura é [cita pelos mcmbros da famflia nu- pesca, coleta ou agricultura, nito podcria ser levado a
clear. Hú sociedades c111 que o trabalho colctivo - o muti- clcito scm 11111cmbasamcnto cognitivo do mcio ambiente.
r5o - é praticado nas fases mnis árduas da prcpan1!; Jio E, de fato, os sistemas ele coohecimento vigentes nas socie-
de uma ro~a. Ta mbém é comum encontrarmos obrigu~ócs dades ind/gcnas revclam práticas empíricas baseadas cm
de parentesco, por cxcmplo entre sogros e gen,·os, que elaborados esquemas classificatórios, etiológicos e eleexpe-
incluem o trabalho destes par:, aquclcs durante os primei- rimentn~ñoempíricaque diferem da práticacicnlífica oci..
ros anos ele casamento. Mas, ele maueira geral, o trabalho dental mais na forma do que no contcúdo. Contrariamente
agrícola é urna ocupaciio fnmiliar, poclcndo o homcm, a n n~ óes deterministas que atribuem única ou principal-
mulher ou u fomflia como um tocio encarrcgar-se da r~a . mente ao meio ambiente as formas ele conhecimcnto e de
E rn muitos casos é considerado pouco ético, 011 mes- práticns nas sociedades indígenas, nunca é dernais enfatizar
mo ofensivo, alguém se apropriar do produto de r~a s de que cssc conhccirncnlo e cssas prfüicas siio frutos da cria-
outrem sem conscntimcntoprévio. Entre os Snnum(I,por 9ño cultural ele cada sociedadc. Os Sunumá, por exemplo,
36
37
clegcm cenos animais corno corncstívcis e oulros <·omo
nao-comcstívcis dcpois de os classificarcm no conjunto da A mosm.aelabonu;Aotnental íol rcallzudo em rolac§o
11 fauna, os to tarnbém íol cetologado, recebeu nomos e
fauna cm gcrnl. H os Maiongong, scus vizinhos, mesmo
significados. Elogornmalgumas es1>éclos pnra comer, cer-
utilizando recursos naturais identicos, privilegiam cerios caron, outras do reslrloOos o olnda prolblram comploto•
fon1es ele alimc11ta~üoum pouco diferentes das dos Sa- monte a utlllzacaoollmentar da molorlo. Tém um profundo
numá.
conhcclmonto dos hábitos nfiosó da• espécles de que so
Nndn há na naturcza que comande categoricarncn
tc 11Ullzamne olhnentacao ou poro fabtlcocoo do adornos e
que nño se dcve comer carne de gmnbá, ncm que a pu• Mtefotos. mas de quoso todo o foune roglonol.
bcrcladc traz consigo a nccessidadc de se evitar a carne Esta roprosontaciio montal do ambiente, que além do
ele latu. Essas pn1ticas siio ditadas por rc¡;rns culluruis rovestlmento florfstlco o do fauno compreende os várlaa
engendradas durante uma longa trnjctória de experiencias classos do torros o pedros que tém itnportOncla om sua
acumuladas na hislória ele cada socicdaclc. Elas traduzcm vida, ó o cléncla,o saber trodlclonaldos Indios Urubusquo
os gula na lutn dlárlo pela sobrevlvGnclo.
c,n linguagcrn melafóriea um proccsso de sclc~ao do que
devc ser aproveitndo do mcio ambiente, sclc9iio cssa que
6 praticadapor 1odasas sociedades humanas. cadn UllHl i1
sua rnaneirn. Reciprocidade versus acumulac;iío
Adcmais, os membrns dns sociedades indígenas te,11 O que é produzido cm 1ermos de alimcntacao ou de
grandi.::couhccimcntoconcreto da anntomia, Uos hábitos utilidades, desde utensilios do111és1icosa casas comunais
alimentares e de outrascnractcrísticns da íaunaem scu 1cr- 011 cnnoas, lem seus canais rcgulnmentarcs de dis1ribuicao,
ri1ório, das propr iedades das plnnlus que compocm a florn, canais esscs que sao frcqücnlemcnle as rcla9ocs de paren-
das condi9ocs dos solos, de drcnagem, ele sombra e luz, tesco dentro de ou entre comunidades.
de anrnd11r ceimcn10 de plantas e lucio muis c¡uc faz parte
da bngagcmcognitiva ncccss(Jria
para uma subsistCncin
A clislribui9áo do espa~o habitacional 6 comumcnte
regida por coosidern96es de dircilos e obrigacóes rnútuos
bcm-succdi<la. Como coloca Dllrcy Ribeiro sobre os Uru- entre os seus ocupantes, quase semprc ligados cnlrc si por
bu-Kaapór:
la90s de consangüinidadc e :1finidade. Uma casa comunal
Pora sobrevJverna mnto, os índios Urubus tlvorom do ro, Yanornami, por cxcmplo, scja ela cllnica fechada ou cir-
crió-la mento/monte,<fnrnomos lis colsas, otribulr-lhes sen• cular abcrta, 6 construída por cada íarnllia - nuclear ou
!Ido,cnconlrar,lhos ulilldode.De todo a lnflnldodode ospá, cxtcnsn -, que erige a sua parte em torno de um arca-
eles que com¡>Oom o floresta omaz6nlca, olos seleclonorom bou90 de toras, formando um todo contínuo. O resullado
umas qunnt,:1:1como os frutos olimonlfcios, us matérlao- é que as várias partes - que, clepcndcndo do número de
•prlmos do seus urtefotos, comproendondo dosde madelros famflias, poden, ser de dcz II lrinta ou mais - silo !odas
para construir o arcoboui;o dns casas ou simples arcos. otó
inlerligadas pelo telhaclo ele folhas; os pequeoos cspa90s
clpós o envires paro amarrar e tccor, folhas o palmas puro
embolar ou lrom;ar, resinas o látex ruracolor, foior fogo
que por acaso sobrem entre duas pane s siío também co-
ou doíuinar, o, 1.dnda
. Ilotas, vonenoR, o mullos outros [, .. ] bcr1os, resultando moma co,1stru9lio contfnua e acabada.
Assim, a distribuicao do cspa~o domiciliar é fcila an1cs
38
39

mesmo dn construcao, pois scguc os moldes j{i preexisten- organizada cm moldes comunitários, nalutalmcntc crin-se
les <leJacos de pnrcmcsco. urna contradiyao aparentemente intransponfvcl. lsso por-
Objetos de uso pcssoal siío considerados propricdadc que a no~üo mesma ele acumulacíioé tradicionalmente ne-
de qucm_ os fobricou, ou ele quc111os usa e para qucm gada nessas sociedades por mcio de uma s6rie ele meca-
foram fe1Los: al'cose fJcchas, testastic cnrrcgur mantimcn- nismos cullurnlmente cstabclccidos.
tos, redes de dormir, lllngns, objetos de ,l<lorno pcssoal Uma das a~oes muis fortemcnte condenadas como
etc. Alguns ~!elespo<lcrnser utilizados por otllras pcssous, anti-sociais 6 a avarcza; umn pcssoa que tcm, por cxcm-
mas nfto seri_acorrcto alguém se npropriar dcsscs objetos plo, mais facas do que necessita e se recusa a distribuir o
scm conscnt1mcn10do dono. Como todos tcm praticn- excedente é malvista e desprestigiada; um líder de aldeia
mcnte o mesmo acervo de bcns matcrinis, cssc problcmu que, sistcmaticamente, se recusa a ser generoso, isto é, a
nao é muito frcqiicnlc e, quandoocorrc, nao tcrn ns mes• dar do que é scu quando lhc é pedido, acaba por perder
mas implicacoes de "lcsn-propricdadc", que a no9iío de sua crcdibilidadc como lídcl' e, eventualmente, a liclcranca.
roubo tcm entre nós. Por cxcmplo, para os Xavantc - Em algumas sociedades, como a dos Sanum:I, recusar-se a
segundo Maybury-Lcwis, que escrcvc sobre eles cm scu dar alguma coisa a quem a pede pode tornar uma pcssoa
livro Sociedade Akovc-X(lvante -, tomar-se algo de al- vítima de fciti9aria por p:irte daqucla que viu seu pedido
guém leva "o tlono n protestar ou a fazcr algumn cojsa
frustrado. Há, portanto, várias manciras de inibir tenta-
pnra reavcr s1111 propricdadc, clcpcndcndo (le uma sél'ic ele
circunstfincias contingentes: o que foi tomndo, por qucm e tivas de acumulaviío ou de clesigualdaclcsocial con1 base
com que propósito". De modo scmcllrnntc, o tomnr algo na aquisi~üo material diferenciada.
d; alguém para os Cubco, diz Goldman, "nao é uma ques- Na economia interna de uma socicdaclcindígena é
lao de furtar um objeto. l! intcin11n entc uma qucstáo <le raro encontrarmos um número elevado de bcns exclusiva-
' at,tuclc; num modo de falnr, J>Cq¡untam:tomar um objeto mente com valor de troca, como é, por excelencia, o
é um nto de amizadc ou hostilidaclc'/". dinheiro. Muitot poucos bcns süo fabricados ncssas socie-
O conccito de roubo por nós conhccido surge muitas dades com o propósito único de troca ou venda quando
vezcs cm sociedades indígenas dcpois de scu contato com nao há demanda ele mercado externo. Os bcns que cir•
os brancas, quando bcns industrializados ele accsso rclati- culam pelas comunidades indígenas t~m. en1 sua grande
vnmcnlc difícil a tocios os rncmbros de uma comu11icl11clc maioria, um valor de uso, que pode ser cstritamente utili-
poclcmficar concentrados 11:1 s mfios de apenas alguns. tário, como uma panela, ou religioso, como um chocalho
A i<léin ele roubo está ligada a uma outrn, que é a <le de xamii, ou decorativo, como um colar de mi~angas ou
'.1cumulacao. O dircito de protcciío i\ propricdadc privada um cocar de penas. Portanto, sao bens de uso que gcral-
é lnmbém o direito de adquirir e conservar tuuta riqueza mente passam de mao cm miio nas tracas rotinciras ou
quanto íor possívcl juntar. ~ também o clireitode punir a em rituais.
qucm infringir cssa prerrogativa. Ora, quando cssc con- Em sillln~oes de contaco 6 comum dcscnvolvcrem-sc
junto de conceitos é introcluzidonumn socicdade indígena dois cipos ele ,·cla~0cs cconllmicas: um ucionado para forn,
40 41

outro para denLro, ou scja, nas trocns intcrélnicaspreva- A troca de bens e scrvi~os exige, como tiio bcm co-
lece o sistema mercantil monetiirioocidcntal; m,s trocas locou Marce! Mauss em seu Ensaio sobre a dádiva", nao
11

