Você está na página 1de 184

BOLETIM I 74

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jan./jul. 2019

Incluída no SNPG – nível A


(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
REITOR
Sérgio Carlos de Carvalho
VICE-REITOR
Décio Sabbatini Barbosa
DIRETORA DO CLCH
Viviane Bagio Furtoso
VICE-DIRETORA
Ana Heloisa Molina
REDAÇÃO
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira

CAPA
Bianca Matos Ferreira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E COMPOSIÇÃO


Maria de Lourdes Monteiro

CONSELHO EDITORIAL
Volnei Edson dos Santos
Paulo Bassani
Celso Vianna Bezerra de Menezes

PARECERISTAS
Dr. Francisco Moreno Fernandes - Univ. Alcalá de Henares - España
Dr. Aquiles Cortes Guimarães - UFRJ
Dr. Jesús Castilho - Univ. de Valladolid - España
Dr. José Oscar de Almeida Marques - UNICAMP
Dr. José Nicolau Julião - UFRRJ
Dra. Salma Ferraz - UFSC
Dr. Otávio Goes de Andrade - UEL

PUBLICAÇÕES
BOLETIM, CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – LONDRINA-PR. - BRASIL, 1980

1980, (1) 1993, (24,25) 2005 (48,49) 2018, (72, 73 )


1981, (2,3) 1994, (26,27) 2006, (50,51) 2019, (74, )
1982, (4,5) 1995, (28,29) 2007, (52,53)
1983, (6,7) 1996, (30,31) 2008, (54,55)
1985, (8,9) 1997, (32,33) 2009, (56,57)
1986, (10,11) 1998, (34,35) 2010, (58,59)
1987, (12,13) 1999, (36,37) 2011, (60,61)
1988, (14,15) 2000, (38,39) 2012, (62,63)
1989, (16,17) 2001, (40,41) 2013, (64,65)
1990, (18,19) 2002, (42,43) 2014, (66,67)
1991, (20,21) 2003, (44,45) 2016 (68,69)
1992, (22,23) 2004, (46,47) 2017 (70,71)
ISSN 0102-6968

I
BOLETIM 74

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jan./jul. 2019
Incluída no SNPG – nível A
(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina – nº 74 – p. 1-194 - jan./jul. 2019
Indexado por / Indexed by
ISSN 0102-6968
Sociological Abstracts SA
Linguistics and Language Behavior Abstracts LLBA

Toda correspondência deverá ser enviada à

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA


Centro de Letras e Ciências Humanas
Campus Universitário – Cx. Postal, 6001
CEP: 86051-990 – Londrina-PR.

boletimhumanas@uel.br
Fone / Fax:(43) 3371-4408

Publicação semestral / Bi-annual publication


Solicita-se permuta / We ask for exchange

Biblioteca Central da UEL


Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada pela Biblioteca Central da UEL


Boletim / Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade Estadual de

Londrina. – V. 1 (1980)- . – Londrina : a Universidade, 1980- .
v.; 21 cm

Semestral

Descrição baseada em: v. 25 (jan./jun. 1994)

ISSN 0102-6968

1. Sociologia – Periódico. 2. História – Periódico. 3. Letras – Perió-


dico. 4. Filosofia – Periódico. 1. Universidade Estadual de Londrina.

CDD 301.05
CDU 301:4:I(05)
SUMÁRIO

PERCURSOS DE LETRAMENTO DE PROFESSORES DE


LÍNGUA PORTUGUESA E A RELEVÂNCIA DAS ESFERAS
DE ATIVIDADES SOCIOCULTURAIS.................................... 7
Ana Lúcia de Campos Almeida (UEL)
Émerson de Pietri (USP)

LIÇÕES DOS CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA


PARA OS ATUAIS DESAFIOS DO ENSINO MÉDIO............. 31
Angela Maria de Sousa Lima (UEL)
Angélica Lyra de Araujo (UEL)

A INTERNACIONALIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE
BRASILEIRA COM FOCO NA AMÉRICA LATINA............... 71
Valdirene Zorzo-Veloso (UEL)
Arelis Felipe Ortigoza Guidotti (UEL)

PONCIÁ E KEHINDE: AS ANDANÇAS DAS


PERSONAGENS NEGRAS NO ROMANCE BRASILEIRO
CONTEMPORÂNEO................................................................ 97
Maria Carolina de Godoy (UEL)
Vanessa Germanovix Vedovatte (PG-UEL)

CULTURA E CURRÍCULO ESCOLAR CONFORME


PIERRE BOURDIEU: NOTAS SOBRE ASPECTOS
EPISTEMOLÓGICOS E ESTÉTICOS...................................... 113
Elsio Lenardão (UEL)

PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA NA AQUISIÇÃO DO


SISTEMA DE ENSINO APRENDE BRASIL ........................... 131
Maria José Ferreira Ruiz (UEL)
Anieli Sandaniel (PG-UEL)

5
C A RTA S PA R A A L É M D O S M U RO S : A N Á L I S E
ARGUMENTATIVA DE TRÊS CRÔNICAS DE CAIO
FERNANDO ABREU................................................................. 159
Thiago Henrique Ramari (UEL)

NORMAS.................................................................................... 193

6
PERCURSOS DE LETRAMENTO DE PROFESSORES
DE LÍNGUA PORTUGUESA E A RELEVÂNCIA DAS
ESFERAS DE ATIVIDADES SOCIOCULTURAIS
1
Ana Lúcia de Campos Almeida
2
Émerson de Pietri

RESUMO: Este artigo apresenta dados extraídos do córpus de um projeto de pesquisa


que investigou a relação entre o percurso de letramento de professores em formação,
a apropriação da cultura letrada acadêmica e a constituição da identidade docente.
Foram analisadas 58 histórias autobiográficas de letramento produzidas pelos
participantes da pesquisa, alunos do curso de licenciatura em Letras-Língua Portuguesa
da Universidade Estadual de Londrina, e os resultados apontaram a relevância das
práticas de determinadas esferas de atividades socioculturais. O estudo ancorou-se em
pressupostos da teoria do sociointeracionismo discursivo bakhtiniano, dos Novos Estudos
de Letramento e dos Estudos da Educação.
Palavras-chave: percurso de letramento; histórias autobiográficas; esferas de atividades
socioculturais

ABSTRACT: This paper deals with data extracted from a research project that has
examined the relation among the literacy path developed by pre-service teachers, their
appropriation of academic culture and the constitution of their teacher’s identity.
Fifty-eight (58) autobiographic stories written by the research participants (students
from a portuguese teacher education program at the State University of Londrina) were
analysed and the results indicated the importance of the practices of certain sociocultural
activities’ spheres. This study is drawn upon concepts of bakhtinian sociointeractionist
theory, of the New Literacy Studies and of Educational Studies.
Keywords: literacy path; autobiographic stories; sociocultural activities’spheres

1
Doutora em Linguística Aplicada. Professora do Depto de Letras Vernáculas e Clássicas
e do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual
de Londrina-PR-Brasil.
2
Doutor em Linguística Aplicada. Professor do Depto de Metodologia do Ensino e
Educação Comparada e do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo-SP-Brasil.

7 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
Questões teórico-metodológicas

Neste trabalho adotamos a perspectiva dos Novos Estudos


de Letramento (HEATH, 1982, 1983; BARTON, 1994;
BARTON e HAMILTON, 1998; BARTON, HAMILTON
e IVANIC, 2000; GEE, 2000, 2008; STREET, 1984, 1993,
2003, 2010, 2014, KLEIMAN, 1995, 2001, 2006; MARINHO,
2010, SOARES, 1998, 2008, 2010), que implica focalizar a
linguagem em uso nas práticas sociointeracionais exercidas por
sujeitos históricos e culturais, bem como pensar o significado das
operações com a linguagem enquanto discurso, perpassada pelo
conteúdo ideológico e pelas relações de poder. De acordo com
essa perspectiva, letramento diz respeito a todas as práticas sociais
que de algum modo utilizam ou se relacionam com a escrita nos
múltiplos eventos3 ocorridos em diversas esferas de atividades
sociocomunicativas e culturais (BAKHTIN, 1992).
Tais estudos enfatizam a natureza sociocultural e ideológica
da escrita, postulando que o letramento não tem efeitos nem
significado per se, dissociado dos contextos culturais específicos
em que ocorre, pois, de fato, por meio do uso de textos escritos,
são produzidos diferentes efeitos, valores e significados em
diferentes contextos (GEE, 2008). Equivale a dizer que não há
sentidos neutros, universais ou independentes para a escrita, uma
vez que esses sentidos são construídos de modo contextualizado,
de acordo com os valores e os modos com que as práticas de uso
são desenvolvidas historicamente por diferentes grupos sociais.
Para compor um córpus de 58 histórias autobiográficas
de letramento de professores em formação, apoiamo-nos em
3
Eventos de letramento é a expressão cunhada por Heath (1982), a partir do conceito
linguístico evento de fala, para designar eventos em que a escrita faz parte integrante dos
sentidos construídos na atividade sociocomunicativa.

8 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
fundamentos do método autobiográfico, que traz a proposta
de produzir uma reconstituição memorialística de experiências
vivenciadas a partir de um olhar introspectivo e analítico, apto a
desencadear nos sujeitos um processo de reflexão formativa com
relação a sua atuação docente.
Assim, optamos por uma abordagem de pesquisa
qualitativa, que possibilita desenvolver uma investigação
relacionando as dimensões de ordem subjetiva, afetiva-emocional
e identitária deste grupo social e profissional - professores em
formação, trabalho que envolve um olhar atento ao contexto
sociocultural e aos detalhes e singularidades de seus percursos de
vida. Neste sentido, trata-se da filiação a uma linha de pesquisa
qualitativa comprometida com o fortalecimento do grupo
identitário pesquisado (KLEIMAN, 2001, KINCHELOE,
1991, STROMQUIST, 1992), já definida desde o início a partir
da opção pelo método de pesquisa autobiográfico (PASSEGGI,
2008; SOUZA, 2008) para o processo de geração de dados.

Analisando as histórias de letramento - as esferas de atividades

Barton e Hamilton (1998) utilizam a noção de letramentos


dominantes, para designar as práticas mais formais de leitura/
escrita, vinculadas a instituições de poder, e denominam
de letramentos vernaculares aqueles vinculados a práticas
não-formais, exercidas em âmbito local, como no lar ou no
trabalho, para realização de atividades cotidianas. As práticas de
letramento dominante, mesmo aquelas vinculadas ao contexto
escolar/acadêmico, são escassamente mencionadas nas histórias
autobiográficas analisadas. Em sua maioria, os sujeitos pesquisados
reportam não ter tido contato com obras da literatura canônica

9 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
(à exceção dos fragmentos, resumos e comentários sobre as
obras incluídas em livros didáticos e/ou nas listas de exames
vestibulares), nem com textos acadêmicos antes de seu ingresso à
universidade, como também não se recordam de ter frequentado
eventos acadêmicos/científicos como palestras, congressos ou
debates.
Por outro lado, há muito a dizer a respeito dos letramentos
vernaculares presentes nas narrativas desses sujeitos, a partir da
familiaridade que demonstram possuir em relação aos letramentos
multissemióticos do mundo digital: acessam e compartilham
textos orais e escritos, cujos gêneros conjugam linguagens gráficas
e audiovisuais; frequentam redes sociais e canais da internet com
exibição de documentários, aulas, notícias, stand up comedies,
filmes e séries. Suas histórias de letramento também relatam uma
experiência particularmente rica desenvolvida desde a infância
com as práticas da cultura oral, em interações verbais de que
participavam em eventos familiares e de sua comunidade.
Grande relevância tem sido atribuída ao papel da
linguagem oral por estudos etnográficos e pedagógicos (HEATH,
1982,1983; BELINTANE, 2014, entre outros) com relação
ao desenvolvimento cognitivo das crianças e, sobretudo, com
relação ao desenvolvimento do letramento escolar: o exercício
das práticas orais interacionais como ouvir e (re)contar histórias,
fazer versos e trovas, brincar com composições e paródias literárias
ou musicais, ouvir/cantar cantigas de ninar e cantigas de roda,
modinhas, participar de jogos linguísticos (trocadilhos, trava-
línguas, parlendas, adivinhações etc) produzem não apenas o
desenvolvimento de consciência fonológica e a apreensão do léxico
e da estrutura sintática textual, mas também a apreensão discursiva
de modelos da descrição, da narrativa e da retórica argumentativa.

10 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
A escrita, apesar de ser um modo de enunciação distinto
do modo oral, guarda com este o terreno comum de uma base
linguística que serve como mediação – da oralidade à oralidade
letrada e à escrita, sobretudo nas etapas iniciais da alfabetização
e do letramento. Trata-se de um trabalho discursivo voltado a
desenvolver o amor à palavra, a abertura para o mundo semiótico,
como condição para gerar aptidão ao exercício de atividades de
linguagem, sejam essas orais ou escritas. A escritora Conceição
Evaristo, ao falar sobre o desenvolvimento de seu fazer literário,
explicita o fato de não ser proveniente de uma família letrada,
porém ressalta que estava acostumada a passar muitas horas de
prosa a contar histórias e explica: “eu não cresci rodeada de livros,
mas de palavras” (reportagem da revista Cláudia, maio/2005).
Muitas histórias autobiográficas analisadas em nossa
pesquisa apresentaram expressões4 de encanto, lembranças
provindas de uma infância rodeada de dizeres poéticos, cantigas de
ninar, cantigas de roda, modinhas, adivinhas, histórias de família e
narrativa de causos em atividades promovidas por pais, tios e avós
moradores da zona rural e de cidades pequenas. Exemplificamos
com o excerto 1:

(1)
Antes da idade escolar a gente se juntava pra brincar de roda, as
meninas mais velhas ensinavam as estrofes, tinha também as adivinhas.
Mas o mais prazeroso era ouvir meu tio e meu avô contarem história
de assombração, mula-sem-cabeça. A gente ia dormir com certo medo,
brincava de assustar os primos quando vinham nos visitar. (Z.N.)

4
Tais expressões foram analisadas a partir da noção de acento valorativo ou apreciação
valorativa, que Bakhtin (1992, 1995) atribui aos enunciados entendidos como palavras vivas,
dotadas de uma entonação expressiva reveladora da emoção e juízo de valor do locutor,
sua posição subjetiva em relação ao conteúdo e ao sentido do próprio enunciado proferido.

11 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
Após a primeira leitura das 58 histórias de letramento e
a observação atenta aos elementos de conteúdo que se repetiam,
foram definidas as seguintes categorias a fim de sistematizar as
análises, de acordo com a ordem de importância atribuída pelos
próprios sujeitos pesquisados em relação a suas experiências no
desenvolvimento de letramento:

i) memórias do letramento desenvolvido na esfera escolar

As experiências vividas em contexto escolar se destacam


nas autobiografias analisadas. A escola se (con)afirma como
a principal agência de letramento, sobretudo para as classes
desfavorecidas, como no caso dos sujeitos pesquisados, que não
contavam com herança de capital cultural familiar legitimado
(KLEIMAN,1995): o contato com os textos escritos modelares
da cultura letrada dominante. O letramento escolar ocupa, assim, o
papel central em seu acesso e participação em práticas dominantes,
inicialmente com as experiências do ensino fundamental e médio
e, posteriormente, na vida adulta, na esfera acadêmica, vista de
forma até certo ponto idealizada nas histórias narradas por esses
sujeitos.
É interessante observar que, não obstante os relatos
apresentem inúmeras críticas ao modelo escolar de letramento,
há um consenso em reconhecer que a instituição escolar teria
propiciado uma via de acesso fundamental para aquisição e
domínio de competências de leitura/escrita. Neste sentido,
caberia sempre ressaltar junto aos professores em formação a
responsabilidade política dos profissionais da educação para a
construção de uma escola de qualidade, ética e emancipadora.
A dimensão de ordem subjetiva e emotivo-valorativa,
observada nas análises mediante a noção de apreciação valorativa

12 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
(BAKHTIN, 1992, 1995), mostrou-se determinante para o
desenvolvimento bem ou mal sucedido e mais amplo ou mais
restrito de letramento escolar. Nas histórias analisadas, as
experiências negativas evocam lembranças de leitura oralizada
avaliativa, sistematização de resumos e fichamentos de leituras
obrigatórias, textos utilizados como pretexto para estudos
gramaticais, imposição da adoção da norma culta, enquanto
as experiências positivas evocam o trabalho de bibliotecários
dedicados, de professores engajados e o uso de práticas
significativas como encenação de peças teatrais, apresentação de
jograis poéticos e outros. Seguem abaixo, a título de exemplificação,
os excertos 2, 3, 4, 5 e 6:

(2)
Me lembro de uma professora que trabalhou com crônica e atribuía
nota para a leitura em voz alta na frente da classe. Isso era feito
individualmente e o receio de ler errado era aterrorizante. Adiei ao
máximo minha apresentação.”(M.H)
(3)
Usávamos a cartilha Caminho Suave [...] lembro-me vagamente da
professora ... suas aulas pareciam muito com a missa rezada pelo
padre porque falava de Deus o tempo todo. Depois no colégio
havia uma professora de Português reacionária que marcava ponto
negativo a cada vez que a gente cometesse desvios da norma culta.
(L.S)
(4)
Na escola de Londrina tínhamos a hora do conto, que era o momento
em que íamos à biblioteca para a bibliotecária ler uma história para os
alunos, isso me incentivou a frequentar cada vez mais a biblioteca nas
séries iniciais. Com isso, tive bastante contato com os mais diversos livros
infantis, como os da autora Ruth Rocha, uma das que mais li. (T.W)
(5)
A professora apresentava a obra literária lendo trechos para despertar
nosso interesse, daquela vez ela lia encenando ... da encenação nunca
mais vou esquecer; a voz narrando, os sorrisos dos alunos, o brilho no

13 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
olhar de cada um. Foi naquele momento em que percebi que a arte de
ensinar era a mais bela. Foi naquele momento em que percebi que quero
ser assim. Quero que meus alunos vejam em mim essa paixão. (H.B.)
(6)
A entrada ao ensino médio me fez perceber que eu gostava muito
das aulas de literatura. (...) Algumas pessoas foram essenciais nesse
caminho. A primeira foi uma professora de literatura que me
acompanhou da quinta série até o primeiro colegial. Seu nome
era Evelyne. Adorava o modo como ela ministrava as aulas, seu
relacionamento com os alunos, e ainda mais o modo como ela
falava sobre a literatura. Vê-la no corredor era também sempre
uma oportunidade para parar e conversar. A admiração por essa
professora me fez perceber que não era só pela literatura que eu me
interessava. Havia algo por trás de tudo aquilo. Por trás de todos
os livros, havia uma pessoa que se dispunha a estar ali também.
(C.N.V.)

ii) memórias do letramento desenvolvido na esfera familiar

Na esfera familiar, concentraram-se as práticas características


do letramento vernacular; são atividades vinculadas ao cotidiano
das comunidades e dos grupos sociais de classes populares a
que pertencem essas famílias, cujas práticas de letramento se
relacionam a textos que circulam em seu meio: álbuns de família,
almanaques, folhinhas e calendários, jornais locais, gibis, obras
de autoajuda e romances best-sellers, revistas de entretenimento
(sobre artistas, bandas musicais, artesanato, costura, bordados,
caça-palavras, palavras-cruzadas, sodoku), textos bíblicos, vida
de santos, orações, livros infantis e material pedagógico, álbuns
de figurinhas, manuais de instrução, cadernos ou livros de
receitas culinárias, folhetos publicitários, caderno de anotações
de compras, de contas a pagar, diários, agendas de endereços e
agendas telefônicas, cartas, bilhetes etc.

14 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
No lar, a participação das crianças em práticas de letramento
exercidas pelos pais, irmãos, avós e familiares em geral possibilitam
a apreensão do significado, das funções e valores culturais da escrita
para sua comunidade, como na narrativa de histórias, leitura de
jornal, escrita de cartas, até anotações de vendas no comércio,
conforme podemos observar nos excertos 7, 8, 9, 10, 11:

(7)
Fui inserida no mundo das histórias muito cedo pela minha avó.
Lembro-me de fingir que estava lendo, mesmo que com o livro
de ponta cabeça, as histórias que lia para mim, ainda sem saber
ler.” (H.B)
(8)
Antes mesmo de aprender a ler, eu já havia memorizado, por associação
com as ilustrações, as histórias que eu mais gostava. Dia e Noite, de
Mary França, era minha preferida. Os gibis da Turma da Mônica me
ensinaram a ler. (T.A)
(9)
Quando aprendi a ler, meu avô lia o jornal e me entregava as páginas
lidas para que eu lesse depois dele, isso todas as manhãs quando eu
dormia na casa dele. Depois era eu quem lia as receitas de bolo ou
montava a lista de compras.” (H.B)
(10)
Meu pai, funcionário da marinha mercante, trabalhava viajando e
frequentemente mandava cartas pelo correio, geralmente havia cartas
individuais para cada filho, minha mãe fazia questão de lê-las para
cada um e nos incentivava a responder, na maioria das vezes ditávamos
essas cartas, às vezes arriscávamos algumas frases escritas. (L.C.M)
(11)
A primeira memória que tenho de escrita é a do caderno de anotações
da mercearia dos meus pais. Eles sempre trabalharam com comércio e
desde cedo precisei aprender a anotar as vendas no fiado e a fazer contas
para dar troco aos fregueses. A caderneta do “fiado” foi meu primeiro
livro, saber interpretá-la e manuseá-la era fundamental. (A.M.N.)

15 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
O vínculo intersubjetivo e a dimensão subjetiva e emotivo-
valorativa se destacam na constituição do letramento familiar, em
que o exercício das práticas ocorre dentro de eventos altamente
significativos para os sujeitos que estavam envolvidos de forma
dinâmica na reprodução de atividades de familiares adultos, seja
por imitação de narrativa de histórias infantis, ou na leitura de
notícias jornalísticas, na escrita de cartas para o pai, em anotações
comerciais, mas sempre com uma participação real e engajada na
vida familiar.

iii) memórias do letramento desenvolvidas na esfera religiosa

Historicamente, as igrejas sempre exerceram ações


educativas para a propagação do letramento, sobretudo com o
Protestantismo difundindo a leitura da Bíblia junto a seus adeptos.
De acordo com Olson (1997), antes mesmo da reforma da igreja
católica, existem relatos de fiéis que faziam a leitura da bíblia para
os que não sabiam ler, principalmente em orfanatos e hospitais,
sendo a história da leitura no ocidente em boa parte a história da
leitura bíblica. Até hoje, a educação religiosa das crianças de seus
membros é oferecida pelas igrejas em forma de cursos como o
catecismo, pelas católicas, ou a escola dominical, pelas protestantes.
Em suas autobiografias, grande parte dos sujeitos
pesquisados reportaram experiências de letramento religioso às
quais atribuíram grande relevância em seu desenvolvimento como
leitores, bem como no domínio da norma culta e modelos de
escrita. Mencionam a forte presença de eventos de letramento dos
quais participavam nas igrejas: leitura conjunta de trechos bíblicos,
o cântico de hinos acompanhando as letras nos hinários, leitura
de murais com notícias sobre a comunidade religiosa, reuniões

16 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
para estudos bíblicos, narrações de histórias bíblicas com textos
ilustrados na escola dominical, ensaio de jograis e encenação
de peças teatrais em datas festivas e outros. Seguem-se como
exemplos os excertos 12, 13 e 14.

(12)
Na igreja, participava dos cultos da escola dominical. Minha mãe
compartilhava comigo o hinário para que eu pudesse acompanhar
a letra dos hinos que eram cantados. Na escola bíblica dominical,
participava de concursos para decorar versículos bíblicos e, em
algumas datas especiais como dia dos pais, dia das mães, Páscoa
e Natal, ensaiávamos jograis, teatro e músicas para apresentar na
igreja. (J. F.A.)
(13)
Não poderia deixar de mencionar minha convivência na igreja
presbiteriana, frequentada por minha família: na escolinha dominical
cantávamos, recitávamos poemas, encenávamos histórias religiosas;
quando mais crescidos, líamos textos bíblicos simplificados, fazíamos
apresentações para os adultos nos cultos. Quando jovenzinha, passei a
cuidar/ensinar as crianças e mais tarde passei a conduzir as reuniões de
estudo bíblico com os adolescentes, o que me fez adquirir aptidão para
falar em público e estudar, interpretar textos escritos dos mais diversos
gêneros presentes na Bíblia. (A.C.)
(14)
Minhas idas à igreja até mudaram, agora, em vez de simplesmente
ficar na escolinha dominical ouvindo parábolas e salmos, eu escrevia
histórias no fundo do boletim dominical. As que ficavam ruins, eu
escrevia novamente no outro domingo até melhorarem. A igreja me
deu outros presentes também, como livros desenhados e adaptados para
crianças sobre histórias da bíblia [...] mas era uma criança crítica,
queria saber os detalhes: o porquê daqueles castigos, desastres e milagres.
E como e porque aconteciam daquela forma. Deus me deu a capacidade
de questionamento àquelas histórias, para desgosto de minha família
evangélica. (G.T.M.)

17 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
iv) memórias do letramento desenvolvido nos locais de trabalho

A inserção no mundo do trabalho pode significar um


produtivo aprendizado e contribui para o crescimento de práticas
de letramento em função das atividades exercidas em esferas
diversificadas como a organização burocrática, contábil ou
administrativa, a midiática, propiciando contato com múltiplos
textos de gêneros variados. Os sujeitos pesquisados não pareceram
considerar isso em seus relatos memorialísticos, pois se referiram
muito pouco aos trabalhos que exerceram anteriormente ou
ainda exerciam naquele momento, talvez por entendê-los como
trabalhos menores e/ou sem prestígio social, aos quais não
poderiam atribuir valor em termos de desenvolvimento de seu
letramento. Foram mencionados trabalhos exercidos em locais do
comércio, imobiliárias, em consultórios médicos ou odontológicos,
escritórios de advocacia, em hospitais, em indústrias, sem focalizar
qualquer significado relevante em suas histórias de letramento.
Diferentemente, o trabalho no magistério, no caso daqueles que
vieram a exercê-lo durante o curso de licenciatura em Letras,
em caráter de substituição ou como estágio docente, ou por
possuírem outra licenciatura ou habilitação para o ensino infantil,
foi apresentado como altamente significativo para seu aprendizado
e relevante para o desenvolvimento de seu letramento profissional.
Neste caso, alguns sujeitos relataram fazer pesquisas para preparo
de atividades pedagógicas com uso de textos jornalísticos, literários
e didáticos em geral.

(15)
Passo o tempo envolvida com os estudos e pesquisa de material
didático relativos a minha profissão. Tenho tido experiências diversas e
enriquecedoras com preparo de conteúdos para séries diferentes e alunos
em diferentes etapas de alfabetização. (T.A.)

18 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
(16)
Principalmente, percebo que meu letramento na área profissional se dá
em sala de aula, preparando aulas e atividades. (K.P)

Dentre as histórias selecionadas, salientam-se os casos de três


sujeitos que atribuíram importância especial ao trabalho que
tiveram oportunidade de exercer como revisores na editora da
Universidade Estadual de Londrina. Exemplifico com o extrato
de uma dessas histórias:
(17)
Consegui uma vaga de estágio na EDUEL, editora da universidade.
No período em que fiquei na editora, trabalhando com leitura
e revisão de textos para publicação, aprendi muito, intenso
letramento. Creio que isso fica expresso na minha escrita, na forma
como articulo minhas ideias e como organizo meus pensamentos.
Hoje tenho muito mais confiança para argumentar nas provas e
para desenvolver artigos... (L.P.F.)

Imbricamento das esferas escolar, familiar, religiosa e do trabalho

A partir das análises empreendidas, observamos um


interessante imbricamento entre as esferas familiar, escolar,
religiosa e do trabalho. Os elementos, no caso as práticas de
letramento dessas esferas, não são estanques e dissociados; ao
contrário, são heterogeneamente constituídos, se movimentam,
fluem e refluem, dialogam entre si, carregando as relações de
poder impregnadas no corpo social. Os sujeitos relataram sua
participação em eventos que mesclavam:
i) escola e família - brincar de escolinha em casa, ensinar/
aprender a ler com os irmãos, organizar uma agenda de tarefas
domésticas nos moldes de um horário escolar. Em nossa sociedade,
os membros da família costumam reproduzir o modelo escolar
ao interagir pedagogicamente em eventos de letramento do

19 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
cotidiano com as crianças, por exemplo, contando histórias de
cunho moralizador, criando diálogos que reproduzem o esquema
escolar de pergunta, resposta e avaliação, pelo qual as crianças
são preparadas para ser bem sucedidas na aprendizagem escolar.
Assim, as famílias de classe média e média baixa parecem partilhar
com a escola os modos de representar a escrita e de lhe atribuir
funções.
Mesmo entre as famílias de baixíssima escolaridade, muito
distanciadas do padrão cultural dominante, apresenta-se uma
forte tendência a reproduzir as práticas de letramento escolar.
Inúmeros relatos dos sujeitos narram experiências de mães
compartilhando as primeiras representações escritas dos filhos a
partir de desenhos e garatujas, ensinando-lhes as letras e os nomes
próprios dos familiares. Entre as histórias analisadas, um curioso
depoimento relatou a prática de uma mãe analfabeta que contava
histórias inventadas, porém sempre com um livro ilustrado nas
mãos, certamente com a intenção de angariar a respeitabilidade
da escrita pela tentativa de reprodução do modelo cultural escolar.
Heath (1982,1983) apontou a similaridade do modelo de
interação escolar com o familiar em lares norte-americanos de
classe média branca, afirmando que essa similaridade seria uma
espécie de compatibilidade ou afinidade revelada entre o modelo
cultural dominante característico das famílias letradas de classe
média e o modelo adotado pela instituição escolar. Sua extensa
pesquisa etnográfica demonstrou que as crianças eram mais bem
sucedidas em seu percurso acadêmico quanto mais compatível o
modelo cultural compartilhado em família com o modelo escolar.
Street (1984, 2014), em suas investigações etnográficas,
também já apontara essa relação de proximidade do letramento
da esfera familiar com o da esfera escolar; o autor, contudo, não

20 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
optou por afirmar/concluir que a família reproduzisse/imitasse a
escola, preferindo admitir a hipótese de que a própria escola estaria
programada para atender às expectativas dos pais e se ajustaria
ao padrão cultural familiar majoritário. Neste sentido, evidencia-
se uma convergência entre as conclusões dos pesquisadores
Heath e Street, no sentido de revelar que a escola e a família
se compatibilizam em relação à adoção de modelos culturais
dominantes, que beneficiam as crianças de classes favorecidas em
seu aprendizado escolar.
ii) igreja e família, igreja e escola – ler a Bíblia em casa ou
ouvir sua leitura por familiares; ler e ouvir a leitura de histórias
bíblicas adaptadas, ler hinários para acompanhar cânticos
religiosos em casa, recitar versículos bíblicos e salmos junto aos
familiares, receber em casa os folhetos e revistas da igreja e ler/
comentar com a família, fazer atividades de catecismo ou da
revista de estudos da escola dominical sob a supervisão dos pais,
irmãos ou outros familiares. São alguns dos modos de a família
reproduzir as práticas de letramento religioso em eventos do
cotidiano doméstico.
Muitos foram os comentários proferidos pelos produtores
das histórias sobre lembranças positivas relacionadas a eventos
de letramento religioso ocorridos no lar, sobretudo aqueles
vinculados à religião protestante. Em seus relatos, tanto os pais
quanto os avós, inclusive de famílias com baixa escolaridade,
foram representados como leitores da Bíblia e como agentes a
desempenhar um duplo papel: o de incutir a doutrina religiosa
professada pela família e de fomentar o desenvolvimento de
práticas de letramento por meio do contato com a leitura ou
escuta de textos bíblicos, e, mais ainda, pelo exercício, no cotidiano
do próprio lar, de práticas de letramento que congregavam, ao

21 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
mesmo tempo, elementos comuns às esferas religiosa e escolar
como: atividade de cantar canções com letras elaboradas para
memorização de ensinamentos, atividades de colorir, preencher,
responder a questões interpretativas, didatizadas segundo o
modelo escolar e apresentadas em revistas de estudos religiosos
elaboradas para este fim, denominadas revistas dominicais. Deste
modo, observamos o imbricamente entre igreja, família e escola.
De fato, as relações da doutrina religiosa com a “doutrina”
escolar são históricas, tendo em vista que, conforme afirmamos
anteriormente, as igrejas desempenharam uma função missionária
educativa relacionada ao letramento; as práticas religiosas sempre
estiveram associadas à leitura de textos e cânticos sagrados e à
divulgação didatizada de excertos bíblicos; o próprio gênero
sermão consiste na produção da doutrinação religiosa por meio da
utilização das vias retórica e pedagógica. Nas lições de catecismo
e/ou nas aulas da escola dominical, os conhecimentos sobre os
textos bíblicos são sistematizados e seu aprendizado é ordenado a
partir da adoção de modelos da cultura escolar, o que é evidenciado
pela própria terminologia adotada: estudo bíblico, aulas, escola
dominical, lições de catecismo etc.
Neste sentido, caberia apontar aqui a manutenção de
estreita associação entre as práticas religiosas e as escolares,
especificamente na região da cidade de Londrina e seu entorno,
local de nossa pesquisa, registrada por meio de observação
etnográfica desenvolvida pela pesquisadora durante atividades
de estágio supervisionado. Não obstante a laicidade ora vigente
nas escolas públicas brasileiras, houve diversas ocasiões em
que observamos, em muitas instituições visitadas, a adoção de
determinados ritos religiosos fortemente arraigados na cultura
local: orações de igrejas católicas e/ou protestantes executadas em

22 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
sala dos professores, no pátio escolar antes do início das aulas e,
algumas vezes, dentro das próprias salas de aula.
Assim, a escola parece incorporar as práticas religiosas
predominantes nas comunidades locais e profundamente
arraigadas nas famílias, de modo a produzir esse imbricamento
entre as esferas de letramento escolar, religioso e familiar, o que
pode ser observado em relatos sobre a fala de professores em
sala de aula e até mesmo no uso de textos que agregam de modo
indistinto formas modelares dos discursos religioso e escolar.
Exemplifiquemos. Um dos sujeitos pesquisados, em sua
história de letramento, relatou ter sido presenteado com um
pequeno livro religioso pela professora em seu primeiro ano
escolar; outro relatou que a professora costumava lhe oferecer
minilivros religiosos para ler/folhear sempre que sua tarefa era
concluída antes dos demais alunos; tais exemplos ilustram bem
a indistinção entre os textos da esfera escolar e da esfera religiosa
e sua utilização no trabalho pedagógico no lugar, por exemplo,
de textos literários. Em muitas salas de aula, observou-se que
as lousas recebiam, antes de anotações de conteúdo didático, o
registro da data e da disciplina acompanhado de versículos do
evangelho bíblico. Embora esta prática se ache relativamente
naturalizada na e pela comunidade escolar, nem todos os alunos
a avaliam positivamente, mas, pelo contrário, observam-na
criticamente, conforme podemos verificar em uma passagem do
texto produzido por L.S. em sua história de letramento: “lembro-
me da professora vagamente. Religiosa e conservadora, suas aulas
se pareciam muito com a missa rezada pelo padre porque falava
de Deus o tempo todo”.
Entendemos que esse imbricamento dos letramentos das
esferas familiar, escolar e religiosa se torna compreensível a partir

23 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
da constatação de que a família, a escola e a igreja enquanto
instituições partilham de valores morais e ideológicos voltados à
manutenção da ordem social, à defesa do patrimônio familiar e
das tradições morais e culturais e, deste modo, vêm a partilhar o
modelo cultural majoritário. A família, entretanto, em função da
própria natureza da vida cotidiana, adquiriu modos mais flexíveis
de se relacionar com a escrita, desenvolvendo práticas menos
rígidas e formais, portanto, mais vernaculares de letramento.
O fato é que tanto a igreja quanto as famílias guardam estreita
semelhança com o modo escolar de construir suas práticas de
letramento, o que pode ser constatado em nossa pesquisa.
Em relação à esfera do trabalho, as análises foram
direcionadas a desenvolver um olhar focalizado em atividades
não propriamente formais ou institucionais, mas considerando
situações de trabalho em um sentido amplo, tendo em vista que
muitas vezes os sujeitos narravam suas experiências de participação
em eventos laborais realizados no próprio lar, em tarefas no campo,
em estabelecimento comercial da família, nas ruas etc. A pesquisa
se torna mais rica na medida em que reconhecemos o papel dos
letramentos vernaculares relativos ao trabalho desenvolvidos
em esferas não institucionalizadas: alguns sujeitos relataram
sua participação em diversos eventos de letramento em que
“ajudavam” os pais, às vezes atuando como escribas a escrever
carta para parentes de locais distantes, outras vezes lendo notícias
jornalísticas; decifrando expressões em bulas de remédios e/ou
em manuais de produtos agrícolas destinados à aplicação de
pesticidas na lavoura; ou também, “passando a limpo” anotações
improvisadas pelos pais em suas cadernetas de “fiado”; ou ainda,
o caso de uma participante da pesquisa que datilografava textos
autobiográficos para o avô que tinha um interessante projeto de
escrever suas memórias.

24 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
Já alguns relatos, ao focalizar as práticas de letramento
relacionadas ao campo de trabalho docente, reportaram
experiências bastante significativas, nas quais os sujeitos se
dedicavam a ensinar leitura e escrita a seus filhos, irmãos ou
sobrinhos, considerando essa atuação pedagógica como uma forma
de preparação válida e eficiente para o desenvolvimento de seu
letramento acadêmico e sua atuação profissional. Apresentaram-
se, assim, nas histórias autobiográficas, inúmeros episódios de
práticas de letramento em que se cruzaram e interpenetraram
elementos da vida doméstica familiar e do trabalho.

Palavras finais

Para finalizar, observamos que nossa pesquisa demonstrou/


confirmou a natureza do letramento como prática social, cuja
aquisição se dá mediante a inserção dos sujeitos na vida cultural
coletiva participando de atividades exercidas com uso de leitura/
escrita. Trata-se de um processo gradual e contínuo de aquisição
da capacidade de desenvolver as práticas de letramento nas
múltiplas e diversificadas esferas de atividades comunicativas e
socioculturais.
A esfera escolar mostrou-se a mais relevante no percurso
de desenvolvimento de letramento dos sujeitos da pesquisa.
Como já observamos anteriormente, mesmo no caso de
experiências negativas relacionadas ao letramento escolar,
esses sujeitos atribuíram à escola seu acesso à cultura letrada
legitimada, aos textos literários, aos gêneros textuais do tipo
expositivo-dissertativo, enfim, o contato com um capital cultural
imprescindível para sua posterior inserção no meio acadêmico e
para conquista de postos de trabalho mais vantajosos na sociedade.

