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BOLETIM I 73

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jul./dez. 2018

Incluída no SNPG – nível A


(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
REITOR
Sérgio Carlos de Carvalho
VICE-REITOR
Décio Sabbatini Barbosa
DIRETORA DO CLCH
Viviane Bagio Furtoso
VICE-DIRETORA
Ana Heloisa Molina
REDAÇÃO
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira

CAPA
Bianca Matos Ferreira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E COMPOSIÇÃO


Maria de Lourdes Monteiro

CONSELHO EDITORIAL
Volnei Edson dos Santos
Paulo Bassani
Celso Vianna Bezerra de Menezes

PARECERISTAS
Dr. Francisco Moreno Fernandes - Univ. Alcalá de Henares - España
Dr. Aquiles Cortes Guimarães - UFRJ
Dr. Jesús Castilho - Univ. de Valladolid - España
Dr. José Oscar de Almeida Marques - UNICAMP
Dr. José Nicolau Julião - UFRRJ
Dra. Salma Ferraz - UFSC
Dr. Otávio Goes de Andrade - UEL

PUBLICAÇÕES
BOLETIM, CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – LONDRINA-PR. - BRASIL, 1980

1980, (1) 1993, (24,25) 2005 (48,49) 2018, (72, 73 )


1981, (2,3) 1994, (26,27) 2006, (50,51)
1982, (4,5) 1995, (28,29) 2007, (52,53)
1983, (6,7) 1996, (30,31) 2008, (54,55)
1985, (8,9) 1997, (32,33) 2009, (56,57)
1986, (10,11) 1998, (34,35) 2010, (58,59)
1987, (12,13) 1999, (36,37) 2011, (60,61)
1988, (14,15) 2000, (38,39) 2012, (62,63)
1989, (16,17) 2001, (40,41) 2013, (64,65)
1990, (18,19) 2002, (42,43) 2014, (66,67)
1991, (20,21) 2003, (44,45) 2016 (68,69)
1992, (22,23) 2004, (46,47) 2017 (70,71)
ISSN 0102-6968

I
BOLETIM 73

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jul./dez. 2018
Incluída no SNPG – nível A
(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina – nº 73 – p. 1-178 jul./dez. 2018
Indexado por / Indexed by
ISSN 0102-6968
Sociological Abstracts SA
Linguistics and Language Behavior Abstracts LLBA

Toda correspondência deverá ser enviada à

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA


Centro de Letras e Ciências Humanas
Campus Universitário – Cx. Postal, 6001
CEP: 86051-990 – Londrina-PR.

boletimhumanas@uel.br
Fone / Fax:(43) 3371-4408

Publicação semestral / Bi-annual publication


Solicita-se permuta / We ask for exchange

Biblioteca Central da UEL


Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada pela Biblioteca Central da UEL


Boletim / Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade Estadual de

Londrina. – V. 1 (1980)- . – Londrina : a Universidade, 1980- .
v.; 21 cm

Semestral

Descrição baseada em: v. 25 (jan./jun. 1994)

ISSN 0102-6968

1. Sociologia – Periódico. 2. História – Periódico. 3. Letras – Perió-


dico. 4. Filosofia – Periódico. 1. Universidade Estadual de Londrina.

CDD 301.05
CDU 301:4:I(05)
SUMÁRIO

ENSINO DE LEITURA: CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE


DO DISCURSO ........................................................................ 7
Ana Carolina Bernardino (PG-UEL)
Luana Cimatti Zago Silvério (PG-UEL)
Mayara Yukari Kato (PG-UEL)

O MÉTODO EM MARX: ELEMENTOS PARA O DIÁLOGO


COM OUTRAS TEORIAS SOCIAIS......................................... 21
Ariovaldo Santos (UEL)

PEQUENO PRODUTOR RURAL E OS DESAFIOS DA


LINHA SUCESSÓRIA................................................................ 45
Huama Maximo (PG-UEM)
Elizete Conceição Silva (UEM)

MELANCOLIA E MORTE EM A LA DERIVA E EL


ALMOHADÓN DE PLUMAS, DE HORACIO QUIROGA.... 71
Gustavo Figliolo (UEL)

UMA ANÁLISE LINGUÍSTICO-COGNITIVA DA METÁFORA


NO JORNALISMO DA GLOBO NEWS.................................. 97
Ismael Ribeiro da Silva (PG-UEL)
Patrícia Medeiros Galvão (PG-UEL)
Josué Marques Ferreira (PG-UEL)

USANDO ESTATÍSTICA NÃO PARAMÉTRICA NA


ANÁLISE DA CONDIÇÃO DE SINCERIDADE DE TEXTOS
OPINATIVOS............................................................................. 117
Wagner Ferreira Lima (UEL)
Guilherme Biz (UEL)

5
ANÁLISE DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS NA MODALIDADE DE
EDUCAÇÃO ESPECIAL: RECONHECIMENTO DE
GÊNEROS TEXTUAIS.............................................................. 157
Weslei Chaleghi de Melo (PPGEN-UTFPR)
Givan José Ferreira dos Santos (UTFPR)
Isabel Cristina Cordeiro (UEL)

NORMAS................................................................................... 177

6
ENSINO DE LEITURA: CONTRIBUIÇÕES DA
ANÁLISE DO DISCURSO1

Ana Carolina Bernardino (PG-UEL)2


Luana Cimatti Zago Silvério (PG-UEL)3
Mayara Yukari Kato (PG-UEL)4

RESUMO: Este trabalho está fundamentado na perspectiva teórica da Análise do


Discurso de linha francesa, com a problematização do ensino de leitura nas escolas, e tem
como objetivo analisar a forma pela qual leitura é tratada dentro dos livros didáticos.
São analisados dois capítulos de dois livros didáticos escritos em diferentes épocas,
sendo um capítulo de cada livro: um de 6º ano do ano de 2001 e o outro de 6º ano de
2015, escolhidos aleatoriamente. Refletindo, a partir disso, nos aspectos linguísticos e
extralinguísticos, buscamos, por meio das análises, estudar como a construção dos efeitos
de sentidos, relacionados às condições de produção e às formações ideológicas de cada
sujeito envolvido no processo de leitura, é considerada nas produções dos capítulos. Para
esse propósito, a principal teórica utilizada é Eni Orlandi (2003).
Palavras-chave: Leitura. Ensino. Análise do Discurso. Efeitos de Sentidos.

Introdução

A formação de leitores é uma questão discutida sob


diferentes aspectos e que, por isso, pode encampar diversas
perspectivas teóricas. No bojo dessa discussão, queremos trazer o
olhar da Análise do Discurso de orientação francesa (doravante
AD) para a reflexão sobre o processo de leitura, visto que, com

1
Este trabalho é fruto de reflexões advindas da disciplina Ensino de Leitura na Escola
do Programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Londrina, ministrada pela Profª Drª Sheila Oliveira Lima.
2
Aluna do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – UEL (Mestrado). E-mail:
a.carolina.bernardino@gmail.com
3
Aluna do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – UEL (Doutorado).
E-mail: luanazago@bol.com.br
4
Aluna do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – UEL (Doutorado).
E-mail: mayara.yk@gmail.com

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Orlandi (1987) concordamos, há certa contribuição à leitura que
somente a AD pode fornecer, dada sua própria natureza teórica.
Para tornar mais prática nossa reflexão, usaremos o
suporte do livro didático, material voltado para a formação
escolar do indivíduo, pois é um dos principais instrumentos,
hoje, na formação leitora. Lajolo & Zilberman (1999) ponderam
que, embora não muito sedutor, a influência do livro didático é
inevitável, pois é encontrado em todas as etapas da escolarização,
desde a cartilha, quando da alfabetização, até o manual, quando
do saber científico ou da profissionalização, na universidade.
Isso posto, tomando como base teórica a Análise do
Discurso, nosso trabalho tem como objetivo analisar a construção
discursiva presente em dois capítulos de dois livros didáticos de
Língua Portuguesa, mais especificamente um capítulo do livro
de 6º ano de 2001 e outro capítulo do livro de 6º ano de 2015.
Nessa análise, refletimos a respeito da maneira como os
efeitos de sentidos são construídos, bem como se os livros didáticos
levam em consideração os aspectos ideológicos e sócio-históricos
dos alunos, para a realização de suas propostas didáticas.
Para tanto, realizamos um levantamento bibliográfico
acerca do aporte teórico para a construção da teoria e das
discussões da análise. A partir de então, nossa pesquisa partiu
da teoria aos dados, olhando para o corpus escolhido, de modo a
analisar e refletir a respeito desses dados.
Desse modo, organizamos nosso trabalho da seguinte
maneira: primeiramente, discutimos o ensino de leitura, por uma
perspectiva geral. Logo após, elaboramos as elucidações teóricas
advindas da AD de linha francesa, que irão contribuir para uma
nova perspectiva de ensino de leitura nas escolas. Partimos, então,
para a análise do corpus, os dois capítulos dos livros didáticos, e

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refletimos sobre as diversas possibilidades de efeitos de sentidos
que são produzidos e que devem ser levados em consideração (pela
escola) para que seja construída uma leitura eficiente. Por fim,
realizamos algumas considerações e reflexões acerca do trabalho
empreendido.

O ensino de leitura na escola: perspectivas gerais

Antes de adentrarmos na perspectiva teórica da AD e suas


contribuições para o processo de leitura, convém retomarmos
um ou outro olhar teórico sobre este objeto, principalmente no
âmbito escolar.
É importante salientar que, embora não haja pertinência de
objetos no campo da leitura, como afirma Barthes (2004), visto
que um sem-número de objetos se dão a ler – textos, imagens,
fotografias, cidades, rostos, cenas, gestos etc. –, tomaremos o texto
como objeto. E quando falamos em texto, há que se considerar
que esta própria noção tem suas nuanças, conforme a perspectiva
teórica que lhe define.
No campo da Linguística Textual, por exemplo, o texto é
uma rede de determinações. Nas palavras de Indursky (2010, p.
164),

é manifestadamente uma totalidade onde cada elemento mantém


com os outros relações de interdependência. Estes elementos e
grupos de elementos seguem-se em ordem coerente e consistente,
cada segmento textual contribuindo para a inteligibilidade daquele
que segue. Este último, por sua vez, depois de decodificado, vem
esclarecer retrospectivamente o precedente.

Tal definição de texto aponta para uma concepção de língua


estritamente linguística, sistêmica, pressupostamente homogênea

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e transparente. A legibilidade do texto, aqui entendido como
fechado, completo, é diretamente dependente de suas relações
internas, do que é linguístico, do que remete ao próprio texto.
Nesta perspectiva, a leitura não poderia se processar de modo
diferente. Ela deve, portanto, calcar-se nas relações linguísticas
estabelecidas entre os elementos do texto, que são primordialmente
de ordem formal.
Assim sendo, neste campo teórico, a leitura figura num
processo linear que se realiza sobre a superfície linguística de
um texto completo, acabado, com início, meio e fim. Em última
análise, o que está sob processamento do leitor é a tessitura/
textualidade do texto. A leitura assim concebida não abre espaço
para que o leitor negocie sentidos, pois, como afirma Indursky
(2010), estes já estão postos no texto, e compete ao leitor encontrá-
los. O enquadramento teórico desse processo de leitura é mais
voltado para a decodificação. Essa concepção de leitura, ou esse
processamento de leitura, é bem presente na escola.
Se, de um lado, temos na escola uma atividade mais
decodificadora da leitura, centrada no texto, de outro, podemos
ter um processo mais cognitivista, isto é, aquele que tem por foco
o leitor e suas habilidades de compreensão, e não o texto. Neste
quadro teórico, o leitor age sobre as informações do texto fazendo
uso de algumas estratégias cognitivas.
Segundo Goodman (1991, p. 35), essas estratégias
“assumem uma significação particular na construção de sentido
nos eventos de leitura”. O autor indica estratégias tais como
iniciação, amostragem e seleção, inferência, predição, confirmação
e desconfirmação, correção, finalização.
Solé (1998), na mesma direção, defende que as estratégias
são procedimentos que precisam ser ensinados para que haja

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efetiva compreensão do texto. Esses procedimentos, responsáveis
pela construção da interpretação, sendo esta realizada de forma
autônoma, envolvem a presença de objetivos, planejamento e
avaliação.
Uma vez que o leitor planeja sua leitura, estabelece
objetivos, antecipa ou prediz conteúdos do texto, checa hipóteses,
compara informações, tira conclusões, produz inferências, grande
número de habilidades mentais do leitor estão envolvidas. É, de
fato, uma participação mais ativa se comparada a uma atividade
mais decodificadora. Contudo, o texto ainda é o único caminho
que o leitor persegue.
Por outro lado, segundo Paulo Freire (2001), o ato de
ler, erroneamente, está ligado à quantidade de leitura, e não à
qualidade, ao adentramento nos textos, o que pode prejudicar a
alfabetização, e, consequentemente, sobretudo do ponto de vista
discursivo, a leitura como um todo, pois, muitas vezes, o sistema
de ensino foca apenas no conteúdo apresentado pelo livro didático,
não dando abertura para novas experiências.
Compreendemos, de modo geral, que a tendência do ensino
está mais voltada ao aspecto da quantidade, ou seja, quanto foi
lido pelo aluno no período letivo, independentemente do que
foi compreendido por ele. No entanto, essa realidade precisa ser
alterada, haja vista a necessidade de formação de leitores críticos
e independentes e não, somente, de leitores decodificadores.

Ensino de leitura: contribuições da Análise do Discurso

A Análise do Discurso de orientação francesa se constituiu


na década de 1960, em um período bastante conturbado da
França, em meio a diversas manifestações políticas. Caracteriza-

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se, portanto, por ser uma disciplina “cisionista”, isto é, crítica,
reflexiva e problematizadora, visando mais ao levantamento de
questões do que propriamente suas respostas, e operando com os
processos de significação e suas condições de produção. Dessa
forma, as determinações sócio-históricas, políticas e ideológicas
são de suma importância para a AD.
Assim, retomando as considerações de Freire (2001, p. 23)
acerca do ato de ler, “Do ponto de vista crítico, é tão impossível
negar a natureza política do processo educativo quanto negar
o caráter educativo do ato político”. Concordamos, conforme
a crítica do autor, que uma educação neutra é impossível, uma
vez que educação e política são inseparáveis, isto é, a primeira
está inevitavelmente ligada ao poder. A essa afirmação, pode-
se vincular o pensamento de Orlandi (2003), a qual relaciona,
indiretamente, a leitura à ideologia, quando discorre sobre o
discurso pedagógico, representado pela instituição escola.
Para a autora, atualmente, o discurso pedagógico
se configura como do tipo autoritário, em relação ao seu
funcionamento, aparecendo como um discurso do poder, no qual
o referente é ocultado. Ao citar Barthes, Orlandi (2003, p. 17)
diz que esse discurso do poder “cria a noção de erro e, portanto,
o sentimento de culpa, falando, nesse discurso, uma voz segura
e autossuficiente. A estratégia, a posição final, aparece como o
esmagamento do outro”. Desse modo, em relação à leitura, pensa-
se, nesse contexto, no professor não apenas enquanto mediador,
mas como a autoridade em sala de aula detentora da interpretação
correta, única e plausível do texto, como se houvesse apenas uma
correta, dentre várias interpretações possíveis.
Pensamos, a partir disso, no saber legítimo, que pende para
a homogeneização do ensino, e, consequentemente, da leitura em

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sala de aula. Isso porque a escola, enquanto instituição, é vista
como o espaço social que detém o conhecimento valorizado, o
que nos leva a questionar: nesse caso, o aluno possui uma voz
dentro dessa perspectiva de ensino da leitura? Ele pode “dizer
com suas próprias palavras”? Vale ressaltar, então, as concepções
postas por Orlandi (2003) quanto ao leitor real (interlocutor) e
ao leitor virtual (constituído no texto), sendo que eles podem ou
não coincidir, quando se pensa na significação do texto, que se
encontra no espaço discursivo dos interlocutores, isto é, o autor
escreve para um leitor virtual, o qual pode ou não ser o mesmo
que o leitor real.
Essa relação entre locutor e interlocutor, entre autor e
leitor, ocorre por meio da interação, implicando-se, assim, a
relação ideológica que se constitui por meio do texto. A interação
é, portanto, a base do processo de leitura – lembrando que,
para Orlandi (2003, p. 195), a leitura é produzida, pois, mais do
que o ato de ler enquanto objeto de estudo, a autora concebe
a leitura como um processo, uma vez que o texto tem caráter
inacabado: ele é incompleto “porque o discurso instala o espaço
da intersubjetividade, em que ele, texto, é tomado não enquanto
fechado em si mesmo (produto finito), mas enquanto constituído
pela relação de interação que, por sua vez, ele mesmo instala”. Ou
seja, o texto não se resume ao seu aspecto organizacional, com
início, desenvolvimento e fim, mas envolve também as condições
de produção de leitura do texto, as quais, por sua vez, também
o constituem. Por conta disso, a autora esclarece que há vários
modos de leitura, o que a torna seletiva.
Em relação ao discurso pedagógico mencionado, este, de
modo geral, não considera as condições de produção de leitura do
aluno, por se inserir no tipo de discurso autoritário, fazendo que o

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leitor real e o leitor virtual coincidam sem que elas mudem. Desse
modo, ou o aluno possui condições favoráveis à compreensão do
que lê ou apenas reproduz e decora o que foi lido, sem exercitar
sua capacidade crítica acerca da leitura, o que vai contra todo o
processo e sentido do que é o ato de aprender a ler.

Análise do corpus

O primeiro livro analisado foi Diálogo 65, de 2001. O
capítulo escolhido para análise foi o módulo 2, intitulado “Amar,
Amor”. Observamos, de modo geral, nesse capítulo, que o processo
de leitura é mais focado nos aspectos textuais.
Compreendemos que a atuação do aluno – como leitor – é
feita de forma passiva, ou seja, ela não contribui criticamente para
a construção dos sentidos, sua relação com o texto é feita de forma
estrutural, ele apenas decodifica o código.
Nota-se uma clara abordagem estruturalista, pois não
se considera os elementos extralinguísticos, mas apenas o que
é textual. Além disso, levando-se em consideração o ano de
publicação e a funcionalidade do livro didático – atender o ensino
público, os textos do módulo 2 apresentam-se em uma realidade
temática – muitas vezes – distantes do seu público-alvo, o que
acaba por não atender determinadas necessidades, tais como a
de aproximação.
No final de cada texto, encontramos um pequeno quadro
com sugestões de leituras, para que seja ampliado o conhecimento
de mundo dos alunos. No entanto, é preciso que se verifique até
que ponto essas leituras são/estão acessíveis aos alunos, dentro
da escola.

5
BELTRÃO, Eliana. VELLOSO, Maria Lúcia. GORDILHO, Tereza. Diálogo: língua
portuguesa. São Paulo: FTD, 2001. – (Coleção diálogo)

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Após a leitura dos textos principais do capítulo, tem-se
o momento reservado para “entender o texto”. O ideal, pela
perspectiva discursiva, seria um momento de discussão com os
alunos, para compreender os efeitos de sentidos que esses textos
produzem. Mas, na realidade, encontra-se, apenas e tão somente,
um espaço para colocar em prática uma interpretação – feita
exclusivamente, no nível textual. Em nenhum momento aborda-se
o que é extratextual. Não é feito um processo de reflexão.
Quanto ao aspecto gramatical, há, novamente, o texto
utilizado como pretexto. Falta, assim como anteriormente, um
espaço para uma leitura profunda e a reflexão. O livro didático
conduz o aluno a um processo altamente mecanizado. Sua
preocupação é apenas de ordem estrutural, o que faz do aluno
um leitor reprodutor, não proporcionando um espaço para uma
leitura subjacente, mas apenas uma análise comparativa entre os
próprios textos dados pelo livro, de modo a não exigir dele uma
competência de análise reflexiva.
O único momento em que o livro didático abre espaço
para uma possível autonomia é o de produção textual. Todavia,
essa autonomia é limitada, pois o livro descreve passo a passo o
que o aluno deverá fazer.
No livro didático Para viver juntos6, de 2015, correspondente
ao PNLD de 2017 a 2019, debruçamo-nos sobre o capítulo 1,
cujo título é “Narrativa de aventura”. As atividades propostas em
relação aos dois textos principais, que são narrativas de aventura,
são perguntas que misturam processos decodificadores com
processos críticos de leitura. De modo geral, porém, prevalecem
perguntas que priorizam a capacidade decodificadora do aluno.

6
COSTA, Cibele Lopresti; MARCHETTI, Greta; SOARES, Jairo J. Batista. Para viver
juntos: português, 6ª ano. 4ª ed. São Paulo: Edições SM, 2015.

15 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 7-20 – jan./jul. 2019
Inseridas na seção “Para entender o texto”, encontramos,
relacionadas à leitura decodificadora, questões do tipo “Quantos
anos Robinson Crusoé já havia vivido naquela ilha?”, “Durante
quanto tempo permaneceu sozinho na ilha?”, “Quem são as
personagens?”, “O início do texto descreve uma tempestade.
Identifique os elementos que a caracterizam”, “A que outros
elementos naturais o texto se refere?”, “Como é caracterizado o
espaço inicial?”. Relacionadas à leitura crítica e/ou por inferência,
podemos citar questões como “Que fatos da narrativa esse
parágrafo permite antecipar?”, “Ao ler esse trecho, o que o leitor
imagina que vai acontecer?”.
Notamos que ambos os textos são trechos extraídos de obras
literárias. Embora isso seja comunicado no topo da página, não
deixa de ser um empobrecimento para o aluno, que não sabemos
se terá acesso pela escola o acesso à obra completa.
Há trinta e nove questões a serem respondidas pelo
aluno referentes ao primeiro texto e vinte e três relacionadas
ao segundo, sendo que algumas questões deste segundo texto
estabelecem comparações com o primeiro. Em meio a tantas
perguntas, encontramos apenas quatro cujas respostas teriam por
base a opinião do aluno. Dessas quatro, duas propõem discussão
com os colegas. Além de todas essas perguntas, há as propostas
de produção textual e outras tantas perguntas relativas à língua,
feitas com base em outros textos, diferentes daqueles de narrativa
de aventura.
A partir das análises dos dois capítulos dos livros didáticos
selecionados, percebemos que não houve grande evolução nesses
quatorze anos que os separam, em relação ao enfoque discursivo
dos materiais utilizados pelos professores em sala de aula.
Concordamos, assim, com Orlandi (2003, p. 22, grifos da autora):

16 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 7-20 – jan./jul. 2019
Enquanto objeto, o material didático anula sua condição de
mediador. O que interessa, então, não é saber utilizar o material
didático para algo. Como objeto, ele se dá em si mesmo, e o que
interessa é saber o material didático (como preencher espaços, fazer
cruzinhas, ordenar sequências, etc.). A reflexão é substituída pelo
automatismo, porque, na realidade, saber o material didático é
saber manipular.

Desse modo, o material didático deixa de ser instrumento


para se tornar o objeto central do ensino decodificador, sem visar
a prática reflexiva dos alunos. Por outro lado, para se obter uma
postura crítica da leitura e também por meio dela, é necessário
considerá-la em suas três dimensões: linguística, pedagógica
e social (ORLANDI, 1993), caso contrário, ao adotar apenas
uma dessas perspectivas, corre-se o risco de cair no automatismo
mencionado pela autora. Ocorre, assim, que os livros didáticos,
de forma geral, não abordam o aspecto social da leitura, isto é,
utilizam-se de artefatos para fins escolares imediatistas, levando
em conta os aspectos técnicos em detrimento dos sócio-históricos.
É evidente que, por meio das análises, sobretudo no capítulo
“Amar, Amor”, de 2001, o saber legítimo é adotado pelo livro
didático, apagando as diferenças culturais, econômicas, sociais etc.
que existem em uma sociedade – e por isso é tão necessário que
sejam consideradas as condições de produção de leitura. Além
disso, pela perspectiva da AD, considerar que há um sentido
preestabelecido para o texto e que o aluno deve apreendê-lo é
reduzir a leitura ao âmbito linguístico, à decodificação, como o
faz o livro didático em questão.
Em relação ao capítulo “Narrativa de aventura”, de 2015,
por sua vez, este também apresenta apenas trechos de obras
literárias, e aborda questões do ponto de vista textual. No entanto,

17 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 7-20 – jan./jul. 2019
esse material didático explora, ainda de forma bastante tímida,
outras formas de linguagem – as quais, segundo Orlandi (1993),
se articulam com a leitura, auxiliando na compreensão do texto –,
como menções a filmes e propostas de atividades que envolvem
figuras, imagens e quadros, porém deve-se frisar que tais atividades
não têm tanto destaque no capítulo.
Outro ponto a ser considerado é o fato de tópicos que
poderiam ser um gancho para a abordagem discursiva receberem
pouca atenção, como a intertextualidade, por exemplo, explorada
sucintamente. Notamos, também, uma diferença entre os capítulos
dos livros analisados, que diz respeito à oralidade, pois, no segundo
livro didático, esse tópico é apresentado ao final do capítulo, com
propostas de atividades orais em sala de aula, tópico ausente no
primeiro livro.
Por fim, uma sugestão para a escola em relação à leitura,
sob a perspectiva discursiva, seria abordá-la como discurso em si,
isto é, trabalhar o funcionamento da leitura enquanto processo,
como sugere Orlandi (2003). Nesse caso, o professor seria um
mediador que se inseriria nas condições de produção/recepção de
leitura dos alunos, e não seria apenas o detentor das interpretações
consideradas corretas pelo sistema de ensino. O aluno, por sua vez,
não estaria ausente da subjetividade do texto, mas atuaria como
sujeito desse processo. Importa dizer: nem autor nem leitor são
responsáveis, isoladamente, pelos sentidos.
Torna-se, portanto, cada vez mais urgente o ensino de
leitura por meio de uma abordagem discursiva, pois dessa forma
o leitor será reconhecido interlocutor. Não basta que seja feita
apenas uma decodificação textual, mas sim uma busca intensa
pelos diversos efeitos de sentidos que o texto propõe.

18 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 7-20 – jan./jul. 2019
Considerações

A partir das reflexões teóricas e das análises, fica evidente a


problemática em torno do livro didático, que leva em consideração
apenas uma leitura decodificadora – uma vez que os livros
didáticos tendem a ser mais normativos – e não se atenta a uma
prática reflexiva, que deveria evidenciar os aspectos sociais que
permeiam a vida dos alunos.
Assim, compreendemos serem necessários mecanismos
de ensino que levem a uma prática de leitura enquanto processo
de desenvolvimento crítico dos alunos. Logo, a leitura deveria
ser pensada levando em conta aspectos discursivos, tais como:
os atravessamentos ideológicos diversos e as múltiplas condições
de produção; afinal, cada aluno traz consigo uma formação
individual, o que faz com que os textos possam ser compreendidos/
interpretados de variadas formas e não apenas da maneira
apresentada pelo livro didático.

REFERÊNCIAS

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.


São Paulo: Cortez, 2001.

GOODMAN, K. Unidade na leitura – um modelo psicolinguístico.


Letras de hoje. Porto Alegre, v. 26, p. 9-43, dezembro 1991.

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20 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 7-20 – jan./jul. 2019
O MÉTODO EM MARX: ELEMENTOS PARA O
DIÁLOGO COM OUTRAS TEORIAS SOCIAIS

Ariovaldo Santos1

Resumo: Este artigo discute elementos categoriais e conceituais constitutivos da


metodologia de análise marxiana. Resgatar elementos do método de investigação
marxiano é de fundamental importância para a compreensão da vida social e, em
particular, para o profissional do Serviço Social, uma vez que a concepção materialista
da história passou a ser, a partir de determinado momento do desenvolvimento da
prática do assistente social, o eixo em torno do qual se deve articular a prática do
profissional da área. Procura-se, assim, neste artigo, fornecer elementos que permitam a
compreensão da distância que há entre o método dialético, base da concepção materialista
da história, em relação a outros referenciais analíticos, em particular, àquele dado pela
perspectiva positivista que, nas origens do Serviço Social, ocupou papel de destaque
para a compreensão da questão social. O artigo opera com a hipótese de que embora
possam existir elementos que aparentemente igualam ambos os métodos – o dialético
e o positivista - trata-se, no entanto, de proximidades aparentes, uma vez que os
pressupostos nos quais se assentam cada um dos referenciais teóricos mencionados, em
sua efetivação prática, conduz a caminhos distintos no que se refere à compreensão da
sociedade de classes, das relações envolvendo capital e trabalho e, mais particularmente,
da intervenção social pretendida.
Palavras-chave: método, positivismo, dialética

Abstract: This article discusses conceptual categories and constituent elements of the
methodology of Marxist analysis. Redeem elements of the Marxian method of research
is of fundamental importance for the understanding of social life and , in particular
, to professional social work , since the materialist conception of history came to be ,
from a certain point of development practice the social worker , the axis around which
should articulate the practice of professional. The aim , therefore , in this article , provide
evidence to the understanding of the distance that exists between the dialectical method
, basis of the materialist conception of history , in relation to other analytic frameworks ,
in particular , that given the positivist perspective , the origins Social Services , he held a
prominent role in understanding the social issue. The article operates on the assumption
that although there may be elements that apparently equate both methods - the positivist
and dialectical - it is, however, apparent near since the assumptions on which they sit

1
Doutor em Sociologie et Sciences Sociales (Paris I – Phanthéon Sorbonne; Dr. Em Serviço
Social (UEL- Pr).

21 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
each of the theoretical frameworks mentioned in their practice effectiveness, leads to
different paths in relation to the understanding of class society , the relations involving
capital and labor and , more particularly , the intervention desired social .
Key words: method, positivism, dialectical.

Uma das tarefas mais árduas que se coloca quando se penetra


nos estudos desenvolvidos por Marx para compreender a vida social
e, em particular, a sociedade burguesa, refere-se ao tratamento que
fornece ao método. Dificuldade que se intensifica quando considerado
que os esforços marxianos dirigem-se no sentido de compreender
a realidade social como totalidade em movimento contraditório e
incessante. Trata-se, pois, de reconhecer, como ponto de partida,
este postulado no processo de investigação. Ao proceder desta
maneira nos deparamos, logo de início, com a distância que separa
a compreensão marxiana da vida social e aquela fornecida pelos
referenciais durkheimianos e weberianos.
Escapa, no entanto, a este momento inicial da exposição os
esforços para estabelecer a comparação entre estes três diferentes
métodos de análise da estrutura e das relações sociais. O objetivo
perseguido é o de expor, fundamentalmente, dentro dos limites
de um artigo, elementos categoriais e conceituais forjados pela
análise marxiana, o que, por sua vez, reme reflexão. É, portanto,
da consideração do íntimo intercâmbio que se estabelece entre o
ser pertencente ao gênero humano com suas condições imediatas
de existência, e a necessidade de subordiná-las, ainda que de modo
imediato, à produção e reprodução de sua continuidade biológica,
que parte a análise e a construção metodológica marxiana. Por
outras palavras, este pressuposto, que como afirma o próprio Marx,
só é possível de ser abandonado na imaginação, implica reconhecer a
necessidade de compreender a vida social ontologicamente, mediante
a investigação da relação orgânica do ser homem com a natureza em

22 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
geral, e a transformação de ambos graças a uma mediação essencial:
o trabalho.
Seguramente, Marx não foi nem o primeiro nem o último a
compreender que o ser homem está em íntima e indissociável relação
com as condições objetivas, recorrentemente nominadas por “natureza”
e que se apresenta de início como totalmente separadas de sua
existência orgânica. Distância aparente que se dilui à medida em que
se produz e reproduz o afastamento irreversível das barreiras naturais
que envolve o ser homem dos outros seres (orgânicos e inorgânicos)
com os quais estabelece relações determinadas. Entretanto, foi Marx o
primeiro a extrair desta relação mediada pelo trabalho as mais amplas
consequências para a análise, ao apreendê-la, em cada momento, em
suas determinações histórico-concretas, reais.
Marx buscará compreender o ser e, em particular o ser social,
tal como este é. Interessa-lhe apreender os elementos constitutivos de
uma determinada realidade social e que fazem com que ela se exprima
de certa maneira e não de uma outra qualquer. Assim, a realidade
social tal como se configura em um momento específico, não é a
expressão arbitrária ou o resultado de um desejo individual. Muito
menos é o ser homem um “abstrato sujeito cognoscente”, isto é, ele não
apreende e aprende fora de um ponto marcado pela determinidade
de condições concretas que se apresentam.2 Isto é claro na conhecida
passagem da obra A Ideologia Alemã na qual Marx e Engels
destacam a crença dos ideólogos de que aquele país havia passado
por profundas transformações, muito embora, no plano concreto, as
novas circunstâncias apontadas estivessem presentes apenas no plano
do pensamento e não no plano concreto da vida cotidiana.

