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BOLETIM I 72

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jan./jun. 2018

Incluída no SNPG – nível A


(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
REITORA
Berenice Quinzani Jordão
VICE-REITOR
Ludoviko Carnasciali dos Santos
DIRETOR DO CLCH
Ronaldo Baltar
VICE-DIRETORA
Elaine Fernandes Matheus
REDAÇÃO
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira

CAPA
Bianca Matos Ferreira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E COMPOSIÇÃO


Maria de Lourdes Monteiro

CONSELHO EDITORIAL
Volnei Edson dos Santos
Paulo Bassani
Celso Vianna Bezerra de Menezes

PARECERISTAS
Dr. Francisco Moreno Fernandes - Univ. Alcalá de Henares - España
Dr. Aquiles Cortes Guimarães - UFRJ
Dr. Jesús Castilho - Univ. de Valladolid - España
Dr. José Oscar de Almeida Marques - UNICAMP
Dr. José Nicolau Julião - UFRRJ
Dra. Salma Ferraz - UFSC
Dr. Otávio Goes de Andrade - UEL

PUBLICAÇÕES
BOLETIM, CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – LONDRINA-PR. - BRASIL, 1980

1980, (1) 1993, (24,25) 2005 (48,49) 2018, (72, )


1981, (2,3) 1994, (26,27) 2006, (50,51)
1982, (4,5) 1995, (28,29) 2007, (52,53)
1983, (6,7) 1996, (30,31) 2008, (54,55)
1985, (8,9) 1997, (32,33) 2009, (56,57)
1986, (10,11) 1998, (34,35) 2010, (58,59)
1987, (12,13) 1999, (36,37) 2011, (60,61)
1988, (14,15) 2000, (38,39) 2012, (62,63)
1989, (16,17) 2001, (40,41) 2013, (64,65)
1990, (18,19) 2002, (42,43) 2014, (66,67)
1991, (20,21) 2003, (44,45) 2016 (68,69)
1992, (22,23) 2004, (46,47) 2017 (70,71)
ISSN 0102-6968

I
BOLETIM 72

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jan./jun. 2018
Incluída no SNPG – nível A
(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina – nº 72 – p. 1-202 jan./jun. 2018
Indexado por / Indexed by
ISSN 0102-6968
Sociological Abstracts SA
Linguistics and Language Behavior Abstracts LLBA

Toda correspondência deverá ser enviada à

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA


Centro de Letras e Ciências Humanas
Campus Universitário – Cx. Postal, 6001
CEP: 86051-990 – Londrina-PR.

boletimhumanas@uel.br
Fone / Fax:(43) 3371-4408

Publicação semestral / Bi-annual publication


Solicita-se permuta / We ask for exchange

Biblioteca Central da UEL


Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada pela Biblioteca Central da UEL


Boletim / Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade Estadual de

Londrina. – V. 1 (1980)- . – Londrina : a Universidade, 1980- .
v.; 21 cm

Semestral

Descrição baseada em: v. 25 (jan./jun. 1994)

ISSN 0102-6968

1. Sociologia – Periódico. 2. História – Periódico. 3. Letras – Perió-


dico. 4. Filosofia – Periódico. 1. Universidade Estadual de Londrina.

CDD 301.05
CDU 301:4:I(05)
SUMÁRIO

REPRESENTAÇÕES SOCIOCULTURAIS NA PROPAGANDA


INFANTIL: UMA ANÁLISE DISCURSIVA............................. 7
Ana Carolina Bernardino
Valéria Di Raimo

O A P R E N D E R C O M O “ M O D O D E AG I R ” E A
CONTINUIDADE ENTRE MEIOS E FINS NA FILOSOFIA
DA EDUCAÇÃO DE ANÍSIO TEIXEIRA............................... 31
Claudiney José de Sousa

A AÇ ÃO E A S E S T R AT É G I A S A D OTA D A S P O R
PROFESSORES-AUTORES NA PRODUÇÃO DE MATERIAL
DIDÁTICO IMPRESSO PARA UM CURSO EM EaD............ 51
Maria Cristina Ruas de Abreu Maia
Anny Karoline Santana Silva
Jaini Muniz de Aguiar

A ILUSÃO DA REVERSIBILIDADE COMO PROPRIEDADE


DO DISCURSO RELIGIOSO.................................................. 77
Rosemeri Passos Baltazar Machado
Éder Wilton Gustavo Felix Calado

AS METODOLOGIAS DO ESTUDO DE CASO E DA


PESQUISA PARTICIPANTE PARA AVALIAÇÃO DO USO DA
INTERNET COMO FONTE NO JORNALISMO IMPRESSO 101
Mario Benedito Sales
Márcio Roberto de Araujo (in memoriam)
Miguel Luiz Contani

SENTENÇA DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE: UMA


ANÁLISE ARGUMENTATIVA................................................. 137
Esther Gomes de Oliveira
Helena Cristina Lübke
Talita Canônico e Silva

5
“PONTA DE LANÇA”: A METÁFORA COMO ARGUMENTO
NA MÚSICA ............................................................................. 157
Eva Cristina Francisco
Sthefany Camargo dos Santos

SE DEUS NÃO TIVER FACEBOOK, MUITOS POSTS FORAM


EM VÃO! ................................................................................... 173
Lisiane Freitas de Freitas
Adriano Alves Fiore
Silvia Regina Tacla

NORMAS................................................................................... 201

6
REPRESENTAÇÕES SOCIOCULTURAIS
NA PROPAGANDA INFANTIL:
UMA ANÁLISE DISCURSIVA

Ana Carolina Bernardino (PG-UEL)1


Valéria Di Raimo (PG-UEL)2

RESUMO: Este trabalho está fundamentado nas perspectivas teóricas da Análise do


Discurso de linha francesa e tem o objetivo de analisar três propagandas da boneca
Barbie, retiradas de canais do Youtube, na internet, que foram selecionadas a partir de
sua época de veiculação, sendo a primeira de 1959, a segunda de 1992 e a terceira de
2015/2016. As diferentes épocas demonstram o tipo de sociedade que podemos enxergar
por meio das transformações que as bonecas e seus acessórios sofreram, além de remeter
às condições sócio-histórica e cultural de cada período. Ao refletir a respeito dos aspectos
extralinguísticos, estudaremos, por meio das análises, os efeitos de sentidos relacionados
às condições de produção e às formações ideológicas do trio de filmes publicitários.

Palavras-chave: Efeitos de Sentidos. Propaganda. Condições de produção. Formações


ideológicas.

ABSTRACT: This work is based on the theoretical perspectives of the French Line
Discourse Analysis with the aim of analyzing three advertisements of the Barbie doll,
selected from Youtube channels, on the internet, which were chosen from the time of its
placement, being the first in 1959, the second in 1992 and the third in 2015/2016. The
different times demonstrate the kind of society that we can see through the transformation
that the dolls and their accessories suffered, as well as refer to the socio-historical and
cultural conditions of each period. Reflecting on the extralinguistic aspects, we will study,
through the analysis, the effects of meanings related to the conditions of production and
to the ideological formations of the trio of advertisements.

Key-words:   Speech Effects. Advertisement. Conditions of production. Ideological


formations.

1
Mestranda (bolsista CAPES) do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Londrina – UEL – Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: a.carolina.
bernardino@gmail.com
2
Mestre em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina – UEL – Londrina,
Paraná, Brasil. E-mail: vdiraimo@yahoo.com.br

7 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
Introdução

Com base teórica respaldada na Análise do Discurso de


linha francesa, nosso trabalho tem como objetivo analisar os
discursos extraídos de peças publicitárias3 destinadas ao público
infantil, mais especificamente, às meninas que gostam de brincar
com as bonecas Barbie.
Nesta análise, pesquisamos os efeitos de sentidos
produzidos por três filmes publicitários ao longo dos anos
(1959, 1992 e 2015/2016), bem como os aspectos ideológicos e
sócio-históricos, pois escolhemos as propagandas baseadas nas
questões relacionadas à sua época de veiculação, por apresentar
características da boneca conforme a moda de cada período,
representando, assim, diferentes formações ideológicas (FIs) e
condições de produção (CPs).
Realizamos um levantamento bibliográfico para a
elaboração do referencial teórico e das discussões da análise.
A partir de então, nossa pesquisa partiu da teoria aos dados,
analisando o corpus escolhido (discurso publicitário).
Para tanto, organizamos nosso trabalho da seguinte maneira:
primeiramente, discutimos a publicidade e seu direcionamento ao
público infantil. Logo após, elaboramos as elucidações teóricas
advindas da Análise do Discurso de linha francesa, enfatizando
alguns aspectos como as condições de produção e as formações
ideológicas. Seguimos, então, para a análise do corpus, as três
propagandas da boneca Barbie, e refletimos a respeito dos diversos
efeitos de sentidos que são produzidos, levando em consideração
as diferentes épocas. Por fim, elaboramos algumas reflexões acerca
do trabalho empreendido.
3
Peças Publicitárias, comercial, filme publicitário, discurso publicitário, propaganda foram
utilizadas como sinônimos, pois nossa pretensão não é explorar os conceitos, mas analisar
os efeitos de sentido presentes nesse tipo de discurso: o publicitário.

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A propaganda e seu encaminhamento ao público infantil

Iniciamos este item, esclarecendo o nosso posicionamento


quanto aos conceitos de propaganda e publicidade, ou seja, eles
serão usamos como sinônimos. Para Sant’Anna, Rocha Junior e
Garcia (2013, p.60), “A publicidade é uma técnica de comunicação
de massa, paga [...], geralmente para vender produtos ou serviços”.
Para Malanga (1987), a propaganda, além de destinada
ao indivíduo e gratuita, tem o caráter ideológico, pois apela para
os sentimentos morais, religiosos, políticos, entre outros. Já a
publicidade, segundo o mesmo autor, tem em sua essência a
questão comercial, pois, ao dirigir-se à massa, apela ao consumo,
demonstrando fatores relacionados ao conforto, prazer etc.
Segundo Machado e Cordeiro (2013), o objetivo da
publicidade é a divulgação de um produto ou serviço, porém é a
propaganda que gera a influência ou a manipulação ideológica,
pois

Ao falar em publicidade é comum associar o gênero à propaganda,


ou seja, à manipulação, às estratégias, principalmente de
convencimento, com a finalidade, nem sempre imediata, de
consumo. É sabido que há autores e linhas de estudo que preferem
tratar publicidade e propaganda como gêneros diferentes, ou pelo
menos, com funções diferentes. Pensam a publicidade como algo
mais voltado à criação e ao resultado imediato por ela produzido;
e a propaganda como um processo cujo produto é gerado a longo
prazo (MACHADO; CORDEIRO, 2013, p. 49).

A informação que uma propaganda transmite tem por


finalidade seduzir os compradores em potencial para determinado
produto ou serviço. Além disso, a propaganda também está
destinada a reunir adeptos por alguma causa.

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De acordo com Machado e Cordeiro (2013) não se pode
considerar a propaganda como algo simples, ela é composta por
elementos orais, escritos e, também, imagéticos. É construída a
partir e para a sociedade, refletindo a época em que foi produzida,
o momento, as necessidades e os desejos do social, além de
representar a forma de ver e viver o mundo.

Há, cada vez mais, no gênero publicitário, especificamente em


peças publicitárias, a utilização de estratégias que associam o
produto anunciado ao cotidiano da sociedade, ou seja, à forma
como os indivíduos interagem; afinal, é esse o objetivo desse tipo
de gênero: atender a alguma necessidade. Tal satisfação ocorre por
meio de estratégias que veem na manipulação e na persuasão os
meios para que o interlocutor enxergue e reconheça no discurso de
determinada peça publicitária a sua própria ideologia “o sujeito se
reconhece/forma a partir da enunciação do outro”. (MACHADO;
CORDEIRO, 2013, p. 51).

Segundo Meyer (2008, p. 9), “Para conseguir boa


comunicação, em geral, e boa eficácia argumentativa, em
particular, é indispensável que o locutor se preocupe acima de
tudo com o modo de pensar, os conhecimentos e as concepções
do destinatário”. Nesse sentido, a propaganda infantil promove
intimidade com seu interlocutor - as próprias crianças, os pais e
as mães, utilizando determinadas estratégias linguísticas, sons e
imagens, reforçando valores ideológicos já viventes, estabelecendo
novos valores à sociedade e gerando efeitos de sentido.
A propaganda infantil começou a se desenvolver a partir de
1950 por conta do avanço da tecnologia e, com o passar do tempo,
vem se tornando cada vez mais convincente e impactante. No início,
quando a televisão atingiu a soberania midiática (década de 1950),
os Estados Unidos passaram a reproduzir programas animados

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da Disney e os comerciais, exibidos durante a programação,
apresentavam brinquedos como armas e bonecas, em específico,
a boneca Barbie. Na década de 1970, aumentou a quantidade de
desenhos animados em exibição, consequentemente, elevando
a exposição de anúncios para crianças. As indústrias passaram
a fabricar brinquedos que caracterizavam os personagens dos
desenhos animados, e os canais de programação infantil foram
se destacando e ganhando força com o surgimento da televisão a
cabo, a partir da metade da década de 1980.
Conforme os estudos de Scheibe (2009), as crianças mais
novas têm dificuldade de reter informações importantes e prestam
atenção em aspectos irrelevantes de uma programação televisiva.
Dessa forma, o conteúdo essencial para que a história faça sentido
é perdido, pois ela estará atenta a outros aspectos, como som, cores
e movimento dos personagens. A autora afirma que a criança
pouco questionará um anúncio ou uma história de ficção, pois ela
não tem maturidade para julgar a credibilidade do que está sendo
anunciado e debruçará sua atenção no que poderá, provavelmente,
saciar seus desejos imediatos, como um brinquedo exposto com
cores chamativas e a musicalidade, por exemplo.
Segundo Jennings (2009), uma criança de cinco anos
consegue distinguir comerciais de outros programas, mas ainda
não entende a finalidade persuasiva. A partir dos sete anos, elas
passam a reconhecer o propósito dos anúncios e a prestar mais
atenção nos detalhes. A autora faz referência aos doze anos
como a idade em que “a maioria das crianças já vivenciou todas
as características do comportamento de consumidor” (2009, p.
136). Imagens chamativas e textos verbais curtos promovem
instantaneidade quanto à compreensão da mensagem publicitária.
A propaganda infantil costuma apresentar caráter lúdico para

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que a atenção e o interesse sejam despertos e, assim, o leitor ou
o telespectador sentir desejo pelo produto. O cômico, a beleza, o
conto de fadas, a luta para a conquista, entre outros aspectos são
tratados pelos anúncios para aproximar o público.
Em seus estudos a respeito da construção da linguagem
publicitária dirigida ao público infanto-juvenil, Ceccato (2001,
p.16) afirma que a propaganda para crianças e adolescentes
valoriza os apelos visuais mais do que o texto verbal, pois
“a mensagem ilustrada oferece à criança e ao adolescente a
oportunidade de poderem demorar sobre um detalhe, de fazerem
comparações, enfim, de se imaginarem fazendo uso do produto
anunciado ou possuírem tudo o que o envolve”. O texto não verbal
é compreendido por qualquer faixa etária e o posicionamento da
imagem com o uso de determinadas cores prende a atenção do
leitor. Ainda, de acordo com a autora, o texto verbal destaca os
elementos visuais, comprovando a veracidade da propaganda, “ele
diz o que deve se ver, desempenhando cada unidade lingüística
um papel altamente funcional” (CECCATO, 2001, p. 17).
Portanto, a propaganda é um produto da prática social,
é um meio utilizado pelas empresas para vender suas ideias e
seus produtos, um meio para expressar o discurso. O discurso
publicitário produz efeitos de sentidos que serão assimilados
pelos sujeitos, refletindo as condições de produção e as formações
discursivas presentes em sua formação social e ideológica.
Atravessada pelos efeitos de sentido da propaganda, a criança
passa a fantasiar a ideia transmitida pelo discurso, misturando
seu mundo real com o fantasioso, aspirando por valores e, até
mesmo, atendo-se a estereótipos difundidos pelos anúncios. A
seguir, faremos considerações a respeito da Análise do Discurso,
objetivando respaldar a análise das três peças publicitárias da
boneca Barbie.

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Análise do Discurso: algumas elucidações teóricas

A Análise do Discurso (doravante AD) surgiu como linha


de pesquisa na França, por volta dos anos de 1960, com Michel
Pêcheux. A AD consiste em uma ciência voltada a analisar a
exterioridade da língua, primeiramente, levando em consideração
as ideologias, as condições de produção e os fatores sócio-histórico,
aspectos sob os quais os discursos são produzidos, justificando,
assim, os diversos efeitos de sentido que podem ser captados.
Orlandi (2015, p. 13) acrescenta que a AD “trata do
discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia
de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é
assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo
do discurso observa-se o homem falando”. A autora reafirma a
preocupação da teoria com o social, considerando que é nesse
campo que a língua faz sentido. Nessa perspectiva, as condições de
produção (CPs) abrangem o contexto sócio-histórico e ideológico,
tudo aquilo que envolve o contexto exterior do discurso.
Charaudeau e Maingueneau (2014, p. 114) explicitam
as CPs como “um dispositivo em que as situações objetivas do
locutor e de seu interlocutor são desdobradas em representações
imaginárias dos lugares que um atribui ao outro”. Verificamos
a presença, nas práticas discursivas, da assimetria de poder
demonstrada por sujeitos inseridos na história, a partir de suas
relações sociais.
Resumidamente, as CPs podem ser consideradas as
circunstâncias em que ocorre a enunciação, aquele contexto do
momento enunciativo. E, dentro dessa perspectiva, incluem-se os
aspectos sócio-históricos e os ideológicos, pois

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É certo que um sujeito falante é sempre parcialmente
sobredeterminado pelos saberes, crenças e valores que circulam
no grupo social ao qual pertence ou ao qual se refere, mas ele é
igualmente sobredeterminado pelos dispositivos de comunicação
nos quais se insere para falar e que lhe impõem certos lugares, certos
papéis e comportamentos (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,
2014, p. 115).

Dessa forma, Orlandi (2015, p. 30) acrescenta que

o dizer não é propriedade particular. As palavras não são nossas.


Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em outro
lugar também significa nas ‘nossas’ palavras. O sujeito diz, pensa
que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo
pelo qual os sentidos se constituem nele.

Nesse sentido, temos a formação ideológica (FI) que é a
responsável, junto com as CPs, em condicionar o sujeito a assumir
determinado posicionamento e não outro. Logo, a ideologia vai
determinar o indivíduo ou seu grupo social a um conjunto de ideias
e visões de mundo que irão definir sua forma de comportamento
e os modos de dizer e não dizer, portanto

[...] a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos. Como a


ideologia é eterna, vamos suprimir a forma da temporalidade na
qual representámos o funcionamento da ideologia e afirmar: a
ideologia sempre-já interpelou os indivíduos como sujeitos, o que
nos leva a precisar que os indivíduos são sempre-já interpelados
pela ideologia como sujeitos, e nos conduz necessariamente a uma
última proposição: os indivíduos são sempre-já sujeitos. Portanto, os
indivíduos são «abstractos» relativamente aos sujeitos que sempre-já
são (ALTHUSSER, 1980, p. 102).

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Para Charaudeau e Maingueneau (2014), a ideologia é
fundamental na Análise do Discurso, pois é a responsável por
representar as relações estabelecidas pelos sujeitos, ou melhor, na
posição sujeito que o indivíduo assume, quando interpelado por
tal ideologia. É essencial ressaltar que não existe sujeito sem uma
ideologia que o constitua e o guie, sendo todo discurso proferido
por qualquer sujeito, seja atravessado por determinada bagagem
ideológica, já que

A ideologia [...] é um “fato” social justamente porque é produzida


pelas relações sociais, possui razões muito determinadas para surgir
e se conservar, não sendo um amontoado de ideias falsas que
prejudicam a ciência, mas uma certa maneira da produção de ideias
pela sociedade, ou melhor, por formas históricas determinadas pelas
relações sociais (CHAUÍ, 1980, p. 31).

As palavras não possuem sentido por si só, os sentidos
construídos estão sempre à deriva, serão determinados de uma
forma ou de outra segundo as regras que regulam os discursos,
ou seja, a partir de uma formação discursiva (FD) determinada.
Por esse motivo, os efeitos de sentidos podem ser múltiplos, pois
irão depender dos atravessamentos e posicionamentos assumidos
pelos sujeitos.

Análise do Corpus

Nosso trabalho pretende analisar três filmes publicitários da


Boneca Barbie, brinquedo produzido pela empresa estadunidense
Mattel, em 1959. Barbie, a boneca mais vendida no mundo,
diferentemente das bonecas que representam bebês, tem o corpo
personificado em uma mulher adulta, com um padrão específico:

15 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
alta, magra e bonita. No ano de sua fabricação, foram lançados
dois modelos da boneca, uma com os cabelos loiros e outra com
os cabelos castanhos, sendo sucesso e permanecendo como único
modelo de mercado durante anos, somente a de cabelos loiros. A
cada ano, novos modelos de Barbie e novos acessórios são criados
para acompanhar a modernidade de cada época. Atualmente, há
filmes animados, peças de vestuário, objetos escolares, entre outros
produtos com a imagem da Barbie.
Várias gerações foram e são influenciadas pela boneca
devido ao padrão de moda e de beleza estabelecido por meio de
sua imagem: mulher bonita, inteligente e delicada. Nosso objetivo
é analisar três filmes publicitários veiculados em épocas diferentes
para estudar os efeitos de sentido e as representações culturais
destacadas em cada um deles, evidenciados a partir das formações
ideológicas (FIs) e das condições de produção (CPs) que serão
responsáveis por legitimar os posicionamentos assumidos pela
mulher em cada época.
O filme publicitário de 1959 (Anexo A), em preto e
branco, apresenta várias bonecas com diversos modelos de
roupas. Não há uma cena específica, as bonecas estão dispostas
em uma escadaria representando estilos diferentes: vestido de
noiva, vestido longo, vestido na altura do joelho, vestido justo,
saia lápis, calça, casaco, blusa tomara que caia, salto alto, chapéus,
luvas, bolsas, brincos, óculos e a atração da propaganda – o maiô
de banho. É possível observar que o comercial, o primeiro após o
lançamento da boneca, indica determinado estereótipo de beleza,
evidenciando a relevância atribuída à maneira de se vestir e ao
padrão de comportamento estabelecido para a mulher a partir
de suas vestimentas e de sua postura, reveladas pelos tecidos
requintados e cabelos bem penteados, demonstrando sofisticação,
fator predominante da elite da época.

16 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
As CPs atreladas às formações ideológicas levam a
representação de certo posicionamento social; em sentido estrito,
com base em Orlandi (2015), é a elegância da classe alta, os
que têm, inclusive, o poder aquisitivo maior para o consumo
do brinquedo, dando ao sujeito que consome a sensação de
pertencimento àquele determinando grupo social – representado
pela boneca. Baccega (2007, p. 34) acrescenta que “a ideologia só
existe na prática social. Ela se constitui num sistema de valores,
pleno de representações, de imagens – modo de ver o mundo,
modo de ver a sociedade, modo que o homem vê a si e aos outros”.
Nesse sentido, observamos, por meio do discurso propagandístico,
que a sociedade necessita pertencer ao lugar que está sendo
representado.
A propaganda da Barbie de 1992 (Anexo B), em cores
vibrantes, apresenta crianças brincando com as bonecas da
campanha Totally hair Barbie. Acessórios, como: pente, gel, tiara
e fita acompanham a boneca que possui cabelos extremamente
longos e despojados; além disso, a boneca usa brincos grandes,
sapato de salto e um vestido tubinho, curto e colorido, no entanto,
o enfoque é no cabelo. As crianças, atrizes do comercial, brincam,
penteando e modelando os cabelos da boneca de várias formas
diferentes, indicando maior liberdade e modernidade em relação
ao comportamento da mulher, e demonstrando as mudanças
sócio-históricas ocorridas entre 1959 e 1992, capazes de demarcar
FIs distintas, pois o ideal de beleza assume novos posicionamentos,
a mulher de antes estava atrelada à elegância e à sofisticação,
assumindo um papel mais discreto socialmente, enquanto a mulher
de 1992 está mais descontraída, assumindo maior liberdade,
podendo usar cabelos soltos, roupas mais curtas e leves.
Ideologicamente, verificamos a repetição de um padrão
de beleza feminino – magra, alta e bonita, sendo é preciso copiar

17 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
um modelo e seguir determinada receita para que a menina seja
“totalmente legal” e “totalmente gata”, conforme anunciado pela
propaganda. Orlandi (2004, p. 105) acrescenta que

a identidade, como a considero, não é, portanto, imanente, não


é consubstancial ao indivíduo, ela é resultado de processos de
identificação a partir do modo como o indivíduo é interpelado
em sujeito e individualizado pelo Estado (pelas instituições). A
identidade é um movimento na história.

A campanha de 2015/2016 (Anexo C) exibe várias


profissões representadas por crianças (meninas), uma professora
universitária, uma veterinária, uma treinadora de futebol, uma
executiva e uma paleontóloga. Todas exercem suas profissões
perante adultos e apresentam-se seguras e confiantes, refletindo
o posicionamento da mulher do século XXI, atuante no mercado
de trabalho e livre para fazer suas próprias escolhas. O filme
publicitário é finalizado com uma das crianças brincando de ser
professora, em seu quarto, com suas Barbies, e conclui, com ênfase,
que “quando uma menina brinca com Barbie, ela imagina tudo o
que ela pode conquistar”.
Essa propaganda representa a mulher moderna e,
diferentemente das outras duas, propõe o slogan “Você pode
ser tudo que quiser. Barbie” que caracteriza as condições sócio-
históricas atuais, reflexo das lutas feministas oriundas da década
de 1970, tais como maior espaço no mercado de trabalho, lutas
sindicais e, também, na luta contra a violência para com as
mulheres, bem como maior liberdade sexual.
Alguns pontos devem ser ressaltados, a questão do preço,
por exemplo, é revelado apenas na primeira propaganda, talvez por
ser essa a propaganda que lançou a boneca, ou mesmo por ser um
reflexo da sociedade capitalista. Além disso, a terceira campanha

18 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
traz uma inovação, mesclando etnias ao divulgar as bonecas,
fruto de uma nova sociedade, que começa a se preocupar com as
misturas de raças, abrindo espaço para novas discussões e novas
formas de olhar o outro, decorrentes das grandes diversidades
culturais.
Levando em consideração os três filmes publicitários
e a época de veiculação, observamos, na ordem cronológica, a
determinação do histórico-social na constituição dos anúncios.
Em 1959, por exemplo, havia a preocupação com a elegância,
com a sofisticação e com a riqueza, reveladas pelas vestimentas
das bonecas – reflexo da alta sociedade da época. Já, em 1992,
verificamos uma mudança significativa quanto à representação
social assumida pela mulher, a liberdade começa a ser revelada
pelo uso dos cabelos soltos, de roupas justas e curtas. Por fim, a
campanha de 2015/2016 demonstra maior liberdade feminina,
enfatizando a mulher não apenas por sua aparência, mas
considerando seus desejos de realização profissional.
Nessa perspectiva, segundo Orlandi (2015, p.78), vale
ressaltar que “a historicidade deve ser compreendida em análise
de discurso como aquilo que faz com que os sentidos sejam os
mesmos e também que ele se transforme”, logo, percebemos, que
a historicidade trouxe mudanças relevantes ao papel da mulher
perante a sociedade.
Sendo assim, compreendemos, de acordo com Chauí (1980,
p. 20) que

a história não é sucessão de fatos no tempo, não é progresso das


idéias, mas o modo como homens determinados em condições
determinadas criam os meios e as formas de sua existência social,
reproduzem ou transformam essa existência social que é econômica,
política e cultural.

19 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
Por fim, as análises feitas indicam momentos sociais
diferentes, sujeitos que se comportam conforme a ideologia de
sua época, fazendo com que o discurso signifique por meio das
CPs vigentes, redefinindo a linguagem a cada novo comercial
apresentado. As análises procuraram demonstrar perspectivas
conservadoras e, também, inovadoras, conforme cada momento
histórico, porém, conferimos que todos os filmes publicitários
selecionados para este trabalho possuem objetivos semelhantes:
representar a necessidade do consumismo, da beleza e da
juventude, uma vez que são os atravessamentos do momento.

Considerações

Os anúncios não estimulam na criança somente o desejo
pela aquisição do brinquedo, mas também os padrões estéticos
e o status social proporcionados pelas imagens, valores que,
provavelmente, serão considerados pela jovem por toda a sua vida.
Com base no aporte teórico escolhido para este artigo, foi
possível estudarmos a relação entre as condições de produção
e a ideologia presentes no discurso publicitário, em especial,
dos anúncios direcionados às crianças, evidenciando o seu
funcionamento, ao longo do tempo, no meio social.
De acordo com Possenti (2009, p. 14), com a Análise do
Discurso

aprendemos a nunca ler um texto isoladamente (não se faz análise


do discurso de um texto), a nunca ler um texto considerando seu
material verbal (aprendemos a relacioná-lo a seu “exterior”), a nunca
tratar a linguagem como se fosse transparente (aprendemos a supor
sempre que a interpretação é um trabalho, já que as palavras não
remetem jamais às coisas e não têm sentidos unívocos), a nunca

20 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
supor que o texto (ou mesmo vários) fornece todas as condições de
sua leitura (aprendemos sempre a supor que, mesmo no domínio
textual ou até mesmo no do enunciado mais restrito, é necessário
acionar mais de um fator relevante – considerar os pressupostos, a
intertextualidade...) etc.

Ressaltando que as análises foram feitas a partir de dada


condição específica, atravessada por determinada ideologia, por
isso, outros tantos efeitos de sentidos podem surgir, Orlandi (2015,
p. 25) acrescenta:

uma análise não é igual a outra porque mobiliza conceitos diferentes


e isso tem resultados cruciais na descrição dos materiais. Um mesmo
analista, aliás, formulando uma questão diferente, também poderia
mobilizar conceitos diversos, fazendo distintos recortes conceituais.

Pela perspectiva traçada ao longo desse trabalho,


identificamos que o conceito de condição de produção e de
formação ideológica são fundamentais para a determinação
dos efeitos de sentidos e, como já mencionado, esses efeitos
de sentidos, ainda que não sejam qualquer sentido, podem ser
diversos, afinal, os sujeitos não são atravessados pelas mesmas
determinações ideológicas, evidenciando que o processo de
construção dos sentidos não é simples, mas uma unidade complexa
que depende, além da língua, de sua exterioridade.
As análises indicaram momentos sociais distintos, nos
quais os sujeitos se comportam, também, distintamente, pois
são interpelados pela ideologia e pelo momento sócio-histórico,
redefinindo os dizeres a cada novo dizer. Além disso, a influência da
boneca Barbie é marcante, revelando determinado atravessamento
ideológico da sociedade, que consiste na preocupação com a beleza,
criando, assim, um padrão estético que assujeita muitos sujeitos.

21 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
Referências

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ao público infanto-juvenil. Ivaiporã: Midiograf, 2001.

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Fabiana Komesu. 2 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2014.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense,


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Tradução Sandra Maria Mallmann da Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2009.

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A metáfora no discurso propagandístico: entre a manipulação e a
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Discurso. Tradução de Freda Indursky. 3 ed. Campinas, SP: Pontes:
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Sírio Possenti. 2 ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

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MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (re)ler Michel


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2003.

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Tradução de Marcos Marcionilo. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial,
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MEYER, Bernard. A arte de argumentar. Tradução de Ivone C.


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Fernando Dabul. Propaganda: teoria, técnica, prática. 8.ª ed. ver. e ampl.
São Paulo: Cengage Learning, 2013.

SCHEIBE, Cindy. Piaget e os Power Rangers: O que as teorias da


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a mídia? In: MAZZARELLA, Sharon R. et al (org.) Os jovens e a
mídia: 20 questões. Tradução Sandra Maria Mallmann da Rosa. Porto
Alegre: Artmed, 2009.

24 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
ANEXO A

Transcrição do Filme Publicitário - Boneca Barbie 1959 - First


ever Barbie

Song: Barbie, you are beautiful. You make me feell... my Barbie


doll is really real. Barbie fallen so steeped. Her clothes that figure
looks so neat. Her dance… sing off the ring the bell. A party she
will cast a spell person has been blowing below and all the gadgets
gal with though.
Man voice: Barbie dressed for swimming front is only three
dollars. For lovely fashions range from one to five dollars. Look
through Barbie wherever dolls are sold.
Song: Someday I’m gonna be exactly like you till then I know just
what I’ll do. Barbie, beautiful Barbie. I’ll make believe I am you.
Man voice: You can tell It’s Mattel. It’s well.

Tradução em Língua Portuguesa:

Música: Barbie, você é bela. Você me faz sentir... minha boneca


Barbie é realmente real. Barbie cheia de influência. Suas roupas são
tão elegantes. Sua dança... uma festa que ela lançará um feitiço...
Voz do Narrador: A Barbie natação custa somente três dólares.
Com roupas adoráveis variam de um a cinco dólares. Procure pela
Barbie onde vender bonecas.
Música: Algum dia serei exatamente como você, até então, eu sei
exatamente o que vou fazer. Barbie, bela Barbie.
Voz do narrador: Você pode dizer que é Mattel. É bom.

Link: https://www.youtube.com/watch?v=SfrpuPfOVDw

25 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
ANEXO B

Transcrição do Filme Publicitário - Boneca Barbie 1992 –


Totally hair Barbie

Girl: You got the longest hair ever.


Song: Totally hot. Totally cool.
Totally hair Barbie.
Comb it out
Add some Dep
Gel it, squash it
Now you are set
Make it fun
Make it now
Hair is so long
Repeat Chorus
You got something special
Woman voice: Totally hair Barbie doll has blond and brunet hair
down to her toes, and comes with Dep styling gel. Each doll is
sold separately.

Tradução em Língua Portuguesa:

Menina: Você tem o cabelo mais longo de todas.


Música: Totalmente gata. Totalmente legal.
Boneca Barbie cabelos compridos
Penteie
Acrescente Dep
Passe o gel e modele
Agora você está pronta

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Divirta-se
Faça agora
O cabelo é tão longo
(refrão)
Você tem algo especial.
Voz da narradora: A Boneca Barbie cabelos compridos tem
na versão morena e loira e vem com o gel Dep. Vendidas
separadamente.

Link: https://www.youtube.com/watch?v=fGALqrnSG8U

27 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 7-30 – jan./jun. 2018
ANEXO C

Transcrição do Filme publicitário - Boneca Barbie 2015/2016 –


Imagine as possibilidades

(O que acontece quando as meninas estão livres para imaginar que


podem ser tudo o que querem?)

Primeira menina (professora), na universidade: Olá meu nome


é Marina e eu vou ser a professora de vocês hoje. E, eu vou falar
sobre o cérebro.
Segunda menina (veterinária), na clínica veterinária: Olá, eu
serei sua veterinária hoje.
Homem (cliente da clínica): Tá brincando!
Segunda menina (veterinária), na clínica veterinária: Não, eu
sou a Doutora Joana, viu?
Homem (cliente da clínica): Tá bom, Doutora!
Segunda menina (veterinária), na clínica veterinária: Ah, certo,
deixa eu examiná-lo!
Terceira menina (treinadora de futebol), no campo de futebol:
Bom dia a todos, eu sou a nova treinadora de vocês. Meu nome
é Carla, muito prazer.
Quarta menina (executiva), no aeroporto (falando ao telefone):
Hoje foi um dia fantástico no escritório. Você não vai acreditar no
que aconteceu. Consegui outro negócio que eu queria.
Segunda menina (veterinária), na clínica veterinária: Você já
viu ele voar? (apontando para o gato)
Mulher (cliente da clínica): Já vi ele, o quê?
Segunda menina (veterinária), na clínica veterinária: Voar?
Mulher (cliente da clínica): Não!

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Segunda menina (veterinária), na clínica veterinária: Meu gato
sabe voar.
Mulher (cliente da clínica): Ok.
Primeira menina (professora), na universidade: O cérebro dos
cães não pensa tanto quanto o cérebro dos seres humanos, porque
não há Ensino Médio para cães.
Risadas (alunos)
Quinta menina (paleontóloga), no museu: Este é o Thomas, O
tricerátopo Thomas tem um ano de idade. O tiranossauro rex Sally
tem mil, dois milhões duzentos e cinquenta e dois anos de idade.
Terceira menina (treinadora de futebol) no campo de futebol:
Pulem como um unicórnio. Mais alto, mais alto!
Quarta menina (executiva), no aeroporto: Já estive em Nova
Iorque, na Transilvânia e na Pensilvânia.
Primeira menina (professora), na universidade: Podemos pensar
e fazer um monte de coisas como o nosso cérebro.
Primeira menina (professora), agora no quarto dela (brincando
e imitando voz para a boneca): Agora alguém sabe qual é o
tamanho do cérebro? Alguém? Isabel! (apontando para as bonecas)
(Quando uma menina brinca com Barbie, ela imagina tudo o que ela
pode conquistar).
É médio, médio? Muito bem!
(Você pode ser tudo o que quiser. Barbie.)

