Você está na página 1de 317

ISSN 2357-8513

N. 4 | DEZEMBRO DE 2O17
REAPCBH [recurso eletrônico] /Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte,

R464 Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte


/ v. 4, n. 4 (2017). – Belo Horizonte, MG: PBH, Fundação Municipal de
Cultura, 2017. 316 p.

Anual
Modo de acesso: http://www.pbh.gov.br/cultura/arquivo
ISSN: 2357‐8513

1. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte 2. Periódicos 3. Patrimônio Cultura I.


Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. II. Fundação Municipal de Cultura.

CDD 025.171

Endereço:
REAPCBH - Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
Rua Itambé, 227 - Floresta
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
30150-150 – Belo Horizonte/MG
e-mail: reapcbh.fmc@pbh.gov.br
Telefone: (31) 3277-4665
homepage: http://www.pbh.gov.br/cultura/arquivo e
http://www.bhfazcultura.pbh.gov.br

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
1
EXPEDIENTE

Prefeitura Municipal de Belo Horizonte Conselho Consultivo


Drª. Andrea Casa Nova Maia (UFRJ)
Fundação Municipal de Cultura Drª. Beatriz Kushnir (Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro)
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte Dr. Caio César Boschi (PUC Minas)
Drª. Cláudia Suely Rodrigues de
Carvalho (Fundação Casa de Rui
Conselho Editorial Barbosa/UFRJ)
Demilson Malta Vigiano Drª. Ivana Denise Parrela (Escola de
Gabriella Diniz Mansur Ciência da Informação – UFMG)
Lays Silva de Souza Drª. Janice Gonçalves (UDESC)
Drª. Júnia Sales (Faculdade de
Michelle Márcia Cobra Torre
Educação – UFMG)
Yuri Mello Mesquita Dr. Luiz Henrique Assis Garcia
(UFMG)
Normalização Bibliográfica Drª. Maria do Carmo Alvarenga
Rafaela de Araújo Patente Andrade Gomes (Fundação João
Pinheiro)
Drª. Regina Horta Duarte (Faculdade de
Revisão Filosofia e Ciências Humanas –
Michelle Márcia Cobra Torre UFMG)
Dr. Renato Pinto Venâncio (Escola de
Ciência da Informação – UFMG)
Design
Drª. Silvana Bojanoski (UFPel)
Assessoria de Comunicação – FMC Dr. Tiago dos Reis Miranda (CHAM –
Fotos da capa: Acervo APCBH Centro de História de Além-mar)

Diagramação
Michelle Márcia Cobra Torre

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
2
AGRADECIMENTOS

A REAPCBH é uma publicação eletrônica que tem por objetivo divulgar trabalhos
científicos que contribuam para o desenvolvimento dos debates sobre a história de Belo
Horizonte, assim como o campo de estudos arquivísticos. Graças à valiosa colaboração
de diversas pessoas que aceitaram dispensar seu tempo e seus conhecimentos em
avaliações criteriosas, a Revista chega a sua quarta edição. Agradecemos a atenção
dispensada e os trabalhos realizados com empenho e dedicação.

Agradecemos também ao Conselho Consultivo pela disposição em sempre nos orientar


no necessário.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
3
SUMÁRIO

Editorial ....................................................................................................................... 06

ARTIGOS

Relatos de Raul Tassini sobre a Pampulha: impressões que vão além do discurso da
Pampulha moderna ..................................................................................................... 08
Carolina Paulino Alcântara
Victor Tadeu de Oliveira Pereira

“Triste horizonte”: a Serra do Curral del Rey, o marco geográfico da capital de


Minas (1897-1975) ....................................................................................................... 30
Alessandro Borsagli

A formação urbana de Belo Horizonte: o parque municipal e o viaduto Santa


Tereza .......................................................................................................................... 53
Gabriel Esteves Campos Costa

O "Projeto Lagoinha" na cidade de Belo Horizonte: memória e esquecimento nas


comemorações do centenário (década de 1990) ...................................................... 72
Renata Lopes

Memória documental: um importante contributo para a compreensão do processo


de desorganização social no hipercentro de Belo Horizonte
...................................................................................................................................... 95
Bruna Hausemer

As árvores e a cidade: temas de pesquisa no catálogo de fontes sobre arborização em


Belo Horizonte .......................................................................................................... 120
Carolina Marotta Capanema

Avenida Afonso Pena – Belo Horizonte/MG: análise de suas três espacialidades


(baixa, média e alta) ................................................................................................ 150
Fernando Henrique da Silva Roque
Jackson Junio Paulino de Morais
Lana Marx de Souza
Regina Gonçalves Bastos
Winnie Parreira Patrocínio

Reconstruindo uma memória esquecida: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário


de Contagem em seus primórdios e o lugar do povo negro ............................... 169
Kelly Rabello
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
4
A frequência e as temáticas de uso no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
pelos estudantes do curso de História da UFMG ..................................................... 192
Bruna Michels
Rafaela Patente

Eugenia e raça em Belo Horizonte: um discurso a partir da Revista Alterosa ...... 212
Ivana Morais Silva de Carvalho
Lucimar Lacerda Machado

Memória e manifestações Art Déco nas páginas de Bello Horizonte .................... 237
Carlos Eduardo de Almeida Oliveira

Ensino de história, educação patrimonial e relações de gênero: uma análise da


oficina desvendando o arquivo público .................................................................... 253
Tiago Vidal Medeiros

Pensar as ações educativas do Museu Casa Kubitschek: abordagens e práticas


experimentais para a educação em museus ............................................................. 265
Ana Karina Ribeiro Bernardes
Pollyanna Lacerda Machado

(Re) descobrindo a Pampulha: patrimônio, discursos e alteridade


...................................................................................................................................... 279
Ana Carolina
Bernardo Guimarães
Bryan Martins
Gustavo Dias
Gustavo Matos
Marco Antônio
Náthalekaren Oliveira
Scarlath Ohana
Tamires Celi da Silva

SEÇÃO - ARQUIVO NA SALA DE AULA

Proposta pedagógica 1 ............................................................................................... 297


Moacir Fagundes de Freitas, Luíza Rabelo Parreira, Douglas de Freitas

Proposta pedagógica 2 ............................................................................................... 303


Marcelina das Graças de Almeida

ENTREVISTA
Luciana Teixeira de Andrade – professora PUC Minas ............................................ 307

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
5
EDITORIAL

Abrimos a presente edição com o artigo “Relatos de Raul Tassini sobre a


Pampulha: impressões que vão além do discurso da Pampulha moderna” escrito por
Carolina Paulino Alcântara e Victor Tadeu de Oliveira Pereira. O artigo coloca em foco
a coleção de textos do cronista belo-horizontino Raul Tassini sobre o projeto de
urbanização da Pampulha. Na esteira das reflexões sobre a história da cidade em seus
120 anos, seguimos com o artigo de Alessandro Borsagli, o qual realiza uma incursão
histórico-geográfica pela Serra do Curral, um dos principais referenciais quando da
construção de Belo Horizonte.
Já Gabriel Esteves Campos Costa propõe uma reflexão sobre as transformações
urbanas de Belo Horizonte focalizando o Viaduto Santa Tereza e o Parque Municipal
Américo Renné Giannetti. A pesquisa de Renata Lopes investiga o bairro Lagoinha
desde o início da capital até os dias de hoje, passando pelas comemorações do centenário
da cidade, momento no qual ocorreu um processo de revitalização da Lagoinha visando
a ressignificação de sua história. Em seguida, o artigo de Bruna Hausemer explora as
mudanças no hipercentro de Belo Horizonte, desde a inauguração da cidade até a década
de 1980.
O artigo de Carolina Marotta Capanema discute o tema da arborização em Belo
Horizonte por meio do Catálogo de Fontes: arborização na Legislação Municipal de
Belo Horizonte, publicação do APCBH. No artigo “Avenida Afonso Pena – Belo
Horizonte/MG: análise de suas três espacialidades (baixa, média e alta)” os autores
apresentam o espaço de Belo Horizonte ao longo da Avenida Afonso Pena, mostrando
como ela se fragmenta e se diferencia com seus usos e fluxos.
Kelly Rabello apresenta em seu artigo a história da fundação da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte.
Bruna Michels e Rafaela Patente investigam a frequência e as temáticas de uso no
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte pelos estudantes do curso de História da
UFMG. Nesse percurso, as autoras exploram as potencialidades dos estudos de usuários,
apresentando a metodologia utilizada para essa pesquisa e contribuindo, assim, para
outros trabalhos que se dediquem a essa questão.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
6
Esta edição da REAPCBH também traz dois artigos sobre as revistas Alterosa e
Bello Horizonte, que compõem o acervo do APCBH, sendo fontes valiosas de pesquisas
sobre a cidade. O artigo de Ivana Morais Silva de Carvalho e Lucimar Lacerda Machado
analisa a revista Alterosa, publicação que circulou em Belo Horizonte entre 1939 e 1964.
As autoras investigam a relação das questões políticas do momento da Segunda Guerra
Mundial com a revista, demonstrando como os discursos de eugenia e de raça
perpassavam a publicação e a sociedade da época. Carlos Eduardo de Almeida Oliveira
trata em seu artigo como a revista Bello Horizonte foi um referencial da cultura belo-
horizontina das décadas de 1930 e 1940, assim como o Art Déco apareceu na publicação
e como foi sendo superado por outras estéticas.
Seguindo nosso percurso, apresentamos três artigos que refletem sobre
experiências de educação patrimonial. Tiago Vidal Medeiros apresenta e discute a oficina
Desvendando o Arquivo Público, ação educativa desenvolvida pelo Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul. Ana Karina Bernardes e Pollyanna Machado apresentam a
proposta de um olhar diferenciado para o Museu Casa Kubitschek e seu entorno,
buscando oferecer ao visitante experiências e vivências diferenciadas. Em “(Re)
descobrindo a Pampulha: patrimônio, discursos e alteridade”, os autores relatam a
experiência de um trabalho desenvolvido com alunos de Ensino Médio de uma escola nas
proximidades do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, buscando entender a relação que
esses estudantes estabelecem com o conjunto.
Por fim, apresentamos duas propostas de trabalho, com documentos históricos,
voltadas para estudantes de ensino fundamental e médio. A primeira proposta pedagógica
focaliza a história do bairro Confisco e a segunda trata do cemitério mais antigo da capital,
o Cemitério do Bonfim. Encerramos a edição com a entrevista da professora da PUC
Minas, Luciana Teixeira de Andrade, com uma reflexão sobre Belo Horizonte e o campo
de pesquisas sobre a cidade. Desejamos a todos uma boa leitura!

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
7
RELATOS DE RAUL TASSINI SOBRE A PAMPULHA: IMPRESSÕES QUE
VÃO ALÉM DO DISCURSO DA PAMPULHA MODERNA

RAUL TASSINI’S STORIES ABOUT PAMPULHA: IMPRESSIONS THAT GO


BEYOND THE CONTEMPORARY PAMPULHA DISCOURSE

Carolina Paulino Alcântara*


Victor Tadeu de Oliveira Pereira**

Resumo

Em 1897, a inauguração de Belo Horizonte concretizava o sonho das elites mineiras de


fazer da nova capital um centro urbano avançado em Minas Gerais. Desde então, a busca
pelo o que se considerava moderno acompanhou a vida da capital mineira, que tem sua
história marcada pela constante demolição do “velho” para a construção do “novo”.
Exemplo disso é a região da Pampulha, situada geograficamente ao norte de Belo
Horizonte, que recebeu diversos empreendimentos nas décadas de 1930 e 1940 com o
propósito de dar novos ares à capital. Com a intenção de promover análises sobre relatos
de memorialistas belo-horizontinos sobre a cidade, neste artigo serão analisadas as
impressões de Raul Tassini (1909-1992) sobre Belo Horizonte, dando enfoque especial
para o seu olhar sobre a Pampulha. O objetivo é perceber os aspectos que evidenciam os
impasses da modernidade local por meio dos textos do cronista Raul Tassini.

Palavras-chave: Raul Tassini; Pampulha; Modernidade.

Abstract

In 1897, the inauguration of Belo Horizonte materialized the Minas Gerais elite's dream
of making the new capital an advanced urban center in the state. Since then, the quest for
what could be considered contemporary went along with the life of the capital, which had
its history characterized by for the constant demolition of "the old" for the construction
of "the new". One example is the Pampulha region, geographically located in the north of
Belo Horizonte, which received several investments in the 1930s and 1940s, as an attempt
to renew the capital as a whole. In order to analyze narratives of memorialists who live

*
Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2015) com estudo sobre os debates em torno
da modernidade em Diamantina, na virada do século XIX-XX. Trabalhou no setor Educativo do Museu
Casa Kubitschek, mantido pela Fundação Municipal de Cultura - Prefeitura de Belo Horizonte, entre 2014
e 2015. Atualmente, é professora de história da rede estadual de Minas Gerais e pesquisadora na área de
Patrimônio Cultural. Endereço eletrônico: carolinapalcantara@hotmail.com.
**
Graduado em História pela Uni-BH (2017). Estagiou no museu Casa Kubitschek, mantido pela Fundação
Municipal de Cultura - Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, entre 2014 e 2016. Endereço eletrônico:
victorolp21@gmail.com

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
8
in the city, we will, in this paper, examine the impressions of Raul Tassini (1909-1992)
regarding the capital, giving special emphasis to its view related to Pampulha. The
objective is to understand, through the texts of the chronicler Raul Tassini, the aspects
that emphasize the local novelty.
Keywords: Raul Tassini; Pampulha; Modernity.

Introdução

Este artigo é fruto de uma pesquisa realizada, em 2015, nos arquivos do Museu
Histórico Abílio Barreto (MHAB) para a produção do evento “I Semana de Arte Moderna
da Casa Kubitschek”. O evento, promovido por meio da Fundação Municipal de Cultura
de Belo Horizonte pelo Museu Casa Kubitschek, tinha como objetivo suscitar reflexões
acerca do movimento modernista Brasileiro, dando enfoque especial às suas
manifestações em Minas Gerais.
Para as intervenções nos espaços do museu a partir de uma ação educativa,
procuramos diversos relatos de memorialistas que escreveram sobre Belo Horizonte dos
anos 1940 e 1950. Nossa proposta era resgatar as impressões de antigos cronistas sobre a
capital mineira.
Durante a pesquisa realizada no acervo do MHAB, encontramos um conjunto de
doze caixas contendo anotações diversas de Raul Tassini (1909-1992) sobre inúmeros
assuntos, que vão de poemas a informações sobre Belo Horizonte (sua construção, espaço
urbano, imigração italiana, cotidiano, entre outros), passando por biografias, assuntos
políticos, históricos, literários e musicais.
Os itens da coleção particular do autor, tanto do Museu Histórico de Belo
Horizonte (MHBH)1 quanto do MHAB, são originais da década de 1941, quando Raul
Tassini doou cerca de dez objetos. Em 1992, após a sua morte, seus familiares doaram ao
museu trinta e quatro objetos, uma coleção de caixas de fósforo, um conjunto de fichas
de ônibus e uma coleção de lápis. Quatro anos depois, em 1996, seu sobrinho, Ronaldo
Boschi, entregou ao museu um acervo documental formado por um conjunto de papéis
acumulados pelo autor contendo cartas, livros, folhetos, recortes e anotações sobre as
cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro, além de crônicas e memórias (ALVES, 2008,

1
Segundo Célia Regina Araújo Alves, Raul Tassini trabalhava no Arquivo Geral da Prefeitura, quando
Abílio Barreto manifestou a possibilidade de criar um museu para a cidade de Belo Horizonte. Tassini doou
dois antigos candelabros da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem, participando da formação do
núcleo inicial do acervo do Museu Histórico de Belo Horizonte, atual MHAB (ALVES, 2008, p.117).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
9
p.118-119). Esse acervo documental é atualmente denominado por “Coleção Raul
Tassini”.
Os relatos do belo-horizontino, filho de imigrantes italianos, artista plástico,
funcionário do MHBH, antiquário e colecionador também trazem informações sobre o
cotidiano na Pampulha, desde o início da urbanização da região. O interesse pelos escritos
do autor se justifica pela forma como ele abordou a Pampulha, ora colecionando
informações que enalteciam as edificações modernas, alimentando o glamour que estava
em volta do empreendimento de Juscelino Kubitschek, ora revelando acidentes, coisas
banais do cotidiano e situações que contrastavam com a ideia de modernidade.
No livro Pampulha Múltipla: uma região da cidade na leitura do Museu Histórico
Abílio Barreto (2007), os autores dos artigos utilizaram os relatos de Raul Tassini para
falar sobre a história da Pampulha, desde a sua inauguração, passando pelas décadas de
1960 e 1970. Esse e outros estudos sobre região2 demonstram como os escritos do autor
são fontes importantes para dizer sobre a memória do bairro.
Houve por parte do cronista a intenção de registrar sua vivência e impressões
sobre a cidade de Belo Horizonte. Exemplo disso são os objetos e textos colecionados por
ele em um acervo pessoal e o livro Verdades históricas e pré-históricas de Belo
Horizonte, antes Curral D´El Rey, escrito em 1947. Nessa obra, ele deixou registradas
crônicas e textos de memória feitos a partir da sua prática de atuar na cidade. Nesse
sentido, Tassini entendia que a história poderia ser contada a partir de vestígios
arqueológicos e alguns fragmentos locais e memórias de terceiros. A diferença entre Raul
Tassini e Abílio Barreto na idealização para a construção de um museu histórico para
capital consistia exatamente nessa percepção, já que Abílio Barreto procurava escrever a
história dita “oficial” de Belo Horizonte a partir da análise de documentos escritos e
governamentais.3
Nesse sentido, para analisarmos a coleção de textos do cronista, precisaremos
levar em consideração o contexto de sua produção. Pois, ao se tratar da memória, é
necessário perguntar às fontes sobre as intenções de quem as produziu, seja no desejo de
lembrar algo ou no intuito de não mencionar algum fato. Afinal, lidar com a memória na

2
Verificar os estudos: Alves (2008) e Bahia (2011).
3
Ver a entrevista de Célia Regina Araújo Alves para o projeto “Novos Registros” do Arquivo Público da
cidade de Belo Horizonte, disponível no portal da Prefeitura do município:
http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=33759&chPlc=33759. Para
saber mais sobre o estudo da autora, ver a dissertação de mestrado Alves (2008).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
10
produção da História exige identificar que sua construção se dá a partir das memórias
individuais e coletivas e os conflitos provenientes.4 De certa maneira, há em torno da
história da Pampulha disputas entre aquilo que se desejava exaltar e abafar no processo
de transformação da região nas décadas de 1940 até 1970. Como mencionado, Raul
Tassini ora fazia críticas negativas para o projeto de urbanização da Pampulha, ora
demonstrava entusiasmo ou reconhecia a grandiosidade do projeto. De toda forma, ele
escreveu sobre a história da Pampulha de modo que a sua memória fosse integrada à
memória de Belo Horizonte, contribuindo para construção da história da cidade.
Tendo em vista o que foi exposto, este artigo será dividido em duas partes.
Primeiramente, faremos um apanhado histórico sobre a criação de Belo Horizonte a partir
dos ideais e símbolos da modernidade, presentes no início da construção da capital
mineira e que eram compartilhados pelas elites urbanas de outras cidades do país e do
mundo. Para isso, analisaremos os significados atribuídos à modernidade no contexto em
questão. 5
Passados um pouco mais de quarenta anos da inauguração da cidade, a busca pelo
o que seria considerado moderno também determinou as ações de outros prefeitos, como
Juscelino Kubitschek, que idealizou e financiou a construção do complexo arquitetônico
na região norte de Belo Horizonte. Com efeito, analisaremos símbolos e discursos em
torno da Pampulha dando enfoque na sua “glamourização” como um grande centro
moderno de Minas Gerais.
Sustentamos a ideia de que existe em torno dos projetos urbanos para Belo
Horizonte uma vontade de fazer da modernidade a “vocação” da cidade. Isto é, a capital
nasceria sob a égide moderna e assim deveria permanecer, sempre se atualizando e
acompanhando o que aconteceria em outros centros urbanos do país e do mundo.
A dicotomia “antigo x novo” para pensar a história da capital mineira ao longo de
sua existência foi tema do artigo publicado por Thais Veloso Cougo Pimentel (1997). A
autora destaca que Belo Horizonte carrega consigo um estigma da cidade moderna que é
alimentado pelo “ímpeto renovador”, que acometeu diferentes gerações de políticos,

4
Para uma discussão conceitual sobre a memória e sua relação com a História, ver Pollak (1989; 1992).
5
Esta parte do artigo, que trata sobre os significados atribuídos à modernidade para contextualizar a criação
da cidade de Belo Horizonte, é baseada em análises feitas na dissertação de mestrado de um dos autores
deste texto. O tema do primeiro capítulo do estudo em questão é sobre os ideais que impulsionaram as elites
de várias cidades da América Latina, inclusive as do interior do Brasil e, no caso, de Minas Gerais, a
promover melhoramentos urbanos. Para mais informações, ver Alcântara (2015).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
11
empreendedores e moradores. Essa vontade de transformar em antigo tudo que
incomodava fazia com que pudesse ser “passível de ser substituído pelo moderno”
(PIMENTEL, 1997, p. 61). Para a autora, a construção do complexo arquitetônico da
Pampulha, na década de 1940, foi um elemento importante para alimentar a sensação de
que havia em Belo Horizonte muita coisa antiga. A partir de sua construção, a tônica do
desenvolvimento da capital nos anos seguintes passou a ser cada vez mais o progresso e
a modernização, elementos que marcaram a administração de Juscelino Kubitschek.
As impressões de uma Belo Horizonte que sempre buscava ser moderna não
escaparam aos olhos de diversos cronistas, como Carlos Drummond de Andrade, Cyro
dos Anjos e Pedro Nava, que deixaram percepções ambivalentes em relação às
transformações urbanas por qual a capital passou nas primeiras décadas.6 Raul Tassini,
cujos textos serão objetos de análise deste artigo, também escreveu sobre o cotidiano da
cidade por meio do qual buscou dizer sobre as transformações do espaço. Ao mesmo
tempo, procurava dizer sobre aquilo que permanecia, como os traços arquitetônicos das
edificações construídas no momento da inauguração da capital e que ainda estavam
presentes em ruas e avenidas. Segundo Célia Regina Araújo Alves, o memorialista saía
todas as manhãs à procura dos casarões condenados ao desaparecimento (ALVES, 2008,
p.118).
Dessa forma, as posições ambivalentes e contraditórias presentes na maioria dos
escritores, que vivenciaram a passagem da sociedade tradicional para a moderna nas
cidades, também podem ser percebidas em Tassini. O autor alimentava sentimentos
contraditórios, pois à medida que buscava acompanhar as modificações na paisagem belo-
horizontina, lamentava as diferenças que percebia, situação que lhe causava certo
saudosismo.
Na segunda parte deste artigo, analisaremos os relatos de Raul Tassini que tem
como tema a região da Pampulha. As impressões do cronista sobre o cotidiano informam
sobre os problemas enfrentados pela população local, revelando uma situação que
contrastava com a imagem de uma região próspera e moderna. Sendo assim, o objetivo
deste estudo é dizer sobre os impasses da modernidade local a partir da análise de seus
paradigmas e contradições.

6
O estudo de referência para pensar as diversas impressões sobre Belo Horizonte pelos modernistas é
Andrade (2004).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
12
Para isso, será apresentado um panorama histórico da região, destacando o início
do processo de ocupação – momento identificado por “Pampulha Velha” - para, em
seguida, abordar o seu contraste com a “Pampulha Nova”, que surgiu após o
empreendimento de Juscelino Kubitschek. Tassini comentou sobre essas diferenças
abordando como a população que vivia nas antigas fazendas e seus arredores fora excluída
do processo de modernização de Belo Horizonte.

A vocação de Belo Horizonte para modernidade: da sua construção à inauguração


de um complexo arquitetônico moderno na Pampulha

É possível imaginar uma cultura urbana mundial quando falamos das


transformações vividas pela sociedade ocidental, na virada do século XIX para o XX.
Muitos autores, como Marshall Berman (2007), por exemplo, chegam a dizer dos
processos de modernização das cidades, acompanhados naqueles séculos, como algo que
se expandiu e abarcou boa parte do mundo. Berman se referia ao “turbilhão” da vida
moderna que tem sido alimentado, em grande parte, pelas amplas descobertas nas ciências
físicas, os processos de industrialização, o aumento demográfico, os conflitos sociais, as
disputas econômicas e políticas, enfim, por todo um conjunto de transformações que
sacudiram, com maior ou menor grau, a vida de milhares de pessoas.
De Karl Marx, a frase “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, título da obra do
filósofo Marshall Berman (2007), exemplifica o imaginário de uma época, trazendo à
tona os anseios e temores do pensador e de seus contemporâneos frente a um mundo em
constante mudança. Marx viveu e descreveu a moderna sociedade burguesa como um
homem do século XIX, denunciando as contradições dessa classe que se firma e se
sustenta sempre na novidade, seja tecnológica, na forma de viver, de se relacionar e/ou
no consumo.
A análise do livro passa pelas impressões de Marx e de outros autores sobre o
espaço urbano. Esses sujeitos e tantos seguintes, ao andarem pelas cidades, viram surgir
indústrias, carros, edifícios, um número cada vez mais crescente de transeuntes, cafés e
lojas. Isso sem mencionar as constantes modificações de ruas, avenidas e calçadas
implementadas pelo poder público em cada grande centro. Tudo isso deixaria mais
evidente que viver a modernidade era presenciar o breve e o inconstante.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
13
Se essas questões suscitaram reflexões por parte das elites europeias e
estadunidenses, na América Latina a situação não foi diferente. Muitos países latino-
americanos passaram por mudanças econômicas, sociais e políticas que também
resultaram em transformações urbanas. Algo que pode ser verificado nas principais
cidades do continente. Outro importante fato, não menos importante, é que as elites,
alimentando a decisão de apagar o passado recente – associado ao período colonial,
principalmente -, iniciaram tais obras e projetos de embelezamento e reordenamento de
áreas públicas no desejo de fazer refletir uma imagem de prosperidade e modernidade.
Adrian Gorelik (1999) e José Luis Romero (2009), que se dedicaram ao estudo
sobre as transformações do espaço urbano na América Latina, destacam que essas
modificações estruturais partiram de uma “vontade ideológica” das lideranças locais que
desejavam acompanhar o que acontecia em outros países industrializados do globo. Ou
seja, ao passo que na Europa e nos Estados Unidos a consolidação da sociedade burguesa
modificou as relações sociais e de trabalho e, concomitantemente a isso, também
transformou radicalmente o espaço urbano, na América Latina um projeto político
adotado pelas elites, que ambicionavam conduzir seus países à modernidade, antecedeu
às necessidades de adequação do espaço urbano ao crescimento demográfico, por
exemplo. As cidades (re)planejadas e embelezadas tornaram-se, portanto, objetos
privilegiados e foram consideradas como um instrumento para se chegar a essa “outra”
sociedade, necessariamente mais moderna.
Os projetos de reordenação dos espaços urbanos não se limitaram apenas em
cidades da América Latina. Ao contrário, o que se viu em Viena, na virada do século XIX
para o XX, por exemplo, foi o nascimento de uma cidade calcada em princípios e valores
culturais de uma classe média, que assumiu o poder da cidade procurando transformá-la em
seu “bastião político, sua capital econômica e o centro de irradiação de sua vida intelectual”
(SCHORKE, 1988, p. 43). A Ringstrasse – uma ampla faixa de terra que separava a antiga
cidade interna e os subúrbios – era o centro dessa reconstrução urbana em Viena, com
edifícios públicos e residências particulares.
Ainda assim, é importante reforçar que conforme também destacou Adrian Gorelik
(1999), na Europa, onde a burguesia se consolidou como classe hegemônica, as
transformações materiais estavam diretamente relacionadas aos conflitos de valores que, ao
longo do tempo, foram gerando e se firmando na sociedade local. As cidades se firmaram
como palco tanto desse conjunto de modificações estruturais como dos modos de vida
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
14
inaugurados e difundidos pela burguesia. Se apoiando na técnica e na ciência e tendo como
doutrinas o progresso, a civilização e o uso da racionalidade, buscaram reformular seus
espaços urbanos a fim de solucionar os problemas ocasionados pela concentração
demográfica e industrialização. Procuraram também, através dessas mudanças, mostrar
para o restante do mundo seus valores e modos de vida.
É nesse sentido que as cidades latino-americanas não são apenas produto da
modernidade ocidental, mas “um produto criado como uma máquina para inventar a
modernidade, estendê-la e reproduzi-la” (GORELIK, 1999, p.55-56). Para o sociólogo
Anthony Giddens (1991) a modernidade é um fenômeno que se tornou mundial em sua
influência, com propagação das concepções culturais, econômicas, científicas e políticas
no decorrer do século XIX. Para o autor, essa onda de valores da modernidade atingiu os
países latino-americanos a partir da segunda metade dos oitocentos.
Portanto, chamamos a atenção do leitor para o fato de que essa “vontade
ideológica”, no qual se referiu Andrian Gorelik (1999), talvez tenha se sobreposto às
necessidades de transformações estruturais, tendo como exemplo as cidades europeias e
estadunidenses. Gorelik ainda afirma que a modernidade vivida na América do Sul foi um
caminho para a modernização, isto é, um conjunto de ideias que foram utilizadas como
justificativa para a modernização econômica, política e cultural.
Em relação ao que ocorreu no Brasil, foi a partir de 1870, com a dinamização
da economia cafeeira, que se assistiu a maiores investimentos nos maquinários,
transportes e portos para produção e escoamento do café. Assim é que eram visíveis
que as mudanças socioeconômicas, urbanísticas e demográficas, presenciadas em São
Paulo, procuravam assegurar à capital paulista uma imagem de entreposto comercial e
financeiro importante para as relações da lavoura do café com o capital internacional.
Para tanto, desenvolveu-se a incipiente indústria da região, foram construídas as
primeiras ferrovias e criadas infraestruturas de transporte, sanitárias, entre outros
(COSTA; SCHWARCZ, 2000, p.30). O fim da escravidão, em 1888, e a proclamação
da República, em 1889, fomentaram esses e outros projetos de modernização, como o
incentivo à imigração estrangeira - cujo desejo era substituir a mão de obra negra pela
do europeu e a promoção de melhoramentos no espaço urbano.
Para além de São Paulo, outras capitais do país também passaram por
procedimentos semelhantes e o mais emblemático foi o “bota-baixo” da capital
federal. No caso do Rio de Janeiro – onde o governo literalmente pôs abaixo casarões,
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
15
edifícios e cortiços, expulsando a população mais pobre das áreas centrais -, mais do
que solucionar os problemas causados pela falta de infraestrutura, as reformas
confirmam aquilo dito há pouco: um plano mais abrangente que procurava garantir o
aperfeiçoamento e modernização da nação Brasileira.7 A capital da República
divulgaria a imagem do Brasil no mundo, uma vez que foi eleita pelas elites nacionais
como “cartão-postal” da belle époque nos trópicos.8 A ideia central era aproximar a
paisagem urbana do Rio de Janeiro com a de Paris, depois da reformulação
implementada pelo Barão de Haussmann.9
Esses discursos e projetos em torno do urbano só fazem sentido quando
compreendermos que, no pensamento latino-americano do final do século XIX, a cidade
incorporava uma ideia que colocava em oposição à noção de civilização em relação ao
mundo da natureza e ao passado colonial. Isto é, o modelo de sociedade ideal que se
queria implementar tinha como elemento central a associação entre a cidade e a
civilização, fixando como indispensável a criação e/ou ampliação dos meios de
transporte e de comunicação, privilegiando o embelezamento do espaço urbano,
estabelecendo como meta a dinamização da economia, procurando modificar costumes
e introduzir novos hábitos entre as populações, e, entre outros aspectos, tendo como
perspectiva resolver os problemas de saúde pública.10
A criação de Belo Horizonte, projetada ainda no final dos oitocentos, insere-se
nesse contexto. A nova capital surgiria para atender aos anseios das elites mineiras que
desejavam garantir que Minas Gerais tivesse uma capital moderna bem aos moldes do
que a República inaugurava no país. Por isso, a edificação da nova capital, que seguiu
preceitos cientificistas e higienistas, é um bom exemplo do desejo de modernização do
espaço urbano como forma de evidenciar o progresso e a civilização.
Foram vários os embates e discussões acerca da transferência ou permanência da
capital em Ouro Preto, fato levado até o legislativo mineiro. De um lado estavam os

7
Para discussões mais aprofundadas sobre os projetos de modernização no período da Primeira República
a partir das ações dos engenheiros na reforma do Rio de Janeiro, ver Kropf (1996).
8
Para saber mais sobre a reforma da antiga capital do Brasil e as imagens divulgadas sobre a cidade no
exterior, conferir Carvalho (2012) e Costa; Schwarcz (2000).
9
Geroges Eugène Haussmann (1809-1891), mais conhecido como Barão de Haussmann, foi nomeado por
Napoleão III prefeito do Departamento de Seise (1863-1870), para realizar reformas em Paris,
transformando-a em um modelo de metrópole imitado em todo o mundo. Para saber mais sobre Haussmann
em Paris e suas influências na administração de Pereira Passos no Rio de Janeiro e outras cidades, ver
Jaime Larry Benchimol (1992) e Sandra Jatahy Pesavento (2002).
10
Ver Alcântara (2015).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
16
“antimudancistas”, que queriam a permanência de Ouro Preto, do outro os “mudancistas”,
que discordavam entre si acerca da escolha do local para a construção da nova capital.
Após diversas discussões, o projeto arquitetônico do engenheiro Aarão Reis foi o
escolhido e a cidade de Belo Horizonte seria a nova capital do estado. (ARRUDA, 2012,
p. 92-99)
O projeto do engenheiro Aarão Reis tem semelhanças com a concepção
arquitetônica da cidade argentina La Plata. Ambas foram escolhidas após os resultados
de estudos que levaram em consideração alguns pontos como disposição cartográfica da
cidade, abastecimento de água e comida, rede de esgoto e transporte (ARRAIS, 2009,
p.71).
Dessa forma, como afirma Rogério Arruda (2012, p.112), a proposta urbanística
para a nova capital se distanciava daquela encontrada nas antigas cidades coloniais. Afinal
os traçados irregulares davam lugar a linearidade, geometrização e higienização.
Raul Tassini é um entre outros memorialistas que divulgou a imagem de Belo
Horizonte como uma capital próspera. Em suas anotações sobre a arquitetura, ele
afirmava que a cidade mineira podia “se orgulhar, de ter sido, nas suas construções
antigas, erguidas a partir de 1894, uma das mais ornamentadas cidades do mundo, ê quiça,
dentre todas, a primeira”.11
Com a fundação da nova cidade, os setores administrativos do Estado também se
transferiram e várias famílias trocaram o interior pela capital. Esse processo “gerou uma
vida social incongruente com a proposta estética que a cidade representava”, pois sua
população não estava acostumada aos modos de viver das grandes metrópoles, o que criou
certa monotonia nos primeiros anos (JULIÃO, 1996, p.79).

Os novos residentes sentiam uma espécie de incongruência entre espaço


e a vida sociocultural [...]. Contraditoriamente, a vida sociocultural de
Ouro Preto e Mariana, no entanto, foi transportada juntamente com seus
novos habitantes, oriundos de cidades como estas, mantendo um estilo
de vida interiorano (PEREIRA, 2007, p.80).

No entanto, a população de Belo Horizonte foi aos poucos se expandindo. Isso se


fez acompanhado de uma transformação na vida cultural, que passou a ser mais dinâmica,

11
TASSINI, Raul. ARQ... [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/415.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
17
e ao desenvolvimento das estruturas, com melhorias urbanas a partir da pavimentação de
ruas e da construção de novas edificações.
Ao rememorar uma Belo Horizonte da sua infância para dizer das transformações
no espaço urbano, Tassini relatou que as ruas da cidade, na década de 1920, eram bastante
movimentadas, contando com a presença de automóveis, hotéis, teatros, cafés que
agitavam a vida na capital.12
Essas mudanças, que marcaram a vivência do autor, causaram sentimentos
ambíguos em Raul Tassini ao longo de sua vida. Seus escritos transpareciam emoções
que variavam entre o entusiasmo pelo novo e o saudosismo em relação ao antigo. Um
exemplo disso é o texto Avenida Afonso Pena de outrora..., escrito possivelmente na
década de 1980. Ao mesmo tempo em que exaltava com orgulho o fato de Belo Horizonte
ter se tornado a “terceira Capital” do país, reconhecida por Tassini como “Cidade
Maravilhosa” e onde era “notável progresso”, o cronista ressaltava que, frente aos
acontecimentos, “do agigantamento de Belo Horizonte” que, “em todos os sentidos,
exageradamente, a cidade antiga [ia] se arraza[ndo], pois não resta[va] lá grandes coisas”,
“recordar” não significava mais viver, mas sim “sofrer”.13
Outras fontes também deixam transparecer como Raul Tassini enxergou as
transformações da capital mineira. É o caso dos textos B.H. e Belo Horizonte...14,
possivelmente da década de 1980, e de outras anotações avulsas do autor em momentos
diversos. O texto intitulado ARQ... revela sua preocupação por resgatar a memória da
cidade a partir do seu papel de apresentar “aos olhos da população [belo-horizontina],
tudo o que mais brilhou em sua arquitetura antiga”.15
O memorialista também deixava evidente que o crescimento de Belo Horizonte,
além de modificar rapidamente os lugares da sua infância, se fez acompanhando de
problemas:

A capital mineira era então, naqueles tempos, iluminada em moda do tempo.


Com os progressos que o ramo alcançou. Crescia vertiginosamente em casas,
em população, em automóveis, ou bondes, mas alguns setores, como o da água

12
TASSINI, Raul. Onde está a Rua da Bahia da minha infância? [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção
Raul Tassini. Notação: RT pe 2/404.
13
TASSINI, Raul. Avenida Afonso Pena de outróra..., [1980?]. 3f. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul
Tassini”. Notação: RT pe 1/016.
14
TASSINI, Raul. B.H. [1980?]. 2f. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 1/017;
TASSINI, Raul. Belo Horizonte. [1980?]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”, RT pe 2/420.
15
TASSINI, Raul. ARQ... [19..]. 7f. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tasini”. Notação: RT pe 2/415.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
18
e exgotos, que ficavam sobre a terra, ou que ninguém via, segundo um amigo
ilustre, ficaram na mesma. Santa Terêsa era o bairro mais sofisticado. Havia
sêde ali. Com o tempo, o problema se ampliou de tal forma, que até a Serra,
um dos bairros elegantes, cujas vivendas dormiam por entre árvores, passou a
sentir esse aspécto desastroso. Generalizou-se a falta de água. Quanto a luz,
estava no mesmo caso. Ineficiente, e as ruas vastas e avenidas da cidade,
passaram a penumbra. O comércio e a indústria, gritavam num côro com a
população. De súbito os elevadores paravam a meio caminho e os passageiros
ficavam presos, mais do que esperavam.16

O caos e os transtornos causados pela falta de energia foram noticiados nos jornais
e o assunto foi discutido na câmara municipal. Tassini transcreveu a fala do ex-deputado
Fabrício Soares que afirmou que tal situação era insustentável: “parece que até voltamos
a era colonial. Em Belo Horizonte, como num arraial, só se fala em lampião, vela e
lamparina”.17
Percebemos que ele procurava descrever, a partir da análise do cotidiano, os
problemas enfrentados pela população belo-horizontina, que assistia sua cidade adentrar
na modernidade. De todo modo, as análises sobre a história da capital apontam que, aos
poucos, em permanente expansão, Belo Horizonte da infância de Tassini passava a
cumprir o papel de centro político-administrativo, econômico, comercial e industrial,
abarcando para si e para seus moradores a noção de metrópole que queriam lhe atribuir,
desde os anos iniciais.
Juscelino Kubitschek, prefeito de Belo Horizonte entre os anos 1941-1945, foi
um dos principais responsáveis pela modernização da cidade. Ele asfaltou e abriu novas
avenidas, construiu relevantes edificações, como o Conjunto do Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) e a Estação Rodoviária, além de
apoiar a Exposição de Arte Moderna de 1944, que possibilitou a vinda de vários nomes
de arte moderna para a cidade.
O Museu Histórico de Belo Horizonte, idealizado por Abílio Barreto e contando
com atuação presente de Raul Tassini nos primeiros meses, foi inaugurado durante a
gestão de JK. Em meio aos projetos de modernização da capital, o MHBH surgia para
resgatar a memória do antigo Curral Del Rei e dos primeiros anos da cidade. Esse e
outros investimentos na área cultural, como a criação da Escola Guignard, em 1943, e

16
TASSINI, Raul. B. Hte Acropole das rosas ou cidade turbulenta?[1980?]. 2f. MHAB, Acervo textual
“Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/520.
17
Ibidem.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
19
a exposição de arte moderna, mencionada há pouco, propiciaram a inserção da cidade
no circuito nacional das artes plásticas (FERREIRA, 2007, p. 57).
A política de Juscelino pautava-se em ações que buscavam conciliar o novo com
a tradição, valorizando, portanto, o passado em sintonia com o pensamento moderno.
Vale ressaltar, que a busca pelo progresso e pela modernização se dava a partir da
inserção de elementos arquitetônicos e urbanísticos, o que não necessariamente significa
dizer que houve a substituição ou a renovação de velhas práticas políticas. A imagem do
tradicional político mineiro, sempre representante da elite, se sobrepunha aos projetos
inovadores, contribuindo para o paradoxo entre o moderno e a presença constante da
tradição.18
Seguindo essa linha, os anos de JK na prefeitura são marcados por um contexto
de industrialização e intervenções estatais no país, que estava em crescente expansão.
Para além dos projetos de urbanização, o ideal da modernidade estava associado ao
desenvolvimento do setor industrial e de serviços, que aqueciam o comércio a partir
do aumento do consumo.19
Nessa época, Belo Horizonte teve notável crescimento nas áreas periféricas,
tanto em termos populacionais quanto em áreas urbanizadas. Foi nesse ritmo que a
região onde se encontra hoje a Pampulha, um local ainda pouco habitado da cidade, foi
“eleita para sediar um empreendedorismo há tempos esperado e responsável por
conferir ares cada vez mais modernos à capital” (FERREIRA, 2007, p.52).
Ao menos essa era a expectativa de Juscelino Kubitschek ao realizar um
concurso para promover a urbanização da região. É curioso o fato de que o concurso
não teve vencedor, pois os projetos apresentados eram voltados para estilos
arquitetônicos tradicionais. Foi então que o ministro da educação, Gustavo Capanema,
apresentou à JK o jovem arquiteto Oscar Niemeyer. “Niemeyer fez da Pampulha um
dos maiores exemplos da arquitetura modernista do Brasil” e, em contrapartida, a
Pampulha fez com que Niemeyer logo se destacasse como um dos maiores arquitetos
do Brasil (FERREIRA, 2007, p.63).
O novo bairro logo adquiriu projeção nacional e internacional devido à
construção do complexo arquitetônico, que foi bastante inovador para a época.

18
Conferir Pimentel (1997).
19
Para saber mais sobre o governo de JK na presidência, também marcado pelo ímpeto da modernização,
ver Benevides (1991, p.9-23).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
20
Tomamos como exemplo a Igreja de São Francisco, considerada a primeira igreja
moderna do Brasil. Tido como um projeto ousado pela população da cidade e por
membros da Igreja Católica, a edificação angariou reações negativas e positivas. As
autoridades governamentais, reconhecendo o seu valor histórico, artístico e
arquitetônico, logo tombaram a edificação por meio do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional/SPHAN (atual Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional/IPHAN). Essa e outras edificações e transformações colaboraram
para uma alta e rápida valorização dos lotes (FERREIRA, 2007, p.69).
A transformação física do espaço deveria vir acompanhada da modificação dos
costumes. Por isso, os edifícios inaugurados buscavam trazer novos locais de
sociabilidade para os moradores da cidade. O Cassino da Pampulha, chamado na época
de Palácio da Represa, é o maior exemplo disso, pois tinha como finalidade ser um
centro de vida ativa para a população e um dos pontos de atração do turismo nacional
e internacional, divulgando Minas Gerais para o Brasil e para o mundo. A decoração
luxuosa reproduzia um espaço elegante e sofisticado, que era frequentado pela elite
econômica e política do estado (FERREIRA, 2007, p.63-64). A Casa do Baile, por sua
vez, foi concebida como espaço destinado às camadas mais populares. Isso evidencia
a preocupação pela função social do espaço, que deveria tanto promover a diversão
como valorizar artisticamente a região (FERREIRA, 2007, p.65-66).
Conforme destaca Luana Maia Ferreira (2007), o plano de “aperfeiçoamento da
raça”20 com base nas práticas esportivas era a finalidade principal do Iate Golfe Clube.
A sua destinação principal eram as atividades esportivas, mas também contava com
espaços para a realização de festas e eventos no salão apropriado, no bar ou no
restaurante (FERREIRA, 2007, p.66).
Além dos espaços públicos descritos, Niemeyer construiu uma casa de
residência de campo para a família de Juscelino Kubitschek, inaugurando uma nova
forma de morar na capital mineira.
É visível que, naquele momento, a arquitetura, entendida como expressão da
contemporaneidade, conferia visibilidade à modernização implementada pelo governo.
Nesse sentido, conforme destacou Denise Bahia “a Pampulha deu forma a uma nova
prática política e de governo” no qual se daria continuidade na construção de Brasília,

20
Este termo foi usado no Relatório da prefeitura dos exercícios de 1940 e 1941.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
21
anos depois. Em comum, esses projetos tinham como objetivo constituir aquilo que se
entendia por identidade nacional (BAHIA, 2011, p.111).
Se de um lado a imprensa belo-horizontina vendia a imagem de uma Pampulha
sofisticada, com construções luxuosas, símbolo do progresso e desenvolvimento
mineiro21, do outro Tassini expunha os acidentes e crimes que ali ocorriam, deixando
impressões que vão para além do discurso da Pampulha moderna. É sobre esses relatos
que dedicaremos as páginas a seguir.

As contradições da modernidade em Belo Horizonte: os relatos de Raul Tassini


sobre a Pampulha

A origem do nome Pampulha vem de um ribeirão e de uma fazenda de mesmo


nome, que, existente desde o final do século XVIII com a imigração portuguesa e com a
presença de escravos, deu origem a um dos primeiros núcleos de povoamento no local.
No final do século XIX, um aglomerado de fazendas da região era responsável pelo
abastecimento de produtos hortifrutigranjeiros da nova capital. Posteriormente, no início
do século XX, os italianos e outras pessoas oriundas de todo o estado, que não tinham
condições de comprar terreno na zona urbana de Belo Horizonte, se fixaram por ali,
denominado na época por Santo Antônio da Pampulha, ou Pampulha Velha, como ficou
mais conhecido.22
A Pampulha Velha teve sua formação socioespacial relacionada ao processo de
exclusão da capital e pode ser caracterizada pelo seu forte sentido de comunidade e
religiosidade. Ana Moraes dos Reis e Manoel dos Reis, portugueses que compraram terras
no local, foram personagens importantes, que ajudaram a construir esse perfil religioso.
Os dois levantaram a capela de Santo Antônio de Pádua, onde eram celebradas as festas
de São João e de Santo Antônio e de onde saíam as inúmeras procissões.
Com o crescimento da capital, as autoridades focaram seus investimentos para o
vetor norte, fomentando a criação de um aeroporto e de uma barragem para abastecer a
cidade na década de 1930. Nos anos seguintes, conforme relatado na seção anterior, houve

21
PAMPULHA, MARAVILHA DO CINQUENTENARIO, Estado de Minas, 12 de dezembro de 1947,
p. 6.
22
Ver Lemos (2006).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
22
de fato a ocupação efetiva da região a partir da construção do complexo arquitetônico
moderno, concebido por JK, em 1940.
Com efeito, Luana Ferreira (2007) enfatiza que “a história do Arraial de Santo
Antônio da Pampulha, ou Pampulha Velha, pouco contada, foi sufocada pela
monumentalidade da Pampulha Nova”, tida como “oficial” e que foi idealizada e
projetada para “satisfazer a aspirações estéticas, políticas, arquitetônicas e econômicas”
das elites políticas de Minas Gerais (FERREIRA, 2007, p. 46).
Apesar de Raul Tassini ter qualificado a Igreja de São Francisco de Assis como
“Coisas Exóticas” em suas anotações avulsas sobre arquitetura antiga23, a
monumentalidade do conjunto moderno da Pampulha Nova também impressionou o
memorialista, que destacou:

Assim (em 1941), o Cassino, a Casa do Baile, a Igreja formaram naquela parte
da cidade, um conjunto, numa tríade de rara imponência arquitetonicamente
falando, cujos grandes e caríssimos edifícios de fachadas erguidas a margem
do lago, espelharam nas águas tranquilas, preguiçosas. É claro que o conjunto
desenhado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, impressiona com suas lindas
horizontais predominando.24

Na escolha do local para o empreendimento de JK, no início dos anos 1940, o


urbanista francês Alfred Agache foi convidado pelo próprio prefeito para conhecer a
cidade e avaliar a região que se pretendia construir o moderno projeto. Agache propôs
que a Pampulha se tornasse um local a ser ocupado por camadas de baixa renda, no intuito
de suprir a crescente demanda populacional que acontecia em regiões da zona suburbana
(FERREIRA, 2007, p.60). Algo notado e compartilhado por Tassini, que destacou em
seus relatos que a Pampulha não deveria ser um local de alto investimento para
proporcionar lazer e diversão para as classes mais ricas, mas sim um bairro criado para
solucionar os problemas sociais existentes na cidade, pois era uma “obra suntuária (...)
inexpressiva em suas finalidades”.25 Portanto, ele discordava do empreendimento porque
existia na cidade “tanta miséria rondando os lares, tanta falta de escolas”.26

23
TASSINI, Raul. Coisas Exóticas [19..]. Manuscrito. 1f. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”.
Notação: RT pe 2/445.
24
TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe
2/599.
25
TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe
2/599.
26
Ibidem.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
23
Talvez por isso Tassini não compareceu à inauguração da Pampulha, apesar de
reconhecer que foi “um grande acontecimento social na vida da capital”.27 Com efeito, os
relatos de Raul Tassini abordam um discurso diferente daquele adotado pela imprensa em
Belo Horizonte. Ele denunciou acidentes, mortes e os excessos cometidos acerca da
construção do bairro da Pampulha. Luiz Garcia, em seu texto sobre a ruptura da barragem,
apelidou Tassini de crítico de “primeira hora”, dado aos inúmeros registros deixados por
ele sobre o que acontecia na região da Pampulha (GARCIA, 2007, p.99).
Dessa forma, as anotações críticas de Tassini mostram uma disparidade entre as
duas Pampulhas (a “velha” e a “nova”). O cronista relatou que muitas famílias foram
desapropriadas de seus lares, não importando se eram “proprietários ou herança de seus
antepassados, desde os tempos coloniais, e viram-se forçados a abandonar suas terras”
para a idealização do moderno bairro.28
Era evidente que, aos olhos de Tassini, a Pampulha Nova nascia excluindo a
população mais pobre, que não tinha condições de comprar terrenos no entorno da lagoa
e/ou não podia frequentar os espaços de entretenimento, pois, além das atrações terem
custo além do que a maioria podia pagar, o acesso ao local era ineficaz. Belo Horizonte
dos anos 1940 era carente em transportes públicos e poucos bondes atendiam o novo
bairro.
Os moradores da Pampulha Velha sofriam com inúmeros problemas, que, muitas
vezes, eram abafados pela grandeza das obras modernas. Já se reclamava da falta de
escola na região e da presença de caramujos na água infestada de esquistossomose
(GARCIA, 2007, p.91). Segundo Luiz Henrique Assis Garcia (2007), o rompimento da
barragem, em 1954, foi o estopim, pois evidenciou a condição de vida dessa população.
As águas inundaram áreas residenciais e de fazendas, desmoronando casas, alagando
áreas de plantação, matando animais e causando outros transtornos, como interrupção dos
serviços de luz e telefone, além de inviabilizar a pista do aeroporto. Raul Tassini
comentou a respeito:
No sábado tomei um ônibus que me deixou na Pampulha Velha. Entrevistei
várias pessoas dali, passei pela Capela de Santo Antônio e atravessando a pista
do aeroporto alcancei a Ponte quebrada [...] no entrocamento das estradas de
Vespasiano e a direita a de Santa Luzia. (...) Fui ver as ruínas da Ponte
quebrada. A conrrenteza [caudalosa?] da represa da Pampulha, levou metade,

27
TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe
2/599.
28
TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe
2/599.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
24
dela. E lá estão 18 metros da ponte, com seus 4 vãos de balaustradas. É uma
ruína de ponte que a represa deu causa.29

O rompimento acentuou o contraste simbólico entre as Pampulhas. Para o


memorialista a tragédia também contribuía para manchar a grandeza das obras
implementadas ali:

Com o rompimento da barragem da Pampulha, a desgraça foi semeada no


percurso seguido pelas ‘aguas’ que desvairadas rolaram, desrespeitando lares,
bens, sêres, criações, tudo... Com o decorrer dos dias toda a beleza
‘paizagistica’ da Pampulha que a tornou famosa no mundo sumiu. Formou-se
um lamaçal e a podridão, a (inelegível) fez dela o seu império. Os peixes
apodrecendo, emanaram de tudo que la dentro morrera, um mau horrível.30

Ai fica a Pampulha em seus dados, (inelegível), pequena história da sua curta


mas turbulenta existência, ‘rosario’ de lágrimas, cujas contas são feitas de
‘dôr’. Já disseram que a vida não vale pelos anos que representa, mas pela
intensidade da mesma. E aí está como exemplo, a Represa da Pampulha, que
aterroriza visitante como o espectro da morte. É como um leito do mar sem
água, uns canteiros sem plantas, um templo sem Deus.31

Para Raul Tassini, a Pampulha perdia seu encanto. Ele buscava nos casos contados
por antigos moradores da região, que foram excluídos em parte do processo de
modernização, alguma explicação. Questionava, por exemplo, se Ana Moraes dos Reis,
citada na seção anterior como responsável pela vida religiosa da Pampulha, poderia ter
previsto o ocorrido. Conhecida como “Sá Donana da Pampulha”, ela foi rezadeira e
feiticeira. Raul Tassini indagou:

Donanna distribuía esperanças a todos os desenganados que a procurassem.


Fazia voltar o sorriso aos tristes e da animo [...] aos que já haviam perdido.
Enfim, era a mesa de sua casa um bálsamo para as chagas do alheio, na magia
das cartas [inelegível]! E como acontece sempre algumas cousas davam certo,
outras [inelegível] não. Mas teria previsto na vida [inelegível] da Pampulha, a
sua ascensão a rainha e a sua destruição, a sua queda? Teria ela ao ler e reter
as cartas coloridas, do seu baralho, vaticinando toda a glória e todas as graças
que lhe cobrem? Teria ela previsto a queda do império fabuloso da
Pampulha?32

29
TASSINI, Raul. Belo Horizonte [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe
2/599.
30
TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe
2/599.
31
TASSINI, Raul. [19..]. 1 f. Manuscrito. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe
2/599.
32
TASSINI, Raul. [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/601.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
25
De acordo com que foi contado por Tassini, existia entre os moradores uma
explicação para a tragédia que dizia de uma maldição da época da urbanização da
Pampulha:

Contou-me um antigo pampulhense que quando eram acertados os terrenos


para a represa, uma coruja do alto de uma árvore seca, por três noites
consecutivas, no seu piar estridente e nostálgico, parecia dizer: vocês vão ver!
Vocês vão ver! Vocês vão ver! ... E nesse rito foi noite a dentro,
impressionante! (...) E assim entra na história da Pampulha, a coruja
agourenta.33

Possivelmente o rompimento da barragem foi o marco de maior impacto na vida


dos que moravam na região, pois suscitou vários embates acerca de quem eram as
responsabilidades da tragédia, além de ter evidenciado o contraste simbólico entre as duas
Pampulhas. De todo modo, a Pampulha é tida como a expressão maior da administração
desenvolvimentista e modernizadora de JK na prefeitura, e, sem dúvida, seus
equipamentos representam a concretização da arquitetura como expressão simbólica da
modernidade. Isso não escapou aos olhos nem de Raul Tassini, apesar de ter discutido
várias contradições que marcaram o empreendimento e a história da região.

Considerações finais

O advento da modernidade determinou transformações sociais e econômicas em


vários lugares do globo. Cidades como Belo Horizonte foram planejadas sob a égide do
novo e edificadas para ser símbolo do que se entendia por progresso. Anos depois, o
projeto desenvolvimentista, implementado por governantes como Juscelino Kubitschek,
determinou ações do Estado que tinham como foco a industrialização, os bens de
consumo, os automóveis, os novos modos de viver e divertir modernos. A arquitetura
desse período serviria para simbolizar esses projetos e ações no campo político em prol
da modernização, semelhante como vimos em relação à Pampulha (barragem e demais
edificações modernas), que surgiu sob o tripé de garantir o abastecimento, o lazer e o
turismo em Belo Horizonte e Minas Gerais a partir de sua função utilitária e decorativa.
Contudo, como visto ao longo do texto, as contradições entre o “velho” e o “novo”
estiveram presentes na história da cidade, gerando embates que tinham como origem as

33
TASSINI, Raul. [19..]. MHAB, Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Notação: RT pe 2/584.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
26
transformações e ocupações dos espaços. Raul Tassini procurou dizer em seus relatos
sobre as várias Pampulhas existentes e os conflitos oriundos das disparidades entre as
realidades e vivências dos moradores em ambos locais. Por isso, o acervo documental do
memorialista revela contradições e aspectos que vão além do discurso majoritário da
época, que exaltava a Pampulha como centro moderno. Dessa forma, as anotações do
cronista e as transformações ocorridas nos bairros de Belo Horizonte revelam o paradoxo
de uma capital que, nascida para ser moderna, tem sua história marcada pela constante
desconstrução do passado e a busca pelo progresso.
Por fim, que esse artigo possa colaborar com outros estudos sobre Belo Horizonte
a partir da análise de fontes históricas ainda pouco investigadas, como é o caso da Coleção
Raul Tassini presente no Museu Histórico Abílio Barreto.

Referências

Fontes documentais

Acervo textual “Coleção Raul Tassini”. Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB).
Notações: RT pe 1/015 a 019; RT pe 1/020 a 023; RT pe 1/030 e 031; RT pe 2/075 a 086;
RT pe 2/143; RT pe 2/381 a 403; RT pe 2/404 a 426; RT pe 2/427 a 474; RT pe 2/519 a
520; RT pe 2/569 a 605; RT pe 2/692 a 693; RT pe 2/733 a 746; RT pe 3/088.

Bibliografia, dissertações, artigos de revistas, páginas da internet, entre outros.

ALCÂNTARA, Carolina Paulino. “PRINCEZA DO NORTE”: contradições da


modernidade em Diamantina (1889-1930). (2015. 170f) Dissertação (Mestrado).
Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.

ALVES, Célia Regina Araujo. Preciosas memórias, belos fragmentos: Abílio Barreto e
Raul Tassini – a ordenação do passado na formação do acervo do Museu Histórico de
Belo Horizonte (1935-1956). (2008) Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

ANDRADE, Luciana Teixeira de. A Belo Horizonte dos modernistas: representações


ambivalentes da cidade moderna. Belo Horizonte: PUC Minas; C/ Arte, 2004.

ARRAIS, Cristiano Alencar. Belo Horizonte, a La Plata Brasileira: entre a política e o


urbanismo moderno. Revista UFG, Goiás. v.11, n.6. jun. 2009.

ARRUDA, Rogério Pereira. Belo Horizonte e La Plata: cidades-capitais da modernidade


Latino-americana no final de século XIX. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro.
v.6, n.1, 2012.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
27
BAHIA, Denise Marques. A arquitetura política e cultural do tempo histórico na
modernização de Belo Horizonte (1940-1945). (2011. 198f). Tese (Doutorado).
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.

BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação


urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e
Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992.

BENEVIDES, Maria Victoria. O governo Kubitschek: a esperança como fator de


desenvolvimento. In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC, 1991. p.9-23.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura na modernidade.


São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que


não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das
certezas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. (Virando séculos).

FERREIRA, Luana Maia. As várias Pampulhas, no tempo e no espaço (1900-1950). In:


PIMENTEL, Thais Velloso Cougo (Org.). Pampulha Múltipla: uma região da cidade na
leitura do Museu Histórico Abílio Barreto. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio
Barreto, 2007. p.45-72.

GARCIA, Luiz Henrique Assis. Ruptura e expansão: Pampulha em contrastes (1954-


1979). In: PIMENTEL, Thais Velloso Cougo (Org.). Pampulha Múltipla: uma região da
cidade na leitura do Museu Histórico Abílio Barreto. Belo Horizonte: Museu Histórico
Abílio Barreto, 2007. p.89-110.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP,


1991.

GORELIK, Adrián. O moderno em debate: cidade, modernidade, modernização. In:


MIRANDA, Wander Melo (org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999. p. 55-81.

JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna: 1891-1920. In:


DUTRA, Eliana Freitas (Org.). BH: horizontes históricos. Belo Horizonte: C/ARTE,
1996. p.49-118.

KROPF, Simone Petraglia. Sonho da razão, alegoria da ordem: o discurso dos


engenheiros sobre a cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século
XX. In: HERSCHMANN, Micael et al. Missionários do Progresso: médicos,
engenheiros e educadores no Rio de Janeiro. 1870-1937. Rio de Janeiro: Diadorim,
1996. p. 69-155.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
28
LEMOS, Celina Borges. Belo Horizonte nas décadas de 1940/1950 e o impacto da
Pampulha. In: CASTRO, Mariângela; FINGUERUT, Sílvia (Org.). Igreja da Pampulha:
restauro e reflexões. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2006. p. 60-74.

LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. Múltiplos significados da Pampulha na metrópole (1980-


2007). In: PIMENTEL, Thais Velloso Cougo (Org.). Pampulha Múltipla: uma região da
cidade na leitura do Museu Histórico Abílio Barreto. Belo Horizonte: Museu Histórico
Abílio Barreto, 2007. p.125-147.

Novos Registros resgata a história de fundação do Museu Histórico Abílio Barreto.


Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 2007. Disponível em:
http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=33759&ch
Plc=33759. Acesso em: 09 de Outubro de 2017.

PAMPULHA, MARAVILHA DO CINQUENTENARIO, Estado de Minas, 12 de


dezembro de 1947, p. 6.

PEREIRA, André Mascarenhas. Traços de Belo Horizonte: A contribuição dos


caricaturistas para o Modernismo na Cidade Moderna. (2011. 212f.) Dissertação
(Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2011.

PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano. Porto


Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

PIMENTEL, Thais Velloso Cougo. Belo Horizonte ou o estigma da cidade moderna.


VARIA HISTORIA. n. 18: p.61-66, Set. 1997.

PIMENTEL, Thais Velloso Cougo (Org.). Pampulha Múltipla: uma região da cidade na
leitura do Museu Histórico Abílio Barreto. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio
Barreto, 2007.

POLLAK, Michael. Memória e Identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro.


Volume 5, n. 10: p. 200-212. 1992.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro. Volume 2, n. 3. p. 3-15. 1989.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. In: ROMERO, José Luis. América Latina:
as cidades e as ideias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. p. 283-353.

SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: UNICAMP,


1990. 373p.

TASSINI, Raul. Verdades históricas e pré-históricas de Belo Horizonte, antes Curral


D´El Rey. Belo Horizonte, 1947.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
29
“TRISTE HORIZONTE”: A SERRA DO CURRAL DEL REY, O MARCO
GEOGRÁFICO DA CAPITAL DE MINAS (1897-1975)

“SAD HORIZON”: THE SERRA DO CURRAL DEL REY, THE GEOGRAPHY


FRAME OF MINAS CAPITAL (1897-1975)

Alessandro Borsagli*34

Resumo

Nesse artigo será realizada uma abordagem histórico-geográfica da Serra do Curral del
Rey, um dos principais marcos geográficos referenciais para a ocupação do território na
qual se construiu a nova capital de Minas Gerais. O alinhamento montanhoso é
considerado atualmente patrimônio natural de Belo Horizonte, ao mesmo tempo em que
sofreu inúmeras alterações antrópicas ao longo do processo de desenvolvimento urbano
da capital. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo elaborar um histórico do
alinhamento montanhoso desde a inauguração da nova capital até o rebaixamento do
perfil da serra, ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970, assim como definir qual a
posição da sociedade perante a metamorfose ocorrida na paisagem urbana de Belo
Horizonte. A análise pretende ainda esclarecer os motivos pelos quais a Serra do Curral
não despertava a atenção da sociedade, fato que possivelmente contribuiu para o descaso
acerca dos elementos naturais no município.

Palavras chave: Serra do Curral; Espaço urbano; Paisagem urbana.

Abstract

This article introduces a geography and historic approach about Serra do Curral del Rey,
one of the most important geography referential to territorial occupation of new Minas
Gerais Capital. Nowadays, this mountain is considered a natural patrimony of Belo
Horizonte, at the same time it suffered many human changes. In this sense, this article
tries understanding the factors that contributed to decrease of geographic relief, which
occurred between 1960 and 1970 decades. Besides that, this article pretends understand
the society position in front of the metamorphosis occurred in Belo Horizonte urban
space. This analysis pretends to clarify the motivations that the Serra do Curral did not


Graduado em Geografia pela PUC Minas e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em
Geografia/Tratamento da Informação Espacial da PUC Minas. Autor do site curraldelrey.com e do livro
Rios Invisíveis da Metrópole Mineira. Email: borsagli@gmail.com
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
30
wake up the society attention, which probably has contributed to neglecting around to
municipal natural elements.

Keywords: Serra do Curral; Urban space; Urban landscape.

Introdução

Belo Horizonte possui uma identidade histórica e ignorada por muitos devido ao
distanciamento das raízes ambientais, a partir da negação do convívio entre o natural e o
urbano promovida pelas sociedades modernas. Essa identidade invisível é a Serra do
Curral del Rey (Figura 01), parte de um importante complexo de montanhas que se
estendem por cerca de 93 km na direção leste/oeste, desde a região de Carmo do Cajuru
até as proximidades da cidade de Caeté, a oeste da Serra do Espinhaço.

Figura 01 – Vista parcial de Belo Horizonte, ao fundo parte da Serra do Curral.


Fonte: APCBH Coleção José Góes

A Serra do Curral é o testemunho do relevo de uma região notável pelas suas


diversas orogêneses ao longo da evolução do planeta. A Serra apresenta altitudes que
atingem 1520 metros de altitude (Pico José Vieira) e o que se vê atualmente é o resultado

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
31
de um processo erosivo diferencial, na qual as áreas mais suscetíveis à erosão sofreram
maior rebaixamento em relação às áreas mais resistentes às intempéries35.
As formações geológicas do Quadrilátero Ferrífero apresentam características
interessantes no que diz respeito à composição e às suas estruturas que atestam a
monumentalidade das montanhas da região e da ação dos processos erosivos desde a
última orogênese ocorrida há centenas de milhões de anos atrás.
Nesse contexto, o ribeirão Arrudas assumiu um papel importante no processo de
rebaixamento do relevo compreendido entre o complexo e as Serras da Contagem/Onça,
atuando no processo de conformação do sítio que abrigaria a capital de Minas Gerais.
As serras do complexo que compõem a porção norte do quadrilátero se apresentam
com diversas denominações regionais (Figura 02):

Figura 02 – Mapa do Complexo da Serra do Curral e respectivas denominações.


Fonte: Brasil Visto do Espaço (elaborado por Alessandro Borsagli, 2016).

De oeste para leste, Serras de Itatiaiuçu e Igarapé, Serra Azul, Serra dos Três
Irmãos, Serra da Jangada, Serra do Rola Moça, Serra do José Vieira, Serra da Mutuca,
Serra da Água Quente, Serra do Curral del Rey, Serra do Taquaril e Serra da Piedade.
Essas serras são transpostas por dois rios, o Rio Paraopeba, pouco abaixo da cidade de

35
VARAJÃO, C.A.C.et al., 2009, p.1410.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
32
Brumadinho na garganta denominada Fecho do Funil e o Rio das Velhas na altura de
Sabará, onde suas águas encontram o maciço curralense.
Nesse artigo será realizada uma abordagem histórico-geográfica da Serra do
Curral del Rey, um dos principais marcos geográficos referenciais para a ocupação do
território no qual se construiu a nova capital de Minas Gerais. A Serra do Curral, protegida
pela Lei Orgânica do município desde o ano de 199036, é vista atualmente como um
patrimônio natural e de identidade de uma capital diversas vezes reinventada ao longo do
processo de desenvolvimento urbano.
Dessa forma, busca-se ainda a compreensão dos fatores que contribuíram para o
rebaixamento do perfil da serra ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970, bem como qual
a posição da sociedade perante a metamorfose ocorrida na paisagem urbana de Belo
Horizonte.
É de suma importância o conhecimento dos processos que culminaram na
destruição de uma porção do perfil do maciço de ferro, no qual a cidade possivelmente
assistiu à mutilação de maneira impotente e algumas vezes indiferente, visto a austeridade
do período e a crença de que a exploração mineral era necessária para a cidade e para a
evolução da própria sociedade.

A serra e a cidade

Conhecida e explorada desde o século XVIII a Serra das Congonhas, nome


primitivo da Serra do Curral, não foi alvo assíduo dos mineradores que se espalharam por
toda a região das Minas durante o século do ouro, salvo algumas exceções como as
concessões de lavras auríferas na Serra do Mutuca, da qual existem vários vestígios pouco
estudados37 e da pequena exploração que existiu na Serra do Taquaril, em meados do
século XIX, da qual deu notícia o viajante e explorador inglês Richard Burton38 no ano

36
21 de março de 1990: Entre outras coisas: Art. 224 - Ficam tombados para o fim de preservação e
declarados monumentos naturais, paisagísticos, artísticos ou históricos, sem prejuízo de outros que
venham a ser tombados pelo Município:
I - o alinhamento montanhoso da Serra do Curral, compreendendo as áreas do Taquaril ao Jatobá;
II - as áreas de proteção dos mananciais;
37
Tais concessões datam da primeira metade do século XVIII e juntas elas formavam um complexo
minerário que se estendia desde a Serra do Mutuca até a Serra da Moeda. Muitas dessas lavras eram ilegais
e foram desmanteladas pela Coroa ou mesmo abandonadas, quando do início da decadência da exploração
do ouro. Ainda é possível identificá-las a olho nu em diversos pontos da serra.
38
BURTON, 1976, p.501.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
33
de 1865 e Samuel Gomes Pereira no ano de 1893, ao estudar os aspectos do arraial de
Belo Horizonte para sediar a nova capital39. O minério de ferro explorado nesse período,
por ter sido realizado de forma pontual e superficial, não acarretou em alterações
perceptíveis na Serra do Curral.
É importante ressaltar que as serras, assim como os cursos d’água, eram batizadas
de acordo com a tradição toponímica portuguesa, nas quais os elementos recebiam os
nomes de acordo com a primeira impressão que se tinha ao chegar a uma determinada
região, ou um evento extraordinário ocorrido no local ou mesmo alguma localidade ou
propriedade importante, não se esquecendo da influência indígena nos topônimos. Um
exemplo dessa influência é Congonhas40, nome de uma erva com propriedades anti-
inflamatórias que certamente se abundava na região, uma herança indígena quase
desconhecida e preservada a partir do contato dos forasteiros com os donos do solo
mineiro.
A Serra das Congonhas era considerada o marco geográfico dos arraiais de
Congonhas de Sabará e do Curral Del Rey, povoados que surgiram aos seus pés nos
primeiros anos do século XVIII. A serra desde os tempos coloniais era utilizada como
ponto de referência para quem vinha dos caminhos dos Sertões para o arraial ou para
outros arraiais e vilas que foram fundadas nas suas imediações. De maneira semelhante,
o Pico do Itacolomi representava para os viajantes a principal referência geográfica de
Vila Rica e Mariana. E pelo fato do Curral del Rey, importante entreposto entre os Sertões
e as Minas, ter se consolidado aos seus pés no início do século XVIII, o notável maciço
de ferro receberia o nome do lustroso Curral del Rey.
Sentinela dos caminhos que levavam às minas, o maciço permaneceu quase
virgem durante os áureos anos do século XVIII e durante parte do século XIX, salvo as
explorações iniciadas pela Taquaril Gold Mining Company limited, formada no ano de
1867 e pelas prospecções e transposições realizadas pela Saint John del Rey Mining
Company limited (Morro Velho), proprietária de grandes porções de terra ao longo da
Serra do Curral41.
A Serra do Curral engloba ainda outras denominações de nível local, como a Serra
do Acaba Mundo e a Serra do Taquaril, que batizavam os locais correspondentes às

39
MINAS GERAES, 1893, p.20.
40
Barbosa, 1971: Congonhas de Sabará foi à primeira denominação da cidade de Nova Lima, que também
já se chamou Villa Nova de Lima, assim batizada quando da sua emancipação, no ano de 1891.
41
BORSAGLI, 2017, p.96.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
34
extrações minerais nas cotas mais baixas da serra. O Acaba Mundo havia sido explorado
pela Morro Velho e o Taquaril fornecia além do tão afamado mármore, algum ouro
explorado pelos ingleses da referida Companhia, falindo poucos anos após a concessão,
na década de 187042. Certamente a serra e o próprio quadrilátero já despertaram a atenção
dos estrangeiros para o seu potencial ferrífero, a ser explorado em momento conveniente.
A Serra do Curral forneceu ainda o minério de ferro para a fábrica construída na
confluência do córrego da Serra e ribeirão Arrudas pela Companhia Progressiva
Sabarense, iniciativa que durou pouco menos de dez anos, sendo a estrutura e os terrenos
vendidos para a Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), que se instalou no
arraial no início do ano de 1894.
A CCNC logo após a sua chegada deu início aos estudos necessários para a
elaboração da Planta da nova capital do Estado. Os trabalhos de topografia e geodesia
apontaram que a cidade planejada deveria ser construída ao longo das cotas mais baixas
da Serra do Curral, transpondo em alguns trechos a acentuada declividade para fins
hierárquicos, figurando o paredão da serra como beleza cênica para a urbe planejada.
Nesse contexto, quando Aarão Reis apresentou a Planta no ano de 1895 pôde se
compreender que o projeto dava maior importância à perspectiva da Serra do Curral que,
obrigatoriamente, seria vista de toda a cidade planejada encaixada entre a serra e o vale
do ribeirão Arrudas e ainda da zona suburbana, que buscava uma relativa harmonia entre
os seus arruamentos e as curvas de nível das montanhas limítrofes ao paredão43.
O Morro do Cruzeiro, ponto final da Avenida Afonso Pena, figurava como a divisa
entre o natural e o racional, destinado a abrigar o novo templo dedicado à Nossa Senhora
da Boa Viagem, no cume da cidade e no sopé das montanhas. A cruz, que aí existiu
(Figura 03), era local de peregrinação dos curralenses impossibilitados de se dirigir ao
pico do Curral del Rey e marcava o início da serra, que então não se resumia ao paredão.

42
MINAS GERAES, 1893, p.20.
43
BORSAGLI, 2016, p.52.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
35
Figura 03 – Morro do Cruzeiro no ano de 1895. À esquerda o Pico Belo Horizonte.
Fonte: APCBH acervo CCNC

Na verdade, o perímetro da nova capital fora delimitado pela CCNC entre as duas
importantes serras limítrofes ao velho arraial, ou seja, ao sul pela Serra do Curral e ao
norte pela Serra da Onça, uma importante serra atualmente urbanizada e quase nula na
paisagem, salvo o seu perfil parcialmente preservado e completamente adensado.
A Serra da Onça, com altitudes que variam entre 850 e 950 metros é o maciço
divisor das bacias dos ribeirões Arrudas e Onça, motivo pelo qual se transformou no
marco geográfico de divisão entre a cidade e as áreas rurais do município até a década de
1930, quando o tecido urbano extrapolou as montanhas granito-gnáissicas em direção aos
povoados da Pampulha, da Onça e da Venda Nova.

Uma serra quase intocada

Após a inauguração da capital, a Serra do Curral permaneceu praticamente


intocada44 nas primeiras décadas do século XX, salvo as captações dos mananciais da
Serra e do Cercadinho, a instalação das torres da Cia. Força e Luz nas terras atualmente
pertencentes ao Parque das Mangabeiras, que conduziam à capital a energia gerada na
Represa Rio de Pedras construída em Acuruí para essa finalidade, e as estradas que

44
“Intocada” se refere a inexistência da exploração ferrífera em larga escala no período abordado pelo
subcapitulo (1897-1950).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
36
obrigatoriamente passavam pela serra, destacando-se a velha estrada para Villa Nova de
Lima, abandonada alguns anos após a inauguração da capital, devido à dificuldade da sua
conservação, no trecho correspondente ao entorno do Pico Belo Horizonte.
Nesse período as excursões e os piqueniques faziam parte do cotidiano da cidade,
cuja população aproveitava os belos finais de semana para se divertir no Alto do Cruzeiro,
ao lado da caixa d’água45 ou mesmo nas partes mais altas, uma verdadeira aventura para
os citadinos que buscavam paz em meio a uma capital de interior que se encontrava em
iminente transformação. Belo Horizonte não apresentava muitas alternativas de lazer e a
Serra do Curral, com suas águas geladas e cumes convidativos à contemplação era uma
das opções mais procuradas junto com o Parque Municipal e o Prado Mineiro. A serra
proporcionaria ainda a prática de caça, que acontecia nas proximidades da Lagoa Seca.
Até a década de 1920, a Serra do Curral (Figura 04) proporcionou não só o lazer
da população, mas também garantiu o abastecimento de água de Belo Horizonte a partir
da extensão da captação dos cursos d’água que nascem em suas vertentes na direção oeste,
correspondentes a região do Barreiro/Ibirité46.
Apesar da abundância hídrica, as águas supririam a demanda do município até
meados da década de 193047, quando a capital entrou em um déficit que só se resolveu no
ano de 1973.