2
KOSIC, Karel, O mundo da pseudoconcreticidade e sua destruição. IN: Dialética do Concreto,
R.J., Ed. Paz e Terra, 1981. p. 11.

23 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
Emergem aqui, logo de início, elementos essenciais para
o entendimento da construção metodológica marxiana. Trata-se
do reconhecimento de que a vida social possui determinações que
não podem ser resumidas às vontades individuais que, por ato do
pensamento puro, isto é, cada vez mais descolados das condições
reais existentes, molde livremente a cotidianeidade nesta ou naquela
direção. Cumpre observar, neste sentido, que estes impedimentos
de forma alguma significam que o indivíduo desapareça da história
ou seja aniquilado pela impotência e resignação. Do que se trata
para Marx, metodologicamente, é de situar os indivíduos dentro das
condições concretas nas quais existem apontando, ao mesmo tempo,
as potencialidades que se abrem a eles de transformarem as condições
que encontram prontas, subordinando-as às suas necessidades.
Assim, o método não está imbuído da intenção de fazer
julgamento moral a respeito destas relações. Como observou em
determinado momento Engels na Miséria da Filosofia, o julgamento
de Marx, sobre as coisas, não é moral. A crítica que faz da sociedade
burguesa ou de qualquer outra sociedade que existiu ao longo da
história jamais assume a forma de um julgamento moral3. Isto se
evidencia, nas palavras do próprio Marx, quando observa:

Eu não pinto em rosa o capitalista e o proprietário fundiário. Mas não


se trata aqui de pessoas, senão na medida em que são a personificação
de categorias econômicas, os suportes de interesses e de relações de classes
determinadas. Meu ponto de vista, segundo o qual o desenvolvimento da
formação econômica da sociedade é assimilável à marcha da natureza e

3
“Segundo as leis da economia burguesa, a maior parte do produto não pertence aos
trabalhadores que o criaram. Se nós dizemos, então : é injusto, e não deve ser, isto não tem nada
a ver com a economia. Nós dizemos somente que este fato econômico está em contradição com
nosso sentimento moral. Eis porque Marx jamais fundou ali suas reivindicações comunistas,
mas, antes, sobre a ruina necessária, que se consome sob nossos olhos, todos os dias e de mais em
mais, do modo de produção capitalista”. ENGELS, F. Préface à la première édition allemande.
In: MARX, K., Misère de la Philosophie, Paris, Éditions Sociales, 1977, p. 29.

24 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
à sua história, pode menos que toda outra tornar o indivíduo responsável
de relações das quais ele permanece socialmente a criatura, apesar dos
esforços que possa fazer para se separar delas.4

Desse modo, metodologicamente, não é o indivíduo e sim as


relações sociais dentro das quais ele está inserido que se impõem para
a compreensão da realidade concreta. Assim, diz Engels,

segundo Marx, as leis imanentes da produção capitalista assumem


dentro do movimento exterior dos capitais o valor de leis coercitivas
da concorrência e que, sob esta forma, elas se impõem aos capitalistas
como mobiles de suas operações; que, portanto, uma análise científica
da concorrência pressupõe a análise da natureza íntima do capital.5

Ainda que não seja específico ao seu pensamento, Marx insiste


em destacar que em “todas as ciências o começo é árduo”6, de tal modo
que “inexiste rota real para a ciência e apenas têm a chance de atingir
os cumes luminosos aqueles que não temem de se fatigar em escalar
suas encostas escarpadas”7. Note-se, pois, que o ponto de partida é
um convite à radicalidade da análise, uma vez que pressupõe o choque
direto com verdades estabelecidas e a sua necessária superação, em
prol de uma reflexão que desvende, efetivamente, o que o objeto é em
suas múltiplas determinações. Em Marx, o real não é invenção do
pensamento mas, pelo contrário, a tradução, no plano da consciência,
daquilo que determinada manifestação fenomênica efetivamente é.
Por outras palavras, o caminho do senso comum ao senso científico
é árduo na medida em que o real não se dá a conhecer de imediato.
4
MARX, K. Préface de la première édition allemande. In: Le Capital, Moscou, Éditions du
Progrès, 1982, p. 18.
5
ENGELS, F. , Anti-Duhring, Paris, Editions Sociales, 1950, p. 247.
6
MARX, K. Préface de la deuxième édition allemande. In: Le Capital, Tome I, Moscou, ,
Éditions du Progrès, 1982.
7
MARX, K.,, Préface de l’édition française, Londres, 18 mars 1872. In: Le Capital, Tome I,
Moscou, , Éditions du Progrès, 1982.

25 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
Ele não é imediato e sim mediado. Para tanto, é fundamental que se
reconheça que aquilo que vemos, por mais agradável e palatável que
possa se nos apresentar, não coincide, necessariamente, com aquilo
que determinada manifestação social é.
Assim, ainda que seja um fato que o pensamento apreende a
realidade, também o é que se deve tomar cuidado para discernir o
que é efetivamente o concreto e o que a consciência, em determinado
momento, pode imaginar ser o concreto. Pressuposto necessário,
neste e em vários outros métodos, que pretendem construir a leitura
científica da realidade social, mas que apenas em Marx atingirá uma
dimensão radical, uma vez que conduzirá à construção de uma análise
ontológica da vida social.
Mais, ainda, é necessário, metodologicamente, adotar as formas
mais desenvolvidas do ser como o referencial para a compreensão da
complexidade do objeto. Outra não é a razão pela qual tanto Marx
quanto Engels buscam analisar o capitalismo em sua manifestação
tipicamente industrial em vez de se apropriarem do objeto em suas
formas anteriores, isto é, sua fase comercial ou manufatureira. Engels
observa, por exemplo, que

só a grande indústria desenvolve, de uma parte, os conflitos que fazem


de uma superação do modo de produção capitalista uma necessidade
inelutável – conflitos não somente entre as classes que ela engendra, mas
ainda entre as forças produtivas e as formas de troca que ela cria; - e,
de outra parte, ela unicamente desenvolve, dentro destas gigantescas
forças produtivas, os meios de resolver também esses conflitos.8

As dificuldades que se apresentam para a realização da ciência,


e no caso particular pretendido por Marx, a investigação objetiva da
vida social e, mais precisamente, das relações sociais, decorrem da

8
ENGELS, F., Anti-Duhring. Paris, Editions Sociales, 1959, 296.

26 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
própria natureza do objeto a ser investigado, o qual é resultado de um
complexo de elementos que o constituem. Dai Marx afirmar, na Crítica
da Economia Política, que “o complexo é complexo enquanto síntese
de múltiplas determinações, unidade do diverso”.9 O quanto esta
intransparência resultante do complexo de elementos constitutivos
do objeto se manifesta no mundo social é dado, por exemplo, pela
forma valor. Para Marx:

A forma do valor realizada na forma moeda é alguma coisa de muito


simples. Entretanto, o espírito humano procurou sem sucesso desde há
mais de dois mil anos a penetrar em seu segredo, enquanto que ele
chegou a analisar, ao menos aproximativamente, formas bem mais
complexas e escondendo um sentido mais profundo. Porque? Por que
o corpo organizado é mais fácil de estudar que a célula, que é um de
seus elementos. De outro lado, a análise das formas econômicas não
pode se servir do microscópio ou dos reagentes fornecidos pela química;
a abstração é a única força que pode lhe servir de instrumento. Oras,
para a sociedade burguesa atual, a forma mercadoria do produto do
trabalho, ou a forma valor da mercadoria, é a forma celular econômica.
Para o homem pouco cultivado a análise desta forma parece se perder
em minúcias; e são com efeito e necessariamente minúcias, mas como
ela se encontra na anatomia micrológica.10

A passagem anteriormente citada não se limita a identificar


que o objeto a ser analisado é, desde o início, complexo. Reconhece,
ao mesmo tempo, que é uma exigência posta à análise que o objeto,
que é sempre complexo, seja estudado à luz desta complexidade, isto
é, em suas formas mais desenvolvidas, as quais contém, por sua vez,
a síntese de sua gênese e desenvolvimento anterior e potencialmente
futuro. Daí que a atenção de Marx se distância de uma análise
detalhada das várias formas de sociedade ao longo da história para
9
Marx, k., Introdução à Crítica da Economia Política. In: Marx, S.P., Abril Cultural, 1982.
MARX, K. Préface de la première édition allemande. In: Le Capital, Moscou, Éditions du
10

Progrès, 1982,, p. 16.

27 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
deter-se naquela que é a síntese das demais formas anteriores de vida
social: a capitalista. Como ressalta o próprio Marx:

O físico, para se dar conta dos procedimentos da natureza, ou bem


estuda os fenômenos logo que eles se apresentam sob a forma mais
declarada, e a menos obscurecida pelas influências perturbadoras,
ou bem a experimenta nas condições que asseguram tanto quanto
possível a regularidade de sua marcha. Eu estudo nesta obra o modo
de produção capitalista e as relações de produção e de troca que lhe
correspondem. A Inglaterra é o local clássico desta produção. Eis porque
eu empresto a este país os fatos e os exemplos principais que servem
de ilustração ao desenvolvimento de minhas teorias (...) Não se trata
aqui do desenvolvimento mais ou menos completo dos antagonismos
sociais que engendram as leis naturais da produção capitalista, mas
destas próprias leis, das tendências que se manifestam e se realizam com
uma necessidade de ferro. O país mais desenvolvido industrialmente
demonstra apenas àqueles que lhe seguem sobre a escala industrial a
imagem de seu próprio futuro.11

Em diversos momentos é possível observar as referências


de Marx às ciências físicas e biológicas, em razão do estágio de
desenvolvimento na qual se encontravam estas áreas de conhecimento
naquele momento histórico em relação aos referentes à vida social
como um todo. Entretanto, é distinta a forma como Marx relaciona-se
com o desenvolvimento destas ciências e o modo como, por exemplo,
os teóricos positivistas procurarão delas se apropriar. Em Marx, a
referência às ciências físicas e biológicas faz-se sem o objetivo de se
encontrar leis eternas e invariáveis do desenvolvimento humano. Se
leis existem, estas são tendenciais, uma vez que compete aos homens
fazer a história e esta, por sua vez, não está determinada de uma vez
por todas. Isto se evidencia, por sua vez, na afirmação de que:

11
MARX, K., Préface de la première édition, Moscou, Éditions du Progrès, 1982, p. 16.

28 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
Uma nação pode e deve tirar um ensinamento da história de uma outra
nação. Logo mesmo que uma sociedade chega a descobrir a pista da lei
natural que preside a seu movimento – e o objetivo final desta obra é
de desvendar a lei econômica do movimento da sociedade moderna –
ela não pode ultrapassar de um salto nem abolir por decretos as fases
de seu desenvolvimento natural; mas ela pode abreviar o período da
gestação , e atenuar os males de seu nascimento.12

Assim, a lei a que se refere Marx, e que integra “a base


materialista do meu método”, como dizia, é aquela do fenômeno
estudado e não a de sua invariabilidade. Fato reconhecido por Maurice
Block, autor contemporâneo a Marx, que no intuito de minimizar
o pensamento do autor de O Capital acaba por destacar elementos
essenciais da concepção materialista da história ao afirmar:

Uma única coisa preocupa Marx:: encontrar a lei dos fenômenos que ele
estuda. (...) o que lhe importa, acima de tudo, é a lei de sua mudança,
de seu desenvolvimento, isto é, a lei de sua passagem de uma forma a
outra, de uma ordem de ligação a uma outra. Uma vez que ele descobriu
esta lei, ele examina em detalhe os efeitos pelos quais ela se manifesta na
vida social. (...) para ele [as] leis abstratas não existem... Ao contrário,
cada período histórico, segundo ele, tem suas próprias leis históricas.13

No mesmo sentido, destacará Engels:

A economia política, no sentido mais amplo, é a ciência das leis que


regem a produção e a troca dos meios materiais de subsistência na
sociedade humana (...) A economia política é então essencialmente uma
ciência histórica. Ela trata uma matéria histórica, isto é, constantemente
em mudança; ela estuda primeiramente as leis particulares a cada grau
de evolução da produção e da troca, e é somente ao fim deste estudo que

12
MARX, K., Préface de la première édition allemande. Moscou, Éditions du Progrès, 1982,
p. 18.
13
MARX, K. Préface de la deuxième édition allemande. Moscou, Éditions du Progrès, 1982,
p. 26.

29 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
ela poderá estabelecer algumas leis totalmente gerais que são válidas
em todo caso para a produção e para a troca. Disto decorre que as
leis válidas para modos de produção e formas de troca determinados
guardam sua validade para todos os períodos da história que têm em
comum estes modos de produção e estas formas de troca.14

Verifica-se, pois, que existem leis gerais válidas para a


totalidade concreta. Estas, porém, são válidas enquanto existirem
as condições gerais que dão realidade ao objeto. Escapa assim aos
propósitos da concepção materialista a extração de leis gerais que
regem a sociedade e que seriam imutáveis no transcurso da história.
Neste sentido, em vez de buscar a harmonia social, como pretendida
pela pesquisa de extração positivista, a concepção materialista da
história vê na contradição, nas forças opostas que presidem as leis
gerais da realidade social, um motor do desenvolvimento histórico.
Como observa Sweezy:

Marx conservou (...) os elementos (...) que davam importância ao


processo e desenvolvimento através do conflito de forças opostas ou
contraditórias. (...)...remontou os conflitos históricos decisivos às suas
raízes no modo de produção; ou seja, descobriu que eles eram o que
chamava de conflitos de classe. (...) As forças econômicas atuantes se
manifestam em conflitos de classe sob o capitalismo, bem como sob as
formas anteriores de sociedade. Segue-se que as relações econômicas
essenciais são as que formam a base e se expressam na forma de conflitos
de classes. São esses os elementos essenciais que devem ser isolados e
analisados pelo método da abstração” (SWEEZY,1986, p.26).

Por sua vez, as leis são tendenciais:

Não se trata aqui do desenvolvimento mais ou menos completo dos


antagonismos sociais que engendram as leis naturais da produção

14
ENGELS, F., Anti-Duhring, Paris, Éditions Sociales, 1950, 179-180.

30 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
capitalista, mas destas próprias leis, das tendências que se manifestam
e se realizam com uma necessidade de ferro. O país mais desenvolvido
industrialmente nada mais faz do que mostrar àqueles que o seguem
sobre a escala industrial a imagem de seu próprio futuro (MARX,1982,
p.16).

Apresentada desta forma, destaca-se a distância que separa


o método dialético daquele dado pelo positivismo. Se em ambos
existe a preocupação de estudar o real enquanto aquilo que existe,
para os positivistas trata-se de reconhecer que “as sociedades estão
(...) submetidas a leis”, caminho pelo qual se chega mediante o uso
de certas analogias.
Esta perspectiva pode ser resgatada em autor que não é
estranho ao corpo teórico do Serviço Social nos momentos iniciais
de constituição de profissão, isto é, o francês Émile Durkheim.
Entretanto, ainda que um resgate detalhado dos elementos positivistas
no método durrkheimiano comparando-os aos esforços desenvolvidos
pela formulação teórica marxiana seja de importância, sobretudo para
demonstrar parte do árduo caminho trilhado pelo Serviço Social no
sentido de promover saltos qualitativos em seu caráter interventivo,
aqui limitamo-nos, a alguns elementos gerais para sedimentação da
reflexão.
Assim, dirá Durkheim,“todos os fenômenos naturais evoluem
segundo leis. Portanto, se as sociedades estão na natureza, devem
obedecer, também elas, a esta lei geral que resulta da ciência e ao
mesmo tempo a domina”.15 Observa-se, pois, que enquanto Marx
busca os momentos de desenvolvimento e ruptura dentro de um
universal concreto, é à continuidade e à persistência no espaço tempo
de leis sociais gerais que retém os esforços do pensamento positivista,

15
DURKHEIM, Émile, Curso de Ciência Social, in A Ciência Social e a Acção, Livraria
Bertrand, Portugal, 1975, p. 79.

31 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
inclusive em sua matriz durkheimiana. Ali onde o pensamento
dialético vê a contradição, o positivista verá uma linearidade, na qual
se evolui do mais simples ao mais complexo, continuamente. Afinal,
diz Durkheim,

As nações mais primitivas e os povos mais civilizados são apenas estados


diferentes duma só e mesma evolução; e são as leis desta evolução única
que ele procura determinar. Toda a humanidade se desenvolve em linha
reta e as diferentes sociedades não são mais que as etapas sucessivas desta
marcha retilínea..16

Certamente, pode-se cair nas ilusões da semelhança entre o


método dialético e o positivista caso se retenha apenas elementos
gerais que constituem a ambos. Assim, por exemplo, se Marx afirmava
que não se entende a anatomia do homem pela anatomia do macaco,
de tal modo que o complexo deve ser explicado, desde o início, como
complexo, Durkheim, também, reconhece, enquanto pressuposto
geral, que se “o progresso humano segue por toda a parte a mesma lei,
o melhor meio de o reconhecer consiste naturalmente em o observar
ali onde se apresenta sob a forma mais nítida e mais acabada, isto é,
nas sociedades civilizadas”17.
Entretanto, pressupostos isolados não formam o método,
razão pela qual, no seu conjunto, o dialético e o positivista são
conduzidos a maneiras totalmente diferenciadas de apreensão do
objeto e compreensão do mesmo. Reconheça-se, neste sentido, que
o pensamento positivista busca encontrar o equilíbrio enquanto o
dialético vê nisto uma situação temporária e impossível de ser mantida
indefinidamente. Como observa Engels:

16
DURKHEIM, Émile, Curso de Ciência Social, in A Ciência Social e a Acção, Livraria
Bertrand, Portugal, 1975, p. 85.
17
DURKHEIM, Émile, Curso de Ciência Social, in A Ciência Social e a Acção, Livraria
Bertrand, Portugal, 1975, p. 85.

32 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
Para a concepção dialética, a possibilidade de exprimir o movimento
em seu contrário, o repouso, não apresenta nenhuma dificuldade.
Para ela, toda esta oposição, como nós o vimos, é apenas relativa;
nada de repouso absoluto, de equilíbrio incondicional. O
movimento singular tende para o equilíbrio, o movimento do
conjunto suprime novamente o equilíbrio. Também, o repouso e
o equilíbrio, alí onde eles se reencontram, são o resultado de um
movimento limitado e este movimento pode se medir por seu
resultado, se exprimir nele e, partindo dele, se restabelecer sob
uma ou outra forma.18

O combate de Marx e Engels ao idealismo, por outro lado,


traduzido na famosa expressão de que com Hegel o mundo aparecia
de ponta cabeça, impunha outros caminhos no que se refere ao método
adequado para a apreensão da realidade social. Necessidade que se
reforçava mediante o reconhecimento de Marx e Engels de que o
ponto de partida não é o pensamento e sim a própria realidade que o
ser tem diante de si. Mesmo as formas mais abstratas de pensamento
encontram sua razão de ser nesta materialidade. Engels expõe com
clareza este ponto ao apontar para as íntimas ligações existentes entre a
materialidade e o conhecimento no terreno da física e da matemática19.
Trata-se, ao mesmo tempo, no plano do método, de incorporar
as conquistas estabelecidas pelos teóricos clássicos da economia
política afastando-se, entretanto, da compreensão que os mesmos
tinham a respeito da nova ciência e do caráter das leis gerais. Para
eles, a economia política não se apresentava como “a expressão de
condições e de necessidades de sua época, mas aquela da razão eterna;
as leis da produção e da troca que ela descobria não eram leis de uma
forma historicamente determinada destas atividades, mas leis eternas
da natureza”20.
18
ENGELS, F., Anti-Duhring, Paris, Éditions Sociales, 1950.
19
Ver páginas 70 e 71 do Anti-Duhring.
20
ENGELS, F., Anti-Duhring, Paris, Éditions Sociales, 1950, 183.

33 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
Hegel desempenhou um papel fundamental na construção do
método dialético proposto por Marx e do qual resultará a concepção
materialista da história. Conforme observa o próprio Marx a respeito
desta contribuição:

Meu método dialético não somente difere desde a base do método


hegeliano, mas ele é ao mesmo tempo seu oposto. Para Hegel,
o movimento do pensamento, que ele personifica sob o nome
de idéia, é o demiurgo da realidade, a qual é somente a forma
fenomênica da idéia. Para mim, ao contrário, o movimento do
pensamento é somente a reflexão do momento real, transportado
e transposto para o cérebro do homem (...) Mas ainda que, graças
a seu quiproquó, Hegel desfigure a dialética pelo misticismo,
não deve-se desconsiderar o fato que ele é o primeiro a expor o
movimento do todo.21

A importância de Hegel para a elaboração do método dialético


desenvolvido por Marx é reconhecida também por Engels e ajuda
a entender a importância desta forma de pensar a realidade social.
Engels observa a respeito do método em Hegel:

pela primeira vez – e este é seu grande mérito – o mundo inteiro


da natureza, da história e do espírito era representado como um
processo, isto é, como estando engajado em um movimento, uma
mudança, uma transformação e uma evolução constantes, e onde
se tentava demonstrar o encadeamento interno deste movimento
e desta evolução. Deste ponto de vista, a história da humanidade
não aparecia mais como um encadeamento caótico de violências
absurdas todas igualmente condenáveis diante do tribunal da razão
filosófica chegada à maturidade e que é preferível de esquecer tão
rapidamente quanto possível mas como o processo evolutivo da
própria humanidade.22

21
Id. Ibidem, p. 27.
22
ENGELS, F., Anti-Duhring, Éditions Sociales, Paris, 1950, p. 55.

34 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
No método de análise proposto por Marx a realidade é
constante movimento, de tal modo que as relações sociais constituem
um permanente vir a ser, no qual opera a negação da negação.
Contudo, negar

em dialética, não significa simplesmente dizer não, ou declarar que


uma coisa não existe, ou a destruir de uma maneira qualquer (...) o
gênero da negação é aqui determinado antes de tudo pela natureza
geral, em segundo lugar pela natureza particular do processo. Eu
devo não somente negar, mas também elevar de novo a negação.23

Além disso, o ser e o vir a ser do objeto só podem ser
devidamente apreendidos se, ao reconhecimento de seu contínuo
movimento unir-se a compreensão de que a negação da negação,
preparando novos momentos de desenvolvimento das relações sociais,
existe enquanto processo de totalidade. Trata-se, pois, de totalidade
em movimento, possível de ser apreendida corretamente desde que
analisada de maneira adequada a articulação da infraestrutura com a
supraestrutura. A apreensão desta relação é fundamental ao método
marxiano de análise da realidade social e ganha sua formulação
transparente na conhecida passagem do Prefácio de Para a Crítica
da Economia Política, ao afirmar:

(...) na produção social de sua vida, os homens contraem


determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade,
relações de produção, que correspondem a uma determinada
fase de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O
conjunto destas relações de produção forma a estrutura econômica
da sociedade, a base real sobre a qual se ergue a superestrutura
jurídica e política e a que correspondem determinadas formas de
consciência social.24

ENGELS, F., Anti-Duhring, Paris, Éditions Sociales, 1950, p. 172.


23

MARX, K., Prologo de la Contribucion a la Critica de la Economia Politica. In: MARX.


24

K y ENGELS, F., Obras Escogidas, Tomo I, Moscu, Editorial Progreso, 1974, pp. 517-518.

35 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
Marx e Engels retornarão inúmeras vezes a esta relação da
infra com a supraestrutura, o que aponta para a importância de
ambas serem tratadas como partes da totalidade social, sem o que
a correta compreensão das determinações do objeto concreto se
torna impossível. Isolar uma das duas instâncias é, ao mesmo tempo,
enrijecer a possibilidade de compreensão do objeto que se pretende
estudar, isto é, as relações sociais dentro de um modo de produção
específico, uma vez que se recairia, no caso da privilegiar somente a
infraestrutura, em uma análise que reduz tudo ao economico e, de
outro, em uma análise que reduziria tudo ao político-cultural e outros
momentos da supraestrutura.
A reivindicação da análise no plano da totalidade é, ao
mesmo tempo, a exigência, de um lado, de transcender o campo do
fenomênico, tendência para a qual caminha a apreensão da realidade
na vida cotidiana imediata, e, de outro, o imperativo de extrair a
essência escondida pelo complexo constitutivo do próprio objeto.
Assim, conhecer o objeto é assumir, desde o início, que o mesmo
não pode ser apreendido corretamente mediante a eleição deste ou
daquele aspecto da realidade a ser investigada. Como observa Lukács:

(...) todos os métodos para tornar, de modo homogêneo, compreensível


ao pensamento o que é decisivo ontologicamente no ser social, por meio
de um predomínio único de elementos isolados, leva sempre a aspectos
distorcidos de sua verdadeira constituição. Sem um domínio intelectual
e científico do ser social, que tem de partir, ontologicamente, sempre das
tentativas teóricas de esclarecimento da práxis humana (no sentido mais
amplo), não haverá uma ontologia confiável, objetivamente fundada.
Por mais que a própria práxis ofereça diretamente os indícios imediatos
e mais importantes da essência do ser social, por mais que seu cerne
objetivo seja indispensável para uma ontologia crítica autêntica, pouco
podem as tentativas de tornar corretamente compreensíveis estes indícios
imediatos sobre o ser social, pois os mantém em sua imediaticidade.
Para isso são imprescindíveis as descobertas científicas.25

25
LUKÁCS, György, Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social. S.P., Boitempo
Editorial, 2010, 1º edição, p. 59-60.

36 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
Importante observar, neste encaminhamento, que compreender
o real como processualidade é reconhecer que toda verdade sobre o
objeto é, em princípio, relativa, não no sentido de que outras verdades
sejam possíveis para a mesma determinação concreta ou forma de
ser da realidade e sim que, ao mudar a realidade, novos elementos
são produzidos enquanto que outros são suprimidos (no sentido de
superação histórica), o que exige fazer sempre o acompanhamento
investigativo da realidade que se pretende entender. Trata-se aqui do
reconhecimento feito por Marx e de que os princípios dos quais se
parte para a análise jamais podem ser compreendidos, seja no início
da investigação, seja nos conhecimentos extraídos da mesma, como
dogmas, verdades eternas e imutáveis.
Em que sentido se deve, pois, compreender o materialismo
histórico defendido por Marx e Engels e que se constitui para eles
princípio nodal para a estruturação da pesquisa? Ambos buscaram
sintetizar em situações diversas a compreensão que possuíam a respeito
do desenvolvimento histórico social e a dimensão fundamental da
base material no processo de construção da pesquisa e investigação.
Retome-se aqui um desses momentos, tal como apresentado em A
Ideologia Alemã:

(...) o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também,


portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens
têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”.”
(...) O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a
satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material,
(...) uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje,
assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada
hora, simplesmente para manter os homens vivos. (...) A primeira
coisa a fazer em qualquer concepção histórica é, portanto, observar
esse fato fundamental em toda a sua significação e em todo o seu
alcance e a ele fazer justiça. (...) O segundo ponto é que a satisfação
dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-Ia e o instrumento

37 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades (...) A
terceira condição (...) é que os homens, que renovam diariamente
sua própria vida, começam a criar outros homens, a procriar (...)
Ademais, esses três aspectos da atividade social não devem ser
considerados como três estágios distintos, mas sim apenas como
três aspectos ou, (...) como três “momentos” que coexistiram desde
os primórdios da história e desde os primeiros homens, e que ainda
hoje se fazem valer na história. (...) Mostra-se, portanto, desde o
princípio, uma conexão materialista dos homens entre si, conexão
que depende das necessidades e do modo de produção e que é
tão antiga quanto os próprios homens - uma conexão que assume
sempre novas formas e que apresenta, assim, uma “história”, sem que
precise existir qualquer absurdo político ou religioso que também
mantenha os homens unidos. Somente agora, (...) descobrimos
que o homem tem também consciência. Mas esta também não
é, desde o início, consciência “pura”. O “espírito” sofre, desde o
início, a maldição de estar “contaminado” pela matéria, que, aqui,
se manifesta sob a forma (...) de linguagem26.

Outras passagens poderiam ser aqui reproduzidas, mas
esta é suficiente para destacar, inicialmente, alguns elementos que
norteiam a pesquisa na perspectiva do método dialético. Inicialmente,
o reconhecimento de que o ponto de partida para a análise são as
condições reais de vida em sua forma básica, isto é, as relações do
ser com as condições objetivas nas quais ele se encontra e que vai
procurar transformar com o emprego de uma mediação fundamental,
o trabalho, compreendido como dispêndio de energia física e mental,
posta em movimento pelo ser, à luz de determinadas pré-ideações e
que conferirão à sua ação um certo sentido, voltado a uma determinada
finalidade: a satisfação de carências, inicialmente materiais. Neste
sentido, para a investigação, o ponto de partida empírico não é
descartado e sim tomado como momento necessário para o início
da análise.

26
MARX, K. e ENGELS, F., A Ideologia Alemã, S.P., Boitempo Editorial, 2007, pp. 32-36.

38 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
Deste modo, diferentemente do pensamento social moderno,
que dissolve o social em uma infinidade de lugares microssociais, a
pesquisa marxo-engelsiana opera com a compreensão de que o real é
possível de ser compreendido adequadamente apenas na medida em
que é analisado enquanto totalidade. Como observam Marx e Engels:

Essa concepção da história consiste, portanto, em desenvolver o


processo real de produção e a partir da produção material da vida
imediata e em conceber a forma de intercâmbio conectada a esse
modo de produção e por ele engendrada, quer dizer, a sociedade
civil em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a
história, tanto a apresentando em sua ação como Estado como
explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações teóricas
e formas da consciência - religião, filosofia, moral etc. etc.’ - e em
seguir o seu processo de nascimento a partir dessas criações, o que
então torna possível, naturalmente, que a coisa seja apresentada
em sua totalidade (assim como a ação recíproca entre esses
diferentes aspectos). Ela não tem necessidade, como na concepção
idealista da história, de procurar uma categoria em cada período,
mas sim de permanecer constantemente sobre o solo da história
real; não de explicar a práxis partindo da ideia, mas de explicar
as formações ideais a partir da práxis material e chegar, com
isso, ao resultado de que todas as formas e [todos os] produtos da
consciência não podem ser dissolvidos por obra da crítica espiritual,
por sua dissolução na “autoconsciência” ou sua transformação em
“fantasma”, “espectro”, “visões” etc., mas apenas pela demolição
prática das relações sociais reais [realen] de onde provêm essas
enganações idealistas; (...) Toda concepção histórica existente até
então ou tem deixado completamente desconsiderada essa base real
da história, ou a tem considerado apenas como algo acessório, fora
de toda e qualquer conexão com o fluxo histórico. A história deve,
por isso, ser sempre escrita segundo um padrão situado fora dela; a
produção real da vida aparece como algo pré-histórico, enquanto
o elemento histórico aparece como algo separado da vida comum,
como algo extra e supra terreno.27
27
MARX, K. ENGELS, F., A Ideologia Alemã, op. Cit., p. 42.