25 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
Além da escolar, o estudo apontou a relevância das esferas
familiar e religiosa e, menos frequentemente, de certas áreas de
trabalho, como livrarias e editoras, que propiciavam contato com
letramentos de prestígio. Importante ressaltar que as práticas
desenvolvidas em tais esferas não funcionaram separadamente,
mas sim articuladas em um processo de imbricamento contínuo,
manifestando-se aí novamente a força da agência escolar para o
desenvolvimento de modelos de letramento de prestígio: inúmeras
histórias referiram-se a crianças que brincavam de “escolinha”
em casa, utilizando material didático dos irmãos mais velhos e
imitando as aulas de professor(a)es. Também nas esferas familiar
e religiosa, as crianças reproduziam as atividades de leitura e
escrita realizadas pelos pais em seus diversos afazeres e, em lares
religiosos, também executavam as práticas letradas de ler a Bíblia,
os livros de orações e revistas de estudo bíblico ou catecismo,
havendo forte afinidade entre as práticas religiosas e as escolares,
ambas trazidas para o lar.
Porém, em todas as esferas, evidenciou-se especialmente o
papel fundamental da constituição de um vínculo intersubjetivo
no decurso de determinadas práticas de letramento que as tornava
impregnadas de uma carga valorativa de dimensão emocional:
compartilhar atividades de leitura/escrita plenas de significado
humano junto a um familiar, junto a um(a) professor(a) ou amigo
que se prezasse e admirasse parece ter potencializado a apreensão
no desenvolvimento de tais práticas e sua extensão a outros
domínios da vida, no caso dessa pesquisa, a profissão docente.
Acrescente-se ainda uma menção ao uso do método
de pesquisa autobiográfica como um instrumento que se
revelou bastante profícuo, capaz de atuar de modo positivo
na construção de um processo formativo de autorreflexão dos

26 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
sujeitos participantes, de conscientização crítica e legitimação
do trabalho dos professores em formação. Entendemos que, ao
refletir sobre suas próprias experiências quanto ao aprendizado
e desenvolvimento das práticas de leitura/escrita, os sujeitos
adquirem melhores condições de avaliar e repensar sobre sua
futura atuação profissional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Gabriela. História de garra. Revista Cláudia/maio 2015,


editora Abril.

BAKHTIN, Mikhail. [1929]. Marxismo e Filosofia da Linguagem:


problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da
Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São
Paulo, Hucitec, 1995.

BAKHTIN, Mikhail. [1951/1953]. Estética da Criação Verbal.


Tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo, Editora Martins
Fontes, 1992.

BARTON, David. Literacy practices and literacy events. In: BARTON,


David; HAMILTON, Mary et al. Worlds of literacy. Clevedon:
Multilingual Matters, 1994.

BARTON, David; HAMILTON, Mary. Vernacular literacies. In:


BARTON, David; HAMILTON, Mary. Local literacies. Reading and
writing in one community. London: Routledge, 1998.

BARTON, David; HAMILTON, Mary; IVANIC, Roz. Situated


Literacies – reading and writing in context. London: Routledge, 2000.

BELINTANE, Claudemir. Oralidade e alfabetização – uma nova


abordagem da alfabetização e do letramento. São Paulo: Cortez Editora,
2014.

27 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
GEE, James Paul. ‘The New Literacy Studies: from “socially situated”
to the work of the social’. In: BARTON, David; HAMILTON, Mary;
IVANIC, Roz. Situated Literacies – reading and writing in context.
London: Routledge, 2000.

GEE, James Paul. Social linguistics and literacies. Ideologies in


Discourses. Hampshire, The Falmer Press, 2008.

HEATH, Shirley Brice. “What no bedtime story means: narrative skills


at home and school”. Language in Society. Cambridge: Cambridge
University Press, 1982, 11:49-76.

HEATH, Shirley Brice. Ways with words: Language, Life and Work
in Communities and Classrooms. Cambrige: Cambridge University
Press, 1983.

KINCHELOE, Joe L. Teachers as researchers: qualitative inquiry as


a path to empowerment. The Falmer Press, 1991.

KLEIMAN, Angela Bustos. Modelos de Letramento e as práticas de


alfabetização na escola. In:

KLEIMAN, Angela. Bustos. (Org.). Os significados do Letramento:


uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas:
Mercado de Letras, 1995.

KLEIMAN, Angela Bustos. Formação do professor: retrospectivas


e perspectivas na pesquisa. In: KLEIMAN, Angela Bustos. (Org). A
Formação do Professor. Campinas: Mercado das Letras, 2001.

KLEIMAN, Angela Bustos. Processos identitários na formação


profissional: o professor como agente de letramento. In: CORREA,
Manoel e BOCH, Françoise. (Org.). Ensino de Língua, representação
e letramento. Campinas Mercado de Letras, 2006.

MARINHO, Marildes. Letramento: a criação de um neologismo e a


construção de um conceito. In: MARINHO, Marildes; CARVALHO,
Gilcinei Teodoro. (Org.) Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.

28 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
OLSON, David R. O mundo no papel: as implicações conceituais e
cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997.

PASSEGGI, Maria Conceição. Memoriais: injunção institucional e


sedução autobiográfica. In: PASSEGGI, Maria Conceição; SOUZA,
Elizeu Clementino (Org.). (Auto)Biografia: formação, territórios e
saberes. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: PAULUS, 2008.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. B.H.:


Autêntica, 1998.

SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto,


2008.

SOARES, Magda. Práticas de letramento e implicações para a pesquisa


e para políticas de alfabetização e letramento. In: MARINHO, Marildes;
CARVALHO, Gilcinei Teodoro. (Org). Cultura Escrita e Letramento.
Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010.

SOUZA, Elizeu Clementino. Modos de narração e discursos da


memória: biografização, experiências e formação. In: PASSEGGI, Maria
Conceição; SOUZA, Elizeu Clementino. (Org.). (Auto)Biografia:
formação, territórios e saberes. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo:
PAULUS, 2008.

STREET, Brian Vincent. Literacy in Theory and Practice. Cambridge:


Cambridge University Press, 1984.

STREET, Brian Vincent. Cross-cultural approaches to literacy. New


York: Cambridge University

Press, 1993.

STREET, Brian Vincent. What’s “new” in New Literacy Studies?


Critical approaches to literacy in theory and practice. Current Issues
in Comparative Education. Teachers College, Columbia University,
v.5(2), 2003.

29 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
STREET, Brian Vincent. Os novos estudos sobre o letramento: histórico
e perspectivas. In: MARINHO, Marildes; CARVALHO, Gilcinei
Teodoro. (Org). Cultura Escrita e Letramento. Belo Horizonte, Editora
UFMG, 2010.

STREET, Brian Vincent. Letramentos sociais: abordagens críticas


do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. São
Paulo: Parábola Editorial, 2014. Tradução de Marcos Bagno do original
de 1995.

STROMQUIST, Nelly P. Conceptual and Empirical Advances in


Adult Literacy. Canadian and International Education, vol.21, núm.2,
Published by Comparative and International Education Society, Canada,
1992, pp. 40-45.

30 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 7-30 – jan./jul. 2019
LIÇÕES DOS CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA
BRASILEIRA PARA OS ATUAIS DESAFIOS
DO ENSINO MÉDIO

Angela Maria de Sousa Lima1


Angélica Lyra de Araujo2

RESUMO: O artigo trata de uma breve contextualização histórico-sociológica de


cinco autores clássicos da Sociologia Brasileira, a saber: Tobias Barreto, Sílvio Romero,
Fernando de Azevedo, Guerreiros Ramos e Florestan Fernandes, escolhidos pelas suas
trajetórias na constituição do pensamento social brasileiro. Quer contribuir para
o reconhecimento da pertinência da inserção da Sociologia Brasileira nos cursos de
Licenciatura em Ciências Sociais/Sociologia e nos currículos do Ensino Médio, por meio
da disciplina de Sociologia. As problematizações sociológicas dos referidos pensadores
continuam atuais por focarem aspectos de fenômenos sociais que persistem no âmbito das
desigualdades sociais e educacionais do país. No contexto dos atuais desafios do Ensino
Médio, defende o papel da intervenção e da militância sociológica na democratização
de políticas públicas. Por tudo isso, entende-se que o contato dos professores e estudantes
com estes autores brasileiros estimulam a prática da investigação sociológica, focando o
Brasil como referencial empírico e teórico.
Palavras-chave: Ensino Médio. Sociologia Brasileira. Formação de Professores.

ABSTRACT: The article treats of a fast historical-sociological context of five classic


authors of the Brazilian Sociology, to know: Tobias Barreto, Sílvio Romero, Fernando
de Azevedo, Guerreiros Ramos and Florestan Fernandes, chosen by their paths in the
constitution of the Brazilian social thought. The article wants to contribute for the
recognition of the importance of introduce the Brazilian Sociology in the courses of
formation of teachers in social science/sociology and in the curriculum of the secondary
school, through the discipline of Sociology. The referred thinkers’ sociological discussions
continue current for focus in aspects of social phenomen that persist in the ambit of the

1
Professora de Metodologia de Ensino e Estágio Supervisionado de Sociologia, no
Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Londrina. Doutora em
Ciências Sociais pela UNICAMP. Contato: angellamaria@uel.br
2
Professora de Metodologia de Ensino e Estágio Supervisionado de Sociologia, no
Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Londrina. Doutora em
Ciências Sociais pela UNESP/FCLAR. Contato: lyradearaujo@hotmail.com

31 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
social and educational inequalities of the country. In the context of the current challenges
of the secondary school it defends the paper of the intervention and of the sociological
militancy in the democratization of public politics. For all this, we understand that the
contact with teachers and students with these Brazilian authors stimulate the practice
of a sociological investigation, choosing Brazil as empiric and theoretical referencial.
Key words: Secondary school. Brazilian Sociology. Formation of Teachers.

Breves considerações acerca da Sociologia no Brasil

Antônio Cândido, em 1956, redigiu um artigo traçando


um panorama da Sociologia no Brasil. Seus estudos apontaram
para o desenvolvimento da Sociologia em dois períodos, a saber:
de 1880 a 1930 e depois de 1940, com uma fase de transição
de 1930 a 1940. Segundo Cândido, em 1880, “os intelectuais
não especializados, interessados principalmente em formular
princípios teóricos ou interpretar de modo global a sociedade
brasileira” se apropriam dos conhecimentos sociológicos (2006,
p.171). A Sociologia desse período traz na sua origem forte
influência da atuação dos juristas e de suas doutrinas baseadas no
evolucionismo científico e filosófico. Sobre isso, Cândido nos diz:

[...] coube aos juristas papel social dominante no Brasil oitocentista,


dadas as tarefas fundamentais de definir um Estado moderno e
interpretar as relações entre a vida econômica e a estrutura política.
Foi a fase de elaboração das nossas leis, aquisição das técnicas
parlamentares, definição das condutas administrativas. O jurista foi
o intérprete por excelência da sociedade, que o requeria a cada passo
e sobre a qual estendeu o seu prestígio e maneira de ver as coisas.
Mas como as teorias dominantes na segunda metade do século se
achavam marcadas pelo surto científico de então, notadamente
a Biologia, que saiu dos laboratórios para se divulgar de maneira
triunfante, os juristas mergulharam na fraseologia científica e se
aproximaram, neste terreno, dos seus pares menos aquinhoados,
médicos e engenheiros, que com eles formavam a tríade dominante
da inteligência brasileira (2006, p.272).

32 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
Na Sociologia Brasileira têm-se, portanto, nas últimas
décadas do século XIX, as primeiras manifestações especulativas
a partir dos estudos de juristas, engenheiros, médicos, que,
sob a orientação das concepções organicistas e evolucionistas,
baseando-se em autores como Comte e Spencer, dão fomento
para o pensamento social do Brasil. Uma das primeiras discussões
teóricas acerca da Sociologia encontra-se no texto “Glosas
Heterodoxas a um Motes do dia, ou variações anti-sociológicas” do
professor e jurista Tobias Barreto3 (1839-1889), representante
da Escola de Recife4. Tobias Barreto foi categórico ao afirmar:
Eu não creio na existência de uma ciência social. A despeito
de todas as frases retóricas e protestos em contrário, insisto na
minha velha tese: - a Sociologia é apenas o nome de uma aspiração
tão elevada, quão pouco realizável. Além deste caráter de simples
postulado do coração, que vê ou quisera ver na sociedade humana
um todo orgânico, subordinado, como os demais organismos, a
certas e determinadas leis, a palavra não tem outro sentido, que
mereça ser investigado. Logo em princípio, salta aos olhos que
o estudo dos fenômenos sociais, considerados em sua totalidade
e reduzidos à unidade lógica de um sistema científico, daria em
resultado uma estupenda pantosofia, evidentemente incompatível

3
Tobias Barreto nasceu em 1839 no Sergipe. Faleceu em Escada, Pernambuco, em 1889.
Teve destaque como aluno e, mais tarde, como professor da Faculdade de Direito de
Recife. É considerado o precursor da Escola de Recife e o pioneiro no Brasil nos debates
sociológicos e filosóficos. Seus estudos revelam uma crítica ao ecletismo espiritualista e
ao positivismo e defende a metafísica no diálogo com as ciências.
4
A Escola de Recife, segundo Nascimento (2006), “foi um movimento na segunda metade
do século XIX a partir da Faculdade de Direito do Recife, com o propósito de buscar
uma identidade nacional brasileira, assumindo a necessidade de utilização da cultura e
da educação para a construção de novos valores” (p. 43). Destacam-se como principais
representantes: Tobias Barreto (1839-1889), Sílvio Romero (1851-1914), Artur Orlando
(1858-1916), Clóvis Bevilacqua (1859-1944), Fausto Cardoso (1864-1906), Graça Aranha
(1868-1931), Martins Júnior (1860-1904), Gumercindo Bessa (1859-1913), Araripe Junior
(1848-1911), Raimundo Farias Brito (1862-1917), entre outros.

33 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
com as forças do espírito humano. Se nem mesmo como ciência
descritiva, que aliás envolve, na opinião de Haeckel, uma
contradictio in adjecto, a ciência social é construtível, pois que não
podem ser descritos, todos os fenômenos da sua alçada, por que
razão sê-lo-ia como ciência de princípios, como ciência de leis,
que têm de ser induzidas da observação desses mesmos fatos?
Desconheço uma tal razão. Entretanto, não se suponha que eu
tenha jurado aos meus deuses fazer uma guerra à Sociologia. Não
estou disposto a afrontar o martírio na luta contra ela. Porém, julgo
ter o direito de exigir dos seus sectários alguma coisa de mais sério
do que meia dúzia de estribilhos e convenções da escola. Exijo
pouco, mas esse pouco é tudo [...] (BARRETO, 1962, p.191).
Ao negar a Sociologia, Tobias Barreto não sabia que tal
ato poderia ser um aliado na disseminação de novos intelectuais
para a causa. Em outras palavras, ao defender seus argumentos,
Tobias Barreto estimula outros pensadores que desenvolverão seus
estudos na contramão do seu pensamento. Baseado numa visão
antipositivista, Barreto acreditava que a Sociologia não era uma
ciência, justamente por considerar que o seu campo de atuação
era normativo, pois organizava as normas essenciais que regulam
a vida humana. Também considerava que não se tratava de um
campo investigativo como das Ciências Naturais. Diz ele: “[...] a
questão principal não é de método, mas de objeto. A Sociologia
não tem um que possa ser regularmente observado” (BARRETO,
1962, p. 240).
Cândido (2006, p. 273), ao tratar de Tobias Barreto,
comenta: “levando o naturalismo científico às conseqüências finais,
argumenta que as leis sociais não são naturais, pois são normativas;
logo, não estão regidas pelo princípio do determinismo, sem o
qual não há ciência [...]”. Com isso, compreendemos que, para

34 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
Barreto (1962), as leis sociais se diferenciavam das naturais e não
eram regidas pelo princípio do determinismo, sendo indefinidas.
Logo, era impossível se elevar a Sociologia aos status científico.
Assim, nas palavras de Barreto;

[...] o positivismo, que criou a bárbara expressão de Sociologia,


aliás bem adaptada à esdrúxula idéia da cousa [...] A Sociologia,
que dêste modo não seria mais do que uma irmã bastarda das
velhas histórias da civilização e filosofias da história, nada teria a
apresentar de próprio e nôvo [...]. Em geral os sociólogos não são
homens com quem se possa falar sério; são espíritos incompletos ou
doentes. A Sociologia como temo-la, é simplesmente um produto
de especulação filosófica: o elemento empírico lhe falece de todo.
(1962, p.241 e 244).

Desse modo, para Barreto, sua crítica à Sociologia “era


justamente entre fenômenos que obedeciam a lei da causalidade
(típico das Ciências Naturais) e os da finalidade (Ciências
Culturais), que nublavam o objeto de estudo da Sociologia a partir
de um determinismo mecanicista” (BARBOSA, 2007, p. 10). Os
argumentos de Barreto tiveram como resposta um outro expoente
da Escola de Recife: Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos
Romero5 (1851-1914). Em 1895, ele apresenta a obra Ensaios

5
Silvio Romero nasceu em 21 de abril de 1851, na cidade de Lagarto, Sergipe. Faleceu em
18 de junho de 1914, na cidade do Rio de Janeiro. Estudou na Faculdade de Direito do
Recife entre os anos de 1868 e 1873. “Atuou como crítico, ensaísta, folclorista, polemista,
professor e historiador da literatura brasileira. Segundo a Academia Brasileira de Letras,
Sílvio Romero formou ao lado de Tobias Barreto (que cursava o 4º. ano quando Sílvio se
matriculou no primeiro), nesta Escola do Recife, em que se buscava uma renovação da
mentalidade brasileira. Sílvio Romero foi um pesquisador bibliográfico sério e minucioso.
Preocupou-se, sobretudo, com o levantamento sociológico em torno de autor e obra. Sua
força estava nas ideias de âmbito geral e no profundo sentido de brasilidade que imprimia
em tudo que escrevia” [...] (BIOGRAFIA, 2012, p.01). Silvio Romero é considerado o
pioneiro no debate acerca da inserção da Sociologia no Brasil. Para Povinã (1939), Silvio
Romero é visto “como o primeiro sociólogo brasileiro e quiçá o primeiro sociólogo latino-
americano” (apud NASCIMENTO, 2006, p.437).

35 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
de Filosofia do Direito, como réplica às ideias antissociológicas de
Barreto.
Romero foi um dos primeiros pensadores brasileiros a
defender a Sociologia, dizendo: “[...] a Sociologia ocupa-se dos
fenômenos humanos estudáveis nos diversos grupos, raças, povos,
etc., em que se acha dividida a humanidade, para desses fatos
induzir os princípios gerais que se podem aplicar ao grande todo”
(1969, p. 539). Por isso, uma das questões principais levantadas
pelo autor se refere à preocupação com o papel dos intelectuais,
pois esses seriam responsáveis por pensar e propor mudanças ao
país.
Além disso, Romero (1969) considerava outros problemas
pertinentes para entender a formação da Sociologia, como a índole
do povo e a cultura política. Com ausência de um projeto nacional,
indagava: que tipo de república estava se implantando? O que é
ser republicano? Que tipo de educação temos e queremos? Qual é
a cultura vigente? Estas e outras perguntas e respostas perpassam
suas obras, sistematizando um período importante do pensamento
sociológico brasileiro.
Sílvio Romero (1969) defende a autonomia da
Sociologia com critérios teóricos e metodológicos próprios, não
semelhantes aos das Ciências Naturais. Sua defesa fundamenta-
se na sistematizaçao da investigação sociológica influenciada
primeiramente pelos ideais do positivismo de Comte (mais tarde
também o critica), substituídos paulatinamente pelas ideias de
Spencer. Ele passa a refletir, sobretudo, acerca da evolução cultural
e institucional do Brasil, procurando identificar os elementos
mais simples que poderiam servir de desenvolvimento de um
organismo social e complexo. Romero (1969) adotou o método

36 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
monográfico da escola de Le Play6 como procedimento para suas
pesquisas sociológicas.
Para o pensador sergipano, podemos encontrar em qualquer
sociedade os fatores culturais básicos, sendo eles: “ciência, religião,
arte, política, moral, direito, indústria” (ROMERO, 1969, p.596).
Esses devem estar sob o olhar de investigação sociológica. No
parecer de Cândido, o legado de Sílvio Romero para a Sociologia
está;

[...] na atividade de pesquisador das tradições orais, que foi o


primeiro a colher e sistematizar (“A poesia popular no Brasil”,
1880; “Cantos populares do Brasil”, 1883; “Contos populares do
Brasil”, 1885), além da propaganda constante, em breves escritos
e referências, impondo com o seu prestígio a jovem ciência [...]
(2006, p. 274).

Sílvio Romero (1969), juntamente com outros estudiosos,7


passou a uma interpretação sistemática da realidade brasileira,
revelando-se preocupado “[...] com o problema da identidade
nacional e das instituições. Na sua perspectiva, já existia uma
identidade nacional latente” (PÉCAUT, 1990, p.01). Estes são
alguns dos elementos que se destacaram no primeiro período de
formação da Sociologia no Brasil.
6
O sociólogo francês Frédéric Le Play (1806-1882) atuou como investigador social no
período de consolidação da disciplina sociológica. Sua obra de destaque é Les Ouvriers
européens. Étude sur les travaux, la vie domestique et la condition morale des populations
ouvrières de l’Europe, de 1876. Nessa obra, Le Play traz minuciosamente o relato da vida
de famílias de metalúrgicos, mineiros e outros trabalhadores de grande parte das regiões
da Europa e de seus orçamentos (FREITAS, 2010). Sua escola sociológica teve uma
ampla divulgação no Brasil através dos estudos de Silvio Romero, que adotou o método
monográfico, que permite ao pesquisador conhecer a fundo um único tema.
7
De acordo com Silva (2007, p.439), Tobias Barreto e Silvio Romero [...] “encabeçam a
lista dos pioneiros da Sociologia no Brasil e devem ser lembrados também os nomes de
Miguel Lemos, Benjamin Constant. Alberto Torres, Tavares Bastos, Fausto Cardoso, Artur
Orlando, Euclides da Cunha, Paulo Egydio, Florentino Menezes, Vitor Viana, Bransão
Júnior, Soriano de Sousa, Lívio de Castro, Alberto Sales, Joaquim Pimenta, Pontes de
Miranda, dentre outros [...]”.

37 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
Na década de 1920, precisamente no Rio de Janeiro, em São
Paulo, no Recife e em Fortaleza, há uma acentuada preocupação
dos intelectuais8 com os problemas educacionais. Um exemplo
disso são as questões levantadas para o Jornal o Estado de São
Paulo, em 1925, escrito por Fernando de Azevedo9 (1894-1974),
pensador de grande relevância para as áreas da Sociologia, da
Política e da Educação. Foi somente em 1936 que os primeiros
brasileiros receberam uma formação universitária sociológica.
Esse período de transição foi considerado significativo, pois
segundo Cândido, “corresponde à consolidação e generalização da
Sociologia como disciplina universitária e atividade socialmente
reconhecida, assinalada por uma produção regular no campo da
teoria, da pesquisa e da aplicação (2006, p. 271).
Cândido acreditava também que esse período havia sido
decisivo para estudos sociológicos e antropológicos, sendo os
primeiros professores universitários estrangeiros ou naturalizados,
entre eles: “Horace Davies, Samuel Lowrie, Claude Lévi-Strauss,
Paul Arbousse Bastide, Emílio Willems, Herbert Baldus, Jacques
Lambert, Roger Bastide, Donald Pierson – americanos, franceses,

8
Segundo Nova (1991), “em 1922 acontece em São Paulo a ‘Semana da Arte Moderna’,
reflexo da preocupação de alguns artistas – Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Graça Aranha, Villa-Lobos, Portinari, Tarsila do Amaral entre outros – em renovar a
arte brasileira a partir de uma identificação com as suas raízes tradicionais, conjugadas à
adesão das vanguardas europeias” (p. 156-157).
9
Fernando de Azevedo nasceu em São Gonçalo de Sapucaí, Minas Gerais. É considerado
um dos responsáveis pela reforma do ensino no país a partir de experiências feitas no
Ceará (1923) e Rio de Janeiro (1926). “[...] dedicou-se durante quase meio século à
questão educacional. Recebendo sólida formação cultural jesuíta, chegou a fazer votos,
mas renunciou à vida religiosa posteriormente. Embora formado em Direito (1918),
jamais advogou e, ao longo de sua vida, além da docência, ocupou diversos cargos públicos
importantes [...]. Dentre os cargos que ocupou, destacam-se os seguintes: Diretor da
Instrução Pública do Distrito Federal (1927), Diretor Geral da Instrução Pública de
São Paulo (1933), Professor da Universidade de Sâo Paulo (1933-1938) e Secretário de
Educação também em São Paulo, em 1961. (SOUZA, 2012, p. 05). Faleceu em São Paulo,
em 18 de setembro de 1974.

38 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
alemães que nos vieram trazer a cultura universitária no setor das
Ciências Sociais” (2006, p. 285).
Nessa perpectiva, no Brasil, destaca-se o já mencionado
professor Fernando de Azevedo, trazendo influências de
Durkheim10 (1858-1917), de John Dewey11 (1859-1952), de
Herbert Spencer12 (1820-1903), de Lester Ward13 (1841-1913),
dentre outros. Seus escritos contemplam o humanismo clássico,
a educação e a crítica, elementos que o levaram a se preocupar
com o “fator social na cultura didática e científica” (CÂNDIDO,
2006, p. 285).
Na obra Sociologia Educacional, de 1951, Azevedo coloca
a educação como um dos campos de investigação sociológica,
identificando seus conceitos e seus processos de socialização na
relação entre as instituições sociais, como o Estado, a família, a
escola, entre outras. A Sociologia, portanto, era fundamental para
diagnosticar e apontar as soluções para os problemas brasileiros.
Por isso, segundo Nascimento (2010), a obra de Azevedo
10
Introduziu as ideias de Durkheim no Brasil e aplicou seus conceitos (diferenciação
social, tipos de solidariedades) para explicar a sociedade brasileira.
11
Nota-se Dewey presente em Azevedo, à medida que traz a educação como meio de
criar forças sociais como processo de mudança social. “A desorganização do ensino
público e seu caráter abstrato, literário, autoritário e desarticulado constituíram-se um
fator potencializador, durante o século XIX, da exclusão da grande maioria do sistema
escolar” (REZENDE, 2004/2005, p.182).
12
A influência de Spencer fica evidente “[...] na obra A cultura brasileira. Fernando de
Azevedo procurava, na tese básica do evolucionismo, os fatores de diferenciação (a qual
deve ser entendida como o processo de constituição de heterogeneidades múltiplas nos
diversos âmbitos da vida social, como: organização econômica e política, formas de
trabalho, atividades intelectuais, artísticas, educacionais, divisão do trabalho, especialização
profissional, urbanização, industrialização, novos modos de vida, novas formas de
apropriação e de distribuição são fatores de diferenciação) que indicassem que a sociedade
brasileira não era, desde a sua formação, estática. (REZENDE, 2004/2005, p.176).
13
Azevedo aproxima-se do pensamento de Lester quando trata das mentalidades subjetivas,
isto é, os valores, crenças, modos de pensar são arragaidos na vida social. Assim, existem
elementos subjetivos e objetivos no processo de mudança, que são também conscientes e
propositivas. Era preciso, portanto, estudar a cultura política, considerando a subjetividade
também na política, pois esta traz resquícios do patrimonialismo, que gera o personalismo
– e esses resíduos levam a procedimentos políticos que levam à construção de mentalidades.

39 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
[...] consistiu em um conjunto de teorias e metodologias que tinha
como objeto de estudo a sociedade, a qual, no caso brasileiro, este
sociólogo buscou explicar bem como intervir. Para ele não existiria
uma Sociologia brasileira e, sim, uma Sociologia no Brasil – que
dialoga com métodos e teorias elaborados, aplicados e aperfeiçoados
por e em diferentes países (2010, p. 164).

Desse modo, Azevedo (1951) valoriza os conteúdos sociais,


ou seja, os valores. Para ele, competia à Sociologia analisar a
sociedade a partir das formas de conflitos, de exclusão, do processo
de industrialização, dos valores culturais, a fim de compreender a
mentalidade de constituição do pensamento brasileiro. Com esse
ideário, Azevedo (1951) propõe a criação de uma mentalidade
baseada do homem nacional, ou seja, os interesses da coletividade
precisavam estar acima dos interesses particulares. Esta foi uma
das bases do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova14,
redigido por ele em 1932 e assinado por 25 educadores, dentre
eles: “Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Roquete
Pinto, Júlio de Mesquita Filho, Cecília Meireles e Pascoal Leme”
(SOUZA, 2012, p. 09).
Deste modo, Fernando de Azevedo contribui para
“delimitar, difundir e legitimar a Sociologia como ciência e
14
“O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova revelava uma preocupação com os
descaminhos de uma sociedade que se modernizava na área econômica e que apresentava
dificuldades para implementar mudanças nas áreas políticas e culturais” (REZENDE,
2003, p.78). Portanto, “[...] surgiu da necessidade de ser elaborado algum projeto
educacional mais amplo e sistemático, após a Revolução de 1930 [...] (SOUZA, 2012,
p.09). Segundo, “Marcus Vinícius Cunha, estudioso do movimento denominado Escola
Nova no Brasil, afirma que a década de 1920 teria sido o nascedouro de um novo ideário
escolar. “Fatos marcantes nesse processo foram a criação da Associação Brasileira de
Educação de 1924 e a dissidência ocorrida na IV Conferência Nacional de Educação,
em 1931, que cindiu o pensamento renovador em dois agrupamentos, os liberais e os
católicos. O primeiro grupo, integrado por Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio
Teixeira e outros, publicou em 1932 o documento que ficou conhecido como Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova, em que se encontram as principais diretrizes políticas, sociais,
filosóficas e educacionais do escolanovismo” (CUNHA, apud REZENDE, 2003, p.76).

40 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
como disciplina, assim como estabelecer sua função para o
diagnóstico e para a orientação do processo de modernização
o país” (NASCIMENTO, 2010, p.177). Era preciso analisar
sociologicamente o homem, partindo da paisagem social,
abrangendo todas as esferas que compõem o cenário brasileiro.
Fernando de Azevedo tem o reconhecimento das
contruibuições deixadas para a Sociologia, sobretudo, para a
educação. Neste percurso, vejamos como Piletti se refere ao
pensador:

Segundo o testemunho insuspeito de Paschoal Lemme, Fernando


de Azevedo foi “uma das mais altas expressões da inteligência e da
cultura do Brasil moderno”, destacando-se por três contribuições
fundamentais: “1. A grande reforma do ensino no antigo Distrito
Federal (1927-1930) [...], reforma essa que, segundo as opiniões
mais autorizadas, foi o marco inicial do processo de modernização
do ensino no Brasil. 2. O Manifesto dos pioneiros da educação nova
(1932) [...], documento único na história da educação brasileira.
[...] Subscrito por um grupo dos mais eminentes educadores e
intelectuais, mantém até hoje sua validade. 3. A monumental obra
A cultura brasileira, redigida inicialmente para servir de introdução
ao recenseamento de 1940, tornou-se de consulta obrigatória para
quem deseja conhecer a evolução da cultura nacional, em todos
os seus aspectos” (Carta ao Jornal do Brasil, 1976). A estas três
poderíamos acrescentar uma quarta contribuição, que foi a sua
importante participação no processo de fundação da Universidade
de São Paulo (1934), destacando-se como um lutador incansável
pela implementação do verdadeiro espírito universitário, plenamente
identificado com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como
anima mater da Universidade (1994, p.183).

Azevedo, nos anos 1920 e 1930, via a educação como um


instrumento de mudança de mentalidade através da Escola Nova.
Mas, as experiências da Escola Nova em São Paulo e na Bahia
demonstraram no final nos anos 1930, que essa possibilidade

41 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
ainda estava bem distante por conta das resistências das próprias
comunidades, como também do governo que mais tarde, no
período do Golpe Militar (1964-1984), abortou todos os projetos
de mudança sugeridos pela Escola e pelo próprio Azevedo.
Logo após esse período de transição, no terceiro momento,
notamos uma produção de estudos sociológicos significativos, que
auxiliaram na consolidação da Sociologia como ciência e profissão,
com seu campo de atuação, baseando-se no ensino, na pesquisa e
na divulgação. No final dos anos 1960 e até a sua morte, Azevedo
estava desencantado com a sociedade e questionava as formas
sociais existentes. Almejava, portanto, as inovações que gerariam
uma reforma na sociedade brasileira, “[...] como um instrumento
de intervenção nos rumos desta mudança. Mais que desenhar
retratos, havia a chance de mudar a realidade” (MOREIRA,
1997, p. 39).
Nesse sentido, destacamos Guerreiros Ramos15 (1915-

15
“Nascido em Santo Amaro da Purificação, cidade próxima a Salvador, em 13 de setembro
de 1915. Segundo Maio (1997), “de família humilde, passou parte da infância em cidades
pobres e próximas ao rio São Francisco, como Januária, Pirapora, Petrolina e Juazeiro.
Com onze anos de idade, já em Salvador, empregou-se como lavador de frascos em uma
farmácia, tornando-se caixeiro, posteriormente. Com o apoio da mãe fez o curso secundário
no Ginásio da Bahia e para ajudar no orçamento familiar deu aulas particulares enquanto
fazia o curso. Aos dezessete anos já participava do ambiente cultural da classe média baiana,
escrevendo em O Imparcial e em revistas literárias. Antes de deixar a Bahia, publicou dois
livros: O Drama de Ser Dois e Introdução à Cultura. Foi militante do movimento integralista
e, em seguida, do Centro de Cultura Católico. Amigo de Afrânio Coutinho, Guerreiro
Ramos trabalhou para Isaías Alves, político e intelectual de grande influência na área da
educação, futuro secretário de Educação do Estado da Bahia, criador da Faculdade de
Filosofia da Bahia e irmão do interventor do estado, Landulfo Alves.” (p. 02). Em 1939,
ganhou uma bolsa do governo do Estado da Bahia para cursar Ciências Sociais no Rio
de Janeiro, na Universidade do Brasil, onde se formou em 1942 e em Direito em 1943,
pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Guerreiro Ramos deixou o país em 1966,
radicando-se nos Estados Unidos, onde inspirou toda uma geração de estudantes como
professor da Escola de Administração da Universidade do Sul da Califórnia. Foi uma figura
de grande relevo da ciência social no Brasil. “Sou um homem”, dizia ele uma vez, anos atrás,
a um grupo de ávidos estudantes de Sociologia belorizontinos, “que tem a responsabilidade de
pensar o Brasil 24 horas por dia”. Foi professor da Escola Brasileira de Administração Pública
da Fundação Getúlio Vargas (Ebap-FGV), assim como do Departamento Nacional da

42 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
1982) e sua obra A Redução Sociológica, de 1965. Encontramos
nesse livro um esforço do autor de traçar a construção de uma
Sociologia Nacional (RAMOS, 1965; BARIANI, 2006). Para ele,
“[...] a Sociologia é ciência por fazer. Presentemente, é o nome
de um projeto de elaboração de novo saber, cujos elementos estão
esboçados, mas ainda não suficientemente integrados” (RAMOS,
1965, p. 16). E logo,

São as atuais condições objetivas do Brasil que propõem a tarefa de


fundação de uma sociologia nacional. De fundação, antes que de
fundamentação, pois não se trata de utilizar o repertório já existente
de conhecimentos sociológicos para justificar orientação ou diretriz
ocasional [...] há que se fazer toda uma sociologia do fundamento
e da fundação, que não pode ser realizada nesta oportunidade. O
fundamento de uma sociologia verdadeiramente brasileira deve ser,
antes de mais nada, um fato, um processo real, um dado concreto. A
redução sociológica é um método destinado a habilitar o estudioso a
praticar a transposição de conhecimentos e de experiências de uma
perspectiva para outra. O que inspira é a consciência sistemática de
que existe uma perspectiva brasileira. Toda cultura nacional é uma
perspectiva particular (RAMOS, 1965, p.53 e 54).

Para Guerreiros Ramos, o cientista social deveria agir no


intuito de propor soluções para os problemas sociais, econômicos
e políticos que comprometiam o desenvolvimento na América
Latina. Ramos (1965) alerta que “quem apenas conhece a
literatura sociológica universal, sem se dar conta do que chamo de
“redução sociológica” – dizíamos em 1956 – não passa de simples
“alfabetizado” em Sociologia” (1965, p.15).

Criança e dos cursos de Sociologia e problemas econômicos e sociais do Brasil, promovidos


pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp). Foi também professor
visitante da Universidade de Santa Catarina. Foi citado em 1956 por Pitirim A. Sorokin
como um dos intelectuais eminentes da contribuição do progresso da Sociologia. Faleceu
em 1982, Los Angeles, Califórnia (NÚCLEO ORD, 2008).

43 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
Na sua visão, as Ciências Sociais deveriam ser capazes de
promover ações de enfrentamento que subsidiassem as instituições
que trabalham com políticas de desenvolvimento. Desta forma, o
sociólogo teria a preocupação de mapear, pesquisar e identificar
os fatores que impediam uma efetiva mudança nacional, pois, “a
Sociologia não é especialização, ofício profissional [...]. A vocação
da Sociologia é resgatar o homem ao homem, permitir-lhe
ingresso num plano de existência autoconsciente [...] tornar-se
um saber de salvação” (RAMOS, 1965, p. 15).
Guerreiros Ramos fazia duras críticas aos sociólogos
que ficavam restritos ao ambiente acadêmico. Por este e outros
motivos, ficou por bastante tempo banido do espaço universitário.
Entendia que o conhecimento desses profissionais era essencial
para intervenção das autoridades governamentais, pois até entre
estes havia desconhecimento das reais necessidades da América
Latina. Dessa forma,

A Sociologia deveria estar empenhada em formular estratégias


que servissem às instituições responsáveis pela implementação
de políticas de desenvolvimento. Isso demandaria a utilização do
conhecimento sociológico para mapear, pesquisar e identificar os
principais fatores que impediam o florescimento de mudanças
sociais substantivamente voltadas para o interesse nacional
(REZENDE, 2006, p. 01).