cnlrc membros da mesma socicdade indígena predomina o apenas n obriga91io de dar, como também a de reecbcr.
sistema ele valores tradicional, mesmo num coatexto ele Recusar-se a dar ulguma coisa que alguém pedo niío é sim-
mercado. Exemplo disso é o caso, acorrido no início dos plcsmcnte uma grosseria, mas urn ato ele ugressao sujci10
anos 60, contado por Robeno da Malta no livro flld ios e a sau~i5cs, como, por exemplo, acusa,:óes de fciti~aria.
hcir os, do comerciante Apinayé que, havendo insta-
cas1n11 Mus negar-se a receber um presente também pode ter
lado uma "venda" na sua aldeia, a cxcmplo do que conhc- sérias conseqiiéneias. J; como se uma ¡norte de quem tlá
cia dos comerciantes brasilciros, passou a vender fiado n eslivessc imprcgnndn na coisa dada, e uma recusa a re•
scus companheiros de grupo. Por suas rclal;ilesde pnrcn- ceber equivaleria a umu afronta a própria pessoa do
tcscoc:omos compradores, esles náo se achnram na obri- doador. Bm ambos os casos, quebra-se a cadein de cli-
gn¡;ño de pagar o que lhe cleviam e, senelo sua clientela rcitos e devcres mÚluos que cimenta a vida comuniuiria
predominnntemcntc inclígcnn, dentro cm pouco o comcr- e intcrcomunitáriu.
ciunte foi lt faWncia. As suas pcrdas cconomicas foram A questao é que uma troca nunca é apenas isso: ela
mnis do que compensadas pelo estreitamcnto dos la~os ele é, acima de ludo, uma relu~-iíosocial; pode firmar aliun,:as
parentesco entre ele e os companheiros e pelo prestfgio ou, se fracassar, deseneaclear hostilidades. Niio é por aca-
que trtl "gencrosidade" lhc rcndeu. so que Lévi-S1rauss considera as guerras como trocas co-
O relato tic Goldman sobre os Cubco poderia ser mcrciais frustrndas ou mal•succdidns, ou as lrocas co•
igualmente o ele muitos outros grupos indígenas: merciais como potcnciais conllitos bem resolviclos.
Há pelo menos trés tipos de troce: urnacom os brancoa,
que é comercial e do hnportOnclo crosconte. A segundo
ó lnt crtrlb ol, on, quo so trocom ospoclolldodos. Ceda tr lbo Distribui~áo e consumo
ten, suas espoclalldodes roconhocldos o sou& produtos sAo
procurados. A torcolro, lntratrlbol, ó monos eccmO mlca o Essc prinefpio clo reciprocidadc que rcgc a clistri-
mols de caráter social, em quo as passoas odquirem obfe• bui9iío interna numa socicdaclc indígena envolve nao só os
tos que elos mesmas1>odom focllmentofazer. membros de urna mesma aldeia, mas também os de várias
alcleiasou de várias sociedades como, entre muitos outros,
Existem, portanto, várins modalidades de intcrcflmbio, no caso do Alto Xingu, ou da regiao do Alto rio Negro.
dependcndo da silua~uo e do parceiro. O princfpio de re- Segundo Goldman:
ciprocidade é a mola propulsora 110 proccsso ,Je dis1ri-
bui9iio da produ~o dentro das sociedades ind!genas. Essa , A área intelro do norocsto nmo1.0nlcoó urna redo do troces
vastamente complexa. Obj etos de todo tipo, utenslllos do•
rcciprocidade pode ser J>Osta em prática de maneirn ime- méstlcos. ornamontos. Instrumentos muslcols,objetos cerl•
diata, num dircto toma-lá-dá-cá, ou pode se processar a moniols, plantos, anlmols do ostlmo~ftoe substAncfas mé•
longo prnzo, vinculando parcciros de Lroca durante se- gfcas esUio em clrcula~Ao constnnto do tribo a trlbo. de
monas. meses, nnos ou mesmo a vidn inLcira. slb o slb. Os h1dlosque estl'io em contnto com os centros
42
11 1 43
comerclolsde colombianosou brasifolrosservem multas
vczos de lntormodldrios.bombeandobons monu.faturados principais. Os parcnlcs de verdade comern "a comicia urn
1 1
para a corronto das trocas - pano, sol. enzóla, armas, do outro", dizcm os Mchináku do Alto Xingu e, como
ter~odos,olóm de ornamentosbaratos. eles, muitos Olllros indígenas.
1 J Ocntrc aquilo que ,é rrocado diariamente e em ocn-
e comurn delegar-se cortas partes do animal para cer-
f ,1 las categorías de parente: por exemplo, a cabc9a ~ esposa
siocs espcciais estilo os alimentos. Mas a sua distribuiyuo do ca1,ador, os pés il mae dcsta, as pernas aos irrnaos e
rnmbém nfio se foz no acaso. Urna das prá1icas comuns assim por dia111c.Tarnbém é comum ser vedado ao ca-
nas sociedades indígenas é a tendencia a "privatizar'' a cador corlar ou comer a própria caya, como acontece
1 clis1ribui1,aodiária dos proclutos ele ,·oya e a "coletivizar" entre os Sirionó da Bolívia, conforme descril;iío de Allan
o consumo da carne, pcixe e outros alimentos silvestres Holmberg: "se um cacador viola essc tabu, acrecli1a-seque
<1uando cm grande quan1idade. o animal que ele comeu niio voltará para ser cayado por
1
H:\ sociedades, como a dos Mundurukú, em que 1is ele novamente. Acredita-se que as quebras continuadas
mulhcres da aldein contribuem cada uma com urna parte desse labu levarfio automaticamente a san~o do azar na
1 da refeiyiiOcomunal dos homcns. Porém, na maioria dos ca9a". Esse fenómeno é conhecido no norte do Brasil como
casos, na vi,la cotidiana o que uma mulhcr traz da r(Jl,a ¡;anema e, aliás, nao se restringe a sociedades indígenas.
1
da fumília é consumido pela própria família. Produtos de A dislribui~fiode alimentos niío está, portan10, redu-
coleta, pesca e mesmo ca1,a,quando cm poucn quantidadc, zida a uma simples transayl'iocomercial. Ao contrário, cla
insuficientes para ampla distribui~ao, tmnbém siio consu- é revestida de valores cullurais que podem ser objeto de
1 midos apenas pelos rnembros da farnilia. B111rc1anto, como gronde elabora~ao simbólica. Um cxemplo disso é o sis-
já foi mencionado, quanclo há excesso de produyfio agrí- lema de tabus alimentares na sociecladeSanum:\. Através
cola, ela pode ser partilbada por várias fnmllias, clen1ro d~sse sistema, operam-sc, pelo menos, dois códigos sociais:
ou fon, cla mesma alcleia, e, quando há escasscz ele pro- um designando quem está apto para comer o que cm de-
clu~ílo, a fnmília cm folla é suprida por oulras famflias da terminada ocasifio; o outro, sublinhando as categorias
aldcia ou fora dela. etárias da socicdade, pelas quais passam todos os seus
O produto de clistribuicííoampla por excelencia é a membros. De acordo com o maior ou menor grau de ínter•
carne da caca (no Alto Xingu e no Alto rio Negro a fonte di9iio alimentar, a socicdadc Sanumá está dividida ern dez
mais importante ele proteína é o pcixe; aí é o pescado e categorías de idaclc, excluindo aqui os bebes de colo:
nuo a ca1,a o produ10 de clis1ribui9iiogeneralizada). Qual- crian9as que comcyarn a andar, pré-púberes, pós-púbercs,
qucr cucndor que traga um ou mnis unimais, como anta, solteiros, pessoas que tém o primciro filho, pcssoas que
qucixacla,caititu, ·paca, macacose nüo simplcsmcnteum tém o segundo filho, pcssoas que 18111 tres filhos ou rnais,
pássaro pcqucno ou uma única cutia, está suprindo nao só pessoas de meia-idade, avós e velhos. As pessoas que
a sua farnília, mas os dcmais mcmbros da aldcia. A distri- ocupam cssas catcgorias estiio sujeitas a diferentes inter-
buivao é fcita de acordo com vários cri1érios, sondo as di9oes de comer a carne de vários animais considerados
comestíveis. Assim, as pessoas na fase de puberdade nilo
rcla9ocs de parentesco e os 1abus alimentares dois dos
podem comer uma grande quantidade de animais de caca,
45
◄4 •
enq uan to que as cri:m~as e os vclhos podcm comer pra- sioes, visitan tes e a1úitrioes engajam-se cm jogos, dan~as,
can tos, trocas de noticias e intcrdi mbio de objetos e ali-
ticamcnte quase todos. Mas o sistema de consumo de
carne nao pára aí: existe ta mbém uma divisño das partes e
mentos. comum a prcpara,iio prévia de muita comida -
produtos de ro~a, carne, peixe, bebidas fermentadas etc.
do corpo dos an imnis que estaó igualmente sujeitas a um
proce sso definido de distribui~ao por idade e fase do ciclo - em antecipa,3o ~ chegada de aldeias inteirns de con-
vidados que podem perma necer na comunidade durante
de vida. Ern nrtigo sobre tabus alimentares dos Sanumá do
semanas ou até meses. T udo isso acontece num contexto
norte de Roraima, diz Kcnncth Tay lor:
de rceiprocidade: o convidad o de hojc será o anfitriáo de
Exceto quando o animal é multo poquonoo é coinldo petos amanhil, de modo que o llnus de tais eventos é, a longo
mombros da femflln nucloor do próprlo ce~ador, a corno prazo, repa rtido pela rede de com unidad es envolvidas no
6 distrib uida a todas as ramillas da aldela. A s pessoos circuito de sscs rituais .
mals Jovens (quando ns prolbl~O•• permltoml rocebcm os
melhores por<;:Oos de carne. Os velhos. que parecem ser A dist ribuiyffo ampla e o consumo imediato de ali-
fovorocldos pelo siste ma de prolblcOes por poderem comer mentos siio intimamente associados ao fato de que nño
virtualmente tuda da fauna comestivel, só receberAo os existem, na maíoria das sociedades indígenas , proeessos de
"pés" e a porte Inferior das costos, menos volorlzedu
•' preservavño e estocagem de produtos pereclveis. A carne
(polos podr6es Sonum~l. daquolos anlmals suflclentomento é fervida se o scu consumo 6 imcxliato, ou pode ser mo-
grandes que vafe a peno cortar e distr ibuir pela aldelo. queada se a quantidadc é maior do que se pode comer
Os "púberes", por sua vez, que parecem tóo pouco prJvi- numa rc[ciyl(o. O moqueado pode conserva r a carne por
loglados polo sistema do prolbl~O•s [ .. . ] sAo ogrupados.
tempo mais longo, até por vários meses, como é afirmado
Juntamente com as crl&nc;esque comoc;oma andar. como
mombros da categorla do ldada dos • Jovens·, podando sobre os Tfriyó, mas gcralmente eln 6 consum ida antes
1
comer a carne de qualquor porto do carpo doquelas espé~ disso. Assim, o curto periodo de conserva,ao dos ali-
eles quo nno lhas sao prolbldos. O cora~Ao da ante, consi- mentos vcm aliar-se a obriga~es sociais para mant er o
derado lguorlo ospoclal. ó sempre dado o um [ • .. ) • Jovem sistema de partilhas, que é um dos aspectos fundam cnrnis
adulto" do sexo masculino. da organiza~áo comunitária das sociedades indígenas.
Uma das conscqliencias dessc elaborado sistema de
distribui~iio é que esta se dó, como diz Taylor, "de ma•
ncira que garan te aos muito jovens e aos muito vclhos
unrn pa rte· de toda a carne disponívcl", e nüo apenas
t,s pessoas economieamente ativas.
Além da distribu i~iio de alimentos e bens que tem ,,
lugar rotineiramente den tro de cada aldcia, existcm as oca•
sioes ritua is ou de festas cm que trocas inLercomunitárias
ou mesmo intergrupais silo cfctuadas cm contextos reves-
tidos de simbolismo:riluais de inicia~iio, ele nomina~áo,de
mortc, de primcirnscolheilns e rnuitos oulros. Ncssas oca-
.,
.,
!....j
4 cstudo etnológico é, necessal'iamente, arbitrário e nño devc
ser entendido como increntcmentc prioritário na rcalidade.
Podcríamos come¡¡ar pelo nascimento e soeializa9ilo das
crian9as, 011 pelas rela9oes entre pais e rilhos, ou pela
A lógica das .1 prática cla co11vade,já que, mais cedo ou muis tarde,
iríamos csbarrar com ns rcgras de residencia e casamento,
relavoes sociais com a distin~ño entre parcntes consangüíncos e aíins, com
sarn;óese formas de controle social, com tabus ele incesto,
com a classifica<;iiodas pessoas por idacle, descendencia ou
quaisquer que sejam os critérios cm uso.
Assim sendo, na busca da lógica das rcla¡;oessociais
come<;aremoscom os aspectos visualmente mais aparentes:
a distribui~iiqespacial dos habitantes do núcleo residencial
Em Tristes trópicos Lévi-Strnuss come~:• assim o que é a aldcia, ou grupo local, ou comunidade, Como se
capítulo sobre os Boróro: perceberá, um assunto leva a outro e logo nos veremos
discutindo regras ele casamcnto, classifica<;ñode pnrenles,
Em que ordom de ldólas descrever essas lmpressOos pro- princípios de dcscendSncia e outrns facetas mais abstratos
fundes e confusas que osaaltom o rec6m,chegado numa dos sisten111ssociais das sociedades indígenas.
aldela Indígena cuja clvllizo~llo permeneceu reletlvomcnto
Intacto? ( •• . ] Diente de urna socledade olnda viva e fiel
b suo tredl~Ao, o choque é tóo forto que dosconcerto :
' nesso novelo de mil cores, quo flo te devo seguir em
prlmolro lugar o tentar dosombaro~or?
O local de residí!ncia

Em séculos passados, as margens do Amazonas e seus


Essa pcrplexidade inicial nao é s6 de Lévi-Strauss; oflucntcs, o plannlto central braslleit·o, a costa atlftntica e
ela é, de fato, um dos componentes mais vívidos da expe• outl'8s áreas do continente a leste da cordilheira dos Andes
riéncia de campo de qualqucr etnólogo. Silo as impressocs
Linham popula9ocs indígenas rnuito mais densas do que
que antccedcm ao desvendamento da lógica que existe por atualmente. Por exemplo, as várzcas dos grandes ríos ama-
trás do que é apnrcntemcnlc inintelig(vel.Como come~ar
wnicos abrigavam grandes comunidades de índios Tapajós
a desenrolar o emaranhado social e o que fazcr pura e Omágua, já extintos; hoje nito há mais povos indígcnns
captar a tao almcjada lógica é a quoslfio central que se
na várzea. Os Tupinambá do litoral, também extintos,
coloca a todo pesquisador. Sclecionar um ponto de partida ocupavam aldeias populosas desde o Pará ató o Paraná.
é algo trai~eiro, pois, como j á foi ressaltado, a rcalidade Os povos de Cala Jé do Brasil Central mantinham aldea-
nilo é unilincar, com o come~, o meio e o fim se succ-
mentos de rnais de mil habitantes, quando hoje raramente
dcndo um após o outro. Qualquer ponto de partida num
chegam a urna centena por alclcia.A antiga densidade de•
. t
48 .,
mográfica foi-se diluindo conforme as penctra9Ócs dos sociedades indígenas. Em algumas sociedades a aldcia
brancas foram-se torna ndo rnais freqllcntcs e permanentes . compreende uma única grande constru~í!o, redonda ~u
Somente no Brasi l, a popula~3o indígena caiu de uns tres oblonga (Yanomami, Maioogong), retan~ular (Alto ~•o
a cinco milhocs cm 1500 parn os atuais duzcntos e poucos Negro), decagona l (Mar(íbo), ou uma sérlc de casas d1s-
mil índios. postas em círc ulo (Bor6ro, Krahó), ou sim_plcs abri~os _de
Ao lempo cm que o nnlropo logia come~ou u se de- curta dura~iio (Makú, Nambi quara) , ou amda hab,ta ~ocs
senvolver e a incluir a pesquisa de campo corno proccd i- familia res distantes vórios quilOmctros tunos da s outrns
men10 neccss:lrio, já a maioria das comunidades indígenas (Xuor).
linha a fei~ao demográfica qu e é hoje tomada corno a mais A i1Jfluilncia missionário e regional tcm produzido pro-
co 111um : de lrinta e scsscnta habitantes. Há, naluralmen1e, fundas modifica~oes nos padróes habitacionnis de m?ita s
uma grande varia9'10 cm torno desses números, depcn- sociedades indígenas, com a substitui~ao nao s6 dn d,spo-
dendo da rcgiiio e das condi~ócs de conlato. Os Kaingang siyiío das casas (de círculos para ruas), co mo também. d_n
do sul do Brasil, por excmp!o - descritos cm 194 1 pelo forma com unal para individual, e também dos matena ,s
etnólogo norte-americano Jules Henry como estando orga- de constru~ao, como o 1clhado de zinc~, tiío pouco
niz:1dos em pequcnos bandos nomadcs, utilizando um vas- adap1ável lis con di~es troricais. Na área de influSn~aad?s
to territór io - , hoje cm día véem sua popula~iío aumen- padres salesianos no Alto río Negro, por cxemplo, ¡á nao
tar, enquan to suas !erras foram reduzid11s a urna frn;ao se encontra m casas no estilo tradicional, mas apenas pe-
do que crnm imtcs, congeladas em cerca de vinte reservas, quenas constru9ocs familiares dispostas cm arruamcntos
pcq ucnas ilhas cercadas de brancas por todos os lados; a rclos e impcssoais.
prop or9áo foi, pois, invertida: de pequena dcnsidade de-
Como já foi mencionado, o espa~o dessas a ldeias é
mográfica num grande terrltório, passou-se h coneentrn~iio
popu lacional em rcduzidos lotes de tcrra. Por sua ve-~,as ocupado de acordo eo m certos padroes, geralmente grau de
aldeias Je do planalto centra l brnsilciro tem uma conccn- parentesco. Em algumas sociedades, como os Yanomam ,
subgrupo Yanomami do río Catrirnan i cm Rornima, os
tra9áo popu lacional maior que a média das sociedad~s da homens prc[crem ter por vizinhos imedintos os seus
floresta amazonica. Os Xavantc tilm aldeias com mais de cu nhad os irmnos de suas mulheres ou marido s de suas
tre'\'/ma s pessoas, os Krahó com ccm ou mais, os Apinnyé irmas; ei:. outras, como os Cubeo, a preferencia é por
00111urna de noventa e do is e oulra de eento e sesscnla morar próximo nos irmílos e outros eonsangUíneos; cm
e urn hab itant es. Na própria floresta amazonica temos no- outras ainda, como os Mundurukú 1rad icionais, os homcns
licia de aldeias Yanomami com mais de duzcntos e cin- viviam numa constru 9iio própria, n casa dos homcns, en-
qUcnta habiuuucs (Venezuela) e com mals de duzentas e guanto as mulhercs oe upavam ha bita90es pcquenas em
setenta pessoas (Brasil).
1orno dela.
A constitui~iio das aldeias scguc cftnones cuhurn is Essa institui~fio da casa dos homens é muito difun-
estnbc lccidos, quando eslcs ainda nao foram substituídos dida na América do Sul, cmbora possa ter fun9ÓCs di-
pelas prá ticas das popula~ocs regionais que circundam as versas cm cada socicdndc onde é encontrada. No caso ex-
51
50

tremo dos Mundurukú , lodos os homens adultos, solleiros As unidades residenclais