39 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
Igualmente fundamental para o desenvolvimento da pesquisa
está o reconhecimento de que o real é racional, embora a racionalidade,
a lógica interna do objeto, não se dê a conhecer de imediato. O
fenômeno, a manifestação empírica imediata do objeto, aponta para
sua essência, mas não o desvenda. Estabelece-se pois, neste processo
de análise, a necessidade de compreensão da totalidade do social,
mediante a apreensão da articulação da infra com a supraestrutura,
bem como o reconhecimento da unidade existente entre a manifestação
fenomênica do objeto e sua existência real.
Na medida em que o fenômeno não revela a essência e sim
a encobre, pelo próprio complexo que envolve as manifestações da
vida social, o caminho da pesquisa exige que se passe continuamente
do mais abstrato ao mais concreto, entendendo-se este enquanto
“síntese das múltiplas determinações, unidade do diverso”. Swezzy
observa que:

Marx acreditava e praticava o (...) método de ‘aproximações sucessivas’,


e que consiste em passar do mais abstrato para o mais concreto, em fases
sucessivas, afastando suposições simplificadoras nos sucessivos estágios
da investigação, de modo que a teoria possa levar em conta e explicar
um número de fenômenos cada vez maior. [Contudo o] princípio da
abstração é em si impotente para proporcionar o conhecimento; tudo
dependendo da forma de sua aplicação. Em outras palavras, é preciso
decidir o que se deve abstrair de que, e o que não se deve.28

Neste encaminhamento, a hipótese central da qual derivam as


demais formuladas por Marx e Engels refere-se ao reconhecimento
de que o econômico, entendido enquanto a produção e reprodução
da vida cotidiana do ser social, é, em última instância, determinante.
A partir desta hipótese, busca “descobrir as verdadeiras inter-relações

28
SWEEZY, Paul, Teoria do Desenvolvimento Capitalista, Novva Cultural, S.P., 1986, pp.
23-24.

40 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
entre os fatores econômicos e não-econômicos na totalidade da
existência social”29.
Engels observa, neste sentido, que o “movimento econômico
impõe-se, sempre, de maneira geral; mas encontra-se sujeito a
repercussões do movimento político criado por ele mesmo e dotado
de relativa independência”. E, ainda:

Não se pode dizer, pois, que a situação econômica exerce um efeito


automático, como às vezes se é levado a crer, por uma simples questão
de comodidade. São os próprios homens que fazem sua história, mas
num determinado ambiente, de que são o produto, e tendo por base
relações efetivas que já encontram estabelecidas. Entre elas, em última
instância, o papel decisivo cabe às relações econômicas; e só elas nos
dão o único fio de encadeamento capaz de levar à compreensão dos
acontecimentos, por mais que as relações restantes, políticas e ideológicas,
possam também influir sobre eles.30

À luz destes elementos verifica-se que a realidade está


em contínuo movimento. Processo no qual emergem tanto os
elementos de sua afirmação quanto de negação. Isto conduz a
teoria materialista à necessidade de compreender os objetos
como objetos particulares. Os indivíduos, no encaminhamento
da pesquisa, se configuram, em Marx, ou, mais especificamente,
para a concepção materialista da história, como personificações
de relações sociais, suporte dessas mesmas relações, conforme já
observado anteriormente neste artigo.
Assim, Marx e Engels colocam-se nas antípodas de várias
vertentes de pensamento que procuraram compreender a vida
social. A reflexão de ambos não é a primeira a levar a vida material
em consideração. Contudo, caberá a eles a primazia, pela primeira
SWEEZY, Paul, op. cit., p. 25.
29

ENGELS, F., Carta a Starkenburg (25 de janeiro de 1894). In MARX, K. e ENGELS, F.


30

Obras Escolhidas, S.P., Ed. Alfa Ômega, 1982, vol. 3, p. 299.

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vez na história, de estabelecerem a base rigorosamente ontológica
de compreensão e análise da sociabilidade em diversos estágios de
seu desenvolvimento. A comparação ainda que breve com elementos
da construção teórica durkheimiana aponta para a superioridade da
investigação da realidade, em bases ontológicas, em relação àquela
dada pelo positivismo. Superioridade que pode ser estendida se
incorporada à discussão, tarefa de resto impossível dentro dos limites
deste artigo, outros referenciais teóricos como o weberiano ou, mais
amplamente, o fenomenológico, em seus vários matizes.

REFERÊNCIAS

DURKHEIM, Émile, Curso de Ciência Social. In: DURKHEIM, E.


A Ciência Social e a Acção. Livraria Bertrand, Portugal, 1975.

ENGELS, F. Anti-Duhring. Paris, Editions Sociales, 1950.

ENGELS, F. Préface à la première édition allemande. In: MARX, K.


Misère de la Philosophie. Paris, Éditions Sociales, 1977.

MARX, K. Préface de la deuxième édition allemande. Moscou, Éditions


du Progrès, 1982, p. 26.

ENGELS, F., Carta a Konrad Schimidt (27 de outubro de 1890). In


MARX, K. e ENGELS, F. Obras Escolhidas. S.P., Ed. Alfa Ômega, 1982.

ENGELS, F., Carta a Starkenburg (25 de janeiro de 1894). In MARX,


K. e ENGELS, F. Obras Escolhidas. S.P., Ed. Alfa Ômega, 1982, vol. 3.

LUKÁCS, György, Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social. S.P.,


Boitempo Editorial, 2010, 1º Ed.

MARX, K., Le Capital, Tome I, Moscou, Éditions du Progrès, 1982.

42 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
MARX, K., Introdução à Crítica da Economia Política. S.P., Abril Cultural,
1982.

MARX, K., Prologo de la Contribucion a la Critica de la Economia


Politica. In: MARX. K y ENGELS, F. Obras Escogidas, Tomo I, Moscu,
Editorial Progreso, 1974, pp. 517-518.

MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. S.P., Boitempo Editorial,


2007.

SWEEZY, Paul. Teoria do Desenvolvimento Capitalista. Nova Cultural,


S.P., 1986.

43 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 21-44 – jul./dez. 2018
PEQUENO PRODUTOR RURAL
E OS DESAFIOS DA LINHA SUCESSÓRIA

Huama Maximo1
Elizete Conceição Silva2

RESUMO: O artigo objetiva refletir sobre a linha sucessória do pequeno produtor


rural. O mundo rural é um representante importante ao desenvolvimento nacional,
contudo a migração de jovens rurais representa uma ameaça à continuidade da linha
sucessória hereditária. A análise dos dados teóricos desenvolveu-se na perspectiva histórica
crítica. Alguns fatores contribuem para o fluxo contínuo do êxodo rural, tais como:
a ausência e/ou terra insuficiente para garantia de renda e subsistência familiar, e o
baixo nível de escolaridade da população rural. Frente a está realidade urge a tomada
de providências para a manutenção da linha sucessória dos pequenos produtores rurais
de modo a atender as reais demandas e singularidades dos mesmos.
Palavra-chave: Mundo rural. Pequeno produtor rural. Linha sucessória. Políticas
públicas.

ABSTRACT: The article aims to reflect about small farmer succession line. Rural
field it is an important national development representative, although young farmers
migration threatens the continuity of the hereditary succession line. Theoretical data
analysis developed looking at historical criticism. Some factors helps to the continuous
rural exodus flow, such as: absence or not enough land for family profiting, and lower
levels of education. Facing this reality it is urgent acting for maintaining small farmers
succession line attending real demands and singularities.
Key Words: Rural world. Small farmer. Succession line. Public policy.  

Introdução

O presente artigo objetiva em uma perspectiva histórico


crítica analisar a linha sucessória do pequeno produtor rural em
regime de economia familiar. Para tal intento realiza-se o resgate

1
Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá, UEM, Maringá,
Brasil. E-mail: huamamaximo@gmail.com.
2
Docente adjunto do departamento de ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá,
UEM, Maringá, Câmpus Regional Vale do Ivaí, CRV, PR, Brasil. E-mail: elizetecsilva2007@
gmail.com.

45 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
histórico do pequeno produtor, bem como, conceitua-se a linha
sucessória. Após essas abordagens, reflete-se sobre a problemática
atual da continuidade das atividades laborativas de pequenas
unidades produtivas, realizadas por pequenos produtores e família.
Historicamente a agricultura familiar é responsável pela
produção de gêneros alimentícios variados que compõe a cesta
básica dos trabalhadores urbanos e rurais, e também, “[...] a
agricultura familiar produz, gera novos agricultores familiares
[...]” (ABRAMOVAY et al., 1998, p. 35).
A partir da segunda metade do século XX, o tradicional
regime de minorato3 no campo enfraqueceu e a obrigação moral
de continuidade da linha sucessória perdeu sua força. O persistente
êxodo rural iniciado no século XX ameaça à continuidade da
agricultura familiar.
O sistema de concentração de terras estabelecido com a
colonização do país, por meio dos latifúndios, simboliza a gênese
do êxodo rural em razão de ser um dos fatores que contribuem para
o rompimento da linha sucessória do pequeno produtor rural. A
ausência de terra suficiente para atender a totalidade de membros
que compõem a linha sucessória do pequeno produtor rural,
dificulta a geração de renda para o atendimento das necessidades
básicas, além, do baixo nível de escolaridade que impossibilita
3
No século XX, sucedia no meio rural o regime de sucessão hereditária denominado
de minorato, o qual, gradativamente perdeu força, ou seja, a obrigação moral em dar
continuidade nas atividades laborativas nas unidades produtivas familiares, bem como de
cuidar dos progenitores na velhice, função que era desempenhada pelo filho mais jovem.
O tradicional regime de minorato enfraqueceu-se no mundo rural em virtude de crises
cíclicas ocorridas a partir da década de 1930, em consequência de mudanças na direção
da política econômica que incentivou o desenvolvimento industrial, o qual, demandou
forças produtivas do setor agrário, bem como, a partir da década de 1960 em decorrência
da “modernização conservadora da agricultura” que em virtude de introdução de máquinas
agrícolas, assistência técnica entre outros, assim como, a partir da década de 1990, com
o avanço científico e tecnológico, que reduziu consideravelmente a demanda de força de
trabalho no campo (ABRAMOVAY et al., 1998).

46 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
a implementação de projetos rurais que propiciem a ampliação
de renda. Sendo assim, as questões: terra, renda e baixo nível de
escolaridade são os fatores centrais que impulsionam a migração
de jovens rurais para a zona urbana.
A questão sucessória é um fator relevante e deve ser
considerado pelas autoridades competentes. “O que está em jogo
neste processo, mais que o futuro de certas empresas e famílias, é
o próprio destino de boa parte das regiões que hoje passam por
processos severos de êxodo rural [...]” (ABRAMOVAY et al., 1998,
p. 17). A permanência da linha sucessória significa para as regiões
com economia voltada ao setor agropecuário, o desenvolvimento e
o futuro das mesmas. Frente aos desafios do êxodo rural do jovem,
torna se necessário planejar, desenvolver, aprimorar e efetivar
políticas públicas voltadas ao setor agrário com o pressuposto de
permanência do jovem rural no campo.

Histórico e Conceito de Linha Sucessória

De acordo com o Silvestro et al., (2001) a linha sucessória


dos pequenos produtores rurais no mundo rural, constitui-se
pelos filhos desses trabalhadores rurais que realizam atividades
laborativas em pequenas unidades produtivas, juntamente
com todos os demais membros da família. “[...] São jovens
que adquiriram experiência de gestão do negócio familiar, que
conhecem as principais técnicas produtivas e os mais importantes
canais de obtenção de financiamentos e acesso aos mercados [...]”
(SILVESTRO et al., 2001, p. 21).
Os pais transmitem o legado à linha sucessória, ou seja,
aos seus jovens filhos, são transmitidos de geração a geração os
conhecimentos e experiências sobre o fazer profissional, bem

47 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
como a gestão do negócio. As experiências transmitidas pelos
pais aos jovens trabalhadores rurais sobre a administração da
unidade produtiva, as técnicas de cultivo da terra e o manejo
dos animais, assim como a dinâmica da comercialização dos
produtos agrícolas no mercado e, os condicionantes para a
obtenção de financiamentos são efetuados na prática cotidiana,
com o intuito de, entre outros, injetar recursos financeiros na
pequena propriedade rural e, com isso, aumentar a produção e a
produtividade agrícola (SILVESTRO, et al., 2001).
Os jovens rurais são os filhos dos pequenos produtores
que executam atividades laborativas, juntamente com os demais
membros da família em regime de economia familiar. “[...] O
jovem rural é o dependente, aquele que ainda não é proprietário
de terra, e que se insere, normalmente como um agregado/
subordinado do pai [...]” (PUNTEL; PAIVA; RAMOS, 2011,
p. 9-10 grifo do autor). Os trabalhadores rurais que possuem
uma pequena propriedade rural, ou seja, tem a posse dos meios
de produção, transmitem o conhecimento das técnicas de gestão
da unidade produtiva aos seus filhos agregados, os quais são seus
dependentes.
Para Abramovay et al., (1998) historicamente, a agricultura
familiar foi responsável pela produção de gêneros alimentícios
variados, que compunham uma cesta básica de qualidade com
custo acessível para os trabalhadores rurais e urbanos, mas
também foi responsável pela produção de sua linha sucessória.
“Em suma, o processo sucessório e a formação de nova geração
de agricultores parece obedecer a uma espécie de automatismo:
a agricultura familiar produz, gera novos agricultores familiares
[...]” (ABRAMOVAY et al., 1998, p.35). No processo sucessório
no meio rural, a formação da linha sucessória de agricultores

48 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
familiares para as próximas gerações tem por responsável, o
próprio produtor familiar.
A transmissão da gestão da unidade familiar à linha
sucessória, ou seja, aos descendentes dos pequenos produtores
rurais, resultam em uma nova geração de agricultores familiares,
que ocorre, por meio de um processo social composto de três
elementos: “sucessão profissional, transferência hereditária e
aposentadoria: em torno destes termos é que se desenrolam os
processos sociais por que passa a formação de uma nova geração de
agricultores. Trata-se reconhecidamente de tema pouco estudado
entre nós [...]” (ABRAMOVAY et al., 1998, p.15).
Quanto aos três elementos que compõem a transmissão
da gestão da unidade familiar à linha sucessória, o autor et al.,
(1998, p. 15) esclarece que: a sucessão profissional refere-se a
transmissão das atividades laborativas que sucede paulatinamente
ao descendente, que torna-se o responsável pela administração
da pequena propriedade rural. A transferência hereditária diz
respeito à transmissão da unidade produtiva e de sua gestão aos
descendentes, ou seja, aos filhos dos pequenos produtores rurais.
Ressalta-se que são os pais, que decidem o momento apropriado
para a transferência da gestão do negócio familiar ao descendente.

O processo sucessório na agricultura familiar está articulado em


torno da figura paterna que determina o momento e a forma da
passagem das responsabilidades sobre a gestão do estabelecimento
para a próxima geração. A transição leva em conta muito mais a
capacidade e a disposição de trabalho do pai do que as necessidades
do sucessor ou as exigências econômicas ligadas ao próprio
desenvolvimento da atividade (ABRAMOVAY et al., 1998, p. 66).

A transferência da gestão da pequena propriedade rural


ao sucessor hereditário se estabelece no momento em que o

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pai determina como adequado, levando em consideração sua
capacidade para continuar a frente da gestão da unidade produtiva.
Silvestro et al., (2001) ressaltam que “[...] na agricultura
familiar, a sucessão aparece como tema de foro íntimo diante do
qual as famílias tomam decisões sem qualquer tipo de orientação
profissional [...]” (p.26), e ainda que a “[...] dimensão de cada
negócio não permite um corpo de assessores voltados a esta
finalidade [...]” (p. 26). A escolha do sucessor é realizada na
intimidade da família, sendo contrária às empresas comerciais e
urbanas, nas quais a escolha do gestor é realizada racionalmente
por meio de seleção do profissional com maior qualificação
profissional.
Ainda, segundo Silvestre et al., (2001) a atividade rural
desenvolvida por pequenos produtores rurais em regime de
economia familiar possui algumas características intrínsecas:
“[...] a maior parte da agricultura contemporânea não se apóia na
separação entre negócio e família. Além disso, o local de residência,
na maior parte das vezes, se confunde com o local de trabalho [...]”
(p. 25-26). A maioria das pequenas propriedades rurais, ao mesmo
tempo em que serve de residência aos trabalhadores rurais é o
seu meio de produção, ou seja, o local em que o trabalhador rural
efetua o labor profissional e a produção agrícola é o mesmo em que
reside. Cumpre ressaltar que as pequenas unidades produtivas são
relevantes à região, devido a “[...] importância social, econômica
e territorial das unidades de produção familiar (SILVESTRO et
at., 2001, p. 26).
Historicamente, até a década de 1960, em todo o território
brasileiro, a sucessão hereditária era realizada por meio do processo
dominante à época, denominado de minorato. Neste, os pequenos
produtores rurais transferiam as atividades laborativas, bem como
a propriedade rural ao descendente mais jovem.

50 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
Pela instituição do minorato (também chamado de ultimogenitura)
pelo qual a terra paterna é transmitida ao filho mais novo que,
em contrapartida, responsabiliza-se por cuidar dos pais durante a
velhice [...] (ABRAMOVAY et al., 1998, p. 28).

Neste modo de sucessão, quando os pais decidiam deixar


o labor no campo, o filho mais novo assumia a propriedade rural,
bem como, a gestão do negócio familiar, no entanto, o sucessor
tinha como atribuição cuidar dos progenitores até o findar de
seus dias.
Quando no regime de minorato, a atividade rural
desempenhada na pequena propriedade rural tinha como
pressuposto, antes da transferência ao sucessor, o sustento de todos
os membros da família, “[...] o fato é que, enquanto a sucessão não
se concretizava, a unidade produtiva fornecia sustentação seja para
compra de outros lotes, seja para apoiar os mais velhos na busca
de terra em regiões de fronteira [...]” (ABRAMOVAY et al., 1998,
p. 30). Assim, os mesmos ficariam colocados quando formassem
uma nova família. Porém, quando não era possível realizarem a
compra de terra, ajudavam com apoio financeiro para que fossem
em busca de melhores condições de vida em outras localidades.
Na década de 1960, com o enfraquecimento do tradicional
regime referenciado, bem como, em virtude da exclusão ao acesso
tecnológico e científico, a agricultura familiar passou por algumas
dificuldades, tais como: dificuldades de aquisição de novos
lotes de terra destinados aos filhos mais velhos dos pequenos
produtores rurais no momento em que os mesmos constituíam
as suas próprias famílias, assim como, a ausência de interesse dos
jovens filhos de trabalhadores rurais em prosseguirem com as
atividades desenvolvidas por seus progenitores. Para Abramovay
et al., (1998, p. 36, grifo do autor), tal questão é compreendida

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quando a formação de novos agricultores familiares perde a
naturalidade na sociedade, surgindo o que pode-se denominar
de: “[...] questão sucessória: é quando a formação de uma nova
geração de agricultores perde a naturalidade com que era vivida
até então pelas famílias, pelos indivíduos envolvidos nos processos
sucessórios e pela própria sociedade”.
Ressalta-se que com o findar do dever moral dos filhos dos
trabalhadores rurais no prosseguimento das atividades laborativas
e na gestão da propriedade rural, nem todos os jovens rurais
obtiveram as condições necessárias para a escolha livre e soberana
de outra profissão (SILVESTRO et al., 2001).
Em razão de a pequena propriedade rural possuir reduzida
dimensão de terra, e em geral necessitar de apenas um gestor, ou
seja, de um sucessor, o labor executado no campo é distinto ao
que se é estabelecido na zona urbana, “[...] diferentemente do
que ocorre num grande empreendimento fundado no emprego
assalariado, a agricultura familiar não pode cindir sua gestão entre
dois ou mais irmãos sucessores [...]” (p.19). Em decorrência da
dimensão de terra ser insuficiente para a sobrevivência de mais
de uma família em uma mesma unidade produtiva, a gestão cabe
somente a um sucessor e, caso venha a dividi-lá, “[...] ela perde
o tamanho mínimo que lhe permite viabilidade econômica [...]”
(p.19). Esse é um dos fatores que faz com que o jovem agricultor
emigre para outra região agrícola ou mesmo para a zona urbana
(ABRAMOVAY et al., 1998).
Na contemporaneidade os jovens filhos de pequenos
produtores rurais, analisam as perspectivas, bem como, as opções
profissionais e de renda tanto no meio rural, quanto, na zona
urbana.

52 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
As condições de oferta de trabalho e renda, no campo e nas cidades,
são avaliadas pelos jovens rurais e influenciam sua intenção de sair
ou permanecer na terra. Os que estão próximos a cidades com
boas ofertas de trabalho tendem a deixar o campo (LIMA et al.,
2013, p. 44).

Eles comparam as duas opções, para decidir se permanecerão


na terra dando continuidade a linha sucessória hereditária, ou se
irão à busca de outras oportunidades profissionais na zona urbana.

Fatores que contribuem para o rompimento da linha sucessória


do pequeno produtor rural

Segundo Silvestre et al., 2001, o persistente êxodo


rural visualizado no século XX é “[...] um dos problemas mais
desdenhados da circunstância social das populações do campo:
os impasses sociais da sucessão hereditária na agricultura familiar
[...]” (p. 6), além de representar uma ameaça à continuidade
da agricultura familiar responsável pela pequena produção
agropecuária relevante para composição de cesta básica de
qualidade e com preço acessível aos trabalhadores urbanos e
rurais. Ainda para os autores “[...] Esse problema constitui uma
das consequências da dinâmica fundiária concentracionista do
sistema fundiário, que pede uma política continuada, corajosa e
persistente de correção e revisão [...]” (p.6).
Ao resgatar a gênese do êxodo rural, constata-se que o
mesmo resulta de um sistema de distribuição de terras instituído
na colonização, o qual permitiu a concentração de terras nas
mãos de poucos, “[...] o regime de propriedade constituído
historicamente a partir da valorização do latifúndio conspira
todo o tempo para privar de terras e de meios a família rural

53 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
e seu mundo” (p.6). O mesmo avulta-se a partir da década
de 1930, com o direcionamento da política econômica ao
desenvolvimento da industrialização, quando iniciou o fluxo de
êxodo rural para atender a demanda de força de trabalho ao capital
industrial, e agravou-se na segunda metade do século XX, com
a implementação da modernização conservadora da agricultura,
destinada aos latifúndios, bem como, em decorrência da entrada de
tecnologia científica e assistência técnica aos meios de produção,
o que ocasionou a gradativa expulsão de parte dos trabalhadores
rurais do campo (SILVESTRO et al., 2001, p.6).
Segundo Puntel, Paiva e Ramos (2011) a modernização
conservadora da agricultura não abarcou todas as regiões do
território brasileiro. “O meio rural brasileiro sofreu grandes
transformações tecnológicas ao longo das últimas décadas,
contudo inúmeras regiões ficaram aquém do desenvolvimento
almejado [...]” (p.2). A referida modernização conservadora
apresenta singularidades regionais tanto em relação à introdução
tecnológica e científica em busca de altos índices de produtividade
agrícola, quanto ao acesso a serviços e as políticas públicas
tais como: saúde e educação, entre outras. Nas regiões que
apresentam maior precariedade de acesso a serviços e às políticas
públicas sociais, além de que: “[...] este fator tenha influenciado
significativamente para a reorganização das relações sociais e
à expulsão de trabalhadores rurais de seu meio, acentuando a
precariedade das condições de vida no campo [...]” (p.3), existe
um índice significativo de jovens agricultores que desistiram
da atividade rural e migraram para a zona urbana em busca de
melhores condições de vida (PUNTEL; PAIVA; RAMOS, 2011,
p. 2-3).

54 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
O cenário de migração para a zona urbana sucedeu ao longo
do século XX e perpassa o século XXI, com um fluxo contínuo de
êxodo rural para a zona urbana, o que altera o cenário demográfico
no setor agrário, principalmente em relação à população jovem
rural e, mais significativamente em relação ao elevado índice de
moças, se comparado ao dos rapazes. Com um número reduzido de
mulheres no campo, aumenta-se a probabilidade de continuidade
do êxodo rural, devido aos homens jovens do campo ir à busca de
companheiras na zona urbana, tal fator provoca o envelhecimento
da população no campo (LIMA et al., 2013, p. 17).
Quanto ao êxodo rural contemporâneo, Abramovay et
AL., (1998) ressalta que o mesmo “[...] atinge hoje as populações
jovens com muito mais ênfase que em momentos anteriores. Ao
envelhecimento acopla-se, mais recentemente, um processo de
masculinização da juventude [...]” (p.15-16, grifo do autor).
Os rapazes são os que mais permanecem na atividade rural,
executando as atividades laborativas em regime de agricultura
familiar.
Outro fator relacionado aos desafios da sucessão hereditária
na zona rural, abordado por Silvestro et al., (2001) refere-se ao
nível de escolaridade. “[...] O impressionante déficit educacional
que os caracteriza – sobretudo aos rapazes que já saíram da escola
– torna este conjunto de conhecimentos tácito e não formais
um importante ativo para a geração de renda [...]” (p. 21). O
conhecimento e as experiências transmitidas de geração a geração
sobre a execução da gestão da pequena propriedade rural, bem
como a prática adquirida no cotidiano, são fundamentais para a
obtenção de renda no meio rural. “[...] A intenção de continuar a
profissão paterna choca-se, entretanto, na maioria dos casos, contra
a exiguidade do tamanho da unidade familiar [...]” (p.22). Em

55 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
razão da pequena propriedade familiar não possuir terra suficiente
para que todos os filhos tenham perspectivas de permanecer no
campo, os jovens trabalhadores rurais migram para a zona urbana.
No entanto, encontram poucas oportunidades de trabalho na
cidade em virtude da falta de qualificação profissional e, em função
do baixo nível de instrução.
Em relação à questão de escolaridade, Lima et al (2013)
afirmam que os jovens rurais que possuem um nível maior
de instrução são os que mais migraram para a zona urbana
em busca de outras oportunidades de trabalho. “[...] Se esta
tendência continua, então permanecerão no campo apenas os
de menor capacidade para a produção agrícola sustentável [...]”
(p.41). Os jovens remanescentes são os que possuem um nível de
instrução inferior, esse fator contribui para que haja dificuldade
da consolidação e ou sucessão na agricultura familiar.
Neste contexto, os principais fatores que fazem com
que os jovens filhos de pequenos produtores rurais, encontrem
dificuldades para permanecer no campo e, dar prosseguimento
na profissão, de acordo com Silvestro et al., (2001) são de: “[...]
81% dos rapazes apontaram a falta de capital para investimento,
40% a falta de novas oportunidades de renda e 30% a falta de
terra” (p.44). O capital financeiro sobressai, com um percentual
significante, em decorrência que o investimento quando realizado
na propriedade rural possibilitar a produção diversificada de
produtos agropecuários. O segundo fator é a necessidade de
outras oportunidades de renda, além da fonte advinda da venda
de produtos primários produzidos nas unidades produtivas. Por
fim, o terceiro fator é a falta de terra, ferramenta necessária ao
modo de produção agropecuária.
Segundo Abramovay et al., (1998), na contemporaneidade
considera-se globalmente três trajetórias de pequeno produtor

56 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
rural em regime de agricultura familiar, “[...] com base na qual
são apenas um ponto de partida para entender as dinâmicas de
inserção e os potenciais dos diferentes setores sociais e não um
critério definitivo para classificar os agricultores [...]” (p. 24). Com
o entendimento das três trajetórias reconhecidas globalmente de
pequenos produtores rurais em regime de agricultura familiar,
ou seja, de trabalhadores rurais que executam as atividades
laborativas conjuntamente com os membros de sua família. Sendo
que cada uma das três trajetórias de pequenos produtores rurais
apresentam condições socioeconômicas distintas, ou seja, com
renda per capita diferente. Considera-se a primeira trajetória, os
que possuem renda per capita inferior a um salário mínimo, por
membro ativo no campo; a segunda trajetória é composta por
aqueles que possuem renda per capita que pode ocorrer variação
entre um a três salários mínimos, e a terceira trajetória compõem-
se dos que possuem renda acima de três salários mínimos por
trabalhador ativo na zona rural. Ressalta-se que na última
trajetória, devido maior poder aquisitivo e consequentemente,
maior estabilidade econômica do pequeno produtor, a migração
dos jovens provenientes da mesma é bem menor, se comparado
com as demais trajetórias.
Os autores ressaltam que, com o entendimento da dinâmica
socioeconômica existente entre os pequenos produtores rurais em
regime de economia familiar, será possível a compreensão das
desigualdades sociais existentes entre as três trajetórias de pequenos
produtores rurais, bem como, o movimento socioeconômico no
mundo rural. No entanto, o critério utilizado de renda per capita
pode ser alterado, caso uma das três trajetórias alcance um valor
superior ou inferior por trabalhador rural em regime de economia
familiar. Caso ocorra mudança na política econômica de modo

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favorável e ou desfavorável ao desenvolvimento econômico voltado
ao setor agrário, pode ocasionar mudanças nas três trajetórias no
fator renda per capita, por isso o caráter provisório das trajetórias,
ou seja, os pequenos produtores rurais podem conseguir uma
remuneração maior ou menor dependendo da política econômica
(ABRAMOVAY et al.,1998).
De acordo com Silvestro et al., (2001), há três categorias de
pequenos produtores rurais, a primeira delas são os denominados
agricultores capitalizados “[...] são representados por aquelas
unidades cuja atividade agrícola tem possibilitado a reprodução
da família e também um certo nível de investimento e acumulação
[...]” (p. 34), bem como executam as atividades laborativas em
pequenas propriedades rurais e, atingem uma remuneração em
Valor Agregado VA4, acima de três salários mínimos.
A segunda categoria de pequenos produtores rurais
são os intitulados em transição, esses não conseguem realizar
investimentos nas pequenas unidades produtivas e, são “[...]
ascendente ou descendente, dependendo das políticas a eles
direcionadas. Neste grupo estão incluídos aqueles estabelecimentos
que proporcionam um valor agregado [...]” (p.34-35), que varia
por trabalhador ativo entre um e três salários mínimos mensais.
A terceira categoria de pequenos produtores rurais são os
denominados agricultores descapitalizados. “[...] Neste grupo,
incluem aqueles estabelecimentos que proporcionam um valor
agregado menor que um salário mínimo por mês por pessoa
4
Segundo o autor, o Valor Agregado (VA), é o resultado da subtração do valor bruto da
produção agrícola relativo a colheita de safra, referente ao período anual, ou seja, o valor
adquirido sobre a comercialização do excedente de produção agrícola, menos os gastos com
a aquisição de insumos agrícolas para a realização do plantio de safra, a sobra da subtração
representa a margem bruta mais o consumo interno da propriedade, ou seja, os gêneros
alimentícios produzidos na propriedade rural e consumidos pelos trabalhadores rurais
para a subsistência da família do pequeno produtor rural, esse valor seria a remuneração
pelo labor de cada trabalhador rural ativo na propriedade rural (SILVESTRO., 2001).

58 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
ocupada [...]” (p.35) Esta categoria de pequenos produtores
rurais possui dentre as três, o menor Valor Agregado (VA), sendo
considerados fragilizados (SILVESTRO et al., 2001).
Apesar de o jovem rural executar atividades laborativas
juntamente com os demais membros da família, como o preparo da
terra, o plantio e os cuidados necessários para o desenvolvimento
da lavoura e a colheita da mesma, e participar de todos os processos
de produção agrícola, no momento da comercialização do
excedente é o arrimo da família quem a realiza, bem como, é ele o
responsável por guardar e empregar o dinheiro, fruto do trabalho
de todos. Tradicionalmente o jovem rural não possui autonomia
sobre a remuneração do seu trabalho, esse fator contribui para que
o mesmo fique desestimulado a permanecer no campo (LIMA
et al., 2013, p.63).
Outro fator que ocasiona a migração, principalmente
dos jovens filhos dos agricultores descapitalizados para a zona
urbana é a perspectiva de conseguir uma melhor remuneração
pelo trabalho executado.

Mas, seria um exagero dizer que a profissão passa a ser uma escolha
livre e soberana. Em primeiro lugar, o nível educacional de muitos
dos rapazes é tão baixo, que reduz fortemente suas chances de
inserção no mercado de trabalho urbano. Por outro lado, entretanto,
entre os agricultores de menor renda, o horizonte produtivo é
tão precário – em virtude da escassez e da má qualidade da terra,
antes de tudo – que o mercado de trabalho urbano será muitas
vezes mais promissor, apesar de seus riscos e suas dificuldades [...]
(SILVESTRO et al., 2001, p. 28).

Para os autores, no tocante a profissão, o jovem rural


pertencente às famílias de pequenos produtores rurais
descapitalizados, nem sempre tem a opção de escolha. Alguns

59 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
jovens rurais possuem um nível educacional tão baixo, que
reduz em muito suas possibilidades de inserção no mercado de
trabalho urbano. No entanto, em razão da dificuldade de acesso
a terra, a qual, em muitos casos é de má qualidade, reduz-se
consideravelmente a produção agrícola e, consequentemente, a
remuneração pelo labor.
Um fator relevante que também ocasiona a migração dos
jovens rurais para a zona urbana é a discriminação sofrida.

[...] Outro fator determinante para a saída do jovem do campo,


tanto moças quanto rapazes, é a discriminação. Mesmo na escola
percebe-se que a juventude do campo é tratada de forma diferente.
Essa sensação de exclusão frente à sociedade urbana é um dos
fatores que impulsiona o jovem rural a querer deixar o campo,
urbanizar-se, e passar a ser parte da sociedade urbana [...] (LIMA
et al., 2013, p. 63).

O tratamento diferenciado dispensado aos homens do


campo, inclusive aos jovens rurais, em diversos espaços tanto
público quanto privado, faz com que se sintam discriminados. A
percepção de que está excluído da sociedade, ocasiona o aumento
da migração, principalmente a de jovens para a zona urbana, com
o objetivo de sentir-se pertencente à sociedade.