Caberia aos sociológos propor soluções para os problemas


e criticar os procedimentos tomados pelas autoridades. Isso exigia
profundo reconhecimento da realidade nacional, bem como da
literatura sociológica, isto é, “[...] ‘ser-do-mundo’, a qual, para o
cientista, define a única postura capaz de tornar a sua produção
reamente funcional” (RAMOS, 1965, p. 137).

44 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
Guerreiro Ramos falava da Sociologia em ato, como “[...]
um estado de espírito. Você é sensibilizado para um problema e
reage” (RAMOS, 1995, p. 168). Tratava-se, portanto, do despertar
para o problema e o reagir. Porém, ela não vinha desvinculada da
necessidade de um profundo diálogo com os grandes pensadores.
Não podia copiar ideias, métodos e aplicá-los somente. Os
problemas deveriam ter respostas originais.
O referido autor criticava a Sociologia em hábito, pois esta
era importada. Apesar de muitos a utilizarem com propriedade,
desaprovava o equívoco dos pesquisadores ao associarem a
realidade de brasileiros com a realidade dos países desenvolvidos,
afirmando que, “redução é precisamente o contrário de repetição. A
mera repetição analógica de práticas e estudos contraria a essência
da atitude científica [...]” (RAMOS, 1965, p. 130).
No seu modo de ver, nos estudos de saúde e educação,
os cientistas não levaram em consideração a renda nacional, a
indisponibilidade de recurso, as pessoas reais e as práticas culturais
que impediam qualquer proposta de intervenção. Para isso, Ramos
(1965) define três sentidos para a redução sociológica:

redução como método de assimilação crítica da produção


sociológica estrangeira [...] 2) redução como atitude parentética,
isto é, como adestramento cultural do indivíduo, que o habilita a
transcender, no limite do possível, os condicionantes circunstanciais
que conspiram contra a sua expressão livre e autônoma [...] 3)
redução como superação da sociologia nos termos institucionais e
universitários em que se encontra (RAMOS, 1965, p.16).

Os estudos dos sociólogos deveriam ser calcados na


expansão do setor urbano-industrial, reconhecendo as áreas
prioritárias de investimentos, já que os bens materiais eram
escassos, afinal “pedir recursos orçamentários para o trabalho

45 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
sociológico, sem consciência sociológica, crítica do problema
social global dos recursos, é prova inequívoca de um delito contra
a Sociologia” (RAMOS, 1965, p. 31).
Guerreiros Ramos (1965) defendia a ideia de que os
objetos de estudo deveriam se dar pelas necessidades de uma
dada estrutura. Ele levou a termo esta premissa ao definir temas
que deveriam ou não ser financiados pelos órgãos de pesquisa. Os
problemas de pesquisa deveriam ser eleitos conforme o seu maior
grau de relação com o desenvolvimento do país. Pesquisas voltadas
para os detalhes da vida nacional precisariam ser pormenorizadas,
já que as questões de base que atingiam um maior número de
pessoas ainda não tinham sido resolvidas.
Desta forma, as questões de cunho mais amplas deveriam
ser privilegiadas na obtenção de recursos. Por isso, dizia: “o trabalho
sociológico deve ter sempre em vista que a melhoria das condições
de vida das populações está condicionada ao desenvolvimento
industrial das estruturas nacionais e regionais” (RAMOS, 1965,
p. 108). Essa postura foi abominada na década de 1950, durante o
II Congresso Latino-Americano de Sociologia no Rio de Janeiro.
Para Ramos, as principais temáticas a serem pesquisadas estavam
relacionadas à industrialização. Neste contexto;

[...] o sociólogo deveria ser preparado para assessorar e aconselhar


as agências governamentais ou privadas, fornecendo-lhes dados para
agirem no âmbito das diversas instituições e para reconhecerem
os melhores caminhos de implementação de projetos. Assim o
sociólogo deveria ter a capacidade “de utilizar sociologicamente
o conhecimento sociológico” (RAMOS apud REZENDE, 2006,
p. 01).

Esta atitude, de certa forma, cerceava o desenvolvimento


desta ciência, pois impunha o que careceria ou não ser pesquisado.

46 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
Foi outra vez criticado por afirmar que as exigências de precisão e
refinamento de pesquisas deveriam estar em consonância com as
condições sociais, econômicas e culturais do país. Para ele, tamanha
exigência na coleta de dados aos moldes dos Estados Unidos era
impraticável em um país com poucos recursos para a pesquisa
como o Brasil. Como dizia ele: “em país como o Brasil [...] é
verdadeiro contra-senso ou despistamento sair o aprendiz a campo
em busca de conhecimento pormenorizado dos mecanismos da
comunidade, segundo regras made in USA. Não é assim que ele
deixará de ser colonizado” (RAMOS, 1957, p. 106).
Por isso, os pesquisadores brasileiros deveriam utilizar com
cuidado os manuais estrangeiros. Guerreiros criticava também
a ideia de uma Sociologia enlatada16, como exemplo, o tema de
literatura sobre o negro, que, ao se ver era cheia de equívocos, pois
trazia teorias europeias e norte-americanas para serem aplicadas
ao contexto brasileiro. Dizia que existiam vários elementos que
poderiam desvendar a situação do negro no Brasil: diversos
movimentos abolicionistas, como o Teatro Experimental do
Negro, confrarias, fundos de emancipação, os quilombos, as caixas
de empréstimos, as insurreições dos negros muçulmanos.
Era adepto da Sociologia Militante17 e se dizia na obrigação
de participar e de assessorar os movimentos que lutavam pelos
negros, pois, “[...] o homem não é um termo isolado da realidade
histórico-social” (RAMOS, 1965, p. 116). A sua contribuição para
as ciências está no fato de viabilizar uma reflexão sobre a atuação
do cientista social em meio aos problemas que o país enfrentava.
16
Para Rezende (2006), a Sociologia Enlatada se caracterizava por um distanciamento
total da realidade brasileira e tudo o que se copiava dos manuais estrangeiros não tinha
nenhuma relação com os diversos contextos brasileiros.
17
A Sociologia Militante consiste num esforço intelectual para que a ciência não se
burocratizasse nas academias e nem se tornasse superficial e distante dos problemas
nacionais. (REZENDE, 2006).

47 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
Aos ‘Sociólogos em Flor’18, expressão usada para denominar
aqueles pesquisadores que estavam iniciando na Ciências Sociais,
caberia, sobretudo, “compreender-se a si próprio de modo a
decifrar os seus problemas’ (RAMOS, 1957, p. 104 e 105).
A proposta de Guerreiros Ramos aponta-nos para uma
Sociologia engajada na busca da superação e renovação da
sociedade brasileira nos seus mais diversos aspectos. Muitas
das suas questões ainda estão presentes no debate atual, entre
elas: “Qual papel cabe ao cientista social em sociedades como
a brasileira? [...] Quais são os desafios políticos e sociais que a
Sociologia deve enfrentar em contextos de mudança? De que
modo os intelectuais contribuem para o desenvolvimento de uma
nação mais igualitária e mais democrática? [...]” (REZENDE,
2006, p.17).
Nesse cenário de interpretação que visava definir o papel
da Sociologia no Brasil, temos a figura singular de Florestan
Fernandes19 (1920-1995), outro marco da trajetória da Sociologia
18
Segundo Rezende (2006), esse termo foi cunhado no texto “Meditação para os sociológos
em flor” e traz orientações para os novos pesquisadores.
19
“Sociólogo e político brasileiro nascido na cidade de São Paulo (SP) em 1920,
considerado o fundador da Sociologia Crítica no Brasil. Iniciou sua formação primária
no Grupo Escolar Maria José, em Bela Vista, São Paulo (1926); fez o Tiro de Guerra
(1936) e o Curso Madureza no Ginásio Riachuelo em São João da Boa Vista, São Paulo
(1938-1940) e licenciou-se na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras na Universidade
de São Paulo-USP (1943), ano em que escreveu seu primeiro artigo para o jornal O
Estado de São Paulo, intitulado O Negro na Tradição Oral. Casou-se com Myriam
Rodrigues Fernandes (1944), com quem teve seis filhos e tornou-se assistente do Professor
Fernando de Azevedo na cadeira de Sociologia II (1944). Obteve o título de Mestre em
Ciências Sociais - Antropologia, com uma dissertação sobre a Organização Social dos
Tupinambás (1947) e defendeu sua tese de Doutor em Ciências Sociais na Faculdade
de Filosofia Ciências e Letras da USP, também sob orientação do Professor Fernando
Azevedo (1951) e ainda sobre o tema dos Tupinambás. Passou a livre docente, na Cadeira
de Sociologia I, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP (1953) e tornou-
se professor titular da mesma cadeira, com a tese A Integração do Negro na Sociedade de
Classes (1964). Defensor da escola pública, sempre foi ligado aos movimentos sociais e
reivindicatórios e às organizações políticas de esquerda. Preso político no presídio do
exército em São Paulo (1964), ao ser libertado tornou-se professor catedrático na USP,

48 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
no país e que, em vários aspectos, se opunha ao pensamento de
Guerreiros Ramos20.
Segundo Ianni, a Sociologia de Florestan Fernandes
“inaugura uma nova interpretação do Brasil, um novo estilo de
pensar o passado e o presente [...]” (1996, p. 25). Seus estudos
são sistematizados por uma interpretação do país, considerando
os diferentes aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais.
Florestan Fernandes faz parte da segunda geração de intelectuais
ligados à USP.
Segundo Souza (2012, p. 10), este pensador “[...] representa
o principal elo de ligação entre os antigos catedráticos da
referida universidade e a constituição de uma nova geração de
pesquisadores [...]”. A proposta metodológica de fazer Sociologia
é inovadora, e

[...] representa a grande expressão teórica do processo pelo qual


vimos passando de uma Sociologia global para uma Sociologia com
objeto definido, de um método evolutivo e comparativo para formas
mais rigorosas de indução. Representa o sinal de que realizamos
no Brasil, por vários modos, a marcha geral da Sociologia à busca
de caráter científico: restrição de campo, definição de objeto,
determinação de método (CÂNDIDO, 2006, p. 295).

efetivado por concurso de títulos e provas (1965). Novamente preso (1965), foi solto no
ano seguinte através de um Habeas Corpus. Afastado de suas atividades na USP, através do
Ato Institucional nº 5 da Ditadura Militar (1969), ficou asilado no Canadá (1969-1970). 
Professor de Sociologia como Residente Latino-Americano na Universidade (1970-1972),
voltou ao Brasil (1972), passando a trabalhar como professor de cursos de Extensão Cultural
no Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo. Foi professor visitante da Universidade de
Yale (1977) até ser contratado como Professor da PUC, SP, no final daquele ano (1977), na
qual se tornou professor titular (1978). Elegeu-se Deputado Federal Constituinte (1986)
pelo Partido dos Trabalhadores (1987-1990) e destacou-se na defesa da escola pública e no
projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.  Ainda foi reeleito Deputado
Federal (1990), também pelo Partido dos Trabalhadores (1991-1994). Faleceu no dia 10
de agosto de 1995, em São Paulo, seis dias após um mal sucedido transplante de fígado”
(BIOGRAFIA, 2013).
20
Florestan Fernandes se opunha às ideias de Guerreiros Ramos, principalmente na
questão do desenvolvimento defendido por ele.

49 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
Seus estudos revelam uma preocupação em apontar
alternativas por meio de um projeto nacional que “[...] concentra-
se na pesquisa e interpretação das condições e possibilidade das
transformações sociais” (IANNI, 1996, p. 26) que pudesse dar
oportunidades também às minorias. Por isso, “os sociólogos devem
unir a ciência à militância, visando elevar o nível intelectual das
grandes massas”. (SOUZA apud AGUIAR, 2009, p.12).
Fernandes dialoga com o pensamento clássico, mas busca
uma autonomina intelectual na ciência. Ele nos diz que “[...]
apesar de ter apanhado toda a evolução intelectual da Sociologia,
me concentrei no Marx, no Max Weber e no Durkheim. Como
autores de menor importância que estudei muito estavam, por
exemplo, o Mannheim, que teve uma importância grande no meu
pensamento” (1995, p. 12).
Ao deixar de lado os recursos literários, Fernandes (1976,
p. 57) propõe uma Sociologia com consciência científica da
sociedade, pois compreende que “em uma ciência imatura, como
a Sociologia, a reflexão metodológica é muito, mas necessária,
porque é o único meio de defendê-la dos desvios que a incitam,
continuamente, que provenham outros campos”.
Florestan Fernandes21 discutiu por muito tempo as questões
educacionais. No prefácio do artigo O Desaf io Educacional,
comenta “a educação sempre fez parte de minhas cogitações
intelectuais e práticas” (1989, p. 07). As preocupações educacionais,
portanto, estavam sempre presentes em toda trajetória de sua vida
de acadêmico e militante. Florestan produziu um grande volume
de artigos jornalísticos, palestras, textos teóricos, comunicações
em congressos, buscando descrever, analisar e interpretar a

21
Ver as obras: A Sociologia numa Era de Reconstrução Social, de 1963; e Educação e Sociedade,
de 1966.

50 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
importância da educação para alavancar os processos de mudança
social em curso na sociedade brasileira.
Na obra Sociologia no Brasil reuniu ensaios que tratam
da história do pensamento sociológico no país e define como o
sociólogo brasileiro deveria praticar seu ofício. O livro é dividido
em duas partes. A primeira nomeada “Os Quadros de Formação”,
escrita de 1954 a 1958, aborda a Sociologia enquadrada
institucionalmente pela ordem social existente. A segunda parte,
escrita entre 1969 e 1976, intitulada “Os Quadros da Ruptura”,
rompe com as barreiras da ordem e coloca a investigação
sociológica na órbita da negação e da desagregação dessa ordem.
Falando sobre esta obra, o autor nos diz:

[...] as duas partes demarcam dois tempos históricos vividos com


intensidade diferente, mas com a mesma paixão pela descoberta ‘da
verdade’ e com o mesmo ardor intelectual. Eles não desembocam
em dois livros distintos. Mas estabelecem limites na condição
humana do sociólogo, que não podem ser ignorados e que marcam
o quanto uma sociedade de classes estilhaçadas por conflitos sociais
insolúveis (dentro da ordem), estilhaça, por sua vez, o pensamento
sociológico (FERNANDES, 1976, p. 07).

Por fim, ao considerar o legado de Fernandes para a


Sociologia “[...], é preciso assinalar que, além da obra de sociólogo
e da ação de intelectual empenhado nos problemas do tempo,
além da atividade de professor, de formador de equipe, de criador
de rumos na teoria e na investigação, ele realizou outra obra não
menos admirável: a construção de si mesmo (CÂNDIDO, 1996,
p. 63).

51 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
Considerações finais: A atualidade dos pensadores brasileiros
para o ensino de Sociologia

Todo este acúmulo de conhecimento sociológico nos leva a


reforçar a relevância dos estudos dos fenônemos sociais por meio
de autores brasileiros que se debruçaram a compreendê-los à luz
do próprio país. Por isso, a importância de ensinar Sociologia
no Ensino Médio através do pensamento social brasileiro. Esta
alternativa torna-se uma aliada na formação na medida em que
pode despertar, por meio da imaginação sociológica, uma leitura
questionadora das diferentes realidades, fundamentada nas bases
citadas anteriormente por Guerreiro Ramos, que tanto criticava
a predominância de uma Sociologia Enlatada.
Ler sobre os problemas sociais escritos por sociológos
brasileiros pode empoderar os próprios estudantes como
intelectuais produtores de conhecimentos, despertando análises
mais próximas do seu cotidiano, já que os fenômenos estudados por
Tobias Barreto, Sílvio Romero, Fernando de Azevedo, Guerreiros
Ramos e Florestan Fernandes persistem como grandes problemas
sociais no país. Por meio da memória da Sociologia brasileira
é possível despertar nos jovens estudantes do Ensino Médio
uma postura mais comprometida com o fazer militante desta
ciência, já tão bem fundamentado por Guerreiros Ramos. Nesta
concepção, as potencialidades de desnaturalização, estranhamento,
desmistificação e problematização crítica dos fenômenos sociais,
como já apontadas nas Orientações Curriculares para o Ensino
Médio - Sociologia (2006), desenvolvidas através de leituras mais
aprofundadas da contemporaneidade, podem ser ressignificadas
à luz de um novo olhar sobre a própria nação.
De antemão, salientamos a necessidade da inserção
da disciplina de Sociologia Brasileira e as discussões sobre

52 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
o pensamento social brasileiro nos currículos dos cursos de
Licenciatura em Ciências Sociais/Sociologia, assim como a
relevância de atividades de formação continuada com egressos
que não tiveram acesso a tais conhecimentos na formação inicial.
A carência de reflexões sociológicas utilizando o pensamento
social brasileiro no Ensino Médio advém, muitas vezes, da
ausência desses conteúdos das Licenciaturas em Ciências Sociais/
Sociologia e da desvalorização desta área de conhecimento nas
Propostas Pedagógicas dos Cursos. Tais carências estão sendo
reavaliadas neste momento em que todos os cursos de formação
de professores do Brasil passam por reformulações curriculares,
sob a exigência da Resolução CNE/CP nº.02/2015, que definem
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial
em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação
pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e
para a formação continuada.
De modo específico, as obras de Tobias Barretos e de Silvio
Romero nos trazem lições didáticas de como instrumentalizar
metodologicamente as futuras gerações que estabelecem o
primeiro contato com a Sociologia no Ensino Médio através
das análises das características histórico-culturais de seu tempo
e de seu país. Uma reeleitura destes autores, com base nos
atuais problemas sociais brasileiros, pode permitir a percepção
metodológica de inacabamento teórico aos sujeitos socioculturais
nesta etapa de formação, instigando-os a querer saber mais sobre
seu próprio país.
Por meio dos estudos sobre a legitimidade teórica de uma
ciência autonôma da sociedade, por Sílvio Romero, podem ser
instigados a entender como as práticas etnográficas, desenvolvidas
através de atividades de relato, de coleta das tradições orais e da

53 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
arte popular, tornam-se ferramentas viáveis na apreensão das
realidades sociais, tendo como agentes mediadores os professores
de Sociologia que atuam no Ensino Médio, locus importante de
sensibilização e valorização das primeiras experiências sociológicas.
Na mesma direção, Fernando de Azevedo torna-se um referencial
imprescídivel nos currículos do Ensino Médio quando sua
preocupação circunda o reconhecimento da estruturação da esfera
educacional e cultural da Sociologia, com ênfase nos aspectos da
docência, da administração e da pesquisa.
As propostas de Guerreiros Ramos e de Florestan
Fernandes são as que mais se aproximam do contexto complexo
em que se encontra o Ensino Médio diante dos retrocessos
da Lei nº 13.415/2017, uma Reforma instituída por Medida
Provisória que propõe o fim da obrigatoriedade do ensino
de Sociologia e de Filosofia nas três séries do Ensino Médio
como disciplinas, tentando, indiretamente, silenciar as Ciências
Humanas e desprezar o acúmulo de estudos e de debates sobre
a melhoria da qualidade Educação Básica pública no Brasil, ao
torná-las apenas “estudos e práticas de...”. Na mesma direção
desses retrocessos, enquadram-se a Resolução nº 03, de 21/11/18,
que atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio e a última versão da BNCC-Ensino Médio (Base Nacional
Comum Curricular), publicada no final de 2018. Tratam-se de
medidas curriculares neoliberais, esvaziadas de conteúdos teórico-
metodológicos críticos e que buscam perpetuar as já acirradas
desigualdades socioeducacionais no Brasil.
As lições de Guerreiros Ramos, ao propor uma ciência que
deve intervir na realidade brasileira, bem como sua proposição
de que caberia aos sociólogos não se conformarem com os
conhecimentos especializados, mas ressignificarem a relação teoria

54 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
e prática com sua destreza intelectual e sensível, propiciam as bases
para avaliarmos as mediações pedagógicas estabelecidas com as
juventudes do Ensino Médio, através das teorias, autores, conceitos
e temas sociológicos pertinentes a cada época, sem nos afastarmos
das análises críticas dos principais problemas educacionais que
atingem diretamente a educação pública.
Se retomarmos a Sociologia Crítica de Florestan Fernandes
e sua defesa da escola pública, laica e de qualidade, reconheceremos
na conjuntura atual a necessidade de uma verdadeira “Revolução
Educacional”, frente a tantos retrocessos sentidos desde a
Medida Provisória nº 746/2016 contra as conquistas históricas
dos movimentos sociais em prol da democratização do Ensino
Médio.  Em síntese, há uma Sociologia Brasileira e que deve
mais valorizada nos estudos dos fenômenos sociais do país,
especialmente dos fenômenos educacionais. E, a prática
sociológica militante, seguindo os passos de Guerreiro Ramos,
pode ser uma alternativa para renovar cotidianamente essa ciência.
Estas são algumas, dentre tantas outras questões, que reforçam
a pertinência do trabalho teórico-metodológico da disciplina de
Sociologia nas três séries do Ensino Médio, desenvolvido através
da reeleitura dos teóricos do pensamento social brasileiro. Afinal,
como já nos ensinou Florestan Fernandes, esta ciência, que tem
sua relevância no Ensino Médio, pode contribuir no preparo de
novas gerações de homens e mulheres conscientes da compreensão
e da mudança dos problemas econômicos, políticos, culturais e
sociais do Brasil.

55 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
REFERÊNCIAS

AGUIAR, Neuma. Prefácio. In: SOUZA, Márcio Ferreira de. Guerreiro


Ramos e o Desenvolvimento Nacional: a construção de um projeto para a
nação. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. 168 p.

AZEVEDO, Fernando de. Princípios de Sociologia. São Paulo:


Melhoramentos, 1956.

AZEVEDO, Fernando de. Sociologia Educacional: introdução ao estudo


dos fenômenos educacionais e de suas relações com os outros fenômenos
sociais. 2ª. Ed. São Paulo: Melhoramentos, 1951.

BARBOSA, Ivan F. A Geração de setenta da escola do Recife e a


Sociologia no Brasil. XII Congresso Brasileiro de Sociologia, UFPE. 2007.
p. 01-15.

BARIANI, Edison. Guerreiro Ramos: Uma Sociologia em Mangas


de Camisa. Caos - Revista Eletrônica de Ciências Sociais. Número 11 –
Outubro de 2006. p. 84-92. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/
caos/n11/07.pdf. Acesso em: 25 out. 2016.

BARRETO, Tobias. Estudos de Sociologia. In: BARRETO, Tobias.


Glosas Heterodoxas a um Motes do dia, ou variações anti-sociológicas.
Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro. 1962. p.191-273.

BIOGRAFIA de Florestan Fernandes. Disponível em: http://www.dec.


ufcg.edu.br/biografias/. Acesso em: 25 out. 2016.

BIOGRAFIA de Silvio Romero. Academia Brasileira de Letras.


Disponível em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.
htm?infoid=154&sid=196. 2012. Acesso em: 25 out. 2016.

BRASIL. BNCC-Ensino Médio. A área de Ciências Humanas e Sociais


Aplicadas. Competências específicas de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas para o Ensino Médio. Ciências Humanas e Sociais Aplicadas
no Ensino Médio: competências específicas e habilidades. 2018. p.461-
580. Inserido em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/
BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 02 set.2019.

56 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília:
CNE/MEC, SEB, DICEI, 2012.

BRASIL. Lei nº 13.415/2017. Altera as Leis nº 9.394/1996, que


estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e 11.494/2007,
que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a
Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei
nº 5.452, de 01/05/1943, e o Decreto-Lei nº 236/1967; revoga a Lei
nº 11.161/2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de
Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília/DF. MEC/
CNE, 2017.

BRASIL. Medida Provisória nº 746. De 22 de setembro de 2016.


MEC. Brasília, DF, 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Mpv/mpv746.htm. Acesso em:
25 out. 2016.

BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para


o Ensino Médio - Sociologia. Ciências Humanas e suas Tecnologias.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/
book_volume_01_internet.pdf. Acesso em: 25 out. 2016.

BRASIL. Resolução CNE/CP nº 02/2015. Define as Diretrizes


Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos
de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos
de segunda licenciatura) e para a formação continuada. MEC. CNE.
Brasília. 2015.

BRASIL. Resolução CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015. MEC. Brasília,


DF, 2016. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/escola-de-gestores-
da-educacao-basica/323-secretarias-112877938/orgaos-vinculados-
82187207/21028-resolucoes-do-conselho-pleno-2015. Acesso em: 25
out.2016.

57 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
BRASIL. Resolução nº 3, de 21/11/18. Atualiza as Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio. Publicada em: 22/11/2018. Edição: 224.
Seção: 1. P. 21. MEC/CNE/CEB. Disponível em: http://www.in.gov.
br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/51281622.
Acesso em: 02 set.2019.

CÂNDIDO, Antônio. A Sociologia no Brasil. Revista de Sociologia da


USP – Tempo Social. V.18, 2006, nº.01, p.271-301.

CÂNDIDO, Antônio. Nota final. Lembrando Florestan Fernandes. São


Paulo: Edição Particular, 1996.

FERNANDES, Florestan. Fundamentos Empíricos da Explicação


Sociológica. São Paulo: T.A. Queiroz, 1980.

FERNANDES, Florestan. A Condição de Sociólogo. São Paulo:


HUCITEC, 1978.

FERNANDES, Florestan. A Sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976.

FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes: esboço de uma


trajetória. Boletim informativo e bibliográfico de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro: Relume/Dumará, nº.40, 2º sem, p.03-25. 1995.

FERNANDES, Florestan. O desafio educacional. São Paulo: Cortez, 1989.

FREITAS, Moacir de J. A contribuição de Roberto Simonsen para a


institucionalização da Sociologia Aplicada no Brasil. Redd – Revista
Espaço de Diálogo e desconexão, Araraquara, v. 3, nº. 01, Jul/Dez. 2010.

IANNI, Octávio. A Sociologia de Florestan Fernandes. Estudos


Avançados.  São Paulo,  10(26), 1996, p.26-33.

MAIO, Marcos Chor. Uma Polêmica Esquecida: Costa Pinto, Guerreiro


Ramos e o Tema das Relações Raciais. Dados,  Rio de Janeiro,  v. 40, 
nº. 01,    1997. Disponível em:  http://dx.doi.org/10.1590/S0011-
52581997000100006. Acesso em: 10 fev. 2013.

58 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
MOREIRA, Roberto. A educação e os desafios da identidade brasileira.
Cadernos da Católica. Série Educação. Brasília: UCB, nº.04, ano 03. 1997.

NASCIMENTO, Alessandra S. Fernando de Az e vedo:


Institucionalização da Sociologia e Modernização Brasileira. Perspectivas,
São Paulo, v.37, p.163-190, jan./jun. 2010.

NASCIMENTO, Jorge Carvalho. A Pedagogia de Sílvio Romero e as


Notas de Leitura. 2006. p.41-69. Disponível em: www.rbhe.sbhe.org.br/
index.php/rbhe/article/download/158/167. Acesso em: 25 out. 2016.

NOVA, Sebastião Vila. Antecedentes Especulativos da Sociologia no


Brasil (1881-1932).Cad. Est. Soc. v. 7, nº. 1, p. 151-162, jan./jun, 1991.

NÚCLEO ORD (Organizações, Racionalidade e Desenvolvimento).


Alberto Guerreiros Ramos. 2008. Disponível em: http://ord.ufsc.
br/2008/06/21/alberto-guerreiro-ramos/. Acesso em: 25 out. 2016.

PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil – entre o povo e


a nação. São Paulo: Ática, 1990.

PILETTI, Nelson. Fernando de Azevedo.  Estudos Avançados.  São


Paulo,  v. 8,  nº. 22, Dec.  1994.

RAMOS, Alberto Guerreiro. A Redução Sociológica. Rio de Janeiro:


Tempo Brasileiro, 1965.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Entrevista com Guerreiro Ramos. In:


OLIVEIRA, L. L. A Sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 1995. p. 131-183.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira.


Rio de Janeiro: Andes, 1957.

REZENDE, Maria José de. Diferenciação, evolução e mudança social


em Fernando de Azevedo. Maria José de. Cronos, Natal-RN, v. 5/6, nº.
1/2, p. 173-192, jan./dez. 2004/2005.

59 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
REZENDE, Maria José de. Guerreiro Ramos e a Sociologia em
“mangas de camisa”: uma proposta de intervenção nos processos de
mudança social. Cadernos CERU. n.17. 2006. Disponível em: www.
revistas.usp.br/ceru/article/view/11816. Acesso em: 14 fev. 2013.

REZENDE, Maria José de. Educação e mudança social em Fernando


de Azevedo. Revista Acta Scientiarum: human and social sciences. V. 25,
nº. 1, p. 073-085, 2003.

ROMERO, Sílvio. Obra Filosófica. Rio de Janeiro: Olympio, 1969.

SILVA, Tânia Elias M. Trajetórias da Sociologia Brasileira: considerações


históricas. Cronos, Natal-RN, v. 8, nº. 2, p. 429-449, jul.dez. 2007.

SOUZA, José Vieira de. A Relação Projeto Nacional e Educação em


Fernando de Azevedo e Florestan Fernandes. (AEUDF). p.01-16. 2012.
Disponível Em: www.anped.org.br/reunioes/25/josevieirasousat14.doc.
Acesso em: 25 out.2016.

60 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 31-60 – jan./jul. 2019
A INTERNACIONALIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE
BRASILEIRA COM FOCO NA AMÉRICA LATINA

Valdirene Zorzo-Veloso1
Arelis Felipe Ortigoza Guidotti2

RESUMO: A temática geral do III Fórum de Internacionalização da UEL


(FORINTER), ocorrido em abril de 2019, sem dúvida, é um indicativo de que a
América Latina deve ser o foco na atualidade para a internacionalização brasileira, para
a diminuição das fronteiras e a consequente aproximação das culturas. Nesse sentido,
o presente texto, como fruto de uma palestra dada no evento supracitado, tem como
objetivo refletir sobre as contribuições da internacionalização brasileira na educação
superior nos países da América Latina. A ênfase estará nas possibilidades acadêmicas e
linguísticas que a América Latina e o Caribe oferecem a nós brasileiros na busca pela
internacionalização acadêmica em nossa universidade.
Palavras-chave: Internacionalização; América Latina e Caribe; Espanhol como Língua
Estrangeira/Adicional

ABSTRACT: The general theme of the III UEL Internationalization Forum


(FORINTER), which took place in April 2019, is undoubtedly an indication that Latin
America should be the current focus for Brazilian internationalization, the reduction of
borders and the consequent approximation of cultures. In this sense, the present text, as
a result of a lecture given at the event, aims to reflect on the contributions of Brazilian
internationalization in higher education in Latin American countries. The emphasis will
be on the academic and linguistic possibilities that Latin America and the Caribbean
offers us, Brazilians, in pursuit of academic internationalization at our university.
Keywords: Internationalization; Latin America and the Caribbean; Spanish as a
Foreign/Additional Language

Introdução

Tradicionalmente, tem sido priorizada a internacionalização


além do Atlântico, do Pacífico ou acima da linha do Equador, mas,

1
Professora Associada do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade
Estadual de Londrina-PR, Brasil. E-mail: valdirene@uel.br
2
Professora Adjunta do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade
Estadual de Londrina-PR, Brasil. E-mail: arelis.felipeortigoza@gmail.com

71 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
aqui no Brasil, deixamos de olhar para nossos vizinhos da América
Latina e o Caribe. Comecemos retomando as considerações
do trabalho de Abba e Corsetti (2016), pois esperamos que a
internacionalização brasileira com foco na América Latina e no
Caribe aconteça, ainda que,

[...] em realidades completamente diferentes, mas com um objetivo


em comum: o crescimento e fortalecimento de um espaço que
contribua para a criação de um olhar latino-americano, um
olhar que contemple as particularidades de uma região com
uma composição social multiétnica. Um olhar que responda às
problemáticas que afetam ao meio no qual se encontram, mas,
sobretudo, que construa conhecimento sem imposições estrangeiras.
Neste sentido, retomando o pensamento de Martí, consideramos
que para chegar à verdadeira independência, é preciso gerar um
conhecimento próprio e ensinar quais são os problemas que afetam
aos países da região, tendo como meta a unidade e a integração
dos povos de Nossa América (ABBA; CORSETTI, 2016, p.197).

Como latino-americanos muitos aspectos nos aproximam


dos demais países que são vizinhos do Brasil na América e esta
será a linha de construção da reflexão neste texto. Ainda que
de modo sucinto, pois não é o objetivo deste texto aprofundar
em cada um deles, buscaremos destacar aspectos geográficos,
históricos, culturais, políticos, linguísticos e acadêmicos que
podem efetivamente ampliar as perspectivas do Brasil na
internacionalização com foco nos países hispânicos da América
Latina e do Caribe. Sem dúvida, a ênfase estará nas possibilidades
acadêmicas e linguísticas que a América Latina e o Caribe
oferecem a nós brasileiros na busca pela internacionalização
acadêmica em nossa universidade. Começaremos lembrando os
aspectos geográficos e políticos que, muitas vezes, são ignorados
num primeiro momento ao se pensar em um intercâmbio

72 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
acadêmico ou uma parceria de pesquisa científica, de uma parceria
entre programas de pós-graduação ou até mesmo de estágio
durante a graduação, seja num bacharelado ou numa licenciatura.

Aspectos geográficos e políticos

A colonização dos países da América Latina foi feita por


países com língua de origem latina, por isso que a “[...] nossa
América, essa pátria latino-americana que compartilhava uma
história de saques, uma cultura diversa e um território rico em
flora e fauna” (ABBA; CORSETTI, 2016, p.192) tem como
línguas oficias o Espanhol, o Português e o Francês. O Espanhol
é predominante já que é língua oficial de 19 países da América
Latina e Caribe, o Português é língua oficial somente do Brasil
e o Francês na Guiana Francesa. O Brasil tem como vizinhos
milhões de falantes de Espanhol, da Venezuela ao Uruguai são
12.864 quilômetros de fronteira com países hispânicos. Em
termos da presença de falantes de espanhol oriundos de países
hispânicos, segundo Vandresen (2009), estariam no Brasil mais
de 120.000 espanhóis entre executivos e imigrantes e estima-se
que possam chegar a 800.000 os latino-americanos que buscam
trabalho ou estudo, de modo oficial ou clandestino no Brasil de
forma itinerante.
A América Latina é constituída por quase todos os países
que estão localizados na América do Sul e na América Central,
excetuando-se, no caso dos países sul-americanos a Guiana e o
Suriname, e dos centro-americanos, Belize, os quais são países
originários de língua germânica. No caso da América do Norte,
apenas o México é um país latino-americano, e dentre os países
insulares da América Central são latino-americanos Cuba, Haiti
e ainda a República Dominicana.

73 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
Em sua totalidade são países considerados como latino-
americanos Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa
Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras,
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República
Dominicana, Uruguai e, ainda, Venezuela. Dessa forma,
compartilhamos um território que nos aproxima numa escala
territorial gigantesca.
As distâncias são muito menores se comparamos com países
da Europa ou até mesmo da América do Norte, o que facilita a
efetivação das atividades de internacionalização. Temos países
hispânicos fronteiriços ao Brasil, como Paraguai e Argentina,
que possuem uma grande tradição de trocas em nível acadêmico
com universidades públicas renomadas e centenárias, que
muitas vezes é ignorado em nosso planejamento estratégico de
internacionalização por razões que, talvez, o senso comum deixou
enraizado em nós.

Aspectos culturais

Em virtude dos aspectos geográficos, históricos, políticos e


socioeconômicos, a matriz cultural do Brasil e dos demais países
latino-americanos é consideravelmente próxima. Fugindo dos
clichês e das propagandas turísticas e costumeiras que apresentam
supostos cartões postais da América Latina, acreditamos ser
relevante comentar algumas tendências atuais que possam
mostrar a integração cultural que já ocorre entre o Brasil e os
outros países da América Latina. Para começar, é necessário
dizer que estes países têm em comum a inegável importância do
seu folclore, já que se trata de um “[...] produto espontâneo de
condições ambientais e históricas [...]. A repercussão do folclore

74 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
atravessa rapidamente fronteiras para encontrar um público cuja
sensibilidade transcende regionalismos locais” (BEYHAUT, 1994,
documento eletrônico). Então, o que ocorre, aos poucos, é que vão
surgindo elementos que vão além do nível da criação popular para
fazer parte de manifestações de grande força criadora.
De acordo com Beyhaut (1994, documento eletrônico),
em relação às manifestações culturais, “estudos recentes mostram
que devem ser consideradas formas mais espontâneas e, no
entanto, de maior profundidade, nas quais a origem social popular
apareça como favorável à adoção de medidas verdadeiramente
integradoras.” Sendo assim, ao se falar da integração dos países
da América Latina, é preciso entender que “[...]nos setores
pobres da população há maior facilidade na adoção de hábitos
de consumo, formas de vida de povos vizinhos ou dos diversos
imigrantes” (BEYHAUT, 1994, documento eletrônico). Sendo
assim, é notável a ineficácia da noção de fronteira como autêntica
barreira para a integração cultural, já que, na América Latina,
a população de baixa renda consegue se integrar entre si, em
trocas comerciais e, portanto, culturais, como sempre foi feito
ao longo da história. “O elemento popular é fundamental nessa
integração, quando a mesma se opera em profundidade. Neste
sentido, nem a fronteira servirá para ilhar, nem a origem popular
será um elemento de bloqueio” (BEYHAUT, 1994, documento
eletrônico). Considerando que a maioria da população latino-
americana pertence aos setores mais pobres da população, a
integração cultural entre os países começa pelo elemento popular,
pela valorização do folclore, que vai aos poucos ganhando destaque
e aceitação da maioria, como é o caso do samba no Brasil e do
tango na Argentina, por exemplo.
Da mesma forma que citamos a relevância do elemento
popular, é necessário mencionar a contribuição da mudança da

75 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
mentalidade dos jovens para a integração dos países da América
Latina. De acordo com Beyhaut (1994, documento eletrônico):

Há uma inquietude da juventude de distintos setores da sociedade


latino-americana, que estão buscando raízes culturais para encontrar
uma identidade e adotar medidas que resolvam seus problemas
essenciais. Há certo tipo de atitude rebelde e não-conformista frente
a sociedades demasiadamente rígidas [...] daí os preconceitos, as
formas repressivas e os privilégios de certas minorias. Nessa rebelião
juvenil há distintas maneiras de manifestar-se, já que a contestação
pode ser política, social e, muitas vezes, cultural.