45
Revista Fon Fon edição 27, p.20.
46
BORSAGLI, 2016, p.61.
47
FJP, 1997, p.90.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
37
Figura 04 - A cidade e a serra, desde o mirante do edifício Ibaté por volta de 1936.
Acervo MHAB

A década de 1930 trouxe além das profundas mudanças físicas, econômicas e


sociais ocorridas após a Revolução de 30 o Decreto nº 24.642 (Código de Minas) que
instituiu diretrizes para a exploração mineraria no Brasil. Poucos dias após o decreto foi
estabelecida pela nova Constituição que toda e qualquer exploração mineral empreendida
no país, pesquisas e concessões só poderiam ser realizadas por empresas organizadas no
Brasil e por seus cidadãos. Era o ponto de partida para a exploração em larga escala de
um recurso explorado pontualmente desde as primeiras décadas do século XIX, extraído
por pequenas companhias espalhadas pela região de Itabira e pelo Quadrilátero Ferrífero.
É importante ressaltar que, anterior ao Código de Minas, durante o mandato do
presidente Arthur Bernardes (1922-1926) houve um notável protecionismo relacionado a
exploração do minério de ferro perante os interesses das companhias estrangeiras que
chegavam a Minas, destacando-se a Companhia siderúrgica Belgo-Mineira, fundada no
ano de 1921 e a Itabira Iron, sociedade inglesa formada na década de 1910 que pretendia
explorar as montanhas ferríferas da região de Itabira a partir de concessões polêmicas,
rechaçadas por Bernardes durante o seu governo48.
Poucos meses após o sancionamento do Código de Minas, mais precisamente em
outubro de 1934, foi constituída a Companhia de Mineração Novalimense visando à
exploração das grandes jazidas pertencentes a St. John d’El Rey Mining Company, sócia
majoritária da companhia recém-formada. As jazidas foram reclamadas pela mesma
companhia no ano seguinte, incluindo ainda as terras dolomíticas das bordas da Serra do
Curral já exploradas superficialmente pela companhia inglesa e as terras denominadas
Fazenda Morro Velho ou Águas Claras, no limite dos municípios de Nova Lima e Belo
Horizonte49.
Caso resolvesse explorar as terras de sua propriedade, a companhia inglesa
transferiu no ano de 1938 para a Cia Mineração Novalimense as jazidas de minério de
ferro da Serra do Curral, Capão Xavier e diversas minas na região da Cata Branca, no
município de Itabirito, medidas que visavam garantir a exploração futura por parte da
companhia.

48
COELHO, 2001, p.19.
49
MATA MACHADO, 2003, p.6.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
38
Os anos seguintes se caracterizam pela flexibilização das leis que restringiam a
participação estrangeira nas explorações minerais no país. Entre trabalhos geológicos
realizados em parceria com os Estados Unidos e argumentos favoráveis à participação
estrangeira na exploração e exportação mineral, iniciaram-se os estudos visando à
exploração mineral da Serra do Curral, a partir da concessão municipal para a perfuração
de quatro túneis de pesquisa à montante da captação do córrego da Serra50, próximo das
suas cabeceiras.
É importante ressaltar que a própria Prefeitura, detentora de grandes porções de
terras ao longo da Serra do Curral altamente cobiçadas pela qualidade dos minérios de
ferro, em particular a hematita compacta que aflorava em diversos locais do maciço, já
possuía planos de explorar as terras, vistas como imprescindíveis para equilibrar o déficit
financeiro do município recém emancipado do Estado.
Quatro anos após a emancipação da capital, mais precisamente no ano de 1951,
entrou em atividade nas terras da exaurida pedreira do Acaba Mundo, a Mineração Lagoa
Seca cuja extração da dolomita, mineral cárstico encontrado na base do maciço
curralense, contribuiu para a alteração do regime hídrico do córrego do Acaba Mundo.

Ferrobel/Águas Claras: o horizonte perdido

Visto o cenário favorável à exploração mineral no Brasil a partir das concessões


dadas pelo Governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) para as empresas
estrangeiras51 e a flexibilização das leis referentes às jazidas, nos primeiros meses do ano
de 1958, a Hanna Mining, que obtivera autorização para atuar no país sob o título de
Mineração Hannaco LTDA52, adquiriu em Londres as ações da St. John del Rey Mining
Co. para ter acesso às riquíssimas minas de ferro com cerca de dois bilhões de toneladas
de minério de alto teor das montanhas53.
Poucos meses após a aquisição do centenário grupo inglês, foi firmado um
contrato entre a Hannaco, St. John del Rey e Cia Novalimense, cuja companhia inglesa
era acionista majoritária para a exploração mineral das jazidas pertencentes às duas

50
MATA MACHADO, 2003, p.7.
51
MATA MACHADO, 2003, p.17.
52
Durante a administração federal de JK foram 31 concessões dadas à Hannaco para exploração de jazidas
no Quadrilátero, todas estritamente conectadas às pretensões da companhia norte americana.
53
Revista Time, 10 março de 1958.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
39
últimas. Após o acordo firmado entre o mesmo grupo, foi criada a Mineração Curral del
Rey Ltda. pertencente a St. John del Rey.
Era o indício que faltava para que o Governo do Estado solicitasse ao
Departamento do Patrimônio histórico e Artístico Nacional (DPHAN) o tombamento da
Serra do Curral54. Nesse momento o Estado reconheceu a importância da Serra do Curral
para Belo Horizonte não só pela beleza cênica e paisagística, mas também cultural,
histórica e urbanística, visto que a cidade fora pensada e planejada para que se
vislumbrasse o maciço de qualquer ângulo do perímetro planejado. Nesse contexto José
Francisco Bias Fortes, por meio do departamento jurídico do Estado solicitou o
tombamento da serra como um “bem do patrimônio artístico nacional, com sua silhueta
inconfundível e bem característica, tão ligada à nossa capital” (MATA MACHADO, 2003,
p.12).
Ainda assim, os estudos continuaram de modo a possibilitar a exploração mineral
da serra, visto que o município de Belo Horizonte era o proprietário da superfície do
maciço. Ao que tudo indica o poder público municipal não estava preocupado em manter
a integridade da serra e sim em proteger as reservas de ferro de sua propriedade, mirando
a exploração futura e em consequência o incremento do sofrido erário municipal.
Tombado parcialmente o perfil da Serra do Curral e o Pico Belo Horizonte em 21
de setembro de 1960, supunha-se que a pérola serrana de Belo Horizonte estaria protegida
da voracidade mineraria que agia ininterruptamente nos bastidores da política e da própria
administração municipal que não aceitava o tombamento, apesar do perímetro de proteção
federal não abranger as terras abaixo da cota 1.200, não contrariando assim os fortes
interesses privados e do próprio poder público.
Sabendo dos planos municipais para a exploração do minério de ferro, Rodrigo de
Melo Franco, diretor do DPHAN solicitou ao chefe do 3º Distrito, Sylvio de
Vasconcellos, esclarecimentos acerca da questão noticiada pelos jornais da capital. A
resposta por parte da administração municipal veio dois meses mais tarde, contestando o
tombamento sob a justificativa de prejudicar o patrimônio do município. O procurador
geral da Prefeitura argumentou que o tombamento foi “inscrito no Livro do Tombo da
Diretoria, como se nestes sítios veneráveis serpentasse a linfa arrancada à rocha pelo

54
MATA MACHADO, 2003, p.12.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
40
bordão de Pedro ou se descobrisse numa das furnas da Serra a urna mirífica de algum
êmulo tupiniquim de Ramsés Segundo” (MATA MACHADO, 2003, p.23).
O tombamento não vedava a exploração mineral na serra e a expansão do tecido
urbano para as proximidades do paredão, como observado pelo então chefe do DPHAN
em Belo Horizonte Sylvio de Vasconcellos:

As encostas da serra, do lado da capital, compreendem uma faixa, em projeção,


de cerca de um quilometro, estando já em alguns trechos de suas fraldas e
contrafortes ou ocupados por favelas ou por loteamentos e minerações (...) o
uso desta região para loteamento e mineração, pelo menos em seus trechos
limítrofes à área urbanizada, apresenta-se como uma natural contingencia já
em curso, cujo estancamento suscitaria serias dificuldades (MATA
MACHADO, 2003, p.13).

Em meio a questão, o município criou no dia 30 de outubro de 1961 a empresa


Ferro de Belo Horizonte (FERROBEL) de capital misto55, através da Lei Municipal Nº
898, instalando-se nas cabeceiras do córrego da Serra. A jazida apresentava originalmente
uma extensão de 2.800 metros, contendo não só a hematita e o itabirito, mas também a
dolomita, já explorada na Mina do Acaba Mundo.
A FERROBEL (Figura 05), de acordo com a administração municipal56 fora
criada para promover a industrialização do município a partir dos resultados financeiros
alcançados pela exploração mineral. Um argumento interessante, visto que Belo
Horizonte já havia passado pelo surto industrial pós-1930 e se encontrava em franca
metropolização proporcionada pela consolidação do polo industrial de Contagem.

55
A prefeitura possuía 70% das ações e o restante aos acionistas.
56
Relatório do prefeito Amintas de Barros (1962), p.116.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
41
Figura 05 - Vista da Mina das Mangabeiras desde a crista da Serra na década de 1960.
Fonte: APCBH/ASCOM

Jânio Quadros, que sucedera a JK na Presidência da República, recebera meses


antes da sua renúncia um relatório que expunha as irregularidades nas concessões para
exploração do minério de ferro, incluindo a lavra de Águas Claras, cuja averbação foi
cancelada em 1962 a mando do ministro de Minas e Energia, Gabriel Passos, que
determinou a desapropriação das lavras cassadas, que passaram a integrar uma sociedade
cuja União seria sócia majoritária57. É interessante observar que as investigações
conduzidas pela Assembleia Legislativa acerca das irregularidades nas concessões do
poder público a Hannaco fora extinta no ano de 1961 sem apresentar resultado algum.
Nesse contexto, a cassação da concessão de Águas Claras deu sobrevida ao
intocado perfil da Serra do Curral, ao mesmo tempo em que a Cia Novalimense e o seu
presidente Lucas Lopes, ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do BNDE no governo
JK e um dos sócios da Consultec, empresa que prestava serviços à dita Companhia,
telegrafou ao presidente João Goulart protestando contra a cassação dos direitos minerais
da Companhia, da mesma forma que havia feito o embaixador estadunidense no Brasil

57
Tribunal Federal de Recursos, processo 29.881, 1962; in: MATA MACHADO, 2003, p.30.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
42
dias antes58 Lincoln Gordon, o embaixador que “sabe fazer amigos”59 que chegou a visitar
a capital mineira, sendo recebido pelo Governador Magalhaes Pinto e por diversos
segmentos que louvavam a aliança para o progresso, motivo alegado para sua visita à
sentinela das jazidas ferruginosas.
Em meio ao impasse Hanna/Novalimense, que culminaria com a confirmação
jurídica do ato de Gabriel Passos e a busca por alternativas que viabilizassem a
exploração, o município solicitou ao DPHAN, no final de 1962, a liberação para
exploração da área denominada Mina das Mangabeiras não pertencente ao perímetro
abrangido pelo tombamento, para a qual foi atendida positivamente, entrando a mina em
funcionamento no ano de 1963 sob a gestão do prefeito Jorge Carone.
O ano de 1964 representou uma reviravolta no caso Águas Claras, nacionalizada
pelo Governo Federal a partir das irregularidades encontradas quando da liberação da área
para exploração mineral. A Cia Novalimense entrou com um novo recurso poucos dias
após a derrocada de Jango, visto as mudanças que se vislumbravam no horizonte. E entre
mudanças e revogações no Código de Minas, deu-se a associação entre a Hanna e a
Companhia Auxiliar de Empresas de Mineração60 para a exploração das jazidas de ferro
pertencentes à primeira, no mês de novembro de 1964. Da associação nasce a Minerações
Brasileiras Reunidas S/A (MBR)61 que exploraria a jazida de Águas Claras (Figura 06).
Entretanto, nem todas as agressões à serra vinham através da mineração. Em meio
à metropolização e a congestão urbana da região central, o tecido urbano da capital
começou a se expandir para as partes mais altas do município, alcançando o sopé do
paredão da Serra do Curral. No ano de 1966, através do decreto 1.466 foi criado o Parque
das Mangabeiras nos terrenos em que a Ferrobel havia apenas iniciado a sua exploração.
Com o decreto a companhia entregaria para a iniciativa privada os terrenos de sua
propriedade localizados abaixo da Mina das Mangabeiras com a finalidade da construção
de um grande loteamento visando às classes mais abastadas da capital.

58
Ibid., p.30.
59
Revista Três Tempos, 28 de maio de 1962, p.2.
60
MATA MACHADO, 2003, p.37.
61
Formada ainda pelas minerações pertencentes à Hannaco. Os grandes grupos de mineração foram
favorecidos a partir de 1967, com a alteração no Código de Minas e a nova Constituição.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
43
Figura 06 - Imagem aérea do ano de 1953 correspondente às jazidas da Ferrobel e Águas Claras.
APCBH Gabinete do Prefeito

O enrijecimento da ditadura a partir de 1968 coincidiu com as liberações de


exploração das minas pleiteadas há mais de dez anos, incluindo a liberação da lavra das
Águas Claras a partir do decreto 62.967 de 10 de julho, cabendo a Cia Novalimense a
posse da jazida no ano de 1970. Desse ano até o ano de 1973, ano do início dos trabalhos
de exploração, foram realizadas pequenas mudanças no projeto inicial da Hanna, acordos
entre a MBR e a Rede Ferroviária Federal para a construção de um ramal e o transporte
do minério de ferro, mudanças de diretoria e a absorção oficial da Cia Novalimense pela
MBR, visto que tal fato já havia ocorrido oito anos antes.
O arquiteto Sergio Porto, em um parecer referente ao tombamento da serra a partir
das consultas realizadas pelo 3º Distrito ao então presidente do IPHAN, Renato Soeiro,
alegou que o tombamento realizado há pouco mais de dez anos era confuso em relação à
área delimitada, recomendando o destombamento para permitir a exploração mineral,
visto a impossibilidade de conciliar os interesses privados e a proteção do monumento
natural.
Nesse ínterim, a Ferrobel celebrou um contrato de venda de minérios com a MBR,
comprometendo-se a pagar ao município um royalty de Cr$ 2,00 por tonelada, e o início
das atividades da Águas Claras após a conclusão do ramal férreo que ligava a mina ao

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
44
Ramal do Paraopeba na altura da estação de Ibirité foi o ponto de partida para a retomada
de uma ferrenha discussão sobre a “remoção da montanha mineira”62.
Hugo Werneck, um dos poucos ambientalistas do período, em um momento em
que defender o meio ambiente era empreender uma guerra contra o progresso se tornou
uma das vozes mais atuantes contra a destruição da serra, chegando a afirmar que o
resultado da exploração mineral abriria uma garganta na serra63 desfigurando-a
completamente.
Em poucos dias, a moldura da capital mineira, tão afamada pelos seus fundadores
e construtores e guardiã das águas e dos velhos caminhos coloniais, se desfigurou perante
uma cidade indefesa, que bradava nos jornais a sua indignação, como o jornalista
Xico Antunes:

Dias atrás, por acaso, olhei para a Serra do Curral, a serra da minha infância,
que esteve sempre presente em minha vida e levei um susto. A serra não era a
mesma, o seu rendilhado, a bela linha sinuosa e escarpada que marca o seu
encontro com o azul do céu, nada mais era do que uma reta dura e insensível,
insossa e sem alma. Era uma reta, uma reta terrível que, sem dúvida, poluía a
beleza do horizonte, mostrando que, muito em breve, Belo Horizonte terá que
mudar de nome, pois não terá mais Belo Horizonte. Eram as maquinas
terríveis, imensas escavadeiras, transportadoras transistorizadas, caminhões e
outros veículos menos votados liquidando com a paisagem da cidade,
enchendo o ar da poeira fina e venenosa do minério, poluindo, poluindo,
poluindo... (ANTUNES, 1974, p.4).

A proteção oficial, em contraposição à proteção federal, permitiu o rápido


desmonte dos 1.800 metros de crista da serra (Figuras 07 e 08), considerados pela MBR
“inexpressiva, em face das dimensões do conjunto (...) que se tornará praticamente
imperceptível para um observador situado no centro de Belo Horizonte. Assim sendo,
pode-se afirmar que o perfil da serra do Curral não será substancialmente alterado”
(MATA MACHADO, 2003, p.49).
O início das atividades de Águas Claras no ano de 1974 e a rápida supressão da
crista curralense acabou por mobilizar a opinião pública de Belo Horizonte,
historicamente avessa às perdas ambientais sofridas com o cenário urbano de eterna
construção e de uma rápida e desenfreada expansão viária à custa da supressão do verde
e das águas de uma cidade antes afamada pela sua coexistência, verdadeira floresta urbana
que encantava a todos que a visitavam.

62
Jornal Opinião, fevereiro de 1974, p.7.
63
Ibid., p.7.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
45
Em meio ao cenário desolador, betuminoso, cinzento e agora coberto de poeira
férrea, poucas não eram as vozes que se levantavam em meio à submissão pública e de
alguns meios de comunicação. Carlos Drummond de Andrade, ao receber uma matéria
publicada no jornal Estado de Minas (1976)64, se despediu da cidade que o recebera em
sua juventude através do poema Triste Horizonte, que serviu de alerta para quem ainda
ignorava as perdas ambientais sofridas não só pelo município, mas também pelo Estado
e pelo próprio país:

(...) Fujo da ignóbil visão de tendas obstruindo as alamedas do Senhor. Tento


fugir da própria cidade, reconfortar-me em seu austero píncaro serrano. De lá
verei uma longínqua, purificada Belo Horizonte sem escutar o rumor dos
negócios abafando a litania dos fiéis. Lá o imenso azul desenha ainda as
mensagens de esperança nos homens pacificados - os doces mineiros que
teimam em existir no caos e no tráfico. Em vão tento a escalada. Cassetetes e
revólveres me barram a subida que era alegria dominical de minha gente.
Proibido escalar. Proibido sentir o ar de liberdade destes cimos, proibido viver
a selvagem intimidade destas pedras que se vão desfazendo em forma de
dinheiro. Esta serra tem dono. Não mais a natureza a governa. Desfaz-se, com
o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala.
Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradores cá embaixo. Jeremias me
avisa: Foi assolada toda a serra; de improviso derrubaram minhas tendas,
abateram meus pavilhões. Vi os montes, e eis que tremiam. E todos os outeiros
estremeciam. Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada (DE
ANDRADE, 1976).

Figura 07 - Jornais Opinião e O Jornal de Minas (Diário de Minas) nos anos de 1973 e 1974, periódicos
que denunciaram os transtornos decorrentes da exploração mineral na Serra do Curral.
Fonte: Hemeroteca Histórica de Minas Gerais

64
Pela jornalista Maria Cristina Bahia Vidigal, impedida de subir a Serra do Curral por um funcionário da
MBR no ano de 1976, sob alegação de que a mesma pertencia à companhia, e ainda retrucando à indagação
da jornalista, que alegou que a serra pertencia à cidade “pois agora não sobem mais”.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
46
Figura 08 - Rebaixamento do perfil da Serra do Curral no ano de 1974 visto
desde o cruzamento da Avenida Brasil e Rua Cláudio Manoel.
Fonte: Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcellos/ EA-UFMG

Considerações Finais

Importante e imponente, a Serra do Curral e todo o seu complexo, guardiãs das


riquezas minerais do Quadrilátero Ferrífero e das melhores reservas de ferro do planeta,
repousou por milhões de anos livre da ação antropogênica, que em pouco tempo alterou
parcialmente a sua insistente beleza. Danos que as intempéries do ambiente, dentro do
processo natural de evolução geológica do planeta, levariam alguns milhares de anos para
realizar de forma menos agressiva.
A sua beleza cênica e a importância ambiental e simbólica para a região e para o
próprio arraial nascido, consolidado e arrasado aos seus pés, levou a Comissão
Construtora a valorizar o maciço e os seus arredores, como um importante marco
referencial da paisagem, figurando como o limite da cidade planejada, limitada nas cotas
mais baixas pelo ribeirão Arrudas, outro importante referencial geográfico.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
47
O que a CCNC compreendeu e tratou de emoldurar o espaço urbano, acabou por
se perder ao longo das décadas de acentuado crescimento urbano e das mudanças políticas
e econômicas no cenário nacional e mesmo mundial. Os valiosíssimos depósitos de ferro
do quadrilátero passaram a ser cobiçados pelas grandes potências mundiais, e da mesma
forma que o ouro mineiro foi a base do capital necessário para a Revolução Industrial na
imperial Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, o ferro viria a alimentar a cobiça imperial
armamentista dos Estados Unidos na segunda metade do século XX, desbancando o
submisso Reino Unido no direito à exploração mineral no Quadrilátero.
Inexistia uma real consciência ambiental no período, e a pressa do Estado em
solicitar o tombamento diante da ameaça estrangeira é clara, visto que Juscelino
Kubitscheck, então presidente, buscava interceder em todas as esferas com o intuito de
desembaraçar as concessões de exploração mineral. Somente à Hanna foram cerca de
trinta concessões entre os anos de 1957 e 1958.
A partir de uma solicitação oficial, o perímetro do tombamento sugerido por
Sylvio de Vasconcellos, ciente da necessidade da proteção de uma grande porção da serra
por diversos aspectos, abrangeria uma área de 18 quilômetros de extensão, reduzida por
motivos econômicos quando do tombamento, a 1.800 metros, ou seja, o tombamento se
restringia a porção que emoldura a capital mineira.
Os anos anteriores à instalação da mina caracterizam-se pela minuciosa
preparação para a exploração, a base de propagandas, matérias pagas na imprensa e
influência política para, entre outras coisas, garantir o destombamento do maciço na
porção desejada.
O caso Águas Claras pode ser considerado como um exemplo clássico da
submissão do poder público aos interesses privados, tanto nacionais quanto estrangeiros,
visto que a MBR surgiu de uma fusão entre as empresas de Augusto Trajano de Azevedo
Antunes e a Hanna e suas Companhias.
As dezenas de concessões do Governo JK à Hanna e a difusão da crença de que o
Brasil não tinha condições de exportar e competir no mercado internacional sem a
participação estrangeira na exploração, como dito por José Maria Alkmin no ano de 1957,
ao justificar as alterações na política de exploração e exportação de minérios, acabou por
criar um sentimento na sociedade da imprescindível necessidade da aliança do país com
nações que tinham como única meta a exploração desenfreada de um bem cobiçado por
todos.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
48
(...) não possuímos posição competitiva no mercado mundial que torne nosso
minério de alto forno objeto de preferência pelos grandes consumidores. Para
garantir sua colocação em larga escala e por tempo indefinido é indispensável
que associemos, a nossas atividades de produtores, os capitais das entidades
consumidoras. Para a exportação de grandes massas de minério, são
indispensáveis grandes investimentos em mineração, transporte terrestre,
transporte portuário e transporte marítimo. Esses investimentos têm que ser,
normalmente, vinculados a acordos de fornecimento de minério a longo prazo
e à garantia de cambiais para os serviços financeiros respectivos (PEREIRA,
1967, p.55).

Tal sentimento contribuiu para a repulsa às políticas de cunho nacionalista da


primeira metade da década de 1960, que acabaram por incorporar ao patrimônio da União
as valiosas minas concedidas nos últimos anos da década de 1950. A questão da
exploração das jazidas de ferro do Quadrilátero Ferrífero, na qual se insere a Serra do
Curral é mais séria do que se imagina. Galeano (2000, p.39) por exemplo, afirma que as
minas de ferro foram a causa da queda dos dois presidentes, visto as dificuldades impostas
frente aos interesses norte-americanos em manter o seu poderio militar no auge da Guerra
Fria. Uma observação plausível, visto que poucos meses após o golpe de 01 de abril de
1964 o então presidente Castelo Branco reintegrou ao grupo Hanna as minas tomadas três
anos antes.
Nesse contexto a Serra do Curral, apesar do tombamento federal, estava
condenada a experimentar em suas entranhas a voracidade ferrífera do momento. A
proteção integral acabou por sucumbir frente aos interesses do capital mineral e ao cunho
autoritarista do período, que solicitava aos órgãos competentes as alterações necessárias
para a exploração das jazidas. Ainda assim foram quase dez anos para o início da
exploração das Águas Claras, que alteraria para sempre o maciço símbolo de uma capital
nascida aos seus pés, mas que não dava nenhuma importância a sua existência.
De fato, até o final da década de 1970 a grande maioria das administrações
municipais e estaduais travaram uma guerra aos elementos naturais, nesse caso o maciço
da serra do curral. A natureza era vista como um meio que deveria fornecer recursos para
o desenvolvimento das sociedades humanas, cedendo espaço para a materialização das
grandiosidades da civilização. A promoção do afastamento do meio no qual a humanidade
faz parte contribuiu para a visão deturpada que ainda existe nas sociedades atuais, onde a
expansão horizontal e vertical dos centros urbanos, sendo Belo Horizonte um exemplo
clássico, acabou por gerar lucros fabulosos para poucos, e problemas decorrentes do mau
planejamento para muitos.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
49
O reconhecimento da proteção federal pelo município na década de 1970 e o
posterior tombamento a nível municipal nas décadas seguintes a partir da mudança da
consciência ambiental e patrimonial assegurou a preservação do perfil e das vertentes do
maciço, responsáveis há mais de cem anos pelo abastecimento das cidades surgidas ao
longo do complexo. No entanto, visto a fragilidade da área protegida, atingida pela
especulação imobiliária, exploração mineral e degradação ambiental, a delimitação de um
perímetro de entorno publicado pelo IPHAN, sob a Portaria 198 em maio de 2016, figura
como uma resistência perante a expansão do tecido urbano dos municípios de Belo
Horizonte e Nova Lima.
Enfim, resistindo à degradação e às agressões diversas de uma cidade que, em
meio à grandiosidade metropolitana, rompeu com os seus elementos naturais, e as
pressões do capital privado, a guardiã do Belo Horizonte, memória viva da existência e
sentinela da vida agitada dos curralenses do século XXI, a Serra do Curral del Rey é a
identidade viva de uma cidade em eterna construção.

Referências

ARRUDA, Rogério Pereira de; WESTIN, Vera Lígia Costa. A serra e a cidade. Belo
Horizonte: Secretaria Municipal de Cultura, 1998.

BARBOSA, Waldemar de almeida. Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais.


Belo Horizonte, SATERB, 1971.

BARRETO, Abílio. Belo Horizonte, memória histórica e descritiva; história média. v.2.
Belo Horizonte: FJP/ Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996.

BATISTA, Cláudia Paiva. Transformações e permanências na paisagem da Serra do


Curral. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de
Geografia, Belo Horizonte, 2004.

BELO HORIZONTE. Coleção Relatórios dos Prefeitos 1899-2000. Arquivo Público da


Cidade de Belo Horizonte.

BORSAGLI, Alessandro. Belo Horizonte em pedaços: fragmentos de uma cidade em


eterna construção. Belo Horizonte, Clube de Autores, 2016.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
50
BORSAGLI, Alessandro. Rios invisíveis da metrópole mineira. Belo Horizonte, Clube
de Autores, 2016.

BORSAGLI, Alessandro. Sob a sombra do Curral del Rey: contribuições para a história
de Belo Horizonte. Belo Horizonte, PerSe, 2017.

BRASIL. IPHAN. Livro do Tombo v.28, 1960.

BURTON, R. F. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, São
Paulo: Edusp, 1976.

CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa: Volumes 1 e 2. Rio de Janeiro, Editora


Topbooks, 2004.

COELHO, E.J; SETTI. J.B. A E.F. Vitória-Minas e suas Locomotivas desde 1904.
Volume 1. Memória do Trem, 2001.

CORREA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Editora Ática, 4ª edição, 1989.

FERRAZ, S. C. “Triste Horizonte”: Movimentos em defesa da Serra do Curral – Belo


Horizonte, década de 1970. Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal
de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, 2008.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO/Centro de Estudos Históricos e Culturais. Panorama de


Belo Horizonte; Atlas Histórico, Belo Horizonte, 1997.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO/Centro de Estudos Históricos e Culturais. Saneamento


Básico de Belo Horizonte: trajetória em 100 anos – os serviços de água e esgoto, Belo
Horizonte, 1997.

HENRIQUES, R. J. Fotografia e antropogeomorfologia: panorama das transformações


fisiografias da paisagem no município de Belo Horizonte, Minas Gerais. In: Anais do X
Simpósio Nacional de Geomorfologia, Manaus, 2014.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 39ª ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000.

MATA MACHADO, Bernardo Novais, O caso Hanna/MBR: cronologia de uma


investigação. Disponibilizado pelo próprio Autor, 2003.

MINAS GERAES. Commissão d'Estudo das Localidades Indicadas para a nova Capital.
Relatorio apresentado a S. Ex. Sr. Dr. Affonso Penna, Presidente do Estado, pelo
engenheiro civil Aarão Reis. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893b.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
51
MIRANDA, E. E. de; COUTINHO, A. C. (Coord.). Brasil Visto do Espaço. Campinas:
Embrapa Monitoramento por Satélite, 2004. Disponível em:
<http://www.cdBrasil.cnpm.embrapa.br>. Acesso em: 29 Out. 2016.

NAVA, Pedro. Beira Mar. Rio de Janeiro Nova Fronteira, 1985.

PENNA, Octávio. Notas Cronológicas de Belo Horizonte. Fundação João Pinheiro, Belo
Horizonte, 1997.

PEREIRA, O. D. Ferro e Independência. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira,


1967.

PLAMBEL. Programa metropolitano de parques urbanos: parque das Mangabeiras,


relatório preliminar. Belo Horizonte, 1979.

TULIO, P. R. A. Falsários d’el Rei: Inácio de Souza Ferreira e a Casa da Moeda Falsa
do Paraopeba (1700-1734). Dissertação de Mestrado. Programa de pós-graduação em
história, Universidade Federal Fluminense, 2005.

VARAJÃO, C.A.C.; SALGADO, A.A.R.; VARAJÃO, A.F.D.C.; BRAUCHER, R.;


COLIN, F.; NALINI JR., H.A. Estudo da evolução da paisagem do Quadrilátero
Ferrífero (Minas Gerais, Brasil) por meio da mensuração das taxas de erosão e da
pedogênese. Revista Brasileira de Ciência do Solo, 33: 1409-1425, 2009.

Jornais e Revistas

Jornal Diário da Tarde, 1935-1975.

Jornal Diário de Minas, 1899-1973.

Jornal Opinião (Rio de Janeiro), 1972-1977.

Revista Três Tempos (1962-1963).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
52
A FORMAÇÃO URBANA DE BELO HORIZONTE
O PARQUE MUNICIPAL E O VIADUTO SANTA TEREZA

THE URBAN FORMATION OF BELO HORIZONTE


THE MUNICIPAL PARK AND THE SANTA TEREZA VIADUCT

Gabriel Esteves Campos Costa*

Resumo

O artigo a seguir pretende provocar a reflexão sobre o espaço urbano, o espaço público e
o fenômeno da territorialidade. Discute-se os tipos de sociabilidade e as formas de
controle existentes nos espaços públicos da cidade de Belo Horizonte. O artigo pretende,
também, mostrar como as prioridades da esfera pública e as políticas de gentrificação
influenciaram os dinamismos que transformam a arquitetura urbana da cidade em seus
120 anos. Finalmente, este artigo traz como objeto de pesquisa o cenário da 1ª Seção
Urbana, no qual elementos como o Parque Municipal, o Viaduto Santa Tereza, a Praça da
Estação e seus entornos, oferecem materiais suficientes para reafirmar que são locais onde
as diferenças se tornam públicas e geram confronto social e político.
Palavras Chave: Espaço Urbano; Gentrificação; Territorialidade.

Abstract

The following article aims to provoke reflection on urban space, public space and the
phenomenon of territoriality. Discuss the types of sociability and the existing control
forms in the public spaces of the city of Belo Horizonte. Show how the priorities of the
public sphere and gentrification policies influenced the dynamos that transform the urban
architecture of the city in its 120 years. Finally, this article brings as a research object, the
setting of the 1st Urban Section, in which elements such as the Municipal Park, the Santa
Tereza Viaduct, Station Square and its surroundings, offers enough material to confirm
that they are places where the differences became public and generate social and political
confrontation.
Keywords: Urban Space; Gentrification; Territoriality.

*
Aluno de graduação do 5º período em História pela UFMG. Estagiário no Arquivo Público da Cidade de
Belo Horizonte. Email: ccostagabriel@live.com.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
53
Considerações Gerais

A construção de Belo Horizonte, sendo uma das primeiras capitais planejadas do


país, se dá de forma muito particular. Diferente de experiências anteriores de
planejamento urbano65, a capital mineira, imaginada no final do século XIX, não falta
com suas influências claras do que era o urbanismo à época. Pode-se dizer que coube à
Comissão Construtora da Nova Capital, inclusive, pela proporção do projeto, idealizar o
rosto da arquitetura urbana do período.
Se pudéssemos situar melhor, essas últimas décadas do século XIX e as primeiras
do século XX foram o cenário propício para uma mudança drástica na concepção de
cidade. Durante o século XIX o arraial se encaminhava à decadência, da qual vagaria
espaço para se tornar a capital de Minas Gerais, afinal, as qualidades do seu sítio natural
de paisagens quase intocadas pelo homem influenciaram muito na decisão da Comissão
formada para escolher a localização da nova capital66.
Assenta bem ao norte da serra do Curral (...) e um pouco a oeste do vale
profundo e jovem do rio das Velhas, onde este emerge das montanhas em seu
caminho para o rio São Francisco. Nesta região um nível de planalto a uma
elevação de cerca de 1.000 metros encontra-se generalizadamente preservado,
com vales largos, abertos, esculpidos abaixo do nível superior a um de cerca
de 800 metros. Os rios principais, como o rio das Velhas, fluem através de
cânions estreitos e jovens com meandros encaixados nos vales do nível de 800
metros e os tributários dos principais rios estão estendendo seus vales
entalhados em V para montante planaltos adentro. A cerca de oito quilômetros
a jusante de Sabará, o rio das Velhas recebe pela margem esquerda o ribeirão
Arrudas, numa elevação abaixo de 700 metros. Este rio prolongou a sua jovem
garganta a uns 14 quilômetros adentro nas terras montanhosas a oeste do rio
das Velhas. Mas para além destas, ele corre através de um vale apenas
ligeiramente abaixo do nível geral de 800 metros, tendo o característico perfil
em V aberto dos jovens formadores. Acima da garganta do ribeirão Arrudas,
num vale largo, aberto, imitando uma bacia, que se arqueia dos remanescentes
de 1.000 metros em ambos os lados ao nível de 800 metros, no seu eixo, está
situada Belo Horizonte (JAMES, 1947, p.1603).

O conceito era de uma cidade que exprimisse conforto. As ruas se cruzavam em


ângulos retos e avenidas cortando-as em ângulos de 45º, facilitando o direcionamento e a
arborização das vias, as ruas eram largas, as casas espaçosas, praças e rios, além do
imponente parque municipal.

Notavelmente, apesar de estarmos falando de um projeto grandioso para a época,


deve-se admitir que, se comparado à Belo Horizonte de hoje, o projeto original da

65
Salvador (1549), Teresina (1852) e Aracaju (1855) são as três capitais planejadas antes de Belo
Horizonte.
66
JULIÃO, L. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna; 1891-1920. Belo Horizonte, 1992, p. 68
(Dissertação, Mestrado em Ciências Políticas).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
54
Comissão Construtora da Nova Capital compreende uma região muito restrita. Estamos
falando de uma organização urbana pequena e simples com um núcleo central delimitado
pela Avenida do Contorno, dispondo também de fazendas periféricas responsáveis pelo
abastecimento da cidade.

1. A Formação da Zona Urbana

Figura 1: Planta Geral da Cidade de Minas

Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

O atual centro da cidade é formado pela 1ª, 2ª, 3ª e 4ª seções urbanas compostas
respectivamente por 34, 35, 36 e 34 quadras do projeto da Comissão Construtora da Nova
Capital. Especificamente, esse é o cenário no qual nessa discussão tentamos compreender
o uso do espaço urbano e suas prioridades. Sendo assim, faz-se a seguir uma breve
descrição desse espaço seguindo o projeto de Aarão Reis.
Segundo o projeto, a 1ª seção urbana, mesmo sendo ao centro do território, é a
principal entrada para a cidade. Sendo o transporte ferroviário o mais eficiente do período,
o ramal férreo da 1ª seção urbana, onde hoje funciona o Museu de Artes e Ofícios, recebeu
boa parte do material usado na construção da cidade e, após a inauguração da capital,
funcionou como uma essencial estação ferroviária.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
55
Logo à entrada, também havia a Praça Rui Barbosa conhecida como Praça da Estação
e, ao atravessar o Ribeirão Arrudas pela ponte, tinha-se acesso ao outro lado da praça.
Atualmente, ao percebermos a paisagem, notamos que a Avenida dos Andradas cobre o
rio e a Praça da Estação foi transformada em uma esplanada.
Boa parte das ruas e avenidas do centro da cidade de Belo Horizonte receberam os
nomes dos Estados no sentido norte-sul, e os nomes de grandes grupos indígenas no
sentido leste-oeste. O projeto da Comissão Construtora priorizou a estratégia que facilita
bastante a orientação na região, mas, além disso, a escolha pelo padrão foi também uma
tática utilizada para facilitar a arborização das vias.
Belo Horizonte recebeu o título de cidade jardim em virtude de a Comissão
Construtora imaginar Belo Horizonte como uma capital vergel, com vias completamente
arborizadas, um número considerável de praças e jardins e o ambicioso parque municipal.
Um cenário, talvez, não familiar para quem conviva com esse espaço atualmente.
O Parque Municipal da capital mineira, em seu presente estado, é uma construção
imponente. Depois de muitas reformas, o parque conhecido pelo belo-horizontino de hoje
seria irreconhecível ao parque imaginado por Paul Villon (1841-1905), renomado
paisagista francês, para o projeto da Comissão Construtora.

Figura 2: Detalhes Parque Municipal

Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

Os limites do Parque Municipal, segundo o projeto, apresentavam um formato


muito diferente da área atual. Um vasto quadrado entre a Avenida Afonso Pena e a
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
56
Avenida do Tocantins (Av. Assis Chateaubriand), Araguaya (Av. Francisco Sales) e
Mantiqueira (Av. Alfredo Balena) (Figura 2). Atualmente a parte da Avenida do
Tocantins que ladeia o parque foi transformada no Viaduto Santa Tereza, mas muito além
dos limites da Avenida dos Andradas e o soterrado rio, o projeto da Comissão Construtora
imaginava um ribeirão dentro da área do parque. O formato octogonal idealizado por Paul
Villon era mais ambicioso, além do ribeirão, o projeto incluía a saída do ramal férreo
também através do parque.
Através da Avenida do Tocantins, até onde hoje fica uma parte da Avenida Assis
Chateaubriand, o parque se estendia. Na esquina da Avenida Assis Chateaubriand com a
Avenida Francisco Sales, apresentada no projeto como Avenida do Araguaya, o parque
ocupava uma parte hoje pertencente ao bairro Floresta. A partir da esquina com a Avenida
da Mantiqueira, hoje Alfredo Balena, até retornar à Afonso Pena, o parque possuía o
território que hoje é ocupado pela área hospitalar e o Campus Saúde da Universidade
Federal de Minas Gerais, onde foi construído o antigo campo do América (Figura 3).

Figura 3: Desmembramentos do Parque Municipal

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
57
Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

É pertinente considerar que todas as mudanças estruturais do parque municipal


oferecem materiais o suficiente para alimentarmos a proposta dessa discussão. O
desmembramento do Parque Municipal é um reflexo nítido do propósito da cidade se
transformando. Uma área de nove quarteirões do bairro Floresta entre a Avenida dos
Andradas, Assis Chateaubriand e Francisco Sales provavelmente sequer existiu como
Parque Municipal, ou melhor, o que se sabe sobre esse caso é que de fato a área em
questão foi incorporada no loteamento do território durante a construção do parque, mas
fora desmembrada anos depois.

Cedo, o Parque perdeu a área ao norte do Arrudas, na confluência das avenidas


Tocantins e Araguaia, hoje Assis Chateaubriand e Francisco Sales,
respectivamente. Em 1912, o Prefeito Olinto do Reis Meireles anunciou que
estava providenciando o seu fechamento, tendo como limite as margens do
ribeirão.67

As áreas ladeadas pela outra margem da Andradas, entre a Avenida Francisco


Sales, Alfredo Balena e a Alameda Ezequiel Dias, atual lateral do parque, foram

67
CVRD. Parque Municipal - Crônica de um século. Belo Horizonte: 1992. 132p.: il.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
58
desmembradas entre 1907 e 1937. Ao todo, a Prefeitura de Belo Horizonte fez 8
desmembramentos da região para o levantamento de edificações da cidade, além de 5
construções erguidas dentro da atual área do parque.
Compreender todas as transformações do parque nos permite um bom parâmetro
sobre as prioridades da cidade. Mesmo que nosso objeto de pesquisa compreenda uma
região muito restrita, com suas particularidades, compreender o que levou a autoridade
pública a transformar a cidade nos mostra muito da relação Estado/Cidadão. A partir
disso, analisar quais foram as mudanças que interferiram no modo de viver do belo-
horizontino e a título de que essas transformações foram necessárias.

2. A Avenida, o Parque, o Ribeirão e o Ramal Férreo

As intervenções ao projeto da Comissão Construtora começam antes mesmo da


cidade estar pronta. Inaugurada em 12 de dezembro de 1897, a Cidade de Minas, que logo
viria a se tornar Belo Horizonte em 1901, já não era a mesma apresentada por Aarão Reis
no projeto da Comissão Construtora da Nova Capital. Em 1895, pouco mais de um ano
após assumir o cargo, Aarão Reis foi substituído pelo engenheiro Francisco de Paula
Bicalho, que permanece no cargo até a inauguração, e é responsável por algumas
alterações palpáveis dentro do projeto original da Comissão, como por exemplo, atenuar
o contraste entre o traçado ortogonal da cidade e o já novo formato orgânico do parque,
além da não edificação da maioria das praças projetadas e a concentração dos edifícios
públicos.
Afinal, como compreender que tivemos uma cidade pronta? Não existe um marco
que nos possa fornecer a conclusão da cidade senão sua inauguração. Ainda assim, A
cidade de Minas de 1897 aparentava estar muito longe de ser concluída. Ruas de terra
batida e sem calçamento, casas vazias, construções, lotes, ausência de serviços básicos e
uma população muito menor que o espaço da cidade.

Figura 4: Obras na Cidade

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
59
Fonte: Arquivo Museu Abílio Barreto [Reprodução]

Notavelmente, mesmo depois de inaugurada, logo nos primeiros anos, a cidade já


viria a derrubar edifícios, alterar ruas e oferecer serviços de acordo a com necessidade de
uma cidade que vinha dando seus primeiros passos para se consolidar como a nova capital
do Estado. Torna-se claro que logo após o período de estabilização, a nova capital já
apresentava uma série de deficiências de funcionamento. A área em questão apresenta
alguns fatores interessantes de serem observados.
Logo nas primeiras décadas de existência, a cidade apresentou a necessidade de
vias de fluxo mais planejadas. O trajeto do centro comercial para regiões suburbanas
sempre foi uma necessidade dos moradores de Belo Horizonte, e o desenvolvimento da
cidade implicou diretamente na necessidade de transporte para os cidadãos.
Os bondes elétricos são símbolos da memória coletiva do belo-horizontino, pois
por muitas décadas foi o meio de transporte mais comum da cidade. Seu crescimento
demandou ano após ano a necessidade de rotas para bondes que escoassem e
alimentassem o centro indo e vindo das regiões suburbanas.

A Avenida do Tocantins funcionava como uma dessas vias que saía do coração
do Centro e ia diretamente para os bairros. Por inconveniência do projeto de Aarão Reis,
o trajeto da avenida possuía dois obstáculos: o ribeirão Arrudas, solucionado com uma
precária ponte, e a saída do Ramal Férreo.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
60
Figura 5: Antiga Ponte da Avenida do Tocantins

Fonte: Arquivo Museu Abílio Barreto [Reprodução]

A solução só se fez presente diante do projeto de Emílio Baumgart em 1928


quando Belo Horizonte inaugurou o Viaduto da Avenida do Tocantins, hoje conhecido
como Viaduto Santa Tereza. É interessante observar que mesmo estando às margens do
parque que já havia passado por desmembramentos, a construção do Viaduto não
despertou o interesse do poder público em alterar o formato do parque para desobstrução
da área, mesmo que tenham havido intervenções em períodos anteriores e posteriores à
construção.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
61
Figura 6: O Viaduto Santa Tereza em 1928

Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

Mesmo assim, podemos considerar o Viaduto da Avenida do Tocantins como um


genuíno símbolo do processo de intervenção do espaço urbano. Em 1928, ao fim de sua
edificação, o Viaduto que havia sido planejado para desafogar a saída do Centro
Comercial para os Bairros, sendo um dos principais acessos dos bondes, vivia uma
realidade já diferente do período de seu planejamento.
Nessa época, os bondes já dividiam espaço com os automóveis que vinham
tomando conta da cidade ano após ano e acidentes não eram incomuns. No mesmo
período, o Ramal Férreo funcionava a todo vapor como acesso mais prático à cidade e,
além disso, o ribeirão já se apresentava como nem tão conveniente.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
62
Figura 7: Acidente de Bonde sobre o Viaduto Santa Tereza - 1937

Fonte: Omninbus: Uma História dos Transportes Coletivos de Belo Horizonte. 1996.

O período em questão é importante pela série de obstáculos que a cidade precisou


enfrentar diante de seus prematuros problemas, devido ao crescimento populacional
pouco planejado. A cidade havia acabado de se afirmar como a capital e até esse ponto o
projeto da Comissão Construtora já havia se provado insuficiente. Nessa década, o poder
público já havia descartado praças e levantado dezenas de novos edifícios.
Inclusive, nessa década, a Praça da Liberdade já havia sido transformada para o
atual formato, devido à visita da Família Real da Bélgica em 1920 “(...) os jardins
românticos do começo do século foram considerados provincianos demais e tiveram de
ser substituídos”.68 Algumas vias de trânsito já haviam sido alteradas, rios já haviam se
tornado inconveniências e não tardaria para que canalizações fossem planejadas. A
justificativa de que o poder público fazia tais intervenções com o propósito de promover
o desenvolvimento da cidade começa a perder o sentido a partir do acelerado processo de
urbanização desorganizado.

68
CVRD. Parque Municipal - Crônica de um século. Belo Horizonte: 1992. 132p.: il.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
63
As questões mais importantes a serem colocadas nesse ponto da discussão são: a
que custo essas intervenções foram feitas? Quais foram suas consequências? A partir
disso, é válido compreender essas intervenções para explicar as situações de calamidade
presentes na cidade hoje.
Esse texto jamais seria capaz de fazer um panorama tão amplo a ponto de concluir
tal estudo. Existem trabalhos muito bem executados de outros profissionais à disposição
para compreender esse processo que poderiam enriquecer tal leitura: pesquisas sobre a
história da cidade, dos bairros, dos jardins, praças e parques, o processo de desocupação
de favelas e edificação de conjuntos habitacionais, curso dos rios da cidade, a arquitetura
urbana, a elitização do espaço público, etc.; são exemplos de trabalhos executados sobre
a cidade que cooperam para compreender a relação entre a esfera social e o espaço da
cidade.
Pertinentemente, esse texto se contenta em apresentar o cenário da 1ª seção urbana
e como esse espaço urbano interage com a esfera social e se denomina espaço público. A
partir disso, tornou-se possível construir o discurso fazendo um panorama dos impactos
sociais provocados, observando casos de histórias como a do Parque, da Praça da Estação
e do Viaduto que narram diferentes períodos de intervenções no espaço público. O trecho
a seguir foi retirado da obra: Um olhar para o século XX: arquitetura civil na área urbana
da cidade planejada por Aarão Reis se tratando da 1ª seção urbana.

A sua escolha deveu-se principalmente por se tratar de uma região que sofreu
intensa transformação durante os mais de cem anos da cidade, portanto foi o
espaço de uma enorme variedade de usos, desde os grandes equipamentos
urbanos, como a estação ferroviária, o mercado inicial da cidade, em seu lado
oposto, até o local das primeiras industrias a se implantarem na cidade. A
região sofreu uma mutação muito expressiva, podendo em seu interior ser
identificadas construções de todas as épocas da produção do espaço urbano da
cidade.69

3. A relação entre o espaço urbano e a sociedade

Da mesma maneira que uma reforma em casa altera definitivamente sua vivência
nela, qualquer intervenção no espaço urbano gera consequências e afeta diretamente à
sociedade.

69
Fundação João Pinheiro: Um olhar para o século XX: arquitetura civil na área urbana da cidade
planejada por Aarão Reis - representação dos testemunhos criação de bancos de dados georreferenciados.
- Belo Horizonte, 2003. 68 p.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
64
Mudanças palpáveis o bastante para que a sociedade reaja bem ou mal. Rogério
Proença Leite diz que o espaço urbano só se torna público quando é investido de
significação.

Quando as ações atribuem sentidos de lugar e pertencimento a certos espaços


urbanos, e, de outro modo, essas espacialidades incidem igualmente na
construção de sentidos para as ações, os espaços urbanos podem se constituir
como espaços públicos: locais onde as diferenças se publicizam e se
confrontam politicamente. (LEITE, 2002).

O início da década de 40 do Século XX compreende um período de crescente


industrialização interna em todo país. Belo Horizonte vivenciou sua segunda explosão
populacional nessa época. Isso fez com que os parâmetros da desigualdade social
revelassem um abismo entre a elite belo-horizontina e a calamitosa situação de miséria
de incontáveis pessoas que chegavam à capital todos os dias a procura de trabalho.
O projeto de moradia popular da prefeitura se mostraria ineficiente ao cenário de
expansão da pobreza. A cidade passa então a conviver com favelas, todas afastadas do
centro, em regiões de fazendas e reservas, como a do Pindura Saia, do Acaba Mundo, a
favela do Leitão e mais tarde o Morro do Papagaio, a Cabana do Pai Tomaz e etc.
Moradores de rua foram se tornando cada vez mais parte comum do cenário,
principalmente nas regiões mais próximas do Centro. Assim, como atualmente, a partir
do momento que a desigualdade social produziu esse cenário, a situação dos moradores
de rua se tornou um problema para o poder público. A questão que se faz é: qual problema
a situação de miséria nas ruas desperta para as forças públicas?

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
65
Figura 8: Moradores de rua debaixo do Viaduto Santa Tereza – 1955

Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

A área que estamos tratando é o lar de incontáveis pessoas em situação de rua.


Mais amplamente, deve-se entender que espaços como marquises embaixo de viadutos,
pontes, praças, parques, rios são locais que oferecem o mínimo de conforto a pessoas que
moram nas ruas e, consequentemente, em grandes cidades, essa situação se intensifica.
Incapazes de resolver os problemas de moradia, as ações postas em prática foram
a de cercear, perseguir e dispersar concentrações de moradores de rua na capital. Esse
processo de gentrificação pode ser observado em diferentes intervenções do espaço
urbano. O objetivo do fenômeno da gentrificação é a higienização do local, visando
recuperar o valor imobiliário e revitalizar o aspecto da área, podendo até dizer que as
medidas impostas através das décadas pelo poder público tem a intenção de elitizar o
espaço urbano e limpar o local de suas identidades.
A higienização urbana vai muito além de intervenções diretas aos moradores de
ruas. Ações como a transformação da Praça da Estação em um estacionamento em
meados dos anos 70 e, posteriormente, em uma esplanada em 2004, são exemplos claros
do empenho do Poder Público em transformar os espaços em locais de passagem,
impedindo a aglomeração. Além disso, podemos observar vários projetos de intervenção
do espaço na região que muito indicam esse propósito. Como por exemplo, a construção
de um depósito da prefeitura ocupando a baixada do Viaduto Santa Tereza. O projeto de
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
66
um posto de combustível que inclui bombas, um estacionamento, lavagem e oficina, em
1948 que ocuparia toda a baixada do viaduto ao lado do parque também evidencia a
verdadeira intenção do poder público. Aparentemente, este projeto não foi posto em
prática. A seguir, é perceptível na imagem o posto de combustível que incluiria um
estacionamento, lavagem e oficina.

Figura 9: Projeto de Posto de Combustível sob o Viaduto Santa Tereza – 1948

Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

Há diversos projetos de edificações para ocupar os baixios de viadutos da cidade,


como o exemplo de um restaurante que pudesse ocupar completamente o baixio de um
viaduto não identificado, que poderia ser, inclusive, para o Viaduto Santa Tereza. A
desocupação dos comerciantes que trabalhavam precariamente dentro do abrigo de
bondes Santa Tereza, onde hoje é o Mercado das Flores, na esquina entre a Avenida
Afonso Pena e a Rua da Bahia, em meados dos anos 60, é outra medida que transparece
bastante certa perseguição a grupos indesejados e desassistidos da sociedade. O Prefeito
Oswaldo Pieruccetti (1909-1990), a título de um projeto de revitalização da cidade,
lançou o Nova BH 66, responsável por uma série de medidas e intervenções controversas.
Ao mesmo ritmo que asfaltava vias e revitalizava monumentos, o projeto foi responsável
pela canalização de rios e desocupações: traços de uma cidade que vinha perpetuando
seus problemas com a sociedade no mesmo passo que se tornava uma metrópole.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
67
Figura 10: Desocupação de Comerciantes do Abrigo de Bondes Santa Tereza

Fonte: Arquivo Público da Cidade Belo Horizonte

Quanto mais nos aproximarmos do tempo presente mais intensa ficará essa
repressão, e os casos se multiplicam enquanto a desigualdade aumenta. Os anos mais
recentes da história do Viaduto Santa Tereza registram casos que se poderiam se comparar
aos relatados aqui se não fosse pela escala muito maior e por uma repressão muito mais
marcante.
Atualmente, a baixada do Viaduto Santa Tereza e seu entorno ainda concentram
um aglomerado volumoso de moradores de rua que vivem desse espaço, que também
acabou se tornando sede principal da maior expressão do movimento Hip Hop na cidade,
projetando artistas como Mc’s, Grafiteiros, skatistas, dançarinos, poetas, etc. para o
mundo. Eventos como o Duelo de Mc’s e o Game of Skate são idealizados e realizados
pelo coletivo Família de Rua, junto com a resistência de incontáveis artistas que persistem
em deixar suas marcas no espaço, mesmo que entre as insistentes camadas de tinta cinza
que o poder público acredita ser mais apropriado ao espaço.
O princípio da territorialidade se dá muito mais ao caso cultural do que físico. Seja
qualquer indivíduo, ou grupo, que ocupe um determinado local dando uma determinada
identidade a ele, pelo modo como o indivíduo ou grupo age naquele território. Essa
identidade que determinado local recebe de acordo com as pessoas que o frequentam se
denomina territorialidade.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
68
Figura 11: Duelo de Mc’S

Fonte: Acervo Pessoal

O Viaduto Santa Tereza possui uma história de resistência que vai além de seu
valor como simples edificação. Ao ultrapassar das décadas, a cidade teve diferentes
propósitos e consequentemente o cenário se alterou com o tempo. O Viaduto Santa Tereza
é um espaço resultado da intervenção do espaço da cidade e as pessoas que por ali
convivem, construíram, a partir disso, a identidade do local. Identidade essa
fundamentada por uma história de descaso social e de resistência, formando ali um
genuíno espaço de ocupação. Incomparavelmente às intervenções do poder público que
aconteceram ali, o que impressiona é que esse espaço foi ocupado pela sociedade, que
dirige suas próprias intervenções no local e define o propósito daquele espaço.
A territorialidade atribuída a certos locais como o Viaduto Santa Tereza devido às
ocupações dos espaços públicos por grupos marginais da sociedade não é bem vista pela
comunidade local e, por consequência, torna-se um problema para o poder público. Os
processos de gentrificação que pretendem “higienizar” esses locais, privando
determinadas territorialidades, podem ser observadas no caso do Viaduto. Os grupos que
ocupam o local e dão identidade a ele enfrentam barreiras que dificultam o mantimento
de suas manifestações artísticas, como a tentativa da prefeitura de cobrar 33 mil por ano
para a execução do Duelo de Mc’s e, principalmente, o fechamento do Viaduto às
vésperas da Copa do Mundo tentando dissolver esses grupos.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
69
Considerações finais

Em uma pesquisa realizada anteriormente, intitulada Viaduto Santa Tereza: De


quem e para quem, a equipe da pesquisa procurou observar o Viaduto Santa Tereza como
espaço público, identificar os grupos que frequentam o espaço e apontar as possibilidades
de uma construção dos grupos na identidade com o lugar. Analisar a avaliação do impacto
sobre as ações para com o viaduto e também com o bairro, também, analisar os sentidos
e significados do lugar para o viaduto e para os grupos que o frequentam.
Através deste trabalho, do qual tive o prazer de construir com um grupo dedicado
de alunos da graduação do curso de História e Letras da PUC Minas, em parceria com
alunos da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas, também resultou na
produção de um documentário sobre as histórias conhecidas nos movimentos debaixo do
Viaduto, também intitulado Viaduto Santa Tereza: De quem e para quem. O
documentário se encontra no YouTube e na página oficial do projeto no Facebook.
Com o acesso ao Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, enquanto
estudante do curso de História, esse trabalho pode tomar novas perspectivas. O acervo
cartográfico, textual e audiovisual do arquivo permitiu novas leituras sobre a história dos
espaços da cidade. Sendo assim, tornou-se possível essa produção na qual procurei
explicitar os aspectos do processo de ocupação e uso destes espaços ao longo do
desenvolvimento da cidade e, a partir disso, discorrer sobre as problemáticas apresentadas
no texto sobre espaço urbano, público, territorialidade e gentrificação.

Referências

Acervos Documentais

ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Acervo da Comissão


Construtora da Nova Capital. Disponível em: <www.acervoarquivopublico.pbh.gov.br>
Acesso em: 31 ago. 2017.
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Acervo Iconográfico. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 31 ago. 2017.

Livros, teses, fontes digitais e impressas

AGUIAR, Tito Flávio Rodrigues de. Conhecer o arraial de Belo Horizonte para projetar
a cidade de Minas: a Planta Topográfica e Cadastral da área destinada à Cidade de
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
70
Minas e o trabalho da Comissão Construtora da Nova Capital. XVIII Encontro Regional
(ANPUH-MG), Mariana, 2012.
ANDRADE, Luciana Teixeira de, JAYME, Juliana Gonzaga, ALMEIDA, Rachel de
Castro. Espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles. Cadernos Metrópole.
21, p. 131-153, 2009.
BARRETO, Abílio. Belo Horizonte, memória histórica e descritiva - história média. v.2.
Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996.
BORSAGLI, A. Rios invisíveis da metrópole mineira. Belo Horizonte: Ed. do autor,
2016.
CARSALADE, Flavio de Lemos. Estação em Movimento: a História da Praça da Estação
em Belo Horizonte – Belo Horizonte: Elos Produção Criativa, 2016. 176p.il. color.
CVRD. Parque Municipal - Crônica de um século. Belo Horizonte: 1992. 132p.: il.
Fundação João Pinheiro: Omnibus- Uma História dos Transportes Coletivos de Belo
Horizonte. Belo Horizonte, 1996.
Fundação João Pinheiro: Panorama de Belo Horizonte: Atlas Histórico.- Belo Horizonte,
Centro de Estudos Históricos e Culturais. Belo Horizonte, 1997. 104p.: il., - (Coleção
Centenário)
Fundação João Pinheiro: Um olhar para o século XX: arquitetura civil na área urbana da
cidade planejada por Aarão Reis - representação dos testemunhos criação de bancos de
dados georreferenciados. - Belo Horizonte, 2003. 68 p.
GUTIERREZ, Ramon. Arquitetura Latino-americana: Textos Para Reflexão e Polêmica.
São Paulo: Nobel, 1989.
JAMES, P. E. Belo Horizonte e Ouro Preto; estudo comparativo de duas cidades
Brasileiras. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, v. 4, n.48, p.1.598-1.609, 1 sem. 1947,
p. 1.603.
JULIÃO, L. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna; 1891-1920. Belo Horizonte,
1992, p. 68 (Dissertação, Mestrado em Ciências Políticas).
LEITE, R. P. (2002). Contra-usos e espaço público: notas sobre a construção social dos
lugares na Manguetown. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 17, n. 49,
pp. 115-134.
PERDIGÃO, João. Viaduto Santa Tereza. Belo Horizonte: Conceito, 2016.128p
REVISTA GERAL DOS TRABALHOS. Comissão Construtora da Nova Capital. Rio de
Janeiro, H. Lombaerts e C., abr. 1895. p.12.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
71
O "PROJETO LAGOINHA" NA CIDADE DE BELO HORIZONTE:
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NAS COMEMORAÇÕES DO
CENTENÁRIO (DÉCADA DE 1990)

EL “PROYECTO LAGUNA" EN LA CIUDAD DE BELO HORIZONTE:


MEMORIA Y OLVIDO EN LAS CONMEMORACIONES DEL CENTENARIO
(DÉCADA DE 1990)

Renata Lopes*

Resumo

Esse artigo procura analisar a construção da memória e o esquecimento do bairro


Lagoinha no contexto das comemorações do centenário de Belo Horizonte. Para realizar
essa proposta tomou-se como objeto o Projeto Lagoinha, idealizado em 1994 pelo
prefeito da cidade, Patrus Ananias. O projeto tinha como objetivo realizar a
requalificação do bairro em seus aspectos físicos, econômicos, ressignificar os aspectos
culturais e a própria memória do lugar. Como fontes foram utilizadas as matérias dos
jornais Estado de Minas e Hoje em Dia, que repercutiram a proposta, a implementação
e o fechamento do projeto. Pôde-se verificar que o Projeto Lagoinha não foi executado
da forma proposta, sendo finalizado sem que suas ações fossem completamente
concluídas.

Palavras-chave: Projeto Lagoinha; Memória; Centenário de Belo Horizonte.

Resumen

Este artículo busca analizar la construcción de la memoria y el olvido del barrio Lagoinha
en el contexto de las conmemoraciones del centenario de Belo Horizonte. Para realizar
esa propuesta se tomó como objeto el Proyecto Lagoinha, idealizado en 1994 por el

*
Licenciada em História. Professora renatalopespinto01@gmail.com.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
72
alcalde de la ciudad, Patrus Ananias. El proyecto tenía como objetivo realizar la
recalificación del barrio en sus aspectos físicos, económicos, resignificar los aspectos
culturales y la propia memoria del lugar. Como fuentes se utilizaron las materias de los
periódicos Estado de Minas y Hoy en día, que repercutieron la propuesta, la
implementación y el cierre del proyecto. Se pudo comprobar que el Proyecto Lagoinha
no fue ejecutado de la forma propuesta, siendo finalizado sin que sus acciones fueran
completamente concluidas

Palabras clave: Proyecto Lagoinha; Memoria; Centenario de Belo Horizonte.

1. Introdução

O bairro Lagoinha, situado na região noroeste da cidade de Belo Horizonte, tem


um significado diferente para a história da cidade no que se refere à sua importância no
contexto de construção e nos anos que se seguiram à inauguração da nova capital de
Minas Gerais. Diferentemente dos bairros que ficaram circunscritos à Avenida do
Contorno e que se destinaram às residências dos funcionários públicos e de governantes,
o bairro abrigou empregados, empreiteiros, migrantes, imigrantes, uma diversidade de
pessoas com seus ofícios que vieram trabalhar na construção de Belo Horizonte.
Muitas modificações urbanas ocorridas desde a década de 1970, como
construção de viadutos, a abertura de avenidas e a demolição de praças, fizeram com
que a Lagoinha se transformasse. A região acabou perdendo espaços de sociabilidade, o
que resultou em certo esquecimento da sociedade e do poder público ao longo do tempo.
Berman (1982) sintetiza em seu texto, a chegada da modernidade no Bronx, Estados
Unidos, entre 1950/1960, com demolições e construções de vias expressas chefiadas
pelo prefeito Robert Moses. De modo semelhante, as transformações ocorridas na
Lagoinha, podem ser entendidas como mecanismos de implantação da modernidade.
No contexto de comemoração do centenário de Belo Horizonte, o Projeto
Lagoinha foi criado com o objetivo de realizar a requalificação integrada do bairro. Esse
programa foi proposto e implementado durante a gestão do prefeito Patrus Ananias
(1993-1996) e suas propostas iam promover o bem-estar dos moradores, melhorar as
condições de moradia, impulsionar a economia local, valorizar as identidades culturais,
promover a recuperação dos espaços públicos e dos imóveis do bairro, estabelecendo,
para tanto, uma intrínseca relação com a memória coletiva do lugar. Para Patrus [...] Essa

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
73
obra vai resgatar a história deste bairro e propiciar o crescimento das atividades
econômicas na região”, declarou. (ESTADO DE MINAS, 1995).
Nesse ínterim, a imprensa escrita registrou o que ocorria, desde o seu
lançamento pela prefeitura até o seu encerramento, abordando as diferentes propostas
encampadas pelo projeto. Nesses registros, foi possível verificar que a municipalidade
buscou a repercussão das comemorações na grande mídia (jornais, rádio, programas de
televisão, entre outros) por meio de propagandas, notícias e entrevistas sobre o Projeto.
Por sua vez, jornais de circulação na época, também cobriram a comemoração do
centenário, mostrando o andamento do projeto, seus avanços e suas contradições.
Dessa maneira, será analisado o impacto do Projeto Lagoinha no bairro e sua
recepção por diferentes públicos locais, por meio dos debates presentes nos jornais
Estado de Minas e Hoje em Dia, buscando verificar a efetividade das ações propostas
pela Prefeitura de Belo Horizonte, dentro das comemorações do Centenário da cidade,
bem como identificar as reminiscências sobre o bairro até o final da década de 1990.

2. Da construção de Belo Horizonte aos dias atuais: um panorama sobre o


bairro Lagoinha

Há cento e vinte anos, a capital de Minas Gerais deixava de ser a antiga Ouro
Preto e era transferida para uma cidade nova. Belo Horizonte foi planejada em um
contexto republicano, no qual se desejava romper com as tradições monárquicas. A
nova Capital de Minas foi projetada e construída na transição entre Império e
República, buscando romper com o tradicionalismo herdado da monarquia. A cidade
foi edificada nos moldes de Paris, La Plata e Washington para ser moderna, arrojada e
inovadora. Cabe ainda ressaltar o higienismo, organização das ruas, avenidas e
setorização da cidade como marcas do projeto da Comissão Construtora70.
A construção de uma nova capital, localizada no centro geográfico do estado
facilitaria o governo, na medida em que possibilitava a comunicação entre as distintas
regiões do estado. A proposta republicana desejava promover o progresso de Minas

70
A comissão Construtora foi instituída pelo decreto nº 680 pelo governo do Estado de Minas Geras, em
1894, onde a comissão seria dirigida pelo Engenheiro Aarão Reis. Fonte: <https://goo.gl/qeTVnz > acesso
em 10 out 2016. às 15:10.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
74
Gerais, tornando o estado industrializado e desenvolvido economicamente, o que seria
inviável sendo Ouro Preto a capital, uma vez que não apresentava as condições
necessárias, seja do ponto de vista estrutural/espaço físico, seja do ponto de vista
ideológico.
Podemos verificar na Planta Cadastral de Belo Horizonte a disposição das ruas
do centro de Belo Horizonte e a Avenida do Contorno separando a região central da
cidade das Colônias Agrícolas e também o bairro Lagoinha. A região suburbana, na
época do plano urbanístico de Aarão Reis, ainda não havia sido planejada nas mesmas
proporções que a região central. A proposta era de que esse espaço fosse ocupado
posteriormente, sendo necessário um planejamento urbano no futuro. Por sua vez, as
áreas rurais eram compostas por cinco colônias agrícolas, com diversas chácaras e
tinham como função principal o abastecimento da cidade com gêneros
hortifrutigranjeiros. A dimensão do delineamento da nova capital mineira foi muito
importante, além de se tratar de uma cidade-capital, sede do poder político, ela deveria
também expressar o novo Brasil que se pretendia construir com a República.
No entanto, os bairros atualmente chamados de pericentrais, foram emergindo de
acordo com a necessidade de ocupação e moradia da população, que chegava para
trabalhar ou mesmo por aqueles que foram desapropriados no início das obras. O bairro
Lagoinha, objeto deste estudo, é um exemplo dessa situação.
A ocupação da Lagoinha se deu em conjunto à execução do projeto da nova
capital. O bairro foi construído com características tipicamente de periferia e seu
entorno era formado pelas fazendas do Pastinho e dos Menezes. Sabe-se ainda, que
havia uma área pantanosa próxima onde hoje está situado o Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial – SENAI, na Av. Presidente Antônio Carlos, sendo esse o
motivo pelo qual o bairro recebeu esse apelido “Lagoinha” conforme pontua Abílio
Barreto:

O nome deste bairro é mais antigo do que o próprio arraial de Curral Del Rei,
conforme tivemos ensejo de ver pela carta de sesmaria de João Leite da Silva
Ortiz, pois na designação da divisa das terras concedidas àquele bandeirante,
no cercado, já o local figurava com o nome de Lagoinha, que assim se chamou
pelo fato de ter existido ali, outrora, uma lagoa mais ou menos no local em que
hoje ficam as ruas Diamantina, Itapecerica, Adalberto Ferraz e Formiga
(BARRETO, 1995, p. 270).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
75
Nos bairros periféricos as ocupações ocorreram de maneira desordenada, sendo
constituídos de ruas estreitas e tortuosas, distintas do centro, que eram
geometricamente traçadas, apresentando definições sociais e administrativas
delimitadas. A Lagoinha seria local de moradia de pessoas desempregadas e
pertencentes às classes de nível econômico baixo, bem como de empregados da
construção da capital, pequenos comerciantes e prestadores de serviços de ofícios
diversos.
A Lagoinha passou por transformações físicas, estruturais e sociais71 ao longo do
processo de crescimento urbano de Belo Horizonte. O bairro inicialmente participou do
abastecimento da cidade, estando entre o centro e a colônia agrícola Carlos Prates. Nele
foi construído o primeiro Mercado Municipal da capital, montado nos anos de 1899 e
1900.
A iluminação e o transporte foram instalados na Lagoinha por volta do ano de
1909 deixando a população um pouco mais confortável. Entretanto, o serviço de
fornecimento de água foi instalado somente em 1930 em substituição aos chafarizes
públicos existentes. Diante disso, a população da região se viu com uma melhor
qualidade de vida, devido à disponibilidade de recursos básicos inseridos na área, onde
a situação de marginalização e excluídos na dinâmica da cidade foram amenizadas.
Ainda nesse contexto, em 1929 houve a implantação do serviço de auto-ônibus com oito
linhas, sendo que uma delas atendia a região da Lagoinha. Pode-se perceber que
problemas de transporte coletivo persistiram ao longo da década de 1990, conforme as
seguintes passagens:

Mesmo vendo com bons olhos a possibilidade de reforma na região, Caetano


argumenta que depois que acabaram com a praça Vaz de Melo para a
construção do Complexo Viário da Lagoinha, o bairro nunca piorou tanto. Ele
reclama da falta de ônibus nas ruas próximas a sua casa, mas se mostra feliz
com a constante movimentação de pessoas na região (ESTADO DE MINAS,
1994).

Para Cláudia o fato de haver apenas três linhas de ônibus que atendem a
Lagoinha é uma prova do descaso com a região. Não há conexão entre elas, o
que provoca desarticulação interna. E o pior, ressalta a arquiteta somente a

71
Para verificar mais informações sobre os impactos sofridos e a recuperação do bairro Lagoinha,
consultar Machado, 1997, p. 40 – 46.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
76
partir de 1950, telefone, esgoto, coleta de lixo e as linhas de ônibus. “Nada foi
feito diretamente para a região”, finaliza (HOJE EM DIA,1997).

Como se pode observar, a existência de uma modernidade paradoxal,


implementada apenas em um plano discursivo, abrangendo o que estava dentro dos
limites da Avenida do Contorno. Essa modernidade não estaria “disponível” a qualquer
morador da cidade, e sim a alguns que poderiam pagar por ela. Sendo assim, as regiões
periféricas receberam poucos investimentos de infraestrutura, tais como saneamento e
transporte.
Na década de 1930, a capital passava por um período de desenvolvimento, com
a implantação de indústrias ligadas à metalurgia, siderurgia e bens de consumo, com
expressivo crescimento econômico. Nesse momento, a região da Pampulha recebeu um
dos primeiros investimentos para o estabelecimento do primeiro aeroporto da
metrópole. O Aeroporto Carlos Drummond de Andrade, mais conhecido como
Aeroporto da Pampulha, foi inaugurado em 1933, com acesso pela “Estrada Velha da
Pampulha”. Essa via cortava a Lagoinha e recebeu calçamento em 1937, tornando o
acesso à região norte e ao aeroporto ainda mais fácil. (FREIRE, 2009).
As intervenções realizadas para fluidez do tráfego foram realizadas na medida
em que a população adensava. Em 1948, foi iniciada a construção do túnel Lagoinha-
Concórdia (Túnel Souza Lima) concluído apenas em 1971, ligando o centro de Belo
Horizonte à região Noroeste, como medida para desafogar os viadutos da Floresta e
Santa Tereza (FREIRE, 2009). Todas essas interferências viárias deixaram o bairro
muito descaracterizado de sua formação original, logicamente que, ao longo do tempo,
as mudanças ocorrem naturalmente, neste caso, houve um aceleramento deste
processo, além de ter sido realizada não pelos moradores e sim pelo poder público.
Assim, as “melhorias” para a cidade acabaram por deteriorar a rotina dos moradores
do bairro Lagoinha.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
77
Figura 1: Multilações na Lagoinha. 1973/1994/1999/2008. Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte.
Lagoinha em estudo: análise diagnóstico-propositiva do Bairro Lagoinha em Belo Horizonte, 2011.

Tais modificações acabaram por alterar a paisagem do bairro. A Praça Vaz de


Melo que constituía um quarteirão entre a Ferrovia e a Av. Pres. Antônio Carlos também
passou por transformações, como a construção de viadutos, alargamento e fechamento
de vias, construção do metrô de superfície, entre outros. Conhecida por ser reduto do
baixo meretrício e dos boêmios de segunda classe, a praça teria sido batizada em
homenagem a um dos principais comerciantes do local, Guilherme Vaz de Melo. A
Lagoinha foi considerada um dos berços do samba em Belo Horizonte, sendo que dessa
época é que vem a designação do popular “copo lagoinha”, atribuído a um modelo
comum de copo de vidro muito usado nos botequins e rodas de samba tradicionais da
região.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
78
Figura 2: Praça Vaz de Melo. Fonte: Revista Figura 3: Local onde estava localizada a Praça Vaz
Cruzeiro, 1960. de Melo. Fonte: Google.

Na década de 1950 o bairro Lagoinha era ponto de encontro de seresteiros,


dançarinos e amantes da noite de Belo Horizonte. Conviviam com o comércio, botequins
sempre abertos e cheios, pensões, com ribeirão Arrudas, o mercado, o barulho do trem
do subúrbio, os cinemas Paisandu, Mauá e São Geraldo. O bairro tipicamente suburbano
tinha as suas mazelas, mas a população encontrava espaços de sociabilidade para
compartilharem a vida, não apenas moradores, mas frequentadores, que por motivos
diversos encontravam na Lagoinha um ambiente acolhedor.
Os contrastes chamavam atenção, as mulheres e moças iam à missa e preparavam
quermesses na Igreja de Nossa Senhora da Conceição e faziam compras no Mercado da
Lagoinha. Os homens e rapazes se encontravam para jogos no antigo campo do Pitangui
para jogos entre Fluminense e Terrestre. Enquanto isso aconteciam os preparativos para
o desfile de carnaval do bloco “O leão da Lagoinha”. Ainda, na mesma região as casas
de prostituição ofereciam os seus serviços. Podemos observar que a região era viva, com
diversas manifestações culturais e apropriações, onde a comunidade procurava conviver,
talvez não de maneira totalmente harmônica, mas havia aceitação entre eles.