Atuais desafios na linha sucessória de pequeno produtor rural

Algumas questões devem ser compreendidas considerando


à gravidade do contínuo êxodo rural para com o desenvolvimento,
aprimoramento e efetivação de políticas públicas voltadas ao setor
agrário com o pressuposto de permanência do jovem rural no
campo. Segundo Lima et al., (2013) a questão sobre migração/
permanência é central ao desenvolvimento de alternativas e

60 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
aperfeiçoamentos das políticas existentes. A crescente urbanização
da população brasileira é uma tendência já antiga [...]” (p. 152).
Se, por um lado, na contemporaneidade a zona urbana
propicia melhores condições de vida, o que fortalece o ciclo de
migração de jovens rurais para as cidades em busca de melhores
condições de trabalho e remuneração, por outro a questão da
permanência do jovem rural no campo é uma questão pertinente
e merece ser debatida pela sociedade e seus representantes com o
intuito de obter soluções, no entanto, a escolha pela permanência
no campo é de caráter pessoal e são os próprios jovens rurais,
que decidem buscar oportunidades de vida fora do mundo rural
(LIMA et al., 2013).
Dentre os principais desafios que a linha sucessória enfrenta
para o prosseguimento das atividades laborativas cita-se: o acesso
a terra, a baixa remuneração e, a burocracia para a obtenção de
empréstimos agrícolas, esses com o intuito de realizar melhorias
na propriedade rural, diversificar a produção e aumentar a
produtividade. Estes principais fatores devem ser considerados
pelas autoridades competentes ao realizar o planejamento de
políticas públicas voltadas ao setor agrário (PUNTEL; PAIVA;
RAMOS, 2011).
O entendimento do ciclo de migração dos jovens
trabalhadores rurais para a zona urbana é um fator, “[...] que
deveria ser mais bem entendido, em suas causas e consequências,
que permitissem identificar alternativas que possibilitassem um
desenvolvimento mais harmônico do campo e das cidades [...]”
(LIMA. et al., 2013, p. 18). A migração provoca o envelhecimento
da população do campo, devido não haver suficiente renovação
dos trabalhadores rurais. A mesma reduz os jovens trabalhadores
rurais no campo, os futuros sucessores, que darão continuidade

61 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
ao trabalho e a agricultura familiar. Somente com a compreensão
das causas, será possível o planejamento de políticas públicas
direcionadas ao setor agrário e a sua efetivação contribuindo,
assim, para um desenvolvimento harmonioso entre campo e
cidade.
A permanência da linha sucessória dos pequenos produtores
rurais no campo significa para as regiões com economia voltada
ao setor agropecuário, o desenvolvimento e o futuro das mesmas.

A questão sucessória no campo não pode ser encarada estritamente


como um tema microeconômico da administração empresarial.
O que está em jogo neste processo, mais que o futuro de certas
empresas e famílias, é o próprio destino de boa parte das regiões
que hoje passam por processos severos de êxodo rural [...]
(ABRAMOVAY et al., 1998, p. 17 grifo autor).

A questão sucessória é um fator preocupante que atinge


as famílias dos pequenos produtores rurais, em razão do fluxo
contínuo de migração que abrange aos jovens rurais e, ameaça
tanto o processo sucessório hereditário, quanto o desenvolvimento
das regiões em que se localiza a propriedade.
Segundo Silvestro et al., (2001) os filhos de alguns
pequenos produtores rurais que migraram para a zona urbana,
pertencentes a categoria denominada de transição, bem como os
descapitalizados, enviam recursos financeiros para os progenitores.
“[...] É importante salientar que 22% das propriedades – todas
pertencentes ao segmento em transição e descapitalizadas –
têm renda proveniente da aposentadoria e também recebem
recurso dos filhos que estão fora [...]” (p.99-100). As pequenas
propriedades rurais pertencentes aos pequenos produtores rurais
denominados em transição e os descapitalizados, geram poucos

62 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
recursos financeiros com a produção agrícola. Sendo assim, as
rendas advindas de aposentadoria por idade na condição de
segurado especial, e a ajuda financeira enviada pelos filhos são de
extrema importância para a renda familiar:

[...] a renda da aposentadoria e os recursos financeiros enviados pelos


filhos são fundamentais à manutenção familiar, bem como para
realizar pequenos investimentos na propriedade, como por exemplo,
a compra de uma vaca, a construção ou ampliação de pequenas
instalações e até a aquisição de equipamentos [...] (SILVESTRO
et al., 2001, p. 100).

A aposentadoria por idade dos trabalhadores rurais e a


ajuda financeira enviada pelos jovens rurais que migraram para a
zona urbana, são recursos financeiros importantes também para
a economia local, devido, o provento previdenciário e a ajuda
recebida dos filhos fazer girar a referida economia, por meio da
aquisição de gêneros alimentícios, de insumos agrícolas e/ou
implementos agrícolas (SILVESTRO et al., 2001).
Um fator fundamental para a permanência do jovem rural
no campo é o acesso ao meio de produção, a terra, que em alguns
casos também é, o local de residência da família do pequeno
produtor rural. O acesso à terra de modo geral, ocorre por meio
de herança, compra, concessão, contrato de uso da terra, entre
outros, e “[...] é central para a agricultura familiar, pois da terra
depende a produção rural para o autoconsumo e, ainda a venda de
excedentes em mercados locais [...]” (LIMA et al., 2013, p. 26). A
permanência do jovem rural no campo depende necessariamente
do acesso a terra, que comumente representa um bem material
precioso, em razão de propiciar o desenvolvimento da atividade
agropecuária.

63 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
Para Lima et al., (2013) um outro desafio à sucessão
hereditária no campo é a acessibilidade a uma educação de
qualidade, que possibilite qualificação profissional aos jovens
rurais. “Por outro lado, ao melhorarem as condições de educação,
pelo menos uma parcela dos que hoje estão dispostos a ficar no
campo partirão para as cidades, em busca de melhor trabalho e
remuneração [...]” (p.41). O acesso à educação representa duas
opções: permanecer na propriedade rural colocando em prática
projetos agrícolas que possam garantir uma melhor lucratividade
ou, migrar para a zona urbana em busca de outras oportunidades
de trabalho e de vida.
O acesso dos jovens rurais a educação de qualidade, é um
“[...] direito de todos, e uma vez que se torne o jovem agricultor
(rapaz ou moça) mais capacitado ao desenvolvimento de projetos
agrícolas os ganhos individuais e locais serão sempre positivos
[...]” (p.41). Contudo, se por um lado, o acesso à educação possa
contribuir para que um número significativo de jovens migre
para a zona urbana, por outro lado, possibilita que os jovens
remanescentes possam dar continuidade à atividade rural (LIMA
et al., 2013).
Segundo Silvestro et al., (2001) o baixo nível de instrução
“[...] compromete o próprio exercício de cidadania, na medida
que eles não conseguem sequer ter acesso aos direitos legalmente
constituídos, como por exemplo, a obtenção da condição de
agricultor por meio do “bloco do produtor [...]” (p.106). Este,
trata-se de um instrumento que possibilita a legalização da
condição de pequeno produtor rural, além de ser um documento
de prova plena, solicitado pelo Instituto Nacional de Seguro
Social – INSS, para o acesso ao benefício previdenciário rural
por idade. Conforme os autores “[...] apenas um terço possui

64 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
o “bloco do produtor rural.” Esta proporção é baixa, uma vez
que este documento corresponde a uma espécie de pagamento
previdenciário sem qualquer ônus para a família [...]” (p.60). Esse
dado ressalta a importância do acesso a política de educação,
instrumento facilitador no momento de acesso à aposentadoria
por idade na condição de segurado especial, bem como ao acesso
da cidadania social.
Para que a linha sucessória dos pequenos produtores rurais
possa dar continuidade às atividades laborativas, e mantenha a
tradição da agricultura familiar no mundo rural exige-se dos entes
federados medidas de contenção do contínuo êxodo rural. Entre
as medidas necessárias encontra-se o primado da educação com
qualidade, o qual se requisita dos governos federal, estadual e
municipal que o “[...] façam em condições de qualidade que lhes
permitam tanto capacidade de gestão para o trabalho em uma
propriedade familiar, como a possibilidade de enfrentar os desafios
da inserção fora da profissão agrícola [...]” (p.112). Cabe aos entes
federados o desafio de criar meios necessários de acessibilidade da
política de educação de qualidade a todos os residentes tanto na
área urbana, quanto na rural, especialmente aos jovens, para que os
mesmos tenham capacidade para acompanhar as transformações
do mercado de trabalho urbano e rural.
Na atualidade, os desafios para a continuidade da linha
sucessória dos pequenos produtores rurais ocorrem em razão do
enfraquecimento da cultura tradicional do homem campo.

Desta forma constata-se o problema da questão sucessória na


Agricultura Familiar, que acontece quando a formação de uma nova
geração de agricultores perde a naturalidade e os traços culturais
trazidos de seus antepassados, esbarrando no dilema de escolha
e opção sob os novos padrões da vida no campo. E assim, pela

65 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
insuficiência dos ganhos para manterem seu padrão de consumo,
cada vez mais optam por ocupação em atividades assalariadas,
geralmente nas cidades, o que fortalece a tendência de termos um
rural cada vez mais esvaziado e envelhecido [...] (PUNTEL; PAIVA;
RAMOS, 2011, p. 17).

Os referidos autores consideram que o enfraquecimento do


sistema minorato esmoreceu a cultura tradicional, na qual havia
a obrigação moral dos filhos, em continuar desempenhando o
trabalho no campo em regime de agricultura familiar desenvolvido
pelos pais.
Diante desse cenário, pressiona-se o Estado a se posicionar
e, criar mecanismos por meio de políticas públicas e sociais
revisionarias e de intervenção para frear o ciclo contínuo de êxodo
rural e, garantir a continuidade da linha sucessória das famílias
de trabalhadores rurais.
A política social para o sistema capitalista tem suma
importância, assim como a sua instituição, que se encontra ligada
a conjuntura histórica.

A análise da política social implica, assim, metodologicamente a


consideração do movimento do capital e, ao mesmo tempo, dos
movimentos sociais concretos que o obrigam a cuidar da saúde,
da duração da vida do trabalhador, da sua reprodução imediata
e a longo prazo. É necessário considerar também as conjunturas
econômicas e os movimentos políticos em que se oferecem
alternativas a uma atuação do Estado (FALEIROS, 2009, p. 59).

De acordo com o Faleiros (2009) o desempenho do


Estado em relação ao surgimento das políticas públicas e sociais,
tem como fundamento de análise o movimento histórico, e a
conjuntura econômica, ou seja, a conjuntura socioeconômica
histórica. Com base nesses elementos são estabelecidas políticas

66 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
públicas e sociais, essas de responsabilidade do Estado desde
o planejamento, implementação, execução até a avaliação, bem
como a realização de mediação das demandas sociais criadas pelo
próprio capital, com o intuito de preservar a força de trabalho
rural de suma importância ao desenvolvimento do sistema
capitalista. Sendo assim, as políticas públicas voltadas ao setor
agrário devem almejar frear o contínuo fluxo de êxodo rural que
abrange principalmente a linha sucessória dos trabalhadores rurais
em regime de economia familiar, ou seja, os filhos dos pequenos
produtores rurais.

Conclusão

A força de trabalho dos pequenos produtores rurais em


regime de economia familiar é reconhecida em decorrência
de sua importância econômica e social. Historicamente são os
responsáveis pela produção diversificada de gêneros alimentícios
de qualidade que compõe a cesta básica dos trabalhadores urbanos
e rurais a preços acessíveis, mas também são os responsáveis pela
produção de sua linha sucessória, ou seja, os filhos.
Por outro lado, o êxodo rural que vem abrangendo aos
jovens rurais, ou seja, a linha sucessória dos pequenos produtores,
que hipoteticamente dariam continuidade as atividades
laborativas de seus progenitores, enfraqueceu juntamente com
o esmorecimento do regime de minorato, a partir da década de
1960. Sendo assim, o ciclo contínuo de migração de jovens rurais
ocasiona um vazio demográfico e a estagnação na economia rural,
bem como o envelhecimento da população do campo, em virtude
da não renovação da força de trabalho em razão da migração da
linha sucessória.

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Deste modo, o estudo constatou alguns dos principais
fatores que ameaçam a continuidade da linha sucessória do
pequeno produtor rural, são eles: o baixo nível de instrução,
renda insuficiente e a pequena quantidade de terra que compõe
as unidades produtivas, além de lacunas nas políticas públicas
voltadas a agricultura familiar.
A desigualdade social existente entre a população rural e
a população urbana visualiza-se até mesmo no nível de instrução
dos cidadãos. A lacuna na política de educação prejudica o
desenvolvimento socioeconômico das populações rurais, sendo
um obstáculo à mesma, no reconhecimento do direito à cidadania
social, bem como na dificuldade em usufruir dos direitos: civil,
político e social, ambos intrínsecos a mesma.
Uma parte considerável da linha sucessória, ou seja, os
filhos dos pequenos produtores rurais não possuem qualificação
profissional suficiente para impulsionar o desenvolvimento
de projetos que promovam o desenvolvimento econômico das
unidades produtivas, bem como não estão aptos a competir no
mercado de trabalho urbano, que exige qualificação profissional
continuada e, em virtude do baixo nível de escolaridade acabam
sendo relegados aos postos precários de trabalho. Considera-se
a qualificação profissional necessária tanto no espaço urbano,
quanto no rural, porém, neste, a qualificação profissional propicia
a implementação de projetos voltados ao desenvolvimento
econômico das unidades produtivas e consequentemente,
proporciona a ampliação de renda e a redução da migração rural.
A migração dos jovens rurais e consequentemente, a não
sucessão rural, também está relacionada á falta e/ou insuficiência
de terra, instrumento essencial para o desempenho do labor. Os
jovens rurais ao constituírem uma nova família não possuem terra

68 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
para que possam gerar renda suficiente para a sobrevivência e
reprodução social do novo núcleo familiar.
Em decorrência da gestão da unidade produtiva ser
desempenhada pelo progenitor, que também determina como
será administrado o recurso financeiro adquirido por todos os
membros da família, ocasiona frustração aos jovens rurais que
nem sempre são remunerados pelo trabalho executado.
Frente ao quadro apresentado, considera-se que cabe aos
representantes dos trabalhadores rurais no Congresso Nacional e
em especial, a bancada ruralista assumir o compromisso firmado
com o setor agrário, bem como, reavaliar e propor a reestruturação
nas políticas públicas voltadas ao mundo rural, de modo a atender
as reais demandas e singularidades dos trabalhadores rurais, em
especial, aos de economia familiar, de modo a contribuir com
a continuidade da linha sucessória dos pequenos produtores
rurais no campo, indispensáveis ao sistema capitalista. Caso
hipoteticamente persista a migração de jovens rurais, poderá
ocorrer a redução da produção agrícola e um encarecimento no
custo da manutenção da força de trabalho tanto urbana, quanto
rural, fundamentais para o desenvolvimento do país.

Referências

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novos padrões. Brasília, DF: Unesco, 1998.

LIMA, S. M. V. et al. Juventude rural e as políticas e programas de


acesso à terra no Brasil: recomendação para políticas de desenvolvimento
para o jovem rural. Brasília, DF: MDA, 2013.

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PUNTEL, A. J.; PAIVA, C. À. N.; RAMOS, M. P. Situação e
perspectiva dos jovens rurais no campo. In: CIRCULO DE DEBATES
ACADÊMICOS, 1., 2011, Brasília, DF. Anais... Brasília, DF: IPEA,
2011. p. 20.

SILVESTRO, M. L. et al. Os impasses sociais da sucessão hereditária


na agricultura familiar. Florianópolis: Epagri; Brasília, DF: Ministério
do Desenvolvimento Agrário, 2001.

70 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 45-70 – jul./dez. 2018
MELANCOLIA E MORTE EM A LA DERIVA
E EL ALMOHADÓN DE PLUMAS,
DE HORACIO QUIROGA

Gustavo Figliolo1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo traçar as marcas enunciativas da categoria
da melancolia, conforme a teoria psicanalítica freudiana, em dois contos do escritor
uruguaio Horacio Quiroga: A la deriva e El almohadón de plumas. É possível detectar
em ambas histórias uma narrativa em que os estados de alma melancólicos produzem
um desenlace trágico com a morte como resultado final. É o que pretende mostrar este
trabalho.
Palavras-chave: Melancolia; Morte; Horacio Quiroga.

ABSTRACT: This article aims to delineate the enunciation marks of melancholy,


as stated by Freudian psychanalytic theory, in Horacio Quiroga’s A la deriva and El
almohadón de plumas short stories. It is possible to detect in both stories a narrative in
which melancholic states of mind produce a tragic outcome with death as a result. This
is what this work intends to show.
Key-words: Melancholy; Death; Horacio Quiroga.

Introdução

Entre outras categorias, a Teoria Psicanalítica trata de


dois aspectos da vida psíquica conhecidos como os processos de
luto e da melancolia; eles são similares, afecções paralelas, mas
não iguais. O luto é a reação à perda de um ser amado ou de uma
abstração equivalente, como podem ser a liberdade, a pátria (pelo
exílio), ideais etc. Traz normalmente desvios da conduta normal,
porém não é considerado um estado patológico; após certo
tempo é superado e não é conveniente, e é até contraproducente,
perturbá-lo. Os traços intrapsíquicos que manifesta o luto são
um desânimo profundamente doído, cessação do interesse pelos

1
Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina.

71 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
acontecimentos do mundo exterior, a perda da capacidade de
amor e a inibição de toda produtividade. O eu (ego) entrega-
se de tal maneira ao processo que se produz uma quase total
restrição que não dá lugar a outros propósitos ou interesses. No
luto, o princípio da realidade mostra que o objeto amado não
mais existe e demanda que a libido rompa todo vínculo com
ele. É bom lembrar que o princípio de realidade é o contraposto
do princípio do prazer. Este último é comandado pelo id, que
mediante seus impulsos buscam o prazer e a evitar a dor, na
medida que as sensações são definidas pela própria natureza do
organismo. Ao defrontar-se com as demandas do meio, porém,
o sujeito precisa gradualmente redirigir os impulsos do id, de
modo que estes sejam satisfeitos dentro do princípio da realidade.
Neste estado de coisas, é possível que surja um desconhecimento
ou estranhamento da realidade e se conserve o desejo do objeto
mediante uma psicose alucinatória de desejo, mas o normal é que
o exame da realidade prime. De qualquer maneira, resulta em
um processo levado a cabo de maneira paulatina, muitas vezes
demorada, com um grande gasto de energia de carga libidinal e
continuando a existir na consciência o objeto perdido enquanto
o processo dura. Os pontos de contato da libido com o objeto são
repetidamente acessados e rejeitados (pela não existência atual
do objeto, conforme o princípio de realidade), acontecendo uma
subtração sucessiva da libido com um consequente desprazer, até
que o eu fica livre da carga libidinal e de toda inibição voltando
ao estado normal anterior ao processo. Um ponto importante diz
respeito à ambivalência emocional, isto é, as pulsões de vida e de
morte existentes em toda instância psíquica, o amor e ódio que
despertam o objeto de desejo, que Freud denominou de Eros e
Tanatos: no processo de luto, as cargas libidinais são reduzidas até

72 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
cessarem ora pela ira que culpa o objeto de não mais aí estar, ora
por não considerar mais o objeto como algo de valor. Conforme
Mannoni (1995, p. 91), “o trabalho de luto consiste, assim, num
desinvestimento de um objeto, ao qual é mais difícil renunciar
na medida em que uma parte de si mesmo se vê perdida nele”.
Diferentemente do luto, a melancolia tem características
parecidas, mas ao mesmo tempo bem diferentes, principalmente,
quanto ao deslocamento da energia pulsional (libido) para o objeto
investido (“catexiado”).
Roudinesco e Plon definem a melancolia nos seguintes
termos:

Termo derivado do grego melas (negro) e kholé (bile), utilizado


em filosofia, literatura, medicina, psiquiatria e psicanálise para
designar, desde a Antiguidade, uma forma de loucura caracterizada
pelo humor sombrio, isto é, por uma tristeza profunda, um estado
depressivo capaz de conduzir ao suicídio, e por manifestações de
medo e desânimo que adquirem ou não o aspecto de um delírio
(ROUDINESCO E PLON, 1977, p. 505).

A melancolia comporta um estado de ânimo profundamente


doloroso, com igual perda de interesse pelo mundo exterior,
inibição das funções e perda da capacidade de amar como no luto,
mas com o acréscimo de uma diminuição do amor próprio, da
autoestima. Este último estádio se traduz em recriminações que
o sujeito faz para consigo mesmo e pode até acarretar, inclusive,
a espera de um autocastigo. A melancolia constitui, em alguns
casos, a reação à perda de um objeto amado, mas essa perda tem
uma natureza mais ideal: o objeto de amor não morre, mas se
perde como objeto erótico. Em outras ocasiões, o sujeito não
sabe exatamente o que se perdeu, e jaz aqui a grande diferença
com o luto: neste, a perda é sentida (captada) pela consciência;

73 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
na melancolia, a perda do objeto é inconsciente, a consciência
nada sabe disso, daí a dificuldade para resolver o problema. A
perda do objeto de desejo tem efeito no próprio eu do sujeito que,
diante da perda, em vez de deslocar a libido para outro objeto a
retrai ao eu, permitindo uma identificação deste com o objeto
abandonado, transformando a perda do objeto numa perda do
próprio eu. Este processo tem uma clara base narcisista na eleição
inicial do objeto para que, em caso de qualquer contrariedade, a
carga erótica possa voltar ao eu, daí a identificação deste com o
objeto perdido quando este se perdeu. A identificação narcisista é
a mais primitiva de todas; o problema consiste em que, em casos
de melancolia e devido à ambivalência emocional, as tendências
sádicas e de ódio voltam-se contra o próprio sujeito, o que talvez
permita esclarecer a tendência ao suicídio. Roudinesco e Plon
comentam que:

Enquanto o sujeito, no trabalho do luto, consegue desligar-se


progressivamente do objeto perdido, na melancolia, ao contrário,
ele se supõe culpado pela morte ocorrida, nega-a e se julga possuído
pelo morto ou pela doença que acarretou sua morte. Em suma, o eu
se identifica com o objeto perdido, a ponto de ele mesmo se perder
no desespero infinito de um nada irremediável (ROUDINESCO
E PLON, 1998, p. 507).

No luto, o eu domina o sofrimento da perda do objeto e


arremete libidinalmente contra outros objetos; na melancolia, por
ser um processo inconsciente, não é possível tal tarefa, pois deixa
sequelas, com desenlaces que vão de estados intensos de exaltação
(manias) ao suicídio.
A respeito da enorme sensação de mal-estar que sente o
melancólico, Garcia-Roza faz a seguinte análise:

74 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
Uma outra diferença notável entre a perda objetal que caracteriza
o luto e a que caracteriza a melancolia é que, enquanto no luto é
o mundo que se torna pobre e vazio, na melancolia é o próprio
eu. A desvalorização que o melancólico faz do próprio eu, a
autodegradação, a insistente declaração do quanto é uma pessoa
moralmente desprezível, a facilidade com que se envilece perante os
outros esperando ser expulso ou punido não admitem contestação.
Nada que se diga em sentido contrário é acatado pelo melancólico
ou minora seu sentido de inferioridade (GARCIA-ROZA, 1995,
p. 76).

A melancolia é um estado muito antigo na humanidade,


confundido facilmente com a depressão. De uma ou outra
maneira, constata-se um estado dominante presente em nosso
cotidiano, extremamente atual, no sentido de um “mal-estar
da modernidade”, marcado por uma intensa inibição psíquica
e física, expressando-se em sentimentos de impotência, culpa,
vazio e sofrimento.
Na história da civilização, a melancolia adotou distintos
significados: manifestação de loucura, uma tristeza maligna,
ou até um estado maníaco que resultava em genialidade e em
contato profundo com as verdades sobre a existência. Embora
se apresentando de maneira nebulosa, a melancolia sempre
esteve ligada, de alguma forma, às vivências dolorosas de perda:
frustrações, decepções, desamparo, humilhações, abandono etc.
Assim, é possível reunir todos estes eventos sob o signo de registro
da perda, isto é, aos limites do ser humano frente ao desejo de
controlar e dominar os acontecimentos da existência. O registro
da perda evidencia a impotência e fragilidade do homem e, em
última instância, da civilização, frente à supremacia do destino
(BIRMAN, 2006).

75 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
Para o estudo da melancolia, Freud baseou-se nas assim
chamadas neuroses atuais, ou seja, a neurose de angústia provocada
por uma vida sexual insatisfatória, no atual momento, e não
derivada do recalcamento da resolução do Complexo de Édipo.
Ele constatou que a angústia de seus pacientes estava relacionada
com a sexualidade. O coito interrompido, por exemplo, constitui
fonte de desprazer e angústia, uma angústia não prolongada ou
recordada (mas atual), ao contrário da histeria (do recalcado
na infância). Assim sendo, sua origem deve ser buscada na
esfera física, isto é, um fator físico da vida sexual que produzirá
um acúmulo de tensão sexual por um bloqueio na descarga.
Esse excesso de tensão sexual passa então por um processo de
transformação, surgindo a angústia. A partir deste pressuposto,
Freud vai desenvolver algumas hipóteses sobre melancolia. O
processo tem uma abordagem econômica e mecanicista, centrado
na ideia de represamento ou descarga de energia física e psíquica
(PERES, 2010). Esta ideia toma a forma de uma sensação
“voluptuosa”; diz Freud:

A anestesia, realmente, sempre consiste na omissão da sensação


voluptuosa, que deve ser dirigida para o grupo sexual psíquico após
a ação reflexa que descarrega o órgão efetor. A sensação voluptuosa
é medida pela quantidade da descarga (FREUD, 2006, vol. XIV,
p. 286).

Os melancólicos apresentariam, então, uma espécie de


anestesia psíquica; porém, se na neurose de angústia o bloqueio
é de energia física, no que toca à melancolia há que se pensar em
uma tensão psíquica que não se satisfaz. Os melancólicos, comenta,
são frequentemente anestésicos, não apresentam desejo de coito e
carecem de sensação de prazer, mas tem uma enorme necessidade
de amor. Assim o explica:

76 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
Aqui se pode intercalar algum conhecimento que nesse meio tempo
se obteve acerca do mecanismo da melancolia. Com frequência
muito especial verifica-se que os melancólicos são anestésicos.
Não têm necessidade de relação sexual (e não têm sensação
correlata). Mas têm um grande anseio pelo amor em sua forma
psíquica – uma tensão erótica psíquica (psychischeLiebespannung),
poder-se-ia dizer. Nos casos em que esta se acumula e permanece
insatisfeita, desenvolve-se a melancolia. Aqui, pois, poderíamos ter
a contrapartida da neurose de angústia. Onde se acumula tensão
sexual física – neurose de angústia. Onde se acumula tensão sexual
psíquica (psychischeSexualspannung) – melancolia (FREUD, 2006,
vol. XIV, p. 269).

Freud enumera uma série de sintomas para a melancolia:


apatia, inibição, pressão intracraniana, dispepsia e insônia,
diminuição da autoconfiança, expectativas pessimistas. A
distinção, ainda, entre melancolia e depressão deve-se, segundo
ele, à presença da “anestesia psíquica” na primeira e sua ausência
na segunda. Peres (2010, p. 31), faz a seguinte interpretação das
palavras de Freud:
Freud refere-se a um “buraco na esfera psíquica”,
uma “hemorragia interna”, que se instalaria e produziria um
empobrecimento na excitação. Essa redução, quando intensa,
produziria um retraimento no psiquismo, que por um efeito de
sucção levaria os neurônios associados a abandonar a excitação,
produzindo dor. Quando há excesso de comunicação com os
neurônios associados, estaríamos frente à mania.
O discurso do melancólico aponta várias direções:
pensamento vazio, perda de sentido, monotonia ao falar, a
impressão de um domínio da sonoridade da palavra às expensas
de sua significação, uma falta que não permite dar consistência
à palavra. Estaríamos, então, diante de uma fragilidade, uma

77 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
insuficiência constitutiva, estrutural. Essa fragilidade ou falta de
adequação nas representações tem consequências no investimento
do objeto, o que permitiria supor uma falha em sua constituição:
o objeto não se constitui a partir de uma satisfação experimentada
(o seio da mãe, por exemplo), mas surge vazio, dentro de uma
realidade lógica vazia.
Na melancolia existe o anseio por alguma coisa perdida.
Uma perda na vida pulsional, que pode ser associada à anorexia,
ou seja, falta de libido, falta de apetite. Apresenta-se, assim, como
um luto pela perda da libido, produzindo o efeito da inibição
psíquica com empobrecimento pulsional e dor (PERES, 2010).
O problema principal da melancolia é que essa “dor de existir”
levará, muitas vezes, ao suicídio.
A análise dos contos que propomos tentará desvendar a
melancolia de suas personagens, procurando mostrar como se
manifestam essas tendências melancólicas que terminam trágica
e inevitavelmente em morte, e que se produz em pessoas que
possuem uma “disposição patológica”, conforme a teoria freudiana
de luto e melancolia.

A la Deriva

O conto A la Deriva foi publicado pela primeira vez na


revista Fray Mocho, em seu número 6, em 07 de junho de 1912;
mais tarde foi incluído na série de contos que compõem Cuentos
de Amor de Locura y de Muerte, de 1917. Poderia se dizer que A
La Deriva é, por sua construção, por seu conteúdo e pela data de
sua publicação, um dos contos fundacionais da narrativa do Rio
de La Plata.

78 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
É um conto curto, de três páginas, em que as personagens
e o conflito aparecem juntos, logo nas primeiras linhas:

O homem pisou algo mole e em seguida sentiu a picada no pé.


Saltou adiante, e ao voltar-se com um palavrão, viu uma jararacuçu
que, enrolada sobre si mesma, esperava outro ataque (QUIROGA,
2014, p. 77).

Um homem é picado por uma cobra altamente venenosa
e começa a padecer os efeitos do veneno agindo em seu corpo.
A rigor, a personagem principal é o homem, sendo a cobra a
personagem antagonista. Começa, então, por parte do homem, a
busca da resolução do conflito. Percebe a picada e elimina a cobra:

O homem deu uma rápida olhada em seu pé, onde duas gotinhas
de sangue engrossavam dificultosamente, e sacou o facão da cintura.
A víbora viu a ameaça, e afundou mais a cabeça no centro de
sua espiral; mas o facão caiu sobre suas costas, deslocando-lhe as
vértebras (QUIROGA, 2014, p. 77).

O homem, depois de matar a cobra, consegue chegar a sua
casa e pede aguardente de canha a sua esposa para aliviar a dor,
mas não sente nada.

A mulher correu outra vez, voltando com o garrafão. O homem


bebeu dois copos, um depois do outro, mas não sentiu nada na
garganta. — Bom... isso está feio... — murmurou então, olhando
seu pé, lívido e já com lustre gangrenoso. Sobre a profunda amarra
do lenço, a carne transbordava como uma monstruosa morcela
(QUIROGA, 2014, p. 78).

O murmúrio de que “isso está feio”, ao ver seu pé


desfigurado, inicia as últimas horas de vida da personagem; Eros,

79 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
o instinto de vida e preservação, porém, faz com que ele tente se
aferrar à vida:

Mas o homem não quería morrer, e descendo até a costa subiu


em sua canoa. Sentou-se na popa e começou a remar até o centro
do Paraná. Ali a corrente do rio, que nas imediações do Iguaçu
corre por seis milhas, o levaria antes de cinco horas a Tacurú-Pucú
(QUIROGA, 2014, p. 78).

No entanto, a luta contra a natureza está já perdida. E


podemos ver a corrente do rio como uma metáfora da morte
melancólica: estar imerso nela (a corrente do rio, a melancolia)
implica uma rendição à vontade dela, uma abstração da qual
o melancólico não consegue sair por estar capturado aí, nesse
cenário ao qual involuntariamente chega, um caminho sem saída,
ou melhor, de saída para o além vida. A narrativa contém outras
marcas que reforçam a ideia do fluir melancólico na descrição do
cenário natural:

O céu, ao poente, se abria agora em tela de ouro, e o rio


avermelhou-se também. Desde a costa paraguaia, já escurecida,
o monte deixava cair sobre o rio seu frescor crepuscular, em
penetrantes aromas de flor de laranjeira e mel silvestre (QUIROGA,
2014, p. 79). (Grifo nosso).