Link: https://www.youtube.com/watch?v=8jnKcUh4SCU

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O APRENDER COMO “MODO DE AGIR”
E A CONTINUIDADE ENTRE MEIOS E FINS NA
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO DE ANÍSIO TEIXEIRA

Claudiney José de Sousa1

Resumo: Anísio Teixeira denuncia a insignificância das teorias educacionais que


colocam a felicidade humana fora da escola, fora da vida real dos homens. Para ele a
educação deve ser vista como um fim em si mesmo, como continuidade da vida, como
algo que se confunde com a própria vida. Propõe, desta forma, uma visão mais aguda
do ato de aprender, concepção que procuraremos analisar, estabelecendo um paralelo
com outras duas noções da filosofia contemporânea que se tornarão esclarecedoras para
a compreensão de sua tese: a razão alargada do filósofo existencialista francês Maurice
Merleau-Ponty e a imaturidade, da maneira como foi concebida por John Dewey em
Democracia e Educação. Pretendemos com estes contrapontos tornar clara sua concepção
de aprender como um modo de agir e sua proposta de uma continuidade entre meios
e fins educacionais.

Abstract: Anísio Teixeira denounces the insignificance of educational theories that put
human happiness outside of school, outside the real life of men. For him education must
be seen as an end in itself, as a continuation of life, as something that is confused with
life itself. In this way, he proposes a more acute view of the act of learning, a concept
that we will analyze by establishing a parallel with two other notions of contemporary
philosophy that will become illuminating for the understanding of his thesis: the
extended reason of the French existentialist philosopher Maurice Merleau-Ponty and
immaturity, as John Dewey conceived in Democracy and Education. We intend with
these counterpoints to make clear their conception of learning as a way of acting and
their proposal of a continuity between means and educational purposes.

1
Claudiney José de Sousa: Doutor em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e atualmente Professor Adjunto do Departamento de Educação da Universidade
Estadual de Londrina (UEL). Obteve o título de Mestre em História da Filosofia Moderna e
Contemporânea pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2006, onde atuou como
Professor Auxiliar entre 2002 e 2004. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade Estadual
de Londrina (UEL) em 2000, onde atua como Professor desde 2007. Membro do projeto de
pesquisa “Educação filosófica e experiência democrática: a democracia como modo de vida
ético e político” sob coordenação do prof. Dr. Darcísio Natal Muraro. E-mail: claudineyuel@
hotmail.com

31 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
As diferentes interpretações sobre a filosofia de Anísio Teixeira

“A atividade humana se justifica por si mesma


e tem em si mesma o seu próprio fim. Prazer, virtude,
felicidade são resultados da atividade, o que é diferente de
um fim externo que se buscasse alcançar.”
(Anísio Teixeira)

Anísio Teixeira foi vítima de muitos mal-entendidos sobre


seu pensamento. Foi taxado de liberal, conservador, ideólogo
da burguesia, representante da classe dominante, tecnicista,
americanista etc. É importante mostrar não apenas que estas
classificações não fazem jus à sua pessoa e sua obra, mas também
que perdem absolutamente sua razão de ser quando consideramos
a efetiva contribuição deste pensador para a educação brasileira.
Em História das ideias pedagógicas, Moacir Gadotti, ao fazer
uma análise das ideias pedagógicas no Brasil, decide por classificar
os principais representantes da história da educação, em nosso país,
em apenas dois grupos. Embora reconheça que os supostos grupos
nem sempre mantenham posições antagônicas ou excludentes,
afirma que, por um lado teríamos os chamados “pensadores
liberais” (Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio Teixeira
e Roque Spencer Maciel de Barros) e, por outro, os “progressistas
(Paschoal Leme, Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire, Rubem Alves,
Maurício Tratgenberg e Demerval Saviani). Nossas inquietações
são as seguintes: esta classificação é realmente necessária? O
que se ganha com ela? O que se perde com ela? Ganha-se em
termos didáticos e de síntese do pensamento; perde-se em
termos de liberdade de leitura, análise e interpretação das ideais
apresentadas. O historiador tem todo o direito de manifestar seu
posicionamento quanto aos autores. Reconhecemos também sua

32 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
preocupação em fornecer uma análise organizada didaticamente.
Sabemos das dificuldades enfrentadas por alguém que se propõe
a elaborar uma obra de tal envergadura – com a difícil tarefa de
reunir, em um único volume, toda história das ideias pedagógicas
(do pensamento oriental e ocidental antigos até os dias atuais).
Por outro lado, não podemos deixar de dar nossa contribuição,
apresentando nossas discordâncias, críticas e objeções quanto a
esta classificação.
Moacir Gadotti chega a aproximar liberais e católicos,
considerando que os dois grupos, embora diferentes em alguns
aspectos, defenderiam muitos pontos comuns quanto à educação.
Defende que somente os progressistas teriam colocado “a questão
da transformação radical da sociedade e o papel da educação nessa
transformação” (GADOTTI, 2004, p. 233). São afirmações que
revelam um certo descuido com relação à leitura da obra de Anísio
Teixeira, como veremos mais adiante.

Representam apenas facções da classe dominante e, portanto, não


questionam o sistema econômico que dava origem aos privilégios e
à falta de uma escola para o povo. A mudança apregoada pelos dois
grupos [católicos e liberais] estava centrada mais nos métodos do
que no sentido da educação (GADOTTI, 2004, p. 233).

Não estaria Anísio Teixeira preocupado com a questão dos


privilégios de classe? Não pretendia ele, também, criar uma escola
para o povo? A mudança defendida por ele estaria, realmente,
restrita às questões metodológicas? Não seria leviano demais dar
a entender que não deu a devida atenção ao sentido da educação?
Não seria precipitado comparar o pensamento deste autor (mesmo
que em alguns aspectos) com a proposta jesuítica, considerando
o grande empenho do movimento escolanovista justamente

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no sentido de romper com aquele antigo modelo? Teria ele
restringido a escola ao seu papel pedagógico? Defendemos que,
pelo contrário, estas foram as questões que mais espaço ganharam
na pauta das discussões sobre a educação em seu pensamento.
Com o objetivo de lançar alguma luz sobre o problema, optamos
por fazer um breve estudo de duas importantes obras em que
Anísio Teixeira discute os temas em debate. Analisaremos quais
seriam as respostas mais adequadas às questões acima levantadas
a partir das obras: Educação não é privilégio e Pequena Introdução
à filosofia da educação.

Aprender como modo de agir: “visão alargada” ou “visão elástica”


do aprender

Em Pequena Introdução à Filosofia da Educação, encontramos


vários elementos que contemplam a concepção do autor sobre o
sentido da educação: o fenômeno educativo enquanto fim em si
mesmo, ou seja, da educação como continuidade da vida, como
algo que se confunde com a própria vida. Iniciemos esta discussão
colocando a seguinte questão: como Anísio Teixeira define
‘aprender’? A pergunta imediatamente nos leva a uma série de
inquietações: por que consultar uma obra publicada em 1934 para
analisar o significado de ‘aprender’ se temos inúmeras discussões
atuais sobre esta noção? Anísio Teixeira não estaria escrevendo
exclusivamente para sua época, inserido num contexto político,
social, econômico e cultural muito diverso do nosso? O que ele
pode nos trazer de absolutamente novo?
Ao tratar do que chama “fundamentos psicológicos da
transformação escolar” em Pequena Introdução à Filosofia da
Educação, Anísio Teixeira afirma que precisamos pensar em
uma “visão mais aguda do ato de aprender” (2000, p. 43). As

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considerações do autor aqui nos fazem lembrar dois conceitos
da filosofia contemporânea que se tornarão esclarecedores para a
compreensão de sua tese: o primeiro é o conceito “razão alargada”
do filósofo existencialista francês Maurice Merleau-Ponty
(MERLEAU-PONTY, 1996, p. 79), elaborado para demarcar
sua crítica à razão clássica moderna, rígida, objetiva, calculável,
geométrica (difundida, sobretudo por Descartes no século XVII).
A razão alargada de Merleau-Ponty não é uma razão situada “na
cabeça” apenas, mas é uma razão difusa, uma espécie de consciência
corporal ou sabedoria corporal (mais humana, mais democrática,
mais elástica, difusa e flexível).
O segundo conceito que elegemos para estabelecer um
contraponto com a tese de Anísio Teixeira é imaturidade, da
maneira como foi concebido por John Dewey em Democracia
e Educação (DEWEY, 1959, 44-57). Penso que este segundo
conceito é esclarecedor principalmente por envolver a noção de
plasticidade e dependência. Para Dewey, somos seres imaturos, no
sentido positivo, porque somos permanentemente educáveis. A
plasticidade (ou a maleabilidade) é uma característica essencial
dos seres educáveis – dos seres humanos. Para Dewey, “a primeira
condição para haver crescimento é que haja imaturidade”
(DEWEY, 1959, p. 44). Mas imaturidade entendida não como
falta ou ausência, mas enquanto capacidade ou aptidão para um
constante desenvolvimento.

O prefixo “im” de “imaturidade” significa algo de positivo e, não,


simples carência ou vacuidade. (...). Ora, quando dizemos que
imaturidade significa a possibilidade de crescimento, não nos
referimos à ausência de aptidões que poderão surgir mais tarde;
referimo-nos a uma força positivamente atual – a capacidade e
aptidão para desenvolver-se (DEWEY, 1959, p. 44).

35 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
Anísio Teixeira, contemporâneo destes autores, traz,
nas entrelinhas de seu texto, a fecundidade destes conceitos,
primeiramente porque pensa, para o nosso país, em um aprender
no sentido alargado, plástico, maleável, flexível, abrangente,
democrático, difuso na sociedade. Uma noção de aprender que
visa claramente romper com a consideração rígida e inflexível
do “aprender tradicional”. Expressa sua insatisfação propondo
um “aprender mais agudo” ou uma “visão mais aguda do ato de
aprender”. Estabelecendo um contraponto com Merleau-Ponty
e Dewey, poderíamos chamar a concepção de Teixeira de “visão
alargada do aprender” ou ainda “visão elástica do aprender”.
Assim como, em geral, ocorre com qualquer proposta inovadora,
sobretudo na área da educação, a visão alargada e elástica de Anísio
Teixeira não foi, até hoje, devidamente estudada e compreendida.
Ele exige um “olhar mais apurado” que os teóricos de sua época
(e ainda da nossa) não possuem. Nossa visão míope muitas vezes
nos impossibilitou de compreender a abrangência e a riqueza de
sua proposta. Eis a maneira como o autor expressa, em linhas
gerais, seu descontentamento e os equívocos da noção tradicional
de ‘aprender’:
Aprender significou durante muito tempo simples
memorização de fórmulas obtidas pelos adultos. O velho processo
catequético de pergunta e resposta é um exemplo impressionante
disto. Decorar um livro era aprendê-lo. Mais tarde, começou-se
a exigir que se compreendesse o que era decorado. Um passo mais
foi exigir do aluno que repetisse, com palavras próprias, o que se
achava formulado nos livros. Não bastava decorar, não bastava
compreender, era ainda necessário a expressão verbal, e então, sim,
estava aprendido o assunto (TEIXEIRA, 2000, p. 43).

36 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
O que é ‘aprender’ para Anísio Teixeira, afinal? Já sabemos
o que não é: não é memorização, não é a simples capacidade de
compreender, nem mesmo a capacidade de demonstrar, através
da expressão verbal e pessoal (retórica) o que se memorizou e
compreendeu. Em resumo, “não se aprende por simples absorção”
(TEIXEIRA, 2000, p. 45). As considerações são decepcionantes
para os que acreditam, apostam e investem num aprendizado
quantificável e mensurável, num conhecimento que se traduz em
moeda de troca no mercado.
Podemos até dizer que, em algum sentido, a memorização,
a compreensão e a expressão verbal são condições necessárias
para o aprendizado, mas não que sejam condições suficientes.
Por que não são suficientes? A resposta de Anísio Teixeira é
simples e taxativa: porque “aprender significa ganhar um modo
de agir” (TEIXEIRA, 2000, p. 43-44). O que, em geral, ocorre em
nossas escolas? Não aprendemos porque elas não nos permitem
desenvolver uma habilidade. Nelas o aprendizado não se traduz em
modo de agir. Isso explica porque hoje aprendemos a maioria das
coisas não nas escolas, mas fora delas – no trabalho, num evento
cultural, numa viagem, na leitura despropositada de um livro,
enfim, ao enfrentar qualquer um dos muitos desafios que a vida nos
reserva. Aprendemos matemática quando somos colocados numa
situação em que nossa sobrevivência exija a realização daquelas
operações – de forma a que se tornem uma verdadeira habilidade
ou, como diz Anísio Teixeira, quando passam a fazer “parte do
próprio organismo e exigir de nós, quase automaticamente, uma
reação ou uma série de reações especiais” (TEIXEIRA, 2000, p.
44-45). Não significa que aprender fora da escola seja o problema.
Podemos e devemos aprender constantemente, em qualquer
ambiente ou situação. E é importante que se estimule esta prática.

37 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
O que preocupa Anísio Teixeira é que a escola não esteja sendo
o local privilegiado do aprendizado significativo a que se propõe.
Poder-se-ia objetar que o autor não estaria propondo nada
de novo, pois aprendizado que se traduz em reações automáticas
é algo que já estaria presente nas concepções tradicionais. Mas
o autor esclarece, em seu texto, que isto não significa habilidade
mecânica – muito pelo contrário. As palavras ‘ação’ e ‘habilidade’
são geralmente compreendidas como atividade prática, manual,
material. Esquece-se que é possível ser habilidoso com as palavras,
com as atitudes, com as emoções etc. Dizemos que aprendemos
realmente poesia quando ela nos leva a um novo modo de agir –
mesmo que isso não tenha diretamente nenhuma implicação ou
aplicação material, física, prática, nenhum resultado financeiro.
Mas o que é realmente este agir a que o autor se refere? “A palavra
agir tem vulgarmente um sentido estreito de ação material”
(TEIXEIRA, 2000, p. 44). O autor denuncia a estreiteza de
nosso modo costumeiro de avaliar e julgar e propõe um modo
mais alargado, amplo, flexível de considerar as coisas, sem cair nos
dualismos, em especial naqueles que separam mundo material/
prático/físico de mundo ideal/teórico/ espiritual. O que é agir?

Um ato é sempre uma reação a uma situação em que nos
encontramos. Reagimos contra estímulos que recebemos por meio
dos sentidos internos ou externos. E o que aprendemos é sempre
uma forma especial de reação. (...). Uma habilidade, uma ideia,
uma emoção, uma atitude, um ideal, aprendemo-lo do mesmo
modo, fixando uma certa reação do organismo a uma certa coisa
(TEIXEIRA, 2000, p. 44).

Mas não nos importa tanto a parte negativa (desconstrução)
do pensamento de Anísio Teixeira referente à noção de aprender
– suas críticas à maneira usual de considerá-la. Já sabemos que

38 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
“não aprendemos uma idéia [ou qualquer outra coisa] quando
apenas sabemos formulá-la” (TEIXEIRA, 2000, p. 44). Quando
é que aprendemos, então? Aprendemos quando algo passa a ser
incorporado a nós de tal modo que não temos mais que acessá-lo
a partir de algum “dispositivo externo”, seja ele qual for (a internet,
um livro, um tutor intelectual ou espiritual, uma regra jurídica,
moral ou religiosa etc.). Os pensadores tradicionais também
estavam muito conscientes disso, mas se enganaram ao pensar
que a memorização poderia efetivamente proporcionar esta
incorporação. Anísio Teixeira faz uma revisão importante neste
ponto. O aprendido, o conhecido (pelo menos no sentido que
aqui estamos considerando) é algo que está em nós e não fora de
nós. “Não se aprende senão aquilo que se pratica” (TEIXEIRA,
p. 45). E aqui, mais uma vez, é preciso lembrar que a prática a que
se refere não é mais a ‘prática’ dos velhos dualismos. É também a
prática do pensamento, da reflexão, do diálogo, da valoração, da
moralidade, da espiritualidade etc. Tudo isso aprendemos quando
incorporado a nosso organismo, quando efetivamente reagimos
e interagimos com o mundo e a sociedade que nos cerca. Veja-se
a exigência de que o aprender seja sempre de caráter dinâmico
e permanente, que envolva ação e reação (troca). Apresentemos,
portanto, a definição que contempla todos os elementos de sua
tese.
Logo, não se aprende senão aquilo que se pratica. Aprender
é um processo ativo de reagir a certas coisas, selecionar reações
apropriadas e fixá-las depois no organismo. Não se aprende por
simples absorção (TEIXEIRA, 2000, p. 45).
O conhecimento que resulta desta nova concepção de
aprender é também algo muito diverso da noção trivial nos
meios acadêmicos. Fala-se hoje da posse ou da produção do

39 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
conhecimento, como se fala da posse ou da produção de qualquer
outro bem material. O conhecimento converte-se em algo passível
de controle, manipulação, troca, rendimento, produtividade. Por
estar quase que exclusivamente atrelada às questões econômico-
produtivas, esta noção promove ainda mais concentração, exclusão,
desigualdade social. Tomemos como exemplo um discurso bem
característico da concepção de conhecimento como “moeda de
troca”.
Não é surpresa para ninguém que os grandes elementos
geradores de riqueza hoje estão ligados ao conhecimento
e à informação. O próprio valor dos elementos intangíveis
(conhecimento, informação, criatividade, capacidade de gestão,
imagem de marca etc.) na avaliação do preço de mercado das
empresas mostra isso (MATTAR, 2001, p. 8).
Dado que o conhecimento se converte quase que
exclusivamente em “elemento gerador de riqueza”, pense-se em
quanta informação as crianças e adolescentes deverão receber para
estarem aptos a competir nos processos seletivos que encaminharão
para este “mercado promissor”. Consideremos apenas alguns dos
conteúdos ditos essenciais em algumas disciplinas do ensino atual:
i) em biologia: compreender os processos de obtenção de energia, a
estrutura de uma célula eucariótica e as leis de hereditariedade; ii)
em química: conceitos de radioatividade, cálculo estequiométrico
e ligações intermoleculares; iii) em física: cinemática e dinâmica,
energia, calor e fenômenos térmicos; iv) em língua portuguesa:
semântica, figuras de linguagem, principais movimentos literários,
etc. Agora nos perguntemos, com base na tese de Anísio Teixeira:
eles aprendem estes conteúdos? Se realmente “não se aprende
senão aquilo que se pratica”, nossa resposta é um vigoroso “não”.
Pelo menos na escola que conhecemos não aprendem. Talvez

40 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
aprendam, depois da escola, fora da escola, por necessidade,
quando as circunstâncias os exigirem. Esta constatação nos
angustia e coloca a questão crucial: então, para que servem as
escolas?
Para que servem as escolas?

Se todas as crianças são educáveis, justifica-se que todas aspirem


a tornar-se pessoas educadas. Mas nenhuma pode tornar-se
plenamente educada na escola, não importa quão longo ou quão
bom seja seu ensino. Nossa preocupação com a educação deve ir
além do ensino (ADLER, 1984, p 23).

Anísio Teixeira percebia claramente que o ensino era apenas


mais um dos componentes da educação, que inclusive, se não
realizado a contento, poderia inviabilizá-la, por isso propôs uma
nova concepção de ‘aprender’ (elástica, alargada, flexível, prática)
mais compatível e mais próxima da educação que necessitamos.
Com certeza, a questão “para que servem as escolas?” realmente
angustiou o autor durante toda sua vida. Analisemos este
problema de modo mais cuidadoso, iniciando pelas seguintes
questões triviais: qual a grande atração da escola no Brasil? Qual a
grande motivação para que uma criança ou um adolescente queira
ir para a escola? Em Educação não é privilégio, Anísio Teixeira
afirma que as escolas, no Brasil, são por força da tradição, escolas
que selecionam, que classificam os seus alunos. “Passar pela escola,
entre nós, corresponde a especializar-nos para a classe média ou
superior. E aí está a sua grande atração. Ser educado escolarmente
significa, no Brasil, não ser operário, não ser membro das classes
trabalhadoras” (TEIXEIRA, 1994, p. 50). Educação seria sempre
uma preparação para uma vida futura, para uma vida mais fácil,
para uma vida privilegiada. Consequentemente, uma educação que

41 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
seleciona e exclui. Preparação, seleção e exclusão esta é a essência
da nossa educação.
O processo educativo é um processo seletivo, destinado a
retirar da massa alguns privilegiados para uma vida melhor, que se
fará possível exatamente porque muitos ficarão na massa a serviço
dos “educados”, então o sistema funciona, exatamente por não
educar todos, mas somente uma parte (TEIXEIRA, 1994, p. 51).
Por que a escola precisa “selecionar” e “retirar” da massa
alguns destinados ao privilégio? Por que estes indivíduos não
poderiam, por assim dizer, permanecer na massa? O próprio
Anísio Teixeira afirma, em tom irônico, que o sistema educacional
precisa conservar “analfabetos para engrossar a grande fileira
dos que nos vão ajudar a ser privilegiados” (1994, p. 51). A
obra Educação não é privilégio é, de certa forma, uma tentativa
de responder à questão “para que servem as escolas?” É uma
denúncia do caráter puramente seletivo da educação, do caráter
de preparação para algo, o que, em suas análises sobre filosofia da
educação, pode ser expresso em termos de uma confusão quanto
à relação entre meios e fins educacionais. Teixeira denuncia a
exacerbação deste caráter seletivo, que tem como único propósito
“preparar alguns privilegiados para o gozo de vantagens de classe
e não o homem comum para a sua emancipação pelo trabalho
produtivo” (TEIXEIRA, 1994, p. 54).
Quais as consequências desta concepção de educação,
ainda mais marcante na história recente de nosso país? Podemos
dizer que, quanto mais investimos neste modelo de ensino
e aprendizagem, mais estamos promovendo a exclusão e a
desigualdade social (ao contrário do discurso ideológico em seu
favor), portanto, promovendo algo bem diverso daquilo que seria
a essência do ato educativo. O caráter de denúncia deste modelo
fica ainda mais claro quando Teixeira afirma:

42 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
As escolas não foram afinal criadas para renovar as
sociedades, mas para perpetuá-las e, por isto mesmo, a sua relação
com as estruturas sociais de classe teria de ser a mais estrita.
Nenhum sistema de escolas jamais foi criado com o propósito de
subverter a estratificação social reinante (TEIXEIRA, 1994, p. 55).
Então temos aqui a resposta do autor: as escolas servem
para perpetuar as sociedades e manter a estratificação social. É uma
resposta dura e direta, que deve, no mínimo, levar a uma revisão
nas conhecidas classificações a respeito do autor (liberal, ideólogo
da burguesia, conservador etc.). Não era a resposta que queríamos
obter, sobretudo porque sabemos que é a resposta de alguém que
“sabe o que está dizendo”, de alguém que fez um estudo profundo
da nossa realidade. Sabemos que a ideia de escola comum ou
pública nasceu com a Revolução Francesa; uma escola que não
tinha o propósito de educar para uma classe ou para outra. O
problema é que não demorou para que os próprios franceses
tratassem de promover o dualismo escolar: sistema popular, por
um lado e educação de classe por outro. Foi este modelo das
instituições educativas francesas que herdamos. É o sistema que
ainda permanece em nosso país. Isso impediu que tivéssemos uma
escola pública comum. Esta escola “jamais gozou de verdadeiro
prestígio social” (TEIXEIRA, 1994, p. 56). O autor acrescenta: “na
realidade, a educação, como se vem fazendo entre nós, dá direitos,
graças a diploma oficial, mas não prepara nem habilita para coisa
alguma (...) alguns se farão depois profissionais, por tirocínio e
prática, não pela escola” (TEIXEIRA, 1994, p. 56).
O ensino fundamental perde a sua função característica, que
é a de ser a grande escola comum da nação. Passa a ser simplesmente
uma escola de acesso, uma escola preparatória para o ensino médio
e para a universidade. Um verdadeiro “desvirtuamento da escola”

43 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
(TEIXEIRA, 1994, p. 62). Uma escola marcada pelo anseio por
uma outra escola, a secundária que, por sua vez, é marcada pelo
anseio pela formação superior – tudo sempre preparação para algo,
anseio, aspiração e nunca fim em si mesmo.

Tudo isso não está a revelar que insistimos no velho conceito


arcaico de que a educação é simples processo de preparação para
que alguns possam consumir a vida melhor que outros, pouco
importando que os preparemos bem ou mal, contanto que lhes
demos os direitos a esse consumo mais requintado dos bens da vida
brasileira? (TEIXEIRA, 1994, p. 117).

Contrário à ideia de uma escola como meio para algo,


o autor propõe que “a aprendizagem resultante do processo
educativo não tem outro fim, senão o de habilitar a viver melhor,
senão o de melhor ajustar o homem às condições do seu meio”
(TEIXEIRA, 2000, p. 63). Nossa escola, contudo, contrariou este
princípio, com o pretexto de preparar para o futuro. O resultado é
que esta “educação para o futuro” nunca é a educação da criança
ou do adolescente, mas sempre a educação do adulto – a matéria
da educação (desde a mais básica) é sempre de interesse para os
adultos, e desta forma, sempre desligada do momento em que
se aplica, descontextualizada, sem sentido, sem qualquer outro
atrativo senão o da aspiração a uma vida melhor – educação que
olha adiante e esquece o presente. “Prende-se a atenção naquilo
que a criança não tem, e que não terá enquanto não se tornar um
homem” (DEWEY, 1959, p. 45). Isso é uma verdadeira tortura
para aquele que se vê obrigado a viver em função de um tempo e
um momento que não são seus. A criança vive, deste modo, em
função de outrem e realiza, para estabelecermos uma analogia com
Marx, um estudo alienado, exterior e estranho a ela. Lembremos

44 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
o que diz Marx em seu Manuscritos Econômico-filosóficos sobre a
noção de exteriorização do trabalho e comparemos com o que
aqui podemos chamar de “exteriorização da educação”:

Em que consiste, então, a exteriorização (Entäusserung) do trabalho?


Primeiro, que o trabalho é externo (äusserlich) ao trabalhador, isto
é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em
seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz,
que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas
mortifica sua physis e arruína o seu espírito. (...). O trabalho não é,
por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para
satisfazer necessidades fora dele (MARX, 2008, p. 82-83).

Agora analisemos o fenômeno da exteriorização no que


chamamos de educação alienada na perspectiva de Anísio Teixeira:

Logo que a escola começa, começam geralmente essas torturas e,


então, evaporam-se de seus corações a harmonia e a felicidade de
viver. Passam a ser felizes, como os adultos, em momentos raros
a que se não devem habituar com muita complacência, porque
a realidade de toda hora é trabalhar, lidar, conformar-se e sofrer
(TEIXEIRA, 2000, p. 146).

Começamos nosso texto propondo uma reflexão sobre


a palavra atração e chegamos a outras noções que caracterizam
bem este modelo de educação denunciada pelo autor: preparação,
exclusão e alienação. Isso mostra que, dada a situação acima
descrita, não resta outra saída ao educando senão aspirar por
algo que vem depois, com a esperança de obter algo melhor.
Isso se dá, naturalmente, em decorrência de uma frustração.
Se meu time perdeu o campeonato deste ano fico frustrado e
espero ansiosamente o próximo ano, contando com um melhor
desempenho do time em competições futuras. Um dia de trabalho

45 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
estafante me faz esperar ansiosamente o fim do expediente,
quando poderei, enfim, descansar – esperando que o dia seguinte
não seja “tão ruim”. Mas a escola não pode ser reduzida a este
constante esperar que resulte da frustração e da decepção. A
respeito dos alunos que se encontram nesta condição o autor diz:
“Sobreviventes de um sistema escolar inadequado e frustrado, não
tem (...) outra coisa a fazer senão aspirar à escola superior, para
cujo exame vestibular se precipitam em levas muito superiores
ao número de vagas existentes” (TEIXEIRA, 1994, p. 62). É
triste constatar que a espera, a decepção, a frustração e a angústia
permanecerão e que apenas serão outras no ensino superior.
Por que, segundo Anísio Teixeira, nosso sistema de ensino é
frustrado? Porque não está de acordo com sua essência, qual seja
ser “uma escola que é o seu próprio fim e só indiretamente e
secundariamente prepara[r] para o prosseguimento da educação
ulterior” (TEIXEIRA, 1994, p. 63).

Conclusão: a continuidade entre meios e fins educacionais

Anísio Teixeira pensa que, da mesma forma que falamos de


ciências naturais, podemos também falar de uma ciência da moral
– de uma espécie de “moral experimental”. Assim como aquelas
passaram por um processo revolucionário, esta também deveria
passar por transformações significativas em nossa sociedade. O
que ocorre, infelizmente, é que “até os dias de hoje a conduta
humana não se pôde guiar por conceitos positivos e experimentais
similares aos que caracterizam as demais ciências” (TEIXEIRA,
2000, P. 10). O autor requer, para a moral, uma metodologia
análoga à das ciências naturais – única maneira de livrar-se

46 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
do mito, da magia, dos preconceitos e falsos pressupostos que
ainda hoje fundamentam nossas teorias e práticas educacionais.
Sabemos que o “tratamento dos fenômenos naturais como efeitos
originários de causas misteriosas” (TEIXEIRA, 2000, p. 121) é
um procedimento comum em visões mágicas sobre a realidade.
O curioso, como mostram as pesquisas do nosso autor, é que um
tratamento similar tem sido adotado há séculos por moralistas
que pensam nossa educação.

Para o indiano, a malária que lhe mina o organismo, não é causada


pelos germes com que o infetam os mosquitos, mas pela necessidade,
em que se acha, de purgar nesta vida os pecados de vidas pregressas.
Não há, pois, outro meio de tratar-se, senão pela oração e penitência
(TEIXEIRA, 2000, p. 121).

Ficamos chocados com essa “ignorância” quanto às
verdadeiras relações causais entre os fenômenos acima descritos,
mas ignoramos o fato de que existe uma interpretação parecida
(mágica, mística, muitas vezes preconceituosa e discriminatória)
na moralidade que fundamenta nossa concepção de educação. A
moralidade que fundamenta os equívocos que Anísio Teixeira
tanto denunciou também concebe a natureza humana como
essencialmente má; uma natureza que precisa, portanto, ser
substituída, purgada, sacrificada, tendo em vista uma outra coisa
que não a vida presente. Isso revela uma falsa e ilusória visão sobre
a natureza humana, uma incapacidade de compreendê-la também
a partir de suas limitações, falências, incoerências, mutações,
contradições, fraquezas, aspirações etc. Por isso, o autor defende
uma visão mais naturalista e falibilista do ser humano, da educação
e da própria moralidade, o que ele traduz em termos de uma
“moralidade experimental”. “Em vez da moral ‘espiritual’, isto é,

47 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
presa a preconceitos imutáveis e eternos, uma moral experimental
baseada nas conclusões de uma ciência do homem” (TEIXEIRA,
2000, p. 122).
Qual seria o resultado da substituição da moral espiritual
pela moral experimental? A primeira, também chamada de
moral passiva, foge da facticidade da existência humana, nega a
vida e busca fora dela sua razão de ser, convertendo-se em moral
proibitiva, que prega a conformidade e evita a excentricidade
– é a moral do “não fazer”, estranha e desligada da vida real
dos homens. “A separação da moral das atualidades presentes
da vida e da natureza humana termina por codificá-la em uma
série de prescrições proibitivas. Não fazer torna-se a essência
da moralidade” (TEIXEIRA, 2000, p. 123). A segunda, por ser
moral de atividade, resgata o caráter eminentemente humano da
construção da própria existência e não menospreza o ser humano
de carne e osso, em suma, não é uma moral estranha à própria
natureza humana.
A moral espiritual tradicional é também uma moral de
aparências e preconceitos. Uma moral que serve a interesses
particulares de alguns grupos na sociedade. Nos diferentes casos
em que se manifesta é comum a divisão da vida e da educação
em dois períodos: “o dos sonhos e o da realidade” (TEIXEIRA,
2000, p. 128). Isso os faz pensar que há verdadeiramente uma
hierarquia entre as fases, os períodos, os momentos (bons ou
ruins, bem-sucedidos ou malsucedidos). Uma moral da traição
da vida, moral da contradição, da incoerência com relação à vida.
Seu maior erro consiste em “considerar a atividade humana em si,
não como o bem, mas como simples meio de atingir o bem, que era
estranho ou superior a essa atividade” (TEIXEIRA, 2000, p. 130),
não entender que a atividade humana é também um fim, portanto

48 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
um bem, um modo particular de cultivar a felicidade. A atividade
como meio transforma a vida em sacrifício; é consequentemente
uma atividade penosa, decepcionante, angustiante, alheia àquele
que a realiza.
De fato, se a atividade em si não dá prazer, não é agradável,
se agrado e prazer são coisas alheias que vamos comprar com essa
atividade – viver é um sacrifício pontilhado, aqui e ali, de raro em
raro, de um gozo e uma alegria. E como esse próprio gozo e essa
própria alegria em que se põe o prêmio da vida são, no fundo,
incompletos e decepcionantes - o que nos resta senão julgar a
vida realmente insuportável, e buscar, no mundo religioso ou no
mundo intelectual, os sonhos que nos compensam da mágoa de
viver? (TEIXEIRA, 2000, p. 145).
Anísio Teixeira complementa dizendo que essa premissa
da moralidade é a “mais corruptora do verdadeiro critério para
julgar-se a vida” (TEIXEIRA, 2000, p. 136). Nega-se esta vida,
anula-se esta vida, reduzindo-a a exílio, prisão e sofrimento.
Uma concepção que é, na sua íntegra, aplicada à educação que
reproduz as segmentações da sociedade. O que se denuncia
aqui é a insignificância das teorias educacionais que colocam a
felicidade humana fora da escola, fora da vida real dos homens.
Mas então, qual o fim real do homem? “O fim real do homem,
o único fim substancial, é o de viver, o que quer dizer: exercer
atividades significativas para si próprio” (p. 141). O que é a vida
boa? “A vida será boa se nossa atividade, em si mesma, e por si
mesma, for agradável e satisfatória. A atividade não será, deste
modo, uma preparação para um bem futuro e remoto, mas, ela
mesma, esse bem” (p. 149).

49 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
Referências

ADLER, Mortimer Jerome. A proposta paidéia. Trad. Marília Lohmann


Couri. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984.

DEWEY, J. Democracia e Educação. Tradução Godofredo Rangel e


Anísio Teixeira. 3ª edição. São Paulo:Companhia Editora Nacional,
1959 (Atualidades Pedagógicas – vol. 21).

GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. 8ª edição. São


Paulo: Ática, 2004.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução Jesus


Ranieri. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

MATTAR, Hélio. Os novos desafios da responsabilidade social


empresarial. Reflexão. Ano 2. Nº. 5, junho 2001.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et non-sens. Paris: Gallimard,


1996.

TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. Rio de Janeiro: Ed.


UFRJ, 1994.

TEIXEIRA, Anísio. Pequena Introdução à filosofia da educação: a escola


progressiva, ou, a transformação da escola. 6ª ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2000.

50 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 31-50 – jan./jun. 2018
A AÇÃO E AS ESTRATÉGIAS ADOTADAS
POR PROFESSORES-AUTORES NA PRODUÇÃO
DE MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO
PARA UM CURSO EM EaD

Maria Cristina Ruas de Abreu Maia1


Anny Karoline Santana Silva2
Jaini Muniz de Aguiar3

“(...) na e pela linguagem, e em razão da lógica da empatia


que nos leva a nos colocarmos no lugar dos outros
ou a mudar de perspectiva para encarar tal objeto ou tal
situação.” (RABATEL, 2015, p. 157)

Resumo: No presente trabalho, objetivamos descrever a ação e as estratégias de


professores-autores adotadas na produção de material didático impresso para atender
ao curso de Letras/Português, na modalidade a distância. Procuramos refletir o processo
de modelização de objetos teóricos na produção de um modelo didático de gênero
(MACHADO; CRISTOVÃO, 2006, ROJO, 2001), revelando a mobilização de
diferentes posicionamentos autorais (BAKHTIN, 2010; RABATEL,1998; 2015). Os
resultados mostram que é possível reconhecer diferentes posicionamentos autorais nos
cadernos didáticos da UAB/Unimontes.
Palavras-chave: Material Didático Impresso. Modelização Didática. Posicionamento
Autoral.