[...] A Lagoinha é familiar, conservadora e religiosa. Mas também reduto do


baixo meretrício, região onde trabalham prostitutas e travestis, um gueto dos
marginalizados. [...] “Você falava em praça Vaz de Melo e pensava logo em
mulher e prostituição. Tudo quanto era marginal frequentava a Lagoinha”. [...]
As declarações do pároco da igreja Nossa Senhoras das Graças, Padre Cândido
Santiago [...] “Quando cheguei á Lagoinha, em 1950, a prostituição estava em
toda a parte e o bairro era mal falado. Verifiquei que não havia razão para tanto.
Havia a prostituição, mas tirando isso era uma bairro completamente normal.
[...] O que ocorre ali e a convivência, no mesmo espaço geográfico, entre
segmentos sociais conservadores, religiosos, com marcante espírito familiar e
elementos contraventores, como a boemia e a prostituição. E essa coexistência,
é “pacifica e harmoniosa”. (ESTADO DE MINAS, 1997)
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
79
Figura 4: Desfile do bloco de carnaval “O Leão da Figura 5: Mercado da Lagoinha (Mar/1960).
Lagoinha” (1950/1960). Fonte: Museu Histórico Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto
Abílio Barreto

A partir da década de 1960 a boemia começava a perder espaço. As


tradicionais rodas de samba e os redutos de baixo meretrício deram lugar a casas de
família. O convívio entre as duas realidades delineava a trajetória do bairro, sendo
construída de uma imagem harmônica em meio à diversidade. Ainda podemos citar
os personagens lendários que fizeram parte da história da Lagoinha como Maria
Tomba Homem, uma prostituta que não perdia uma briga entre policiais e valentões,
Cintura Fina, uma travesti que fazia “ponto” na região e andava sempre com sua
navalha.
O declínio da Lagoinha como zona boêmia teve início na década de 1970,
principalmente, após a construção do túnel Lagoinha – Concórdia duplicado em
1984. Esse declínio aprofundou-se com a chegada do trem metropolitano e as
plataformas de embarque e desembarque posicionadas atrás da rodoviária. Após a
demolição da Praça Vaz de Melo, a boemia acabou se dispersando, a intensidade
comercial diminuiu e a vida social também foi diluída permanecendo a saudade
dos frequentadores e as memórias dos acontecimentos. A Lagoinha recebeu diversas
homenagens como os versos do músico e poeta Gervásio Horta: “Adeus Lagoinha,
adeus; estão levando o que resta de mim; dizem que é à força do progresso; um
minuto eu peço, para ver seu fim”.

“A turma ficava tomando sempre tragos ali, porque os dancings só


funcionavam às dez da noite. Ficavam nas ruas Guaicurus, São Paulo e
Curitiba, disse. Horta tem lembrança de que ali era região da Hilda Furacão,
do Cintura Fina e da Maria Tomba Homem [...] Sobre o copo Lagoinha,

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
80
Gervásio acha que ele surgiu naquela reigião, mas não tem dados para
comprovar. “É um copo de vidro com ranhuras”, disse. (HOJE EM DIA, 1997)

Em 1997, Belo Horizonte completaria seu centenário, o que trouxe ao poder


público municipal a oportunidade de (re)avaliar “os acontecimentos passados, a
avaliação dos feitos presentes e a perspectiva de realizações futuras” (MOTTA,
1992), ou seja, aproveitar o momento de comemoração para lançar propagandas
positivas sobre a cidade remetendo ao passado de planejamento, o desenvolvimento
e novas propostas de aprimoramento da capital.
Para a comemoração do centenário da cidade, o poder público municipal
produziu uma série de atividades, ações, organização e divulgação dessa efeméride.
A data foi muito esperada e promovida por prefeitos de três mandatos: iniciou-se
com Eduardo Azeredo (1990–1992), que focou as comemorações na Praça da
Liberdade, constituindo-a como espaço de representação de memória. Naquele
momento foi criado o Conselho de Municipal do Patrimônio.
Patrus Ananias (1993–1996) buscou realizar levantamento junto à população
de demandas a serem cumpridas pelo poder público municipal com o “Orçamento
Participativo”. Em seu mandato, foi elaborada a comissão “BH cem anos”, além de
terem sido criados projetos a serem concluídos após o seu mandado; e no governo de
Célio de Castro (1997–2000 e 2001 – 2002) foi elaborado o calendário de eventos
para a comemoração do centenário.

3. O centenário da capital e o Projeto Lagoinha

O que significa comemorar? Trazer à memória, fazer recordar, festejar com


comemoração. No intuito de festejar o aniversário da cidade sobressai a ideia de
monumentalizar. Na comemoração do centenário da capital mineira, o bairro Lagoinha
foi um dos espaços tomados como monumento da cidade. Nesse sentido, ao colocar o
centenário em voga, a Lagoinha emerge como símbolo de identificação coletiva. A
prefeitura publicizou o aniversário buscando “organizar o espaço público em um
processo de constituição de identidade que implica tanto no acentuar dos traços de
semelhança e homogeneidade” (MOTTA, 1992). Assim, definindo o que é comum ao
grupo, a memória coletiva “reforça as fronteiras socioculturais e se torna, pois, um
ingrediente básico da identidade nacional” (MOTTA, 1992). Nesse caso, podemos
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
81
dizer que se reforça a identidade regional, pois ao valorizar a região, o poder público
municipal (re)construiria a imagem moderna da construção da cidade e traria
identificação dos belorizontinos com aquele espaço.
O Programa de Reabilitação Integrada iniciou-se três anos antes das
comemorações do centenário, no intuito de revitalizar o bairro, por meio da construção
de uma memória afetiva de seus moradores e da cidade como um todo. A Lagoinha
requalificada seria harmônica como a cidade que fora planejada de acordo com os
pressupostos modernos de sua construção ou a Lagoinha seria um “não lugar” que
mesmo contra a vontade de setores da sociedade existia. Nesse sentido, ao longo desse
texto compreendemos que o Projeto Lagoinha buscou fundar a memória da Lagoinha e
nela instaurar seus lugares de memória. De acordo com Pierre Nora:

O lugar de memória supõe, para início de jogo, a justaposição de duas ordens


de realidades: uma realidade tangível e apreensível, às vezes material, às vezes
menos, inscrita no espaço, no tempo, na linguagem, na tradição, e uma
realidade puramente simbólica, portadora de uma história. A noção é feita para
englobar ao mesmo tempo os objetos físicos e os objetos simbólicos, com base
em que eles tenham ‘qualquer coisa’ em comum (NORA, 1997, p. 226).

Como forma de materialidade da memória, a rememoração de eventos, lugares e


cultura do bairro, evidencia o resgate da reminiscência. Devido às diversas intervenções
que modificaram não só o espaço físico do bairro Lagoinha, mas também os espaços de
sociabilidade como a Praça Vaz de Melo, que foi demolida, o Mercado da Lagoinha, a
Feira de Amostras, o ginásio do Paissandu, o Mercado Mauá, o Cine São Geraldo, entre
outros, além de interferir em seu cotidiano, interferiu diretamente no acesso e convívio
de seus moradores. Ao trazer novas perspectivas sobre a revitalização do espaço, as
memórias afetivas emergem ao monumentalizar momentos vividos na história da região.

(...) discurso que comemora um fato caro a determinado grupo social ou


comunidade. O monumento, assim, busca tornar viva a memória de algo
importante e identitário socialmente. Nesse caso, ele tem, necessariamente,
como mediadores a memória construída e a história (MENESES, 2006, p.31).

Pode-se dizer que o espaço físico material estava sendo utilizado como suporte
para a consolidação de uma memória coletiva imaterial, em que a monumentalização

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
82
do bairro Lagoinha traria um lugar de memória como suporte da comemoração do
centenário. Então, o ritual de comemorar o aniversário traz lembranças não apenas do
bairro, mas da cidade como um todo. A sociedade, ao se identificar com o lugar de
memória, está reafirmando suas lembranças que ora foram deixadas de lado.
Esses lugares de memória, segundo Nora (1993), seriam locais físicos,
institucionais e simbólicos, a partir dos quais, a sociedade contemporânea
experimentaria um efeito de unificação diante de um mundo cada vez mais fragmentado,
fruto da crise dos paradigmas modernos. A partir da experiência de uso desses "lugares"
e das interpretações difundidas por eles, os membros de uma comunidade se
reconheceriam como agentes de seu tempo. A sua requalificação está ligada ao discurso
modernizador do Centenário da cidade que precisa de uma “vitrine” para demonstrar
que consegue melhorar/dinamizar facilmente áreas degradadas, fazendo sua projeção no
cenário nacional. O mesmo discurso da fundação da cidade prossegue, atravessa o século
e é usado como alicerce para renovar o bairro Lagoinha e transformá-lo em um local de
visitação agradável.
Diante o exposto, entendemos que a noção de "lugares de memória" e sua
associação com o sentido político e simbólico do ato de comemorar podem ser úteis para
analisarmos o processo de revitalização da Lagoinha, proposto durante as
comemorações do Centenário de Belo Horizonte. De acordo com Halbwachs (2004)
“nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se
trate de eventos que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós
vimos”. Dessa forma, a memória individual não deixa de existir, mas acaba se
convertendo em conjunto de fatos compartilhados, passando de individual para coletiva,
assim como “na memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode
haver lugares de apoio da memória, que são os lugares de comemoração”
(POLLACK,1992).
A "construção" de uma nova identidade para a Lagoinha, promovida pela
requalificação e apagamento de algumas lembranças "incômodas" integrou, naquele
momento, um projeto que visou afirmar uma modernidade da cidade que não coadunava
com a antiga boemia do bairro periférico. Dessa maneira, o poder público buscou
elementos para ressignificar sua história, seu passado e sua memória, procurando refletir
sobre a necessidade de proteger as características que lhe são próprias. Pode-se destacar

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
83
que no período da década de 1990, existe uma circulação de ideias e discussões sobre
políticas de preservação de bens materiais e imateriais em todo o país.
A notoriedade da comemoração deveria estar presente nos moradores da cidade,
refletida na memória coletiva, assim o significado de ser integrante da efeméride, faria
sentido a todos, deixando o esquecimento de lado nesse momento. O centenário trouxe
à tona olhares diversificados sobre a cidade, sobre aspectos políticos, sociais,
econômicos e culturais, em que não só os moradores, mas os cidadãos de modo geral
voltam suas expectativas para algo monumental. Nesse caso, a memória oficial da
sociedade mais ampla foi permeada de expressões consolidadas em um passado coletivo,
no qual a comemoração do centenário tem importância significativa para a memória
coletiva do lugar:

O aniversário ganha corpo na medida em que ele é pronunciado por alguém e


se torna construção intersubjetiva. Podemos dizer que ele é fruto de um duplo
contar: um “contar” o tempo, a partir do estabelecimento de marcações, mas
também um “contar” aos outros, anunciar, partilhar um sentido e uma
informação (SILVA; FRANÇA, 1997, p.1).

Percebe-se que houve grande movimentação da Prefeitura de Belo Horizonte


(PBH) em realizar festas, propagandas e outros eventos envolvendo as festividades do
centenário. Durante governo de Célio de Castro, foram disponibilizados recursos
significativos72 para a mobilização da cidade em torno das comemorações do
Centenário, mantendo o foco dos aparelhos da administração nas festividades. Como
se observa as três administrações municipais buscavam celebrar o centenário de Belo
Horizonte, no entanto, não houve prosseguimento aos projetos desenvolvidos ao longo
dos mandatos. Fica evidente a gradativa construção de uma discussão em torno da
(re)valorização da história, da memória e do reconhecimento do patrimônio cultural da
cidade. Os eventos buscavam trazer notoriedade e enaltecimento para a “Capital do
Século”.

A primeira parte do Projeto Lagoinha foi redigida pelo escritor e jornalista José
Maria Cançado73. O autor disserta sobre ambiguidades do local, como o contraste da

72
Dados retirados Relatório de Atividades da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte de 1997.
Disponíveis em: https://goo.gl/1nuCX8. Acesso: 5 set 2016 às 14:20.
73
José Maria Cançado, mineiro de Belo Horizonte, era jornalista e foi secretário-adjunto de Cultura de Belo
Horizonte em 1993, no governo de Patrus Ananias.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
84
boêmia e da religiosidade, do tradicionalismo familiar e dos bares. Cançado (1994),
apesar de seu lugar de escrita, traz consigo certo sentimento pela região transparecida
em suas palavras como neste trecho do projeto “...é em grande medida pela Lagoinha
que essa cidade respira”. José Maria (1994) ressaltou a necessidade de preservação do
patrimônio material e imaterial contidos no bairro, os quais estavam ameaçados devido
esquecimento do poder público e da cidade como um todo com a região, segundo ele,
o Projeto do Centenário seria a forma de se “redimir com a Lagoinha”.
Pretendia-se unir o arcaico e o moderno, fazendo-os coexistir em um espaço que
não congregava todos os aspectos progressistas esperados da época. Objetivava
aprimorar os setores produtivos da região, tornando-a base para promoção do centenário:
“O que é formidável, pois nada melhor do que começar a realizar os paradigmas de
desenvolvimento econômico desta cidade no próximo século pela porta de algo tão
imbatível e simpaticamente popular e democrático como a Lagoinha.” (CANÇADO,
1994). O coordenador do projeto “BH 100” afirma que:

Belo Horizonte está condenada a ser moderna”, afirma José Maria Cançado,
coordenador do projeto BH 100. “A historia da cidade coincide com a historia
do século”, acrescenta e diz: “ O que houve de bom e de ruim”. [...] Celebrar
os cem anos da capital significa celebrar o reencontro da cidade com sua
história (ESTADO DE MINAS, 1995)

O governo de Patrus Ananias, no projeto, questionava todas as modificações e o


isolamento da Lagoinha dentro dela mesma, sem a participação da população nesse
processo. O Projeto Lagoinha (1994) propunha: “o ponto de partida deve ser a realidade
do bairro da Lagoinha tal como é vivida hoje pelos seus habitantes”. Apresentavam uma
nova metodologia de trabalho, em que o morador teria voz durante as etapas de
concepção, elaboração e execução do projeto.

Para Patrus [...] “a obra propiciará o desbloqueamento da Lagoinha e bairros


adjacentes. “A Lagoinha é uma região simbólica, do ponto de vista cultural, e
foi penalizada durante muitos anos com o isolamento. Essa obra vai resgatar a
história deste bairro e propiciar o crescimento das atividades econômicas na
região”, declarou. (ESTADO DE MINAS, 1995)

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
85
O projeto propunha a reabilitação integrada que, segundo os argumentos de seus
idealizadores, resolveria todos os problemas da região de forma articulada e simultânea.
Assim, melhoraria as condições de vida da população, a preservação e o incentivo das
identidades culturais lá presentes. O projeto ainda previa a requalificação ambiental e
econômica, que por meio de um programa de desenvolvimento urbano e social todas
estas bases agiriam em conjunto. O projeto trazia uma nova identidade para a Lagoinha,
no entanto, moradores, passantes e frequentadores, que tinham um cotidiano no local,
poderiam vê-lo apenas como mais uma tentativa de revitalização do espaço.
Ao abrir o leque de questionamentos, algo salta aos olhos dentro do programa:
estavam previstas diversas obras de revitalização, a construção da alça do Viaduto A,
alargamento da Avenida Antônio Carlos, a proteção dos casarões e do patrimônio
cultural. No entanto, em 1997, ao fim do mandato de Patrus Ananias e a posse do prefeito
Célio de Castro o projeto foi interrompido, não sendo finalizado conforme descrito
inicialmente. Cumpre ressaltar que as obras de cunho material foram realizadas, como a
reforma do Mercado da Lagoinha – não com os usos previstos. Mas por que somente
esta parte foi concretizada? Aos olhos da população o que é palpável é significativo?
Pois, toda a requalificação prevista entre 1994 e 1997, vinte anos depois do centenário
em 2017, ainda não pode ser vista pela região que continua com os mesmos problemas
descritos no Projeto Lagoinha. Ainda pode-se pensar que o projeto de requalificação
patrimonial é um projeto secundário em detrimento do projeto viário implementado na
região, em que a Lagoinha perderia por um lado e ganharia por outro.

4. O Projeto Lagoinha nas páginas dos Jornais Estado de Minas e Hoje em Dia

Ao observar os projetos ligados ao centenário de Belo Horizonte, percebe-se que,


além da comemoração, existe, em paralelo, uma retórica discursiva em torno de assuntos
públicos, ligados diretamente a problemas e qualidades da cidade, ao cotidiano dos
moradores, à melhoria de condições de vida, de tráfego, temas que recorrentemente estão
ligados a poder público municipal.
A instituição do centenário iniciou em 1989 e ao longo dos anos que se seguiram
foi cada vez mais enfatizado. A publicização e a divulgação desse evento foram calcadas
na reconstrução de imagens de Belo Horizonte por parte da prefeitura por meio de

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
86
slogans e marcas. Entretanto, a imprensa, o rádio e a TV tomaram o assunto como objeto
para publicação de matérias, reportagens, entrevistas, entre outros.
Nas páginas dos jornais, o Projeto Lagoinha teve grande repercussão emergindo
diversas abordagens sobre o bairro. A partir de um número significativo de matérias de
jornais, optou-se por trabalhar com os jornais Estado de Minas e Hoje em Dia, que
estavam em circulação na época (e ainda estão). Esses jornais tiveram quantidade
significativa de reportagens sobre o andamento do projeto, apresentando pontos
convergentes e divergentes a seu respeito. Dessas reportagens, foram recolhidas para a
pesquisa cerca de trinta, sendo essas publicadas entre os anos 1990 a 2000. Dessas,
optou-se por trabalhar com vinte para um panorama geral, sendo referenciadas nove ao
longo deste trabalho.
Ao trabalhar com jornais como fontes históricas devemos entendê-los como
meios transmissores de acontecimentos, não sendo imparciais ou neutros, mas
permeados de subjetividade. A imprensa constitui um instrumento de manipulação de
interesses e intervenção da vida social, cabendo ao pesquisador identificar o
movimento das ideias e personagens que circulam pelas páginas dos jornais
(CAPELATO, 1988, p. 21), além de considerar que os periódicos não trazem verdades
e sim versões sobre os fatos. Dessa maneira é necessário compreender a escolha e o
histórico dos periódicos Estado de Minas e Hoje em Dia.
O jornal Estado de Minas é um periódico editado pelos Diários Associados
desde 7 de março de 1928, com circulação diária. Segundo dados fornecidos pelo
jornal, o maior número de seus leitores ocupam cargos de nível superior em sua
atividade profissional; são pós-graduados ou que pretendem fazer cursos de pós-
graduação; possuem renda familiar a partir de 10 salários mínimos e costumam
frequentar exposições, museus e peças de teatro74, ou seja, os leitores são de uma
classe social alta.
Segundo a historiadora Marieta de Morais Ferreira (N.D)75, ao longo do tempo,
desde a sua fundação, o periódico passou por diversos proprietários, editores e
constantemente mudava seu posicionamento diante do poder público.

74
Informações sobre o jornal disponíveis no site:
<http://www.diariosassociados.com.br/home/veiculos.php?co_veiculo=29> Acesso: 08/10/16 às 19:58.
75
Informações disponíveis em artigo escrito por FERREIRA, em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete‐tematico/estado‐de‐minas‐o> 08/10/16 às
10:12
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
87
O jornal Hoje em Dia foi fundado em 1988 pelo então governador de Minas
Gerais, Newton Cardoso para rebater as denúncias feitas pelo jornal Estado de Minas,
as quais, considerava perseguição. O controle do diário ficou com o mesmo até 1991,
quando deixou o governo e o vendeu ao grupo Record.
Conforme explicitado acima, os dois jornais apresentam divergências a respeito
de seus posicionamentos políticos. Tal característica permitiu verificar, através da
análise da periodicidade da reportagem, tamanho da manchete, forma de escrever,
editor, data de publicação, entre outros, os posicionamentos em torno do Projeto
Lagoinha.
Durante a análise dos jornais, várias Lagoinhas emergem de suas páginas. São
trazidas à tona memórias individuais e coletivas, o cotidiano dos moradores e
frequentadores do bairro, as transformações do lugar bem como elementos do Projeto
Lagoinha.
Uma das imagens que apareceu foi a da Lagoinha como a “Lapa mineira”, uma
vez que o lugar pode ser considerado um reduto boêmio da capital, pelo menos até
meados da década de 1970. “Antigo reduto boêmio, o bairro da Lagoinha tornou-se
conhecido como a “Lapa Mineira”, envolto sempre em imagens de prostituição,
marginalidade, vício e transgressão, que se fixaram na memória da cidade76”.
Entretanto, ao mesmo tempo em que a região é apresentada como espaço
“idílico-etilico-transgressor”, também permanece uma Lagoinha habitada por famílias
e por pessoas trabalhadoras, que ali residiram desde o início das obras de construção
da capital”.

Assim, a construção de uma memória coletiva do lugar passa por disputas, na


tentativa de afirmar qual “Lagoinha” seria conhecida pelas futuras gerações. A reforma
do Mercadinho da Lagoinha pode ser vista como um mecanismo para reter na
lembrança dos moradores o lugar, a Lagoinha do tempo da construção de Belo
Horizonte:

O tradicional Super Mercado Popular da Lagoinha, localizado na avenida


Antônio Carlos, zona Noroeste de Belo Horizonte, será reformado e continuará
com a mesma função que teve durante os 40 anos em que abasteceu de
alimentos a população da região. (ESTADO DE MINAS, 1995)

76
Conf. JANUZZI, 13/06/1990, n.p).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
88
Em outras reportagens publicadas pelo jornal Estado de Minas fica evidente o
papel do Mercadinho como lugar de memória.

A Lagoinha, um dos bairros mais tradicionais de Belo Horizonte, pode renascer


das cinzas depois de anos de esquecimento. Com a proposta de restaurar o
antigo Mercadinho Popular Municipal, conhecido popularmente como
“Mercadinho”, a prefeitura deu o primeiro passa para um processo maior de
revitalização dessa região (ESTADO DE MINAS, 1996)

Após a reforma feita, reafirma-se a função do Mercadinho como o marco da


história da região:
A revitalização do Mercado da Lagoinha, realizada pela Prefeitura de Belo
Horizonte, através da Secretaria Municipal de Abastecimento (Smab),
representa um marco no campo da história do bairro e da capital mineira.
(ESTADO DE MINAS, 1996)

Contraditoriamente à abordagem em torno da importância da recuperação da


memória do lugar é frequente, nos periódicos analisados, sobretudo no jornal Hoje em
Dia, o trato dos problemas desencadeados na região pelo projeto. As denúncias diziam
respeito, principalmente, às perdas devido às desapropriações de imóveis que seriam
demolidos para a execução das obras. Há uma preocupação com a preservação de um
“patrimônio cultural” que diluiu com a demolição da Praça Vaz de Melo, além das
desapropriações realizadas. Esse patrimônio cultural transcende o material, no entanto,
há a necessidade de reestruturar, pois, pelo que se percebe nas reportagens, o Mercadinho
é o foco desse patrimônio.
Durante o processo de desapropriação dos cerca de quinze imóveis que
margeavam a Av. Antônio Carlos – decreto 7.857 de 14 de abril de 1994 -, o jornal Hoje
em Dia realiza reportagens sucessivas trazendo os desafios encontrados pelos moradores
em sair de suas residências e estabelecimentos comerciais. Descreve, pois, o receio dos
moradores em relação às desapropriações, visto a necessidade de realizar uma
manifestação.

[...] Moradores, comerciantes e donos de motéis e pensões do antigo bairro


Lagoinha fazem manifestação hoje, às 10 horas, pedindo mais prazo para
"abandonarem" os imóveis, onde será construído o Complexo Viário. (HOJE
EM DIA, 1994)

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
89
Aparentemente o jornal acompanhou mês a mês as movimentações do projeto
viário, em que escreveu em outra matéria com pouco mais de trinta dias as condições do
local oferecido pela prefeitura aos desapropriados.

Moradores e comerciantes do bairro Lagoinha continuam em movimento por


melhores condições de desapropriação do primeiro quarteirão da Rua
Itapecerica, para a construção de uma "alça" de viaduto do Complexo da
Lagoinha. Ontem pela manhã, eles visitaram o local oferecido pela prefeitura
para deixaram seus endereços atuais até o dia 8 de agosto. [...] Pedimos um
conjunto habitacional onde os desalojados pudessem continuar morando e
tendo seus negócios, sem prejuízos. Não temos nada contra a obra, mas não
podemos aceitar a desapropriação nestas bases” (HOJE EM DIA, 1994).

Pode-se analisar a fala do jornal em relação aos moradores não terem problemas
com as obras, no entanto, existem embates relacionados aos acordos feitos entre
moradores e prefeitura. Os locais “selecionados” para demolição pertenciam a pessoas
que faziam parte da história do bairro e de certa maneira iriam deixar suas lembranças
para reconstruir a sua vida em outro lugar determinado pelo poder público.
Se de um lado é possível mostrar a intenção do projeto no que diz respeito à
preservação da memória por meio da preservação de suas construções, por outro reside
a contradição com a destruição de outras. Alguns imóveis foram escolhidos para serem
preservados, como exemplo, o Mercadinho, acima mencionado. A outros, porém, restou
a demolição e a consequente perda da identidade do lugar. Diferentemente da Lagoinha
que existiu, hoje existe uma outra - a do complexo - com as alças dos viadutos dando
passagem aos automotores. A boemia ficou na lembrança ou no esquecimento, depende
de quem hoje a olha.
Para o governo de Patrus Ananias, as obras desenvolvidas na Lagoinha eram de
imensa importância, visto a ressonância do projeto de ampliação da Avenida Antônio
Carlos amplamente divulgado. Segundo o prefeito, desejava-se finalizar o que outras
administrações não alcançaram, ainda fazendo menção à requalificação integrada.

Para Patrus, além de representar grande impacto no transito da cidade, é um


compromisso ético do seu governo “terminar mais uma obra inacabada”. Ele
ressaltou que a obra propiciará o desbloqueamento da Lagoinha e bairros
adjacentes. “A Lagoinha é uma região simbólica, do ponto de vista cultural, e
foi penalizada durante muitos anos com o isolamento. Essa obra vai resgatar a
história deste bairro e propiciar o crescimento das atividades econômicas na
região”, declarou (ESTADO DE MINAS, 1995).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
90
Em meados de 1997 o projeto foi paralisado, no entanto, para a sua continuidade
seria necessário para a renovação da parceria entre a Secretaria Municipal de Indústria
e Comercio e a UFMG o que não foi realizado, visto a alteração de gestão neste ano.
Após a finalização desse projeto, outros foram criados com o mesmo intuito, requalificar
a região, mas para os moradores, frequentadores e passantes pouca coisa foi alterada
nessa década que se ateve o programa inicial. E mesmo com as comemorações do
centenário e toda a sua memorialização, o sentimento de pertencimento dos
belorizontinos em detrimento do bairro pouco mudou, a relação de esquecimento e
silêncio do poder público com a Lagoinha continua da mesma maneira.

5. Considerações Finais

O Projeto Lagoinha pretendeu requalificar o bairro Lagoinha com intuito de


internacionalizar Belo Horizonte para o cenário nacional, quem sabe mundial trazendo
turismo e investimentos econômicos. Cabe lembrar que o poder público municipal
utilizou a história do bairro para a sua projeção em detrimento da comemoração do
centenário da cidade. No entanto, ao realizar a análise da trajetória dos anos entre 1989
(início dos projetos) a 1997 (comemoração em si) podemos observar que mesmo com
todo o foco sobre a cidade e o bairro, o progresso prometido ficou apenas no projeto.
Podemos questionar qual era realmente o foco da requalificação, a viária para melhor
fluidez do tráfego adensado e/ou a requalificação integrada já que esta pode ter vindo
para amenizar os impactos de reivindicação da comunidade.
A tentativa de envolver a sociedade como um todo, fazendo emergir sentimentos
regionais em relação à Lagoinha pouco deu resultado, pois, caso os belorizontinos
tivessem aderido à comemoração, o processo de memorialização seria realmente
efetivado? Não percebemos maior envolvimento da cidade na celebração de seu
aniversário, o acontecimento era mais para a promoção econômica do que para a
integração social da urbe. Mesmo com toda a visibilidade reproduzida pela mídia, a
Lagoinha durante a implementação do projeto se manteve apagada, no mesmo lugar de
esquecimento em que esteve. O programa de maneira otimista e “revitalizador” não
cumpriu totalmente o papel a que se propôs, visto que a requalificação integrada não
transcorreu de acordo com seus moldes descritos. As memórias múltiplas que

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
91
emergiram nesse período parecem não terem sido capazes de servir como possibilidade
de deixar o silêncio e o esquecimento para manter a memória que parece impossível ser
resgatada.
A Lagoinha faz parte do imaginário dos moradores de Belo Horizonte,
indiferentemente se já viveu, morou, passou ou frequentou a região. Ao falar “Lagoinha”
vem à mente de cada indivíduo um sentimento ou uma lembrança que foi contada ou
presenciada. Entre essas retóricas observam-se as diversas Lagoinhas existentes no
sentido figurado ou de maneira palpável. A Lagoinha boêmia, a Lagoinha religiosa, a
Lagoinha familiar, a Lagoinha berço do samba, a Lagoinha abrigo entre outras
representações existentes. Cada um tem a sua Lagoinha para falar.

Fontes:
A Lagoinha não será a mesma, diz Patrus, Estado de Minas, 26 set. 1995, Caderno
Cidades.

Demolição - Moradores da Lagoinha fazem protesto hoje. Hoje em Dia, 04 mai. 1994.

LIRA, Aparecida. Estudo mostra a tradição e a boemia na antiga Lagoinha. Estado de


Minas, 18 ago.1997.

JANUZZI, Déa. Lagoinha agora é só uma doce lembrança no coração dos boêmios.
Estado de Minas, 13 jun. 1990.

Mercadinho, primeira etapa para revitalização da Lagoinha. Estado de Minas, 18 abr.


1994.

Mercadinho, revitaliza a história, Estado de Minas, 25 dez.1996, Caderno Gerais.


MAAKAROUN, Bertha. Quase nada em BH lembra o antigo arraial. Estado de Minas,
19 fev. 1995.
Nova moradia gera protesto na Lagoinha. Hoje em Dia, 26 out. 1994.

Obras vão resgatar função original do antigo Mercadinho da Lagoinha, Estado de Minas,
03 mar. 1995.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
92
PINHEIRO, Maricélia. Projeto premiado da Lagoinha está parado. Hoje em Dia, 26 nov.
1997.
Sem boemia a Lagoinha vai se acabando. Hoje em Dia, 27 jul. 1999.

Últimos sobreviventes da Lagoinha. Hoje em Dia, 16 jul. 1997.

PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE. Projeto Lagoinha - O Projeto-


Síntese do Centenário. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte: Belo Horizonte,1994.

Referências:

AGUIAR, Tito Flávio. Vastos subúrbios da nova capital: Formação do espaço urbano
na primeira periferia de Belo Horizonte. (18 de ago. 2006. 443 folhas) Tese
(Doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.

BERMAN, Marshall. Tudo que e Solido Se Desmancha no Ar. 1ª reimpressão. São


Paulo, Schwarcz, 1982.

BERNARDES, Brenda Melo. Memória, cotidiano e as propostas institucionalizadas


direcionadas ao bairro Lagoinha em Belo Horizonte – MG: múltiplas visões de um
mesmo lugar. (7 de Jul. 2016.167 folhas) Dissertação (Mestrado). Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.

BRESCIANI, Maria Stella. As sete portas da cidade. Revista de Estudos Regionais e


Urbanos, São Paulo, Ano XI, Nº 34, p. 8-15, 1991.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 3º edição, Petrópolis: Vozes, 1998.

FREIRE, Cíntia M. Pela. Cotidiano, memória e identidade: O bairro Lagoinha na voz


de seus moradores. (2009. 169 folhas) Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

GOFF, Le Jacques. História e Memória. São Paulo, Ed Unicamp, 1990.

GONÇALVES, Janice. Pierre Nora e o tempo presente: Entre a memória e o patrimônio


cultural. Historiæ, Rio Grande, 3 (3): 27-46, 2012.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
93
LEAL, Luana Aparecida Matos. Memória, rememoração e lembrança em Maurice
Halbwachs, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, n.d.

LEFEBRE, Henri. O Direito a Cidade. 5ª edição, 2ª reimpressão, São Paulo, Centauro,


2001.

LEMOS, Celina. A Lagoinha e suas imagens – a refiguração do seu presente. Cadernos


de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 1, n. 4, p. 121-160, mai.1996.

MACHADO, Heloisa. A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de


política urbana. Caderno de História, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p.36-49, out. 1997.

MORAES, Fernanda; GOULART, Maurício. As dinâmicas da reabilitação urbana:


impactos do Projeto Lagoinha. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte,
v. 9, n. 10, p. 51-71, dez. 2002.

MUNAIER, Felipe Carneiro. As transformações na cidade de Belo Horizonte e a pedra


dos lugares. (28 de abr.2014.103 folhas). Dissertação (Mestrado), Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

NORA, Piere. Entre memória e história. São Paulo, 1993

PIRANI, Denise. Lagoinha - Bonfim: seus corpos, seus corpos, seus caminhos tortos.

SALGADO, Nayara. A Pedra não para: Um estudo sobre a cracolândia na cidade de


Belo Horizonte. Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p.268-293, jan./jun. 2013.

SILVEIRA, Brenda. Lagoinha a cidade encantada. Belo Horizonte: Edição da autora,


2005.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
94
MEMÓRIA DOCUMENTAL: UM IMPORTANTE CONTRIBUTO PARA A
COMPREENSÃO DO PROCESSO DE DESORGANIZAÇÃO SOCIAL NO
HIPERCENTRO DE BELO HORIZONTE

DOCUMENTARY MEMORY: AN IMPORTANT CONTRIBUTION TO THE


UNDERSTANDING OF THE PROCESS OF SOCIAL DISORGANIZATION IN
THE HYPERCENTRO OF BELO HORIZONTE

Bruna Hausemer *

Resumo

O presente trabalho propõe reflexões acerca do processo de desorganização social da


região hipercentral de Belo Horizonte até a década de 1980 através da análise de sua
memória documental, que inclui literatura, revistas, mapas, plantas, registros oficiais e outros
tipos de documentos textuais sobre a capital, à luz das principais teorias sociológicas que
interpretam a desorganização social a partir de seus componentes ambientais. O que nos
permite examinar a problemática da evolução deste fenômeno sob uma ótica diferenciada
quanto à consideração do papel que a memória documental possui para a compreensão
das transformações sociais neste complexo espaço urbano de grande importância social,
econômica e simbólica para a capital mineira.

Palavras-chaves: Memória Documental; Desorganização Social; Belo Horizonte.

Abstract

This work proposes reflections about the process of social disorganization of the
hypercentral region of Belo Horizonte until the 1980s through the analysis of its
documentary memory, in the light of the main sociological theories that interpret the
development of social disorganization from its environmental components, that allows us
to examine the problematic of the evolution of this phenomenon under a different
perspective regarding the role of documentary memory in understanding the social
transformations of this complex urban space that has great social, economic and symbolic
importance for the capital of Minas Gerais.

Keywords: Documentary Memory; Social Disorganization; Belo Horizonte.

*
Bacharel em Ciências do Estado com ênfase em Estado Democrático e Contemporaneidade pela
Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
bruna.hausemer@gmail.com.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
95
Introdução

Como surge uma cidade? É possível planejar sua estrutura viária, residencial e
comercial a partir de um “lugar” vazio? Quais os limites e desafios do planejamento no
que diz respeito à organização e controle da cidade? A capital federal do Brasil, assim
como Belo Horizonte, são exemplos de tentativas de se construir uma cidade a partir do
“nada”. Mas junto com a questão estrutural, vem toda uma organização social que deve
se adequar: interferindo, moldando, afetando e “desviando” todo o planejamento
inicialmente pré-concebido.
No início do século XX, surgiu entre os pesquisadores norte-americanos um
grande interesse em investigar a relação entre as cidades e o comportamento humano.
Esses estudos, denominados de ecologia humana (PARK, 1915; BURGESS, 1925,
MCKENZIE, 1924), estabeleceram relações entre a organização dos espaços urbanos
com a organização social. Nas décadas seguintes, Shaw e McKay (1942) conduziram um
grande corpo de pesquisas sobre a desorganização social e as características
socioespaciais dos grandes centros urbanos, conhecido atualmente como teoria da
desorganização social.
A partir dos anos 60, com o aumento da criminalidade, as diferentes formas como
o planejamento urbano poderia interferir na organização da sociedade e na ocorrência de
crimes foram intensamente exploradas, se tornando referencias para os trabalhos de
Jacobs (1961), Newman (1972) e Jeffery (1977). Essa tradição da Sociologia de investigar
a relação entre a transformação do ambiente urbano e o comportamento hurmano,
principalmente o criminal, atravessou o século e perdura até os dias atuais.
Devido a estes estudos, sabemos que o crescimento acelerado, comum nas cidades
modernas, afeta profundamente a sua dinâmica organizacional. Esse fenômeno é ainda
mais acentuado quando se analisa as áreas centrais. Frequentemente, esses espaços
acabam sendo ocupados por um grande volume de estabelecimentos e atividades ligadas
ao comércio e ao entretenimento (PARK, 1984). Como consequência, esse processo
provoca a migração dos residentes com renda mais elevada para lugares mais calmos e
afastados (BURGESS, 1925), sendo acompanhados pelos estabelecimentos que oferecem
produtos e serviços refinados, formando os chamados “subcentros” (GIDDENS, 1997).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
96
Esses movimentos marcam o início do processo de sucessão na região central e,
no geral, desencadeiam a sua deterioração (MCKENZIE, 1924). Aos poucos, o centro da
cidade passa a ser composto por um quadro ambíguo em que a prosperidade comercial e
o intenso fluxo de pessoas, produtos e serviços ocorrem lado a lado com o descaso em
relação ao mobiliário urbano, decadência dos imóveis e a intensificação de atividades
criminais (GIDDENS, 1997). O desenvolvimento dos grandes centros urbanos torna-se,
pois, sinônimo do aumento da criminalidade (BEATO, 2002).
Belo Horizonte foi a primeira cidade moderna planejada em território Brasileiro.
Cada parte de seu território havia sido projetada para uma função e eram claras as
delimitações e distinções entre os bairros. O Centro da cidade, principalmente, fora uma
área planejada e construída para ser um lugar bonito e tranquilo onde residiriam apenas
os funcionários do governo e a elite econômica da capital, e cujos poucos
estabelecimentos não residenciais se restringiriam às atividades administrativas, culturais
e serviços refinados (BOSI, 1983). Todavia, com o passar dos anos, ela foi perdendo essas
características e assumindo outras que são comuns nos centros das grandes cidades que
não são planejados: como a deterioração ambiental e a criminalidade (BARRETO, 1996;
GALDINO, 2013). Mas como isso ocorrera?
O presente trabalho pretende propor reflexões acerca do processo de
desorganização social da região hipercentral de Belo Horizonte através da análise de sua
memória documental, que inclui a literatura, registros históricos e documentos, à luz das
principais teorias sociológicas que interpretam a desorganização social a partir de seus
componentes ambientais, o que nos permite examinar a problemática da evolução deste
fenômeno sob uma ótica diferenciada quanto à consideração do papel que a memória
documental possui para a compreensão das transformações históricas deste complexo
espaço urbano de grande importância social, econômica e simbólica para a capital
mineira.

Da idealização à década de 30

Para compreendermos a intricada dinâmica que se desenvolveu na região


hipercentral da capital mineira ao longo das décadas, precisamos voltar aos primórdios
deste território. A história da região que hoje constitui o Hipercentro se inicia com a
concepção da cidade de Belo Horizonte que começa com a desapropriação do antigo
Arraial de Nossa Senhora do Curral Del Rey através da Lei nº 3 da Constituição Estadual
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
97
de Minas Gerais. Para a construção daquela que viria a ser a primeira cidade planejada
em território Brasileiro, foi contratado o engenheiro Aarão Reis, encarregado do desenho
da planta da nova capital que centralizaria as atividades políticas, administrativas e
culturais de Estado. Para formar a comissão de projeto e implantação, ele convidou os
engenheiros José de Magalhães, formado na École des Beaux-Arts de Paris, o francês
Paul Villon e o suíço João Morandi, também formado na França e envolvido na
construção da cidade argentina de La Plata (BARRETO, 1996).
A planta original de Belo Horizonte é marcada por malhas superpostas,
delimitadas por uma avenida circular, e faz distinção entre três zonas de ocupação
concêntricas: zona urbana, zona suburbana e zona rural.

Mapa 1 - Planta original da cidade de Belo Horizonte (1895)

Fonte: Acervo Comissão Construtora da Nova Capital

Ao analisar esse projeto de cidade moderna podemos identificar algumas


semelhanças da zona urbana com as famosas obras de Barão Haussmann e L’Enfant,
conhecidos pelo zelo entre a relação estética, a fluidez no meio urbano e a adoção das
ideias higienistas, que separam os grupos privilegiados dos demais. Esse modelo de

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
98
planejamento conduziria a um processo de segregação sócio-espacial que não se restringe
apenas à capital mineira, criando o que alguns autores chamam de “espacialização social
elitista” (LEMOS, 1988; LEFEBVRE, 2008).
Além da função primária de viabilizar os deslocamentos urbanos, as avenidas
foram dispostas de forma que facilitassem a observação da população. Devido à
configuração perpendicular entre elas, os encarregados da manutenção da ordem pública
podiam se posicionar nos cruzamentos e ter um amplo campo de visão. Com exceção da
Praça da Liberdade, as praças também desempenhavam o papel de proporcionar
perspectiva ao serem alinhadas estrategicamente ao longo do tecido urbano.
Os prédios públicos mais importantes ficavam no centro da zona urbana, o Palácio
do Governo, as Secretarias, a Prefeitura e o Palácio da Justiça foram erguidos ao redor da
Praça da Liberdade. Nas imediações, foram construídas as residências dos funcionários e
de outros membros da classe alta, formando o bairro Funcionários, a Igreja da Matriz e
estabelecimentos refinados – teatros, cinemas, bons restaurantes, clubes particulares e
hotéis de luxo.
O desenvolvimento do que hoje constitui o Hipercentro de Belo Horizonte está
diretamente relacionado a estas disposições urbanísticas estabelecidas pelo plano de
Aarão Reis e sua equipe, sobretudo à localização escolhida para implantar os principais
edifícios da capital, entre os quais seriam formados eixos estruturadores, e à alta
densidade de vias de acesso e artérias viárias que cortam e se cruzam na área, o que
fizeram da porção norte da zona urbana o núcleo77 da nova capital (BELO HORIZONTE,
1989; SANT’ANNA, 2008).
Distanciando-se do centro, além do Mercado Municipal, tinha início o Bairro
Comercial, erguido sobre a atual esplanada da Lagoinha. Nesta região, como o nome
sugere, foram estabelecidos o comércio, os armazéns, as pequenas fábricas e residências
de tipo misto onde residia a classe média.
Às margens do rio Arrudas foi construída a Estação Ferroviária Central e as
instalações de apoio – galpões, depósitos e armazéns –, formando a “porta de entrada” da
cidade para pessoas e mercadorias, que chegavam principalmente do Rio de Janeiro
(SANT’ANNA, 2008). Esta configuração deu a esta região uma vocação espacial não

77
O núcleo corresponde à região da Rodoviária, Av. Santos Dumont e Praça da Estação.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
99
intencional que privilegiaria a construção de hotéis, bares e pequenas lojas (VILLAÇA,
2001).
Em contraste com a elegante e funcional zona urbana, a zona suburbana era
caracterizada pela ausência do planejamento em padrão geométrico, revelando um
traçado assimétrico, e distribuição irregular de serviços. Nela, foram morar os
trabalhadores usados para a construção da cidade e os antigos moradores locais (COSTA,
1994).
Devido ao crescente número de imigrantes, operários e trabalhadores da
construção civil que chegavam ano após ano em Belo Horizonte para ajudar na sua
construção e em busca de outras oportunidades de emprego, em 1912, a zona suburbana
já abrigava 68% da população da capital, que era formada por 38.000 habitantes. Alguns
historiadores afirmam que ela fora construída exclusivamente para abrigar a classe baixa,
o que facilitaria a manutenção do higienismo na zona urbana (SEVCENKO, 1983).
Já neste período, pode-se notar o descaso do Poder Público em relação aos
cidadãos de baixa renda, que seriam obrigados a residir nesta região que carecia de
infraestrutura por ser a única na capital com valores imobiliários acessíveis a eles.
A forma como Belo Horizonte foi planejada agrava o fenômeno da segregação
social adicionando a ele um elemento físico. A segregação socioespacial resultante faz
parte do processo de diferenciação em agrupamentos econômicos e culturais que dá forma
e caracteriza a cidade. Segundo Burgess (1925), essa segregação ofereceria ao grupo um
lugar e um papel na organização geral da vida urbana e formaria áreas naturais, cuja
tendência seria atrair determinados tipos de indivíduos, tornando-as cada vez mais
diferenciadas.
A concepção elitista e excludente de gestão do espaço público durante este período
da história Brasileira foi muito estudada por Nicolau Sevcenko (1983), que a sintetizou
em quatro princípios básicos: condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória
aos populares; negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse
macular a imagem civilizada da sociedade dominante; um cosmopolitismo agressivo,
profundamente identificado com a vida parisiense; e políticas de expulsão dos grupos
populares da área central da cidade, destinada para o desfrute exclusivo das camadas
superiores.
O planejamento urbano resultante da adoção desses princípios gerava cidades
onde se verificavam configurações socioespaciais distintas das cidades americanas dos
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
100
anos de 1910 e 1920 estudadas pela Escola de Chicago, as quais frequentemente
apresentavam o modelo The Loop (BURGESS, 1925), segundo o qual, o desenvolvimento
urbano ocorre através de zonas concêntricas, formando cinco áreas com características
distintas: a primeira era constituída pelo centro comercial; ao seu redor, a zona de
transição, marcada pela visível deterioração, intensa rotatividade de moradores e que
sofre com a eminente invasão por parte do comércio e pequenas manufaturas; a terceira
área era habitada por trabalhadores que fugiam da degradação, mas ainda queriam
permanecer próximos aos seus trabalhos; e, na periferia, havia a área residencial onde
residiam as classes altas.
Todavia, representando uma exceção na morfologia social da capital (LEMOS,
1988, p.99), na região situada entre o Mercado Municipal e a Praça da Estação, havia
áreas cujo planejamento se diferenciava do restante da área urbana, deixando espaços no
tecido urbano que desde o início apresentaram sinais de degradação em relação ao seu
entorno e possibilitaram a instalação de habitações de cidadãos oriundos das classes mais
baixas (LEMOS, 1989). O entorno da Praça da Estação também apresentou aspectos
indesejados do ponto de vista dos planejadores: hotéis e pensões baratas. Estes
estabelecimentos haviam se desenvolvido frente à demanda das centenas de recém-
chegados que desembarcavam diariamente na Estação. Ao seu redor, desenvolveram-se
o comércio dos turcos e judeus, os botequins, salões de dança e os bordeis – formando
um ambiente de catarse para os moradores da capital. Um espaço para a extravagância e
onde a fuga dos padrões morais não seria condenada, uma zona moral78.
Apesar do minucioso planejamento para que o centro de Belo Horizonte pudesse
ser mantido como um espaço requintado, recepcionando apenas os hábitos e a cultura da
classe alta, a região foi progressivamente assumindo moldes distintos dos esperados. Mas
por que isso ocorreu?
A resposta a essa questão pode ser encontrada na teoria proposta por Robert E.
Park (1915) na qual ele afirma que a cidade teria suas raízes nos hábitos e costumes
daqueles que a povoam, consequentemente, ela teria não apenas uma organização física,
como uma organização moral que seria impossível de ser controlada através de meros
planejamentos institucionais. Essas duas formas de organização, por sua vez, interagiriam

78
Termo utilizado por Park (1979) para se referir a zona de perdição e vício das grandes cidades, cujos
frequentadores não necessariamente residem ali, mas se reúnem e compartilham seus gostos e
temperamentos desviantes.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
101
e se modificariam mutuamente. O anonimato e, consequentemente, o enfraquecimento
dos laços sociais, fenômenos comuns nas grandes cidades, reduziriam as inibições
individuais e propiciaria, em alguns lugares específicos, o aumento do vício e do desvio.
A permissividade aliada à multiculturalidade encontrada no meio urbano criaria uma via
para que as excentricidades, normalmente recalcadas ou controladas no ambiente das
pequenas comunidades, escapassem e se desenvolvessem ao fornecerem oportunidades
para que os indivíduos, que compartilham idiossincrasias se reunissem, formando essas
“zonas morais”. Estabelecimentos como bordeis, cassinos e bares, por sua vez, surgiriam
justamente da oportunidade de explorar os impulsos humanos que naquele turbulento
meio urbano aflorariam com menor dificuldade (PARK, 1915).
Esses fatores começam a se agravar durante a década de 1920 com o crescimento
da indústria de bens de consumo e a implantação de empresas siderúrgicas pelo Estado.
Nesse período, a capital passa por um grande desenvolvimento impulsionado pela
aceleração econômica e a crescente oferta de empregos atrai um enorme número de
migrantes (FIEMG, 2009). Nestes anos, o setor terciário também se expande e passa a se
concentrar cada vez mais na área central, ocupando espaços que antes eram
exclusivamente residenciais (BELO HORIZONTE, 2015).
Segundo McKenzie (1924), essas grandes migrações populacionais para a cidade
causam expansão no desenvolvimento da comunidade que, excedendo a sua capacidade
natural, resultam em uma situação de crise ou desorganização. A região central de Belo
Horizonte não escapou desse processo. No núcleo e no entorno da Praça Sete, em
particular, aparecem as primeiras sedes bancárias mineiras – o Banco do Comércio e
Indústria em 1923, Banco da Lavoura em 1927 e Banco Mineiro em 1928 – o que ocorrera
juntamente com um aumento expressivo do comércio (BELO HORIZONTE, 1989).
Ainda, segundo a literatura utilizada nessa análise, devido ao rápido aumento do
uso comercial em uma região tradicionalmente residencial, acelera-se o processo de
junking, caracterizado pelo aumento da degradação ambiental e sua desvalorização
imobiliária (BURGESS, 1925). Desmotivados pela progressiva deterioração do entorno,
a manutenção do corpo edificado passa a ser negligenciada e os proprietários dos imóveis
são colocados sob o impulso econômico de alugar suas propriedades para serviços
parasitários e transitórios – que podem ser economicamente rentáveis e lucrativos, mas
são socialmente indesejados e frequentemente considerados vergonhosos para a
comunidade tradicional (MCKENZIE, 1924).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
102
Fazendo um paralelo com o Centro, pode-se dizer que a região passou exatamente
por esse processo já na década de 1920, período em que quarteirões residenciais foram
permeados pelo comércio e alguns imóveis passaram a exibir uso misto e a alugar espaços
juntos aos andares inferiores para uso comercial, comprometendo a estética de suas
fachadas.
Em 1930, a capital já possuía 120.000 habitantes e não apresentava sinal de
inflexão da tendência de crescimento (BELO HORIZONTE, 2015). Localizada entre as
principais vias da cidade e serviços públicos, a Praça Sete era a principal referência
simbólica e econômica da capital e passa a abrigar o principal ponto de bondes do centro
– um serviço público que atua como forte centralizador e indutor de atividades (BELO
HORIZONTE, 1989; SANT’ANNA, 2008).
Ao longo desta década também foram construídas na região central as Faculdades
Federais de Direito, Arquitetura, Odontologia, Filosofia e Engenharia, o que atraiu os
estudantes e desencadeou a construção de pensionatos para mulheres e repúblicas
estudantis (BELO HORIZONTE, 2015).
O ingresso abrupto de uma enorme população em uma determinada área urbana
tem o efeito semelhante ao de uma onda, inundando as áreas em que há menos resistência
por parte dos moradores, que normalmente se deslocam para a zona seguinte e assim por
diante, até que a força da onda se exaure (BURGESS, 1925). No meio biótico, diria que
esse processo é caracterizado por etapas de invasão, conflito, dominação e sucessão
(BURGESS, 1925; MCKENZIE, 1924).
A expansão em ritmo acelerado pela qual a capital passava impedia que fosse feito
um controle estrito de como o seu solo era ocupado, o que vinha ocorrendo de forma
desordenada aos olhos dos gestores (PLAMBEL, 1979). Na tentativa de fazer com que a
cidade não saísse mais dos moldes do planejamento original, o governo municipal
elaborou um plano que objetivava ordenar o uso do solo. Segundo ele, a região central
estava permeada por vazios e passou a ser adotada a ferramenta urbanística de valorização
virtual do solo para estimular a ocupação e o adensamento da região, o que acabou
impulsionando o seu processo de verticalização (PLAMBEL, 1979).
Para Jacobs (1961), a cidade é um território de relações no qual cada cidadão busca
satisfazer suas necessidades e realizar seus quereres, uma realidade viva e pulsante que
compõe uma complexa rede de fluxos de pessoas, mercadorias, matérias e energias em
constante movimento que seguem uma lógica natural própria. Logo a imposição de
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
103
planejamentos rígidos pautados em normas urbanísticas que surgem “de cima para
baixo”, como a valorização virtual do solo adotada pela Prefeitura de BH para estimular
o adensamento populacional no centro, configuraria uma doutrinação da dinâmica urbana,
sendo nociva para a população e para a organização da própria cidade.
As primeiras décadas da história de Belo Horizonte acabaram provando que a
cidade tende a assumir uma organização que não segue moldes de planejamento e
dificilmente pode ser controlada. Sua organização, assim como a da maioria das grandes
cidades modernas é, pois, determinada pelas predileções dos indivíduos, pela
conveniência, pelas vocações e pelos interesses econômicos que, inevitavelmente, vão
segregando e classificando as populações (PARK, 1915; BURGESS, 1925,
MCKENZIE,1924; PARK., 1984). Isto é, por uma dinâmica socioestrutural que
ultrapassa os limites arquitetados e previstos em sua concepção original.

1. Da década de 40 à década de 60: Um período de modernização e grandes


transformações

No início da década de 1940, a cidade ultrapassava os 200.000 habitantes. Esse


número tendia a aumentar com a conclusão da Cidade Industrial, que ocorreu em 1942 e
implantou um complexo parque industrial nas mediações da capital.
O processo de verticalização da região central, que já havia sido iniciado, foi
acelerado pelo aumento populacional decorrente da industrialização e pelo consequente
crescimento econômico (IGLÉSIAS E DE PAULA, 1988). Casarões, casas antigas e
outras formas de edificações tradicionais foram paulatinamente cedendo lugar para a
construção de prédios de apartamentos com capacidades para abrigar dezenas de famílias
e enormes edifícios de escritórios, como o Acaiaca - que foi construído sobre o espaço
antes ocupado pela igreja Metodista (LEMOS, 1988). Essas transformações fizeram com
que o Centro passasse por um grande aumento em sua densidade residencial na década
(BELO HORIZONTE, 2015).
Acompanhando o movimento de verticalização e os demais aspectos de metrópole
moderna que a capital mineira assumia, as vias foram sendo remodeladas para facilitar a
articulação entre a região central e a periferia, as ruas de paralelepípedos foram
substituídas pelo asfalto e o transporte público reforçado pela implantação de novas linhas
de bondes (VELOSO, 1947). O principal acesso para a Cidade Industrial se dava pela Av.
Amazonas, que fora prolongada durante a gestão de Juscelino Kubitschek para atender

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
104
melhor a região (BELO HORIZONTE, 2015). Essas modificações fizeram com que o
centro de Belo Horizonte se tornasse mais conectado, portanto, mais ocupado por pessoas
de diversos lugares, caracterizando essa área como um lugar de fluxo de desconhecidos e
de anonimato (TAYLOR, 1995).
Durante os anos 50, a população atingiu os 700.000 habitantes (BELO
HORIZONTE, 2015). A região central da capital era caracterizada majoritariamente pela
moradia verticalizada que abrigava as classes alta e média, e pelas notáveis taxas de
concentração de atividades terciárias (LEMOS, 1988).
As antigas imagens e representações do centro tradicional não eram mais tão
nítidas. A demolição de muitos dos espaços aos quais as memórias dos antigos moradores
se prendiam levou consigo parte da identidade coletiva que existira (BOSI, 1983). A
maioria dos empreendimentos que antes caracterizavam a Rua da Bahia como um
importante ponto de socialização fecharam suas portas. Foi o fim de muitos hotéis,
restaurantes, teatros e bares tradicionais que serviram de cenários para o encontro e o
convívio de milhares de belo-horizontinos durante as primeiras décadas da cidade (BELO
HORIZONTE, 2015).
Para os historiadores, os anos 50 foram marcados pelo desaparecimento de parte
da vida tradicional que fora característica do Centro de Belo Horizonte (BOSI, 1983;
LEMOS, 1988). Essas transformações enfraquecem os laços sociais e a capacidade local
de controle informal, elementos que são cruciais para a manutenção da organização
social79 em uma região (SHAW E MCKAY, 1942; BURSICK E GRASMICK, 1993;
SAMPSON E GROVES, 1989; SAMPSON ET AL, 1997).
Também nos anos 50, o bonde foi substituído pelo trólebus e a criação da rodovia
BR-3 acarretou uma relevante diminuição no contingente humano que antes
movimentava a Estação (BELO HORIZONTE, 2015). Em consequência dessa mudança,
muitos dos hotéis ao redor da Praça da Estação foram ficando menos procurados e se
deteriorando, passando a serem usados como repúblicas ou convertidos em bordéis e
motéis – aumentando a aglomeração desses tipos de estabelecimentos na região (LEMOS,
1988). Essas mudanças confirmam a separação simbólica do Centro em "alto" e "baixo",
este marcado pela desorganização cujos sinais já se fizeram presentes pouco após a
inauguração da capital.

79
Esse fenômeno será explicado ao abordarmos a teoria da desorganização social. Ver sessão 2.3. “Da
década de 70 aos anos 80: Um grande centro urbano com grandes problemas”.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
105
Durante a década de 1960, a intensa expansão da cidade desencadeou a
conurbação com os municípios circundantes e os espaços urbanos foram mais
modificados em favor da circulação do crescente número de automóveis (BELO
HORIZONTE, 2015).
Ao longo do processo de desenvolvimento urbano, os anos 60 abarcaram
transformações que causaram o redirecionamento na forma como ocorria a ocupação do
Centro. O mercado residencial já não demonstrava mais interesse em fazer investimentos
na região (LEMOS, 1988) e a grande concentração de serviços e facilidades intensificou
a preferência do setor terciário pela ocupação das áreas que haviam sido destinadas ao
uso residencial (VILELA, 2006).
Por conta disso, o centro passou por uma profunda reconfiguração que consistiu
por um lado em um decréscimo populacional e, por outro, pela alteração do perfil
daqueles que ocupavam a região. Ao mesmo tempo em que a região central perde sua
característica de área residencial, as transformações urbanas desde sua concepção até esse
período permitiram que o Centro se consolidasse como espaço dos movimentos sociais,
principalmente das reivindicações populares e das manifestações políticas (LEMOS,
1988, BOSI 1983; MACHADO DA SILVA, 1978).
O edifício Maletta – prédio de uso misto formado por uma galeria que abrigava
bares, restaurantes e livrarias sob um gigantesco conjunto de apartamentos simples –
traduzia a efervescência da época do ponto de vista moral e político. Ele congregava os
mais diferentes grupos sociais, da “juventude coca-cola” aos grupos de intelectuais,
homossexuais e profissionais do sexo (MACHADO DA SILVA, 1978).
Toda essa efervescência acabou despertando ainda mais insatisfação nos
moradores tradicionais, que optaram por adquirir novas residências na região Sul da
capital, deslocando os investimentos do setor imobiliário e do comércio de luxo. As
classes mais altas também deixaram de frequentar a região central (MACHADO DA
SILVA, 1978; LEMOS, 1988; FREITAS, 2006).
O resultado dessa substituição territorial de um grupo social por outro é
denominada na ecologia humana de sucessão (MCKENZIE, 1924). Esse fenômeno
inicia-se com a invasão, quando indivíduos se mudam para um bairro habitado
majoritariamente por integrantes de um grupo social distinto do deles. A resistência à
invasão depende do tipo de invasor e da solidariedade entre os membros do grupo
primário. De acordo com McKenzie (1924), o invasor indesejável costuma penetrar
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
106
através dos pontos de alta mobilidade e baixa resistência. A invasão por grupos
socialmente indesejáveis geralmente acarreta desvalorização da terra e gera incômodos
aos antigos moradores que, sentindo-se repelidos, tendem a mudar para outras regiões.
Com o aumento no número de membros do grupo invasor no bairro ocorre a dominação
da região e, consequentemente, a sucessão do antigo grupo residente (MCKENZIE,
1924).
É possível fazer um paralelo entre essa discussão e o processo pelo qual Belo
Horizonte estava passando durante a década de 1960. A invasão por diferentes grupos
sociais causou repulsa por parte dos residentes tradicionais e impulsionou a sua saída da
região. Devido ao crescimento da capital, a intensificação da atividade comercial e da
prestação de serviços na região, espaços exclusivamente residenciais foram sucedidos
pelo uso comercial, formando segmentos de ruas exclusivamente comerciais. Ambos os
fenômenos foram acompanhados pela diminuição no valor imobiliário da região (BELO
HORIZONTE, 2015).
A partir dos anos 60, não se observava mais apropriação social do espaço público
central pelas classes elevadas, que passaram a utilizá-la apenas como lugar de passagem
(Lemos, 1988). A área central se torna cada vez mais utilizada como ponto de
desembarque e baldeação de linhas de ônibus municipais e intermunicipais, aumentando
massivamente o número de transeuntes e acelerando o processo de desgaste da região.
Com a crescente deterioração do ambiente urbano central, tanto o capital privado quanto
o Poder Público procuraram novas regiões para os seus investimentos, e as atividades
administrativas, o comércio nobre e os edifícios de luxo não ampliavam mais a sua taxa
de incidência no centro da cidade (LEMOS, 1988; MACHADO DA SILVA, 1978;
VILELA 2006; FREITAS, 2006).
A arquitetura desse período se direcionou para a construção de apartamentos bem
pequenos, estilo quarto-e-sala, acompanhando a mudança no perfil de seus habitantes e a
tendência a rotatividade que a região estava assumindo:

Os impactos causados pelas intervenções do poder público no centro nos anos


60 e 70 revelaram uma segregação social nos seus espaços. Nota-se que, entre
as poucas intervenções efetuadas, foram privilegiadas as áreas menos
conturbadas, onde se instalavam os serviços de melhor qualidade. Além do
mais, a destruição de marcos de referência e do meio ambiente levou a uma
perda da identidade coletiva do lugar, já modificado pela concentração de
atividades. Tantas mudanças não geraram nenhum tipo de retorno para a
população e apenas aceleraram a degeneração da área. A destruição do
patrimônio urbano do centro não resultou em nenhum ganho em termos de
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
107
qualidade de vida, tendo ocasionado uma verdadeira transição social. Houve
um esvaziamento populacional expressivo na região, com uma perda de 14%
dos seus habitantes. [...] este passa a atrair um outro fluxo de população,
formada pelas pessoas vindas do interior e também da periferia. Logo, os
grupos de maior poder aquisitivo, que representavam a identidade do lugar, ao
deixá-lo, ocasionam uma substituição em nível social. [...] Há uma substituição
social apreciável, baseada num novo fluxo de pessoas que não têm um perfil
único. A partir dessa nova composição social, o centro adquire mais um papel
- o de lugar da moradia provisória - sendo que seus espaços ganham um alto
grau de rotatividade. Como lugar de passagem, rompe-se o Ringstrasse, que
situava o local no contexto da segregação social, enquanto região privilegiada
para se morar e viver (LEMOS, 1988, p.271).

Decorrente de seu desenvolvimento acelerado que acabou impossibilitando um


estrito controle urbanístico governamental (PARK, 1915), Belo Horizonte foi
paulatinamente se assemelhando ao modelo de “Loop” proposto por Burgess (1925),
sobre o qual falamos anteriormente. A grande concentração do comércio e de serviços
passou a caracterizar o Hipercentro da capital, sendo circundado por uma área de
transição fisicamente deteriorada e que apresentava rotatividade da população residente.
Distanciando-se do centro, iam sendo formados bairros residenciais com elevados valores
imobiliários e habitados pelas classes altas.
O processo que deu origem a essa configuração espacial – bem diferente daquela
que a elite e os projetistas da capital ansiaram: o centro como habitat exclusivo dos ricos
– é considerado por Burgess (1925), McKenzie (1924) e Park (1915) um processo natural
de diferenciação em agrupamentos econômicos e culturais a que todas as cidades
acabarão se submetendo.

2. Da década de 70 aos anos 80: Um grande centro urbano com grandes problemas

Durante os anos 70, o Censo aponta o Hipercentro como a região mais


verticalizada de Belo Horizonte - encapsulando 63,3% de todas as unidades prediais
existentes dentro da Avenida do Contorno. Ele também concentra 60,4% dos empregos
do setor comercial, 39,7% do setor de serviços e 16,7% do setor industrial da capital, e é
ponto de passagem e convergência da maioria das linhas de transporte coletivo que
servem a cidade.
Com uma considerável distância entre os pontos de ônibus – o que fazia com que
os usuários fossem obrigados a caminhar cerca de 10 minutos – as ruas do Hipercentro,
apesar de representarem apenas 3,3% do total da área urbanizada do aglomerado
metropolitano, recebiam diariamente uma massa de 400.000 pessoas em média
(PLAMBEL, s/d).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
108
O enorme número de transeuntes decorrentes da disposição das vias, dos
terminais, da grande concentração de empregos e da ofertas de serviços, somavam-se a já
elevada densidade habitacional da região, acelerando a transformação do espaço urbano
central e seu processo de degradação. Este Hipercentro dos anos 70 é caracterizado pelo
Instituto Horizontes como uma área urbana em estado de crise:

Essa crise manifesta-se principalmente pela redução da densidade econômica


e da degradação das condições ambientais. O modelo de transporte coletivo,
que está superado há cerca de 15 anos, faz convergir para o Hipercentro a
maioria de suas linhas e utiliza as vias da área central para operações de
transbordo. Há perda da população residente, congestionamento de veículos e
pessoas e invasão das calçadas pelo comércio informal.

A função passagem, que não é uma função central, está sufocando a função
“destino” que confere vida ao Hipercentro, ficando a centralidade cada vez
mais comprometida. A perda da acessibilidade faz com que as atividades
típicas dos grandes centros migrem para suas periferias, sendo substituídas por
atividades de comércio e serviços típicos dos centros de bairros.
(HORIZONTES, 2005, p.14)

Muitos autores demonstraram que essa transitoriedade populacional em uma


região urbana é uma característica que favorece a maior ocorrência de crimes e
probabilidade de vitimização naquele espaço (RONCEK, 1981; TAYLOR, 1995;
REYNALD, 2011). Se por um lado, a utilização intensa de um espaço público pode
reduzir a criminalidade sob determinadas circunstâncias – como quando há integração
entre os seus usuários (JACOBS, 1961) ou coesão e controle entre residentes (SAMPSON
et al 1997) –, por outro lado, as grandes aglomerações desconexas e um intenso fluxo de
transeuntes – como o observado na região central de Belo Horizonte, constituído
principalmente por moradores de distintas origens sociodemográficas e migrantes
oriundos de outras cidades (PLAMBEL, s/d) – se relaciona positivamente com as taxas
criminais, relação particularmente intensa quando analisamos os crimes contra o
patrimônio. (RONCEK, 1981; REYNALD, 2011). Isso se deve ao fato da enorme
população flutuante proporcionar anonimato, o que diminui a capacidade de
reconhecimento e controle natural feita pelos habitantes da região, reduzindo a
capacidade de detectar possíveis ofensores (TAYLOR, 1995) ao mesmo tempo em que
as oportunidades para sua atuação é aumentada (COHEN E FELSON, 1979; FELSON,
2006).
Posicionamento semelhante ao do Instituto Horizontes foi emitido pela
PLAMBEL (PLAMBEL, s/d), que afirmou em documento oficial que durante a década
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
109
de 70 a região central vivenciava um período de rápida transformação e degradação do
espaço urbano que obtinha um reflexo negativo sobre a dinâmica urbana da área central
que:

[...] Manifesta-se através da qualidade ambiental deteriorada, pela saturação


dos passeios, da criminalidade juvenil, atuando ainda sobre o uso do solo com
o estímulo de ocorrência de atividades de pequeno porte voltadas para o
suprimento de bens de consumo imediato, próprios da estrutura do comércio
de bairro (PLAMBEL, s/d, s/p).

A partir deste período, vemos que a criminalidade, sobretudo a juvenil, começa a


ser citada como mais um dos problemas que afetam a qualidade do espaço público da
região hipercentral de Belo Horizonte. A delinquência por parte de menores de idade,
principalmente se tratando de crimes contra o patrimônio e ações de menor potencial
ofensivo, constitui um fenômeno comum das grandes cidades modernas, tendo sido
estudada por inúmeros autores (SHAW E MCKAY, 1942; CLOWARD E OHLIN, 1993,
HIRSCHI, 1993; REISS E RHODES, 1961).
Sobre essa temática, o estudo de referência que relacionou a delinquência juvenil
à desorganização social foi realizado nas primeiras décadas do século XX por Shaw e
McKay (1942), que analisaram as variações nas taxas oficiais de delinquência juvenil por
unidade geográfica das cidades americanas com o propósito de determinar o quanto as
diferenças sociais e econômicas locais se relacionavam com as variações dessas taxas.
Em todas as cidades estudadas, foram encontrados padrões similares de distribuição da
criminalidade juvenis: as áreas com as maiores taxas sempre possuíam elevados índices
de rotatividade populacional, baixo status socioeconômico, heterogeneidade do ponto de
vista étnico/cultural e a maior parte de seus moradores declarava que gostariam de se
mudar para outros bairros assim que obtivessem condições financeiras para tal.
Esse estudo é a base do que é conhecido na Sociologia como teoria da
desorganização social, que postula que o crime ocorre nas áreas socialmente
desorganizadas – comunidades que não podem resolver coletivamente os problemas,
alcançar objetivos e prevenir comportamentos socialmente indesejáveis (GRASMICK E
BURGESS, 1993, SAMPSON ET AL, 1997).
Para além dos elementos que caracterizam um bairro como desorganizado e
propenso à criminalidade (heterogeneidade, baixo status socioeconômico e rotatividade),
a teoria da desorganização social iniciada por Shaw e McKay (1945) tem sido expandida
por estudiosos através da identificação de duas dimensões básicas de controle social: A
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
110
primeira dimensão consiste nas normas compartilhadas pela comunidade que são usados
para avaliar o comportamento adequado e inadequado, enquanto a segunda dimensão é
composta pelos recursos que permitem aos grupos sancionar e evitar comportamentos
inadequados – os laços sociais permitem que as comunidades desenvolvam as normas
comuns de comportamento considerado adequado, enquanto as características
econômicas e demográficas moldam a capacidade do bairro de formar os laços sociais
que levam ao compartilhamento de normas comuns e a capacidade de fazer cumprir as
normas que existem (RAMNEY E SHRIDER, 2014).
Baseados neste arcabouço teórico, podemos inferir que as condições apresentadas
pelo Hipercentro durante os anos 70 - intensa rotatividade de moradores, composição
heterogenia do ponto de vista cultural e carência relativa de recursos econômicos - afetaria
a habilidade dos moradores de formarem laços sociais ou manterem uma sociedade civil
que fosse capaz de se autorregular, assim como se organizar de forma a atuar eficazmente
dando resposta aos problemas da região (SHAW E MCKAY, 1942; SKOGAN, 1989;
SAMPSON E GROVES, 1989; BELLAIR, 1997; BURSIK E GRASMICK, 1993;
GUEST ET AL, 2006; KUBRIN E WEITZER, 2003).
A pesquisa de Origem e Destino de 1972 (Fundação João Pinheiro, 1972) revelou
que entre os moradores da região central de BH a intenção de se mudar dentro de até
cinco anos foi manifestada por 40,5% das famílias entrevistadas, sendo que 25,1% delas
reiteraram que desejavam mudar para outro bairro. Essa falta de interesse em permanecer
no Hipercentro apontada pela pesquisa, assim como a ausência de sentimento de
pertencimento acarretariam o desinteresse pela persecução de melhorias para o bairro,
ficando estas à mercê das políticas públicas (WANDERSMAN, FLORIN, FRIEDMANN
E MEIER, 1987; PETERSON E KRIVO, 2010) que, por sua vez, dependem
significativamente da capacidade de articulação dos moradores com o poder público
(BURSIK E GRASMICK, 1993).
A importância do envolvimento da comunidade com o poder público para um
efetivo controle da criminalidade foi analisada por Bursik e Grasmick (1993) através da
incorporação de variáveis intervenientes ao modelo da desorganização social e a
consideração da existência de três níveis (privado, paroquial e público) pelos quais os
residentes de uma comunidade podem buscar ordem social (HUNTER, 1985). Isso
permitiu que eles identificassem que, à nível privado (formado basicamente pelo
relacionamento entre familiares, amigos e vizinhos), a rotação populacional dificulta
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
111
estabelecimento de laços entre os residentes, o que implica em menor capacidade de
formação de redes relacionais fortes e controle social local débil; que o nível paroquial
(constituído pelas relações entre os residentes e instituições locais, como igrejas, escolas
e associações comunitárias) dependente da capacidade dos residentes de se organizarem
e supervisionarem o comportamento uns dos outros; e que o nível público depende
substancialmente da capacidade de articulação dos moradores com o poder público para
a obtenção de recursos e serviços coletivos que possam beneficiar a comunidade.
Ao compreender o papel de cada um desses três níveis de controle social no
modelo sistêmico de crime, Bursik e Grasmick (1993) mostram que muitas das críticas
feitas à teoria da desorganização social, como a existência de comunidades com
população estável, baixa heterogeneidade e extensas redes interpessoais que mesmo
assim sofrem com as elevadas taxas de crimes – características geralmente muito comuns
quando trabalhamos, por exemplo, vilas e favelas Brasileiras –, não passam de falhas
resultantes da não atribuição às análises do importante papel do nível público.
Raciocínio teórico semelhante é feito por Ramney e Shrider (2014) ao afirmarem
que a primeira dimensão de controle social – normas partilhadas decorrentes de vínculos
sociais – é fortemente afetada por características socioeconômicas, o que sugere que a
segunda dimensão – recursos para fazer cumprir essas normas – desempenha um forte
papel no controle social. Consequentemente, muitas das normas compartilhadas por uma
comunidade, como as que dizem respeito ao anseio de se reduzir a desordem (como o
vandalismo), que normalmente requer investimento financeiro, ficam comprometidas.
Geralmente, os bairros que exibem os níveis mais elevados de desordem são
justamente os bairros mais pobres e menos articulados, que têm menos recursos para lidar
com esse tipo de distúrbio e são os menos propensos a receber investimentos financeiros
externos (PETERSON E KRIVO, 2010). Isso cria um ciclo em que os bairros que mais
necessitam de recursos para combater os transtornos urbanos são os que mais encontram
problemas para acessar tais recursos (RAMEY E SHRIDER, 2014).
A dinâmica comunitária do Hipercentro também poderia estar sendo influenciada
pelo fenômeno do feedback recíproco (SAMPSON E RAUDENBUSH, 1999). Como a
confiança social e o senso de controle por parte dos residentes é abalada frente a
criminalidade violenta, crimes em locais públicos e quando os ofensores são
desconhecidos (SKOGAN 1990), a ocorrência constante destes dois últimos tipos de
crime na região pode ter desestimulado as interações no espaço publico e,
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
112
consequentemente, ter debilitado a coesão social e as expectativas de ativismo por parte
da comunidade (LISKA E WARNER, 1991). O temor de ser atacado por estranhos nos
espaços públicos urbanos reduz a eficácia coletiva (SAMPSON E RAUDENBUSH,
1999) e é um forte indutor do êxodo nos grandes centros urbanos (FRED ET AL., 2005).
Além do aumento da criminalidade, outro fator que surgiu durante os anos 70 e
que pode ter intensificado o êxodo do Hipercentro foi o surgimento dos Shopping Centers,
construídos em diferentes regiões da cidade, proporcionado a junção de diferentes
serviços (lojas, bancos, correios, restaurantes diversos dispostos em forma de praças de
alimentação e cinemas) em um único espaço, distante do trânsito pesado do centro da
cidade, com estacionamento gratuito e segurança privada. O surgimento desses cômodos
centros de compras e lazer também tirou das ruas centrais as poucas lojas refinadas que
ainda existiam e levou ao fechamento das tradicionais salas de cinema do Cine Brasil,
Cine Patê e do Edifício Acaiaca (LEMOS, 1988).
Em 1974, o Parque Municipal teve que ser completamente cercado por grades
para evitar a ação de vândalos e a apropriação de seu espaço por moradores de rua, que
ocorria principalmente durante a noite (BELO HORIZONTE, 2015). O Parque, que
outrora fora um dos principais espaços de lazer da região, só seria aberto durante ocasiões
especiais. Neste mesmo ano, os comerciantes do Hipercentro já se queixavam da ação
dos camelôs e dos ambulantes que lotavam os passeios e ofereciam forte concorrência
com a oferta de produtos por preços muito abaixo dos do mercado formal (SILVA, 1998).
Com o intuito de melhorar essa situação estrutural e ambiental do Hipercentro, a
Prefeitura desenvolvendo o Projeto da Área Central (PACE) que reordenou algumas
atividades que contribuíam para a deterioração do espaço urbano central, como a
distribuição dos pontos de ônibus e do comércio veiculado aos terminais (PLAMBEL,
1980). Todavia, ao mesmo tempo em que algumas ruas tiveram seu processo de
degradação interrompido devido a realocação dos pontos de ônibus, outras passaram a ser
vitimadas pelos impactos do redirecionamento do intenso fluxo de usuários do transporte
coletivo que foram acompanhados pelos camelôs, ambulantes e pelas atividades dos
ladrões e das gangues de meninos, que se aproveitavam das aglomerações e da distração
dos usuários do transporte coletivo para cometer crimes (VILELA, 2006).
Esse deslocamento espacial da criminalidade frente as mudanças implementadas
pelo PACE indica que o crime é potencializado pela estrutura espacial e temporal das
atividades rotineiras – tais como mobilidade urbana, compras, empregos e lazer –, que se
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
113
traduzem em oportunidades criminais, sendo elas igualmente importantes para a
compreensão dos padrões criminais no Hipercentro.
Portanto, os efeitos das condições socioeconômicas, heterogeneidade
composicional e rotatividade de moradores devem ser considerados juntamente com as
características das atividades realizadas no segmento de rua e o tipo de uso dos imóveis
centrais (SMITH, FRAZEE E DAVISON, 2000), até porque quando Shaw e McKay
(1945) descobriram que a delinquência distribuía-se de forma heterogenia pela cidade,
porém não aleatoriamente, e que as taxas elevadas concentravam-se em comunidades com
determinadas características, eles não intuíam afirmar que os níveis elevados ocorriam
em função das características dos grupos que habitavam essas comunidades, mas que os
fatores estruturais da pobreza, heterogeneidade e alta mobilidade, esses dois últimos
fortemente presentes no Hipercentro, criavam um ambiente de desorganização social e
que a desorganização social a nível comunitário, por sua vez, favoreceria o
desenvolvimento de atividades criminais – devido ao baixo controle social e eficácia
coletiva, conformes explicamos nos parágrafos anteriores.
Ao considerarmos isso, vemos a necessidade de complementaridade da teoria da
desorganização social para o estudo do nosso objeto, pois ela explica porque o
Hipercentro se tornou um lugar propício para a criminalidade, porém não elucida porque
há uma concentração tão grande de crimes contra o patrimônio justamente nessa região,
sabendo que outros bairros de Belo Horizonte são tão desorganizados ou mais que o
Hipercentro e não exibem taxas de crimes contra o patrimônio tão altas.
Para sanar essa limitação, propomos a complementação da teoria da
desorganização social através da teoria das oportunidades criminais que, como
demonstraremos, é capaz de explicar a concentração dos crimes contra o patrimônio no
Hipercentro devido a sua atual configuração como ambiente das atividades rotineiras de
grande parte da população, causando uma enorme confluência entre possíveis vítimas e
ofensores, e devido a carência de guardião capaz, decorrente tanto do controle formal
ineficiente – policiamento, vigilância formal e eletrônica – quanto da ausência de controle
informal, que são ambos reflexos da forte desorganização social na região. A
complementação teórica, portanto, se dá através da inter-relação existente na dimensão
de controle de ambas as teorias, se mostrando necessária e extremamente valiosa para
nosso estudo.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
114
O desenvolvimento do conceito de oportunidades criminais se iniciou através do
estudo do relacionamento entre as atividades rotineiras e a criminalidade urbana por
Cohen e Felson (1979) que considerando vítimas, ofensores e guardiões partes igualmente
essenciais na equação criminal desencadearam um giro paradigmático na Sociologia, ao
provarem que as mudanças em qualquer uma das partes da equação poderiam impactar o
nível de criminalidade na sociedade, enquanto as teorias tradicionais tinham focado
exclusivamente sobre o elemento ofensor.
Assumindo o crime como um tipo de atividade que, assim como as atividades
legais, é dependente das atividades rotineiras da população, modificações no espaço
urbano da forma como são propostas pelo PACE devem ser examinadas com atenção,
pois implicam em uma grande modificação na dinâmica social urbana daquele espaço, o
que certamente irá impactar na dinâmica criminal, pois a reordenação de pontos de ônibus
nessa região causa o deslocamento geográfico de todo um conjunto de atividades
rotineiras de milhares de cidadãos.
Devido a grande concentração de empregos, serviços, entretenimento e sua
importância na articulação do transporte público, atraindo diariamente uma quantidade
enorme de pessoas para a realização de suas atividades rotineiras, o Hipercentro integra
o awareness space80 de grande parte da população de Belo Horizonte e,
probabilisticamente, de um número considerável de ofensores. Logo, segundo Smith,
Frazee e Davison (2000), se a região for socialmente desorganizada – como
demonstramos que é o caso do Hipercentro –, ela apresentará elevados índices criminais,
pois proporciona inúmeras oportunidades para a realização de crimes.
Diante desses desafios e dificuldades em estabelecer o controle na região, ela se
consolida durante esse período no imaginário popular como um espaço urbano decadente
e mal frequentado, marcado pela desordem e temido pela criminalidade. Nele,
prevaleceram estabelecimentos que, ao mesmo tempo em que refletem a ambiência local,
agem como elementos de atração de indivíduos que reforçam o caráter da região:
botequins, saunas, motéis baratos, cinemas eróticos, caça níqueis, jogo do bicho,
prostituição e atividades ligadas ao tráfico de drogas (SILVA, 1998; LEMOS, 1988).