O momento da descida final pelo rio coincide com o pôr
do sol; e este se dá de maneira fulgurante, iluminando o céu
com brilho de ouro e refletindo sua imagem no rio, parecendo
estender uma ponte entre as águas e o céu, como caminho para
uma morte inevitável e para a viagem ao “além”. A visão de “um
casal de araras (que) atravessou muito alto e em silêncio para
o Paraguai” (QUIROGA, 2014, p. 79) faz o contraste da vida

80 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
que continua, apesar de tudo. E a narrativa mostra também,
metaforicamente, como não é possível ter controle sobre o estado
de alma melancólico, como o sujeito fica à sua mercê, como uma
canoa nos redemoinhos de um rio: “Lá embaixo, sobre o rio de
ouro, a canoa derivava velozmente, girando ás vezes sobre si mesma
ante a borbulha de um redemoinho” (QUIROGA, 2014, p. 79).
A deriva do homem tem um destino certo: a morte. O
mal-estar atinge um ponto culminante a partir do qual há um
alívio, dando a sensação de que o homem se salvaria, parecendo
o veneno ir perdendo o seu efeito.

O veneno começava a dissipar-se, não tinha dúvida. Se achava quase


bem, e ainda que não tivesse forças para mover a mão, contava
com a queda do orvalho para repor-se totalmente. Calculou que
antes de três horas estaria em Tacurú-Pucú. O bem-estar avançava
e com ele uma sonolência cheia de lembranças. Já não sentia
mais nada, nem na perna nem no ventre (QUIROGA, 2014, p.
79). (Grifo nosso).

As palavras em negrito da citação reforçam a ideia do


destino inevitável. A queda do orvalho parece funcionar como
um batismo final. A “sonolência cheia de lembranças” aponta
a uma saudade nostálgica que não mais voltará. O bem-estar é
puramente alucinatório, uma vez que sua sina já está traçada, o
veneno, implacável, age de forma a acabar com qualquer resposta
do organismo, aniquilando-o, e assim, “O homem esticou
lentamente os dedos da mão [...] e parou de respirar” (QUIROGA,
2014, p. 81).
O clímax se dá juntamente com o desfecho: o ponto
culminante da narrativa determina ao mesmo tempo o final da
história, a morte do homem por efeitos do veneno de uma picada
de cobra. A construção do conto é relativamente simples, mas

81 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
de uma simplicidade que inaugura um novo tipo de narrativa:
o conto curto, à qual o autor dedicou páginas e mais páginas de
longas experimentações. Dá-se, logo no início, o problema ou
conflito, desenvolve-se sucintamente a tentativa de resolução
desse conflito e culmina-se com o clímax e o desfecho juntos,
de maneira abrupta, sem dar ao leitor muita chance de cálculo a
respeito das possíveis possibilidades de desenlace da história. Fica
uma sensação de certa impotência, pois a diegese é trágica, e mal
temos tempo de sequer imaginar um final, ele acontece de repente.
Há, por outro lado, uma inovação quase inédita à época
na literatura hispano-americana: o monólogo interior, que vai ao
encontro do estado de alma melancólico. A análise comportamental
das pessoas diagnosticadas como melancólicas, em seu estado
patológico, observa um retraimento no relacionamento com o
mundo exterior, perdendo praticamente toda vontade de contato
com outras pessoas; no entanto, verifica-se que a atividade cerebral
delas é muito enérgica, vivendo em uma espécie de redemoinho ou
turbilhão de não ideias que as acometem a um diálogo constante
consigo mesmas, como se dá no monólogo interior. Lambotte o
coloca da seguinte maneira:

O que é que não cessa de escapar ao modo de pensamento


racional do melancólico e de nele condenar as possibilidades de
investimento? O que é que afeiçoa seu discurso como uma sequência
de ideias que caem no vazio muito mais que como uma sequência
de representações destinadas a inserir o objeto exterior em um
esquema reflexo? (LAMBOTTE, 1997, p. 86).

O objeto exterior se perdeu de tal maneira para o


melancólico que qualquer investimento a esse exterior aparece
vedado ou sem sentido, pelo que reforça constantemente seu

82 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
monólogo interior, na busca de respostas, na busca, na verdade,
daquele objeto que se perdeu.
O homem, na sua deriva pelo rio, fala consigo mesmo,
pressentindo a morte: “Seu compadre Gaona moraria ainda
em Tacurú-Pucú? Talvez visse, também, o seu ex-patrão mister
Douglas, e o recebedor da obrage” (QUIROGA, 2014, p. 80).
Aqui, as vozes do narrador e do personagem se misturam.
Não sabemos, ao certo, quem está falando. Sabemos que as palavras
são obra do pensamento da personagem. O discurso indireto livre
serve de veículo para o monólogo interior, como também no final
do conto:

De repente sentiu que estava gelado até o peito. O que seria? E a


respiração... O recebedor de madeiras de mister Douglas, Lorenzo
Cubilla, o havia conhecido em Puerto Esperanza, em uma sexta-
feira santa... Sexta-feira? Sim, ou quinta-feira... (QUIROGA,
2014, p. 79-80).

A narrativa, então, parece estar construída utilizando um


código realista tradicional, da observância da objetividade na
narração dos acontecimentos sem interferências do narrador
onisciente, nem quanto a qualquer apelo ao leitor e nem quanto
a “palpites” sobre a resolução da história. Mas o enredo vai se
subjetivando, de alguma maneira, em face da própria personagem,
com a técnica do monólogo interior e certa figuração de um
universo onírico que também marca presença, como quando o
narrador nos faz saber da já comentada “sonolência cheia de
lembranças”.
A narrativa de Quiroga, assim, denota um discurso próprio
da selva misionera, a construção linguística de um imaginário
autóctone da literatura rioplatense. Este universo constitui um

83 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
lugar sagrado no qual o homem é impelido a provar sua própria
condição. No conto analisado, a natureza apresenta-se de
forma ominosa e agourenta, mas ao mesmo tempo de maneira
esplendorosa e sublime, simbolizada pelo Rio Paraná:

O Paraná corre ali no fundo de um imenso vale, cujas paredes,


com cem metros de altura, estreitam funestamente o rio. Das
margens, limitadas por blocos negros de basalto, cresce o bosque,
também negro. Adiante, nas encostas, atrás, a eterna muralha
lúgubre, em cujo fundo o rio remoinha e se precipita em incessantes
borbulhas de água lamacenta. A paisagem é agressiva, e reina ali um
silêncio de morte. Ao entardecer, no entanto, sua beleza sóbria e
calma torna-se uma majestade única (QUIROGA, 2014, p. 79).
(Grifo nosso).

Mais uma vez a descrição da natureza emoldura o estado de
alma melancólico. Os paredões rochosos de mais de cem metros de
altura servem como armadilha de um lugar do qual é muito difícil
sair; o “silêncio de morte” revela de maneira mais crua a própria
impossibilidade de sair desse lugar; o entardecer coincidindo com
uma “majestade única” condensa a morte agora como libertação.
O rio Paraná, símbolo imponente da natureza, implica
melancolia. O rio funciona como uma personagem coadjuvante
da morte iminente. No rio, o homem, antes de morrer, escapa do
espaço e do tempo, delira, liberta-se. Sigmund Freud (2006, vol.
XXI, p. 20) avalia em três as fontes do sofrimento humano: o poder
da natureza, a caducidade de nosso corpo e nossa incapacidade
para regular nossos relacionamentos sociais. Os três aspectos do
sofrer aparecem no conto e acabam com a vida. O homem pede
ajuda ao seu vizinho, com o qual tinha se desentendido, mas não há
sinais de ajuda por parte dele: “O homem pensou que não poderia
jamais chegar sozinho a Tacurú-Pucú, e decidiu pedir ajuda a

84 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
seu compadre Alves, ainda que fizesse muito tempo que estavam
desentendidos” (QUIROGA, 2014, p. 80). A natureza impiedosa
e nossa caducidade farão o resto. Podemos ver aqui como o
discurso literário não é nem teórico e nem explicativo: encontra-se
cifrado e simbolicamente metaforizado. O rio funciona como uma
deriva, arrastando com sua corrente a vida de maneira implacável.
Embora a personagem não procure a morte, há reminiscências
melancólicas em seu morrer: o fato de que a vida se esvai e é pouco
o que podemos fazer. Neste ponto, o enfrentamento da finitude
e o sentido da vida nos são tão alheios como o objeto de desejo
que o melancólico perdeu e não pode recuperar.

El Almohadón de Plumas

O conto El Almohadón de Plumas foi publicado pela
primeira vez no número 458 da revista Caras y Caretas, na edição
de treze de julho de 1907 e adaptado posteriormente para sua
inclusão na série de contos que compõem a obra Cuentos de amor
de Locura y de Muerte.
A narrativa deixa vislumbrar, desde seu início até a morte
da protagonista, um típico caso de estado patológico melancólico,
em que o sujeito percebe que há alguma coisa que perdeu, mas
não sabe o que é, evento que esvazia suas forças para procurar
alguma resistência que a tire do estado de torpor e que finalmente
causará sua morte.
O leitor adivinha, logo nas primeiras linhas da história, o
que falta à protagonista, o que lhe foi tirado ou o que ela supôs
que tinha/teria, quando o esposo e o relacionamento dela com
ele são conhecidos:

85 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
Sua lua-de-mel foi um longo calafrio. Loura, angelical e tímida, o
temperamento duro do marido gelou suas sonhadas criancices de
noiva. Ela o amava muito, no entanto, às vezes, sentia um ligeiro
estremecimento quando, voltando à noite juntos pela rua, olhava
furtivamente para a alta estatura de Jordão, mudo havia mais de uma
hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem demonstrá-
lo (QUIROGA, 2014, p. 73). (Grifo nosso).

No extremo oposto de qualquer anseio de uma moça recém-


casada, a lua de mel não foi sequer vazia, mas um “longo calafrio”,
algo desagradável, indesejado, assustador. Ao imaginar, esperar e
ansiar por algum tipo de felicidade, com quaisquer características
que seja, opõe-se lhe uma resposta que causa vazio: a frieza do
esposo: eis a perda da qual a protagonista não vai se recuperar.
Isso se confirma com os primeiros meses de convivência, após
a lua de mel: “Sem dúvida ela teria desejado menos severidade
nesse rígido céu de amor, uma ternura mais expansiva e incauta;
porém o impassível semblante de seu marido a continha sempre
(QUIROGA, 2014, p. 73). É possível verificar aqui a repressão a
que se auto-submete a protagonista: contida, reprimida.
A melancolia apresenta-se como uma condição de
sofrimento patológico, e se torna mais complexa que o luto quando
assume maiores graus de intensidade. Está relacionada a uma ou
várias perdas, ou apenas à ameaça de alguma perda, envolvendo
situações de frustração, desconsideração e desprezo. Em suma,
reage-se melancolicamente como resposta a uma situação em que
algo se perdeu. E essa perda é o elemento que põe em marcha
o processo melancólico. A perda torna-se melancólica quando
ela incide sobre algo ou alguém considerado imperdível. Mas
é necessário ressaltar que essa perda às vezes não é consciente,
ou melhor, sabe-se que se perdeu algo, mas não se sabe o que se

86 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
perdeu. É o que parece acontecer com a protagonista, conforme
as atitudes dela: o abandono de si como resposta a uma falta.

Nesse estranho ninho de amor, Alicia passou todo o outono.


Contudo tinha decidido jogar um véu sobre os seus antigos
sonhos, e ainda vivia adormecida na casa hostil, sem querer
pensar em nada até a chegada do marido (QUIROGA, 2014,
p.73). (Grifo nosso).

Esse “viver adormecida” e não querer pensar em nada


remete à ausência de sentido para a vida, justamente um dos
sintomas da patologia melancólica; por isso que a protagonista
“joga um véu” sobre seus antigos sonhos, renunciando-lhes para
sempre, porém sem encontrar-lhes um substituto. Nesse sentido,
comenta Freud:

Esse desconhecimento ocorre até mesmo quando a perda


desencadeadora da melancolia é conhecida, pois, se o doente
sabe quem ele perdeu, não sabe dizer oque se perdeu com o
desaparecimento desse objeto amado. [...] a inibição melancólica
nos parece enigmática, porque não podemos ver o que estaria
absorvendo de tal maneira o doente (FREUD, 2006, vol. XIV,
p. 27)

Um dia, inevitavelmente, a protagonista adoece: “Não é


estranho que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de gripe que
se arrastou insidiosamente dias e mais dias; Alicia não melhorava
nunca” (QUIROGA, 2014, p. 73).
Mas é nas próximas linhas em que o leitor terá pistas
concretas da causa da melancolia da protagonista:

Por fim uma tarde pôde sair ao jardim apoiada no braço de seu
marido. Olhava indiferente para um e outro lado. De repente

87 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
Jordão, com profunda ternura, passou a mão pela sua cabeça, e
Alicia em seguida se quebrou em soluços, enlaçando seu pescoço
com os braços. Chorou longamente todo seu espanto calado,
redobrando o pranto à menor tentativa de carícia (QUIROGA,
2014, p.73). (Grifo nosso).

A personagem tinha, provavelmente, uma visão romântica


do que fosse um marido, um casamento, que não coincidia em
absoluto com a maneira em como o esposo a tratava; quando,
excepcionalmente, este mostra um pouco de ternura, Alicia
explode num choro convulsivo, num estado catártico. Esse
absorver de que Freud fala está presente no olhar indiferente a
um e outro lado da personagem. Mas não basta para pôr fim ao
sofrimento; diante da impossibilidade de preenchimento dessa
falta, Alicia se deixa morrer.

Foi o último dia que Alicia esteve de pé. No dia seguinte


amanheceu desvanecida. O médico de Jordão a examinou com
toda a atenção, recomendando muita calma e repouso absolutos.
— Não sei — disse para Jordão na porta da casa, em voz ainda
baixa. — Tem uma grande debilidade que não consigo explicar
(QUIROGA, 2014, p.74). (Grifo nosso).

A narrativa marca, a partir daqui, a descida à morte


inevitável. O próprio médico não encontra causas orgânicas para
a doença de Alicia, e de fato o estado patológico melancólico
(confundido comumente com depressão) é de difícil diagnóstico:
os sintomas, porém, são de uma vontade de não viver.
Ocupemo-nos, brevemente, da questão da escolha de objeto
amoroso, conforme a teoria freudiana. No processo de narcisismo
primário, a criança faz a escolha de sua própria pessoa como objeto
de amor, antes de se voltar para o mundo externo. O que se segue

88 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
depois é, normalmente, a procura de um objeto exterior para os
investimentos libidinais (a escolha do objeto amoroso). Mas há os
casos narcísicos, não já primários, mas secundários. No narcisismo
secundário, temos uma “atitude resultante de transposição, para o
eu do sujeito, dos investimentos libidinais antes feitos nos objetos
do mundo externo” (ROUDINESCO; PLON, 1997, p. 531). Por
outro lado, na idealização, existe uma exaltação do objeto escolhido
(destino das pulsões sexuais) na mente do sujeito. Este processo
origina-se considerando os pais, nas primeiras configurações
de construção psíquica, como onipotentes: a nutrição do seio
materno na mãe e a proteção na figura do pai. Na vida adulta,
isto leva à constituição do ideal do eu, que vem a ser “o modelo de
referência do eu, simultaneamente substituto perdido da infância e
produto da identificação com as figuras parentais e seus substitutos
sociais” (ROUDINESCO; PLON, 1997, p. 362). O “narcisismo
perdido da infância” que o ideal do eu vem a atualizar seria, então,
a tentativa de preservação do sentimento de perfeição de si vivido
pela criança a partir da educação paterna. Na escolha do objeto
amoroso, acontece que há situações em que, como sugere Freud,
o objeto é colocado no ideal do eu:

A tendência que falsifica o julgamento nesse respeito é a idealização.


Agora, porém, é mais fácil encontrarmos nosso rumo. Vemos que
o objeto está sendo tratado da mesma maneira que nosso próprio
ego, de modo que, quando estamos amando, uma quantidade
considerável de libido narcisista transborda para o objeto. Em
muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve
de sucedâneo para algum inatingido ideal do ego de nós mesmos.
Nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por
conseguir para o nosso próprio ego e que agora gostaríamos de
adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso
narcisismo (FREUD, 2006, vol. XVIII, p. 122).

89 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
Esta escolha, porém, constitui um ideal inatingível. Na
melancolia, o objeto é idealizado e colocado no ideal do eu. Mas há
uma decepção para com o objeto que leva o sujeito a abandoná-
lo, e este abandono ocorre por insatisfação na relação idealizada
com o objeto. Assim, sabe-se quem se perdeu, mas não o que se
perdeu. Sem satisfação, a tensão psíquica torna-se insuportável e o
sujeito, que no processo de identificação deslocou o objeto de amor
para o seu próprio eu, agora o (se) recrimina por não satisfazer
suas expectativas. E se o processo melancólico não encontra
algum caminho para sair dessa encruzilhada, a autodestruição é
inevitável. No caso da personagem, o esposo parece não preencher
esse ideal do eu:

No dia seguinte ela piorou. Houve consulta. Constatou-se uma


anemia agudíssima, completamente inexplicável. Alicia não teve
mais desmaios, mas ia visivelmente andando para a morte. Durante
o dia todo, o quarto estava com as luzes acesas e em total silêncio. As
horas se passavam sem se ouvir o mínimo barulho. Alicia dormitava.
[…] Não demorou muito para Alicia passar a sofrer alucinações,
confusas e flutuantes no início, e que desceram depois até o chão.
A jovem, de olhos desmesuradamente abertos, não fazia senão
olhar para os tapetes que se encontravam a cada lado da cama
(QUIROGA, 2014, p.74). (Grifo nosso).

As palavras destacadas em negrito voltam a mostrar os


sintomas do melancólico: anemia inexplicável, silêncio profundo,
olhar extraviado. O desenlace trágico é inevitável e Alicia sucumbe
à melancolia.

Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali, diante deles, uma


vida que se acabava, dessangrando-se dia após dia, hora após hora,
sem se saber absolutamente por quê. Na última consulta, Alicia
permanecia imóvel enquanto eles a examinavam, passando de um

90 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
para o outro o pulso inerte. […] Alicia foi-se extinguindo no seu
delírio de anemia. […] Alicia morreu, por fim (QUIROGA, 2014,
p.75). (Grifo nosso).

Enquanto os médicos não conseguem entender as causas da


doença da protagonista, esta jaz em estupor, em entorpecimento
patológico, ao mesmo tempo em que cai num delírio de anemia. A
personagem morre, mas o final do conto apresenta uma surpresa,
um final à la Poe. Na verdade, a causa da morte de Alicia é um
inseto que sugou seu sangue, escondido embaixo do almofadão
de penas (nome do título do conto), sem quem ninguém notasse.

A empregada, que entrou depois para desfazer a cama, já vazia,


olhou um momento com estranheza para a almofada. — Senhor!
— chamou ao Jordão em voz baixa. — Na almofada há manchas
que parecem ser de sangue. […] Jordão levantou a almofada; pesava
extraordinariamente. Saíram com ela, e sobre a mesa da sala Jordão
cortou a fronha e a capa. As penas superiores voaram, e a empregada
deu um grito de horror com a boca inteiramente aberta, levando as
mãos crispadas às bandós. Sobre o fundo, entre as penas, mexendo
devagar os pés aveludados, havia um animal monstruoso, uma bola
viva e viscosa. Estava tão inchada que quase não se lhe via a boca
(QUIROGA, 2014, p.75).

O final da história aparece com reminiscências fantásticas.


Mas o autor, talvez por seu estilo realista ou por se tratar de um
conto publicado inicialmente em um jornal, que costuma pedir
finais fechados, foge da mera sugestão e nos faz saber, a respeito
do inseto, que:

Noite após noite, desde que Alicia tinha caído de cama, tinha
aplicado sigilosamente sua boca — sua trompa, melhor dizendo —
às témporas de Alicia, sugando-lhe o sangue. [...]“Esses parasitos das
aves, diminutos no seu meio habitual, chegam a adquirir proporções

91 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
enormes em certas condições. O sangue humano parece ser para eles
particularmente favorável, e não é raro encontrá-los nas almofadas
de penas” (QUIROGA, 2014, p.75).

Há que se levar em consideração que Horacio Quiroga


escrevia no início para jornais e revistas, com a mente posta na
cultura popular, com certo cunho sensacionalista, inclusive em
termos de aceitação e possibilidades de sucesso. A explicação
no final do conto parece-nos hoje um tanto falida, uma vez
que quebra a tensão e a sensação de horror que a história vem
mantendo até então.
Podemos dizer, então, que nossa leitura está baseada nos
dois níveis de análise: por um lado, e nas entrelinhas do texto, os
indícios que permitem vislumbrar o comportamento melancólico;
por outro lado, a certeza de tal comportamento na revelação final
advinda com a morte da personagem.2 Há uma interpretação
similar que Rodríguez Monegal faz incorporando o tandem
esposo/inseto:

Uma versão completamente distinta à anedótica é também possível:


na atitude longínqua e impassível do marido pode se ver o motivo
dos delírios eróticos da mulher. Quiroga introduz um monstruoso
inseto para não dizer que o ser que tem esvaziado a mulher é o
marido: com sua monstruosa indiferença secou as fontes da vida
(RODRÍGUEZ MONEGAL, 1967, p. 115-116). (Tradução
nossa).

Mas a psicanálise sabe que o marido é simplesmente o


depositante de uma carga de libido que funciona como objeto de
desejo, mas que está longe de poder oferecer qualquer tributo a
2
Embora a revelação não esteja propriamente manifestada no final do conto, já que muito
antes o narrador comenta a respeito da personagem que “fue ese el último día que Alicia
estuvo levantada”, o fato da morte consuma efetivamente o ciclo melancólico.

92 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
essa libido, portanto não correspondida: não se pode dar o que
não se tem. Esta falta constitui uma perda, que se encontra na
origem da melancolia. Essa perda, porém, pode ser de natureza
mais ideal do que real, podendo ir além do real, de uma morte,
por exemplo. O que há é uma perda de um objeto investido e
idealizado narcisicamente, a perda de satisfação de um ideal.
Esse investimento da personagem não encontrou eco no marido,
constituindo uma perda que o melancólico não pode nem conceber
nem perceber. E o conseguinte processo de autodestruição, às
vezes, é inevitável. O inseto que suga o sangue da personagem
funciona como metáfora para a melancolia que consome sua alma.

Conclusão

Na análise dos dois contos utilizou-se uma abordagem de


crítica psicanalítica tomando como referência a teoria psicanalítica
freudiana para sustentar teoricamente como se produzem as
marcas enunciativas que a melancolia provoca. Essa análise
acontece de maneira conjunta com a colocação em primeiro plano
da linguagem, uma vez que a linguagem veicula não somente o
significante, mas, nas entrelinhas do texto, também o significado.
Significado que mostra como, no caso da melancolia, advém um
estado patológico ocasionado pela falta de objeto de desejo por sua
perda, a impossibilidade de fazer o trabalho de luto e deslocar a
libido para outro objeto de desejo, com o consequente retorno do
objeto ao eu que, por meio da ambivalência emocional amor-ódio,
causará a autopunição no sujeito. E a autopunição melancólica
costuma ser tão severa que pode levar o sujeito à morte. É o que
cremos aconteceu com as personagens de nossos contos.

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Referências

BIRMAN, Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2006.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1917) Edição Standard Brasileira


(ESB) das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV.
Rio de Janeiro: Imago, 2006.

________ A psicanálise (1923) Edição Standard Brasileira (ESB) das


Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. VXIII. Rio de
Janeiro: Imago, 2006.

________ O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros


trabalhos. (1930) Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

GARCIA-ROSA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana.


V.3. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

LAMBOTTE, Marie-Claude. O Discurso Melancólico. Tradução Sandra


Regina Felgueiras. Rio de janeiro: Companhia de Freud, 1997.

MANNONI, Maud. O Nomeável e o Inomeável. Rio de Janeiro: Zahar,


1995.

PERES, Urania Tourinho. Depressão e Melancolia. Rio de Janeiro: Zahar,


2010.

QUIROGA, Horacio. Contos de Amor de Loucura e de Morte. Trad. De


Renata Moreno. São Paulo: Martin Claret, 2014.

94 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. Genio y Fiigura de Horacio Quiroga.
Buenos Aires: Eudeba, 1967.

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise.


Tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

95 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 71-96 – jul./dez. 2018
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UMA ANÁLISE LINGUÍSTICO-COGNITIVA DA
METÁFORA NO JORNALISMO DA GLOBO NEWS

A LINGUISTIC-COGNITIVE ANALYSIS OF THE


METAPHOR IN GLOBO NEWS JOURNALISM

Ismael Ribeiro da Silva (PG-UEL)1


Patrícia Medeiros Galvão (PG-UEL)2
Josué Marques Ferreira3

“Antes de registrar ou informar, [...]


o jornalismo é ele próprio um fato de língua”
(Gomes, 2000, p.19)4.

RESUMO: Este artigo pretende analisar a ocorrência e a produtividade do fenômeno


metáfora, pelo viés da linguística cognitiva; o corpus consiste em sentenças extraídas da
Globo News, o que evidencia o uso cotidiano desse recurso na transmissão de notícias
por meio de uma linguagem simbólica, pautada na analogia, ou seja, associação de
ideias. Para isso, tomamos por base a Semântica Cognitiva, de estudiosos como Lakoff
& Johnson, Koch, Sardinha, Joanilho e outros teóricos. Os resultados deste estudo
demonstraram que o fenômeno constitui eficiente estratégia para tornar a interação
verbal cognitivamente mais concisa, aprazível e inteligível.
Palavras-Chave: Metáfora. Jornalismo. Cotidiano. Linguagem Cognitiva.

1 Licenciado em Letras Anglo-Portuguesas – UENP (2001). Especialista em Literatura


e Estudos da Linguagem – UENP (2003). Especialista em Língua Inglesa – UNOPAR
(2005). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem – UEL/
PR (2018). Contato. ismaelgramatica@uol.com.br
2
Licenciada em Letras Português – UEL (2018). Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Linguagem – UEL/PR (2018). Contato. patriciamedeiros.
cristo@gmail.com
3
Licenciado em letras Vernáculas; UEL/PR; Mestrando em Estudos da Linguagem pelo
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem – UEL/PR: jhosuemferreira@
hotmail.com
4
Apud Eliane Luiza de Aguiar Francischini (Dissertação de Mestrado – 2013)

97 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
ABSTRACT: This article aims to analyze the occurrence and productivity of the
metaphor, by the bias of cognitive linguistics; the corpus consists of sentences extracted
from Globo News, which evidences the daily use of this resource in the transmission of
news through a symbolic language, based on analogy, that is, association of ideas. For
that, we took as basis of Cognitive Semantics, by scholars like Lakoff & Johnson, Koch,
Sardinha, Joanilho and other theoreticians. The results of this study have demonstrated
that the phenomenon constitutes an efficient strategy to make the verbal interaction
cognitively more concise, pleasant and intelligible.
keywordS: Metaphor. Journalism. Everyday life. Cognitive Language.

Considerações iniciais

O presente trabalho pretende abordar o uso constante


e inconsciente das metáforas nos programas da Globo News,
a fim de analisá-las a partir da teoria da metáfora conceptual.
Iniciamos o trabalho com uma breve apresentação sobre a
linguística cognitiva e, em seguida, traremos alguns conceitos e
reflexões a respeito do fenômeno metáfora, encerrando essa parte
de fundamentação teórica com o conceito de metáfora do ponto
de vista cognitivo da linguagem. Por fim, 14 expressões metafóricas
presentes no discurso cotidiano do jornalismo brasileiro serão
analisadas à luz do conceito da “metáfora conceptual”, que tem
seus aspectos mais fundamentais com base nos estudos de Lakoff
& Johnson [1980]; (2002).

Os estudos linguístico-cognitivos: pressupostos teóricos

A linguística cognitiva se originou no final dos anos 70


e início dos anos 80 a partir de publicações de estudiosos do
assunto, como George Lakoff, Ronald Langacker, Leonard Talmy,
Gilles Faucounnier, dentre outros pesquisadores interessados
pelo fenômeno do significado, que partiram da perspectiva de

98 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
que o significado em si não é algo que existe isoladamente, mas
está integrado à totalidade da experiência humana, envolvendo
aspectos naturais e também culturais.
Essa perspectiva teórica representou uma mudança
paradigmática nos estudos linguísticos, uma vez que passou a
conceber a linguagem como um instrumento de organização,
processamento e transmissão de informações. Ou seja, para a
linguística cognitiva, segundo Ferrari (2011):

[...] a relação entre palavra e mundo é mediada pela cognição.


Assim, o significado deixa de ser um reflexo direto do mundo, e
passa a ser visto como uma construção cognitiva através da qual
o mundo é apreendido e experienciado. Sob essa perspectiva, as
palavras não contêm significados, mas orientam a construção do
sentido (FERRARI, 2011, p. 14).

 Assim, as estruturas formais da linguagem são estudadas


não como se fossem autônomas, mas como reflexo da organização
conceitual geral, indicando que nossa capacidade de usar a
linguagem está intimamente relacionada a outras habilidades
cognitivas, como a categorização, a percepção, a memória,
os mecanismos de processamento que, por sua vez, resultam
das influências experienciais e ambientais (GEERAERTS;
CUYCKENS, 2010, p. 4).
Para a linguística cognitiva, cognição e linguagem estão
diretamente interligadas, de modo que a linguagem é o meio pelo
qual o homem representa o mundo à sua volta, de acordo com
sua experiência perceptiva. A cognição, portanto, não é vista como
modular, como propõe a semântica gerativa, mas corpórea. Desse
modo, a lembrança de enunciados e episódios, a categorização
da experiência, os conceitos, as analogias e imagens mentais são
evocados por meios linguísticos.

99 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
A metáfora: conceitos e reflexões

Para Aristóteles, “as metáforas são enigmas velados”. O


que mais impressiona nas metáforas é a magia que envolve a
sua produção. Outrossim, já houve relatos de um brasileiro que
viajou pela Grécia e viu um caminhão em que se lia (em grego)
a palavra METÁFORA. Ao indagar o significado de tal palavra
escrita naquele veículo, obteve como resposta: “É um caminhão
de mudança”. Segundo Aristóteles (apud Joanilho 1996) “[...]
a metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra,
transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero,
ou de uma espécie para outra, por via de analogia” (p. 15).
Desde o antigo Egito, a linguagem é constituída por
fenômenos cognitivo-linguístico-metafóricos, haja vista os sonhos
de Faraó, quando o soberano chamou todos os adivinhadores
do Egito e todos os seus sábios, mas ninguém, a não ser José (o
hebreu), foi capaz de interpretar os sonhos das sete vacas gordas e
das sete vacas magras; das sete espigas graúdas e das sete espigas
miúdas. Traduzindo: em toda a terra do Egito, haveria (e segundo
a Bíblia houve) sete anos de fartura e sete anos de miséria.
Considerando que tais sonhos consistiam em revelação
divina, então se pode inferir que não somente os homens, mas
também o próprio Deus faz da analogia um mecanismo de
comunicação. A experiência onírica do soberano Faraó só faz
corroborar o que afirmariam (“tão-somente” alguns milênios mais
tarde) dois estudiosos da metáfora:

“[...] a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na


linguagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso sistema
conceptual, em termos do qual não só pensamos mas também
agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza” (LAKOFF
& JOHNSON [1980] 2002, p. 45, grifo nosso).