ou casados, passam nela a maior parte do lempo, inclusive
a noitc . Entre os Tapirapé, Xavante e Borilro, ela serve Se quisermos identificar a mínima unidade social de
mais como um tipo de clube, onde os bomen s se rcúnem, un1a aldeia, talvez a indica9iío mais fácil de detectar seja
mas só os soltciros dormem nela. Já no Xingu, a casa dos a fogucira - o lar -, cm torno da qual grupos de pes-
home11s é simplesmenle um ponto ele encontro, a(as tado soas se re(mem para cozinhar, comer, se aquecer, conver-
das vistas das rnulherc s, onde os homens toca rn seus instru - sar e dormir. A unidad e de pai, mae e lilhos solleiros é a
mentos sagrados, proibidos ao sexo fcminino. que mais freqüentem enle se cncontra. Dependendo da s
normas de residencia, um ou mais filhos casados vivem
As casas comunais sao, antes de ludo, cenlros associa-
com seus cónjugcs e prole na casa dos pais , dando cntiio
tivos. Dentro dela s niio há lugar para ccrtas de nossas si-
ao grupo familiar a conforma~ao de família extensa, islO
tua(iÍles mais conhecidas, como solidi!o ou privacidade.
é, composta de mais de duas gera~oes.
Nao é possfvel guardar segredos dentro de urna aldcia
Numa grande casa comunal, como sño as da maioria
indfgcna, como nem scmpre é poss[vel manter sigilo sobre das comun idade s Yanomami, existe uma quantidade va-
alguma coisa de uma nldeia para outra. Todos sabem, vir- riávc l de logueiras, dcpendendo do número de- famUias que
tualmente, tudo sobre todos, sendo as crian~as, que d~o aí rcsidcm. Na aldeia adjacente il missiío Toototobi no
a impressiio de serem onipresentes, os grandes mensa - Amazona s, por cxemp lo, havia em 1975, dezo ito foguei-
gciros informais de noticias. Gcralmentc, •~oes que re- ras, marcando o lar de famílias de vários tipos, desde
qucrcm isolamento, como rela~ocs sexuais ou o defecar, casnis se m lilhos até famílias extensas compostas de pais,
nao ocorrem dentro de casa, nem nos limite s imcdiatos da lilho s e netos. A popula~áo tota l dessa a ldeia nesse ano
aldcia; a mata ou as r~as sfio locais nrnis apropriados era de sesscnta e oito pessoas.
para elas. Num dado espa9O de tempo, como no periodo de
Porém, como demonstra o antropólogo norte -ame- campo do antropó logo, a eons titui~ao das várias familias
pode variar de lal modo a ciar a impresáo de que exislem
ricano Thomas Gregor sobre os Mehináku do Alto Xingu,
diver sos tipos de familia numa mesma sociedade, o que
há algumas maneiras de uma pessoa se retirar tcmpora -
n~o é veJ'dadc, cmbora, de lato, nunca se dcva ignorar que
riamentc do co nvlvio dos outros sem despertar curiosidndc a passagcm do tempo modifica a forma dos grupos fami-
ou suspe ila: uma soneca na rede fechada, uma pescaría liares, através do chamado ciclo de dcsenvolv imento. Ao
solitária, urna ida b mala buscar cipó, ou as imcdia~óes longo desse ciclo, as pcssoas nascem, easam, procriam e
da ro~a buscar lenlrn. Mas o isolamento social por tempo morrem. Um lar que hoje abriga urna famflia nuc lear, da •
prolongado é urna das piorcs san~óes que se pode infligir qui a alguns anos abrigará uma família extensa, quando
a alguém. A idéia de prisáo, a drást ica separa~iio fisica e um ou mais dos [ilhos se casar e tiver scus próprio s filhos,
soc ial de uma pessoa é ao mesmo tempo inintclig[vel e para voltar a ser nuclear , quando os pais morrcrcm e o
alcrro rizante para muitos com ou scm expcri8ncin própria casa l da segunda geraylio passar il cabe1,a da família. Por -
do sistema pena l vigente no país. tanto , um pr imciro levan tamento da popu la~fLOde uma
52
53

aldeia devc ser scropre considerado o que realmente é: soc1a1s ou religiosas, como na Ch ina antiga ou cm partes
urna primcirá impressiio sistemática (mas sincrónica) da da Aíricu, o conhecimento apro[undado de genealogías
situayiio. Erros lamentávcis de classifica~áo e intcrpreta- nao tem maior intcressc, e a mcmória dos anccstrais remo-
~•lo já foram cometidos pela caractcrizagiio apre-ssada de tos nao é cu ltivada .
tipos de famOia nurna mesma socicdade, por nao se levar
Na íalta de Jiga9ocs genealógicas precisa s, é comum
em conta a dimcnsao ccmporal, o ciclo de dcsenvolvimento
dos grupos familiares. rcconhccer pa.rcntes distantes como seudo co nsangüíneos
ou arins através ele um cálculo pratic.'Írnence algébrico: se
Urna das cécnicas mais eíicicntcs para desve-ndar as A é mcu consangiiínco e se B é consa ngllínco de A, cntiio
co nexóes en tre os habitances de 1m1 grupo local e destes B é também mcu consangüíneo. Esse cálculo nao é idcn-
com os de outros grupos locais, cm muitos casos abran- tico cm todos os casos e, conforme a sociedad c, pode estar
gcndo a socicdade inteira, 6 o lcvantarnento de geoealo- aberto a manipula9ocs c ajustes, depcndcndo dos intcres-
gias. 8 um proccsso lento, laborioso e monótono nao só ses d:1queles cnvolvidos. Se, por exemplo, 1Unhomcm está
para o pcsquisador como para os informantes; porém, pro- interessado numn mulhcr que, por csse cálculo, seria sua
dui valiosos dividendos. Pela construgilo cuidadosa de ge- consangUínea, ele pode rcinterpretar a sua rcla9fio com
nealogías é possívcl detectar padroes de casarncnto, mu- elu e encontrar alguma justilicaliva para pnssar a consicle-
dan~as de local ele indivíduos ou grupos, causas de moria - rá-la como afim, porlanto sexualmente acessível. Sobre os
lidade, inclusive dcvido a guerras ou docn1,:asdescooheci- Krnhó, Julio Cezar Mclatti diz o seguinte :
das, norma s e quebras de normas residenciais, delimitagóes
de parente las ou de grupos ou categorías de descenden- A1>esorde se poder distinguir com ctareui urn eomporto,
cia, como linhagcns ou sibs, práticas de nominayiio, regras mento próprlo para consengOlneos e outro próprlo para
oflns, nno •• ~ode definir que categortas de parentesco
de succssño e outras facetas que podem nao ser facilmente so lnclucm necessorlomente entre os consongOfnoos de
visualiznclas. O levantamento de gcnealogias é, pois, um um Individuo ( .. . J Oo Krohó concordom que nio devo
dos instrument os prioritários no trabalho de campo. havar relac;:6essexualsentre parentesconsongOíneos [ .. . )
Naturalm ente, a sua utilidade rcflete um dos aspectos Um homem dovo tomar cuidado para nAo ter rolo~Ocs
mais salientes das rela~óes sociais na muioria das socieda• sexuols com um mímero oxcasslvo do porentos consen•
des indígenas: a predominancia do parentesco. Mesmo gOfneos, pol8, transformando-as deoso modo em aflns. nno
quando a conexño genealógica entre duas pcssoas nao é receberá mols alhnonto quando visité-las. Ousnto mala
9flns tlver, menos ollmento rocoborá nos cases que visitar.
prccisamer te conl1ccida, o la~o de parentesco que as une
prcssupoc que num pussado mais ou menos distante elas Ouondoum homem se comportacomo parcelro sexual
paro com umo rnulher que ó consongOlnco.possa o cha•
tivcrnm um ou mais uscedentcs c-m comum. Entretanto mé-lo de esposa,
urna das carncterísticas das sociedades indígenas sul-ame-
ricanas é a pouca proíundidade da memória genealógica. Siio esses ajustes e rcintcrprctu9ocs que dúo riqueza
Raramente o co nhecimento de um adullo sobre os scus e colorido ~ vida social.
nnccstrnisvai além da terccira gcra~ilo, isto é, a gera~ño Porém há limites. Certas catcgorias de parentes nao
dos pais de seus avós. Nao iendo nrniores conseqi iéncias podern ser rcformuladas, sob pena ele fortcs san~ocs do
1 1

1
,_
54 55

grupo; siio geralmente relacionadas Aspessoas sobre qucm nológica íica, pois, seriamente abalada quando fuzemos o
recaí o tabu do incesto. esfor90 - nem sempre bem-sucedido - de e111e nder um
Como regra que proíbc o casamento, ou rela~oes se- cálculo social muito mais complexo que o nosso, como é
xuais com certos parcntcs, o tabu do lnceslo existe cm o do seu ,parenlesco.
todas as sociedades humanas conhccidas e é, portanto,
considerado universal. Mas o ñmbito dos pure111cs proibi-
dos por ele e a carga negativa do inccs10 variam de urna O casamento
socicda,de para ou1ra; cm muitas sño os parcntes primá-
rios, imcdialos: pai, rndc, filhos, irmños; cm outras s~o O estabelccimcnto de rcgras de casamen10 den1ro do
1odas aquelas pessoas a quern sao aplicados os termos de sis1ema de parentesco pode dar a imprcssiio de que as
parentesco correspondentcs a pai, m3e, irmaos e filhos; cm opQiiesindividuais sño mínimas ou inexistentes e que, pri-
outras ainda siio todas as pessoas que crescerum junios e sioneiras de regras sociais rígidas, as pcssoas siio compe-
vivcm na mesma casn; e há ainda aquelcs que incluem al• lidas a se casar até com quem nfio qucrem. Na rcnlidadc, ' 1
guns afins, corno a sogrn. nao é assim, Em primeiro lugar, em sistemas de rela96cs,
Numa sociedade indígena, ao se delimitar o 1abu do onde o código social estabelcee que certas categorías de
inccs10, delimilam-sc lambém as categorías de parenles parcn1es siio os cónjuges preferenciais, uma pcssoa nao cslá
consangüíneos e anns e, rrcqüentemenlc, as categorías de Jimiiactaa apenas um ou dois dcsscs parentcs. Há, na reali-
pessoas com qucm se pode casar. dade, uma categorla bastante ampla de conjuges potcn-
Nilo é possívcl entrar nqui cm aspectos mais técnicos ciais. No ilmbito da ca1cgoria de pessoas casáveis há, pois,
do sistema de parentesco numa socicdadc indígena. Basta uma boa probabilidadc de um homem e uma mulhcr se
' aponrnr a import5ncia dcssa dimensilo de suas vidas, alir- intcressarem um pelo outro sexual ou matrimonialmente.
manclo que em rnuitas sociedades indígenas é sobre a rede Por outro Indo, nao 6 lora do comum dois primos
ele parentesco que se estabelccem vários 1iposde reJa~cs, dislantes se casa.rcm, ou um ºl io" e urna "sobrinha", ou
seja de produ9áo, de casamento, de obriga9óes rituais, ou até mesmo pcssoas terminologicamentc relacionadas 001110
rnesmo de ;)mizadc; ou é a rela~iio pni/rilhos que organiza umñe" e ºfi lho", naturalmente cm grau de parentesco ge•
1
o trabalho, ou é a re,a9ao sogro/ genros que gera poder nealógico distante. O grau de clesaprova~iíodessas uniócs
1; político, ou outros arranjos e outros efei1os. A cornplexi- depende da extcnsiío do tabu do incesto e das san~óes
dade dos sistemas de parenlesco indígenas testemunha o aplicadas ii sua quebrn.
1 quilo falsa é a noyao de "primilivos" uiribuída aos fndios. Embora se ou1,a, h vezes, os planos de uma mile ou
Ora, se para enlendcrrnos a lógica da classilica9ao de pa- de um pai sobre os futuros consortes de seus filhos pe-
1 rentcs prcdsamos recorrer a fórmulas algébricas, que nem quenos dentre os parentes casáveis clestes, e embora ns
lodos nós, civilizados, dominamos, temos que admitir a crianyas possum, c-vcntualmcntc, vir u se casar como foi
1 1 gmnde sofisticayilOdo pensnmcnto indígena, A tendéneia previsto, isso uño signi(ic-n,ncccssnria
mcntc, imposi~ñodn

i l de julgar a sua capacidadc mental pela simplicidade tec- vontnde dos pais sobre a vontade dos filhos; revela, isso

1
57

sim, a expcctativn de casameutos ideais, dentro das norma s comumente entre nós. Ao contr-ário, a famllia nuclear
preferidas. E sendo os casamentos em gernl íacihnentc tende a se diluir numa rede de parentes mais abrangente.
desfcitos, novas uniocs podcrüo ou n3o seguir a norma do As modalidades mais conhccidas de resid&ncia após
casamento ideal. o casamcnto süo a patriloca l e a matrilocal. Na primeira,
Nn nossa socicdadc há luna rcgra que diz taxativa- o marido traz a esposa para morar na casa de seus país;
mente com qucm nito se pode cnsar (os parentes vedados na segunda, o marido muda-se para a casa dos sogros.
pelo tabu do incesto), e nao há ncnhuma que diga com No rcgime matriloca l é comum ex igir-se do marido
que categoría de pessoa se pode casar; cssa aparente cs- que trubalhe pura os sogros, ca~ando, pescando, cuidando
colha ilimitada de coujuges é, de Cato, exatamentc isso: da r~a, duran te um certo período de tempo; é o chamado
apenas nparcn tc. Uma série de fatorcs contrib uí para di- .rervi,o tia 11oiva.Esse período varia de sociedade para
minuir considcravclmente as owoes matrimoniais: etnia, sociedadc e até de família para familia. Associado, muitas
cduca~ao, classc social, religiiío, poder aquisitivo etc. Em- vezcs, a cssc arranjo residencial está o costume da evita-
bora nüo havcndo rcgras cxplícilas, há, sera dúvida, nor- ¡:iio: genro e sogra e/ ou sogro nfio se olham, nao se falam,
mas implícitas que rcgulnm o casamento entre nós. Já nas muito menos se tocam, numa demonstrayño de respeito,
sociedades indígenas (muitas delas) existcm rcgras explí- deferencia, humildad c, cmbara~o. tensiio, ou qualquer outro
citas tanto proibindo o casamen to com certas pcssoas como sentimento ou conjunto de scntimentos que cx.istc entre
estabelcccndo a catcgor ia de conjuges prefcrcnciais. No
essas pessoas cm cada socicdade específica. Essa evita~iío
cntanto cssas regrns niio reprcscntam uma camisa-de-for;a;
há, na re.~lidade, urna co11sidcrável margem de escolhu pode durar a vida inteira ou pode ir se atenuando con-
individual. As pessoas nao silo simples escravos do scu forme o casal novo vai tendo filhos e amad urecendo, pas•
sistema social. ~ que ludo isso significa é que a c.struturn sando, em tempo hábil, a ocupar o lugar dos velhos
de um dado sistema social niío depende da tota l e exata sogros.
observa~o de rcgras; possib ilitando varia~óes maiores 011 O casamento pode realizar-se entre membros de urna
menores, a cstrutura representa como que um guia orien- mesma aldeia, que 6 a alternativa preferida (endogamia de
tador , permitindo que a vida social scja fluida, flexlvcl e aldeia), ou entre pessoas de aldeias diferentes (exogamia
adapt~vel a novas situa~oes. de aldeia). Ele pode ser o fator mais importante no esta-
Casnndo--sc
ou nao com a ºmulher ccrta.., um indi• belccimento de afümyas en tre comunidades diversas, resul-
vlduo tcrá que optar por onde morar com ela. Em muitos tando na forma;ao de urna rede de aldeias aliadas que se
casos, a prá tica trad icional auxilia na escolba; em outros, uncm em caso de conflito com outras, ou pode ser apenas
fatores especmcos circu11stanciais inlluem na decisao. De urna liga~o entre famílias, scm maiores rcpcrcussoes poll-
modo geral, nas sociedades indígenas cuja norma de resi- tico-militares. De qualquer maneira, tanto nas sociedades
d8ncia nao foi drnsticamen1e modificada pela influílocia indígenas como na nossa, o matrimón io cnvolvc dircitos
do contato com os brancos, é muito raro encontrar íaml - e obriga~es que transcendem os interesses imcdintos dos
lias nucleares vivendo em casas separadas, como ocorrc conjuges - ,rocas de servir;os ou bens, obriga~oes rituais,