Abstract: In the present work, we aim to describe the action and the strategies adopted
by teachers-authors in the production of printed didactic material to attend the
course of Languages / Portuguese, in the distance modality.  We have attempted
to reflect the process of modeling theoretical objects in the production of a
didactic model of gender (MACHADO, CRISTOVÃO, 2006, ROJO, 2001),

1
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Língua Portuguesa e Linguística na Pontífica
Universidade Católica de Minas Gerais – Professora no curso de Letras da Universidade
Estadual de Montes Claros -MG e orientadoras das discentes.
2
Acadêmica do 3° período do curso de Letras/Português na Unimontes - MG. Bolsista de
Iniciação Científica da FAPEMIG BIC/Uni.
3
Acadêmica do 5º período do curso de Letras/Português na Unimontes-MG. Membro
Voluntário em Projeto de Iniciação Científica.

51 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
revealing the mobilization of different author positions (BAKHTIN, 2010;
RABATEL, 1998; The results show that it is possible to recognize different
authoritative positions in the UAB / Unimontes curriculum.

Keywords: Printed Didactic Material. Didactic Modeling. Positioning Autoral.

Considerações introdutórias

Compreender o processo de confecção de materiais


didáticos impressos e de como esses são utilizados na formação
de alunos nas diferentes modalidades de ensino tem constituído
a agenda de muitos pesquisadores e de muitas instituições,
incluindo, neste grupo, as universidades públicas que têm se
apropriado e experimentado diferentes orientações teóricas e
metodológicas que lhes permitem a implantação e a execução de
diferentes modalidades formativas, como os cursos de formação de
professores a distância em que a (re-)configuração das formas de
ensinar e de aprender e de produzir conhecimentos envolve outros
atores, outros ambientes, outro tempo e a criação de um formato
de gênero textual/discursivo especificamente para essa finalidade.
Em se tratando da educação a distância, o material didático
(impresso, audiovisual ou digital) assume papel de protagonista,
já que se atribui a ele a importante tarefa de promover interação,
reproduzir, homogeneizar, organizar conteúdos, propor, solicitar
consultas a outras fontes de conhecimento, requerer a realização
de atividades diversas, por meio da padronização e da apresentação
dos objetos de ensino (o tema), conforme o acento valorativo
que lhe é atribuído pelos agentes envolvidos em sua produção,
revelando, com isso, o ponto de vista adotado (BUNZEN; ROJO,
2008).
Assim, devemos considerar que na produção de material
didático impresso, para atender a formação de professores em

52 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
EaD, há a ação de diversos agentes (professores conteudistas4,
consultores ‘ad hoc’, designers gráficos, designers instrucionais,
editores, diagramadores e revisores5) que compõem uma equipe
multidisciplinar, cuja finalidade é atender as necessidades do novo
formato de cursos de licenciatura em EaD, ofertado por boa parte
das universidades públicas brasileiras.
Destacamos, pois, o cenário consolidado e em expansão
do ensino a distância no país, em que a escrita e a produção de
material didático atrelado ao uso de tecnologias de comunicação
e informação assumem uma importante função socioformativa.
Como exemplo da grande utilização desses materiais didáticos
impressos, reportamo-nos ao Programa Universidade Aberta do
Brasil6 - criado e instituído em 2006 pelo Ministério da Educação
–MEC – através de sua Secretaria de Educação a Distância –
SEED – com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Nível Superior – CAPES, que expandiu, especialmente, a oferta
de cursos de licenciatura em parceria com grandes universidades
públicas.
Parceira do Programa UAB, a Universidade Estadual
de Montes Claros-MG, localizada no Norte de Minas Gerais,

4
Professor conteudista é a denominação adotada pelo Sistema UAB para se referir aos autores
de material didático, em razão de esses terem sido recrutados e selecionados, para produzir
o material didático impresso, pelo fato de atuarem e terem experiência comprovada em
disciplinas específicas dos cursos presenciais.
5
A descrição de profissionais envolvida em todas as etapas desde a escrita até a edição do
material didático, tomou como base o recrutamento de profissionais que, conforme as
denominações apresentadas, compõe a equipe de produção de material didático do Sistema
UAB/Unimontes.
6
O Sistema Universidade Aberta do Brasil – UAB, instituído pelo Decreto 5.800, de 08 de
junho de 2006, foi estruturado no âmbito do Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE,
e tem por meta o desenvolvimento da modalidade de Educação a Distância, possibilitando
a formação de um grande número de pessoas, que se encontram geograficamente distantes
das universidades públicas, preferencialmente, em cursos de licenciatura para atuarem,
prioritariamente, na educação básica, pretendendo reverter o cenário ainda existente de
pessoas atuando na educação básica sem formação superior.

53 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
expande sua atuação atendendo municípios do Norte de Minas e
dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Em 2016, a Unimontes além
dos alunos matriculados semestralmente em cursos de graduação
e de pós-graduação, contou com 1.030 alunos matriculados nos
cursos a distância, conforme revelam os dados extraídos de seu
Plano de Desenvolvimento Institucional –PDI – 2007-2021.
Como se vê, um número considerável de pessoas foi atendido
pela UAB/Unimontes, requerendo a implantação de um novo
modelo educacional capaz de viabilizar o acesso de um outro tipo
de público à universidade.
Neste sentido, torna-se imperativo a proposição de um
estudo que se dedique em explicar e descrever a complexidade
que envolve a confecção do material didático impresso.

Reflexões teóricas aplicadas à pesquisa

Para subsidiar esta proposta, investimos na organização de


um quadro teórico que consideramos basilar, partimos do processo
de transposição didática externa (CHEVALLARD, 1989) e do
aparato teórico-metodológico produzido pela engenharia didática
do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), para o trabalho com a
produção de material didático impresso, ressaltando o processo de
modelização de objetos teóricos na produção de objetos didáticos
apropriados aos diversos contextos de ensino-aprendizagem,
como é o ensino a distância. Defendemos, pois, que o êxito
no processo de transposição didática externa depende de se
revelar três ferramentas didáticas empregadas no planejamento
e na produção do modelo didático do gênero: o modelo teórico,
as ferramentas digitais, semióticas e o modelo didático do

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gênero. Além da recorrência dessas três ferramentas, o modelo
didático produzido destaca os tipos de enunciados empregados
em sua composição, conforme Bakhtin(2010), mostrando o
seu funcionamento, revelando em sua organização a intenção
sociocomunicativa, o posicionamento autoral (RABATEL, 1998,
2015; MAINGUENEAU, 2010) e o ponto de vista dos autores
sobre a produção de material didático impresso apropriado ao
ensino a distância.

Revendo os conceitos de transposição didática e modelização


didática

No campo do ensino a distância, vários estudos têm sido


desenvolvidos no sentido de analisar e explicar o funcionamento
e a linguagem adotada na produção de material didático impresso
(HORN, 2014; ALBURQUERQUE; ZANETTI, 2013),
contudo ainda é muito incipiente a realização e a divulgação
de pesquisas que tenham se dedicado em relevar o processo de
transposição que permite a passagem de saberes científicos/
acadêmicos à produção de saberes didáticos apropriado a esse
sistema de formação. No tocante a essa questão, a noção de
transposição didática constitui-se um “dos modelos teóricos
férteis no que diz respeito ao sistema didático e aos saberes”
(TEIXEIRA, 2011, p.2).
Ingressamos, a partir deste ponto, nas proposições de
Chevalhard (1989) que discute a noção de transposição didática.
Consideramos que essa noção é apropriada por refletir as
estratégias e as ferramentas empregadas na escrita de um gênero
didático por cada autor. Com o propósito de produzir um modelo

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de gênero, como o didático, os agentes responsáveis por essa
produção devem ser capazes de “operar inevitavelmente com
enunciados concretos (escritos e orais) relacionados a diferentes
campos da atividade humana e da comunicação (...) (BAKHTIN,
2010, p. 264), e de eleger saberes já difundidos que não foram
produzidos por eles, somente consumidos, que serão transpostos
no processo de escrita e de produção de um objeto de ensino.
A esse respeito, Chevalhard (1989) defende a ideia de que
um saber teórico para se tornar escolarizável ou didático deve
passar por determinadas adaptações, processo denominado de
transposição didática. A teoria didática deve Inicialmente postular
como um objeto teórico estabelece uma relação ternária a que
Chevalhard denomina de relação didática. A relação didática
une três, não dois “objetos”, a saber: o professor, o aprendiz e, por
último, o conhecimento; ou, para ser preciso, o conhecimento
ensinado (CHEVALHARD, 1989, p. 4 – tradução nossa).7
Em outros termos, transposição didática compreende
a passagem do conhecimento científico (fruto da investigação
científica) para o conhecimento a ser ensinado (saber que ocorre
dentro do ambiente escolar, especificamente na sala de aula) sob
um conjunto de transformações e adaptações, em que os agentes
(professores, autores, editores, etc), que atuam no processo
de ensino, precisam apropriar-se para tornar o conceito mais
compreensível para àqueles que vão apreender.
Baseando-se em outros estudiosos, a apropriação da noção
de transposição didática não se restringe a um único domínio,
linguistas aplicados, como Machado e Cristovão, dedicam-se em

7
Texto original em inglês: “didactic theory must from the start posit, as a theoretical entity,
a ternary relation, which I call the didactic relation. The didactic relation unites three, not
two, “objects”: to wit, the teacher,, the taught, last but not least, knowledge; or, to be yet
more precise, the knowledge taught”.

56 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
explicar que a transposição de um determinado objeto teórico
acontece depois de passar por três níveis básicos de transformações:

o conhecimento científico se transforma em conhecimento


a ser ensinado; o conhecimento a ser ensinado se transforma
em conhecimento efetivamente ensinado; e o conhecimento
efetivamente ensinado se transforma em conhecimento efetivamente
aprendido (MACHADO; CRISTOVÃO, 2006, p.552).

Nessa perspectiva, podemos arrolar dois níveis básicos de


transposição: a transposição didática externa e a transposição didática
interna. A primeira envolve a análise dos mecanismos adotados
pelos agentes na adaptação do objeto teórico para o objeto do
saber a ser ensinado, atendo-se as ferramentas usadas no processo
da transformação dos conhecimentos, processo normalmente
adotado na confecção de materiais didáticos impressos, como o
livro didático.8
Já a segunda, refere-se aos segundo e terceiro níveis da
transformação em que se analisa a passagem do conhecimento
a ser ensinado ao conhecimento efetivamente ensinado e
posteriormente, o conhecimento efetivamente aprendido. A
transposição didática interna dedica-se a analisar os mecanismos
apropriados pelos agentes (especialmente os professores) e usados
dentro do contexto escolar (especialmente na sala de aula), visando
investigar as ferramentas didáticas (como as sequências didáticas –
doravante SD –) utilizadas no processo de ensino aprendizagem e
na eficiência dos mecanismos adotados por esses agentes (DOLZ,
GAGNON; CANELA-TREVISI apud BARROS, 2012, p. 13).
8
SANTOS (2000, p.60) em sua tese: “A representação da coerência textual na formação
do alfabetizador”, reflete que a transposição didática pressupoõe “uma visão reducionista
dos saberes escolares”, já que por um lado a diversidade dos discursos por onde circulam
os saberes não é levada em conta e por outro, as interações e confrontos entre os saberes
eruditos e escolares também não. Disponível em <http://repositorio.unicamp.br/bitstream/
REPOSIP/269699/1/Santos_CosmeBatistados_D.pdf>. Acesso em 17 de mar. De 2018.

57 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
Neste trabalho, descrevemos três ferramentas mediadoras
empregadas no processo de transposição didática externa: i) o
modelo teórico do gênero; ii) as ferramentas digitais e semióticas;
iii) as ferramentas digitais e semióticas.
O modelo téorico do gênero é uma ferramenta basilarmente
teórica com o propósito de ancorar práticas didáticas em uma
sequência casual de transposição didática que se apropria de um
modelo teórico de uma determinada área do conhecimento para
a criação do modelo didático (BARROS, 2012, p. 15).
Por ferramentas digitais e semióticas compreende-se o
conjunto de textos verbais e não-verbais que compõe o design
gráfico que dá origem ao modelo didático do gênero. As
ferramentas digitais constituem, neste tipo de material, de boxs,
quase sempre, laterais ao texto, cuja função é instruir ao aluno
em EaD a consultar sítios da internet para pesquisas, solicitar o
acesso a uma plataforma digital de apresendizagem e as salas de
bate-bapo. É nesse espaço que o aprendiz mantém interação com
professores-formadores, tutores, colegas e troca experiências sobre
sua aprendizagem, além de ser possível expandir seus estudos. Já
as ferramentas semióticas são a inserção de imagens, desenhos,
ilustrações, tabelas, figuras, etc que formam o acervo de textos
não-verbais.
Prosseguindo, modelos didáticos de gêneros são objetos
descritivos e operacionais que, quando construídos, facilitam a
apreensão da complexidade da aprendizagem de um determinado
gênero (DE PIETRO et al; 1996/1997 apud MACHADO
E CRISTOVÃO, 2006). Ainda, segundo os autores, seria
imprescindível criarmos materiais didáticos apropriados, que
permitissem a transição dos objetos teóricos em gêneros cuja
função precípua e a de serem objetos de ensino, considerando,

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neste processo,o nível das aptidões dos alunos, isto é, a produção
de um modelo didático de gênero adequado.
Barros; Mafra (2017, p. 18) creem que o modelo didático
além de ferramenta fundamental para didatizar um objeto de
ensino, é também um mecanismo precioso para formar docentes,
pois relatar um gênero e adequá-lo a determinado ambiente de
educação exige uma série de conhecimentos que possibilitam ao
professor desenvolver habilidades indispensáveis ao contexto de
ensino.
Para Rojo (2001, 317), modelização didática é a construção
de um modelo didático para ensino de determinado objeto
teórico. Modelizar é o primeiro passo no quadro teórico do
ISD9 da transposição didática. O modelo didático auxilia no
processo de transposição didática especialmente no primeiro
nível da transposição: a passagem do conhecimento científico
ao conhecimento a ser ensinado. Durante o processo, é papel do
agente se apropriar de ferramentas que facilitem a transposição
do conhecimento produzido na academia, transformando-o
em conhecimento adequado a ser ensinado, ora introduzido
em materiais didáticos, a introduzido no ambiente escolar,
cujo processo de ensino-aprendizagem precisa ocorrer de
forma eficaz, pois a transposição deve tornar um determinado

9
O Interacionismo Sociodiscursivo (doravante ISD) constituiu-se, de início, de um grupo
de pesquisadores da Universidade de Genebra que debruçaram seus estudos sobre temas
que focalizaram: 1) as ferramentas de ensino, o que envolveu a descrição das características
de gêneros variados, a construção de modelos didáticos de gêneros, análise de materiais de
ensino; 2) o aluno e a avaliação do desenvolvimento de diferentes práticas de linguagem,
tendo em vista as atividades de um determinado gênero; 3) o professor em formação ou no
formador de professor e as representações sobre situações específicas que envolvem a produção
e avaliação de textos diversos, etc. Em se tratando deste trabalho nos interessa, especialmente,
as pesquisas que refletem a seleção e a adoção de ferramentas de ensino que possibilitam a
produção de um gênero apropriado ao ensino a distância. Neste quadro teórico, não podemos
deixar de destaca nomes como de Bronckart, Schneuwly e Dolz e alguns nomes brasileiros,
como Machado, Rojo; Dionísio, Cristovão, Bezerra, entre tantos outros que, apenas por
ausência de espaço, não citaremos. (MACHADO, 2005, p.237-238)

59 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
conhecimento/conceito mais compreensível (BROCKINGTON,
PIETROCOLA, 2005).
A compreensão de como se efetua o processo de transposição
depende ainda de se considerar os tipos de enunciados empregados
para compor os diferentes gêneros dos discursos (BAKHTIN,
2010) e de conhecer-lhes o funcionamento e a sua intenção
sociocomunicativa para ser capaz de produzir um gênero didático.
Nesta direção, o aparato teórico da Análise Textual do
Discurso (ATD), principalmente as reflexões que derivam
de Bakhtin(2010) e de estudiosos que compõem o quadro
sociodiscursivo para o estudo de noções como gênero textual/
discursivo, enunciado, autoria e das reflexões rabatelianas sobre
locutor/enunciador, ponto de vista (PDV ), posicionamento
autoral e posturas enunciativas são imprescindíveis na condução
desta pesquisa e as quais apresentaremos na sequência.

Autoria, ponto de vista e posicionamento autoral na produção


de um modelo didático de gênero

Para a Análise Textual do Discurso, o texto é concebido na


esfera do signo, como fato de linguagem que reporta a memória da
língua, pois as diferentes formações discursivas presentes no texto
estão relacionadas com a constituição do sujeito, compreendido
no espaço social ideológico, em que “a voz desse sujeito revela
o lugar social; logo, expressa um conjunto de outras vozes
integrantes de dada realidade histórica e social; de sua voz ecoam
as vozes constitutivas e/ou integrantes desse lugar sócio-histórico”
(FERNANDES, 2008, s/p).
Deste modo, convém mencionar as contribuições de
Mikhail Bakhtin em estudos e pesquisas que se dedicam a refletir

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sobre o texto como lugar de enunciação10, isto porque, para o
filósofo russo, a comunicação humana concretiza-se em forma
de enunciados11 orais ou escritos que refletem as condições e as
finalidades da esfera a qual pertencem. Bakhtin (2010), afirma que
cada contexto da utilização da língua produz tipos relativamente
estáveis de enunciados, sendo denominados gêneros do discurso12.
Estes apresentam aspectos como: a variedade dos extratos, a
manifestação individual e o estilo13 de quem fala ou escreve. O
que nos permite entender que cada atividade humana, em especial,
cada sujeito faz emergir tipos específicos de enunciados, cujas
propriedades (lexicais, gramaticais e de estilo) revelam limites
organizacionais que precisam ser analisados, a partir das noções
como enunciador e locutor.
Na mesma direção, Alain Rabatel propõe a distinção entre
locutor e enunciador. Em linhas gerais, assevera que o locutor
é aquele que tem a função de articular os enunciados através
do discurso oral ou escrito e o enunciador é “fonte dos pontos
de vista contidos em uma predicação” (RABATEL, 2015, p.
158), organizada unicamente pelo texto que se manifesta por
meio da escolha das referências, ou seja, a escolha das palavras,
quantificação, designação, ordem das palavras e etc. E essas
escolhas expressam traços das representações do ponto de vista
(PDV), que nem sempre estão explícitos no enunciado, podendo
ser inferido pelo leitor.
10
Irene A. Machado (1996) em “Texto como Enunciação a Abordagem de Mikhail
Bakhtin”, revê as reflexões bakhtinianas de gênero do discurso para discutir como o texto é
constituído pela enunciação. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/linguaeliteratura/
article/view/114125/112013. Acesso em 02 de jun. 2018.
11
Em uma perspectiva bakhtiniana, o enunciado é a unidade mínima da comunicação
discursiva e um elo entre vários enunciados, que preserva as reações assumidas pelos
interlocutores.
12
Provenientes das mais variadas atividades humanas, sendo classificados em gêneros
primários (simples) e secundários (complexos).
13
“Nada mais é senão o estilo de um gênero peculiar a uma dada esfera da atividade e da
comunicação humana” (BAKHTIN, Mikhail, 2010, p 160).

61 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
As bases linguísticas da expressão do ponto de vista repousam
sobre a expressão das percepções e/ou pensamentos representados.
As percepções estão sob dependência sintática de um sujeito e de
um processo de percepção mencionados nos dois primeiros planos
ou sob dependência semântica de um agente ou um processo que
o texto não menciona explicitamente e que o leitor reconstituiria
por inferência (RABATEL, 1998 apud FARIA, 2015, p. 63-64).

Para ele, a ordenação do enunciado de modo subjetivo ou


objetivo está acoplado a um ponto de vista. Já que:

do enunciado, subjetivo ou objetivo, tem uma fonte (enunciativa)


que se pode analisar em termos de subjetividade que se relaciona
com a escolha do plano de enunciação e da forma de expressão
a cálculos retóricos-argumentativos dos locutores/enunciadores”
(RABATEL, 2015, p. 157).

Nesse sentido, Rabatel promove a distinção dos tipos


de enunciação que evidenciam o modo em que os pontos de
vista são hierarquizados através das posturas enunciativas de
sobrenunciação (a voz do discurso citante sobrepõe o a voz
discurso citado), subenunciação (a voz do discurso citado sobrepõe
a voz do discurso citante) e co-enunciação (há o balanceamento
entre as vozes do discurso citante e o discurso citado). Considera
também o PDV como uma ferramenta que auxilia a pensar
na organização e na unidade do texto, e atribui relevância a
problematização do PDV, pois segundo ele “permite dar conta da
complexidade danossa relação não só com os outros, mas também
da alteridade em nós, na e pela linguagem, e em razão da lógica
da empatia que nos leva a nos colocarmos no lugar dos outros
para encarar tal objeto ou tal situação” (RABATEL, 2015, p. 157).
Assim, a unidade do texto e sua coerência tornam-se efeito
da autoria, pois ao se posicionar e realizar escolhas (lexicais,

62 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
gramaticais e de estilo) o autor se baseia na representação que
tem de si e da sua obra, nesta mesma perspectiva Maingueneau
(2010), reitera:

o escritor constrói uma apresentação de si através de seus


comportamentos verbais ou não verbais, (...) o autor produz
inevitavelmente esses sinais ao levar em conta a imagem que tem
de sua pessoa e de sua obra elaborada por terceiros mediante seus
discursos (MAINGUENEAU, 2010, p. 147).

Em vista disso, os limites organizacionais são definidos pelo


autor ao realizar o agrupamento do discurso, ele se posiciona
14

e assume a responsabilidade enunciativa, ainda que não seja o


responsável pela ideia ou pelo tema que expõe. Sobretudo pela
maneira que diz, pois ao escolher mencioná-los de tal forma,
realiza sua escolha dentre outras opções existentes com o intuito
de estabelecer a unidade e a coerência do discurso no texto.
Logo, o PDV, a postura enunciativa, a imagem que o autor
tem de si, da sua obra e do seu interlocutor são fundamentais na
mobilização dos seus conhecimentos, tendo em vista a elaboração
da sua obra, com o intuito de fazer com que ela seja aceita e que
cumpra a função por ele almejada. O que só é possível através
da seleção prévia das ferramentas didáticas, da manifestação
do posicionamento autoral, mesclando discursos próprios e os
discursos de terceiros, a fim de construir a unidade do texto
adequado ao propósito comunicativo. É o que veremos na
descrição e análise dos dados a seguir.

14
“O autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos, representa,
pela linguagem, esse papel na ordem em que está inscrito, na posição em que se constitui,
assumindo responsabilidade pelo que diz, como diz”. ( ORLANDI, 2005, p.76).

63 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
A produção de um modelo didático de gênero: caderno didático
da UAB/Unimontes

Antes de darmos início a análise de dois cadernos didáticos


da UAB/Unimontes, que constituem o corpus deste trabalho, fez-
se necessário descrever o percurso metodológico selecionado por
esta pesquisa. Nos guiamos por duas orientações metodológicas,
a pesquisa qualitativa, que interpreta os fatos pesquisados e
verifica a ligação de causa e efeito para a explanação desses
fatos (NICOLAU, 2013, p.7), e a descritiva em que“os fatos são
observados, registrados, analisados, classificados e interpretados
sem que o pesquisador interfira neles” (NICOLAU, 2013, p.7).
A aplicação dessas técnicas se mostraram apropriadas a
análise de dois cadernos didáticos impressos que compõem o corpus
desta pesquisa, extraídos da 1ª reedição dos cadernos de Língua
Portuguesa/Linguística que compõem o conjunto de materiais
didáticos obrigatórios do curso de Letras/Português para o
período 2014-2017 da UAB/Unimontes, são eles: Introdução à
Leitura -1º período e Ensino de Gramática na Escola – 4º período.
Em se tratando dos dois materiais didáticos selecionados,
eles foram escritos de forma compartilhada e têm, grosso modo,
a mesma estrutura: capa, folha de rosto, sumário, lista de tabelas,
gráficos, quadros e figuras (opcionais), apresentação geral do
caderno, divisão do caderno em unidades (essas unidades são
definidas em razão da carga horária de cada disciplina15), e

15
Total de número de páginas para disciplinas de 90 horas/aulas estipulado pela UAB/
Unimontes: mínimo de 90 e máximo de 135 páginas. Os dois cadernos didáticos foram
produzidos para disciplinas de 90horas/aulas e não cumpriram essa determinação. O
caderno didático de Introdução à Leitura tem 6 unidades, distribuídas em 80 páginas, já, o
caderno de Ensino de Gramática na Escola tem 4 unidades organizadas em 66 páginas. Neste
trabalho, ainda em andamento, não consideramos essas variáveis, no entanto, reconhecemos
a validade desses dados e retornaremos a eles em trabalhos futuros.

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boxes nas laterais do texto, contendo: “Atividades”, questões
“Para Refletir”, “Dicas de Estudo” e “Glossário”; elementos que
compõem o design visual do gênero confeccionado, refletindo a
recorrência no emprego das ferramentas digitais e semióticas.
Partindo da premissa de que o material didático impresso
elaborado para a modalidade EaD é um ato de fala impresso
pertencente à comunicação verbal, que materializa pistas do ponto
de vista (PDV) através do posicionamento autoral defendido por
meio da modelização no ato de transpor conhecimentos, serão
analisados os excertos extraídos dos cadernos Introdução à Leitura16
- 1° período e Ensino de Gramática na Escola17 – 4° período, que
podem assim serem descritos:

Figura 1: Capa do Caderno Introdução à Leitura18


16
Disponibilizado em: <http://www.ead.unimontes.br/arquivos/cadernos/uab/oferta2/
letras portugues/periodo1/introducao-a-leitura.pdf>. Acesso em 07 de fev. de 2018.
17
Disponibiizado em: <http://www.ead.unimontes.br/arquivos/cadernos/uab/oferta2/letras-
portugues/periodo4/ensino-gramatica-escola.pdf>. Acesso em 07 de fev. de 2018.
18
Fonte: http:<//www.ead.unimontes.br/arquivos/cadernos/uab/oferta2/letras-portugues/
periodo1/introducao-a-leitura.pdf>

65 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
Figura 2: apa do Caderno Ensino de Gramática na Escola 19

O Caderno de Introdução à Leitura (2ª edição, 2013) foi


produzido por dois autores e disponibilizado pela Unimontes para
a 1ª reoferta do curso. O caderno está organizado em oitenta
páginas e contém: capa, ficha catalográfica, formação acadêmica
dos autores, sumário, apresentação, seis unidades temáticas,
contendo, cada uma, introdução e referências, além de resumo,
referências básicas e complementares do caderno e atividades de
aprendizagem avaliativas.
O Caderno Ensino de Gramática na Escola (1° edição,
2015) revisto e reeditado também para a 1ª reoferta do curso. O
caderno contém 66 páginas divididas emquatro unidades, além
do resumo, referências básicas e complementares” e “atividades
de aprendizagem – AA. O material didático foi escrito de forma
compartilhada por quatro autoras, apresentando a seguinte
estrutura: capa, folha de rosto, ficha catalográfica, formação
19
Disponível em http:<//www.ead.unimontes.br/arquivos/cadernos/uab/oferta2/letras-
portugues/periodo4/ensino-gramatica-escola.pdf>

66 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
acadêmica dos autores, sumário, apresentação geral do caderno,
lista de tabelas, gráficos, quadros e figuras (opcionais), divisão do
caderno em unidades, e boxes nas laterais do texto, contendo:
“Atividades”, questões “Para Refletir”, “Dicas de Estudo” e
“Glossário”.
A recorrência dessas ferramentas didáticas permite revelar
os mecanismos enunciativos, textualizadores e o gerenciamento
das vozes no discurso, os quais foram elaborados com o propósito
de tornar a transposição didática adequada ao contexto de ensino-
aprendizagem. Conforme se verá nos excertos abaixo.

Exemplo 1:

O excerto extraído da unidade 3, aborda a relação entre


Texto e Textualidade, e para subsidiar a proposta transpõe noções
de Ducrot (1987) e alude à COSTA VAL (2004), observe:

“Um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas


constrói-se através de um já-dito em relação ao qual ele toma
posição” (COSTA VAL, 2004, p. 15). Ou seja, alguns textos só fazem
sentido quando postos em relação a outros textos, que funcionam
como seu contexto. Desta forma, avaliar a intertextualidade pode
significar analisar a presença dessa fala subliminar, de todos e de
ninguém, nos textos estudados.
(Fragmento do caderno Introdução à Leitura, fragmento da unidade
3 - Texto e textualidade, p.45, grifos nossos).

O caderno didático é um ato de fala impresso, elaborado


como intuito de propiciar a compreensão ativa, sob a forma
do discurso dialógico. Isso implica a utilização de ferramentas
didáticas, na transformação dos conteúdos teóricos considerados
complexos. Conforme pode ser observado no fragmento acima,

67 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
o autor orientando-se pela teoria da polifonia de Ducrot (1987)
defende o PDV de que o texto é construído de maneira múltipla,
pois  é marcado pela “fala subliminar, de todos e de ninguém”.
Neste sentido, o autor cita Costa Val (2004) e assume a postura
enunciativa desubenunciação, ou seja, reporta a uma autoridade a
fim de promover a consistência do PDV defendido, ao discorrer
sobre a intertextualidade. No entanto, a citação por si só não
seria suficiente para que o leitor-aluno entendesse, conforme
pode ser observado no comentário do autor em “ou seja, alguns
textos…”. O autor dessa unidade faz com que o leitor se convença
de que seu ponto de vista encontra eco nas reflexões de Val. A
construção do modelo didático de gênero se realiza por meio desse
gerenciamento de vozes e na adoção de uma ferramenta presente
na unidade, a caixa de texto “dica”,empregada com o intuito de
o autor informar ao aluno que ele terá a oportunidade de “estudar
diferentes formas de fazer citação na disciplina Metodologia
Científica, ofertada no 2° período do curso.

Exemplo 2:

Já o excerto abaixo, retirado da unidade 2, apresenta


reflexões sobre a leitura. Para isso, o locutor/enunciador recorre
a concepção De Certau (1994) e estabelece a coenunciação, ou
seja, cita, compartilha o mesmo PDV que o engaja enquanto
enunciador no ato de modelizar o texto. Observe:

68 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
Bem longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio,
herdeiros doslavradores de antanho – mas, sobre o solo da linguagem,
cavadores de poços econstrutores de casas - os leitores são viajantes;
eles circulam sobre as terras deoutrem, caçam, furtivamente, como
nômades através dos campos que não escreveram,arrebatam os bens
do Egito para com eles se regalarem. (DE CERTAU,1994, p. 11).

Essas considerações nos permitem dizer que as palavras, muito


embora não tenham umsentido fixo, carregam significações que
permitem ao leitor passar por diversas e sucessivas sondagens
.(Fragmento do caderno didático Introdução à Leitura, unidade 2 -
Reflexões em torno da leitura, p.26, grifos nossos).

No excerto acima, a concepção de leitura (possibilita


inúmeras interpretações) transposta pelo locutor. No comentário,
o autor modifica a citação de DeCertau (1994) e gerencia as vozes
autorais, como pode ser observado em “nos permitem dizer”, bem
como em “Havemos de concordar” no exemplo 3. O ponto de vista
é constituído de várias vozes, confirmado pelo o emprego do verbo
“haver” na primeira pessoa do plural, o que denota que a postura
enunciativa presente nesses fragmentos é de co-enunciação. Ao
recorrer a citação de De Certau, o autor mostra o embasamento
teórico da qual se apropriou de outros autores, no processo de
produção do objeto didatizado, o que se realiza, ao longo de
toda a unidade, em um projeto gráfico composto de quadros,
figuras, boxes com atividades complementares e dicas que é uma
ferramenta empregada com o intuito de estabelecer um vínculo de
proximidade com o aluno e estimulá-lo durante a sua formação,
como é possível observar na análise do posicionamento autoral.

69 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
Exemplo 3:

A discussão feita nesta disciplina se ancora, principalmente,


nos seguintes autores: Travaglia (1996), Neves (1990), Possenti
(1996), Bagno (2001) e os documentos oficiais de parametrização
de Português nas escolas brasileiras: Parâmetros Curriculares
Nacionais – PCN, Conteúdos básicos Comuns de Língua
Portuguesa – CBC/LP. (...). As SUGESTÕES e DICAS PARA
ESTUDO e PARA PESQUISAS COMPLEMENTARES estão
localizadas junto aos textos. Elas são oportunidades para você se
tornar um aprendiz autônomo, qualidade que hoje se faz cada vez
mais necessária em todas as áreas.
(Caderno Ensino da Gramática na Escola, fragmento do texto de
apresentação/Informações sobre a disciplina, p. 9-10 , grifos nossos.).

Esse fragmento foi retirado do texto de “Apresentação”, no


qual as professoras-conteudistas dão as “boas-vindas” aos alunos
e fazem uma exposição geral do caderno, mostrando de forma
sucinta o conteúdo que será trabalhado ao longo da disciplina
“Ensino da Gramática na Escola”. No trecho ”A discussão feita
nesta disciplina se ancora, principalmente, nos seguintes autoresӎ
possível reconhecer o uso da modelização didática em que as
professoras-conteudistas mostram os autores (...”Travagia (1996),
Neves (1990), Possenti (1996), Bagno (2001)...”) e as obras (...”e os
documentos oficiais de parametrização de Português nas escolas
brasileiras: Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, Conteúdos
básicos Comuns de Língua Portuguesa – CBC/LP...”) das quais
se apropriaram no processo da transposição do objeto teórico
para o objeto a ser ensinado, visando tornar o ensino da disciplina
mais compreensível para os alunos. A modelização didática,
ferramenta didática usada pelas professoras-conteudistas, nesse
processo, é uma ferramenta que revela a escolha das atividades

70 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
e sugestões de leitura por parte das professoras na produção do
material didático, estratégia adotada em todo o material em boxes
nas laterais do texto contendo, além das atividades e sugestões,
questões estimuladoras e dicas de estudo. Além disso, evidencia
uma postura co-enunciativa, pois os PDVs externos e internos
estão cocomitantemente organizados. Através da expressão:
“são oportunidades para você se tornar um aprendiz autônomo”, o
enunciador/locutor demontra seu PDV em que coloca-se no lugar
daquele que indica os caminhos, tendo em vista que o aluno é o
único responsável por se processo de aprendizagem.

Exemplo 4:

Finalmente, concordamos que “cabe à escola e ao professor a tarefa


de selecionar e sequenciar os conteúdos, considerando o que for,
de um lado, possível a seus alunos e, de outro, necessário, em
função dos objetivos do projeto educativo da escola”. Havemos
de concordar que os documentos oficiais de parametrização do
ensino de Língua Portuguesa são norteadores da ação de planejar
que deve ser executada por todo professor que queira ter sucesso
em sua atividade profissional.
(Caderno Ensino da Gramática na Escola, fragmento da unidade
3, p. 44 , grifos nossos.)

O fragmento acima foi retirado da penúltima unidade do


caderno, “Unidade 3 – Métodos e Procedimentos Didáticos
para o Ensino de Gramática”,que trata da importância do
planejamento, e, apresenta uma discussão sobre os documentos
oficiais que norteiam o planejamento da disciplina Língua
Portuguesa. Ao utilizar o verbo concordar na primeira pessoa
do plural, o locutor (responsável por articular o discurso oral ou
escrito) assume a responsabilidade enunciativa de que tanto ele

71 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
como os demais autores do caderno didático defendem o mesmo
PDV de que cabe à escola e ao professor a responsabilidade de
selecionar e sequenciar conteúdos.
Não obstante,  atribui o mesmo acento valorativo “global” ao
utilizar a locução verbal havemos de concordar, que representa não
só o leitor-aluno, mas também o locutor e os autores. Ao realizar
a ressonância de vozes, o locutor a faz visando obter adesão ao seu
discurso, conforme pode ser observado na escolha do verbo“deve
”no imperativo, que em linhas gerais sugere a parametrização do
Ensino da Língua Portuguesa através do ensino dos conteúdos
básicos comuns da Língua Portuguesa (CBC/LP). Há também
a defesa do PDV de que o sucesso profissional do docente está
relacionado com a observância do CBC/LP e da transposição
adequada do que for “possível a seus alunos,... necessário, em
função dos objetivos do projeto educativo da escola”. . Por meio
disso, percebe-se o processo de modelização do gênero, tendo em
vista que os procedimentos dos locutores revelam as seguintes
características: “consulta aos especialistas; análise de um corpus
representativo do gênero; observação do contexto de ensino;
e seleção de dimensões ensináveis para o contexto de ensino”,
conforme visto em (BARROS; MAFRA, 2017, p. 7).