80
O termo awareness space foi criado por Paul e Pat Brantingham (1981) para designar a região familiar
de um ofensor em potencial. Eles se baseiam na concepção de que os ofensores, como qualquer outra
pessoa, tendem a permanecer próximos às ruas que conhecem bem, que em sua maioria são aquelas que
compõem seus trajetos para a realização de atividades rotineiras, dificilmente se arriscando a delinquir fora
desses limites (Bichler et al, 2011; Ratcliff, 2006; Felson, 2006).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
115
Considerações Finais

A região que atualmente compreende o Hipercentro de Belo Horizonte, desde a


inauguração da capital até o final dos anos 80, período em que atingiu o ápice da
degradação e da desorganização social (Vilela, 2006; Silva, 1998; Lemos, 1988; Lemos,
2006; Hausemer, 2017), mudou radicalmente. Da composição sociodemográfica às
características arquitetônicas, todos os seus aspectos foram transformadas em função do
desenvolvimento e do crescimento da capital mineira.
A região hipercentral, ao longo destas décadas, apresentou substituição na
composição de seus moradores, redução de seu status socioeconômico, elevada
rotatividade, fraco sentimento de identidade, baixo anseio de permanecer residindo no
bairro, grande população potencial, fácil acesso à região, uso misto, intensa atividade
comercial, presença de zonas morais e intensa degradação dos imóveis e espaços
públicos. Todos os elementos que constituem os indicadores teóricos da desorganização
social.
Embora o uso da metodologia documental como fora feito neste trabalho não
permita que se estabeleça uma relação causal entre essas características e os fenômenos
criminais, as reflexões oriundas da exploração da memória documental disponível sobre
Belo Horizonte sob a lente do arcabouço teórico adotado lança luz sobre importantes
aspectos que ajudam a elucidar o processo de desorganização social da região e que
podem servir como norteadores para posteriores investigações fenomenológicas.

Referências

BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva – história antiga e


história média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1996.

BEATO, Claudio. Crime e cidades. Editora UFMG. 2012.

BELO HORIZONTE, Prefeitura Municipal. PACE – Plano da Área Central de Belo


Horizonte: resumo dos estudos e proposições. Belo Horizonte: BHTRANS, 1999.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
116
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. BH Hipercentro: Pesquisa de uso e
ocupação dos imóveis. Belo Horizonte, 2003.

BELO HORIZONTE, Prefeitura Municipal de. Os primeiros anos: A cidade do tédio.


Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&
pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=historia&tax=11825&lang=pt_BR&pg=5780
&taxp=0&>. Acesso em: 08 de novembro de 2015.

BELO HORIZONTE, Prefeitura Municipal de. Anos 40 e 50. Disponível em:


<http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxon
omiaMenuPortal&app=historia&tax=11822&lang=pt_BR&pg=5780&taxp=0&>.
Acesso em: 09 de novembro de 2015.

BELO HORIZONTE, Prefeitura Municipal de. Anos 60 e 70. Disponível em:


http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxono
miaMenuPortal&app=historia&tax=11823&lang=pt_BR&pg=5780&taxp=0& Acesso
em: 10 de Novembro de 2015

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. TA, 1983.

BURGESS, Ernest W. The growth of the city: an introduction to a research project.


Chicago University. 1925.

CASTRIOTA, Leonardo Barci. Arquitetura da modernidade. Belo Horizonte: Editora


UFMG, 1998.

COSTA, Heloísa Soares de Moura. Habitação e produção do espaço em Belo Horizonte.


PBH e CEDEPLAR, 1994.

FREITAS, Daniel Medeiros de. Aproximações entre arquitetura e urbanismo nos


intervenções realizadas no hipercentro de elo horizonte. Belo Horizonte, 2006.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Pesquisa de Origem e Destino. Belo Horizonte, 1982-


1992.

HUNTER, Albert. Private, parochial and public social orders: The problem of crime and
incivility in urban communities. In.: The challenge of social control: Citizenship and
institution building in modern society, p. 230-242, 1985.

IGLÉSIAS, Francisco; PAULA, João A. de. Memória da economia da cidade de Belo


Horizonte: BH 90 anos. Belo Horizonte: BMG, s/d, 1988.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Banco de dados dos


Censos: 1970, 1980, 1990 e 2000. Brasil.

INSTITUTO HORIZONTES. Plano Estratégico da Grande Belo Horizonte. Belo


Horizonte, 2005.

JACOBS, Jane. The death and life of great American cities. Vintage, 1961.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
117
LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2008. 190 p.
(Humanitas Pocket). ISBN 9788570416872.

LEMOS, Celina Borges. Determinações do espaço urbano: a evolução econômica,


urbanística e simbólica do centro de Belo Horizonte. FAFICH/UFMG, Belo Horizonte,
MG, 1988.

MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. O significado do botequim. Kowarick L,


organizador. Cidade: usos & abusos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.

MCKENZIE, Roderick D. The ecological approach to the study of the human community.
American Journal of Sociology, p. 287-301, 1924.

NORONHA, Carlos Roberto. Área central de Belo Horizonte: arqueologia do edifício


vertical e espaço urbano construído. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo). UFMG. 1999.

PARK, Robert E. The city. University of Chicago Press, 1915.

PARK, Robert E. The Human Ecology. American Journal of Sociology 1936.

PETERSON, Ruth D.; KRIVO, Lauren J. Divergent social worlds: Neighborhood crime
and the racial-spatial divide. Russell Sage Foundation, 2010.

PLAMBEL. A estrutura urbana da Região Metropolitana de Belo Horizonte: o


processo de formação do espaço urbano. Vol. 1 e 2. Belo Horizonte, 1986.

PLAMBEL. Estudo de viabilidade técnica e econômica do projeto da área central –


PACE. Belo Horizonte, s/d.

RAMEY, David M.; SHRIDER, Emily A. New parochialism, sources of community


investment, and the control of street crime. Criminology & Public Policy, v. 13, n. 2,
2014.

RATCLIFF, Jerry H. A Temporal Constraint Theory to Explain Opportunity-Based


Spatial Offending Patterns. Journal of Research in Crime and Delinquency, 2006.

REISS, Albert e RHODES, Albert. The Distribution of Juvenile Delinquency in the


Social Class Structure. American Sociological Review, 1961.

REYNALD, Danielle M. Factors associated with the guardianship of places. Journal of


Research in Crime and Delinquency, v. 48, n. 1, p. 110-142, 2011.

RONCEK, Dennis W. Dangerous places: Crime and residential environment. Social


Forces, v. 60, n. 1, p. 74-96, 1981.

SAMPSON, Robert J. Great American city: Chicago and the enduring neighborhood
effect. University of Chicago Press, 2012.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
118
SAMPSON, Robert J.; GROVES, W. Byron. Community structure and crime: Testing
social-disorganization theory. American Journal of Sociology, p. 774-802, 1989.

SAMPSON, Robert J.; RAUDENBUSH, Stephen W.; EARLS, Felton. Neighborhoods


and violent crime: A multilevel study of collective efficacy. Science, v. 277, n. 5328, p.
918-924, 1997.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na


Primeira República. Brasiliense, 1983.

SHAW, Clifford R.; MCKAY, Henry D. Juvenile delinquency and urban areas. Chicago,
Ill, 1942.

SHERMAN, Lawrence W.; GARTIN, Patrick R.; BUERGER, Michael E. Hot spots of
predatory crime: Routine activities and the criminology of place. Criminology, v. 27, n.
1, p. 27-56, 1989.

SILVA, Luiz Roberto da. Doce dossiê de BH. Escriba Editora, Belo Horizonte, 1998.

SOUZA, José Moreira de & CARNEIRO, Ricardo. “O Hipercentro de Belo Horizonte:


conformação espacial e transformações recentes”. In: Anuário Estatístico de Belo
Horizonte, 2003.

TAYLOR, Ralph B. et al. Street Blocks with more Nonresidential Land Use have more
Physical Deterioration Evidence from Baltimore and Philadelphia. Urban Affairs Review,
v. 31, n. 1, p. 120-136, 1995.

VILELA, Nice Marçal. Hipercentro de Belo Horizonte: movimentos e transformações


espaciais recentes. Dissertação (Mestrado em Geografia). Instituto de Geociências,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
119
AS ÁRVORES E A CIDADE: TEMAS DE PESQUISA NO CATÁLOGO DE
FONTES SOBRE ARBORIZAÇÃO EM BELO HORIZONTE81

THE TREES AND THE CITY: THEMES OF RESEARCH IN THE CATALOG


OF SOURCES ON AFFORESTATION OF BELO HORIZONTE

Carolina Marotta Capanema*

Resumo

A arborização é uma preocupação comum no âmbito da administração dos centros


urbanos atualmente. Em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, o tema
mostrou-se presente desde o planejamento da cidade em fins do século XIX. Diante de
tal assertiva, o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, em parceria com o grupo
de pesquisa História e Natureza, da Universidade Federal de Minas Gerais, elaborou um
instrumento de pesquisa dedicado à temática, intitulado Catálogo de Fontes: arborização
na Legislação Municipal de Belo Horizonte. Este artigo tem por objetivo apontar temas
para investigações sobre arborização urbana e gestão de áreas verdes no referido catálogo
com o intuito de incentivar a pesquisa científica sobre as interações entre sociedade e
natureza em diversas áreas do conhecimento. Toma-se como premissa que o ambiente
não se configura apenas como um espaço onde a história se desenrola, mas também como
um campo de batalhas de ideologias e de representações políticas, sociais e culturais.

Palavras-chave: Arborização; políticas públicas; Belo Horizonte.

* Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora visitante do Departamento
de História da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: cmcapanema@gmail.com.
81
A ideia deste artigo originou-se das pesquisas empreendidas no Arquivo da Cidade de Belo Horizonte
para a elaboração do Catálogo de Fontes: Arborização na Legislação Municipal de Belo Horizonte quando
estava no exercício das funções de técnica em tratamento, arranjo e descrição de acervos permanentes na
referida instituição, entre 2014 e 2016.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
120
Abstract

Urban afforestation is a common concern in the management of urban centers. In Belo


Horizonte, capital of the state of Minas Gerais, the theme has been present since the
planning of the city in the late nineteenth century. In view of this assertion, the Public
Archive of the City of Belo Horizonte, in partnership with the research group History and
Nature of the Federal University of Minas Gerais, developed a research instrument
dedicated to the theme, entitled Catálogo de Fontes: arborização na Legislação
Municipal de Belo Horizonte [Sources Catalog: afforestation in Municipal Legislation of
Belo Horizonte]. This article aims at pointing out themes for research on urban
afforestation and management of green areas in this catalog with the purpose of
encouraging scientific research on the interactions between society and nature in several
areas of knowledge. It is assumed that the environment is not only a space where history
unfolds, but also as a battlefield of ideologies and political, social and cultural
representations.

Keywords: Afforestation; public policy; Belo Horizonte.

Introdução

Desde o planejamento de Belo Horizonte pensou-se em sua arborização. A


Comissão Construtora da Nova Capital criada em 1894 e responsável por planejar e
conduzir as obras da nova capital do estado de Minas Gerais82 tinha, como uma de suas
preocupações, o planejamento das áreas verdes e arborização da cidade83. Inicialmente, a
Comissão foi organizada em seis “divisões de serviços” e a quarta divisão, responsável

82
A capital do estado de Minas Gerais originou-se na região da freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem
do Curral del Rey, criada na primeira metade do século XVIII. Em 1890, o decreto estadual nº 36 alterou a
denominação da localidade para Belo Horizonte. A lei estadual nº 2, de 14 de setembro de 1891, confirmou
a criação do distrito de Belo Horizonte, então vinculado a Sabará. Em 1893, foi elevada à categoria de
município e capital, com a denominação de Cidade de Minas, pela lei estadual nº 3, de 17 de dezembro
daquele ano, e decretos estaduais nº 716, de 05 de maio de 1894 e 776, de 30 de agosto de 1894,
desmembrando-se do município de Sabará. A capital foi inaugurada em 12 de dezembro de 1897. Pela lei
estadual nº 302, de 01 de janeiro de 1901 o município e capital passou novamente a denominar-se Belo
Horizonte. BARBOSA, 1995, p.46-47; IBGE. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/minasgerais/belohorizonte.pdf. Acesso em: 21/07/2017.
83
Neste trabalho, assume-se o conceito de áreas verdes como qualquer área vegetada, englobando praças,
jardins públicos, parques urbanos, canteiros centrais de avenidas, trevos e rotatórias de vias públicas,
excetuando-se as árvores que acompanham os leitos das vias públicas, pois as calçadas são
impermeabilizadas. FERREIRA, s.d, p. 12.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
121
pelo “estudo e preparo do solo”, tinha como uma de suas funções os serviços de
ajardinamento e arborização, com o objetivo de garantir a salubridade e a beleza estética
da capital. O parque municipal84, a principal área verde planejada da cidade, ficou a cargo
da terceira divisão, que era encarregada, em sua terceira seção, da “confecção dos projetos
de edifícios, monumentos, jardins, avenidas e mais construcções architectonicas, que
tivessem que ser executadas na nova Capital” (CCNC, 1895a, p.56; CCNC, 1895b, p.13).
As áreas verdes, portanto, tiveram espaço privilegiado nas discussões sobre o
planejamento da cidade.
Aos olhares contemporâneos, os referidos investimentos em arborização e
planejamento das áreas verdes poderiam aparentar um compromisso da administração
pública com questões ambientais. Mas estudos históricos sobre a temática, como aquele
elaborado por Duarte (2007), assinalam que as preocupações institucionais com as
árvores da cidade vão muito além do interesse ambiental e mostram que o espaço público
foi, e ainda é, lócus privilegiado para negociações e imposições de determinados projetos
políticos e sociais85.
Este artigo visa apontar temas para investigações sobre arborização, gestão das
áreas verdes e as relações entre sociedade e natureza no espaço urbano, de uma forma
ampla, no Catálogo de Fontes: arborização na Legislação Municipal de Belo Horizonte86
(ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE, 2017)87. As
considerações que se seguem alinham-se às perspectivas da história ambiental, que
compreende a natureza como um problema histórico, como uma das variáveis que
compõe a tessitura da história e, portanto, passível de estudos no que concerne às
interações que com ela homens e mulheres estabelecem no tempo.
Com os apontamentos aqui registrados pretende-se subsidiar pesquisas nas mais
variadas áreas do conhecimento, tais como História, Arquitetura, Geografia,

84
Atualmente denominado Parque Municipal Américo Renné Giannetti, em homenagem ao prefeito que
geriu o município entre 1951e 1954.
85
Sobre o tema ver também DUARTE; OSTOS, 2005; MESQUITA, 2013; OLIVER, 2008.
86
Doravante referido apenas como Catálogo de Fontes.
87
O instrumento de pesquisa, editado pelo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, apresenta o
resultado do levantamento de dados sobre arborização urbana na Coleção Legislação Municipal, Estadual
e Federal referente ao Município entre os anos de 1891 e 1986. O trabalho que resultou no Catálogo de
Fontes foi desenvolvido mediante uma parceria entre o grupo de pesquisa História e Natureza, da
Universidade Federal de Minas Gerais, coordenado pela Profª. Regina Horta Duarte, e o Arquivo Público
da Cidade de Belo Horizonte (APCBH). A primeira etapa da pesquisa foi realizada pelos bolsistas do grupo
História e Natureza entre os anos de 2010 e 2011, sendo finalizada pelos técnicos do APCBH em 2015, ano
em que também se elaborou a revisão e editoração do produto. O catálogo pode ser consultado online no
endereço eletrônico www.pbh.gov.br/cultura/arquivo.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
122
Administração Pública, Sociologia, Engenharia Ambiental, entre outras. Não se propõe
uma análise conclusiva sobre os variados temas apresentados, mas apenas indicar
temáticas passíveis de aprofundamento analítico. A metodologia utilizada baseia-se na
indicação, para cada assunto abordado, de uma ou mais disposições legais que subsidiem
as discussões iniciadas88. Assim, pretende-se atuar como um ponto de partida para
investigações que terão no Catálogo de Fontes seu ponto de apoio.

Abordagens e possibilidades de pesquisa no Catálogo de Fontes

Nos quase cem anos que abrangem a documentação legislativa do Catálogo de


Fontes, a arborização de Belo Horizonte e suas áreas verdes passaram por inúmeras
apropriações políticas e culturais. À época do planejamento e instalação da nova capital,
no final do século XIX, a idealização da cidade planejada com avenidas largas e
arborizadas alinhava-se a um ideal de cidade “moderna”, nos moldes dos projetos
republicanos guiados pelo lema “ordem e progresso”. Posteriormente, as árvores urbanas
também foram investidas do significado de patrimônio coletivo referenciado por poetas
e escritores que reverenciavam a cidade vergel, planejada em consonância com os ideais
de “cidade jardim” (DUARTE, 2007, p.26-27).
Os gastos com arborização foram expressivos no primeiro ano da Comissão
Construtora, se comparados, por exemplo, ao valor investido em outras áreas para o
mesmo período, como mostra publicação da Comissão, em 1895, relatando algumas de
suas despesas (Figura 1). Embora a imagem de uma cidade arborizada não corresponda
às representações do período inicial da história da nova capital. Segundo Aguiar (2006,
p.160), até o fim da primeira década do século XX, a Cidade de Minas foi muitas vezes
descrita como vazia e sem vida, com arborização rarefeita, mesmo conservando algumas
árvores do antigo arraial. Não se podem desconsiderar as possíveis lacunas entre o
planejado e o realizado na construção da capital mineira.

88
As disposições legais são citadas apenas pelo número e data, pois podem ser consultadas no Catálogo de
Fontes, que é organizado cronologicamente e fornece um resumo de cada item documental. O texto
completo das leis, decretos e portarias citados está disponível no sítio da Câmara Municipal de Belo
Horizonte: https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-legislacao.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
123
Figura 1 – Despesas parciais da CCNC em 1894.

Fonte: CCNC, 1895c, p.30.

Outro momento de inflexão nas políticas públicas de arborização de Belo


Horizonte são os meados do século XX em que outros símbolos do “progresso” se
impuseram, tais como o asfalto e a indústria. Nesse período, o ambiente urbano da capital
mineira sofreu grandes transformações. As ruas passaram a ser vislumbradas como lugar
dos automóveis e, segundo esta concepção, pedestres, árvores ou córregos não deveriam
atrapalhar o ir e vir dos carros. A derrubada das árvores de fícus da Avenida Afonso Pena,
em 1963, foi um ato paradigmático dessa percepção, tendo sido justificada pelo então
prefeito Jorge Carone como medida necessária para melhorar o trânsito de veículos na
principal via da cidade (DUARTE, 2007; MESQUITA, 2013, p.101-109).
No estudo da legislação de um período de quase cem anos (1891-1986) é possível
observar diversas mudanças nas políticas públicas de arborização de Belo Horizonte, bem
como se pode inferir o destaque dado à temática em diferentes épocas da história
administrativa do município. O Catálogo de Fontes fornece detalhes sobre o tema da
arborização e gestão das áreas verdes em vários âmbitos da legislação municipal, desde
aqueles diretamente relacionados à temática até assuntos correlatos que indicam as
políticas públicas de cada gestão administrativa da cidade.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
124
Uma análise da legislação que regula o corte de árvóres na capital pode indicar os
diferentes intuitos da política de valorização do verde na área urbana e rural, bem como
os seus limites. A Lei n. 86, de 9 de junho de 1949, por exemplo, previa multas para o
corte de árvores sem autorização, com variação de valores para as zonas urbana,
suburbana e rural89, estabelecia recompensa para replantio em propriedades rurais,
propunha desconto no imposto territorial para os cultivadores de árvores frutíferas e
autorizava o prefeito a instituir o serviço de reflorestamento com o fornecimento gratuito
de mudas e sementes.
Em 10 outubro de 1977, a Lei n. 2804 declarou imunes ao corte árvores de
algumas áreas do município, tais como aquelas existentes em todas as vias públicas, as
árvores ou conjunto de árvores junto de lagos, lagoas artificiais ou naturais, bem como o
conjunto de árvores, bosques, matas e similares existentes em qualquer ponto do
município, não mencionados anteriormente. Interessante destacar que o artigo que tratava
da proibição do corte de árvores existentes em loteamentos aprovados foi vetado.
Provavelmente devido à intervenção de interesses imobiliários.

Árvores como patrimônio

Outro ponto para análise seriam as políticas de patrimonialização da natureza, bem


como as espécies arbóreas mais valorizadas em cada período específico, o que poderia
guiar investigações sobre as representações simbólicas do mundo natural, bem como
sobre as apropriações pragmáticas da mesma. Atualmente as dez espécies mais comuns
na arborização viária de Belo Horizonte são a quaresmeira, eleita como a árvore símbolo

89
À época do planejamento da nova capital, Belo Horizonte, então chamada Cidade de Minas, “foi ordenada
em um arranjo tripartite, composto por três zonas concêntricas. No núcleo, estaria a área urbana, a cidade
por excelência, o centro da vida urbana. Delimitada pela Avenida do Contorno, essa área urbana seria
envolvida pela zona suburbana, o arrebalde, os subúrbios, espaço de transição entre a cidade e o campo.
Por fim, essa zona suburbana seria circundada pela zona rural do município, ou seja, o campo”. Este arranjo
foi estabelecido apenas como forma de estabelecer referências úteis à Comissão Construtora da Nova
Capital na condução dos serviços se obras e mais tarde na gestão urbana, mas permanece oficialmente até
os dias de hoje, embora poucos belo-horizontinos tenham conhecimento disso ou façam uso dele. AGUIAR,
2006, p.22.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
125
da cidade, alfeneiro, bauhínia, escumilha-africana, espatódea, ipê-rosado, magnólia,
munguba, sibipiruna e tipuana.90
Em 1976, o Decreto n. 2.940, de 27 de setembro, declarou algumas árvores da
cidade imunes ao corte ou derrubada devido à sua “beleza, raridade ou localização”. Entre
elas, destacam-se algumas: uma paineira situada na Av. Bernardo Guimarães por
caracterizar-se como uma “árvore majestosa, de grande porte”, com aproximadamente
sessenta anos; um jambo do Pará situado na Rua Espírito Santo, por ser o “único exemplar
desta espécie existente nas ruas de BH”; várias “árvores adultas” localizadas na Praça da
Igreja da Boa Viagem; mangueiras da Avenida Carandaí e Alfredo Balena, por serem “as
últimas mangueiras restantes das centenas que foram plantadas nas ruas da cidade”; entre
outras. Vinte anos depois, em 1996, algumas espécies foram objeto de tombamento pelo
Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município (DOM, 12/04/1996;
PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE, s.d.). As espécies tombadas
foram paineira, pau d’óleo, pau-Brasil, jequitibá, ipê branco, jambo do pará, sapucaia,
pau-ferro, sibipiruna, angico, esponjinha, pau rei, cássia.
As duas iniciativas citadas, que dão valor patrimonial a algumas espécimes de
árvores em Belo Horizonte, se dão em um período (décadas de 1970 e 1990) marcado por
alterações significativas na concepção de patrimônio cultural, com a instituição do
conceito de patrimônio ambiental urbano, que resultou na incorporação de novas
categorias, tais como os chamados “bens naturais” (SCIFONI, 2006, p.68).
Entre os principais argumentos para justificar o tombamento das árvores, em
1996, estão as questões da raridade e da importância histórica das espécies contempladas,
quando poucos remanescentes restavam na malha urbana (PREFEITURA DE BELO
HORIZONTE, s.d.). Em seu texto sobre a arborização de Belo Horizonte a partir da
análise das perspectivas de dois autores do início do século XX – Abílio Barreto e Raul
Tassini –, Graciela Oliver (2008, p. 108) identificou uma tradição na capital mineira de
valorização dos espécimes históricos de árvores. As centenárias eram mais valorizadas,
pois, associadas à hierarquização da própria sociedade, eram como as tradicionais
famílias mineiras, que teriam presenciado a chegada da modernidade ao local.

90
Disponível em:
http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&app=meioambiente&tax=11020&pg
=5700&taxp=0&idConteudo=67167. Acesso em: 11/02/2016.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
126
As escolhas feitas pelos poderes públicos representam, portanto, significados
políticos, sociais e culturais atribuídos à natureza no espaço urbano. Os exemplos citados
acima mostram que naqueles contextos, tanto no caso do decreto de 1976, quanto no caso
do tombamento de 1996, a valorização do verde se deu pelos seus aspectos estéticos,
históricos e de raridade. Nesses casos, a questão ecológica e a importância da preservação
de espécies pelo seu valor biológico e de manutenção do bioma em que está inserida a
cidade é pouco ou nada considerada.
A criação de uma relação identitária entre a cidade e sua arborização, sua natureza,
já é clássica nas análise sobre a cidade (DUARTE, 2007; OLIVER, 2008), mas nem
sempre a arborização foi vista sem ressalvas. No relatório de atividades do prefeito
Cornelio Vaz de Mello, de 1917, os problemas causados pelas árvores à vida pública
cotidiana se destacam, e o administrador chega a ironizar o título de cidade “vergel”:

A arborização da cidade, gabada por todos quantos a vêm e que lhe dá, na
realidade, aspecto gracioso e alegre, não deixa de ter seus inconvenientes, em
rasão [sic] da especie das arvores que a formam e da sua collocação nas ruas.
(...) Em sua maioria, a arborisação [sic] é constituida de magnolias, cujo
crescimento é exaggerado [sic] e além disso as folhas caducas e sementes são
em tão grande quantidade, que a respectiva remoção acarreta não pequena
despesa (PREFEITURA MUNICPAL DE BELO HORIZONTE, 1917, p.11)91

A citação acima mostra a complexidade da temática da arborização urbana e


indica como em cada período da história atribui-se um significado específico à natureza,
que é regido por percepções que definem as interações entre sociedade e natureza e se
expressam no corpo jurídico de cada sociedade.

Programas de arborização e valorização do verde na capital

Ao longo dos anos, planos de arborização foram estabelecidos para a cidade,


alguns deles em convênio com outras instituições públicas, como o Instituto Estadual de

91
Os relatórios de prefeitos de Belo Horizonte (1899-2005) estão disponíveis em:
http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=24201&chPlc=24201.
Acesso em 31/07/2017.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
127
Florestas92, e outros através da abertura de concursos.93 A legislação constante do
Catálogo de Fontes também mostra a criação de campanhas educativas de valorização
das árvores em âmbito municipal, tal como a instituição do prêmio “Pio Corrêa”94, que
premiava o aluno que elaborasse a melhor composição sobre árvores, e o prêmio “Álvaro
da Silveira”95, conferido ao melhor estudo ou pesquisa, de caráter inédito, feito por
estudantes do ensino básico sobre a utilização e preservação de recursos naturais no
país.96 Em 1971, o decreto n° 2.067, de 24 de setembro, instituiu uma campanha educativa
de proteção às árvores nas escolas municipais.
De acordo com Duarte; Ostos (2005, p.79-83) foi justamente na segunda metade
do século XX, época em que o surto industrial passou a pressionar fortemente as árvores
e matas do município, que se intensificaram as comemorações em torno do Dia da Árvore
em Belo Horizonte. Iniciativas de campanhas de plantio de árvores e distribuição de
mudas, entre outras, foram comuns na década de 1970, em Belo Horizonte (Figura 2).97
De acordo com Duarte (2007), o verde foi um elemento fundador de um sentido comum
para os habitantes de Belo Horizonte e as árvores da cidade foram investidas do
significado de um patrimônio coletivo. Assim, o seu corte – incentivado pelo
desenvolvimento urbano do período – gerou inúmeros debates e reações por parte da
população e da imprensa.
Diante de tal configuração histórica – de valorização do verde por parte da
população e sua consequente supressão pelas políticas de urbanização – não seria

92
Lei n. 1.627, de 31 de março de 1969; Resolução n. 445/80, de 04 de julho de 1980.
93
Abertura de concurso público para arborização da Av. Afonso Pena .Lei n. 1.144, de 21 de outubro de
1964.
94
Manoel Pio Corrêa (1874- 1934) foi “naturalista, botânico, geólogo e pesquisador, nascido na cidade do
Porto, em Portugal, filho do editor e livreiro Ignacio Corrêa, dedicou-se ao estudo da botânica aplicada,
ressaltando aspectos científicos, econômicos e industriais das plantas. Membro de mais de uma dezena de
instituições científicas. Os trabalhos desenvolvidos por este naturalista deram origem a importantes
publicações, dentre as quais os seis volumes do Dicionário das Plantas Úteis do Brasil e das Exóticas
Cultivadas, publicados a partir de 1926 pelo Ministério da Agricultura. Sua bibliografia completa inclui
cerca de 150 trabalhos. Quando faleceu, era pesquisador do Museu de História Natural de Paris”. Disponível
em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Pio_Correia#endnote_1. Acesso em 14/07/2017.
95
Álvaro Astolfo da Silveira (1867-1945), mineiro de Passos, formou-se engenheiro de minas na Escola de
Minas de Ouro Preto, mas teve destacada produção no meio botânico e geográfico. Foi autor de estudo
pioneiro sobre a arborização de Belo Horizonte, publicado em 1914. Cf. SILVEIRA, 1914. Atuou em
instituições de destaque em Minas, como a Comissão Geográfica e Geológica de Minas Gerais, obtendo
reconhecimento nacional. Viajou e classificou inúmeras espécies vegetais no estado, publicando livros
como “Flora e serras mineiras” (1917), “Memórias corográficas” (1922), “Fontes, chuvas e florestas”
(1923) e “Geografia do Estado de Minas Gerais” (1929), entre outros (FILHO, 1947, p.115-116).
96
Decreto n. 2.067, de 24 de setembro de 1971 e Decreto n. 2.067, de 24 de setembro de 1971,
respectivamente.
97
Para uma interpretação histórica sobre as políticas de arborização no período, ver DUARTE; OSTOS,
2005.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
128
incongruente o investimento da administração municipal em campanhas de arborização e
na divulgação intensiva das mesmas, como documentado no acervo fotográfico constante
do fundo “Assessoria de Comunicação Social do Município” (ASCOM) do Arquivo
Público da Cidade de Belo Horizonte98.
Oswaldo Pieruccetti, prefeito entre 1964-1967 e 1971-1974, que teve suas gestões
marcadas por programas de urbanização intensos da cidade, como a canalização de rios e
o asfaltamento (MESQUITA, 2013), na figura 3 posa para fotografia no mês em que se
comemora o dia da Árvore. Na foto, posa em uma atitude nitidamente publicitária, que
alude a uma vontade de construir uma imagem de administrador público que “coloca a
mão na massa” e se identifica com os interesses do povo.

Figura 2: Evento da Semana da Árvore na Figura 3: Semana da Árvore. 1º à esquerda:


Avenida Afonso Pena. Prédio da Prefeitura. Prefeito Oswaldo Pieruccetti. Setembro de 1965.
Dia da árvore, gestão Pieruccetti (1971-1975). Fonte: APCBH/ASCOM
Fonte: APCBH/ASCOM

98
A Assessoria de Comunicação Social do Município (ASCOM) foi criada na estrutura organizacional da
prefeitura de Belo Horizonte em 1992, depois de antigos órgãos e setores com atribuições semelhantes
sofrerem inúmeras alterações. O órgão tem a finalidade de planejar e coordenar as atividades de
comunicação social da administração municipal, dentre elas a divulgação, cobertura e distribuição do
material jornalístico, assistência ao Prefeito e aos setores vinculados à gerência pública, além de coordenar
a política de comunicação externa e interna da administração. O fundo documental homônimo (ASCOM),
sob a guarda do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, possui itens datados de 1947 a 2015, e
contém documentos textuais e iconográficos, como fotografias e cartazes, dentre outras tipologias
documentais. MIRANDA, 2015, p.100; ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE,
2016, p.31-35.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
129
Regulação urbana

A legislação referente à arborização e gestão de áreas verdes também contempla


dados de interesse à regulação urbana, pois estabelece regras para a área destinada a
jardins e áreas verdes nas construções da zona urbana e suburbana99 da capital, faz
considerações sobre alterações na arborização de ruas da cidade ao alterar o espaçamento
entre as árvores para facilitar o trânsito de veículos100, regula a conduta dos cidadãos nas
áreas verdes da cidade, tais como jardins, praças e parques101, expressa em uma
legislação, na maioria das vezes, excludente102, e determina regras a respeito da
construção de marquises e toldos, para que não estes prejudicassem a arborização da
cidade, entre outros assuntos.103 A legislação contempla também as normas mais amplas
que regem as áreas verdes, estabelecendo suas categorias de uso, os modelos de
assentamentos urbanos e delimitando as áreas a reservar.104
Algumas proibições reinteradas ao longo dos anos são indícios de que as
disposições legais não estavam sendo cumpridas, como no caso da regulação do uso de
árvores e áreas verdes por feirantes na década de 1940, reiterada na década de 1970.105
Em contraposição, na década de 1980, o Decreto Lei n. 4885, de 18 de dezembro de 1984,
estabelece normas e concede permissão de uso para publicidade em grades protetoras de
árvores nas vias públicas. Fato que não era novo, já que a Portaria n. 1985, de 17 de
dezembro de 1973 designou uma “comissão julgadora da Concorrência Pública
Ordinária” relativa à concessão de propaganda em grades de proteção de árvores.
Outra determinação legal que trata da questão da arborização na regulação urbana
é a disposição sobre a obrigatoriedade de os imóveis das seções urbanas e suburbanas

99
Lei n. 226, de 2 de outubro de 1922; Lei n. 264, de 9 de outubro de 1923.
100
Decreto n. 8, de 6 de fevereiro de 1925.
101
Decreto n. 10, de 24 de junho de 1925.
102
Sobre o tema, ver DUARTE, 2007, p.27; OLIVEIRA, 2014, p.18.
103
Decreto n. 165, de 1º de setembro de 1933.
104
Lei n. 2.662, de 29 de outubro de 1976; Decreto n. 3.073, de 7 de junho de 1977; Decreto n. 3.074, de 7
de junho de 1977.
105
O Decreto n. 170, de 10 de janeiro de 1946 e a Lei n. 85, de 9 de junho de 1949, proíbem os feirantes de
utilizarem os troncos e galhos de árvores para quaisquer fins. Já o Decreto n. 2.437, de 26 de outubro de
1973 regulamenta as feiras de artes e artesanato de Belo Horizonte. Em seu parágrafo único diz: “Não se
admitirá a instalação de "stands" de exposição nas áreas verdes e floridas de parques, avenidas ou jardins,
sob nenhum pretexto. Na organização de seus "stands" de exposição, o expositor: a) - não poderá colocar
letreiros, cartazes, faixas ou outros processos de comunicação visual dependurados em postes, árvores ou
gramados”.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
130
finalizarem suas construções com a criação de passeios calçados e arborizados, uma vez
que ruas e avenidas que não estivessem providas de água, esgoto, energia elétrica,
calçamento e arborização não seriam consideradas finalizadas e em condições de serem
habitadas pela prefeitura106.
O Catálogo de Fontes agrega várias possibilidades de pesquisa, pois fornece
detalhes sobre o temas que, à primeira vista, não estão necessariamente vinculados à
arborização, indicando ligações - algumas vezes até inusitadas – entre temáticas distintas.
Um exemplo interessante é o estabelecimento da obrigatoriedade da instalação de “pátio
arborizado” ou jardins em colégios, hospitais e asilos, bem como a arborização do
cemitério e do matadouro nos primeiros anos da capital.107

As florestas e a cidade: pressões urbanas na vegetação

Outra abordagem possível da legislação constante no Catálogo de Fontes seria a


análise cronológico-temporal dos dados, tentando abarcar características específicas de
períodos pré-estabelecidos de pesquisa, relacionando-as ao contexto geral do período e
especificamente à história de Belo Horizonte.
Na década de 1910, por exemplo, a legislação apresenta referências sobre a
questão florestal, que permanece ativa ainda nas décadas seguintes. A Lei n. 60, de 14 de
outubro de 1912, autoriza o prefeito a dar prêmios aos proprietários de terrenos que
plantassem árvores florestais108. Este é um caso interessante para a reflexão sobre a
valorização de certas espécies florestais específicas em detrimento de outras em um dado
período e sobre quais seriam os objetivos de tal disposição. No caso específico da lei de
1912, as espécies valorizadas foram: eucalipto, caneleira, ipê, cambuí, palmeira, cedro
rosa, sucupira, folha de bolo, pinheira, canela, sassafrás e vinhático.
Outros documentos do acervo do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
são importantes auxiliares na análise desse contexto de valorização e incentivo de plantio

106
Lei n. 62, de 14 de outubro de 1912.
107
Decreto n. 1.368, de 5 de março de 1900; Decreto n. 1.369, de 5 de março de 1900, respectivamente.
108
Lei n. 60, de 14 de outubro de 1912; Resolução nº 49, de 18 de fevereiro de 1937. Em âmbito federal, o
tema também vinha sendo foco de legislação. Em 1918, com o intuito de intensificar a cultura de essências
florestais no Brasil, principalmente o eucalipto, uma lei estabeleceu uma recompensa por árvore plantada.
Cf. COLEÇÃO DAS LEIS DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS BRASIL, 1919, p.105-7 apud
CAPANEMA, 2006, p.56.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
131
de áreas florestais em Belo Horizonte, como a “Coleção dos relatórios anuais de
atividades da Prefeitura de Belo Horizonte – 1899-1987”. No “Relatório apresentado aos
membros do Conselho Deliberativo da capital pelo prefeito Dr. Olyntho Deodato dos Reis
Meirelles”, em 1912, a devastação das florestas e matas do município é abordada, sendo
contraposta à suposta exuberância da arborização da cidade:

A exuberancia e beleza da nossa arborização, na área da cidade, constituem


uma das notas mais originaes e caracteristicas de Bello Horizonte, e que
provocam verdadeira admiração dos nossos hospedes. E esta sensação é tão
viva e intensa quanto ao lançarem as vistas pelos arredores e mesmo por todo
o município da Capital só vêm uma vegetação pobre e rachitica.
PREFEITURA MUNCIPAL DE BELO HORIZONTE, 1912, p.28.

O prefeito chega a elencar quais teriam sido as causas daquela situação no


município. Segundo ele, os terrenos nas porções sul e sudeste da cidade, na sua quase
totalidade mineralógicos, seriam naturalmente pobres para manter uma vegetação
“luxuriante ou mesmo regular”. Já as partes norte e oeste, ao contrário, possuíam matas
“bem vestidas e de bello aspecto”, que faziam parte de antigas fazendas, mas onde o fogo
anualmente as consumia transformando-as em “enfesadas capoeirinhas de porte
mesquinho e folhas anemiadas”. Nota-se aqui que ele não faz referência aos possíveis
causadores dos incêndios. Ainda segundo Meirelles, o que foi preservado do fogo foi
abatido “aos golpes impiedosos dos commerciantes de madeira branca, de lenha e de
carvão”. Mal que, para ele, perdurava desde o tempo da Comissão Construtora. E, ao seu
ver, era

o maior inimigo da nossa riqueza florestal, o perturbador do regimen de nossas


aguas, o abridor de largos flancos aos ventos predominantes, que mais ou
menos impetuosos, dessecam a terra, estiolam e queimam a planta,
despojando-as das suas vestimentas, alterando-lhe a forma e o porte. Si
continuar a devastação praticada até agora, em breve será a cidade um oásis no
meio de um grande deserto. PREFEITURA MUNCIPAL DE BELO
HORIZONTE, 1912, p.28.

E é aí então que o prefeito contextualiza a Lei n. 60, de 14 de outubro de 1912, ao


definir que todo comerciante de madeira branca, lenha ou carvão deveria pagar licença e
imposto sobre sua produção, ao mesmo tempo em que o proprietário agrícola que
possuísse maior quantidade de árvores florestais “que sirvam mais tarde para construção

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
132
e para industria” receberia um prêmio pecuniário da prefeitura (PREFEITURA
MUNCIPAL DE BELO HORIZONTE, 1912, p.29).
Nas primeiras décadas do século XX, a política florestal em Minas Gerais foi um
assunto de estado. Naquele período, os governos mineiros pretendiam promover o
desenvolvimento econômico por meio da diversificação e modernização da agricultura,
seguindo as diretrizes propostas no Congresso Agrícola de 1903, liderado por João
Pinheiro. Na medida em que a agricultura, a indústria e as ferrovias dependiam do
consumo de combustível vegetal, a defesa das matas ganhou dimensão estratégica. Assim,
ao longo dos anos 1910-1920, Minas Gerais elaborou uma política florestal ancorada nas
discussões sobre a modernização econômica, social e tecnológica do Brasil. Em função
das demandas crescentes de matérias-primas tanto no Sudeste Brasileiro quanto na
Europa e nos Estados Unidos, Arthur Bernardes, presidente do estado (1918-1922) e
principal mentor e executor desta política, considerou que o problema do combustível
vegetal exigia solução prática e segura através do reflorestamento (MARTINS, 2011).
Outra justificativa ao incentivo de políticas de conservação e reflorestamento nos
arredores de Belo Horizonte refere-se à manutenção dos recursos hídricos da capital. A
devastação teria causado problemas para o abastecimento hídrico da cidade, devido ao
ressecamento de nascentes, como indica a legislação ao especificar a necessidade de
conservação das “mattas, nas cercanias da Capital e nas encostas e cabeceiras de
mananciaes, dentro do município 109. Três anos depois, a Lei n. 138, de 16 de outubro de
1917 previa que deveriam ser “reservadas quaesquer minas e fontes mineraes, as mattas
e as terras que forem necessarias para a formação da reserva florestal da cidade”. A
história mostra que muitas vezes quando um recurso se faz escasso amplia-se a legislação
reguladora sobre aquele insumo. Em Minas Gerais, desde o século XVIII esta
prerrogativa é abordada na legislação. A redução dos recursos hídricos vinculada ao
desmatamento foi objeto de regulamentação naquele período (CAPANEMA, 2013,
p.200-203).
Essa política possui continuidade nas décadas de 1920 e 1930 em Belo Horizonte,
com expressão nas políticas federais. Quando se falava em proteção à natureza nas
primeiras décadas do século XX referiam-se essencialmente à conservação de florestas,
a preservação/conservação de outros tipos de vegetação não era assunto prioritário, o que

109
Lei n. 78, de 21 de outubro de 1914.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
133
se constata na legislação essencialmente florestal vigente: Serviço Florestal do Brasil,
criado em 1921 (Decreto n.4421, de 28/12/21) e organizado em 1925 (Decreto n.17042,
de 16/09/25); Código Florestal (Dec. n. 23.793, de 23/01/1934) (CAPANEMA, 2006,
p.56). Em 1926, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio publicou o Mappa
Florestal do Brasil (CAMPOS, 2000), que vem reforçar a valorização do tema à época110.
Em Belo Horizonte, uma resolução datada de 1937 previa o incremento do
reflorestamento do município, incentivado através do estabelecimento de recompensa por
árvore plantada na área rural111. A ligação entre a disponibilidade hídrica e as matas pode
ser observada em outros dispositivos legais quando vincula, por exemplo, a função de
conservar as matas à conservação e fiscalização de adutoras e mananciais.112 Outros
dispositivos legais referem-se à aquisição de áreas de terrenos necessários à proteção de
mananciais de córregos (Mutuca ou Cristais e Fechos) que abasteciam a capital113.

Dados quantitativos no Catálogo de Fontes

O Catálogo de Fontes apresenta dados quantitativos que podem ser úteis na


elaboração de pesquisas sobre arborização e estudo urbanos, de maneira mais ampla. É
possível comparar, por exemplo, os salários de jardineiros e outros funcionários do setor
de parques e jardins com o de funcionários de outros setores para estabelecer uma análise
comparativa, tentando traçar o significado e peso das funções na administração pública.114
Despesas do Departamento de Parques e Jardins, por exemplo, podem ser comparadas a
gastos com outros departamentos, anualmente115. Assim como a abertura de créditos
suplementares para empregar em aquisição de materiais e trabalhadores da área e no
pagamento de aluguel de carroças para serviços de arborização116, créditos especiais para
o Departamento de Parques e Jardins117, verbas para arborização e reflorestamento.118 O
ano de 1957, por exemplo, apresenta o acréscimo de muitas verbas suplementares para o

110
Sobre o tema florestal no Brasil, ver também DRUMMOND, 1998/99.
111
Resolução nº 49, de 18 de fevereiro de 1937.
112
Portaria n. 316, de 4 de setembro de 1930.
113
Decreto n. 511, de 8 de Setembro de 1956.
114
Lei n. 304, de 11 de outubro de 1952
115
Lei n. 356, de 7 de dezembro de 1953; Lei n. 525, de 3 de dezembro de 1954
116
Lei n. 306, de 11 de novembro de 1952
117
Decreto n. 633, de 17 de dezembro de 1957.
118
Decreto n. 264, de 2 de outubro de 1953; Decreto n. 267, de 6 de outubro de 1953.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
134
Departamento de Parques e Jardins, bem como 1958 e 1959. Mas qual seria o motivo? A
pouca disponibilização de verbas regulares? Ou um maior investimento real no setor? Ou
outros setores também teriam recebido maior incentivo?
Para uma análise da dotação orçamentária do município é necessário que o
pesquisador compreenda a legislação pertinente à matéria, que define a legalidade,
regularidade, possibilidade de aplicação de verbas, acréscimos e limites de investimento
em cada setor. Atualmente, a lei orgânica de Belo Horizonte dispõe sobre os gastos
prioritários do município, entre os quais se inclui a proteção ao meio ambiente. De acordo
com o artigo 130, “a lei orçamentária assegurará investimentos prioritários em programas
de educação, saúde, habitação, saneamento básico e proteção ao meio ambiente”.
Grande parte dos dados disponibilizados na legislação municipal refere-se a dados
quantitativos. Vale ressaltar que em alguns anos as receitas e despesas não foram citadas,
o que prejudica a pesquisa, como a partir de certo período em que cada setor da prefeitura
passa a ser identificado apenas por números e, por isso, os dados não foram selecionados
para o Catálogo de Fontes devido à dificuldade de identificação. Em outros casos, os
índices de receitas e despesas não são mencionados na legislação anual, como nos casos
dos ano de 1938, 1943, 1947 e 1952. Já em outro, os orçamentos anuais não fazem
menção a gastos com arborização ou temáticas afins, tais como os anos de 1937, 1939-
1940, 1942, 1944 a 1946, 1948 e 1950.
Esta ausência constitui outra perspectiva de pesquisa que se abre mediante a
consulta ao Catálogo de Fontes. A partir de uma análise aprofundada dos dados anuais,
unidos à observação de dados semelhantes em outros anos e em outros acervos
municipais, o pesquisador pode levantar os motivos que levaram a um maior invetimento
em uma área em um determinado período em detrimento de outras.

Políticas de criação e manutenção de parques e jardins

A política de criação e manutenção de parques e jardins em Belo Horizonte


também constitui um interessante tema de pesquisa e tem sido foco de manifestações
populares em Belo Horizonte em defesa da preservação de áreas ameaçadas por pressões

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
135
imobiliárias. Citam-se os movimentos recentes em defesa da “Mata do Planalto”, iniciado
em 2010, e em defesa da criação do “Parque Jardim América”, a partir de 2011.119
O índice urbano de áreas verdes por habitante é constantemente utilizado pelas
administrações municipais com intenções publicitárias, como indicadores de qualidade
de vida nas cidades. Estes são os casos de Curitiba120 e Goiânia121, que muitas vezes se
atribuem o título de “capitais verdes” do Brasil. O atual índice de áreas verdes por
habitante em Belo Horizonte, segundo dados da prefeitura municipal, é de 18 m2. Este
índice é considerado satisfatório, pois a administração pública toma como parâmetro o
mínimo de 12 m² de área verde por habitante supostamente recomendado pela
Organização Mundial de Saúde (OMS)122.
Guimarães (2010, p.20), entretanto, atenta para o fato de o número ser
erroneamente atribuído à OMS, que não o reconhece oficialmente. O autor também revela
que não há consenso na utilização de indicadores de medição de áreas verdes na
administração pública. Dados quantitativos das áreas verdes são utilizados para
identificar e localizar espaços para (re)planejamento das cidades e proposição de políticas
públicas, mas muitas vezes utilizam parâmetros diferentes de medição. “Dessa forma, é
bastante comum que um mesmo indicador seja utilizado de maneira diferente por cada
gestor ou pesquisador, dificultando avaliações comparativas e reformulações
urbanísticas” (GUIMARÃES, 2010, p.19).
Ademais, há discrepância na utilização de termos utilizados sobre áreas verdes
urbanas entre autores e profissionais que atuam na área e, consequentemente, nas
informações veiculadas pela mídia. Similaridades e diferenças entre termos geram
conflitos teóricos, como no caso dos conceitos de espaços livres urbanos, áreas livres,
espaços abertos, áreas verdes, sistemas de áreas de lazer, jardins, praças, parques urbanos,

119
Os dois movimentos pressionam os poderes públicos a criarem parques nas áreas de remanescentes
verdes nos bairros que dão nome aos movimentos: Planalto e Jardim América. O tema foi amplamente
divulgado nas mídias locais e redes sociais. Disponível em: http://hojeemdia.com.br/horizontes/moradores-
protestam-e-pauta-sobre-a-mata-do-planalto-sai-da-reuni%C3%A3o-do-comam-1.393319;
http://cidadeludica.com.br/2016/11/04/em-bh-moradores-resistem-e-lutam-para-criar-o-parque-jardim-
america/; https://www.facebook.com/salveamatadoplanalto/; https://www.facebook.com/ParqueJAbh/.
Acesso em: 31/07/2017.
120
Disponível em: http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/indice-de-area-verde-passa-para-645-m2-por-
habitante/25525; http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/novo-mapa-revela-aumento-de-areas-verdes-na-
cidade/25193. Acesso em: 31/07/2017.
121
Disponível em: http://www4.goiania.go.gov.br/portal/goiania.asp?s=2&tt=con&cd=1265. Acesso em:
31/07/2017.
122
Disponível em:
http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&
app=meioambiente&tax=38428&lang=pt_br&pg=5700&taxp=0&. Acesso em: 12/02/2016.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
136
unidades de conservação em área urbana e arborização urbana. Este último conceito, por
exemplo, corresponde aos elementos vegetais de porte arbóreo na cidade. Árvores
plantadas nas calçadas fazem parte da arborização urbana, mas não integram os sistemas
de áreas verdes, como parques, jardins e praças (FERREIRA, s.d, p.11-12)123.
Nesse sentido, faz-se necessário relativizar os coeficientes de áreas verdes dos
centros urbanos. Muitos parques urbanos foram criados em diversas partes do mundo
valendo-se do discurso ambientalista, mas em muitos casos desempenham apenas função
estética e de lazer, pela insignificância do seu conteúdo natural. Ainda assim, são
utilizados para construir os índices de verde por habitante (GOMES, 2014, p.85).
Nem sempre a criação de uma praça significa a proteção de uma área verde, às
vezes a vegetação em uma praça pública é desprezível ou trata-se de uma área
impermeabilizada, como é o caso da Praça Rui Barbosa (Praça da Estação) em Belo
Horizonte (Figuras 4 e 5). Em artigo publicado na Revista Eletrônica do Arquivo Público
da Cidade de Belo Horizonte, Carlos Alberto Oliveira (2017, p.10) destaca o equívoco
conceitual na definição de praças no Brasil, comumente confundidas com jardins e
parques.

Figuras 2 e 5: Praça Rui Barbosa (Praça da Estação), Belo Horizonte/MG, sob duas perspectivas.

Fotos: Rivail Miranda Xavier, julho/2017.

Como alerta Gomes (2014, p.82), no caso específico dos parques urbanos,
“difundem-se que estes equipamentos contribuem para a proteção da fauna e flora, são
importantes para o aumento dos índices de áreas verdes, além de estarem voltados ao uso
das massas e, consequentemente, à melhoria das condições de vida do homem urbano,

123
Para uma definição pormenorizada dos termos, consultar FERREIRA, s.d., p.11-13.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
137
independentemente de sua classe social. No entanto, não se atentam para as disparidades
socioespaciais que induzem”. Na verdade, muitas vezes os parques contribuem para o
aumento da desigualdade socioespacial, pois alteram o preço da terra e se voltam a um
público restrito, por terem localização privilegiada. Geralmente os discursos
supostamente ambientais divulgados por instituições públicas e mídia não consideram os
conflitos, as disputas pelo solo urbano e a apropriação desigual dos “espaços verdes”
existentes nas cidades (GOMES, 2014, p.84-86).
Esta é uma perspectiva de análise fecunda que poderia ser aplicada aos parques
urbanos de Belo Horizonte. Quais seriam os reais objetivos da criação dos parques da
cidade? A que ideais políticos, econômicos e sociais estariam submetidos? Atualmente,
de acordo com dados disponibilizados pela Prefeitura de Belo Horizonte na plataforma
digital BHMap124, a capital possui 73 parques municipais, sendo 6 parques na Regional
Venda Nova, 15 na Regional Pampulha, 5 na Regional Norte, 13 na Regional Nordeste,
2 na Regional Noroeste, 1 na Regional Leste, 9 na Regional Oeste, 18 na Regional Centro-
Sul e 4 parques na Regional Barreiro.
A Figura 6 indica a desigualdade na distribuição espacial dos parques municipais
da cidade, não apenas quantitativamente, mas também em extensão. A Regional Centro-
Sul, que possui parques municipais em maior número e extensão, também apresenta a
maior concentração de riqueza da capital. Enquanto 4,8% da população residente em Belo
Horizonte possui renda mensal declarada superior a dez salários mínimos, na região
Centro-Sul este percentual é de 22,6%.125

124
Disponível em:
http://bhmap.pbh.gov.br/BHMap/mapa/#zoom=0&lat=7799871.0925&lon=614126&layers=B0FFFFFFF
FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFF. Acesso em: 01/08/2017.
125
Dados baseados no Censo de 2010. Disponível em:
http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=54009&chPlc=54009&v
iewbusca=s. Acesso em: 01/08/2017.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
138
Figura 6: Mapa dos parques
municipais de Belo Horizonte.

Fontes: PREFEITURA
MUNICIPAL DE BELO
HORIZONTE, s.d.;
UNIVERSIDADE FEDERAL
DE MINAS GERAIS, 2014.

Elaboração: Herbert Pardini.

Para além da pressão de aspectos econômicos e sociais sobre a criação e


manutenção dos parques municipais, outros fatores devem ser levados em consideração
no caso de uma análise comparativa sobre os parques, tal como a história do
desenvolvimento urbano da cidade, expressa na ocupação e crescimento de cada regional,
na medida em que os locais de ocupação mais antiga podem tender a ter menores áreas
verdes passíveis de tornarem-se parques se o espaço destinado ao verde no passado for
menos valorizado, bem como a pressão sofrida em cada região. Áreas ocupadas sem
planejamento poderiam ser mais adensadas em população e, por isso, ter restado pouco
espaço para o verde.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
139
Uma maneira interessante de conjugar uma análise ambiental à história seria
investigar, quantitativa e qualitativamente, os momentos de criação dos parques urbanos,
estabelecendo os períodos de surto, bem como de letargia, buscando compreender que
relações poderiam ser feitas entre estes fatores e questões políticas, culturais, sociais e
econômicas.
Em âmbito federal, a criação dos primeiros parques nacionais tem relação
intrínseca com o conceito de áreas de “natureza intocada” que deveriam ser protegidas do
uso humano, exceto para contemplação, recreação e pesquisa científica, alinhadas a um
ideal divulgado principalmente pelos idealizadores dos primeiros parques do mundo
(como Yellowstone, em 1872), que tinham como pressuposto a ideia de que a as
sociedades urbano-industriais eram destruidoras da natureza (DIEGUES, 2008, p.17).
No Brasil, na década de 1930, também foram criados os primeiros parques
nacionais – Itatiaia (MG/RJ), em 1937; Iguaçu (PR) e Serra dos Órgãos (RJ), em 1939.
Nesse período, pode-se fazer uma associação entre os ideais de conservação e preservação
da natureza e um projeto nacionalista de modernização Brasileira, em que a natureza
passou a ser considerada uma peça chave para o desenvolvimento econômico mediante
sua exploração “racional”, bem como pela utilização de seu conteúdo simbólico para a
afirmação de uma identidade nacional (CAPANEMA, 2006).
Se as primeiras áreas de proteção ambiental em nível federal foram criadas nos
anos 1930, essa não foi uma prática que se manteve crescente nas décadas seguintes. Na
década de 1940 houve uma estagnação; nos anos 1950 criaram-se mais três unidades de
conservação; na década seguinte, oito; e, nas décadas de 1970 e 1980 houve um grande
impulso à criação de parques e reservas biológicas, devido ao surgimento e intensificação
do movimento ecológico no Brasil (DIEGUES, 2008, p.113-125). Segundo Roncaglio
(2007, p.107), a criação de áreas de proteção também coincidiu com as frentes de
expansão econômica sobre o território Brasileiro, como é o caso da década de 1970,
caracterizada pelo investimento em indústrias de base através dos planos nacionais de
desenvolvimento lançados na ditadura no Brasil.
A criação ou implantação de parques e áreas verdes protegidas no município de
Belo Horizonte também é marcante naquele período. Em de 21 de setembro de 1971, o
Decreto n. 2.065 dispôs sobre a criação do Parque Municipal Vila Betânia (atual Parque
Municipal Jacques Cousteau). No ano seguinte, o decreto n. 2.225, de 27 de junho de
1972 definiu a desapropriação de terreno no lugar denominado "Fazenda São José", nas
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
140
proximidades do Bairro Padre Eustáquio, para preservação de “matas naturais” e
implantação de “parque florestal recreativo, de autódromo ou de outras obras públicas”.
O decreto n. 2.345, de 30 de março de 1973, declarou de utilidade pública, para
fins de desapropriação, uma área de terreno com 156.800 m2 na Avenida José Cândido da
Silveira, de propriedade da Fundação João Pinheiro.126 Em 1973, o decreto n. 2.408, de 5
de setembro, declarou de utilidade pública terrenos de propriedade da Imobiliária Mineira
S/A, situados no Bairro Novo Itapoã, no local denominado "Lagoa do Nado", com área
aproximada de 300.000,00 m2. O terreno conformou o Parque Municipal Fazenda Lagoa
do Nado, implantado apenas em 1994.127
O Parque das Mangabeiras, por sua vez, foi implantado em 1974, tendo sido criado
por decreto datado de 1966.128 O decreto n. 2.939, de 27 de setembro de 1976, dispôs
sobre a transformação em Reserva Biológica o Parque Municipal da Vila Betânia. O
decreto n. 3.338 de 23 de setembro de 1978, criou o Parque Municipal Ursulina de
Andrade Mello, situado no bairro Castelo e também implantado apenas na década de
1990129. Já o decreto n. 3.590 de 3 de outubro de 1979, declarou de utilidade pública, para
fins de desapropriação, terrenos no Bairro Sion, zona sul da capital. A desapropriação
destinava-se à “preservação ecológica” da área, assim como a implantação de parque de
recreação e lazer no local.
As diversas disposições legais dedicadas ao tema da criação de parques e áreas
verdes na capital na década de 1970, momento de expressivo desenvolvimento urbano,
indicam, portanto, a complexidade da análise do tema, que vai muito além de
preocupações ambientais. A arborização e conservação de áreas verdes no ambiente
citadino podem representar obstáculos para o seu desenvolvimento, bem como podem ser
apropriadas por interesses econômicos, públicos e privados, que veem nesses espaços
possibilidade de valorização imobiliária. Nesse sentido, são inúmeras as variáveis e

126
Ver também Lei n. 2.264, de 17 de dezembro de 1973.
127
Dado disponível em: http://belohorizonte.mg.gov.br/local/servico‐turistico/espaco‐para‐
evento/aberto/parque‐municipal‐fazenda‐lagoa‐do‐nado. Acesso em: 31/07/2017. Sobre o Parque Lagoa
do Nado, ver também o decreto n. 3.568 de 14 de setembro de 1979 e a Lei n. 3.842, de 21 de agosto de
1984.
128
Ver decreto n. 1.466, de 24 de outubro de 1966, e lei nº 2.403, de 30 de dezembro de 1974,
respectivamente.
129
Dado disponível em: http://www.belohorizonte.mg.gov.br/local/entretenimento‐cultura/parque‐
praca/parque‐municipal‐ursulina‐de‐andrade‐mello. Acesso em: 31/07/2017.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
141
possibilidades que se abrem à pesquisa das políticas de criação de parques, praças e
jardins na cidade.

Esboço sobre os setores responsáveis pelas áreas verdes na estrutura administrativa


municipal

As leis que regulamentam a organização administrativa da prefeitura são


importantes para entender os interesses e valores que são privilegiados em cada época da
administração municipal. Algumas disposições legais são bastante detalhadas, como a lei
que institui o sistema de classificação de cargos no serviço público da prefeitura em 1957,
que traz informações específicas sobre as funções de cada categoria, como a de chefe de
conservação de arborização, chefe de jardinagem, chefe de manutenção de parques, entre
outros.130 Outro exemplo detalhado é o decreto que aprova as competências e atribuições
da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, à qual estava vinculado o setor de parques
e jardins em 1970.131
Ao longo das pesquisas para a elaboração do Catálogo de Fontes, foi possível
traçar um esboço sobre a estrutura administrativa municipal no que tange à gerência das
áreas verdes. Um esboço, pois os dados levantados não foram confrontados com as
informações disponibilizadas oficialmente pela prefeitura de Belo Horizonte132, assim
como não foi feita uma análise exaustiva do conteúdo de cada alteração na legislação
sobre organização administrativa municipal.
Assim, a seguir listamos as alterações identificadas na estrutura administrativa que
possuem relações com a gestão de áreas verdes e arborização do município, devido à sua
importância para a elaboração de pesquisas na documentação jurídica levantada pelo
Catálogo de Fontes. Afinal,

a criação, a reestruturação ou a extinção de órgãos ou de partes deles –


departamentos, gerências, divisões, seções, serviços e outros – traz impactos
para a organização e o destino dos documentos que foram produzidos ou
acumulados pelos órgãos públicos. A criação, a adição, a supressão de

130
Lei n. 620, de 19 de junho de 1957.
131
Decreto n. 1.923, de 16 de novembro de 1970.
132
Os organogramas da “Evolução da Estrutura Administrativa da Prefeitura de Belo Horizonte” estão
disponíveis em: http://www.pbh.gov.br/evolucaodaestrutura/organogramas.htm. Acesso em:
31/07/2017.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
142
competências dos órgãos públicos, assim como a transferência de
competências de um órgão para outro - o que, muitas vezes, implica na
necessidade de transferência de documentos de um local para outro – são
situações vivenciadas na administração pública que também impactam a
política municipal de arquivos (ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE
BELO HORIZONTE, 2016, p.22).

Outro fator importante a ser observado é que nem sempre os assuntos ligados à
arborização e temas afins estão ligados apenas a um setor específico. Muitas vezes as
funções se dividem em mais de um departamento. Em 1948, por exemplo, o Horto
Municipal, que tinha como uma de suas funções o cultivo de espécies vegetais para a
arborização da cidade, estava ligado à Seção de Serviços Agronômicos, apesar de haver
uma Seção de Arborização no Departamento de Abastecimento na estrutura
administrativa municipal133. Portanto, é possível coincluir que a distribuição de funções
a cada órgão administrativo está ligada a fatores que não são objetivos, mas que possuem
relação com as concepções específicas de natureza em cada momento.
Com a instalação da Cidade de Minas (Belo Horizonte) pelo decreto nº 1.085, de
12 de dezembro de 1897, o governo da nova capital, que até então estava submetido ao
estado, foi reorganizado134. Até então, os órgãos responsáveis pelo planejamento das
áreas verdes, aos quais nos referimos no início do texto, estavam subordinados à
Comissão Construtora da Nova Capital (1894-1898), que teve sua estrutura adminitrativa
definida pelo decreto estadual nº 680, de 14 de fevereiro de 1894.135
O decreto nº 1.208, de 27 de outubro de 1898, organizou a estrutura da prefeitura
da Cidade de Minas e a manutenção e conservação das áreas verdes da cidade passaram

133
Lei n. 51, de 21 de novembro de 1948.
134
No período inicial, de acordo com dados da Prefeitura de Belo Horizonte, não havia uma estrutura
administrativa legal, apenas uma divisão de serviços e atribuições de competências aos cargos. Ver:
http://www.pbh.gov.br/evolucaodaestrutura/pbh_I_01.htm. Acesso: 31/07/2017.
135
“A Comissão Construtora da Nova Capital de Minas / CCNCM foi um órgão criado pelo governo do
Estado de Minas Gerais (Decreto Estadual nº 680, de 14 de fevereiro de 1894, complemento à Lei nº 3,
publicado pela então Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas) com
a atribuição de tomar todas as providências, consultivas e executivas, para a construção de uma cidade que
serviria de sede para a administração do Estado. Aquele decreto estabelecia as atribuições e a estrutura
administrativa da CCNCM, organizada em 06 divisões de acordo com as tarefas que lhes caberiam, e tendo
a chefia técnica e administrativa de um engenheiro-chefe. O paraense Aarão Leal de Carvalho Reis,
nomeado engenheiro-chefe, contava com total apoio do presidente Afonso Pena (...) Comissão Construtora
era diretamente subordinada à Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas . Para tarefas rotineiras
e determinadas funções ( compras de imóveis, de materiais, assinaturas de contratos etc.) a CCNCM, atuaria
como representante do Governo do Estado de Minas Gerais”. Disponível em:
http://www.acervoarquivopublico.pbh.gov.br/acervo.php?cid=474. Acesso em: 31/07/2017.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
143
à responsabilidade do “diretor de Obras, Fazenda e Viação” e do “administrador do
Parque”. É interessante observar que a administração do parque municipal é tratada à
parte de outros órgãos administradores desde a criação da Comissão Construtora.136 O
decreto n. 10, de 24 de junho de 1925, subordinou “parques, jardins e praças ajardinadas”
à Seção do Patrimônio. Em 1927, vinculou-se a Inspetoria de Matas e Jardins à Diretoria
Geral de Obras e Serviços pelo decreto n. 16, de 12 de maio.
Em 1930, a Diretoria Geral de Obras foi subdividida em três setores, entre elas a
Subdiretoria de Limpeza Pública, a qual se vinculava o setor de arborização.137 O decreto
n. 102, de 2 de março de 1931, suprimiu o cargo de inspetor de Matas e Jardins. Enquanto
o decreto n° 36, de 23 de julho de 1935, definiu as atribuições das inspetorias, entre elas
a “Inspetoria de Águas” e a “Inspetoria da Limpeza Pública”, encarregadas dos assuntos
concernentes à arborização e às áreas verdes da cidade.
Em 1947 cria-se o Departamento de Parques, Jardins, Arborização, pelo decreto-
lei n. 209, de 11 de novembro. A Lei n° 51, de 21 de novembro de 1948, dispôs sobre a
reforma dos serviços da Prefeitura, entre eles os relacionados ao “Departamento de
Abastecimento”, ao qual se vinculava a “Seção de Arborização”. Em 1951, a Seção de
Arborização foi colocada provisoriamente sob a direção da Seção dos Serviços
Agronômicos pela portaria n. 288, de 24 de março daquele ano. Ainda em 1951, cria-se
o Departamento de Parques, Jardins e Arborização (o que nos faz inferir sobre sua
extinção provavelmente no ano seguinte ao seu decreto de criação em 1947) e extingue-
se a Seção de Arborização do Departamento de Abastecimento, pela Lei n. 254, de 22 de
novembro.
O Decreto n° 1.562, de 28 de setembro de 1967, iniciou uma reforma
administrativa na prefeitura e criou a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, à qual
estavam incorporados os "Departamentos de Abastecimento", "Limpeza" e "Parques e
Jardins". O Decreto n° 1.818, de 27 de novembro de 1969, modificou a estrutura de órgãos
da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e o Departamento de Parques e Jardins foi
transformado em Departamento Zoo-Botânico, subordinado à Secretaria Municipal de
Serviços Urbanos. A portaria n. 1.822, de 1 de novembro de 1971, vinculava
provisoriamente ao prefeito o Departamento Zoo-Botânico.

136
Decreto n. 1.208, de 27 de outubro de 1898.
137
Decreto n. 86, de 5 de setembro de 1930.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
144
Em 1983, o decreto n. 4453, de 07 de abril, estabeleceu a reestruturação do
Departamento de Parques e Jardins da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos e, alguns
meses depois, em 16 de junho, a Lei nº 3.570 reformulou a estrutura administrativa da
prefeitura e criou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, cujas competências foram
estabelecidas pelo decreto n° 4534, de 12 de setembro daquele ano. O Departamento de
Parques e Jardins continuou a pertencer à estrutura administrativa, mas agora vinculado
à nova secretaria.

A Secretaria Municipal de Meio Ambiente foi criada em um período em que a


temática ambiental ganhou amplitude na sociedade Brasileira e tornou-se um tema
premente. As questões ambientais começaram a assumir destaque para parte da sociedade
a partir da década de 1970 vindo a constituir uma preocupação generalizada a partir do
final do século XX. O Catálogo de Fontes possui um marco temporal restrito ao período
de 1891-1986 e pode ser também um instrumento interessante para investigações que
tratam do início da ação dos poderes públicos na montagem de estruturas para garantir a
ação pública do estado no âmbito da ascendência de discursos ambientais na sociedade
Brasileira.

Conclusão

As políticas públicas de arborização e gestão das áreas verdes adotadas ao longo


de quase cem anos em Belo Horizonte evidenciam, portanto, que as sociedades são
constituídas em suas relações com o ambiente, ao qual conferem diferentes significados,
quer sejam simbólicos, como quando as árvores assumem um papel identitário nos
discursos sobre a cidade, quer sejam políticos e pragmáticos, como quando as árvores da
principal via pública da cidade (Avenida Afonso Pena) são cortadas, em nome do
progresso, para dar espaço aos automóveis.
Sob essa perspectiva, o ambiente não se configura apenas como um espaço, mas
também como um campo de batalhas de ideologias, políticas e culturas, já que os
discursos e propostas de gestão da cidade nunca são unânimes. As teorias e ideias sobre
a natureza constituem-se socialmente e podem servir, de diferentes maneiras e em
diferentes períodos, como instrumentos de autoridade, identidade e reflexão (ARNOLD,
2000).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
145
Em alguns momentos da história da capital de Minas Gerais, a defesa das árvores
da cidade, expressa em campanhas de arborização e distribuição de mudas à população,
foi utilizada pela administração pública como item de manobra da opinião pública, que
muitas vezes discordava das decisões políticas tomadas em relação ao verde da capital,
como nas gestões do prefeito Oswaldo Pieruccetti nas décadas de 1960 e 1970.
Nesse sentido, é necessário ressaltar que a elaboração de um discurso sobre a
natureza em Belo Horizonte, bem como o estabelecimento de determinadas disposições
legais, não corresponde, necessariamente, à aplicação das normas prescritas. No Brasil há
extensa historiografia dedicada a estudar a distância entre o que propõe a legislação e a
gestão prática das determinações legais, desde o período colonial. Nesse caso, citam-se
especificamente aqui as prescrições elaboradas pela Comissão Construtora da Nova
Capital no que concerne à arborização. O tema é constantemente citado em relatórios e
planos, o que induz à construção de uma imagem de cidade arborizada, mas que não
correspondia às representações do período inicial da história da nova capital.
Por fim, e diante das diversas políticas públicas sobre arborização e gestão das
áreas verdes de Belo Horizonte apresentadas no Catálogo de Fontes, conclui-se que cada
época e cada cultura elabora uma ideia sobre a natureza, bem como estabelece relações
diferentes com o mundo natural. O conceito de natureza não é, pois, “natural” e não pode
ser considerado sob uma perspectiva única e universal. Às vezes é considerado sob a
perspectiva simbólica, assumindo significados sublimes e identitários, e em outras é
percebido em sua conotação pragmática, como insumo para o desenvolvimento
econômico e cultural. A ideia de natureza é, pois, instituída pelas sociedades, sendo um
dos pilares sobre os quais se erguem as relações sociais, a produção material e espiritual
humana (GONÇALVES, 2001, p. 23).