100 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
Em que consistem os sonhos senão na “iconização” do
pensamento? O dicionário Houaiss apresenta a seguinte acepção
para a palavra sonho: “conjunto de imagens, de pensamentos ou de
fantasias que se apresentam à mente durante o sono”. Para Dell’ Isola,
“Não mais considerada mera figura de linguagem, um processo de
enriquecimento e transformação da língua, a metáfora é fenômeno
discursivo e de valor cognitivo” (Paiva, 1998, grifo nosso).
Do latim [cognitus, part. pass. de cognoscere, ‘conhecer’,
+ -ivo.], cognitivo deriva de ‘cognitione’ > cognição, aquisição
do conhecimento ou, por processo metonímico, o próprio
conhecimento. Isso significa que as construções metafóricas estão
“encravadas” no cérebro humano. No momento da enunciação,
o falante, inconscientemente, elabora e emprega analogias
inéditas em relação ao seu repertório e, às vezes, até “inaugura”
uma metáfora nunca antes utilizada pelo seu grupo social. Cabe
ressaltar que é praticamente incomensurável o tempo gasto pelo
falante na “mentalização” da metáfora.
Para Urbano Zilles5, “na história da Filosofia, a metáfora
muitas vezes foi objeto de reflexão. Aristóteles diz que a metáfora
consiste em dar a uma coisa um nome que pertence a outra coisa:
transferência que se pode efetuar do gênero à espécie ou da espécie
ao gênero ou de espécie a espécie ou à base de uma analogia”
(Poét., 21, 1457, b7).
Não obstante o indiscutível valor da obra de Filipak,
digamos que o autor tenha optado pelo conceito “moderno” da
palavra. Ao pé da letra, metáfora tem o significado de “condutor
da mudança, o que traz a mudança”, considerando casos análogos
como fósforo = “o condutor da luz” / semáforo = “o que traz o sentido”
e assim por diante. “METAPHORÁ (METÁFORA), em grego,

5
Orelha do livro Metáfora e significação.

101 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
metá = trans + phérein = levar, é uma mudança, transferência,
transposição; mudança de sentido próprio para o figurado”
(Filipak, 1983).
Segundo Teixeira (2010), a função cognitiva básica,
isto é, a forma recorrente como explicamos, descrevemos ou
conceptualizamos o mundo é metafórica. Isso significa que é
comum, por meio do processo metafórico, utilizarmos aquilo que
nos é conhecido para conceituarmos aquilo que é desconhecido.
Dito de outra forma, na perspectiva cognitiva, a metáfora
linguística só é possível porque existem metáforas no sistema
conceitual humano. Como elas são geradas a partir de experiências
corpóreas em relação ao ambiente físico e cultural, compreendê-
las equivale a entender o próprio modo de pensar e agir inerente
ao homem (Lakoff & Johnson, 2003, p. 4).
Com isso, em 1980, a partir da publicação do livro
“Metaphors we live by”, de Lakoff & Johnson, surge a teoria da
metáfora conceptual. Essa teoria decorre das discussões a respeito
da natureza e da estrutura da metáfora, bem como da sua influência
em boa parte do pensamento e raciocínio humano. Para os autores,
as pessoas utilizam construções metafóricas desde as conversas
mais “banais” até os mais empolados discursos científicos. Ainda,
segundo os autores, a metáfora está presente no cotidiano como
um mecanismo linguístico por meio do qual o emissor transforma
suas ideias em palavras e as transfere ao receptor. Dessa forma, o
pensamento se torna concreto por intermédio do uso da palavra,
formando uma ponte entre os interlocutores.
Sob esse viés, o sistema conceitual do homem emerge,
assim, da sua experiência com o próprio corpo e o ambiente
físico e cultural em que vive, correspondendo, portanto, a uma
visão experiencialista da linguagem. No momento em que

102 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
tais experiências são compartilhadas pelos membros de uma
comunidade linguística, haverá metáforas conceituais, que são
geralmente inconscientes e altamente convencionais na língua. Os
conceitos decorrentes desse processo são definidos primariamente
a partir da percepção humana, empirista como concepções de
forma, dimensão, espaço, função, movimento, e não em termos
de características próprias das coisas. Pelo fato de a metáfora
estar diretamente relacionada à mente e à linguagem, ela sempre
foi tema de estudos e análises. Desde a época de Aristóteles,
pensadores de diferentes áreas têm buscado definir a metáfora
e entender suas funções na linguagem, pensamento e cultura.
Porém, foram os estudos linguísticos de base cognitiva que deu
a metáfora o status de constituinte fundamental da linguagem
comum e cognição cotidiana, apresentou evidências linguísticas
de que a metáfora é uma questão central para o pensamento e
para a compreensão e, sobretudo, vieram a valorizar e atribuir à
metáfora o valor cognitivo para a significação linguística. Segundo
Lakoff & Johnson:

[...] “a metáfora é, para a maioria das pessoas, um recurso da


imaginação poética e um ornamento retórico – é mais uma questão
de linguagem extraordinária do que linguagem ordinária. Mais do
que isso, a metáfora é usualmente vista como uma característica
restrita à linguagem, uma questão mais de palavras do que de
pensamento ou ação. Por essa razão, a maioria das pessoas acha que
pode viver perfeitamente bem sem a metáfora. Nós descobrimos,
ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não
somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação.
Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só
pensamos, mas também agimos, é fundamentalmente metafórico
por natureza” (LAKOFF & JOHNSON, 2002, p. 45).

103 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
Para sistematizar o estudo das metáforas, Lakoff e Johnson
dividem as estruturas conceituais metafóricas em três diferentes
categorias básicas ou primárias, das quais derivam as demais.
1) Metáforas orientacionais: são aquelas que estão
relacionadas com a orientação espacial e relativas à constituição
física humana, como: para cima / para baixo; dentro / fora; frente
/ atrás; profundo / superficial; central / periférico. Nesse sentido, é
possível verificar a ideia do corpo humano como centro de onde
parte a experiência humana.
2) Metáforas ontológicas: são metáforas relativas à
essência ou à substância das coisas. Nesse sentido, a mente e o
corpo são vistos como um recipiente ou contêiner da própria
experiência humana com objetos físicos. As metáforas ontológicas
são, portanto, uma forma de lidar com conceitos abstratos,
possibilitando transformá-los pela experiência, em entidades,
coisas ou seres. Assim, uma espécie de metáfora ontológica seria
a personificação. Por exemplo: “Minha cabeça está vazia”; “Estou
com uma melodia na cabeça”; “Estou cheio de trabalho” etc.
3) Metáforas estruturais: são as metáforas no sentido
mais usual que conhecemos, as quais servem para estabelecer uma
analogia de significados entre palavras ou expressões, empregando
uma pela outra, em que uma atividade ou experiência é estruturada
em termos de outra. Assim como as metáforas orientacionais
e ontológicas, as metáforas estruturais são fundamentadas em
correlações sistemáticas dentro de nossa experiência. Como
exemplo podemos citar a expressão “tempo é dinheiro” em que a
noção abstrata do que seria o tempo é relacionada a algo concreto
como o dinheiro.
Por conseguinte, verificamos que a metáfora, sob o ponto
de vista da linguística cognitiva, não é vista como um fenômeno

104 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
meramente linguístico, como foi considerada nas teorias clássicas,
mas diz respeito à categorização conceitual da nossa experiência
de vida, se refere ao conhecimento, pois sua principal função é
cognitiva. Nesse sentido, segundo Nubiola (2010), a atribuição
de uma importância central às metáforas e à constatação de sua
onipresença na linguagem demonstra o caráter revolucionário
dessa teoria, que supera a abordagem exclusivamente lógica ou
semântica, típica de filósofos analíticos ou linguistas chomskyanos
e gerativistas em geral.

A metáfora conceptual no cotidiano do jornalismo da Globo


News

A Globo News é um canal de TV por assinatura, que


transmite programação jornalística 24 horas por dia. De
propriedade do Grupo Globo, o canal está no ar desde o dia
15 de outubro de 1996. Além do enfoque jornalístico voltado
propriamente para as notícias, também exibe documentários
e entrevistas. Em alguns horários, a emissora lança mão de
entretenimento e interatividade com o público. Apresentaremos,
neste trabalho, algumas expressões metafóricas, a fim de
demonstrar o seu emprego constante, analisando-as segundo a
teoria da metáfora conceptual.
(01) “O nosso Ensino Médio está no fundo do poço”. (30
de agosto de 2018)
Ao falar sobre a Educação Básica no Brasil, um dos
apresentadores do Estúdio I, programa vespertino da Globo
News, confirmou a teoria da metáfora orientacional de Lakoff
& Johnson, segundo a qual “bom é para cima; mau é para baixo”.
(Metáforas da vida cotidiana, pág. 63). Portanto, se o Ensino

105 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
Médio vai mal, nada melhor do que uma analogia com o “fundo
do poço” para explicar de forma prática o que isso significa.
(02) “O STF pegou uma pedreira neste ano”. (31 de agosto
de 2018)
Em se tratando do Supremo Tribunal Federal, o
apresentador criou a imagem de pedreira para se referir à Suprema
Corte do Brasil, transmitindo a ideia de que as dificuldades
“herdadas” pelos ministros representam a dureza de uma rocha.
Podemos afirmar que, nesse contexto, se concretizou uma
metáfora estrutural em que a dificuldade a ser enfrentada é
traduzida pela palavra “pedreira” que remete a mente humana a
algo da experiência sensorial e física, “o caráter cognitivo metafórico
que permeia a linguagem ordinária ou cotidiana”. (Metáforas do
cotidiano, pág. 15)
(03) “O programa do Burnier é um avião que está
decolando”. (31 de agosto de 2018)
Ao se referir a um programa que havia estreado em 30 de
julho de 2018, o jornalista usou uma metáfora que acabou criando
duplo sentido. No ato da decolagem, o avião, ao mesmo tempo
em que começa a viagem, passa pelo processo de ascensão. Isso dá
margem a três possibilidades: i) ele quis dizer que o programa
era novo; ii) quis dizer que a audiência do programa estava
aumentando; iii) ou as duas alternativas anteriores, constituindo,
assim, uma ambiguidade positiva. Mais uma vez, temos um caso
de metáfora orientacional em que algo bom é “para cima”.
(04) “Estou namorando o Paulo Guedes há tempos e não
haverá divórcio entre nós”. ( Jair Bolsonaro – 1º de setembro de
2018).
Durante a campanha eleitoral, em entrevista à Globo
News, Jair Messias Bolsonaro disse que estava namorando Paulo

106 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
Guedes e que não haveria divórcio entre eles. O contexto político-
comunicacional permite compreender que ele usou o verbo
namorar e o substantivo divórcio de forma metafórica, isto é, ele
estava almejando que Paulo Guedes fosse Ministro da Economia
e que não haveria ruptura. Considerando que linguagem, ideologia
e cultura são elementos indissociáveis, talvez essa expressão
metafórica de Bolsonaro não fosse viável na Arábia Saudita
ou no Sudão, por exemplo, onde, provavelmente, por motivos
doutrinários, tal analogia soasse de forma negativa.
(05) “Fazendo uma metáfora hípica: o dólar estava
trotando e começou a galopar”. (Ariel Palacios – 3 de setembro
de 2018).
Podemos estimar que, na maioria dos casos, o falante
não anuncia o tropo que está prestes a utilizar, talvez não tenha
consciência do fenômeno ou nem saiba o que seja metáfora.
No entanto, Ariel Palacios “quebrou a regra” quando, ao falar
sobre assuntos econômicos, afirmou que iria fazer uma metáfora
hípica. Trocando em miúdos, o jornalista quis dizer que o dólar
estava subindo aos poucos e, de repente, disparou. Cabe aqui uma
reflexão: ele se valeu da metalinguagem ao “avisar” que faria uma
metáfora hípica, usando os verbos trotar e galopar, referentes ao
cavalo. No entanto, talvez nem todos os telespectadores conheçam
o significado do adjetivo hípico/hípica.
(06) “O poder público deveria ter paixão doentia pela
Educação”. (Marcelo Lins – 3 de setembro de 2018).
No momento em que fazia comentários a respeito dos
desafios educacionais no Brasil, o jornalista Marcelo Lins proferiu
uma frase que abriga duas figuras de linguagem. A primeira é a
metonímia (abstrato pelo concreto: o poder público no lugar dos
representantes do poder público); a segunda figura é a metáfora

107 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
propriamente dita: paixão doentia, que, ao pé da letra, teria uma
carga semântica negativa, uma vez que, até mesmo em sentido
figurado, o dicionário Aulete Digital registra conceitos pejorativos
para o verbete doentio, como obcecado ou viciado. Entretanto, no
contexto em que foi utilizada, essa metáfora transmite a ideia de
primazia e/ou entusiasmo.
Saltam aos olhos, porém, mais uma vez, a riqueza e a magia
do contexto discursivo, pois o jornalista conseguiu uma “modificação
genética” para a expressão “paixão doentia”. Conotativamente, ele
quis dizer “paixão obsessiva” e transmitiu, com muito sucesso,
sua ideia pretendida. Se puxarmos o fio etimológico, veremos
que – em si – a palavra paixão é metafórica. Do latim tardio,
passìo,ónis ‘paixão, passividade, sofrimento’, o vocábulo passou a
ser empregado com o sentido de amor ardente, inclinação afetiva
e sensual e por aí vai. A Paixão de Cristo, literalmente, não alude
ao amor de Jesus, mas se remete ao sofrimento do Messias. Aliás,
não é por obra do acaso que o sujeito paciente é aquele que “sofre a
ação expressa pelo verbo”. (Gramática Contemporânea da Língua
Portuguesa, pág. 115)
(07) “ Vivemos uma época em que informação e
desinformação caminham juntas”. (3 de setembro de 2018).
Aqui também obser vamos a coexistência de dois
fenômenos simultâneos: a antítese formada por ‘informação’
versus ‘desinformação’ e a metáfora ontológica6 “(...)informação e
desinformação caminham juntas”. Segundo Lakoff & Johnson, “as
metáforas ontológicas servem a vários propósitos e as diferenças que
existem entre elas refletem os diferentes fins”. (Metáforas da vida
cotidiana, pág. 76). Dessa forma, conceitos abstratos se tornam

6
A metáfora ontológica é classificada como prosopopeia, personificação ou metagoge.
Dicionário Aurélio – Século XXI – versão eletrônica – edição 3.0 de 1999.

108 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
concretos na mente humana, a partir da evocação da imagem
mental do que significa “andar juntos”.
(08) “Uma joia da cultura brasileira, destruída pelas
chamas”. (3 de setembro de 2018).
O que seria o referente histórico-contextual? Uma joia da
cultura brasileira, em 3 de setembro de 2018, reporta-se ao Museu
Nacional, destruído pelo incêndio do dia anterior. Se o Museu
Nacional guardava vinte milhões de itens, consideramos que não
seria exagero identificar a metáfora conceptual uma joia da cultura
brasileira como uma espécie de “analogia encapsuladora”, já que a
expressão tem o poder simbólico-linguístico de concentrar, ou
seja, encapsular toda a riqueza do museu na palavra “joia”.
(09) “O incêndio no Museu Nacional do Rio é a metáfora
de uma cidade em crise, que se tornou uma sombra do que já foi”.
(Katy Watson – 3 de setembro de 2018).
Diferentemente do jornalista Ariel Palacios, que anunciou
a metáfora que viria logo em seguida na sua fala, Katy Watson foi
além e metaforizou a própria metáfora. Digamos que ela tenha
sido ousada e criado uma “metametáfora”. Se existe metapoesia,
por exemplo, por que não haveria de existir a metáfora que
descreve a própria metáfora? Ao afirmar que o incêndio do
museu é uma metáfora de uma cidade em crise, a repórter
transmite a ideia de que essa tragédia revela uma crise ainda
maior.
(10) Somos um país de ponta. Nós podemos usar
essas cinzas do museu e nos tornar uma fênix, para fazer a
transformação de que o Brasil precisa. (Katia Abreu – candidata
a vice-presidente de Ciro Gomes – 3 de setembro de 2018).
País de ponta? Pelo jeito, houve uma metáfora por
“contaminação”. A candidata teria sido influenciada pela expressão

109 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
tecnologia de ponta e feito um cruzamento de metáforas. No que se
refere à imagem da fênix, nos vem à memória um texto publicado
pela revista Veja, em 2 de dezembro de 2009, edição 2141, cujo
tema é o então governador do Distrito Federal, José Roberto
Arruda, alvo de investigações da Polícia Federal. O jornalista
Otávio Cabral fecha o texto criativa e brilhantemente: “Arruda,
a fênix que ressurgiu do episódio do painel de votações, pode
estar empreendendo outro mergulho rumo às cinzas” (Revista
Veja, p. 81).
Para Koch (2009), “O conceito de informatividade tem
que ver com a distribuição da informação no texto. Segundo a
autora, é fundamental que haja um equilíbrio entre informação
dada e informação nova. Caso o texto seja “sobrecarregado” de
informações conhecidas, ele caminhará em círculos. Por outro lado,
é cognitivamente impossível a existência de textos que contenham
somente informações novas, tornando-se improcessáveis pela falta
das âncoras necessárias”.
No texto de Cabral, a analogia do ex-governador com a
fênix cria uma metáfora plausível. Todavia, o texto não se realizará
em sua plenitude sem o processamento do interlocutor, caso lhe
falte o conhecimento prévio de que a fênix era uma ave que,
segundo a tradição egípcia, durava muitos séculos e, queimada,
renascia das próprias cinzas. Portanto, a metáfora conseguirá
atingir seu objetivo de criar analogia ou imagem mental, se o
interlocutor dispuser dos pré-requisitos a respeito da relação
existente entre as expressões empregadas. Caso contrário, poderá
haver algum vácuo na comunicação.
(11) Corte de investimentos na Educação e Cultura é
fogo! (3 de setembro de 2018).
A impressão é de que temos uma metáfora em forma de
trocadilho que possibilita dupla interpretação. O repórter teria

110 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
aproveitado o assunto do momento – que se tratava do incêndio
no Museu Nacional do Rio de Janeiro – e utilizado a palavra fogo
em sentido conotativo e denotativo ao mesmo tempo, ou seja, na
opinião do jornalista, a falta de investimentos básicos na Educação
e Cultura consiste em uma situação difícil e complicada, que só
poderia resultar em fogo, chamas, labaredas.
(12) Dois séculos de História viraram cinzas em questão
de horas. (3 de setembro de 2018).
Um fato linguístico de raríssima incidência se observa aqui.
A palavra cinza aparece em muitas expressões metafóricas como
“O senador fulano renascerá das cinzas”, “Não deixe seu dinheiro
virar cinzas” e por aí vai. Porém, em se tratando da frase “Dois
séculos de História viraram cinzas em questão de horas”, o elemento
metaforizado não são as cinzas, já que elas existiam no mundo real.
Na verdade, o que se metaforizou (às avessas e paradoxalmente)
foram os dois séculos de História, porque entraram na frase para
representar as peças destruídas pelo fogo, considerando o tempo
da fundação do museu. Dir-se-ia que se trata de um amálgama
metonímico-metafórico de inquestionável criatividade cognitivo-
linguístico-contextual.
(13) O país não vai para frente, se não olharmos para trás.
(4 de setembro de 2018).
Desta feita, o amálgama é antitético-metafórico, pois o país,
ao pé da letra, não se locomove nem para frente, nem para trás.
Ademais, olhar para trás, no contexto, não se refere ao movimento
físico, mas tem a ver com a ideia de contrabalançar os fatos
históricos para não repetir os erros do passado. Aqui também se
confirma a teoria da metáfora orientacional de Lakoff & Johnson,
segundo a qual “o tempo é um objeto em movimento e se move em
nossa direção” (p. 103).

111 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
(14) “Avec les flammes, une partie de la mémoire de
l’humanité a disparu”. Com as chamas, uma parte da memória
da humanidade desapareceu. (Ministro francês das Relações
Exteriores, Jean-Yves Le Drian – 4 de setembro de 2018).
Como assim? Uma parte da memória da humanidade
desapareceu? As pessoas tiveram um surto de amnésia? Ou será
que foi Alzheimer? Nada de pânico, estamos diante de uma
transferência de sentido, em que o ministro francês empregou o
abstrato pelo concreto, ou seja, o acervo do Museu Nacional do Rio
de Janeiro representava uma parte da memória da humanidade,
entretanto, infelizmente, desapareceu com as chamas.

Considerações finais

Acreditamos que, por intermédio da realização deste


trabalho sobre a presença constante e inconsciente das metáforas
no jornalismo (especificamente no cotidiano da Globo News),
obtivemos crescimento, no sentido de alcançar maior compreensão
de tamanha riqueza que subjaz na linguagem metafórica. Além
disso, também alimentamos a expectativa de que, por meio desta
pesquisa, ampliaremos o cabedal teórico sobre as metáforas, sem
ficar apenas na degustação da beleza que delas advém.
Sem sombra de dúvidas, temos a convicção de que este
trabalho contribuirá também, de forma categórica, para o
aprimoramento da nossa prática docente nas aulas de Língua
Portuguesa, uma vez que, com base nos pressupostos teóricos,
haveremos de chegar a melhores resultados ao nos valermos desse
conhecimento como forma de desenvolver o potencial cognitivo
de nossos alunos.
Queremos deixar claro que, em nenhum momento, esta
pesquisa teve a pretensão de apresentar definições ou conceitos
cabais sobre um tema permeado de tamanha complexidade. O

112 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
intuito foi demonstrar que o estudo da metáfora é um caminho
particularmente frutífero de abordar as questões lógicas,
epistemológicas e ontológicas, que são vitais para adquirir uma
compreensão adequada do que é a experiência humana.
Ao longo da pesquisa, foi possível constatar que o canal de
notícias Globo News não se restringe ao relato objetivo e conciso
dos fatos, mas transmite os principais eventos do cotidiano,
quase sempre metaforicamente, conforme afirmam Lakoff &
Johnson (2002) sobre o uso das metáforas, “está infiltrada na vida
cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e
na ação”. Destarte, conceituamos a metáfora como uma forma de
organização cognitiva, fundamental para a nossa compreensão
da realidade. As expressões metafóricas consistem, portanto, em
um reflexo da capacidade que temos de transformar a experiência
corpórea e sensorial em pensamento por meio da linguagem,
constituindo-se o modo mais comum de pensar.

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116 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 97-116 – jul./dez. 2018
USANDO ESTATÍSTICA NÃO PARAMÉTRICA NA
ANÁLISE DA CONDIÇÃO DE SINCERIDADE DE
TEXTOS OPINATIVOS

APLICATING NONPARAMETRIC STATISTIC IN


ANALYSIS OF THE SINCERITY CONDITION OF
OPINION TEXTS

Wagner Ferreira Lima (UEL)1


Guilherme Biz (UEL)2

RESUMO: Pesquisas em ciências humanas nem sempre empregam metodologia


estatística na análise dos dados. Especificamente em estudos da linguagem, isso pode ser
o caso porque se acredita que, devido à natureza de seu objeto (significados linguísticos),
a análise requer principalmente interpretação, mais do que quantificação. Contudo,
longe de negar a importância da interpretação, metodologia estatística pode auxiliar a
análise dos fenômenos verbais. Ela pode racionalizar os dados, organizar os processos e
testar hipóteses de maneira mais robusta e objetiva. É nesse sentido que se desenvolve a
presente discussão. Procurar-se-á demonstrar como realizar uma análise estatística de um
traço do significado de atos de fala, conhecido por condição de sinceridade. A partir da
análise de um item do questionário Likert usado em pesquisa prévia, apresentar-se-ão
os fundamentos da metodologia empregada e os resultados obtidos. Espera-se com essa
discussão motivar os pesquisadores em linguagem a fazer uso de metodologias estatísticas
em seus trabalhos.
Palavras-chave: atos de fala; condições de sinceridade; estatística não paramétrica;
teste W dos sinais ordenados de Wilcoxon; testes de hipóteses.

ABSTRACT: Researchers in human Sciences not always employ statistical methodology


in the data analysis. More specifically within language studies, this may happen because
one believes that, thanks to the nature of this object (linguistic meanings), the analysis
requires mainly interpretation, more than quantification. However, far from denying
the importance of the interpretation, statistical methodology can aid the analysis of the
verbal phenomena. It can streamline data, organize process and test hipothesis more
robustly and objectively. It is in this sense that developes the presente reflection. It will
1
Professor Associado do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas, da Universidade
Estadual de Londrina (UEL): <wagner.wagnerlima.lima@gmail.com>
2
Professor Adjunto do Departamento de Estatística, da Universidade Estadual de
Londrina (UEL): <gbiz@uel.br>

117 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
be sought to demonstrate how to achieve a statistical analysis of a meaning feature
of speech acts, known as condition of sincerity. From of the analysis of an item of the
Likert questionnaire used in previous research, the basis of methodology used and the
outcomes obtained will be presented. It hopes with this discussion to motivate language
researchers to make use of statistical methology in their works.
Words-key: speech acts; condition of sincerity; non parametric statistic; Wilcoxon
signed-ranks test statistic W; hypothesis tests.

Introdução

Existe um consenso no meio acadêmico de que as pesquisas
em ciências humanas são, e devem ser, distintas das pesquisas
experimentais naturalistas. Pesquisas em humanas são, nesse
sentido, consideradas essencialmente qualitativas. Assim sendo, é
compreensível que muitos pesquisadores das humanidades evitem
a estatística em suas análises, que é um instrumento metodológico
muito usado nas ciências da natureza. Pode-se dizer que essa
atitude epistemológica dos humanistas se fundamenta numa
espécie de “essencialismo metodológico”; segundo o qual cada
ciência contém uma natureza específica que a faz distinta das
demais e cujo tratamento é por essa razão sui generis também. Ao
comentar a atitude dos cientistas qualitativos, afirma Chizzotti
(2018),

estes cientistas [que compartilha da abordagem qualitativa] se


recusam a admitir que as ciências humanas e sociais devam-se
conduzir pelo paradigma das ciências da natureza e devam legitimar
seus conhecimentos por processos quantificáveis que venham a
se transformar, por técnicas de mensuração, em leis e explicações
gerais. Afirmam, em oposição aos experimentalistas, que as ciências
humanas têm sua especificidade — o estudo do comportamento
humano e social — que faz delas ciências específicas, com
metodologia própria (p. 79).

118 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
Especificamente quanto aos fenômenos da linguagem,
alega-se em geral que tais fenômenos constituem um tipo
de objeto cuja natureza é não-quantificável (LESSA DE
OLIVEIRA, 2008). Sobretudo para aqueles que estudam a
linguagem em uso, isso seria o caso entre outras coisas porque
a materialidade linguística é significativa (ORLANDI, 1999).
Logo, um tratamento estatístico levaria a uma perda do que é
mais caro a essas pesquisas, os chamados “efeitos de sentido”
(ORLANDI, 2005; GREGOLIN, 1995). O problema com essa
atitude epistemológica dicotômica é que ela acaba por promover
o isolamento entre as disciplinas acadêmicas, e não o diálogo
entre elas.
Mas as coisas não precisam necessariamente ser assim. Essa
oposição epistemológica pode ser atenuada – e de fato ela já o está
sendo –, quando se consideram os seguintes fatos:
(a) Atualmente muitas das áreas de conhecimento fazem
algum tipo de quantificação de dados. Basta uma breve consulta
às revistas acadêmicas mais relevantes para se convencer de que
esse é o caso3. A Estatística é para muitas áreas um importante
instrumento de testagem de hipóteses. Em termos gerais,
“estatística é a ciência que fornece os princípios e os métodos
para coleta, organização, resumo, análise e interpretação dos
dados” (VIEIRA, 2008, p.3). Ela permite a partir da análise
do comportamento de amostras estimar o comportamento da
população de onde essas amostras foram retiradas (ADEYEMI,
2009).
Por exemplo, se o objetivo é fazer previsões sobre o
comportamento de uma população – e este parece ser um dos
objetivos da Ciência – a estatística inferencial (TONDOLO;

3
Obviamente, se o objetivo da pesquisa for experimental.

119 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
SCHNEIDER, 2006) se apresenta como um importante aliado
dos estudos científicos.
(b) No trabalho com a linguagem em uso frequentemente
se está a lidar com construtos ou traços latentes (BORSBOOM;
MELLENBERGH; VAN HEERDEN, 2003), os quais têm
recebido tratamento estatístico no campo psicológico. Traços
latentes são dimensões do sentido que asseguram a consistência
dos comportamentos manifestos, como, por exemplo, a expressão
verbal (PASQUALI, 2013). Assim, “formações discursivas”
(PÊCHEUX, 1990; 1997), “modelo de situação” (ZAWAAN,
2016), “metáfora conceitual” (LAKOFF; JOHNSON, 2002),
“significado lexical” (BEAVERS, 2010), entre outros, são todos
exemplos de tais construtos. Uma análise fatorial (LAROS, 2012;
FIGUEIREDO F.; SILVA J., 2010) forneceria, por exemplo, um
tratamento mais sistemático das combinações desses construtos.
A importância da estatística se torna mais evidente quando
se está a analisar o fenômeno de compreensão leitora. Com efeito,
sabe-se que muitos fatores influenciam a compreensão de um
texto escrito (ANMARKRUD; BRÄTEN, 2009; FLETCHER,
2006). Considere-se o tema da compreensão do ponto de vista
pragmático. De modo geral, compreender um enunciado (aqui
um texto escrito qualquer) é o equivalente a reconhecer a intenção
comunicativa contida nele (GRICE, 1957). Searle (1983) afirma
que se trata de reconhecer o ato ilocucionário do enunciado
(LARRAZABAL; KORTA, 2002).
Searle e Vanderveken (1985) estabelecem pelo menos sete
componentes do significado dos atos ilocucionários (AUSTIN,
199). Cada qual constitui um dos parâmetros (ou propriedades)
que, em conjunto, definem uma categoria de ato ilocucionário
(promessa, asserção, interrogação, ordem etc.). E, como parâmetros

120 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
que são, eles podem ser quantificados por métodos empíricos.
A compreensão pode ser vista aqui como o resultado
da computação por parte do enunciatário desses diferentes
componentes. Dessa forma, o resultado da mensuração de um
ou mais parâmetros forneceria uma medida objetiva de leitura. A
demonstração abaixo vai focalizar especificamente sobre a medida
de um desses parâmetros, a saber, a “condição de sinceridade”.

Condição de sinceridade
É definida da seguinte maneira por Searle e Vanderveken
(1985):

Sempre que se realiza um ato ilocucionário como um conteúdo


proposicional, expressa-se um certo estado psicológico com esse
mesmo conteúdo. Desse modo, quando se faz uma declaração
expressa-se uma crença, quando se faz uma promessa expressa-se
uma intenção, quando se emite um comando expressa-se um desejo
ou querer. O conteúdo proposicional do ato ilocucionário é em geral
idêntico ao conteúdo proposicional do estado psicológico expresso4
(SEARLE; VANDERVEKEN, 1985, p. 124).

Atos determinados pela condição ora descrita são


considerados “sinceros”. Mas nem sempre atos ilocucionários
funcionam assim na vida real. O enunciador pode expressar um
estado psicológico, por exemplo, uma crença, sem ter esse estado,
como na mentira. Atos ilocucionários com tais características são,
por outro lado, definidos como “insinceros”. Esses últimos atos de
fala são considerados defeituosos, mas não malsucedidos. Nesse

4
Whenever one performs an illocutionary act with a propositional content one expresses a
certain psychological state with that same content. Thus when one makes a statement one
expresses a belief, when one makes a promise one expresses an intention, when one issues a
command one expresses a desire or want. The propositional content of the illocutionary act
is in general identical with the propositional content of the expressed psychological state.

121 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
tocante, vale salientar que a explicação de Searle e Vanderveken
(1985) de condição de sinceridade é uma do tipo analítico
ou formal; o que não se permite saber se os enunciatários são
efetivamente sensíveis a essa condição. Assim sendo, a aferição
dessa sensibilidade requer um estudo empírico mais do que
analítico.
Em vista disso, procurou-se aferir empiricamente a
relevância dessa condição para a compreensão do significado dos
atos de fala, tal como é descrito pela pesquisa relatada abaixo.
Nessa pesquisa, da qual a presente discussão é parte constitutiva,
a estatística aparece como um instrumento crucial para a análise
do significado, no que tais componentes do significado dos atos
ilocucionários afetam como o(a) leitor(a) vai interpretar o texto.
Sendo as causas da compreensão leitora, eles podem ser fatorados
e correlacionados com esse comportamento. Logo o processo de
leitura pode ser medido.
Um dos caminhos possíveis para se aferir empiricamente
a determinação da condição de sinceridade é manipulando
as contingências de congruência entre dois aspectos do ato
ilocucionário: o proferimento do texto e os movimentos biológicos
associados a ele; e com isso gerar incoerência entre tais aspectos.
Então, o efeito disso sobre o leitor pode ser medido
usando uma escala do tipo Likert. Contudo, a invés de se adotar
uma medida direta, em que são feitas afirmações explícitas
sobre os efeitos (WILSON; LINDSEY; SCHOOLER, 2000),
é recomendável o uso de uma medida indireta (NOSEK;
HAWKINS; FRAZIER, 2011; GREENWALD; BANJI,
1995); questionando, não o efeito propriamente dito, mas sim as
características dos enunciadores.