Últimas reflexões

A análise parcial revelou as capacidades acionais e as


estratégias adotadas pelos professores conteudistas, comoa
mobilização, por meio de um posicionamento enunciativo/
autoral,de vozes que permitiram o processo de modelização
didática do discurso científico na produção de um gênero didático

72 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
apropriado a formação de professor de Língua Portuguesa pela
UAB/Unimontes.
Há de considerar ainda que na produção dos cadernos
didáticos tem a ação da instituição que elegue e determinou os
procedimentos teórico-metodológicos e a ação dos professores-
autores, que mesmo guiados por diretrizes institucionais escritas20,
assumem um posicionamento autoral que antecede a escrita
do gênero textual/discursivo. A mobilização de estratégias que
permite a configuração de um posicionamento enunciativo,
e de como cada voz autoral se apropria e gerencia outras
vozes na escrita do texto, sem deixar de considerar aspectos
composicionais, estéticos que se revestem na identidade do gênero
produzido,possibilitando a produção de um modelo didático de
gênero com identidade própria.

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BARROS, Eliana Merlin Deganutti de; MAFRA,Gabriela Martins.


Ferramentas para o planejamento de ensino: foco na transposição
didática externa de gêneros textuais. Raído, Dourados, MS, v. 11, n. 25,
p.13 – 36, jan./jun. 2017.
20
O Sistema UAB/Unimontes confeccionouDiretrizes para elaboração do material didático
para dar conhecimento dos procedimentos metodológicos que devem ser adotados na
produção do material didático impresso. No documento,são descriminadas a importância
do material, a organização do caderno didático: estrutura, composição e projeto
gráfico( JÚNIOR, et al, 2010).

73 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
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76 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 51-76 – jan./jun. 2018
A ILUSÃO DA REVERSIBILIDADE COMO
PROPRIEDADE DO DISCURSO RELIGIOSO

Rosemeri Passos Baltazar Machado (UEL)1


Éder Wilton Gustavo Felix Calado (PG-UEL)2

Resumo: O discurso religioso possui propriedades que o definem como tal. Uma delas
é a chamada ilusão da reversibilidade, que consiste ilusória mudança de lado entre os
interlocutores, algo normal em qualquer discurso, mas barrado nos discursos autoritários,
sendo este o caso do discurso religioso. Entretanto, para que o discurso religioso se realize,
existe a ilusão da reversibilidade, possibilitando a impressão de que “Deus” se faz presente
no ato religioso e permitindo o alçar do fiel até ele. Além disso, o presente artigo traz
marcas do discurso religioso, dentre elas a performatividade, traço que, muitas vezes, é
o responsável pela ilusão da reversibilidade.

Introdução

Trabalhar o discurso religioso, hoje, é algo comum, pois


se podem encontrar estudos sobre discursos de líderes religiosos
de várias vertentes, principalmente, de pastores evangélicos de
alcance nacional por meio da televisão. São trabalhos de vários
ramos da linguagem ou de outras ciências humanas, procurando
expor nuances dos discursos, como as estratégias de manipulação,
os subentendidos, as ideologias imbricadas, os interdiscursos e
outras características.
Este artigo, por sua vez, tem por objetivo versar sobre uma
propriedade do discurso religioso segundo a teoria de Orlandi
(2003), trata-se da chamada ilusão da reversibilidade, um conceito
1
Docente do departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem (PPGEL - UEL).
2
Mestre em Estudos da Linguagem pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da
Linguagem (PPGEL - UEL) e doutorando pelo mesmo programa.

77 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
que parte da noção de reversibilidade, inversão do posicionamento
do locutor com o do ouvinte nos discursos, algo comum a todos
os discursos e quase que anulado nos discursos autoritários,
dentre eles o religioso. Contudo, neste há a impressão, ilusão, da
reversibilidade.
Para seu intento, este trabalho apresenta três tópicos. O
primeiro apresenta o conceito da reversibilidade, mostrando que
a não reversibilidade é uma propriedade do discurso autoritário,
entre eles, do discurso religioso. O tópico seguinte versa sobre a
ilusão da reversibilidade no discurso religioso, apresentando a tese
de Orlandi (2003). Por fim, o último tópica trabalha as diversas
marcas do discurso religioso. Trata-se de um tópico necessário,
pois no segundo tópico é citada a performatividade como uma das
marcas do discurso religioso, logo outras marcas existem e devem
ser destacadas, a fim de auxiliar o entendimento do funcionamento
do discurso religioso.

A não reversibilidade como propriedade dos discursos


autoritários

Em trabalho publicado em 2003, Orlandi distingue três


tipos de discurso: discurso lúdico, discurso polêmico e discurso
autoritário. Para ela, o discurso religioso poderia, perfeitamente,
encaixar-se no último. A noção fundamental na classificação
desses tipos de discurso é a reversibilidade, ou seja, a não fixação
do posicionamento tanto do locutor como do ouvinte, os quais –
afetados pelo simbólico da língua – podem transpor o seu lugar
de origem. Conforme as palavras da autora:

78 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
Pela noção de reversibilidade, proponho não fixar de forma
categórica o locutor no lugar do locutor e o ouvinte no lugar do
ouvinte. Em minha perspectiva, esses polos, esses lugares, não
se definem em sua essência mas quando referidos ao processo
discursivo: um se define pelo outro, e, na sua relação, definem o
espaço da discursividade (ORLANDI, 2003, p. 239).

A reversibilidade, nesse sentido, torna-se um dos


parâmetros na definição de um discurso em suas propriedades,
ou seja, a reversibilidade é a condição do discurso, sem a qual ele
não se realiza. Orlandi (2003, p. 239):

Ao propor a reversibilidade como condição do discurso, procuro


estabelecer que, sem essa dinâmica na relação de interlocução, o
discurso não se dá, não prossegue, não se constitui. Isso, no entanto,
não significa que todo o discurso se estabelece na harmonia dessa
condição (2003, p. 239).

Este “não estar na harmonia da condição” da reversibilidade


aplica-se justamente ao discurso autoritário, pois ele busca
anular essa possibilidade, ou seja, no discurso autoritário, “o
ouvinte e o locutor são de tal forma capturados pela palavra
que a reversibilidade é estancada” – conforme Petean (2005),
comentando a citação retirada de Orlandi. Contudo, antes de
voltar ao estancamento existente no discurso autoritário, deve-se
observar melhor o funcionamento discursivo, a fim de entender
como funciona o discurso autoritário especificamente.
O funcionamento discursivo, o processo da reversibilidade
e da não reversibilidade, o funcionamento da linguagem, está
baseado na tensão existente entre a polissemia e a paráfrase.
Segundo Orlandi (2007), ao dizer o mesmo de forma diferente,
um ou outro ponto se mantém e isso se deve ao fato da existência

79 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
de uma memória, de uma memória do dizer anteriormente. Pode-
se dizer que a paráfrase reformula, mas, ao preservar certos pontos,
também visa a uma estabilização. Ao contrário da polissemia que,
por sua vez, promove a quebra e, consequentemente, representa um
deslocamento, uma ruptura na significação. Para Orlandi (2007,
p. 36), a polissemia “joga com o equívoco”.
Conforme a autora, o discurso autoritário procura
anular a polissemia, ou seja, busca a monossemia, que consiste
no estancamento do processo de ressignificação. Contudo,
não se pode afirmar que o discurso autoritário é um discurso
monossêmico, apenas que tende para isso, pois todo discurso é
incompleto, uma vez que tem relação com outros discursos e é
constituído por seu contexto imediato de enunciação e pelo seu
contexto histórico-social. Além disso, todo discurso “se institui
na relação entre formações discursivas e ideológicas”, assim, os
sentidos escapam do domínio do locutor. Segundo Orlandi (2003,
p. 240): “Poderíamos, então, dizer que todo discurso, por definição,
é polissêmico, sendo que o discurso autoritário tende a estancar
a polissemia”. Isto é, o discurso autoritário visa à contenção da
polissemia, já que procura não permitir a ressignificação de suas
“verdades”3, logo, busca somente a adesão e a submissão. Em suma,
o discurso autoritário visa somente à paráfrase, a fim de formatar
o pensamento daqueles que são seus alvos. Conforme as palavras
de Orlandi (2006, p. 24):

[...] o tipo autoritário é o que tende para a paráfrase (o mesmo) e


em que se procura conter a reversibilidade (há um agente único:
a reversibilidade tende a zero), em que a polissemia é contida
3
Esta palavra aparece entre aspas, porque todas as religiões afirmam serem detentoras da
verdade. Esse discurso inclusive veta, ou procura vetar, as ressignificações, pois, muitas
vezes, diferem do discurso aceito pelos autorizados a reproduzi-lo. Isso, às vezes, traz
contestação do poder.

80 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
(procura-se impor um só sentido) em que o objeto do discurso (seu
referente) fica dominado pelo próprio dizer (o objeto praticamente
desaparece) .

Esse processo é algo tão latente, que a restrição da relação


dialógica entre locutor e interlocutor acentua-se muito, para
não dizer que se completa, o que proporciona as condições para
o exercício da dominação sobre o outro, uma vez que não há
interlocução, apenas imposição. O discurso religioso, como um
discurso autoritário, é um bom exemplo desse tipo de manifestação
em que ocorre o mecanismo do autoritarismo discursivo.
Conforme Citelli (2002, p. 69):

[...] o paroxismo autoritário chega a tal grau de requinte que o


eu enunciador não pode ser questionado, visto ou analisado; é ao
mesmo tempo o tudo e o nada. A voz de Deus plasmará todas as
outras vozes, inclusive daquele que fala em seu nome: o pastor.

Orlandi (2006, p. 25) escreve que o discurso autoritário é


o dominante na sociedade atual, o que permite dizer que o uso
da linguagem está polarizado para o lado da paráfrase. Isso pode
ser facilmente observado em propagandas de cosméticos atuais,
os quais estão polarizados para um padrão de beleza rotulado
como único, ou seja, no caso das mulheres, todas devem usar
produtos que as tornem parecidas com celebridades como Gisele
Bündchen, dentre outras. Esse fato é tão marcante, que empresas
rivais utilizam o mesmo padrão de beleza em seus anúncios. Para
que isso ocorra, “a sociedade contemporânea sofre uma espécie
de patrulha ideológica patrocinada pela mídia que, com raras
exceções, esmera-se no intento de construir um pensamento
nacional homogêneo”, ou seja, poucos têm o direito de interpretar

81 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
a realidade e de produzir sentidos para ela, “à maioria é dado tão
somente o direito de concordar com essa interpretação e incluir-se
no rol dos seguidores conformados ou de se auto-excluir sempre
que optar pelo pensamento independente” (TONUS, 2002, p.
5). Esse fato é nítido, principalmente em coberturas jornalísticas
de acontecimentos políticos. Exemplo disso são as coberturas
feitas das manifestações ocorridas no Brasil, no início do ano
de 2015, bem como em anteriores, desde julho de 2013, durante
o torneio de futebol da Copa das Confederações. A mídia,
em geral, interpretou a realidade de maneira pouco imparcial,
homogeneizando o pensamento de que o governo é corrupto e
culpado pelas crises na economia, educação, saúde e outros.
Esse mecanismo afirmado por Tonus (2002, p. 6) é algo
facilmente visto no discurso religioso, nas igrejas em si, ao longo
da história, como, por exemplo, as excomunhões dos chamados
“hereges” feitas pela Igreja Católica, bem como o acesso permitido
somente aos sacerdotes aos livros sagrados e à interpretação dos
dogmas. Nas igrejas protestantes, houve também muita exclusão
e restrição às interpretações, mesmo logo após seu surgimento,
ocasião de intenso discurso de livre acesso à Bíblia. Como escreve
Tonus (2002, p. 6):

Assim, a interpretação constitui-se em privilégio, um monopólio


pertencente aos grupos sociais hegemônicos, cujos aparelhos
ideológicos encarregam-se de gerir a memória coletiva. Essa
situação caracteriza aquilo que Pêcheux (1997, p.58) identificou
como a  divisão social do trabalho de leitura,  em que é dado, “a
alguns, o direito de produzir leituras originais, logo ‘interpretações’,
constituindo, ao mesmo tempo, atos políticos (sustentando ou
afrontando o poder local); a outros, a tarefa subalterna de preparar
e de sustentar, pelos gestos anônimos do tratamento ‘literal’ dos
documentos, as ditas ‘interpretações’”.

82 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
A menção feita por Tonus a Pêcheux (1997, p. 58), leva-nos
a suas palavras sobre a divisão social do trabalho de leitura, uma
divisão que não é novidade na história das sociedades. Seguem
suas palavras:

[...] a divisão começou no meio dos clérigos, entre ‘alguns’ deles,


autorizados a ler, falar e escrever em seus nomes (logo, portadores
de uma leitura e de uma obra próprias) e o ‘conjunto de todos
os outros’, cujos gestos incansavelmente repetidos (de cópia,
transcrição, [...] codificação, etc.) constituem também uma ‘leitura’,
mas uma leitura impondo ao sujeito-leitor seu apagamento atrás
da instituição que o emprega. [...] é o apagamento de si na prática
silenciosa de uma leitura consagrada ao serviço de uma Igreja, de
um Estado, ou de uma empresa (PÊCHEUX, 1997, p. 58).

Portanto, esse processo de estancamento da reversibilidade


se dá devido à contenção da polissemia e à busca pela monossemia,
logo, pela paráfrase. No discurso autoritário, é a submissão àquele
que detém o discurso e pode atribuir sentidos a ele; no discurso
religioso, especificamente, tal posicionamento de submissão
é assumido, quando os ouvintes reconhecem um enunciador
supremo ou designam um como aquele que os nomeou e a
quem devem se submeter (PETEAN, 2005). Isso se dá por ser
um discurso que não deseja a contestação, pois interpretações
diferentes, leituras novas da “revelação/verdade” podem significar
enfraquecimento da autoridade vigente.

A ilusão da reversibilidade no discurso religioso

Como um discurso tipicamente autoritário, o discurso


religioso busca o estancamento da reversibilidade, retendo a

83 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
polissemia. Todavia, para que se realize, o discurso religioso
necessita da chamada ilusão de reversibilidade, o que é central
para Orlandi (2003, p. 251) e consiste na possibilidade de passar
do plano espiritual para o temporal e vice-versa. Segundo a autora,
isso pode acontecer de duas formas: 1) de cima para baixo (no
caráter performativo da religião), a ministração dos sacramentos,
a missa, as bênçãos, dentre outras coisas; e 2) de baixo para cima
(quando o homem se alça para “Deus”): visão, profecia, oração,
dentre outros. Trata-se de o ser humano entrando em contato
com o divino, em uma relação vertical, algo comum dentro da
religião cristã.
Segundo Orlandi (2003, p. 251), o “milagre é a confirmação
da ilusão da reversibilidade, da passagem de um plano a outro: nele
se juntam a interferência divina e a inexplicabilidade da ciência
dos homens”. Contudo, “qualquer que seja a forma de ilusão, trata-
se sempre de uma ilusão produzida e mantida dentro de regras”,
o que confirma a distância entre os planos – “Deus” (Sujeito) e
os seres humanos (sujeitos). Como dito acima, esse é o caso dos
performativos, os quais se encaixam nas chamadas marcas do
discurso religioso4, pois “para realizar esses atos, é preciso estar
investido de uma autoridade dada, ou pelo menos reconhecida,
pelo poder temporal, em condições muito bem determinadas,
em situações sociais bastante ritualizadas” (ORLANDI, 2003, p.
252), ou seja, somente os autorizados, normalmente os sacerdotes
ou sacerdotisas, a saber, pastores, padres e demais líderes, estão
autorizados e têm o poder de ministrar os sacramentos.
Ainda sobre os performativos, segundo Fiorin (2002, p.
170), “para que a ação correspondente a um performativo seja de

4
O último tópico deste artigo versa sobre outras marcas do discurso religioso. Estas demais
marcas foram trabalhadas separadamente para não haver quebra no assunto tratado aqui.

84 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
fato realizada, é preciso não somente que ela seja enunciada, mas
também que as circunstâncias de enunciação sejam adequadas”, o
que é facilmente compreendido, pois os atos religiosos ocorrem ou
no espaço sagrado ou em situações específicas, como um culto ou
missa, casamento, batismos, dentre outros, os quais, via de regra,
acontecem nos templos religiosos, às vezes fora deles, mas os
locais onde ocorrem acabam por possuir o sentido momentâneo
do templo. Outro exemplo, conforme Araújo & Franco (2010,
p. 251), está na palavra do padre durante uma oração (Oremos,
irmãos e irmãs...). Elas não resultarão em nenhuma ação se forem
proferidas em um supermercado ou em qualquer outro local que
não seja a instituição religiosa ou uma cerimônia religiosa realizada
em determinado local.
A performatividade confirma, ainda mais, a dissimetria
entre os planos, entre o Sujeito (“Deus”) e os sujeitos (seres
humanos). O primeiro institui, interpela, ordena, regula, salva,
condena, etc., os segundos respondem, pedem, agradecem,
desculpam-se, exortam, etc. Isso mostra que há uma distinção
grande entre os sujeitos, um demonstra o poder em relação ao
outro que, por sua vez, necessita da salvação que somente este
poder pode dar, por isso se submete ao discurso oficial da religião,
o qual o interpela e o faz seguir a ideologia em questão.
Orlandi (2003, p. 252-253) mostra que ser representante
no discurso religioso não significa estar no lugar de, mas estar em
seu lugar próprio, ou seja, não há a chamada retórica da apropriação,
conforme há em outros discursos, que é a transformação do sujeito
naquele do qual ocupa o lugar, exemplo disso tem-se no discurso
jurídico, no qual o juiz confunde-se com a própria justiça. No
discurso religioso, quem transmite a palavra de “Deus” o representa
legitimamente, mas não se confunde com Ele, conforme as
palavras da autora:

85 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
O representante, ou seja, aquele que fala do lugar de Deus transmite
Suas palavras. O representa legitimamente, mas não se confunde
com Ele, não é Deus. Essa, do meu ponto de vista, é a expressão
fundamental da não-reversibilidade. E daí a “ilusão” como condição
necessária desse tipo de discurso: como se fosse sem nunca ser
(ORLANDI, 2003, p. 253).

Contudo, no Brasil, hoje, há diversos líderes religiosos


que são tratados como “Deus”, apesar de nunca declararem isso.
Tanto é que muitas pessoas vão até eles como os “portadores
das bênçãos divinas”, como aqueles capazes de curar e realizar
grandes milagres. Além disso, são homens que se colocam como
infalíveis e donos da verdade. Mais do que isso, há algum tempo,
um líder evangélico foi denominado patriarca, isto é, esse líder
teria recebido a mesma bênção de “Deus” dada a Abraão como
patriarca do povo escolhido5. Esses exemplos podem até não
contrariar as palavras de Orlandi, mas passam perto disso.
Assim, poderíamos pensar em um desnivelamento entre o
locutor e o interlocutor: o locutor (apesar de padre, pastor e etc.) está
no plano espiritual e os ouvintes no material, consequentemente,
são impostos mundos completamente distintos. Dessa forma,
esse enunciador onipotente interpela seu sujeito e o atravessa
com ideologias cristãs e, por vezes, ações punitivas6, e a esse
enunciador é dado o status de excelência, único, todo poderoso,
o qual assujeitou indivíduos livres em sujeitos cristãos também
livres, mas com uma liberdade vigiada (PETEAN, 2005).
5
Essa informação foi veiculada, com repúdio, por vários sites populares do meio evangélico.
Exemplo: http://www.genizahvirtual.com/2010/07/as-loucuras-de-rene-terra-nova-o-
papa.html
6
As ideologias cristãs não necessariamente são punitivas. Observa-se no texto bíblico
diversos ensinos práticos, outros éticos, alguns referentes ao serviço litúrgico, dentre outros.
Mas o discurso religioso cristão (o ensinamento da maioria das igrejas) apela, normalmente,
para o aspecto punitivo a fim de dominar seus adeptos e coibir-lhes os questionamentos.
A punição, propriamente dita, será abordada quando as ideias de Michel Foucault forem
expostas posteriormente.

86 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
Esse desnivelamento entre Deus e o fiel, que se traduz por uma
relação de subordinação dos ocupantes do plano mortal com o
plano espiritual, intensifica a marca do autoritarismo do discurso
religioso (TORRESAN, 2007, p. 97).

Dessa forma, ou o fiel segue as doutrinas pregadas pelos


intermediários – sejam eles pastores, padres ou outros –, ou vive
de forma desvinculada das ideologias divinas pregadas por aqueles
que são autorizados a pregá-las. Assim, a escolha tomada implicará
em salvação ou castigo, conforme várias leituras religiosas cristãs.
Isso se dá, porque a ideologia do discurso religioso cristão – na
ótica de muitos segmentos, ao menos – sustenta-se nas oposições:
plano espiritual versus plano mortal; salvação versus castigo; fé
versus pecado, o que permite que os transmissores da verdade
divina possuam formas de controle e manipulação (TORRESAN,
2007, p. 97).
A respeito da posição dos que representam o discurso
religioso, Silva (2011, p. 3) escreve que nos ambientes discursivos,
em questão, “predomina-se de forma latente a dogmática da
simbologia” que está contida na autoridade da religião. Isso nada
mais é do que o fato de as lideranças religiosas serem “impostadas
de certa autoridade que seriam instituídas por uma instância
divinatória de proporções transcendentais, denominadas: ora
como o sagrado ora como o divino”. Com isso, as autoridades
religiosas, assumindo determinado posicionamento e usando do
poder que lhe é atribuído passam a falar e a agir em nome do
sagrado ou divino, o que lhes atribui poderes frente aos seguidores
como os representantes do sagrado, de “Deus”.
Silva (2011, p. 3) segue sua exposição mostrando, com
base nas palavras do teólogo católico – da chamada Teologia

87 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
da Libertação – Severino Croatto, que, na religiosidade7, o
sagrado se manifesta através dos símbolos – por exemplo, o
símbolo da eucaristia, ou da ceia para os protestantes –, que, por
sua vez, representam a linguagem fundamental da experiência
religiosa. Assim, Silva explica que os atos religiosos, litúrgicos,
representam símbolos, que nada mais são do que a representação
das revelações divinas e de sua presença em meio ao povo. Sendo
que uma consequência imediata disso é que “todo ato religioso é
compreendido como uma vivência específica do encontro entre o
ser humano e a simbologia do sagrado” (CROATTO apud SILVA
2011, p. 3), o que remete à noção de ilusão da reversibilidade de
Orlandi.
Todo esse processo faz com que os principais mediadores
entre o elemento humano e o divino “tornem-se obrigatoriamente
as lideranças religiosas resguardadas e protegidas pela concepção
teológica da doutrina da autoridade”. Além disso, as lideranças
instituídas são consideradas pela comunidade devota como porta-
vozes do sagrado. Assim, são as autoridades religiosas que, no
exercício de suas funções, atuam como principais responsáveis em
administrar, consagrar e descrever os significados dos símbolos.
Dessa maneira, “as instituições religiosas constituem-se assim
num espaço de interpretação, visto que atribuem aos elementos
simbólicos funções espirituais” (SILVA, 2011, p. 4).
Sendo assim, compreendemos que os representantes e
porta-vozes do sagrado, impostados pela chamada doutrina da
autoridade religiosa jamais se confundem com “Deus”. O que
há na relação entre esses interlocutores é uma ultrapassagem dos
planos a que pertencem, isto é, “Deus partilha com os homens
7
Aqui tem-se o termo religiosidade como o zelo religioso, as virtudes religiosas, não
como uma crença em si, a qual denomina-se religião, exemplo: cristianismo, hinduísmo,
dentre outras.

88 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
suas propriedades”, ou por outro lado, “o homem se alça até Deus”
(ORLANDI, 2003, p. 251). Assim, retomando as ideias de Silva
(2011, p. 5), o homem crê que atingiu qualidades atemporais,
como a onisciência e a onipotência, que de fato em si já denuncia
a presença de elementos inconsciente e ideológicos.
Ainda tratando da questão da ilusão da reversibilidade
propriamente dita, Orlandi escreve sobre dois tipos de ilusão, uma
legítima, a tentativa de ultrapassagem do ser humano em direção
a “Deus” e outra ilegítima, que consistiria em uma transgressão. A
pesquisadora escreve que “a ilusão da reversibilidade toma apoio
na vontade de poder”. Dessa forma, ter poder é ultrapassar. E ter
poder divino é ultrapassar tudo, é não ter limite nenhum é ser
completo” (ORLANDI, 2003, p. 253).
Isso é observado pela autora com base no maniqueísmo
existente na própria religião que há a ilusão da reversibilidade, que
cria o sentimento de identidade com “Deus”, sobre o que foi falado
até o momento. Contudo, existe outra forma de ultrapassagem,
ilegítima, ou seja, é uma transgressão. A autora afirma que seria
interessante um estudo sobre cada forma de transgressão, mas,
em suma, as transgressões nada mais são do que tentativas de se
ocupar um lugar nunca ocupado, contudo, ao ocupar um lugar
não ocupado se exclui, ou seja, quando procura ocupar o lugar
somente ocupado por “Deus”, automaticamente, o exclui desse
lugar, surge, então, a blasfêmia ou a heresia.
Sobre a blasfêmia, Orlandi (2003, p. 254) escreve um pouco,
baseada em estudos de Nancy Huston. Segundo esta autora, a
blasfêmia tornou-se preocupação obsessiva no cristianismo. Isso
porque a blasfêmia nada mais é do que o ultrajar a “Deus” por
pura malícia, uma vez que é algo que não prejudica ninguém,
apenas a “Deus” e de forma gratuita. Isso se faz por meio do uso

89 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
do nome de “Deus” em vão. Contudo, a nomeação demanda a
compreensão do objeto, mas “Deus” escapa à compreensão, logo
não deve ser nomeado como um objeto conhecido e palpável. Para
Huston, essa nomeação nada mais é do que a tentativa, a vontade
de ultrapassar a não reversibilidade: é o desejo de transgredir a
dissimetria dos planos, de se alçar ao lugar somente de “Deus”, é
uma gratuidade, fruto de uma liberdade que se quer sem limites.
Por fim, a busca pelo religioso, pela passagem dos limites,
encontra-se fora também dos espaços religiosos e acompanha o
ser humano em seu dia a dia. Assim, a manifestação da ilusão
da reversibilidade é encontrada em qualquer fragmento de
linguagem. Orlandi (2003, p. 255) exemplifica isso por meio do
papel do escritor, ou de qualquer ficcionista, pois são pessoas que
procuram exercer um papel de “Deus”, escolhendo o nascimento,
a vida e morte de uma personagem; determinando a época dos
fatos e sua ordem cronológica (são onipotentes em seus desejos),
além disso, muitas vezes, escrevem retratando os pensamentos
das pessoas, como seres oniscientes, sabedores dos desejos mais
macabros das pessoas, bem como seus sonhos, obsessões, medos,
dentre outras coisas.

Outras marcas do discurso religioso

Logo acima, ao tratar da performatividade, foi mencionado


que ela é uma das marcas do discurso religioso. Dessa forma, o
discurso religioso possui outras marcas, este tópico se destina a
abordá-las, uma vez que isso não foi feito anteriormente, junto
com a performatividade, para não haver quebra na exposição
acima. A exposição abaixo segue a divisão feita Pedrosa (2007,
p. 43):

90 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
Uso do imperativo e do vocativo:

Estes são comumente encontrados nos discursos de doutrinação,


o que garante, de certa forma, a adequação desse tipo de discurso.
Consiste em um discurso construído a partir de um eu dominante,
ou seja, quem emite o discurso está no poder, logo o ouvinte
deve obedecer a fim de não ser punido e/ou receber as benesses
prometidas, assim, o público absorve o discurso sem qualquer
contestação (SALLES, 2003, p. 168), além disso, os receptores do
discurso o reproduzem com a mesma tonalidade de autoridade,
pois se colocam como detentores de uma verdade transmitida a
eles como tal.

O uso de imperativos é uma característica comum dos


discursos autoritários, do qual o religioso faz parte:

O tom autoritário e alarmista imprimido aos textos que materializam


o discurso em pauta traz como resultado a idéia de um saber único
e exclusivo. A tendência de se apresentar como detentor da verdade
está então duplamente presente: pelo caráter formal da produção
mas também pela força dos argumentos veiculados. O discurso
autoritário é o campo da certeza, do imperativo categórico que
manifesta um saber supremo, levando o interlocutor a aceitá-lo
como verdade. Impede-se, por conseguinte, a expansão de um
pensamento mais crítico, seja individual, seja social ou comunitário
(BUCHER & OLIVEIRA, 1994, p. 141).

Exemplos muito latentes de imperativo na religião


estão nos sermões de doutrinação, nos quais são pregados os
pilares e “verdades” da fé. Nestes os pastores e padres, líderes
no geral, mostram no que se deve acreditar, a fim de que os fiéis
desenvolvam sua ética de vida baseadas nelas. Quanto aos sermões
de exortação, neles, os líderes corrigem os fiéis e ordenam como
devem conduzir suas vidas, além de obrigar-lhes a não fazerem,

91 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
dizerem e viverem determinadas coisas. É por meio do imperativo
que a religião determina e exige dos fiéis.

Uso de metáforas:

As metáforas são explicitadas por paráfrases que indicam


a leitura apropriada do discurso em questão, ou seja, a partir
do discurso proferido e de sua aceitação, os participantes do
discurso religioso o assumem e o transmitem por metáforas que
o remetem. Além disso, a metáfora aparece na religião em outras
situações, como nos sermões, por exemplo, a fim de esclarecer
o dito pelo pregador, como quando o padre/pastor conta uma
história qualquer utilizando-a com o propósito de tornar suas
palavras mais compreensíveis, uma vez que, quase sempre, prega
a respeito de conceitos teológicos complexos e abstratos. E, por
fim, na Bíblia há inúmeras metáforas. As exemplificações mais
comuns estão na linguagem profética, nas quais as metáforas são
utilizadas, normalmente, por meio do mecanismo da comparação,
o que pode ser visto facilmente nas passagens em que aparece
a conjunção como, por exemplo: “Que posso fazer com você,
Efraim? Que posso fazer com você, Judá? Seu amor é como a
neblina da manhã, como o primeiro orvalho que logo evapora”
(Bíblia Sagrada – Oséias 6:4). Na linguagem apocalíptica,
vista, principalmente, nos livros de Apocalipse e Daniel, vê-se
a descrição de visões tidas por seus autores, contudo, a maioria
das descrições das visões é tida pelos teólogos como metáforas,
ou seja, o teólogo não questiona se o escritor teve uma visão ou
não, mas questiona a literalidade do relato, se o escrito é o que
de fato se viu ou se expressa a compreensão de algo difícil de se
contar, um exemplo é a visão da Cidade Santa que João teve nos
capítulos (21 e 22) do livro de Apocalipse:

92 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
10
E levou-me em espírito a um grande e alto monte, e mostrou-
me a grande cidade, a santa Jerusalém, que de Deus descia do
céu. 11 E tinha a glória de Deus; e a sua luz era semelhante a
uma pedra preciosíssima, como a pedra de jaspe, como o cristal
resplandecente.12 E tinha um grande e alto muro com doze portas,
e nas portas doze anjos, e nomes escritos sobre elas, que são os
nomes das doze tribos dos filhos de Israel (Apocalípse 21:10-12
– Bíblia Sagrada).

Assim, conforme exposto acima, a passagem de Apocalípse


21 e 22 não consistiria na visão de uma cidade feita de pedras
preciosas, mas o apóstolo teria dito desta forma para expressar
que a cidade celestial reservada para o fim dos tempos é rica, bela
e monumental, a cidade de “Deus” preparada para seus filhos.
Finalizando, a respeito do uso de metáforas no texto bíblico
tem-se as parábolas faladas por Jesus nos evangelhos. Essas são
extremamente metafóricas e ensinam por meio de imagens. Pode-
se pensar que o propósito seria facilitar o ensino, como se dá nos
sermões hoje em dia; contudo, Jesus afirma, em Mateus capítulo
13, versos 10-18, que as parábolas são faladas para que as pessoas
não entendam, somente os discípulos. Segue uma parte do trecho
bíblico em questão para melhor compreensão:

Os discípulos aproximaram-se dele e perguntaram: “Por que


falas ao povo por parábolas?” Ele respondeu: “A vocês foi dado o
conhecimento dos mistérios do Reino dos céus, mas a eles não. A
quem tem será dado, e este terá em grande quantidade. De quem
não tem, até o que tem lhe será tirado. Por essa razão eu lhes falo
por parábolas: ‘Porque vendo, eles não veem e, ouvindo, não ouvem
nem entendem’ (Mateus 13:10-13).

Esse trecho afirma que Jesus ensinava por parábolas para


que os discípulos entendessem e, no tempo devido, ensinassem;

93 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
contudo, seus ensinamentos (de Jesus) não deveriam ser
compreendidos pelas pessoas que estavam junto a ele e não
eram seus discípulos, pois, conforme o Novo Testamento afirma,
os judeus rejeitaram a vinda de Jesus, uma vez que esperavam
um messias político que derrubasse o poder Romano opressor
e sentasse em seu trono no templo de Jerusalém, o que não
ocorreu, já que o messias Jesus foi alguém que viveu à margem
da sociedade, logo, por não se enquadrar no perfil requerido pelos
judeus, foi rejeitado. Devido a isso, seus corações (linguagem do
texto em questão) foram endurecidos, a fim de que estes não
compreendessem as palavras daquele a quem rejeitaram. Contudo,
o propósito do presente trabalho não está em debater as ideologias
em questão, nem em discutir a fundo questões teológicas. Assim,
o trecho foi relatado a fim de informar que as parábolas (uso de
metáforas) – no caso dos ensinamentos de Jesus – tinham como
propósito confundir e não esclarecer, como se faz hoje em palestras
e sermões religiosos. Obviamente, que se pode explicar a questão
por meio das ideias de Foucault, o qual afirma que o discurso é
para os iniciados. As ideias foucaultianas serão abordadas no
capítulo seguinte.

Uso de citações dos originais (língua grega, hebraica e latina):

Os textos Bíblicos existem hoje nas mais variadas línguas,


é o livro mais traduzido ao longo da história da humanidade.
Contudo, os líderes religiosos cristãos frequentemente citam
trechos do grego e do hebraico, línguas tidas como originais
(tidas, pois antes na formação dos cânones dos dois testamentos,
haviam manuscritos em outras línguas, mas a compilação do
Antigo Testamento foi feita em hebraico e do Novo Testamento

94 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
em grego). As citações são feitas com o intuito de apresentarem
significações encontradas somente nas línguas originais, um
exemplo pode ser a explicação da palavra amor, muito comum
em sermões da passagem de João 21:15-17. Nesse trecho, Jesus
pergunta a Pedro se ele o ama (usando o termo agape, amor
incondicional), enquanto Pedro responde que sim, mas usando o
termo phileo, amor fraternal. Essa riqueza de significados somente
é alcançada por meio da busca das diferentes palavras para “amor”
na língua grega, uma vez que a língua portuguesa tem uma forma
única de representá-la. Entretanto, analisando o que há por trás
dessa atitude, pode-se afirmar que a citação dos originais atribui
mais autoridade ao pregador, uma vez que ele tem acesso a esse
conteúdo, a essa “verdade”, mas as pessoas “comuns” não, ou seja,
tem-se que acreditar no pregador, no porta-voz de “Deus”, porque
ele tem acesso a esse universo oculto e o traz aos fieis.
É interessante notar que um dos ideais da Reforma
Protestante do século XVI consistiu no acesso livre das pessoas
ao livro sagrado, contudo, mesmo com o acesso livre aos textos, as
fronteiras do saber limitado permanecem restritas aos sacerdotes
e letrados nas ciências bíblicas, uma vez que somente eles
conseguem acessar esse ambiente oculto. Essa limitação pode ser
melhor compreendida por meio dos comentários de Foucault no
que se refere à relação poder-saber.

Temos que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente


favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que
poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação
de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem
saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações
de poder (FOUCAULT, 2013, p. 30).