Referências
AGUIAR, Tito Flávio Rodrigues de. Vastos subúrbios da nova capital: formação de
espaços urbanos na primeira periferia de Belo Horizonte. Tese (Doutorado em História).
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais,
2006.
ARNOLD, David. La naturaleza como problema histórico: el médio, la cultura y la
expansión de Europa. Traduccíon de Roberto Elier. México: Fondo de Cultura
Económica, 2000.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
146
ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Catálogo de fontes:
arborização na Legislação Municipal de Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura;
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v.1, 2017.
ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Guia do Acervo do
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Fundação Municipal de
Cultura; Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, 2016.
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais.
Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 1995.
CAMPOS, Gonzaga de. (org.). “Mappa florestal do Brasil”, Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio, Rio de Janeiro, 2a ed., 1926. In: ENCINAS, José Imaña (Org.).
Relíquias bibliográficas florestais. Brasília: Universidade de Brasília, Departamento de
Engenharia Florestal, 2000.
CAPANEMA, Carolina Marotta. A natureza política das Minas: mineração, sociedade
e ambiente no século XVIII. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2013.
CAPANEMA, Carolina Marotta. A natureza no projeto de construção de um Brasil
Moderno e a obra de Alberto José de Sampaio. Dissertação (Mestrado em História).
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo
Horizonte, 2006.
CCNC. COMMISSÃO CONSTRUCTORA DA NOVA CAPITAL. Revista Geral dos
Trabalhos. Rio de Janeiro: H. Lombaerts & C., abril de 1895a.
CCNC. COMMISSÃO CONSTRUCTORA DA NOVA CAPITAL. Revista Geral dos
Trabalhos. Rio de Janeiro: H. Lombaerts & C., agosto de 1895b.
CCNC. COMMISSÃO CONSTRUCTORA DA NOVA CAPITAL. Exposição
apresentada ao Exm. Sr. Dr. Chrispim Jacques Bias Fortes, presidente do Estado pelo
engenheiro civil Aarão Reis ao deixar o cargo de Engenheiro-Chefe, em 22 de maio de
1895. Rio de Janeiro: H. Lombaerts & C., 1895c.
COLEÇÃO DAS LEIS DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS BRASIL, de 1918,
vol.2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1919.
DIEGUES, Antônio Carlos S. O mito moderno da natureza intocada. 6ª ed. ampliada.
São Paulo: Hucitec: Nupaub-USP/CEC, 2008.
DOM. Diário Oficial do Município. Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do
Município, Deliberação Nº24[06]/96, 12/04/1996.
DRUMMOND, José Augusto. "A Legislação Ambiental Brasileira de 1934 a 1988:
comentários de um cientista ambiental simpático ao conservacionismo”. Ambiente &
Sociedade, ano II, n. 3 e 4, 1998/1999.
DUARTE, Regina Horta. “À sombra dos fícus: cidade e natureza em Belo Horizonte”.
Ambiente & Sociedade. Campinas, v. X, n. 2, jul.-dez. 2007.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
147
DUARTE, Regina Horta; OSTOS, Natascha Stefania Carvalho. “Entre ipês e eucaliptos”.
Nómadas, n.22, abril, 2005.
FERREIRA, Adjalme Dias. Efeitos positivos gerados pelos parques urbanos: o caso do
passeio público da cidade do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Ciência
Ambiental). Instituto de Geociências, Universidade Federal Fluminense, s.d.
FILHO, Virgilio Corrêa. “Vultos da Geografia do Brasil: Álvaro Astolfo da Silveira”.
Revista Brasileira de Geografia, ano IX, n.2, abril-junho de 1947.
GOMES, Marcos Antônio Silvestre. “Parques urbanos, políticas públicas e
sustentabilidade”. Mercator, Fortaleza, v. 13, n. 2, mai/ago. 2014.
GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 8.ed. São
Paulo: Contexto, 2001.
GUIMARÃES, Cyleno Reis. Evolução e Índice de Proteção das Áreas Vegetadas de Belo
Horizonte. Monografia (Especialização em Geoprocessamento). Instituto de Geociências,
Universidade Federal de Minas Gerais, 2010.
IBGE. Belo Horizonte. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/minasgerais/belohorizonte.pdf. Acesso
em: 21/07/2017.
MARTINS, Marcos Lobato. “A política florestal, os negócios de lenha e o desmatamento:
Minas Gerais, 1890-1950”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH,
São Paulo, julho 2011.
MESQUITA, Yuri Mello. Jardim de asfalto: água, meio ambiente, canalização e as
políticas públicas de saneamento básico em Belo Horizonte, 1948-1973. Dissertação
(Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Minas Gerais, 2013.
MIRANDA, Thiago Henrique Costa. “A trajetória e o tratamento destinado aos negativos
35mm do acervo ASCOM”. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da
Cidade de Belo Horizonte, número 2, fevereiro de 2015.
OLIVER, Graciela de Souza. “Memórias sobre a arborização de Belo Horizonte”.
Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 12, n. 2/n. 3, 2008.
OLIVEIRA, Carlos Alberto. “Tensões no espaço público”. REAPCBH – Revista
Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, número 1, maio de 2014.
PREFEITURA MUNCIPAL DE BELO HORIZONTE. PRODABEL. BHMap. Parques
Municipais, s.d. Disponível em:
http://bhmap.pbh.gov.br/BHMap/mapa/#zoom=3&lat=7796893.0925&lon=609250.907
5&layers=B0FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFF. Acesso em: 01/08/2017.
PREFEITURA MUNCIPAL DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado aos
membros do Conselho Deliberativo da capital pelo prefeito Dr. Olyntho Deodato dos
Reis Meirelles, setembro de 1912. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas
Gerais, 1912.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
148
PREFEITURA MUNCIPAL DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado aos
membros do Conselho Deliberativo da capital pelo prefeito Dr. Cornelio Vaz de Mello,
setembro de 1917. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas Gerais, 1917.
PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Cultura.
Processo de Tombamento de Árvores na Malha Urbana, nº0100545296-00, s.d.
RONCAGLIO, Cynthia. O emblema do patrimônio natural no Brasil: a natureza como
artefato cultural. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento). Universidade
Federal do Paraná. Curitiba, 2007.
SCIFONI, Simone. “Os diferentes significados do patrimônio natural”. Diálogos,
DHI/PPH/UEM, v.10, n.3, 2006.
SILVEIRA, Álvaro Astolfo da. A Arborização de Bello Horizonte. Bello Horizonte:
Imprensa Official, 1914.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Plano Metropolitano RMBH.
Macrozoneamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte. 2014. Disponível em:
http://www.rmbh.org.br/central-cartog.php. Acesso em: 01/08/2017.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
149
AVENIDA AFONSO PENA – BELO HORIZONTE/MG: ANÁLISE DE SUAS
TRÊS ESPACIALIDADES (BAIXA, MÉDIA E ALTA)

AFONSO PENA AVENUE – BELO HORIZONTE/MG: ANALYSIS OF ITS


THREE SPATIALITIES (LOW, MID AND HIGH)

Fernando Henrique da Silva Roque*


Jackson Junio Paulino de Morais
Lana Marx de Souza
Regina Gonçalves Bastos
Winnie Parreira Patrocínio

Resumo

Construção, destruição e reconstrução, fenômenos que passam despercebidos. Desde sua


construção, Belo Horizonte é tomada como uma pretensa cidade moderna, por isso várias
modificações podem ser percebidas ao longo da historicidade da cidade, nos vetores de
crescimento, nas ruas, nos bairros e nas avenidas. Tomando como estudo de caso a
Avenida Afonso Pena, fundada em março 1897, construída para se tornar o principal eixo
norte-sul do centro de BH é uma das avenidas mais antigas e importantes da capital. Tem-
se como objetivo analisar a produção do espaço de Belo Horizonte ao longo da Avenida
Afonso Pena. Esta pesquisa procura mostrar a relevância dessa avenida na grande Belo
Horizonte, e como ela se fragmenta e se diferencia com seus usos e fluxos ao longo da
mesma. Para evidenciar melhor essa fragmentação decidiu-se fazer um recorte espacial
da Avenida em “Baixa, Média e Alta Afonso Pena”.

Palavras-chave: Cidade; Belo Horizonte; Avenida Afonso Pena.

*
Graduando do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Bolsista do PIBID pela CAPES
fernando.h.roque@hotmail.com

Graduando do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Bolsista do PIBID pela CAPES e monitor do
Laboratório de Práticas de Ensino e Pesquisa pela PUC-MG. jacksmorais@hotmail.com

Graduanda do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Estagiária do Centro de referência a Juventude de
Belo Horizonte/MG. lanamarx4@gmail.com

Graduanda do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Estagiária em Geoprocessamento e Meio ambiente
na Azurit Engenharia LTDA. reginab127@hotmail.com

Graduanda do 8º período em Geografia pela PUC-MG. Estagiária da PUC-MG no setor de Patrimônio,
Limpeza e Conservação. winnieparreira@gmail.com
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
150
Abstract

Construction, destruction and reconstruction, phenomena that go unnoticed. Since its


construction, Belo Horizonte is considered a modern city, so various modifications can
be seen throughout the city’s historicity, growth vectors, streets, neighborhoods and
avenues. Taking as a case study Afonso Pena Avenue, founded in March 1897, built to
become the main north-south axis of downtown BH is one of the oldest and most
important avenue of the capital. This paper’s objective is to analyze the production of the
space of Belo Horizonte along Afonso Pena Avenue. This research seeks to show the
relevance of this avenue in Belo Horizonte, and how it fragments and differs with its uses
and flows along the avenue. To better illustrate this fragmentation, we decided to make a
spatial cut of the Avenue in Low, Mid and High Afonso Pena.

Key-Words: City; Belo Horizonte; Afonso Pena Avenue.

Breve contexto histórico

Belo Horizonte surgiu em um contexto histórico diferente de outras capitais


Brasileiras. O final do ciclo do ouro no século XVIII deu lugar à expansão da pecuária e
da agricultura e agregou uma nova identidade para o Estado de Minas Gerais. Já no fim
do século XIX, o ciclo do ouro trouxe grande desenvolvimento econômico a nível
mundial e regional, fazendo surgir a necessidade de expansão urbana. Naquela época, a
cidade de Ouro Preto, devido à sua localização montanhosa, apresentava dificuldades
para viabilizar a expansão urbana, fazendo surgir a necessidade de uma nova capital, mais
condizente com os ideais reformistas e desenvolvimentistas da época vivida pelo Estado.
Barreto (1996).
Definiu-se, em dezembro de 1893, que a região do Curral Del’ Rei, habitada desde
o século XVIII, era o local mais adequado para se construir a capital do Estado de Minas
Gerais. Nessa mesma data, o então Presidente de Minas Gerais, Afonso Pena, promulgou
a lei que designava o Arraial de Belo Horizonte para ser a capital do Estado, sendo que a
capital, então denominada “Cidade de Minas”, foi inaugurada pelo presidente Bias Forte,
no dia 12 de dezembro de 1897.
Segundo Barreto (1996), a capital de Minas Gerais foi a primeira cidade planejada
do país e construída a partir das ideias modernas do engenheiro paraense Aarão Reis. No
projeto urbanístico da nova capital, Aarão Reis concebeu os setores urbano e suburbano,
separados pela Avenida do Contorno. O plano da nova capital, elaborado por uma equipe
de profissionais, previa uma cidade dividida em três áreas: uma área central, denominada

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
151
urbana; em torno desta uma área suburbana e uma terceira área, nominada rural. O nome
“Cidade de Minas” foi mudado para Belo Horizonte. A nova capital cresceu tanto que
extrapolou os limites da Avenida do Contorno.

Figura 1 - Mapa do projeto da cidade de Belo Horizonte - MG

Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte

Segundo Borsagli e Medeiros (2013), a Avenida Afonso Pena foi uma das que
mais se destacou ao longo das primeiras décadas do Século XX. Ela é considerada, por
muitos, a mais importante de Belo Horizonte, não só por ser a via mais arborizada, mas
também por ser definida como um dos principais pontos de encontros. Considerada eixo
monumental da cidade, pois além de sua morfologia urbana revelou por meio de suas
edificações a monumentalidade arquitetônica da época. Tinha como principais
características: ser o principal eixo de ligação de pontos distintos na cidade, logo sendo
passagem obrigatória para o deslocamento; um dos principais locais de verticalização e
congestão urbana no centro; direcionar o crescimento urbano do centro à periferia.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
152
Estende-se hoje por 4,3 km no sentido norte-sul. Quase em linha reta, percorre os bairros
Centro, Funcionários, Serra e Mangabeiras.
A Avenida, quando criada, havia sido aberta desde o antigo mercado (atual
rodoviária) até o atual cruzamento com a Av. Brasil. A partir disso, ela era em um
caminho de terra até o Cruzeiro, que era o ponto onde a avenida se finalizava de acordo
com a planta de 1895 (figura 1). Nas primeiras décadas do Século XX, a Avenida Afonso
Pena e a Rua da Bahia tornaram-se os principais espaços de articulação urbana de Belo
Horizonte. Era nessa avenida e nessa rua que se davam o maior fluxo de pessoas e de
veículos diariamente, segundo Borsagli e Medeiros (2013).
O Estado interventor permitiu a continuação da urbanização dentro da zona
compreendida dentro da Avenida do Contorno próximo à Serra do Curral. A partir disso
foram necessárias a regularização e a finalização da Avenida Afonso Pena e seu entorno.
Após a retomada dos investimentos, tornou-se possível a finalização da Avenida Afonso
Pena no trecho aberto entre a Praça 21 de Abril (Praça Tiradentes) e a Praça do Cruzeiro
(Praça Milton Campos). Esta parte da avenida se caracterizava pela predominância de
casas residenciais. Muitas delas já existiam mesmo estando a Avenida ainda inacabada
até 1927. A região abaixo da Praça Tiradentes continuava apresentando uma função
mista, com predominância de casas comerciais, terrenos e edifícios institucionais,
concentrados na sua maioria nas proximidades do Parque Municipal.
Em 1924 foi inaugurada a Praça Quatorze de Outubro, no cruzamento das
Avenidas Afonso Pena e Amazonas, logo após foi denominada como Praça Sete de
Setembro marcando o hipercentro de Belo Horizonte nas décadas seguintes, deslocando
o espaço de articulação urbana do cruzamento da Rua da Bahia e Afonso Pena para o
cruzamento da Avenida Amazonas.
Segundo Borsagli e Medeiros (2013), até a década de 1940 ainda existiam muitos
sobrados de dois pavimentos, destinados ao uso comercial e residencial. Ainda na década
de1940 a Prefeitura lançou o regulamento de construções que permitiu o aumento da
densidade da área central, incentivando a verticalização.
Ainda segundo Borsagli e Medeiros (2013), a avenida Afonso Pena conservou-se
na década seguinte de acordo com o projeto original, o prolongamento de 1940
permaneceu até a década de 1960 como uma larga estrada de terra próxima ao Parque
Amilcar Vianna Martins (Caixa D'água), em direção à Serra do Curral. A avenida e suas
árvores haviam sobrevivido praticamente intactas às transformações ocorridas no seu
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
153
entorno durante a primeira metade do século XX. A arborização da Afonso Pena era
marca registrada da capital mineira, mas as árvores não sobreviveram ao intenso processo
de urbanização e impermeabilização do solo urbano que acontecia na capital desde a
década de 1950, responsável pelas mudanças na paisagem urbana que também
sepultariam os principais cursos d’água da capital, em prol da mobilidade urbana, uma
política vigente até os dias atuais.
No final de 1962 foi retirado da Praça Sete o monumento comemorativo do
centenário da Independência, o famoso “Pirulito”, sob alegação que obstruía o já caótico
trânsito das Avenidas Amazonas e Afonso Pena, local que havia se tornado o “epicentro”
da capital mineira. De acordo com Silva e Ziviani (2016), as reformas feitas na Praça
Sete, podem ter relações diretas com a intenção de reprimir as manifestações públicas que
ocorrem no local desde as primeiras décadas de existência de Belo Horizonte. Como pode
ser observado na figura 2.

Figura 2 - Praça Sete na década de 1960.

Fonte: Borsagli, 2012

As profundas transformações da paisagem urbana ocorridas nas décadas de 1960


e 1970 viriam a descaracterizar a Afonso Pena, antes vista como um dos mais importantes
cartões postais de Belo Horizonte, ponto de encontro da população, da construção de uma

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
154
sociabilidade e de manifestações populares e de resistência. Ela havia se tornado, com a
evolução urbana, uma via rápida, onde reinavam a pressa e o não relacionamento.
Em meio à metropolização e congestão urbana da região central, a malha urbana
começa a se expandir para as partes de topografia mais altas da Avenida, próximas à Serra
do Curral. Nessa expansão a Avenida Afonso Pena teria um papel central, por permitir
uma melhor mobilidade entre o centro e a região sul, ao dar continuidade à via, como
proposto em 1940 na gestão JK. Em 1966 foi criado o parque das Mangabeiras.
Desde a finalização da Afonso Pena na década de 70 ela continua exercendo o
papel de principal eixo articulador da zona urbana inserida dentro da Avenida do
Contorno. Com pouco mais de quatro quilômetros de extensão a avenida continua sendo
a artéria responsável pelo recebimento dos fluxos viários de grande parte das zonas sul e
oeste da capital e abriga ainda a Estação Rodoviária, a Praça Sete, principal marco
simbólico da capital e a sede da Prefeitura.
A avenida Afonso Pena continua exercendo a função de artéria principal da cidade
planejada, responsável pela ligação direta entre a parte mais baixa da capital às partes
mais altas, atravessando toda zona planejada e canalizando os fluxos provenientes dela,
tanto populacional quanto viário. Sem dúvidas, uma avenida que apresenta grandes
contrastes e diversidades ao longo do seu trajeto.
Para que se possa analisar a espacialidade da Avenida Afonso Pena decidiu-se por
regionalizá-la em três recortes espaciais, como pode ser observado no Mapa 1, que serão
apresentados e analisados a seguir. Considerada a sua importância para a capital mineira,
a Avenida Afonso Pena recebe fluxos diários intensos, que revelam sua grande
capacidade de mobilidade e utilidade para os que a frequentam. E, assim como Belo
Horizonte é a capital promulgada como a moderna, através da avenida Afonso Pena, é
possível analisar as implicações do moderno através das diferentes temporalidades
encontradas nos fluxos que a avenida recebe ao longo de sua extensão.
Foram definidos três recortes espaciais para o eixo de análise, pelas suas
peculiaridades tão presentes e reveladas através dos fixos e fluxos. A “Baixa Afonso”
Pena se caracteriza como uma região com intenso fluxo devido às suas apropriações de
uso; a “Média Afonso Pena” é apresentada como uma região de transição entre a “Baixa
Afonso Pena” e a “Alta Afonso Pena”, que revela grandes disparidades de uso, ao
reconhecê-la como oposta ao percebido na “Baixa Afonso Pena”.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
155
Ao longo de sua caracterização, será perceptível a influência da paisagem como a
indicadora de diferentes usos e apropriações ao longo da avenida, assim como a
disparidade da modernidade, como ela é e representa Belo Horizonte.

Mapa 1 – Espacialidades da Av. Afonso Pena BH/MG

Regionalização da Avenida Afonso Pena

“Baixa Afonso Pena”

A Avenida Afonso Pena é uma via responsável pela maior parte do deslocamento
do fluxo viário e populacional proveniente de diversas regiões da capital mineira. A
região que denominada “Baixa Afonso Pena”, segundo o Mapa 1, inicia-se na Rodoviária,
e estende-se até o Othon Palace Hotel, que se localiza na própria avenida no número 1050.
Essa primeira região foi, desde sua origem, uma das mais movimentadas e dinâmicas da
capital. O fluxo de pessoas e a presença de um comércio significativo tiveram início ainda
no final do século XIX.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
156
Segundo Silva (1991), A Estação Rodoviária central era utilizada como ponto de
acesso às grandes casas comerciais e prédios públicos. Com isso as pessoas utilizavam a
Rua da Bahia que, juntamente da Avenida Afonso Pena, consolidaram-se como principais
espaços de articulação urbana de BH. Nessas vias se concentravam o maior fluxo de
pessoas e de veículos da capital. Nesta mesma esquina, da Avenida Afonso Pena com
Rua da Bahia, se consolidou a primeira centralidade da capital. Soma-se a isso a
existência de um ponto final dos bondes, que incentivou e dinamizou essa espacialidade.
Construída no início da Avenida Afonso Pena, a Feira Permanente de Amostras
teve sua inauguração em 1935 e chamou atenção da população por ser até então o prédio
mais alto de BH. Da sua torre era possível ver toda a cidade, como pode ser observado na
figura 3. É importante mencionar que essa edificação foi construída no local do antigo
mercado municipal. O prédio da Feira Permanente de Amostras (Figura 3) foi demolido
para a consolidação de uma nova concepção moderna, a das edificações verticais. Com a
implantação deste prédio na Afonso Pena houve aumento do fluxo de pessoas e veículos,
pois o prédio era utilizado tanto para atender o comércio e os agricultores quanto para as
indústrias de Minas.

Figura 3 - Prédio da Feira Permanente de Amostras (Início do séc. XX)

Fonte: Werneck, 2012.

Em 1965 o prédio foi demolido para a construção do, até então, primeiro terminal
rodoviário do Brasil, inaugurado em 1971. Com isso a Afonso Pena se consolida como
Avenida de grande fluxo da capital. O grande comércio se localiza na parte "mais baixa"

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
157
por conta da facilidade de localização e por estar na parte central da Capital, este mesmo
local que se transforma à noite com a diminuição do comércio e fluxo de pessoas, cedendo
espaço para outro tipo utilização, como, por exemplo, o da prostituição.
Definida a “baixa Afonso Pena”, essa região é considerada como uma das partes
mais antigas do centro de BH, caracterizada pela presença dos primeiros prédios da
capital, as primeiras moradias de baixo custo e também as primeiras lojas de comércio,
trazendo para a região um caráter mais urbano e popular, pois é considerada a área da
avenida apropriada pelas classes sociais de menor poder aquisitivo.
Na “baixa Afonso Pena” o fluxo intenso de pessoas, os shoppings populares, o
comércio intenso de vários tipos de produtos, as zonas de prostituição, os moradores de
ruas que são elementos comuns da paisagem, que ali se aglomeram em cantos, debaixo
de marquises se apropriando do espaço, tomando aquilo como seu território, caracterizam
essa espacialidade da Avenida.
Da rodoviária até a Praça Sete, nota-se uma parte muito dinâmica, seja por sua
grande influência comercial ou por sua importância nas questões administrativas da
capital, devido à presença de alguns edifícios públicos. Toda essa diversidade de
elementos fixados ali constrói uma baixa Afonso Pena de fluxos, de transições rápidas,
uma parte heterogênea. Subindo a Avenida em direção à Serra do Curral, há diversos
cruzamentos com ruas significativas da capital, vários edifícios e lojas, dentre os quais
destaca-se o edifício Ibaté, o primeiro arranha-céu de BH, cujo nome significa “o ponto
mais alto” em tupi-guarani, (localizado na esquina da Rua São Paulo com Avenida
Afonso Pena, para fim exclusivamente comercial).
Próximo à Praça Sete (Figura 4), no encontro das avenidas Amazonas, Rio de
Janeiro e Carijós, localiza-se o ponto do clímax do movimento da capital, talvez o ícone
mais apropriado para se lembrar do novo centro da metrópole em processo de
modernização. O obelisco tornou-se um dos marcos mais representativos do centro da
cidade. No seu entorno é possível identificar ainda os prédios do Cine Teatro Brasil
(1932), o Banco da Lavoura (1946) e o prédio do Banco Mineiro da Produção (1953), o
edifício onde funciona o Posto de Serviço Integrado Urbano (PSIU) desde 1998, que foi
construído no final do século XIX e abrigou a sede do Banco Hipotecário e Agrícola do
Estado de Minas Gerais (Tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e
Artístico de Minas Gerais (IEPHA), o imóvel totalmente reformado em 2009). Grupos

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
158
religiosos, culturais, sociais e políticos ali se manifestam de maneira muito regular e
ganham foco com esses protestos, devido ao fluxo ali existente.

Figura 4 - Avenida Afonso Pena com o Obelisco (popularmente conhecido como


Pirulito da Praça Sete)

Fonte: Morais, 2014.

Com 120 metros e 30 andares, inaugurado em 1934, o edifício Acaiaca abrigou


inúmeros tipos de estabelecimentos, já abrigou cinema, lojas de roupas femininas, boate,
escola e teve importância na vida política, como pelo grupo conhecido como os Novos
Inconfidentes, grupo empresarial que se reunia para planejar um golpe de estado. Além
disso, a sede mineira do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a
faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também
funcionaram neste prédio, o que o tornou um polo de cultura.
No final da “baixa Afonso Pena”, localiza-se o cruzamento da avenida com a Rua
da Bahia e em sua esquina o elemento que, pode ser considerado o mais contraditório, o
Belo Horizonte Othon Palace, observado na figura 5. O hotel, construído na década de
1970, marca de uma controvérsia, em contraste com a “baixa Afonso Pena” é a região
mais popular enquanto esse hotel apresenta um conceito elitizado para o local, sendo um
dos hotéis de maior importância em BH.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
159
Figura 5 - Belo Horizonte Othon Palace Hotel

Fonte: Vanessa, 2014.

Assim, a parte mais antiga da Avenida é evidenciada pela existência de prédios


antigos, os primeiros da capital a testemunhar o começo do processo da verticalização, a
intensificação do comércio, o enorme fluxo de pessoas, as manifestações e a
demonstração da metropolização, ocorrida em um tempo curto na capital de Minas
Gerais.

“Média Afonso Pena”

A fim de se realizar a análise da produção do espaço da Afonso Pena, considerou-


se como “Média Afonso Pena” a região da avenida que começa no quarteirão do Palácio
das Artes e se estende até a Praça Milton Campos. Nesse recorte da paisagem, nota-se
aspectos relacionados à produção de sentido de monumentalidade na Avenida.
Nesse sentido, no que tange a perspectiva da construção do lugar enquanto
categoria geográfica possível de ser trabalhada no campo epistemológico, a
monumentalidade nem sempre é associada a uma possibilidade dessa construção, uma
vez que, segundo Carlos (1996), “é através de seu corpo de seus sentidos que ele [o
homem] constrói e se apropria do espaço e do mundo. O lugar é a porção do espaço

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
160
apropriável para a vida – apropriada através do corpo – dos sentidos – dos passos de seus
moradores.”.
Nesse quarteirão, nota-se a transição de uma “baixa Afonso Pena” para uma “alta
Afonso Pena”. Nesse “recorte” da Avenida destacam-se equipamentos públicos
municipal, estadual e federal, como o prédio da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,
o Parque Municipal, Teatro Francisco Nunes, Palácio da Justiça, o Conservatório da
Universidade Federal de Minas Gerais e o Palácio das Artes.
Estando localizada no centro de Belo Horizonte e, como mencionado
anteriormente, por ser dotada de monumentalidade, a avenida é uma referência espacial
para trabalhadores e transeuntes que perpassam a região diariamente. Por esse motivo, é
possível notar que a região funciona como catalisadora de fluxo de pessoas de diferentes
lugares, a exemplo dos cidadãos da metrópole interessados em acessar os equipamentos
ali localizados a turistas que param com o intuito do registro fotográfico da estátua de
Tiradentes ou da arquitetura arrojada do Palácio das Artes (figura 6). O Parque Municipal
assume papel de destaque entre os frequentadores com o intuito de permanência e/ou lazer
na avenida, caracterizando-se enquanto um espaço do encontro. Nesse sentido, torna-se
importante ressaltar a característica paisagística do parque, que conta com espécies
nativas e exóticas (principalmente de origem europeia) que, além de conferir conforto
visual, serve como uma amenidade do microclima.

Figura 6 - Palácio das Artes

Fonte: Morais, 2014.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
161
O Parque Municipal foi planejado (figura 7) para ocupar uma região muito mais
extensa que hoje ocupa (GÓIS, 2003). Porém, com o intuito de criar novos espaços para
maximizar o uso do solo urbano, a fim de se impulsionar o desenvolvimento da capital,
uma parte significativa do parque foi cedida para outros fins.

Figura 7- Parque Municipal de Belo Horizonte (1926)

Fonte: Paulo, 2008.

Percebe-se nesse trecho da avenida um caráter de transição. Pois, ao contrário do


que foi observado na “Baixo Afonso Pena” (que era dotada de um caráter popular e de
intenso fluxo de pessoas, principalmente por efeito da Rodoviária), o padrão de uso vai,
aos poucos, assimilando as características da “Alta Afonso Pena” (que será trabalhada no
tópico seguinte), com funções mais especializadas e voltadas para atender as classes mais
abastadas. A elevação desses padrões de serviços e consumo torna-se evidente de acordo
com a variação da altimetria da avenida, tornando-se muito expressivo nos arredores do
bairro Mangabeiras, cujo metro quadrado é um dos mais caros de Belo Horizonte.
O comercio popular é cada vez mais escasso nessa região. A falta de equipamentos
voltados para atender as classes menos privilegiadas é bastante notável nesse trecho.
Percebe-se também que as atividades comerciais vão aos poucos cedendo lugar para
edifícios com outros fins. A Praça Tiradentes é outro marco importante da Avenida
(apesar de que a praça também está restrita a um caráter de monumentalidade, uma vez
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
162
que pouco se percebe a permanência de pessoas por ali) evidenciando o saudosismo da
Inconfidência Mineira enquanto um indicativo de identidade da nova capital – que desde
a concepção pretendeu-se romper com o “arcaico” do período colonial – além da Praça
Milton Campos que carrega o nome de um Estadista mineiro.

Figura 8 - Praça Milton Campos

Fonte: Cardoso, 2014.

Torna-se perceptível ao olhar que o fluxo de pessoas é diminuído de acordo com


a variação da hipsometria do local, quanto mais próximo a Praça da Bandeira, menor a
presença de transeuntes. No “sentido Serra do Curral”, percebe-se outros usos da Avenida
e dos equipamentos no entorno, evidenciando estruturas diferentes que visam atender as
demandas de grupos pertencentes a camadas sociais mais abastadas.
Desta forma, as análises e as comparações realizadas durante o percurso da
avenida evidenciam grandes diferenças nas características espaciais. O grande fluxo de
trabalhadores e transeuntes não chega com a mesma intensidade ao “alto da avenida”,
pela própria característica do planejamento e do direcionamento do uso para as classes
médias, como mencionado anteriormente. Porntato, é interessante notar como a alteração
da paisagem ( e dos equipamentos ) ditam os fluxos, evidenciando que o que foi recortado
enquanto “Média Afonso Pena” trata-se de uma espacialidade transitória.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
163
“Alta Afonso Pena”
O que denominamos de “alta Afonso Pena” compreende o trecho que vai do
cruzamento da Avenida Afonso Pena com a avenida do Contorno, nos bairros
Cruzeiro/Serra, até a Praça da Bandeira no bairro Mangabeiras, portanto a parte da
avenida fora da região central de Belo Horizonte. O trecho é localizado numa região nobre
de Belo Horizonte e contém características distintas (residencial e empresarial) e
semelhantes (turística) de outras regiões da avenida.
Pontos principais da “alta Afonso Pena”: Praça Milton Campos - Praça localizada
no cruzamento da avenida Afonso Pena com a avenida do Contorno. Conta com a estátua
de Milton Campos no centro, além da Fundação Mineira de Educação e Cultura
(FUMEC), a Associação Hispano-Brasileira Instituto Cervantes e o Cartório 6º Ofício de
Notas João Teodoro da Silva. No decorrer da Alta Afonso Pena, há, predominantemente,
construções verticais modernas que evidenciam uma nova tendência arquitetônica das
grandes metrópoles mundiais. Prédios com fachadas de vidro contrastam com as antigas
construções de meados do século passado (localizadas principalmente na Baixa e Média
Afonso Pena). Essas mudanças aparecem como uma forte concepção arquitetônica da
modernidade. Belo Horizonte, que desde sua origem procurou se afirmar como moderna,
se mostra adepta a esse tipo de construção.
Um marco localizado nesta parte da Avenida é a Praça da Bandeira. Localizada no
final da Avenida Afonso Pena, início da avenida Agulhas Negras e cortada pela avenida
Bandeirantes, próxima à serra do Curral; a praça é conhecida por ter hasteada no centro a
Bandeira Nacional, trocada de ano em ano pelo desfile do dia 7 de Setembro.
É possível notar, mais ao sul da Avenida, uma pequena comunidade, que contrasta
com o elitismo e imponência da Alta Afonso Pena. A Vila Santa Isabel, visualizada na
figura 9, com suas residências típicas de classe baixa, é remanescente de uma favela
maior, a Pindura Saia. Segundo Melo (2012), a vila surgiu no início do século passado.
Por incrível que pareça, os conflitos de classes e as ações higienizadoras das elites que ali
moram, não são muito frequentes. São atenuados por uma necessidade de mão de obra,
oferecida por parte dos moradores da Vila, e pelo discurso da “diversidade urbana”.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
164
Figura 9 – Comunidade Vila Isabel

Fonte: Diniz, 2014

Em direção à Serra do Curral, no sentido sul da Avenida, chegando à Praça da


Bandeira, é possível notar mansões horizontais luxuosas (que contrastam com outras
habitações da Avenida, por sua horizontalidade e altos valores dos terrenos), habitadas
por pessoas de classes altas que não consideravam mais interessante viver no centro
urbano da cidade, impondo certa soberania, que é dotada de amenidades, pelos aspectos
naturais da área como a Serra do Curral e geomorfologia do local. Encontram-se na área
mais alta da Avenida as camadas mais elevadas da sociedade. A Praça da Bandeira (figura
10) marca o fim da Avenida Afonso Pena ao sul. Dali é possível ver os prédios luxuosos
e as mansões de alto padrão do Bairro Mangabeiras.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
165
Figura 10 – Praça da Bandeira

Fonte: Borsagli, 2012

Considerações finais

Belo Horizonte, uma cidade de dimensão considerável, expressa sua sociedade


dentro de uma linha reta de 4 km, chamada Avenida Afonso Pena, de uma maneira que,
em nenhuma outra localidade percebe-se tão nitidamente tanta diversidade, cultura,
contradição e temporalidade com um toque tão monumental na grande metrópole mineira,
a Avenida tem por "sobrenome" Modernidade. Cortando a área central da capital, uma
das Avenidas mais antigas de BH integrando os bairros Centro, Boa Viagem,
Funcionários, Savassi, Serra e Cruzeiro; que desde a sua fundação passou por várias
transformações em seus aspectos seja arquitetônico, social, cultural e econômico, se
reproduz de forma rápida pela e para a sociedade, se tornando como a via artérial da
região central de BH com grande importância que teve no passado e mais ainda na
atualidade.
Ao caminhar pela extensão da Avenida, percebe-se que os espaços se diferenciam
entre si: a “Baixa Afonso Pena”, que se destaca pelo intenso fluxo de automóveis e
pessoas, com um comércio eloquente e popular, abrigando um dos mais importantes
equipamentos da capital, sendo a rodoviária ou a Praça Sete, espacialidades contínuas de
manifestações populares onde se cruzam religiões, ideais, classes e etnias, coisa típica de
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
166
cidade grande. Na parte “Média da Avenida” temos importantes equipamentos como o
Parque Municipal, Palácio das Artes, Prefeitura e importantes edifícios. Esse recorte
assume um caráter transitório entre a “Baixa e Média Afonso Pena”, sendo a
representação do recorte nos aspectos turístico e arquitetônico, variando entre prédios
antigos como o Palácio da Justiça até a tendenciosa esquina dos espelhos na Praça
Tiradentes.
Quanto mais se acentua a declividade da Avenida, mais se eleva o padrão de vida
e mais se reduz os fluxos, o requinte borda a chamada “Alta Afonso Pena”, onde se
encontra os serviços de padrão sofisticado da Avenida, que reconfigura-se em uma mescla
de residências e empresas. Nesse "degradé" de realidades, se debruça esse trabalho, que
evidencia as diferenças encontradas em uma mesma localidade, e expõe a riqueza de
culturas e contrastes existentes numa mesma Avenida, a moderna Afonso Pena.

Referências

ARREGUY, Cintia Aparecida Chagas; RIBEIRO, Raphael Rajão. Histórias de bairros


de Belo Horizonte: Regional Centro-Sul. Belo Horizonte: APCBH/ACAP-BH, 2008(a).

BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva. Belo Horizonte:


Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996.

BELO HORIZONTE, Plambel. O processo de formação de Belo Horizonte 1897-1970.


Belo Horizonte: Plambel, 1979.

BLOG CURRAL DEL REY. A Avenida Afonso Pena. Disponível em:


<http://curraldelrei.blogspot.com.br/>. Acesso em nov. 2014.

BORSAGLI, ALESSADRO; MEDEIROS, FERNANDA. G. L. O Racionalismo como


Progresso: A Avenida Afonso Pena e sua Influência no Crescimento Urbano de Belo
Horizonte. UERJ, Rio de Janeiro, 2013. 19p.

BRITO, Fausto; SOUZA, Joseane. Expansão Urbana nas Grandes Metrópoles. São
Paulo em Perspectiva, 2005. 63 p.
CARLOS, Afa. O lugar no/do mundo. São Paulo, Editora Hucitec. 1996

CARLOS, Ana. F. A. O Espaço Urbano: Novos Escritos sobre a Cidade. São Paulo:
FFLCH, 2007, 123p.

CORRÊA, Roberto L. O Espaço Urbano. 3ª Edição, n. 174, 1995, 16p.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
167
GÓIS, Aurino José. Parque Municipal de Belo Horizonte: público, apropriações e
significados. Dissertação de mestrado entregue ao Curso de Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2003.

MELO, Tatiana. S. D. A Vila Santa Isabel na Avenida Afonso Pena: A experiência


positiva da moradia popular em região central de Belo Horizonte. Escola de Arquitetura
UFMG, Belo Horizonte, 2012, 232p.

MONTE-MOR, ROBERTO. L. O Que é o Urbano, no Mundo Contemporâneo. Rio de


Janeiro, v.21, n.3, 2005, 18p.

PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Av. Afonso Pena. Disponível em:


<http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/busca.do;jsessionid=4B98CB54289318D94460A6
37794EF53A.portalpbh1b?busca=Avenida+Afonso+Pena&evento=Ok>. Acesso em
Out. 2014

LEFRÉBVE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte, UFMG, 1999,178P.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Hucitec, 1988. 29 p.

SILVA, Luiz. R. D. Doce Dossiê de BH. Editora Gráfica, 1991, 232p.

UFMG. A Região Metropolitana de Belo Horizonte. Disponível em:


<https://www.ufmg.br/boletim/bol1702/4.shtml> Acesso em nov. 2014.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
168
RECONSTRUINDO UMA MEMÓRIA ESQUECIDA:
A IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DE CONTAGEM EM
SEUS PRIMÓRDIOS E O LUGAR DO POVO NEGRO

REBUILDING A FORGOTTEN MEMORY: THE BROTHERHOOD OF OUR


LADY OF THE ROSARY OF CONTAGEM IN ITS EARLY BEGINNINGS AND
THE ROLE OF PEOPLE OF COLOR

Kelly Rabello*

Resumo

O artigo tem como objetivo apresentar a história da fundação da Irmandade de Nossa


Senhora do Rosário de Contagem/mg, destacando o lugar concedido ao negro em sua
estrutura. O trabalho se divide de acordo com os recortes dos documentos primários
utilizados. Assim, analisa-se primeiramente a fundação da associação, em 1867, e a
construção da capela; posteriormente, as inconstâncias da instituição na virada do século
xix ao xx e, por fim, a reestruturação da Irmandade no contexto da década de 1970,
encerrando o texto com a referência à demolição da capela de nossa senhora do rosário,
em 1973. O estudo apresenta como elementos conclusivos a ideia de que ao longo de um
século a comunidade negra foi deixada à margem da estrutura organizacional da
Irmandade, apesar de atuante em suas atividades festivas. Mais tarde ganhou
representatividade, entretanto sua capela foi destruída, demonstrando o descaso de seus
valores perante as autoridades locais.

Palavras-chave: Irmandade de Nossa Senhora do Rosário; Contagem; negros.

Abstract

The article is aimed to present the history of the brotherhood of our lady of the rosary
from Contagem/mg, explaining the participation of the black community in the
sisterhood. This paper is divided in accordance with the cutouts of primary documents
used. Thus, it first analyzed the foundry of the association, in 1867, and the building of
the chapel. Posteriorly the inconstancy of the institution at the turn of the century xix to
the xx, and the restructuring of the sisterhood in context of the 1970s, closing the text
with a mention for demolition of the our lady of the rosary chapel in 1973. The study
presents as conclusive elements the idea that for a century the black community was left

*
Mestranda em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora. Graduada em História pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista CAPES. kellyarabello@yahoo.com.br.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
169
on the fringes of the organizational structure of the sisterhood, although active in its
festive activities. Later it gained representativeness, however its chapel was destroyed,
showing the neglect of its values before the local authorities.

Keywords: brotherhood of our lady of the rosary; Contagem; black.

As Irmandades são associações religiosas formadas por leigos que, no Brasil,


desde o século XVI, se unem com as finalidades principais de atribuir devoção a um santo
específico e de oferecer cooperação mútua entre os associados. A atuação destas
instituições, bem como a execução das festas de congado e as coroações do reinado, que
aconteciam em seu seio, foi difundida ao longo dos anos, principalmente no estado de
minas gerais, onde são significantes ainda nos dias de hoje.
No contexto do Brasil colônia, as motivações para a grande adesão de membros a
estes grupos eram diversas e perpassavam pelos aspectos de exercício da fé, bem como
ao assistencialismo que era ofertado por estes núcleos. As organizações destas instituições
eram definidas a partir da cor da pele e da posição social que os seus membros ocupavam,
sendo a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário a mais comum entre os “homens de
cor”, havendo destaque também à adesão destes àquelas em homenagem a São Benedito,
Santa Efigênia e São Elesbão. A devoção dos negros por estes oragos se explicavam pela
afinidade epidérmica, pela origem social e geográfica ou pela identificação com suas
histórias de vida. (BOSCHI, 2007, p.66-67).
Estas associações estavam diretamente vinculadas à igreja católica, sendo que
geralmente cada templo abrigava várias Irmandades, onde seus filiados devotavam os
santos padroeiros utilizando-se de altares laterais. Tamanha a força que estas redes
ganharam, muitas delas, ao longo do tempo, conseguiram erguer seus próprios templos.
(REIS, 1999, p.50). Diante deste quadro, Boschi (2007, p.64) pontua a significância
destas associações como promotoras de atividades culturais que, para além da realização
de festas, tiveram importância considerável na configuração da arquitetura religiosa da
época.
Nas minas coloniais, foco de grande exploração econômica, a presença das
Irmandades foi sentida de forma intensa. Importante ressaltar que “a população colonial
se constituía apenas de poucos senhores brancos e de muitos escravos negros, além de
índios que viviam espalhados pelas selvas e pelos sertões do Brasil antigo” e, no caso da
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
170
capitania das minas gerais, “durante todo o período colonial, os números relativos ao
escravismo (...) Foram impressionantes.” (PAIVA, 2007, p.505). Diante da grande
quantidade de escravos, as associações religiosas que se formavam pela população negra
eram numerosas, sendo, inclusive, a primeira Irmandade documentada na região em
devoção a nossa senhora do rosário. (BOSCHI, 2007, p.66).
Não apenas, mas especialmente no caso dos grupos compostos por escravos, as
Irmandades eram um importante veículo de sociabilidade, onde os agregados trocavam
experiências e se apoiavam mutuamente em suas necessidades. Eram, assim, ambientes
de trocas e fortalecimento de uma cultura comum. “As Irmandades davam aos negros a
oportunidade de desabafar suas agruras, expressar suas necessidades e, até mesmo, tentar
influir em seu futuro, procurando tornar suas vidas mais suportáveis.” (BOSCHI, 1986,
p.152). Além destes significados, são de especial relevância os aspectos religiosos
derivantes das práticas sincréticas que eram vivenciadas no âmbito destas associações.
Espaço de coesão grupal, espaço de devoção, espaço de (re)construção de
identidades, os únicos que lhes eram facultados formar, as confrarias instituídas pelos
negros, para além de promotoras e locais de práticas sincréticas, impuseram-se porque
nelas se revitalizaram as referências culturais africanas. (BOSCHI, 2007, p.69).
Segundo Russell-Wood (2005, p.199-200), o século XVIII foi o apogeu de
fundação das Irmandades religiosas e, neste contexto, “seria verdadeiro dizer que para
cada pessoa, negra ou mulata, homem ou mulher, escrava ou livre, e para cada origem
tribal e local de nascimento (crioula, ou seja, nascida no Brasil, ou vinda da África) existia
uma Irmandade na qual poderia encontrar seus iguais.” A expressividade destas
Irmandades no século XVIII favoreceu as condições para que permanecessem no XIX.
Entretanto, formava-se neste contexto a ideia de nação Brasileira, onde algumas marcas
da cultura popular foram limitadas, pois não correspondiam às caracterizações da ordem
imperial. Gabarra explica que as associações no século XIX, como as devotas do rosário:
Desempenhavam a função de mediadoras entre os limites indiscutíveis de cada um dos
regimes de temporalidade que convivem no festejo. Se, por um lado, a sociedade de
súditos de reis africanos incomodava o universo da ordem, por outro, era impossível
mantê-lo sem ela. O espaço da sociabilidade de escravos e libertos que se constituiu em
torno dos reis congos negociava, através de brechas mais estreitas, com o mundo do
governo da sociedade escravista. (GABARRA, 2009, p.164).

Através desta negociação, as festas de coroação aos reis negros, prática comum às
Irmandades de nossa senhora do rosário, foram difundidas no Brasil ao decorrer do século

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
171
XIX. Marina de Mello e Souza (2002, p.128) avalia que a realização destas festividades,
principalmente entre o final do século XVIII e meados do XIX, foi condicionada a uma
junção de fatores distintos, que favoreciam tanto à comunidade negra, quanto aos
senhores que, se desejassem, detinham a autoridade de reprimir as manifestações deste
cunho. Assim, cada localidade viveu uma realidade específica frente às restrições que
foram impostas neste contexto, e cada associação se moldou conforme as condições
vigentes.
No caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, fundada no município
mineiro de Contagem, a criação desta associação se deu, possivelmente, em meados do
século XIX, sendo constituída de modo em que a elite contagense assumia os cargos de
direção do grupo, enquanto os negros ocupavam o papel de atuação nas atividades
festivas. Sendo assim, estes últimos atuavam sob o domínio da sociedade branca.

1. A fundação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem

A origem do município de Contagem é retratada através de diferentes versões na


literatura e nos relatos dos contagenses. Entre as narrativas apresentadas pela história oral,
há a que diz sobre a existência de uma família, cujo sobrenome “abóboras” derivou a
designação da localidade. Entretanto, na documentação referente ao período, assim como
no catálogo de sesmarias, não há elencados nomes de sesmeiros com esta referência.
(SECRETARIA, 2009, p.14). Outra versão relata sobre a preocupação dos tropeiros em
garantir seus alimentos durante as viagens em direção à vila rica e região, realizando
plantação de pequenas roças no caminho, de onde se fazia a Contagem das abóboras que
saiam para Sabará, Belo Horizonte e outras localidades, dando assim origem ao arraial.
(SECRETARIA, 2009, p.15).
Há ainda outra história, esta construída sob documentos dispersos, que indica a
existência de um posto fiscal na comarca do rio das velhas, intitulado “registro das
abóboras”. Suas primeiras entradas foram datadas em agosto de 1716 e visavam
regularizar o fluxo comercial sob a vigília da coroa. Nos arredores deste posto, teria
surgido um pequeno arraial que, no entanto, não se configurou como núcleo urbano, tendo
se enfraquecido junto ao fechamento do registro. Conta esta versão que, paralelamente,
houve a povoação de Sam Gonçalo da Contagem das abóboras, em torno da capela com
invocação a São Gonçalo. Por sua vez, neste ponto houve um crescimento que estruturou
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
172
o atual município de Contagem, cujas funções agropastoris e comerciais foram
desenvolvidas entre os séculos XVIII a meados do XX. (SECRETARIA, 2009, p.14).
Santos (2017, p.18) aponta que também não há consenso em relação à data de
surgimento de Contagem, havendo apenas as seguintes evidências: “1711 (data de
concessão de sesmarias), 1716 (data provável do início das atividades do posto fiscal) e
1725 (data gravada no cajado de prata do santo padroeiro da matriz de São Gonçalo do
amarante)”. De acordo com Adalgisa Campos e Carla Anastasia, o arraial de São
Gonçalo da Contagem apresentou uma considerável estabilidade econômico-financeira
entre os séculos XVIII e XIX, baseada nas atividades agropastoris. A economia apoiava-
se no tráfico de escravos e de mercadorias que perpassavam pelos sertões da colônia e,
logo, o número de pessoas escravizadas neste contexto era significativo na região.
(SECRETARIA, 2009, p.17). As autoras (1991, p.133) explicam que as características
de Contagem permaneceram muito semelhantes até meados do século XX, quando então
foi pressionada pelo progresso, tendo como marco a criação da cidade industrial.
Em relação aos aspectos políticos, durante aproximadamente duzentos anos o
povoado pertenceu a Sabará e, em 1901, passou a ser vinculado a Santa Quitéria, atual
Esmeraldas. Somente em 1911 Contagem recebeu sua primeira autonomia como
município, que entretanto, em 1938 passou a ser distrito de Betim. Apenas em 1948 se
tornou cidade independente (santos, 2017, p.19). É válido acrescentar que a política foi
caracterizada pelo comando das oligarquias locais, desde a sua primeira emancipação
político-administrativa até o início de 1970, sendo as famílias tradicionais da cidade os
de sobrenome Cunha, Diniz, Mattos, Macedo, Camargos e Belém.
A segunda metade do século XX foi marcada por um grande crescimento
populacional em Contagem, o que culminou em transformações significativas na
arquitetura e na vida social do povo contagense. De acordo com Santos (2017, p.19), em
meio a esse cenário, “resistiram algumas edificações, em antigas fazendas e na sede do
município, e tradições de caráter religioso.” Neste contexto, a manutenção de antigos
hábitos religiosos pode ser pensada através de processos de adaptações frente às novas
realidades locais, como é o caso, por exemplo, da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário de Contagem, atuante ainda nos dias de hoje. Como mencionado por Caio Boschi
(2007, p.75), reconhecer a existência destas Irmandades “em pleno século XXI significa,
quando nada, que, na essência, sua força persevera”.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
173
A criação da primeira Irmandade em devoção a nossa senhora do rosário, no povoado de
Contagem, bem como a ereção de sua capela, possui datação imprecisa, dada a
dificuldade de localização de documentos que as contemplem. Todavia, pode-se
encontrar algumas pistas em arquivos primários, bem como na bibliografia sobre o tema.
O compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem foi
redigido no interior da capela de nossa senhora do rosário no ano de 1867 e aprovado em
1868, pelo bispado de mariana. O dado que aponta a redação no templo religioso é
apresentado no trecho final do documento, onde estão inscritos os seguintes dizeres:
“consistório da capela de nossa senhora do rosário da Contagem, 4 de agosto de 1867”.
(COMPROMISSO, 1867). A elaboração deste texto indica que em tal data havia a
formalização da associação, o que não quer dizer que, necessariamente, tenha sido nesse
mesmo período em que houve a agremiação dos membros. Pode-se constatar apenas que
o templo já havia sido construído em data anterior.
Em consultas aos documentos referentes à Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário de Contagem, o pesquisador Geraldo Fonseca observa uma provisão disponível
no museu do ouro em Sabará, onde há um relato datado de 1858 sobre um zelador,
chamado José Antônio da Costa Ferreira. O autor afirma (1978, p.99) que “a provisão
fala de zelador da Irmandade e não da capela. Assim, a associação devia ter como templo
a matriz ou uma das capelas da paróquia”. Por sua vez, também estudando o município
de Contagem, Anastasia e campos fazem a leitura de um registro onde se cita o mesmo
José Antônio da Costa Ferreira, como zelador da capela, o que contradiz o apontamento
de Fonseca. Na análise das autoras (1991, p.61), a capela teria sido erigida por volta da
década de 1940: “se Saint-Adolphe e d. Frei José da santíssima trindade não visitaram a
capela do rosário na década de 20 e ela não consta no mapa estatístico de 1932 e nem na
cartografia de 1837, é porque foi erigida após essa data, provavelmente entre 1837 e
1845.”Apesar de não existir com clareza um registro que comprove a data de construção
da capela e da instituição dos irmãos do rosário, os estudos indicam, portanto, que tenha
ocorrido em meados do século XIX.
Os documentos primários referentes à organização do grupo mostram ainda que a
composição dessa Irmandade foi instituída por homens de boas condições financeiras,
sendo a grande maioria fazendeiros. Em sua fundação, a mesa administrativa da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário foi composta por: José Antônio da Costa
Ferreira, proprietário da fazenda do senhor bom jesus, que em 1858 era responsável pela
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
174
igreja e que em 1868 tornou-se juiz da Irmandade; Joaquim José de Alvarenga,
comerciante de secos e molhados, como tesoureiro; Joaquim Brochado de Macedo, de
profissão não documentada, em 1868 secretário da Irmandade. Outros nomes foram
identificados como membros instituidores, como: Antônio Teixeira Terraz, juiz de paz e
comerciante de secos e molhados; Padre Francisco de Paula e Silva, proprietário de terras;
Romualdo José de Macedo Brochado, farmacêutico e juiz de paz; Francisco Liandro da
Cunha, comerciante; Pedro d’Alcântara Diniz Moreira, comerciante de molhados e sub-
delegado; Joaquim Gonçalves da Silva Diniz, proprietário da fazenda campo alegre.
(ANASTASIA; CAMPOS, 1991, p.114).
A participação desta elite nos cargos de organização da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário indica a predominância dos homens brancos nos postos de direção
do grupo. Por sua vez, sobre a presença da população negra em Contagem, consta-se que
o antigo arraial possuía presença marcante de escravos, onde os “negros e mulatos”
chegaram a ser predominantes entre o número total da população local. Campos e
Anastasia apresentam um levantamento quantitativo referente ao ano de 1831, que
apresentam o seguinte quadro: “de um total de 2.162 habitantes, 328 fogos (residências),
1.410 eram livres e 752 cativos. Do total 1.760 eram pretos e mulatos.” (ANASTASIA;
CAMPOS, 1991, p.101). Assim, o crescimento populacional entre os negros era alto e,
em alguns casos, resultante das uniões de cativos de uma mesma família. Como exemplo,
há o caso da família de Antônio Victor da Silva Diniz, onde bastou a relação entre apenas
dois escravos, Dionízio e Joaquina, para que através de seus sete filhos e vinte netos, a
mesma fazenda abrigasse vinte nove homens de uma mesma descendência
(ANASTASIA; CAMPOS, 1991, p.108).
Apesar deste quadro, assim como característico da sociedade da época, a falta de
dinamismo marcava o cenário local em meados do século XIX, onde as elites
permaneciam em sua posição de status e os escravos e forros continuavam nas camadas
mais baixas da estratificação social. Deste modo, as maiores porções de terras existentes
no arraial se concentravam no domínio de algumas famílias, como os Alves, Macedo,
Diniz, Ferreira, Freitas, Silva, Soares e, mais tarde, aos Camargos (ANASTASIA;
CAMPOS, 1991, p.108).
O controle sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário não fugiu, portanto,
desta lógica de predominância da elite branca da época. Diante deste quadro, onde vê-se
a presença expressiva de negros na sociedade contagense e a formação de uma Irmandade
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
175
religiosa dirigida apenas por homens brancos, pergunta-se: qual era o lugar ocupado pelo
povo negro nesta associação religiosa, tradicionalmente composta pelos “homens de
cor”? Anastasia e campos assim consideram:

A Irmandade do Rosário da paróquia de São Gonçalo [de Contagem] além de ser tardia,
foi mais paternalista que aquelas erigidas, no século XVIII, em arraiais voltados para a
atividade mineradora, por ter apresentado uma ingerência muito grande das elites na
devoção dos pobres. Diferentemente da Irmandade do rosário dos pretos do distrito
diamantino, ou mesmo de sua congênere de vila rica, organizada já no primeiro quartel
do século XVIII, o rosário da Contagem, já nas origens, contou com o estrangulamento
econômico dos cativos da região. Esta falta de recursos é claramente explicitada no
próprio estatuto da Irmandade, de 1868, pois a maior parte dos irmãos instituidores, ali
presentes, pertencia à nata da sociedade (...). (ANASTASIA; CAMPOS, 1991, p.113).

Nos estudos sobre as Irmandades dos homens negros do período colonial, Julita
Scarano questiona:

Que motivos levariam os brancos a ingressar numa confraria de homens de cor? Embora
não deixassem de invocar para tanto razões piedosas, parece inegável que a sua presença
valia ali por um meio de controle, que acabava por tirar dos irmãos muito de sua
independência. (SCARANO, 1976, p.131).

Boschi explica que a presença maciça de brancos nos cargos administrativos das
Irmandades das minas coloniais estariam relacionadas à necessidade de se ter pessoas
alfabetizadas, que pudessem se responsabilizar pela escrituração de seus livros internos,
bem como os termos de mesa e as petições, os registros nos livros de receita e despesa e
afins. Isso porque todo este material correspondia às exigências clericais da época e
poderia ser controlado pelas visitas eclesiásticas, ou pela prestação de contas através dos
ouvidores das comarcas. Neste sentido, dificilmente estes cargos poderiam ser ocupados
pelos escravos (BOSCHI, 1986, p.138). O autor (1986, p.139) ainda pontua que “a
presença de brancos nos cargos de destaque da administração das Irmandades de negros
demonstra a dominação ideológica a que estes estavam sujeitos.”
Neste sentido, na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem também
se torna evidente que, por um lado havia a posição de controle que era exercida pela elite
branca, enquanto por outro os negros podiam exercer seus ritos de devoção à padroeira,
mas em espaços limitados. Assim, de acordo com gomes e pereira (1988, p. 148): “as
Irmandades do rosário de Contagem seguiram os modelos dos compromissos redigidos
no século XVIII. Os negros ocupavam os cargos não deliberativos como rei, rainha, juíza
por devoção ou mordomos de mastro.” Os autores citados (1988, p. 149) ainda enfatizam
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
176
que: “o negro escravo estava antecipadamente impossibilitado de eleger-se para os cargos
de maior importância. Na maioria das situações ele não era inserido entre as pessoas
devotas com possibilidade de arcar com as despesas.”
Curioso é que o compromisso da Irmandade redigido em 1867 apresenta uma
abertura para a inserção de membros, independentemente de sua condição social. Isto
pode ser lido no capítulo 1º, artigo 1º: “a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, ereta
nessa freguesia de Contagem, é associação religiosa de todos os fiéis de um e outro sexo
– sem exceção de qualidade ou condição”. (COMPROMISSO, 1867). Embora à primeira
vista a instituição pareça ser receptiva aos diferentes tipos de grupos sociais, o corpo do
texto apresenta rígidas deliberações quanto ao emprego de fundos financeiros. Logo no
artigo 2º do capítulo 1º, é lido que: “será admitido irmão, todo aquele, que dirigindo-se
ao tesoureiro, lhe entregar a quantidade de hum mil réis de sua entrada.”
(COMPROMISSO, 1867). A pontuação pode ser ainda completada com as taxas anuais:
“cada um irmão que se alistar nesta Irmandade, pagará anualmente a quantia de
quinhentos réis”. (COMPROMISSO, 1867). Além disso, os irmãos que não cumprissem
com suas obrigações financeiras, seriam, por ordem, desligados da associação. Sendo
assim, estas exigências delimitavam os contornos daqueles que poderiam apenas se
agregar como irmãos do rosário, ou dos que poderiam atingir os cargos mais altos.
Outro documento que aborda as taxas entregues pelos irmãos é o Livro de receita
e despesa da Irmandade, que traz informações sobre o fundo financeiro da instituição,
entre os anos de 1888 a 1890. Conta-se que alguns irmãos faziam pagamentos adiantados
de seus anuais, como é o caso de: “Manuel de Matos Pinho, pg. Annuais até 1890, 7
anos.” (LIVRO DE RECEITA E DESPESA, 1889). É importante ressaltar que
geralmente os irmãos que se antecipavam na quitação, compunham a mesa da Irmandade
e detinham recursos financeiros ou eram pessoas influentes, como é o exemplo da citação
transcrita. Manuel de matos pinho atuou como prefeito de Contagem algumas décadas
mais tarde, de janeiro a fevereiro de 1933, o que demonstra o seu poder econômico e
status social.
Ainda no compromisso, se faz possível identificar que para a mesa administrativa
era eleito um juiz, um secretário, um tesoureiro, um procurador, doze mesários, e um
andador. Além dos cargos da mesa, também eram eleitas duas irmãs, um rei, uma rainha,
uma juíza por devoção, dois mordomos de mastro e doze irmãs de mesa. Esses últimos

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
177
agiam com maior representação nas festas realizadas pela associação e não tinham direito
de voto nas decisões da mesa, sendo possivelmente estes os cargos ocupados pelos negros.
Sobre as principais atribuições da Irmandade, lê-se no compromisso sobre o zelo com a
capela e a realização de diversas cerimônias religiosas. Em relação a este último ponto,
há o seguinte trecho:

A Mesa ordenará a festividade que a Irmandade costuma a fazer anualmente


como sejam a de Nossa Senhora do Rosário, Padroeira da Capela, no dia
próprio de seu SSmo. Rosário; os Terços nos primeiros Domingos de cada
mês, e o Santo Jubileu das Quarenta Horas na Dominga da Qüinquagésima e
nos dias seguintes. (COMPROMISSO, 1867).

À festa de Nossa Senhora do Rosário foi dedicado um capítulo exclusivo que


dispõe sobre sua organização, onde se faz possível perceber a relevância que este evento
apresentava no calendário da associação:

É rigoroso dever da Irmandade fazer solenizar com a maior pompa que for
possível, o Terço da primeira Dominga de outubro, ajudando aos Juízes que
forem nomeados para ele, porque se lucram muitas graças e indulgências,
concedidas pelo Sumo Pontífice aos Irmãos do Rosário. (COMPROMISSO,
1867).

Dados sobre estas celebrações também são identificados através dos registros de
gastos apontados pelo livro de recibos, onde anota-se tanto sobre a reza do terço, quanto
à festa do reinado. Em relação ao primeiro, há:

Recebi do actual Thesoureiro da Irmandade de Nossa Senhora do Rozario desta


Freguesia a quantia de quarenta mil reis (40¢000) que venci nos Terços das
primeiras Domingas dos Meses de conformidade com o Compromisso e forão
5 terços que fis por ordem do respectivo Procurador. Passo este por ter recebido
e para que conste. Contagem 31 de dezembro de 1881. O Vigário José João
Nunes Moreira. (LIVRO DE RECIBOS, 1881).

Quanto ao reinado, descreve-se:

Recebi do actual Thesoureiro da Irmandade de Nossa Senhora do Rozario desta


Freguesia a quantia de R16000 da muzica no reinado do anno de 1881 e por

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
178
ter recebido passo a prezente. Contagem 9 de fevereiro de 1882. Domingos J.
D. Silva. (LIVRO DE RECIBOS, 1881).

Recebi do actual Thesoureiro da Irmandade de Nossa Senhora do Rozario


erecta nesta freguesia oito mil reis (8:000) que venci na Festa intitulada do
Reinado; e por ter recebido passo este. Contagem 10 de fevereiro de 1882. O
vigário Pe José João Nunes Moreira. (LIVRO DE RECIBOS, 1882).

O livro de Receitas e Despesas (1889-1890) apresenta uma série de contribuintes,


onde, apenas através da leitura, não se faz possível localizar quais os setores sociais às
quais estavam inseridos os doadores de “esmolas”. No entanto, no intuito de se identificar
a presença de pessoas negras associadas à esta Irmandade, destaca-se a seguinte
referência, datada nos registros de 1888/1889: “quantia entregue por Camilo Silvério
como regente de congado”. (LIVRO DE RECEITA E DESPESA, 1888/1889). Este
trecho indica a execução do congado, festividade em que se celebra a coroação de reis e
rainhas negros, comumente realizada desde o Brasil colonial no interior das Irmandades
em invocação à nossa senhora do rosário. Além disso, o documento aponta para a
participação de Camilo Silvério, africano, levado para minas gerais como escravo no
século XIX (dois pontos, 1992, p.60), pai de Arthur Camilo Silvério, negro que deu
origem à Comunidade dos Arturos.

Para os que não conhecem, os Arturos são uma Comunidade familiar,


tradicional, de ascendência negra, formada pelos descendentes e agregados de
Arthur Camilo Silvério e Carmelinda Maria da Silva. Em sua vivência diária
detêm diversas expressões culturais. Os sons e os ritmos ditados pelas batidas
dos tambores são constantes em todos os momentos e estão presentes no
Batuque, na Folia de Reis, no Candombe, no Reinado de Nossa Senhora do
Rosário, na Festa da Abolição e na Festa do João do Mato. (IEPHA, 2014,
p.12)

Em relação ao contexto de fundação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário


de Contagem, através da leitura dos documentos primários e das referências bibliográficas
que versam sobre o tema, constata-se, portanto, que o povo negro era atuante através da
realização dos congados e ocupando apenas os cargos referentes aos rituais festivos. Deste
modo, não houve espaço para a sua inclusão na mesa diretória do grupo, sendo controlado
pelos que alcançavam este status.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
179
2. Das inconstâncias documentais do século XIX para o XX

A documentação referente a segunda metade do século XIX, no que diz respeito


à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem, trata-se dos já mencionados:
compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem (1867); livro de
recibos da Irmandade do rosário da paróquia de São Gonçalo da Contagem (1875-1897);
livro de receita e despesa da Irmandade do rosário da paróquia de São Gonçalo da
Contagem (1888-1890). Após os registros dos anos de 1890, do livro de receita e despesa,
e de 1897, do livro de recibos, não foram feitas anotações nestes documentos, não
havendo nem mesmo uma nota de encerramento em quaisquer um destes.
Os arquivos que armazenam a documentação e que versam sobre a Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário de Contagem apresentam como próximo documento apenas o
livro de atas datado de 1920 a 1958. A abertura deste livro (1920) mostra que, neste
contexto, a mesa provisória foi dirigida pelo Padre Joaquim Martins, que convidou José
d’Oliveira para secretário interino e Augusto Teixeira Camargos, José Ferreira de Aguiar
e Jovino Camargos como membros. Quanto às eleições para os cargos dirigentes, foi
deixado de lado o voto secreto, que deu lugar à ocupação através de alguma sugestão dada
por um dos membros da mesa:

Deixou de haver eleição por escrutínio secreto porque por proposta do Sn –


Augusto Teixeira Camargos foram aclamados unanimente os seguintes
senhores: Jovino Camargos, Juis, José Ferreira de Aguiar, Tesoureiro,
Randolpho Rocha, Secretario, Joaquim Costa Ferreira, procurador e João
Felippe Muniz procurador andador. (LIVRO DE ATAS, 1920).

O cancelamento das eleições pode ter sido uma estratégia eficaz para a liderança
dos mais favorecidos e a manutenção das famílias tradicionais de Contagem nos cargos
dirigentes, como é o caso da família Camargos, que, como já mencionado, foi marcante
na história da cidade dentro do cenário da oligarquia local. O termo de abertura deste
Livro de Atas fala ainda sobre uma reorganização da associação:

Termo de Abertura. Servirá este livro para lançamento de Actas da Mesa da


Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, da Freguesia de Contagem,
reorganisada, de conformidade com o Compromisso, aos sete de Novembro de
1920. Contem cem (100) folhas rubricadas por mim com a rubrica de que uso
e diz JMartins levando na ultima pagina o termo de encerramento. Villa de
Contagem, 7 de Novembro de 1920. Pe Joaquim Martins. (LIVRO DE ATAS,
1920).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
180
Haveria assim um vácuo entre os anos de 1897 a 1920, que pode ser lido como
uma interrupção nas atividades, principalmente, dado o fato do documento deixar
explícita tal “reorganização”. Porém, até mesmo dentro desse livro, percebemos uma
inconstância, já que ele finaliza sua primeira parte no ano de 1921 e retoma apenas em
1958, quando então fala sobre o “lançamento das atas da comissão de reconstrução da
igreja do rosário em 5-6-58”. (LIVRO DE ATAS, 1958). Possivelmente nessa data a
antiga capela, que agora passava a ser chamada de igreja, estaria passando por uma
ampliação. No entanto, mais uma vez as anotações foram paralisadas, sendo identificados
novos registros apenas em 1972.
Outro dado que intriga a pesquisa é que, neste mesmo livro de atas, em janeiro de
1921 registrou-se o seguinte:

Ao dia oito de Janeiro de mil novecentos e vinte um no consistório da igreja


do Rozario da Freguezia de S, Gonçalo da Contagem as trez horas da tarde
conforme a convocação do Prezidente na reunião de posse a primeiro de
Janeiro do corrente anno o Sm Alfredo Camargos reprezentante do [ilegível]
Thezoureiro João Teixeira Camargos, que por motivo de grave infermidade
deixou de comparecer e apresentou os seguintes: Primeiro a entrega de todas
as cintas durante o tempo que exerceu o cargo de Thezoureiro de 1º de janeiro
de 1891 a 1º de janeiro de 1920 em poder do actual Thezoureiro, verificando-
se em saldo a favor da Igreja na importância de 140¢150 réis, uma salva velha
de prata, 115 metros de tabuas para assoalho, seis livros pertencentes a
Irmandade (...). (LIVRO DE ATAS, 1921).

O documento acima menciona que o tesoureiro havia executado suas atividades


entre os anos de 1891 a 1920 e que, ainda, o saldo da igreja estava positivo. Além disso,
menciona sobre a existência de seis livros, totalidade que não foi identificada nesta
pesquisa e que pode cobrir o intervalo de tempo o qual não se identificam registros
documentados sobre a atuação da Irmandade. Diante disto, questiona-se se a Irmandade
teria sido interrompida durante os períodos de inconstância dos registros identificados,
ou se teria ocorrido apenas descontinuidades pontuais, que levaram à sua reformulação
posterior. Estas dúvidas não foram sanadas neste estudo, embora façam valer algumas
reflexões sobre o contexto vivido na sociedade contagense no período de passagem do
século XIX ao XX.
Analisando de forma ampla, contextualiza-se as mudanças ocorridas,
inicialmente, pela abolição da escravatura, em 1888, a proclamação da república, em 1889
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
181
e a separação entre a igreja e o estado vivida neste mesmo período. Situações estas
determinantes para alterações no quadro social em toda a extensão das terras Brasileiras
e que também atingiram a localidade de Contagem. Geraldo Fonseca pontua que:

Em sessão da Câmara dos Deputados de Minas Gerais, a 24 de setembro de


1891, os deputados Severino Rezende e Aristides Caldeira traçam um quadro
da caótica situação da agricultura depois da lei de 13 de maio, que não
disciplinou o trabalho remunerado obrigatório para os libertos, enquanto que,
pouco mais tarde, a constituição impedia criar tal disposição. Evidentemente,
senhores e libertos passam não se entenderem. As grandes obras de construção
de Belo Horizonte, tão próxima a Contagem, logicamente absorveram boa
parte da mão de obra liberta do distrito. (FONSECA, 1978, p.98).

Além disso, Boschi explica que no final do século XVIII e no início do século
XIX, a situação financeira e institucional das Irmandades apresentava problemas que
culminaram em um quadro de decadência destes grupos. Segundo o autor (2007, p.65),
entre as situações encontradas neste contexto estavam: “suspensão de ofícios religiosos;
redução de despesas com celebrações, inclusive festas em homenagem aos santos
padroeiros; dispensa dos serviços de músicos, artistas e artífices de nomeada (...)”.
Para além dessas questões, partindo especificamente para a realidade política de
Contagem, há que se considerar que o início do século XX representou uma alternância
da dependência da localidade em relação a outras regiões, através do desligamento de
Sabará após duzentos anos, e vinculação à atual Esmeraldas, conforme já citado.
Portanto, o quadro geral apresentado na região durante este período era de instabilidade
e, dentro disto, as questões religiosas, que até então estavam interligadas com as questões
políticas, consequentemente foram revisadas a partir da separação dos dois setores.
Assim, possivelmente essas transformações ocorridas em Contagem foram fatores
que, se não foram determinantes, ao menos foram influentes para que houvesse traços de
fragmentações ou interrupções na atuação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.
Quanto à atuação dos negros nesta associação, o que foi possível identificar no
livro de atas, trata-se de uma reunião datada de 1958, em que a Irmandade demonstrava
preocupação perante à autoridade diocesana quanto à atuação do Congado:

A seguir o Rvdmo. Vigário passou a fazer referencias ao Congado, esplicando


a sua situação frente a liturgia e as determinações da autoridade Diocezana.
Prosseguindo fez ver que a Igreja pertence a Paróquia, e qualquer solenidade
que verifique na mesma, dependeria da autoridade do vigário. (LIVRO DE
ATAS, 1958).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
182
Diante desta transcrição, vale mencionar que no período que compreende os
meados do século XIX até a efetivação do Concílio do Vaticano II, década de 1960, a
Igreja Católica brasileira sofria interferências diretas do movimento ultramontano, em
que buscava-se reagir à “algumas correntes teológicas e eclesiásticas, ao regalismo dos
estados católicos, às novas tendências políticas desenvolvidas após a Revolução Francesa
e à secularização da sociedade moderna.” (SANTIROCCHI, 2010, p.24). Neste contexto,
o catolicismo popular e suas manifestações sofreram intensa vigília, e logo, os Reinados
e Congados foram também atingidos.
Na circunscrição eclesiástica de Belo Horizonte, ao longo da primeira metade do
século XX, os Reinados receberam diretrizes restritivas que foram difundidas em cartas
pastorais e em comunicados avulsos. Segundo Oliveira (2011): “a primeira referência à
proibição do reinado que aparece nos registros eclesiásticos da diocese de Belo Horizonte
data de 1923, dois anos após a posse de Dom Cabral”.
Todavia, apesar das diretrizes restritivas aos Reinados, cada localidade e cada
Irmandade que apresentava as manifestações congadeiras em sua programação religiosa,
reagiu a seu modo. No caso de Contagem, através do documento transcrito, parece ter
havido uma tentativa de se controlar as atividades congadeiras, de modo que sua atuação
correspondesse às “determinações da autoridade Diocezana” (LIVRO DE ATAS, 1958).
No entanto, a escassez de documentos não permite que tal análise seja averiguada em
profundidade.
Geraldo Fonseca (1978) apresenta a transcrição de um documento relevante para
a compreensão de como se dava a execução do congado na Irmandade do rosário em
Contagem e de que modo esta manifestação era lida por alguns dos párocos locais:

Toma conta da Capela, o Snr. Capitão José Aristides de Salles, que é o Chefe
Supremo do Congado no Brasil. As festas consistem em uma Missa às 10
horas, seguindo-se o terço cantado pelas ruas, o resto é dançar, pular, sapatear.
Levam o Rei e a Rainha debaixo do Pálio; os negros vão dansando na frente.
Por fim, segue o Capitão, vestido de vermelho com cauda e caudatárias; usa
manípulo no braço direito, corôa e cetro. Tudo isso é proibido pela Cúria, mas
não há vigário que os enfrente.... Durante as festas levantam 5 mastros, que no
fim das mesmas põem abaixo. Na última “procissão”, o Capitão vai debaixo
de uma umbrela, de cor vermelha e azul. Diz o povo que isso é feitiçaria.
Durante as “procissões”, não é permitido rir, senão, o capitão castiga
duramente. Mas, neste ano, os “Candongueiros” não tiveram sorte, pois a
chuva foi tão grossa que se apagaram as luzes, toda a noite. (FONSECA, 1978,
p. 100).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
183
Apesar da riqueza desta fonte, o autor preferiu omitir os dados de sua referência,
não sendo possível identificar a datação e autoria. Embora haja esta falta de informação,
o relato confirma a atuação dos negros nos rituais festivos da Irmandade. Além disso,
quando fala sobre feitiçaria ou sobre a resistência destes diante das restrições clericais,
reforça a possibilidade da mesa diretória ter sido constituída pela elite branca, entre outros
fatores, pela necessidade de controle destas agremiações dos negros que ocorriam em seu
seio.
Como mencionado, após o ano de 1958 o próximo registro referente à Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário de Contagem identificado nos arquivos data de 1972,
quando então inicia-se uma nova configuração neste grupo.

3. A reestruturação da Irmandade do Rosário, onde os negros ganham novos


lugares

Em 1972 foi redigido um Estatuto138 para a Irmandade de Nossa Senhora do


Rosário de Contagem, que substituiria o antigo Compromisso datado de 1867. O
documento foi adaptado à nova realidade em que se encontrava a sociedade contagense,
após a abolição da escravatura e o rompimento do Padroado Régio, e representava a
intenção de mais uma reorganização do grupo de irmãos. As adaptações ficaram evidentes
nas novas finalidades atribuídas à associação, onde a responsabilidade dos seus membros
passou a ser:

a) Difundir o Folclore Brasileiro na cidade de Contagem. b) Promover o


Intercâmbio Cultural e elevação do nível da união de todos os componentes
dentro dos princípios sociais e educativos. c) Patrocinar ou apoiar todas as
iniciativas dentro dos mesmos princípios. d) Representar os interesses da
I.N.S.R.C. perante os poderes públicos. e) Manter as tradições com elevação
de espírito. f) Pugnar pelos direitos da pessoa humana. g) Defender a liberdade
dentro do direito para todos, menos para o mal, e os malfeitores. h) Procurar
defender a doutrina contida no código familiar da moral social e da justiça.
(ESTATUTO, 1972).

Se comparadas tais atribuições ao antigo compromisso, pode-se perceber que, no


que tange às questões de registro documental, houve um considerável distanciamento das
questões religiosas e devocionais que outrora marcaram os princípios da Irmandade. A

138
ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Estatuto da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário de Contagem. 1972.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
184
partir do estatuto, a Irmandade do rosário de Contagem passou a ter predominantemente
um caráter cultural, sendo uma de suas finalidades cumprir o papel de difusora do folclore
Brasileiro, conforme explicitado em seu próprio regimento. Pode-se notar, portanto, que
nesse contexto o grupo passava a ser um instrumento de apoio para o estado, que através
da organização das manifestações dos irmãos divulgava a manutenção dos grupos
associados sob sua tutela. Não foi involuntariamente, que poucos anos mais tarde, em 18
de fevereiro de 1976, a Irmandade foi declarada como instituição de utilidade pública.

A irmandade procurou reavaliar a sua atuação, inserindo-se nas mudanças


ocorridas na sociedade. (...) Visando substituir as disposições de caráter
excludente do antigo Compromisso, o estatuto prepara a associação para
relacionar-se juridicamente com os órgãos oficiais. A Irmandade passa a ter
uma atividade social, além da tradicional atuação como entidade religiosa.
(GOMES; PEREIRA, 1988, p.204).