122 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
O presente artigo
Pretende apresentar uma metodologia estatística de
análise de dados cognitivos – os escores de alunos em testes de
percepção das condições de sinceridade de textos-estímulo. Em
vez de se apresentarem os resultados de todos os testes de hipótese
realizados em pesquisa prévia, será efetuada a análise de escores
relativos unicamente a um dos itens (Ii) da escala elaborada para
tanto. As respostas a eles serão então analisadas de acordo com
o método estatístico adotado, o Teste W dos sinais ordenados de
Wilcoxon (Teste W).
O objetivo geral dessa apresentação é demonstrar como
é possível fazer um estudo estatístico de dados referentes às
inferências dos leitores. O objetivo específico é evidenciar
como hipóteses científicas relativas à linguagem podem ser
estatisticamente testadas, de maneira a fazer os resultados mais
robustos. A condição para tal é saber escolher o teste estatístico
apropriado e empregá-lo corretamente.
Em primeiro lugar, procurar-se-á esclarecer o método
estatístico, explicitando seus pressupostos epistemológicos e
justificando sua escolha. Feito isso, será realizada a análise de
forma tradicional; isto é, sem fazer uso de programas estatísticos
sofisticados presentes no mercado. Essa análise, feita dessa
maneira, consegue explicitar a lógica que sustenta o raciocínio
do modelo. Por fim, será realizada a discussão geral sobre os
resultados, no sentido de apontar como pode ser aprimorado o
estudo de fenômenos da linguagem, como a compreensão leitora;
ao se empregar uma modelagem estatística.
A pesquisa anterior
Este artigo se baseia nos resultados obtidos na primeira
parte da pesquisa Teoria da mente e compreensão textual. Como

123 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
condições de produção podem influenciar a leitura de intenções
comunicativas (2018), coordenado pelo Prof. Dr. Wagner Ferreira
Lima, da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Nessa
primeira parte o objetivo era entender a sensibilidade dos leitores
às condições de sinceridade dos textos-estímulo.
Os resultados foram obtidos através de análise estatística
de respostas a um questionário de concordância do tipo Likert
(BERMUDES et al., 2016; SILVA JR.; COSTA, 2014;
NEMOTO; BEGLAR, 2014; BROWN, 2000). Escala do tipo
Likert é um instrumento de medida muito utilizado em estudos
de atitudes (FERGUNSON; FUKUKURA, 2012).
No caso, elaborou-se uma escala de concordância com 5
postos, ou níveis, de concordância. O posto 3 era o nível neutro; os
postos 2 e 1, os níveis decrescentes de discordância; e os postos 4 e
5, os níveis crescentes de concordância. A escala continha 12 itens
(I1,2...i), cada qual fazendo uma afirmação acerca das características
do autor(a) dos textos lidos. Era em relação a tais afirmações que os
sujeitos (alunos do 9. ano) expressavam seu nível de concordância,
assinalando o posto correspondente a sua avaliação. A atitude dos
sujeitos era a variável dependente da pesquisa.
Foram selecionados 52 alunos (n = 52) do 9. ano escolar
do Colégio de Aplicação Pedagógica da UEL. 26 dos quais são
do sexo feminino (Fi); e 26, do sexo masculino (Mi). A média de
idade da amostra é de 15 anos. Nenhum deles apresentava laudo
médico de alguma espécie que pudesse enviesar as respostas.
Cada aluno foi submetido individualmente a uma sessão de
testes, com duração média de 0h10. Nesse período era solicitado
a eles ler um texto com uma valência positiva (Pi), e outro com
valência negativa (Ni). Na próxima fase o mesmo procedimento
era repetido; porém agora acompanhado de uma foto retratando
uma figura que poderia estar numa postura congruente com a

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valência do texto (Ci); ou incongruente com ela (ICi). Para cada
condição (“só texto” (Ti) ou “texto mais foto” (TiFi)) era requerido
a avaliação do(a) autor(a) usando a referida escala.
Assim, cada participante lia duas vezes cada modalidade
de texto e respondia a quatro escalas, que traziam sempre as
mesmas afirmações. Metade da amostra (13 garotos e 13 garotas)
respondia as escalas na condição de congruência (Ci); outra metade
(13 garotos e 13 garotas) as respondia na condição incongruente
(ICi). O produto final foi a produção de 2.496 observações (= “4”
(questionários) X “12” (itens) X “52” (participantes)).
Os resultados desta pesquisa sugerem que os leitores
são sensíveis às condições de sinceridade dos textos. Quando a
postura retratada nas fotos era pragmaticamente incompatível
com a valência dos textos, verificou-se diferença significativa de
distribuição entre as amostras pareadas: Ti comparado com TiFi,
em diferentes condições (Ci/ICi; Pi/Ni; Mi/Fi). Esse achado indica,
além disso, que os leitores contam com dicas extralinguísticas,
como a postura e gestos dos enunciadores, para avaliar as condições
de sinceridade do texto; tal condição sendo assim crucial para as
interações sociais.

A estatística W do teste dos sinais ordenados de Wilcoxon



Somente é aplicada aos dados pareados (comparando, por
exemplo, respostas antes e depois de um tratamento) (VIEIRA,
2010). Ou seja, as amostras devem ser dependentes, uma sendo
controle da outra. Outra restrição é que “a variável em análise seja
ordinal ou numérica e a diferença entre as observações do mesmo
par possa ser ordenada” (VIEIRA, 2010, p. 122. Grifo no original).
Categorias ordinais indicam a ordem crescente ou decrescente

125 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
de um processo considerado contínuo, como o fenômeno de
concordância analisado abaixo. Medem-se nesses casos postos
ou ranques, e não grandezas numéricas. Além dessas, há outras
condições mais gerais para a escolha dessa estatística, a saber:
(1) O parâmetro populacional em estudo (média, mediana,
desvio padrão, variância, proporção etc.) é desconhecido (VIEIRA,
2008). Até que se obtenham resultados extensivos e consistentes
sobre a percepção das condições de sinceridade, é difícil dizer se
os dados seguem uma distribuição normal. Para se certificar da
normalidade da distribuição, sugere-se correr um teste de Shapiro-
Wilk, que serve para testar normalidade (HAZALI, 2011). Com
base nos resultados é possível decidir por testes paramétricos ou
não paramétricos.
(2) O tamanho da amostra. A estatística W é apropriada
a pequenas amostras, até 20 valores (n´ ≤ 20). Acima disso é feita
uma aproximação dessa estatística com um teste paramétrico, a
estatística Z.
Considerados esses pressupostos, a estatística W do teste
de sinais ordenados de Wilcoxon se realiza, segundo Bove (2003),
mediante os seguintes passos5:
Passo 1: Em primeiro lugar, é preciso obter-se um escore
de diferenças Di entre duas medidas. Isso é realizado subtraindo
a observação de uma amostra X1i da observação de outra amostra
X2i correlacionada (Di = X1i - X2i).
Passo 2: Os valores resultantes dessa operação aritmética
dão lugar a uma nova amostra constituída por valores positivos
“+”, valores negativos “-” ou zeros “0”. Então, negligenciam-se os
sinais das diferenças, e obtém-se uma amostra n de diferenças
absolutas |Di|.

5
Esta descrição é uma adaptação da feita por Bove (2003).

126 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
Passo 3: O próximo passo é omitir, de qualquer análise
posterior, escore de diferença absoluta igual a “0”. Produz-se,
assim, um conjunto n’ – pontuação de diferenças absolutas não-
zero –, em que n´ ≤ n. Dessa forma, n’ se converte no tamanho
real da amostra |Di|.
Passo 4: Obtido esse resultado, o próximo passo é ordenar
(ranquear) Ri de “1” a n’ para cada um de |Di|. Nessa ordenação,
atribui-se ao valor de diferença absoluta mais baixa o posto “1”
até alcançar o posto final equivalente a n’. Contudo, se dois ou
mais |Di| são iguais, então eles são somados e o resultado, divido
pelo número deles. A média obtida dessa operação deve ocupar
os postos que os valores envolvidos nessa aritmética teriam caso
não fossem iguais.
Passo 5: A seguir, os sinais “+” e “-” são designados a cada
um dos postos Ri de n’, dependendo de se Di era originalmente
positivo ou negativo.
Passo 6: Finalmente, a estatística W do teste de Wilcoxon
é obtida a partir da soma dos postos positivos, conforme equação
abaixo.
Equação do teste de Wilcoxon:

Fundamentos
O teste W dos sinais ordenados de Wilcoxon se baseia no
total de postos positivos, tal que, ao invés de se analisarem ambas as
somas que constituem a separação (W+ e W-), pode-se considerar
apenas as somas positivas (W+). A soma de 1+2+3...+n’ de todos

127 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
os postos de Di é igual a “n(n+1)/2”. Se essa soma de postos é para
ser dividida igualmente entre duas amostras (W+ e W-), então
cada um dos dois totais deve ficar próximo de “n(n+1)/4”, que é
a metade de “n(n+1)/2”.
A significância do teste é dada pela comparação entre os
valores de n’. Para se rejeitar a H0 e complementarmente se aceitar
H1 é fundamental que a soma dos postos “+” (W+) e a soma dos
postos “-” (W-) apresentem diferenças significativas. Do contrário,
se essas somas forem aproximadamente iguais (“Δ = 0”), então
a H0 vai ser aceita e H1 rejeitada. A significância do nível de
afastamento das amostras é fornecida por uma tabela de valores
críticos. No caso, emprega-se a tabela de Wilcoxon (cf. VIEIRA,
2010, p. 232). O nível de significância admitido é normalmente de
5%, o chamado erro α – que é a probabilidade de o teste estatístico
estar errado (p ≤ 0,05). Para se obter o valor crítico, com o qual
o valor do teste W vai ser comparado, considera-se a soma dos
postos (independentemente dos sinais e com exceção dos “0”); e
localiza-se na tabela de Wilcoxon o valor crítico correspondente
a ela, ao nível de significância de 5%.
Uma forma mais rápida e acurada de se fazer esse cálculo
das distribuições de W é o uso de um software estatístico. Mesmo
que o valor do teste seja resolvido manualmente, como se verá
abaixo, é sempre prudente considerar os resultados gerados pelos
programas de estatística, no tocante ao cálculo da distribuição
sob a H0.
A seguir, apresentar-se-á a análise estatística de um dos
itens da escala, o item 9 (I9), empregando a estatística W dos
sinais ordenados de Wilcoxon. A escolha desse item específico
se deve a que, numa estatística prévia, focalizando a frequências
das observações, I9 mostrou uma diferença de distribuição inversa

128 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
entre as amostras pareadas Ti e TiFi, nas condições Ii e Ni. Essa
distribuição sugere que a H0 (Δ = 0) foi rejeitada; e a H1 (Δ
≠ 0), aceita. Esse achado é relevante para se evidenciar como
inferir dados a partir de números requer um conhecimento de
modelagem estatística.

A demonstração de uma análise

A produção dos dados


Imagine que você queira conhecer o nível de proficiência de
compreensão leitora de um grupo de alunos do ensino médio. Por
formação você sabe que o significado é complexo e multifacetado.
E, por formação também, você sabe que existem tantas definições
de leitura quantas são as teorias. Então, você decide por um modelo
pragmático de estudos linguísticos. Você assume que compreender
um texto é satisfazer a intenção comunicativa de um ato de fala.
Mas o significado de um ato de fala é algo abrangente. E o próprio
conceito de ato de fala é motivo de disputa.
Você coloca, então, as seguintes questões: Qual ato de fala
contém um texto escrito? E, dada a complexidade do significado, que
aspecto abordar? Digamos que você opte por textos opinativos6
(BOFF; KÖCHE; MARINELLO, 2009). Uma análise técnica
indica que o ato de fala que predomina é a asserção, pois o texto
se caracteriza pela exposição de eventos. Além disso, verifica-se
também que o(a) autor(a) faz questão de imprimir suas marcas
pessoais e subjetivas, e claramente sugere que o que ele está

6
Considerados na presente discussão como exemplares não-típicos de “artigo de opinião”,
“gênero textual que se vale da argumentação para analisar, avaliar e responder a uma questão
controversa. Ele expõe a opinião de um articulista, que pode ou não ser uma autoridade no
assunto abordado. Geralmente, discute um tema atual de ordem social, econômica, política
ou cultural, relevante para os leitores.” (BOFF; KÖCHE; MARINELLO, 2009, p. 3)

129 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
fazendo é defender seu ponto de vista. Portanto, trata-se de um
texto de opinião. A primeira questão está resolvida. Falta, no
entanto, a segunda.
Como defendem muitos pragmatistas, o significado de um
ato de fala pode incluir muitos componentes; um do quais como
se viu sendo a regra de sinceridade (RIDGE, 2006; SEARLE,
1975), a saber, a coincidência esperada entre o que o falante
tem em mente e o que ele expressa como ato. É esperado que o
destinatário seja capaz de reconhecer a compatibilidade entre ato
de fala é o estado mental que o antecede. Fazendo isso, ele satisfaz
essa condição. Você opta, assim, por verificar como os alunos
inferem a condição de sinceridade dos textos lidos.
Mas você suspeita que, como tudo o mais no sentido, as
condições de sinceridade estão ligadas ao contexto. E isso é mais
patente em formas de comunicação complexas, como o texto
escrito. Dessa maneira, você decide pesquisar tais condições
na relação entre o(a) autor(a) e sua produção verbal. A acurácia
da percepção das condições de sinceridade vai depender da
exploração por parte dos leitores dessa relação.
Como essa relação pode estar verbalmente marcada no
texto, ou manifestar-se na ligação do texto como uma imagem
visual retratando a postura do suposto(a) autor(a); você pode
conjecturar que os alunos são capazes de julgar essa relação na base
da leitura unicamente do texto (Ti); ou então na base da leitura do
texto junto com a imagem visual do seu/sua autor(a) (TiFi). Você
pode conjecturar também que, quando a postura do(a) autor(a)
presente no texto e aquela presente na imagem são incongruentes entre
si, do ponto de vista intermodal as condições de sinceridade falham e
os leitores experimentam um estranhamento.
Para otimizar os resultados que se quer obter, você
mesmo(a) pode produzir os estímulos, tanto textuais quanto

130 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
visuais. E é o que você faz. Você produz textos (Ti) com temas
e valências distintos, positivo (Pi) vs negativo (Ni); e imagens
fotográficas (Fi) congruentes (Ci) e incongruentes (ICi) com tais
classes de textos.
Nessa etapa de seu raciocínio, você poderia aventar muitas
hipóteses. Mas, por razões de simplicidade, aqui se destaca apenas
uma: você supõe que as amostras de Ti e de TiFi são diferentes de
“0” (i.e., pertencem a distribuições distintas, e, portanto, não estão
sujeitas ao acaso), quando consideradas à luz das condições Ni e
ICi. Esta seria sua hipótese alternativa (H1), a que motiva a sua
pesquisa. Ela se opõe, com efeito, à chamada hipótese nula (H0);
considerada default e a que você precisa rejeitar para começar a
provar seu ponto de vista7.

H0: ∆ = 0
H1: ∆ ≠ 0

Até aqui se está a supor que você optou por um estudo


empírico. Assim, você precisa produzir as observações para análise.
Ou seja, colher amostras dos julgamentos dos sujeitos a respeito
da relação mencionada acima. Você toma então uma decisão
metodológica: escolhe uma escala de concordância do tipo Likert
para esse fim. Por falta de um protocolo já consagrado para mapear
tais julgamentos, você mesmo(a) confecciona sua própria escala;
seguindo, obviamente, os parâmetros psicométricos de confecção

7
O símbolo delta “∆” nas fórmulas está no lugar da variável “distribuição”.

131 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
de escalas. O instrumento resultante de seu trabalho poderia
apresentar o seguinte formato8:
Figura 1: Formato da escala empregada na pesquisa acima
relatada.

Aplicadas a escalas por meio de testes de leitura com os


alunos da escola, você obtém os dados que vão ser submetidos
á análise estatística. Os procedimentos da coleta de dados são
os mesmos descritos no tópico acima “a pesquisa”. Assim, é
dispensável a descrição desses procedimentos uma vez mais. Antes
de escolher o método estatístico, convém observar se a distribuição
dos seus dados é paramétrica ou não paramétrica. Para tanto basta
considerar os critérios epistemológicos acima. Contudo, ao aplicar
aos seus dados o teste de normalidade de Shapiro-Wilk9 (1965),
você se certifica que sua análise terá de ser não paramétrica. O
teste rejeitou a H0 (p = 0.0001), o que significa que seus dados não
seguem uma distribuição normal e, por conseguinte, eles devem
ser tratados por uma estatística não paramétrica.
Rapidamente você nota que está trabalhando como um
parâmetro desconhecido, pelo menos em nível de tratamento

8
Cada nível de concordância é substituído, durante a análise e quantificação das
observações, por um valor numérico em ordem crescente (1 a 5). Esse ordenamento mapeia
o julgamento do leitor, conceitualizado como um fenômeno que cresce à razão dos números.
9
Teste de Shapiro-Wilk é um indicado para verificar se os dados provêm de uma
distribuição normal. Com efeito, realiza-se um teste de hipóteses na qual a normalidade
está sob a H0 e a não normalidade sob a H1. Assim, se a H0 for rejeitada, isso significa
que os dados não seguem uma distribuição normal.

132 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
empírico. Observa também que, após transformações, as
observações das amostras provavelmente vão ser iguais ou menores
que 20 unidades (n’ ≤ 20). Como cada participante vai ser testado
duas vezes consecutivas, uma na condição de T i e outra na
condição de TiFi; logo as amostras vão ser dependentes, o sujeito
sendo controle dele mesmo. Finalmente, a variável dependente
– o julgamento de concordância dos participantes – é do tipo
qualitativa, e não quantitativa; o emprego de postos sendo mais
apropriado para esse tipo de medida. Uma vez que todas essas
características são positivas para seus dados, isso lhe dá a certeza
de que sua pesquisa se encaixa no quadro das estatísticas não
paramétricas.
Além disso, o fato de o sujeito ser testado duas vezes,
produzindo amostras combinadas, é indicativo de que o modelo
estatístico mais adequado para a análise de seus dados é a
estatística W dos sinais ordenados de Wilcoxon. Dessa maneira,
a fim de efetuar o teste de hipóteses, você tem antes de obter o
valor do teste W. Para fazer isso é só seguir os seis passos descritos
acima. Senão, veja!

Aplicação do teste W
Como dito acima, na Introdução, o objetivo deste texto é
demostrar uma análise estatística para fenômenos da linguagem.
Desse modo, o que se segue é a análise de apenas de um item da
escala, cujos dados se mostraram muito diferentes de uma amostra
para outra. Mais especificamente, na passagem de Ti (só texto)
para TiFi (texto + foto), nas condições de ICi (incongruência)
e Ni (negativo). O item em questão é o nono da escala (I9),
elaborado para aferir o nível de concordância do leitor em relação
a afirmações sobre o sentimento de “confiança”.

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Figura 2: Item 9 da escala tipo Likert empregada na pesquisa.

Tal sentimento foi postulado ser eliciado pela postura


do(a) autor(a) durante a leitura; e estar integrado às condições
de sinceridade do ato de fala em consideração. Os participantes
pertencem ao grupo correspondente à condição de IC
(incongruência)10, por isso apresentam numeração alta, de 27 até
52. Esse grupo inclui sujeitos dos sexos masculino e feminino.
Os passos para se encontrar o valor observado de W estão
sintetizados no quadro abaixo:

10
Os 52 participantes foram numerados em ordem crescente e divididos em dois grupos
de 26 alunos, um grupo para a condição C (1 a 26) e o outo para a condição IC (27 a 52).

134 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
Figura 3: Tabela dos passos envolvidos no teste de sinais
ordenados de Wilcoxon.
Passo 1 Passo 2 Passo 3 Passo 4 Passo 5
Participantes X1i X2i Di=X1i-X2i |Di| R1 Sinal de Di
27 3 4 -1 1 6.5 -
28 3 5 -2 2 15 -
29 2 4 -2 2 15 -
30 5 5 0 / /
31 3 4 -1 1 6.5 -
32 2 3 -1 1 6.5 -
33 5 4 1 1 6.5 +
34 4 4 0 / /
35 2 5 -3 3 18 -
36 3 3 0 / /
37 2 4 -2 2 15 -
38 5 5 0 / /
39 4 3 1 1 6.5 +
40 5 5 0 / /
41 4 3 1 1 6.5 +
42 5 3 2 2 15 +
43 4 4 0 / /
44 3 5 -2 2 15 -
45 3 3 0 / /
46 3 4 -1 1 6.5 -
47 4 3 1 1 6.5 +
48 3 3 0 / /
49 5 4 1 1 6.5 +
50 3 4 -1 1 6.5 -
51 4 5 -1 1 6.5 -
52 3 4 -1 1 6.5 -

135 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
Com essa análise, obtêm-se dois ranques ordenados, um
com sinais positivos “+” e outro com negativos “-”. Os “0” foram
descartados. A fim de se certificar da correção dessa operação,
sugere-se que a soma dos postos resulte no mesmo valor da
seguinte equação: n’ (n’ + 1)/2. Veja!

W- = 6.5+15+15+6.5+6.5+18+15+15+6.5+6.5+6.5+6.5 = 123.5

W+ = 6.5+6.5+6.5+15+6.5+6.5 = 47.5

Considerando-se a soma de W+ (“54”) e W- (“117”),
verifica-se que o valor total é igual ao valor obtido pela equação:

n’ (n’ + 1)/2
18 (18 + 1)/2
18.19/2
342/2 = 171

Logo, W+ + W- = “171”.
O Passo 6 é, então, o somatório dos postos positivos, os que
apresentam o sinal de “+” (o valor dos n’ ordenados positivamente,
conforme a fórmula abaixo). Com isso, obtém-se o valor observado
W (o valor do teste de Wilcoxon). Tal valor é, portanto, “47.5”.

Como antecipada acima, a hipótese alternativa (H 1)


aventada nesse teste é a de que existem diferenças entre

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observações de “T” (só texto) e “TF” (texto + foto), nas condições
“N” (negativo) e “IC” (incongruente). Assim, a “distribuição”
entre as duas amostras para o item 9 (I9) é esperada ser “diferente
de 0”. Supõe-se, portanto, que a imagem da foto pode mudar
o julgamento dos leitores em relação ao autor(a) do texto. Isso
poderia acontecer em ambas as direções: para melhor (reforçando
a congruência texto-foto), ou para pior (embotando essa
congruência, ao surpreender o leitor de algum modo).

Hipóteses: H0: ∆ = 0
H1: ∆ ≠ 0
Tomando as diferenças entre W+ e W-, nota-se que o valor
deste último é maior que o daquele primeiro. Isso significa que as
observações de X2i (condição TiFi) mudaram para postos mais altos
dentro da escala, em comparação com os postos correlatos em X1i
(condição Ti). Esse evento indica que mais participantes tenderam
a perceber o autor do texto como menos negativo, quando o texto
foi lido acompanhado pela imagem fotográfica dele.

Figura 4: Tabela de distribuição de amostras de acordo postos


da escala tipo Likert.
Observações
Condições Posto 1 Posto 2 Posto 3 Posto 4 Posto 5
Ti 0 4 10 6 6
TiFi 0 0 8 11 7

A princípio, esse achado sugere que houve uma interação


entre a variável dependente I9 e as variáveis independentes TF, N
e IC (a forma dessa interação estando ainda para ser esclarecida).

137 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
Por outras palavras, as observações relativas ao item 9 foram de
algum modo influenciadas pelas referidas condições. Contudo,
essa interpretação não informa se as diferenças encontradas são
estatisticamente significativas.
Nesse ponto, é preciso tomar cuidado. Pois é aqui que
muitos pesquisadores da linguagem que se aventuram a usar
gráficos estatísticos (como os do Excel) se equivocam. Eles tendem
a olhar para a diferença dos números, mais especificamente para
as diferenças de frequência dos fatos linguísticos; e não para o que
é mais importante quando a análise é de natureza estatística: a
diferença de distribuição das amostras. Só o teste de hipótese pode
revelar a significância do teste, e se o mesmo rejeitou ou não a H0.

Distribuição da estatística W do item 9


Sob a H0 (∆ = 0) espera-se que (a) a amostra Ri contenha
aproximadamente números iguais de sinais positivos (+) e
negativos (-); (b) a soma dos postos positivos seja comparável em
grandeza à soma dos postos negativos; e (c) cada posto tenha a
mesma probabilidade de ser associado com uma sinal “+” ou um
sinal “-” (MÉTODOS..., 2019). Neste último caso, a sequência
de postos sinalizados é uma de todas as possíveis combinações
de ±1, ±2, ±3... ±18. Existem então 218 combinações (1/264.144).
A H1 é complementarmente oposta à H0. Então, é de se
esperar que resultados diferentes dessas previsões refutem H0.
Nesse momento de decisão é preciso ter cuidado. Tomar
decisão sobre a verdade ou falsidade de H0 com base nas aparências
dos números pode induzir ao erro. Ao consultar o teste W acima,
você verifica que as situações previstas nos itens (a) e (b) acerca
da distribuição se verificam: Ri contém números muito diferentes
de sinais positivos e negativos (“6” contra “12”, respectivamente);

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e a soma dos postos positivos não são comparáveis em grandeza
à soma dos negativos (“47.5” contra “123.5”, respectivamente).
Isso significa que você rejeitou a H0? Não ainda. E a previsão (c)?
Você já sabe que a probabilidade de os sinais serem
igualmente associados a um posto é muito baixa. Isso é uma pista
de que você está no caminho certo de rejeitar H0. Contudo, para
se ter certeza disso é recomendável consultar a tabela de valores
críticos de Wilcoxon (VIEIRA, 2010, p. 232). A soma dos postos
sinalizados é “18”. Ao nível de significância de 5% (p-valor ≤ 0,05),
o valor crítico correspondente na tabela é “40”, menor que o valor
do teste estatístico W, que é “47,5”. Como o valor de W é maior
que o valor crítico, então você rejeita a H0 e, complementarmente,
aceita a H1. A partir desses resultados é legítimo afirmar que a
imagem fotográfica modifica, leve e sutilmente, a percepção acerca
do(a) autor(a).

Discussão geral

A análise ora realizada demonstra como pode ser feita uma


análise estatística não paramétrica de fatos da linguagem. No
presente caso, destacou-se um componente do significado, que
é a condição de sinceridade dos textos usados como estímulo na
pesquisa acima relatada. Verificou-se nessa análise que a H0 foi
rejeitada (valor do teste W é maior que valor crítico da tabela de
probabilidades). Em relação a esse resultado, vale destacar dois
pontos relevantes ao entendimento dessa forma de pesquisa.
Um dos quais é a importância da significância do teste; o outro
é a necessidade de se pautarem as conclusões da análise por essa
significância.
Quanto ao primeiro aspecto, ao se manipularem frequências
de dados, como acontece em algumas pesquisas em linguagem,

139 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
é de suma importância usar métodos estatísticos. Isso porque,
mesmo que a interpretação acerca dos dados seja plausível,
estatisticamente ela pode não ser significativa. Esse fato põe em
dúvida a valor da pesquisa. O profissional pode até usar uma
estatística descritiva para apresentar seus dados. Contudo, de
forma alguma deve ele generalizar os resultados e usar isso para
explicar o comportamento da população. Se seu objetivo é esse,
então ele precisa usar uma estatística inferencial – e de preferência
uma do tipo paramétrico. Em caso de dúvida, o melhor é manter
a discussão só no nível analítico mesmo.
No tocante ao segundo aspecto, o da orientação das
conclusões pela significância do teste, é crucial o pesquisador
que administra dados numéricos usar modelos estatísticos. A
relevância dessa exigência está em que uma estatística meramente
descritiva (etapa inicial da análise usada para descrever e resumir
dados) pode enganar. Observou-se na análise acima do Item 9 que
a aparência das distribuições conduziu a uma conclusão correta: “as
amostras são diferentes de ‘0’, logo a hipótese nula foi rejeitada”.
Mas poderia também, dependendo das características dos dados,
levar a uma conclusão equivocada. O fato de o comportamento
dos números sugerir diferenças esperadas nem sempre é sinal de
que eles refutam H0. Esse cuidado é mais urgente ainda quando
se está a lidar com modelos não paramétricos, como o teste W.
Em suma, o uso da estatística como instrumento de análise
pode tornar mais robustos os dados da pesquisa em linguagem.
Mais do que oferecer uma descrição numérica dos dados, a
estatística permite explicitar de forma mais objetiva a lógica
subjacente a um comportamento estudado. A estatística W dos
sinais ordenados de Wilcoxon mostra que o tratamento estatístico
revela a causa da distribuição das amostras; e esclarece quando tal

140 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
distribuição exibe uma aparência estatisticamente significativa,
como no caso do Item 9 analisado aqui.

A condição de sinceridade como um construto


Em que pese a relevância da definição analítica para o
entendimento dos atos ilocucionários, o projeto de Searle e
Vanderveken (1985) se afasta, contudo, da proposta inicial de
J. Austin de viabilizar cientificamente o estudo pragmático
(MARCONDES, 2006). Com efeito, a sistematização proposta
por esses autores acontece de alguma forma às custas da eliminação
do contexto. A classificação deles se baseia em casos idealizados
de atos ilocucionários, tão-somente os bem-sucedidos e não
defeituosos. Especificamente, ela exclui do seu escopo os atos
perlocucionários (AUSTIN, 1990) – as consequências dos
atos ilocucionários –, os quais são constitutivos do contexto da
enunciação e relevantes para a estudo da leitura. Vale lembrar que
o entorno da enunciação é um dos fundamentos da concepção
pragmática da linguagem, no que o significado de uma expressão
verbal é visto como o uso que o falante faz dela em um dado
contexto (MARCONDES, 2006).
Quanto à condição de sinceridade, Searle (1984) e Searle
e Vanderveken (1985) apenas informam a ocorrência de atos
ilocucionários insinceros, mas não dizem como os mesmos são
julgados como tais. Seja a seguinte inferência acerca de um ato
insincero de promessa: “Ele prometeu parar de fumar, mas ele
está mentindo.” Como o enunciatário percebe a mentira na fala
do enunciador? A execução da promessa é bem-sucedida, pois
o enunciatário interpretou o ato como expressando o estado
psicológico de “promessa”. Mas ele é defeituoso, pois o enunciador
não está sendo sincero. A “insinceridade” não é parte do significado

141 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
analítico de promessa, mas é inferida pela incoerência entre os
dispositivos indicadores de promessa e as dicas do entorno da
enunciação.
Isso é um fenômeno empírico e psicológico, mais do
que formal e analítico. E isso conta muito para o desenrolar da
comunicação. Por isso, o estudo empírico de atos ilocucionários
deve ser, necessariamente, um do tipo incorporado e situado.
Nesse tocante, muitos trabalhos experimentais têm revelado que a
comunicação é uma interação complexa que envolve a interpretação
de sinais linguísticos e extralinguísticos, conjuntamente (MEHU,
2015; KELLY; ÖZYÜREK; MARIS, 2010). A razão disso
talvez esteja na circunstância de o engano tático ser parte das
relações interpessoais (OESCH, 2016); e mesmo em muitas
outras espécies, como os grandes símios (KIRKPATRICK,
2011). Uma definição simples de engano (deception), no contexto
da comunicação, é dada por Mitchell (1986 apud SEARCY;
NOWICKI, 2005). Engano é compreendido como o oposto de
confiança (reliance): “(1) Um receptor registra algo Y a partir de
um emissor; (2) O receptor responde de um jeito que é apropriado
se Y significa X; e (3) Não é verdade aqui que X é o caso.11” (p. 4).
Logo, engano acontece quando o receptor de um sinal
responde a ele de maneira apropriada, mas na realidade o sinal
não indica o que ele parece indicar. Como o engano constitui uma
possibilidade de interação social; alguns pesquisadores sustentam
que o meio fundamental de interação social, a linguagem humana,
tenha evoluído num ambiente de relacionamentos adversários.
Segundo essa hipótese, a linguagem humana é considerada
como um método fundamentalmente enganoso de comunicação
(SCOTT-PHILLIPS, 2006).

11
“1. A receiver registers something Y from a signaler; 2. The receiver responds in a way
that is appropriate if Y means X; and 3. It is not true here that X is the case.”

142 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
Talvez seja por isso que a mente humana parece estar
atenta a eventuais incoerências entre esses conjuntos de sinais
(verbais e não-verbais) (SAITOVITCH et al., 2012). Em
animais que vivem em sociedade, onde a confiança é importante,
o engano é um comportamento altamente custoso (OESCH,
2016; MEHU; SCHERER, 2012). Pesquisas encontraram que,
quando o trapaceiro é descoberto, ele é frequentemente punido
com severidade (LE ROUX et al., 2013).
O que também faz a comunicação ser um fenômeno
multimodal é o fato de a expressão do enunciador ser uma
importante fonte de informações a respeito de como o enunciatário
deve se engajar na interação social (KOPPENSTEINER;
STEPHAN; JÄSCHKE, 2016; MEHU; VAN DER MATTEN,
2014; REED; DESCIOLI; PINKER, 2014; VAN KLEEF,
2009). Essa situação é mais notável na interação verbal face a
face, em virtude da facilidade de se escrutinar expressão verbal
conjuntamente com movimentos biológicos (BENTON;
THIRKETTLE; SCOTT-SAMUEL, 2016), direção do olhar
( JOKINEN; NISHIDA; YAMAMOTO, 2009), gestos manuais
(BONAIUTO; MARICCHIOLO; GNISCI, 2000), gestos
faciais (CAMPANELLA; BELIN, 2007) etc. Mas também pode
ser apreendida, como se viu, durante a experiência dos leitores
com o texto escrito.
Seja como for, o fato é que o estudo empírico de um
construto teórico como a condição de sinceridade requer uma
consideração desse fenômeno não só em termos analíticos,
mas também psicológicos ou cognitivos. Isso foi realizado nos
estudos acima descritos. Acredita-se que, com essa ampliação
do conceito em direção aos elementos contextuais, é possível um
tratamento mais contundente e objetivo da dimensão pragmática
da linguagem.