95 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
Seguindo as ideias de Foucault, pode-se dizer que o
domínio de um saber faz com que haja a detenção de um poder,
pois quem controla o saber é quem se coloca na posição de
dominador. Conforme comentado anteriormente, quem possui
o saber do acesso aos textos originais (grego e hebraico), quem
possui o conhecimento teológico8 e é instituído pela religião, é
quem possui (detém) a revelação e é quem detém o poder, assim,
entre quem possui o poder-saber e quem não o possui, há uma
relação de poder determinada pelo conhecimento/saber.
Sendo assim, o discurso religioso passa a ser compreendido
como um discurso autoritário, marcado pelo bloqueio à
reversibilidade, porém sem a ilusão da reversibilidade, esse discurso
não se realizaria. Além disso, como todos os discursos, o religioso
também possui outras marcas que o caracterizam. Estas, mais
do que simples características, funcionam como mecanismos de
restrição, ou seja, somente aqueles aptos e autorizados a utilizarem
esses artifícios podem e são detentores do saber – entenda-se
saber como a correta revelação, que nada mais é do que aquela
fruto da interpretação de quem está no poder e possui as ciências
e autorização para fazê-la, ou seja, somente as revelações que
se encaixam na tradição em questão podem ser aceitas como
verdadeiras e dignas de transmissão.
Por exemplo: hoje existe um embate muito forte no meio
teológico entre a chamada Teologia Reformada, que vem desde a
Reforma Protestante no século XVI com Martinho Lutero e João
Calvino, e a denominada Teologia da Prosperidade, nascida há
8
Sobre a questão da formação teológica, que dá ciência das línguas originais, dentre outras
coisas, deve-se ressaltar que é uma característica do meio católico e das denominações
protestantes históricas, como a Metodista, a Presbiteriana, a Batista, a Reformada, dentre
outras. É necessário afirmar isso, pois muitas denominações mais novas não veem a
formação teológica como exigência para o exercício do sacerdócio, outras, mais que isso,
demonizam esse conhecimento ou o desconsideram por completo.

96 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
algumas décadas no Brasil e divulgada por igrejas como a Igreja
Universal do Reino de Deus. Esta prega que o crente deve possuir
riquezas e que essa é a vontade de “Deus”, contudo a Teologia
Reformada afirma que essa leitura é errônea (herética), pois foge
ao pregado desde a Reforma e ao ensino de Jesus, o qual viveu
de forma humilde, além de ser uma leitura que não utilizou de
estudos científicos confiáveis, como a retomada às línguas originais
(grego e hebraico), aos compêndios de teologia e a história dos
tempos bíblicos, dentre outros. Assim, essa revelação do texto
bíblico não seria correta, mas uma distorção do que se ensina a
Bíblia e a tradição cristã. Contudo, o que se deve ter claro é que
as correntes teológicas mencionadas acima, por serem distintas e
partirem de pressupostos diferentes, consequentemente, por meio
do discurso, produzem distintos efeitos de sentido, a partir de
perspectivas diferentes e de um funcionamento específico. Logo,
a divergência, antes de qualquer coisa, é fruto de interpelação
ideológica diferente.

Considerações finais

A ilusão da reversibilidade consiste, então, em um traço


marcante do discurso religioso, é o momento no qual o interlocutor
ser humano alcança o interlocutor “Deus”. É um ponto do discurso
que aparentemente quebra com o caráter autoritário do discurso
religioso, tirando a impressão de ser um discurso somente de cima
para baixo como os demais discursos autoritários, por exemplo,
o jurídico.
Além e juntamente com isso, o discurso religioso
possui marcas que o caracterizam, dentre elas destaca-se a

97 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
performatividade, marca que está diretamente ligada à ilusão
da reversibilidade, afinal, é em um ato performativo que, muitas
vezes, tem-se a impressão de “Deus” presente, dele não apenas
como uma figura poderosa e transcendente, mas como um ser
que se faz real. Por exemplo, na performance da eucaristia ou do
batismo, ou mesmo do casamento.
Por fim, essas são algumas marcas do discurso religioso.
A ilusão da reversibilidade como algo que está na base de seu
funcionamento, as demais marcas como características que
se alternam em suas ocorrências. São aspectos que devem ser
observados e considerados nas análises discursivas feitas sobre
discursos religiosos de maneira diversa.

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100 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 77-100– jan./jun. 2018
AS METODOLOGIAS DO ESTUDO DE CASO E DA
PESQUISA PARTICIPANTE PARA AVALIAÇÃO DO
USO DA INTERNET COMO FONTE
NO JORNALISMO IMPRESSO

Mario Benedito Sales1


Márcio Roberto de Araujo(in memoriam)2
Miguel Luiz Contani3

RESUMO: Este artigo apresenta uma avaliação de como o estudo de caso


e a pesquisa participante podem contribuir para descrever a mineração de
dados realizada na rotina de produção noticiosa de uma editoria de jornalismo
impresso. Foram acompanhados quatro jornalistas que atuam no Caderno
Cidades de uma publicação sediada na região Norte do Paraná, com a
finalidade de aferir o impacto da Internet como recurso. As duas metodologias
utilizadas no estudo mostraram-se aptas a indicar que ainda há despreparo
dos profissionais ao utilizarem a rede como instrumento jornalístico, e que o
papel desempenhado por esse meio, apesar de seu imenso potencial, ainda não
está bem ajustado.
Palavras-chave: Mineração de dados. Estudo de caso. Pesquisa participante.
Jornalismo impresso. Internet.

ABSTRACT: This paper provides an assessment of how the case study


and the participant observation become contributory to a data mining
endeavor in routine news production at a print newspaper editorial board.
Four journalists, who write in the Caderno Cidades (cities section) of a
news publication based in the Northern Region of Paraná, have been closely
watched with the purpose of assessing the impact of the Internet when used as

1
Mestre em educação e especialista em gerência de unidades de informação pela Universidade
Estadual de Londrina – UEL, docente do Departamento de Comunicação da UEL e
pesquisador nas áreas de jornalismo impresso e de representação e organização da informação
e do conhecimento.
2
Graduado em Jornalismo pela UEL. Os demais coautores prestam homenagem a este coautor
prematuramente falecido e aqui lhe dão seu tributo e profundo agradecimento pela parte do
estudo que lhe coube desenvolver e o fez com a máxima competência e dedicação. Vita brevis.
3
Doutor em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo –
PUC-SP, docente do Departamento de Comunicação da UEL e pesquisador nas áreas de
semiótica e de representação e organização do conhecimento e da informação.

101 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
a source. Both methodologies proved suitable to indicate that preparation of the
professionals is still poor in handling this instrument and that the journalistic
role played by this media, despite its immense potential, still needs revising.
Keywords: Data mining. Case study. Participant observation. Print
journalism. Internet.

INTRODUÇÃO

A Internet sempre foi amplamente utilizada, nos cursos


de jornalismo, tanto para ajudar a escrever matérias quanto como
fonte de para os trabalhos acadêmicos, seja uma simples pesquisa
para saber um telefone, ou tomar outra matéria como base ou, até
mesmo, realizar entrevistas por e-mail. A Internet é sobretudo
consultada para fins que vão desde procurar informações para
começar a redigir textos, passando pelo armazenamento de
tópicos para processamento futuro, e chegando até à elaboração
direta com material retirado da rede. Autores como Inês Mendes
Moreira Aronso em A Internet e o novo papel do jornalista e Elias
Machado com O ciberespaço como fonte para os jornalistas, artigos
publicados principalmente na Biblioteca Online de Ciências da
Comunicação (<www.bocc.ubi.pt>) abordam o tema?
O impacto da Internet é, portanto, indiscutível. Caberia,
porém, investigar o modo como os jornalistas que já estão numa
redação, usam a Internet agora, profissionalmente. É desse
pressuposto que surge a motivação para este trabalho, e de situar
o foco em questões como a confiabilidade das informações
disponíveis na rede, o recurso à cópia de material e o empenho
de jornalistas em fazer uso correto da Internet no momento de
produzir as matérias sob sua responsabilidade. Foi escolhida uma
editoria de jornal impresso difundido a partir da região Norte

102 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
do Paraná, e o recorte se definiu para o Caderno Cidades dessa
publicação. Trata-se de um jornal com circulação diária em mais
de 40 municípios da região e, nesse caderno, oferece notícias de
todas as áreas com ênfase não só na própria cidade de origem,
mas também de toda região e do estado.
A questão de pesquisa tem um caráter de investigação
associada à noção de mineração de dados no ambiente jornalístico,
e é expressa pela seguinte pergunta: De que modo a Internet
é aproveitada dentro redação do jornal, por repórteres, para a
construção das matérias, e o que essa forma de utilização revela a
respeito de como colocam a serviço de sua própria competência
as experiências facultadas pelo contato com a rede? O pressuposto
adotado é o de que uma observação direta dos passos seguidos pelos
profissionais, por meio do estudo de caso e do procedimento da
pesquisa participante tem amplitude suficiente para permitir uma
detalhada descrição e uma inferência a respeito da representação
e da organização da informação e do conhecimento nas temáticas
mencionadas. O objetivo geral é caracterizar a mineração de dados
no ambiente jornalístico. Os objetivos específicos são:

– Identificar o potencial das metodologias de estudo de caso e da


pesquisa participante para permitir acesso às práticas de mineração
de dados existentes no cotidiano da editoria pesquisada quando
ocorre o acesso à Internet;
– Descrever o ambiente encontrado na redação do jornal e apresentar
os dados de um ponto de vista de organização do conhecimento
e da informação a partir do acompanhamento realizado junto a
quatro repórteres;
– Analisar a eficácia da utilização das metodologias de estudo de
caso e da pesquisa participante como evidência da capacidade de
apontar o grau de preparação dos envolvidos e a consciência que
demonstram dos resultados a que se propõem.

103 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
Os repórteres acompanhados serão identificados por
codinomes, e a referência ao uso da Internet é dividida nas
seguintes ações a) a Internet no início da matéria ou para realizar
uma entrevista; b) a Internet para acessar sites de notícias nacionais
e estaduais; c) a Internet para acessar sites de notícias locais; d)
a Internet para acessar sites de órgãos oficiais; e) Internet para
buscar informações auxiliares para as matérias; f ) também o
uso do MSN e do e-mail; g) uso dos sites de busca e a cópia de
material retirado da rede.
Os tópicos deste texto estão sequenciados, inicialmente, com
uma conceituação das metodologias seguida de sua associação com
o conceito de mineração de dados, para sustentar a subsequente
descrição das rotinas de busca na Internet. A inferência geral
do estudo é realizada após a apresentação da análise na seção
resultados e discussões e generalizadas nas considerações finais.
A contribuição buscada com este estudo é oferecer, a estudantes e
pesquisadores, um recurso avaliativo que possa apoiar observações
sobre como estão realizando seu trabalho diante do vasto material
disponível na rede.

MATERIAIS E MÉTODOS

O Estudo de Caso para Yin (2001) é a estratégia indicada


quando se deseja saber questões relacionadas ao “como” e “por que”
de determinado evento. Neste estudo procurou-se saber como os
repórteres que trabalham no jornal impresso utilizam a Internet
para produzirem matérias locais. O estudo de caso é indicado
quando o pesquisador tem pouco controle sobre os acontecimentos
e quando retrata situações de um contexto natural que dificilmente
poderiam ser mostradas por meio de levantamentos quantitativos.

104 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
Stake (apud ALVES-MAZZOTTI, 2006, p. 641-642)
distingue três tipos de estudos de caso a partir de suas finalidades:
intrínseco, instrumental e coletivo. No estudo de caso intrínseco,
busca-se melhor compreender uma situação apenas pelo
interesse originado pela questão em particular; o caso intrínseco
não pretende entender um fenômeno genérico, mas sim um
acontecimento interessante e singular. Aqui, o estudo não é
empreendido primariamente porque o caso representa outros
casos, ou porque ilustra um traço ou problema particular, mas
porque, em todas as suas particularidades e no que têm de comum,
este caso é de interesse em si.
Esta pesquisa se caracteriza por ser um estudo de caso
intrínseco, pois não se buscou compreender um fenômeno mais
genérico mais sim como os jornalistas de um jornal impresso
usam a Internet para fazerem matérias locais. Este também
é um estudo único pois teve seu foco em um pequeno grupo
específico de jornalistas. Mais qual a importância de se observar
um caso único? Os pesquisadores relatam seus casos sabendo que
eles serão comparados a outros e, por isso, buscam descrevê-los
detalhadamente, para que o leitor possa fazer boas comparações:
“por meio de uma narrativa densa e viva, o pesquisador pode
oferecer oportunidade para a experiência vicária, isto é, pode
levar os leitores a associarem o que foi observado naquele caso
a acontecimentos vividos por eles próprios em outros contextos”
(ALVES-MAZZOTTI, 2006, p.648).
Na coleta de dados, a metodologia pode basear-se em várias
técnicas; as mais importantes para Yin (2001) são: documentação,
registros em arquivos, entrevistas, observação direta, observação
participante e artefatos físicos. Nesta pesquisa, foi utilizada
a técnica da observação participante. A importância dessa

105 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
técnica está no fato de poder captar uma série de situações ou
fenômenos que não são obtidos através de perguntas. A observação
participante estabelece uma relação face a face entre o pesquisador
e os observados “uma vez que o observador inserido diretamente
na realidade do objeto, transmite o que há de mais imponderável
e evasivo na vida real.” (CRUZ NETO,1998, p.62)
Este trabalho é um relato obtido pelo acompanhamento
dos profissionais e eventuais questionamentos sobre as razões de
alguma atitude por eles tomada.

[...]os dados são colhidos por observação sistemática e diretamente


pelo pesquisador junto aos pesquisados, quer verbalizando e
conscientizando as práticas observadas já no momento em que
elas ocorrem, levando pesquisador e pesquisado a um debate e
a uma conscientização, quer apenas observando e registrando os
procedimentos, sem neles interferir diretamente. (HOHLFELDT,
2001, p.206).

Os questionamentos sobre as ações dos profissionais


quanto à utilização da Internet na redação impressa foram feitos
juntamente com a observação, uma vez que a técnica escolhida
permite esse contato direto entre pesquisador e pesquisados. A
observação participante é um método qualitativo como descreve
Haguette (2003), que salienta as peculiaridades de fenômenos
sociais na proporção de sua origem e razão de ser. Lazarsfelt
citado por Haguette (2003) expõe três situações nas quais se presta
atenção particular a indicadores qualitativos: 1) aquelas em que
a evidência qualitativa predomina sobre informações estatísticas
envolvendo épocas passadas; 2) aquelas em que a evidência
qualitativa é associada a elementos subjetivos de natureza
psicológica como atitudes, motivos, pressupostos, quadros de
referência, dentre outros; 3) aquelas em que simples observações

106 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
qualitativas fazem emergir o funcionamento complexo de
estruturas e formas de organização difíceis de observar.
Cardoso e Machado (2007, p.497) situam a mineração
de dados (data mining) como “técnica que faz parte de uma das
etapas da descoberta de conhecimento em banco de dados. Ela
é capaz de revelar, automaticamente, o conhecimento que está
implícito em grandes quantidades de informação.” Acrescentam
que, para o ambiente mutável dos dias de hoje, ela agiliza o
processo de extração das informações relevantes, provenientes
de um banco de dados, e auxilia na análise antecipada de eventos
com a vantagem de habilitar a fazer previsões sobre tendências
e comportamentos futuros. Os autores lembram, também, que
o emprego da mineração de dados é capaz de fazer entender o
comportamento dos dados, identificar afinidades entre dados,
prever hábitos (CARDOSO E MACHADO, 2007, p.497).
Lima Junior (2006, p.119) assevera que a agilidade e a
eficiência do banco de informação de um jornal são diretamente
relacionadas às condições de atualização e ganho de credibilidade
desse mesmo jornal. Enfatiza que “com tecnologia avançada,
os sistemas de processamento, armazenamento, controle,
recuperação e disseminação da informação permitem gerenciar
as bases de dados e material informacional em texto e imagem.”
Segundo seu ponto de vista, o jornalista se vê imerso num mar de
informação digital que torna sempre mais complexa a tarefa de
busca e processamento, sobretudo de informações consolidadas
e contextualizadas (LIMA JUNIOR, 2006, p.120). A Internet
no modo www, a busca de URLs e a informação encontrada por
meio do Google facilitaram a tarefa do jornalista, “mas existem
as questões da imprecisão dos dados, da credibilidade das fontes
e da enorme quantidade de informações não solicitadas, que

107 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
aparecem na tela do computador quando é realizada uma pesquisa
em mecanismos de busca” (LIMA JUNIOR, 2006, p.122).
Barbosa e Lima Junior (2007) evidenciam a redução
informativa que se instala na cadeia perceptiva que se forma entre
o jornalista e o usuário final da informação. Na visão dos autores,
a causa desse processo tem a seguinte explicação:

O jornalismo, então, é a prática em que um ser humano (jornalista)


recolhe as informações do ambiente e/ou através de tecnologias de
captação, seguindo critérios técnicos e mercadológicos tenta traduzir
essa representação do real através de plataformas comunicacionais,
nas suas respectivas linguagens (impresso, eletrônico e digital),
para outros seres humanos (leitores, radiouvintes, telespectadores e
internautas),que utilizam sistema sensorial deles para absorver tais
informações, que serão memorizadas ou descartadas de acordo com
interesse, perfil cultural e historicidade de cada um (BARBOSA;
LIMA JUNIOR, 2007, p.3).

Tendo em vista que os temas de mineração de dados e


mineração de textos associados ao jornalismo têm aplicação
muito recente, há ainda, segundo Barbosa e Lima Junior (2007),
dificuldades de compatibilização, porque a mineração de dados
“garimpa informações de valor estratégico que estão ‘invisíveis’
nos registros, permitindo a identificação de tendências para uma
visão antecipada de cenários futuros e a descoberta de novos
padrões entre dados, nem sempre perceptíveis ao analista humano”
(BARBOSA; LIMA JUNIOR, 2007, p.7).
No tipo de pesquisa aqui realizado, apenas levantar dados
quantitativos sobre a utilização da Internet na redação dos jornais
não apresentaria um quadro com toda dimensão da questão. Foi
preciso observar as atitudes dos jornalistas envolvidos em uma
complexa organização de todas as fases da produção da notícia.

108 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
Durante quatro dias, a observação participante foi feita na
redação do jornal onde se acompanhou in loco quatro repórteres
que produzem matérias sobre a cidade, além de acompanhar o
editor, pauteiro e diagramador durante o período em que estavam
fazendo as pautas para a editoria.

A REDAÇÃO

O Caderno Cidades do jornal traz, além de notícias, sobre a


própria cidade, informações relacionadas com as cidades vizinhas,
notícias policiais, matérias estaduais, pequenas notas redigidas
pelo editor do caderno, além do aproveitamento de releases4 e
matérias de agências de notícias. Os jornalistas observados serão
designados pelos codinomes: River; Mela, Timo e Jasque. Além
desses que foram observados desde o momento de sua chegada na
redação até quando terminaram suas atividades, também o foram o
editor, o pauteiro e o diagramador5. Por ser uma redação pequena,
mesmo observando in loco os jornalistas, pareceu interessante fazer
observações gerais da editoria que poderiam ajudar a entender a
forma como os jornalistas utilizam a Internet.
A editoria de Cidades conta ainda com o repórter que faz
matérias policiais e outro que cobre os acontecimentos de outras
cidades no que se denomina Editoria de Região. Esses, no entanto,
não foram objeto de observação deste estudo. No mesmo local da

4
Releases são matérias feitas por assessorias de imprensa que oferecem informações para mídia
sobre fatos que envolvam o assessorado. O release deve ser ao mesmo tempo de interesse
público e institucional e pode ser usado como pauta para uma empresa jornalística, além de
também poder ser publicado completo ou parcialmente.
5
No caso do jornal estudado, quando há pouco tempo para fechar o caderno, o próprio
repórter faz a diagramação de sua matéria, que depois é revisada pelo editor. Quando há um
tempo maior, o editor tem esta função.

109 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
redação impressa, ainda funcionam a redação do site e também, no
mesmo espaço, são desenvolvidos serviços gráficos terceirizados.

ACOMPANHAMENTO in loco

Pauteiro, 18 de setembro6
Chega à redação ao meio-dia para fazer as pautas da
editoria, mas como desempenha mais de uma função no jornal,
e as pautas não são institucionalizadas, traz apenas uma visão
geral do assunto; é o repórter que deve buscar informações mais
detalhadas e as fontes para matéria. Devido ao pouco tempo que
tem, usa pautas de gaveta7, que são feitas no dia anterior, além de
acompanhar o rádio para saber as últimas notícias policiais e sobre
algum evento, os releases recebidos pelo e-mail e a Internet para
buscar assuntos nacionais que possam tem repercussão.
Durante o tempo em que o editor foi observado, notícias da
Internet foram usadas para repercussão local de dois assuntos, um
sobre o projeto do Governo Federal “Primeiro Emprego” e outro
sobre a greve dos Correios. O pauteiro sempre confere seu e-mail
para saber se há releases ou informações sobre um acontecimento
local interessante que possa ser usado para fazer uma pauta, além
de fazer alguns contatos com fontes por telefone para tomar
conhecimento de fatos novos.
Durante o tempo que fez as pautas até a reunião para
discuti-las, além de usar a Internet para procurar assuntos que
possam repercutir na cidade, também utilizou-a para manter-se
6
Os dados observados são apresentados em cronologia apenas para assegurar a descrição de
um cotidiano e para inserir o contexto em que se encontra a produção de notícias locais.
7
Em jornalismo, uma pauta ou matéria de gaveta é aquela que já está pronta e é
utilizada em um momento posterior.

110 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
informado acessando os sites: Folhapress, UOL, RPC, Gazeta
Esportiva, ClicRBS, e Zero Hora. Os sites visitados serviram para
buscar, tanto informações que foram úteis para o jornal quanto
informações para seu conhecimento pessoal, como no caso do
site Gazeta Esportiva.
Além dos sites, o programa Windows Live Messenger
(MSN)8 ficou aberto durante todo o tempo e foi usado para tratar
de assuntos pessoais que não tinham nenhuma relação com suas
funções no jornal. A pauta foi concluída as 13h20; são duas ou
três folhas do tamanho A4, e cada pauta contendo de três a cinco
linhas sobre cada assunto. Após a pauta impressa, a reunião começa
quando chegam os outros jornalistas, o que acontece as 13h30.
As pautas são discutidas por todos que opinam sobre os assuntos,
indicam fontes e possíveis abordagens para a matéria. Neste dia,
em especial, a reunião foi um pouco mais extensa, pois também se
discutiram as mudanças de horário e remanejamento de pessoal
que ocorreriam no jornal. A reunião foi encerrada às 14h10.

River, repórter, 18 de setembro


Após a reunião de pauta, o repórter River foi acompanhado
na produção de matérias para o impresso. River deveria fazer
uma matéria sobre um seminário regional de educação integral.
Quando foi questionado sobre a pesquisa prévia que efetuou
para a realização da entrevista com o palestrante, um doutor
da Universidade de São Paulo, River respondeu que antes de
realizar a entrevista entrou no site do Senado Federal para ter
acesso a uma declaração que o Ministro da Educação havia dado
sobre a educação em tempo integral e formular perguntas para o

8
Software desenvolvido pela Microsoft que permite a troca de mensagens e arquivos
em tempo real com outros usuários conectados ao programa

111 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
entrevistado. River também afirmou que usa a Internet quando
faltam informações sobre uma matéria, “ela (Internet) é usada para
fazer pesquisas e não para fazer as matérias” explica.
Durante a maior parte do tempo, River ficou decupando
a gravação da abertura do Seminário e a entrevista que havia
feito. Quando começou, de fato, a fazer sua matéria entrou
no site da Prefeitura para colher mais informações sobre o
Seminário através de matérias feitas pela agência da Prefeitura
e também para contextualizar os dados que o entrevistado havia
lhe passado. Enquanto estava fazendo sua matéria, River copiou
algumas informações do site da Prefeitura e utilizou diretamente
em seu material; eram quatro linhas do site que falavam sobre a
programação do Seminário.
Enquanto escrevia sua matéria, River entrou nos sites da
Folha Online, UOL e ANJ com o intuito de se manter informado.
Quando já estava quase concluído seu trabalho, entrou em sites
oficiais a fim de buscar informações que pudessem render uma
pauta. Apesar de não ser responsável pela pauta, River diz ainda
manter os costumes adquiridos quando trabalhava no rádio, que
é o de vasculhar sites oficiais atrás de informações.
Os sites visitados foram: Bombeiros de Cascavel (onde todas
as ocorrências registradas no Paraná ficam disponíveis), Jornal
do Supremo Tribunal Federal, Câmara dos Deputados, Senado
Federal, Polícia Federal, Jornal do Tribunal de Contas da União,
Assembleia Legislativa do Paraná, Imprensa Nacional, Agência
Estadual de Notícias e Procuradoria Geral da República. No site
da Imprensa Nacional, onde é publicado o Diário Oficial da União,
descobriu que uma verba federal destinada à Secretaria de Saúde
do Município estava bloqueada porque a Secretaria havia deixado
de mandar alguns documentos exigidos na data estipulada. River

112 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
imprimiu a página do Diário Oficial que continha essa informação
e disse que sugeriria este assunto como uma possível pauta para
o dia seguinte.
O Editor do caderno Cidades pediu ajuda para que River
procurasse o nome dos promotores de duas cidades da região, e
se havia algum que tinha assumido recentemente o cargo. Isso era
para ajudar na reportagem de outro jornalista. River acessou o site
da Procuradoria Geral da República, pegou os nomes e passou
para o editor. Às 19 horas, acabou sua matéria sobre o Seminário
de Educação Integral e mandou para edição.

Mela, repórter, 19 de setembro


No segundo dia, a reunião de pauta começou as 13h40
e terminou as 13h55, após a reunião, Mela foi a repórter
acompanhada, que, neste dia, deveria cumprir duas pautas, uma
sobre a construção das instalações do Senac (Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial) na Cidade, e outra sobre a briga no
Sindicato dos Servidores Públicos de Cidade. A matéria sobre
a construção do Senac na Cidade não é um assunto recente: já
faz mais de um ano que uma disputa judicial entre a prefeitura e
a promotoria do meio-ambiente da Cidade impede o início das
obras. O promotor do meio-ambiente alega que há, no lugar,
uma nascente, além de ser uma área de brejo, e que não se pode
começar uma construção no local devido às licenças ambientais
necessárias. A Prefeitura, por seu turno, discorda que exista uma
nascente ou um brejo no terreno.
Já existem três laudos sobre o assunto, dois são da Suderhsa
(Superintendência de Recursos Hídricos de Saneamento
Ambiental) e o terceiro de um geólogo da UEM (Universidade
Estadual de Maringá). Mela entrou no Google para procurar o

113 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
site da Suderhsa e, ao acessar o site, procurou informações sobre
a superintendência. Descobriu que ela é subordinada ao IAP
(Instituto Ambiental do Paraná), e também tentou telefonar
para o responsável pelo primeiro laudo. Quando ligou para a
superintendência, descobriu que este primeiro responsável já
não trabalhava mais lá, mas o atual responsável disse não haver
nenhum problema ambiental impedindo a construção do Senac
e que o laudo liberava a obra.
As 14h20, Mela saiu da redação com o fotógrafo para ir até
à Prefeitura tentar conversar com o Prefeito sobre a pendência.
Quando chegou na prefeitura, descobriu que ele já tinha saído
para o Seminário sobre Educação Integral. Mela, então, tentou
falar com o procurador jurídico da Prefeitura, que ligou para o
Prefeito para saber se poderia comentar o assunto.
O procurador chamou Mela para ir até sua sala, onde
entregou um dossiê sobre o caso e defendeu a posição da Prefeitura
a favor da construção. Às 15h20, Mela voltou para redação e
iniciou a análise do dossiê. Após ler alguns tópicos, começou a
escrever sua matéria. Logo parou de escrever e resolveu começar a
outra matéria sobre a briga no Sindicato. Acessou o site local para
poder se inteirar do assunto e ter mais informações. Por telefone,
conversou com a secretária do Sindicato e com fontes na Policia
Militar a fim de saber informações sobre o boletim de ocorrência
que foi registrado e descobriu que ele havia sido cancelado.
Mela voltou para a matéria sobre o Senac e procurou, no
Google, a resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio
Ambiente) que trata sobre as áreas de preservação ambiental.
Ao ler a resolução, ficou em dúvida, pois nela consta como área
de brejo sendo natural ou provocada pelo homem. O laudo da
Suderhsa afirma que o terreno é uma área de brejo provocada por

114 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
esgoto e pela vazão de um lençol freático. Mela se mostrou confusa
entre o que diz o laudo e a resolução do Conama. Comentou,
então, que a Internet é fundamental no trabalho de jornalista: “às
vezes não tem nada sobre uma matéria, então pega uma (matéria)
nacional para ter como base, também se usa muito a Internet para
saber o significado de siglas” declara.
Ao escrever a matéria, utilizou o motor de busca da
Microsoft, Live Search, que já vem com uma barra de busca
agregada ao navegador Internet Explorer, para saber o que
significa a sigla Suderhsa; logo após ligou para o promotor do
meio-ambiente e o entrevistou por telefone. O promotor disse
que embargaria a obra caso ela começasse e que não falaria
mais sobre o assunto. Assim que desligou o telefone, recebeu a
ligação do Prefeito para se posicionar sobre a questão. O chefe
do executivo municipal se disse a favor da construção, e pediu
para que a repórter não divulgasse a informação de que havia um
dossiê preparado pela Prefeitura sobre o tema.
Mela com essas declarações terminou sua matéria e
voltou para a do Sindicato, entrou no site do Live Search para
ver se havia alguma informação nova sobre o tema, mas nada
encontrou. Quando começou a redigir a matéria, usou, como
base, as informações do site local, além dos telefonas para a Policia
Militar e para a secretária do Sindicato. As duas matérias foram
enviadas para o editor às 19 horas.
Enquanto fazia seu trabalho, Mela ficou conectada ao
MSN, mas somente conversou assuntos pessoais, sem nenhuma
ligação com o jornalismo. Até mesmo com o Editor do Caderno,
que também estava conectado, conversou sobre questões
trabalhistas. Por muitas vezes, também entrou no site Yahoo para
ver seu e-mail e, além disso, acessou os sites da Folha de Londrina

115 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
(leu as últimas notícias de Londrina), RPC, Gazeta do Povo (as
notícias do Paraná), Globo.com, Jornal News e Hotmail. Antes
de ir embora, entrou novamente no site da Folha de Londrina
para ler uma matéria sobre um investigador que havia sido preso
por abuso de autoridade.

Timo, repórter, 20 de setembro de 2007, quinta-feira


Neste dia, o repórter Timo não chegou a participar da
reunião de pauta, pois sua matéria e entrevista já haviam sido
marcadas no dia anterior. O assunto era sobre o Bispo Emérito de
Cidade que, semanas antes, havia sofrido um problema cardíaco
e, depois de um período internado tinha voltado para casa para
terminar sua recuperação.
Antes de sair para a entrevista que estava marcada para
por volta das 14 horas. Timo pesquisou, no arquivo do jornal,
as matérias que haviam sido publicadas sobre a internação do
Bispo Emérito, que tinham sido feitas por ele mesmo. Timo
também pesquisou no Google tópicos relacionados a problemas
cardíacos, para melhor se inteirar sobre o assunto para conversar
com o entrevistado. Foi uma pesquisa rápida, que durou menos
de cinco minutos.
Timo saiu da redação às 13h30. Ao chegar na casa do Bispo
Emérito, ele já esperava a equipe de reportagem no portão. Apesar
da fragilidade pelos dias que ficou hospitalizado, já mostrava sinais
de melhora; a entrevista durou aproximadamente 40 minutos e
o retorno para a redação aconteceu às 14h50. Após a entrevista,
quando já estava no carro, Timo disse que se arrependeu de não
ter levado o gravador, pois o entrevistado havia dado declarações
interessantes e, infelizmente, ele não se lembraria de todas.
Ao chegar na redação, foi logo para o computador começar
a escrever. Abriu, novamente, as outras matérias que havia feito

116 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
para ter como base para essa. Usou o material anterior para
contextualizar o leitor sobre o que tinha ocorrido e, somente
depois, utilizou as novas informações da entrevista. Timo, após
começar a redigir seu texto entrou no site do Google para ter
informações sobre a diocese de Cidade, “a Internet é utilizada
quando se tem dúvidas sobre um assunto. Entro no Google para
buscar informações auxiliares”. No Google encontrou o site da
Diocese onde pegou informações sobre quando o religioso foi
ordenado Bispo e durante quantos anos ficou à frente da Igreja,
também procurou a data de quando foi inaugurada a Diocese e
de como se escreve corretamente o sobrenome do Bispo Emérito.
As 15h30, chegou, na redação do jornal, o responsável pelo
trânsito de Cidade e o chefe do Detran da Cidade. Ambos iriam
falar sobre a Semana de Trânsito e também queriam divulgar
um passeio motociclístico que aconteceria no domingo, a fim de
conscientizar os jovens sobre a importância dos equipamentos
de segurança no trânsito. Entregaram, para Timo, vários folders
sobre a campanha, e a entrevista acabou às 16 horas.
Timo voltou a fazer sua matéria sobre o Bispo e a terminou
as 17 horas, quando fez uma pausa para o café que durou 20
minutos. Quando voltou, começou a fazer sua segunda matéria,
sobre a Semana de Trânsito. Com todo material que tinha, Timo
levou um tempo para organizar tudo e começar a fazer seu texto.
Além da entrevista com o 2º Tenente e com o chefe do Detran,
também usou o material que lhe foi entregue para se inteirar sobre
o tema. Timo entrou no Google para buscar mais informações
sobre o assunto e para descobrir qual o foco da campanha, que
neste ano foi os jovens na direção. Também entrou no site do
Denatran que achou no Google para ter mais informações.
Declarou: “a Internet é útil para buscar dados gerais da campanha

117 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
e trazer para o local”. Timo entrou no site do Pindavale que trazia
uma matéria sobre a Semana, então copiou duas linhas do site
para usar em seu material. O trecho copiado falava da data da
realização da campanha e sobre seu tema.
Timo terminou a matéria às 19 horas, quando mandou
esta e a do Bispo Emérito para a edição. No período em que fazia
seu trabalho, ficou com o MSN aberto e o utilizou para tratar de
assuntos pessoais; acessou os sites da Folha de Londrina, UOL
e RPC e, além disso, verificou algumas vezes seu e-mail pessoal.

Jasque, repórter, 21 de setembro


No quarto e último dia na redação do jornal, foi
acompanhada a repórter Jasque. Neste dia, a reunião de pauta
começou as 13h46 e terminou as 14 horas. Jasque foi designada
para fazer uma matéria sobre viroses. O editor sugeriu que, além
de entrevistar especialistas, entrevistasse pessoas com algum tipo
de virose para investigar o que elas sabiam sobre o tema e, se por
causa de uma virose, já haviam faltado no trabalho. Ela também
deveria buscar informações sobre alguma novidade na greve dos
Correios e, caso houvesse, redigir uma nota sobre o assunto.
Para começar a matéria sobre viroses, Jasque ligou para
algumas farmácias para saber se havia mais pessoas procurando
atendimento. Ligou também para o Posto de Saúde, a fim de
se informar com as atendentes se houve muitas entradas de
pacientes nas últimas semanas. Jasque tentou entrevistar dois
médicos, mas ambos estavam realizando consultas e disseram
que retornariam a ligação mais tarde. Jasque teve dificuldades em
encontrar personagens com viroses e resolveu esperar um pouco
para começar a matéria.
Além das matérias normais e da especial, Jasque também
é responsável pelo suplemento quinzenal do jornal dedicado

118 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
ao público infantil e da parte de aniversários da coluna social9.
Enquanto sua matéria sobre viroses não andava, ela trabalhou
na coluna social colocando as fotos e suas respectivas legendas.
Depois disso começou a redigir sua reportagem especial sobre
gravidez na adolescência.
Todos os dados e entrevistas para a reportagem especial já
haviam sido levantados durante a semana e neste dia, Jasque se
dedicou somente em juntar o material e redigir o texto. Então ligou
para uma enfermeira no Posto de Saúde para saber a estatística de
gravidez na adolescência em Cidade. As 16h30, ainda não havia
conseguido falar com ninguém sobre viroses e continuou fazendo
a reportagem especial.
As 17h20, um dos médicos retornou a ligação, então Jasque
disse que já não dava mais tempo para entrevistá-lo e fazer a
matéria. Falou, no entanto, que na outra semana, certamente a
matéria sairia, e ela voltaria a falar com ele. Jasque comunicou, ao
editor, que disse que poderia deixar este assunto para outro dia
pois o jornal já está com pouco espaço.
As 17h30 o editor pergunta se ela já tinha conversado
com alguém do Sindicato dos Correios, ela disse ter esquecido
e imediatamente fez a ligação. Sua fonte no Sindicato informou
que haveria uma reunião as 18 horas e, assim que fosse decidido
algo, ele ligaria para informá-la. Até o momento que estava na
redação, a fonte do Sindicato não ligou e nem Jasque se lembrou
de ligar. Isso se mostrou quando ela já estava indo embora e o
editor perguntou o que tinha acontecido no sindicato, Jasque falou
que havia se esquecido de ligar e o editor disse que ele mesmo
faria a ligação.