L
58

promcssas de outros casamc11tosCuturos- e que mantem derínmos dizer mesmo que as crian,as silo adultos cm
duas ou mais rarnílias cm constante intcra9Jlo. miniatura e nao um segmento i.ncapaz e segregado da
A prática da poliginia - o casamento sirnultAnco socicdade. lmprcssiona a um cstranho a habilidade e com-
de urn homem com rn&isde uma mulher - é comum petencia corn que crian~as índias de scus quatro, cinco
porém é bem menos freqüente do que a monogamia. O' anos manipulam facas, ter,ados, fazem fogueiras, sem in-
que ocorre ern muitas sociedades indígenas sao casamen- correrem cm acidentes infantis, como cortes ou íraturas.
tos cm série, tanto do ponto de vista dos homens como rno conhccidos entre nós.
do das mulhercs. Na sociedadc Sanumá, por exemplo, rarn- Muito raramente as crian,as indígenas sao punidas;
mcntc urna gcncalogia nprescnta casos ele membros que quase nunca [isicamente. A atitudc das pcssoas para con,
se casaram apenas uma vez. O divórcio é comum, como os filhos é geralmcntc de grande paci!ncia, tolcriincia,
também o sao os casamentos subseqllentes. Nos casos de aten9ao e respcito ~s suas peculiaridades. A mae arnamen-
separn~ilo, os filhos tendem a ficar com a miíc, princi- ta durante uns dois ou tres anos e a criaMa nao é brus-
palmente se ainda siio muito pcqucnos. camente desmamada. O espa~amento entre uma gravidez
e outra é suficientemente grande - tres, quntro anos,
ou mais - , de modo u evitar a competicao de dois bebes
Socializa9áo pelo aíeto e leitc maternos. Durante toda a infancia, a
crian~a está scmpre cercada de pessoas de várias idadcs e
Embora os pais sejam os rcsponsáveis mais dirctos diferentes graus de proximidacle e au toridade, de modo
pela cria~íío dos íilhos, o proccsso mais amplo de socia- que nao está nunca cxposta exclusivamente as idiossin-
liza~ao, de traosformar ns crian~as ern completos mcm- crasias de apenas dois seres humanos, o pai e a miie. Uma
br~s de s~a sociedadc, é cfctuado também pelos parcntes crian,a manhosa ou irritada pode se comportar agrcssi-
mius próximos e até pela cornunidadc inteira. Se urna mu- vamente, batendo na miíe ou em qucm quer que seja,
lher tcm _que fazer algo e niío pode ou n1io quer carrc- quebrando coisas, aos berros, que os país e os demais
gar um f,lho de colo, há sempre alguém na nldein para adultos se limitam a observar, sorrir e esperar que passe
tomar conta da crian~a, mesmo que sejam apenas outras a crisc; cla nunca é castigada por fazer um adulto perder
crian,as rnaiores, que cedo aprendcm a desempenhnr muí- a pacicncia; pode ser rcpreendida, mas nunca é vltima de
ras das atividades dos adultos. maus-tratos lfsicos.
Desde muito cedo, sem instru,ao formal e sem violen-
A infancia é urna fase do apreudizndo social, e ns
cia, as crian9as indígenas aprendem as regras do jogo so-
crian,as sao totalmente integradas na vida comuniuíria.
cial, o que pode e o que níío pode ser feíto e as formas
Níio há Jugar nem contexto onde urna crian9a indígena nao de controle social aplicadas ~queles que infringem seria-
possa ser admitida, nem há recintos nem assuntos "irn- mente essas regras do jogo.
próprios para menores". Os brinqucdos infantis süo
miniaturas dos instrumentos dos adullos e raramente
cria~óes cspcciais como bonecas ou jogos de armar. Po-

[_
61

Controle social
5 A vida com unirária de urna aldeia indígena náo está
isenla de gerar confli los, dispu tas, compor ramentos an ti-
Organiza~ao política -sociais diversos, em difc,·entcs graus de gravidade e de-
sapl'ova~iio. O grupo social rcagc a isso segundo padroes
culturai s rcconhccidos por todos níio s6 de uma dada al-
deia mus da sociedade inteira. A delini9ao do que é uma
infra~ño socia l varia de sociedadc para sociedade. Enq uan -
10 cm algumas o assassinato é severame nte punido, cm
outra s ele é co nsiderado assunto patticular das pessoas
envo lvidas; nurnas o adultério pode resultar en, san~ócs
sociais con tra os adúlteros, noutras pode ficar apenas entre
o marido, a mulhcr e o tercciro; a quebra do tnbu do inc.es-
to pode leva,· os infrntore s a penas mais ou menos pesadas;
a prática da Ceiti~aria pode ser apenas dcsaprovada verba l-
Sob o rótulo abrnngentc de "Orguniza~iio política"
1ne111cou pode resultar na cxecu~iio sum:lria do alegado
trntarcm~s de vários assuntos relacionados com a rcsolu~iio
lciriceiro. Porém cada sociedade 1em seu elenco de "c ri-
de confht?~• as footcs e o uso do poder, lidcran 9a, uni- mes" que sfio da al9ada do grupo e nao apenas assu ntos
dades pol1t1cas e outras facctns da vida "pública" nas so- domést icos, e tem taml>ém um elenco de puni9óes corres-
ciedades indígena s.
pondentes a esses crimes.
Ncssus sociedades onde nao há poder ccntrulizado A lreqüencia e a varicdadc de cl'imcs e suas 1·cspcc1i-
on~c nño há polícia nem const itui~iio escrita, nem tribu'. vas puni~oes podem ser mínimas, como ent re os Sirionó
na,s, nem cód igo civil ou penal, nem cadeia (excctuando da Bolívin, onde homicídios, roubos, incesto ou estupro süo
casos, como as reservas indígenas do sul do Brasil onde muito raros, e as obriga9ocs entre parentes já trazem cm
ela íoi in_troduzida pelos branoos), como é man;ida a si mesmas os lrcios exigidos pela ordem pública: "Em
ordem socia l, quais os padróes de legitimidadc, a quem siío gernl", diz o an tropólogo Allan Holmbcrg, "parece que
delegados poderes de decisiio, quais os bencliciários do a rnanutcn~ao da lei e da ordem está apoiada cm grande
parte no princípio da reciprocidadc (mesmo que (or~ada),
~odc~ político? Senda essas sociedades csscncialruentc no temor a san~óes sobl'cnnlurnis e represá lias e no de-
,gual_,tánas cm sua ruaioria, como se destncwn os lfdcres
sejo de aprova~ao pública". Já cm outras sociedades, o
políticos e que privilégios tem eles? Como é mantida e processo pena l pode sel' mais elaborado, como o "Co n-
transmitida ~ _lideran9a? .E supondo, justi{icadwncnte, que sclho dos homens" dos Xavante, ao qua l sao levados casos
a esfera poht_,ca nao existe no vácuo, qual n sua liga~ao de disputas ou conflitos nao rcsolvidos, a nível individual
co m as dcma ,s esferas - social, religiosa, econ0mica? ou familiar . Gcra lmcnlc, us iofra96es ma is s6rias envo lvem
63
62

al~cias diferentes; dentro de uma mesma comunidadc, os vicios dos protagonistas e agcm como ,11naespécie de aviso,
cnmes s3o raros, cmbora sejam íreqlicntes as cliícrenc;as dando-lhes tempo e oportu nidad c para por termo ~ rela-
entre pessoas, disputas, desavenc;as entre marido e mulhcr c;ao, antes que algo pior lhcs acontec;a. Como medida ini-
entre irmiíos, entre cunhados etc. ' bidora, o mexerico é um dos nrtifícios mais poderosos
de contro le social . ls so niío quer dizcr que todo mexcrico
Nas ~ociedadcs indígen_aspodemos perccber dois tipos
1cm esse resultado ou objetivo. Muita s vezes uma escalada •
de proccd11nentos que contnbuem para o excrcíeio do con• no diz-que-me -diz nño conseguc evitar um confronto entre
trole social: medidas inibidoras e medidas punitivas senda
individuos, lamílias, facc;óes, aldeia s, quando os envolvi-
que us pr~meiras parecem muito mais comuns qu; as se- dos quercm tirar o caso a limpo. Por excmplo , romos tes-
gundas; sao csgotadas as inibidoras antes que seja neces- temunhas de um caso clcsse tipo numa das aldeias Sanumá.
sário aplicar as punitivas. Oepois de vários dias cm que corria o comenUlrio de que
_ Em q~1econsistem as medidas inibidoras? Em gernl, o homem A ofendera o homem 8 por have-lo laxado ele
sao proce~11nentos iníormais e 101110111as cores do ridículo, charlat3o cm suas práticas xamanísticas, B, de umt1 outra
do mexenco ou acusa~es de fcitic;ariu. A~ócs anti-sociais aldcia, seguido do grosso de scus companheiros , veio até
con,ioum nccssode hislcria ou raivn incontroladasao: a aldeia ele A para um confronto facc a lace. Como é da
!]lllltas vezes, ~cebidas com risadas, piadas e gracejos. A prática local, os dois homcn s se enfrentarnm num duelo
pess~a que assun procede passn a ser motivo do ridículo de varapaus, o ofendido golpeando pri,neiro, o oícnsor gol•
colellvo, o qua], geralmcnte, surte o cíeito desejado, que pcando dcpois, sob os olhos alertas da s duas comunidades
é o . de trazer a pessoa de voila ~ coníormidadc social. ali reunidas , mantendo o due lo sob controle. Terminado o
O. ndíc~lo é uma das armas mais elicazes para desenco- confronto, o ofensor se retratou e a paz vollou a reinar.
r~J?' autudcs e comportamcntos desaprovados pela eole- Muitos mexericos que correm durante o trabalho nas
11v1dad~.e claro que essc nem sempre é o recurso muis ro9as, nas trilhas de cac;a, nos momentos de prova em
apropriado. No caso da iminencia de um homicídio ou voila de uma fogueira nao passam de eomen tários incon -
outro tipo de violencia, nao se espera que o ridículd so- scqiientes sobre alguém que está ausente e lazcm parte
~in_hoevite a inírac;ilo. Mas, por exemplo, so um homem constante da rotina diária. Porém, cm situac;ócs onde uma
insiste cm desempenhnr tarcfas ícmini1111snuma sociedadc inlra9íio nrnis ou menos séria está em vías de ser perpe -
onde a divisao sexual do trabalho é estritamcnte observada trada, o mcxerico pode operar como uma espécic de in-
ele pode ser publieamente ridicularizado até o ponto en; tima~ao an tccipada a consumac;iio do ato inírator .
que a vergonha e a humilha~iío o dissuadem de cont inuor Acusu9óes ele feiti~aria, que podcm advir de urna es-
com elas . ca lada de mexerico, reprcsentam, em algumas sociedades,
O mexerico é outra maneira informal de controlar um outro mecanismo de prcvcn~ao de crimes. Scu tcor é
comportamentos indcsejáveis. Coment:lrios inicialmente mais sér io e severo do que o ridículo e o mexerico e mais
inocentes mas que se tornam cada vez muis ferinos sobn, comumcnte envo lve pessoas de aldcias distintas; sao como
por cxemplo, a infidelidade conjuga ! de alguém num con '. que o último recur so antes que a in[ra~áo se torne !ato
texto social que a condena, chcgam eventualmente aos ou- consumaOo sujcito a puni~3o. Entre os Tiriyó, quando o
65

mexed_co fica veneno~o, pode transformar-se em acusacao amplos, envolvendo várias faccocs ou aldcias cm dcmons -
de re,11caria. Peler R.ivi~re num art igo sobre faccoes polí- tra~oes de !orca: aqu~les que s5o respa ldados por maior
1icas e feiticaria, cliz o seguinte: número de parcnlcs, cm gcra l levam vanlagcm sobre os
dema is. A sociedade Xavanlc oícrece um exemplo disso.
Ouolquer lufortúnlo ou doenca pode sor considerado resul•
lodo do foltlQarlo o quase lodos as mortea o sfto [ .. . J Ao
Segundo Maybury-Lcwis, "todos os casos Xavante sao
rnosmo lempo, o modo de felt19arla montém o código do csscncial111
cn 1c qucstoes entre grupos e nao disputas entre
hospllalldado, som o quol cossorlam os vlagens poln área: indivícluos. Umn desavcn~a pcssoal niio se torna uma dis-
quolquor estranho é urn foltlcolro em potonclal , e a única puta a ser julgada pelo Conselho dos homcns a menos
profl laxlo contra o felt l9orlo 6 ser oberto o goneroso ¡ ... J <1ue e até que se lome um assunlo de facciona lismo".
Acusadorase acusadoscortamentenAo p,ermanecerAona Quando passa a ser assunto poUtico, urna disputa pode
rnosmo oldola depols que a acusa960 é folla o, Já que o ser motivo de •~ocs e rea~<iesque extrnvasam os inleresses
mexerlco sempre precodo o ocusacnoaberta, provavelment& dos con lcndore~ parn se lornarcm vefculos de lula polflica.
umo dos partos (supostamente o mols frece) so retira
nntee de chegar a osse ponto e do hover retrlbuicllo vlo-
fcnta.
Poder
_ Ouando_ •~na acilo criminosa é consumada, aplica-se,
enluo, a punicao corresponden le: ostrncismo, expulsiio ou Nlio é ponlo pacílico entre os anlropó logos e outros
mesmo morte. Um casa mento escandaloso, condenado cientistas sociais a cxis18ncia ou nilo de poder propriamcn -
como impróprio pelo grupo, pode levar o casal II sair 1e dilo nas sociedades chamadas igualilár ias. Há os que
da a~deia, per manente ou 1empornriamen1c; pode 1am- consiclcram que só ex iste poder onde há o uso e o recurso
bém ,solá-lo cm oslrncismo colelivo, quando lodos se rc- da fo1·9a como forma coe1·ciliva de garant ir confonn idade
cusam a falar, olhar ou ter algo a ver com os infratores, social e o accsso a ele está limitado a apenas alguns indi-
como se eles nfio existissem. Se cssc ostracismo se .pro- vícluos, como oco1·rc no Estado.
longa, ~ casal acaba por se mudar para oulra nldcia, 0
que equiva le, na •prálica, ~ cxpulsiio tácita. Um assassinnlo Mas há os que sustent:lm que o poder está presente
ou morte por fciticaria pode resultar na expu lsüo ou na cm toda e qua lqucr socicdadc humana, por mais igualitá -
exccu~·•o do assassino ou fciticciro, podcndo também de- ria que ela scja; esse poder, nao estand o concent rado nas
flagar uma vendeta entre aldcias principalmente se as rela- miios de poucos, aprcscnta-sc difuso e espalhado pela co-
~oes entre clas já eslavam abaladas. letividadc, na forma de grupos de pressáo, con trole social,
Rivalid ades políticas poclem ampliíic,ir a scveridade direilos e obriga~óes pessoais. Tai s formas de poder seriam
de infra~óes que cm outras circunstancias nao seriam to• incompa tlveis com a exis18ncia de centra lizacao estatal . Se
madas lfio a sério. O que comcca como uma simples dis- assim é, se nas sociedades indígenas igualitárias o poder
puta entre duas pessoas pode servir de eslopim para uma nuo é rclido por llll S poucos privilegiados, em que con -
csca!ada de hostilid ade.~. Nesses casos, os mecanismos de siste cnliío a lidcran~a polllica que é encont rada cm todas
contro le socia l passam a servir n interesses políticos mais cssas sociedades?