Os latino-americanos, desde sua origem mais remota,


têm participado de distintas correntes migratórias e as fronteiras
não impediram essa tendência secular, motivada pela procura
de terras novas, climas mais favoráveis, instauração de regimes
políticos opressores etc.  Como exemplos notáveis podem ser
mencionados os milhares de imigrantes ilegais ou a imigração
clandestina para o Brasil. Nos tempos mais recentes verifica-
se a crescente importância do rádio, do cinema, da televisão e
da Internet no processo de conhecimento e de assimilação das
diferentes manifestações culturais advindas de outros países da
América Latina.
Para Beyhaut (1994, documento eletrônico),

Do mesmo modo que as influências musicais transcendem às


partituras, as mudanças de mentalidade não podem ser explicadas
apenas através da difusão do pensamento escrito. [...] os elementos
culturais importam por si mesmos e pela repercussão que seu
conhecimento adequado deve exercer sobre a produção, o consumo
e os intercâmbios entre as distintas partes da América Latina.

76 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
A citação anterior remete à importância que tem conhecer
a fundo os problemas da América Latina e a sua origem, assim
como as relações entre os povos que a formam, como algo
imprescindível na construção de soluções adequadas para possíveis
programas de intercâmbio acadêmico que tragam bons resultados
de forma duradoura e progressiva. Ainda de acordo com Beyhaut
(1994, documento eletrônico), “do mesmo modo, não podemos
deixar de destacar a necessidade de superar a etapa do latino-
americanismo romântico e literário, para assinalar que se deve criar
uma consciência madura e com capacidade operativa”. Portanto,
para que a internacionalização das nossas universidades possa
acontecer, as especificidades de países e regiões que compõem
a área latino-americana devem ser consideradas, ainda que se
busquem traços comuns que permitam maior proximidade e
cooperação entre os países, e

[...] o conjunto de fatores externos que influem sobre ela e sobre


outras regiões do mundo. A identificação dos traços comuns
contribuirá para a adoção de medidas que facilitem as soluções.
A situação atual não é a ideal. A inquietude intelectual, no
entanto, pressiona por mudança de atitude e adoção de medidas
que permitam aumentar a capacidade de políticas comuns.
Admitir as diversidades não significa a negação da importância de
caracterizações comuns à cultura latino-americana (BEYHAUT,
1994, documento eletrônico).

Portanto, vivemos novos tempos e como membros da


comunidade acadêmica podemos nos organizar na construção
de programas de trocas de conhecimentos entre os países da
América Latina que possam ser pontes pelas quais a cultura poderá
atravessar bidireccionalmente e de forma sustentável. A missão
que podemos assumir é a de sistematizar formas de reflexão e de

77 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
trocas culturais entre países da América Latina que tenha como
objetivo a internacionalização das nossas universidades.

Aspectos linguísticos

O aprendizado de línguas estrangeiras representa uma


necessidade premente a ser incorporada como parte integrante
dos currículos na busca de internacionalização. Quando falamos
da América Latina e Caribe, não temos como não falar da língua
espanhola/espanhol/castelhano.

O espanhol, idioma cuja origem remonta ao latim vulgar, nasceu no


território conhecido atualmente como Espanha, mais precisamente
no então reino de Castela. Por esse motivo recebeu, primeiramente,
o nome “castelhano”. Hoje o espanhol é idioma oficial de 21/23
países e territórios, em sua maioria latino-americanos, e é idioma
oficial de organizações internacionais como a ONU, União
Europeia e MERCOSUL (MORENO FERNÁNDEZ, 2000,
p. 16). Em cada um desses países onde é língua oficial, possui
características próprias, mas continua sendo o idioma espanhol.
Atualmente o uso dos termos “espanhol” e “castelhano” se alterna
conforme a região. Por exemplo, no México e em Porto Rico há
preferência pelo uso do termo “espanhol” enquanto na Argentina o
termo “castelhano” é preferido, talvez para marcar a diferença desta
variante com a da Espanha (MORENO FERNÁNDEZ, 2000, p.
18). Não obstante, os dois termos se referem ao mesmo idioma,
são sinônimos (XAVIER, 2013, p.2)

Esta língua tão singular e tão plural ao mesmo tempo é,


sem dúvida, um aspecto de suma importância quando pensamos
na internacionalização brasileira na América Latina, pois é a
porta de entrada para esse amplo universo que nos aproxima
como latino-americanos. O Brasil, como já dito anteriormente,

78 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
é o único país da América Latina que fala português, portanto
o “passaporte” para o acesso a este universo linguístico da língua
espanhola é uma política institucional de aprendizado desta
língua de modo sistemático e focado nos objetivos institucionais,
como já o fazem o Laboratório de Línguas do Departamento de
Letras Estrangeiras Modernas/CLCH há mais de 40 anos e, mais
recentemente, programas como “Idiomas sem Fronteiras”. Ainda
assim, os estudantes brasileiros ao aprender a Língua Espanhola
apresentam atitudes peculiares diante desse idioma, que estão
amplamente estudadas em pesquisas da área de Linguística
Aplicada, como é o caso do clássico texto de Kulikowski e
González (1999) que explicita o perfil desse estudante brasileiro
ao afirmar que

En el caso de la lengua española, es posible delinear bastante bien


el perfil del estudiante brasileño que habitualmente la busca […].
En el primero de ellos, el español es fácil y semejante a su lengua
materna, tan fácil que puede entender todo y no necesita estudiarlo.
No tarda mucho para que el escenario cambie del todo y para que
descubra que el español es “otra lengua”, que es difícil -¡muy difícil!-
que jamás podrá conocerla y usarla bien, etc. (KULIKOWSKI;
GONZÁLEZ, 1999, p. 12)

Este extremismo na percepção do estudante brasileiro se


deve a múltiplos fatores que não teremos tempo para tratar neste
texto, mas que sem sombra de dúvida deixa um indicativo para
nós, formadores de professores de Língua Espanhola (Letras
Espanhol):

Difícil tarea la de los profesores: la de no reproducir y reforzar


imágenes equivocadas sin crear otros problemas mayores, la de
desconstruir sin destruirlo todo, la de encontrar la justa medida
de esa supuesta cercanía, para emplear la expresión creada en las

79 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
discusiones preliminares a este trabajo con Maite Celada y Vicky
Rébori, expresión que está en el título de nuestro texto y que es el
centro o por lo menos uno de los centros de nuestras preocupaciones
actuales como profesoras de E/LE en Brasil (KULIKOWSKI;
GONZÁLEZ, 1999, p. 12).

Quando falamos em internacionalização brasileira com


foco na América Latina e nos aspectos linguísticos/da língua,
não podemos deixar de mencionar o Português como Língua
Estrangeira para os milhares de falantes de espanhol que
buscam no Brasil um curso de graduação, de pós-graduação e
até mesmo uma colocação profissional no âmbito da docência
no Ensino Superior. Na edição anterior deste Fórum, tivemos a
oportunidade de ouvir sobre o português como língua estrangeira
(PFOL - Português para Falantes de outras Línguas) numa
mesa-redonda com a Profa. Viviane Bagio Furtoso, especialista
no assunto, deste modo, deixamos aqui somente esta ressalva para
o fomento institucional, na mesma medida, para o aprendizado
da Língua Espanhola bem como do PFOL. Não é possível
estabelecer parcerias na América Latina se as duas línguas com
maior número de falantes não estiverem como prioridade na
pauta da universidade.
A internacionalização desponta entre as atuais políticas
para o ensino superior como uma estratégia para inserção dos
países no mundo globalizado, ainda que seja pela perspectiva da
solidariedade defendida pela Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Dentro desta perspectiva destacamos algumas ações
existentes e que podem corroborar para a ampliação/expansão do
universo linguístico para a internacionalização com olhos voltados
para os países vizinhos do Brasil:

80 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
No âmbito do MERCOSUL temos o “Programa de
Intercâmbio Acadêmico de Português e Espanhol”, cujo objetivo
geral do Programa reside em fomentar a associação institucional
universitária, para estimular o intercâmbio de estudantes e
docentes da educação superior de programas de ensino de
língua, português e espanhol, como segunda língua. O programa
consiste em projetos de associação institucional universitária nas
especialidades de Letras, Português e Espanhol, exclusivamente
para a graduação, a fim de fomentar o intercâmbio e estimular a
aproximação das estruturas curriculares, inclusive a equivalência
e o reconhecimento mútuo de créditos obtidos nas instituições
participantes3.
“Banco de datos terminológicos del Sector Educativo
del Mercosur” - O Banco de Dados Terminológicos do Setor
Educacional do MERCOSUL (BDT-SEM) é um repositório
que reúne a terminologia própria da área de Educação, gerado
no âmbito das reuniões do Grupo de Trabalho de Terminologia
(GTT) do Comitê Gestor do Sistema de Informação e
Comunicação (CGSIC) do Setor Educacional do MERCOSUL
(SEM). Este BDT vem sendo implementado desde o ano de 2007,
tendo harmonizado até agora centenas de termos disponíveis
em espanhol e português, respeitando as peculiaridades
léxicas e semânticas de cada um dos países membros. Foram
atingidos, desta forma, com significativa cobertura, os termos
que se referem às distintas áreas da Educação (Educação
Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Ensino Técnico,
Educação Profissional, Ensino Superior). É importante destacar
que o BDT se encontra sustentado por uma aplicação web
3
Disponível em: <<http://edu.mercosur.int/pt-BR/programas-e-projetos/25-mercosul-
educacional/60-programa-de-intercambio-academico-de-portugues-e-espanhol.html>>
Acesso em 25 abr.2019.

81 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
para o gerenciamento de linguagens documentárias, chamada
TEMATRES, projetado para este fim. Tomamos um exemplo
de termo que pode parecer “transparente” no Português e no
Espanhol, mas que na verdade pode causar sérios problemas,
especialmente, na convalidação de um diploma4. Na página web
consultada, foi possível observar que o termo “licenciatura” no
Brasil “confere ao diplomado competências para atuar como
professor na educação básica, com o grau de licenciado”, já na
Argentina trata-se de um curso universitário com, no mínimo,
4 anos, presencial, com 2.600 horas e pode ser de diferentes
disciplinas ou de profissões regulamentadas pelo estado (como
medicina, engenharia, bioquímica etc), estabelecendo para cada
uma condições especificas para o reconhecimento oficial. Em suma,
seria o nosso bacharelado. Esta informação, se desconsiderada
no momento da convalidação/reconhecimento do diploma, pode
acarretar sérios prejuízos acadêmicos e profissionais.

Latindex - Diretório cujo objetivo é compilar e difundir a


informação bibliográfica relativa às publicações científicas seriadas
produzidas no âmbito latino-americano. Deste modo, oferece uma
imagem bastante fiel da realidade, uma vez que sua base documental
em março de 2017 estava integrada por 27.769 publicações.
Segundo este diretório, a produção científica em espanhol se
divide/distribui entre seis áreas temáticas principais: ciências sociais,
ciências médicas, artes e humanidades, ciências exatas e naturais,
ciências da engenharia e ciências agrícolas.

Como um exemplo de universidade que efetivamente atua


com olhos voltados para a América Latina e Caribe, trazemos
algumas considerações sobre a Universidade de Integração da

4
Disponível em: <<http://edu.mercosur.int/pt-BR/banco-de-dados-terminologicos.
html>> Acesso em 25 abr.2019.

82 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
América Latina (UNILA, 2014), cuja missão é e será construir
uma América Latina solidária, em que a moeda de sua integração
equitativa seja o conhecimento compartilhado, com respeito
mútuo, em uma cultura de paz. Para refletir sobre como a UNILA
contribui para a integração regional, recorremos a dois fragmentos
elaborados por duas professoras desta universidade em diferentes
artigos acadêmicos. O primeiro deles destaca que: No primeiro ano
da graduação os alunos hispano falantes têm aulas de português e
os alunos brasileiros têm aulas de espanhol. Também no primeiro
ano, todos os alunos cursam uma disciplina chamada América
Latina, independente da área de atuação do curso, com objetivo
de contextualizar os alunos sobre o tema central da universidade
(SCHLOGEL, 2013, p. 4 apud ABBA; CORSETTI, 2016). Há
uma dezena de elementos que podemos elencar ao mencionar
as proximidades referentes ao Brasil e à internacionalização na
América Latina e Caribe no âmbito acadêmico, selecionaremos
alguns para a composição deste texto. Um deles é a proximidade
na organização curricular das universidades.

Aspectos acadêmicos

A constituição geográfica, histórica, política e cultural


são fatores que corroboram para essas semelhanças. Este fator é
observado nas ementas das disciplinas, ainda que façamos uma
rápida busca nas universidades da América Latina e do Caribe.
Sendo ementas correlatas, o que não quer dizer que os cursos
(carreras) sejam iguais, pois cada país, cada universidade tem
sua idiossincrasia, suas peculiaridades, o reconhecimento e o
aproveitamento destas disciplinas no momento de um intercâmbio
acadêmico ou um estágio, por exemplo, é muito mais provável,

83 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
bem como para a realização de projetos de pesquisa ou parcerias
entre programas de pós-graduação. Esses elementos nos levam
a uma maior certeza na convalidação/equivalência dos títulos ou
diplomaturas.
Não é de menor importância a semelhança no calendário
acadêmico, nos períodos de férias e de recesso escolar, pois estes
fatores contribuem para a mobilidade de estudantes, pesquisadores
docentes e pessoal técnico administrativo para a atividades de
internacionalização na América Latina.
Quando falamos em internacionalização acadêmica, vemos
que a primeira instância a ser considerada dentro da universidade
é a pesquisa (e a pós-graduação como geradora de pesquisa) e,
numa segunda instância, o ensino, a graduação e a formação inicial
são ponderados como pilares a serem explorados para fomentar
esta ação tão urgente no âmbito universitário. Entretanto, a
extensão quase nunca é lembrada e vista como um elemento
propulsor da internacionalização, especialmente quando olhamos
para a América Latina e o Caribe. Segundo o Plano Nacional de
Educação (PNE)5, a partir de 2020, todos os cursos de graduação
ofertados em universidades brasileiras deverão assegurar, no
mínimo, 10% de sua carga horária para atividades de extensão.
Indubitavelmente, este será mais um desafio da universidade no
que tange à internacionalização, mas não temos dúvida de que

[...] a Extensão Universitária é o processo educativo, cultural e


científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável
e viabiliza a relação transformadora entre universidade e sociedade.
[...] é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade
acadêmica, que encontrará, na sociedade, a oportunidade de
elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. [...] Esse

5
Lei 13.005/2014 de 25 de junho de 2014.

84 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
fluxo, que estabelece a troca de saberes sistematizados, acadêmico
e popular, terá como consequência: a produção do conhecimento
resultante do confronto com a realidade brasileira e regional; a
democratização do conhecimento acadêmico e a participação
efetiva da comunidade na atuação da Universidade (FORPROEX,
2016[1987], p. 11).

Em sua conferência de encerramento da III Conferência


Regional de Educação Superior em Córdoba/Argentina,
Boaventura de Sousa Santos (2018, documento eletrônico,
tradução nossa) afirma que “[...] a extensão nunca foi tão
importante quanto hoje” ela foi desviada para obtenção de fundos
e o autor afirma que isso é perverso, que isso não é extensão, “[...]
é prostituição.” Para Santos (2018, documento eletrônico, tradução
nossa), Extensão “[...] não é levar a universidade para fora, é
trazer o conhecimento não universitário para dentro” e, por sua
vez, “[...] articular os diferentes saberes populares”. Suas palavras
finais foram que a universidade deve se reinventar e fazer um
uso contra-hegemônico de sua autonomia e “[...] transformar-se
numa PLURIversidade6”.
A Declaração da III Conferência Regional de Educação
Superior na América Latina Caribe (CRES 2018) considerou
como estratégica a integração regional e a internacionalização
destacando que é fundamental a construção de um Espaço de

6
“[...] la extensión nunca ha sido tan importante como hoy” ela foi desviada para
obtenção de fundos e o autor afirma que isso é perverso, que isso não é extensão, “[...]
es prostitución.” Para Santos, Extensão “[...] no es llevar la universidad para afuera, es
traer el conocimiento no universitario para adentro” e, por sua vez, “[...] articular los
diferentes saberes populares”. Suas palavras finais foram que a universidade deve se
reinventar e fazer um uso contra hegemônico de sua autonomia e “[...] transformarse
en una PLURIversidad” (SANTOS, tradução nossa) Disponível em: <https://cres2018.
unaj.edu.ar/boaventura-de-sousa-santos-la-universidad-puede-ser-un-campo-donde-
realmente-se-puede-pensar-como-articular-la-resistencia-y-por-eso-es-un-blanco-del-
neoliberalismo/> Acesso em 04 set. 2019.

85 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
Encontro Latino-americano e Caribenho de Educação Superior
(ENLACES), que deve fazer parte da agenda dos governos e das
organizações multilaterais de caráter regional.
Sem dúvida, a Assessoria de Relações Internacionais
(ARI) é o setor da universidade que auxiliará, junto à Pró-
reitoria especifica da atividade, seja ela de ensino, de pesquisa
ou de extensão, na tramitação dos processos de atividades de
internacionalização, mas exporemos alguns caminhos que podem
(e devem) dar luz à comunidade universitária par a expansão da
internacionalização brasileira na América Latina e no Caribe.
Instituto Internacional para a Educação Superior na
América Latina e Caribe (IESALC) é um órgão da Organização
das Nações Unidas, para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) dedicado à promoção da educação superior,
contribuindo para implementar na região latino-americana e
caribenha o programa que, em matéria de educação superior,
aprova bianualmente a Conferência Geral da UNESCO.
Plan de Acción de la III Conferencia Regional de
Educación Superior CRES 2018-2028.
Agenda de Educación 2030 de la UNESCO por una
educación superior consolidada que contribuya al desarrollo
humano y sostenible.
MERCOSUL Educacional - O Setor Educacional
do MERCOSUL é um espaço de coordenação das políticas
educacionais que reúne países membros e associados ao
MERCOSUL, desde dezembro de 1991, quando o Conselho
do Mercado Comum (CMC) criou, através da Decisão 07/91, a
Reunião de Ministros de Educação do MERCOSUL (RME).
Ao longo do tempo, a Reunião de Ministros criou outras
instâncias de apoio ao Setor. Em 2001, o CMC, através da decisão

86 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
15/01, aprovou a “Estrutura orgânica do Setor Educacional do
MERCOSUL”, onde se cria o Comitê Coordenador Regional
e as Comissões Coordenadoras de Área (Básica, Tecnológica
e Superior) e o Comitê Gestor do Sistema de Informação e
Comunicação. Em 2005 foi criado o Comitê Assessor do Fundo
Educacional do MERCOSUL. Em 2006, foi criada a Rede
de Agências Nacionais de Acreditação, e em 2011, foi criada a
Comissão Regional Coordenadora de Formação Docente. Além
destes, existem outras instâncias, provisórias e permanentes, que
gerenciam ações específicas. Através da negociação de políticas
públicas e da elaboração e implementação de programas e
projetos conjuntos, o Setor Educacional do MERCOSUL busca
a integração e o desenvolvimento da educação em toda a região
do MERCOSUL e países associados.”
ARCUSUL (Sistema de Acreditação Regional de Cursos
Superiores dos Estados do Mercosul e Estados Associados) é um
mecanismo permanente de acreditação regional, cujo objetivo é
dar garantia pública na região do nível acadêmico e científico dos
cursos, definidos por critérios regionais elaborados por comissões
consultivas sob a coordenação da Rede de Agências Nacionais de
Acreditação. Esse mecanismo respeita as legislações nacionais, e a
adesão por parte das instituições de educação superior é voluntária.
O processo de Acreditação é contínuo, com convocatórias
periódicas. Até o momento participam as seguintes titulações:
Agronomia, Arquitetura, Enfermagem, Engenharia, Medicina
e Odontologia.
d) MARCA é um Programa de mobilidade acadêmica
regional para cursos de graduação acreditadas pelo “Sistema de
Acreditación Regional del MERCOSUR (ARCUSUR)” que
busca fortalecer os cursos acreditados, fomentar a integração e

87 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
a internacionalização da educação superior na região e cumprir
com o objetivo central de integração regional. Para alcançar estes
objetivos, o programa contempla a mobilidade de estudantes,
docentes, pesquisadores e coordenadores (acadêmicos e
institucionais) envolvidos em projetos de associação acadêmica
entre os cursos acreditados regionalmente. A UEL tem excelentes
resultados com este programa MARCA.
e) Sistema Integral de Fomento para a Qualidade dos
Cursos de Pós-graduação do MERCOSUL - O setor educativo
do MERCOSUL resolveu institucionalizar a temática da
Pós-graduação, incluindo-a em seu Plano Estratégico 2011-
2015. Alguns exemplos de ações: Programa de Associação de
Projetos Conjuntos de Pesquisa; Programa de Associação para
o Fortalecimento dos Cursos de Pós-graduação; Programa de
Formação de Recursos Humanos7.
f ) A Organização dos Estados Americanos (OEA) é o
mais antigo organismo regional do mundo. A sua origem remonta
à Primeira Conferência Internacional Americana, realizada em
Washington, D.C., de outubro de 1889 a abril de 1890. Esta
reunião resultou na criação da União Internacional das Repúblicas
Americanas, e começou a se tecer uma rede de disposições e
instituições, dando início ao que ficará conhecido como “Sistema
Interamericano”, o mais antigo sistema institucional internacional.
A OEA foi fundada em 1948 com a assinatura, em Bogotá,
Colômbia, da Carta da OEA que entrou em vigor em dezembro
de 1951. Posteriormente, a Carta foi emendada pelo Protocolo
de Buenos Aires, assinado em 1967 e que entrou em vigor em
fevereiro de 1970; pelo Protocolo de Cartagena das Índias,
assinado em 1985 e que entrou em vigor em 1988; pelo Protocolo
7
Disponível em: <<http://edu.mercosur.int/pt-BR/programas-e-projetos/25-mercosul-
educacional/61-sistema-integral-de-fomento-para-a-qualidade-dos-cursos-de-pos-
graduacao-do-mercosul.html>> Acesso em 26 abr. 2019.

88 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
de Manágua, assinado em 1993 e que entrou em vigor em janeiro
de 1996; e pelo Protocolo de Washington, assinado em 1992 e
que entrou em vigor em setembro de 1997.
A Organização foi criada para alcançar nos Estados
membros uma ordem de paz e de justiça, promovendo sua
solidariedade, intensificando sua colaboração e defendendo sua
soberania, sua integridade territorial e sua independência. Hoje,
a OEA congrega os 35 Estados independentes das Américas
e constitui o principal fórum governamental político, jurídico
e social do Hemisfério. Além disso, a Organização concedeu
o estatuto de observador permanente a 69 Estados e à União
Europeia (EU). Para atingir seus objetivos mais importantes, a
OEA baseia-se em seus principais pilares que são a democracia,
os direitos humanos, a segurança e o desenvolvimento.
O Programa de Bolsas (becas) Acadêmicas da OEA
(Programa Regular), estabelecido em 1958, outorga a cada ano
bolsas para mestrados, doutorados ou pesquisa de pós-graduação
condizente com um título universitário. Por intermédio de seu
“Programa de Alianzas para la Educación y la Capacitación
(PAEC)”, oferece outras oportunidades de bolsas para estudos
acadêmicos com o apoio de suas instituições sociais nas Américas
e ao redor do mundo. O PAEC é administrado conforme os
respectivos acordos de cooperação seguindo os princípios previstos
no “Manual de Procedimientos de Becas OEA.”
Las Becas de Desarrollo Profesional (PBDP) oferecem
oportunidades de bolsas para capacitação através de cursos curtos,
que podem durar desde uma semana até um ano, em qualquer
um dos Estados Membros da OEA e Observadores Permanentes,
com exceção do país de cidadania ou residência permanente do
solicitante8.
8
Disponível em: <<http://www.oas.org/pt/sobre/quem_somos.asp>> Acesso em 26 abr. 2019.

89 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
A UEL tem excelentes resultados com a OEA e o maior
número de estudantes que recebemos estão vinculados a ela e o
idioma desses estudantes é o espanhol, em sua grande maioria.
Como não poderemos neste momento explicitar outros aspectos
que podem auxiliar a comunidade universitária neste passeio
por El jardín de senderos que se bifurcan, parafraseando Jorge
Luís Borges, gostaríamos de deixar como indicação para buscas
posteriores dos interessados alguns links:

Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos


(CELAC);
Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL);
Instituto de Avaliação e Acompanhamento das Metas Educacionais
2021 (IESME);
Mercado Comum do Sul (MERCOSUL);
Organização dos Estados Iberoamericanos (OEI);
Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a
cultura (UNESCO);
Sistema de Informação de Tendências Educacionais na América
Latina (SITEAL);
União Europeia (EU);
União de Nações Sul-americanas (UNASUL).

Não para finalizar, mas sim para começar…

Este texto não teve, em nenhum momento, um caráter


teórico sobre a temática, pois, outros colegas já o fizeram de
modo brilhante em outros contextos, porém, o nosso objetivo
foi expandir os horizontes por meio da visibilidade das inúmeras
e vantajosas oportunidades que a América Latina e Caribe
nos oferecem para a internacionalização brasileira. O espaço é
insuficiente para o aprofundamento em cada uma das questões
cujo recorte aparece neste texto, mas, sem dúvida, cada um que

90 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
acompanhou este caminho traçado descobriu que a América
Latina tem muito a oferecer para a internacionalização.
As considerações a seguir deixam-nos um alento de que
a mudança pode acontecer e que é possível que a tão almejada
internacionalização ocorra:

Os dados permitiram inferir que as IES associam a internacionalização


da educação a programas de cooperação, consequentemente suas
ações estão subordinadas aos princípios da internacionalização
passiva. Poucas dispõem de política de internacionalização definida,
coletivamente elaborada, e capaz de atingir o conjunto da instituição
– consequentemente, pouco orienta as prioridades em termos de
gestão acadêmica. Apesar de ser predominantemente financiada
com aportes públicos, mais direcionados às atividades de pesquisa,
os atores que menos pressionam as IES a criarem mecanismos de
internacionalização são os pesquisadores, e os que mais pressionam
são os estudantes (CORREIA LIMA; BETIOLI CONTEL, 2008).

A título de exemplificação, relatamos brevemente


experiências de intercâmbio e internacionalização que foi possível
vivenciar na UEL. Como docente do Curso de Letras Espanhol do
Departamento de Letras Estrangeiras Modernas, uma das autoras
deste trabalho, a professora Valdirene Zorzo-Veloso, organizou
um estágio internacional com estudantes do 4º ano de nossa
Licenciatura na “Universidad Nacional de Córdoba (UNC)”,
na Argentina, sobre a qual fala a seguir: “Esta foi a primeira
experiência que a UEL teve de um estágio curricular obrigatório
internacional de um curso de Licenciatura. As atividades
foram realizadas em uma das escolas da UNC, equivalente ao
nosso Colégio de Aplicação, a “Escuela Superior de Comercio
Manuel Belgrano (ESCMB)” e contou, com três estagiários na
primeira edição e dois na segunda edição. Os estagiários tiveram

91 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
a supervisão direta de uma professora de Língua Espanhola da
ESCMB/UNC e minha, como professora formadora, e realizaram
observação de aulas, planejamento de aula, preparação de
material didático, reuniões pedagógicas com os docentes, equipe
pedagógica e supervisores de estágio e regências.
A partir desta experiência foi organizada a Jornada de
Intercâmbio Brasil-Argentina, evento acadêmico que está em
sua 4ª edição e relata, discute, compartilha e expande as ações
de internacionalização brasileira na América Latina e será
realizado nos dias 28, 29 e 30 de agosto aqui na UEL”. Além dessa
iniciativa: “Como membro do Grupo de Estudos em Práticas de
Ensino (GEPE) da UEL, ligado à Pró-Reitoria de Graduação,
acompanhei o reconhecimento da UEL na categoria Ensino
em Ciências e Impacto das Tecnologias com o trabalho que
documentou as experiências de formação docente e gestores que
atuam no âmbito da formação. Intitulado Prêmio “Paulo Freire” do
Programa de Apoio ao Setor Educacional do Mercosul (PASEM),
que ocorreu em novembro de 2014. O prêmio tem como objetivo
avaliar as práticas educacionais desenvolvidas na Argentina,
Brasil, Paraguai e Uruguai. O GEPE, direcionado aos docentes
da UEL, funciona desde setembro de 2011 e tem por finalidade
institucionalizar um espaço de discussão e reflexão sobre a prática
educativa, com foco na relação professor, aluno e conhecimento,
além da busca por melhorias na qualidade da formação profissional
nos cursos de graduação e servir de fonte para a revisão da ação
docente, práticas de ensino e interação pedagógica. Também
como fruto desta premiação, o GEPE organizou um evento que
trouxe as experiências igualmente premiadas na edição de 2014
para dialogar e intercambiar suas experiências em mesas redondas
e oficinas aos docentes de nossa universidade e, fruto deste

92 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
processo, foi publicado um livro bilíngue, português e espanhol,
com textos dos envolvidos Experiências inovadoras de metodologias
ativas: A Jornada Pedagógica do GEPE9, elaborada pelo Grupo de
Estudo em Prática de Ensino (GEPE) da UEL, é fundamentada
na construção de conhecimentos e colaboração entre docentes
de diversas áreas de formação no Ensino Superior da UEL, no
sentido de propor estratégias e ações que possibilitem ao professor
repensar e superar o seu fazer pedagógico docente, contribuindo
com a melhoria da formação profissional dos diferentes cursos
da UEL. Em sua edição de 2017, contou com a participação
de docentes da “Universidad Nacional de Córdoba/UNC” e
de seu equivalente ao Colégio de Aplicação “ESCMB” com
uma palestra e oficinas sobre “La enseñanza de estrategias para
aprender a aprender: un aporte para los estudiantes, un desafío
para los profesores” com a participação presencial da profa. Me.
Elisa Veronica Seguí e via web conferência das professoras Paula
Schargorodsky; María Gabriela Demaría e Natalia Rojo.
Ainda há possibilidades e caminhos a serem percorridos
nessa caminhada em direção à internacionalização das
universidades no Brasil e, para contribuir com esse fim, foi
elaborado este texto. Esperamos que os apontamentos e dados
aqui apresentados possam contribuir para a construção de um
conhecimento sólido e acessível a docentes e discentes, sobre
as possibilidades de internacionalização de uma universidade
brasileira que amplia o seu olhar e o direciona para a América
Latina e o Caribe.

9
E-book disponível em: << PASEM/MERCOSUL (disponível http://www.uel.br/
prograd/?content=gepe/publicacoes.html> Acesso em 26 abr. 2019.

93 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
Referências

ABBA, Julieta Maria; CORSETTI, Berenice. Contribuições para uma


internacionalização da educação superior desde e para América Latina.
A experiência da UNILA e da ELAM. Educação Por Escrito, Porto
Alegre, v. 7, n. 2, p. 181-200, jul.-dez. 2016. Disponível em: https://www.
researchgate.net/publication/313236190_Contribuicoes_para_uma_
internacionalizacao_da_educacao_superior_desde_e_para_America_
Latina_A_experiencia_da_UNILA_e_da_ELAM Acesso em: 26 abr.
2019.

BEYHAUT, Gustavo. Dimensão cultural da integração na América


Latina. Estudos Avançados, v. 8, n. 20, p. 183-198, 1 abr. 1994.

CELADA, Maria Teresa. e GONZÁLEZ, Neide T. Maia. Los estudios


de Lengua Española en Brasil. Anuario Brasileño de Estudios
Hispánicos, Suplemento El hispanismo en Brasil. Brasilia: ABEH,
2000, p. 35-58.

CONFERENCIA REGIONAL DE EDUCACIÓN SUPERIOR


(CRES). III, 2018, Caracas. Boaventura de Sousa Santos: La
universidad puede ser un campo donde realmente se puede pensar
cómo articular la resistencia y por eso es un blanco del neoliberalismo.
Disponível em: <https://cres2018.unaj.edu.ar/boaventura-de-sousa-
santos-la-universidad-puede-ser-un-campo-donde-realmente-se-
puede-pensar-como-articular-la-resistencia-y-por-eso-es-un-blanco-
-del-neoliberalismo/> Acesso em 25 set. 2019.

CORREIA LIMA, Manolita; BETIOLI CONTEL, Fábio.


Características atuais das políticas de internacionalização das instituições
de educação superior no Brasil. Revista E-Curriculum, São Paulo, v. 3,
n. 2, junho de 2008. Disponível em: <http://www.pucsp.br/ecurriculum>.
Acesso 13 abr. 2019.

FORÚM de Pró-Reitores de Extensão (FORPROEX). Conceito de


extensão, institucionalização e financiamento. In: Encontro de Pró-
Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, 1., 1987,
Brasília. Anais... Disponível em <https://www.ufmg.br/proex/renex/

94 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
documentos/Encontro-Nacional/1987-I-Encontro-Nacional-do-
FORPROEX.pdf>. Acesso em: 1 jul. 2016.

KULIKOWSKI, María Zulma Moriondo; GONZÁLEZ, Neide T.


Maia. Español para brasileños. Sobre por dónde determinar la justa
medida de una cercanía. Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos,
Brasília, n. 9, p. 11-19, 1999.

MORENO FERNÁNDEZ, Francisco. ¿Qué español enseñar? Madrid:


Arcolibros, 2000.

TEIXEIRA, Linnik Israel Lima. A internacionalização em


Instituições Federais de Ensino Superior do estado do Ceará na
perspectiva institucional.’ 27/09/2018 193 f. Mestrado Profissional em
Políticas Públicas e Gestão da Educação Superior Instituição de Ensino:
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza Biblioteca Depositária: www.
repositorio.ufc.br.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-


AMERICANA (UNILA). Foz de Iguaçu, 2014. Disponível em: <http://
www.unila.edu.br>. Acesso em: 10 ago. 2014.

VANDRESEN, Paulino. A expansão do português na América Latina.


Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa,
nº 39, p. 185-195, 2009.

XAVIER, Débora Luise Souza. O espanhol da América: considerações


sobre a variação linguística e o ensino do espanhol como língua
estrangeira. Revista Eletrônica Pro-Docência/UEL. Edição Nº. 3,
Vol. 1, jan-jun. 2013. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/
prodocenciafope>Acesso em: 23 abr. 2019.

95 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
96 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.71-96– jan./jul. 2019
PONCIÁ E KEHINDE: AS ANDANÇAS DAS
PERSONAGENS NEGRAS NO ROMANCE
BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Vanessa Germanovix Vedovatte1


Maria Carolina de Godoy2

RESUMO: Neste artigo, pretende-se aproximar a trajetória das protagonistas Ponciá


do romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, primeira publicação de 2003, e
Kehinde (ou Luísa Mahin), pertencente ao romance Um defeito de cor, de Ana Maria
Gonçalves, publicado em 2006. Nas duas obras, embora estejam ambientadas em
espaços e épocas distintas, as mulheres negras desprendem-se de seu local de origem e a
trajetória acontece sob condições sociais adversas. Ambas aproximam-se quanto ao fato
de se tornarem mulheres desenraizadas e ressignificam sua existência à medida que
resistem à opressão e, para a análise comparativa entre as protagonistas, apresenta-se a
metáfora do radicante, tipo de raiz que se espalha em função do espaço que percorre,
estabelecida pelo crítico de arte Nicolas Bourriaud (2011).
Palavras-chave: Ponciá, Kehinde, radicante.

ABSTRACT: This article aims to approximate the trajectory of the protagonists Ponciá,
of the novel Ponciá Vicêncio, by Conceição Evaristo, first publication of 2003, and
Kehinde (or Luísa Mahin), of the novel Um defeito de cor, by Ana Maria Gonçalves,
published in 2006. Although these works are set in different places and times, in both
black women are detached from their place of origin and the trajectory takes place
under adverse social conditions. Both approach towards becoming uprooted women
and resignifying their existences as resisting oppression and, for the comparative analysis
between the protagonists, the radicant metaphor is presented as the type of root that
spreads according to the space it travels, as established by art critic Nicolas Bourriaud
(2011).
Keywords: Ponciá, Kehinde, radicant.

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de
Londrina.
2
Docente adjunta do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual
de Londrina, área de Literatura.

97 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
Introdução

De Maria Firmina dos Reis às escritoras contemporâneas


da literatura afro-brasileira, observa-se a crescente participação das
mulheres negras na produção literária. Vozes autorais, temáticas
e pontos de vista ligados ao universo feminino estão marcados
em contos, romances, crônicas, poesias e diários que descrevem
o cotidiano, as lutas e as conquistas de mulheres negras. Nesse
contexto, surgem escritoras como Carolina Maria de Jesus,
Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva
e Cristiane Sobral, entre outras, que contribuem para expansão
dessa produção literária e afirmam sua identidade em territórios
diversos, na rede da literatura afro-brasileira.
Neste artigo, propõe-se a reflexão sobre duas personagens
negras, cujas trajetórias aproximam-se quanto ao enfrentamento
de obstáculos para afirmação identitária em território inóspito.
Trata-se de Ponciá, protagonista do romance Ponciá Vicêncio, de
Conceição Evaristo, primeira publicação de 2003 e Kehinde (ou
Luísa Mahin), pertencente ao romance Um defeito de cor, de Ana
Maria Gonçalves, publicado em 2006. Nas duas obras, embora
estejam ambientadas em espaços e épocas distintas, as mulheres
negras desprendem-se de seu local de origem e a trajetória
acontece sob condições sociais adversas. Na narrativa de Ponciá,
o impulso para a saída é a constatação do sofrimento ao redor e a
procura por uma nova vida; Kehinde, ainda menina, é arrancada
de seu espaço para ser escravizada no Brasil, após sua captura,
aos oito anos de idade, em Savalu, no Daomé (atual Benin),
África. Ambas aproximam-se quanto ao fato de se tornarem
mulheres desenraizadas e ressignificam sua existência à medida
que resistem à opressão e, para a análise comparativa entre as

98 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
protagonistas, apresenta-se a metáfora do radicante, tipo de raiz
que se espalha em função do espaço que percorre, estabelecida
pelo crítico de arte Nicolas Bourriaud (2011) para tratar da arte
na contemporaneidade.