Por um lado, o Estatuto não apresentava características excludentes como o


Compromisso, por outro ponto diluía as marcas das celebrações religiosas que eram mais
evidentes no primeiro documento. Identifica-se apenas uma referência, no capítulo que
diz sobre qual era papel dos membros, onde estes deveriam: “comparecer aos ensaios e
festas comunicadas pelo presidente.” (ESTATUTO, 1972). Essa pequena citação muito
se difere do capítulo cedido exclusivamente para a organização da festa de nossa senhora
do rosário, descrita no antigo Compromisso. Possivelmente, esta alteração buscava
atender às expectativas dos órgãos oficiais, o que traria maiores condições de vitalidade
da Irmandade na sociedade contagense. Destacando que, o fato das festividades não
ganharem representatividade no texto do estatuto, não quer dizer que, necessariamente,
os festejos não ocorriam. Pelo contrário, através da composição da mesa diretória, indica-
se que os eventos festivos tenham sido realizados com bastante expressividade.
De acordo com o Estatuto, a Mesa de direção era composta por “um presidente,
um vice-presidente, um 1º secretário, um 2º secretário, um 1º tesoureiro, um 2º tesoureiro,
um capitão-mor.” (ESTATUTO, 1972). Sobre a eleição da Mesa, registra-se que: “A
diretoria terá mandato de 3 anos e será eleita, em escrutínio secreto, pelos membros
efetivos, isto é, o presidente, vice-presidente e o secretátio. Os demais membros são
cargos de confiança do presidente.” (ESTATUTO, 1972). O Estatuto foi assinado em 6
de outubro de 1972 e carimbado pelo Cartório G. Pinto em 21 de dezembro do mesmo
ano. Assinavam como membros os seguintes nomes: Josias Gomes de Oliveira como
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
185
presidente; Joel Pereira Ribeiro como vice-presidente; Geraldo Leonor como Presidente
de Honra; Raimunda Calixta da Silva como 1º sercretária, Geraldo Arthur Camilo como
capitão-mór; Izaira Maria da Silva como 2º secretária; José Braz dos Santos como 1º
tesoureiro e Mário Braz da Luz como 2º tesoureiro (ESTATUTO, 1972).
Entre os nomes citados é possível identificar a presença da comunidade negra,
através da inscrição dos filhos de Arthur Camilo Silvério, fundador da Comunidade dos
Arturos, sendo eles: Geraldo Arthur Camilo, Mário Braz da Luz e Izaira Maria da Silva.
Outro documento que dispõe sobre os membros da Irmandade e que dá indícios da
participação dos Arturos é o Registro de Títulos e Documentos das Pessoas Jurídicas,
expedido pelo Cartório Massote em 1973, que diz: “São seus membros efetivos: os
componentes das Guardas do Congo e Moçambique, os benfeitores contribuintes e
honorários” (REGISTRO, 1973). Neste contexto, a Comunidade dos Arturos já executava
seus rituais festivos através das Guardas de Congo e Moçambique:

Na Comunidade dos Arturos, a Guarda de Congo foi formada, no final dos


anos de 1950 e é composta por homens e mulheres de várias idades. (...) Com
essa estrutura, a Guarda de Congo segue limpando o percurso e enfrentando os
males. Anuncia também, com suas alegorias, fitas, brilhos e cores, o Trono
Coroado. (...) Nos cortejos o Moçambique caminha após o Congo, com ritmo
e canto lento e pausado, acompanhado por uma dança vertical, rememorando
o sofrimento dos seus ancestrais africanos. (...) A Guarda [na Comunidade dos
Arturos] é composta essencialmente pelos homens mais velhos da
Comunidade, embora também possua membros de outras idades e do sexo
feminino. (IEPHA, 2014, p.23-25).

Através desta nova composição da Mesa houve uma considerável mudança, se


comparada às organizações que anteriormente apenas permitiam a presença da elite
branca nos cargos de direção da Irmandade do Rosário de Contagem. Sobre estes
aspectos, Anastasia e Campos (1991, p.121) afirmam que: “vimos que a Irmandade do
Rosário de Contagem, pelo menos e seguramente até fins do século passado, foi elitista
na direção e paternalista com relação aos irmãos escravos. Os Arturos apresentavam uma
alternativa diferente, porque enraizada num cotidiano mais igualitário e familiar.”
Os dados, bem como as referências bibliográficas, indicam que a união entre os
membros da Comunidade dos Arturos e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário trouxe
vigor para a associação, dando abertura para a construção de uma nova história, onde a
instituição passou a atuar de modo mais estável. Gomes e Pereira (2000, p.205) também
pontuam: “A ligação dos Arturos com a Irmandade é um prolongamento dos laços criados

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
186
entre a população negra e Nossa Senhora do Rosário nos primórdios da capitania. O culto
à padroeira dos homens pretos encontrou na Comunidade um lugar fértil de vivência e
reelaboração.”
Por outro lado, justamente um ano após esta consolidação, foi efetivada a
demolição da Capela de Nossa Senhora do Rosário. Neste contexto, governava o prefeito
de Contagem Newton Cardoso, que acabava de tomar posse. Momento esse em que a
cidade passava por um processo de dinamismo econômico, onde a especulação
imobiliária determinou a demolição de conjuntos arquitetônicos, dando lugar às
construções modernas que atendiam aos interesses de desenvolvimento local. Estas ações
atropelaram os valores subjetivos dos irmãos do Rosário, como bem analisado por Gomes
e Pereira:

Para os Arturos havia o significado profundo que envolvia a história de um


passado no qual os ancestrais dobraram noites para erguer o templo de sua
padroeira. A demolição da igreja reatualizou a violência tantas vezes praticada
contra os antepassados. A ruina das paredes refletiu como uma ameaça à
continuação das festas do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. (GOMES;
PEREIRA,1988, p.152).

Geraldo Fonseca (1978, p,100) indica que “os rumores acerca da demolição da
centenária capela começaram por volta de 1971.” Ainda no ano de 1970 foi expedida uma
carta pelo presidente da Câmara Francisco Pena, ao Senhor Arcebispo D. João de
Rezende Costa, solicitando medidas para preservação da capela que se encontrava em
ruínas. Neste ofício, Francisco Pena relata sobre as verbas recebidas para os reparos do
templo, que foram desviadas para as obras da matriz, e que outros dez mil cruzeiros foram
novamente concedidos para a Capela do Rosário, mas que, no entanto, não foram
aplicadas. Além disso, o documento demonstra o estado de descuido em que se
apresentava o imóvel:

O certo é, senhor Arcebispo, que já se passaram 3 (treis) meses e a igreja


continua em ruínas, completamente abandonada, sem suas imagens, algumas
históricas e de grande valor, com rumos ignorados; a porta dos fundos da igreja
vive aberta e o seu interior servindo para os inescrupulosos a fins detestáveis,
tornando-se como já dissemos, uma lástima. (OFÍCIO, 1970).

Além do ofício transcrito, outras medidas foram tomadas no sentido de apelo às


autoridades, solicitando o zelo à capela. Fonseca (1978, p.101) aponta que: “A 22 de maio
de 1972 a Irmandade de N. S. do Rosário se manifesta contra a medida proposta, através

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
187
de abaixo-assinado remetido à vereadora e lido em plenário. (...). Tudo em vão.” O autor
diz ainda que (1978, p.100): “Ouvindo os antigos da Comunidade dos Arturos,
agremiação que com devoção e boa vontade tenta reerguer o culto ao Rosário, ficamos
sabendo do quanto sumiu da Capela. Livros, imagens, joias. Tudo tomou rumo ignorado.”
Sendo assim, a demolição da Capela foi determinada contra a vontade dos fiéis,
que se organizaram na intenção de preservá-la e de manter em seu interior a religiosidade
e reverência à Nossa Senhora do Rosário. Percebe-se, portanto, que a efetivação desta
destruição veio a acontecer justamente quando a direção da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário deixou de ser composta exclusivamente pela elite branca contagense e quando
entra em cena a comunidade negra. Fator este que reafirma o lugar de dominação
instituído pelos mais favorecidos, enquanto, por outra via, reforça o papel de resistência
colocado pelos negros, que deram continuidade às suas tradições religiosas e culturais,
apesar da derrubada do templo.

4. Conclusão

O estudo sobre a história do primeiro século de existência da Irmandade de Nossa


Senhora do Rosário deixa vários questionamentos em aberto, principalmente ao que tange
aos aspectos de sua inconstância. Ademais, sua análise apenas se faz possível a partir de
um montante específico de documentos, sendo estes restritos ao que a comunidade da
época intensiova deixar evidente em registros oficiais. Assim, não se faz possível
identificar com maior clareza como eram os rituais religiosos e festivos executados pela
associação, tornando-se limitada a leitura do papel do negro nesta Irmandade.
No entanto, há evidências de que a população negra foi excluída dos cargos de
direção da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, apresentando, por outro lado, papel
significante na execução das festividades em homenagem à padroeira. Uma vez que tais
eventos religiosos eram fundamentais para a prática ritual das associações que se
organizavam em torno de um patrono católico, constata-se a relevância desta comunidade
negra para a manutenção da Irmandade contagense, ao mesmo tempo em que seu lugar
nos registros oficiais era pautado como coadjuvante.
É possível identificar tamanha ligação entre os negros e a invocação de Nossa
Senhora do Rosário, quando, junto à participação de membros da Comunidade dos
Arturos, estes, após longos períodos de atuação fragmentada da Irmandade, passaram a
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
188
assumir sua direção. Ocorrência essa que indica a construção de uma nova história para
a associação, que a partir de então, ganha maior vitalidade.
Por fim, identifica-se que em 1972 houve uma reconfiguração das finalidades de
atuação da Irmandade, ao menos no que se apresenta em seus documentos legais.
Possivelmente isso tenha ocorrido, pois, tratando-se de uma associação com finalidades
mais culturais e menos religiosas, haveria mais espaço para diálogo com os órgãos do
Estado. Porém, talvez tenha sido essa uma importante estratégia até mesmo para a
conservação de seus preceitos religiosos, uma vez que, ganhando maior apoio estatal,
colaborava-se para a manutenção da Irmandade e seus ritos poderiam dar continuidade
sem que estivessem expostos em papel. Assim, por um lado, esta atuação foi acautelada
pelo Estado, que inclusive instituiu o grupo como utilidade pública, mas, por outro, houve
descaso das autoridades contagenses perante aos valores subjetivos dos irmãos do
Rosário, ao demolirem a sua capela centenária.
Portanto, o que vemos neste fragmento de história da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário de Contagem é um percurso de resistência dos negros em que, apesar de terem
sido deixados à margem da estrutura organizacional da Irmandade por cerca de um século,
permaneceram com a fidelidade à tradição dos irmãos do Rosário e, quando lhes foi
possível, reascenderam uma nova história no cenário religioso contagense.

Referências Documentais

ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Declaração de


utilidade pública. 1976.
ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Estatuto da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem. 1972.
ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Ofício escrito pelo
Presidente da Câmara Francisco Pena ao Senhor Arcebispo D. João de Rezende Costa.
29 de junho de 1970.
ARQUIVO DA CASA DE CULTURA NAIR MENDES MOREIRA. Registro de Títulos
e Documentos das Pessoas Jurídicas. 1973.
ARQUIVO DO MEMORIAL DA ARUIDIOCESE DE BELO HORIZONTE.
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem. 1867.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
189
ARQUIVO DO MEMORIAL DA ARQUIDIOCESE DE BELO HORIZONTE. Livro de
Atas da Irmandade do Rosário da Paróquia de São Gonçalo da Contagem. 1920-1958.

ARQUIVO DO MEMORIAL DA ARQUIDIOCESE DE BELO HORIZONTE. Livro de


Receita e Despesa. 1888-1890.

ARQUIVO DO MEMORIAL DA ARQUIDIOCESE DE BELO HORIZONTE. Livro de


Recibos da Irmandade do Rosário da Paróquia de São Gonçalo da Contagem. 1875-
1897.

Referências

ANASTASIA, Carla M. J; CAMPOS, Adalgisa Arantes. Contagem: Origens. Belo


Horizonte: Mazza Edições, 1991.
BOSCHI, Caio César. Irmandade, religiosidade e sociabilidade. In.: RESENDE, Maria
E. F. de; VILLALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas 2.
Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007.
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: (irmandades leigas e política colonizadora em
Minas Gerais). São Paulo: Ática, 1986.
DOIS PONTOS. Comunidade de Arturos preserva tradição. Dois pontos. Abril 1992; v.2,
n.12: p. 60-61, abr. 1992.
FONSECA, Geraldo. Contagem perante a História. Belo Horizonte: Lemi, 1978.
GABARRA, Larissa O. O Reinado do Congo no Império do Brasil: O congado de Minas
Gerais no século XIX e as memórias da África Central. (2009. 296) Tese (Doutorado em
História). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
GOMES, Núbia; PEREIRA, Edimilson. Negras raízes mineiras: Os Arturos. Juiz de
Fora: MinC/ EDUFJF, 1988.
IEPHA. Cadernos do Patrimônio Imaterial: Comunidade dos Arturos. Belo Horizonte:
IEPHA/MG. 2014.
MELLO E SOUZA, Marina de. Catolicismo negro no Brasil: Santos e minkisi, uma
reflexão sobre miscigenação cultural. Afro-Ásia, 2002; n. 28: p. 125-146. 2002.
OLIVEIRA, Sueli do Carmo. O reinado nas encruzilhadas do catolicismo: a dinâmica
das comunidades congadeiras em Itauna/MG. (2011, 182). Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião). Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2011.
PAIVA, Eduardo F. Depois do cativeiro: a vida dos libertos nas Minas Gerais do século
XVIII. In.: RESENDE, Maria E. F. de; VILLALTA, Luiz Carlos. História de Minas
Gerais: As Minas Setecentistas 1. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo,
2007.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
190
RABELLO, Kelly. A manutenção da fé ao rosário em Contagem: Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário – 1867 a 1973. (2010. 63) Monografia (Graduação em História).
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
REIS, João. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. São Paulo: Civilização
Brasileira, 2005.
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Uma questão de revisão de conceitos: romanização –
ultramontanismo – reforma. Temporalidades: revista discente do programa de pós-
graduação em história da UFMG. 2010. v. 2, n. 2: p.24-33, ago./dez.. 2010.
SANTOS, Anderson Cunha. Patrimônio Cultural e História Local: A educação
patrimonial como estratégia de reconhecimento e fortalecimento do sentimento de
pertença à cidade de Contagem. (2017, 116). Dissertação (Mestrado Profissional em
Educação e Docência da Faculdade de Educação). Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2017.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA. Atlas Escolar Histórico,
Geográfico e Cultural: Contagem- MG. Contagem: Prefeitura Municipal de Contagem;
Acervo Cultural Brasileiro. 2009.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
191
A FREQUÊNCIA E AS TEMÁTICAS DE USO NO ARQUIVO PÚBLICO DA
CIDADE DE BELO HORIZONTE PELOS ESTUDANTES DO CURSO DE
HISTÓRIA DA UFMG

THE FREQUENCY AND THEMES OF THE USING OF PUBLIC ARCHIVE OF


THE CITY OF BELO HORIZONTE BY THE STUDENTS OF THE HISTORY
COURSE OF UFMG

Bruna Michels*
Rafaela Patente*

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo identificar a frequência de uso e quais as


necessidades dos estudantes ou pesquisadores do curso de História da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) que fazem uso do Arquivo Público da Cidade de Belo
Horizonte (APCBH). Para o desenvolvimento dessa pesquisa, foi questionado o fato de
haver uma diminuição do número de usuários do curso de História no APCBH, sendo a
principal hipótese levantada para isso, o cancelamento da oferta da disciplina Arquivos e
Museus Históricos, ministrada para o curso de História. Procurou-se investigar, então,
por meio de análise de questionários de pesquisa do APCBH e entrevistas realizadas com
alunos do curso de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH),
quem são os usuários do arquivo formados ou graduandos em História, para conhecer
quais usos que os mesmos fazem dos arquivos. Constatou-se que a não oferta da disciplina
em questão não influenciou na procura de temas para pesquisa no APCBH, porém
modifica a percepção do estudante quanto a novos temas passíveis de serem pesquisados
e usos de instituições como os arquivos.

Palavras-chave: História; Pesquisa em História; Arquivo Público; Estudo de Usuário.

Abstract

The present work aims to identify the frequency of use and the needs of the students or
researchers of the history course of Federal University of Minas Gerais (UFMG), who
make use of the Public Archive of the City of Belo Horizonte (APCBH). For the
development of this research, it was questioned the fact that there was a decrease in the
number of users of the History course in APCBH, being the main hypothesis raised for

*
Graduanda do 8º período do Curso de Arquivologia da Escola de Ciência da Informação da Universidade
Federal de Minas Gerais. Forma da História pela Universidade Federal de Santa Catarina.
*
Graduanda do 8º período do Curso de Arquivologia da Escola de Ciência da Informação da
Universidade Federal de Minas Gerais. Formada em Biblioteconomia pela mesma instituição e servidora
do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. http://www.acervoarquivopublico.pbh.gov.br/.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
192
this, the cancellation of the offer of the discipline Archives and Historical Museums. It
was therefore sought to investigate, through analysis of research questionnaires in the
APCBH and interviews with students of the history course of the Faculty of Philosophy
and Human Sciences (FAFICH) who are the users of the archive graduated or graduated
in History, to know what uses they make of the archives It was found that the non-offer
of the subject in question did not influence the search for research topics in the APCBH,
but modifies the student's perception of new research themes and uses of institutions such
as archives.

Keywords: History; Search History; Public Archive; User Study.

Arquivos pelo Mundo

Consideram-se arquivos como “um conjunto de documentos produzidos e


recebidos no decurso das ações necessárias para o cumprimento da missão predefinida de
uma determinada entidade coletiva, pessoa ou família” (RODRIGUES, 2006, online).
Tem-se também definido Arquivos como um conjunto de documentos produzidos e
recebidos no curso das ações necessárias para o cumprimento da missão predefinida de
uma determinada entidade coletiva, pessoa ou família (ARQUIVO NACIONAL, 2005).
O primeiro Arquivo Nacional do mundo foi criado na França, o Archives
Nacionales, em pleno período da Revolução Francesa, em 1789. Após o período pós-
Segunda Guerra Mundial, ocorreu a denominada explosão documental na esfera da
administração pública, e a consequente necessidade de racionalizar e controlar o grande
volume de massas documentais.
No Brasil, o Arquivo Nacional foi criado em 1838 com o objetivo de fixar um
destino aos originais das leis publicadas pelo governo, sendo então estabelecido. Somente
em 1991, houve a promulgação da Lei n. 8.159 (Lei Nacional de Arquivos), que dá
providências sobre a política nacional de arquivos públicos e privados. Torna-se
fundamental identificar os preceitos da Arquivologia e seus significados nos processos de
gestão de documentos arquivísticos e as principais dificuldades para o acesso à
informação. O conceito de Arquivo mudou em conformidade com as alterações políticas
e culturais que as sociedades ocidentais viveram. Atualmente os arquivos são um reflexo
da sociedade que o produz e o modo de interpretá-los também acompanha as mudanças
que ocorrem.
Os princípios arquivísticos, importantes para o estudo e as atividades da área,
surgiram com a expressão francesa respect des fonds (respeito aos fundos), que não foi

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
193
bem entendida no momento de sua criação. Mais tarde, os alemães definiram dois outros
princípios que refletem o respeito aos fundos: o princípio da proveniência que costuma
ser tratado como sinônimo do princípio francês, e o princípio da manutenção da ordem
original, mais recentemente definido como o princípio da integridade ou indivisibilidade.
Além do respeito aos fundos, elencamos os princípios de Pertinência, Organicidade,
Territorialidade, Unicidade.
Esses são alguns dos principais pontos abordados na teoria arquivística no intuito
de aprimorar e tornar mais eficaz e efetivo o uso de arquivos, contribuindo para uma
melhor interação com as demandas da sociedade, sendo elas de ordem prática ou de
pesquisa.

Estudo de Usuários: importância

Os arquivos públicos municipais são considerados até os dias atuais como


depósitos da história e da memória dos órgãos do município. Nestas instituições, o
trabalho do arquivista perpassa a necessidade fundamental do profissional: reconhecer
seu dever, a importância de sua atuação, o compromisso que deve ser assumido, assim
como o tipo de usuário e as necessidades que o mesmo explicita quando realiza uma
pesquisa, pois, segundo Le Coadic,
(...) trabalhar com a matéria informação para obter um efeito que satisfaça a
uma necessidade de informação. Utilizar um produto de informação é
empregar tal objeto para obter, igualmente, um efeito que satisfaça a uma
necessidade de informação, que esse objeto subsista (fala-se então de
utilização), modifique-se (uso) ou desapareça (consumo) (LE COADIC, 1996,
p. 39, grifo nosso).

Deste modo, é imprescindível conhecer o que o usuário busca para melhor atendê-
lo. Por esse motivo, avaliar o perfil de usuário que acessa esses arquivos e conhecer suas
necessidades informacionais é fundamental. A intenção do nosso trabalho foi de avaliar
que tipo de pesquisa o usuário está buscando dentro da temática história e, assim,
conseguir disponibilizar ao mesmo tempo um material de forma eficiente e eficaz para
este estudante/pesquisador. Assim, segundo Pinheiro, “para que [os estudos de usuários]
possam ser desenvolvidos a nível de profundidade, é imprescindível fazer descrições do
comportamento do usuário, definir conceitos e teorizar relações” (PINHEIRO, 1982,
online).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
194
O acesso às informações, por meio dos documentos arquivísticos, servirá de prova
para os usuários, pois nunca perderão este atributo, e servirá de pesquisa para qualquer
cidadão. Em outras palavras, os usuários podem requerer do Arquivo tanto documentos
para comprovar direitos quanto informações contidas nos documentos para diversas
finalidades, como as de pesquisa e entretenimento.
Marília Dias e Daniela Pires (2004, p. 14) apresentam as etapas para o
desenvolvimento de um estudo de usuários:
1) Identificar os usuários e os usos da informação;
2) Descrever a população-alvo e o ambiente;
3) Identificar as necessidades dessa população;
4) Avaliar as necessidades;
5) Descrever, comunicar e implementar as soluções.

Das etapas indicadas por Dias e Pires (2004), identificar o usuário neste universo
de pesquisadores do APCBH, dentre eles podemos destacar arquitetos, cidadãos,
estudantes do curso de História, Geografia, Pedagogia, Arquivologia, Biblioteconomia,
foi importante para oferecer novos serviços prestados pelo arquivo para suprir suas
necessidades informacionais. Esses pesquisadores poderão estar à procura dos mais
variados temas, desde que estejam vinculados a necessidades de fontes informacionais
contidas no APCBH.

O Arquivo em Belo Horizonte

O Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte foi criado por meio da aprovação
às das Leis n. 5.899 e n. 5.900, de maio de 1991, que dispõem respectivamente sobre a
política municipal de arquivos públicos e privados, e sobre a criação do Arquivo Público
da Cidade de Belo Horizonte, além de prever a criação do Conselho Municipal de
Arquivos. A criação do APCBH foi fomentada a partir do Seminário de Bases para a
implantação de um arquivo moderno139.
Há vinte e seis anos, o APCBH cumpre a função de guardar, organizar, conservar
e dar acesso à documentação produzida pelo poder municipal, preservando a memória da
cidade. Em 2017, o Arquivo promoveu palestras, além de preparar obras para publicação,

139
Definindo-se como um arquivo moderno desde sua gênese, as ações da instituição sempre tiveram em
conta seu papel na gestão dos documentos da Prefeitura de Belo Horizonte. Sua atuação foi orientada pela
Lei Municipal n. 5.899 de 20 de maio de 1991, que dispõe sobre a política municipal de arquivos públicos
e privados e que se aproxima bastante da norma nacional.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
195
por meio da série “O Arquivo e a Cidade”. Neste período, o APCBH desenvolveu
diferentes trabalhos de preservação do patrimônio documental da capital, modernização
da gestão de documentos na administração pública municipal, educação patrimonial e
desenvolvimento e difusão do conhecimento científico sobre o município.
A principal preocupação que nos chamou a atenção para o desenvolvimento dessa
pesquisa foi o fato de haver uma diminuição do número de usuários do curso de História
da Universidade Federal de Minas Gerais no APCBH, sendo a principal hipótese
levantada para isso, o cancelamento da oferta da disciplina Arquivos e Museus Históricos,
ofertada para esses alunos. Por esse motivo, levantamos a hipótese de que a possibilidade
de o estudante de História conhecer a entidade custodiadora diminui bastante sem a oferta
dessa disciplina, acontecendo de visitá-la, possivelmente, somente no caso de fazer
estágio nesta instituição arquivística ou na ocasião de realizar alguma pesquisa, nem
sempre durante o percurso acadêmico. Procurou-se investigar, então, quem são os
usuários do APCBH formados ou graduandos em História, para conhecer quais usos que
os mesmos fazem dos arquivos da instituição e, assim, responder a esse questionamento.

Metodologia da pesquisa

Para o desenvolvimento da pesquisa tivemos dois momentos de coletas de dados.


O primeiro referente à escolha do público alvo, por meio da identificação e seleção das
fichas de atendimento de usuário preenchidas pelos pesquisadores no APCBH (Anexo
A). Por meio dela, foi possível identificar a população da nossa pesquisa e seguir para o
segundo momento da pesquisa, onde foi aplicado o segundo questionário (Apêndice A)
que consistiu em perguntas focadas ao desenvolvimento de respostas para alcançarmos o
objetivo deste trabalho.
Apesar de aplicarmos uma metodologia não probabilística para obtenção de
informações para análise nessa primeira etapa, compreendemos, ainda assim, se tratar de
uma pesquisa quantitativa, uma vez que os dados são analisados mediante sua frequência
e não quanto a sua subjetividade.
No que diz respeito à porcentagem das visitas:

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
196
Tabela 1 - Pesquisadores do APCBH – 2010-2015

Ano da Usuários Usuários com Usuários com Porcentagem


coleta de totais formação em e‐mail dos alunos de
dados História História
2011 509 36 32 7,07%
2012 547 45 23 8,22%
2013 1.465 39 16 2,6%
2014 632 37 10 5,85%
2015 619 24 08 3,8%
TOTAL: 3.772 181 86 4,7%
Fonte: elaborado pelas autoras

Verificou-se que apesar do número considerável de pesquisadores que frequentam


o Arquivo, o número daqueles com perfil condizente com as nossas necessidades de
pesquisa caiu drasticamente. Em média, temos um percentual muito baixo de
pesquisadores, especificamente, formados em História. Mesmo nos anos de maior
número de usuários no APCBH, somente 2,6 % deles foram da área de História. Ao
realizar a quantificação do perfil dos usuários, foi possível perceber que grande parte dos
pesquisadores são residentes da cidade de Belo Horizonte, e encontram-se realizando
pesquisa para o Trabalho de Conclusão do curso de História, uma vez que, pela datação
e informações dadas nas fichas de pesquisa, foi possível compreender que estavam
realizando o desenvolvimento de monografias, dissertações e teses sobre os mais variados
temas como: bairros, cinemas, Parques da Cidade e a história da construção e
planejamento de Belo Horizonte. Dentre elas, computamos como os três temas mais
pesquisados nos anos que compreendem a pesquisa: bairros da cidade, história de Belo
Horizonte e cultura. Houve uma consulta para comprovação de direitos, quando foi
consultado o Livro de Registros de Sepultamento do Cemitério do Bonfim para a
localização do jazigo de sepultamento de familiares a fim de confecção de inventário.
O presente trabalho, por conveniência, utilizou a amostragem não probabilística
na pesquisa, selecionando os elementos da população sem sorteio, de forma não aleatória.
No caso dos usuários do arquivo, foram selecionados para a amostragem aqueles que
informaram em suas fichas cadastrais seu grau de formação no curso de história e seus
endereços de e-mail. Para estes usuários, foram encaminhados e-mails com um novo
questionário explicando os motivos da pesquisa, buscando dados e informações para uma
melhor definição das fontes e temas que haviam no questionário da instituição. Dos

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
197
questionários encaminhados, foram retirados uma parcela das respostas para servir de
amostra para pesquisa.
A etapa seguinte da pesquisa nos ajudou a responder a questão sobre a diminuição
das consultas em nosso acervo, a partir da análise quantitativa dos dados coletados, uma
vez que a pesquisa até o presente momento havia confirmado nossa hipótese de
diminuição de público. Com a segunda etapa tínhamos a pretensão de saber os motivos
que levaram a essa diminuição.
Independente da etapa da pesquisa, um dado interessante a ser levado em
consideração, é o perfil do usuário dessa pesquisa e os temas solicitados por esse público
para estudo. Os mesmos refletem naturalmente as necessidades e interesses desses
pesquisadores. Podemos depreender que este perfil reflete não somente interesses
particulares, como a busca por um documento familiar, mas também as necessidades de
um coletivo, em se tratando de temas de trabalho para uma disciplina que estuda
especificamente, História e Museus.
Esse tipo de análise traz uma demanda pouco exequível para o momento, mas fica
de ponto de partida para um aprofundamento dos estudos referentes a esse artigo para um
momento futuro.

Coleta de dados
Figura 1 - Durante a graduação você foi contemplado com alguma bolsa?

Opções de Quantidade Total


Respostas
Sim 80% 8
Não 20% 2
TOTAL: 100% 100

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
198
Podemos perceber que 80% dos entrevistados possuíam bolsa de estudo no
momento da graduação e somente 20% não foram contemplados com este benefício. Com
isso podemos observar que na sua grande maioria são alunos que se dedicavam de forma
praticamente direta aos estudos, o que muito influencia os temas escolhidos e os usos que
fazem das ferramentas disponíveis para pesquisa.

Figura 2 - Durante a graduação você participou de algum grupo de pesquisa?

Opções de Quantidade Total


Respostas
Sim 60% 6
Não 40% 4
TOTAL: 100% 100

Podemos perceber que 60% dos entrevistados participaram de uma bolsa de


pesquisa momento da graduação e 40% não foram contemplados com este benefício,
gerando um estímulo diferenciado ao desenvolvimento de algumas temáticas e,
consequentemente, sua busca por fontes em arquivos.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
199
Figura 3 - Há quanto tempo você se dedicou a esta pesquisa?

A maior parte dos entrevistados, cerca de 50%, se dedicaram à pesquisa durante


1 ano, outros se dedicaram durante 2 anos, no caso 30% dos entrevistados. Já os que se
dedicaram por 3 anos e 4 meses, temos o quantitativo de 10% dos pesquisadores
respectivamente. O tempo dedicado a uma pesquisa também é um fator importante, pois
pode informar o teor de complexidade para realizá-la ou até mesmo demonstrar
dificuldades pessoais para o desenvolvimento da mesma.

Tabela 2 - Em qual temática relacionada a cidade sua pesquisa foi desenvolvida

Cerca de 66% dos entrevistados pesquisou na área de História no APCBH. Os


outros temas mais pesquisados: Cultura, Política e Saúde mantiveram o mesmo interesse
em 11% respectivamente.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
200
Pergunta 5 - A sua pesquisa no APCBH atendeu à sua demanda informacional para o seu
trabalho (graduação, pós-graduação)?

Na totalidade dos entrevistados, todos tiveram as suas demandas informacionais


atendidas no processo de pesquisa no acervo do APCBH. Resultado muito positivo tanto
para o pesquisador, como para a instituição.

Figura 4 - Com que frequência você foi ao APCBH realizar a sua pesquisa?

Cerca de 40% dos entrevistados foram ao APCBH uma vez por semana para
realizar a sua pesquisa. Cerca de 20% foram uma vez ao mês ou uma vez ao ano. Somente
10% dos entrevistados foram ao APCBH mais de uma vez por semana realizar a sua
pesquisa. Isso pode demonstrar o caráter da pesquisa, caso seja para o desenvolvimento
de um Trabalho de conclusão de Curso - TCC, uma pesquisa de mestrado, uma pesquisa
de doutorado ou uma iniciação científica e seu grau de dificuldade.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
201
Figura 5 - Qual é o seu grau de satisfação em relação aos itens abaixo considerando que:
Ótimo: 5 Bom: 4 Regular: 3 Ruim: 2 Péssimo: 1

1 2 3 4 5 6

Não se
Opções de Resposta Ótimo Bom Regular Ruim Péssimo TOTAL
aplica
1. Atendimento no Arquivo 80% 20% 0% 0% 0% 0% 100%
8 2 0 0 0 0 10
2. Infraestrutura para pesquisa 40% 30% 30% 0% 0% 0% 100%
na Sala de Consultas 4 3 3 0 0 0 10
3. Infraestrutura para o usuário 40% 50% 10% 0% 0% 0% 100%
8 2 1 0 0 0 10
4. Instrumentos de Pesquisa 20% 70% 10% 0% 0% 0% 100%
(índices, inventários, 2 7 1 0 0 0 10
5. Obtenção de dados quanto 30% 50% 10% 0% 0% 10% 100%
ao assunto pesquisado 3 5 1 0 0 1 10
6. Rapidez na busca e 40% 50% 0% 0% 0% 10% 100%
disponibilização do material 4 5 0 0 0 1 10
pesquisado

Podemos observar que mesmo havendo respostas informando que as condições do


APCBH são regulares, ainda assim o saldo é muito positivo, alcançando um nível de
satisfação muito grande com relação aos seus serviços e infraestrutura.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
202
Pergunta 8 - Se desejar, deixe alguma consideração sobre o atendimento no Arquivo
Público da Cidade de Belo Horizonte:

Somente um pesquisador deixou um comentário sobre o atendimento no APCBH


e foi de uma forma elogiosa aos servidores que atuam na sala de consultas da instituição.
No que diz respeito a segunda etapa da pesquisa, em seu nível qualitativo,
novamente buscamos uma amostra de estudantes que se dispusessem a responder, dessa
vez, um questionário verbalmente com indicações mais específicas sobre a disciplina
estudada e a escolha de tema de pesquisa. O fato de os estudantes respondentes da
primeira etapa via e-mail, não serem os mesmos que responderam a segunda etapa por
meio de entrevista presencial, se deu pela necessidade de encontrarmos caminhos para
obtenção de informações que estivessem ao nosso alcance de realização.
As entrevistas foram realizadas durante o período de ocupação das Universidades
Federais, sendo os alunos participantes, da ocupação do complexo da Escola de Ciência
da Informação - ECI e Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH em
novembro de 2016, por esse motivo tivemos um número baixo de adesões, o que é um
dado a ser considerado em se tratando se resultados obtidos em meios adversos. O intuito
foi buscar a resposta de pelo menos 25 pessoas, tendo em vista que este número
corresponderia a mais ou menos 10% do número total de alunos dentro do perfil escolhido
(porcentagem que achamos pertinente para uma amostragem, tendo em vista que de um
público de 250 discentes 25 seria uma quantidade possível de efetivarmos a entrevista)
do total de alunos que atualmente frequentam o curso na UFMG.
Os participantes entrevistados tinham idade entre 19 e 30 anos. A escolaridade
abrangeu alunos de graduação e mestrado (87% e 12%) respectivamente, não obtendo
nenhum entrevistado no curso em nível de doutorado. Os alunos de graduação
entrevistados estavam frequentando do 1º ao 6º período do curso de História.
Somente um aluno conhecia o APCBH, tendo realizado pesquisa nas
dependências do arquivo. Um segundo aluno informou ter pesquisado o acervo do
arquivo, porém somente via internet pois seu interesse foi a revista online disponibilizada
no site do APCBH. Apesar da maior parte dos entrevistados saber qual é o objetivo de
um arquivo municipal, porém, foram poucos aqueles que informaram terem ido a um. No

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
203
nosso caso, durante toda a análise dos dados, fazemos referência ao APCBH, para
pesquisa ou visitação.
Pelo fato de a grande maioria dos entrevistados não terem tido acesso ao acervo
que é oferecido pelo APCBH, foi difícil obter respostas para os assuntos que possuíam
interesse no APCBH. Entre as duas pessoas que já tiveram acesso ao mesmo, os temas
que surgiram foram: estudo de gênero e censura a mulheres no teatro durante a Ditadura
Militar. Os entrevistados não souberam determinar o seu grau interesse em desenvolver
algum tipo de pesquisa com os arquivos do APCBH. Compreendemos que essa
informação é o reflexo de uma prática pouco aliada a visitas e conhecimento do acerco
analisado. Já alguns entrevistados demonstraram interesse em desenvolver pesquisas no
APCBH, mas não nesse momento ou ainda responderam que são sabem se no APCBH
especificamente por não conhecerem o acervo e não saberem se suas temáticas serão
contempladas, mesmo compreendendo que é um arquivo público municipal sobre a
história de Belo Horizonte. Dentre aqueles que tinham um tema de pesquisa (sendo elas
duas pessoas), os motivos estavam relacionados a questões pessoais, sem estarem ligados
a uma disciplina específica.

Resultados da pesquisa

Podemos depreender da coleta de dados por meio da pesquisa qualitativa que, em


sua maioria, o público da pesquisa consistiu em alunos em nível de graduação. Também
em sua grande maioria não obtivemos respostas afirmativas quanto à frequência na
disciplina que estava sendo analisada, no caso, “Arquivos e Museus Históricos”, uma vez
que esses alunos eram oriundos do bacharelado do curso, para o qual a mesma não estava
mais sendo ofertada. Constatou-se que a não oferta da disciplina em questão não
influenciou na procura de temas para pesquisa no APCBH, porém modifica a percepção
do estudante quanto a novos temas passíveis de serem pesquisados.
Observamos, a partir dessa informação, que aqueles que tinham conhecimento do
que se trata o APCBH, seus objetivos ou o tipo de acervo que o mesmo mantém, eram
aqueles alunos que desenvolveram alguma pesquisa a respeito da cidade. Os demais,
mesmo que fossem alunos iniciados em pesquisa científica, não tinham muito
conhecimento dos questionamentos realizados a respeito do arquivo, demonstrando um
distanciamento de temas ligados ao espaço em que vivem ou transitam, e

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
204
desconhecimento dos instrumentos e instituições disponíveis para a realização de
pesquisas voltadas a sua própria região.
Chegamos ao entendimento com as respostas do questionário, que a não oferta de
uma disciplina que estimule a frequência dos alunos da FAFICH a espaços como o
APCBH, é um dos motivos, e não o único ou principal, agravantes no que se refere ao
aumento da dificuldade de diálogo e conhecimento de um mecanismo importante de
pesquisa e guarda da memória da cidade. Uma vez não sendo conhecedor desses espaços,
dificilmente este discente se tornará um professor que estimule da mesma forma seus
alunos a esse hábito. Um outro aspecto que devemos considerar, como pertinente, porém
não isolado de outros fatores, estaria relacionado com o tema das pesquisas realizadas na
UFMG. Por estas não contemplarem ou estimularem a História recente de Belo
Horizonte, podem contribuir para a falta de conhecimento que os alunos possuem dos
próprios espaços de pesquisa da cidade. Outro fato a ser analisado são os acervos das
instituições arquivísticas estarem disponível na Web. Um dado de mão dupla uma vez
que facilita a vida do usuário que pretende realizar uma pesquisa, mas tem dificuldade de
se deslocar até o arquivo, mas que também gera um esvaziamento dos espaços de pesquisa
e consequentemente de encontros com documentos que embora não sejam o foco de um
estudo, contribuem para o conhecimento da área.

Considerações finais

O que podemos pontuar com as análises dos dados coletados e com as entrevistas
feitas com os alunos do curso de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
(FAFICH) foi que apesar da disciplina Arquivos e Museus Históricos deixar de ser
ofertada, isso não impediu ou fez ocorrer a diminuição do número de estudantes de
história ao APCBH. Isso porque, analisando o número de visitas dos estudantes de
história, antes e depois da oferta desta disciplina, não observamos diminuição da
frequência desses estudantes, mas sim do grande público. Se questionarmos os números,
essa constatação não fornece um resultado positivo, uma vez que se mantendo o número
de visitas desse público, podemos chegar à conclusão de que os interesses que haviam ao
frequentar o arquivo mantiveram-se, ou seja, não aumentaram mesmo havendo um
exercício para isso com a oferta de um conteúdo que, em suma, deveria estimular ainda
mais o comparecimento dos discentes ao APCBH, pois promoveria pesquisas e
discussões a respeito desses espaços e acervos.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
205
Por ser uma disciplina ofertada apenas para a formação em licenciatura, pudemos
chegar a mais uma conclusão: o interesse referente a visitas ao APCBH não se trata da
formação do aluno em licenciatura ou bacharelado, mas sim, das temáticas de pesquisas
nas quais está interessado, independente de se este é voltado à licenciatura ou não.
Mesmo com a diminuição de visitas do público em geral, a consulta ao acervo da
Secretaria Municipal Adjunta de Regulação Urbana aumentou durante os anos de análise
desta pesquisa, sendo este o acervo mais consultado do APCBH. As plantas e os projetos
arquitetônicos são documentos probatórios, sendo muito consultados por arquitetos e
advogados em processos judiciais e reformas, que necessitam dessa verificação.
O objetivo do trabalho foi alcançado, pois identificamos que a questão da
diminuição dos estudantes de História da UFMG não ocorreu por conta da não oferta da
disciplina Arquivos e Museus Históricos. Há possivelmente outras razões atreladas às
necessidades de pesquisa em seus mais variados níveis acadêmicos, além do interesse
pessoal do pesquisador que procura o APCBH.
Com relação ao público pesquisado também podemos salientar os temas das
dissertações e teses da pós-graduação em História da UFMG que hoje estão mais voltados
para temas do século XVII e XVIII sendo que o acervo do APCBH se concentra nos
séculos XIX e XX, levando-se em conta que Belo Horizonte tem somente 120 anos de
vida. A diminuição da frequência de visitas do historiador no APCBH pode estar
relacionada também com a disponibilização dos acervos via web para a consulta. Esse,
porém, já seria foco para uma próxima pesquisa, não abrangendo o tema estipulado e
trabalhado nesse momento.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
206
ANEXO

ANEXO A - Formulário - Atendimento ao usuário do APCBH

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
207
APÊNDICE

APÊNDICE A – Questionário para o público alvo da pesquisa

QUESTIONÁRIO PARA OS ESTUDANTES DO CURSO DE HISTÓRIA DA


UFMG QUE JÁ VISITARAM O APCBH

Apresentação da Pesquisa
O preenchimento do questionário é individual e direcionado ao pesquisador que já visitou
o APCBH e utilizou seus serviços de arquivo. Suas respostas contribuirão para um
trabalho realizado na Disciplina Usuários da Informação, do curso de Arquivologia da
Escola de Ciência da Informação da UFMG. Servirá para identificar e caracterizar
interesses e necessidades de informação dos alunos de graduação e pós-graduação do
curso de História da UFMG.

Sobre a pesquisa do Usuário


1. Durante a graduação você foi contemplado com alguma bolsa?
[ ]Sim
[ ] Não

2. Durante a graduação você participou de algum grupo de pesquisa?


[ ]Sim
[ ] Não

3. Há quanto tempo você se dedicou à esta pesquisa? _____________________

4. Em qual temática relacionada a cidade sua pesquisa foi desenvolvida:


[ ] Arquitetura
[ ] Crescimento populacional
[ ] Cultura
[ ] História
[ ] Movimentos Sociais
[ ] Política
[ ] Saúde
Outros. Especifique: _____________________________
Sobre a demanda de pesquisa
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
208
5. A sua pesquisa no APCBH atendeu à sua demanda informacional para o seu trabalho
(graduação, pós-graduação)?
[ ]Sim
[ ] Não

6. Com que frequência você foi ao APCBH realizar a sua pesquisa?


[ ] Mais de uma vez por semana
[ ] Uma vez por semana
[ ] Uma vez por mês
[ ] Bimestralmente
[ ] Uma vez ao ano
[ ] Outro. Especifique: _______________________________

7. Qual é o seu grau de satisfação em relação aos itens abaixo considerando que: Ótimo: 5
Bom: 4 Regular: 3 Ruim:2 Péssimo: 1

8. Se desejar, deixe alguma consideração sobre o atendimento no Arquivo Público da


Cidade de Belo Horizonte:

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
209
APÊNDICE B – Entrevista com o público alvo da pesquisa

QUESTIONÁRIO DE ENTREVISTA PARA OS ESTUDANTES DO CURSO DE


HISTÓRIA DA UFMG QUE PRETENDEM VISITAR O APCBH

Apresentação da Pesquisa
O fornecimento de informações para essa pesquisa é individual e direcionado ao
aluno/pesquisador que pretende visitar o APCBH e utilizará seus serviços de arquivo.
Suas respostas contribuirão para um trabalho realizado na disciplina Usuários da
Informação, do curso de Arquivologia da Escola de Ciência da Informação da UFMG.
Servirá para identificar e caracterizar interesses e necessidades de informação dos alunos
de graduação e pós-graduação do curso de História da UFMG no uso do APCBH.
1. Nome:
2. Idade:
3. Nível de escolaridade e período:
[ ] Graduação [ ] Mestrado [ ] Doutorado
3.1 Período:

4. Você cursou a disciplina sobre arquivos na FAFICH?

5. Você conhece Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – APCBH.

6. Sabe o objetivo de um arquivo municipal?

7. Já consultou o acervo do APCBH? Qual foi a primeira vez que isso ocorreu?

8. Dentro os assuntos oferecidos qual o seu principal interesse no APCBH?

9. Tem interesse em desenvolver algum tipo de pesquisa com os arquivos do APCBH?


De qual temática?
10. Se a resposta for afirmativa para a pergunta anterior, qual o tema tem interesse ou que
já está desenvolvendo sua pesquisa.
11. Por qual motivo se interessou em desenvolver tal pesquisa?

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
210
Referências

ARQUIVO NACIONAL (BRASIL). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística.


Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. Disponível em:
<http://www.portalan.arquivonacional.gov.br>. Acesso em: 18 de jun. 2017.

ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. Estudos de usuários conforme o paradigma social da


ciência da informação: desafios teóricos e práticos de pesquisa. Inf. Inf., Londrina, v.
15, n. 2, p. 23 - 39, jul./dez. 2010. Disponível em: <http://www.uel.br>. Acesso em: 02
set. 2016.

BARBETTA, Pedro Alberto. Estatística aplicada às Ciências Sociais. 9.ed.


Florianópolis: Ed. Da UFSC. 2014.

BELO HORIZONTE. Lei n. 5.899, de 20 de maio de 1991. Dispõe sobre a política


municipal de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Disponível em: <
https://www.jusbrasil.com.br/home> Acesso em: 26 ago. 2016.

BELO HORIZONTE. Lei n. 5.900, de 20 de maio de 1991. Dispõe sobre a criação do


Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Disponível em:
<http://portalpbh.pbh.gov.br> Acesso em: 22 ago. 2016.

DIAS, Maria Matilde; PIRES, Daniela. Usos e usuários da informação. São Carlos:
Edufscar, 2004.

FIGUEIREDO, Nice Menezes de. Estudos de Uso e Usuários da Informação. Brasília:


IBICT, 1994. Disponível em: <http://livroaberto.ibict.br/>. Acesso em: 02 set. 2016.

LE COADIC, Yves-François. A ciência da Informação. Brasília: Briquet de


Lemos/Livros, 1996.

PINHEIRO, Lena Vânia Ribeiro. Usuários – informação: o contexto da ciência e da


tecnologia. Rio de Janeiro: IBICT, 1982. Disponível em: <http://biblioteca.ibict.br>.
Acesso em: 01 set. 2016.

RODRIGUES, Ana Márcia Lutterbach. A teoria dos arquivos e a gestão de documentos.


Perspect. ciênc. inf. [online]. 2006, vol.11, n.1, p. 102-117. Disponível em:
<http://dx.doi.org>. Acesso em: 23 ago. 2016.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
211
EUGENIA E RAÇA EM BELO HORIZONTE:
UM DISCURSO A PARTIR DA REVISTA ALTEROSA

EUGENIA AND RACE IN BELO HORIZONTE:

A SPEECH FROM THE ALTEROSA MAGAZINE

Ivana Morais Silva de Carvalho*

Lucimar Lacerda Machado**

Resumo

A década de 1930 ficou marcada pela vigência dos regimes totalitários, e pela presença
do discurso de raça e eugenia nas sociedades da época. Em Belo Horizonte, a Revista
Alterosa, um periódico que circulou na capital mineira entre 1939 e 1964, fez um forte
diálogo com as questões políticas do momento, trazendo em suas publicações contextos
com ideologias nazifascistas, o que aponta para a presença do discurso de raça e eugenia
em sua sociedade. Assim, a proposta deste artigo é pensar e entender como a capital
mineira, através da análise de exemplares da Revista, entre os anos de 1939 a 1945, se
inseriu no contexto de guerra, e como o discurso de raça e de eugenia se fez presente em
sua sociedade.

Palavras-chave: Revista Alterosa; Eugenia; Segunda Guerra Mundial.

Abstract

The 30´s was marked by the totalitarian regimes, and by the race speech and eugenics in
the society of that time. In Belo Horizonte, the Alterosa Magazine, a periodic that ran in
the capital of Minas Gerais between 1939 and 1964, had a strong dialog about the political
questions of the moment, bringing on its publications Nazi-fascists ideological contexts ,

*
Historiadora – Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte; Pós- graduanda em Teologia - Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia; Pós-graduanda em Memória e Historiografia: identidades e patrimônio
cultural em Minas Gerais – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Auxiliar Administrativo;
ivanamoraiss@gmail.com.
**
Orientadora – Profa. Ms., docente no Centro Universitario Estacio de BH -
lucimar.machado@yahoo.com.br

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
212
that points to a speech of race and eugenics in its society. That way, the proposal of this
articles is to present and understand how Minas Gerais Capital, through the analysis of
the magazine copies, between 1939 and 1945, presented the war context, and how the
race speech and eugenics made it self present in its society.

Keywords: Eugenics; Alterosa Magazine; Second World War.

1. Introdução

A partir da crise mundial vivida em 1929, o autoritarismo, o totalitarismo, o


nacionalismo e o corporativismo começaram a ganhar força nos países da Europa contra
o modelo liberal pelo qual eram organizadas essas sociedades anteriormente. A década
de 1930, particularmente, ficou marcada pela vigência dos Estados Totalitários140 que
acabaram por levar o mundo ao confronto da 2ª Guerra Mundial que iniciou em 1939.
Com a perda da guerra e enfrentando as exigências do Tratado de Versalhes, a
Alemanha se tornou um campo propício para a propagação do discurso nacionalista. Em
1919, Adolf Hitler (1889-1945) se tornou líder do Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães, assumindo o poder em 1933 com uma proposta nacionalista,
ultradireitista, antissemita, militarista, e contando com o apoio da maioria da população,
que se via desgastada e humilhada pelas condições do pós-guerra. Experiências parecidas
ocorreram também na Itália, com Benito Mussolini (1883-1945), e em Portugal, com
Antônio Salazar (1889- 1970) (PANDOLFI, 1999).
Os regimes totalitários que surgiram após a Primeira Guerra Mundial eram
contrários ao ideal liberal, aos ideais de esquerda, e se caracterizavam pelo governo forte,
centralizado, por um extremo sentimento nacionalista, e pelo apoio e organização das
massas. A América Latina, que se viu envolvida na crise do pós-guerra, sofreu a
influência dos regimes fascistas europeus, que era exercida em regimes autoritários,
trazendo também uma forte presença dos discursos de raça e de eugenia (HOBSBAWM,
2014).
No Brasil, em 1930, um movimento político destitui o presidente Washington
Luiz (1869 – 1957) e leva ao poder Getúlio Dornelles Vargas (1882- 1954). O
nacionalismo, o populismo, o totalitarismo, o controle da economia pelo Estado,

140
Veja sobre Totalitarismo em Bobbio (1983).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
213
caracterizaram seu governo, o que ocasionou o afastamento das elites civis e militares do
poder. O país passou então por mudanças radicais: de agrário a exportador, buscando a
industrialização e almejando se transformar em uma nação urbana. Além disso, Vargas
procurou implantar um forte sentimento de identidade nacional.
Em Minas Gerais, Benedito Valadares (1892 – 1973) é nomeado interventor em
1933 por Getúlio Vargas, exercendo o poder até a queda do Estado Novo em 1945. Nessa
mesma época, Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976) foi nomeado prefeito de
Belo Horizonte por Valadares, governando de 1940 a 1945 fazendo uma administração
inovadora. Assim, enquanto no Brasil o presidente Vargas concebia um projeto nacional
de modernização do país, na prefeitura de Belo Horizonte Kubitschek modernizava
demonstrando empreendedorismo o que aponta para uma sintonia de Minas com o
processo político e econômico vigente no país, na época.
O discurso resultante desse tempo esteve presente em publicações da época como
jornais, revistas e propagandas. No mesmo período, surgiu em Belo Horizonte a Revista
Alterosa, um periódico mensal141 que circulou entre 1939 e 1964 na capital mineira, e que
fez um forte diálogo com as questões políticas do momento, trazendo inclusive, em suas
publicações contextos nazifascistas, o que evidencia a presença de alguns discursos de
raça e de eugenia no pensamento de parte da sociedade mineira.
Através de pesquisa realizada no acervo do Arquivo Público da Cidade de Belo
Horizonte - APCBH, este artigo foi elaborado a partir da análise de exemplares da Revista
Alterosa, dentro do recorte temporal de 1939 a 1945, onde foram selecionadas
propagandas, reportagens, recortes, textos que permitiram pensar e entender como que,
através de uma revista, parte da sociedade de Belo Horizonte se inseriu nesse contexto de
guerra e como o discurso de raça e eugenia se fez presente.

141
A revista inicialmente tinha uma tiragem mensal, mas a partir de 1953 passa a circular
quinzenalmente, até julho de 1960. (RODRIGUES, 2013).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
214
2. Ascensão do nazismo e sua influência no Brasil

Após a Primeira Guerra Mundial, houve uma ascensão da direita radical no


mundo. Esses movimentos radicais de direita existiam desde o final do século XIX, mas
foram mantidos sob controle até 1914. Após o conflito mundial, essa direita radical teve
uma grande ascensão, que pode ser explicada por diversos fatores, dentre eles,
principalmente, o advento da Revolução Russa, pois a partir dela o poder operário e a
revolução social se tornaram uma realidade. Assim, “o que deu ao fascismo sua
oportunidade após a Primeira Guerra Mundial, foi o colapso dos velhos regimes, e com
eles das velhas classes dominantes e seu maquinário de poder, influência e hegemonia”
(HOBSBAWM, 2014, p.127).

Portanto,
A vitória do bolchevismo produziu novos medos e provocou a transformação
de movimentos de critica ao capitalismo em movimentos contra-
revolucionários. Ao anticapitalismo, acrescenta-se o antimarximo na
composição das doutrinas fascistas, na situação de crise provocada pela guerra
e pelo temor da revolução comunista, setores das elites tradicionais e da classe
média passaram a ver a política fascista como alternativa para os problemas da
sociedade (MILZA, 1985 apud CAPELATO, 1995, p.90).

Em alguns países a população se encontrava descontente pela crise econômica


vigente, pelo ressentimento nacionalista causado pela guerra, fatores esses que
propiciaram condições para a instauração desses movimentos. Em outros países nos quais
os antigos regimes não entraram em colapso, e onde essas classes dominantes
continuaram em funcionamento, como Grã Bretanha e França, e em países recém-
independentes como a nova Polônia, esses movimentos não encontraram lugar para
ascenderem. Essas condições acabaram por transformar esses movimentos de direita
radical em poderosas forças organizadas. Na Itália e Alemanha, países onde esses
movimentos aconteceram de forma mais contundente, os mesmos chegaram ao poder de
uma forma constitucional, e por iniciativa dos antigos regimes. No entanto, assim que
ascenderam ao poder, tomaram posse de tudo e se recusaram a aceitar as regras que eram
praticadas pela política anterior (HOBSBAWM, 2014).

Os movimentos de direita traziam em sua ideologia o conservadorismo, e o seu


surgimento pode ser explicado como uma reação ao capitalismo e à grande migração de

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
215
estrangeiros no mundo, considerada a maior da História. Esse fator intensificou a
xenofobia de massa, e o racismo que, assim, tornou-se expressão comum, pois,

(...) o cimento comum desses movimentos era o ressentimento de homens


comuns contra uma sociedade que os esmagava entre a grande empresa de um
lado, e os crescentes movimentos trabalhistas do outro. Ou que, na melhor das
hipóteses, os privava da posição respeitável que tinham ocupado na ordem
social, e que julgavam lhes ser devida, ou do status social numa sociedade
dinâmica a que achavam que tinham direito a aspirar. Esses sentimentos
encontram sua expressão característica no anti-semitismo que começou a
desenvolver movimentos específicos baseados na hostilidade ao judeus no
último quartel do século XIX em vários países (HOBSBAWM, 2014,
p.122,123).

Os judeus, que foram o alvo principal do racismo nazista, estavam presentes no


mundo todo e se tornaram símbolos das injustiças praticadas pelo capitalismo, uma vez
que tinham um engajamento com as ideias iluministas e com as ideias da Revolução
Francesa, o que acabou por lhes dar autonomia e emancipação, tornando-os visíveis ao
mundo (HOBSBAWM, 2014).
O termo raça surgiu pela primeira vez no início do século XIX com Georges
Cuvier (1769 – 1832) e propunha a ideia da existência de heranças físicas permanentes
entre os vários grupos humanos. O darwinismo trazia os conceitos de competição, seleção
do mais forte, evolução, hereditariedade, definições essas que tiveram interpretações
desfocadas do que foi originalmente traçado para analisar a sociedade humana, inclusive
na politica na qual essas ideias serviam como sustentação teórica para práticas
conservadoras. Assim, o darwinismo social, ou teoria das raças postulava que todo
cruzamento seria um erro uma vez que as raças seriam fenômenos finais, sendo então
enaltecidos os tipos puros, e a mestiçagem tida como degeneração racial e social, criando-
se um ideal político onde se pretendia a submissão ou eliminação das raças inferiores
(SCHWARCZ, 1993). O racismo que vigorava no período é explicado pelas teorias do
darwinismo, do evolucionismo e do determinismo social que alcançaram muita força na
mesma época. Segundo essas teorias, “a raça era um ‘fenômeno essencial’ e havia uma
grande distância entre grupos humanos, por exemplo, o negro e o branco” (DIETRICH,
2007, p.130). Muitos historiadores tentaram imputar à ciência e à pesquisa filológica ou
biológica a explicação da ideologia racista. Na realidade o racismo era usado para explicar

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
216
o nacionalismo exagerado, e assim o imperialismo se apossou da ideologia racista como
sua principal arma (ARENDT, 1973). Sendo assim,

A ideologia racial, e não a de classes, acompanhou o desenvolvimento da


comunidade das nações européias, até se transformar em arma que destruiria
essas nações. Historicamente falando, os racistas, embora assumissem
posições aparentemente ultranacionalistas, foram piores patriotas que os
representantes de todas as outras ideologias internacionais; foram os únicos
que negaram o princípio sobre o qual se constroem as organizações nacionais
de povos — o princípio de igualdade e solidariedade de todos os povos,
garantido pela idéia de humanidade (ARENDT, 1973, p.191).

A grande crise que a Alemanha passou após a Primeira Guerra, é tida como fator
preponderante para explicar o surgimento do nazismo. No entanto, a Europa também
estava em crise, e, em muitos países, surgiram líderes fascistas e ideologias de direita,
mas “em nenhum país foi elaborado e implementado um projeto como o de Hitler”
(CAPELATO, 1995, p.83). No plano nazista, regras básicas de convivência foram
violadas, valores foram invertidos e a maioria da população aceitou, envolveu-se e
legitimou essas ações, pois acreditavam que fosse bom para a comunidade. A ideia do
nazismo era embelezar o mundo tirando o feio, o sujo, o impuro e, para isso, usou as
ideias de beleza, pureza e harmonia, já presentes na cultura alemã, impondo em nome
delas o ódio, a violência, a destruição, a morte. (CAPELATO, 1995). Portanto,

Para uma abordagem histórica do fenômeno nazista, faz-se primordial


desvendá-lo, não como uma obra de meia dúzia de endemoniados; é preciso
alcançar a dimensão social de uma experiência originária de sérios embates,
fruto da crise porque passava o mundo capitalista. Nessa mesma trilha, é
preciso acompanhar a dimensão específica que o fenômeno alcança na
Alemanha, onde a crise explode, ativa e torna agudos problemas que já vinham
de muito antes: a tradição autoritária prussiana, o nacionalismo exacerbado e
o racismo (LENHARO, 2007, p.11).

O surgimento do nazismo se deu em meio ao medo, revolta e insegurança


presentes na população alemã, sentimentos gerados pela inflação enorme, pela crise
econômica, pelas fronteiras modificadas, pela carga financeira das reparações do pós-
guerra, dentre outros fatores.

A psicose da guerra, que se espalhou pela Europa a partir de 1914, atingiu o


ápice na Alemanha derrotada. As lembranças do conflito provocavam horror e

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
217
a derrota estimulava desejos de desforra. Na frágil República de Weimar, o
nazismo se fortaleceu, acenando com um projeto de libertação do passado e
purificação. [...] O sacrifício dos impuros na Alemanha de Hitler visava unir
os corações arianos, estabelecendo a ordem. [...] o sacrifício das vítimas, os
inimigos da raça ariana, representava para os nazistas, a purificação da
sociedade (CAPELATO, 1995, p.90,92).

Dentro desse panorama, Hitler também trazia, em seu discurso, ideias de eugenia,
conceito que esteve presente no pensamento europeu desde meados do século XIX e que
se baseava em teorias que tentavam explicar como se dava o processo de transmissão de
características entre as gerações (CONT, 2008).

Com o propósito de aplicar os pressupostos da teoria da seleção natural ao ser


humano, Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin, em 1883,
reunindo duas expressões gregas, cunhou o termo eugenia ou bem nascido. A
partir desse momento, eugenia passou a indicar as pretensões galtonianas de
desenvolver uma ciência genuína sobre a hereditariedade humana que pudesse,
através de instrumentação matemática e biológica, identificar os melhores
membros – como se fazia com cavalos, porcos, cães ou qualquer animal –,
portadores das melhores características, e estimular a sua reprodução, bem
como encontrar os que representavam características degenerativas e, da
mesma forma, evitar que se reproduzissem (CONT, 2008, p.202).

A eugenia era um avançado darwinismo social que tinha o proposito de intervir


na reprodução e provar que “a capacidade humana era função da hereditariedade e não da
educação” (SCHAWARCZ, 1993, p.60), transformando-se em um movimento científico
e social vigoroso. Segundo as ideias eugênicas da corrente do darwinismo social, as
sociedades puras e sem miscigenação estariam propensas ao progresso, sendo a evolução
uma opção obrigatória. Seguindo esse pensamento, uma nação desenvolvida seria o
resultado de uma conformação racial pura (SCHWARCZ, 1993). Assim,

Como ciência, ela supunha uma nova compreensão das leis da hereditariedade
humana, cuja explicação visava a produção de nascimentos desejáveis e
controlados; enquanto movimento social, preocupava-se em promover
casamentos entre determinados grupos e – talvez o mais importante –
desencorajar certas uniões consideradas nocivas à sociedade (SCHWARCZ,
1993, p.60).

Esse pensamento foi usado como justificativa para práticas discriminatórias e


racistas, aplicando-se ao ideário nazista que enfatizava a manutenção da raça e do sangue

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
218
(MACIEL, 1999). Assim, o nazismo oferecia à sociedade alemã um retorno ao passado,
pois prometia um “Homem Novo – ariano – contra seus corruptores: judeus e outros”
(CAPELATO, 1995, p.85). E Hitler conseguiu explorar bem os sentimentos do pós-
guerra alcançando assim o apoio de grande parte da população.
Outro fator interessante era a propaganda eleitoral nazista que levou o eleitorado
à inclinação para o voto radical, pois atendia aos anseios de todas as classes: os nazistas
tinham vínculos com setores da burguesia, prometiam aos trabalhadores salários melhores
e participação nos lucros das empresas, nacionalização dos trustes; aos camponeses
reforma agrária, perdão das dívidas, preços melhores para os produtos agrícolas e defesa
dos artesãos e comerciantes (LENHARO, 2007).
Na América Latina o fascismo exerceu enorme influência, tanto em políticos
quanto em regimes ditatoriais. Os americanos temiam um cerco nazista nesse continente,
mas esse temor se mostrou infundado já que a influência nazista aconteceu internamente
em alguns países e, mesmo esses, quando entraram na guerra, se declararam ao lado dos
Aliados (HOBSBAWM, 2014). Sendo assim podemos apontar que,

O que os líderes latino americanos tomaram do fascismo europeu foi a sua


deificação de líderes populistas com fama de agir. Mas as massas que eles
queriam mobilizar, e se viam mobilizando, não eram as que temiam pelo que
poderiam perder, mas sim, os que não tinham nada a perder. E os inimigos
contra os quais eles as mobilizavam não eram estrangeiros e grupos de fora
[...], mas a oligarquia – os ricos, a classe dominante local (HOBSBAWM,
2014, p.137).

No cenário brasileiro as teorias do positivismo, evolucionismo, darwinismo só


foram conhecidas e introduzidas no pensamento nacional a partir de 1870, sendo muito
bem acolhidas, principalmente nos estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa.
Assim, as teorias raciais surgem como um modelo viável para o novo contexto do país
que, com o fim da escravidão, apresentava problemas com a substituição da mão-de-obra,
como também com a conservação da hierarquia social que estabelecia critérios
diferenciados de cidadania. “É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas implicações
negativas, se transforma em um novo argumento de sucesso para o estabelecimento das
diferenças sociais” (SCHWARCZ, 1993, p.18). No entanto, a adoção dessas teorias
encontrou um paradoxo, pois de um lado as mesmas tentavam justificar as hierarquias
que se viam ameaçadas com o fim da escravidão, e por outro inviabilizavam, um projeto

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
219
nacional recém-montado por conta da interpretação pessimista da mestiçagem
(SCHWARCZ, 1993). Achou-se então, nesse paradoxo, uma saída original:

Do darwinismo social adotou-se o suposto da diferença entre as raças e sua


natural hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da
miscigenação [...] Buscavam-se, portanto, em teorias formalmente
excludentes, usos e decorrências inusitados e paralelos, transformando
modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso (SCHWARCZ, 1993,
p.18).

Assim, as ideias nazistas encontraram um campo propício no Brasil e eram


bastante divulgadas na sociedade brasileira, o que foi facilitado pela grande comunidade
alemã inserida nas grandes cidades brasileiras. O discurso do governador do Rio Grande
do Sul, Flores da Cunha, em 1937 é um exemplo dessa influência e pontua a importância
da presença dos alemães no Brasil objetivando melhorar a raça brasileira (DIETRICH,
2007):

Para as festividades em Porto Alegre apareceu o governador de Estado do Rio


Grande do Sul e fez um discurso onde elogiou com grandes palavras a
diligência o amor à ordem do germanismo rio-grandense-do-sul como
“componente racial do muito valoroso povo brasileiro’. Além disso, ele
demonstrou a sua admiração pelo trabalho do ímpeto do III Reich (Ata
27916.AA/B, Alemanha, 1937 apud, DIETRICH, 2007, p. 234).

Na primeira fase do governo Vargas (1930 - 1937) as relações de amizade com o


governo alemão eram muito boas, inclusive com assinatura de tratados comerciais e
treinamento de policiais brasileiros pela Gestapo – Polícia Secreta do Estado - o que levou
ao estabelecimento de embaixadas em ambos os países em 1936. Essa intensa relação de
amizade é observada em uma correspondência enviada ao governo alemão, em 1937 -
quando o Brasil já estava perto de romper com a Alemanha, em virtude da situação
mundial – em que Vargas se referiu ao chanceler alemão como “grande e bom amigo”
(DIETRICH, 2007, p.174).
Entre 1938 e 1942 tem início no Brasil uma nova era de ordem, progresso e
industrialização, e um investimento na nacionalidade brasileira. E com a sua entrada na
guerra ocorre uma mudança no pensamento do governo que, enquanto neutro, não coagia
estrangeiros, e muito menos alemães por conta, principalmente dos acordos comerciais
estabelecidos entre as duas nações, e a partir da tomada de posição, muda a sua postura
iniciando um período de coação e repressão a estrangeiros e à difusão das ideias e
ideologias de cunho nazista (DIETRICH, 2007).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
220
O advento do nazismo na Alemanha e a influência de suas ideias na sociedade
brasileira foram possíveis e aconteceram em detrimento das situações sociais e políticas
que os dois países atravessavam. Na Alemanha, a nação se encontrava humilhada e em
crise em virtude do pós-guerra, e encontrou conforto na ideologia nazista de valorização
do povo e da nação em prol do crescimento. No Brasil, na mesma época, buscava-se uma
identidade nacional com valorização do povo brasileiro, e uma busca pelo
desenvolvimento industrial. O cenário dos dois países também mostrou a centralização e
controle personificados por Getúlio Vargas, no Brasil, e por Adolf Hitler, na Alemanha.

3. A influência do discurso nazista no Governo Vargas

O discurso de Vargas e suas políticas foram construídos dentro do pensamento


autoritário vigente nos anos 1920- 1940 e eram favorecidos pelas condições presentes no
campo político e intelectual, em âmbito nacional. Durante seu governo, Vargas investiu
em propagandas, em políticas públicas inovadoras nos campos social e cultural (GOMES,
2011), e tinha a intenção de realizar uma profunda transformação econômica e política
no Brasil, pois “olhava com interesse as experiências autoritárias e corporativas que
estavam ocorrendo na Europa e que lhe pareciam compatíveis com as mudanças que
estava aplicando” (PEREIRA, 2011, p.115).

A Alemanha nazista, entre 1936 e 1939, iniciou no Brasil uma ofensiva comercial
conseguindo alcançar o lugar de segundo parceiro comercial com acordos que
propiciaram uma aproximação comercial e militar maior entre os dois países. Uma das
estratégias usadas pelo governo alemão foi influenciar os países com colônias alemãs
através dos grupos nazistas locais, e o Brasil era o país que melhores condições oferecia
para os projetos de expansão dessa influência alemã nas Américas. Até o início da
Guerra, o governo brasileiro tolerava e ignorava os alemães e sua infiltração, mesmo
porque a ideologia alemã era compatível com os objetivos e com a ideologia vigentes no
país (GAMBINI, 1977). Desse modo o nacionalismo alemão foi então inspiração para a
criação de um Estado forte, nacional e uniformizado.

Os ideais de igualdade e fraternidade foram substituídos pela disciplina do


corpo e do espírito, pelo culto a força e a raça eugênica. A discriminação
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
221
política e o preconceito racial transformaram-se em fermentos das inquietações
interferindo no cotidiano dos anos 30 e 40 (CARNEIRO, 1994, p.154, 155).

O Varguismo na época não foi definido como um fenômeno fascista, mas se


inspirou nas experiências alemã e italiana, principalmente na propaganda política usando
de emoção, promessas de benefícios materiais, além de fortalecimento nacional e
unificação. Em regimes totalitários, a propaganda política é essencial e visa provocar
paixões que se exemplificam no amor ao chefe, à pátria, ou nação, e no antissemitismo,
e os meios de comunicação são os responsáveis por acentuar isso (CAPELATO, 1999).

A propaganda política é estratégica para o exercício do poder em qualquer


regime, mas naqueles de tendência totalitária ela adquire força muito maior
porque o Estado, graças ao monopólio dos meios de comunicação, exerce
censura rigorosa sobre o conjunto das informações e as manipula. [...] Os
organizadores da propaganda varguista, atentos observadores da politica de
propaganda nazi-fascista, procuraram adotar os métodos de controle dos meios
de comunicação e persuasão usados na Alemanha e na Itália, adaptando-os à
realidade brasileira (CAPELATO, 1999, p.169).

No Estado Novo, a finalidade da propaganda era conquistar o apoio da população


já que o novo poder vinha de um golpe e era preciso legitimá-lo. Eram usadas então,
técnicas de linguagem com slogans, palavras-chave, frases de efeito, recursos das novas
técnicas de persuasão presentes em outros países, principalmente na Alemanha. Houve a
criação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), em dezembro de 1939, para
regular, centralizar e fiscalizar os meios de comunicação e era um órgão vinculado
diretamente à Presidência da República que produzia e divulgava “o discurso destinado a
construir certa imagem do regime, das instituições e do chefe do governo, identificando-
as com o país e o povo” (CAPELATO, 1999, p.172). Nessa época, eram produzidos
livros, revistas, folhetos, cartazes, programas de rádio, números musicais, radionovelas,
fotografias, cinejornais, documentários cinematográficos e filmes de ficção que eram
divulgados principalmente na imprensa e no rádio, e que sofriam a ação da censura.
Através da imprensa, o presidente Vargas foi tratado como o governante que
“identificou os novos ventos nacionais e internacionais e reorganizou o Brasil conforme
as novas contingências sociais, políticas e econômicas do momento” (LOSSO, 2008, p.
143). Os periódicos, no governo Vargas, eram obrigados a mostrar os discursos oficiais,
a divulgar as inaugurações, a enfatizar os atos do governo, a publicar fotos de Vargas, e,

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
222
os mesmos foram controlados também através de pressões políticas e financeiras
(LOSSO, 2008).
De 1937 a 1945, o Estado Novo se serviu da eugenia para construir o novo homem
brasileiro, através da promoção da cultura física e da “eugenização da imagem da criança
no cinema” (TEIXEIRA, 2011, p.163), sendo os belos e saudáveis designados por essas
políticas. Em 1943, na revista Educação Física, o médico Irving Fisher (1867 – 1947)
publicou um artigo em que traçou o perfil do novo homem brasileiro:

A nova educação física deverá formar um homem típico que tenha as


seguintes características: detalhe mais delgado que cheio, gracioso de
musculatura, flexível, de olhos claros, pele são, ágil, desperto, erecto,
dócil, entusiasta, alegre, viril, imaginoso, senhor de si mesmo, sincero,
honesto, puro de atos e de pensamentos, dotado com o senso da honra
e da justiça, comparticipando no companheirismo dos seus
semelhantes, e levando o amor da Providência e dos homens no seu
coração (FISHER apud TEIXEIRA, 2011, p.164).

Assim, é mostrada a preferência ao branco, belo, forte, viril e dócil. Forte para
suportar o trabalho, viril para gerar muitos brasileiros eugenizados, e dócil para não
contrapor o Estado (TEIXEIRA, 2011).
A eugenização dos mais pobres surgia também como uma justificativa para as
desigualdades sociais que eram explicadas pela desigualdade racial o que aumentava o
poder do Estado. A realidade brasileira, no entanto, moldou a eugenia priorizando o
controle do comportamento no lugar do embranquecimento, mesmo porque,
embranquecimento em uma população tão mesclada como a brasileira se tornava difícil
ou quase impossível (TEIXEIRA, 2011). A eugenia se voltou também para os sadios e se
aliou à cultura física que era uma forma do povo brasileiro evoluir:

O Estado investe no discurso sobre a cultura do corpo, da saúde e da higiene


com o objetivo de moldar também o corpo da nação e conquistar aqueles
comportamentos requeridos pela civilização burguesa, para a manutenção da
nova ordem política e econômica do país (TEIXEIRA, 2011, p.168).

O Estado fez uma ampla divulgação desses hábitos, e a educação física passou a
ser uma ferramenta para disciplinar a sociedade e acabou por ser instituída como parte do
Sistema Educacional. As escolas, inclusive, eram usadas pelo governo para divulgação
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
223
da ideologia estadonovista, e, dentro dessa lógica, a atividade física era muito estimulada,
até mais que a educação intelectual. Além disso, assim como na Alemanha, que investia
em lazer para os trabalhadores, no Brasil, fora da escola, eram promovidas atividades de
lazer com jogos, escotismo, colônias de férias, todas oferecidas pelo Estado (TEIXEIRA,
2011).
Podemos observar, então, que o governo Vargas, assim como o nazismo na
Alemanha, fez um uso intenso dos meios de comunicação para divulgar as diretrizes do
seu governo, e dentro dessas diretrizes e ideologias esteve presente o discurso de raça e
de eugenia.

4. Revista Alterosa: uma análise

Sendo assim, para pensar, analisar e compreender o discurso de raça e de eugenia


que esteve presente em Belo Horizonte, no período de vigência do Estado Novo, foi feita
uma análise da Revista Alterosa, no período de 1939 a 1945. Realizou-se uma pesquisa
prévia na coleção do acervo do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte -
APCBH142, no qual foram selecionados dez exemplares que, em suas publicações
mostraram essas circunstâncias.
A Revista Alterosa, que foi editada pela Sociedade Editora Alterosa Ltda., era um
periódico voltado à classe média alta da sociedade mineira e em suas páginas eram
tratados assuntos diversos como culinária, moda, comportamento, literatura, rádio,
cinema, colunas sociais, entrevistas com celebridades, assuntos políticos, dentre outros,
tendo seu maior foco na capital mineira, Belo Horizonte, mas sempre trazendo também
reportagens sobre as cidades do interior do Estado. A sua existência se deu em meio à
ditadura do Estado Novo, passando por um curto e conturbado período de democracia
brasileira encerrando as suas publicações às vésperas do golpe de 1964. O acervo da
revista é composto por 68 exemplares, e está disponibilizado digitalmente na internet
facilitando assim a consulta e a pesquisa.
No ano 1939, quando tem início a circulação da Revista Alterosa, a cidade de Belo
Horizonte apresentava um crescimento econômico significativo, e um grande aumento da

142
A Coleção da Revista Alterosa está disponível no site do APCBH.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
224
sua população, o que proporcionou uma ampliação dos espaços de convivência na cidade.
Com o advento da Segunda Guerra Mundial e a posterior entrada do Brasil ao lado dos
Aliados, podemos perceber uma mudança no comportamento de parte da sociedade da
capital que, impulsionada pelos acontecimentos mundiais, tentou se inserir nesse
contexto, inclusive com uma maior participação feminina. A Revista Alterosa, em suas
publicações, apontou essas mudanças fazendo um diálogo com a conjuntura da época.
A cidade de Belo Horizonte almejava crescer, e o esporte se apresentou como um
elemento de construção desse desenvolvimento. Essa relação foi mostrada no primeiro
número da revista, em agosto de 1939, em uma matéria na qual o Minas Tênis Clube é
enaltecido como uma das “mais notáveis praças de esportes da América do Sul”, e em
que se evidencia também a ideia de eugenia, mostrando ser este um pensamento presente
em uma parcela da sociedade mineira.