...
66
"
Abrindo um partntesis, vale a pena assinalar que o poder de coercño. Sua pos,cao é mantida, o rcspeito. de
igualitarismo dessas sociedades niio é total a ponto de ~~ c.Q._mpa nh~iro_sé. asscgurado niio pelo exercício_da for-
niio havcr lugar para difcrencia~oesentre individuos ou ..í.ªou a_mea~ade. uso da forca, mas pela persuas.a,o.Um
ca1cgoriasde individuos. Quanto mais niio seja, existe scm- bom líder é aquclc que atende aos dcsejos da comunidadc,
pre a difcren,a enlre homcns e mulhcres, entre jovcns e que articula o consenso geral. Sua atitude reside numa
vclhos, entre adultos e crian~as. Sobre cssas difcrcn~as séric de atributos que, como veremos mais adiante, lcgiti-
físico-sociais é 1>ossívelconstruir difcrcn~as sociopolíticas, rnam a sua posicao e asseguram o consentimento de seus
o c¡ue geralmenlc ocorrc: os homcns tcnde111a cxcrccr seguidores. A pcrda dcsscs atributos custa-lhe também a
muior domínio sobre as mulhercs cto que vice-versa,e pcrda da chcfia.
os mais velhos sobre os mais novos. Há, 1ambé111, considc-
ráveis distin,ocs cm personalidade e habilidades pcssoais;
há os bons e os maus ca,ado res, os bons e os maus xarniís, Autoridade
os bons e os maus oradores. Essas clifcren,as psicossociais
podcm também tornar-se a base para diferencia~oes socio- e born esclarecer aqui algumas no~ocs, como a de
políticas.
autoridade, poder, legitimidade. Estritamcnte falondo, a
Na América do Sul nao-andina cneonlrarnos bastantes autoridadc e respaldada no conhecimento que alguém tem
varia,ocs sobre o tema da lideran~a pol{(icacm sociedades de alguma coisa, conhecimcnto cssc que é posto a servi90
indígenas. Tcmos sociedades cm que o reconhccimento de da colctividade: um bom cac;ador, agricultor ou pescador,
um chcfc é incontcstávcl, cm que ele é o lcgflimo hcrdeiro um bom orador, um bom xama, ou um bom administrador
da cheíia, chcfia essa que passa de país a lilhos ou a irmiios siío "bons" porque clcsenvolvcram técnicas, conhccimcntos
mais novos e através das gcracoes é mantida num mesmo e sabedoria acima da média. Essc conhecimento, essa
' grupo de desccndtncia. Esse tipo de chcfiu é exemplificaclo autoridadc, cnfim, é o que confere legitimidade ao cxcrcfcio
pelos Cubeo do noroeste anrnzónico, onde existe um com- do poder. O poder que se calca exclusiva ou principalmente
plexo sistema hierárquico entre os sibs componentesda so- na forca ou na amcaca do uso da forc;ae nao na autori-
cicdadc e onde o cabeca do sib superior é tnmbém o chefc dadc reconhecida nao é um poder legítimo e só se mantém
da comunidadc. Ternos, por oulro lado, sociedades corno il custa da coc,•~iío.
a dos Nambiquara, onde é por vezcs difícil pcrccbcr se Em sociedades sem Estado ou quaisquer outras for-
existe, realmente, uma lidcran~a política definida, ou ainda, mas de centraliza~íto,a posicao política da chefia vem sem-
como entre os Kawahfb, ou Parintintim, uma identiíicacüo pre respaldada por essa autoridade legitimadora. Alguém
entre cornunidaclce líder, cm que este é o rcsponsável pela que se tenla impor nos companhciros sem demonstrar auto-
cl'iacño e cocsño do grupo. ridadc nño terá o apoio dos dcrnais. Da mesma mancira,
Entretanto, na gradaciio que as sociedades indígenas se um líder tentar transformar o seu poder de _pcr~ua~3o cm
apresentam quanto ,\ procminSncia de líderes políticos, há . poder de _l'_c;>CJS~!>,
ele será dQ,til~tído d~""suaffuncoes pela
urn aspecto recorrente cm todas elas: os líderes nAo t~m retirada do apoio dos membros da cornunidadc. Estcs sim-
68

plesmcnte nño lhe dao importancia e passam a contem- segundo David Pricc, um bom· líder deve ser capaz, sen-
plar outro líder mois confiável.
sato, ter iniciativa, ser traba lhador, nao ser sovina, ser ale-
Por mais formal que seja o processo de instala~ao gre, grand e e forte. Entre os Ye'cua na (Maiongong) do
na chcfia, um líder indígena muito raramente é mais do sul da Venezue la, de ncordo com a antropó loga Nelly
que um consc lheiro, um coordcnador de atividadcs . Lí- Arvc lo-Jim enez, o chcfe de aldeia deve demonstrar
deres auloritá1i os, isto é, que utilizan, o seu eonhecimeuto
e posiyao para cxcrcer o poder pela for~a, niio sao tole- a roro comblna9Ao do sobodorla para manclar as rolacOos
entre pessoas, eflclGncla técnico o riqueza rl:ual [ ... J
rados pela sociedade e, em gera l, sao rnpidamente subs-
Além dlsso, devo dostocar-so como boin trobalhodor e
tituídos. Em sociedades como a dos Cubeo, descrita por possulr destreza ritual paro poder prestar essas servl~os
Go ldman, o líder da comunidade , aposar da chcíin bcre - quando lhe sao requeridos. Espero-se quo solo prudente o
ditária, tem poucas possibilidades de abusar de sua posi~iio, pacifico e que possuaa persuasAosuficiente no caso de
já que suas atribui ~ocs sf10 bastante limitadas. surgl rom confllto s entre seus seguidores.
Elo ostá • eorgo da hospltalldade da cosa. recebe convl• Em algumas sociedades há - ou havia no passado,
dados e é o principal orgonlzodor de festas do beber. e quando as guerras intergrupais nao tinham sido ainda
rosponsável peles cerlmOnlas e por todo oqulpernento ce•
sufocndas pelos brancos - chefes de guerra, líderes tem-
rlmonlol. Inclusive fumo, coca e mlhl . Presido a dlscussOes
o arbitre disputas. NAo tem outoridode pare punir, embora
porários designados para comandar grupos de guerre iros.
sua oplnlAo sobre punl~Oos tonha poso. Nenhum lldor Uma vez terminada a atividade bélica, seus cargos e pode-
Cuboo tom dlroltos sobro pessoa, vido ou propriedad&. res de mando se cxt inguiam. Em alguns casos co nhecidos,
chefes de guerra fizcram tentativas de mante r suas posi-
Os l.ícleres Cubeo tcm uma ou tra caraclerística em <;oesde coma ndo, mas foram recha9ados ou ignorados por
co mum com virlualmentc todos os ou tros líderes em socie- seus eompan heiros, Pierre Clastres descrevc situa<;oes des-
dades indígenas: a necessidade de screm generosos. Sua se tipo pa ra demonstrar que as sociedades indígenas sul-
posi¡;ao política, ela própria, impede-os de cxerccr qua l- -americanas silo essencialmente antagón icas ~ emergencia
qucr tipo de acumula9ao econilmica, As demandas de seus do Estado e que as tentalivas de individuos ou grupos para
companhe iros para que o líder passe adiante o que possui instituir o poder coerc itivo cent ralizado dentro dcssas so-
sao urna das gara ntías de controle que tcm os membros da ciedades sílo destinadas ao fracosso.
com unidadc sobre o seu chofe político. Porlanlo, o cargo
de cbefia é incompatível con\ va111agenseconOmicas, acu-
mula~ao de riqueza, ma ior poder aqui silivo. Descentralizai;io
Além da generos idade, ex iste 11magama de atributos
que cada socieda de des igna a scus líderes. Entre os Xavan- Em scu livro Sociedades rribais, Marshall Sa hlins afirma
tc, os Xik.rln e oulros grupos Jé do Brasil Central; o dom que o tipo mais comum de sociedade na Amazonia é o
que ele chama de "tribo segmen tária", isto é, sociedades
da ora tória é um dos pré-rcq uisitos para que um homem
divididas em pequenas com unidades indepcndentcs. Se por
seja elevado il lideran9a política. Ent re os Nnmbiquara,
um lado, é verdade que há uma dispersao populac iona l das

lll.b..~~-
---------------' -
70 lf 71

sociedades indlgenas por raziies ecológicas, históricas ou a no~üo de "independe nle" na caracte riza,i\o das com u-
política s, por outro lado chamar cssas sociedad es de "tri- nidad es indígenas, torna-se tao trabalhoso qualilicar esse
bos segmentária s" pode dar lugar a intcrprcta ~es erro neas conec ito que ele acaba perde ndo a sua utilidad e para
o u, pelo menos, nao justificadas . Primeiro, já vimos que essa realidade especffica. As complexas redes de !rocas
o conce ito de "t ribo" é por demais prob lemático para ter de bcns, de prcsta9ao ele servi~s, de alian1,as rnatrimoniais,
utilidade na carac tcriza~iio das sociedades indígenas sul- de obrig•~oes ritua is, de pactos políticos testem unham , ao
-a mericanas. Em segund o lugar, o termo "segmentária" contrár io, urna proíunda e necessária interdependencia das
pode dar a irnprcssilo de que as sociedades em questao comunidades que compoe m urna ciada sociedade indlgena,
scr iam o resultado de um processo de segmcnta, Ao que interdependencia essa sem a qual cada uma delas talvez
remontaría a urn ponto com um originário. Se bem que essa nño pud esse se reproduzir por muito tempo. O que deve
interprctni;áo possa ser a mais adequada para ccr tas situa- ser enfatizado, isto sim, é a grande intcra,iio que existe
~oes cspecíticas, como a das sociedades Je do Brasil (Xa- entre as comunidades, mas que, mesmo intensa, pode nao
vante, Xercnte, Canela, Krah ó, Kayapó, Kaingnng e ou- brotar ~ primeira vista aos olhos do pcsquisado r, dundo,
tras), ou a dos Yanomami do Brasil e da Venezuela (Sanu- en tiio, e~sa ilusáo de independe ncia.
má, Yanomam, Yanam, Yanomanü), ou a dos Xuar do Do ponto de vista da orga niza~ao política, a dispcrsi\o
Equador e do Peru (Xuar, Achuara, Aguaruna, Huambi sa), das comunidades reflete um sistema de dcscentra liza9iio
ela seria por demais vaga e simplista paro dar con ta da di- de decisócs pelo qua l cada uma delos é, ern grande medida,
vcr.;idade de toda s as sociedades indígenas do subconti- rcsponsávcl pelos seus mcmbru,. Essas sociedades niio
nente sul-americano; seria ta lvez o equivalente a constatar tém um chele supremo, nem um aparato bwocrálico qu e
que todos os indígenas sul-americanos tilm características contro le formalmente informa~ocs sobre as várias comu-
mongólicas. Essa pode nao ser a inten\:iío de Sahlins, po- nidad es. Ao contrário do que ocorria no irnpério incaico,
rém a terminología por ele empregada clcixa bastante a ou do que ocor re cm sociedad es indu striais, as sociedades
desejar. indígenas n iio silo objeto de escrutfnio ou de decisoes da s
Além clisso, tratar essas sociedades como estando di- quais clas niio participa.in. Em ou tras pa lavras, as decisócs
vididas cm comunidad es independentes é distorccr e redu - sao scmpre tomadas a partir da s bases e nunca de cima
zir urna realidade que é muito mais intrincada e complexa. para baixo , como acontece freqlientcmen tc cm organiza-
Nen.huma dessas sociedades de que se tem co nhecimento ~oes cstatais unificadoras.
contérn comunidades "indepcndcnt es" no sentido de ser Na América do Sul nao-andina M vários tipos de
auto-suficientes. Quando se diz que a fanúlia nuclear pode unidades polltico-territoriais desde a unidadc familiar sob
ser considerada como a unidade mlníma de produ~ao, isso um cabc~a de família, até aglomerados de aldcias sob um
nao quer dizer que ela é indepcnden te de urna rede de líder com um. Entre csscs clois tipos de unidadc política está
parent esco mais abrangcnte. Do mesmo modo, quando o mais corrente, que é o de aldoias multifamiliares const i-
se fala que a aldeia pod e ser a unidade minirna polllica, tuindo as unidades pollticas mais inclusivas; porérn, dentro
isso nño implica o isolarncnto ou a auto-sufic iencia de destc último tipo, há uma vasta ga ma de varia~es. Co mo
cada aldeia em rela,ao as oulras. Portanto, ao aplicar ilustra~iio, descreveremos alguns casos concre tos.
71
, 73
Na vertcnce oriental da cordilheira dos Andes numo la~iio Xuar, que totaliza cerca de oitcnta mil pcssoas, está
grande regiao coberta de floresla tropical conhecida ' pelo atualmente organizada na conhecida Fcdcrn9iío ele Cenlros
termo M ontafia , que se estende do sul da Colombia ao Xuar. Essa Federn~ao, inleiramcnle govcrnada por indí-
none dn Bolívia, existen, numerosas sociedades indígenas genas, foi eslabelccida cm l964 como urna forma organi-
de variadas afilia~oes lingüísticas, modalidades de organi- zada de (azor fre111cnos problemas engendrados pelo con-
za~íio social e silua~ocs de contato com sociedades nncio- lalo com a sociccladc nacional e visando il autodetermi-
nais. Ocntre essas sociedades encontra-sc o tipo de unidade na9fio e revitaliza~1o cultural dos Xuar. A Feclcra~ao é
residencial que consisle cm uma única casa abrigando urna um organismo paneomunilário englobando as várias aldeias
fumília exlcnsa de qu inze a viole pcssoas, ou ero umas que, alravés de seus rcprcscntanlcs, clcgcm um presidente
poucas casas de apenas uma família nuclear. Esse tipo de em asscmbléia gcral.
"unidade acéfala" foi perdido, depois da conquisla cspa-
nhola, por algumas dessas sociedades (por excmplo, os O cuso Xuar, lalvez único na América do Su), pois
Lamistas, falantes de quéchua, no Pcru), que sofreram representa uma sociectade indígena politicamenle estrutu-
profundas 1ransforma9cies cm suas eslruturas. rada em moldes ocidentais de um Bs1ado-na~ao, demonstra
que é possívcl a coexistencia de unidades locais autono-
A sociedade Xuar da regifio amazonica do Eguador mas e uma organiza~iio abrangcnte e mais centralizada. O
ainda é um excmplo desse lipo de unidadc político-terri- succsso cla Federa960 Xuar depende dcsse equilíbrio entre
torial. O rch,10 de Siro Pellizaro assim o alesla: o nível local e o nível supracomunilário. Tcn1ar impar um
Cada fomllla ocupa um terrltórlo próprloo lnvloltlvel deo- eslilo mais concenlrado de aldeamenlo poderia resultar no
tro da reglftoda familia unida. Nesso torrltórlo cado um 6 csfacelamenlo das rela~oes sociais pela irl'Up~uode con-
dono absolutode coso, de pescoe das plantas. Ao entrar ílitos e levaría eventuahnenle ,, perda da representatividade
no torrltórlo, os visitantes, mesmo sendo o pal ou os e legilimidade da Federa~üo.
lrmaos, devem avisar lazando gracejos [ . .. ] Se o dono
do terrltórlo descobre pegadas do parentes ou estranhos Já entre os indios Piaroa da Venezuela, os grupos
próximo do sua casa, 6 motivo suficiente poro suspeltar locais, constiluídos de várias famílias rcsiclcntes numa
de odultórloe sancionar mesmocom a morto a quem tevo grande casa comunal sob a lideran~• do "dono da casa",
tot atrev lmonto. Asslm, poi$, o dono da caaa 6 um ver- estuo reunidos cm "lerrilór ios". Cada "tcrritório" com-
dadalro rol om seu terr ltório, com t rono (o chlmpl) , oxér• prccnde seis ou setc grupos locnis e está sob a jurisdi;üo
cito ísua lanoal o poder legislativo.
de um líder, ao mesmo tempo auloridadc política e reli-
A linguagem figurada do autor dramatiza esse sistema ato- giosa. Ao contrário do caso dos Xuar, os grupos locais
mizado de arra njo residencial, onde se concentrava trndi- Piaroa devcm ser grandes e scus líderes homens capazes
cionalmente a jurisdi9iio polílica. de atrnir rcsidenles para suas grandes malocas. Para csses
Hoje em dia cssa eslrutura ainda permanece vigente, fndios, a riqueza advém do convivencia ele muita gente
até certo ponto, a nfvel local, islo é, cada aldeia consti- numa grande casa, o que lroz tranqüilicladc e bem-estar.
tuída de uma família extensa e politicamen¡e soberana em Os líderes de grupos locois disputam a posi;iío de líder de
seus assuntos internos. Porém uma grande parle da popu- "território" no contexto ele faccionalismo político. O pres-
'