Ponciá e Kehinde: as raízes replantadas

Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves são nomes


reconhecidos na literatura afro-brasileira e suas produções podem
ser consideradas de grande relevância para a divulgação da voz de
autoria negra no sistema literário brasileiro, sobretudo no que tange
ao romance. Considera-se a literatura afro, na perspectiva proposta
por Octávio Ianni que a conceitua como “[...] um imaginário que
se forma, articula e transforma no curso do tempo [...] Sua história
está assinalada por autores, obras, temas, invenções literárias. É
um imaginário que se articula aqui e ali, conforme o diálogo de
autores, obras, temas e invenções literárias. É um movimento um
devir, no sentido de que se forma e transforma.” (IANNI, 2011,
p. 183). Escritora, professora, ensaísta, mulher negra, Conceição
Evaristo começa seus escritos em Cadernos Negros - publicação
iniciada em 1978 e que se estende até hoje com o objetivo de
expandir a produção de autoria negra - mas se torna visível
com o romance Ponciá Vicêncio, publicado em 2003; Ana Maria
Gonçalves, na Bahia, escreve Um defeito de cor, primeiro romance
afro-brasileiro a ser publicado por uma grande editora. O romance
de novecentas e cinquenta e uma páginas, publicado em 2006
pela editora Record, foi bem recebido pela crítica, ganhador do
prêmio Casa de las Américas em Cuba e eleito como “melhores da
década”, segundo o jornal O Globo e marca a história da literatura
afro-brasileira ao registrar, sob a perspectiva de uma protagonista

99 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
negra, tradições e contradições provenientes do encontro entre
culturas e histórias individuais. Ao tratar de obras de escritoras
afro-brasileiras e indígenas, Figueiredo (2013) explica que surge,
no Brasil, uma “literatura hifenizada”, cujo objetivo é dar maior
visibilidade e colocar na agenda nacional a presença daqueles que
sempre estiveram marginalizados no espaço público.

Pensando no atual momento brasileiro, eu diria que há uma


verdadeira batalha no campo da memória coletiva, com o
aparecimento de escritas que evocam outros mitos fundadores,
outros discursos nacionais, traçando uma visão de nação pluralizada
e não única, como se fez no século XIX e o que o século XX reforçou.
Em vez de uma nação homogênea criada pelos grandes intérpretes
do Brasil, que excluía negros e indígenas ao diluí-los no amálgama
chamado “Brasil mestiço”, o que vemos agora é a eclosão de vozes
que narrativizam outras histórias, outras versões sobre a nação. A
questão identitária dos afrodescendentes e dos indígenas se exprime
pela busca de afirmação no cenário público. Por conseguinte, aflora
um contingente de escritores que reivindica um pertencimento
marcado pela etnicidade (FIGUEIREDO, 2013, p. 152).

Esse pertencimento é marcado na literatura afro-brasileira,


em que os discursos ressignificam a trajetória do povo negro
no Brasil, distanciando-se de visões de fora da experiência, ou
seja, retratos estereotipados de escritores ao longo da história
literária. Entende-se, conforme Hall (2014), que essas construções
de significados engendram marcas identitárias e é possível
compreender o espaço da literatura como local de/por onde ecoam
as vozes silenciadas em busca da (re)construção de sua identidade:

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um


passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma
certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da
utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para

100 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos
tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos”
ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem
nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados”
e “como essa representação afeta a forma como nós podemos
representar a nós próprios” (HALL, 2014, p.108-109).

As autoras optam pela forma romanesca para relatar o


deslocamento das protagonistas em espaço brasileiro e confere à
narrativa uma visão dos conflitos vivenciados por Ponciá e Kehinde,
enquanto percorrem lugares e procuram novos referenciais para
estabelecer suas raízes; em outro nível, simultaneamente, ocorre o
aprofundamento subjetivo das angústias provocadas pela ruptura
com seu local de origem e a sensação de não pertencimento. A
escolha do modo de narrar corrobora essas perspectivas, uma vez
que se adota o ponto de vista interno em Ponciá Vicêncio, pela
narração onisciente:

Ponciá Vicêncio deitou-se na cama imunda ao lado do homem


e de barriga para cima ficou com o olhar encontrando o nada.
Veio-lhe a imagem de porcos no chiqueiro que comem e dormem
para serem sacrificados um dia. Seria isto vida, meu Deus? Os
dias passavam, estava cansada, fraca para viver, mas coragem para
morrer, também não tinha ainda. O homem gostava de dizer que
ela era pancada da ideia. Seria? Seria! Às vezes, se sentia, mesmo,
como se a sua cabeça fosse um grande vazio, repleto de nada e de
nada (EVARISTO, 2003, p. 32).

Em Um defeito de cor, aliado à forma carta dirigida ao filho


vendido ilegalmente Omontude – sugere-se ser o poeta Luís
Gama – há o intimismo da narração em primeira pessoa:

[...] Então, como já deve ter percebido de quem estamos falando,


a você foi dado o nome de Omotunde Adeleke Danbiran, sendo
que Omotunde significa “a criança voltou”, Adeleke quer dizer

101 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
que a criança será “mais poderosa que os inimigos”, e Danbiran,
assim como o apelido de Banjokô, é uma homenagem à minha avó
e aos seus voduns, principalmente Dan (GONÇALVES, 2009, p.
403-404).

De um lado, o trânsito dessas personagens pelo território


brasileiro coloca-as em diálogo com a cultura afro-brasileira e
evidencia a condição de mulheres e homens negros, vista sob
aspectos sociais, políticos e históricos. Por outro lado, os desvios
desse percurso, a tentativa de recuperação de seus costumes e os
traços de uma identidade fragmentada em constante reconstrução
permitem vê-las ao lado das narrativas contemporâneas,
caracterizadas pelos relatos plurais, conforme Bourriaud (2011).
A arte contemporânea oferece modelos a esse indivíduo
em “eterno reenraizamento”, pois ela constitui um laboratório
de identidades. Os artistas de hoje expressam menos a tradição
da qual se originam do que a “trajetória que perfazem entre essa
tradição e os diversos contextos que atravessam, efetuando atos
de tradução” (BOURRIAUD, 2011, p. 50). Esse conceito parte
da reflexão do autor acerca dos efeitos da globalização no campo
da estética, no sentido de buscar caminhos para se desvencilhar
de modelos uniformes e padronizados de arte. Para isso, em vez
de pós-modernidade, ele prefere falar de altermodernidade, que
se caracteriza pela presença de relatos plurais a fim de reescrever
a História, dando conta de diferentes versões.
Na proposta altermoderna, a História seria reescrita por
relatos plurais, em que a tradução se tornaria o modo ético
essencial para manutenção do sistema da arte, ou seja, o artista
seria tradutor de si próprio, permitindo um diálogo entre
linguagens e não uma sobreposição delas. Assim como o sujeito
radicante, Ponciá Vicêncio e Kehinde investem em perfazer os

102 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
diversos caminhos errantes entre a tradição e os contextos com os
quais se depararam. Portanto, o que importa para elas é a direção,
a velocidade, os vetores. O ponto de partida não mais importa,
e o de chegada consiste, na verdade, em uma nova partida, um
novo recomeço. Ambas transformam-se continuamente numa
busca que se dá no plano horizontal – em suas andanças, idas
e vindas – e no vertical – na viagem interior de reconstrução de
si mesma. O radicante pode romper com suas raízes originais e
adaptar-se em outro solo: não existe uma única origem, existem
enraizamentos simultâneos ou cruzados.
O termo “radicante” diz respeito às plantas que emitem
raízes em diversos pontos no sentido de sua extensão ou que são
capazes de produzir raízes sempre que replantadas. “A hera é
um vegetal radicante, porque faz nascer suas raízes à medida que
avança, ao contrário dos radicais, cuja evolução é determinada
pelo ancoramento em algum solo” (BOURRIAUD, 2011, p. 50).
O radicante se desenvolve conforme o solo que o acolhe, adapta-
se à sua superfície e aos seus componentes. O autor explica que
o adjetivo radicante contém significado dinâmico e dialógico,
portanto, é capaz de qualificar o sujeito contemporâneo dividido
entre a necessidade de vínculo com seu ambiente e as forças de
desenraizamento, entre a globalização e a singularidade, entre a
identidade e o aprendizado do outro.
Diferente do rizoma de Deleuze e Guattari, que se define
pela multiplicidade, o radicante de Bourriaud “assume a forma
de uma trajetória, de um percurso, de um caminhar efetuado
por um sujeito singular” (BOURRIAUD, 2011, p. 53), que se
apresenta não como uma identidade estável e fechada, mas na
forma de sua errância. Assim, esse mostra-se um conceito relevante
para abordar o sujeito contemporâneo em relação de constante

103 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
desterritorialização e reenraizamento com o lugar. Descreve-se,
então, o que é ser radicante: “pôr em cena, pôr em andamento as
próprias raízes, em contextos e formatos heterogêneos; negar-lhes
a virtude de definir por completo a nossa identidade; traduzir as
ideias, transcodificar as imagens, transplantar os comportamentos,
trocar mais do que impor” (BOURRIAUD, 2011, p. 20).
A caminhada de Ponciá, apesar de não revelar alterações
profundas de cultura e território – da África ao Brasil e de
livre a escravizada como ocorre com Kehinde – é marcada pela
alternância entre o desejo de uma vida melhor e o confronto
decepcionante com a realidade, o que provoca a instabilidade de
sua identidade, o esvaziamento do que era antes conhecido, seguro:

Aos poucos, Ponciá foi-se adaptando ao trabalho. Ficou mesmo


na casa da prima da moça que ela havia encontrado na igreja. Foi
aprendendo a linguagem dos afazeres de uma casa da cidade. [...]
Trabalharia, juntaria dinheiro, compraria uma casinha e voltaria
para buscar sua mãe e seu irmão. A vida lhe parecia possível e fácil
(EVARISTO, 2003, p. 42).
[...]
O que acontecera com seus sonhos tão certos de uma vida melhor?
Não eram somente sonhos, eram certezas! Certezas que haviam sido
esvaziadas no momento em que perdera o contato com os seus. E
agora feito morta-viva, vivia (EVARISTO, 2003, p. 33).

Arruda (2019, p. 1), ao analisar a errância dessas


personagens, afirma:

Podemos dizer então que textos como  Ponciá Vicêncio  e  Um


defeito de cor, dentre outros textos de autores afro-brasileiros,
constituem uma contra narrativa na medida em que enfrentam o
desafio de reconstruir sua história de maneira crítica e denunciar as
consequências reais dessa história. As metáforas usadas pelas autoras
para retomar o tema da diáspora africana e a desterritorialização

104 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
que marcou e ainda marca os afrodescendentes no Brasil, estão,
portanto, longe de serem apenas “reviravoltas ou impasses”, como
afirma Gilroy. Mais do que isso, constituem uma janela para fazer
emergir essa narrativa que serve, então, como espelho de um mundo
que ainda se mostra cego diante das imagens vindas da memória
diaspórica afro-brasileira.

  A crise de identidade e a sensação de carregar outras


existências consigo é própria do deslocamento – de seu próprio
e de seus ancestrais –, pois, conforme explica Hall (2003), na
situação da diáspora, as identidades tornam-se múltiplas. Ponciá
carrega imagens da infância, a relação com o barro, por exemplo,
e vê-se a mulher em transformação, seja na imagem do espelho,
seja em seu universo interior. Ao retornar para sua antiga casa,
em visita à mãe, ela encontra o vazio da casa, embora os objetos
se mantivessem no mesmo lugar, e o vazio de si mesma.

Ponciá Vicêncio tirou o homem-barro de dentro do baú,


colocando-o em cima da mesa. Estava cansada, tinha fome,
emoção e um pouco de frio. A cabeça tonteou. Sentou-se rápido
num banquinho de madeira. Veio, então, a profunda ausência, o
profundo apartar-se de si mesma.
Quando Ponciá voltou a si, já era quase meia-noite. Quanto tempo
ficara alheia? Não sabia ao certo. Chegara ali por volta do meio-dia
e agora a noite já se tinha dado. Lembrou-se dos biscoitos fritos
que a mãe fazia. Abriu a trouxa (semelhante a que levara quando
partiu) e de lá retirou um pedaço de pão com linguiça. Comeu a
merenda desejando um líquido. Saboreou na lembrança da língua
o gosto do café da mãe. Contemplou a figura do homem-barro e
sentiu que ela cairia em prantos e risos (EVARISTO, 2003, p. 49).

As sensações conflitantes experimentadas pela personagem


fundem rememoração e suas percepções vinculadas à identidade
em fragmentos. Não é mais possível recuperar plenamente suas

105 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
raízes, já que o vazio estabelecido entre a protagonista e seu
local de origem, provocado pelo deslocamento, parece não poder
ser preenchido. Nesse movimento de desterritorialização, a
protagonista representa a forma do radicante, dividido entre sua
vinculação com o ambiente, suas raízes e seu desenraizamento,
em que o adjetivo emprestado da botânica é empregado para
qualificar essas negociações identitárias. O radicante desenvolve-
se contextualmente, se conforma ao solo que encontra, “se traduz
nos termos do espaço em que se move” (BOURRIAUD, 2011,
p. 50). Procede por seleção, acréscimos e multiplicações: ele não
busca um estado ideal do Eu, da arte ou da sociedade, e sim
“organiza os signos a fim de multiplicar uma identidade por outra”
(BOURRIAUD, 2011, p. 50). Ao tentar reorganizar imagens do
passado que marcavam sua identidade – como o barro, os sabores
dos alimentos, o rosto dos familiares –, Ponciá é imediatamente
tomada pela ausência ou apagamento. Os fragmentos diluem-se
e sua recomposição não acontece.
Kehinde carrega consigo imagens de seu passado, ligadas
ao seus ancestrais, que lhe acompanham na longa trajetória pelo
Brasil:

Em um dia em que a Nega Florinda apareceu e não pôde ser


recebida porque a sinhá estava de repouso para não perder a criança,
aproveitei para conversar com ela. Imaginei que ela poderia me
ajudar porque talvez fosse da mesma região que a minha avó, já
que as duas conheciam a mesma história. Desse modo, entenderia a
minha necessidade de cumprir as promessas feitas, de providenciar
um Xangô, uma Nana, uma Oxum, os Ibêjis e, principalmente, o
pingente que representaria a Taiwo, para que eu pudesse ficar com a
alma completa, a alma que nós duas dividíamos antes de ela morrer
(GONÇALVES, 2009, p. 82).

106 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
Ao chegar à Ilha dos Frades, ainda criança, Kehinde
sentiu as emoções conflitantes, como apontadas no fragmento
anterior de Ponciá:

Eu me senti quase feliz ao avistar a Ilha dos Frades. Uma felicidade


que talvez pudesse ter sido chamada de alívio, como aconteceria
várias outras vezes em minha vida. Por causa da beleza da ilha, fiquei
impressionada com as cores, com o ar, com as novas sensações, com
a esperança de tudo nem ser tão ruim assim. Ao subir as escadas
do porão e ver primeiro o céu azul, depois a luz do sol quase me
cegando, fazendo com que os outros sentidos ficassem mais atentos.
Tive vontade de nascer de novo naquele lugar e ter comigo os amigos
de Uidá. Havia um murmúrio do mar, um cantaréu de passarinhos,
homens gritando numa língua estranha e melodiosa. Nascer de
novo e deixar na vida passada o riozinho de sangue do Kokumo e
da minha mãe, os meus olhos nos olhos cegos da Taiwo, o sono da
minha avó. O mar era azul e nos levava tranqüilos até uma ilha que,
de longe e de cima do navio, não parecia ter nada além de árvores
e da pequena faixa de areia branca. Algumas pessoas festejaram,
deslumbradas, esquecendo-se de que iam virar carneiros, mesmo
que fossem carneiros do paraíso (GONÇALVES, 2009, p. 62).

É preciso enfatizar que, apesar de as situações causadoras


dessas sensações serem distintas – Ponciá, mulher adulta, está
voltando para casa de onde saiu para empreender uma nova
vida; Kehinde, uma menina, chega a uma terra desconhecida
contra sua vontade – observa-se essa profusão de sentimentos
provocada pelo desenraizamento e pela tentativa de enraizar-se.
Ambas radicantes, em contextos diversos, simbolizam os relatos
plurais de mulheres negras que estão em reconstrução de suas
identidades, uma vez fragmentadas, oprimidas, subjugadas e em
contínuo processo de busca por seu espaço. Relatos advindos
também de mulheres negras em luta pela conquista de espaços
na sociedade e na arte:

107 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
A afirmação de um pertencimento étnico; a busca e a valorização
de uma ancestralidade africana, que pode ser revelada na própria
linguagem do texto, na estética do texto; a intenção de construir um
contradiscurso literário a uma literatura que estereotipiza o negro;
a cobrança da reescrita da História brasileira no que tange à saga
dos africanos e seus descendentes no Brasil; a enfática denúncia
contra o racismo e as injustiças sociais que pesam sobre o negro na
sociedade brasileira (EVARISTO apud DUARTE, 2011, p. 144).

Nas palavras de Ana Maria Gonçalves, em entrevista


concedida a Margarete Hülsendeger, ao falar de Kehinde (Luísa
Mahin), há um reconhecimento de si mesma ao elaborar o
romance:

MH – E a vida dela estava dando viradas como a tua deu?


AMG – Foi quando percebi que essa busca era uma busca da
minha identidade. Eu não me considerava negra, nunca tinha
pensado nessa questão de identidade antes. Venho de uma família
pobre, minha mãe era costureira, meu pai começou a vida como
assistente de pedreiro, foi subindo, trabalhava na Nestlé, estudava;
eu lembro que quando eu estava no grupo escolar, meu pai estava
terminando o segundo grau, voltou a estudar depois. Minha família
é muito misturada, família mestiça, e essa questão nunca tinha
passado pela gente, principalmente, porque ao pertencer a uma
certa classe social, cultural, isso branqueia a gente. Então, eu acho
que eu não era tratada como negra, não me via como negra, me via
como mestiça, como misturada (OLIVEIRA; HÜLSENDEGER;
MOREIRA, 2017, p. 230).

Considerações finais

As protagonistas das duas obras, mesmo retratadas em
espaços e épocas diferentes, aproximam-se no sentido de se
desprenderem de seu local de origem, tornarem-se mulheres

108 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
desenraizadas e transformarem sua essência e existência conforme
ressignificam suas trajetórias. Há tanto em Ponciá como em
Kehinde a dificuldade de se estabelecer entre dois lugares: de
um lado, as raízes com a casa paterna, ou o país dos ancestrais
deixado para trás; de outro lado, a relação conturbada com o
lugar de destino, onde elas não estão plenamente adaptadas e
sentem-se segregadas por razões sociais, econômicas, culturais e
subjetivas. Suas trajetórias avançam até que, em certo ponto, elas
não se identificam mais com seu local de origem nem no destino.
Isso provoca nelas crises existenciais, levando-as a ressignificarem
também suas identidades.
A metáfora do radicante representa um colocar as raízes
em movimento, desenraizar e reenraizar para adaptar-se ao solo.
O adjetivo emprestado da botânica representa as negociações
identitárias provocadas pelo conflito entre o vínculo com a origem
e o constante deslocamento. Enquanto a ideia de enraizamento
radical remete à verticalidade, ao aprofundamento e fixação em
determinado solo, o radicante traz o movimento horizontal
das raízes. De forma semelhante, notam-se, nas narrativas,
movimentos verticais, no sentido de um aprofundamento e de
uma busca interior pela identidade, associados aos movimentos
horizontais, representados pelos deslocamentos espaciais e como
estes resultam em transformações identitárias nas protagonistas,
que passam a realizar essa busca não mais nas origens, mas no
percurso traçado.
Assim, o radicante revela um afastamento das origens a fim
de se criarem traduções de ideias e trocas, em vez da imposição
de uma cultura sobre outra. Como sujeitos radicantes, então, essas
duas mulheres negras investem em perfazer os diversos caminhos
errantes entre ancestralidade e as novas realidades onde têm de se

109 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
adaptar. Sendo assim, o ponto de partida perde a relevância, e o de
chegada consiste, na verdade, em uma nova partida, um recomeço.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Aline Alves. A errância diaspórica como paródia da procura


em Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo e Um defeito de cor, de Ana
Maria Goncalves. Literafro – O portal da Literatura Afro-brasileira. 26
fev. 2018 Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/arquivos/
autoras/ConceicaoCr01Aline.pdf> . Acesso em: jun. 2018.

BOURRIAUD, Nicolas. Radicante – por uma estética da globalização.


Tradução Dorothée de Bruchard. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza:


2003.

EVARISTO, Conceição. Entrevista concedida a Eduardo de Assis


Duarte. In DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth
Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia
crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção


e autoficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

GONÇALVEZ, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record,


2009.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Liv


Sovik (org); Tradução de Adelaine La Guardia Resende et al. Belo
Horizonte: UFMG, 2003.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução


de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.

110 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In SILVA, Tomaz Tadeu
da Silva (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais.  Tradução de Tomaz Tadeu
da Silva. 15ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

IANNI, Octávio. Literatura e consciência. In DUARTE, Eduardo


de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e
afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG,
2011.

OLIVEIRA, Amanda; HÜLSENDEGER, Margarete; MOREIRA,


Maria Eunice. “Eu sou negra”: entrevista com Ana Maria Gonçalves.
Navegações, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 229-236, jul.-dez. 2017.

111 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
112 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 97-112– jan./jul. 2019
CULTURA E CURRÍCULO ESCOLAR CONFORME
PIERRE BOURDIEU: NOTAS SOBRE ASPECTOS
EPISTEMOLÓGICOS E ESTÉTICOS

Elsio Lenardão1

RESUMO: Encontra-se no centro dos debates atuais envolvendo os sistemas de ensino


a disputa entre variadas interpretações a respeito de quais conteúdos deveriam compor
o currículo da escola básica. Na lista dos autores aos quais se recorre para a defesa de
uma ou outra posição quanto ao conteúdo dos currículos, encontra-se Pierre Bourdieu.
Entre autores brasileiros e estrangeiros traduzidos no Brasil, há uma certa interpretação
quanto à posição de Pierre Bourdieu que o situa como crítico do currículo composto
pelos conteúdos da cultura escolar clássica/propedêutica, formada pela ciência e pela
cultura erudita. Porém, já há, também, interpretação alternativa que vem tentando
demonstrar que, contra a leitura corrente, a posição teórica e prática de Bourdieu o
aproxima mais da defesa de um currículo escolar nos moldes clássicos do que de uma
posição relativista. Para o esclarecimento da sua aproximação a favor de um conteúdo
curricular escolar clássico, seria relevante expor sua posição e avaliação comparativa
daquilo que ele denomina “cultura erudita”/ “alta cultura” frente à “cultura popular”.
Isto é, sua análise a respeito dos diferentes valores epistemológicos e estéticos das diferentes
experiências culturais. Este artigo apresenta um levantamento inicial de escritos de
Bourdieu que ilustram sua posição diante do tema, com base na leitura exegética de
alguns de seus textos e de textos de comentadores que tratam do assunto.
Palavras-chave: Pierre Bourdieu, Conteúdo curricular, Relativismo cultural.

Abstract: At the center of current debates involving education systems is the dispute
between various interpretations as to what content should make up the elementary school
curriculum. In the list of authors used to defend one position or another as to the content
of curricula, is Pierre Bourdieu. Among Brazilian and foreign authors translated in
Brazil, there is a certain interpretation of Pierre Bourdieu’s position that places him as
a critic of the curriculum composed of the contents of the classical/propaedeutic school
culture, formed by science and erudite culture. However, there is also an alternative
interpretation that has been trying to show that, against current reading, Bourdieu’s
theoretical and practical position brings him closer to the defense of a school curriculum
along the classical lines than to a relativistic position. In order to clarify his approach
in favor of a classical school curriculum, it would be relevant to state his position and
comparative assessment of what he calls “classical culture”/ high culture” in relation
to “popular culture”. That is, his analysis of the different epistemological and aesthetic

1
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina.

113 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
values ​​of different cultural experiences. This article presents an initial survey of Bourdieu’s
writings that illustrate his position on the subject, based on the exegetical reading of
some of his writings and of commentator writings dealing with the subject.
Keywords: Pierre Bourdieu, Curriculum content, Cultural relativism.

Introdução2

No caso da educação escolar básica brasileira, é explícito o


embate corrente entre variadas interpretações a respeito de quais
conteúdos deveriam compor seu currículo conforme se dá mais
destaque a este ou àquele papel da escola. Entre os autores aos
quais se recorre para a defesa de uma ou outra posição quanto
ao conteúdo dos currículos, encontra-se Pierre Bourdieu. Em
vários autores brasileiros que lidam com os escritos de Bourdieu,
e também em autores estrangeiros traduzidos para o português3,
insinua-se uma certa interpretação quanto à posição de Bourdieu
a respeito do conteúdo escolar que induz a situá-lo entre os
relativistas/multiculturalistas 4 e, portanto, como crítico do
currículo composto pelos conteúdos da cultura escolar clássica/
propedêutica.
Por outro lado, há quem já venha tentando demonstrar, com
base na análise das exposições de Bourdieu em relação ao tema,
que, contra a interpretação corrente, a posição teórica e prática
desse autor o aproxima, de fato, mais da defesa de um currículo
escolar nos moldes clássicos, composto pela ciência e pela cultura
2
Uma versão resumida deste artigo foi apresentada no EDUCERE – XIV Congresso
Nacional de Educação - Pontifícia Universidade Católica do Paraná – set/2019.
3
Entre outros, BONNEWITZ (2003); CATANI (s/data); NOGUEIRA e NOGUEIRA
(s/data); SNYDERS (1977; 2008); SOARES (1994).
4
Para efeito deste artigo, o termo “relativista” irá referir-se, simplificadamente, àqueles
que fazem a crítica ao predomínio, na cultura escolar, da “cultura das classes dominantes”
(científica e erudita) com seu suposto caráter uniformizante, em detrimento da presença
das “culturas populares” com sua presumida diversidade (SILVA, 1995).

114 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
erudita, do que de uma posição relativista, proponente da presença
da cultura popular no currículo (LENARDÃO, 2019).
No entanto, uma exposição mais rigorosa e esclarecedora de
sua posição em favor de um conteúdo curricular escolar composto
pela ciência e pela cultura erudita, exige que sejam evidenciados,
também, aspectos da sociologia da cultura elaborada por Bourdieu.
Em especial, nesse caso, sua posição e avaliação comparativa
daquilo que ele denomina “cultura erudita”/”alta cultura” frente
a “cultura popular”. Isto é, sua análise a respeito dos diferentes
valores epistemológicos e estéticos das diferentes experiências
culturais. Por exemplo, Bourdieu se refere a diferenças importantes
entre a “estética popular” e uma espécie de “estética das classes
superiores” (LOYOLA, 2002, p. 73-74).
Parece haver em Bourdieu (2010, p. 31) uma posição teórica
contra o que ele chama de “populismo estético” ou relativismo
quanto ao gosto estético e a sugestão de critérios para se pensar
numa possível “universalidade” de elementos da cultura erudita, por
exemplo, da “grande arte” ou das “obras-primas” (BOURDIEU,
2010, p. 250-251)5. Esclarecer melhor as questões postas acima é
a tarefa iniciada neste texto, na forma de notas de leitura de alguns
textos de Pierre Bourdieu e de comentadores de sua sociologia.

Cultura e fracasso escolar nos termos de Bourdieu

Uma das revelações importantes que Bourdieu faz em


relação ao papel da escola nas sociedades democráticas liberais é
o de perceber que, para as crianças e jovens das classes dominantes
e de parte das classes médias, a escola reforça e aprofunda sua
formação cultural, acrescentando a elas e eles mais-valor, por

5
Ver, também, Jourdain e Naulin (2017, p. 108).

115 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
meio do acréscimo de capital cultural6. Este, mais à frente, poderá
ser convertido em capital econômico, por exemplo. Bourdieu
(2007c, p. 306) diz que capital cultural atrai capital cultural e
outros capitais.
Já para as crianças das classes populares, a escola, ignorando
o estranhamento cultural que essas crianças enfrentam frente à
cultura escolar, produz uma experiência de fracasso (o fracasso
escolar: abandono/desistência, repetência, retenção nas séries,
baixo grau de aprendizado etc.) que parece confirmar, explicar e
justificar o “fracasso social” original de suas famílias, que derivaria
de suas “incompetências” confirmadas pelas avaliações, notas e
reprovações experimentadas na escola (BOURDIEU, s/data). O
fracasso escolar nos moldes anotados aqui é um fracasso de classe,
é o fracasso de quase toda uma classe social. Embora “(...) apareça
a todos, principalmente àqueles que os sofrem, como fracasso
pessoal de cada indivíduo” (SOUZA, 2009, p. 282). Isto é, segundo
Bourdieu, a escola acabará por colaborar na transformação da
herança social em mérito ou demérito escolar.
Quer dizer, para os primeiros (filhos das classes médias e
das elites) o sucesso escolar – visualizado nas trajetórias escolares
longas, em cursos notáveis, com históricos recheados de boas notas,
com a posse de diplomas de prestígio – vai servir para referendar
suas “competências distintas” que, por sua vez, vão justificar
simbolicamente (por meio da “ideologia do esforço pessoal”) seu
sucesso social.
6
Capital cultural diz respeito a um “[conjunto] de qualificações intelectuais produzidas
pelo sistema escolar ou transmitidas pela família. Esse capital pode existir sob três formas:
em estado incorporado, como disposição duradoura do corpo (por exemplo, a facilidade de
expressão em público, o domínio da linguagem); em estado objetivo, como bem cultural (a
posse de quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas); em estado institucionalizado,
isto é, socialmente sancionado por instituições (como títulos escolares). Não se adquire
nem se herda sem esforços pessoais, sem um longo trabalho de aprendizagem e de
aculturação; tende a ser estreitamente correlacionado ao capital econômico do agente”
(CULT, 2012, p.33).

116 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
Para os segundos (filhos das classes populares), vai ficar a
tese: “Tiveram a oportunidade de, na escola, se preparar para a
vida, mas não aproveitaram direito. Por isso vão ocupar, na grade
de oportunidades sociais, aquelas posições menos rentáveis e
menos prestigiadas. Não agarraram a chance dada”.
Esse “efeito de destino” acontece porque cabe ao professor a
tarefa de converter no espaço da sala de aula os recursos culturais
de natureza pré-escolar e extra-escolar acumulados pelos alunos,
em recursos propriamente escolares. Essa conversão favorece
regularmente os alunos daqueles grupos ou frações de classe
melhor posicionados na estrutura de classes e, por isso, mais
familiarizados previamente com a cultura letrada.
Nesse sentido, o que a escola faz pelas crianças e jovens
das classes populares é exatamente o contrário da sua promessa,
exposta na justificativa de sua existência: ou seja, a escola não
facilita, verdadeiramente, que as crianças e jovens das classes
populares tenham acesso de fato à cultura escolar, ou seja, à ciência
e à cultura erudita.
O problema que se põe na real explicação para o fracasso
escolar das crianças e jovens das classes populares é a defasagem
existente entre o padrão de ensino (inserido nos horizontes
culturais da classe média) e o perfil cultural dos alunos
majoritariamente oriundos das classes populares. Colocando-se
como instituição meritocrática, a escola, de fato, transforma a
herança social das crianças das classes favorecidas, carregada de
cultura letrada, em mérito escolar.
A questão é que a escola se organiza com base numa
subcultura particular, agindo com se esta fosse universal ou única.
Como se fosse previamente conhecida por todas as crianças
de todas as classes sociais. Como se houvesse de fato uma

117 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
homogeneidade cultural prévia. A escola, ao se organizar, ignora a
possível diversidade cultural dos alunos que irão frequentá-la. Daí
o desconhecimento e o estranhamento experimentado por aquelas
crianças que não estão habituadas aos elementos e disposições
previstos pela cultura escolar (versão didática da “alta” cultura,
erudita e científica). Pelos efeitos desse procedimento, a escola,
antes de ser democrática, é reprodutora da desigualdade social.

Notas preliminares a respeito da posição de Bourdieu quanto à


cultura popular e à erudita

Propomos, neste artigo, a hipótese de que Bourdieu não


questiona a legitimidade da cultura escolar (“cultura das classes
dominantes”) consagrada à sua época, cujo conteúdo contemplava
elementos da cultura erudita e do conhecimento científico.
O que lhe preocupava era o fato de que os alunos das “classes
desfavorecidas” não tinham acesso a essa cultura. Para Bourdieu
(2007), a cultura escolar, para além de ser a “cultura das classes
dominantes” ou a “cultura legítima”, seria uma cultura cujo
conteúdo teria grande valor epistemológico e estético, além de
alto valor no mercado de bens simbólicos. Valores negados ou
mendigados às crianças e jovens das classes populares.
Bourdieu denunciava o falso caráter democrático da escola.
Ele gostaria que esta fosse democrática de fato. Isto é, que o fosse
para oferecer a todas as crianças e jovens possibilidades reais
de acesso ao “capital cultural”. Essa é sua defesa de uma escola
verdadeiramente democrática para os alunos das classes populares,
porque, como registraram dois colaboradores de Bourdieu no livro
A miséria do mundo, “(...) [os] alunos pouco dotados de bagagem
cultural [erudita], [por causa disso] tem mais coisas para aprender
na escola” (2012, p. 525).

118 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
O valor em si da cultura erudita

Sugerir, como o faz Bourdieu, que a cultura escolar deveria


ser composta prioritariamente por conteúdos da cultura erudita
não quer dizer que se está assumindo uma posição em defesa
da “estética pura”, isto é, uma posição ingênua frente à obra
de arte, frente à “forma” da obra. Tal sugestão deveria ser feita
levando-se em consideração a gênese coletiva e individual da
própria cultura erudita, ou seja, reconhecê-la como produto da
história, seus vínculos de classe etc. (BOURDIEU, 2007b, p. 32).
Esse reconhecimento, por sua vez, não invalidaria as qualidades
essenciais da cultura erudita.
É possível, também, colher nos textos de Bourdieu
indicações de critérios para sugerir a “universalidade” de elementos
da cultura erudita, por exemplo, quando ele pensa a “grande
arte” (aquela que faz parte da cultura erudita). Numa entrevista,
presente no livro El sentido social del gusto: elementos para uma
sociologia de la cultura, Bourdieu parece sugerir que “(...) el arte
culto es mas universal” do que a “arte vulgar”, de “gosto vulgar”
(2010, p. 250). Bourdieu insinua que haveria uma superioridade
da “grande arte” frente às demais. Um critério ao qual recorre
para definir isso é o do quantum de “história” que as obras de
cada uma das artes carregaria. Isto é, o quanto ela representaria
de acúmulo de história da arte feita antes dela, à qual ela dá
continuidade. Segundo Bourdieu (2010, p. 250), haveria uma
condição cumulativa na arte (nas plásticas, na poesia, na literatura).
A medição, a “prova dos nove” desse acúmulo, aparece no desafio
de acessar e apreciar tais obras.
Vê-se uma diferença entre aquela obra “sem história” (obra
inicial, primária, experimental, cópia, reflexo apenas da grande arte

119 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
etc.) que é de apreensão imediata, direta, sem distanciamento e
aquela, a da grande arte, que só é acessível se se domina toda a
história da arte anterior, isto é, o contexto de sua produção, toda a
série de dificuldades, de tentativas e refutações, das superações que
foram necessárias para se chegar ao presente. O caso da Ópera é
evidente: sem dominar tudo o que a envolve (contexto, referências
históricas, personagens envolvidos etc.), ela não é aproveitada.

Cultura erudita: cultura legítima?

Dentro desse contexto de análise, “cultura erudita”


ou “cultura nobre” (BOURDIEU, 2007c, p. 299) seria, para
Bourdieu, o mesmo que “cultura legítima” ou “arte legítima”?
Provavelmente não. Quando ele utiliza o termo “artes legítimas”,
muitas vezes, está em pauta o uso político de elementos da cultura
erudita para a promoção da distinção social, da hierarquização
social (BOURDIEU, 2007b, p.23-27). Refere-se àquilo que é
constituído ou referendado no campo específico pelos “detentores
da legitimidade artística” (BOURDIEU, 2007b, p. 32). Por outro
lado, em boa parte dos casos, o uso, por Bourdieu, do termo
“cultura erudita” não estaria, a priori, carregado dessa conotação
política negativa. Seria uma nominação a uma cultura específica
em si que, nos períodos das análises que Bourdieu efetuou,
coincidia com aquilo que carregava a “legitimidade artística”
(BOURDIEU, 2007b, p. 38), ou ainda, diria respeito àqueles
“(...) bens simbólicos que uma formação social seleciona como
dignos de serem desejados e possuídos” (BOURDIEU, 2007c, p.
297). Para se referir a tais bens, Bourdieu cita o museu, o teatro,
o concerto, o cinema de arte (...)” (BOURDIEU, 2007c, p. 302).
Um exemplo dessa última posição de Bourdieu poderia
ser visto na ocasião em que faz um alerta, em 1999, contra o

120 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
desmonte do Estado de Bem-estar na Europa, provocado pelo
neoliberalismo. Destacando a relevância de conquistas como a
previdência social, o seguro contra acidentes de trabalho e o seguro
saúde, Bourdieu (2002, p. 22), para mostrar a importância dessas
conquistas, recorre a uma analogia com um item da cultura erudita,
demonstrando o reconhecimento da relevância desta: “[Essas
conquistas do Estado de Bem-estar são] descritas como arcaicas,
como velharias européias, estão em perigo, mas são socialmente
tão importantes quanto a Nona Sinfonia”.

Sobre a cultura popular e a “estética popular”

Parece que Bourdieu distingue a “estética popular” daquilo


que ele denomina “gosto puro”, sugerindo ser a estética popular
uma estética “em si” e não “para si”. Quer dizer, uma estética que
prioriza uma “continuidade” entre a arte e a vida, o que implicaria
a subordinação da forma à função. Uma estética que mostra
preferências por expressões artísticas e experiências estéticas
menos formalizadas e menos eufemísticas e preferências por
aquelas obras que oferecem satisfações mais diretas e imediatas.
Uma estética que, em seus julgamentos sobre a obra de arte,
prioriza referências às normas da moral ou do decoro. Tudo isso
contra o “desinteresse”, o “desprendimento”, o “prazer”, o “deleite”,
o “distanciamento”, a “gratuidade” e a “ascese” da “estética pura”
(BOURDIEU, 2007b, p. 12).