143 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
A validade do instrumento
Para finalizar, uma questão que se pode colocar aqui é
se a escala usada na pesquisa captura de fato o construto em
consideração – a condição de sinceridade dos textos. Trata-se de
uma questão de validade do instrumento: A escala mede de fato
o que ela se propõe a medir? (PASQUALI, 2013) Nesse tocante,
valem dois esclarecimentos. Um dos quais é que a escala ordinal é
um meio de se aferir diretamente o julgamento dos participantes.
Sabe-se que medidas diretas nem sempre são preditores confiáveis
de comportamentos (GAZZANIGA, HEATHERTON, 2005)
especialmente se o objeto de avaliação for polêmico (STANLEY;
PHELPS, BANAJI, 2008). Uma razão para isso é que as pessoas
enviesam as respostas em direção a seus interesses pessoais, como
a “preservação da face” (KOCH, 1998).
Na pesquisa que se relatou, esse não foi o caso. Isso porque
os temas não eram polêmicos, não havendo motivos para que os
participantes escondessem suas reais atitudes12. Pelo contrário,
os alunos se mostraram bem à vontade com os assuntos, e até
mesmo críticos em relação a eles13. Esse fato eliminou o problema
da dissociação entre atitudes explícitas e atitudes implícitas,
ocasionada pela preservação da face (DAMBRUM; GUIMOND,
2004). Mas mesmo assim, só para se assegurar, propôs-se uma
escala que atuava de forma indireta sobre a percepção dos alunos.
Em vez de perguntas explícitas sobre as condições de sinceridade,
ela continha afirmações sobre os traços dos autores.
Com efeito, a lógica subjacente ao teste foi: se os alunos
são sensíveis a tais condições, e se estas têm a ver com a congruência
entre as posturas dos autores no texto e na imagem; então uma
12
Os temas são “Redes sociais” e “Sexo na adolescência”, que foram abordados de forma
superficial e estereotipada.
13
Observação pessoal.

144 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
condição incongruente, mais que uma congruente, ocasionaria um
estranhamento, que por sua vez levaria a uma mudança de julgamento
entre duas amostras pareadas, uma baseada na leitura unicamente do
texto e outra, na leitura do texto mais a imagem fotográfica.
O outro esclarecimento diz respeito ao desempenho dos
participantes como um ato de fala perlocucionário. Como se viu,
os textos-estímulo empregados na pesquisa são do tipo opinativo.
Mas a resposta aos itens da escala também o é. Cada item descreve
uma característica dos autores, acerca da qual os participantes
são solicitados a expressar seu grau de concordância. Trata-se de
uma forma de ato perlocucionário, pois o que está em jogo são
as consequências da leitura sobre os sujeitos. Essa é mais uma
razão para se considerar o contexto maior da comunicação em
um estudo experimental dos aspectos pragmáticos da linguagem.
Essa tarefa exigiu que os participantes considerassem as
condições de sinceridade dos textos, sem que essa exigência fosse
ela mesma declarada. A diferença significativa observada entre
Ti e TiFi, nas condições ICi e Ni, deveu-se a que as condições
de sinceridade foram transgredidas. Assim, elas ficaram mais
salientes para os sujeitos e fizeram-nos mudar seus julgamentos de
concordância. Seja como for, independente das condições, o fato é
que a escala foi construída no sentido de levar os participantes a
considerar a relação dos autores com seus respectivos textos. Mais
especificamente, a analisar se havia congruência entre a postura
afetiva dos textos e a postura corporal de seus autores.

Considerações finais

Demonstrar como a estatística pode ser empregada em


estudos da linguagem foi o objetivo deste artigo. A descrição

145 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 117-156 – jul./dez. 2018
que se fez baseou-se na análise de um item da escala de
concordância, extraída de uma pesquisa em curso atualmente. Em
tal demonstração, destacaram-se as condições epistemológicas
para se fazer a escolha de um modelo estatístico paramétrico ou
não-paramétrico. O teste W dos sinais ordenados de Wilcoxon
foi o escolhido, que é uma estatística não-paramétrica. Contudo,
existem mais pesquisas que se encaixam nesse tipo de estatística,
como o teste de Wilcoxon-Mann-Whitney (FAY; PROSCHAN,
2010) e o coeficiente de Kappa (VIERA; GARRET, 2005). Feito
isso, realizou-se efetivamente a análise do teste W, seguindo os
seis passos destacados.
Procurou-se com isso evidenciar que uma pesquisa sobre
compreensão leitora pode se valer de uma análise estatística. A
vantagem disso está em que os resultados são mais robustos, tal que
a pesquisa ela mesma ganha robustez epistemológica. Mas, vale
lembrar, não basta apenas empregar um modelo. É crucial saber
quando, como e por que usá-lo. Esse conhecimento se desenvolve
com o ganho de consciência da importância da modelagem
estatística na pesquisa científica.

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ANÁLISE DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NA
MODALIDADE DE EDUCAÇÃO ESPECIAL:
RECONHECIMENTO DE GÊNEROS TEXTUAIS

ANALYSIS OF PEDAGOGICAL PRACTICES IN THE


EDUCATION OF YOUNG PEOPLE AND ADULTS
IN THE SPECIAL EDUCATION MODALITY:
RECOGNITION OF TEXTUAL GENRES

Weslei Chaleghi de Melo¹


Givan José Ferreira dos Santos²
Isabel Cristina Cordeiro³

RESUMO: A presente pesquisa objetiva demonstrar um trabalho pedagógico com


gêneros textuais, suas significações e aspectos ligados às suas funções sociais, implementado
na Educação Especial e, mais especificamente, na EJA. A problemática discutida foi: De
que forma os gêneros textuais podem ser trabalhados junto aos alunos com necessidades
educacionais especiais na educação de jovens e adultos? Para isso, recorremos ao referencial
teórico de autores que discutem o assunto e buscamos realizar uma breve pesquisa de
campo para averiguar como tais conceitos podem ser validados na prática. Percebemos
que para se trabalhar gêneros textuais, faz-se necessário apresentar quais os usos de cada
gênero e como eles se inserem no cotidiano, ressignificando, assim, a aprendizagem. Na
pesquisa de campo, notamos a importância de utilizar recursos dinâmicos e práticas
interativas que levem em conta diferentes atividades, dando preferência às de cunho
visual. Para a averiguação prática da problemática, foi realizada a aplicação de aulas
e atividades com dez alunos, sendo que pelo menos nove desses alunos, com diferentes
necessidades especiais, conseguiram mostrar uma significativa aprendizagem perante
a proposta que envolvia os gêneros textuais e seu reconhecimento na modalidade de
educação especial vinculada à EJA.
Palavras-chaves: EJA; Educação Especial; Gêneros textuais.

ABSTRACT: This research aims to demonstrate a pedagogical work with textual


genres, their meanings and aspects related to their social functions, implemented in
Special Education and, more specifically, in the Education of Youth and Adults. The
problematic discussed was: How can textual genres be worked together with students with
special educational needs in the EYA? To do this, we used the theoretical framework of
authors who discuss the subject and we seek to carry out a brief field research to find out

157 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 157-176 – jul./dez. 2018
how such concepts can be validated in practice. We realize that working with textual
genres makes it necessary to present the uses of each genre and how they are inserted in
daily life, thus re-signifying the meaning of learning. In the field research, we note the
importance of using dynamic resources and interactive practices that consider different
activities, giving preference to those of a visual nature. For the practical investigation
of the problem, classes and activities with ten students were applied, and at least nine
of these students, with different special needs, were able to show a significant learning
in relation to the proposal that involved the textual genres and their recognition in the
modality of special education linked to the EYA.
Keywords: EYA; Special education; Textual genres.

Introdução

A educação de jovens e adultos, especialmente na educação
especial, deve partir de premissas que estejam ligadas às vivências
dos alunos, como é o exemplo dos gêneros textuais, em que o
professor ou orientador pode utilizar gêneros que fazem realmente
parte da vida do aluno, fazendo com que, dessa forma, o aluno
perceba o significado daquilo que está sendo ensinado, além de
perceber-se como um sujeito ativo no uso da linguagem.
O presente artigo foi desenvolvido com base nos resultados
de uma pesquisa aplicada em uma escola de Educação Especial
- APAE, durante o ano letivo 2018, no decorrer dos meses de
abril e maio, com a participação de dez alunos com diferentes
deficiências, como autismo, paralisia cerebral, síndrome de down.
Este artigo busca trazer a reflexão das práticas de ensino dos
gêneros textuais, a partir da análise de dados coletados por meio
de observações, propondo uma possível intervenção pedagógica
para resolver a problemática de como abordar o reconhecimento
de gêneros textuais na Educação Especial, especificamente na EJA.
Com essa pesquisa, buscamos analisar o reconhecimento
dos alunos da EJA sobre alguns gêneros textuais: cédula de

158 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 157-176 – jul./dez. 2018
dinheiro, rótulo, mensagem escrita de WhatsApp, poema, história
em quadrinhos (HQ), envolvendo a compreensão das funções
sociais desses gêneros.
A pesquisa implicou em quatro momentos: no primeiro,
realizamos uma pesquisa de campo, observando os alunos,
objetivando aferir a realidade do problema levantado; no segundo
momento, foi realizada a pesquisa bibliográfica, buscando autores
que tratam de forma relevante este assunto, utilizando-os como
suporte teórico norteador para a compreensão da dimensão do
problema e para a elaboração de uma intervenção pedagógica
eficiente no processo de ensino e aprendizagem; na terceira
fase, a pesquisa caracterizou-se pela aplicação de uma proposta
pedagógica para o ensino de alguns gêneros textuais do cotidiano
do aluno; e, por fim, após a aplicação, houve de forma analítica
a interpretação dos resultados e sistematização que veremos ao
longo deste trabalho.
Com essa pesquisa, buscamos uma breve análise e reflexão
em torno do Atendimento Educacional Especializado (AEE)
para alunos com necessidades educacionais especiais, levando
em consideração os amparos legais, as diretrizes da Educação
Especial que abordam o desempenho, objetivos e a caracterização
do AEE, sendo de ampla importância para a socialização dos
conceitos de Língua Portuguesa para alunos com necessidades
educacionais especiais. Por fim, realizamos uma análise sobre os
esclarecimentos que os profissionais da educação possuem (ou
não) sobre o trabalho com gêneros textuais dentro do ambiente
escolar onde trabalham.

159 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 157-176 – jul./dez. 2018
Gêneros textuais e seus usos cotidianos

Com o objetivo de se comunicar com outros seres


humanos, de acordo com Ferreira (2005), o ser humano criou
diferentes formas de linguagens. Por meio delas, podemos ter
acesso a informações, defender pontos de vista, argumentar,
produzir conhecimento, divertir, entreter, dentre muitas outras
funções. Para que tal comunicação ocorra, é preciso que haja uma
convenção e uma normatização do que está sendo escrito para
que assim haja entendimento mútuo.
O sentido da mensagem, conforme Ferreira (2005), se
estabelece para além de elementos verbais, se instaura também
com gestos e pela prosódia, dando um maior sentido à mensagem.
A leitura, dessa maneira, sempre envolverá compreensão, uma
relação que se concretiza entre leitor e texto veiculado nos casos
em que não há comunicação face a face. Mesmo que haja uma
interpretação subjetiva do texto, não podemos dizer que o texto é
uma tábula rasa a ser preenchida pelo leitor, destaca-se que quem
redigiu o texto possui uma finalidade.
Sobre tal aspecto, o autor esclarece:

Porém, como a leitura é o resultado da relação entre o leitor e texto,


não se pode concebê-la, por outro lado, como uma atividade de vale
tudo, ou como uma caixinha de surpresas, já que o autor tem um
projeto de dizer e utiliza de estratégias de organização textual que
sinaliza para o leitor as possibilidades de construção de sentidos.
Sentidos que serão construídos a partir da estrutura lingüística do
texto, de suas sinalizações e do contexto que o leitor é capaz de
mobilizar tendo em vista seus conhecimentos e experiências prévios
(FERREIRA, 2005, p.324).

160 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 157-176 – jul./dez. 2018
Sendo assim, o texto possui uma intencionalidade. Para
alcançar o mais próximo possível do que o autor desejou,
intencionalmente, com objetivos próprios, faz-se necessário o
uso de alguns recursos interpretativos, dentre eles o repertório
de experiências e leituras pessoais, além de outros conhecimentos
(FERREIRA, 2005).
Os gêneros textuais/discursivos, de acordo com Bakhtin
(2003), extrapolam, diferente do que muitos acreditam, os
meios formais e rígidos da comunicação que estão presentes na
linguagem comum do cotidiano. Os usos sociais dos gêneros
textuais são evidentes em toda e qualquer comunidade linguística,
fundamentando-se em suas condições materiais concretas de vida
e de suas trocas sociais.
Além disso, como salienta Bakhtin (2003), os gêneros
textuais/discursivos são culturalmente estabelecidos e são
dinâmicos, ou seja, podem mudar de acordo com a natureza
das relações sociais de uma determinada comunidade falante,
surgem também conforme as necessidades de comunicação que
se impõem.
Bakhtin esclarece:

[...] a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados


(orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes
duma ou doutra esfera da atividade humana [...] cada esfera dessa
atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se
desenvolve e fica mais complexa (BAKHTIN, 2003, p. 208).

Bakhtin (2003), além disso, apresenta duas classes de


gêneros do discurso, a primeira delas configura-se como gênero
primário, ou seja, são textos menos complexos como a reprodução

161 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 157-176 – jul./dez. 2018
de um diálogo, uma carta, um bilhete, dentre outros. A segunda
classe trata do gênero secundário, um gênero mais complexo,
necessita de um maior repertório para o entendimento, entre eles
há o romance, o teatro, os discursos ideológicos e/ou científicos,
entre outros. Cabe ao professor realizar atividades que possibilitem
aos alunos desenvolver a competência nos gêneros discursivos
complexos

Gêneros textuais e a educação especial na EJA

Borges (2012, p.120) esclarece que os gêneros textuais


“entraram em cena” na educação brasileira de base a partir de 1998
com os Parâmetros Curriculares Nacionais, quando se começa a
ter uma “orientação materialista histórico dialética e marxista”.
As concepções de linguagem no documento fundamentam-se,
principalmente, nos trabalhos de Vygotsky e Bakhtin, nos quais
há a interpretação de que os professores devem trabalhar de forma
crítica e reflexiva perante o texto.
O trabalho escolar com gêneros textuais, de acordo com
Borges (2012), independentemente da faixa etária a qual se
situa a aprendizagem, é necessário, pois recorre à transmissão
de mensagens e conhecimentos socialmente relevantes; a par
disso, para que o sujeito, no caso do presente artigo o aluno da
educação especial em EJA, possa alcançar sua autonomia, faz-se
imprescindível que saiba interpretar e elaborar diferentes textos.
A produção textual na educação especial ou não, como
apresenta Carneiro (2001), parte, na escola, tanto da escrita
quanto da fala; deve haver, dessa maneira, uma inter-relação entre
as duas modalidades no aprendizado. Quando o educando já
estiver alfabetizado, far-se-á essencial a leitura de diversos gêneros

162 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 157-176 – jul./dez. 2018
pelo aluno, para que assim tenha em mãos um repertório que o
permita construir seus próprios textos e, além disso, que passe a
entender o fundamental viés da comunicação, ou seja, a relação
entre enunciador e destinatário.
Cabe também ao professor de língua materna relacionar
as diferentes modalidades discursivas e problematizar questões
como “a quem o texto se refere?” Ou então: “em qual posição
argumentativa esse texto se enquadra?” e também: “quem esse
texto pretende convencer?”. Além disso, a narrativa é outro
ponto para situar o aluno quanto à sequência dos fatos e de que
maneira aconteceu determinado conjunto de ações. Carneiro
(2001) apresenta:

Em síntese brevíssima, o modo enunciativo é uma “categoria de


discurso que deixa clara a maneira pela qual o falante interfere
na ação comunicativa, deixando claro o seu ponto de vista. É o
‘gênero” da expressão opinião, da expressão do EU locutor. O modo
descritivo é um processo em que se nomeia, se localiza-situa e se
qualifica um ser. O modo narrativo é uma sequência de ações e
de processos em que os personagens estão envolvidos na busca de
algo que lhe falta. O modo argumentativo reúne duas atitudes do
sujeito argumentante: a busca do verdadeiro e a busca de persuadir
o outro a compartilhar dessa verdade, que comprova a maneira pela
qual o falante age sobre a encenação do ato de comunicação. Nas
atividades de sala de aula, as abordagens desses modos, não são,
em termos gerais, distintas da distinção tradicional dos gêneros
(narrativo, descritivo, dissertativo), porém há certas categorias e
princípios desse método que abrem espaço para que o professor
tenha melhor desempenho (CARNEIRO, 2001, p.46).

Essas categorias dos discursos são essenciais para que


o sujeito falante perceba como é estruturada sua língua. Essas
modalidades discursivas são usadas naturalmente na oralidade

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dos alunos, quando contam uma história para os amigos, quando
tentam convencer os pais de alguma coisa, dentre outras situações
cotidianas. O que o professor faz na disciplina de Língua Portuguesa
é mostrar o que configura tais modelos e, posteriormente, o aluno,
sabendo disso, poderá formatar seus diferentes discursos de forma
mais elaborada e crítica (CARNEIRO, 2001).
As situações discursivas, ainda de acordo com Carneiro
(2001), não devem ser relacionadas, dentro de sala de aula, apenas
por discursos realizados normalmente pelos alunos, deverão,
também, analisar os discursos externos que os alunos mantêm
contato, como anúncios visuais e até orais, bulas, manuais,
revistas, artigos de jornais, dentro outros, Dessa forma, unindo
tanto o falado pelo aluno quanto o que ele relaciona em seu
cotidiano possibilitará uma compreensão intertextual da realidade
linguística que o acompanha desde que se inseriu na cultura da
língua materna.
De acordo com Marcuschi (2001), a cada dia há um número
crescente de formas de comunicação e de gêneros textuais, tal
característica é decorrente do fato de que o uso da internet e
outros meios intensificam a comunicação e as ferramentas para
a comunicação. Mediante isso, o professor da EJA precisa estar
atento às novas formas de comunicação e introduzi-las como meio
ou como recurso de ensino. Dessa maneira, o professor consegue
tanto trabalhar o gênero textual quanto trazer um significado
complementar para o aprendizado.
Por conseguinte, o autor esclarece:

[...] Esses gêneros que emergiram no último século no contexto das


mais diversas mídias criam formas comunicativas próprias com um
certo hibridismo que desafia as relações entre oralidade e escrita
e inviabiliza de forma definitiva a velha visão dicotômica ainda

164 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 157-176 – jul./dez. 2018
presente em muitos manuais de ensino de língua. Esses gêneros
também permitem observar a maior integração entre os vários tipos
de semioses: signos verbais, sons, imagens e formas em movimento.
A linguagem dos novos gêneros torna-se cada vez mais plástica,
assemelhando-se a uma coreografia e, no caso das publicidades,
por exemplo, nota-se uma tendência a servirem-se de maneira
sistemática dos formatos de gêneros prévios para objetivos novos
(MARCUSCHI, 2001, p. 53).

De fato, os novos gêneros estão presentes em nossa


realidade e entram para ressignificar os gêneros já existentes, parte
daí a importância de saber identificá-los, a fim de compreendê-los
e produzi-los conforme os contextos e exigências. O professor, em
sua intervenção, deve estar atento aos diferentes gêneros, antigos
e novos, e seus usos.

Coleta de dados e análise

A partir de um material didático preparado pelos


pesquisadores, a atividade de reconhecimento consistia
simplesmente em reconhecer as diferenças entre os diversos
gêneros textuais do uso cotidiano. Neste caso, sem nenhuma
intervenção prévia, queríamos verificar se os alunos reconheciam
as diferenças entre os gêneros. Nesta etapa da proposta, levamos
um anúncio de uma pizzaria e uma receita de bolo. As perguntas
a serem respondidas por eles (poderiam responder até oralmente)
eram: a) qual a intencionalidade de cada gênero? (por qual
motivo foram produzidos?); b) qual a diferença entre eles e qual
a linguagem usada em cada um deles? (aqui adaptamos para: de
que forma o gênero textual passa sua mensagem?).
A turma consistia em dez alunos: cinco dentro do espectro
autista (dois leves, um severo e dois asperger), dois com paralisia

165 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 73 – p. 157-176 – jul./dez. 2018
cerebral e três alunos com síndrome de down. Nessa primeira
aula de reconhecimento, notamos que a participação dos alunos
com paralisia cerebral foi restrita, entretanto foi perceptível seu
interesse; na intervenção, tentamos fazer com que os outros
alunos produzissem o mais perto possível desses dois alunos (com
paralisia), devido à dificuldade de devolutivas, tentávamos explicar
individualmente o que estava sendo realizado a cada instante.
Um dos alunos dentro do espectro autista (severo) não
participou muito, tomar sua atenção não foi fácil, distraía-se
com os materiais na hora da execução. Percebemos, em alguns
momentos, que queria pintar os materiais trazidos, vimos que
ele queria usar a mão de alguém para manipular os objetos,
não tivemos êxito com esse aluno em um primeiro momento.
Os alunos asperger estavam juntos e vimos que demonstraram
certa facilidade, perguntavam só o necessário e, quando preciso,
ajudávamos. Os dois autistas leves também conseguiram realizar
a atividade, sendo que um deles estava “deixando na mão dos
outros”, mas de qualquer forma participou na elaboração das
respostas.
Os alunos com paralisia mostravam-se interessados, mas
não poderiam participar diretamente; explicamos cada passo
das atividades para eles e chamamos outros alunos para fazerem
com eles. Todas as etapas eram explicadas individualmente. Os
alunos com síndrome de down foram muito bem nas atividades,
participaram muito oralmente, um deles ainda fez, em certo
momento, o seguinte comentário: “o anúncio da pizzaria serve para
fazer as pessoas irem comer pizza e a receita de bolo serve para
ensinar as pessoas a fazer bolo”. Mediante tudo isso, pensamos
em uma proposta o mais visual possível para que todos pudessem
se envolver.

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Podemos argumentar que tal proposta inicial alcançou
60% dos alunos, pois não trouxemos muitos recursos visuais que
pudessem auxiliar na aprendizagem dos alunos com paralisia, um
dos alunos de autismo leve não participou muito e o autista severo
não participou.

Proposta pedagógica

Nossa proposta parte dos gêneros primários, já elencados,


pois são os de mais fácil interpretação e serão eles que inserirão
os alunos no mundo dos textos para que posteriormente se
confrontem com gêneros mais complexos. Dentre os gêneros a
serem trabalhados, usaremos histórias em quadrinhos, cédulas
de dinheiro, rótulos de diversos produtos, mensagens escritas de
WhatsApp e poemas.
Procuramos trazer para a EJA, dentro da Educação Especial,
os conceitos dos gêneros textuais e sua função social. Nessa etapa,
todos têm uma inserção no tema, com uma discussão junto com
os alunos, apresentando o conceito de gêneros textuais, explicando
que nada mais são do que estruturas socialmente convencionadas
que possuem uma intenção. Deve-se explicar também o contexto
de produção e recepção, organização e função e também que o que
difere os gêneros textuais são suas diferentes linguagens, funções,
situações de produção e seu conteúdo.
A partir de tal explicação, faz-se necessária a exemplificação
para o melhor entendimento, uma receita, um bilhete, uma carta
podem ser recursos valiosos para a explicação. Pode-se, por
exemplo, mostrar que a carta, como um gênero textual, possui uma
estrutura, em geral, o gênero carta é de fácil reconhecimento em
contextos sociais muito diversos (reconhecimento e convenção

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social), é notório que a carta possui uma função social muito clara,
quem escreve uma carta tem uma intenção comunicacional de
fácil reconhecimento, a partir disso o professor poderá perguntar
aos alunos quais motivos levariam alguém a escrever uma carta.
Além disso, pode-se, para exemplificar e contextualizar,
comentar em que a carta se difere do bilhete, trazendo assim
como os gêneros textuais se diferenciam quanto à linguagem e
quanto ao conteúdo, mostrando como a linguagem da carta difere
da linguagem e do conteúdo de um bilhete, além disso mostrar
o que leva alguém a escrever uma carta e a escrever um bilhete.
Posteriormente, deve-se discutir que esses textos estão
em nosso cotidiano, que podem ser classificados como gêneros
textuais. Esperamos que os alunos participem dizendo o que eles
acham que pode ser um gênero textual. Procure levar, do cotidiano,
exemplos como jornais, revistas, folhetos de supermercado, nota
fiscal, agenda, livro e, por fim, comentar sobre os gêneros que serão
trabalhados para já se inserirem no assunto (WhatsApp, poema,
rótulos e outros já citados).
Após essa discussão voltada para a introdução ao tema,
deve-se propor uma atividade. Serão formados dois grupos com
cinco alunos em cada. Cada grupo deverá realizar a reprodução
dos gêneros textuais citados com diferentes materiais como cola,
lápis de cor, tesoura, tinta guaxe, papel crepom, folha sulfite A4,
régua, dentre outros. Os alunos possuirão modelos para seguirem,
se assim quiserem, no caso do poema pediremos para criarem um
com intervenção dos professores. No caso dos quadrinhos, poderão
criar um menor (de até duas páginas) sem a necessidade de ter
tantas páginas como os HQ’s que comumente vemos.
Antes da finalização (espera-se que a atividade dure pelo
menos quatro aulas de cinquenta minutos), os alunos poderão

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realizar uma conversa pelo WhatsApp Web que estará conectado
em dois Notebooks na sala de aula, um deles estará conectado ao
projetor para que os alunos que não estarão escrevendo possam ver.
A conversa escrita pelo WhatsApp ocorrerá com dois alunos por
vez e os alunos que tiverem dificuldades em mandar mensagens
escritas poderão mandar signos visuais como os Emojis.
A proposta visa mostrar como os gêneros textuais
relacionam-se com o cotidiano e a vida dos alunos, então,
perceberão que usam e apreciam os gêneros textuais mesmo sem
saber toda vez que escutam um poema, leem um rótulo antes de
comprar um produto, conversam com seus amigos no WhatsApp,
usam cédulas de dinheiro, leem uma história em quadrinhos,
dentre muitos outros.

Aplicação

No dia da primeira aula (das quatro aulas) de aplicação,


começamos a explicar conforme o programado e percebemos
que os alunos estavam bastante atentos, estavam curiosos com
os materiais que tínhamos trazido. Quando indagados sobre
os gêneros textuais, um dos alunos levantou e perguntou se a
televisão era um gênero textual. Explicamos que os programas que
passam na televisão, a propaganda, o jornal televisivo, podem sim
ser gêneros textuais e explicamos mais a fundo sobre a televisão,
programas, propagandas etc.
Como essa discussão rendeu bastante, deixamos as
atividades para a segunda aula. Nela, começamos pela cédula
de dinheiro, discutimos (novamente para fazê-los lembrar) por
qual motivo a cédula de dinheiro poderia ser considerada um
gênero textual. Após isso, demos as folhas A4 já com os recortes

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delimitados para que pudessem confeccionar suas cédulas,
conforme a Figura 1.

Figura 1: Cédula de 2 Reais (sem valor comercial)

Fonte: Banco Central do Brasil, 2018.

Alguns recortaram com a nossa ajuda, e depois fizeram os


desenhos e pintura da cédula. No meio da atividade, comentamos
sobre as informações que estão nas cédulas, as diferentes marcações
contra falsificações, a textura e os diferentes tamanhos das cédulas
pelos quais os deficientes visuais conseguem identificá-las, além
disso, usando da nossa impressão com tamanho aumentado,
comentamos brevemente sobre a assinatura do Ministro da
Fazenda.
Na terceira aula, confeccionamos os rótulos, problematizamos
sobre como podemos, por meio deles, saber a quantidade de
produto que virá dentro das embalagens, além de comentar que
os rótulos nos dão informações relevantes como o percentual
calórico, a validade e a fabricação e outras especificações. Fizemos
a embalagem de um chocolate em papel sulfite, com frente e
verso, separamos em dois grupos de cinco alunos, todos pareciam
confortáveis nos grupos.

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Nesta mesma aula, já para prepará-los, discutimos o poema
que seria trabalhado na aula posterior. Na quarta e última aula,
trouxemos o poema bem conhecido de Gonçalves Dias “Canção
do Exílio”. Explicamos o significado e o contexto desse poema
antes de lê-lo, falamos sobre como sentimos falta da nossa terra,
nossa casa, quando estamos distante. Além disso, comentamos
a influência do poema para a elaboração do Hino Nacional
Brasileiro.
A “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, é encontrada no
livro “Primeiros cantos”, de 1847, que diz:
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,


Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá,
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,


Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute dos primores

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Que não encontro para cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá. (DIAS, 1998, p.77-78).

O trabalho dos alunos era o de elaborar um poema a partir


desse lido e que remetesse à saudade de casa ou da terra natal. Os
poemas elaborados foram na maioria bem curtos, não discutimos
questões relativas à métrica nem à estrutura, pedimos apenas
que “rimasse” e a maioria conseguiu. Depois disso, passamos aos
quadrinhos (HQ). Mostramos alguns de super-heróis (do Batman
e da liga da justiça) e turma da Mônica, conforme a Figura
2. Não chegamos a ler, apenas lembramos como é construído
um quadrinho. Vimos que eles já tinham tido uma atividade
semelhante a essa em outro momento escolar, portanto decidimos
discutir como o quadrinho insere-se como um gênero textual.

Figura 2: Gibi Turma da Mônica sobre Acessibilidade

Fonte: Estúdios Maurício de Sousa, 2018.

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No fim da aula, decidimos, conforme o programado,
explorar a mensagem escrita de WhatsApp. Tivemos dificuldades
de conectar à internet no computador, roteamos internet do
celular para o computador (Notebook) pelo 3G, a conexão não
ajudou em nada, mas eles conseguiram perceber a relação, poucos
participaram por conta do tempo que ficou bastante próximo da
outra aula, conforme a Figura 3.

Figura 3: Conversa de WhatsApp

Fonte: Whatsapp, 2018.

Nesta segunda atividade, tivemos um aproveitamento


melhor, conseguimos, com os recursos visuais (materiais trazidos

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e as confecções), deixar mais claro as explicações e as realizações
das atividades para os alunos com paralisia cerebral, conseguimos
fazer com que o segundo aluno com autismo leve participasse
de forma mais direta. Nossa dificuldade ainda foi com o aluno
com autismo severo, qualquer coisa o distraía. Os demais alunos
se interessaram como da primeira vez. Podemos deduzir que o
aproveitamento, com relação à aplicação anterior, foi de 90% dos
alunos. Todos esses nove alunos mostraram, de uma forma ou de
outra, qual a relevância social dos gêneros textuais e a aplicação
de seus usos no cotidiano.

Considerações finais

O trabalho com gêneros textuais na etapa e na modalidade


de educação que trabalhamos necessita que haja uma referência
direta entre o gênero textual e a realidade na qual o aluno se
insere, com isso o aluno pode perceber-se como produtor e leitor
de diferentes gêneros textuais e como sujeito ativo socialmente,
remetendo assim à função social do texto. Logo, o aluno passa a
significar seu aprendizado e compreende como os gêneros afetam
diretamente sua vida, ou seja, o aluno percebe, contextualiza e
significa sua aprendizagem.
Os gêneros textuais apresentam-se em velhas e novas
roupagens, por exemplo, a carta deixou, em grande parte, de ser
utilizada, entretanto surgiu um gênero similar, o e-mail. Cabe ao
professor estar atento a novas modalidades de comunicação e com
isso planejar sua prática, assim como fizemos com as mensagens
escritas de WhatsApp. Conseguimos trazer um gênero no qual
a maioria da turma tinha interesse e trazer de forma prática a
aplicação e os conceitos dos gêneros textuais.

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Toda a proposta ou plano pedagógico deve levar em
conta os alunos que estão envolvidos e, além disso, a realidade
contextual para que assim se trace um plano de ação. No caso da
turma trabalhada, percebemos que possuíam algumas limitações
assim como potencialidades. Com isso, pensamos em uma nova
forma de ação. Alguns dos planos foram trabalhar em grupo, usar
imagens como recursos, ensinar da forma mais prática possível e
realizar alguns atendimentos individuais.

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