~-----1m1111------II!:=:------------- ,;
74
75
1fgio de um líde,· está associado as suas habilidades nño só
por exemplo, dos Makú do Alto rio Negro, conforme des-
políticas co mo mágico-religiosas. O líder de "tcrritório"
crl~ño de PeterSilverwood-Copc: "os grupos locais mudam
também se impoe pela capacida de de arranjar casamentos
de composi~ilo, niío somenlc at ravés de mudan~as de resi-
que res ultcm cm alian~as polflicas que fortalc~am a sua
déncia no momento do casamento (e durante ele ent re os
posi9fio, promovcndo a coloca~iio de paren tcs afins e con- '>
scus mcmbros), mas também como conseqllencia do dcsen -
sanglifncos como cabc9as ou potc nciais cabe9as dos grupos
locais compo nentes de scu "ter ritório". volvimento das rela~ocs entre mcmbros do mesmo grupo
local e também entre os Makú e seos vizinhos Tukano".
Esse tipo de organizacüo semiccntralizi1da, com líde- A mobilidad e clesses mcmbros nao altera , en tretanto, a
res ,:Je aldeias s ubalternos a um líder territorii~, talvcz estr utura dos grupos no sentido de sua orgnniza~ño social
scja ainda mcoos frcqücntc na América do Sul nao-andina o política. Mudam as pcssoas mas o sistema permanece.
do que a ntomiza~ño cxemp lilicada pelo caso Xunr. Bem Os grupos locais estño inclufdos cm grupos regionais mnio-
mais comu m é o s istema de chefia de aldcia, 0 111 que cndu rcs, mas essa inclusño nfio cnvolvc hicrorquiz.n~íiode po~
grupo local multifamiliar representa a unidade política, o si~oes políticas, co mo oco rre com os Piaroa. Esscs grupos
corpo dccisório mais inclusivo. Ncsse sistema, várias al- rcgionais distingucm-se uns dos outros pela distancia espa -
deias podcm articular a9ocs conjunta s, principa lmente com '.' cial, tend encia ~ endogamia e varia9üo lingiiística . ~ao
rcla9ao a alian9Rs matrimoniais e ativicladcs gucrreiras, silo eles as unidades po líticas, mas sim os grupos loea,s.
mas nAo existe umn hierarq uiza9ao ele posi9oes políticas
entre as aldeias. Exemplos dcsse tipo de organiza~ao po lí- Sob pressocs externas, como invasiío de território,
tica sao as numer osas sociedades Tupi, Je, Caribe e muitas ataques armados cte., o sistema polít ico descentra lizado
outras sociedades indígenas do continente. de usna soeiedadc indígena pode passar por radicais tran s-
forma9ocs no sentido de superar essas crises. Sociedades
Dentro desse tipo de chef ia de aldeia podemos detec- co m sistema de chcíia de aldcia multifamiliar poclem,
tar algumas varia9oes. Há as sociedades cm que a compo- entao, fragmen tar-se ou rcalinhar-sc cm moldes to talmente
si~ao dos membros do grupo local é constante o ano intci- diversos dos habituai s. Urn cxcmplo desse fenómeno é o
ro, cm que a aldeia é o local de residencia permanente,
caso dos Ye'cu ana, segundo descric;iío de Nelly Arvelo-
cm que uma 111udan 9a de sitio de aldcia cnvolvc apenas
-Jimcnez:
uma tran spos i~ño geogrática scm afetar nccessariasncntc
a sua constitui~ao social. Nessus sociedad es, a vario~ao No presonco de agressllo oxterna, o sistomo político
sazona ! níio lraz rcarranjos sociais, cmbora grupos de pcs- Ye'cuona adota prlncfplos polftlcos temporárlos que repr&-
soas possam se organ izar cm cxpcd i9ocs de ca~a, pesca ou aentam umo dlvergAncta drástico dos podr~•• de comporta•
coleta. menl'o político Jurldlcomento sonclonodos: as mlgrat;Oesin•
ternas prollfor am: os oldetaa passom por um acelerado pro•
Há, porém, outras sociedad es csn que o grupo local cesso de dlvlslo: o número de aldetas aumenta e aeu
niio tcm o mesmo cará tc r de pcrmanéncia e que a cada tomonho dlmlnu t; o clsAo das oldelos fragmento o átomo do
eslai;fio seca ou chuvosa, ou cm aJgurn outro momento, sistema político, quo é o fomlllo extonso: novas oldelas
surgom com composlc;Aosoclal mista de pequenos núcleos
a compos i9iio de scus habitantes pode se alterar. e o caso, do peHOBSprocedentes de aldeias diversas quo so fundom e
76
77

produzo,nhetorogoneJdado política; o cosamentoque regulo sávcis pela ausencia de rela,;oes de dominacfio entre elas
r,..
o recrutamento ein grupos soclopolltlcos J 6 contratado e de urna ideologia que rcnegn a própria existencia de plu-
om novas lermos.
ralismo cultural. O proccsso de unifica~lio nacional que
Muitas vezcs as rcla~6es políticas de uma sociedade 1 acompanha a fonnu9iio do Estado tem se mostrado histo•
ricamente antagónico a manuten9iío de diversidadc cultt1-
indígena estcodem-se n oulras, criando-se um sistema que '/ ral. Quando niio tem havido extcrmfnio tem havido, pelo
pode ter o carátcr de relativo iguafitarismo, como o que
tcm sido descrito sobre 11s sociedades do Alto Xingu, ou menos, intolcrflncia do~ dominadores para com os domi-
pode estar organizado cm termos hicrárquicos, como entre nados. Atestam isso casos como o de várias minorias étni-
os Mak(i e os grupos ribeirinhos do Alto rio Negro ou os cas sob o império incaico, o dos bascos na Espanha, o dos
Sanumá e os Maiongong (Yc'cuana do Brasil) do norte de lapocs na Escandinávia, o dos ainus no Japao, o dos celtas
Roraima. O importante a rcssaltar aqui é que, mesmo nas nas Tlhas Bri1ilnieas,o clos bretoes no norte da Fran9a, o
situa~6cs onde lul desigualdades sociupoliticas entre duas dos curdos no Ira e Traque, para mencionar apenas os
sodedades indígenas distintas. aquela que se considera exemplos mais flagrantes.
superior nflo cxerce poder de domina~iío ou c)(termfnio
sobre a outra. Nisso as rela96es entre sociedades indígenas
difcrem drasticamente das rela~ocs interc'tnicasque eovol-
vem Indios e brancos; estas tcm se caracterizado justa-
mente pela domina~ao dos índios pelos brancos, gerando
uma contradi~ao insolúvcl: a socicdade branca, intolerante
do sistema de vida indígena, ao pretender pulverizar por .,1
assimilacao as sociedades indígenas dentro da sociedade '
nacional, no mesmo tempo ncga aos índios acesso a ela,
mantcnclo-os ~ parte por rneio de uma série de mcclic.Jas
discri11
1inat6rias e barrciras étnicas, como preconceitos,
cstcreótipos, além de priva9ilo economica, educacional:
médica etc. Assim, aquelcs índios que por uma ou outra
razilo se v~em desligados de suas comunidades nativas,
véem também rejcitadas suas tentativas de serem aceitos
pelos brancos como mcmbros plenos da sociedadc destes,
mesmo quando, na Ansia de escapar ao estigma de ser In-
dio, tentam esconder a sua origcm étnica.
Talvez a inexistencia, entre as muitas sociedades indí-
genas, de um tipo de organiza9üo política estatal fortc-
mentc centralizada seja um dos principais fatores respon-

J
79

obriga~iío dos seres humanos. Para isso• cxislcm tabu s,


6 práticas xamaníst icas, ritos de puririca~ño, regras socia is
e éticas. A obscrva~§o de uma regra social traz implicita
em seu bojo a necessidade de "fazer as coisas corre ta-
Religiao e a mente'', de maneira a assegurar a contin uiclacle dessa or-
dem. A qucbra ele 11111tabu alimentar implica uma ac,:ao ,.
ordem do mundo humana incorreta que pode p6r cm pcrigo essa ordem,
descncadeando a ira de seres que, embora nao perten1,3m
a socicdade humana , estiio diretamcntc associados a ela
e fazcm parte de seu sistema de regras. O descmpenho cor-
reto dos funcrais garan te que os esp(ritos dos mortos nao
trespasscm o seu devido lugar, 11ermitindoa estes clesempe•
nhar a sua parte no paclo recíproco com os vivos.
As religiocs das socied ades indígenas sul-americanas, Mas, assim como cxistcm semc lhan9as entre todos os
embora diferindo grandemente em sua especi(icidade, apre- sislcmas religiosos, também existem diferenc,:as. Urna das
sentam alguns princípios em comum, n3o s6 entre si, como diferenc,:asbásicas entre a religiiío das sociedades igualitá•
com sistemas religiosos de oulras parles do mundo. Lidar rias e a dos Bstados-nac,:oes é que nas pr imeiras ela nao
com o desconhecido, com o sobrenalura l, com o que vem está cstruturada cm " igrejas", isto é, cm aparato especia-
depois da morte sño prcocupa9oes de tocias as sociedades. lizado, gcralmente hierárquico, com aparente autonomía
Também como todas as rcligiocs conhecidas, há sempre a instit ucional, que comanda o dogma, os direitos e dcvcres
presen~a cm maior ou menor grau de elementos mágicos. de seus afiliados. Ao contrário, nas sociedades ind(gcnas,
Assim como ns velas ou as medalhas de san tos tem valor a religiao está tao intrínsecamente relacionado com as
mágico na igreja católica, uma bíblia na protestanle, ou demais esferas da vida social que nao só dispensa, como
alime ntos na umbanda, também nas religioes indígenas provavelmentc é incompatível com um corpo eclesiástico
existe urna variada gama de recursos mágicos, como plan- especializado. Basta observar um indivíduo com um numa
tas, pedras e obje tos de procedencias diversas. socicdade como, por cxcmplo, a Sanumá, para perceber
o quanto a rcligiíio cslá presente na vida cot idiana. Se um
As crencas religiosas dos povos indígenas afirmam homem planeja ca,ar, sendo xamií, na noile anterior ele se
uma unidade indissolúvel entre o nat ural e o social, com ocupa corn cAnticos religiosos que propiciariio a coopern -
influencias mútuas e conseqücncias recíprocas. Muitas ve- s-,iíode espir ilos no sentido de tornar a ca,ada produtiva;
ies aquilo que chamamos de sobrenat ural nño é mais clo se nüo for xama, o mínimo que ele pode fazcr é ungir de
que uma característica especial clo social e do natural, urucu a cabe~n de scu cilo para aumentar as possibilidades
como, por exemp lo, atribuir poderes extran aturais a certos de succsso na busca da ca,a. Essa un~iio é ritual e dirigida
animais, plantas ou ou tros elementos. Manter a ordem do a cspíritos benévolos. Se vai a ro~a, lugar favorito de algu-
mundo, com seus componentes naturais e sobrenaturais, é mas cobras, ele se utiliza de certas plantas com poderes