Ao aplicar às obras legítimas, os esquemas do ethos que são válidos


para as circunstâncias comuns da vida, e ao operar, assim, uma
redução sistemática das coisas da arte ou coisas da vida, o gosto
popular e a própria seriedade (ou ingenuidade) que ele investe
nas ficções e representações indicam o contrário que o gosto puro

121 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
opera [,] uma suspensão ‘naive’ que é a dimensão de uma relação
quase lúdica com as necessidades do mundo. Poder-se-ia dizer
que os intelectuais [representantes do “gosto puro”] [acreditam]
mais na representação – literatura, teatro, pintura – que nas coisas
representadas, ao passo que o ‘povo’ exige, antes de tudo, que
as representações e as convenções que as regulam lhe permitam
acreditar ‘naivemente’ nas coisas representadas (BOURDIEU,
2007b, p. 12-13).

Bourdieu (2007b) sugere que “[...] os membros das classes


populares, cuja expectativa em relação à imagem é que ela
desempenhe uma função, nem que seja a de signo, manifestam
em todos os seus julgamentos a referência, quase sempre
explícita, às normas da moral ou do decoro” (p. 43). Desse modo,
anota Bourdieu, a “estética popular” é o “[...] lado oposto ao
desprendimento do esteta” (p. 37). Este autor fala, por exemplo,
em “[...] canções desprovidas de qualquer tipo de ambição ou de
pretensões artísticas” para se referir ao tipo de canção ouvida pelo
“gosto popular” (BOURDIEU, 2007b, p. 21).

[...] Bourdieu mostra que no campo das artes (...) existe uma
oposição entre, de um lado, uma estética popular fundada sobre a
continuidade da arte e da vida e, de outro, uma estética das classes
superiores que se define pelo distanciamento, a ‘naturalidade’, a
leitura de segundo grau em relação à arte. Os mais desprovidos
de competência e de códigos simbólicos tendem a aplicar à arte os
esquemas que estruturam sua percepção da existência ordinária.
Assim, em matéria de cinema, o público popular prefere o
semelhante, o verossímel; em matéria de fotografia, tende a preferir
aquelas que retratam os momentos fortes da vida, como as de
primeira comunhão, rejeitadas como ‘cafonas’ pelos diplomados
(LOYOLA, 2002, p. 73-74).

122 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
Segundo a interpretação de Jourdain e Naulin (2017),
para Bourdieu, o gosto popular não existe positivamente. Ele não
passa de uma degradação do gosto dominante. O gosto popular
se limita aos

[...] fragmentos esparsos de uma cultura erudita mais ou menos


antiga [..] selecionados e reinterpretados evidentemente em função
do habitus de classe e integrados na visão unitária do mundo que ele
engendra [observada no mobiliário, na organização arquitetônica
do lar, nos quadros e objetos pendurados nas paredes etc.]
(JOURDAIN e NAULIN, 2017, p. 108).

Ainda conforme Jourdain e Naulin (2017), para Bourdieu,


a relação das classes populares com a cultura se caracteriza pela

[...] escolha do necessário. Os meios econômicos limitados dos


trabalhadores os constrangem a contentar-se com um estilo de vida
simples e a privilegiar o prático e o funcional antes que o estético.
Mas mesmo assim, não vivem esse estilo como uma coerção, mas
antes como uma ‘opção’, como um gosto sincero pela simplicidade
(p. 108).

Na entrevista intitulada “Cuestiones sobre el arte a partir de


una escuela de arte cuestionada”, Bourdieu (2010) usa os termos
“pobres em cultura”, “despossuídos culturais” (p. 30), deixando
clara uma posição de diferenciação entre as culturas de classe.
Por certo ele utiliza esses termos tendo como medida a posse de
capital cultural. No artigo “Os excluídos do interior”, Bourdieu
(2012) parece lidar com uma concepção de cultura que supõe
uma determinada cultura como referência, em relação a qual
ele pode observar que os alunos dos subúrbios franceses pobres,
seriam “(...) alunos (...) menos preparados culturalmente” (p. 481)
ou, ainda, “(...) mais desprovidos culturalmente” (BOURDIEU,
2012, p. 523).

123 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
Tomando a cultura erudita como referência, Bourdieu
(2012) pode também falar em “(...) meninos das famílias
culturalmente desfavorecidas” (p. 481) ou, em oposição, referir-se
a “(...) famílias social e culturalmente privilegiadas” (2012, p. 507).
É mirando o capital cultural como parâmetro que Bourdieu fala
em “menos” ou “mais” preparado culturalmente, mais ou menos
provido de cultura. Ou seja, aqui ele situa como referência a cultura
erudita, que é o que ele chama de “capital cultural” (BOURDIEU,
2012, p. 485), cuja pobreza ele considera uma grande desvantagem
na luta por espaços sociais. Por exemplo, quando comenta os
“erros” nas escolhas escolares cometidos pelas famílias pobres e
de imigrantes, “errar”, significa “errar” no “investimento do seu
reduzido capital cultural” (BOURDIEU, 2012, p. 485).
É clara, em Bourdieu (2015, cap. 1), a denúncia da
distribuição desigual, entre as classes, da aptidão para o encontro
inspirado com a obra de arte e, de um modo mais geral, com as
obras de cultura erudita, da “alta” cultura. Observa, por exemplo:

De fato, a estatística de freqüência ao teatro, ao concerto e sobretudo


ao museu (uma vez que neste último caso, talvez seja quase nulo
o efeito de obstáculos econômicos) basta para lembrar que o
legado de bens culturais acumulados e transmitidos pelas gerações
anteriores, pertence realmente (embora seja formalmente oferecido
a todos) aos que detêm os meios para dele se apropriarem, quer
dizer, que os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem
ser apreendidos e possuídos como tais (ao lado das satisfações
simbólicas que acompanham tal posse) por aqueles que detêm o
código que permite decifrá-los. Em outros termos, a apropriação
destes bens supõe a posse prévia dos instrumentos de apropriação”
(BOURDIEU, 2007c, p. 297).

124 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
Contra o relativismo cultural

Escrevendo a respeito da “ideologia carismática” e das


diferenças entre o “olhar estético puro” (dos intelectuais) e o “olhar
ingênuo” (popular), Bourdieu (2007b) anota não “(...) subscrever
um relativismo estético” (p. 35). Observa, ainda:

A tentação de emprestar a coerência de uma estética sistemática às


tomadas de posição objetivamente estéticas das classes populares
não é menos perigosa que a inclinação a deixar-se impor, sem seu
conhecimento, à representação estritamente negativa da visão
popular que se encontra na origem de qualquer estética erudita
(BOURDIEU, 2007b, p. 35).

Durante entrevista realizada em Tókio, Japão, em 1989,


pensando na realidade do campo educacional japonês, Bourdieu
deixa clara sua posição “universalista” contra os particularismos
culturais que se tentam impor como “hegemonia cultural” aos
currículos escolares.

Me parece, en efecto, que en este momento en que Japón afirma su


poder económico, y en el que, as veces, entre algunos intelectuales,
se expressa la tentación de una hegemonia cultural basada en
la afirmación de la ‘particularidad’ japonesa, los intelectuales
progressistas tienen la responsabilidade de ‘enganchar’, si se puede
decir así, la sociedade japonesa al universo y a lo universal. La
discusión con el occidente universalista y racionalista, debe ser
intensificada, y la educación, que en sus contradicciones, pero
también en las possibilidades de acción que encierra, lleva en
si el futuro, debe ser uno de los centros de esta confrontación
(BOURDIEU, 1998, p. 161).

Para realizar tal propósito, aproximar o Japão da


“universalidade ocidental”, Bourdieu sugere:

125 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
Deseo mucho que podarmos organizar la circulación de los honbres
y de las ideas, favorecendo especialmente ci otorgamiento de
becas a jóvenes estudiantes y a jóvenes investigadores, animando
la traducción de obras importantes, multiplicando las ocasiones
de encuentro, emprendiendo investigaciones comunes o paralelas
(em el cuadro, por ejemplo, de un centro de historia y sociologia
comparadas de los sistemas culturales y educativos) (BOURDIEU,
1998, p. 161).

Contra o “populismo estético”

Nesse sentido, Bourdieu (2010) critica aqueles que praticam


o que ele nomina “populismo estético”, isto é, aqueles que invocam
“el gusto del pueblo” para condenar a arte contemporânea e o apoio
estatal à divulgação desta arte. Anota, por exemplo:

Decir, a propósito de la gente del pueblo, que no quiere el arte


moderno, es bastante tonto. De hecho, eso no se há hecho nada para
desarrolhar en ella la libido artística, el amor al arte, la necessidade
de arte, que es una construcción social, un produto de la educación
(p. 31).

Considerações finais

Bourdieu (2010) sugere que dos estudos dele que visam


criticar o monopólio da “diferença cultural” e que criticam o
“fetichismo da cultura” (p. 250)7, poder-se-ia extrair um “(...)
programa humanista” de formação cultural, baseado na busca
pela democratização do “(...) universo do prazer estético” (p.
7
Ideia de que a obra já nasce “culta”, possuindo em si, em essência, o maior valor estético. O
que não seria correto, já que seria sua densidade histórica que permitiria tal demonstração
de “cultivada”. Outra dimensão do “fetichismo da cultura” seria achar que as condições de
acesso à grande arte é assunto apenas de virtude ou de dom, quando tem mais a ver com
o domínio estudado, esforçado ou não, de regras e significados da obra.

126 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
250). Bourdieu (2010) propõe “(...) lutar para universalizar o
acesso ao universal”. Ele quer que “(...) las condiciones de acesso
al ‘gran arte’ [deixem de ser] (...) sólo un assunto de virtude o de
don” (BOURDIEU, p. 251; 2015, p. 92), para que deixe de ser
justificável e justificada a distribuição desigual e legitimadora de
status que marca o quadro das preferências e práticas culturais.

Referências

BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de P.


Bourdieu. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.

BOURDIEU, Pierre. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: Vozes,


s/data.

BOURDIEU. Pierre. Capital cultural, escuela y espacio social.


Tradução de Isabel Jimenez. Buenos Aires/Argentina: Siglo XXI
Editores, 1998.

BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa


Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002.

BOURDIEU, Pierre. O amor pela arte: os museus de arte na Europa


e seu público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Porto
Alegre: Zouk, 2007.

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução


de Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre: Zouk, 2007b.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:


Perspectiva, 2007c.

BOURDIEU, Pierre. El sentido social del gusto: elementos para uma


sociologia de la cultura. Tradução de Alicia Gutiérrez. Buenos Aires/
Argentina: Siglo Veintiuno Editores, 2010.

127 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
BOURDIEU, Pierre (coord.). A miséria do mundo. Tradução de Mateus
S. Soares Azevedo et al. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os


estudantes e a cultura. Tradução de Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 2015.

CATANI, Denise Barbara. A educação como ela é. Revista Educação


– Especial: Biblioteca do Professor n. 5 (Bourdieu). São Paulo: Editora
Segmento, p. 16-25, s.d.

CULT – Revista Brasileira de Cultura, nº. 166, março/2012.

JOURDAIN, Anne; NAULIN, Sidonie. A teoria de Pierre Bourdieu


e seus usos sociológicos. Tradução de Francisco Morás. Rio de Janeiro:
Vozes, 2017.

LENARDÃO, Elsio. A Cultura escolar nos termos de Pierre Bourdieu:


em defesa do conteúdo curricular clássico. In: VIII Congreso
Iberoamericano de Pedagogía: memoria académica / Marisa Álvarez
...[etal.]; compilado por Norberto Fernández Lamarra.-1 ed. -Sáenz
Peña:Universidad Nacional de Tres de Febrero, 2019. Libro digital, PDF.

LOYOLA, Maria Andréa. Bourdieu e a sociologia. In: BOURDIEU,


Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio
de Janeiro: EdUERJ, 2002.

NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio M. Martins. Um


arbitrário cultural dominante. Revista Educação – Especial: Biblioteca
do Professor n. 5 (Bourdieu). São Paulo: Editora Segmento, p. 36-45, s.d.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Cultura dominante, cultura escolar e


multiculturalismo popular. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).
Alienígenas em sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em
educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

SNYDERS, Georges. Escola, classe e luta de classes. Tradução de Maria


Helena Albanan. Lisboa/Portugal: Ed. Moraes, 1977.

128 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
SNYDERS, Georges. A escola pode ensinar as alegrias da música?
Tradução de Maria Felisminda de Rezende e Fusari. São Paulo: Cortez,
2008.

SOARES. Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São


Paulo: Ática, 1994.

129 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
130 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p.113-130– jan./jul. 2019
PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA NA AQUISIÇÃO
DO SISTEMA DE ENSINO APRENDE BRASIL

Anieli Sandaniel1
Maria José Ferreira Ruiz2

RESUMO: O estudo3 problematiza as parcerias entre o setor público e o setor


privado, na aquisição dos sistemas de ensino apostilados. Tem o objetivo de analisar
as interferências do setor privado na educação pública e as consequências para os
sistemas municipais de educação, com foco na aquisição do Sistema de Ensino Aprende
Brasil. Para obtenção de dados realizou pesquisa bibliográfica, análise documental
e entrevistas. Conclui que a educação pública está cada vez mais sendo invadida
pela lógica dos grupos privados empresariais e que está em curso um processo de
mercadificação da educação, ou seja, as escolas públicas vêm se tornando espaços propícios
para a ampliação das grandes corporações do mercado editorial.
Palavras-chave: Parceria público-privada. Sistema apostilado. Política educacional.
Gestão da educação.

ABSTRACT: The study discusses the partnerships between the public and private
sectors in the acquisition of apostille education systems. It aims to analyze the
interference of the private sector in public education and the consequences for municipal
education systems, focusing on the acquisition of the Education system learns Brazil.
In order to obtain data, she performed bibliographic research, document analysis and
interviews. It concludes that public education is increasingly being invaded by the
logic of private business groups and that a process of commercialization of education
is underway, that is, public schools have become favorable spaces for the expansion of
large corporations in the publishing market.
Keywords: Public-private partnership. Apostilled system. Educational politics.
Management of education.

1
Mestranda em Educação, no Programa de Pós-graduação da Universidade Estadual de
Londrina, vinculada ao Grupo de Pesquisa/CNPQ “Estado, políticas públicas e gestão da
educação”.
2
Pós-doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutorado
em Educação pela UNESP/Marília. Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de
Londrina. Docente do curso de Pedagogia e do programa de Pós-Graduação em Educação da
UEL. Líder do Grupo de Pesquisa/CNPQ “Estado, políticas públicas e gestão da educação”.
3
Estudo financiado pelo CNPQ.

131 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
Introdução
No texto, discutimos sobre as parcerias público-privadas e
suas interferências nas políticas educacionais, tendo como foco
a aquisição do Sistema de Ensino Aprende Brasil, do Grupo
Positivo. Este sistema de ensino vem sendo adquirido em grande
escala por secretarias municipais de educação. Utilizamos o termo
parceria público-privada para representar a relação existente
entre a administração pública municipal e a instituição privada
que edita e comercializa o referido sistema apostilado de ensino.
Isso não se restringe a um simples contrato de compra e venda,
mas sim à transferência da seleção do conteúdo pedagógico e
metodológico da escola pública para o setor privado, visando
que a escola pública atinja os objetivos almejados pelo interesse
privado. Essa interferência do setor privado na educação pública
tem se materializado também na proposição e influência do setor
empresarial no rumo das políticas públicas para a educação4
(RUIZ; PERONI, 2017).
Diante disso, este estudo parte da seguinte problemática:
Quais os motivos que levam as secretarias municipais de educação
a realizarem parcerias público-privadas na aquisição dos sistemas
de ensino apostilados? Nosso objetivo mais amplo é analisar as
manifestações da relação entre o setor público e o setor privado
na educação pública. Temos ainda outro objetivo mais específico,
a saber: analisar a relação público-privada e as consequências da
aquisição do Sistema de Ensino Aprende Brasil, em um sistema
municipal de ensino, de município5 localizado ao norte do Estado
do Paraná, na região metropolitana da cidade de Londrina. Como

4
A exemplo do Movimento Todos pela Educação.
5
O nome do município é omitido para preservar o anonimato das funcionárias municipais
entrevistadas neste estudo, uma vez que faremos referências a seus cargos e ano de ocupação
e esses dados identificariam os sujeitos da pesquisa.

132 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
procedimentos metodológicos utilizamos a pesquisa bibliográfica,
a análise documental e entrevistas realizadas com a atual secretária
da educação do referido município e também com a secretária de
educação da gestão municipal anterior.
Tendo isso em vista, o artigo está estruturado em quatro
seções. Inicialmente aborda a discussão da redefinição do papel
do Estado que institui diferentes formas de parcerias entre os
setores público e privado. A seguir, na segunda seção, destaca
as decorrências destas parcerias para a educação pública. Na
terceira, apresenta o caso do Grupo Positivo e de seu Sistema de
Ensino Aprende Brasil. A quarta e última seção destaca a análise
fundamentada do processo de aquisição do sistema apostilado
pela secretaria municipal de educação, do município que serviu
de espaço empírico para coleta de dados.

Redefinição do papel do Estado, terceira via e terceiro


setor

As parcerias público-privado são amplamente difundidas


no Brasil com mais ênfase, a partir de 1990. Segundo Peroni
(2013, p. 9), existem muitas formas dessas parcerias acontecerem,
dentre elas

[...] parcerias entre instituições do terceiro setor e sistemas públicos


de educação, a assessoria de instituições privadas que influenciam
nas políticas públicas brasileiras e os programas governamentais
que trazem a lógica gerencial do mercado para o sistema público
de educação.

Essas parcerias são expressões da reconfiguração do papel


do Estado, que aos poucos deixa de ser o provedor dos serviços

133 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
públicos e passa a ofertá-los por meio de parcerias com o setor
privado, com entidades filantrópicas e outras organizações da
sociedade, que atuam no espaço não estatal. Quando o Estado
estabelece estas parcerias, ele desonera muitas de suas funções e
o dinheiro público pode ser repassado para as entidades privadas
e/ou filantrópicas, para executarem as funções que deveriam ser
executadas por ele.
Peroni (2013) parte da ideia de que as parcerias público-
privadas ocorrem devido à profunda crise econômica provocada
pelo capitalismo. A crise do capitalismo é uma crise estrutural
(MÉSZÁROS, 2009) e quando se acirra provoca um desastre na
área social. Os grupos mais prejudicados pela consequência desta
crise são os trabalhadores que sofrem pela desregulamentação dos
seus direitos trabalhistas, enquanto o Estado, do qual se cobra
o ajuste fiscal, se endivida ainda mais ao financiar a crise do
capital, por meio do interminável pagamento das taxas de juros
da dívida pública6, que segue sem ser auditada em grande parte
dos países capitalistas. Assim, o Estado protege os interesses dos
detentores do capital, salvaguardando os títulos da dívida pública,
enquanto para os trabalhadores em geral acirra-se a precarização
das condições de trabalho e salários. Diante disso, o Estado se
torna máximo para o capital e mínimo para a oferta dos direitos
sociais, como educação e saúde pública.

6
A dívida pública abrange empréstimos contraídos pelo Estado junto às instituições
financeiras públicas ou privadas, no mercado financeiro interno ou externo, bem como
junto às empresas, organismos nacionais e internacionais, pessoas ou outros governos.
A dívida pública federal pode ser formalizada por meio de contratos celebrados entre
as partes, ou por meio da oferta de títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional.
Teoricamente, a dívida pública é classificada como dívida interna ou dívida externa, de
acordo com a localização dos seus credores e com a moeda envolvida nas operações.
http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2013/10/FAQ-Auditoria-
Cidad%C3%A3.pdf

134 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
No entanto, a retórica neoliberal propaga que a crise está
localizada no Estado, porque ele investe altos valores em políticas
sociais, ao tentar atender as demandas da população. Nesta
perspectiva, as políticas sociais atrapalham, uma vez que não geram
lucro e, nesta lógica perversa, são consideradas “um verdadeiro
saque à propriedade privada, pois são formas de distribuição de
renda, além de também atrapalhar o livre andamento do mercado”
(PERONI, 2013, p. 12).
Nesta perspectiva, estimula-se a meritocracia e postula-se
que os indivíduos que não tiveram sucesso, não se esforçaram
para romper o ciclo remitente da pobreza. Não se considera
assim, que as condições sociais das quais partem são diferentes e
interferem no fracasso ou no sucesso que terão no mundo social
do trabalho. De acordo com o ponto de vista neoliberal, tudo é
focado no mérito individual, e não nas condições existentes para
que os sujeitos consigam ter acesso aos bens sociais e econômicos.
Em um contexto de avanços das forças neoliberais que
se alastram pelos países de capitalismo avançado, no Brasil, o
presidente Fernando Henrique Cardoso é eleito, em 1995, para
ocupar a Presidência da República. É este governo que propõe
o projeto de reforma do Estado brasileiro, “uma verdadeira
contra-reforma, um retrocesso histórico dos direitos adquiridos
civis e trabalhistas” (MONTAÑO, 2010, p. 36). Esta reforma
faz com que o Estado siga se desresponsabilizando ainda mais
de suas funções sociais e é pautada em três eixos: a privatização,
a terceirização e a publicização.
Terceirização, conforme consta no documento nominado
Plano Diretor da Reforma do Estado Brasileiro, é o processo
de transferência para o setor privado dos serviços auxiliares ou
de apoio. A privatização é entendida como a transferência e/ou

135 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
venda de empresas estatais para o setor privado da economia.
A publicização, por sua vez, consiste em transferir para o setor
público não estatal7, os serviços sociais e científicos que o Estado
deveria prestar (BRASIL, 1995).
Esse movimento torna cada vez mais tênue e confuso
o limite entre o setor público e o setor privado (PERONI,
2013). Com isso estimula-se diferentes formas de “hibridismos
terminológicos”, ou seja, entidades privadas passam a ser chamadas
de públicas-não-estatais, enquanto o setor público passa a assumir
ainda mais a forma de operar do setor privado, tornando-se
espaços de quase-mercado.
A reforma do Estado no Brasil é efetivada com base nas
perspectivas da Terceira Via, que, conforme um de seus mentores,
Giddens (2001), seria uma forma de superar a socialdemocracia do
Estado provedor keynesiano8, para a qual o Estado é responsável
pelo bem-estar social. Por outro lado, seria também uma forma de
superar a ortodoxia do neoliberalismo, que entende que o mercado
deve ser o espaço de oferta dos bens sociais, onde os sujeitos podem
adquiri-los a partir de suas condições e posses privadas.
Nesta perspectiva, insere-se o terceiro setor como principal
executor das políticas sociais. Conforme Montaño, o terceiro setor

7
Público não estatal porque são espaços que atendem à população com serviços públicos,
mas, não fazem parte da máquina estatal.
8
“Conjunto de idéias que propunham a intervenção estatal na vida econômica com o
objetivo de conduzir a um regime de pleno emprego. As teorias de John Maynard Keynes
tiveram enorme influência na renovação das teorias clássicas e na reformulação da política
de livre mercado. Acreditava que a economia seguiria o caminho do pleno emprego, sendo
o desemprego uma situação temporária que desapareceria graças às forças do mercado”.
http://www.economiabr.net/teoria_escolas/teoria_keynesiana.html.

136 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
[...] coloca-se como diferente do estado e da empresa privada,
porém dentro do sistema capitalista [...] mesmo que de forma
encoberta e indiretamente, não está à margem da lógica do capital
e do lucro privado (e até do poder estatal). Ele funciona à nova
estratégia hegemônica do capital e, portanto, não é alternativo, e
sim integrado ao sistema (MONTAÑO, 2010, p. 157).

Desta forma, a relação do setor público (Estado) com


o terceiro setor (sociedade organizada) foi ficando cada vez
mais forte. Neste processo de mudanças, as Organizações não
governamentais (ONG) contribuem para preencher o vácuo
deixado pelo Estado, em relação às políticas públicas. Para
Montaño (2010), em sua origem, grande parte das ONG
eram espaços contestatórios e apoiavam os movimentos sociais
progressistas, envolvidos com a redistribuição de riquezas. Deste
modo, eram espaços de ligação entre Estado e sociedade (terceiro
setor). Mas, com o tempo, muitas delas passam a fazer parcerias
com o Estado e assumem a lógica do mercado (MONTAÑO,
2010). Assim, elas podem até fornecer bons atendimentos e
contribuir para o desenvolvimento de boas políticas sociais, mas,
por vezes, acabam se limitando aos desejos dos grupos empresariais
nacionais e internacionais, de onde vem parte de seus recursos
financeiros, que também podem ser providos pelos recursos dos
cofres públicos.

Parcerias público-privadas na área da educação

As manifestações das parcerias público-privadas ocorrem


também na educação pública que igualmente sofre as consequências
da redefinição do papel do Estado. As organizações do terceiro
setor atuam na área da educação, estabelecendo parcerias com

137 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
o setor público, principalmente nas etapas de escolarização que
ainda não foram democratizadas, a exemplo da educação infantil,
mas não apenas nela. Muitos municípios, quando tiveram que
atender esta etapa da educação, em consequência do processo de
municipalização, passaram a ofertar majoritariamente a educação
infantil em sistema de parceria com instituições do terceiro setor,
que atuam por meio de recursos privados via filantropia, mas
recebem também recursos públicos.
Contudo existem outras formas de parcerias na área
da educação. Além da parceria com o terceiro setor, na qual o
fenômeno é visto de forma mais explícita, elas podem ocorrer
também de forma mais escamoteada, endógena (dentro da
escola), a exemplo das Associações de Pais e Mestres (APMF),
responsáveis por gerenciar o recurso público do Programa
Dinheiro Direto na Escola (PDDE), do Fundo Rotativo, mas,
também, configuram-se como portas abertas para receber recursos
privados de toda ordem, por meio da cantina escolar, promoções,
campanhas e festas realizadas nas escola públicas (ADRIÃO;
PERONI, 2007).
Outra forma de parceria são aquelas estabelecidas com
instituições que estão fora da escola, mas que interferem dentro
desta instituição com a lógica empresarial, a exemplo do Instituto
Ayrton Sena (COMERLATTO; CAETANO, 2013). Nesta
forma de parceria, percebe-se a diminuição da autonomia do
professor que passa a receber materiais e avaliações padronizadas
para utilizar com seus alunos em sala de aula. Há ainda a indução
da lógica da premiação que estimula a competitividade entre
os alunos e os professores. Outra questão se refere às metas
estabelecidas por este Instituto que dá ênfase no resultado e não
no processo de construção do saber.

138 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
As parcerias público-privadas na área da educação são
realizadas por outros grupos empresariais. Caso análogo são as
parcerias com o Instituto Unibanco, que vêm interferindo na
condução do conteúdo e da forma de programas públicos para o
ensino médio e educação profissional.

Assim, o controle social e a coletivização das decisões, tão


importantes para a construção da democracia no país, acabam
cedendo lugar ao controle externo de instituições privadas, que
determinam o conteúdo das políticas públicas de educação, desde
o âmbito da legislação e da organização do sistema educacional
nacional até as práticas escolares cotidianas (PERONI, 2013, p. 28).

Sendo assim, percebe-se que, nas relações público-privadas,


a gestão democrática, objeto tão caro para a área da educação, é
fragilizada e o que prevalece, nestes casos, são as decisões dos
empresários que interferem na área da educação pública.
As parcerias público-privadas, na área da educação, ainda
ocorrem via programas governamentais. A título de exemplo,
citamos o PROINFO (Programa Nacional de Tecnologia
Educacional) instituído em 1997, com o objetivo de estimular o
uso de tecnologias para enriquecer as atividades pedagógicas do
ensino fundamental e médio. Quando o governo propõe este e
outros programas, abre editais para que as empresas privadas se
cadastrem para estabelecer contratos de parcerias. Esses editais
estabelecem chamadas públicas que avaliam e pré-qualificam as
empresas que pretendem ser parceiras do Estado, a fim de que suas
tecnologias possam ser utilizadas pela escola pública pelos gestores
educacionais, com finalidade de “apoiar os sistemas públicos de
ensino na busca por soluções que promovam a qualidade da
educação” (MONTAÑO, 2013, p. 268).

139 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
Essas parcerias são reforçadas com a promulgação do Plano
de Desenvolvimento da Educação (PDE), em 2007, que estabelece
o Plano de Ações Articuladas (PAR), sendo este um planejamento
estratégico a ser realizado pelos estados e municípios. O PAR
apresenta o Guia de Tecnologias Educacionais “documento que
contém a descrição de diversas tecnologias [...] acerca de materiais
pedagógicos elaborados por instituições e empresas públicas
e privadas que são qualificadas pelo MEC” (BERNARDI;
UCZAK; ROSSI, 2015, p. 62).
Alguns grupos se destacam historicamente na oferta de
tecnologias educacionais, dentre eles, o Grupo Pearson, o Grupo
Objetivo, a Abril Educação (atual Somos Educação), o Grupo
Positivo, e outros. Esses grupos movimentam bilhões de reais,
na bolsa de valores (ADRIÃO; GARCIA; BORGHI et al.,
2015). São corporações membros de um mercado complexo,
que envolve grandes negociações e geram muito lucro. Assim, o
vultuoso número de matrículas nas escolas públicas representa
um mercado promissor para estes grupos privados que ofertam
materiais didáticos de fácil consumo.

O caso do Grupo Positivo

Neste estudo, o foco recai sobre o Grupo Positivo. De


acordo com Montano, este grupo foi

[...] fundado na década de 1970, por um grupo de oito professores,


iniciou com um curso pré-vestibular e uma gráfica para impressão de
material didático. Posteriormente, ampliou sua atuação educacional
abrindo uma escola de Ensino Médio, investindo na produção
de microcomputadores [...]. Na década de 1990, então, cria uma
universidade e expansão da produção de microcomputadores para
atendimento da demanda das escolas conveniadas privadas, aliando
a oferta de material impresso e equipamentos informatizados.

140 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
Concomitante a isso, a partir de uma reorganização, passou
a distribuir seu sistema de ensino para escolas conveniadas
(MONTAÑO, 2013, p. 268).

Em 2014, o Grupo Positivo estabeleceu uma parceria com a


Blackboard9. A “parceria entre as duas companhias tem por objetivo
fortalecer os negócios da Positivo Informática, Universidade
Positivo e a Editora Positivo no segmento de educação a distância”
(EVEF, 2012, p. 4). A Positivo Informática também é parceira da
Vaio Corporation. Assim o Grupo pode transmitir videoaulas para
preparação dos alunos para o vestibular e para o Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM).
O sistema de ensino Positivo passou a vender seus produtos
para o sistema público de ensino somente a partir de 2001. O
Grupo Positivo não vende seus produtos somente para o Brasil,
mas também para outros países, atendendo a área educacional,
produtos de informática e gráfico editorial. Para ter acesso aos
produtos da área educacional, existem quatro portais: “Aprende
Brasil, Portal Educacional, Portal Universitário e Portal Positivo”
(MONTAÑO, 2013, p. 269). Dessa forma, o Positivo atualmente,
promove

[...] para a educação pública e privada, desde a fabricação de


microcomputadores até a produção de softwares, aplicativos
educacionais e desenvolvimento de portais de internet. Hoje seus
produtos estão direcionados para áreas do ensino-aprendizagem,
formação de profissionais da educação, gestão da educação e portais
educacionais (MONTAÑO, 2013, p. 269).

9
[...] Blackboard uma das maiores empresas do mundo do setor de soluções em tecnologia
para instituições de ensino [...] suas soluções estão presentes em mais de 70 países e já é usada
por milhões de pessoas. Elas contemplam sistemas de ensino tradicionais e aulas virtuais por
meio de conferências on-line. No Brasil, a Blackboard é representada exclusivamente pelo
Grupo A Educação, holding de soluções educacionais (EVEF, 2012, p. 4).

141 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
À vista disso, no sistema voltado para a educação, existe a
divisão por áreas de conhecimento: exatas, humanas, linguagens,
entre outras, e dentro delas podem ser encontrados planos de
aula, atividades, etc. Para acessar este portal, é necessário ter um
programa específico que precisa ser adquirido pela mantenedora
da escola, quando a escola é privada, e pela Secretaria da Educação,
quando a escola é pública.
O sistema de ensino desse Grupo, segundo o site do
Positivo, tem uma metodologia dinâmica e atual que privilegia “o
conhecimento, a reflexão e a aplicação prática dos conteúdos no dia
a dia dos estudantes” (POSITIVO, 2016). E assim foi ganhando
espaço, se expandindo inicialmente por várias cidades do estado
do Paraná, depois por outros estados do Brasil.
No ano de 2012, quando completou 40 anos, chegou a
atender a marca de 1 milhão de alunos. Em vista de todo esse
crescimento, o Grupo Positivo criou o Sistema de Ensino Aprende
Brasil, que é voltado para a educação pública do país. Montaño
(2013) fez uma análise sobre os recursos que o sistema Positivo
oferece para o sistema público de ensino e para a rede privada e
pôde observar que existem alguns aspectos que se diferenciam na
oferta para um e para o outro, mas, basicamente o que se tem é uma

[...] padronização para todas as escolas com o objetivo de


funcionamento do sistema implantado e com a padronização
de metodologia que desconsidera a complexidade da escola, o
compromisso e a construção de um projeto político-pedagógico
coletivo, longe do incentivo à autonomia dos professores, além de
uma padronização curricular desconsiderando as diferenças sociais
e culturais nos municípios e regiões (MONTAÑO, 2013, p. 271).

O sistema possibilita ainda ao gestor na escola privada


ou ao prefeito e à secretária da educação do ensino público,

142 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
o monitoramento do rendimento da educação do município.
Esse monitoramento, no ensino público é feito por um portal
denominado Sistema de Ensino Aprende Brasil. Esse mesmo
portal fornece ao Positivo “as informações de todos os sistemas
públicos onde atuam, o que lhe permite a apropriação de uma
base de dados significativa, que lhe dá subsídios para interferir
nas políticas públicas educacionais” (MONTAÑO, 2013, p. 271).
O Sistema de Ensino Aprende Brasil é voltado
exclusivamente para as escolas públicas brasileiras; segundo o
site do Positivo,

[...] este sistema chega hoje aos locais mais distantes, de norte
a sul do Brasil, e a sua utilização vem crescendo ano após ano
nos municípios brasileiros que reconhecem a sua qualidade
incontestável. A eficiência do Sistema é medida pelo impacto no
IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – que
é melhorado ano após ano por todos os municípios que já o
utilizam (POSITIVO, 2016, p. 11).

Contudo, segundo Montaño (2013), este Sistema impõe


implicações rigorosas em relação aos conteúdos e planejamentos,
sendo igual para todas as escolas, desconsiderando as diferenças
sociais e regionais existentes. Diante disso, o professor e a escola
passam a ser apenas executores de tarefas, não considerando
as características da comunidade que atendem. O sistema de
monitoramento é feito de acordo com o acesso dos alunos e
dos professores ao portal, monitorando assim as atividades mais
acessadas e o tempo que eles permaneceram ali, além de outros
fatores. O desenvolvimento da educação é acompanhado por
meio de relatório circunstanciado elaborado pelos professores
diariamente e entregue para os monitores do Positivo.
O Grupo Positivo tem ainda o Sistema de Avaliação Hábile,

143 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
que integra as escolas que aderirem ao seu sistema de ensino.
Sendo assim, segundo o site do Positivo, essa avaliação é um novo
serviço pedagógico que

[...] permite que a escola tenha um panorama geral das atividades


desenvolvidas e de sua sistemática de ensino, assim como do
aproveitamento e desempenho dos alunos. Com base nessa análise,
a escola pode corrigir trajetórias, planejar ações e aperfeiçoar
estratégias de ensino e abordagem de conteúdos em sala de aula,
com vistas ao pleno desenvolvimento dos estudantes. O Hábile
consiste num conjunto de testes e questionários aplicados aos
alunos do 4º ao 9º ano do Ensino Fundamental, nas disciplinas de
Língua Portuguesa, Matemática e Ciências. Professores e diretores
também são avaliados pelo Hábile (POSITIVO, 2016, p. 4).

Diante disso, observa-se que, além de padronizar o


conteúdo, o método e o material utilizados pelas escolas públicas,
ocorre ainda a padronização do sistema de avaliação, o que rompe
com a proposta de construção do processo coletivo na educação
pública, no qual os sujeitos da escola possam ter autonomia de
planejamento e ação a partir daquilo que é sistematizado no
Projeto Político Pedagógico (PPP), que nesta perspectiva torna-
se um documento sem nenhum valor.
Montaño (2013) entende que, com esse processo, a tão
frágil gestão democrática acaba sendo ofuscada dentro do
ambiente escolar, pois, os indivíduos que compõem a escola, não
tomam nenhum tipo de decisão, eles somente obedecem ao que
é imposto.

O contrassenso expresso na aquisição de sistemas de ensino


padronizados, à revelia do que estabelecem os princípios da
legislação educacional para uma educação pública, está para o
desmantelamento de uma escola que se entende enquanto lugar

144 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
de concepção de cultura, construção de aprendizagens, concepção,
realização e avaliação de seu projeto educativo, que organiza sua
prática pedagógica com base na sua comunidade educacional e
diversidade nela expressa (MONTAÑO, 2013, p. 274).

Além de todas essas mazelas, a adoção de sistemas apostilados


permite ainda o repasse de bilhões de reais do dinheiro público
para essas empresas privadas (ADRIÃO; GARCIA; BORGUI
et al, 2015). Assim, as empresas entram no campo educacional
com toda força sem respeitar as características educacionais de
cada região e escola. Mas, a grande maioria de municípios não têm
uma visão crítica sobre elas, e acabam se filiando a estas empresas
para atender as suas necessidades educacionais, acreditando ser a
melhor escolha. Nessa perspectiva, o número de municípios que
contratam essas empresas aumenta cada vez mais. No caso do
estado do Paraná, fizemos um levantamento e verificamos que 34
municípios utilizam o Sistema de Ensino Aprende Brasil (SABE).
Dentre estes municípios, selecionamos um localizado ao norte
deste Estado, pertencente à região metropolitana da cidade de
Londrina, para assim podermos coletar os dados empíricos, por
meio de entrevistas semiestruturadas.