9
Caderno do jornal que traz informações sobre personalidades famosas da sociedade
de uma cidade, região ou país.

119 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
Quando era por volta das 18 horas, o boneco10 da coluna
social foi impresso, e Jasque fez as últimas correções antes de
mandá-lo para gráfica. Também nesse tempo, começou a fazer
sua matéria de sábado sobre um homem que havia feito um barco
usando 200 garrafas pet. Começou a matéria, mas nem chegou
a acabá-la; disse que voltaria no jornal no sábado de manhã para
finalizá-la. Também seria no sábado, pela manhã, que as fotos do
barco na água seriam feitas para saber se a invenção realmente
funcionava.
Durante o período em que esteve desenvolvendo suas
matérias Jasque entrou nos sites do UOL, RPC, Folha Online,
Folha de Londrina e Gazeta do Povo. Em todos os sites, observou
somente a manchete que cada um trazia. Também neste período,
ficou conectada ao MSN, em seu e-mail do Hotmail e no site de
relacionamentos Orkut.

A VOZ DO OBSERVADOR11

Durante os quatros dias que estive na redação da Jornal,


também tive a oportunidade de fazer observações gerais da redação
e ver de que forma a Internet é usada pelos jornalistas. A maioria
deles permaneceu uma boa parte do tempo entrando em sites
de notícias, principalmente o UOL, Folha Online, Folhapress e
Folha de Londrina.
Também notei que releases e matérias de agências são muito
usados, principalmente no caso das editorias de Esporte, Política

10
Modelo em menor escala e qualidade da página do jornal antes de ser impressa
que é usado para corrigir possíveis erros gramaticais, de informação e diagramação
11
Os dados coletados com as observações gerais também não compõem a análise deste trabalho
são para ilustrar como a Internet é usada na redação

120 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
e Economia, em que há apenas um responsável para cada assunto.
Entre um grande número de matérias que chegam via agências, há
uma seleção do que entra na edição, além de escreverem colunas
assinadas e notas sobre acontecimentos de Cidade.
O motor de busca Google também é bastante utilizado. Nas
observações gerais, vi que os jornalistas normalmente o usam para
buscarem informações e adicionar alguma coisa em suas matérias.
Pude presenciar o Google sendo usado para buscar informações
sobre os homicídios ocorridos na região, para procurar informações
sobre a chegada da primavera, e a previsão de chuvas para região,
buscar informações sobre futebol, política e também notei que,
na produção do Jornal, usa-se bastante o Google Imagens para
apanhar ilustrações para as matérias.

Mineração dos Dados

Com os dados levantados nos quatro dias junto aos


jornalistas que acompanhei, procurei separá-los em grupos para
melhor elucidar como a Internet e suas ferramentas são usadas
pelos repórteres durante o processo de produção de notícias.
A utilização da Internet foi dividida nos seguintes grupos:
A Internet utilizada para fazer pesquisa antes de se começar a
matéria ou fazer uma entrevista; A Internet para acessarem sites
de notícias nacionais e estaduais; A Internet para acessarem sites
de notícias de Cidade; Internet para acessarem sites de órgãos
oficiais; Internet para buscarem informações auxiliares para suas
matérias; Uso do MSN e do Email; Uso dos sites de busca e a
cópia de material retirado da rede. O Quadro 1, a seguir, agrupa
e organiza os dados reunidos.

121 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
Quadro 1 – Organização da informação

Fonte: Dados da pesquisa.

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A internet utilizada para fazer pesquisa antes de se começar a
matéria ou fazer uma entrevista
River, antes de sair para realizar a entrevista com o
palestrante do Seminário de Educação, procurou uma
declaração do Ministro da Educação, no site do Senado
Federal, sobre a educação em período integral.
Mela, antes de começar sua matéria sobre o Senac usou
a Internet para obter informações sobre a Suderhsa e,
através do Google, encontrou o site da Superintendência
e leu informações relativas ao órgão. Mela, antes de
começar sua matéria sobre a briga no Sindicato dos
Servidores Municipais da Cidade, também acessou o site
local, para melhor se informar sobre o assunto e ter uma
base para sua matéria.
Timo pesquisou, no Google, informações sobre
problemas cardíacos, antes de sair para a entrevista com o
Bispo Emérito da Cidade e também usou a Internet para
se inteirar sobre a Semana de Trânsito. De novo, através
do Google, encontrou o site do Denatran e descobriu o
foco da campanha que foi os jovens na direção.
Jasque não utilizou a Internet antes de começar suas
matérias.

A Internet para acessar sites de notícias nacionais e estaduais


River, durante o tempo em que produzia seu material,
acessou os sites UOL, Folha Online e ANJ, leu as
manchetes que estavam na página principal dos sites, mas
não abriu nenhuma matéria específica.
Mela acessou os sites da Folha de Londrina, RPC,
Gazeta do Povo, Hotmail e Globo.com. No site da Folha

123 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
de Londrina, leu as últimas notícias sobre Londrina e
também uma matéria sobre um investigador que havia
sido preso por abuso de autoridade. No site da Gazeta do
Povo, leu as manchetes relacionadas ao Paraná.
Timo visitou as páginas da Folha de Londrina, UOL e
RPC. Em todos os sites, leu as manchetes que estavam
na página principal.
Jasque visitou os sites do UOL, RPC, Folha Online, Folha
de Londrina e Gazeta do Povo, e se informou lendo as
manchetes da página principal.

A Internet para acessar sites de notícias de cidade


River acessou o site da Prefeitura de Cidade para ter
informações sobre o Seminário de Educação. No
site, além de informações sobre a cidade, também são
publicadas matérias feitas pela agência da Prefeitura.
Mela visitou a página local para obter informações sobre
a briga no Sindicato dos Servidores Públicos da Cidade
e acessou o site Jornal News para ter informações gerais
da cidade.
Timo visitou o site Pindavale para obter informações
sobre as atividades da Semana de Trânsito em Cidade.
Jasque não visitou nenhum site local de notícias.

A internet para acessar sites de órgãos oficiais


River acessou o site dos Bombeiros de Cascavel, onde
ficam registradas todas as ocorrências atendidas no
Paraná. Lá procurou os registros onde ficam todas
as ocorrências atendidas na região norte. No site da
Prefeitura da Cidade, buscou informações sobre o

124 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
Seminário Regional de Educação Integral. No site da
Imprensa Nacional, acessou o Diário Oficial da União e
descobriu que uma verba destinada a Secretaria de Saúde
estava bloqueada por faltar documentos exigidos. Além
desses sites, River também acessou os sites do Supremo
Tribunal Federal, Câmara dos Deputados, Senado
Federal, Polícia Federal, Tribunal de Contas da União,
Assembleia Legislativa do Paraná, Agência Estadual de
Notícias e Procuradoria Geral da República. Nestes sites,
buscou informações que eventualmente pudessem ser
transformadas em matérias.
Mela acessou o site da Suderhsa para obter informações
sobre a superintendência para sua matéria sobre a
construção do Senac, e também buscou a resolução do
Conama sobre as áreas de preservação ambiental, para
elucidar pontos sobre a pendência na construção do
Senac em Cidade
Timo visitou o site do Denatran para obter informações
sobre qual era tema Semana de Trânsito. Também entrou
no site da Diocese de Cidade para saber quando o Bispo
Emérito foi ordenado e durante quantos anos ficou à
frente da Igreja. Também procurou a data de quando foi
inaugurada a Diocese e de como se escreve corretamente
o sobrenome do Bispo Emérito.
Jasque não acessou nenhum site oficial.

A internet para buscar informações auxiliares para suas matérias


River usou a Internet para buscar informações que
faltavam para sua matéria sobre o Seminário de Educação
no site da Prefeitura de Cidade. Usou as informações do

125 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
site para contextualizar a entrevista que havia feito, além
de copiar informações do site.
Mela usou a Internet para obter informações sobre a
pendência da construção do Senac; buscou a resolução do
Conema para entender o que dizia o laudo da Suderhsa
sobre áreas de preservação e para procurar detalhes sobre a
briga no Sindicato dos Servidores Municipais de Cidade
no site Notícias de Cidade. Usou todas essas informações
para ter como base para sua matéria.
Timo acessou o site da Diocese de Cidade para obter
informações sobre o Bispo Emérito e a diocese de Cidade,
e para saber mais sobre a Semana de Trânsito, entrou
nos sites do Denatran onde se informou sobre o tema
da campanha. No site Pindavale, tirou informações para
matéria, além de copiar uma parte da matéria do site.
Jasque não usou nenhum site para buscar informações
auxiliares

Uso dos sites de busca


River não usou nenhum motor de busca.
Mela usou o Google para pesquisar sobre a Suderhsa
e procurar o site da superintendência, e também para
buscar a resolução do Conema para sua matéria sobre o
Senac. Usou o motor de buscas Live Search para saber o
que significa a sigla Suderhsa e ter informações sobre a
briga no Sindicato dos Servidores Públicos de Cidade,
mas não encontrou nenhuma informação nova.
Timo usou o Google para obter informações sobre
problemas cardíacos antes de sair para entrevistar o Bispo
Emérito, e quando escrevia sua matéria para saber qual o

126 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
site da Diocese de Cidade, também utilizou o Google para
obter informações sobre a Semana de Trânsito. Acessou
o site do Denatran através da pesquisa feita no Google
Jasque não usou nenhum site de busca.

Uso do MSN e E-mail


River não utilizou a rede para acessar o MSN, nem para
verificar seu e-mail pessoal.
Mela ficou conectada no MSN e acessou, algumas vezes
seu e-mail, do Hotmail e Yahoo, sempre para tratar de
assuntos pessoais.
Timo ficou conectado ao MSN e verificou seu e-mail
do Hotmail, algumas vezes, mas sempre para tratar de
assuntos pessoais.
Jasque ficou conectada ao MSN e verifcou algumas
vezes seu e-mail, do Hotmail, para tratar de assuntos
pessoais. Além disso, Jasque foi a única que visitou o site
de relacionamentos Orkut

Cópia de material retirado da rede


River copiou parte de uma matéria que estava no
site da Prefeitura da Cidade; eram quatro linhas com
informações relativas à programação da Seminário de
Educação.
Mela não copiou nenhuma informação retirada da rede.
Timo copiou dados do site Pindavale sobre a Semana de
Trânsito; eram duas linhas que traziam informações sobre
a data de realização e o tema da campanha.
Jasque não usou a Internet para copiar nenhuma espécie
de informação para usar em suas matérias.

127 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
Resultados e discussão

Diante impacto que a Internet causou nas profissões


e nas empresas que se viram obrigadas a se adaptar para não
estarem desatualizadas, os jornalistas foram os profissionais que
mais sofreram os efeitos da rede. Muitas discussões, nas mais
variadas vertentes, são propostas quanto aos efeitos da Internet
no jornalismo. São debates que vão da influência da rede nas
mídias tradicionais, à questão da confiabilidade das informações
disponíveis, até a colocação de que a Internet acabará com o
jornal impresso.
Os dias passados na redação do jornal estudado, trouxeram
a percepção de que os jornalistas que fazem as matérias de
Cidade apresentam um comportamento parecido, quanto ao uso
da Internet na redação. De um modo geral, a Internet ainda é
usada de uma maneira secundária; o potencial que ela tem de ser
uma imensa fonte de informações e possibilidades ainda não foi
descoberto por completo pelos jornalistas. Esta afirmação tem,
como base, duas atitudes observadas sobre como os jornalistas
usam a Internet: a primeira é que a rede é usada para mantê-los
informados, e a segunda, que a Internet é utilizada para buscar
informações complementares para as matérias.
No cotidiano da redação, a Internet serve como um canal
de acesso e contato com múltiplas fontes, agências de notícias e
jornais online. A rede é uma ferramenta que cria a possibilidade
para que, virtualmente, se possa fazer o trabalho de vigilância e
examinar documentos oficiais, realizar investigações e trabalhar
assuntos que, em boa parte, são ignorados pela imprensa
tradicional. Com exceção do repórter River, nenhum outro
jornalista usou a Internet para ter acesso a fontes oficiais. Mesmo

128 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
assim, River disse que só faz isso pelo hábito herdado de seu antigo
emprego, em uma rádio da Cidade.
Os jornalistas ainda se veem perdidos na rede e não sabem,
ao certo, como garimpar aquilo que realmente é importante para
a profissão, perante às milhões de páginas disponíveis. No caso
dos repórteres Timo e Mela, que também entraram em sites
oficiais para obterem informações para suas matérias, os dados
que eles pesquisaram formam superficiais, tais como buscar o
nome de algum encarregado ou algum telefone. Não se usaram
os sites oficiais como uma ferramenta para procurar informações
novas, mas apenas uma pesquisa direcionada, em que já estavam
orientados a encontrar uma determinada informação, e não se
interessaram em procurar dados novos, seja sobre a matéria na
qual estavam trabalhando, seja sobre algum outro assunto que
poderia render outra reportagem.
Antes de saírem para realizar suas entrevistas, os jornalistas
não efetuaram nenhuma pesquisa mais profunda sobre o tema que
deveriam tratar. Foram apenas pesquisados tópicos superficiais,
dedicou-se um tempo muito curto, algo de cinco minutos ou
menos, lendo sobre o assunto. Os repórteres vão a campo sem uma
preparação adequada para realizar as entrevistas, e isso fica claro
na qualidade das perguntas elaboradas; são questões superficiais
e, muitas vezes, o repórter fica perdido no assunto quase sem ter
o que perguntar. Mesmo afirmando que usam a Internet para
pesquisarem sobre um assunto, essa busca é bastante superficial;
é feita de uma maneira rápida e sem observar se o site que estão
acessando é de uma fonte confiável, além de a leitura do material
pesquisado ser muito rápida e sem aprofundamentos.
Ao usar a Internet para buscar informações auxiliares para
suas matérias, os jornalistas também utilizam a rede maneira

129 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
superficial, geralmente uma leitura rápida, e poucas fontes de
informação além das que a matéria exige são procuradas. No caso
de Mela, ao encontrar a resolução do Conema no Google, buscou
diretamente o ponto que lhe interessava, não leu toda resolução
para saber se haviam mais tópicos que tratavam sobre a questão
da preservação de áreas de nascente e brejo. Timo, ao entrar no
site do Denatran buscou saber o tema da campanha e, em seguida,
já fechou o site, não procurou nenhuma outra informação sobre
a campanha que talvez pudesse ser mais interessante do que as
que já possuía.
Os jornalistas observados usaram a Internet para se
manterem informados, acessando a versão online de veículos
impresso que são colocados como fonte de informação confiável
como da Folha Online, Folha de Londrina, Estadão, RPC, Zero
Hora, o portal UOL, e também os sites de notícias específicos da
Cidade e região. Nenhum jornalista visitou fontes alternativas de
informações oriundas exclusivamente da rede, como os blogs. Há
uma resistência dos jornalistas quanto ao uso dessas fontes, por
ainda não haver um vínculo de confiança com as novas linguagens.
Mesmo usando muito a Internet, ela ainda está muito ligada à
cultura do impresso.
Mesmo os sites de notícias de fontes confiáveis visitados,
não foram lidos pelos jornalistas. O site era acessado, liam-se as
manchetes da página principal do site ou de alguma editoria e
depois disso já se entrava em outro site repetir o mesmo processo.
A única repórter que chegou a ler uma matéria foi Mela que, no
site da Folha de Londrina, se informou sobre um investigado
que foi preso por abuso de autoridade. Houve casos que os
repórteres entraram em sites de notícias, mas com o intuído de
buscar informações auxiliares ou para terem como base para

130 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
suas matérias, como aconteceu com River que entrou no site da
Prefeitura para ler uma matéria sobre o Seminário de Educação;
Timo que acessou o Pindavale para ler uma matéria sobre a
Semana de Trânsito e Mela que entrou no Cidade Notícias para
se informar sobre a briga no Sindicato.
Outra observação feita no acompanhamento desses
jornalistas foi que ferramentas como o MSN e o e-mail são usados
apenas para tratar de assuntos pessoais, quando poderiam ser de
grande utilidade na redação, agilizando o processo de comunicação
com outros repórteres, editores ou, até mesmo, podendo ser
usado para contatar fontes e realizar entrevistas. Os jornalistas
usam o MSN e o e-mail para conversas pessoais com parentes e
amigos e até mesmo com outros jornalistas da redação; nenhum
dos observados usou estas ferramentas para fazer realizar uma
entrevista. Neste caso, o telefone ainda se mostra indispensável,
talvez pelo fato de não se saber quando a fonte irá verificar sua
caixa de e-mail ou se conectar no MSN. Como, numa redação,
cada minuto perdido pode atrasar o envio do jornal para a gráfica,
os jornalistas não se arriscam em perder tempo.
Os motores de busca podem ser considerados como o
portal entre os jornalistas e a rede. São estes sites, principalmente
o Google. Somente a repórter Mela usou outra ferramenta de
busca, o Live Search, que funciona como fonte de ligação com
a rede, pois uma parte considerável das informações disponíveis
na Internet estão indexadas nestes sites. Os motores de busca
são usados para procurar todo tipo de informação. O repórter
Timo usou a ferramenta antes de sair para uma entrevista, para
saber sobre problemas cardíacos e também usou o Google para
procurar o site do Denatran e obter informações sobre a Semana
de Trânsito. A repórter Mela usou o Google para saber qual o

131 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
site da Suderhsa, para ter acesso à resolução do Conema, além de
usar o Live Search para saber o que significa a sigla Suderhsa e
obter informações sobre uma briga no Sindicato.
De um ponto de vista de mineração de dados, desde
os mais simples até os mais apurados, os jornalistas não
aprenderam a se locomover na rede com toda agilidade com que
já fazem pessoalmente ou que aprenderam a ter pelo telefone.
A contribuição que a Internet dá, ao jornalismo impresso, é
secundaria na produção das matérias. Com exceção de Mela,
que buscou a resolução do Conema, nenhum outro procurou
informações mais aprofundadas sobre os assuntos que tratavam e,
mesmo no caso de Mela, foi feita uma leitura rápida da resolução.
A Internet poderia ser mais bem utilizada na investigação
de determinados assuntos: os jornalistas poderiam buscar
informações em sites de órgãos governamentais, ONG’s,
instituições de ensino e pesquisas, sites dedicados à publicação
cientifica. Há uma infinidade de possibilidades à espera na rede,
que podem ser facilmente acessadas, mas que ainda parecem
estar escondidas do jornalista, seja pela falta de domínio que se
tem sobre a rede, seja pela falta de interesse em se buscar fontes
alternativas de informação.

Considerações finais

A partir do estudo feito na editoria do jornal, pode-se


declarar compreendido o modo e para que finalidade os jornalistas
usam a Internet. A metodologia de estudo de caso somada à técnica
da observação participante. Algumas críticas são feitas quanto ao
uso da observação participante, como a de que o envolvimento do

132 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
pesquisador pode influir nas ações dos pesquisados, ou que uma
análise crítica do que foi observado deixe de ser feita devido a este
envolvimento. Na experiência dentro da redação do jornal, não se
notou nenhuma modificação no comportamento dos repórteres
em função da presença do observador. Cada um realizou o trabalho
do modo como sabe e gosta de fazer, inclusive, expondo maneiras
de trabalhar que podem ser questionadas por professores dos
cursos de Jornalismo.
Os quatro jornalistas acompanhados continuaram a ter
conversas informais e comentaram francamente como utilizam
a Internet e todas as táticas usadas para se cumprir uma pauta.
Acredita-se que as perguntas levantadas quando o tema deste
trabalho foi escolhido estão respondidas. O “como” deve ser um
dos elementos que levem a escolha do estudo de caso. Neste
estudo, o “como” os jornalistas de um jornal impresso usam a
Internet para fazerem matérias locais, foi descrito e analisado.
Que a Internet é amplamente usada ficou claro, mas a
forma como é utilizada pode ser objeto discussões. Os jornalistas
a veem sim como um elemento de apoio, mas secundário. Ainda
a preferência em realizar entrevistas está no contato pessoal com
a fonte ou usando o telefone. Buscar publicações especializadas,
estudos acadêmicos e visitar sites oficiais ocorre de maneira
esporádica; parece não haver um aprofundamento na mineração
de dados. Outro aspecto vem do próprio desinteresse do repórter
em ter um maior grau de especialização técnica.
É certo que, durante muitos anos, o ofício do jornalismo
era para ser aprendido na prática, no dia a dia das redações
compartilhando o conhecimento dos mais experientes. Acontece
que hoje, com as redações mais enxutas e o tempo para o
fechamento do jornal mais curto, não há mais este espaço para

133 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 101-136– jan./jun. 2018
a troca de vivências. Outro fator que deve ser considerado é que
antes não havia todo este desenvolvimento tecnológico observado
atualmente: o repórter não é mais aquele que é responsável pela
reportagem. Agora, além disso, deve ter noções de pauta, edição,
diagramação, fotografia e Internet.
A Internet já é uma clara realidade presente no jornalismo,
mas os jornalistas ainda se comportam como se saber dominar estar
ferramenta fosse algo de segunda ordem. Mas a confiabilidade
das informações apresentadas tem que ser responsabilidade
do repórter. O editor não questiona se aquilo que foi escrito é
verdadeiro; o jornalismo sendo uma profissão que exige uma
confiança entre todos os responsáveis pela notícia não pode estar
sujeito, apesar de acontecerem, invariavelmente, a falhas. Eis a
importância de se conhecer e saber utilizar todas ferramentas
disponíveis: diminuir as “falhas” entre o fato e o leitor.

Referências

ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Usos e Abusos do Estudo de Caso.


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SENTENÇA DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE:
UMA ANÁLISE ARGUMENTATIVA

Helena Cristina LÜBKE1 (PG – UEL)


Talita Canônico e SILVA2 (PG – UEL/ IFPR)

Se a linguagem falasse apenas à razão e constituísse assim uma ação


sobre o entendimento dos homens, então ela seria apenas informação
ou representação. Mas, ao mesmo tempo em que ela desprende
o conjunto de relações necessárias da razão, também articula o
conjunto de relações desejadas da vontade. Neste sentido, o seu traço
fundamental é o argumentativo, o retórico, o ideológico, porque
é este traço que a apresenta, não como marca de diferença entre o
homem e a natureza, mas como marca de diferença entre o eu e o
outro, entre subjetividades cujo espaço de existência é a história de
relações e transformações sociais (Carlos Vogt, 2015, p. 76).

Resumo: No presente artigo, a língua será enfocada sob o ponto de vista argumentativo,
evidenciando, a partir de um estudo teórico e prático, que a argumentatividade é
inerente ao próprio uso da linguagem, considerada como ação e como prática social.
Para o corpus de análise, selecionamos um recorte de uma sentença de reintegração de
posse. O objetivo é descrever as diversas maneiras pelas quais a argumentatividade se
manifesta. Duas categorias de análise serão mobilizadas: os operadores argumentativos
e a seleção lexical. Delimitamos como fundamento teórico a Linguística Textual e a
Semântica Argumentativa. Alguns autores centralizam as atenções: Koch; Anscombre
e Ducrot; Perelman e Olbrechts-Tyteca.

Palavras-chave: Argumentação. Operadores Argumentativos. Seleção Lexical.

1
Helena Cristina Lübke, Doutoranda do Programa de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Londrina – UEL – Londrina, Paraná, Brasil. Docente da
Universidade Católica de Santa Catarina – Campus Jaraguá do Sul, Santa Catarina, Brasil.
2
Talita Canônico e Silva, Doutoranda do Programa de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Londrina – UEL – Londrina, Paraná, Brasil. Docente do
Ensino Básico, Técnico e Tecnológico no Instituto Federal do Paraná – IFPR – Campus
Londrina, Paraná, Brasil.

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Abstract: In the present article, the language will be approached from an argumentative
point of view, evidencing, from a theoretical and practical study, that the argumentativity
is inherent to the own use of the language considered as action and as social practice.
To illustrate the corpus of analysis, we selected a part of a decision to reintegrate tenure.
The purpose is to describe, the various ways in which argumentativeness is manifested.
Two categories of analysis will be mobilized: the argumentative operators and the
lexical selection. Textual Linguistics and Argumentative Semantics were delimited as
theoretical foundation. Some authors center the attention: Koch; Anscombre and Ducrot;
Perelman and Olbrechts-Tyteca.

Keywords: Argumentation. Argumentative Operators. Lexical Selection.

Introdução

Todo texto tem por trás de si um enunciador que procura


persuadir o seu leitor. Sendo o texto resultante de um processo
de interação entre indivíduos – um autor e um leitor – em
uma situação definida, que gravita em torno de um assunto,
deve garantir a unidade temática. Desses quatro elementos:
locutor, leitor, assunto e situação, dois serão estudados com mais
profundidade neste trabalho – o autor e o leitor.
No texto argumentativo, o autor procura influenciar o leitor,
tentando fazer com que este altere sua maneira de pensar e de
agir, com o objetivo de persuadi-lo a aderir a um determinado
ponto de vista. A argumentação é capaz de ocorrer mesmo de
forma inconsciente, pois, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca
(1996), a argumentação está encarregada de instituir a adesão dos
interlocutores e, quanto mais eficaz ela for, maior será a chance
de desenvolver a ação pretendida pelo locutor.
Em princípio, toda vez que alguém fala ou escreve está
argumentando, para Koch (2011, p. 101), “o uso da linguagem é
inerentemente argumentativo”. Ao realizar atos sociais por meio

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da linguagem verbal, tais como dar informações ou explicações,
fazer avalia­ções ou expressar sentimentos, o locutor espera ter
a adesão de seus interlocutores. Embora se possa dizer que
exista argu­mentação em qualquer intercâmbio verbal, algumas
manifestações de linguagem são consideradas mais argumentativas
do que outras.
E dentre os recursos argumentativos que contribuem para
que um texto se torne mais dotado de argumentatividade, neste
trabalho analisaremos os operadores argumentativos, os quais
têm por objetivo mostrar a força persuasiva dos enunciados; e a
seleção lexical, palavras utilizadas intencionalmente para favorecer
a aceitabilidade do interlocutor, constatando que tais recursos
manifestam valores semânticos e ideológicos.
Estudaremos, a partir dos pressupostos da Semântica
Argumentativa e da Linguística Textual, os operadores
argumentativos e a seleção do léxico de uma sentença de
reintegração de posse, refletiremos sobre os efeitos de sentido
que manifestam e como podem contribuir para que o texto
promova a aceitação de determinadas ideias. Para tanto, o trabalho
está organizado do seguinte modo: considerações acerca dos
fundamentos teóricos (argumentação, operadores argumentativos
e seleção lexical) e apresentação e análise do corpus escolhido.

A argumentação

A argumentação tem sido estudada desde os tempos de


Aristóteles, que considerava a retórica a arte de persuadir. Vários
au­tores afirmam que o objetivo maior da argumentação é sempre
assegurar a adesão do destinatário a uma tese ou con­clusão. Para

139 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p.47), “a argumentação é
uma ação que tende sempre a modificar um es­tado de coisas
pré-existentes.” A argumentação, pois, está ligada não apenas a
processos linguísticos, mas também a processos sociais, por se
desenrolar em uma situação histórica-social intermediada pela
linguagem verbal.
Os autores citados, Perelman e Olbrechts-Tyteca,
representam o impulso dos estudos sobre a argumentação no
período pós-guerra, pois, a obra Tratado de Argumentação: a nova
retórica, publicada inicialmente em 1958, integra a teoria da
argumentação a uma filosofia do conhecimento e a uma filosofia
da decisão e ação, pois Perelman também foi filósofo do Direito.
Assim sendo, a prioridade na Nova Retórica é para o discurso
jurídico da argumentação. Na Nova Retórica, há hierarquização
dos tipos de discurso, principalmente em relação à linguagem do
tribunal – gênero jurídico. Da Retórica Tradicional, Perelman e
Olbrechts-Tyteca conservaram a noção de auditório, a partir de
uma distinção entre auditório particular e auditório universal.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 31) propõem
“chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só
para um auditório particular e chamar convincente àquela que
deveria obter a adesão de todo ser racional”. Ainda, no Tratado
da Argumentação, os referidos autores dedicaram-se à exploração
de argumentos destinados a convencer e a persuadir, somente na
modalidade escrita. Preocuparam-se com a argumentação em
uma perspectiva retórica e filosófica. Ducrot e Anscombre (1976)
também tiveram como objeto de pesquisa a argumentação, porém
em uma perspectiva linguística, considerando a frase, o enunciado,
os enunciadores e a enunciação.
Com Ducrot e Anscombre, a Semântica Argumentativa
é estruturada a fim de explicar a relação entre locutor e ouvinte,

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compreendendo a essência do discurso por meio dos diversos
recursos argumentativos, direcionando os enunciados. Carlos
Vogt inicia os estudos de Semântica Argumentativa no Brasil
e, posteriormente, Ingedore G. V. Koch e Eduardo Guimarães
colaboram para o enriquecimento dos estudos.
Por meio das pesquisas retóricas, além da Semântica
Argumentativa, surgiram áreas de estudos como a Análise do
Discurso, a Linguística Textual, a Análise da Conversação,
entre outras. A Linguística Textual, inicialmente, descrevia as
manifestações sintático-semânticas nos enunciados por meio
de análises transfrásticas, somente após 1980, conforme Vilela e
Koch (2001), os fatores de coesão e de coerência passaram a ser
observados durante a interação.
A Semântica Argumentativa estuda os recursos da língua
dentro do texto e como instrumentos sociais; tais mecanismos
são cunhados por Koch (2011) como marcas linguísticas, a autora
considera todo falante um ser provido de intenções comunicativas,
por isso, por meio dos recursos, é possível direcionar o sentido
do texto.
Ao caracterizar a linguagem humana pela argumentatividade,
acreditamos na necessidade de haver um ponto comum
estabelecido entre os interlocutores para que o processo de
comunicação instaure-se e realize-se enquanto manifestação
enunciativa. Para desenvolver seus argumentos, o locutor deve
uti­lizar recursos linguísticos tais como: modalização, adjetivação,
intensificação, figuras de linguagem, entre outros. A função desses
mecanismos é servir de base para a argumentação e dar suporte
à intenção do argumentador. Dois desses recursos, que podemos
considerar como sinalizadores textuais, são os operadores argu­
mentativos e a seleção lexical.

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Para Ducrot (1981), do ponto de vista do alocutário, as
frases, em sua maioria, contêm uma orientação argumentativa.
Tais orientações possibilitam prever o potencial argumentativo
presente nos enunciados pelos quais as frases se revelam. Assim,
a função da frase é dizer como se proceder para acessar o sentido
dos enunciados.
Ducrot também faz alusão à tendência dos enunciados
de orientarem o receptor para determinadas conclusões em
detrimento de outras, ou seja, a orientação discursiva para a qual
o texto conduz. Tais instruções são veiculadas, geralmente, por
meio de operadores argumentativos do tipo ainda, aliás, também,
mesmo, até, mas, embora, já que, logo, porque, entre outros, cujo papel
habitual é o de estabelecer relações entre entidades semânticas.
No Brasil, pesquisadores como Vogt, Guimarães, Koch e outros
apresentam estudos sobre operadores argumentativos, mostrando
como as conjunções e outras classes gramaticais marcam ou
estabelecem a orientação argumentativa do texto e indicam o
caminho que o leitor deve seguir.
A escolha lexical auxilia no processo de persuasão e estimula
possíveis reações do interlocutor. A intenção no uso do léxico
produz determinados efeitos de sentido, faz transparecer a opinião
do enunciador e colabora para a possível adesão do público. Sendo
assim, elucidaremos os dois recursos predominantes na Sentença
de Reintegração de Posse – operadores argumentativos e seleção
lexical.

Sobre os operadores argumentativos

Para Ducrot (1987), toda língua possui, em sua gramática,


mecanismos que permitem indicar a orientação argumentativa dos

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enunciados e denominam-se marcas linguísticas da enunciação ou
da argumentação. De acordo com uma abordagem tradicional, as
conjunções, alguns advérbios e pronomes são, para a Gramática
Normativa, fundamentalmente, elementos de relação. Já, para
a Linguística Textual e para a Semântica Argumentativa, tais
elementos recebem o nome de operadores argumentativos, os
quais têm grande relevância na construção do sentido de um texto,
ou seja, essas palavras são responsáveis por aspectos essenciais da
argumentatividade da língua.
A expressão “operadores argumentativos” foi cunhada por
Du­crot, criador da Semântica Argumentativa (ou Semântica da
Enun­ciação), para designar certos elementos da gramática de
uma língua que têm por função indicar a força argumentativa
dos enunciados, a direção (sentido) para a qual apontam. Oliveira
(2003) destaca que os operadores argumentativos expressam
diferentes valores semânticos e refletem o arranjo discursivo de
um texto, direcionando os participantes da enunciação de forma
argumentativa. A autora (1999, p. 100) assevera que
Ducrot, ao formular os princípios básicos da Semântica
Argumentativa, chamou de operadores argumentativos a um
grupo de elementos da gramática, cujo objetivo fundamental é
revelar a argumentatividade inerente a determinados enunciados
e direcioná-los a uma conclusão específica de acordo com as
condições de uso.
A seguir, citaremos os operadores argumentativos mais
recorrentes, em nosso corpus, e seus respectivos efeitos de sentido.

143 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
Efeito de sentido Operador Argumentativo
1- indicam adição de argumentos e, além de, nem, não só...mas
com o mesmo valor argumentativo também
2- indicam adição de argumentos
até, até mesmo, inclusive
mais fortes
3- indicam adição de argumento
aliás, por sinal
decisivo
4- indicam alternância ou escolha ora...ora, quer...quer
5- indicam oposição mas, porém, todavia, no entanto
portanto, afinal, por isso, logo, por
6- indicam conclusão
conseguinte
7- indicam explicação pois, porque, que, isto é, ou melhor
porque, visto que, desde que, uma
8- indicam causa
vez que
9- indicam concessão embora, mesmo que, se bem que
como, que nem, bem como, mais
10- indicam comparação
(menos) do que
11- indicam conformidade como, conforme, por exemplo
12- indicam condição se, caso, desde que
13- indicam restrição só, apenas, somente
14- indicam finalidade a fim de que, para, para que
15- indicam proporcionalidade à proporção que, à medida que
16- indicam condição favorável, mas
pelo menos, ao menos
mínima
17- indicam negação plena nada, ninguém
18- indicam afirmação plena tudo, todas, todos

Sobre a seleção lexical

A seleção lexical é a escolha de um termo pertencente


ao léxico da língua capaz de promover efeitos de sentido como
proximidade ou distância, formalidade ou informalidade, conforme
a condição histórica, social e ideológica dos interlocutores.

144 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
Segundo Koch (2011, p. 151), “há palavras que, colocadas
estrategicamente no texto, trazem consigo uma carga poderosa de
implícitos”, essas palavras indicam a intencionalidade do locutor e
promovem a reflexão, viabilizando maior ou menor aceitabilidade
do interlocutor.
Conforme o significado e o contexto, cada palavra possui
seu valor semântico, e seu uso estratégico afeta a qualidade
de convencimento. De acordo com Carvalho (2000, p. 36), os
substantivos, os adjetivos, os verbos e os advérbios de modo
derivados do adjetivo são palavras “com forte componente
semântico, que se enriquecem continuamente, acompanhando
o dinamismo do mundo”. Para Castilho (2010), a seleção lexical
é o dispositivo sociocognitivo regulador da lexicalização. Por
isso, entendemos que, afetado pelas condições sócio-históricas,
o enunciador utilizará palavras hábeis em motivar o teor
subjetivo do texto. E, segundo Koch (2011, p. 151), “a escolha
de um determinado termo pode servir de índice de distinção,
de familiaridade, de simplicidade, ou pode estar a serviço da
argumentação, situando melhor o objeto do discurso dentro de
determinada categoria, do que o faria o uso de um sinônimo”.
No texto em análise, há vários elementos argumentativos
que promovem a persuasão, todavia, neste trabalho, verificaremos
a presença de duas construções argumentativas – os operadores
e a seleção lexical.

Análise do Corpus

Serão identificados, na sentença de reintegração de posse,


alguns operadores argumentativos e algumas escolhas lexicais que

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orientam a trama persuasiva do referido texto, a fim de que se
possa fazer uma análise de quais efeitos de sentido eles produzem,
uma vez que a argumentatividade é inerente à linguagem e nela
está inscrita. Os operadores aqui analisados são: e (no sentido
de mas); embora; nem; só; mas; até; pelo menos; ou seja; a fim
de. Ressaltamos que, quando o operador argumentativo aparecer
repetidas vezes, este não mais será analisado a fim de que não se
torne repetitivo. A análise da seleção lexical sucederá o estudo
dos operadores.
A seguir, apresentaremos a transcrição literal da sentença
do juiz federal titular da 8ª Vara da Seção Judiciária de Minas
Gerais, numerada em parágrafos. A decisão versa sobre uma ação
do DNER3 contra um grupo de sem-terra que ocupou as margens
de uma rodovia no ano de 1995. Os operadores argumentativos
estão destacados em negrito e sublinhado; e a seleção lexical segue
realçada em itálico e sublinhado.