Figura 3: Revista Alterosa, ano I, nº 1, 1939

Fonte: Acervo APCBH

Na imagem acima, o enunciado diz ser o “Minas Tênis Clube um templo de cultura
e de aperfeiçoamento da raça”, e “uma das mais vastas realizações da energia mineira”
numa clara alusão ao conceito de eugenia. E a reportagem reitera essa ideia quando
declara:

O apoio que o governo mineiro vem prestando à cultura física do Estado,


representa, para a geração que se está formando, nos campos do esporte, uma
grande obra de eugenia e civilização. [...] o “Minas Tênis Clube” vem

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
225
cumprindo com rara eficiência, a sua alta e nobre finalidade de formar a
geração forte de amanhã.143

Na busca pelos valores de modernidade e progresso, havia a exaltação do discurso


eugênico, que na época era muito difundido em todo o mundo, sendo também muito
aproveitado pelo nazismo. Nesse contexto, o esporte surge como um complemento
importante, pois no conceito de eugenia o corpo deveria ser dotado de força, utilidade e
beleza, almejando o aprimoramento da raça (SCHETINO, 2013). Assim, no Estado Novo
a raça pura e a eugenia eram conceitos necessários para se construir uma nova nação com
um povo valorizado nos esportes, sendo esses estereótipos, figura constante em discursos
acadêmicos e políticos (CARNEIRO, 1994).
Em 1941, na matéria intitulada “O sexto aniversário do Minas Tênis Clube” na
qual é retratada a comemoração do aniversário do clube, mais uma vez é evidenciado o
discurso de defesa da raça:

Os seus sucessos consecutivos obtidos nos setores de natação, evidenciam a


pujança de seus atletas de ambos os sexos, em disputas sensacionais, de
repercussão continental, onde o vigor da nossa raça e a destreza de nossos
desportistas ficaram patenteadas com o mais raro esplendor e a mais justa
glória para os mineiros. [...] O Minas Tênis Club teve assim o seu dia de glória,
um dia que será caro à sua vida de entidade triunfante, pela compreensão
pública que logrou obter, desde o seu início, firmando-se em definitivo, como
elemento vital da grandeza de Minas na preparação da juventude, no
fortalecimento físico da raça de que dependerá a vitória das futuras gerações
brasileiras.144

Podemos perceber que a valorização da raça é apresentada como um traço


importante, dentro dos conceitos da época, indo ao encontro às sugestões dos ideais
nazistas implantados no país por Getúlio Vargas. Isso é exemplificado quando se diz “o
vigor da nossa raça”, o “fortalecimento físico da raça”, além do nacionalismo exacerbado
quando se diz “a vitória das futuras gerações brasileiras”. Assim, o projeto nacional de
Vargas visava ao financiamento da industrialização e à valorização dos padrões de cultura
do país, buscando um forte sentimento de identidade nacional. Para sustentar a inovação
na política e na economia investia-se na cultura ao corpo, na saúde e higiene da população,

143
Uma das mais vastas realizações da energia mineira. REVISTA ALTEROSA nº 01. Agosto de
1939, p. 51. Matéria não assinada.
144
O sexto aniversário do Minas Tênis Clube. REVISTA ALTEROSA N. 21. Dezembro de 1941, pp.
90-91. Matéria não assinada.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
226
comportamentos que eram exigidos pela burguesia, objetivando, assim, a transformação
da nação (PEREIRA, 2011). Além disso, ambicionava-se, pela prática da educação física,
estimular a “consciência nacional e o espírito a obediência das novas gerações”
(TEIXEIRA, 2011, p.169).
Os pensamentos que vigoravam no período estudado se moldaram ao ideal de
modernização pretendido pelo governo Vargas no Brasil. Em Belo Horizonte a busca pela
modernização não se deu apenas na materialidade e nas suas estruturas, porque desde a
sua fundação a capital mineira “representava o esforço da imersão em uma nova época”
(JÚNIOR, 2011, p.87).
Assim, em busca dessa modernidade pretendida e na tentativa de se incorporar ao
pensamento vigente na época e propagado nacionalmente, na década de 1940, o esporte
passou a ser valorizado e, aos poucos, começou a ser inserido na cultura urbana da cidade,
sendo os espaços esportivos cada vez mais prestigiados. A prática esportiva, sinônimo de
beleza, saúde e progresso, acabou por legitimar o discurso de raça e eugenia que alcançou,
assim, um grande crescimento. (SCHETINO, 2013).
Nesse período, com o mundo em guerra, a Revista Alterosa começou a fazer
alusão ao conflito, numa tentativa de inserir seus leitores nos acontecimentos mundiais.
Em 1941, nas páginas da revista, há alguns tímidos flagrantes do conflito, e ainda
presente, uma defesa da ideologia nazista. Isso pode ser evidenciado na reportagem “A
Alemanha e a religião cristã” em que Hitler e seu governo são mostrados como aliados à
Igreja Católica. Segundo a reportagem,

Na Alemanha, sempre se dedicou a máxima atenção a questões de religião. [...]


Somente o Estado e o seu fundamento, que é o Partido Nacional-Socialista têm
influência decisiva no terreno da política. Este é um dos princípios básicos da
política alemã, desde o ano de 1933. É verdade que a execução desse princípio
chegou a registrar, de quando em quando, choques com as diversas confissões,
acontecimentos logo aproveitados pela propaganda anti-alemã para acusar o
Reich de anti-cristão. Na verdade as autoridades alemãs apenas pretendiam
tolher às igrejas qualquer atividade política. [...] Não existe uma religião oficial
na Alemanha porque a cisão entre cidadãos católicos e protestantes não o
permite. Entretanto, não é completa a separação entre o Estado e Igreja,
separação que se observar por exemplo, na França e nos Estados Unidos. [...]
Constata-se que bispos católicos alemães depois de uma consulta prévia junto
ao Santo Padre Pio XII, agradeceram e exprimiram sua lealdade ao Fuehrer
(sic).145

145
A Alemanha e a religião cristã. REVISTA ALTEROSA n. 21. Dezembro de 1941, pp. 102-103 –
transcrito do “Deutsche Rio-Zeitung” de 13 de setembro de 1941.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
227
Há então um claro posicionamento em defesa do nazismo e uma justificativa para
a exclusão da Igreja do comando político do país, que caberia somente ao Führer, e, à
instituição religiosa, somente a evangelização. Ao mesmo tempo se nega a total separação
entre Igreja e Estado, fazendo ainda uma provocação à França e aos Estados Unidos. A
reportagem finda fazendo alusão ao reconhecimento de bispos e do papa a Hitler, numa
clara tentativa de humanizar o governo alemão, uma vez que a propaganda antialemã
começava a se fazer presente.
Isso é evidenciado em 1942 na reportagem “Caridade na Paz e na Guerra”
(novembro de 1942, n. 31) na qual há informações sobre o curso emergencial de
enfermagem da Cruz Vermelha e uma verdadeira conclamação para o envolvimento da
sociedade na guerra ao lado dos aliados e contra os alemães.

União nacional, eis a ordem do momento que vivemos. A mocidade acadêmica


está nas ruas vibrando de civismo, convocando o povo mineiro para as
iniciativas patrióticas. O operariado fecundo de nossa terra também saiu às
largas ruas para protestar contra os piratas do eixo que trouxeram a guerra para
o nosso tranquilo litoral. O povo está na rua vibrando. [...] O povo é a grande
reserva dos países que amam a liberdade e odeiam a tirania nazista.146

Como podemos perceber, há uma clara mudança no pensamento da linha editorial


da Revista e de seus leitores, e uma tomada de posição, alinhada ao pensamento europeu,
contra os alemães, no momento em que o governo Vargas decide entrar na guerra em
favor dos aliados. Se antes o governo brasileiro olhava com bons olhos a ideologia alemã
e fazia uso dela em diversas situações no país, com a entrada na guerra esse pensamento
muda radicalmente, não sem deixar marcas profundas em nossa sociedade.
Com o decorrer do conflito mundial, algumas consequências afetam diretamente
o periódico, repercutindo em seus leitores. Na revista número 22, de janeiro de 1942, há
uma nota da direção pedindo desculpas aos leitores pelo atraso da entrega da mesma que
se deu por causa do atraso no transporte marítimo ocorrido pela situação internacional. E
na revista número 31, de novembro do mesmo ano, outra nota da direção explica que a
escassez de papel provocada pela crise nacional é mais uma vez causada pela falta de
transporte marítimo, acarretando a diminuição do número de páginas da revista.

146
Caridade na paz e na Guerra. REVISTA ALTEROSA n. 31. Novembro de 1942, pp. 14-15-77-78.
Matéria de Marcelo Coimbra Tavares
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
228
Figura 4: Revista Alterosa, ano IV, nº 22, 1942

Fonte: Acervo APCBH

Figura 5: Revista Alterosa, ano IV, nº 3, 1942

Fonte: Acervo APCBH

Assim, a guerra que era travada na Europa começava a surtir efeitos no Brasil e,
consequentemente, em Belo Horizonte, fazendo com que parte da população se
envolvesse e, da sua maneira, participasse do conflito.

Há então uma profusão de propagandas de bônus e obrigações de guerra


convocando os brasileiros a fazerem a sua parte para ajudar o governo. A maioria dessas
propagandas era feita com ilustrações que faziam referência à situação mundial, o que
pode ser exemplificado nas imagens abaixo em que as ilustrações de aviões, tanques de
guerra, navios, mísseis estão presentes.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
229
Figura 6: Revista Alterosa, ano V, nº 39, 1943 Figura 7: Revista Alterosa, ano V, nº 40, 1943

Fonte Acervo APCBH

Podemos observar então que a maioria das propagandas presentes na revista


utilizou do tema da guerra para passar a sua mensagem a seus leitores, trazendo um forte
sentimento antinazista e um ufanismo pelo fato do Brasil participar do conflito.
Em meio a toda essa conjuntura, os conceitos de raça e de eugenia continuavam a
se fazer presentes no pensamento de uma parcela da sociedade mineira e belorizontina ao
mesmo tempo em que se misturavam com a valorização da figura do brasileiro e sua
mestiçagem. Isso é apontado em um pequeno texto de humor publicado na seção “Sedas
e Plumas” em 1944, que discorria sobre o amor de um rapaz, louro e rico, com uma
morena pobre. No texto há, primeiramente, uma alusão ao combate à união entre arianos
e impuros na Alemanha:

Uma mulher ariana só pode beijar e casar-se com um indivíduo do mesmo


sangue. Para isso, Hitler mantém laboratórios perfeitos [...]. Se o sangue de
qualquer dos dois acusar impurezas será inútil e perigoso insistir.

Após essa explicação, a narrativa segue para o caso do namoro na capital:


REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
230
Apesar de não estarmos na Alemanha, a família [do rapaz] faz uma tremenda
oposição. As irmãs do rapaz, granfinas e melindrosas, chegam a dizer que êle
quer manchar o bom nome dos seus avós e encher a casa de criolinhos de
cabelos anelados e duros. Quando a namorada do rapaz passa pela rua onde
moram, a irmã solteirona canta pra infernar o mano a velha toada – “O teu
cabelo não néga”. [...] A família ariana vai ser vencida pela graça da mestiça
invencível. A vizinhança assiste a luta torcendo pela morena. Viva o Brasil!147

Podemos perceber então que esse tipo de situação causava estranheza e não
aceitação por parte da sociedade, o que demonstra uma insinuação de racismo quando se
é aventada a hipótese de “manchar o bom nome dos seus avós” (grifo nosso) e quando é
mencionado “criolinhos de cabelos anelados e duros” e “família ariana”, todas essas falas
muito envolvidas dentro dos conceitos de raça e de eugenia. Mesmo sendo um texto em
forma de galhofa denotando humor, e piada, não se pode negar a clara presença desse tipo
de preconceito presente em parte da população. Mas, ao mesmo tempo o conto, no final,
mostra a sua preferência pela nossa mistura racial uma vez que enaltece e mostra até uma
torcida para o sucesso do namoro nas palavras “torcendo pela morena”, e ainda mostra
uma valorização do brasileiro ao alemão quando diz “a família ariana vai ser vencida pela
graça da mestiça invencível” numa clara alusão à Guerra como se fosse uma subjugação
dos alemães ao Brasil e à sua mistura étnica.
Com o fim da guerra, em 1945, as publicações da Revista se inserem nesse
contexto, atendendo também à expectativa do público consumidor, uma vez que esse era
um assunto em alta no momento. Assim a paz se faz presente nos assuntos da Revista,
fazendo um diálogo com os leitores, e demonstrando certo alívio nessa conquista. Na
revista de outubro, por exemplo, em uma reportagem sobre o surgimento de um novo
bairro da capital essa ligação é demonstrada:

Terminou a guerra, e com ela, novos horizontes se rasgam em toda parte, ao


trabalho do homem. Belo Horizonte, como todos os centros adiantados do país,
passou por uma longa e cruciante crise de habitações, decorrente da situação
anormal do mundo. [...] Agora que a paz voltou ao seio da terra, é de esperar,
com a natural melhoria das condições gerais do trabalho e da produção de paz,
que o novo e alentador surto de edificações venha a caracterizar as nossas
atividades dotando a bela capital mineira de novos e pitorescos aspectos no seu
painel urbanístico.148

147
Sedas e Plumas. REVISTA ALTEROSA n. 49. Maio de 1944, p. 48. Redação.
148
Surge o novo bairro na capital. REVISTA ALTEROSA n.66. outubro de 1945, pp. 112-113. Matéria
não assinada.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
231
Quando essa reportagem emprega as frases “Belo Horizonte, como todos os
centros adiantados do país” e “crise de habitações decorrente da situação anormal do
mundo”, podemos perceber uma tentativa de se inserir os leitores na conjuntura mundial
e nacional, o que vinha de acordo com a modernização vivida na época, produzida pela
dinâmica atuação do prefeito Juscelino Kubistchek.
Assim, a partir do fim da guerra, todas as publicações e propagandas se voltaram
para essa situação mundial, mas, em novembro de 1945, em uma propaganda de um creme
dental, mais uma vez a alusão à eugenia se fez presente. O creme dental Gessy é mostrado
com toda a sua eficácia e elogios estampados na foto de uma criança sorridente, e, ao final
da propaganda, a frase “50 anos a serviço da eugenia e da beleza”, sugerindo que, mesmo
após a guerra, esse conceito ainda se fazia presente no pensamento de parte da sociedade
belorizontina.149

149
Propaganda creme dental Gessy. REVISTA ALTEROSA n. 67. Novembro de 1945, p.7
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
232
Figura 8: Revista Alterosa, ano VII, nº 67, 1945

Fonte: Acervo APCBH

Esse pensamento discriminatório e racista, em um Brasil onde se pregava a


“democracia racial”, foi legitimado por um discurso científico e apoiado inclusive por
intelectuais. Talvez por isso tenha ganhado tanta força e se espalhado pela sociedade das
mais diversas formas e interpretações, fazendo-se presente no comportamento do dia a
dia (MACIEL, 1999).

5. Considerações finais

Ao se empreender uma pesquisa em uma fonte primária, o pesquisador depara


com inúmeras limitações, como a dificuldade de acesso, às vezes, a precariedade do
documento, a linguagem da época, dentre outras coisas. A Revista Alterosa oferece uma
gama de possibilidades para pesquisa e, talvez aí resida a maior dificuldade, pois há que
se estabelecer um recorte temporal e delimitar o tema. Mas uma vez definido o tema a ser
estudado, o mesmo se mostrou de suma importância tanto para esse estudo quanto para
estudos posteriores, pois ao se empreender essa pesquisa se constatou não haver estudos
discutindo esse tema especificamente. Na realidade, a Revista Alterosa foi muito estudada
e trabalhada, mas os vários trabalhos mostram, em sua grande maioria, o diálogo da
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
233
Revista com a moda, e com o comportamento da sociedade, na época em que circulou na
capital mineira. Conseguimos observar somente um trabalho que tratava do esporte na
capital, através da revista, no qual o tema eugenia foi mostrado como parte do pensamento
presente na sociedade belorizontina no período.
A presente pesquisa permitiu concluir que o discurso de raça e eugenia esteve
presente na capital mineira, sendo evidenciado em propagandas, reportagens e textos,
publicados na Revista Alterosa. Além disso, observou-se também que a cidade de Belo
Horizonte, através das publicações da Revista, esteve em sintonia com o contexto da
Segunda Guerra, acompanhando as mudanças e direcionamentos gerados pelo conflito
mundial.
Sendo assim, este trabalho é uma contribuição para se entender como as situações
vividas no mundo e no Brasil, entre 1939 e 1945 se mostraram presentes em uma parcela
da sociedade da cidade de Belo Horizonte.
Esta pesquisa, no entanto, não pretendeu esgotar as páginas do periódico, uma vez
que há ainda um campo muito vasto para se pesquisar. Pretendeu-se aqui, enfim, mostrar
caminhos que evidenciam, através de uma revista, a presença do discurso de raça e
eugenia na sociedade de Belo Horizonte.

Referências

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo, anti-semitismo, imperialismo e


totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de


Política. Vol.1. Brasília: Editora Unb, 1983.

CAPELATO, Maria Helena Rolim. O Nazismo e a produção da guerra. Revista USP. São
Paulo, volume 26: p. 82-93, jun/ago. 1995.

___________. Propaganda política e controle dos meios de comunicação. In:


PANDOLFI, Dulci (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1999. p. 167-178.

CARNEIRO, Maria Lúcia Tucci. República, identidade nacional e anti-semitismo.


Revista História. São Paulo, número 129-131: p. 153-163, ago-dez/1993 a ago-dez/1994.

CONT, Valdeir Del. Francis Galton: eugenia e hereditariedade. Scientiæ zudia. São
Paulo, volume 6, n. 2: p. 201-18. 2008.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
234
DIETRICH, Ana Maria. Nazismo Tropical? O Partido Nazista no Brasil. 20/03/2007. 378
fl. Tese. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de História da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.

GAMBINI, Roberto: O duplo jogo de Getúlio Vargas: influência americana e alemã no


Estado novo. São Paulo: Editora Símbolo, 1977.

GOMES, Ângela de Castro. Minas e os fundamentos do Brasil moderno. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2005.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.

JUNIOR, Virgílio Coelho de Oliveira. Moda e Cidade: representações da modernidade


na capital mineira das décadas de 1940 e 1950. 28/02/2011. 151 fl. Dissertação.
Departamento de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2011.

LENHARO, Alcir. Nazismo, o triunfo da vontade. São Paulo: Editora Ática, 2006.

LOSSO, Tiago. Estado e Democracia no discurso oficial do Estado Novo. Dossiê: Política
e Sociedade. Florianópolis. 26/03/2008; n.12, p.95-117, abr. 2008.

MACIEL, Maria Eunice da Silva. A Eugenia no Brasil. Anos 90 - Revista do Programa


de Pós Graduação em Historia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre. Jul/1999 v. 7, n. 11, p. 121-130.

PANDOLFI, Dulci (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1999.

PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Getúlio Vargas: e estadista, a nação e a democracia. In:
BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Dutra (orgs.). A Era Vargas
Desenvolvimento, Economia e Sociedade. São Paulo: Editora Unesp, 2011. Cap. 5, p. 93-
120.

RODRIGUES, Carla Corradi. Quem detém a mídia, detém o poder? Jornalismo e política
nas páginas da revista Alterosa (1962-1964). Dissertação. Departamento de História,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.

SCHETINO, André Maia. Cultura esportiva em Belo Horizonte (1939-1964): nas


páginas da revista Alterosa. Belo Horizonte: 2013. Anais da Anpuh. p. s/n.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão


racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

TEIXEIRA, Clara. Cinejornal Brasileiro: eugenia adaptada no Estado Novo.


R.Cient./FAP, Curitiba, v.8, p. 163-180, jul./dez. 2011.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
235
Fontes

REVISTA ALTEROSA Ano I nº 01. Agosto de 1939.


REVISTA ALTEROSA Ano III nº 21. Dezembro de 1941.
REVISTA ALTEROSA Ano IV nº 22. Janeiro de 1942.
REVISTA LTEROSA Ano IV nº 31. Novembro de 1942.
REVISTA LTEROSA Ano IV nº 31. Novembro de 1942.
REVISTA LTEROSA Ano V nº 39. Julho de 1943.
REVISTA LTEROSA Ano V nº 40. Agosto de 1943.
REVISTA LTEROSA Ano VI nº 49. Maio de 1944.
REVISTA LTEROSA Ano VII nº 65. Setembro de 1945.
REVISTA LTEROSA Ano VII nº 66. Outubro de 1945.
REVISTA LTEROSA Ano VII nº 67. Novembro de 1945.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
236
MEMÓRIA E MANIFESTAÇÕES ART DÉCO NAS PÁGINAS DE BELLO
HORIZONTE

MEMORIA Y MANIFESTACIONES ART DECO EN LAS PÁGINAS DE


BELLO HORIZONTE

Carlos Eduardo de Almeida Oliveira*

Resumo

O artigo analisou a coleção de revistas Bello Horizonte, das décadas de 1930 e 1940,
disponibilizadas ao público através do site do APCBH. As revistas circularam, sobretudo,
na capital mineira. O periódico publicava contos, textos, crônicas e poemas em suas
páginas, que falavam do cotidiano em Belo Horizonte. A partir de uma leitura
generalizada, foi possível selecionar alguns exemplares e compará-los visual e
textualmente. A análise visual levou em consideração aspectos do design gráfico. A
análise textual focou no tipo de texto e conteúdo. Concluiu-se que o deslocamento do
centro urbano de Belo Horizonte, em 1936, foi um marco na transição de uma cidade com
função puramente administrativa para a metrópole atual, bem como para o
amadurecimento do conteúdo da revista e, consequentemente, seus aspectos gráficos.

Palavras-chave: Memória; Arquivo; Art Déco.

Resumen

El artículo analizó la colección de revistas Bello Horizonte, de las décadas de 1930 y


1940, disponibles al público a través del sitio web del APCBH. Las revistas circularon
sobretodo en la capital de Minas Gerais. El periódico publicaba cuentos, textos, crónicas
y poemas en sus páginas, que hablaban de lo cotidiano en Belo Horizonte. A partir de una
lectura generalizada, fue posible seleccionar algunos ejemplares y compararlos visual y
textualmente. El análisis visual llevó a cabo el diseño gráfico. Un análisis textual se centró
en el tipo de texto y contenido. Se concluyó que el desplazamiento del centro urbano de
Belo Horizonte, en 1936, fue un hito en la transición de una ciudad con función puramente
administrativa hacia una metrópolis actual, así como para la maduración del contenido de
la revista y, consecuentemente, sus gráficos.

Palabras clave: Memoria; Archivo; Art Déco.

*
Graduado em Artes e Design pela UFJF. Mestrando em Estudos de Linguagens pelo CEFET-MG.
E-mail: kadu.olliveira@gmail.com
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
237
Introdução

O Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH) disponibilizou, em seu


site, diversos documentos e coleções sobre a história e o patrimônio da capital mineira.
Um deles foi a coleção analisada nesse artigo: as revistas Bello Horizonte. Esse material
foi publicado entre as décadas de 1930 e 1940. Circulou, principalmente, na capital e,
posteriormente, foi distribuído em outras cidades de Minas Gerais. Seu conteúdo era
literário e cultural, trazendo informações sobre cinema, poemas, contos, crônicas, fotos
de crianças, personalidades e pessoas anônimas – principalmente as mulheres,
fotografadas nas saídas das matinês e na avenida Afonso Pena, que na década de 1930 era
a mais importante via da capital. Por sua vez, a Rua da Bahia era considerada uma das
mais movimentadas do centro. Além do forte comércio, dos bares e cafés, no encontro
dos dois endereços situava-se a estação central dos bondes, onde hoje se encontra uma
floricultura. À sua frente, onde atualmente existe um hotel, funcionava o “Bar do Ponto”,
local de encontro, romances e conversas.
Esse memorável lugar saiu de cena em 1936, quando novas linhas de bonde
surgiram. A estação central foi deslocada dessa esquina para a Praça Sete, ao redor do
“Pirulito”, sendo até hoje o coração da cidade de Belo Horizonte. Esse deslocamento
geográfico marcou uma mudança na revista: se antes as capas eram Art Déco, após a
mudança as capas passaram a buscar uma estética mais próxima do modernismo.
Enquanto a capa se alinhava à estética vigente, percebeu-se que o miolo da publicação
não a acompanhou – exceto os efeitos de fotografia e as publicidades.
Para este estudo, foram selecionadas algumas revistas de acordo com o ano, a
estética das capas e a paginação interna – além dos textos, contos, crônicas e poemas
observados numa leitura prévia. Foi possível identificar os nomes de alguns diretores da
publicação, como Augusto Siqueira e Miguel Chalup, e de colaboradores fixos e
ocasionais, como Don Ruy (pseudônimo do cronista Djalma Andrade) e Rubem Braga.
O site do APCBH não possui todas as edições150 da revista Bello Horizonte –
embora a defasagem na coleção não invalide esta pesquisa. Lamentavelmente, os dois

150
Conforme publicado no site do APCBH, “as revistas Belo Horizonte chegaram à custódia do Arquivo
Público da Cidade de Belo Horizonte através de recolhimento realizado na Secretaria Municipal de
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
238
primeiros números da revista não estão catalogados, portanto, não foi possível identificar
precisamente os motivos da criação da revista. Contudo, na edição comemorativa do
sétimo aniversário, o editorial afirmava que a revista “fundada para bem servir a’ terra
montanheza” era o “espelho da vida mineira” (BELLO HORIZONTE, n.107, 1939, p.3).
Foram analisadas as revistas de número 12, 18, 73, 82, 93, 107, 111, 148, 166 e
188; e especificadas quanto ao conteúdo e estética. Ambas as análises perceberam
mudanças significativas a partir do momento em que o centro urbano de Belo Horizonte
se deslocou do “Bar do Ponto” para a Praça Sete. O que não mudou foi a manifestação da
cultura local em suas páginas. As pessoas de Belo Horizonte, os que chegavam, os que
nasciam, os ilustres e as inaugurações sempre foram retratadas pela revista ao longo do
tempo. Levando em consideração a função “memorialística” da revista na atualidade,
estética e texto se somam nas páginas, transformando a coleção de exemplares num
arquivo a ser lido e descoberto por aqueles que se interessam pela cultura local e pelos
costumes da primeira capital planejada do Brasil.

A revista como um arquivo

Resgatar o passado é uma maneira de contribuir para a formação da identidade


belo-horizontina, pois de acordo com Gagnebin, “as formas de lembrar e de esquecer,
como as de narrar, são os meios fundamentais da construção da identidade, pessoal,
coletiva ou ficcional” (GAGNEBIN, 2014, p.218). Mas que identidade é essa? A volta ao
passado através da revista Bello Horizonte pode contribuir para a construção de uma
identidade urbana, social e arquitetônica da primeira capital planejada do Brasil. A
revista, quando deslocada de sua época, é capaz de funcionar como um ponto de
preservação da memória, ou um arquivo, para ler e ser revelado. O exercício necessário
para resgatar essas lembranças é descrito por Gagnebin ao investigar a rememoração:
“Não se trata de tentar alcançar uma lembrança exata de um momento do passado, como
se esse fosse uma substância imutável, mas de estar atento às ressonâncias que se
produzem entre passado e presente, entre presente e passado [...]” (ibdem, 2014, p.240).
Portanto, os textos de Bello Horizonte funcionam como ponto de partida para o exercício
da memória, que funciona como uma linha do tempo entre o passado e o futuro – e esse

Cultura em 1994. A coleção está incompleta e é composta por 52 revistas produzidas em Belo Horizonte
e editadas semanalmente.”
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
239
passado (e esse futuro) pode ser visto através de histórias. A memória cultural é, pois,
“um ato de imaginação e interconexão” (TAYLOR, 2013, p.128), que pode ser construída
através de rastros deixados pela coleção em questão. É nesse sentido que as revistas
funcionam como um arquivo.
O que reforça tal teoria é a definição do termo dada por Foucault em seu trabalho
intitulado “A Arqueologia do Saber”. Nele, o filósofo afirma que o arquivo é,
inicialmente, a lei daquilo que pode ser dito (um sistema que rege o surgimento de
enunciados enquanto acontecimentos singulares); num segundo momento, o arquivo é
aquilo que permite que todas as coisas ditas não se amontoem numa massa amorfa. Ele é,
portanto, aquilo que define o sistema de enunciabilidade desde o princípio de sua
formação, e que é capaz de diferenciar os discursos em sua múltipla existência e, ao
mesmo tempo, especificá-los (FOUCAULT, 1987, p.149). É isso o que, de certo modo,
uma revista faz. Ela determina quais personagens e quais notícias podem aparecer e
pertencer ao seu mundo, prezando por certa coerência entre os elementos distintos, que
não permite a eles serem vistos pelo leitor como uma massa de textos desconexos.
Ao falar do cotidiano da capital, a revista Bello Horizonte se torna um espaço onde
assuntos diversos convergem para a formação de um arquivo das décadas de 1930 e 1940.
A Belo Horizonte de outros tempos pode ser reconstruída a partir da leitura das páginas
de Bello Horizonte, uma vez que o arquivo serve como um local de apoio e
armazenamento das memórias.

A Belo Horizonte de Bello Horizonte

A revista Bello Horizonte teve como foco a vida na capital de Minas Gerais. De
início, suas crônicas e poemas giravam em torno do centro urbano, sobretudo nas
imediações da Avenida Afonso Pena com a Rua da Bahia. Conforme a cidade crescia, a
revista evoluía: as reportagens ganharam mais espaço, fatos de outras cidades apareceram
em suas páginas, a publicação se tornou mensal, e seu design mudou – sem perder o foco
na capital, em seus “moradores ilustres” e nas transformações urbanas ao longo dos anos.
Na edição comemorativa de sete anos da revista, uma reportagem apresentou
alguns dados estatísticos. Em 1900, por exemplo, Belo Horizonte contava com 13.472
moradores; já em 1938, a população era de 208.177 habitantes – em 1905 eram 3.213
prédios na capital; em 1938, a cidade possuía 29.605 edifícios erguidos. Dentre as novas
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
240
edificações, em outra reportagem, a revista destacou algumas imagens da usina da firma
Ulysses Vasconcelos. O edifício, em estilo Art Déco, foi composto dentro das regras
clássicas da arquitetura deste período: janelas amplas em grade de ferro e vidro formando
uma malha geométrica retangular; linhas horizontais e verticais ressaltando o efeito de
escalonamento; e a platibanda ocultando o telhado, esse considerado “feio” à época por
não ser uma tecnologia moderna. Além das imagens, um depoimento da revista sobre o
senhor Vasconcelos demonstrou o valor dado ao cidadão belo-horizontino:

O sr. Ulysses Vasconcellos commerciante e industrial á moderna traz, assim, uma


apreciavel contribuição ao progresso montanhez nesse ramo de actividades. O seu
estabelecimento offerece as melhores vantagens tanto a compradores, como a vendedores
de cereaes, vantagens não só em preços como em qualidade dos productos beneficiados.
Elemento de destaque nos altos circulos conservadores de Minas, acompanha o Sr.
Ulysses Vasconcellos todos os aspectos da vida mineira nesses sectores, dos quaes é uma
das mais estimadas figuras (BELLO HORIZONTE, n.107, 1939, p.43).

De maneira igual à apresentação do Sr. Ulysses, a revista tratou diversas outras


personalidades locais daquela época, configurando uma espécie de “materialismo
histórico” (BENJAMIN, 2012). As personagens retratadas em Bello Horizonte
representavam a história contada sob um viés – a visão da elite, o discurso ideal para
atender aos anseios da alta sociedade mineira.
Assim como os cidadãos ilustres, a arquitetura foi um tema recorrente no
periódico. Sobre construções arquitetônicas, Ricoeur afirma que “cada novo edifício
inscreve-se no espaço urbano como uma narrativa em um meio de intertextualidade”
(RICOEUR, 2007, p.159). Diversas edificações da capital carregaram em si narrativas de
vidas. Elas puderam ver a cidade crescer e fomentaram a maneira de como as relações
sociais aconteciam – a exemplo dos cinemas. Sob o título de “Chronica
Cinematographica”, o trecho abaixo traz informações sobre a formação da identidade
local, mostrando, por exemplo, que os cinemas aguardavam o público, hábito incomum
atualmente:

Os cinemas da Capital têm um horário para dar começo á sua primeira sessão. Entretanto,
elle não é obedecido á risca, como devêra ser. Porque, afinal de contas, Bello Horizonte
não é nenhum logarejo do interior, onde se condiciona o inicio das “soirées” á
circumstancias de haver um determinado numero de pessôas para assisti-las (BELLO
HORIZONTE, n.18, 1934, p.5).

A cidade se dá, ao mesmo tempo, a ver e a ler. O tempo narrado e o espaço


habitado estão nela mais estritamente associados do que no edifício isolado. A cidade
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
241
também suscita paixões mais complexas do que a casa, na medida em que oferece um
espaço de deslocamento, de aproximação e de distanciamento (RICOEUR, 2007, p.159).
Um exemplo claro dessa relação entre o urbanismo e a revista se deu através do “Bar do
Ponto”. Nas edições de número 12 e 18, por exemplo, houve a presença de poemas sobre
a Avenida Afonso Pena e a Rua da Bahia. No encontro destas duas vias ficava o Bar do
Ponto, em frente à estação central dos bondes de Belo Horizonte. A importância desse
encontro foi destacada na crônica de 16 de novembro de 1933:

Esse ângulo reto formado no coração de Bello Horizonte pela rua da Bahia e pela avenida
Affonso Penna, em todo o esplendor de sua beleza elegante, já está celebre na memoria
da nossa cidade moderna. Ali, a cidade genuflecte-se, como numa procissão de fé. E´a
ronda das mulheres mais bellas e elegantes, que passam numa espuma de sedas e numa
onda de perfumes, na hora macia da tarde, quando até o ar parece mais leve. O encontro
dessas ruas elegantes, até faz lembrar o reflexo de fadas encantadas passando por dois
espelhos, como nas nossas historias de creança. Quanta belleza, quanto esplendor nesse
vae e vem constante (BELLO HORIZONTE, n.12, 1933, p.8).

O destaque dado à presença das mulheres revelava o público que frequentava a


região, a forma de como a figura feminina era vista, a importância de conviver na cidade,
a calma que o tempo permitia aos sujeitos. A descrição também revelou um hábito social
dos belo-horizontinos, o footing – andar pela cidade para ver e ser visto, conhecer pessoas,
flertar. “Footing” era também o nome de uma coluna da revista, que trazia uma crônica
sobre o passeio da semana, às vezes com fotografias das moças que por ali transitavam.
O texto emulava possíveis diálogos dos homens sobre as garotas, ou simplesmente
comentava o quanto elas eram importantes naquele evento.
O Bar do Ponto foi “substituído” por volta de 1935, segundo Castriota e Passos
(1998). Em 1934, foi criada a Comissão Técnica Consultiva da Cidade, em parte
responsável por reformular o plano urbanístico da capital. Pelos planos da comissão, o
ponto central dos bondes mudaria de endereço: “a transferência da estação central de
bondes do ‘Ponto’ para a Praça Sete veio marcar o deslocamento do ‘centro’ da cidade”
(CASTRIOTA E PASSOS, 1998, p.134). A mudança no trânsito mudou também a
estrutura da revista Bello Horizonte: uma tradicional coluna, denominada “Avenida”, não
apareceu publicada em 1936. De forma versada, “Avenida” era uma coluna/poema que
informava o que acontecia no Bar do Ponto e nas redondezas. A edição de 12 de junho de
1937 trouxe de volta o poema/periódico, agora sob o título de “Praça Sete” –, uma
indicação para o novo referencial da cidade. Escrito por Dom Sancho ao invés de Dom

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
242
Ruy (autor da “Avenida”), o poema seguiu a mesma estrutura e estilo da coluna extinta.
Segue um trecho destacado:

A Praça 7, agora, virou sala:


E´ali que se “corta”, é ali que se fala...
Segredam, quando passas, junto ás louras,
Que já não és, amor, o que tu fôras...
Ninguém sabe, meu bem, si és feliz,
Si já encontraste aquelle que te quis...
Agora isso é verdade; o povo dil-o:
Quando tu queres isso, é bem aquillo...
–Veja que loura vem passar, depois... –
E´ ”blonde”, sim, – mas H²O²[...]
Olha quem vae ali: E´ um caso sério...
A sua vida – dizem – é um mysterio...
Um bom malandro; nunca viu trabalho...
Outra vida não quer: – é do baralho...
[...] (BELLO HORIZONTE, n. 87, 1937, p.15)

Intitulado “O Bar do Ponto Morreu”, o texto de Astolpho Gazolla falava sobre a


transferência da estação central para a Praça Sete na página seguinte ao poema destacado.
Além disso, trouxe à tona um termo comum ao obelisco presente no centro da praça: “O
Bar do Ponto estava velho e feio. A Praça 7 é moça e bonita. E tem pirolito e cinema. E,
também, um círculo grande, onde os bondes brincam de roda. De ciranda, cirandinha...”
(BELLO HORIZONTE, n.87, 1937, p.16). A ideia do velho em oposição ao novo e a
brincadeira com o pirulito evidenciam que a arquitetura e o urbanismo são capazes de
carregar consigo, ao longo do tempo e das gerações, traços do passado; memórias que se
mantêm vivas na sociedade, por mais longas que sejam.
A consolidação da Praça Sete como centro da capital pôde ser vista na capa da
edição de 3 de junho de 1938. A vida da cidade grande promoveu uma espécie de
“desconcentração” da revista em torno de um único local. Era como se, a partir do
deslocamento da central de bondes, Belo Horizonte tivesse ficado grande demais para ser
vista apenas de um único “ponto”. Ao mesmo tempo em que o bonde (que ia até o bairro
Carlos Prates) se tornava cenário de uma crônica urbana, a revista exibia textos situados
em outros países; as poesias (que ficavam espalhadas pelas páginas do periódico) deram
lugar às publicidades e fotorreportagens; e os textos jornalísticos foram perdendo a
linguagem descompromissada.
Em 1939 a revista passou a ser mensal. Junto com a novidade, a ilustração e o
título Bello Horizonte, na capa, foram modificados: tornou-se padrão publicar uma faixa
com o logotipo da revista, além do texto inicial e ilustrado de um conto. Segundo a
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
243
reportagem “Visões da Cidade”, de 1940, as novas sedes da Prefeitura e dos Correios e
Telégrafos foram responsáveis por um milagre: os prédios trouxeram “vida” para a
Avenida Afonso Pena, outrora o coração da cidade.
Ainda durante a década de 1940, a Segunda Guerra Mundial também apareceu nas
páginas da revista. A edição de janeiro de 1943 mostrou o posicionamento editorial a
favor dos Países Aliados. Numa ilustração, trazia Hitler, Mussolini e Tojo atrás de grades
protegidas pelo Anjo da Justiça, que carregava o mundo (envolto por pombas brancas)
em suas mãos. Internamente, foi publicado um poema, escrito por A. J. Pereira da Silva,
intitulado “Para a Vitoria! Britanicos”.
A edição de julho de 1944, além das notícias sobre o conflito na Europa, trouxe
um texto do historiador Abílio Barreto sobre a evolução da cidade de Belo Horizonte. Na
matéria “O Vertiginoso Evoluir de Belo Horizonte”, um interesse público pela memória
da cidade planejada se fez presente. Barreto destacou o ano de 1922 como fundamental
na modificação da paisagem urbana local, pois a cidade se desvinculara do fantasma da
Primeira Guerra e estava pronta para começar a mudar seus ares “interioranos” em busca
do crescimento e industrialização, necessários para se transformar em metrópole:

Entretanto, esse ainda não era o período máximo do evoluir da cidade. A fase de mais
intenso progresso desta começou em 1935, com a sua transfiguração decorrente de uma
série imensa e grandiosa de melhoramentos, realizados no período administrativo do
Prefeito Otacílio Negrão de Lima, mandatário da confiança do Excelentíssimo Senhor
Governador Benedito Valadares. Em seguida, [...], tivemos a dinâmica e arrojada fase
governamental do Prefeito Juscelino Kubitschek de Oliveira, fortemente prestigiado pelo
Excelentíssimo Senhor Governador Benedito Valadares [...] (BELLO HORIZONTE,
n.166, 1944, p.42).

Em 47 anos desde sua inauguração, portanto, Belo Horizonte já era reconhecida


como uma cidade industrial e de grande porte. A última das revistas analisadas foi
publicada mais de três anos depois, em dezembro de 1947. Uma das reportagens chamou
atenção para o trabalho de arquivamento da história da cidade pelo mesmo Abílio Barreto.
Uma exposição de pinturas foi planejada por Elpídio Lemos de Vasconcelos no Edifício
Goitacazes, e sua abertura aconteceu no dia 12 de dezembro, dia do aniversário de 50
anos da capital. As telas ilustravam desde o descobrimento da Serra do Curral até a
inauguração de Belo Horizonte, e foram feitas por vários artistas, usando como referência
o trabalho de Abílio Barreto, relatos de moradores antigos, fotografias e até mesmo outras
pinturas.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
244
O “estilo moderno” nas páginas da revista

A Primeira Grande Guerra fomentou um movimento de recomeço na Europa.


Criadores diversos procuravam uma estética que abandonasse o passado, e encontraram
nos povos antigos (pré-colombianos) a sua referência. “Na verdade, a Europa
desinteressava-se dos produtos de uma sociedade enferma que decidira chacinar a sua
juventude em campos de batalha do Somme e voltava-se para uma arte primitiva, intocada
e natural” (LEMME, 1996, p. 32). O estilo Art Déco foi o resultado das experimentações
feitas por artistas parisienses. Ele se internacionalizou a partir da Exposição Internacional
de Artes Decorativas e Industriais Modernas de Paris, no ano de 1925. Porém, o termo
conhecido hoje (Art Déco), surgiu na década de 1960, com a publicação do livro “Art
Déco”, de Bevis Hillier. Antes disso, o Art Déco era popularmente conhecido como
“Moderno” ou “Cubista”.
Para avaliar de que maneira o estilo manifestou-se nas páginas e nas capas da
revista Bello Horizonte, foram adotadas apenas algumas edições para análise. A seleção
de tais edições constituiu-se das seguintes etapas: agrupamento por similaridade da
composição das capas; análise do conteúdo das revistas de cada grupo; e manutenção das
revistas cujo conteúdo trazia elementos típicos.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
245
Capas

As capas do início da publicação ainda não


utilizavam a policromia, e abusavam das cores
maciças e dos traços geométricos, característicos
do Art Déco (Imagem 1). Também
predominavam o uso dos vermelhos, verdes e
negros. As cores seriam alteradas com o passar
do tempo, ampliando a paleta cromática até
chegar aos dégradés e à exploração das
tecnologias modernas de impressão em cores.
Levando em consideração que boa parte dos
impressos da época era feito em tipografias,
onde as cores eram aplicadas ao papel, uma a
uma, tem-se uma referência dos motivos da
pouca exploração cromática nas capas do início
Imagem 1: Revista Bello Horizonte. Edição
de 9 de Outubro de 1933. Capa. Fonte: site da publicação – quanto mais cores, maior o
do APCBH.
trabalho, e mais caro o produto final. Os traços
das ilustrações possuíam linhas puras e, geralmente, a figura feminina era o motivo do
desenho.
A tipografia do logotipo Bello Horizonte não seguia o estilo Art Déco, que
buscava formas geométricas e puras, pois:

A tipografia de estilo Art Déco, por ter sua construção baseada nos princípios
geométricos, aparenta ser de fácil execução, o que levou, em diversos momentos, a ser
executada por pessoas com pouca intimidade com os procedimentos do desenho
tipográfico, resultando em exemplares com formas no mínimo curiosas, que apresentam
também soluções únicas de aplicação, geralmente para possibilitar que um tamanho
determinado de letras se encaixe no espaço físico disponível, ou de outros procedimentos
que variam caso por caso (D’ELBOUX, 2013, p. 281).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
246
Exceção à regra, a capa da revista de 18 de
Setembro de 1933 foi uma perfeita
representante do uso da estética Art Déco no
campo do design gráfico (Imagem 2). Toda
colorida em verde e vermelho, a capa possuía as
figuras de um cavalo e de uma mulher nua, esta
coberta por um fino véu transparente, com
traços (aparentemente) feitos à régua e
compasso. Observou-se, aqui, uma tipografia
geométrica e maciça, composta por elementos
como o círculo e o quadrado, não deixando
dúvidas sobre a adoção do “moderno” pelo
corpo editorial da publicação.
Imagem 2: Revista Bello Horizonte. Edição de Conforme já dito, o estilo gráfico das capas
18 de Setembro de 1933. Capa. Fonte: site do
APCBH. sofreu alteração quando a estação central dos
bondes mudou de lugar (Imagem 3). Nessa transição, o layout da capa recebeu uma faixa
superior e um logotipo. A revista também ganhou um conto em sua capa, que continuava
no miolo da publicação; nesse padrão, a ilustração seguia o conto iniciado na capa. Com
essas mudanças, a presença de mais cores, incluindo a sobreposição destas, apareceu,
revelando que novas tecnologias de impressão haviam chegado ao meio gráfico

Imagem 3: Revista Bello Horizonte. Edições de 19 de Fevereiro de 1934, Maio de 1937 e Janeiro de
1939, respectivamente. Transição estética das ilustrações em cores sólidas para ilustrações, contos e
logotipo. Capas. Fonte: site do APCBH.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
247
de Belo Horizonte. Foi a partir de então, onde a ilustração já não era mais Art Déco, que
o logotipo aderiu à tipografia típica do estilo, sendo destacado da composição por uma
faixa.
Algumas capas foram classificadas como edições especiais. Nessas foram
encontradas fotografias ou ilustrações referentes à reportagem principal, que não aparecia
na capa (um exemplo de edição especial é a segunda capa da imagem 3; outros exemplos
de capas especiais eram aquelas que utilizavam fotografias impressas em cor única). As
edições especiais se distanciavam das capas das outras edições, por serem mais autênticas
em função da temática empregada. Elas variavam entre si, de acordo com o tema
proposto. A ousadia permitida pelo tema da publicação era vista na composição entre
ilustração e tipografia, ou fotografia e logotipo, que variavam e se adequavam entre si,
não importando a estética vigente.

Páginas internas

Em suas primeiras edições, a revista era semanal e possuía 24 páginas. Sua


configuração interna apresentava um editorial, colunas fixas (“Avenida”, “Footing”, “A
saída da missa”, “Depois da matinê”, “Belo Horizonte no cinema” etc.) e diversos contos,
notas sociais, matérias e poemas. Posteriormente, a revista passou a ser quinzenal e
mensal, totalizando 52 páginas. Com maior uso de fotografias – e ampliando o número
de reportagens e o tamanho das colunas sobre cinema, rádio, literatura, horoscopo, cartas
e curiosidades –, notou-se, também, a colaboração de escritores de renome, como Olavo
Bilac e Carlos Drummond de Andrade. Não foi possível identificar as dimensões físicas
da revista e sua tiragem.
A coluna “Avenida” era uma das mais
importantes da fase inicial. O grande
poema/crônica da semana era publicado nas
páginas iniciais da revista, próximo ao
editorial. Seu título buscava um alinhamento
Imagem 4: Revista Bello Horizonte. Edição de 12 com a tipografia típica do estilo Art Déco,
de Novembro de 1933. Uma das tipografias
utilizadas no título do poema semanal "Avenida"
enquanto o corpo do texto utilizava fonte
com ornamentação da página. Recorte. Fonte: site serifada (Imagem 4). Outro elemento
do APCBH.
recorrente era a ornamentação da página,
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
248
geralmente feita com linhas finas e retas. Essa ornamentação foi utilizada também em
outras páginas da revista, sempre cumprindo a mesma função: compor visualmente a
página. Vale ressaltar que as estéticas anteriores ao Art Déco eram carregadas de
ornamentos. Desprender-se dessa tendência provavelmente era algo difícil para as
pessoas da época. Portanto, a ornamentação geométrica pode ser interpretada, atualmente,
como uma necessidade de se embelezar o “moderno”.
Alguns jogos volumétricos, ora colocando
o texto em ziguezague, ora promovendo
um jogo de preenchimento dos espaços,
remetiam à abstração geométrica herdada
do futurismo pelo Art Déco. Essa
exploração da composição tipográfica não
era utilizada com frequência. Em geral, as
Imagem 5: Revista Bello Horizonte. Edição de 12 de
Novembro de 1933. Exemplo da exploração da páginas possuíam quatro colunas de texto,
composição entre texto e imagem no período. uma distribuição textual similar a dos
Recorte. Fonte: site do APCBH.
jornais. Após a alteração do centro da
cidade e as mudanças gráficas desse período, a revista passou a ter apenas três colunas de
texto. Com o passar do tempo, a tipografia do texto corrido ganhou formas mais
adequadas ao estilo Art Déco. Porém, nesse momento, a arte gráfica da capa já mostrava
sinais do modernismo. A análise tipográfica revelou que a revista diferenciava o tipo do
título e o tipo do texto – às vezes, um mesmo título possuía mais de uma tipografia, algo
que na atualidade “menos é mais” seria um pecado pelo excesso de informação. Em 1940,
a coluna “Um Conto Para Você”, por exemplo, possuía um logotipo que combinava tipos
geométricos e manuscritos. O título do tal “conto para você” era escrito com outra fonte,
às vezes serifada, às vezes geométrica.
Dentre as experimentações fotográficas
feitas pela revista, notou-se uma
preocupação com o acabamento das
fotomontagens. Tal acabamento era feito
entre as composições com formas
geométricas impressas, trabalhadas nas
Imagem 6: Revista Bello Horizonte. Edição de 12 de
bordas da própria fotografia ou ao lado das
Novembro de 1933. Fotografia recordada ocupando
a área equivalente a duas colunas de texto. Recorte. mesmas. Eram utilizadas principalmente
Fonte: Site do APCBH.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
249
linhas finas, que complementavam a composição das páginas. A preocupação com esse
tipo de acabamento foi percebida nas publicações da década de 1930. Na década seguinte,
a presença de ornamentos diminuiu, e a manifestação das composições geométricas e
anguladas deu lugar à disposição de imagens típicas do design gráfico modernista.

Conclusão

A revista Bello Horizonte foi um referencial da cultura belo-horizontina do início


do século XX. Nas duas décadas analisadas, a evolução gráfica da revista se mostrou
alinhada às evoluções territorial, cultural e social da capital mineira. A cidade de Belo
Horizonte havia ultrapassado suas expectativas antes mesmo de completar cinquenta anos
de existência – o que, de certo modo, forçou os governantes a elaborarem um novo
planejamento para o município. O crescimento populacional foi, de certa forma, desejado
em diversos setores, por ser um motivo a mais para livrar a região da pecha de cidade
interiorana. A modernidade desejada chegou junto com o estilo “moderno”, pelo qual foi
largamente conhecido e nomeado o Art Déco; e a revista não deixou de exibir traços da
influência dele em suas páginas: linhas retas, assimetria e fotomontagens na concepção
das matérias. As crônicas e contos se mantiveram perenes, ora com menos, ora com mais
espaço. Os poemas, que preenchiam boa parte da revista em 1933 e 1934, foram dando
espaço às publicidades e às reportagens de outras cidades do estado, do país e do mundo,
a partir do deslocamento da estação central dos bondes – um marco, reafirmamos, na
metropolização da capital mineira.
O projeto gráfico da revista evidenciou a mudança sofrida pela cidade que crescia
em ritmo acelerado, recebendo seu parque industrial e transfigurando o centro urbano.
Mais do que a preservação da memória, Bello Horizonte era um retrato da manifestação
do estilo francês na cultura local. Em suas páginas e capas, contudo, pôde ser percebido
que a adoção do Art Déco não ocorreu totalmente, por não haver coerência estética entre
capa e miolo. Quando houve uma mudança na edição, houve também uma maior
exploração de cores na capa. Com o passar do tempo, o estilo foi se manifestando
internamente e perdendo espaço na capa.
Dentre as evoluções do miolo da publicação, notou-se a diminuição da presença
de elementos ornamentais no layout das páginas, e uma mudança tipográfica no corpo do
texto. Houve também uma redução das colunas de texto, de quatro para três, o que
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
250
contribuiu para uma melhor legibilidade. A evolução gráfica da revista, como um todo,
mostrou como o Art Déco foi utilizado e como foi superado por outras estéticas, algo
comum quando um estilo se tornava moda.
A coleção de revistas Bello Horizonte é, portanto, avaliada como um referencial
onde as memórias da cidade estão reunidas – não apenas para retratar a vida mineira
naquela época, mas para mostrar a virada instituída na cultura local, através do desejo de
ser moderno e ser metrópole, ultrapassando os planos da comissão de arquitetos e
urbanistas que projetaram a capital. Bello Horizonte funciona como um arquivo contendo
textos e imagens de um momento fundamental: de como a sociedade se viu revestida de
poder para se articular a favor da expansão e da industrialização. O arquivo também é
importante por trazer demarcações espaço-temporais do momento que foi alcançado: a
mudança do “Bar do Ponto” para a “Praça Sete”; da pequena localidade que levaria cem
anos para atingir cem mil habitantes para a grande cidade de mais de duzentas mil
pessoas, antes mesmo de completar meio século. As memórias preservadas em Bello
Horizonte sobre a Belo Horizonte são, em outras palavras, memórias do abandono de uma
cidade planejada em função da adoção de novas memórias, ideais para respeitar a tradição
e inaugurar o futuro nas Minas Gerais.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In: O Anjo da História. Org. e Trad.
João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 8-20.

CASTRIOTA, L.B.; PASSOS, L.M. do C. O “Estilo Moderno”: Arquitetura em Belo


Horizonte nos anos 30 e 40. In: CASTRIOTA, L.B. (Org.). Arquitetura da Modernidade.
Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 127-182.

D’ELBOUX, J. R. Tipografia como elemento arquitetônico no Art Déco Paulistano: uma


investigação acerca do papel da tipografia como elemento ornamental e comunicativo, na
arquitetura da cidade de São Paulo entre os anos de 1928 a 1954. 2013. 300 f. Dissertação
(Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo. 2013.

DERRIDA, Jaques. Mal de Arquivo: Uma Impressão Freudiana. Trad. Cláudio de Moraes
Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 6-38.

FOUCAULT, Michel. O A Priori Histórico e o Arquivo. In: A Arqueologia do Saber.


Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 145-
151.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
251
GAGNEBIN, Jean Marie. Estética e Experiência Histórica em Walter Benjamin. In:
Limiar, Aura e Rememoração: Ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: 34, 2014, p.
197-267.

GAGNEBIN, Jean Marie. Verdade e Memória do Passado. In: Lembrar Escrever


Esquecer. São Paulo: 34, 2006, p. 39-48.

HURLBURT, Allen. Layout: o design da página impressa. Barueri: Nobel, 1986.

LEMME, Arie Van de. Guia de Arte Deco. Tradução: Eduardo Saló. Lisboa: Estampa,
1996.

LUPTON, Ellen. Pensar com Tipos: guia para designers, escritores, editores e estudantes.
São Paulo: Cosac Naify, 2006.

RICOEUR, Paul. Fase Documental: A Memória Arquivada. In: A memória, a história, o


esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007, p. 155-192.

TAYLOR, Diana. A Memória como Prática Cultural. In: O Arquivo e o Repertório:


Performance e Memória Cultural nas Américas. Belo Horizonte: UFMG, 2013, p. 125-
164.

Revistas Bello Horizonte Consultadas

Bello Horizonte. Belo Horizonte: Augusto Siqueira (Dir.), a. 1, n. 12, 16 nov. 1933.
Bello Horizonte. Belo Horizonte: Augusto Siqueira (Dir.), a. 1, n. 18, 19 jan. 1934.
Bello Horizonte. Belo Horizonte: Augusto Siqueira (Dir.), a. 4, n. 73, 30 out. 1936.
Bello Horizonte. Belo Horizonte: Augusto Siqueira (Dir.), a. 4, n. 82, 12 jun. 1937.
Bello Horizonte. Belo Horizonte: Augusto Siqueira (Dir.), a. 5, n. 93, 3 jun. 1938.
Bello Horizonte. Belo Horizonte: Augusto Siqueira (Dir.), a. 7, n. 107, set. 1939.
Bello Horizonte. Belo Horizonte: Augusto Siqueira (Dir.), a. 7, n. 111, jan. 1940.
Bello Horizonte. Belo Horizonte: Augusto Siqueira (Dir.), a. 10, n. 148, jan. 1943.
Bello Horizonte. Belo Horizonte: Augusto Siqueira (Dir.), a. 12, n. 166, jul./ago. 1944.
Bello Horizonte. Belo Horizonte: Miguel Chalup (Dir.), a. 14, n. 188, dez. 1947.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
252
ENSINO DE HISTÓRIA, EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E RELAÇÕES DE
GÊNERO: UMA ANÁLISE DA OFICINA DESVENDANDO O ARQUIVO
PÚBLICO

HISTORY TEACHING, HERITAGE EDUCATION AND GENDER


RELATIONS: AN ANALYSIS OF THE WORKSHOP DESVENDANDO O
ARQUIVO PÚBLICO

Tiago Vidal Medeiros 

Resumo

Este artigo busca refletir sobre a experiência de uma oficina criada pelo Arquivo Público
do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) que relaciona educação patrimonial, ensino de
história e relações de gênero. Para tanto, é feita uma revisão da bibliografia sobre estudos
de gênero na historiografia e sua recente apropriação pelo campo do ensino de história
buscando entender o contexto e a pertinência de ações educativas que relacionem os dois
temas. Por fim, a oficina Desvendando o Arquivo Público é descrita e analisada,
procurando refletir sobre suas possibilidades e potencialidades enquanto ação educativa
problematizadora da história das relações de gênero a partir do patrimônio documental
do APERS.

Palavras-chave: Relações de Gênero; Ensino de História; Educação Patrimonial.

Abstract

This paper seeks to reflect about the experience of an workshop created by the Arquivo
Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) which relates heritage education,
history teaching and gender relations. Therefore, a review of the bibliography on gender
studies in historiography and its recent appropriation by the field of history teaching is
made, aiming to understand the context and the pertinence of educational actions that
relates the two themes. Finally, the workshop Desvendando o Arquivo Público is
described and analyzed, seeking to reflect on its possibilities and potentialities as
educational action problematizing the history of gender relations from the documentary
heritage of the APERS.

Keywords: Gender Relations; History Teaching; Heritage Education


Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-
mail: tiagovm.t@gmail.com.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
253
Debates sobre as relações de gênero e feminismo vêm tomando um espaço cada vez
maior na opinião pública, na mídia e na escola, se considerarmos os últimos anos. Tais
discussões vêm mobilizando a sociedade brasileira na qual diferentes grupos enfrentam-
se, tomando posições diversas. A educação, enquanto campo próprio de disputas político-
ideológicas, é um tema que tem recebido grande atenção desses grupos no que diz respeito
ao papel das professoras/es e da escola em incitar (ou interditar) os debates de gênero.
Nesse sentido, vimos surgir movimentos que tentam inserir pautas conservadoras em
programas educacionais no país, a saber, o projeto “Escola Sem Partido” e a cartilha
intitulada “Ideologia de Gênero” que pauta diversos outros projetos conservadores. Ao
mesmo tempo, observamos o emergir de um movimento estudantil – principalmente
secundarista – sob a forma de ocupações das escolas em diversas partes do país, desde a
segunda metade de 2015. Dentre suas características principais, estava um visível
protagonismo feminino e o desenvolvimento de atividades dentro das ocupações que
tratavam das temáticas de gênero, feminismo, fascismo e movimentos sociais (AQUINO
et al., 2015).
Considerando-se esses fatos, podemos dizer que os debates sobre relações de gênero
e educação tornaram-se “imperativos do tempo presente” (CUBAS; ROSSETO, 2016, p.
213). Em conexão com esses processos, as instituições de ensino não formais como
museus, arquivos e memoriais passaram a elaborar ações educativas e a promover eventos
que também têm como centro as questões de gênero. É o caso do Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul (APERS) que, em 2016, criou uma oficina cujo objetivo é
fazer os participantes refletirem sobre as relações de gênero numa perspectiva histórica,
denominada Desvendando o Arquivo Público: relações de gênero na história151.
Este artigo busca refletir sobre essa ação educativa à luz do diálogo entre estudos de
gênero, ensino de História e educação patrimonial. Especificamente, busco entender em
que medida a oficina permite problematizar as relações de gênero na História a partir do
patrimônio documental do APERS. Dessa forma, inicio apresentando os debates teóricos
que articulam estudos de gênero e ensino de História; em seguida, descrevo a proposta e
o funcionamento da oficina, bem como suas aproximações e disparidades com os estudos

151
No segundo semestre de 2016, pude participar, enquanto oficineiro, de diversas atividades práticas
relacionadas a esta oficina em razão da disciplina de Estágio em Educação Patrimonial. É com base nesta
experiência que busco construir a reflexão a seguir.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
254
de gênero; por fim, busco refletir sobre a potencialidade da mesma enquanto ação de
educação patrimonial.

1. Gênero e Ensino de História

Por volta dos anos 1960, uma crise atingia a historiografia ocidental. Seu caráter
historicista era criticado já desde os inícios do século XX por diversas correntes e
movimentos intelectuais. As críticas dos seguidores da Escola dos Annales e dos
historiadores marxistas britânicos já vinham pautando os apagamentos históricos de
grupos minoritários, como pobres e operários. No contexto de finais dos anos 1960,
impulsionadas politicamente pelo movimento feminista e pela entrada de mais mulheres
na academia, as historiadoras feministas também passaram a arrolar a invisibilidade das
mulheres nesta historiografia pretensamente objetiva e neutra. Surgia, assim, na senda
dos Estudos das Mulheres e de Gênero, uma História das Mulheres como um novo campo
de estudo que acrescentaria novos temas e objetos, além de criticar a forma como o
trabalho científico vinha sendo realizado.
Passadas quase duas décadas do início deste movimento, a historiadora
estadunidense Joan Scott assumiu a tarefa de fazer um balanço da produção das
historiadoras feministas até então. Assim, apontava, em hoje clássico texto, que a estas
caberiam a função de não somente inscrever as mulheres na história, mas também de
propor uma nova metodologia que resultaria em uma nova história (SCOTT, 1995). Para
avançar, tornava-se necessário questionar as bases epistemológicas na qual a
historiografia (e a ciência) moderna havia se assentado. Nesse sentido, contestava o
caráter pretensamente universal e neutro do sujeito ocidental, que havia sido o objeto
privilegiado da historiografia até então. Sem questionar seu caráter essencialista, os
historiadores tomavam não somente o sujeito, mas também as bases conceituais e
epistemológicas da historiografia desde uma lógica masculina. Assim, propunha operar
uma mudança epistemológica que colocasse o gênero como uma categoria de análise
histórica (SCOTT, 1995).
Ao fazer tal proposição, Scott estava se dirigindo não somente aos historiadores
tradicionais, mas também às historiadoras feministas que vinham buscando teorizar sobre

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
255
a experiência feminina na história. Analisando e sistematizando as tentativas das
feministas de teorizar o gênero até então, a historiadora aponta os problemas e limitações
que essas teorias apresentam. Para ela, as abordagens produzidas pelas historiadoras
feministas eram problemáticas, pois insistiam no caráter fixo e universal do binarismo de
gênero, produzindo noções a-históricas e essencialistas da categoria mulheres e falhavam
na desconstrução dos termos da diferença sexual. De maneira geral, ela chama a atenção
para a necessária historicização da categoria de gênero, tomada de maneira relacional, o
que quer dizer que seria necessário estudar tanto as diferentes formas de “ser mulher” e
“ser homem”. Assim, essa perspectiva também implicava compreender o gênero de modo
interseccionado com as categorias de classe e raça (SCOTT, 1995).
Da década de 1980 até hoje, os estudos de gênero conseguiram construir um espaço
consolidado na academia e na produção historiográfica, embora ainda enfrentem algumas
dificuldades para se colocar em alguns campos mais tradicionais. Por vezes, historiadoras
feministas que trabalham no campo das relações de gênero são acusadas de fazerem uma
“história militante” como oposta a uma “história científica”, mesmo a historiografia já
tendo superado a certeza da neutralidade há bastante tempo (PEDRO, 2011). Muitas
autoras concordam, porém, que no campo do Ensino de História a produção acerca do
gênero ainda é bastante incipiente (CUBAS, ROSSETO, 2016; GALLI, 2015; WASZAK,
2015).
Nesse sentido vale a pena destacar dois aspectos do Ensino de História no Brasil que
podem explicar a parca apropriação da categoria de gênero neste campo: o currículo e os
livros didáticos. Cubas e Rosseto (2016) chamam a atenção para a recente e tímida
incorporação das questões de gênero nos currículos brasileiros. Foi no âmbito dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1998 que surgiram as primeiras referências
textuais às relações de gênero, incluída na temática transversal de “orientação sexual”.
Ainda assim, a referência, nos parâmetros curriculares, não é garantia de que essa questão
será abordada de forma consistente e comprometida com as produções deste campo de
estudo. Em relação aos livros didáticos de História, os estudos mais recentes têm apontado
para um silêncio acerca das mulheres nesses materiais. Pesquisas apontam que apesar de
nos últimos anos ser possível ver uma incorporação de mais figuras femininas nos livros,
elas ainda estão em bordas e margens, sendo ressaltados alguns ícones pontuais sem
grande influência no processo histórico (MISTURA; CAIMI, 2015 apud CUSBAS;
ROSSETO, 2016).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
256
Considerando-se esta modesta representação do feminino, o Ensino de História no
Brasil, no que tange as questões de gênero, tem sido tratado a partir de uma lógica de
suplemento em relação a uma história geral masculina. Esta observação foi feita por Joan
Scott na década de 1990 para se referir aos lentos avanços que a história das mulheres
tinha alcançado naquele momento, mas parece se encaixar no contexto atual para este
campo (SCOTT, 1992). Desta forma, uma história que se volte para as questões de gênero
acaba dependente de ações individuais de professoras/es que se proponham a trabalhar a
temática. A respeito desse silêncio, Miranda (2013) se questiona o quanto este influencia
a aprendizagem histórica de meninas do ensino fundamental, num momento da vida
escolar em que há forte produção de identidades de alunas e alunos, na qual se inclui a
identidade de gênero. A autora afirma que a invisibilidade da experiência de determinados
atores na história ensinada, como é o caso das mulheres, contribui para que as alunas não
se percebam nos processos históricos. E, assim, têm dificuldades em perceber que as
experiências femininas que formam suas identidades de gênero (como o machismo e a
violência, por exemplo) possuem historicidade, e que, portanto, podem ser mudadas
(MIRANDA, 2013).
Este quadro complexo, exposto acima, que caracteriza as relações entre o Ensino de
História e os Estudos de Gênero, suscita a criação de ações inovadoras, que busquem dar
conta da história das relações de gênero no ensino básico. Neste sentido, a educação
patrimonial torna-se uma importante aliada, permitindo abordagens diferentes para uma
temática pouco estudada na escola. Algumas ações educativas já realizadas vêm
permitindo problematizar as relações de gênero na História, muitas vezes preenchendo
um espaço de vazio e invisibilidade, como é o caso relatado por Laura Galli (2015) em
seu Trabalho de Conclusão de Curso no qual ela reflete sobre a elaboração de uma oficina
sobre história das mulheres de Porto Alegre e a aplicação desta em escolas básicas da
rede pública de ensino, além da oficina do APERS, que será descrita a seguir.

2. Desvendar um arquivo, descobrir relações de poder

Desde 2008, o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul realiza oficinas de
educação patrimonial numa parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
257
(UFRGS) que se concretizou no Programa de Educação Patrimonial (PEP). Nessas
oficinas estudantes de escolas de Ensino Fundamental e Médio são recebidos no Arquivo
para participarem de oficinas com temáticas diversas. Atualmente, há três oficinas em
funcionamento. A primeira se chama Os tesouros da Família Arquivo e é destinada a
turmas dos 6º e 7º anos do ensino fundamental. Nela os/as alunos/as conhecem e
problematizam a história da escravidão e da luta por liberdade no Brasil e em especial no
Rio Grande do Sul, através de alguns documentos selecionados. A oficina Desvendando
o Arquivo Público: as relações de gênero na história, foco deste artigo, tem como público
alvo estudantes do 8º e 9º ano do ensino fundamental, na qual são chamados a desenvolver
habilidades do trabalho do/a historiador/a a partir das relações de gênero ao tomarem
conhecimento de uma série de documentos diversos. A terceira oficina é denominada
Resistência em Arquivo: Patrimônio, Ditaduras e Direitos Humanos e foi construída para
estudantes do Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA) com o objetivo de
discutir temas relacionados à memória, aos direitos humanos e à história da ditadura civil-
militar brasileira a partir dos processos oriundos da Comissão Especial de Indenização do
Estado (RODEGHERO et al., 2015).
As três oficinas são constituídas por etapas semelhantes que compõem um percurso
dentro do Arquivo, cada uma com suas particularidades. Irei me ater a descrever o
funcionamento da Desvendando, pois é meu objeto de análise aqui. As/os alunas/os das
escolas são recepcionadas no auditório do APERS onde serão apresentados à instituição
e à oficina que realizarão; neste momento eles também são brevemente introduzidos ao
assunto da educação patrimonial. Após essa primeira etapa, os estudantes são divididos
em grupos, sendo que cada grupo fica sob a responsabilidade de um/a oficineiro/a, e
fazem uma visita rápida ao pátio interno da instituição, na qual recebem informações
sobre a construção dos três prédios que fazem parte do Arquivo, sua arquitetura e acervos.
Em seguida, são conduzidos para dentro de um dos prédios, que contém uma grande parte
do acervo da instituição, e no qual são informados sobre os diferentes tipos de documentos
salvaguardados, as formas de armazenamento, preservação, restauração e organização do
patrimônio documental. No final desta etapa, os alunos recebem envelopes com pistas
para que localizem dentro do acervo uma caixa, que conterá os documentos que serão
trabalhados por eles na etapa seguinte. Após encontrarem a caixa, os estudantes são
levados até a sala Borges de Medeiros na qual cada grupo trabalhará com uma caixa, que

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
258
conta uma história específica. Todo o trabalho é mediado por um/a oficineiro/a que dá as
indicações de como o trabalho pode seguir.
Em cada caixa há a reprodução de uma fonte que faz parte do acervo do APERS e
sua transcrição. Os tipos desses documentos são processos crimes, certidão de
nascimento, habilitação para casamento e processo de desquite. Dentro da caixa há
também um texto de apoio que tem por objetivo suscitar uma reflexão sobre como
funciona o trabalho do/a historiador/a, ou seja, atenta para o fato de que é preciso
compreender que existem certos procedimentos de pesquisa que devem ser seguidos.
Além disso, o texto também introduz a discussão de gênero, fazendo uma rápida
referência ao clássico ensaio de Joan Scott, citado anteriormente. As caixas também
possuem uma série de outros materiais de apoio específicos para cada fonte trabalhada,
como fotografias da época, trechos de legislações antigas e contemporâneas, textos
historiográficos, notícias de jornais, gráficos, linhas do tempo, etc. que permitem ao
oficineiro orientar as discussões feitas a partir da fonte para múltiplos caminhos possíveis.
De modo geral, as oficinas funcionam com um primeiro momento para a leitura coletiva
dos documentos e, em seguida, é feita uma discussão.
Ao total, cinco caixas foram elaboradas pela equipe do APERS para esta ação
educativa, na qual é possível discutir tópicos específicos com as alunas e os alunos a partir
de cada fonte e dos materiais de apoio. A primeira caixa contém a certidão de nascimento
da famosa cantora Elis Regina. A partir desta e dos materiais de apoio (um vídeo, capas
e reportagens de revistas, letras de música) o oficineiro tenta provocar a construção de
uma narrativa biográfica da vida de Elis, enquanto uma personagem feminina
protagonista que marcou a música e a história do Brasil, no contexto da ditadura civil-
militar e da redemocratização. A segunda caixa tem como fonte o processo-crime de
Joanna Eiras, mulher criminosa que residia em Porto Alegre no início do período
republicano. Com ela é possível problematizar os muitos aspectos que sua vida
apresentou à sociedade, como as repressões e as valorações que lhe foram apontadas por
não se conformar aos papéis de gênero do período. Há outro processo-crime na terceira
caixa, que conta a história da “Maria Degolada”, nome criado pelo imaginário social de
Porto Alegre para se referir à história de Maria Francelina Trenes, assassinada por seu
amásio em 1899. A partir do processo é possível trabalhar questões de violência contra a
mulher no passado e no presente, bem como a importância da denúncia e das legislações
que buscam proteger as mulheres. O documento do processo de Desquite de Ida Kerber,
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
259
ocorrido em 1935, é a fonte analisada em outra caixa. Através dela podemos analisar as
relações hierárquicas estabelecidas entre homens e mulheres no matrimônio,
compreendendo os papéis desempenhados pelos dois, destacando as submissões que eram
impostas às mulheres com aval na legislação da época, e como essa relação foi se
alterando com o tempo. A quinta caixa contém uma habilitação para o casamento de uma
região de imigração do Estado na primeira década do século XX. Com esta fonte é
possível refletir sobre as possibilidades de matrimônio para homens e mulheres, e sobre
os papéis de gênero construídos dentro de uma família em região rural. Também se
discute sobre o casamento enquanto direito, e como este se modificou ao longo do tempo.
Após as leituras e as discussões com as fontes e os materiais das caixas, as alunas e
os alunos são convidados a compartilharem com os demais as descobertas e as reflexões
feitas nos grupos. Neste momento contam o que puderam aprender sobre as histórias das
pessoas e como elas possibilitam pensar sobre as relações de gênero na história. Encerrada
esta dinâmica, um/a oficineiro/a de apoio, explica aos estudantes dados sobre violência
contra as mulheres no Brasil. Ao longo da oficina esta/e oficineira/o terá colocado, em
silêncio, no painel metálico presente na sala imãs que simbolizam estatísticas de violência
para o período em que estiveram fazendo a atividade (2 horas): cerca de 300 mulheres
espancadas, 11 estupradas e 1 assassinada. A fala desta/e oficineira/o encerra a ação
educativa evidenciando as desigualdades nas relações de poder e a violência estabelecida
na sociedade por conta do gênero, e fazendo um apelo para que avancemos nas discussões
acerca do machismo e das relações hierarquizadas, denunciando os casos de violência que
vivenciamos ou presenciamos.
Este último momento da oficina deixa claro que, além de instigar alunos e alunas a
desenvolverem noções do trabalho de historiador/a a partir das relações de gênero na
história, ela tem um propósito político muito claro que é o de se colocar contra as
opressões e violências vividas pelas mulheres na sociedade contemporânea; uma posição
necessária no tempo presente, momento em que gênero é objeto constante de discursos.
Mas a existência de violências não é apenas mencionada e condenada moralmente; no
trabalho com as caixas a violência e a submissão da mulher são explicadas historicamente.
A partir das fontes os estudantes são apresentados a situações em que as personagens
estavam envolvidas em relações de poder (às vezes de violência, às vezes de insubmissão,
outras de conformação com papéis de gênero), mas que com o auxílio dos demais
materiais tomam contato com discursos diversos (da imprensa, dos códigos, etc.) que as
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
260
engendravam nessas situações. Além disso, são chamados a fazerem comparações com
outros momentos históricos, onde é possível perceber os pontos de corte, as
descontinuidades e as continuidades. Assim, a oficina busca mostrar aos alunos a
historicidade de diversas experiências femininas, como pretendia Scott ao propor o
gênero enquanto categoria de análise histórica.
A atividade, portanto, está em conexão com o proposto pelos estudos de gênero:
visibiliza as mulheres, e ao mesmo tempo explicita os mecanismos sociais e culturais que
as invisibilizam. Por outro lado, porém, é necessário se questionar sobre quais mulheres
estão recebendo visibilidade nesta oficina. A reflexão de Scott (e demais historiadoras
feministas) alerta para a necessidade de não se essencializar a categoria mulheres, de
modo que os estudos de gênero devam se articular também com questões de classe e de
raça. No tangente à problemática de classe, há mulheres que pertenciam à classe média e
nesses casos sua posição social é explicitada e comparada a casos de mulheres das classes
baixas (como no caso das mulheres públicas152 e das empregadas domésticas), e há
também mulheres representadas que de fato pertenciam a um estrato social mais baixo
(como o caso de Maria Francelina Trenes). Nas questões raciais, contudo, não há a mesma
representação, pois todas as histórias abordadas são de mulheres brancas; embora seja
possível que cada oficineiro/a problematize raça e etnia a partir dos materiais de apoio.
Existe também outra dimensão importante que não havia sido mencionada por Scott, mas
que, na sociedade atual, toma grande significado político: trata-se das pessoas trans* e
travestis. Neste caso, também não há representação e a problematização é parca.
Acredito, contudo, que a representatividade de mulheres negras e trans* era uma
preocupação da equipe que montou a oficina. Mas há no APERS uma quantidade enorme
de documentos, a grande maioria ainda desconhecida ou que foram catalogados sem levar
em conta marcadores raciais e de gênero. Este fato, no entanto, não deve nos imobilizar
frente a essas temáticas, deve nos motivar a realizar mais pesquisas de modo
interseccional e que contemplem pessoas negras, indígenas, trans* e travestis.