Análise fundamentada do processo de aquisição do


sistema apostilado

Para entender o processo de aquisição do Sistema Aprende


Brasil, do Grupo Positivo, em um município específico do
Estado do Paraná, realizamos entrevistas com a atual e com a
ex-secretária de educação. As entrevistas foram feitas com as duas
secretárias, porque foi a ex-secretária de educação do município
que implantou o ensino apostilado. Então decidimos entrevistá-

145 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
la para saber como foi o início da implantação desse sistema
apostilado. A contribuição da atual secretária se deu no sentido
de compreendermos como está o processo atualmente.
O ensino apostilado neste município teve início em 2009.
Mesmo com a mudança da gestão municipal, no ano de 2017, o
Sistema de Ensino Aprende Brasil do Grupo Positivo, continuou
no município, completando assim oito anos de parceria. Sendo
assim, nas entrevistas e análise documental, percebemos que alguns
objetivos almejados com o ensino apostilado, na gestão municipal
anterior, continuaram os mesmos e outros foram acrescentados.
O que permaneceu se refere à garantia de ensino de qualidade a
todos os alunos do município, e a este objetivo foi acrescentado:
conseguir com que os alunos cheguem ao terceiro ano totalmente
alfabetizados e a implementação do método fônico com qualidade.
Desde o início, o processo de escolha do sistema de ensino
apostilado acontece por licitação. Para isso, a prefeitura abre
edital licitatório, com aspectos sobre o que a prefeitura quer que
o sistema de ensino tenha/disponibilize ao município. A cada
ano o município acrescenta critérios novos aos já existentes,
buscando atender as necessidades das escolas, que vão surgindo
ao longo do ano letivo. Segundo a atual secretária de educação,
um dos principais critérios do edital do ano de 2016 para
contratação do sistema apostilado para 2017, foi conter o método
de alfabetização fônico, englobando material para professores e
alunos e capacitação para os professores sobre o método.
Após essa etapa, os sistemas que se interessarem pela
licitação proposta pela prefeitura passam por análise técnica/
pedagógica promovida pelo departamento de educação. Essa
análise visa observar se o sistema atende aos critérios da prefeitura.

146 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
A etapa seguinte é a publicação de edital, no qual conste a empresa
selecionada em primeiro lugar, e as demais empresas têm um prazo
para recorrer em relação ao resultado.
Na fase seguinte, as empresas enviam os envelopes com os
orçamentos que são analisados pelo departamento de compras, a
que tiver um orçamento com melhor preço, vence. Ou seja, mesmo
que a empresa seja mais favorável no quesito pedagógico, se ela
for a mais cara, perde o processo e a mais barata vence a licitação.
Sendo assim, percebe-se que o que impera é a racionalidade
técnica e instrumental que visa ao financeiro e não aos aspectos
didáticos e pedagógicos do material ofertado10.
A justificativa para aquisição do sistema apostilado neste
município é a necessidade de padronização dos conteúdos
escolares, ou seja, todas as escolas do município devem trabalhar o
mesmo conteúdo ao mesmo tempo, tendo assim uma continuidade
dos conteúdos de um ano para o outro e garantia de que todos
os conteúdos estabelecidos pelo MEC serão trabalhados, e
consequentemente, espera-se melhorar os aspectos quantitativos,
isto é, as notas nas avaliações externas.
Diante disso, entendemos que seja relevante as escolas do
município trabalharem os mesmos conteúdos ao mesmo tempo,
pois, se o aluno mudar de uma escola para outra, ficará mais fácil
para acompanhar o conteúdo. No entanto, as formas e o tempo
de trabalhar esses conteúdos não poderiam ser iguais como está
posto, pois, cada escola atende uma demanda de alunos diferente
e deve buscar atender as necessidades deles, formando cidadãos
10
No período de entrevistas (início de fevereiro de 2017), a prefeitura estava ainda
analisando os orçamentos das empresas de ensino apostilado e decidindo quem iria ser a
escolhida. Quem estava na frente até o momento de encerramento das entrevistas era o
MAXI (Somos Educação). Após a finalização das entrevistas, entramos em contato com
a secretária de educação para saber quem tinha ganhado a licitação, e quem ganhou foi o
Sistema MAXI (Somos Educação).

147 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
conhecedores dos conhecimentos científicos e da sua condição
sócio-histórica, e não indivíduos alheios aos processos sociais em
que estão imersos.
Percebemos também que há cobrança da secretaria municipal
sobre os índices educacionais que o município obtém, em relação
ao ensino. O foco não é se o aluno adquiriu conhecimento ou não,
mas sim, se o município e as escolas alcançaram a meta proposta
pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB).
Segundo Montaño (2013), a padronização de metodologias e
conteúdo desconsidera a complexidade da escola, como se todas
elas seguissem um padrão único.
Sendo assim, verificamos que a prefeitura deste município
decide que vai implantar o sistema, implanta, e os professores só
aprendem de forma rasa, em curso de curta duração ofertado pelo
Sistema de Ensino Aprende Brasil, como devem trabalhar com
suas apostilas. Isso não favorece a construção de uma visão crítica e
criativa sobre os conteúdos, métodos de ensino e diferentes formas
de avaliação. Isso interfere frontalmente na autonomia didática e
pedagógica dos professores. Sobre isso, Adrião, Garcia e Borghi
(2015) destacam que

[...] a ausência de consulta prévia às comunidades escolares [...]


tanto no processo de decisão sobre a adoção de um sistema quanto
na escolha do sistema a ser adotado, e a imposição unilateral dessas
escolhas às escolas, devem ser compreendidas como violação ao
direito à educação, já que limitam excessivamente a liberdade
acadêmica de professores e estudantes e a autonomia relativa das
escolas, sem que esta limitação tenha sido adequadamente debatida
em processos ou instâncias de gestão democrática (ADRIÃO;
GARCIA; BORGHI et al., 2015, p. 97).

148 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
Em um processo pedagógico democrático, no qual haja
a construção coletiva do Projeto Político Pedagógico (PPP) da
escola, o ponto de partida deveria ser de acordo com a práxis
pedagógica de cada escola, seus conhecimentos e experiências
acumuladas ao longo do desenvolvimento da ação pedagógica e
política ali desenvolvida. Isso só pode ocorrer quando o coletivo
da escola se reúne para discutir as condições pedagógicas dos
alunos que recebe. Não há como defender esse processo apenas
com a finalidade de preparar o professor para utilizar apostilas.
No entanto, longe disso, as entrevistadas evidenciaram que,
por meio do ensino apostilado, os professores utilizam o mesmo
planejamento, pois seguem os conteúdos, metodologias e objetivos
pré-estabelecidos pelo sistema de ensino contratado. Conforme
a fala da secretária da educação atual, com o uso das apostilas, as
professoras ganham tempo no preparo das aulas, pois já têm tudo
esquematizado. Isso deixa o trabalho mais organizado, facilita o
trabalho das coordenadoras pedagógicas em corrigir os planos de
aula e economiza dinheiro de impressão de atividades, uma vez
que a maioria já está na apostila.
Com essas falas, percebemos que os professores não têm
liberdade e autonomia para montar sua própria aula e deve
seguir tudo o que está pré-determinado na apostila. Diante disso,
concordamos com os autores abaixo, ao afirmarem que os sistemas
de ensino privados

[...] são instrumentos prontos, replicáveis e padronizados, que


afirmam resolver os problemas com pouca ou nenhuma participação
do professor no processo, comprometendo a autonomia da escola e
a formação do sujeito histórico, uma vez que permite ao mercado
construir o conteúdo da educação pública (ROSSI; BERNARDI;
UCZAK, 2013, p. 117-118).

149 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
Outro ponto que a atual secretária de educação aponta
como positivo em relação ao sistema apostilado, é que no livro
didático utilizado anteriormente à aquisição do sistema apostilado,
os conteúdos não eram de acordo com o que as professoras
queriam trabalhar e os alunos não podiam fazer anotações, pois,
outras turmas utilizariam o livro no ano seguinte. Com as apostilas,
os alunos podem anotar o que quiserem, uma vez que as apostilas
são consumíveis.
Observamos que a apostila pode não ter tudo o que o
professor deseja e necessita trabalhar com seus alunos. Pode sim,
em nome de sua liberdade de cátedra, haver alguns conteúdos que
julgue não ser de grande importância, ou não ser ainda o momento
de ser trabalhado com seus alunos, por falta de conhecimentos
prévios, mas os conteúdos e as atividades propostas nas apostilas
devem ser trabalhados de forma obrigatória, até esgotar a apostila.
Outro aspecto relevante para nosso estudo é que os livros
didáticos produzidos pelo Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD)

[...] passam por uma ampla avalição por equipes técnicas das
instituições de ensino superior públicas, para garantir a qualidade
dos conteúdos e reduzir os riscos de que contenham erros
conceituais, reproduzam estereótipos, denotem preconceito ou
discriminação de qualquer tipo; os sistemas privados de ensino
não passam por procedimentos regulares de avaliação, são [...]
comprados e distribuídos sem que sejam devidamente analisados
pelos gestores municipais [...] e comumente estão submetidos
a interesses prévios quanto à contratação, seja continuidade,
preferência por uma determinada marca ou questão orçamentária
(ADRIÃO; GARCIA; BORGHI et al, 2015, p. 97).

Dessa forma, percebe-se também que esse município


deixa de adotar livros didáticos em sua rede, para dispender

150 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
recursos próprios para aquisição de sistema apostilado. “Este
fato pode caracterizar [...] a perda voluntária de recursos que
seriam repassados pelo governo federal” (ADRIÃO; GARCIA;
BORGHI et al, 2015, p. 91), pois, o município abre mão do
recebimento do livro do PNLD. Sendo assim, essa aplicação de
recursos públicos em sistemas privados de ensino,

[...] reduz substancialmente a capacidade dos municípios de


disponibilizar novas vagas no sistema público, devido à redução
dos recursos públicos disponíveis para a criação de oportunidades,
principalmente nas etapas não obrigatórias e naquelas em que é
baixa a cobertura, com prejuízo para as populações mais pobres
[...] (ADRIÃO; GARCIA; BORGHI et al, 2015, p. 91).

Em relação ao gasto municipal com ensino apostilado,


constatamos na análise de documentos que a porcentagem de
gasto com esse ensino subiu. Em 2009, o município gastava em
torno de duzentos e setenta mil reais/ano e no anos de 2017
gastou em torno de trezentos mil/ano. Mesmo com o aumento
de gastos, as secretárias ainda afirmam que ele é mais barato. Isso
ocorre, segundo Motta (2001), porque o marketing das empresas
que produzem esses materiais é de extrema eficiência e consegue
convencer os gestores municipais que o sistema apostilado é mais
econômico e obtém melhores resultados.
Assim, as empresas que comercializam os sistemas apostilados
apostam em propagandas de publicidade, disseminando-as por
várias partes do Brasil. Desta forma, elas se tornam conhecidas
pelos sistemas públicos de ensino e têm mais chances de serem
escolhidas para fazer parcerias e, consequentemente, enriquecer,
uma vez que o investimento do dinheiro público é garantido
(ADRIÃO; GARCIA; BORGHI et al, 2015).

151 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
Segundo as entrevistadas, durante os anos de parceria com
o sistema apostilado, a aprendizagem dos alunos foi extremamente
significativa. Isso foi demonstrado pelo IDEB do município
que subiu e houve uma evolução na alfabetização das crianças,
constatada pela prova municipal que é aplicada em todas as escolas
municipais pela prefeitura e pela Provinha Brasil, tendo em vista
o bom resultado alcançado.
Em análise ao Plano de Educação do Município,
observamos que o aumento do último Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica (IDEB), do município em relação às escolas
administradas pela prefeitura (Educação Infantil e Anos Iniciais
do Ensino Fundamental) é realmente significativo. A meta era
5,2 e em 2013 - último IDEB -, as escolas alcançaram meta 6,0.
No entanto, isso não é garantia de aprendizagem significativa dos
alunos, mas sim, que foi alcançada uma meta prevista, que nem
sempre expressa uma efetiva aprendizagem, haja vista que estes
índices podem ser facilmente manipulados (FREITAS, 2012).
Diante da afirmação da atual secretária de educação, fomos
conferir no site do Sistema Positivo e percebemos que, na maioria
dos municípios que aderiram a esse sistema de ensino, o IDEB
aumentou significativamente. Isso nos dá indícios de que precisam
ser averiguados em estudos futuros, de que esse Sistema é voltado
para aspectos educacionais que preparam os alunos para testes,
para demonstrar conhecimentos que satisfaçam o IDEB, e não
para que o aluno realmente aprenda, como afirmam as secretárias.
Ensinar os alunos a responder testes padronizados nem sempre
se traduz em construção de conhecimento por eles. É ingênuo
presumir que “escores mais altos nos testes padronizados de
habilidades básicas [sejam] sinônimos de uma boa educação”.
Testes não substituem currículo e ensino, e “uma boa educação

152 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
não pode ser conseguida por uma estratégia de testar crianças”
(RAVITCH, 2011, p. 132).
Sendo assim, o que está posto é o consumo rápido de
informações inserido em um sistema de prêmios e castigos, para
alunos, professores, gestores, com incentivo à competitividade e
controle de produtividade, buscando sempre alcançar uma meta.
Desta forma, percebe-se que esse conhecimento apostilado é
produzido em verdadeiras “fábricas do saber” que potencializam
a “(re)produção’ de indivíduos massificados, prontos à adequação
social que, atualmente, tem como um de seus principais objetivos,
o consumo” (MOTTA, 2001, p. 85).
Diante das falas das secretárias municipais, pudemos
constatar que ambas seguem a mesma linha de pensamento em
relação ao ensino apostilado, ou seja, tomam esse ensino como
algo muito bom e vantajoso para gestores, professores e alunos,
que, segundo elas, gostam deste sistema. Sendo assim, a atual
secretária demonstra não perceber os aspectos negativos em
relação a esse sistema de ensino, afirmando que “tudo que vem
é para acrescentar”. Contudo, a ex-secretária de educação afirma
ter sim pontos negativos, pois, nem tudo é perfeito: “temos
algumas professoras que acabam tendo dificuldade em cumprir
os conteúdos estabelecidos para o bimestre, mas são poucas”. Para
as que têm dificuldades “as coordenadoras dão todo o suporte
para que essas professoras se organizem e consigam cumprir a
meta proposta”.
Dessa forma, esse aspecto negativo que a ex-secretária
aponta não se refere diretamente ao ensino apostilado, mas ao
professor que, na perspectiva dela, deve se adequar a esse ensino
de forma satisfatória.

153 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
Considerações finais

Neste estudo, analisamos as interferências da relação


entre o setor público e o setor privado na educação pública e
as manifestações destas parcerias para os sistemas públicos e
municipais de educação. Tratamos especificamente da aquisição
do Sistema de Ensino Aprende Brasil, do Grupo Positivo, por
um município da região norte do estado do Paraná. Buscamos
problematizar os motivos que levam as secretarias municipais de
educação a realizarem parcerias público-privadas na aquisição dos
sistemas de ensino apostilados.
A partir do levantamento de dados, o que move os
sistemas públicos de ensino é o entendimento de que aquilo que é
organizado pelo setor privado empresarial é de melhor qualidade
e, portanto, pode promover a qualificação da educação ofertada
pela escola pública. Isso é reforçado pela estratégia de marketing
do empresariado da área da educação. Percebemos ainda que há
a busca de preparar alunos para que o município consiga alcançar
as metas e escores nos testes padronizados e não por formar
alunos que dominem o conhecimento científico de forma a se
apropriarem destes conhecimentos com profundidade.
Nosso estudo – assim como os de outros pesquisadores
citados no decorrer do texto - evidencia que o campo da
educação pública está cada vez mais sendo invadido pelos grupos
privados empresariais, os quais inserem sua mercadoria e sua
lógica nas escolas, com a promessa de promover um ensino mais
otimizado. Diante disso, entendemos que o que está em curso é
a mercadificação da educação, ou seja, as escolas públicas vêm
tornando-se espaços propícios ao mercado editorial.

154 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
Referências

ADRIÃO, Teresa; PERONI, Vera Maria Vidal. Implicações do


Programa Dinheiro Direto na Escola para a gestão da escola pública.
Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 98, p. 253-267, jan./abr. 2007.

ADRIÃO, Teresa; GARCIA, Teise; BORGHI, Raquel. (et al). Sistemas


de ensino privado na educação pública brasileira: consequências para
mercantilização para o direito à educação. Grupo de Estudos e Pesquisas
em Políticas Educacionais. UNICAMP. Campinas: GREPPE, 2015.
Disponível em: < https://greppe.wordpress.com/pesquisas-concluidas/>
Acesso em: 13 de mar. 2016.

BERNARDI, Liane Maria; UCZAK, Lucia Hugo; ROSSI, Alexandre


José. As relações do estado com empresários nas políticas educacionais:
PDE/PAR e guia de tecnologias educacionais. In: PERONI, Vera Maria
Vidal (Org.). Diálogos sobre as redefinições no papel do estado e nas
fronteiras entre o público e o privado na educação. São Leopoldo:
Oikos, 2015. p. 52-70.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário


Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 05/10/1988.

BRASIL. Emenda Constitucional n º 14, de 12/09/1996. Diário Oficial


da União, Brasília, Seção I, p. 18.109, 13/09/1996.

BRASIL. Ministério da Administração e da Reforma do Estado. Plano


Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Câmara da
Reforma do Estado, novembro de 1995.

CAIN, Alessandra Aparecida. A Parceria Público-Privada na Aquisição


de ‘Sistema De Ensino’ no município paulista de Santa Gertrudes.
In: I Congresso Ibero-Brasileiro de Política e Administração da
Educação - VI Congresso Luso-Brasileiro de Política e Administração
da Educação / IV Congresso do Fórum Português de Administração
Escolar. Nº 1, 5, 4, 2010, Portugal/Espanha. Anais. Portugal/Espanha:
ANPAE, 2010. p. 1-17.

155 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
COMERLATTO, Luciani Paz; CAETANO, Maria Raquel. As
parcerias público-privadas na educação brasileira e as decorrências na
gestão da educação: o caso do Instituto Ayrton Sena. In: PERONI,
Vera Maria Vidal (Org.). Redefinições das fronteiras entre o público
e o privado: implicações para a democratização da educação. Brasília:
Liber Livro, 2013. p. 245-265.

EVEF. 2012. Disponivel em: <http://www.evef.com.br/artigos-e-


noticias/management/161-gestao-do-grupo-positivo-no-brasil>. Acesso
em: 03 nov. 2016.

FREITAS, Luis Carlos. Os reformadores empresariais da educação:


da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de
educação. Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404,
abr. jun. 2012.

GIDDENS, Antony. A Terceira Via: reflexões sobre o impasse político


atual e o futuro da social-democracia. 4ª tiragem. Rio de Janeiro: Record,
2001.

MÉSZÁROS, Istiván. A crise estrutural do capital. Tradução Paulo


Cezar Castanheira; Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2009.

MONTANO, Monique Robain. Sistema de ensino Aprende Brasil –


Grupo Positivo. In: PERONI, Vera Maria Vidal (Org.). Redefinições
das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a
democratização da educação. Brasília: Liber Livro, 2013. p. 266-275.

MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão


emergente de intervenção social. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2010. 288 p.

MOTTA, Carlos Eduardo de Souza. Indústria cultural e o sistema


apostilado: a lógica do capitalismo. Caderno Cedes, Campinas, v. 21,
n. 54, ago., 2001. p. 82-89. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/
ccedes/v21n54/5272.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2017.

156 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
PERONI, Vera Maria Vidal. Redefinições das fronteiras entre o
público e o privado: implicações para a democratização da educação.
Brasília: Liber Livro, 2013.

POSITIVO. Positivo Informática. 2015. Disponível em:


<Informáticahttp://www.positivoinformatica.com.br/sobre-a-positivo-
imprensa-interna/positivo-informatica-anuncia-parceria-estrategica-
com-vaio-corporation>. Acesso em: 03 nov. 2016.

POSITIVO. Instituto Positivo. 20--. Disponível em: <http://www.


positivo.com.br/pt/ver/instituto/15-educacao>. Acesso em: 04 nov. 2016.

RAVITCH, Diane. Vida e morte do grande sistema escolar americano:


como testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação.
Tradução Marcelo Duarte. Porto Alegre: Sulina, 2011.

ROSSI, Alexandre José; BERNARDI, Liane Maria; UCZAK, Lucia


Hugo. Relações público-privada no Programa de Desenvolvimento da
Educação: uma análise do plano de ações articuladas. In: PERONI,
Vera Maria Vidal (Org.). Redefinições das fronteiras entre o público
e o privado: implicações para a democratização da educação. Brasília:
Liber Livro, 2013. p. 198-219.

RUIZ, Maria José Ferreira. PERONI, Vera Maria Vidal. Relação


público-privada e gestão escolar: o caso da Fundação Victor Civita.
LAPLAGE em Revista. Sorocaba, vol.3, n.3, set.-dez. 2017. p.147-163.

157 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 131-158 – jul./dez. 2019
CARTAS PARA ALÉM DOS MUROS: ANÁLISE
ARGUMENTATIVA DE TRÊS CRÔNICAS
DE CAIO FERNANDO ABREU

Thiago Henrique Ramari1

RESUMO: Este artigo investiga o uso e os efeitos de sentido dos operadores


argumentativos nas crônicas Primeira carta para além do muro, Segunda carta para
além dos muros e Última carta para além dos muros, todas de autoria de Caio Fernando
Abreu e publicadas pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1994. Para a análise proposta,
toma-se como base os estudos de Oliveira (2002; 2003; 2004; 2018) e Koch (1984)
no âmbito da Semântica Argumentativa. Como resultado, nota-se que as crônicas
trazem, principalmente, operadores que indicam adição de elementos com o mesmo
peso semântico, afirmação plena, comparação, finalidade, oposição e restrição, a fim
direcionar os leitores a interpretações solidárias para com o autor gaúcho, diagnosticado
com HIV/Aids.
Palavras-chave: Operadores argumentativos; Semântica Argumentativa; Caio
Fernando Abreu

ABSTRACT: This article investigates the use and semantic effects of argumentative
operators in the chronicles Primeira carta para além do muro, Segunda carta para
além dos muros and Última carta para além dos muros, written by Caio Fernando
Abreu and published by O Estado de S. Paulo newspaper in 1994. For the proposed
analysis, the theoretical basis is in the studies of Oliveira (2002; 2003; 2004; 2018)
and Koch (1984) in the scope of Argumentative Semantics. As a result, it is noted that
the chronicles bring, mainly, operators that indicate the addition of elements with
the same semantic relevance, full affirmation, comparison, purpose, opposition and
restriction, in order to direct the readers to interpretations in solidarity with the author,
diagnosed with HIV/Aids.
Key-words: Argumentative operators; Argumentative Semantics; Caio Fernando Abreu

1
Thiago Henrique Ramari é docente do Departamento de Comunicação da Universidade
Estadual de Londrina (UEL).

159 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
Introdução

De acordo com o O livro dos símbolos (2012), a enfermidade


é interpretada de várias maneiras pelas culturas existentes. De
modo geral, no entanto, é vista como um mal, um padecimento
ou um descontentamento, independentemente da origem – divina
ou não. “Associamos a enfermidade ao esgotamento orgânico
ou ao sucumbir, mas também à invasão, ao excesso, à míngua,
à desordem, ao desequilíbrio e à corrupção” (ARCHIVE FOR
RESEARCH IN ARCHETYPICAL SYMBOLISM, 2012,
p. 732).
Dentre as enfermidades que assolaram a civilização, a
Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), causada pelo
HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), matou milhões
de pessoas, desde a década de 1980. Segundo a Unaids (2018),
77,3 milhões se infectaram e, destes, 35,4 milhões morreram até
2017, na soma global. Segundo Soares (2001, p. 11), o índice de
mortalidade fez com que a doença tomasse do câncer o título de
“mal do século”, em referência ao século XX. Sontag (1989, p. 20)
segue pelo mesmo raciocínio: “[...] o câncer perdeu parte de seu
estigma devido ao surgimento de uma doença cuja capacidade de
estigmatizar, de gerar identidades deterioradas, é muito maior”.
No início da epidemia, não se sabia qual era o agente
causador da doença. Nos hospitais, os pacientes apresentavam
quadros clínicos semelhantes: as mortes eram causadas por
patologias oportunistas, após um colapso do sistema imunológico.
Em 1983, o vírus HIV foi identificado por uma equipe de
pesquisadores franceses. Essa descoberta levou à conclusão de
que qualquer pessoa poderia se infectar, além de uma delimitação
precisa quanto às formas de transmissão - através do sexo

160 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
desprotegido, da transfusão de sangue, do compartilhamento de
seringas, de acidentes com objetos perfurocortantes, do parto
e da amamentação. A Aids se tornou então a IST (Infecção
Sexualmente Transmissível) mais temida desde a sífilis. Conforme
Jeolás (2007, p. 57), as duas doenças “[...] articularam o temor da
morte e do contágio ao tabu do sexo, formando uma tríade com
forte enraizamento no imaginário ocidental, alimentada pelos
valores cristãos referentes à sexualidade”.
Atualmente, a transfusão de sangue não é mais um risco,
devido ao rigor de análise dos materiais coletados. Assim, a
transmissão do HIV se dá por quatro vias: através do sexo
desprotegido, do compartilhamento de seringas, de acidentes com
objetos perfurocortantes e de mãe para filho no decorrer do parto
ou da amamentação. Os tratamentos, por sua vez, evoluíram: se,
nos anos 1980, os medicamentos não eram eficazes e provocavam
inúmeros efeitos colaterais, a terapia atual é capaz de eliminar o
vírus do sangue e dos fluidos sexuais do paciente, tornando-o
incapaz de infectar outras pessoas através do sexo.
Nos jornais, a doença foi e ainda é abordada com
regularidade. Dentre os textos já publicados, destacam-se aqui
os objetos de análise deste artigo, as crônicas Primeira carta para
além do muro (ABREU, 1994a), Segunda carta para além dos muros
(ABREU, 1994b) e Última carta para além dos muros (ABREU,
1994c), assinadas pelo jornalista, dramaturgo e escritor Caio
Fernando Abreu (1948-1996) e publicadas em 21 de agosto, 4
de setembro e 18 de setembro de 1994, respectivamente, pel’O
Estado de S. Paulo. Naquela época, antes de o governo brasileiro
adotar o sistema de tratamento gratuito, a doença era vista como
uma sentença de morte – o autor morreu em decorrência da Aids
em 25 de fevereiro de 1996.

161 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
A pergunta que rege esta pesquisa é: como os operadores
argumentativos são utilizados por Abreu na revelação pública
de que vive com o vírus HIV? Para respondê-la, a metodologia
se ampara em uma análise semântico-argumentativa, focada no
emprego dos três operadores argumentativos mais recorrentes em
cada crônica, com base nos estudos de Oliveira (2002; 2003; 2004;
2018) e Koch (1984). O objetivo é, a partir do aparato teórico,
verificar como se dá a argumentação do escritor por meio de
operadores argumentativos, que direcionam o sentido e produzem,
com isso, efeitos sobre os interlocutores.

Fundamentação teórica

A Semântica Argumentativa, área da Linguística que


orienta a análise deste artigo, deriva da tradição argumentativa
ou retórica. Conforme Oliveira (2002; 2004), a Semântica
Argumentativa se consolida no final do século XX, mas a arte
retórica remonta ao século V a.C., no período pré-socrático,
quando Córax e Tísias elaboraram aquele que é considerado o
primeiro método de argumentação, com o objetivo de ajudar
um cidadão grego a convencer um tribunal - naquela época, os
advogados não representavam os clientes diante das tribunas.
Desde então, salienta a autora, os estudos em torno da
argumentação se expandiram. Ainda no século V a.C., mas já no
período socrático, a retórica passou a ser mais valorizada, pois a
sociedade grega desenvolveu um processo de ensino que visava
à formação de cidadãos críticos em detrimento de guerreiros
e atletas, com o objetivo de que exercessem “[...] seu papel na
democracia grega através do poder das palavras” (OLIVEIRA,
2002, p. 203).

162 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
Depois, a argumentação ganhou também perspectiva
artística com Górgias e profundidade estilística com Isócrates,
além de classificações diversas, de acordo com o campo no qual
se aplicava. Neste último caso, Aristóteles é, provavelmente, o
nome mais importante, pois, entre outros motivos, distinguiu
três gêneros discursivos da retórica: o judiciário, o deliberativo
e o epidítico.

No gênero judiciário (ou forense), os partidos tinham como objetivo


a acusação ou a defesa de alguém frente a um tribunal [...]. No
gênero deliberativo (ou político), os partidos tinham como objetivo
aconselhar ou desaconselhar alguma atitude ou ação diante de
uma assembléia votante [...]. No gênero epidítico (ou panegírico ou
cerimonial), os partidos tinham o objetivo de louvar ou censurar
alguém, sendo esta a principal meta a ser alcançada, sem ter a
participação explícita do auditório (OLIVEIRA, 2002, p. 207).

Com a decadência de Atenas e a ascensão de Roma, o eixo


de estudos também mudou. A partir do século I a.C., surgiram
manuais de retórica e tratados educacionais que contemplavam
essa arte em latim. Com a Idade Média (séculos V-XV), que
assistiu à queda de Roma, mais mudanças aconteceram: a
tendência ornamental se sobressaiu, privilegiando o texto poético
e epistolar. Conforme Oliveira (2004, p. 113), “o discurso epidítico
foi, indubitavelmente, o que mais inspirou a poesia medieval, já
que seu intuito primordial é o elogio”. Dentre os elementos mais
exaltados estava a natureza, de acordo com Curtius (1979, p.
201): “[...] a descrição da paisagem [...] comportava a teoria dos
argumentos retóricos do discurso epidíctico. E entre as coisas a
serem louvadas, incluem-se as localidades. Podem ser dignas de
louvor pela sua beleza, pela sua fertilidade, pela sua salubridade”.

163 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
No Renascimento (séculos XIV-XVII), a Retórica,
enquanto disciplina formal, esteve presente em ciclos escolares,
mas de maneira restrita. Segundo Oliveira (2004), privilegiou-
se a elocução, isto é, a forma de exposição dos argumentos, em
detrimento da invenção (ato de selecionar argumentos) e da
disposição (ato de ordenar argumentos), etapas da argumentação
aristotélica2. Um “renascimento” efetivo da retórica ocorreu
apenas no século XX, pois, como afirmam Ducrot e Todorov
(1972), a Estilística, a Análise do Discurso e a Linguística
assumiram os problemas comumente trabalhados pela Retórica,
a partir de uma nova perspectiva3. É neste contexto que surge a
Semântica Argumentativa, que se preocupa “[...] com as relações
entre locutor e alocutário em determinada situação discursiva,
direcionando o sentido do texto por meio de uma grande variedade
de procedimentos argumentativos” (OLIVEIRA, 2004, p. 123).
Ducrot é um dos sistematizadores da Semântica
Argumentativa. Em sua tese, defende que “[...] a argumentatividade
não constitui apenas algo acrescentado ao uso lingüístico, mas,
pelo contrário, está inscrita na própria língua” (apud KOCH,
1984, p. 104). Em outras palavras, Ducrot trata a linguagem
como inerentemente argumentativa e, nessa direção, estão
também outros estudiosos, como Vogt, Koch e Guimarães, todos
brasileiros. Dentre os procedimentos que a língua tem para o
locutor/enunciador orientar, manipular e convencer interlocutores,
estão os operadores argumentativos, que, segundo Oliveira

2
A argumentação aristotélica tem, ainda, outras duas etapas, a memorização (técnica para
reter informações relevantes para a elaboração de argumentos) e a ação (ato de enunciação
oral, englobando pausa, ritmo, entonação etc). A sequência entre todas as etapas é: invenção,
disposição, elocução, memorização e ação (OLIVEIRA, 2002).
3
Afirmam Ducrot e Torodov (1972, p-100-101): “[...] Aujourd’hui, ce sont la stylistique,
l’analyse du discours, la linguistique elle-même qui reprennent, dans une perspective
différente, les problems qui constituaient l’objet de la rhétorique”.

164 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
(2003, p. 233), “[...] são marcas lingüísticas indispensáveis ao
desencadeamento de efeitos, de ações, de comportamentos, de
conclusões [...]”. Koch (1984, p. 104-105) acrescenta que muitos
desses operadores integram as dez classes gramaticais, ao passo
que outros não.

[...] Existe na gramática de cada língua uma série de morfemas


responsáveis exatamente por esse tipo de relação, que funcionam
como operadores argumentativos ou discursivos. É importante
salientar que se trata, em alguns casos, de morfemas que a gramática
tradicional considera como elementos meramente relacionais –
conectivos, como mas, porém, embora, já que, pois, etc., e,
em outros, justamente vocábulos que [...] não se enquadram em
nenhuma das dez classes gramaticais.

Oliveira (2003, p. 232) salienta que, na Semântica


Argumentativa, a linguagem está ligada à vida cotidiana e “[...]
essa realidade existe por intermédio de um processo que busca a
participação e a interação dos interlocutores, sempre objetivando
a consecução de um texto semanticamente satisfatório”. Assim,
as regras gramaticais são consideradas dentro do contexto de
interação social, a fim de se compreender como um enunciado,
escrito ou falado, significa em sociedade. No caso dos operadores
argumentativos, estuda-se a aplicação e os efeitos de sentido de
pronomes, advérbios, preposições e conjunções. Também são alvo
de análise palavras que indiquem inclusões, exclusões, realces,
retificações, limitações e explanações. Oliveira (2018) expõe
um quadro que contribui para a compreensão dos operadores
argumentativos, assim como dos efeitos de sentido que provocam.

165 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
Quadro 1 – Os operadores argumentativos e seus efeitos de
sentido
Operadores argumentativos Efeitos de sentido
E, nem, também, além de, não só... Adição de elementos com o mesmo
mas também peso semântico
Até, até mesmo, inclusive Adição de argumento mais forte
Aliás, ademais, além do mais Adição de argumento decisivo
Ora... ora, quer... quer Alternância / escolha
Portanto, logo, por conseguinte, por
Conclusão
isso
Porque, já que, pois Explicação
Mas, porém, todavia, contudo, no
Oposição / contraste
entanto
Isto é, ou seja, ou melhor, quer dizer Retificação / correção / explicação
Porque, porquanto, visto que, como
Causa
(com sentido de porque)
Só, apenas, somente Restrição
Se, caso, contanto que Condição
Para, para que, a fim de que Finalidade
Como (com sentido de que nem),
Comparação
assim como
Embora, conquanto, ainda que Concessão
Conforme, como (com sentido de
Conformidade
conforme)
À proporção que, à medida que, ao
Proporção
passo que, enquanto
Tudo, todo(s), toda Afirmação plena
Nada, ninguém Negação plena
Fonte: Oliveira (2018).

Compreende-se assim que uma análise baseada nesses


elementos contribui para um entendimento mais aprofundado
dos textos selecionados, tanto no que diz respeito às intenções
do autor, Caio Fernando Abreu, como no que diz respeito aos
efeitos produzidos sobre os alocutários, leitores d’O Estado de S.
Paulo. Na análise proposta, as três crônicas são estudadas a partir

166 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
do quadro organizado por Oliveira (2018) e das considerações de
Koch (1984) a respeito dos operadores argumentativos.

Análise do corpus: Primeira carta para além do muro

Caio Fernando Abreu nasceu em Santiago do Boqueirão


(RS) em 1948 e morreu em Porto Alegre (RS) em 1996. O
diagnóstico de HIV/Aids, que provocou as complicações de
saúde que o levaram à morte, ocorreu em 1994. Foi também o
diagnóstico que o motivou a escrever as três crônicas analisadas
neste artigo, nas quais revela, no início enigmaticamente e depois
literalmente, viver com o vírus causador da Aids. Para a análise
dos textos, obedeceu-se ao seguinte esquema de organização: nas
três seções chamadas Análise do corpus, encontram-se os resultados
da pesquisa sobre a presença dos operadores argumentativos
nas crônicas em questão. Estas, por sua vez, podem ser lidas
integralmente na seção Anexos, após as Considerações finais.
Na primeira crônica, Primeira carta para além do muro,
Abreu não revela o diagnóstico de HIV/Aids. Contudo, fica
claro que está doente e internado em um hospital, devido ao uso
de passagens como: “nestas duas mãos que você não vê sobre o
teclado, com suas veias inchadas, feridas, cheias de fios e tubos
plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das quais
escorrem líquidos que, dizem, vão me salvar”. Essa interpretação
é reforçada pela maneira como se refere a alguns equipamentos
(“maca de metal com ganchos”, “máquina redonda”), aos
profissionais que trabalham ali (“tenho medo é desses que querem
abrir minhas veias”) e ao próprio local (“vejo construções brancas
e frias além das grades deste lugar onde me encontro”). Apesar

167 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
de a enfermidade não ser revelada, é evidente que se trata de algo
grave, algo que o fez perder o controle de si próprio (“devo ter
gritado, e falado coisas aparentemente sem sentido, e jogado coisas
para todos os lados, talvez batido em pessoas”). A gravidade da
doença é determinada também pela seleção lexical com a qual o
autor se refere a ela: “alguma coisa”, “coisa estranha”, “turvação”,
“vertigem”, “voragem”.
Diante de um texto enigmático como esse, um leitor dos
anos 1990 provavelmente elegeria a Aids como a pior doença
que poderia acometer o escritor. Como o texto explora, além da
seleção lexical, adjetivos, modalizadores, intensificadores e dêiticos
(pessoais, temporais e espaciais), as subjetividades são ressaltadas
e o leitor é levado a interpretá-lo mais emocionalmente, de acordo
com as percepções sociais daquela época. Vale lembrar que, além
de figurar como uma sentença de morte naquele período, a Aids
tomou do câncer o título de “mal do século”, segundo Soares
(2001, p. 11). Sontag (1989), por sua vez, ressalta que o medo
social da Aids superou o medo social do câncer, porque as formas
de transmissão incluíam atividades do cotidiano, com destaque
para as práticas sexuais. Assim, e diferentemente do câncer, era
possível contrair o HIV de outras pessoas.

A fobia do câncer nos ensinou a temer o meio ambiente poluente;


agora temos medo de pessoas poluentes, conseqüência inevitável
da ansiedade causada pela aids. Medo da taça da comunhão na
missa, medo da sala de cirurgia: medo do sangue contaminado, seja
o sangue de Cristo ou o do próximo. A vida – o sangue, os fluidos
sexuais – é ela própria o veículo da contaminação (SONTAG,
1989, p. 87).