.',W.._IIIIIZl!ll_a:=:s=====lllllmll--1111!!!18~~----------- -
81
80
dos pelo nome de paj és e cm linguagcm a111ropológicasáo
mágicos P.ª'.ª se prot eger de uma picada venenosa. O chamados xamas. Em nlgumas sociedades ser xama é pri-
n1ág1~0 -rehg1oso_. enfim, pcrme ia a vida diária de uma vilégio de poucos, em ou tras é obriga~.íio de 01uitos; em
mane1ra tñ~ lntuna que_nao !aria sentido limitar as ativi- algumas o xamanismo é atividade exclusivamen te mascu-
dad es religiosas dentro de um recinto estabelecido _ lina, cm outras ele pode ser também praticado por mulhe-
tc'.nplo ou santuário - e num tempo especificado _ res. As práticas xamanísticas podem envolver a utiliza ~ao
~ ,ssas ou ou!r~s rituai s periód icos. Podería mos dizer, en- ele substAncias t.lis como taba co ou drogas alucinóge nas,
tao: que a rchg ,ilo está muito mais presente nas sociedades instrumentos musicais como o choca lho, podem incluir
md,genas do qu_enaquelas sociedades cm que ela está lor•· tran se, visóes, sonhos, experiencias scnsoriais cspecialmen-
tcmen_tc formal izada cm credo, clero e regulamenta ,;oes ce induzidas. Principalmente oo norte e oeste da Amazó·
próprons. nia, 6 muito comum o uso de plantas alucinógenas co mo,
. , U ma 011tra di[erenya entre a religiiío das sociedades por exemplo, 11ya paricá e outrns esp6cies do género
/111asca,
md1~c1rns e a d_<:rnuitos Es tados-na~éies moderno s é a virola. O uso dessas subs tancias é exclusivo de contextos
ausene,a, nas promciras, de seitas concorre ntes. Antes da rituais e muitas vczes limitado aos iniciados no oUcio de
mter ícrcncia· missionária nao cxiscia compcci~o entre cre- xamil. O dcito clcssas plantas tem sido descrilo por vários
d?s d1fer~ntes, como ca tólico vers11sprotestante. Essas di- autores. Numa passagem sucinta mas ilustrativa , cliz No•··
v1soes ex,stem hoj~ cm vári~s sociedades indígenas como man Whilten Jr. sobre os Cane los de !ala quíchua da
•es uIludo da 11npo~1~i!ode sistemas religiosos ant.tgónicos Amazonia cquatoriann:
por '.'gentes de sociedades ocidentais, onde siio endém icas Paro.conseguirum ( ... ] nfvol de vlsAo, os xamAs empre-
ns d1spulas entre religiocs ou ~citas opostas. Tradicio nal- gam oynlwoscB, o clpó do vida (Bnnl stortops ls spac/cs) que
mente, a rcligiiío de uma socicdade indígena é pcrfeitamen - lhos permito viajar entre o mundo dos humanos e o dos
1~ compalive l com os valo.-es individuai s e coletivos neh1 osplrltos. Cré-so que a ayalivosco lnduz a umo rea11dode
vigentes. E mbora alguns especialistas scjam considerados somelhanteoos sonhos e qual medola entro o dominio hu•
mclhorcs que outros e desaven~as entre oficiantes possam mano de vlsDo onírica e o dominio dos osplrlto s de vlsDo
ocorrer, os mesmos princípios religiosos sao par tilhados de Oatura l substancla oluclnógcna). Os costumes e conhc•
P?' todos os mcmbro s da socicdade. Até que idéias reli- cimento ontlgos sDo transmitidos ntravés da dlnAmlca
g1os~s. ahenígen:1s traga!" ?iv isóes e contradi~ocs para o conheclmcnto/vlslo, embulldo num procosso continuo de
scu sc,o, as sociedades and1genas nao abr igam eompcti~ao aprondlzagem.
entre dogma s religiosos distintos. Os sonhos sao também importa nte fontc ele con hcci•
mento , como entre os Tapirnpé do Bra sil Central, descri-
tos por Charles Wagley no livro f..eituras de et110/ogia
Xamanismo brasi/efra:
O conhcclmonto do mundo sobrenatural é obtldo prtnclpal•
Co_mocm virr.ualmcntc codas as sociedades humana s
mento por oxporlénclode sonhos dos xaml'is [ . , . ] porque
nas s?c1edades indígenas existcm os intcrmediário s entr~ entre os Taplropé o 1>odcrxamanlstico derivo dos sonhos
o soc1•l e o sobrena tural. No Bras il eles sao mnis conheci-
82
83
o das forc;:asneles reveladas. Acredltam que o sonho o embora proibida, foi ingerida pelas pe,ssoas sujeitas a proi-
uma vlagem, Ouranto o sono [ , . . J a t1lma pode llvrer-se
do [ .. . ) corPO e mover•se llvremente no tompo e no bi9fio.A cura clessns doen9as se el~ através do xamanismo,
ospu~o [ ... J As vlogens em sonhos tombém tra,om oos com o auxílio de espíritos de animais, muilas vezes os ini-
paJés o poder de profec la. Tals experl&ncles om sonhos migos naturais da espécie vingadorn: A teoría das doen~as,
nno se llmltem oo mundo demoniaco,lis vezes ocorrem das curas e dos agentes sobrenalurais utilizados no xama-
cm reglOes terrenos. O paJt! podo visitar aldolos Kara)á ou nismo Sanumá lorrna 11111complexo sistema físico-social-
estabeleclmontos brosll elros ao longo do Aragualo. onde. •metalfsico que clemonstra c1uuo vinculadas cstúo as a~oes
olgumos vezes, tomo c·onheclmento de fatos quo lnte• humanas ~ visuo cosmológica desses fndios.
rossomgrandementea seus companhelrosdo trlbo [ . . , ]
FreqOontemento os po)ós. por sonhos. descobrem onde •• Alérn de realizar curas, os xamiis sao também res-
oncontram grandes varas de parcos e o contam aos Tapl- ponsávcis pelo bem-estar geral da comunidnde, protcgendo-
rapé, aconselhando-o.scomo aproximar-se deles. -a contra espíritos malignos, conduzindo recitativos ou ccri-
monias propiciatórias para boas colheitas, boas ca~aclas,
O processo de aprendizagem do xamii, que cnvolvc invocando espfritos benignos para assistir na resolu~ilo de
a aq uisi~áo de conheeirncnto esot6rico, o domfnio do uso certos problemas, como csterilidacle e outros clistúrbios que
de substnneias alucinógenas, a observa~iio ele cerlas rc- podem ser atribuidos aos e(eitos de (eiti9aria. Nao é por
gras e Labusespecinis, eslá sernpre presente, podendo ser acaso que a figura do xarnfi tem sido comparnda ~ do
mais curto ou rnais prolongado, dependcndo dos iudiví- psicanalista cm sociedades industl'iais.
duos e das sociedades específicas. Porém ele é sempre
necessiirio. Nao exisle01xamás de nasccn~a;quaisquerque
scjam os dons, requisitos 011 propcns6es neecssários a prá- Feítif;aria
tica do xamanismo, eles tcm que ser dcsenvolviclos e cana-
lizados ntravés de treinamento especial dos novi~os pelos Assim como o xamñ é o zelador do bem-estar social,
xamiis expcrientes.
ele também tem o poder de trazer o mal II seus com-
Parte das atribui~oes de um xama é realizar curas. panhciros 011 n outros mais distantes atrnvés de práticas
A ele cabe fazer o diagnóstico e tomar providolncia s para xamanfsticas; pode ser o pró¡,rio agente de feiti~aria ou
eliminar o mal depois de identificada a sua causa. Para instrumental para o fciti~o de lcigos. Por6m a feiti9aria nao
isso ele recorre ao auxílio de espíritos e substfincias curn- é prnticada apenas por xamiis.
tivas específicos i\s várias docn~as, ou ao processo de Aqui elevemos abrir um pnrcntesis para esclarecer a
suc~iiodo objeto que está causando a doen9a do paciente. difercn~a entre feiti~aria e bruxnria. Na primeira há a ma-
Em geral, nas sociedades indígenas a tcoria das doen~as nipula;iio de objetos mntcriais ou cxpressíles verbais inten-
está dirctarnc11teligada ll conce~iío do mundo cm scus cionalmente dirigidas u vltima, que pode ser um indivfduo,
aspectos naturais, sociais e sobrenaturais. Por excmplo. urna comunidade ou uma regiilo inteira. Na bruxaria o que
entre os Sanumá existe um grande conjunto de docn~as que existe é uma for~n mctnflsica inerente il pcssoa que a tcm,
decorrem da quebra de tabus alimentares. Elas sao o resul- independenternentcde ser ou nao ativada. O fcnOmenodo
tado da 1·cta
liat;ño dos cspfritos dos animais cuju carne, mau-olhado é um cxemplo ele bruxaria. Ele pode ou niio
84
85
ser controlado pela pcssoll; cm alguns casos, o bruxo, cons- <.len
tes de aviáo ocorrcm com relativa frcqüéncia, havcndo
cientemente, poe essa for~a a scrvico de suas inten9iics de uma certa probabilidude de que o aviao X caía durante a
atacar alguém magicamcnte; cm outros casos, a atua~fio sua cxisténcia como máquina ativa. Se ele cal, pan, as ví-
da for9a é totalmente involuntária por parte de qucm a timas e tocios os cnvolvidos é ,un azar enorme. Mas por
possui. Ela pode manifestnr-se por meio de sonhos, quando que o aviño caiu juslamcntc quando Fulano cstava a
ficn liberada da condl~ao consciente ele scu receptor, po• bordo? Aqui, o azar e u probabilieladenos deixam scm rcs-
dcndo cntüo atingir alguém ou alguma coisa. Scnclo muito posta. Porém um membro da sociedadc Zande da Africa,
comum ern v~rias sociedades africanas, a bruxnria é rela- ou Sn11um á de Rornima, nao hcsitnria em levar a pcrgunLa
tivamente rara na América do Sul; aqui a {eiti9aria é muito nsslrns últimas conscqllcncias e responder in 1ott1 111 no
frcqUcntc. porque dcsscsiníortúnios: ns vítimus, obviamente, tinham
e tarnbém poss(vclcncontrnr uma cornbina~ao de .un• sofrldo o ataque sobrenatural de algum bruxo ou feiticeiro.
bas. Entre os Sanumá cxistem claramente v~rias técnicas Fica assim explicada a conjun~ao espccffica ele (atores que
de feitiyada, mas parece existir rnmbém o ''cspírito dos lcvam ~ ocomlncia de in{ortúnios que ·rogem a explica~oes
sonhos", que tmllo homcns como mulhcres possuern e de ordem técnica, social, moral etc.
cujas acocs durnntc o sono podem ter conseqiiencins da-
sonhos", que •tanto homens como mulhcrcs possucm e
controle sobre essas a~ocs. Concep~íio do cosmos
Em várias socicdaclcs indígenas sul-americanas, o fei-
ticeiro, ü1cl
cpcndentcmcntc de ser xnmñ ou leigo, é casti- As cosmologías indígenas reprcscntam modelos com-
gado com a monc. Scndo urn ato considcrnclo altamente plexos mas integrados dos quais fnz parte a socieclade
nocivo ,, sociccladc, a [ci'ti~:triaé severamente punida. E, hunrnna. Os mitos sao vcículos ele inlormu~iiosobre a con-
como já vhnos, uma nrnneira de a comuniclade cxcrccr ccp.ao clo Universo, incluindo lemas sobre a criu~i!o clo
controle sobre seus membros é lan~ar miio de acu~a~ocs mundo, a origem da agricultura, as reln~óes ecológicas
de feiti~aria na tentativa ele dcsencorajar a~es tidas como entre animnis, plantas e outros elementos, n metamorfosc
anti..sociais. de seres humanos cm animais e vice-versa e de ambos cm
Ao mesmo tempo em que as acusa~cs de bruxaria e cspíritos de vários tipos e indoles, a rnziio de ser de ccr-
de feiti~aria sao eficientes mecanismos ele controle social, tas rela~ocs sociais culturalmente importantes e até mesmo
elas dcsempcnham também o importante papel de suprir o surgimcnto do '◄homcm branco" e a avalnnchc de fatores
!acunas de conhecimento. Enquamo entre nós os conceitos desagregnclorcs que o acompanhnm.
de .izar, coincidCncia ou a tcorin da probabiliclndecxis- B frcqücntc ordenar o cosmos cm várias camadas,
tcm para diminuir essa lacuna, nas sociedades indígenas a como entre os Yanornami ou os Makú. Nesses niveis estilo
bruxaria/fc iti~aria conscguc eliminá-la de vez. Pura n6s, incluídos divindaclcs, fen6mcnos atmos{éJ'icose geográfi-
perder a cancirn recheaclu de notas é ¡izar. Mas por que cos, animais e plantas, montanhns e rios, cspíritos de ani-
justamente a minha cartcirn no clia em c1uc cla cstavn com mais e de pcssoas, ancestn,is humnnos e n5o-humanos,
muito nrnis dinheiro do que o normal? ~ sabido que aci- estrangeiros, entes sobrenaturnis nrnlévolos e benévolos.
87

O sistcmn cosmológico de unrn socicdadc indígena é quais ele nao te111cont,·ole: a mortc, a doen~n, o insucesso.
uma combina;ao de vários tipos de conhecimcnto, entre Removida cssa visiio ele mundo, advém a descstrutura~ño
os quais podcríamos distinguir o conhccimcnto cmpfrico e individual ou colctiva. Excmplos dcssa dcsestrutural,iiOsüo
o conhccimcnto metafórico. O pJ'imciro é derivado da abundantes na história da a~ao missionária entre socie-
observayao e experimcnta~ao, base.ido csscncialmcntc na dades indígenas. Proibindo a mnnifcsta~ao ele uma cosmo-
pcrccpyüo dos sentidos, como por cxcmplo a constata~áo
da anatomía, dos hábitos alimentares e reprodutivos dos
login tradicional niío-crista e incapazcs de fornecer substi- ...
tuto coerente, os missionúriosortodoxos de seitas ocidentais
animais. O segundo advém da conjun~ao do conhecimcnto conscguirarn,através dos tempos, criar, para as popula~oes
cmpíJ'ico com cren;as e expcriéncias que nao se restringcm indígenas, mais angúslias. inscgurnn~as,inccrlezils e con-
¡¡ perccp~ííoimediata e física das coisas, mas se reportam a fusocs mcntais do que quaisquer outros agentes eledcsagrc-
uma oulra dimcns5o que podcríamos chamar de "meta• gaoao. As ditas "convcrsocs" nada mais siío do que a
física", como o lugar de seres imaleriais como espfritos, apoteose do vazio intelectual que fica na cstcira da cate-
almas etc. na ordcm das coisas. Ambos csscs tipos de qucsc e do proselitismo intensivos pelos quais o sistema
conhccimcnlo síío construídos culturalmente, e é erróneo ele ercnyas e eogni~uo indígenas é implacavelmente des-
supor que qualquer tipo de conhecimcnto, mesmo o dito baratado.
cientffico, esteja dado na natureza. Nao cxistem duas so-
ciedades distintas com cxatamcnte o mesmo modo de orde-
nar o mundo llsico ou mctaífsico. Enquanto urna socie-
Messianismo
dade projeta n sua visíío cósmica na disposi~íiodas várias
plantas na ro~a (Krc naknrórc), outra representa a sua na
Em tempos imcmoriais, provavclmcntcmuito antes da
construyijo ele uma casa comunal (Maiongong); cnquanto invasiio da América do Sul pelos europcus no século XVI,
P.araurna os rios e cascatas silo a mani(csta~iiocultural de a popula~iío Tupí-Guarnní cngajava-sc periodicamcntc cm
unm parte da orcle111 metafísica que orienta o mundo social extensa mobilizaoao espacial, envolvendo dramáticos ho-
(Tuknno), parn outra o simbolismo cósmico é retratado dos durante os quais mortcs, fome, priva~6cs várias pon-
em artes como a cerfimica (Kadiwéu) ou a pintura cor- tilhnvam o caminho. Era a busca da tcrra sem males. Bsse
poral (Xikrín). destino mcssianico foi talvcz o maior rcsponsável pela
Essas cosmologías operam como um verdndciro mapa cnonne clispersíiogeográfica dos Tupi-Guaraní, desde a ba-
simbólico do Universo, estabclcccndo o lugar, a impor- se oriental da cordilhcira dos Andes, dcsccndo até o sul
tftncia, os padrocs de atua1,itoe in(luCncia de cada um de do que é hoje o Brasil, subindo a costa atli\ntica até o Pará
seus muitos componentes. ~ um código para o qunl se ape- e mais além no rio Amazonas. Numa interpreta~ao ori-
la quando se quer entender ou explicar tanto o corriqueiro ginal dessc proccsso migratório, Pierre Clastrcs contrapoc
como eventos inusitados, calamidades, infort(mios ou gol- sociedade igunlitiíria ao surgimento do Estado e vi: a re-
pes ele sorte. A visíio do mundo supre o indivíduo como Jigiño Tupí-Guaran! como um mcca~ismo de prescrvayÍÍ0
uma conslanlc üncora que o mantém seguro n uma de- da primcira e de solnpamcnto do segundo. Os 111ovimcntos
terminada realidndc social cm fnce a vicissitudes sobre as mcssiflnicosdcsses povos, ocorrcndo em ciclos, corrcspon-
8S

diam i\ confronta9iio entre a emergencia ele um govcrno era, a tentativa de erradicar da terra o pior dos males
centralizado, dccorrcntc de crcscímentoe concentra~iiopo- conhecidos, que é o homem bronco e suas conseqücncins
pulacíonal, e a rejei~áo dessa centraliza9ao de poder pelos - tcm sido uma das armas com as quais as popula~oes
valores igualiu\rios dcssas sociedades. Assim, quando 11m indígenas tcntam combatcr os efeitos dcsasLrososdo seu
chefe político chcgavn a dominar varias aldeius e mostrnva contuto corn a sociedadc ocidcntal. Quando os mais po-
sinais ele excrccr ccrtos privilégios, como o uso exclusivo derosos xamüs nilo eonscguem dar contn de tanrns doen9as
da for9a, surgiu um proíota c:1pazde mobilizar a popu- causadas por epidemias de gripe ou sarampo, quando a
la~áo contra cssc chcfc, procurando outros lugares onde terra come~a n encolher com o avan~o de ondas de gente
nüo houvcssc dominn~üo ou cocr~ao, cnfim uma tcrra scm alienfgcna que dcstroem fauna, flora, homens e mulheres,
males. O cfeilo disso cru a fragmenta~áo de urna grande quando a popula9ao se esvni pela rnortalidade generali-
unidade política e a rcinstala~üo, cm outro local, de co- zada, pela neccssidadc ele abandonar o grupo e ganhur o
munidades politicamcntc aut6nomas, clcsccntralizadus,onde pao lá forn, quando a prostitui~áo e a mendic{inciatrnzem
a forma ele govcrno era clitada pelo principio de pcrsuasüo a dcstrui~¡¡o de valores e de rela~s sociais, quanclo in-
e nfio de cocn;fio. E:.sscs
ciclosde allcrnñnciaentre ccnlrn- trusos vem minar o sistema de cren9as que é o pouco que
lizacao e desccntndiza9ilo,entre dcsigualduclcsocial e igua- ainda resta, entilo o cosmos está cm crisc e necessita de
Jilarismo sao vistos por Clastrcs corno uma fuga i, domi- rcnovn9ilo. O messianismo é uma tentativa de renovar o
na9ao e a cxplora9iio antes que estas se implantasscm mundo. Mas enguanto continuar o expansionismo da so-
dcíinitivn,ncntc, uma lula da sociednde contra a possfvel cicdadc branca, cssa tentativa é fatal e sistematicamente
crncrg€ncia do Estado, luta cssa que já se travavaanlcs dn írustrada.
cheguda dos portugueses ,, costa atluntica.
,
Com o decorrcr dos séculos, a clizima~íiornnci9a cla
popula~áo Tupinambá e outros Tupf-Cuarnnf por docn~as,
cscraviclUo,a~úomissionúdncoercitiva e outroscataclismas
lcvarnma busca <la tcrrn scm males a se tornarn buscn
da terra scm brancos. Nao luí provavclmcnte registro mais
contundcnle que o de Dnrcy Ribeiro sobre Uirá, o Indio
Urubu-Kaapór que, vendo sua familia e comunidade di-
zimadas por doen~as contagios11s,sai cm busca de seu dcus
e da terca scm males e scm brancos, parn ncabnrcaptu-
rado como um ;mimal que, csvnziado de cre119n,é lev11 do
no suicídio.
Entretanto os movimcntos mcssianicos indígenasnáo
estilo limitados aos Tupf-Cuarnní. Entre os Tiikúna e os
Krahó, para ficar s6 con, dois cxcmplos, o messianismo-
a busca da tcrrn promctidn, n construcüo ele umn nova