Sentença em ação de reintegração na posse contra sem-terra

Várias famílias (aproximadamente 300 – fls. 10) invadiram uma faixa de domínio
1 ao lado da Rodovia BR 116, na altura do km 405,3, lá construindo barracos de
plástico preto, alguns de adobe, e agora o DNER quer expulsá-los do local.
“Os réus são indigentes”, reconhece a autarquia, que pede reintegração liminar
2
na posse do imóvel.
E aqui estou eu, com o destino de centenas de miseráveis nas mãos. São os
3
excluídos, de que nos fala a Campanha da Fraternidade1 deste ano.
Repito, isto não é ficção. É um processo. Não estou lendo Graciliano Ramos, José
4
Lins do Rego ou José do Patrocínio.
Os personagens existem de fato. E incomodam muita gente, embora deles nem
se saiba direito o nome. É Valdico, José Maria, Gilmar, João Leite ( João Leite
5
???). Só isso para identificá-los. Mais nada. Profissão, estado civil (CPC, artigo
282, II) para quê, se indigentes já é qualificação bastante?

3
DNER: Departamento Nacional de Estradas de Rodagem.

146 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
Ora, é muita inocência do DNER se pensa que eu vou desalojar este pessoal,
com a ajuda da polícia, de seu (sic) moquiços, em nome de uma mal arrevesada
6
segurança nas vias públicas. O autor esclarece que quer proteger a vida dos
próprios invasores, sujeitos a atropelamento.
Grande opção! Livra-os da morte sob as rodas de uma carreta e arroja-os para a
7
morte sob o relento e as forças da natureza.
Não seria pelo menos mais digno – e menos falaz – deixar que eles mesmos
8 escolhessem a maneira de morrer, já que não lhes foi dado optar pela forma de
vida?
O Município foge à responsabilidade “por falta de recursos e meios de
9
acomodações” (fls. 16 v).
10 Daí, esta brilhante solução: aplicar a lei.
Só que, quando a lei regula as ações possessórias, mandando defenestrar os
invasores (art. 920 e seguintes do CPC), ela – COMO TODA LEI – tem em
mira o homem comum, o cidadão médio, que, no caso, tendo outras opções de
11 vida e de moradia diante de si, prefere assenhorar-se do que não é dele, por
esperteza, conveniência, ou qualquer outro motivo que mereça a censura da lei
e, sobretudo, repugne a consciência e o sentido do justo que os seres da mesma
espécie possuem.
Mas este não é o caso no presente processo. Não estamos diante de pessoas
12 comuns, que tivessem recebido do Poder Público razoáveis oportunidades de
trabalho e de sobrevivência digna (v. fotografias).
Não. Os “invasores” (propositadamente entre aspas) definitivamente não são
pessoas comuns, como não são milhares de outras que “habitam” as pontes,
13 viadutos e até redes de esgoto de nossas cidades. São os párias da sociedade (hoje
chamados excluídos, ontem de descamisados2), resultado do perverso modelo
econômico adotado pelo país.
Contra este exército de excluídos, o Estado (aqui, através do DNER) não pode
exigir a rigorosa aplicação da lei (no caso, reintegração de posse), enquanto ele
14
próprio – o Estado – não se desincumbir, pelo menos razoavelmente, da tarefa
que lhe reservou a Lei Maior.
Ou seja, enquanto não construir – ou pelo menos esboçar – “uma sociedade livre,
justa e solidária” (CF, artigo 3º, I), erradicando “a pobreza e a marginalização” (n.
III), promovendo “a dignidade da pessoa humana” (artigo 1º, III), assegurando
“a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social” (artigo 170),
emprestando à propriedade sua “função social” (art. 5º, XXIII, e 170, III),
15 dando à família, base da sociedade, “especial proteção” (art. 226), e colocando
a criança e o adolescente “a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, maldade e opressão” (art. 227), enquanto não fizer isso,
elevando os marginalizados à condição de cidadãos comuns, pessoas normais,
aptas a exercerem sua cidadania, o Estado não tem autoridade para deles exigir –
diretamente ou pelo braço da Justiça – o reto cumprimento da lei.
Num dos braços a Justiça empunha a espada, é verdade, o que serviu de estímulo
a que o Estado viesse hoje a pedir a reintegração. Só que, no outro, ela sustenta a
16
balança, em que pesa o direito. E as duas – lembrou RUDOLF VON IHERING
há mais de 200 anos – hão de trabalhar em harmonia:

147 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
“A espada sem a balança é força brutal; a balança sem a espada é a impotência do
direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita
17
sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com
que maneja a balança”.
Não é demais observar que o compromisso do Estado para com o cidadão funda-
18 se em princípios, que têm matriz constitucional. Verdadeiros dogmas, de cuja fiel
observância dependem a eficácia e a exigibilidade das leis menores.
Se assim é – vou repetir o raciocínio – enquanto o Estado não cumprir a sua parte
(e não é por falta de tributos que deixará de fazê-lo), dando ao cidadão condições
19
de cumprir a lei, feita para o homem comum, não pode de forma alguma exigir
que ela seja observada, muito menos pelo homem “incomum”.
Mais do que deslealdade, trata-se de pretensão moral e juridicamente impossível,
a conduzir – quando feita perante o Judiciário – ao indeferimento da inicial e
extinção do processo, o que ora decreto nos moldes dos artigos 267, I e VI; 295,
20
I, e parágrafo único, III, do Código de Processo Civil, atento à recomendação
do artigo 5º da LICCB e olhos postos no artigo 25 da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, que proclama:
“Todo ser humano tem direito a um nível de vida adequado, que lhe assegure,
21 assim como à sua família, a saúde e o bem estar e, em especial, a alimentação, o
vestuário e a moradia”.
Quanto ao risco de acidentes na área, parece-me oportuno que o DNER
22 sinalize convenientemente a rodovia, nas imediações. Devendo ainda exercer um
policiamento preventivo a fim de evitar novas “invasões”.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
23
Belo Horizonte, 03 de março de 1995

ANTONIO FRANCISCO PEREIRA

Juiz Federal da 8ª Vara

Análise

Devido ao espaço destinado a estre trabalho, quanto às


ocorrências de operadores argumentativos, destacamos apenas
os seguintes:

148 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
a) Operador E (1º parágrafo, linha 3 – “..., e agora o DNER quer
expulsá-los do local.”).
No presente contexto, o operador argumentativo “e” tem
função adversativa. Segundo Ducrot, o MAS é um operador
argumentativo por excelência, pois opõe argumentos enunciados
de perspectivas diferentes, que orientam, portanto, para conclusões
contrárias e a sua estratégia é a de frustrar uma expectativa que
se criou no destinatário. No caso, o argumento B é um fator de
impedimento para o argumento A.

X
Argumento A Argumento B
Famílias sem-terra que tomam DNER tentando expulsá-los.
uma propriedade. E (mas)

b) Operador EMBORA (5º parágrafo, linha 1 – “E incomodam


muita gente, embora deles nem se saiba direito o nome”.).
Os operadores MAS e EMBORA têm funcionamento
semelhante: eles opõem argumentos enunciados de perspectivas
diferentes, que orientam, portanto, para conclusões contrárias. A
diferença diz respeito à estratégia argumentativa utilizada pelo
locutor. No caso do MAS, Guimarães (1987, p. 109) diz haver a
“estratégia do suspense. No caso do EMBORA, o locutor utiliza
a ‘estratégia de antecipação’’’, ou seja, anuncia que o argumento
introduzido pelo EMBORA vai ser anulado.

c) Operador NEM (5º parágrafo, linha 1 – “E incomodam muita


gente, embora deles nem se saiba direito o nome”.).
Este operador argumentativo diz respeito à adição de
argumentos com o mesmo valor argumentativo.
Sobre eles + nome deles = desconhecidos
NEM

149 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
d) Operador SÓ (5º parágrafo, linha 2 – “Só isso para identificá-
los.”).
É um operador argumentativo que transmite o efeito de
sentido de restrição, e leva a crer que nada mais há para identificá-
los. Apenas isso, pré-nome ou, em alguns casos, nome completo,
mais nada, pois não têm documentação registrada, ou seja, eles
não existem de forma completa.

e) Operador ATÉ (13º parágrafo – linha 2 – “...como não são


milhares de outras que “habitam” as pontes, viadutos e até redes
de esgoto de nossas cidades.”).
Este operador assinala a adição de elemento mais forte
de uma escala orientada no sentido de determinada conclusão.
O operador ATÉ contribui fortemente na forma de persuadir o
leitor/ouvinte, pois ‘habitar’ pontes e viadutos já é quase comum
para aqueles brasileiros que não têm direito a uma vida digna,
porém ‘habitar’ ‘até redes de esgoto’, isso já é algo degradante
para o ser humano, haja vista que só animais transmissores de
doenças, como ratos, ratazanas, baratas, entre outros, ‘habitam’
esse tipo de lugar.
Argumento 1 Argumento 2 Argumento 3 (mais forte)
Habitar pontes + Habitar viadutos + Habitar redes de esgoto

f ) Operador PELO MENOS (14º parágrafo, linha 3 – “...


enquanto ele próprio – o Estado – não se desincumbir, pelo
menos razoavelmente, da tarefa que lhe reservou a Lei Maior.”).
Este operador argumentativo indica uma condição
favorável, embora mínima, em favor de uma tese, ou seja, conforme
a Lei Maior (a Constituição Federal brasileira), é dever do Estado
prover moradia (ou facilitar tal provimento) para os cidadãos

150 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
de menor poder aquisitivo, no entanto é o próprio Estado (por
intermédio do DNER) que está agindo contrariamente ao seu
dever, quando tenta desabrigá-los para a reintegração de posse.
O modalizador razoavelmente faz transparecer o ponto de
vista do enunciador e sugere sua intenção, revelando seu grau de
envolvimento com a questão, isto é, o Estado deve se “desincumbir
da tarefa” (prover moradia) de forma razoável (de acordo com a
razão, com a sensatez), o Estado não pode simplesmente expulsar
os “invasores”, sem lhes oferecer um lugar digno para morar. De
acordo com Koch (2011, p. 138), são “modalizadores todos os
elementos lingüísticos diretamente ligados ao evento de produção
do enunciado e que funcionam como indicadores das intenções,
sentimentos e atitudes do locutor em relação ao discurso”.

g) Operador OU SEJA (15º parágrafo, linha 1 – “Ou seja,


enquanto não construir – ou pelo menos esboçar – “uma sociedade
livre, justa e solidária”).
O operador argumentativo OU SEJA introduz uma
explicação à afirmação anterior. De certa forma, quando damos
uma explicação, sempre estamos reafirmando o que já foi
enunciado e tal revalidação ocorre por meio de um argumento
por autoridade, pois, a partir de OU SEJA, o enunciador elenca
uma séria de leis.

h) Operador A FIM DE (22º parágrafo, linha 3 – “Devendo


ainda exercer um policiamento preventivo a fim de evitar novas
“invasões.”).
Este operador argumentativo aponta para uma finalidade
e fecha o texto devolvendo a responsabilidade aos denunciadores.

151 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
Ao finalizar esta breve análise dos operadores argumentativos,
corroboramos a posição de Oliveira (1999, p. 102):

dentro da dimensão argumentativa da linguagem, está inserida


uma classe de palavras, rotuladas de operadores argumentativos,
itens lexicais que estão presentes tanto nos textos escritos, quanto
nos orais, pois em todo texto subjaz uma carga de sentido que
expressa a intencionalidade de seu autor; intencionalidade que é
desvendada, progressivamente, através de pistas que os operadores
argumentativos podem sinalizar.

Em relação à seleção lexical, verificamos que o vocabulário


empregado na sentença de reintegração de posse são termos
pouco habituais no cotidiano e intensificam a carga apelativa da
mensagem, demonstrando, assim, a intenção comunicativa. No
parágrafo 3, o peso semântico da palavra miseráveis desperta
compaixão, pois ressalta a extrema carência dos envolvidos,
evidencia que não são apenas pobres e, sim, paupérrimos,
indivíduos sem possibilidades de viver em outras condições.
A palavra é otimizada pelo intensificador centenas, termo que
demonstra o grande número de desabrigados.
No mesmo parágrafo, excluídos é outra palavra pertencente
ao mesmo campo semântico de miseráveis, e reforça o sentido de
que algo foi tirado das pessoas em questão. O termo é corroborado
pelo argumento por autoridade Campanha da Fraternidade, um
evento de saber notório da população, que credita o fato de acolher
as pessoas como princípio cristão, e não excluí-las. No caso, se
foram excluídos, subentende-se que a atitude cristã não está sendo
aplicada, dessa forma, o enunciador apela para os valores morais
e religiosos dos interlocutores.
No parágrafo 6, moquiços é uma palavra de uso comum na
região Nordeste e tem como significado habitações rústicas e sem

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conforto. O termo realça a pobreza dos “invasores”, mas ressalta
que, por mais que seja um casebre, é uma habitação, é um abrigo, é
o único lugar que eles têm, estimulando, assim, a proteção aos sem-
terra. No mesmo parágrafo, o adjetivo arrevesada é intensificado
pelo advérbio mal, permitindo que o substantivo segurança tenha
adjetivação binária, revertendo a acusação do DNER para o
próprio órgão, apontando a falta de cuidados com as vias públicas
por permitir que tenham sinalização confusa.
No parágrafo 8, o adjetivo falaz, que possui carga semântica
negativa, pois indica algo enganador, fraudulento, é uma crítica
ao posicionamento do DNER e enfatiza a oposição entre vida e
morte. No parágrafo 10, o adjetivo brilhante é utilizado de maneira
irônica em relação à atitude do Estado, já que, para solucionar
o problema da “invasão”, deve-se “aplicar a lei”, ou seja, expulsar
os “invasores”.
No parágrafo 11, defenestrar é uma ação radical, pois prevê
que os “invasores” não, apenas, recebem a ordem para se retirarem
dali, mas são atirados fora dali e, conforme o sentido da palavra, é
uma ação violenta. Por fim, o termo perverso, no parágrafo 13, trata
o modelo econômico do país de forma pejorativa, denunciando e
criticando a desigualdade social no Brasil, comprometendo, assim,
o Estado e eximindo os “invasores” de qualquer culpa.

Considerações Finais

Conforme já explicitado, toda língua possui, em sua


gramática, mecanismos que permitem indicar a orientação
argumentativa dos enunciados. Tais mecanismos denominam-
se marcas linguísticas da enunciação ou da argumentação, com

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a função de determinar o modo como aquilo que se diz é dito.
E, no presente corpus, vários procedimentos de argumentação
são observados do início ao fim da sentença de reintegração
de posse, validando o discurso desde o primeiro parágrafo, em
que o enunciador situa o motivo da sentença; sustentando a
argumentação desde o segundo parágrafo até o décimo quarto,
em que estão dispostos a maior parte dos recursos analisados;
e finalizando o texto com o uso da legislação para reafirmar o
enunciado.
A argumentação, ao articular os enunciados por meio de
operadores argumentativos, apresenta-se, também, como principal
fator não só de coerência, mas de progressão, condições básicas
da existência de todo e qualquer discurso. Pela escolha do léxico,
verificamos a emissão de juízos de valor por parte do enunciador,
pois comunica uma avaliação positiva ou negativa do assunto
em questão, o que também influencia a opinião do interlocutor.
Concordamos com Koch (2011) quando ela menciona que, pela
escolha de um termo inabitual, é possível identificar o propósito
comunicativo da mensagem e, na sentença em estudo, verificamos
uma seleção de palavras que serve para intensificar o sentido
apelativo do discurso.
Dessa forma, depreendemos a extraordinária importância
das relações argumentativas, pois são elas que estruturam os
enunciados em texto, por intermédio dos recursos persuasivos, ou
seja, esses elementos linguísticos funcionam como instrumentos
de argumentação do enunciador, indicando a orientação persuasiva
do texto.
Com a análise desses dois recursos argumentativos,
constatamos que os estudos da Semântica Argumentativa e da
Linguística Textual favorecem a busca pelos efeitos de sentido por

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meio dos aspectos textuais que são intencionais, relacionados a
valores, a crenças e a convenções sociais. E, segundo Koch (2011,
p. 17), todo texto envolve uma ideologia, dessa forma, o homem
“por meio do discurso – ação verbal dotada de intencionalidade
– tenta influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que
compartilhe determinadas de suas opiniões”.

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156 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 137-156– jan./jun. 2018
“PONTA DE LANÇA”:
A METÁFORA COMO ARGUMENTO NA MÚSICA1

Eva Cristina Francisco2


Sthefany Camargo dos Santos3

RESUMO: Música e metáfora estão muito presentes no cotidiano e é possível


observar inúmeras formas de usos dessa figura de linguagem também como recurso de
argumentação. Nesse sentido, o presente trabalho objetiva analisar a música Ponta
de Lança, por Rincon Sapiência, constatando a transferência de significados de seu
estado literal para outras acepções e, consequentemente, seu poder de argumentação/
persuasão ao ouvinte. Para tanto, contamos com referências que versam sobre metáforas
e os mecanismos de persuasão/argumentação, além de conhecimentos sócio-histórico-
culturais para interpretar as leituras na análise.
PALAVRAS-CHAVE: Argumentação; Metáfora; Música; Rap; Persuasão.

ABSTRACT: Music and metaphor are very present in our day by day and it is possible
to observe several use forms of the language figure as an argumentation resource too.
Thus, the present paper aims to analyze the music Ponta de Lança, by Rincon Sapiência,
verifying the meanings transfers from the literal mean to other senses and, consequently,
its power of argumentation/persuasion on the music receptor. For it we rely on references
about metaphors and argumentation/persuasion mechanisms, besides social, historic
and cultural knowledge to interpret the readings in the analysis.
KEY WORDS: Argumentation; Metaphor; Music; Rap; Persuasion.

Introdução

A música é algo com o que temos contato desde a infância


e em qualquer ambiente no qual estivermos, seja em lojas,
supermercados, na própria casa, ela produz sensações inexplicáveis

1
Trabalho resultante do Grupo de Pesquisa EALIFP (Ensino-aprendizagem de línguas
e interdisciplinaridade: a formação do professor).
2
Doutora em Estudos da Linguagem (UEL) – Docente do Curso de Letras do Instituto
Federal de São Paulo, Campus Avaré – evacristina@ifsp.edu.br
³Estudante do Curso de Licenciatura em Letras – habilitação em português e espanhol,
IFSP- Campus Avaré - sthe-fani@hotmail.com

157 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 157-172 – jan./jun. 2018
e pode nos trazer lembranças dos mais remotos momentos, alterar
nosso humor, e até mesmo ajudar nos estudos (LOEWENSTEIN,
2012).
Além disso, através da música é possível se expressar por
meio de inúmeros recursos, dentre eles as figuras de linguagem,
mais especificamente, para este trabalho, a metáfora. Essa figura
de linguagem é a mais utilizada na criação de canções de todos os
gêneros musicais, em especial no rap. Estudar sobre a metáfora abre
um leque de opções investigativas, visto que é muito utilizada, seja
na fala, gêneros textuais, musicais, imagéticos, verbo-audiovisuais,
enfim nos mais variados meios de comunicação.
Muitas vezes, essa figura é utilizada como recurso
argumentativo relacionado a questões de cunho social e crítico.
Ademais, o emprego da metáfora nas músicas, acaba por não
apenas argumentar sobre determinados temas, como também
persuadir o receptor que, de alguma forma, acaba sendo atingido
pela mensagem que está sendo expressada.
Dessa forma, nota-se a importância e a carga de significado
que a metáfora pode conter, seja na música ou em qualquer outro
gênero. Nessa perspectiva, esse trabalho visa analisar uma música
do gênero rap, em que há presentes muitas metáforas que estão
sendo utilizadas como forma de argumentação de diferentes
questões sociais. A música escolhida para a referida investigação
foi a Ponta de Lança e buscamos analisar a figura de linguagem em
pauta considerando o contexto que a letra da música apresenta.
A escolha deve-se ao fato de que a música e a metáfora estão
presentes na rotina de todo indivíduo, transmitindo diferentes
sensações e modos de se expressar. Ademais, analisar esses dois
pontos também exibe a real presença não apenas da argumentação,
mas também da persuasão no receptor que, por algum meio,

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absorve e se apropria da mensagem que a canção, em sua letra e
melodia, visam transmitir.

Revisão de literatura

O estudo da metáfora na linguagem é algo que vem se


tornando uma atividade adicional, visto que há sempre traços dela
nas construções textuais. A grande questão do uso dessa figura de
linguagem vem de sua produção, na qual o falante a utiliza como
forma de argumentação e recurso formal (VEREZA, 2007).
Entretanto, qual é a definição de metáfora?
Segundo Abaurre et al (2016, p. 179), “metáfora, baseia-se
na transferência (a palavra grega metáfora significa ‘transporte’ de
um termo para um contexto de significado que não lhe é próprio”.
Isto é, acepções de semelhança ao dessemelhante são atribuídas
aos mais diversos contextos e formas de transmitir mensagens
dentro do ato comunicativo. Para Cançado (2012, p.130), ela vai
um pouco mais além:

O processamento de uma metáfora requer do ouvinte uma forma


especial de interpretação: a metáfora tem como ponto de partida,
a linguagem literal, que é detectada pelo ouvinte como sendo
anômala. Como o ouvinte espera que o falante tenha a intenção
de transmitir algum tipo de significado, o primeiro recorre a certas
estratégias de interpretação, transformando a sentença anômala em
algum tipo de sentença com significado.

Atualmente, a presença das metáforas tem nos cercado,


desde as falas do cotidiano às músicas que ouvimos, ou até mesmo
aos nossos pensamentos e interpretações dos inúmeros gêneros
com os quais convivemos. Ademais, não só como transferência

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de significados, mas também como forma de persuasão e
argumentação, ela lidera mensagens como anúncios publicitários,
propagandas, noticiários, entre muitos outros tipos de mensagens.
A partir do momento em que a metáfora atua como persuasiva ela
acaba por ter uma relevância maior no discurso, passando, assim,
a ser utilizada como estratégia argumentativa.
A argumentação, segundo Camocardi e Flory (2003,
p.33), “é o processo pelo qual estabelecemos relações e extraímos
conclusões através de premissas”. Ela é muito importante para a
persuasão, uma vez que oferece escopo para que haja no receptor
um processo de convencimento a partir do que foi falado.
Percebemos este fenômeno nas músicas, em especial do gênero rap,
pois de alguma forma o cantor quer produzir um efeito no ouvinte
de modo a persuadi-lo sobre seus pensamentos, suas ideologias,
sua filosofia e, ainda, convidar o ouvinte a compartilhar de suas
ideias por meio da apropriação de suas mensagens, mesmo que
subliminares.
Vieira (2013) assevera que as palavras possuem valor e
são elas que orientam a mensagem, de modo que provoque no
receptor um determinado efeito, por meio da argumentação.
Ademais, no caso da canção em pauta e considerando o gênero
musical em que é apresentada, as referidas palavras passam a ter
um valor emocional/interpretativo ainda mais acurado dada a
significação desse ritmo à sociedade e a popularização deste, haja
vista o público abordado nas letras.
Um dos pilares do Movimento Hip Hop, o Rap teve
origem nos guetos nova-iorquinos por autoria de comunidades
latinas, afro-americanas e jamaicanas. O movimento em pauta era,
como ainda o é, combater violência, a pobreza, as manifestações
de racismo, os problemas relacionados ao tráfico de drogas, a

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insuficiência no que diz respeito ao saneamento e à educação.
Esse movimento viabilizou a crítica social referente a questões
vivenciadas no cotidiano das periferias, estabelecendo a arte como
instrumento de engajamento político capaz de reestruturar o
cotidiano e permitir a reconstrução da identidade marginalizada
(SILVA, 1999).
Dentro dessa perspectiva e da sincretização melodia/letra,
a atividade de um escritor é a criação das expressões metafóricas
para nos levar adiante dela possibilitando-nos a fazer relações
intelectivas de um significado com o outro (VEREZA, 2007).
Na argumentação o falante ou escritor trabalhará a
multiplicidade de significado das sentenças, podendo ser elas
por comparação, vagueza, ambiguidade, entre outros. Quando
fazemos uma comparação por meio de uma metáfora utilizamos
características de um instrumento para fazer associações dele
com um outro instrumento. Entretanto, essas associações, embora
bem desenvolvidas argumentativamente, irão aproximar apenas
alguns aspectos simples desses instrumentos, ausentando algumas
diferenças fundamentais, como, por exemplo, a história por detrás
destes objetos (FIORIN, 2017).
Nessa perspectiva, a utilização da metáfora como forma
de argumentação é algo muito presente nas músicas, de modo a
abordar temas de cunho social e crítico.

Metodologia

A música a ser analisada, Ponta de lança (Anexo I), foi criada


pelo cantor e compositor Rincon Sapiência, que possui como
característica em suas músicas o enaltecimento da cultura afro-

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brasileira. A canção tem um total de 75 (setenta e cinco) versos,
nos quais os que contêm metáforas serão analisados na Tabela
1. Em virtude das inúmeras interpretações e possíveis leituras
a serem engendradas ao examinar os escritos, consideramos os
mais plausíveis de acordo com a ideologia do autor, o ritmo da
música e o conceito desse gênero musical. Rap é a abreviação para
rhythm and poetry (ritmo e poesia). Essa vertente do movimento
tem enfoque na musicalidade, na qual pobres, pretos e revoltados
com a sociedade se manifestam rimando ao som da base do DJ. O
conteúdo das letras transmite indignação com a realidade vivida,
fazendo críticas ao sistema. Em composições do gênero rap é
comum a presença da aceitação da cor de pele, da classe social,
do lugar onde reside, isto é, a coragem e a dignidade de assumir
quem realmente são.  A humildade é substancial na produção
desse ritmo musical e na vivência dos moradores de periferia, pois
com ela se obtém o reconhecimento como população pobre e o
respeito para a união dessa população, de extrema importância
para o movimento hip hop. 

Tabela 1. Análise das metáforas presentes na música “Ponta de


lança”

ANÁLISE DAS METÁFORAS CONFORME O


VERSOS DA MÚSICA
CONTEXTO DA MÚSICA
Este trecho enaltece o estilo de composição do artista
mostrando e tentando convencer o receptor de que
os versos dele não estão aprisionados, estão livres tais
“Meu verso é livre, ninguém como Nelson Mandela saindo da cela. O indivíduo
me cancela/ Tipo mandela citado nesse trecho é um símbolo muito importante
saindo da cela” no período do Apartheid, no qual lutou bravamente
contra esse regime e acabou sendo condenado a 27
(vinte e sete) anos de prisão. Sua saída da cadeia foi um
marco importante na história da África do Sul, fato que
enfatiza a importância do verso do autor da música.

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Aqui o compositor compara as linhas de verso
(escritas) e a linha de pipa “cheia de cerol“, sendo
estas muito utilizadas pelos jovens que soltam pipa,
de modo que o cerol funciona como cortante, quando
entra em contato com a linha de outra pipa. Dessa
forma, a comparação ocorre de forma a dar a ideia
de que as linhas de pensamento do cantor também
estão cheias de cortante, ou seja, afiadas, perigosas.
“E dá dó das cabeça quando rela nela”, resulta na
“Minhas linha voando cheia
comparação de uma linha de pipa cheia de cerol e
de cerol/ E dá dó das cabeça
caso enrosque na cabeça de alguém pode cortar, por
quando rela nela”
ser afiada. O mesmo aconteceria na música dele,
isto é, se a canção adentrar a cabeça de um ouvinte
esta tem o poder de “cortar”, uma vez que o artista
considera seus versos muito afiados e argumenta a
este ponto de perspectiva para atingir o receptor de
sua mensagem. Em outras palavras, ele utiliza uma
metáfora dizendo que as linhas de cerol causam
acidentes por serem afiadas como a música. Porém, ao
contrário do prejuízo que pode ser causado pelo cerol,
a música em questão traz benefício ao ouvinte/receptor.
Nesse verso o cantor faz relação com as matrizes afro
e indígenas (candomblé, umbanda, entre outros.).
Além disso, há a comparação com a classe média
no período no protesto conhecido como “panelaço”,
sendo este um tipo de manifestação muito utilizada
“Batemos tambores, eles pela população quando há um descontentamento
panela” com alguma questão política e/ou social.
Com base nisso, ele utiliza uma metáfora de
forma a mostrar ao mesmo tempo as diferenças
e as semelhanças entre o bater, sendo que ambas
é um tipo de manifestação, porém uma ocorre
como forma de celebração e a outra como protesto.
O verso “Roubamos a cena, não tem canivete”, conota
que os negros estariam se destacando sem a necessidade
de armas para guerrear (para “roubar” a cena). Já no
trecho “as Paty derretem, que nem muçarela” o artista
utiliza uma licença poética para fazer a afirmação de
“Roubamos a cena, não tem
uma questão estigmatizada na qual as meninas de classe
canivete /As patty derrete,
média alta, que são chamadas de ‘’patricinhas’’, gostam
que nem muçarela.”
de caras considerados malandros, que normalmente
na mídia e demais gêneros textuais são demonstrados
como sendo meninos de classe média baixa ou classe
baixa. O compositor utiliza o verbo derreter para
enfatizar e persuadir no que diz respeito ao sentido
real da palavra que seria atração, desejo, carisma.

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O primeiro verso ao lado diz respeito à aceitação do
cabelo afro, pois o cabelo alisado por chapinha é algo
“Quente que nem a chapinha que sempre foi imposto para essas mulheres. Com
no crespo, não/ Crespos tão se base nisso, é passada a mensagem de que a chapinha
armando.” não é sinônimo de ser bela. Além disso, “crespos” no
segundo verso apresenta a comparação não apenas
de cabelo crespo, como também da raça negra em
si que está se armando, ou seja, se empoderando.
O conhaque normalmente é tomado em
épocas de inverno, pois é uma bebida que
“Quente que nem o conhaque
esquenta o corpo (devido ao alto teor alcoólico).
no copo, sim”
A metáfora utilizada dá a ideia de que os negros
são quentes, acalorados, tais como o conhaque.
No primeiro verso, ele utiliza como argumento o não
ser herói, uma vez que o contos infantis, apresentam
o herói como uma pessoa valente. Porém, ao mesmo
tempo, ele não é uma pessoa ruim (“Nem uso
“Eu não faço o tipo de herói/
máscara estilo Zorro“), porque na história do Zorro o
Nem uso máscara estilo
protagonista é retratado como um bandido mascarado.
Zorro”
Dessa forma, a metáfora é utilizada de modo a
mostrar que o cantor não é uma pessoa boa, mas
também não é uma pessoa ruim. Isto é, considera-
se um indivíduo comum e faz alusão à igualdade
social tanto almejada nesse gênero musical.
Rodrigo Santoro atuou como personagem no filme
“300’’. Ele era o rei Xérxes que possuia um temperamento
agressivo, não gostava que ninguém dissesse o que ele
tinha que fazer, não aceitava desaforos. Nesse trecho o
“Nesse filme eu sou o vilão
artista tenta persuadir o ouvinte, por meio da metáfora,
300/ Rodrigo Santoro.”
que ele tem as mesmas características do personagem.
Ademais ainda revela o ator que atuava como Xerxes
dando a entender que, apesar do temperamento forte,
ele possuía o glamour, a sensualidade, a beleza que
Rodrigo representava na época/contexto do filme.
Nesse verso, a comparação metafórica mostra o artista
“A rua me serve, tipo sendo incisivo dizendo que a rua o serve, no sentido de
mordomo” que ele prefere a rua e também em seu sentido literal
de servidão, como se a rua fosse o mordomo dele.

164 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 157-172 – jan./jun. 2018
“Tô burlando lei, picadilha rock”, remete
ao estilo musical (rock). Além disso, o rock
apresenta uma temática transgressora, contra
o sistema, tendo como ponto ‘’burlar a lei’’.
“Quando falo rei, não é Presley”, - como está no
contexto de rock, ele acaba por usar como referência
o cantor Elvis Presley, entretanto ele fala que está
“Tô burlando lei, picadilha
“picadilha rock’’, ou seja, está no sentido de transgredir
rock/ Quando falo rei, não é
e não de referenciar o rei do do referido gênero musical.
Presley/ Olha o meu naipe,
Em “Olha o meu naipe, eu tô bem Snipes”, a palavra
eu tô bem Snipes/ Tô safadão,
“naipe” tem a acepção de estilo, e “Snipes” pode
tô Wesley.”
representar uma comparação com o ator Wesley Snipes
e também com o “sniper. Já no trecho “Tô safadão, tô
Wesley”, há a comparação com o cantor Wesley Safadão
e também com o fato de ser considerado desprovido
de timidez, grosso modo, sem-vergonha. Nesses
intertextos interculturais, o compositor corrobora seu
conhecimento sobre música, estilos e enaltece o seu jeito
de ser com toda a aceitação demonstrada pelo verso.
Nesse trecho, o cantor eleva sua música dizendo que
seus ouvintes/fãs podem se sentir bem e belos por
meio do produto que ele oferece que, nesse caso, é a
arte musical. Ele tenta causar esse efeito utilizando
“O meu som é um produto
a metáfora ao transferir a fama e a boa aceitação dos
pra embelezar/ Tipo Jequiti,
cosméticos de beleza mais vendidos para sua música.
tipo Mary Kay.”
Além disso, mostra que, mesmo sendo considerado como
marginalizado (típico do rap), tem conhecimento de
marcas consideradas boas pela sociedade e não acessíveis
a pessoas desprovidas de uma boa condição financeira.
Há uma comparação de “rimas quente’’ com o conhaque
Hennessy. Uma das bebidas mais caras e nobres (o
preço varia entre duzentos reais e trinta e cinco mil
reais, dependendo da versão) transfere, por meio do
“Umas rimas quente, como autor, seu glamour e seu valor (social e financeiro)
Hennessy”/ “Vou cantar às rimas do cantor exaltando veemente sua arte.
autoestima que nem Leci” Já a referência a Leci Brandão, uma das mais importantes
sambistas do Brasil que possui uma música intitulada
autoestima, associa a canção do artista à virtude da
autoestima, ou seja, valoriza sua arte independentemente
de aceitação social ou outro julgamento.

165 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 157-172 – jan./jun. 2018
Nesses versos, em um primeiro momento, o ator compara
a beleza da noite com a atriz Lupita Nyong’o. A artista foi
a primeira atriz queniana e a primeira atriz mexicana a
ganhar o Oscar na categoria de melhor atriz coadjuvante,
entre outros prêmios. Comparando a negritude da noite
a uma atriz também negra e de importância consagrada,
o artista, mais uma vez, traz seu conhecimento
sócio-histórico-cultural unido à arte musical.
“Tambor”, no verso seguinte, é um dos principais
instrumentos utilizados nas matrizes afro e indígenas
“A noite é preta e e “jongo’’ é uma das danças que são acompanhadas
maravilhosa Lupita pelos sons dos tambores. Ou seja, está quente por causa
Nyong’o”/ “To perto do fogo da batida do tambor e da energia que a dança traz.
que nem couro de tambor, Na sequência, o compositor menciona o brinquedo
numa roda de jongo.’’/ “Nesse “Lango-Lango”, um boneco antigo em forma
sufoco, to dando soco, que nem de monstrinho que estava sempre em posição
Lango-Lango”/ “Se a vida de ataque, posição esta em que o compositor,
é um film, meu Deus é que metaforicamente, deveria estar na maioria das
nem Tarantino”/ “Eu to tipo vezes, por se considerar atacado por críticas sociais.
Django.” E, por fim, caso a vida do cantor fosse um filme, o Deus
do artista seria Tarantino, celebridade consagrada como
um grande produtor de cinema. Ainda nesse contexto,
o artista se compara a Django, um dos personagens
de Tarantino, cujo uma das características era caçar
criminosos. Rincon Sapiência transfere, por meio
desses versos, toda a culturalidade, o conhecimento,
o melhor da mídia e da sociedade à sua música, à sua
história à sua pessoa argumentando a favor de tudo que
é e persuadindo seu ouvinte à crença de que sua arte
é a melhor, independente do que a sociedade pense.
Nesse último verso analisado, o compositor utiliza-
se, além da metáfora, o duplo sentido. “Chave” pode
estar no sentido de “chavoso’’, é uma gíria usada para
“Os preto é chave”/ “Abram
denominar pessoas elegantes. Contudo, “chave’’ também
os portões”
pode estar em seu sentido literal. Há, portanto, uma
leitura de que eles seriam iguais chaves e vão abrir
os portões, tendo assim como resultado a libertação.