Quanto aos operadores argumentativos, Abreu utiliza


52 ao todo, com destaque para aqueles que indicam adição

168 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
de elementos com o mesmo peso semântico (16 ocorrências),
oposição ou contraste (7) e comparação (7), segundo o quadro de
Oliveira (2018). Com o emprego de morfemas com tais efeitos
de sentido, o texto oferece uma primeira percepção pessoal em
relação ao diagnóstico e ao internamento por HIV/Aids. O autor
lista vários elementos para caracterizar essa experiência e investe
em estruturas semânticas que indicam oposição e comparação
para direcionar a interpretação dos leitores a uma representação
específica, estabelecendo o viés argumentativo. Como afirma
Abreu (2000), a língua é um sistema de representação e, quando se
usa uma palavra em um texto escrito, por exemplo, faz-se sempre
uma escolha por representar e, consequentemente, argumentar
sobre algum objeto.
Na crônica, os operadores argumentativos que indicam
adição de elementos com o mesmo peso semântico são e e também.
Ainda com base em Ducrot, Koch (1984, p. 106) explica que
“havendo duas ou mais escalas orientadas no mesmo sentido, seus
elementos podem ser encadeados por meio de operadores como e,
também, nem tanto... como, não só... mas também, etc”. Com
“duas escalas orientadas no mesmo sentido”, a pesquisadora refere-
se a argumentos com o mesmo peso semântico que encaminham
para uma determinada conclusão. Eis alguns exemplos dessa
categoria em Primeira carta para além do muro (ABREU, 1984a,
p. D11, grifos nossos):

“Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei


também esse jeito.”
“É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais
apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer
com funduras – como Clarice, feito Pessoa.”
“A minha não-desistência é o que de melhor posso oferecer a você
e a mim neste momento.”

169 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
“Devo ter gritado, e falado coisas aparentemente sem sentido, e
jogado coisas para todos os lados, talvez batido em pessoas.”

Esses quatro trechos são representativos dentre as


ocorrências de operadores argumentativos que indicam adição
de elementos com o mesmo peso semântico. Em (1), o operador
também dispõe dois elementos em equivalência: saber de fato o
que aconteceu e saber falar a respeito desse acontecimento. Nessa
passagem, Abreu ressalta que ainda não processou o que se passou
e, portanto, não sabe como tratar o assunto com clareza para os
leitores. Como um elemento depende do outro, pode-se concluir
que, para o escritor, só se compreende algo quando se é capaz de
explicá-lo. Apesar disso, em (2), ele oferece algumas referências,
delineando as circunstâncias do momento da redação: afirma que
escreve com “terrível esforço” e utiliza o operador argumentativo
e para sublinhar que não se trata de uma reflexão abstrata. O
morfema e coloca o esclarecimento em nível de igualdade com
“terrível esforço”, encaminhando à conclusão de que o esforço
é, acima de tudo, físico, pois, como se descobre na sequência da
leitura, seu corpo dói enquanto redige as palavras. É quando se
percebe que a crônica foi elaborada em um leito de hospital.
A essa altura, Abreu consegue criar uma relação empática
com os leitores, que provavelmente se perguntam sobre o porquê
do internamento. Essa relação é intensificada em (3), quando o
operador argumentativo e coloca o autor e os interlocutores em
igualdade: a não desistência frente a algo ruim que aconteceu
é o que o escritor pode oferecer de melhor para si e para os
leitores. Com isso, a crônica ganha um tom confessional, como
se os dois polos do aparelho enunciativo tivessem amizade
e compartilhassem intimidades. Depois disso, o cronista se

170 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
concentra em relatar fatos privados dos últimos dias. Em (4),
por exemplo, lista, com sucessivos e, as reações que teve diante do
diagnóstico e da internação, todas com o mesmo peso semântico:
gritar, falar, jogar objetos, agredir pessoas. Com essa abordagem,
é possível que a intenção seja provocar solidariedade em vez de
reações preconceituosas entre os interlocutores.
Em relação aos operadores argumentativos que indicam
oposição ou contraste, o morfema mas foi o mais utilizado (6
das 7 ocorrências). Koch (1984, p. 107) lembra que, para Ducrot,
essa conjunção é considerada o “operador argumentativo por
excelência”. O efeito de sentido que provoca na crônica, na
maioria das vezes, é o de opor dois argumentos ou elementos
(que, com base em Koch, são chamados aqui de p e q), a favor de
uma conclusão (r). “[...] Existe uma conclusão r que se tem clara
na mente e que pode ser facilmente encontrada pelo destinatário,
sugerida por p e não confirmada por q, isto é, que p e q apresentam
orientações argumentativas opostas em relação a r” (KOCH,
1984, p. 107). Quanto aos operadores que indicam comparação,
dois se destacam: como e feito - este último, apesar de não figurar
em Oliveira (2018), cumpre a função de comparar elementos. O
primeiro, como, tem quatro ocorrências e o segundo, feito, três.
Diz Abreu (1994a, p. D11, grifos nossos):

“Dói muito, mas eu não vou parar.”


“Sei que você não compreende o que digo, mas compreenda que
eu também não compreendo.”
“E isso agora não é mais apenas uma maneira literária de dizer que
escrever significa mexer com funduras – como Clarice, feito Pessoa.”
“Uma voragem, gosto dessa palavra que gira como um labirinto
vivo, arrastando pensamentos e ações nos seus círculos cada vez
mais velozes, concêntricos, elípticos.”

171 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
“Mas havia a maca de metal com ganchos que se fechavam feito
garras em torno do corpo da pessoa, e meus dois pulsos amarrados
com força nesses ganchos metálicos.”

Em (5) e (6), os argumentos p e q se opõem a favor de


uma conclusão r. Em (5), os elementos em contraste são: sentir
dor ao escrever (p) e não parar de escrever (q), que orientam à
conclusão de que Abreu não vai deixar de redigir o texto por conta
da dor física que sente. Em (6), a consciência de incompreensão
por parte dos leitores (p) gera o pedido do escritor para que
entendam que ele também não sabe ainda o que lhe aconteceu
(q), direcionando a uma aceitação coletiva do tom misterioso
da crônica. Entende-se, também, que, com as oposições desses
elementos (p e q) e as respectivas conclusões (r), o texto reforça
os laços de empatia, solidariedade e intimidade entre o cronista
e o público, estimulando este último a ver a situação de maneira
respeitosa.
Já os operadores de comparação contribuem para que
os interlocutores visualizem a experiência do autor pelos olhos
dele mesmo. Afinal, a comparação é argumentativa e reflete o
pensamento daquele que compara dois ou mais elementos, com
fins de valorização ou depreciação. Com isso, o responsável pela
comparação também busca convencer outras pessoas sobre o seu
ponto de vista, sobre a maneira como interpreta determinados
objetos. Na crônica, tanto a doença como o internamento são alvo
de comparação. Em (7), Abreu deixa claro, por meio do uso dos
morfemas como e feito, que escrever dói, não porque lida com
“funduras”, como costumam fazer Clarice Lispector e Fernando
Pessoa, mas porque está doente. Em outras palavras, os leitores não
devem lê-lo da mesma maneira como leem os escritores citados:
a situação é diferente. Em (8), ele usa o como para tornar mais

172 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
clara a experiência de ter sido diagnosticado com uma doença
fatal. Primeiramente, chama o que lhe aconteceu de “voragem” e,
depois, explica que entende essa palavra como um “labirinto vivo”
capaz de arrastar tudo em turbilhões de agressividade.
Por fim, em (9), Abreu usa tanto a ideia de oposição, por
meio do mas, como a de comparação, com feito. Ele começa o
parágrafo dizendo que só se lembra de “fragmentos descontínuos”
de tudo o que lhe aconteceu. Na sequência, porém, usa o mas para
introduzir uma lembrança, a da maca de metal com ganchos: a
apresentação dessa lembrança, que se mostra completa ou quase
completa, opõe-se à noção de fragmentos. Assim, as lembranças
fragmentadas (p) contrastam com a lembrança de um episódio
completo ou quase completo do internamento (q), levando à
conclusão de que o autor se lembra mais do que fragmentos
apenas. Para dar ao interlocutor uma ideia do quanto essa maca
de metal com ganchos o aterroriza, ele faz uma comparação: os
ganchos se fecham como garras em torno dele, como se fossem
um animal perigoso encurralando uma presa, uma vítima – no
caso, o paciente.

Análise do corpus: Segunda carta para além dos muros

Na segunda crônica, Abreu ainda não revela que vive com


HIV/Aids, mas se mostra mais conformado com o diagnóstico e o
internamento. Com muitas metáforas, adjetivos, intensificadores,
modalizadores e dêiticos, o texto tem um tom de agradecimento às
pessoas que, cientes ou não, ajudam-no a passar por tal momento
– são os “anjos”, em referência àqueles que trabalham no hospital,
aos familiares e amigos que o visitam e aos artistas de modo geral
– a maioria dos citados morreu em decorrência da Aids. Dos 37

173 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
operadores argumentativos identificados, os mais recorrentes são
aqueles que indicam adição de elementos com o mesmo peso
semântico (22 ocorrências), afirmação plena (6) e finalidade (3).
No primeiro caso, o autor usa os morfemas e (19 ocorrências),
também (2) e nem (1); no segundo, todos (4), todas (1) e tudo (1);
no terceiro, para (3). Seguem alguns exemplos (ABREU, 1994b,
D11, grifos nossos):

“Os da manhã usam uniforme branco, máscaras, toucas, luvas


contra infecções, e há também os que carregam vassouras, baldes
com desinfetantes.”
“Às vezes penso que todos eles parecem vindos das margens do rio
Narmada, por onde andaram o menino cego cantor, a mulher mais
feia da Índia e o monge endinheirado dos outras de Gita Metha.”
“Nesse fio estreito, esticado feito corda bamba, nos equilibramos
todos.”
“Gordos querubins barrocos com as bundinhas de fora; serafins
agudos de rosto pálido e asas de cetim; arcanjos severos, a espada
em riste para enfrentar o mal.”
“E quando sozinho, depois, tentando ver os púrpuras do crepúsculo
além dos ciprestes do cemitério atrás dos muros – mas o ângulo
não favorece, e contemplo então a fúria dos viadutos e de qualquer
maneira, feio ou belo, tudo se equivale em vida e movimento – abro
janelas para os anjos eletrônicos da noite.”

Os excertos de (10), (11), (13) e (14) contêm operadores


que indicam adição de elementos com o mesmo peso semântico.
Assim como na primeira crônica, observa-se que os morfemas
dessa categoria contribuem para listagens e descrições de fatos,
nas quais Abreu elenca e nivela, em um mesmo patamar, eventos,
sujeitos e objetos. Nessas exposições, evidencia-se a relevância
que o escritor atribui a cada elemento, o que é fundamentalmente
argumentativo.

174 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
Em (10), por exemplo, os anjos que “usam uniforme branco,
máscaras, toucas, luvas contra infecções”, provavelmente médicos
e enfermeiros, são colocados em igualdade com os anjos que
“carregam vassouras, baldes com desinfetantes”, ou seja, zeladores
do hospital, por meio dos morfemas e e também. Em (11), ocorre
o mesmo, mas os sujeitos são outros: um menino cego cantor, a
mulher mais feia da Índia e um monge endinheirado, novamente
por meio do e. Em (13), os elementos igualados são características
físicas dos serafins agudos, os rostos pálidos e as asas de cetim. Em
(14), por fim, são ações, principalmente: a tentativa de contemplar
o crepúsculo, a visão do tráfego nos viadutos, a conclusão de que
todas as coisas equivalem em vida e em movimento e a noção
pessoal de vida e movimento.
Na segunda categoria de destaque, a de afirmação
plena, Koch (1984, p. 109) explica que, quando se tem escalas
direcionadas a um sentido de afirmação plena (e, da mesma
forma, de negação plena), “[...] os quantificadores selecionam
determinados operadores capazes de dar seqüência ao discurso”.
No texto, Abreu usa os morfemas todos, todas e tudo justamente
para esse fim, o que se traduz em generalizações e na referência
a integrantes de grupos nos quais ele se inclui, o que demonstra
conformidade para com o diagnóstico. Em (11), o morfema todos
se refere às pessoas previamente citadas do “Outro Lado de Todas
as Coisas”, isto é, pessoas que morreram em decorrência da Aids
e, no tempo e no espaço da enunciação, figuram como anjos que
confortam o escritor durante a madrugada, a exemplo de Alex
Vallauri, Freddy Mercury e Wilson Barros. É um grupo de pessoas
notáveis socialmente, que o autor retoma por meio do pronome
todos para dar continuidade ao discurso, que delineia uma afeição
e uma inclusão de si. Conforme Oliveira (2009, p. 119),

175 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
imaginando a sua adesão a um elenco de personalidades famosas
vitimadas pela AIDS, Caio parece estar descrevendo a sua inclusão
no elenco de um filme. Cinéfilo incomparável, ele equipara a vida
a uma longa experiência cinematográfica ao fazer citações fílmicas
em contos e romances, utilizando também o mesmo recurso na
escrita das “cartas para além do muro”. Retratando a proximidade
da morte, Caio parece estar descrevendo a cena de um filme que
nos faz lembrar O show deve continuar (All That Jazz, 1979), de
Bob Fosse. Esse filme não é citado por ele, mas nos vem à mente
pelo fato de o enredo abordar a eminência (sic) da morte de um
coreógrafo da Broadway (Roy Scheider) empenhado na elaboração
de seu último musical e em diálogo constante com o anjo da morte
(Jessica Lange). Caio começa uma descrição do cenário do outro
mundo iniciada com a referência ao cineasta inglês cult e militante
gay Derek Jarman (1942-1994), que morreu contaminado pela
AIDS.

Em (12), o morfema todos parece se referir às pessoas que


vivem o fim do milênio, o cronista e os leitores inclusos, em uma
generalização que abarca os dois polos do aparelho enunciativo.
Pessoas que, com problemas de diferentes ordens, equilibram-se
sobre um fio estreito, “esticado feito corda bamba”, no topo de um
abismo. Uma afirmação que, novamente, expressa o conformismo
do escritor, afinal todas as pessoas estão sobre o mesmo fio, ainda
que por diferentes motivos. Em (14), ele usa o morfema tudo
para concluir que todas as coisas existentes se resumem à vida
e ao movimento. Ele engloba seres vivos, objetos e fenômenos,
da esfera concreta à esfera abstrata, para alcançar o sentido de
afirmação plena. Nesse movimento, é possível incluir a noção de
morte, para a qual toda vida se encaminha. Mais uma vez, o autor
se inclui nesse cenário, como integrante tanto da vida quanto
do movimento: a doença, que o encaminha para a morte, é uma
evidência disso.

176 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
O terceiro operador mais recorrente é o para, que indica
finalidade. Trata-se de um morfema que se refere, nesse caso, a
um objetivo, a uma meta ou a um plano que tem importância
no contexto exposto – e o delineamento dessa relevância é
argumentativo por si só. Em (13), por exemplo, Abreu diz que os
“arcanjos severos” empunham uma espada “para enfrentar o mal”.
Provavelmente, esses personagens são médicos ou enfermeiros
pouco simpáticos, mas que estão sempre de prontidão para lutar
contra a doença que acomete o escritor e outros pacientes. O
objetivo deles, “enfrentar o mal”, introduzido pela preposição
para, é condição sine qua non para que o autor se recupere e possa
voltar para casa - por isso, também, o tom de reconhecimento da
crônica. Em (14), Abreu usa o mesmo morfema para falar sobre
uma ação pessoal: metaforicamente, ele abre as janelas do quarto
onde está internado a fim de que os anjos da noite possam entrar.
O ato de abrir as janelas tem um propósito: permitir que anjos
entrem no local – no caso, sinais de televisão, rádio e telefone –
para confortá-lo.

Análise do corpus: Última carta para além dos muros

Na terceira e última crônica desta análise, Última carta


para além dos muros, Abreu confessa que vive com o vírus HIV
e que está internado no Instituto de Infectologia Emílio Ribas,
referência no tratamento de pacientes com Aids, em São Paulo.
Apesar de menos enigmático, o autor continua investindo em
metáforas, adjetivos, intensificadores, modalizadores e dêiticos.
Ao todo, foram identificados 49 operadores argumentativos e
as categorias mais recorrentes são: adição de elementos com o
mesmo peso semântico (28 ocorrências), oposição ou contraste (6),

177 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
finalidade (4) e restrição (4). Abaixo, alguns exemplos (ABREU,
1994c, p. D11, grifos nossos):

“Mas para você, revelo humilde: o que importa é a Senhora Dona


Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo do tempo e creme
chantilly às vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco
a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante.”
“Gosto sempre do mistério, mas gosto mais da verdade.”
“Não vejo nenhuma razão para esconder.”
“Sei que, para outros, esse vírus de science fiction só dá em gente
maldita.”

Em (15), tem-se mais um exemplo de adição de elementos


com o mesmo peso semântico. Ao falar da “Senhora Dona Vida”,
Abreu busca representá-la concretamente, por meio de uma
lista de características interligadas pelo morfema e. O operador
argumentativo, além de permitir a descrição, ressalta a equivalência
idêntica de cada um dos atributos citados, isto é, o ouro, a prata,
o sangue, o musgo do tempo, o creme chantilly e os confetes
de carnaval. O mesmo se dá, um pouco mais adiante, com os
adjetivos referentes ao rosto da “Senhora Dona Vida”, horrendo
e deslumbrante, dispostos em pé de igualdade, devido ao uso da
mesma conjunção. Com essas construções, o autor não hierarquiza
os elementos em níveis de relevância distintos; ele os nivela em um
mesmo patamar, atribuindo-lhes importância idêntica. Esta opção,
por parte do cronista, revela, mais uma vez, uma argumentação a
respeito dessas características: todas são equivalentes, tratando-se
da personagem retratada.
No segundo exemplo, (16), o operador mas indica oposição
ou contraste, como demonstra o quadro de Oliveira (2018).
Nesta última crônica, os argumentos ligados pelo morfema
anunciam uma mudança de tom por parte de Abreu: se um tom

178 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
obscuro predominou nos dois primeiros textos, a revelação vem
à tona no terceiro. O autor diz que gosta de fazer mistério (p),
contudo, aprecia ainda mais verdade (q), e é por isso que desvela
o diagnóstico aos leitores (r). Essa estrutura obedece ao esquema
de Koch (1984), baseado em Ducrot, segundo o qual p se opõe
a q e direciona a uma conclusão r, que é facilmente identificada.
Para os interlocutores dos três textos, a relação argumentativa
que o escritor tece com os próprios textos ganha um peso maior
com a conjunção mas aqui analisada, já que determina os tons
entre uma produção e outra. O excerto (17), que indica finalidade,
reforça a mudança de postura na terceira publicação: o cronista,
logo após dizer que prefere a verdade, usa o morfema para a fim
de sublinhar que não tem nada a esconder. Em outras palavras,
ele não encontra motivos para ocultar o que lhe aconteceu; assim,
seu propósito passa a ser o de revelar os últimos episódios de sua
vida aos leitores.
Por fim, em (18), destaca-se o operador argumentativo
só, que indica restrição. Por meio dele, Abreu diz saber que, para
muita gente, o HIV atinge só “gente maldita”, isto é, para uma
parcela da população, o vírus circula apenas entre aqueles que têm
comportamentos desaprovados socialmente, como dependentes
químicos, profissionais do sexo e homossexuais. Contra esse
argumento, ultrapassado já nos anos 1990, o autor utiliza um verso
da música Blues da piedade, de Cazuza: “Vamos pedir piedade,
Senhor, piedade para essa gente careta e covarde”. Nesse excerto,
portanto, a estratégia do escritor é expor um argumento comum
na sociedade, que restringe o HIV/Aids a grupos marginalizados,
para responder com uma intertextualidade explícita, o trecho de
uma música de Cazuza, compositor que denunciou a hipocrisia do
pensamento conservador. O argumento e o contra-argumento, que

179 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
delineia o fato de que o HIV pode causar infecção em qualquer
pessoa, concentram-se justamente no efeito de sentido provocado
pelo advérbio só, salientando sua relevância no excerto analisado.
Para finalizar esta seção, o Quadro 2, apresentado abaixo,
oferece uma visão global da pesquisa realizada para este artigo.
Nele, verifica-se, crônica a crônica, a quantidade total e as
categorias mais recorrentes dos operadores argumentativos
identificados. Com isso, observa-se a relevância e a onipresença
da argumentação nos textos de Abreu, a partir do escopo teórico
fornecido pela Semântica Argumentativa. Além disso, a temática
que os rege, o diagnóstico positivo e recente para HIV/Aids, lança
luz para uma questão de saúde pública que, assim como nos anos
1990 e apesar dos avanços proporcionados pela ciência, ainda está
longe de ser plenamente solucionada.

Quadro 2 – Operadores argumentativos nas três crônicas


analisadas de Caio Fernando Abreu
Quantidade total
Categorias de operadores
Crônica de operadores
argumentativos mais recorrentes
argumentativos
Primeira carta Adição de elementos com o mesmo
para além do 52 operadores peso semântico (16 ocorrências)
muro (ABREU, argumentativos Oposição / contraste (7 ocorrências)
1994a) Comparação (7 ocorrências)
Segunda carta Adição de elementos com o mesmo
para além dos 37 operadores peso semântico (22 ocorrências)
muros (ABREU, argumentativos Afirmação plena (6 ocorrências)
1994b) Finalidade (3 ocorrências)
Adição de elementos com o mesmo
Última carta peso semântico (28 ocorrências)
para além dos 49 operadores Oposição / contraste (6 ocorrências)
muros (ABREU, argumentativos
1994c) Finalidade (4 ocorrências)
Restrição (4 ocorrências)
Fonte: o autor.

180 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
Considerações finais

Neste artigo, verificou-se a relevância dos operadores


argumentativos para o delineamento das opiniões de Caio
Fernando Abreu nas crônicas Primeira carta para além do muro
(ABREU, 1994a), Segunda carta para além dos muros (ABREU,
1994b) e Última carta para além dos muros (ABREU, 1994c). O
autor faz uso, principalmente, dos operadores que adicionam
elementos com o mesmo peso semântico, que, ao lado daqueles
que indicam afirmação plena, comparação, finalidade, oposição
e restrição, direciona interpretações. Sobre a pergunta-problema
(como os operadores argumentativos são utilizados por Abreu na
revelação pública de que vive com o vírus HIV?), notou-se que,
com o emprego dos operadores das categorias supracitadas, o
escritor investe em descrições, em generalizações, em comparações,
em objetivos e em discussões para revelar argumentativamente
a experiência do diagnóstico e do internamento por HIV/Aids.
Além dos operadores, há ainda outros elementos que contribuem
para esse processo, como adjetivos, dêiticos, intensificadores e
modalizadores, que, apesar de citados, não foram objeto desta
análise, em virtude do seu limite de extensão.
Sabe-se que é constitutivo de qualquer enunciado
determinar encadeamentos com outros enunciados e, a partir
disso, orientar os interlocutores a conclusões específicas. Como
afirma Koch (1984, p. 104), “para descrever tais enunciados, torna-
se necessário determinar a sua orientação discursiva, ou seja, as
conclusões para as quais ele pode servir de argumento”. Assim,
analisar os operadores argumentativos e seus efeitos de sentidos
são condição sine qua non para se compreender enunciados como
os que compõem as crônicas deste artigo. As maneiras como

181 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
Abreu justifica o objetivo de cada um dos textos, elenca e compara
elementos e discute e conclui pontos de vista revelam, por meio do
uso dos operadores, a sua argumentação a respeito da experiência
com HIV/Aids. Essa argumentação busca, como se verificou,
orientar os leitores a um entendimento sobre o sofrimento e a
condição de saúde do autor, estimulando neles um comportamento
empático, solidário e respeitoso. Pode ser que muitos deles tenham
até mudado de opinião sobre as pessoas que vivem com HIV,
aqueles que, como diz o escritor na terceira crônica, acham que
o vírus só acomete “gente maldita”. Por fim, nota-se, também, na
análise realizada, a herança da tradição retórica, resgatada por
Oliveira (2002; 2003; 2004); da Antiguidade até o século XXI, os
estudos retóricos e argumentativos se desenvolveram e permitem,
hoje, estudos aprofundados de textos os mais diversos.

182 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
ANEXOS

Primeira carta para além do muro (ABREU, 1994a, p. D11)

Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha


que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela.
Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei
também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para
mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por
favor, tente entender o que tento dizer.
É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é
mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa
mexer com funduras – como Clarice, feito Pessoa. Em Carson
McCullers doía fisicamente, no corpo feito de carne e veias e
músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora. Nestas duas
mãos que você não vê sobre o teclado, com suas veias inchadas,
feridas, cheias de fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas
nas veias para dentro das quais escorrem líquidos que, dizem,
vão me salvar.
Dói muito, mas eu não vou parar. A minha não-desistência
é o que de melhor posso oferecer a você e a mim neste momento.
Pois isso, saiba, isso que poderá me matar, eu sei, é a única coisa
que poderá me salvar. Um dia entenderemos, talvez.
Por enquanto, ainda estou um pouco dentro daquela coisa
estranha que me aconteceu. É tão impreciso chamá-la assim,
a Coisa Estranha. Mas o que teria sido? Uma turvação, uma
vertigem. Uma voragem, gosto dessa palavra que gira como um
labirinto vivo, arrastando pensamentos e ações nos seus círculos
cada vez mais velozes, concêntricos, elípticos. Foi algo assim que
aconteceu na minha mente, sem que eu tivesse controle algum

183 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
sobre o final magnético dos círculos içando o início de outros para
que tudo recomeçasse. Todos foram discretos, depois, e eu também
não fiz muitas perguntas, igualmente discreto. Devo ter gritado,
e falado coisas aparentemente sem sentido, e jogado coisas para
todos os lados, talvez batido em pessoas.
Disso que me aconteceu, lembro só de fragmentos tão
descontínuos que. Que – não há nada depois desse que dos
fragmentos – descontínuos. Mas havia a maca de metal com
ganchos que se fechavam feito garras em torno do corpo da
pessoa, e meus dois pulsos amarrados com força nesses ganchos
metálicos. Eu tinha os pés nus na madrugada fria, eu gritava por
meias, pelo amor de Deus, por tudo que é mais sagrado, eu queria
um par de meias para cobrir meus pés. Embora amarrado como
um bicho na maca de metal, eu queria proteger meus pés. Houve
depois a máquina redonda feita uma nave espacial onde enfiaram
meu cérebro para ver tudo que se passava dentro dele. E viram,
mas não me disseram nada.
Agora vejo construções brancas e frias além das grades
deste lugar onde me encontro. Não sei o que virá depois deste
agora que é um momento após a Coisa Estranha, a turvação que
desabou sobre mim. Sei que você não compreende o que digo,
mas compreenda que eu também não compreendo. Minha única
preocupação é conseguir escrever estas palavras – e elas doem, uma
por uma – para depois passá-las, disfarçando, para o bolso de um
desses que costumam vir no meio da tarde. E que são doces, com
suas maçãs, suas revistas. Acho que serão capazes de levar esta
carta até depois dos muros que vejo a separar as grades de onde
estou daquelas construções brancas, frias.
Tenho medo é desses outros que querem abrir minhas veias.
Talvez não sejam maus, talvez eu apenas não tenha compreendido

184 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
ainda a maneira como eles são, a maneira como tudo é ou tornou-
se, inclusive eu mesmo, depois da imensa Turvação. A única
coisa que posso fazer é escrever – essa é a certeza que te envio, se
conseguir passar esta carta para além dos muros. Escuta bem, vou
repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer
é escrever, a única coisa que posso fazer é escrever.

Segunda carta para além dos muros (ABREU, 1994b, p. D11)

No caminho do inferno encontrei tantos anjos. Bandos,


revoadas, falanges. Gordos querubins barrocos com as bundinhas
de fora; serafins agudos de rosto pálido e asas de cetim; arcanjos
severos, a espada em riste para enfrentar o mal. Que no caminho
do inferno encontrei, naturalmente, também demônios. E a
hierarquia inteira dos servidores celestes armada contra eles.
Armas do bem, armas da luz: no pasarán!
Nem tão celestiais assim, esses anjos. Os da manhã usam
uniforme branco, máscaras, toucas, luvas contra infecções, e há
também os que carregam vassouras, baldes com desinfetantes.
Recolhem as asas e esfregam o chão, trocam lençóis, servem café,
enquanto outros medem pressão, temperatura, auscultam peito
e ventre. Já os anjos debochados do meio da tarde vestem jeans,
couro negro, descoloriram os cabelos, trazem doces, jornais, meias
limpas, fitas de Renato Russo celebrando a vitória de Stonewall,
notícias da noite (onde todos os anjos são pardos), recados de
outros anjos que não puderam vir por rebordosa, preguiça ou
desnecessidade amorosa de evidenciar amor.
E quando sozinho, depois, tentando ver os púrpuras do
crepúsculo além dos ciprestes do cemitério atrás dos muros – mas
o ângulo não favorece, e contemplo então a fúria dos viadutos

185 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
e de qualquer maneira, feio ou belo, tudo se equivale em vida
e movimento – abro janelas para os anjos eletrônicos da noite.
Chegam através de antenas, fones, pilhas, fios. Parecem-se às
vezes com Claudia Abreu (as duas, minha brava irmã e a atriz de
Gilberto Braga), mas podem ter a voz caidaça de Billie Holiday
perdida numa FM ou os vincos cada vez mais fundos ao lado da
boca amarga de José Mayer. Homens, mulheres, você sabe, anjos
nunca tiveram sexo. E alguns trabalham na TV, cantam no rádio.
Noite alta, meio farto de asas ruflando, liras, rendas e clarins,
despenco no sono plástico dos tubos enfiados em meu peito. E
ainda assim eles insistem, chegados desse Outro Lado de Todas
as Coisas. Reconheço um por um. Contra o fundo blue de Derek
Jarman, ao som de uma canção de Freddy Mercury, coreografados
por Nurelev, identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka.
Com Galizia, Alex Vallauri espia rindo atrás da Rainha do Frango
Assado e ah como quero abraçar Vicente Pereira, e outro Santo
Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nelson
Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de
Cyrill Collard, enquanto Wilson Barros esbraveja contra Peter
Greenaway, apoiado por Nelson Perlongher. Ao lado de Lóri
Finokiaro, Hervé Guibert continua sua interminável carta para
o amigo que não lhe salvou a vida. Reinaldo Arenas passa a mão
devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram.
Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha
fria: “Quem tem um sonho não dança, meu amor.”
Eu desperto, eu digo sim. E tudo recomeça.
Às vezes penso que todos eles parecem vindos das margens
do rio Narmada, por onde andaram o menino cego cantor, a
mulher mais feia da Índia e o monge endinheirado dos outras de
Gita Metha. Às vezes penso que todos são cachorros com crachás

186 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
nos dentes, patas dianteiras furadas por brasas de cigarro para
dançar melhor, feito o conto que Lygia Fagundes Telles mandou. E
penso junto, sem relação aparente com o que vou dizendo: sempre
que vejo ou leio Lygia, fico estarrecido de beleza.
Pois repito, aquilo que eu supunha fosse o caminho do
inferno está juncado de anjos. Aquilo que suja treva parecia
guarda seu fio de luz. Nesse fio estreito, esticado feito corda
bamba, nos equilibramos todos. Sombrinha erguida bem alto,
pé ante pé, bailarinos destemidos do fim deste milênio pairando
sobre o abismo.
Lá embaixo, uma rede de asas ampara nossa queda.

Última carta para além dos muros (ABREU, 1994c, p. D11)

PORTO ALEGRE – Imagino que você tenha achado as


duas cartas anteriores obscuras, enigmáticas como aquelas dos
almanaques de antigamente. Gosto sempre do mistério, mas gosto
mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo
agora assim, mais claramente. Não vejo nenhuma razão para
esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo.
Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres,
suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e,
à revelia dele, fiz O teste. Aquele. Depois de uma semana de
espera agoniada, o resultado: HIV positivo. O médico viajara para
Yokohama, Japão. O teste na mão, fiquei três dias bem natural,
comunicando à família, aos amigos. Na terceira noite, amigos
em casa, me sentindo seguro – enlouqueci. Não sei detalhes.
Por autoproteção, talvez, não lembro. Fui levado para o Pronto
Socorro do Hospital Emílio Ribas com a suspeita de um tumor

187 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
no cérebro. No dia seguinte, acordei de um sono drogado num
leito da enfermaria de infectologia, com minha irmã entrando
no quarto. Depois, foram 27 dias habitados por sustos e anjos –
médicos, enfermeiras, amigos, família, sem falar nos próprios – e
uma corrente tão forte de amor e energia que amor e energia
brotaram dentro de mim até tornarem-se uma coisa só. O de
dentro e o de fora unidos em pura fé.
A vida me dava pena, e eu não sabia que o corpo (“meu
irmão burro”, dizia São Francisco de Assis), podia ser tão frágil e
sentir tanta dor. Certas manhãs chorei, olhando através da janela
os muros brancos do cemitério no outro lado da rua. Mas à noite,
quando os néons acendiam, de certo ângulo a Dr. Arnaldo parecia
o Boulevard Voltaire, em Paris, onde vive um anjo sufista que vela
por mim. Tudo parecia em ordem, então. Sem rancor nem revolta,
só aquela imensa pena de Coisa Vida dentro e fora das janelas, bela
e fugaz feito as borboletas que duram só um dia depois do casulo.
Pois há um casulo rompendo-se lento, casca seca abandonada.
Após, o vôo do Ícaro perseguindo Apolo. E a queda?
Aceito todo dia. Conto para você, porque não sei ser senão
pessoal, impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora
continue o mesmo. Sei que você compreende. Sei também que,
para outros, esse vírus de science fiction só dá em gente maldita.
Para esses, lembra Cazuza: “Vamos pedir piedade, Senhor, piedade
para essa gente careta e covarde”. Mas para você, revelo humilde:
o que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e
sangue e musgo do tempo e creme chantilly às vezes e confetes de
algum carnaval, descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e
deslumbrante. Precisamos suportar. E beijá-la na boca.
De alguma forma absurda, nunca estive tão bem. Armado
com as armas de Jorge. Os muros continuam brancos, mas agora

188 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García
Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair;
há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino
Deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que
era aqui o porto. Nunca se sabe até que porto seguro, mas - para
lembrar Ana C., que me deteve à beira da janela - como não se
pode ancorar um navio no espaço, ancora-se neste porto. Alegre
ou não: ave Lya Luft, ave Iberê, Quintana e Luciano Alabarse, chê.
Vejo Dercy Gonçalvez, na Hebe, assisto A Falecida de
Gabriel Villela no Teatro São Pedro; Maria Padilha conta histórias
inéditas de Vicente Pereira; divido sushis com a bivariana Yolanda
Cardoso; rezo por Cuba; ouço Bola de Nieve; gargalho com Déa
Martins; desenho a quatro mãos com Laurinha; leio Zuenir
Ventura para entender o Rio; uso a estrela do PT no peito (who
knows?); abro o I Ching ao acaso: Shêng, a Ascensão; não perco
Éramos Seis e agradeço, agradeço, agradeço.
A vida grita. E a luta, continua.

Referências

ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e


emoção. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.

ABREU, Caio Fernando. Primeira carta para além do muro. O Estado


de S. Paulo, São Paulo, 21 ago. 1994a. Caderno 2, p. D11.

ABREU, Caio Fernando. Segunda carta para além dos muros. O Estado
de S. Paulo, São Paulo, 04 set. 1994b. Caderno 2, p. D11.

ABREU, Caio Fernando. Última carta para além dos muros. O Estado
de S. Paulo, São Paulo, 18 set. 1994c. Caderno 2, p. D11.

189 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
ABREU, Caio Fernando. Mais uma carta para além dos muros. O Estado
de S. Paulo, São Paulo, 24 dez. 1995. Caderno 2, p. D11.

CURTIUS, Ernest Robert. Literatura européia e idade média latina.


Tradução Teodoro Cabral. 2 ed. Brasília, DF: Instituto Nacional do
Livro, 1979.

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique


des sciences du langage. Paris: Éditions du Seuil, 1972.

JEOLÁS, Leila Sollberger. Risco e prazer: os jovens e o imaginário da


aids. Londrina, PR: Eduel, 2007.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. São Paulo:


Cortez, 1984.

OLIVEIRA, Esther Gomes de. A argumentação na Antigüidade.


Signum: estudos da linguagem, Londrina, dez. 2002, n. 5, p. 201-214.

OLIVEIRA, Esther Gomes de. Aspectos diferenciais dos operadores


argumentativos e dos marcadores discursivos. In: MACEDO, Joselice;
ROCHA, Maria José Campos; NETO, João Antônio de Santana Neto
(Org.). Discursos em análise. v. 1. Salvador, Universidade Católica do
Salvador, Instituto de Letras, 2003.

OLIVEIRA, Esther Gomes de. Argumentação: da Idade Média ao


Século XX. Signum: estudos da linguagem, Londrina, dez. 2004, n. 7/2,
p. 109-131.

OLIVEIRA, Esther Gomes de. Quadros dos operadores argumentativos.


18-18 out. 2018. 3 p. Notas de Aula. Anotação pessoal.

OLIVEIRA, Antonio Eduardo de. Corpo, memória e AIDS na obra de


Caio Fernando Abreu. Bagoas, Natal, 2009, n. 3, p. 115-126.

SOARES, Marcelo. A Aids. São Paulo: Publifolha, 2001.

190 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
SONTAG, Susan. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

THE ARCHIVE for Research in Archetypical Symbolism. O livro


dos símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas. Köln: Taschen, 2012.

UNAIDS. Estatísticas globais sobre HIV 2017. Disponível em: https://


unaids.org.br/wp-content/uploads/2018/07/2018_07_17_Fact-Sheet_
miles-to-go.pdf. Acesso em: 06 ago. 2018.

191 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
192 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 74 – p. 59-192 – jul./dez. 2019
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Os trabalhos deverão ser digitados em espaço simples, em


fonte 12, letra Times New Roman.
O trabalho deverá ter de 10 a 15 páginas.
A primeira página deverá conter o título do trabalho em
destaque (caixa alta e negrito). Dar um espaço e colocar o nome do
autor. Em nota de rodapé identificar a instituição a que pertence
e e-mail.
Fazer um resumo de, no máximo, oito linhas, em português
e em inglês (espanhol ou francês), mais palavras-chave.
As grandezas, unidades e símbolos deverão obedecer às
normas da ABNT.
As referências deverão estar imediatamente após o texto,
obedecendo às normas vigentes da ABNT, com sobrenome e
nome completos dos autores.

Os trabalhos deverão ser enviados para:


E-MAIL: isacris@uel.br

193

Você também pode gostar