-
91

7 s,~ao de luta por scus direitos fcl'idos que diio ~ nossa


história um cxemplo cabal de resistencia étnica.
Pode ser que suas culturas tenharn sido desfiguradas
- e isso tcin acorrido cm vários casos - , mas sua iden•
Conclusa.o ' tidade étnica permanece. Os Gavioes do Pará podcm usar
calculadoras para contabilizar sua produ~iio de castanha, •
mus continuam se afirmando nüo apenascomo índios, mas
como índios Gavioes, agora muis do que nunca. Usar
roupa, relógio ele pulso, sandália havaiana ou radiotran-
1 sistor faz um Indio se tornar branco tanto quanto um
colar de contas, urna pulseira de fibra, uma rede de algo-
diio ou urna panela de barro transformam um bronco cm
ínclio. O que coma é o modo ele ser, a visiio de mundo,
a atitude para com J\ vida, a socicdadc, o Universo, e
lj Através de quase cinco séculos, os povos indígenas
► isso niio se destrói táo facihnentc. Ncrn mesmo onde mis-
do Brasil térn resistido tcnazmcntc ~ mortc. Aqucles que
sionários ortodoxos mantém internatos, submctendo crian-
preveem a sua extin,1ío cm futuro próximo parccem nao
se dar conltl dessc longo proccsso de resistencia que, des- ~•s indígenas a um constnnte processo de endoutrinamcnto,
o resullado é a el'l"adica9iloda tradi~ao étnica. Na vcrdadc,
de J500, tcm posto a prova as cnergias e dcterminacilo
dos índios para sobrcvivcr. Gigantescas pressocs que vño é do Allo rio Negro, no Amazonas, onde padres sale-
sianos mantcm tais internatos, que vcm um dos fortes
desde matan,as intcncionais, transmissüode docn¡:as,usur-
pa~ito de terra a medidas mais sutis de desagrcgnciío,nao clamores indígenas pela preservacao da sua ídentidade.
tem sido suficientes para eliminar todas as etnias indíge- A li~iio que os povos indígenas nos dao é que a
nas ncste país. A imensa mortalidade, que teve o seu violencia do processo ele conquista niío aplainou a diver-
ponto mnis crítico talvez no inicio deste século, causou a sidade cultural e étnica. Eles nos mostram, na sua prática
extin¡:íiode muitos povos e reduziu drasticamcntc a dcmo- social e política, que a tradi9iio nüo é uma coisa fossili-
grafia de todos. A populacao indígena do Brasil é, na zada do passado que só pode pcrsislir no isolamento. Ao
vcrdudc, a menor dentrq os países sul-amcricanos, crn contrário, 1radi9üoé o conjunto de significados - cren9as,
proporcao A populacao branca majoritária. Porém os nos- valores, saberes- que um povo construiu e vni trn11 sfor-
sos Indios cxistem e estüo aqui p11rnficar. 111andode gera~iio a gera~iio. 6 esse processo de revitali-
za~ao conslnntc cla tradi~iio que dá a cada povo indígena
A avalanche do processo hislórico da conc¡uista aba- a for90 e o respaldo mental e emocional para continuar a
lou enormemente os povos indígenas, translormou suas preservar a sua espccificidacle étnica cm meio a todas as
culluras, mas nao os climinou. Por cima dos escombros vicissitudes que ndvcm do contato corn a sociedade na-
do morticínio do vários séculos, os indígenas brasileiros cional que o l'Odeia.Essa tradi9ao continuamente revivida
chegam quase no íim do século XX com uma tul clispo- é s6 deles e ninguém a pode tirar.
1

1
-
,;

Na sua Juta cm defesn própria contra o perigo da


aniquila~ao cultural, os indígenas come~am a ulilizar os
meios dos civilizados, seja pela vía político-partídária, seja
pela organiza9iiocm movimentossociais, ou lnn~ando milo
de recursos jurídicos. Mas nem por isso deixam de ser
8
índios'. Pelo contrário, é lon9ando milo ele mecanismos de
clefesados brnncos que eles se arirmam como scus iguais.
Vocabulário crítico
Portm uma coisa eleve se,· enfatizada. Ser igual nos bran-
cos nao qucr dizer abl'ir mao de sua identidade específica,
mns sel' reconhccido como legítimamente diferente. Essa
igualdade nao deve ser por mera semelhan9a, mas por
equivalencia. Neste país de tantas línguas e culttrras, a
Juta dos índios 6 pelo reconhccimentoele que suas lfnguas
e suas culturas síío tño válidas quanto a língua ponuguesa
e n dita "culturabrasilcira", cm si rncsmujfl táo divcrsifí• C/ci ou sib: grupo ou categoría de pcssoas que tra~am n
cada. e, alinal, o desejo de ver este país assumir cxplici- mesmn dc~cendencia,ou pelo pai ou pela miie, scm que
tamente aquilo que existe de fato, isto é, urna sociedade reconhe~am todos os elos genealógicos até o ancestral
pluriétnicn, capaz de comportar cm scu seio modos de ser comum.
social diversos e enriquecedores para toda a coletividaclc
nacional. Coivara: técnica agrícola que consiste na derrubada e quei-
mada de uma por~fto de mata, juntando-se, posterior-
mente, os troncos para nova qucirnoda, anterior no
plantío.
Couvade: estado ritual, scmelhantc ao resguardo, durante
o qual sao suspensas muitas atividades rotineiras como
lorma simbólica de preservar o bcm-estar de um filho
rccém-nascido ou de Ol1tro parcnte próximo.
E11dogami11: regra segundo a qual as pessoas devcm se
casar dentro de scu próprio grupo, scja ele cla, linhagem
• l ou nldcia.

Evita,,io: rclai;ao entre certos parentes a[ius, como sogra


e genro, na qual se enfatiza o clistanciamcntotradu2.ido
pela inibi~üo de se falarem, tocaren, ou particip..'lrem
de atividadcs conjuntas.

94

Exogamla: rcgtn segundo n qua! os pcssoas dcvcm se casar


lora de scu próprio grupo, scja ele c15, linhogcm 011
aldeia. 9
grupo ele pcssons que tra,nm a mesma descen-
L/11ha11e111:
dencia, ou pelo poi ou pela miic, scndo capazes de
rcconhcccr todos os clos genealógicos até o nnccstral
Bibliografiacomentada
comum.
mo: movimcnto socinl de cunho religioso que
M c.r,ia11/s
busca n rcnova,üo da ordcm do mundo através da,
prega,ocs e n~ocs tic urn pro(ctn capaz de guinr scu povo
pura u rcconstru,no da sociedadc.
M c1<1dcs:diviso<:sde umn socicdude cm duus punes com
atributos de ordem simbólica, cconOmica e social em GALVAO, Eduardo. l:.1wo11trode socletlndc.r; Indios e bran-
que, gcrnlmente, os mcmbros de uma devcm se casnr cos no Drasil. Río de Janeiro, Paz e Tcrra, 1979 .
como, membros da outru.
Colet5ncn de urtigos do untropólogo Eduardo Galv6o,
Poliginia: práticn de casumcnto de um homcm com muis focalizando aspectos da economia, organiLa,60 social
de uma mulhcr, opondo-sc ~ 1>0/ia111lrio,
casamento de e situa9ocs de contn10 do grupos indígenas cm vllrias
urna mulher com muis de um homcm. Ambas sno 1110- rcgiócs do Drnsil.
dnlidudes da poligamia. Ltv1-STRAUSS, Clnude. Tristes 1,·ópico.r. Lisl>on/SnoPaulo,
0/vn: pl'i!tica c1uc opós o cnsamcnto obriga o
Sl'rvi,;o tlo 11 Edi~c'ícs70/ Mortins Footes, 1981.
marido a trabalhar para os pais da mulher durante um Fuscinnntc livl'Odo viugens e rcflexoes antrnpológicas
período ele tempo determinado. dcsse antropólogo trances que vísitou diversos grupos
Socialir.afiJo: proccsso de transmissiío dos valores, usos e indígenas do Drnsil nos anos 30.
costumes de 11111asocicdudc para as novas gcra~clcs,por M,\USS,Marce!. Ensaio sobre a dádiva; forma e rnz6o da
mcio de instru~lio lormal e informal. trocn nos sociedades arcaicas. Tn: - . Sociologla e
0/ogia dravitlla11a: tipo de classilica~ao de pureotes
1'er111i11 011/ropologia. Silo Paulo, EPU/Edusp, 1974. v. 2.
que estabclccc a scpara,ao entre consagUfneose afins, Trnbalho clássico sobre o slgnilicodo da troca de pre-
indepcndente111enlcde casamcntos reali1ado\. sentes cm várias sociedades do mundo inteiro, real-
~ando a impo,tnnciu do principio ele l'Cciprocidadc.
M>GGHRS,Bctty. Amazónin: a il11s<1u Rlo
de 11111/H11·11íso.
de Junelro, Civillzn~fioBrnsilciru, 1977.
)
96
t O P1n1am1n10 medteWil
lnMO. ,Arloo
T1111111
R(t¡Jlrj do Luce
Trabalho sobre a uliliza~ao dos recursos da Amazonia 0 IOfl'larlCII JJ6oarteoo
pelas sociedades indígenas, e também sobre o proces- Ml,lo GonlAl!ti
du •••11
Hl11'1t1• 11otn11
so de extin~áo de grupos amazonicoscomo os Tapajós. lº"• r1eg 1"º .- Mtl!<IO'!tn
1 t.l111iaí Olli~11
VT11)rli¡
MELATTI , Julio Cezar. Indi os do Bra.,i/. 4. ed. SeoPaulo, Hl•lOÑ • tnuÑO I
D• tdaót da Ptidr1 1
Hucitcc, l 983. ldad1 do Rock
Vll!d>r,\Acin
lJ1ió1I
Pó1,modlmltmo • lt1,1t\lr•
Panorama gcn1I das carnclerís1ieas sociais, cconomi- Dl),,'f\'Q(I
P,o,,l~IIAtho
cas, religiosas dos índios brnsilciros aprcscn1ado cm M•• Or 0o1 Etc. , Etc .. ,
· Jlkofw..,do dlflculdld ..
!J,an1tV~klM I ó¡;t,, tJ
linguagem acessível pnrn um público nao especiali- St1llll'lQOVJ1•
q1,et Ruto
zado. ......,.,
o lfcwclNtt •• quettlo
t,tanu111
Co,rnlu de .AncraOO
Rrnurno, Darcy. Os í11diose a ci viliw~·,io. Rio de Janciro, A OU...,. ,._ Oficie An1k1•
V/!IIOOIAlv!lo P..11t1
ro dt,
Civiliza~ao Brasilcira, 1970. Sour•
lottoch,~o. drama1u1gila
Contundenlc exposi~ño do proccsso de domina~ftodos P-n,\!11.11
11 omnl

A "tqul11 _,...hlttil1l1
indios do Brasil pela sociedadc nacional e scu avun~o M111!11do Pila• de
A·a.íl~V1~111,
pelos tcrritórios indígenas alravés ele várias frenlcs N1hll d!'.>llcd r,u d<JC11nli,,
Pohtolti &
de cxpansiio - agrícola, pasloril ele. O eslilo clo• Y11
111Mllna A1or1l<h,i,JI)'
A fltW'Oll911>
qlicnte póc cm relevo a 1rogéelia do processo his16- " andu11,1-,
J<1!16JolMt,1·de l>mt,oe
rico que dizimu e oprime os povos indígenas. A 11>-Jn
Mlrol)Ottlgl 1 lpllClildl
F 'llh• ¼xlr,fm
SAIILINS, Marshall. Svcietfnrlcs tribais. Rio de Janeiro, o oomp lH:Odt tdlpo
hMJkl!n Golt'1,11ib
Zahar, 1970. Al fn.illdQ
Jo, ~°'>tlrl C MQilo
Trabalho ele f1111bi
to gcral ()UC trnla de ))OVOS "1ribais" "-P 1•Mi.ta~o polltioa
f'A 10 1omnndc, t11t1,:/IO'lj10
cm várias panes do n1uncl o, procurllOdoressaltar dc- Ot0polúc. do 8ta1II
nornínadorcs comuns dcssc "lipo" de sociedades. Bm- Mll'l-Jl'I Co11~4 (1ft A'1d1~11!
06iM10i111te16rld1
born cocrente, o livro aprcscnta algurnas cliíiculdades A1:Qilira...So,u1,
nao só de comprccnsao para os nfio especialis1as, 1'11 An•llee dti ht11.. 1.hnMto1 e
flll/J d• ,.tOrflO
como também de caracleriza~ao dos povos indígenas 1 lfifl
Petko Sct1..c,u
11
Artde u.ti"'•
da Am éric a do Sul. Aobe1 10 t.o1»10 Coir ..
1 'r,'l !!!3~/J
POrllli!l•H• no
SW\,oEli1
1 ',.. ~ ,•ttlmo• llf,v0111lco1

¡ '",,,
C. •Wtlllo
0 C!O
lldlwio 1M~•(fllfM
N1tl10nd(I C.t10 Sen,,
tnicl131o 10 L-.lm
lmp,ce.10 por Zell& , Al!1'18(1e C.ooto
W. lta t h & Cl11 Ud 111.
l 1/ ,1 t ~ii11tU&t,1lcnomliku •
1:on11•1clon•
Slel\l 0 1twoile1 Tt1;jl't11

l 11·1 O •~o

1 , ..,
.,...
Ace 111
l#b&no
Aoi.-10 tot11111> CouA,;
11~10 ~•rice •m
AmllilOoolneln HrM.ly

Você também pode gostar