Resultados e discussões

As metáforas analisadas fizeram com que a música tivesse


uma intensidade de críticas e questões sociais que, por vezes, sem

166 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 157-172 – jan./jun. 2018
uma observação mais profunda, ficariam implícitas na música.
A abundância de significados fez com a que canção ficasse mais
valiosa e com muitas interpretações. A utilização da figura de
linguagem em pauta, considerando que abordam temas sobre
empoderamento negro, aceitação e raízes afro e indígenas,
não foram utilizadas apenas como forma de argumentar, mas
também de persuadir o ouvinte. Porém o abuso à utilização de
metáforas por toda a música vai além do enaltecer da letra e da
arte do compositor. O intuito, também, está no exaltar do gênero
musical em que a letra está inserida. O rap é um dos gêneros de
músicas populares mais condenados e perseguidos atualmente,
em contrapartida é um dos mais desenvolvidos. A pretensão
de compositores desse estilo musical ao status artístico resulta
em críticas abusivas, manifestações de censura, entre outras
desagradáveis expressões. Isso acontece, talvez, pelo fato de que
as raízes culturais do rap, bem como os primeiros adeptos desse
estilo musical, dizem respeito à classe baixa da sociedade negra
norte-americana. O orgulho negro e a temática da vivência do
gueto refletem uma possível ameaça para o status social aos não
aderentes a este tipo de arte. Entretanto, como qualquer forma
de arte, a música precisa ser compreendida como uma atividade
humana, inserida em um determinado contexto social, histórico,
político, cultural. A partir desta postura é possível considerar
a especificidade da música como um processo, uma forma de
sentir e pensar, capaz de criar emoções e inventar linguagens”
(MAHEIRIE, 2001).
Não é em vão que os compositores de rap se utilizam de
metáforas como estratégias de argumentação e persuasão. Eles
simplesmente querem honrar este tipo de arte e mostrar toda a
interculturalidade existente em seus dizeres.

167 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 157-172 – jan./jun. 2018
Considerações finais

A argumentação e a persuasão estão presentes em toda


forma de comunicar nas mais variadas formas de linguagens.
A atividade argumentativa do ato de comunicação identifica
enfoques variados que se distribuem por diversas áreas de estudo.
A argumentatividade, conforme Ducrot, está inscrita na própria
língua, e muitas estratégias são responsáveis pela trama persuasiva
de um texto. Comunicar e receber um texto é muito mais que
um movimento passivo. O papel do emissor não é simplesmente
transmitir o conteúdo como se a aceitabilidade dos interlocutores
fosse unânime. Muito além disso, ao produzir/construir um texto,
o emissor deve ter a consciência de que seu interlocutor deve crer
no que está lendo ou ouvindo. Mais que transmitir é fazer crer,
persuadir, argumentar.
Na análise realizada nesse estudo pudemos perceber esta
argumentatividade por meio da figura de linguagem denominada
metáfora. O compositor utilizou de intertextos, interculturalidade
e muito conhecimento de mundo para transferir bons significados
de diversos contextos para sua arte musical. A todo momento
deparamo-nos com aspectos e características positivos agregados
aos versos, às rimas, ao contexto geral abordado pelo compositor.
Por fim, a presença constante da metáfora em forma de argumento,
mostra grande domínio da linguagem por parte do artista
compositor e traz grandes elementos persuasivos capazes de trazer
os mais diversos públicos para o rap.

168 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 157-172 – jan./jun. 2018
Referências

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PONTARA, Marcela. Português: contexto, interlocução e sentido. 3
ed. – São Paulo: Moderna, 2016.

CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica: noções básicas e


exercícios. 1 ed. – São Paulo: Contexto, 2012.

COMOCARDI, Elêusis Mirian; FLORY, Suely Fadul Vilibor.


Estratégias de persuasão em textos jornalísticos, publicitários e
literários. São Paulo: Arte & Ciência, 2003.

FIORIN, José Luiz. Argumentação. 1 ed., 3° reimpressão. – São Paulo:


Contexto, 2017.

Silva, João Carlos. Gomes. Arte e educação: A experiência do movimento


hip hop paulistano. In E. N. Andrade (Ed.). Rap e educação: Rap é
educação. São Paulo, SP: Summus, 1999.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. 9 ed. São


Paulo: Cortez, 2004.

LOEWENSTEIN, Neide Maria. A importância da música no processo


de ensino aprendizagem de espanhol. Monografia de especialização –
Universidade Tecnológica Federal do Paraná Medianeira – Medianeira,
2012.

MAHEIRIE, Kátia. “Sete mares numa ilha”: a mediação do trabalho


acústico na construção da identidade coletiva. Tese de Doutorado,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.

VEREZA, Solange Coelho. Metáfora e argumentação: uma abordagem


cognitivo-discursiva. Revista Linguagem em (Dis)curso – LemD, v. 7,
n.3, set/dez, 2007.

169 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 157-172 – jan./jun. 2018
VIEIRA, Silva Maria. A construção do argumento no ensino médio:
uma investigação dos recursos argumentativos no gênero dissertativo-
argumentativo escolar. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de
Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação – Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Recife:
UFPE, 2013.

170 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 157-172 – jan./jun. 2018
ANEXO I

171 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 157-172 – jan./jun. 2018
SE DEUS NÃO TIVER FACEBOOK, MUITOS POSTS
FORAM EM VÃO!

Lisiane Freitas de Freitas1


Adriano Alves Fiore2
Silvia Regina Tacla3

Resumo: Este trabalho teve como objetivo apresentar uma reflexão, por meio da
análise do discurso, acerca dos enunciados religiosos postados na rede social Facebook.
Investigou ainda aspectos gramaticais e de argumentação, especialmente no que tange ao
uso de seleção lexical, o emprego dos operadores argumentativos, da antonímia, recursos
gráficos, dentre outros elementos direcionados para darem sentido ao texto. A análise
dos elementos encontrados foi guiada à luz de autores da área dos estudos discursivos,
verificandoa trama argumentativa e o entrelaçamento em que se tem o tipo de texto,
o gênero, o contexto e a situação comunicativa, que juntos levam à intencionalidade
do discurso religioso.
Palavras-chave:Estudos discursivos; enunciados religiosos; aspectos gramaticais.

Abstract:This work aimed to present a reflection, through the analysis of the discourse,
about the religious statements posted on the Facebook social network. It also investigated
grammatical and argumentative aspects, especially regarding the use of lexical selection,
the use of argumentative operators, antonyms, graphic resources, among other elements
aimed at giving meaning to the text. The analysis of the elements found was guided by
authors of discursive studies area, verifying the argumentative plot and the interweaving
in which a statement has the type of text, the gender, the context and the communicative
situation, that together lead to the intentionality of the religious discourse.
Key-words:Discursivestudies; religiousstatements; grammaticalaspects.

1
Aluna regular do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da UEL –
PPGEL (nível doutorado). Professora concursada da Universidade Estadual de Londrina,
do Departamento de Administração.
2
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC)
de São Paulo.
3
Aluna regular do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da UEL –
PPGEL (nível doutorado). Professora concursada da Universidade Estadual de Londrina,
do Departamento de Direito.

173 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
introdução

É inegável a influência que as redes sociais exercem sobre os


indivíduos. O que nasceu para ser apenas um veículo de interação
social se transformou, em tão pouco tempo, em espaço empresarial,
cultural, político, ideológico e, especialmente, religioso.
Orkut, Twitter, Facebook, WhatsApp, Snapchat, dentre outros
suportes da internet, estão sendo empregados para difundir a
“palavra”, não só no sentidolinguístico,mas sim, disseminando os
postulados divinos. Muitos enunciados vêm sendo criados com
cunho religioso, como forma, inclusive, de angariar mais fiéis que
orbitam no universo virtual. Se antes tínhamos o católico “não
praticante”, agora temos o religioso “navegante” das redes sociais,
uma espécie de evolução/revolução religiosa eletrônica.
No espaço virtual,podemos encontrar o paraíso e o
purgatório, tudo dependendo do lado seguido por nós. Se a escolha
for religiosa, há uma infinidade de opções para manter a fé em
dia, até mesmo acender velas online já é possível, algo que, talvez,
nem os Jetsons4 previssem. Ao contrário, se o caminho optado for
o da irreligiosidade,o naufrágio em um mar de clamores sagrados
é inevitável.
Algo bem curioso se mostra, especialmente, no Facebook,com
o diálogo com Deus. Nele, o todo-poderoso encontra-se no meio
de amigos virtuais, ou seja, dá a impressão que Ele cria um perfil
na rede e “curte” tudo o que publicam,relacionando-se ao envolver
o seu santo nome. Inúmeros enunciados são criados e disputam
4
The Jetsons é uma série animada de televisão produzida por Hanna-Barbera, exibida
originalmente entre 1962 e 1963. Tendo como tema a “Era Espacial”, a série introduziu no
imaginário da maioria das pessoas o que seria o futuro da Humanidade: carros voadores,
cidades suspensas, trabalho automatizado, toda sorte de aparelhos eletrodomésticos e de
entretenimento, robôs como criados, e tudo que dá para se imaginar do futuro (Fonte:
Wikipedia, 2016).

174 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
espaço com as ofertas de emprego e com omarketing do círculo
publicitário.
Cabe salientar que, no âmbito da Linguística, o “enunciado
representa uma frase ou parte de um discurso (oral ou escrito) em
associação com o contexto em que é enunciado” (NEIVA, 2013,
p. 182). Já o discurso representa um conjunto de enunciados
significativos que expressam formalmente a maneira de pensar e
de agir e/ou circunstâncias identificadas com certo assunto, meio
ou grupo.
Um determinado enunciado ao ser estudado pela Análise
do Discurso (AD), como um dispositivo de leitura, passa pelo
olhar da materialidade. O discurso é um observatório entre língua,
sujeito, história, ideologia e política, o que significa dizer que o
sentido do texto nunca está pronto nele próprio.
O texto segue significando na história e na sociedade, desse
modo, produz efeitos de sentido, uma vez que o sentido é sempre
o efeito e o discurso é o processo em movimento.
Trabalhando com Análise do Discurso, e sabendo que o
texto insere significados na História, não temos tanta certeza se
os enunciados, desabafos e clamores postados nas redes sociais se
perpetuam, devido à volatilidade destes meios. É fato, entretanto,
que efeitos de sentido são percebidos.
Com base nesta premissa, este trabalho teve como objetivo
apresentar uma reflexão, por meio dos estudos discursivos, acerca
dos enunciados religiosos postados na rede social Facebook. Foram
analisados quatro perfis (páginas pessoais), cujas pessoas foram
identificadas por “Pesquisada A”; “Pesquisada B”; “Pesquisada
C”; “Pesquisada D”.
Analisamosainda aspectos gramaticais e de argumentação,
especialmente, no que tange ao uso de seleção lexical, o emprego

175 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
dos operadores argumentativos, da antonímiae de recursos
gráficos, dentre outros elementos que tornam o texto mais, ou
menos, argumentativo.

Aspectos metodológicos

Como problema de pesquisa elencamos o seguinte


questionamento: quais os recursos linguísticos que são empregados
nos enunciados religiosos publicados na rede social Facebook? Para
responder à problematização utilizamos a abordagem qualitativa,
por meio da análise documental primária, subentendida em posts
da rede social delimitada. A página de onde foram retiradas as
publicações pertence a do perfil pessoal de um dos autores que,
aliás, não segue nenhuma religião.Entretanto, possui inúmeras
pessoas, entre os seus amigos virtuais, que postam, diariamente,
textos de cunho religioso.
A pesquisa foi motivada a partir da realização dos estudos
avançados do Programa de Doutorado em Estudos da Linguagem
da UELpor meio da disciplina: Análise do Discurso Religioso
Midiático:desvelando sentidos na/davoz que clama – ministrada
pela Professora Doutora Letícia Jovelina Storto. O período de
coleta dos enunciados pautados para este estudo situa-se entre
dezembro de 2015 e fevereiro de 2016. A análise dos elementos
encontrados foi guiada fundamentalmente à luz de autores como
Pêcheux (2014),Maingueneau (2014),Orlandi (2013) e Bakhtin
(2006; 2011).Antes da apresentação dos elementos coletados, fez-
se necessária uma breve explanação acerca de discurso, ideologia
e religião, para que seja possível a compreensão dos enunciados e
os efeitos de sentido produzidos a partir deles.

176 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
Discurso, ideologia, religião e os seus respectivos reflexos na
consciência humana

Aconsciência adquire forma e existência nos signos criados


por um grupo organizado no curso das relações sociais. Desse
conjunto sígnico resulta a maneira de raciocinar concernente
a um indivíduo ou a uma associação de pessoas. A partir daí
são concebidas regras (e por que não dogmas?), normas de
conduta individuais e/ou coletivas e leis; em concordância com
tal asseveração podemos ainda complementá-la assim: “Existe
mais fé na dúvida sincera que em todas as doutrinas” (Butlerapud
Huxley em Os Demônios de Loudun, 1982, p. 37). As religiões são
suscetíveis à constante mutação, acompanhando e refletindo as
transformações sociais e ideológicas.

Originating from virtually every corner of the earth, the world


religions are as diverse as the existing cultures. And this makes
it difficult to define religion, especially with regard to questions
or intangible concepts: God, the purpose of life; the idea of ​​the
Hereafter, etc. [...] In addition to religion being almost universal,
it has a huge impact on mankind. [...] because it deals with the
great doubts and / or problems of life - Good and Evil, for example
- that are very important to people(WILKINSON, 2008, p. 14).5

De acordo com o pensador e jornalista norte-americano


Henry Louis Mencken (1880-1956), a doutrina religiosa
monoteísta judaico-cristã – supedâneo das religiões do Mundo
5
Originárias de praticamente todos os rincões da Terra, as religiões mundiais são tão
diversas quanto as culturas existentes. E isto torna difícil definir religião, sobretudo, no
tocante às questões ou aos conceitos intangíveis: Deus, o propósito da vida; a ideia do
Além etc. [...] Além de a religião ser quase universal, ela provoca um enorme impacto na
humanidade. [...] porque ela lida com as grandes dúvidas e/ou problemas da vida – Bem
e Mal, por exemplo – que são muito importantes para as pessoas (WILKINSON, 2008,
p. 14, tradução nossa).

177 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
Ocidental – suplanta as suas concorrentes, desde a Antiguidade,
porque se apresenta mais inteligível e agradável utilizando-se da
poética.

[...] Assim, a tendência é a de haver muito mais vítimas naturais


da poesia que da religião [...] Ela domina dentro da fé milhares e
milhares de pessoas que são contra esta fé, e só o conseguem pela
fraqueza desses milhares e milhares pela poesia, i. e., pelo belo, e não
pelo verdadeiro. Postos em palavras duras e ásperas, a maioria dos
ensinamentos a que eles são convidados a acreditar iria revoltá-los,
mas, postos em sonoros ditirambos, os mesmos ensinamentos os
fascinam e os engolfam (MENCKEN, 1989, p. 65).

O motivo da fé é fundamental para a aceitação e o


sentimento religioso, por isso, transforma-se em um “fenômeno
humano, ao mesmo tempo psicológico, histórico e social”
(COMTE-SPONVILLE, 2007, p. 23).

O que liga os crentes entre si, do ponto de vista de um observador


externo, não é Deus, cuja existência é duvidosa, é o fato de que eles
comungam a mesma fé. É esse, aliás, segundo Durkheim, e a maioria
dos sociólogos,o verdadeiro conteúdo da religião, ou sua principal
função: ela favorece a coesão social, fortalecendo a comunhão das
consciências e a adesão às regras do grupo (COMTE-SPONVILLE,
2007, p. 23).

Há ainda aqueles homens e mulheres – de incontestável


saber – que acreditam que a religião assim como a política
não passam de eficientes meios de manipulação das chamadas
massas populacionais. É o caso de outro jornalista/repórter de
guerra estadunidense, AmbroseBierce (1842-1914). Esbanjando
agudo senso crítico e alta cultura mitológica, ele assinala em seu
livro-dicionário que religião nada mais é que “a filha do Temor

178 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
e da Esperança, explicando para a Ignorância a natureza do
Desconhecido”6(BIERCE, 1999, p. 200).
Os sistemas ideológicos constituídos da “moral social, da
ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia
do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma
forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia”
(BAKHTIN, 2006, p. 119).
Entende-se por ideologia“a relação imaginária dos
indivíduos com sua existência, que se concretiza materialmente
em aparelhos e práticas” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,
2014, p. 267).O filósofo norte-americano John R. Searle
complementa com seu conceito acerca de grupo social que para
o autor “é mais do que apenas um bando de pessoas, no qual as
crenças e as intenções de cada um são relevantes para determinar
o todo”. E, a propósito, diz-nos o filósofo polonês Ernst Cassirer
(2001, p. 24)“[...] o todo existe nas suas partes, mas uma parte só
é compreensível no todo”.
O filósofo argelino-francês Louis Althusser (1985) é
de opinião que ideologia não apresenta uma história definida.
Observamos o seu estudo, no qual diversas teorias de ideologias
particulares (religiosas, morais, jurídicas, políticas etc.) expressam
posições ou condiçõesde classe.
Charaudeau e Maingueneau (2014, p. 268) ressaltam que
Marx entendiaideologia como “o conjunto de ideias presentes
nos âmbitos teórico, cultural e institucional das sociedades, que se
caracteriza por ignorar a sua origem materialista nas necessidades
e interesses inerentes às relações econômicas de produção” e,
portanto, termina por beneficiar as classes dominantes. Pêcheux

6
Temor, Esperança, Ignorância e Desconhecido são citados como divindades e/ou
situações alegóricas.

179 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
(2014) salienta que a ideologia aparece ligada ao inconsciente pelo
viés da interpretação dos indivíduos em sujeito7. A linguagem está
materializada na ideologia.

As idéias desaparecem enquanto tais (enquanto dotadas de uma


existência ideal, espiritual) [...] O sujeito atua enquanto agente do
seguinte sistema: a ideologia existente em um aparelho ideológico
material, que prescreve práticas materiais reguladas por um ritual8
material, práticas estas que existem nos atos materiais de um sujeito,
que age conscientemente segundo sua crença (ALTHUSSER,
1985, p. 92).

Althusser (1985) crê ainda que as noções de ideologia,


indivíduo, consciência, crença, atos etc., dependem totalmente da
concepção de sujeito, obedecendo a sequência dos dois enunciados,
a seguir: 1 – “só há prática através de e sob uma ideologia” e 2 – “só
há ideologia pelo sujeito e para o sujeito”. E, por meio do processo
de interpelação, a ideologia “age ou funciona de tal forma que ela
recruta sujeitos dentre os indivíduos, ou ‘transforma’ os indivíduos
em sujeitos” (ALTHUSSER,1985, p.96)
A mesma atividade interpelante de transformação – entre
os “indivíduos” que são feitos “sujeitos” – realiza-se nas ideologias
religiosas, no caso desta pesquisa, na cristã.

A interpelação dos indivíduos como sujeitos supõe a “existência” de


um Outro Sujeito, Único, e central, em Nome do qual a ideologia
religiosa interpela todos os indivíduos como sujeitos. [...] Deus se
define a si mesmo, portanto como o Sujeito por excelência [...] E

7
Para Pêcheux (2014), o sujeito não se pertence, ele se constitui, trata-se do fenômeno
da interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso, a identificação, se constitui pelo
esquecimento que o constitui. Este sujeito é condicionado por determinada ideologia que
predetermina o que poderá ou não dizer em determinadas conjunturas histórico-sociais.
8
Rituais são atos (mesmo perversos) praticados por seres ou sujeitos humanos, inscritos
em práticas próprias de um determinado aparelho ideológico.

180 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
Moisés, interpelado – chamado por seu Nome, tendo reconhecido
que “tratava-se certamente Dele” se reconhece como sujeito,
sujeito de Deus, sujeito submetido a Deus, sujeito pelo Sujeito e
submetido ao Sujeito. A prova: ele o obedece e faz com que seu
povo obedeça às ordens de Deus. [...] Deus é, portanto, Sujeito, e
Moisés eos inúmeros sujeitos do povo de Deus, seus interlocutores-
interpelados: seu espelho, seus reflexos [...] E Deus precisa dos
homens, o Sujeito dos sujeitos, mesmo na temível inversão de sua
imagem neles, quando estes se deixam levar pelos excessos, quer
dizer, pelo pecado (ALTHUSSER, 1985, p. 101, grifo do autor).

A ideia volatizante do signo, de que ele é essencialmente


vivo e móvel indica a inoperância de que qualquer tentativa de se
construir uma realidade final – inquebrantável e inquestionável
– nas relações de valor entre um locutor e um ouvinte; o mesmo
se pode aplicar entre um autor e um leitor. Mas será que isso se
reflete também no imaginário, ou seja, entre o internauta e Deus?

A consciência individual é um fato socioideológico. [...] A


consciência adquire forma e existência nos signos criados por um
grupo organizado no curso de relações sociais [...]A imagem, a
palavra, o gesto significante, constituem seu único abrigo. Fora
desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido
pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem
(BAKHTIN, 2002, p. 35-36).

Seria Deus um interlocutor? Um sujeito ativo que lê,


ouve, recebe e responde mensagens via computador ou celular?
Infelizmente, ainda não temos como saber, pelo menos até o
momento, mas o que é palpável é o efeito ideológico que os posts
religiosos perpetuam.

Como todas as evidências, incluídas as que fazem que uma palavra


‘designe uma coisa’, ou ‘tenha uma significação’ (logo, incluídas as

181 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
evidências da ‘transparência’ da linguagem), essa evidência de que
você e eu somos sujeitos – e que isso não é um problema – é um
efeito ideológico, o efeito ideológico elementar. (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, p. 241, 2014).

Compreendemos a palavra ‘diálogo’ num sentido amplo,


isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas
colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer
tipo. Nesse sentido, podemos inferir que os internautas, que
postam frases de clamor via redes sociais especialmente por meio
do Facebook, acreditam (têm fé)estar dialogando diretamente
com Deus.

O discurso ‘se constitui’ e não pode ser considerado ‘fechado ou


pronto’. A formação do discurso tem como objetivo fim a busca do
que nos forma como seres sociais, dentro de um contexto histórico
e assistidos pelos aparatos ideológicos oferecidos pelas instituições
que nos regem (PÊCHEUX, 2014, p. 34).

O discurso, portanto, é “palavra em movimento, prática de


linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando”
(ORLANDI, 2013, p. 15). Deste modo, a formação discursiva não
se dá em um espaço estável, fechado, homogêneo, mas sim, que
esta formação sofre coerção das formações ideológicas em que
está inserida. Portanto, cada formação ideológica constitui um
conjunto complexo de atitudes e de representações que não são
nem individuais,nem universais, mas se relacionam.
Só podemos ver coisas das quais já possuímos imagens
identificáveis e somente podemos ler em uma língua cuja
sintaxe, gramática e vocabulário já conhecemos. Assim mesmo,
muitas pessoas encontram-se, permanentemente, em estado de
alienação ou na condição de um verdadeiro autômato, agindo

182 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 72 – p. 173-200– jan./jun. 2018
como máquina, sem raciocínio e sem vontade própria.
A Análise do Discurso não está centrada em “o que o
texto quer dizer”, mas sim em “como ele significa”. Isto posto fica
claro que estes enunciados só fazem sentido se correlacionados
com o contexto atual e com a história daqueles indivíduos com
a religião. “Nos estudos discursivos, não se separam forma e
conteúdo e procura-se compreender a língua não só como uma
estrutura, mas, sobretudo, como acontecimento” (ORLANDI,
2013, p. 19).Os motivos da forma, do conteúdo, da ética e da
estética coexistem e interagem entre si, estando sempre a produzir
significados (significações) e efeitos de sentido diversos. Sobre
este assunto Bakhtin dedica boa parte de sua obra Questões de
Literatura e Estética.

Tudo o que é conhecido deve ser posto em correlação com o


mundo, onde se realiza a ação humana, deve estar intimamente
ligado à consciência agente... [...] A forma e o conteúdo estão
unidos no discurso, entendido como fenômeno social – social em
todas as esferas da sua existência e em todos os seus momentos –
desde a imagem sonora até os estratos semânticos mais abstratos”.
(BAKHTIN, 2010, p. 37, 39 e 71).

Os posts religiosos, em maioria, reproduzem algo que já é


postulado pelas leis sagradas, preconizadas nos livros sagrados
(bíblias e testamentos), ainda assim, produzem efeitos de sentido
condizentes com o contexto e momento da vida pelo qual os
internautas estão passando.

O discurso religioso não apresenta nenhuma autonomia,


isto é, o representante da voz de Deus não pode modificá-lo
de forma alguma [...] Há regras estritas no procedimento com
que o representante se apropria da voz de Deus: a relação do

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representante com a voz de Deus é regulada pelo texto sagrado,
pela igreja e pelas cerimônias. (ORLANDI, 1996, p.245)

Muitas religiões presentam narrativas, símbolos, tradições e


histórias sagradas que se destinam a dar sentido à vida ou a explicar
a sua origem e a do universo. Seguem a tendência de, por meio de
suas “verdades” (quase sempre absolutas), dirigir o comportamento
humano por meio da moralidade e da ética.
O discurso religioso, seja em qualquer suporte, carrega uma
carga semântica de autoridade, de certo modo incontestável, pois
representa o pensamento e a palavra de Deus. E é exatamente por
isso que, em sua trama, encontramos diversos recursos discursivos.

A voz dos recursos discursivos e dos dogmas nos posts religiosos

Os indivíduos falam, exercem a linguagem e usam a


língua para produzir sentidos e, desse modo, articulam as regras
gramaticas. Em um texto escrito, e no caso em tela, em um post
de Facebook, que se caracteriza por pequenos fragmentos, de
leitura rápida e efêmera, a seleção lexical e todos os operadores
argumentativos ganham destaque.
Observar os aspectos gramaticais e sua expressividade
é,sobretudo, considerar o valor da palavra, bem como seu
engajamento no universo discursivo. A trama argumentativa se dá
pelo entrelaçamento entre o tipo de texto, o gênero, o contexto e a
situação comunicativa. Dependendo do tipo, o autor seleciona as
palavras, de acordo com a intencionalidade que se quer atribuir. A
intencionalidade é um dos fatores de textualidade, preconizados
por Beaugrande e Dressler, na década de 1980, na Alemanha, são
eles: Fatores semântico/formais (coerência e coesão); e Fatores

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pragmáticos (intencionalidade, aceitabilidade, situacionabilidade,
informatividade e intertextualidade).
Seleção lexical é o conjunto das palavras que o autor detém
e emprega para produzir o efeito de sentido desejado. Ela é uma

Opção feita pelo falante [autor] entre possíveis unidades oferecidas


pela língua, em face de um quadro típico de frase. Cada elo da cadeia
sintagmática oferece a possibilidade de escolha seletiva no1 nível
do eixo paradigmático; pode-se, assim, opor o eixo das seleções ao
eixo das combinações. (NEIVA, 2013, p.492)

A escolha lexical não é empregada por acaso, existe nela a


intenção comunicativa. Toda seleção vocabular realizada em um
texto, além, de informar sobre os objetos referenciados, revela
uma série de intenções do autor, além do que permite fornecer
informações importantes sobre todos os elementos participantes
do ato comunicativo.

No que tange aos operadores argumentativos, Koch (2004, p. 30)


designa-os como “certos elementos da gramática de uma língua
que têm por função indicar (mostrar) a força argumentativa dos
enunciados, a direção (sentido) para o qual apontam”. Para a
Gramática Normativa, os operadores restringem-se a elementos
conectivos, conjunções, cuja função centra-se em ligar frases. Já
para a Semântica Argumentativa, esses elementos carregam o valor
persuasivo do enunciado.

Ducrot, ao formular os princípios básicos da Semântica


Argumentativa, chamou de operadores argumentativos a um
grupo de elementos da gramática, cujo objetivo fundamental é
revelar a argumentatividade inerente a determinados enunciados
e direcioná-los a uma conclusão específica de acordo com as
condições de uso. (OLIVEIRA, 1999, p.100)

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Passemos, então, àanálise dos posts coletados no período
delimitado para esse estudo.

Análise dos posts elencados

Figura 1.Post daPesquisada A, clamando por Deus.

Figura 2. Padre Fábio de Melo rogando a Deus

Fonte: extraído da página do Facebook(da Pesquisada A)

O que mais chama a atenção nas figuras anteriores é a


posição de Deus como interlocutor, ou seja, a pessoa que elaborou

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o post, e, por conseguinte, quem o publicou estava clamando por
Deus, conversando com Deus, pedindo uma bênção ou um socorro,
como se Ele tivesse lendo o que estava sendo publicado. Vários
cartunistas em todo o mundo, entre eles: Scott Metzger, expressam
suas sátiras acerca destas publicaçõesconforme demonstra a figura
3, a seguir.

Figura 3 – Faithbook, sátira alusiva à quantidade de posts a Deus

Fonte: Disponível em: www.metzgercartoons.com. Acesso em 12 fev. 2016.

Na figura 3, o cartunista faz uma sátira aos milhares de posts


via Facebook endereçados a Deus, pedindo graças, agradecendo
bênçãos etc. Até o nome da rede social é um trocadilho,
empregando a palavra fé, em inglês Faith, em vez de Face, que
seria o original e correto modo de grafar.

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As figuras 4 e 5 reforçam a crítica à interatividade que
os fiéis acreditam ter entre eles e Deus, como se Ele realmente
tivesse internet e recebesse todas as súplicas e agradecimentos
viafacebook, twitter e outras redes sociais.

Figura 4. Sátira ao hábito de pedir “amém” para os posts


religiosos

Figura 5. No céu não tem internet

Fonte: publicações da página do Facebook da Pesquisada B


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O contexto também influenciaos efeitos de sentido que
estes enunciados passam.Datas como Natal eAno-Novo são
carregadas de postagens religiosas e destinadas a Deus, como
demonstram as figuras 6 e 7, a seguir.

Figura 6.Votos de Ano-Novo

Figura 7.Felicitações de Ano-Novo e agradecimento a Deus

Fonte: retirado da página do Facebook da Pesquisada C

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Considerando que todo texto escrito ou falado possui
uma intenção, que exprime um valor, seja ele social, político ou,
nesse caso, religioso, notamosque, em alguns posts, a mensagem
representa um dogma da Igreja – católica ou evangélica. O
matrimônio e a família tradicional (cultuados pelas religiões)
são enunciados recorrentes na Internet, especialmente, nas redes
sociais.

Figura 8 – A presença de Deus no casamento

Fonte: publicado na página doFacebook da Pesquisada A

Na figura 8, observamos o axioma no qual a presença de


Deus faz-se necessária para o sucesso da vida matrimonial. Outro
elemento, agora de ordem gramatical, é a presença do advérbio
de intensidade “mais”, repetido duas vezes, para dar ainda mais
ênfase ao enunciado. Além do texto escrito, há um padre ao
fundo e o casal “feliz”, constituído por um homem e uma mulher,
representando mais um postulado da Igreja Católica. Uma simples
ilustração carrega a marca da ideologia religiosa.

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É por esta razão que se pode afirmar que o ato de argumentar, isto
é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,
constitui o ato lingüístico fundamental, pois a todo e qualquer
discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do termo.
A neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende
“neutro”, ingênuo, contém também uma ideologia – a da sua
própria objetividade. (KOCH, 2009, p.17)

A família é um elemento muito valorizado pela religião.


Segundo as leis divinas – embora estas sejam anunciadas pelos
mortais (e falíveis) homens religiosos,um lar harmônico só se
realiza em meio à presença de Deus por razão de muita oração.
No Facebook,a temática família é recorrente.

Figura 9– Herança de pai para filho

Fonte: retirado da página doFacebookda Pesquisada C

Os “adjetivos” também se fazem bastantepresentes nos


posts religiosos, ampliando a expressividade do enunciado. Grosso
modo, os adjetivos qualificam os substantivosque podem ser
concretos ou abstratos.

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Figura 10 –Uso de adjetivos em post religioso

Fonte:Compartilhadopela página doFacebookda Pesquisada B

Na figura anterior, notamos o emprego do adjetivo


“bonita(o)” por meio daepístrofe, isto é, de repetição de palavras
no fim de cada expressão.Para que se produza o efeito de sentido
de que, se aceitando Deus, tudo será belo em sua vida, ou então,
de que tudo que vem de Deus é bonito.
Como já salientado, os discursos religiosos são impregnados
do imperativo. O verbo comumente indica uma ordem. Nasfiguras
11 e 12,há os verbos: dizer, compartilhar e digitar, nesta
forma, expressos nos fragmentos: “diga amém” “compartilhe” e
“digiteamém”.

Figura 11. Verbos dizer e compartilharno imperativo

Fonte: Publicação da Pesquisada D(via Facebook)

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Figura 12. Verbo digitar no imperativo

Fonte: Publicação da Pesquisada D(via Facebook)

Os operadores argumentativos também são poderosos


elementos capazes de produzir sentidos de cunho religioso. Não
raro, encontramos os vocábulos “só”, “apenas”, “somente”, quando
querem expressar, por exemplo, que “somente encontraremos
felicidade em Jesus!”.
Pelos preceitos religiosos: “só” quem crê em Deus, terá vida
eterna, “só” Deus pode salvar; “só” Deus pode interceder, ouvir
por meio das preces, o sofrimento do cristão,ou seja, o operador
argumentativo “só” dita o caminho do bem.

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Figura 13. O operador argumentativo “só”

Fonte: Publicação da Pesquisada D(via Facebook)

Figura 14. Os operadores argumentativos “porque”;“mas”

Fonte: Publicação da Pesquisada D(via Facebook)

Na figura 14 percebemos que o uso do “porque” sugere uma


afirmação notória, sendo Deus uma autoridade reconhecida, o
que confere mais credibilidade ao post. Já o emprego do más, em
sua função adversativa, retrata que aquele que crê em Deus não
estará livre de sofrimento, porém, terá a vida eterna.

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Figura 15.Os operadores argumentativos “só”; “mas”

Fonte: Publicação da Pesquisada D(via Facebook)

Figura 16.O operador argumentativo “só”

Fonte: Publicação da Pesquisada D(via Facebook)

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Figura 17 – Exemplo de anáfora com o substantivo Deus

Fonte: Compartilhado pela página doFacebookda Pesquisada B

Nasfiguras 15 e 17, além do uso dos operadores


argumentativos, há também o emprego da anáfora, que representa
a repetição de palavras no início de duas ou mais frases sucessivas,
para fixar o sentido que o enunciador pretende expressar, qual
seja, que Deus está acima de todas as coisas, é soberano e tem o
poder de dar a vida, a saúde, orientar e guiar os indivíduos.
Pelos exemplos que colecionamos aqui, fica evidente o
valor argumentativo que os recursos discursivos exercem sobre
os enunciados. Talvez os religiosos, que não têm formação em
Letras/Linguística, nem sequer percebem a carga semântica que
empregam em seus sermões e/ou pregações porque não dominam
os meandros dos elementos gramaticais. Contudo, é fato o poder
que exercem e a influência que promovem no âmbito das redes
sociais.

Considerações finais, mas não apocalípticas!



Os enunciados não se restringem à mera transmissão
de informação, pois no “funcionamento da linguagem, que
põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela

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história, temos um complexo processo de constituição desses
sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de
informação” (ORLANDI, 2013, p. 22).
“A história diz respeito a uma relação do sujeito (do
homem) com a linguagem, e há a marca da subjetividade daquele
que fala naquilo que fala. E mais do que isso: as línguas têm os
elementos que marcam essa presença” (BRÉAL, 2008, p, 14).
O discurso, por sua vez, representa o efeito de sentidos entre
locutores, ainda que estes sejam Jesus, Deus ou outra divindade.
A construção de sentidos calcada no Facebookse dá,
essencialmente, de forma impositiva ou autoritária, quando os
posts se referem aos dogmas religiosos, e de forma afetiva, quando
o enunciador clama por Deus, ou para pedir uma graça, ou para
agradecer por uma que já tenha alcançado.
Os recursos linguísticos mais recorrentes nos posts
analisados são o emprego do verbo no imperativo, o operador
argumentativo “só” e a anáfora.O sentido de um enunciado pode
variar de acordo com a formação ideológica do enunciador e
também do interlocutor, e no caso em tela, o efeito de sentido está
ligado ao fato destes sujeitos terem, ou não, formação religiosa e
estarem seguindo alguma religião no momento em que leem o post.
Com esse estudo, foi possível verificar que o Facebooktem se
configurado por um espaço público, gratuito e de grande alcance
para a disseminação da religiosidade. Representa uma tentativa
de “arrebanhar” maiscristãos e levar a Palavra àqueles ditos “não
praticantes”, os que acreditam em Deus, mas não frequentam
igrejas.
O desejo destes pesquisadores é que Deus tenha realmente
um perfil no Facebook, e que a conexão de internet do céu seja tão
rápida como a do Japão, porque do contrário, muitosposts foram
em vão!

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