152
Durante a Primeira República (1889-1930), as mulheres que tinham trabalhos assalariados, como
operárias, lavadeiras e engomadeiras recebiam o apelido de “mulheres públicas”. Elas eram mal vistas
socialmente, pois segundo os valores da época, a mulher deveria apenas se ocupar dos afazeres domésticos.
Essa alcunha afetava, principalmente, as mulheres mais pobres que precisavam trabalhar para sustentar suas
famílias. Para mais, ver: FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: DEL PRIORE, M. (org.)
História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. Na oficina analisada, o caso das mulheres
públicas é comparado com a história de Ida Kerber, mulher de classe média, que passou por um processo
de desquite.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
261
3. Patrimônio e identidades

Neste momento, é importante refletir brevemente sobre educação patrimonial, a


metodologia de trabalho utilizada pelo APERS na realização das oficinas.
Historicamente, a noção de patrimônio nasce no Ocidente como um conjunto de bens
materiais que representariam a memória da nação. O patrimônio nacional estava, assim,
atrelado a uma dimensão identitária (e educativa) que junto com outros elementos
permitiria imaginar a nação, como nos lembra Zita Possamai (2013). A noção de
patrimônio e de educação patrimonial, entretanto, mudou muito ao longo tempo. No
Brasil, por exemplo, num primeiro momento, a educação patrimonial estava vinculada à
conscientização para preservação dos bens materiais em “pedra e cal”, representativos da
memória nacional oficial e das classes dominantes. Mais recentemente, vemos uma
ampliação do conceito de patrimônio que busca contemplar também expressões e saberes
populares, fazendo surgir a noção de Patrimônio Imaterial. Desta forma, passamos a
entender que os bens patrimoniais não têm valores que lhes são inerentes, mas que a sua
valorização passa por um processo de atribuição de sentido, que é resultado de disputas e
tensões ao longo do tempo (GALLI, 2015).
É nessa mesma perspectiva que devemos compreender a noção de identidade. Zita
Possamai ressalta que ambos, patrimônio e identidade, não são conjuntos fixos e
imutáveis, mas fenômenos que fazem parte de um processo de invenção no imaginário
social. Assim, identidade e patrimônio são criados no tempo presente para atender a suas
demandas (resultado de embates no campo social), mas fazendo apelo a aspectos do
passado. Deste modo, a educação patrimonial assume um caráter de formadora de
identidades. Mas se na contemporaneidade a ideia de identidade nacional como única e
fixa no processo de constituição dos sujeitos está enfraquecida, dando lugar a múltiplas
identidades local, étnica, cultural, de gênero, sexual, etc. é possível nos questionarmos se
através da educação patrimonial não corremos o risco de enquadrar alguma identidade
específica como se fosse fixa e imutável (POSSAMAI, 2013). Seria a identidade de
gênero uma categoria imprópria para lidar com o patrimônio do APERS?
A resposta a essa pergunta articula o pensamento de Possamai com o de Scott. Para
a primeira, a identidade não se torna um empecilho para a educação patrimonial se a
considerarmos como um objeto em investigação, no sentido de que seja possível
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
262
desconstruir as narrativas que levaram a sua formulação: “Mais do que afirmar
identidades, é mister compreender as diferenças”, afirma a autora (POSSAMAI, 2013, p.
97). Para além disso, é necessário compreender os processos que levaram a constituição
das diferenças. De modo semelhante, Scott (1995) propunha que a pesquisa histórica
atentasse para a historicização das formas como as hierarquias e as diferenças de gênero
são construídas e legitimadas no seio de relações de poder que engendram tanto mulheres
quanto homens. Nesse sentido, entendo que a categoria gênero não se torna inadequada
para ser trabalhada pela educação patrimonial, desde que seja problematizada
historicamente. Pelo contrário, vejo grande potencial na educação patrimonial como
metodologia que permite discutir os processos de atribuição de sentido aos bens
patrimoniais, questionando os silêncios e a invisibilidade de sujeitos historicamente
excluídos, como as mulheres, objeto da ação educativa do APERS.

4. Considerações finais

Busquei, ao longo deste texto, refletir sobre a oficina Desvendando o Arquivo Público
a partir das interações entre estudos de gênero, ensino de História e educação patrimonial.
Ressaltei que a historiografia das relações de gênero lança luz sobre a historicidade das
experiências masculinas e femininas e o modo como estas são construídas
hierarquicamente. Também relatei como a categoria gênero ainda é pouco apropriada nas
aulas de história, restando ainda silêncios sobre a história das mulheres. Por fim, tentei
mostrar como a educação patrimonial pode auxiliar no trabalho de questionar e visibilizar
as experiências femininas historicamente.
Desta forma, entendo que a ação educativa analisada lida de modo muito eficaz com
as questões de gênero, estando em conexão com as reflexões teóricas levantadas. Na
oficina, as relações de gênero não são tomadas numa perspectiva identitária fixa (as
mulheres como naturalmente reprimidas, por exemplo), mas sim, procura, num trabalho
processual, incluir as mulheres na História, colocando em questão e historicizando suas
experiências. Sendo assim, acredito que esta oficina se torna uma importante aliada das
professoras e dos professores que buscam construir um Ensino de História
problematizador das diferentes relações de poder. A ação educativa do APERS dá
visibilidade às histórias de mulheres, apresentando suas atuações em diferentes contextos.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
263
Possibilita, assim, um trabalho continuado em sala de aula que questione o conhecimento
histórico escolar produzido, permitindo oferecer outros olhares, possibilitando criar
outras Histórias.

Referências

AQUINO, Francieli; HUBNER, Laura; MEDEIROS, Tiago. “Lute como uma menina”:
uma análise das ocupações escolares a partir das relações de gênero, 2015. [no prelo].
CUBAS, Caroline; ROSSETO, Luciana. Imperativos de um Tempo Presente: Ensino de
História e Gênero em um projeto desenvolvido por bolsistas do Pibid. Revista História
Hoje, Florianópolis, v. 5, n. 10, p. 211-230, 2016.
FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: DEL PRIORE, Mary. (org.) História
das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 510-553.
GALLI, Laura S. Mulheres na História de Porto Alegre: uma reflexão sobre educação
patrimonial e ensino de História a partir de experiência com caixa pedagógica do museu
Joaquim Felizardo. Porto Alegre: UFRGS, 2015. (Trabalho de Conclusão de Curso).
MIRANDA, Anadir. Reflexões sobre mulheres, gênero e aprendizagem histórica.
Historiae, Rio Grande, v. 4, n. 2, p. 103-114, 2013.
PEDRO, Maria Joana. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia
contemporânea. Topoi, Rio de Janeiro, v. 12, n. 22, p. 270-283, jan.-jun. 2011.
POSSAMAI, Zita. Patrimônio e identidade: qual o lugar da história? In: GASPAROTTO,
A.; FRAGA, H.; BERGAMASCHI, M. Ensino de História no CONESUL: Patrimônio
cultural, territórios e fronteiras. Porto Alegre: Evangraf, 2013. p. 87-98.
RODEGHERO, Carla; BRANDO, Nôva; ALVES, Clarissa (org.). PEP em revista: o
Programa de Educação Patrimonial UFRGS-APERS. Porto Alegre: UFRGS/APERS,
2015.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade,
Porto Alegre,v. 20, n. 2, p. 71-99, jul.-dez. 1995.
SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história:
novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. p. 63- 95
WASZAK, Aline. História das Mulheres, Gênero e Educação: reflexões sobre o Ensino
de História no Brasil (1998-2015). Curitiba: UFPR, 2015. (Trabalho de Conclusão de
Curso).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
264
PENSAR AS AÇÕES EDUCATIVAS DO MUSEU CASA KUBITSCHEK:
ABORDAGENS E PRÁTICAS EXPERIMENTAIS PARA A EDUCAÇÃO EM
MUSEUS

PONDERING OVER KUBITSCHEK HOUSE MUSEUM’S EDUCATIONAL


ACTIONS: APPROACHES AND EXPERIMENTAL PRACTICES DIRECTED
TOWARDS EDUCATION IN MUSEUMS

Ana Karina Ribeiro Bernardes*

Pollyanna Lacerda Machado**

Resumo

O intuito deste artigo é apresentar como as ações educativas realizadas pelo Museu Casa
Kubitschek, desde agosto de 2016, vêm sendo desenvolvidas. Optou-se por fazer uma
breve contextualização da instituição, passando pelas abordagens e práticas que
possibilitaram o andamento do trabalho, apresentando também alguns resultados. Como
parte deste projeto, implementou-se ações que visam a aproximação do público e sua
apropriação do espaço, bem como, a elaboração de materiais educativos que servem de
apoio às atividades. Entendemos o museu enquanto espaço de diálogo e aberto para o
exercício da cidadania, local propício para a formação de sujeitos responsáveis pelo meio
em que vivem, cientes do valor dos bens culturais e da importância de sua preservação.

Palavras chave: Educação em Museus; Patrimônio; Ações educativas.

Abstract
The purpose of this article is to present how the educational actions carried out by the
Casa Kubitschek Museum, since August 2016, have been developed. It was decided to
make a brief contextualization of the institution, through the approaches and practices

*
Mestranda em Ciência da Informação pela UFMG, Especialista em História da Cultura e da Arte pela
UFMG, Bacharel e licenciada em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte-UNI/BH. Técnica
em Patrimônio Cultural da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. akbernardes@gmail.com
**
Mestranda em Educação e Docência com graduação em Museologia, ambas pela Universidade Federal
de Minas Gerais. pollyanna.mus@gmail.com

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
265
that enabled the progress of the work, also presenting some results. As part of this project,
actions were implemented that aim at the approximation of the public and their
appropriation of space, as well as the elaboration of educational materials that support
activities. We understand the museum as a space for dialogue and open to the exercise of
citizenship, a place conducive to the formation of subjects responsible for the
environment in which they live, aware of the value of cultural assets and the importance
of their preservation.
Keywords: Education in museums; Cultural heritage; Educational activities.

Contexto histórico: de Casa a Museu Casa Kubitschek

Inaugurado em 2013, o Museu Casa Kubitschek (MCK), instituição vinculada à


Secretaria Municipal de Cultura (SMC) e à Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura
de Belo Horizonte (FMC), foi originalmente projetado para ser uma casa de campo no
ano de 1943. A residência também foi concebida com o intuito de servir de modelo para
outras construções que viriam a ocupar as margens da Lagoa da Pampulha, local
escolhido por Juscelino Kubitschek para implantar a modernidade na capital de Minas
Gerais. Ao longo de sua história, a casa desempenhou funções de residência particular,
finalidade para a qual foi projetada, estando sob os cuidados da família Kubitschek por
curto espaço de tempo153. Foi quando Juscelino Kubitschek se transferiu com sua família
para a cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal, que a família entendeu, por bem,
vender o imóvel ao seu assessor e amigo pessoal, Sr. Joubert Guerra.
A família Guerra, proprietária da casa entre 1951 e 2005, foi a responsável por
mobiliar o espaço, constituindo a belíssima coleção de móveis modernistas que compõem
seu acervo, e cuidar de sua preservação para a comunidade belorizontina. A Sra. Juracy
Guerra, esposa do Sr. Joubert Guerra, manifestou em diversas oportunidades o desejo de
que o espaço viesse a se tornar um Museu. Após a morte da Sra. Juracy, em 2004, a
Prefeitura de Belo Horizonte desapropriou o imóvel conjuntamente com seus objetos de
decoração e mobiliário, e iniciou os trabalhos para a restauração do edifício e seu acervo,
assim como a preparação para a abertura do espaço ao público.

153
As fontes documentais disponíveis não fornecem com exatidão este período/dado.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
266
O Museu Casa Kubitschek foi aberto em 10 de setembro de 2013 e, desde sua
inauguração, conta com duas exposições de longa duração, “Casa Kubitschek: uma
invenção modernista do morar” e “Pampulha: território da modernidade”, constituindo-
se um espaço para a comunicação do modernismo, os modos de morar, a arte integrada e
paisagismo; e da história da Pampulha, destacando-a como território da multiplicidade,
marcado pelo encontro entre a tradição e a modernidade.
Atualmente a edificação integra o Conjunto Moderno da Pampulha, sendo
tombada pelas instâncias do patrimônio municipal, estadual e federal. Em julho de 2016,
outros equipamentos que integram este conjunto – Casa do Baile, Museu de Arte da
Pampulha, Iate Tênis Clube e a Igreja São Francisco de Assis – foram reconhecidos pela
UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, sendo o primeiro bem cultural a
receber o título de Paisagem Cultural do Patrimônio Moderno (IPHAN, 2016). Esta
particularidade nos permite perceber que, para além de comunicar somente os edifícios e
a singularidade e pioneirismo de sua arquitetura, também se faz necessário considerar os
jardins de Burle Marx, as obras de arte (em diversas linguagens de vários artistas
renomados mundialmente) e a própria paisagem em que estamos inseridos. O título trouxe
consigo novos desafios e uma série de fatores que contribuem para o destaque ainda maior
dessas instituições, recebendo um apelo mais evidente dos meios de comunicação e
divulgação e da indústria de turismo. Dada a recente criação deste Museu e sua inserção
neste cenário – mesmo que não tenha sido incluído e reconhecido como Patrimônio da
Humanidade – percebemos como tem ganhado mais destaque e experimentado o aumento
significativo de público. A contagem de público espontâneo é quantitativa e conforme
tabela abaixo, conseguimos perceber a grande diferença nos últimos anos:

Ano Público

2017 29.825*

2016 32.278

2015 15.381

2014 10.588

2013 não tem


*Até o mês de outubro de 2017.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
267
Essa amostragem – retirada do cadastro de atividades finalísticas e serviços do
Sistema de Monitoramento e Avaliação de Programas e Projetos (SMAPP) da SMC, nos
permite ter ao menos uma base em relação ao número de pessoas que frequentam os
espaços culturais. Com o intuito de sistematizar informações quantitativas e qualitativas,
realizamos com o público agendado (grupos com mais de 10 pessoas) a aplicação de
formulários online. Tanto para a realização do agendamento, quanto para a avaliação da
visita, enviamos questionários que nos fornecem informações relacionadas ao perfil do
público, o que motivou a visita ao espaço, entre outras informações. Com base nisso
conseguimos obter dados primários que nos auxiliam em levantamentos mais detalhados
em relação à origem do público visitante, o que buscam, etc., fornecendo o básico para
traçar o perfil e talvez, futuramente, subsidiar um estudo de público qualificado.
Por fim, a adoção do termo “museu” no nome da instituição - desde agosto de
2016 - demonstra um esforço em fortalecer sua vocação, a fim de garantir a salvaguarda
do patrimônio, buscando estabelecer, entre outras coisas, o cumprimento de sua função
social. Neste sentido, uma série de iniciativas, em consonância com os pilares da
Museologia (pesquisar, preservar e comunicar), foram tomadas desde então, com o intuito
de consolidar-se como uma instituição comprometida e integrada com as questões
museológicas contemporâneas. Dentre elas, destacamos a elaboração do Plano
Museológico, importante documento que norteia o planejamento de todas as atividades
do museu em curto, médio e longo prazo; o arrolamento e organização do acervo
documental e museológico; a sistematização e o levantamento de dados relativos ao perfil
do público visitante; organização de encontros entre museu e comunidade; pesquisa e
produção de publicações e, por fim, o cerne deste artigo: as ações educativas. Vale
lembrar que algumas dessas iniciativas foram interrompidas ou caminham mais
lentamente, temporariamente, devido aos ajustes realizados em função da reforma
administrativa.

A dimensão educativa dos museus: abordagens conceituais e práticas

Ao assumir sua função educativa os museus e centros de memória adotam uma


perspectiva alternativa daquela mais comumente utilizada nos processos educativos
tradicionais. Entendemos o museu como um local propício para a formação de sujeitos
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
268
conscientes e responsáveis pelo meio em que vivem, onde o diálogo entre Educação e
Museologia pode se dar de diversas maneiras subsidiando práticas distintas.
Discorrendo sobre os aspectos da pedagogia museal, Marta Marandino afirma que
a educação em museus implica métodos específicos e defende a ideia de que existem
certas particularidades que determinam quais são os elementos essenciais que orientam o
trabalho do mediador. Ao considerar que o lugar, o tempo, a importância dos objetos e a
linguagem expositiva influenciam diretamente na maneira como a visita pode ser
realizada, a autora coloca o mediador enquanto o “decodificador” das informações
contidas nas exposições. Nos baseamos nesta abordagem acreditando que o papel
assumido durante a mediação deva ser o de quem estabelece as pontes e o diálogo entre
o conteúdo exposto, os conhecimentos que cada um possui e o próprio repertório dos
mediadores. Elaborar estratégias que estimulem a participação do público nos processos
educativos e comunicativos dos museus resulta em experiências que podem e são
construídas conjuntamente (MARANDINO, 2008, p. 20).
O nosso trabalho tem como eixo principal o Patrimônio Cultural e além de nos
apoiarmos em conceitos procedentes da educação patrimonial (HORTA, 1999), da
Museologia Social e da noção de mediação proposta por Vygotsky, transitamos por outras
abordagens que servem de inspiração e vão ao encontro das diretrizes mais recentes.
Neste sentido, lembramos o fato de Belo Horizonte estar entre as 482 cidades educadoras
distribuídas em 36 países do mundo. Sobre o conceito de Cidade Educadora, destacamos
o seguinte trecho:

(...) o compromisso dos signatários com a construção de cidades mais


inclusivas, mais justas e mais participativas, com especial destaque para a
criação de mecanismos que permitam às crianças e adolescentes vivenciarem
plenamente sua cidadania:
A Cidade Educadora deve ocupar-se prioritariamente com as crianças e jovens,
mas com a vontade decidida de incorporar pessoas de todas as idades, numa
formação ao longo da vida. (CIDADES EDUCADORAS, 2017).

A partir desta perspectiva, incluímos não só o compromisso dos museus neste


panorama, como também todas as esferas das iniciativas públicas e privadas. Ainda neste
contexto temos o exemplo da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
(SMED) – de onde vem grande parte da demanda de inclusão de crianças em espaços
culturais, em função do atendimento destas exigências.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
269
Visto isso, as nossas práticas de mediação e experiências no âmbito da educação
em museus funcionam como instrumentos que auxiliam na leitura do mundo que nos
cerca, levando-nos à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-
temporal em que estamos inseridos.
Entendemos que estes processos reforçam a autoestima dos indivíduos e
comunidades, valorizando a cultura brasileira - compreendida como múltipla e plural. O
diálogo, principal ferramenta de nossas ações, visa estimular a comunicação e a interação
entre mediador-público-bem cultural, possibilitando a troca de conhecimentos e
contribuindo para a construção de possibilidades de percepção e compreensão da cultura,
das noções de patrimônio, valorização e preservação desses bens.

Experimentando novas perspectivas e recursos materiais para as ações educativas

Cientes de que inicialmente as atividades se dariam de forma experimental,


tivemos como pressuposto a exploração da ambiência e de certa intimidade, que,
enquanto ambiente familiar, a casa nos fornecia. A primeira atividade nasceu com o nome
Brincadeiras de Quintal e trata-se de um convite ao brincar. Brincadeiras de pés
descalços, sem muitos recursos, como eram comumente realizadas nos quintais de casa,
entre os familiares e amigos. Neste caso, também nos serviu de inspiração abordagens
que guiam, entre outros, o movimento das Cidades Educadoras. Como exemplo, a
abordagem conhecida como Reggio Emilia, proposta pelo pedagogo Loris Malaguzzi.
Partindo de pressupostos como esse, entendemos que todo sujeito é compreendido
como agente capaz de apoiar e impactar de maneira positiva o desenvolvimento do
potencial humano. O projeto Brincadeiras de Quintal age neste viés e nos permite
explorar o quintal, reconhecendo mais um potencial deste Museu. O objetivo de explorar
os tipos de jardins no contexto da história do MCK (jardins ornamentais, de contemplação
planejados por Roberto Burle Marx e os jardins domésticos cultivados pela Sra. Juracy,
apelidados carinhosamente de “jardins de casa de vó”) nos despertou o interesse em
desenvolver atividades específicas, ligadas à “educação ambiental”. Para estas atividades
pensamos a relação do ambiente interno com o externo - incluindo também a paisagem
do entorno (Lagoa da Pampulha).

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
270
Dentre as atividades desenvolvidas de educação ambiental, realizamos passeios
pelos jardins ou pela orla da Lagoa, observando sua composição, refletindo sobre a sua
importância enquanto patrimônio e a necessidade de cuidado e preservação. Também
foram realizadas oficinas de mudas e/ou jardinagem, assim como, a distribuição gratuita
de mudas dos jardins do Museu. Essas mudas são distribuídas aos visitantes do MCK, de
modo a estender o laço entre o público e a instituição. Vale lembrar ainda que esta
iniciativa visa reforçar a ideia de proteção e preservação dos nossos jardins, uma vez que,
as pessoas não precisam mais arrancá-las. Todo este movimento resultou também na
construção de um herbário, que demandou um trabalho de pesquisa e catalogação das
espécies. Esta pesquisa está subsidiando quatro novos volumes da cartilha educativa
“Conhecer e Reconhecer: patrimônio cultural”, que serão ilustradas com desenhos
botânicos, e com previsão de início de lançamento para 2018.
Estas estratégias buscam propor um olhar diferenciado para o Museu e seu
entorno, buscando proporcionar experiências e vivências diferenciadas para os visitantes.
Pretende-se ainda, a ampliação deste público por meio do incentivo à apropriação do
espaço e de seu (re)conhecimento, buscamos despertar o interesse, chamando a atenção
para o museu em sua totalidade, para além do patrimônio edificado e da materialidade
(muito presente no discurso expositivo e também dado pela própria arquitetura). É nossa
intenção ainda, contribuir e reforçar a noção do museu como espaço de diálogo e aberto
para a sociedade, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o patrimônio
material e imaterial, como determina a definição utilizada pelo Comitê Internacional de
Museus (ICOM, 2013, 34). Deste modo, tratando-se de um museu em uma casa, boa parte
das atividades se apoiam nas lembranças deixadas por um ambiente doméstico e
carregado de memórias afetivas - tendo como maior inspiração o legado deixado pela Sra.
Juracy Guerra.
A partir daí projetos menores foram surgindo em intersecção com outros, levando
em consideração assuntos como a sociabilidade e a apropriação no/do espaço, memória
coletiva e individual, a exploração do ambiente museal além de suas exposições -
considerando a imaterialidade, as vivências, os saberes e os fazeres. À saber:

Bordando Memórias: Tendo como inspiração a Sra. Juracy Guerra e suas intervenções
no mobiliário que atualmente são do acervo do MCK, foram realizados encontros mensais
para bordar temas relacionados ao MCK. Serviram como molde para os bordados

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
271
ilustrações deste acervo, e ao final foi confeccionada uma colcha de retalhos que será
exposta no Museu.

Rota Alternativa - o museu de fora para dentro: Esta ação busca se aproximar dos
caminhantes que praticam atividades físicas na orla da Lagoa e que desconhecem o
Museu. Com eles propomos um desvio no percurso durante algum tempo para entrarem,
conhecerem e explorarem a instituição.

Águas da Pampulha tour: É um passeio com foco no meio ambiente e chama a atenção
dos participantes para as questões ambientais e para a importância da preservação dos
recursos naturais, buscando refletir acerca do modo de ver e tratar este assunto, além de
nos engajarmos na construção de políticas mais efetivas para a nossa cidade. Em parceria
com o CEA/PROPRAM154, o passeio explora os desafios e problemas que afetam a Bacia
Hidrográfica da Pampulha.

Por Outro Ângulo: Esta atividade busca proporcionar ao público uma experiência
diferenciada de visitação ao Museu como casa e espaço de pertencimento e sociabilidade,
explorando cada cômodo e seus mobiliários. São feitas pequenas intervenções nos
ambientes que se diferenciam e destacam frente às práticas cotidianas da instituição. Esta
atividade acontece esporadicamente, com um grupo pequeno de visitantes.

Diálogos Possíveis: Este projeto trouxe para o espaço museal rodas de conversa com o
público e personalidades de destaque, sobre temas importantes para a cultura e a cidade
de Belo Horizonte, criando um ambiente saudável para o debate de opiniões e o
surgimento de novas ideias acerca dos usos e apropriação da cidade e dos espaços
culturais.

Como pôde ser visto, a maior parte das atividades vai além da temática
estritamente selecionada pela curadoria da exposição, se desenvolvendo, inclusive, fora
dos espaços expositivos. Acreditamos que essa proposta favorece não só a percepção do
mundo que nos cerca, considerando as diferentes vivências e experiências que cada
sujeito carrega, como também auxilia para uma compreensão mais ampla do universo
sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que estamos inseridos.

154
Centro de Educação Ambiental do Programa de Recuperação e Desenvolvimento Ambiental da Bacia
da Pampulha.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
272
Com a ampliação das ações e o intuito de atingir um público diverso,
desenvolvemos materiais que auxiliam as visitas mediadas e oficinas propostas pelo
Educativo (estes materiais pretendem, em algum momento, promover o acesso para
todos). Parte do material desenvolvido ainda se encontra em fase de teste e/ou de
implantação. A intenção é desenvolver atividades e materiais que possam atender às
diversas demandas existentes.
Em geral, usamos objetos já existentes ou confeccionados pela própria equipe,
com materiais básicos disponibilizados pela instituição. Dentre eles, destacamos a
utilização de uma maleta composta por itens lúdicos: fichas com desenhos do mobiliário
existente no acervo (neste caso utilizamos as fichas como jogos de adivinhação), jogo da
memória, quebra-cabeça, cubos com diferentes elementos arquitetônicos, exemplares de
discos de vinil, entre outros.
Para além dos materiais supracitados, produzimos uma Caderneta de Campo que
pode ser utilizada durante ou após a visita, tanto nos espaços expositivos, quanto pelos
jardins. A ideia desta Caderneta é deixar fluir as percepções e dar autonomia para o
visitante, propiciando o exercício do olhar livre das intencionalidades que dão sentido ao
que nos acontece. Ela foi pensada como um material mais propositivo. Nela é possível
desenhar, escrever, utilizar outros recursos (colagens; coleta de amostra dos jardins de
sementes, folhas secas; pintura, etc.). Pensamos que este formato pode ser o início de uma
contribuição para a democratização do acesso e da inclusão, uma vez que, por exemplo,
não é necessário que todos saibam ler ou escrever para utilizar o material. Em uma das
experiências que tivemos, percebemos como foi positiva a reação de uma das crianças
com espectro autista. Acreditamos que à medida que conseguirmos aperfeiçoá-lo,
poderemos alcançar melhores resultados.
Com o intuito de deixar com que, em alguma medida, as coisas aconteçam no
tempo de cada um, permitindo uma dose de autonomia, ao visitar o MCK o visitante nem
sempre sairá com todas as informações disponíveis. A ideia é que ele possa voltar, pois,

(...) a experiência é irrepetível e, (...) posto que não se pode antecipar o


resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma
meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido,
para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer’. (BONDÍA,
2002, p. 28)

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
273
Contudo, por mais ambíguo que isto possa parecer e por mais carregados de
intenções que possamos estar, ao se propor experimentar e transitar entre as diversas
possibilidades, ocorre a “abertura para o desconhecido”, o que nos permitiu alcançar bons
resultados em relação às ações educativas.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
274
Considerações finais

O caminho percorrido até aqui nos provocou diversas inquietações e dúvidas.


Pensar as relações do público com o museu não é um exercício fácil e entendemos que é,
principalmente, por meio das ações educativas que alguns resultados podem ser
alcançados. Desejar que função social do Museu se cumpra também é tido como um
desafio, uma vez que, apesar de ser o mais novo dos espaços culturais da Pampulha, o
Museu Casa Kubitschek já sofre com problemas relacionados à sua identidade,
infraestrutura, entre outras carências. Acreditamos que a aproximação do público e sua
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
275
apropriação deste espaço seja uma das saídas para a solução de algumas dessas questões,
tendo em vista a premissa de que estando em uma Cidade Educadora, e todas as questões
da atualidade relacionadas ao protagonismo da nossa sociedade, entendemos:

(...) que, para além de suas funções tradicionais, reconhece, promove e exerce
um papel educador na vida dos sujeitos, assumindo como desafio
permanente a formação integral de seus habitantes. Na Cidade Educadora, as
diferentes políticas, espaços, tempos e atores são compreendidos como agentes
pedagógicos, capazes de apoiar o desenvolvimento de todo potencial
humano”. (CIDADES EDUCADORAS, 2017).

No entanto, avaliamos que se o nosso desejo foi aproximar-nos do público,


criando vínculos e fortalecendo-nos, temos observado o aumento no número de
participantes das atividades oferecidas, na taxa de retorno e a indicação dos visitantes que
participam e avaliam de maneira positiva. O estreitamento dos laços com a comunidade
de nosso entorno e o aumento da visibilidade do Museu diante da cidade, são fatores que
nos incentivam a dar continuidade no desenvolvimento dessas atividades.
A intenção é que possamos consolidar o Museu Casa Kubitschek como espaço de
referência para: a educação de patrimônio paisagístico; o estudo e a discussão do
modernismo em Belo Horizonte, bem como dos hábitos culturais e os diversos modos de
morar e a casa brasileira; a salvaguarda da memória individual e coletiva, relativas ao
desenvolvimento da região da Pampulha e suas comunidades tradicionais e a diversidade
cultural e social que é marca característica da população belohorizontina.
Para que este trabalho se concretize e vigore ao longo dos anos, é preciso entender
e defender os museus enquanto territórios férteis para a realização de diversas questões
ligadas aos processos educativos, de reconhecimento e apropriação cultural e salvaguarda
da memória coletiva e individual.

A abertura do museu ao meio e a sua relação orgânica com o contexto social


que lhe dá vida, têm provocado a necessidade de elaborar e esclarecer relações,
noções e conceitos que podem dar conta deste processo. (MOUTINHO, 1993,
p. 8)

Por fim, mesmo que de forma embrionária e experimental, as ações têm sido bem
avaliadas pela equipe e recebido um bom retorno do público. Embora não seja nosso único

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
276
objetivo, envolver o público nos processos educativos e comunicativos dos museus
resulta em experiências que podem e são construídas conjuntamente. Conforme
avançamos procuramos consolidar cada vez mais a mediação e as atividades, investindo
em novas experiências e nos estudos e na pesquisa, tendo em vista o amadurecimento das
práticas e o diálogo com a comunidade.

Referências

ARAUJO, Marcelo Mattos; BRUNO, Cristina (orgs.). A memória do pensamento


museológico brasileiro: documentos e depoimentos. Comitê Brasileiro do ICOM, 1995.
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras.
Educ. [online]. 2002, n.19, pp.20-28. ISSN 1413-478. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003. Acesso em 10 de novembro de
2017.

DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia.


Tradução: Bruno Brulon Soares, Marília Xavier Cury. ICOM: São Paulo, 2013.
GARCIA, V.A.R. O processo de aprendizagem no Zôo de Sorocaba: análise da atividade
educativa visita orientada a partir de objetos biológicos. 2006. Mestrado. Faculdade de
Educação – Universidade de São Paulo, FE/USP, Brasil. São Paulo. 2006.
GOHN, M.G. Educação Não-Formal e Cultura Política: impactos sobre o associativismo
do terceiro setor. São Paulo: Cortez, 1999.
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; FARIAS, Priscila; GRUNBERG, Evelina;
MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia básico de educação patrimonial. Brasília, Iphan,
1999.
JACOBI, D.; COPPEY, O. Musée et éducation: au-delà du consensus, la recherche du
partenariat. Publics et Musées. Musée et éducation. Lyon: Presses Universitaires, 1996,
p. 10-22.
KÖPTCKE, L. Observar a experiência museal: uma prática dialógica? Reflexões sobre a
interferência das práticas avaliativas na percepção da experiência museal e na (re)
composição do papel do visitante. Caderno do Museu da Vida. Avaliação e estudo de
público no Museu da Vida. Rio de Janeiro: Museu da Vida/ Museu de Astronomia e
Ciências Afins, 2003.
MARANDINO, Martha (org). Educação em museus: a mediação em foco. São Paulo, SP:
Geenf / FEUSP, 2008.
MOUTINHO, Mário. (1993). Sobre o conceito de museologia social. Cadernos de
Sociomuseologia, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, n.1, 1993.
PRIMO, Judite (org.). Museologia e Património: documentos fundamentais. Lisboa:
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, 1999.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
277
REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação.
Petrópolis: Vozes, 2007.
SANTOS, Maria Célia. Reflexões Sobre a Nova Museologia – Cadernos de
Sociomuseologia nº 18, Lisboa – ULHT, 2002.
SCHÖN, D. A. Educando o Profissional Reflexivo: um novo design para o ensino e a
aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
SHEINER, Tereza Cristina. O Museu como Processo. In.: Caderno de Diretrizes
Museológicas. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/Superintendência de
Museus. 2008, p. 34-47.
STUDART, Denise. A produção intelectual do CECA-Brasil nas conferencias
internacionais do Comitê de Educação e Ação Cultural do ICOM de 1996 a 2004,
MUSAS- Revista Brasileira de Museus e Museologia, Vol1, no1., Rio de Janeiro,
IPHAN.
_____________; ALMEIDA, A.; VALENTE, M.E. Pesquisa de público em museus:
desenvolvimento e perspectivas. In: Gouvea, G..; Marandino, M.; L.. (orgs). Educação e
Museu: A construção social do caráter educativo dos museus de ciências. Rio de
Janeiro: Access. 2003.
VYGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
IPHAN/FMC. Dossiê de Candidatura do Conjunto Moderno da Pampulha para inclusão
na Lista do Patrimônio Mundial, apresentado à UNESCO em 2016. Disponível em: <
https://goo.gl/hrwcWh>. Acesso: 14 jul. 2017.
CIDADES EDUCADORAS. Conceito: O que é uma Cidade Educadora? Disponível em:
http://cidadeseducadoras.org.br/conceito/ Acesso em: 15 novembro 2017.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
278
(RE) DESCOBRINDO A PAMPULHA: PATRIMÔNIO, DISCURSOS E
ALTERIDADE155

(RE) DISCOVERING PAMPULHA: HERITAGE, DISCOURSES AND


ALTERITY

Ana Carolina*
Bernardo Guimarães*
Bryan Martins*
Gustavo Dias*
Gustavo Matos*
Marco Antônio*
Náthalekaren Oliveira*
Scarlath Ohana*
Tamires Celi da Silva*

Resumo

Recentemente incluído na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade, o Conjunto


arquitetônico da Pampulha, é um dos cartões postais de Minas e do Brasil e uma das
referências no imaginário construído sobre a modernidade brasileira, as políticas públicas
e expressões artísticas. O presente artigo é fruto de um trabalho desenvolvido com os
alunos do 3° ano do Ensino Médio, que estudam em uma escola próxima ao Conjunto
Arquitetônico da Pampulha. O trabalho teve por princípio buscar o olhar dos alunos sobre
o Patrimônio e entender a relação que os mesmos estabelecem com o conjunto
arquitetônico para, a partir de suas experiências, trabalhar questões sobre patrimônio,
preservação, memória, alteridade e políticas patrimoniais entendendo que a educação para
o patrimônio envolve questões profundas sobre existência e construção do sujeito social.

155
O presente artigo é fruto do trabalho final da disciplina, T.I.G. III, orientado pelo professor Luís Filipe
Arreguy Soares.
* Ana Carolina - Graduanda em História pelo UNI-BH; ac.corrako@gmail.com
*Bernardo Guimarães - Graduando em História pelo UNI-BH; bernardoguimaraes93@gmail.com
*Bryan Martins - Graduando em História pelo UNI-BH; bryanmartins@outlook.com
* Gustavo Dias - Graduando em História pelo UNI-BH; gustavodias75@yahoo.com.br
* Gustavo Matos - Graduando em História pelo UNI-BH; gustavomsc94@gmail.com
* Marco Antônio - Graduando em História pelo UNI-BH; marcospsj78@hotmail.com
* Náthalekaren Oliveira - Graduanda em História pelo UNI-BH; nathalekaren@hotmail.com
*Scarlath Ohana - Graduanda em História pelo UNI-BH; scarlathohanaf@hotmail.com
* Tamires Celi da Silva - Graduanda em História pelo UNI-BH; tamiresceli@hotmail.com

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
279
Palavras-chave: Alteridade; Educação patrimonial; Pampulha.

Abstract

Recently included in the list of World Cultural Heritage, the Pampulha Modern Ensemble
is one of the postcards from the state of Minas Gerais and one of the references in the
imaginary built on Brazilian modernity, public policies and artistic expressions. This
article is the result of a work developed with the students of the 3rd year of High School,
who study in a school near the Pampulha Modern Ensemble. The purpose of this study
was to seek students' views on heritage and to understand the relationship they establish
with the architectural group, in order to, from their experiences, work on questions about
heritage, preservation, memory, alterity and heritage policies, understanding that heritage
education involves deep questions about the existence and construction of the social
subject.

Keywords: Alterity; Heritage education; Pampulha.

1. Introdução

Quando falamos em patrimônio histórico logo nos vem à mente os lugares que fazem
parte de uma memória coletiva e que adquiriram valor histórico ao longo dos anos,
normalmente associado a edificações tombadas e a cidades históricas.
Essa é uma visão que tem raízes na chamada história metódica, desenvolvida no
século XIX e que elegia como fonte de caráter histórico somente o que tinha relação com
o oficial (normalmente político)156. Essa perspectiva influenciou as primeiras políticas
patrimoniais, incluindo as brasileiras, que tiveram início na década 1920 associando valor
histórico a prédios públicos e a templos religiosos (os chamados patrimônios de pedra-e-
cal).
Tanto as concepções de História e suas fontes como as concepções de patrimônio
passaram por profundas transformações ao longo do tempo. Destacamos a influência da
Nova História que, em síntese, defende que toda ação humana é história.

156
Essa concepção histórica se desenvolveu na Alemanha do século XIX, momento em que era de
interesse promover a unificação da nação por meio da formação de uma identidade nacional, por isso é
comum a recorrência a documentos diplomáticos, pois esses eram interpretados como verídicos e,
portanto, fonte de uma história inquestionável.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
280
É possível perceber que hoje as políticas patrimoniais procuram abranger muito
mais do que prédios públicos e templos religiosos e reconhece como patrimônio não só
aquilo que possui caráter oficial, mas também o que é do cotidiano como elemento
formador da cultura. O conceito de patrimônio se estendeu, nas palavras de Umberlino
Peregrino:

Recorrendo ao dicionário, encontraremos uma acepção de patrimônio como


herança paterna. Isso denota, em síntese, que patrimônio é um complexo de
bens legados pelos nossos antepassados, representados não apenas no seu
restrito sentido material, mas naquela condição de bens que assumem uma
dimensão imaterial. (PEREGRINO, 2012, p.7).

Entender o conceito de patrimônio e suas dimensões culturais se faz importante,


uma vez que buscamos trabalhar com o educando, propondo-lhe uma ação frente ao
objeto estudado, enquanto sujeito pertencente e atuante do seu tempo.
Tendo em vista estes conceitos, a educação patrimonial apresenta um significante
caminho para, além de proporcionar conhecimento sobre bens importantes para
preservação, desenvolver consciência da relação destes com a vida do estudante,
apresentando como estes bens se relacionam com o espaço no qual está inserido e como
tradições culturais preservadas podem estar expressas no cotidiano.
Mas, pensar a educação para o patrimônio sem pensar em educação não é
suficiente para atender a demanda deste projeto. É preciso fazer uma reflexão acerca do
significado de educação, buscando sair do método tradicional de ensino, por isso,
defendemos neste projeto que a função do educador deve ser a de um mediador entre o
aluno e sua experiência de aprendizado, o que segundo Casanova (2013), proporciona o
estimulo de suas habilidades de apreensão e interação do conhecimento.
Partindo da percepção do sujeito enquanto agente histórico e, portanto, agente dentro no
meio no qual se insere, pode-se adotar como base as teorias educacionais nas quais se
defende a ideia de sócio interacionismo e sócio construtivismo como vetor de aprendizado
desenvolvidas por Vygotsky.
Segundo Nascimento (2004), esta teoria defende que o vínculo que o sujeito
estabelece com o meio é mediado pelo seu conhecimento e/ou experiências que possui.
Portanto, pensar patrimônio e o conceito de educação para o patrimônio numa perspectiva
de aprendizado que abarque a interação do indivíduo com o meio e com as relações

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
281
estabelecidas em relação ao local ou a cultura com base na sua “bagagem” de
conhecimento e identificação se faz significativo para obter bons resultados.
Não se trata somente de levantar informações históricas a respeito do lugar ou da
manifestação cultural. É preciso possuir uma relação experimental e de reflexão acerca
do patrimônio, para depois pensar no global e entender outras manifestações culturais que
se constituem como patrimônio e por que é importante a preservação. Buscamos com esta
reflexão, responder à pergunta: patrimônio para quem?
Esta questão é interessante e nos possibilita pensar nos vários caminhos que o
patrimônio, tanto material como imaterial, pode nos apresentar, além de permitir observar
e trabalhar assuntos como empatia e alteridade, apontando a importância simbólica de
determinado patrimônio para um grupo de pessoas. O filósofo Edgar Morin, em seu livro
Os sete saberes necessários para a educação no futuro (2012), aponta que é preciso
refletir sobre a compreensão humana, já que não se ensina a pensar no outro e a
compreendê-lo.

O que significa compreender? A palavra compreender vem de compreendere


em latim, que quer dizer: colocar junto todos os elementos de explicação, quer
dizer, não ter somente um elemento de explicação, mas diversos. Mas a
compreensão humana vai além disso, porque na realidade ela comporta uma
parte de empatia e identificação, o que faz com que se compreenda alguém que
chora, por exemplo, não é analisando as lágrimas no microscópios, mas porque
sabe-se do significado da dor, da emoção, por isso é preciso compreender a
compaixão que quer dizer sofrer junto, é isto que permite a verdadeira
comunicação humana. (MORIN, 2012, p.7).

Educação para o patrimônio exige o exercício da empatia. É preciso entender o


significado de determinado bem tombado ou registrado para um grupo, entender que
essas políticas dão visibilidade a grupos antes esquecidos pela História e pelo Estado e
que são atuantes na formação cultural do Brasil.

Por isso, é importante este quarto ponto: compreender não só os outros como
a si mesmo, a necessidade de se auto-examinar, de analisar a auto-justificação,
pois o mundo está cada vez mais devastado pela incompreensão que é o câncer
do relacionamento entre os seres humanos. (MORIN, 2012, p.8).

Percebemos que a educação patrimonial tem potencial para trabalhar essas


questões e desenvolver não só a educação que ensina de modo acrítico os conteúdos e
conceitua Patrimônio, sem refletir sobre existência, política e sociedade.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
282
Quando pensado sobre estes aspectos, o patrimônio possibilita trabalhar uma nova
perspectiva que incentiva a empatia e que busca desenvolver uma visão complexa sobre
as relações humanas e a sociedade. Morin nos fala sobre a importância de se buscar um
pensamento complexo e que a educação não deve só buscar construir conhecimento, mas
transformar as pessoas para que elas possam transformar a sociedade.
Educação para o patrimônio envolve construção de referenciais inicialmente
pessoais e, progressivamente, estende-se para o entendimento dos referenciais do outro.
Assim entendemos o nosso lugar e o do outro na sociedade, como as políticas públicas
moldam o sistema e interferem no cotidiano das pessoas, como a História constrói
memórias e esquecimentos e como as tradições podem promover resistência e
permanência. Com esta reflexão, buscamos pensar o Patrimônio para além dos
tombamentos.
Tendo em vista estas reflexões, o presente artigo tem por objetivo relatar a experiência
da aplicação do projeto “(Re) Descobrindo a Pampulha”, que foi desenvolvido em grupo
e deu origem a este artigo. Para tornar o trabalho mais objetivo, explicaremos a escolha
da escola e as dinâmicas adotadas para se desenvolver o trabalho e depois apresentaremos
o relato das experiências obtidas.

2. O Conjunto Arquitetônico da Pampulha

A região da Pampulha, diferente de outros espaços de Belo Horizonte, tem sua história
marcada por ser uma área planejada que recebeu obras arquitetônicas que adquiriram
importância artística e se configuraram como um dos marcos de Minas Gerais, e que no
ano de 2016 recebeu o título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
O projeto iniciado na gestão do prefeito de Belo Horizonte, Otacílio Negrão de Lima,
que tinha como objetivo o represamento do ribeirão Pampulha, não contemplava a
inclusão do conjunto arquitetônico, que foi incluído somente na gestão posterior pelo
prefeito Juscelino Kubitschek e construída entre os anos de 1942 e 1944.
Segundo Fernandes (2016), em seu artigo “PAMPULHA: atualização simbólica de
uma paisagem modernista”, antes da construção do conjunto que veio a se tornar cartão
postal de Minas Gerais, a região foi indicada pelo urbanista Agache para abrigar uma

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
283
“Cidade Satélite” que abrigaria trabalhadores em torno da lagoa e assim resolver os
problemas causados pelas desigualdades sociais presentes na cidade.
Ainda segundo Fernandes, o então prefeito Juscelino Kubitschek, já possuía outros
planos para a região, o que incluía fazer dela uma área nobre e luxuosa, conferindo a Belo
Horizonte a imagem de uma cidade moderna e incentivar o turismo na região.
Fato é que as intenções de Kubitschek se fizeram presentes no projeto, que
contemplou os traços marcantes da arquitetura de Oscar Niemeyer, que fugiu dos padrões
arquitetônicos tradicionais da época e inovou com suas curvas de aparência simples
fazendo com que a Pampulha se associasse a uma imagem ligada à ideia de modernidade
e luxo.
É possível notar ainda que o projeto do Conjunto não traria somente mudanças no
campo da arquitetura, um novo estilo de vida também surge em torno dos espaços da
região:

(...) as obras da Pampulha trouxeram inovação também quanto às práticas


sociais da sociedade de Belo Horizonte. Isso se dá principalmente em relação
ao Cassino, peça fundamental, ao ver de Juscelino, para o turismo. Sua
intenção era “antes de tudo, dar a Belo Horizonte uma obra que não só
refletisse o seu vertiginoso progresso, como ainda tomasse um espelho da
cultura mineira” (FERNANDES, 2016, p.10).

É significativo também dizer que o Projeto da Pampulha contemplou muito mais


do que as obras de Niemeyer. Num contexto onde o conceito de cidade planejada se fez
presente aliada à ideia de construção de uma identidade nacional, a construção do
conjunto não deixou de fora essa racionalidade urbanística contemplando projetos que
envolviam áreas residenciais, de lazer e projetos sanitários dando ao entorno do conjunto
o aspecto que ainda é perceptível nos dias de hoje: é um espaço organizado e bem
estruturado.
A construção do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, composto pela Igreja São
Francisco de Assis, o Cassino (que hoje abriga o Museu de Artes da Pampulha), o Iate
Tênis Club e a Casa do Baile representou um dos marcos na história ligada a Belo
Horizonte e deu a capital mineira um destaque em escala mundial.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
284
3. Descobrindo o olhar

Para realizar este trabalho, tomamos como uma atividade primária, conhecer o olhar
dos alunos que iriam participar do projeto. Conhecer a escola, seu entorno, os lugares
frequentados por eles, para assim conhecer o que os alunos entendem por patrimônio.
Pensando neste olhar, a escolha da região da Pampulha se fez atrativa, pois no ano de
2016 seu conjunto arquitetônico foi declarado “Patrimônio da Humanidade”. Mas,
mesmo tendo esse título, ainda se apresentam muitos desafios para a efetiva
democratização do uso do espaço na região, visto que ela é ocupada por bairros nobres e
cercada por áreas de menor Índice de Desenvolvimento Humano. O mesmo se aplica a
alunos de escolas próximas, que passam por lá todos os dias e constituem o cotidiano
daquela região.
Localizada na Av. Dom Pedro I, no bairro Santa Branca, em Belo Horizonte,
escolhemos para a realização do projeto a Escola Estadual José Heilbuth Gonçalves. Em
2012, a escola passou por obras de intervenção que reformularam seu espaço físico,
perdendo parte de seu pátio para o alargamento da Avenida D. Pedro I. Com isso, o muro
que faz frente à avenida ficou a cerca de 1 metro de distância das janelas das salas de aula,
criando um desconforto sonoro para professores e alunos.
É uma escola próxima ao Conjunto e se enquadrou nos critérios para realização
do trabalho que são:
 Possibilidade de compreender o olhar que os alunos possuem sobre o tema
Patrimônio;
 Perceber as relações estabelecidas entre os alunos e o Conjunto;
 Estimular uma reflexão acerca da democratização dos espaços, uma vez
que nem todos estabelecem uma relação de apropriação com o mesmo.

O projeto buscou, por meio da mediação dos conhecimentos, apresentar aos


alunos os conceitos de patrimônio cultural, material e imaterial, valorizando o
protagonismo deles no espaço e identificando as relações destes com os objetos
trabalhados e a importância dos lugares e das histórias para a formação do imaginário
coletivo sobre o bairro.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
285
Para a realização do projeto, adotamos como proposta o conceito de educação para o
patrimônio, e temos como instrumento de reflexão as palavras de Denise Grinspum, que
defende que educação para o patrimônio:

(...) pode ser entendido como formas de mediação que propiciam aos diversos
públicos a possibilidade de interpretar objetos de coleções dos museus, do
ambiente natural ou edificado, atribuindo-lhes os mais diversos sentidos,
estimulando-os a exercer a cidadania e a responsabilidade social de
compartilhar, preservar e valorizar patrimônios com excelência e igualdade.
(GRINSPUM, 2000, p.29).

Tendo como base a reflexão de Grinspum, adicionamos ainda que essa mediação
e essa interpretação não se restringem somente aos bens de natureza material, podendo
ser utilizadas também para lidar com os bens patrimoniais de natureza imaterial.
Com isso, entendemos que a educação para o patrimônio possibilita a adoção de
diversas metodologias de trabalho e adequação das mesmas à realidade do público
trabalhado. Optamos como ponto de partida o uso do conceito de memória, envolvendo
as histórias da cidade, como construção e idealização, bem como associando a isso os
conjuntos patrimoniais materiais edificados que a região oferece, buscando uma
articulação com as experiências dos alunos.

4. O Encontro

Na primeira etapa do projeto foram ministradas aulas dialogando com os alunos


dentro do espaço escolar. A turma era pequena (cerca de 15 alunos) e foi dividida em
pequenos grupos para os quais foi entregue um material paradidático157 produzido pelo
grupo. Foi iniciada uma discussão perguntando aos alunos “o que é patrimônio para
você?”. Os alunos estavam tímidos, então o grupo propôs temas para situá-los na
discussão, mostrando imagens de bens tombados e registrados ligados ao patrimônio
cultural de Minas Gerais.
Pouco a pouco os alunos começaram a interagir construindo conceitos atrelados
às experiências deles, envolvendo memória, patrimônio, história, cotidiano, cultura e a

157
O material paradidático referido é uma cartilha com informações sobre patrimônio cultural, conceitos e
etapas do processo de registro e tombamento. As informações foram trabalhadas durante as discussões em
sala e durante a visita.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
286
construção da história. Alguns citaram lembranças de viagens a cidades como Ouro Preto,
outros logo indicaram o Conjunto da Pampulha, e poucos se lembraram de outros
elementos, como o queijo.
Depois da conversa inicial, os alunos se sentiram mais à vontade para definir tal
conceito. Ainda era presente a ideia de patrimônio que privilegia elementos arquitetônicos
e cidades históricas, que destaca os Prédios Públicos e Oficiais.
Essa discussão situou os alunos sobre as políticas patrimoniais atuais e passadas,
o que permitiu com que junto a eles concluíssemos que esses elementos produzidos pelo
homem se mantêm vivos na memória, e se refletem no cotidiano das pessoas, em seus
valores, atitudes e posicionamento. Partindo desta reflexão, tornamos a indagar: Para
vocês, o que é patrimônio?
Usando uma definição de dicionário que interpretava patrimônio como um bem
herdado pelo pai ou pela mãe e contextualizando as transformações sociais ocorridas nas
últimas décadas, tanto no campo da história, como no campo das políticas patrimoniais,
que vêm dando protagonismo aos diversos agentes da história, propusemos uma reflexão
sobre o conceito de patrimônio associado à visão metódica, e demonstramos as novas
possibilidades de se pensar o patrimônio e as políticas patrimoniais.
Uma discussão sobre o patrimônio enquanto formador de identidade foi levantada
partindo do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, que se localiza próximo à escola e os
alunos rebateram, descontruindo a visão apresentada.
Uma aluna disse que o Conjunto Arquitetônico da Pampulha não diz nada sobre
ela e que a Pampulha retratava algo fora da realidade deles e que aquilo era “lugar de
gente rica”. Muitos desses alunos moram nos bairros que ficam em torno do conjunto, e
alguns relataram que dificilmente frequentam o espaço que é conhecido por ser uma área
nobre da região. Além disso, verificamos que o acesso se torna mais difícil devido a
barreiras econômicas, já que o potencial turístico do local torna mais altos os preços de
produtos e de entradas em alguns espaços. Outra aluna rebateu essa ideia, defendeu que
muitos lugares são gratuitos, mas complementou dizendo que nem sempre parecem
interessantes.
Alguns alunos defenderam que o Conjunto só merecia a posição que ganhou,
porque guardava uma arquitetura que “eles devem achar bonita”, evidenciando que a
escolha partiu de um desejo do Estado e não da população. Outros disseram que aquilo

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
287
era só para atrair turistas, que não adianta ter um patrimônio da Humanidade na Pampulha
que em torno tudo é caro e a região não colhe nenhum benefício disso.
É preciso lembrar que a construção do Conjunto se deu em um período onde as
discussões sobre identidade nacional eram fortes e o Modernismo estava em alta. O
projeto de construção deste espaço passou por essa reflexão.

O Estado brasileiro se reorganizava e tentava consolidar uma nova realidade


social, mais complexa, urbana e industrial que pudesse favorecer a inserção do
país na rota de modernização aberta pela civilização europeia (CARSALADE;
MORAIS, 2014, p. 9).

Foi pontuado pelo grupo como as políticas de patrimônio podem servir de


ferramenta política, e que a Pampulha serviu como instrumento de afirmação de uma
identidade ligada à elite local, o que culminou nas práticas das políticas patrimoniais
deixando como herança a valorização de uma história elitizada.

5. A visita

Na segunda etapa da aplicação do projeto, a visita, tivemos como objetivo


proporcionar aos alunos uma experiência com o conjunto e aplicar toda a reflexão que foi
feita durante as discussões em campo.
A primeira parada foi no Museu de Artes da Pampulha158 que foi o primeiro espaço
projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer para o Conjunto Arquitetônico da Pampulha.
Inicialmente foi projetado para ser um Cassino, função que ocupou até os anos de 1946,
quando o jogo foi proibido no Brasil. Após dez anos fechado, foi transformado em museu
em 1957. Recebeu exposições de artistas renomados como Emiliano Di Cavalcanti e Ivan
Serpa, além de artistas brasileiros.
Por conta do horário, o museu ainda se encontrava fechado para visita. Foi proposto
aos alunos para voltarmos mais tarde, eles não se mostraram entusiasmados a entrar no
museu, então começamos a contar informações acerca da história de Belo Horizonte e sua
construção e sobre a idealização da Pampulha, e, enfim, sobre o museu.
A problematização apareceu logo na primeira parada, uma aluna disse que o saguão
do museu estava vazio, “eles não fazem nada que atraia a gente, só coisas estranhas, essa

O museu conta com atividades como visitas mediadas além de eventos com artistas. Informações
158

Obtidas em: <http://belohorizonte.mg.gov.br/atrativos> Acesso em: 31/05/2017.


REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
288
estatua mesmo aí na porta, o que significa? Ninguém entende, vocês sabem porque
estudam isso, nós não. ”
Em conversa, foi perceptível que, na visão dos alunos, aquela cultura valorizada
dentro desses espaços não fazia parte da cultura da população geral, e que existem outros
museus que contém um acervo mais significativo, que remetem ao que eles entendem
como “nosso”, mas que apesar de ser um espaço elitizado, em sua essência, é possível
realizar apropriações e ocupar esses espaços. Uma aluna levantou que a arquitetura
diferente merecia destaque porque “pelo menos foi um brasileiro quem fez e os jardins
são muito bonitos, colorido”, segundo ela.

Legenda: Imagem 01- Debate no Museu de Artes da Pampulha. Belo Horizonte 31 de Maio de 2017.
Arquivo Pessoal.

O segundo local do circuito foi a Casa do Baile159. Inaugurada em 1943, a Casa


do Baile foi projetada para ser um restaurante e um salão com mesas e pista de dança. A
finalidade do projeto era a de criar um espaço popular de eventos, que animasse as noites
de Belo Horizonte, passando a ser frequentada pelas elites locais. Porém com o
fechamento do cassino, a casa passou por crises e foi fechada em 1948. Voltou a ser aberta
e funcionou como espaço comercial, depois como anexo do Museu de Arte Moderna e
em 2002, após restauração realizada pelo seu arquiteto e idealizador Oscar Niemeyer, a
casa foi reaberta.

159
Informações obtidas em: <http://belohorizonte.mg.gov.br/atrativos> Acesso em: 31/05/2017.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
289
Foi perguntado aos alunos quais os espaços para eventos eles frequentavam.
Alguns pontuaram lugares no centro de Belo Horizonte como o baixo centro, sorrindo
outros disseram que hoje em dia eles fazem resenhas em casas de amigos ou espaços
alugados para realizarem as festas. Contamos a eles que aquela pequena casa era um
desses lugares de eventos, um aluno pontuou o tamanho da casa, perguntamos se ele
acreditava que as festas ali eram frequentadas por muitas pessoas, outro aluno respondeu,
“mas é claro que não, aqui só tinha ricos, e ainda tem, nunca entrei nesse negócio”. E
assim voltamos à discussão do porque o Conjunto Arquitetônico da Pampulha ser
considerado Patrimônio Cultural da Humanidade.
Sem uma conclusão construída, os alunos foram conhecer o espaço. O mediador
de visitas da casa se ofereceu para nos acompanhar. Os alunos se entretiveram no bar da
Casa, reconheceram bebidas que eles viam e consumiam nas tais resenhas, discutiram
política quando viram uma exposição no museu que continha palavras de ordem contra e
a favor de alguns políticos notáveis atualmente. Nesse momento, um dos alunos
relembrou um caso do ex-governador de Minas: “acho que foi o Aécio [Neves] quem
disse que a lagoa ia ficar tão limpa que ia dar pra beber água nela, queria ver ele vir
beber”. Levantamos uma reflexão sobre como o destaque trazido à Pampulha interfere na
vida das pessoas moradoras da região. Os alunos disseram que é bom porque gera
emprego, existem muitos vendedores ambulantes na região, além do marco turístico que
traz visitantes que gastam no conjunto, porém as coisas são caras e nem todos conseguem
frequentar. Na vida dos moradores, eles acreditam que o fato da propaganda da região
como um bom lugar atrai bandidos [sic].
O ponto que se fez presente entre os alunos é a violência contra o patrimônio
versus a violência contra os cidadãos. É possível verificar que:

(...) vários estudos no país têm mostrado que a violência afeta a população de
modo desigual, gerando riscos diferenciados em função de gênero, raça/cor,
idade e espaço social. (SOUZA; LIMA, 2006, p.2).

Foi concluído, juntamente com os alunos, que a sensação provocada e que a


violência que atinge a região da Pampulha se tornam veladas devido à valorização do
conjunto arquitetônico passando uma ideia de segurança que o ambiente provoca por estar
localizado em uma área nobre.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
290
Os alunos ainda completaram que a Pampulha é muito mais do que aquilo que
cerca a lagoa, dizendo que não muito longe dali existe bairros pobres, favelas, onde se
instalam visíveis desigualdades sociais.
Outra constatação que os alunos levantaram foi a existência de elementos que
fazem parte da cultura popular e que eles se identificam. Citaram as festas de ruas e o
funk, que passou a ser mais bem aceito em outras camadas sociais e que tem origem nos
aglomerados. Ao levantarem a questão da aceitação de elementos vindos de outras
culturas, percebemos como o papel da empatia e da alteridade possuem valor significativo
na prática de educação para o patrimônio.

Legenda: Imagem 02. Casa do Baile. Belo Horizonte, 31 de Maio de 2017. Arquivo Pessoal.

A terceira parada foi a Igreja São Francisco de Assis160, popularmente conhecida


como “Igrejinha da Pampulha”. A Igreja é o marco do Conjunto, sendo vista como um
dos cartões postais de Minas. Desde sua construção, ficou fechada por quatorze anos, pois
contrariava os modelos tradicionais da arquitetura sacra. A igreja abriga painéis feitos por
Candido Portinari.

160
Informações obtidas em: <http://belohorizonte.mg.gov.br/atrativos> Acesso em: 31/05/2017.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
291
Sentamos com os alunos em uma praça para que antes fizessem um lanche. Eles
fizeram fotos para o arquivo pessoal deles, observamos o cuidado de mostrar ao fundo da
foto a Igreja e a lagoa.
Direcionamo-nos para a Igreja, circulamos, observamos os turistas que ali
paravam para fazer fotografia, todos evidenciando a igreja, tentando achar um ângulo
diferente para fazer as fotos. Caminhamos para o painel da igreja, mostramos a eles o
mosaico feito pelas mãos de Portinari, contamos a eles que a igreja ficou alguns anos
fechada por não ter aceitação da Igreja Católica e de católicos mais tradicionais, fato que
marca a igreja junto à sua arquitetura modernista e única. Bernardo, integrante do grupo,
contou a eles sobre a recente pichação feita na igreja, os alunos não se mostraram contra
ou a favor. Não sabemos dizer se a presença de grupos de turista que passavam próximos
os inibiu de falar sobre o assunto.

Legenda: Imagem 03 Igreja da Pampulha. Belo Horizonte, 31 de Maio de 2017, Arquivo pessoal

A última parada foi feita na Casa Juscelino Kubitschek161. A Casa Juscelino


Kubitschek é mais um dos projetos assinados por Niemeyer e que integram o Conjunto
Arquitetônico da Pampulha. Projetada em 1943, a casa serviu ao então prefeito de Belo
Horizonte, Juscelino, atendendo a ele e à sua família nos finais de semana. É um marco
do traçado modernista.

161
Informações obtidas em: <http://belohorizonte.mg.gov.br/atrativos> Acesso em: 31/05/2017.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
292
Lá os alunos ficaram intrigados com o tamanho da casa (que era a casa para uso
nos finais de semana) e com a beleza e o luxo. Eles interagiram bastante com os objetos
da casa, alguns totalmente desconhecidos para eles, outros mais conhecidos. A disposição
dos cômodos também foi questionada: na casa havia dois quartos integrados, falamos
sobre os possíveis valores da época, levantamos hipóteses de situações vividas pelos
moradores da casa.
Do lado de fora da casa, falamos com os alunos sobre o passeio, sobre o nosso
lugar na sociedade, sobre a necessidade de se conhecer e de reconhecer onde você é visto
e onde sua voz é silenciada.
É importante salientar que durante o passeio os alunos não demostraram um
sentimento de identificação com o conjunto patrimonial e que a Pampulha apresentada
naquele conjunto não reflete a existência desses alunos e moradores em sua totalidade.
Ainda assim, o conjunto serve como instrumento para se pensar politicamente, para
entender a construção e a valorização da arte no Brasil, fazendo com que eles percebam
que eles são agentes sociais e atuantes e, por isso, devem buscar ocupar os espaços e se
apropriar da sua história e lançar luzes aos que foram lançados ao escuro do
esquecimento, além de valorizarem aquilo que eles têm como patrimônio e o que pertence
a grupos que sofreram invisibilidades na história e na sociedade e que também constituem
a história plural e diversa de Minas e do Brasil.
Na quarta e última etapa do projeto, os alunos se organizaram em grupo para
elaborar textos que foram utilizados na produção do “Jornal Mural”, que foi uma
iniciativa do Professor de História dos alunos, e que nos convidou para ajudar na produção
do mesmo junto aos alunos usando como tema o projeto “(Re) Descobrindo a Pampulha”.
Servindo-se do material paradidático recebido no primeiro encontro, resgatando as
problematizações feitas no passeio e debatendo entre eles, os alunos produziram textos,
quadrinhos e o editorial da revista.
Conversando com os alunos, descobrimos que no ano de 2016 a escola participou
do movimento de ocupações e os alunos que participaram do projeto estavam presentes.
Concluímos com eles que essa ação política pode se repetir em outros ambientes, como
na apropriação do patrimônio, exercendo assim a sua cidadania na busca pela
democratização dos espaços públicos.
Pontuamos também a história enquanto discurso e que o discurso contado nas
primeiras ações de patrimonialização era pautado em ideais que buscavam apresentar o
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
293
progresso do país em aspectos políticos, econômicos e sociais – eles pontuaram várias
vezes o descontentamento. A segunda conclusão que tivemos junto aos alunos foi que
através do conhecimento dos ideais do Estado e do seu passado é que se torna possível
perceber e problematizar a história e a política.
O que já está patrimonializado demonstra essa história marcada pela segregação.
Apagar esses registros silencia ainda mais as desigualdades, precisamos saber lidar com
nosso passado e reconhecer nele as permanências e as rupturas. Tratando das rupturas,
apesar dos ideais defendidos por anos, houve uma mudança na perspectiva e na
abordagem da história. Hoje a disciplina não trabalha mais com a valorização dos ditos
heróis, e nem com o sofrimento dos chamados vencidos, mas é abordada numa
perspectiva que procura valorizar as relações a nível macro e o sujeito em nível micro
buscando aqueles que por anos foram negligenciados pela História e pelo Estado.
E, por fim, pontuamos a história das políticas patrimoniais e da inserção de novos
objetos que foram registrados e tombados nos últimos anos construindo a terceira e última
conclusão junto aos alunos.

Legenda: Imagem 04 Jornal Mural, Belo Horizonte, 1 de Junho de 2017. Arquivo Pessoal

6. Considerações finais

O presente trabalho teve por finalidade levar os alunos a conhecer uma “nova
Pampulha”. É preciso destacar que o grupo descobriu um olhar inédito sobre o mesmo
espaço e um novo olhar sobre o patrimônio. Chegamos lá esperando ouvir histórias

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
294
positivas sobre o espaço e a convivência dos alunos dentro do mesmo, mas descobrimos
um espaço que se distancia muito da região considerada Patrimônio da Humanidade.
O patrimônio não diz somente sobre política, diz também sobre identidade e
existência, sobre História, mas não somente sobre os fatos - é sobre narrativas, sobre
construções.
As políticas patrimoniais visam garantir a permanência da memória, mas elas
também demostram as rupturas, como a da mentalidade barroca da Igreja e o povo
mineiro ao reconhecer a Igreja de São Francisco de Assis como espaço de cultos e como
imagem representativa de Minas. A permanência de elitizar a arte e os espaços e
marginalizar ações definindo como vandalismo as apropriações do patrimônio.
O patrimônio não vai passar ileso a essas rupturas, ele vai ser repensado assim como
a sociedade, o que nos compete a fazer com que essas políticas abracem a pluralidade e
não afaste a humanidade como um todo desses bens patrimonializados. O patrimônio é
uma forma de dialogar com a própria existência, com a existência de outros grupos e
entendendo a linguagem e pensamento do Estado, é possível buscar seu lugar dentro dele.

Referências

ALBUQUERQUE, U. J. P. A. Patrimônio Cultural: uma construção da cidadania. In:


TOLENTINO, Átila B. (Org.). Educação Patrimonial: reflexões e práticas. 1° ed. João
Pessoa: IPHAN, 2012. p. 4-5.
BEZERRA, J. I. M.; Clerot, P. G. M.; FLORÊNCIO, Sônia Regina Rampim;
RAMASSOTE, Rodrigo M. (Orgs.). Educação Patrimonial: Histórico, conceitos e
processos. 1. ed. Brasília – DF: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
2014.
CARSALADE, F. L; MORAIS, P. H. A. O Conjunto Moderno da Pampulha como
Patrimônio Cultural da Humanidade. In: Arquiteturas do mar, da terra e do ar?
Arquitetura e Urbanismo na Geografia e na Cultura; 2014. Lisboa. Academia de Escolas
de Arquitetura de Língua Portuguesa, 2014. v. 1. p. 368-384.
CASANOVA, R. A prática docente em sala de aula: mediação pedagógica. FÁBIO, José
(Org.). III Simpósio sobre formação de professores; 13 de junho de 2011; Tubarão –SC.
Palhoça: Ed. da Unisul, 2010. 01-86.
DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultual. In. DAYRELL, Juarez. (Org.).
Múltiplos Olhares sobre educação e cultura. 1° ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
1996. p. 136-161.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
295
FERNANDES, P. C. A. Pampulha: atualizações simbólicas de uma paisagem modernista.
In: IV Colóquio Ibero-americano Paisagem cultural, patrimônio e projeto; 2016. Belo
Horizonte. Anais do IV Colóquio Ibero-americano Paisagem cultural, patrimônio e
projeto, 2016. p. 01-20.
GRINSPUM, D. Educação para o Patrimônio: Museu de Arte e Escola:
Responsabilidade compartilhada na formação de públicos. 2000. 157 f. Tese
(Doutorado). Instituto de Educação, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2000.
LIMA, Maria Luzia Carvalho de; SOUZA, E. R. Panorama da violência urbana no Brasil
e suas capitais. Ciência & Saúde Coletiva. 2006; v.11, n.2: p. 363-373, maio de 2006.
MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento.
Tradução Eloá Jacobina. 8° edição. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Ministério da
Educação, 2017. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/> Acesso em: 12/08/2017.
NASCIMENTO, C. T. Lev Semyonovich Vygotsky (1896-1934). Cláudia, 2017.
Disponível em: <http://www.claudia.psc.br> Acesso em: 16/06/2017.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
296
SEÇÃO - ARQUIVO NA SALA DE AULA

PROPOSTA PEDAGÓGICA 1

Autores:

Moacir Fagundes de Freitas

Licenciado em História e Estudante de graduação em Museologia (Bacharelado)


UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Fafich (Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas) e ECI (Escola da Ciência da Informação).
Professor na Escola Municipal Anne Frank

Luíza Rabelo Parreira

Estudante de Graduação: História (Licenciatura e Bacharelado)


UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Fafich (Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas).

Douglas de Freitas

Bacharel em História, UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Fafich


(Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas).

Nível de ensino: Fundamental – 7º Ano


Tema: História do bairro Confisco.

Disciplina: História.
Interdisciplinaridade: Artes, Geografia e Português.
Transversalidade: Relações de gênero, identidade, direitos humanos, temas locais,
pluralidade cultural, ética.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
297
Documento 1

Título: Relatório sobre a situação de risco da parte alta do Conjunto Confisco.

Gênero:

Textual, em formato de folha avulsa.


Iconográfico, em formato de fotografia.
Cartográfico, em formato de mapa.

Instituição de guarda:

Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura

Notação do documento: Relatório sobre a situação de risco da parte alta do Conjunto


Confisco. 1992. Disponível no Arquivo Público da Cidade. Localização: Guia 356, AC:
00.00.00, Depósito: Tx, Móvel: AD.01/MO. 03/ES, Nº 15, Posição: PR. 05, Caixa 60.

Objetivos da atividade:

A proposta da aula se insere no projeto desenvolvido pelo professor Moacir Fagundes de


Freitas denominado “Entre o Diário e a História em Quadrinhos: Estudantes Construindo
a História de um Bairro. ” O objetivo desse projeto é “possibilitar aos estudantes da Escola
Municipal Anne Frank e à sua comunidade, condições de pesquisar, criticar, construir,
conhecer e comunicar a história do bairro Confisco”. Nesse sentido, a aula proposta tem
como principal intuito oferecer aos estudantes uma visão panorâmica da história do bairro
Confisco, contextualizar a formação do bairro dentro da história da cidade de Belo
Horizonte, discutir as diferentes versões da história do bairro, desconstruir a noção
progressista de caráter positivista dessa história e reforçar a ideia de que a identidade do
bairro e de seus moradores é fruto de uma construção marcada pela luta social dessas
pessoas. Para isso, será utilizado o documento “Relatório sobre a situação de risco da
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
298
parte alta do Conjunto Confisco”, que é composto por fotografias que mostram as
primeiras moradias do bairro, os assentamentos em lona, a população que residia ali no
período, mapas e relatórios que explicam a situação político-geográfica do bairro, que se
localiza entre as divisas dos municípios de Belo Horizonte e Contagem.

Aula 1 - Duração: 60 min

Conteúdo:

A aula partirá da discussão e apresentação dos conteúdos sobre a história do bairro


Confisco, apresentando imagens fotográficas e documentos, além de contextualizar a
história do bairro dentro da história da cidade de Belo Horizonte. A metodologia utilizada
para trabalhar o conteúdo parte de uma perspectiva mais horizontal com o intuito de
privilegiar o conhecimento dos estudantes sobre a história do bairro e também favorecer
a participação e a interlocução. Para isso, será feito o uso de perguntas-chave para
explorar o conteúdo prévio da turma. A principal intenção ao analisar os documentos é
desconstruir a imagem negativa que alguns estudantes têm do bairro e mostrar que os
ganhos e mudanças ocorridas são resultado de conquistas dos moradores. Assim, espera-
se que ao final da aula os alunos possam entender melhor o contexto social no qual estão
inseridos e possam ser agentes de mudança para o futuro. Ao final da aula será dada uma
atividade para ser feita em casa, na qual os estudantes deverão elaborar questões de
verdadeiro ou falso sobre o conteúdo ministrado em aula.

Procedimentos/estratégia de ensino:

A primeira aula será guiada pelas questões:

o O que é um bairro?
o Como surgiram os bairros em BH?
o Exibição de mapa e fotos antigas de Belo Horizonte.
o Quem conhece a história do bairro Confisco?
o Por que o nome Confisco?

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
299
o Como imaginam o bairro há 25 anos?

A aula será interativa, com apresentação em PowerPoint.

Ao final, haverá uma explicação da dinâmica do jogo que ocorrerá na aula.

O jogo será de “Verdadeiro ou Falso” e abordará o conteúdo discutido durante a aula.


Cada aluno terá como tarefa criar uma questão verdadeira e uma falsa a respeito da
história do bairro Confisco.

Exemplos de questões:

O bairro Confisco chamava-se São Jorge.

Algumas ruas do bairro Confisco começam em Belo Horizonte e terminam em


Contagem.

Quando o grupo dos Mariquinhas chegou ao bairro as casas deles já estavam prontas
para recebê-los.

Na época que existia o “buracão” na praça, já havia linha de ônibus circulando no


bairro.

O nome da escola é Anne Frank porque ela doou o terreno para a escola através de seu
testamento.

Aula 2 - Duração: 60 min

Conteúdo:

A segunda aula tem como objetivo a reflexão acerca do que foi apresentado na primeira,
através de um jogo de revisão. A intenção é que os alunos possam demonstrar o que
aprenderam sobre a história do bairro Confisco. Espera-se assim, que os alunos possam
desenvolver maior domínio sobre o conteúdo apresentado, uma vez que o jogo privilegia
o debate e o raciocínio.

Nos primeiros minutos da aula será feita uma revisão do conteúdo dado na aula anterior,
guiado pelas perguntas:

o Como está o bairro hoje?


o Por que é importante escrever a história dele?
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
300
O restante da aula será utilizado para a realização do jogo.

Regras do jogo:

O(a) professor(a) lerá questão em voz alta;

Uma vez lida, a questão não será repetida pelo professor;

Os membros dos grupos terão alguns minutos para discutir entre si sobre a questão;

Cada grupo deve escolher um representante para levantar a placa escolhida (V ou F);

A placa escolhida deve ser levantada ao sinal do professor;

Não é permitido a troca de informação entre os grupos.

O restante da aula será utilizado para esclarecer eventuais dúvidas.

Recursos necessários:

-Data Show e computador para a primeira aula.

-Documentos utilizados.

Relatório sobre a situação de risco da parte alta do Conjunto Confisco.

- Papel e caneta para confecção das placas de V ou F na segunda aula.

Referências:

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos.


São Paulo: Cortês, 2004. 408 p. (Coleção Docência em Formação. Série Ensino
Fundamental).
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais: História/Geografia.2. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2000.
ARREGUY, Cintia Aparecida Chagas. RIBEIRO, Raphael Rajão (coordenadores).
Histórias de bairros [de] Belo Horizonte. Belo Horizonte: APCBH; ACAP-BH, 2008.
(Cadernos disponíveis em versão digital no site do Arquivo Público da Cidade de Belo
Horizonte: www.pbh.gov.br/cultura/arquivo).
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
301
LIMA, Benvindo. Canteiro de saudades: pequena história contemporânea de Belo
Horizonte (1910-1950). Belo Horizonte: Promove, 1996.
RESENDE, Luiza de Marilac.; ZARZAR, Patrícia Maria Pereira de Araújo;
FERREIRA, Efigênia Ferreira e. Percepção de moradores de um aglomerado em Belo
Horizonte, sobre os fatores relacionados à mobilidade urbana. 2015. 79f.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de
Odontologia. Disponível em: <http://hdl.handle.net/1843/BUBD-A8XNUK>. Acesso
em: 26 abr. 2016.
SILVA, Luiz Roberto da. Doce dossiê de BH. 2.ed. Belo Horizonte: BDMG Cultural,
1998.
UFMG. Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional – Cedeplar. Projeto PBH
Séc. XXI – Relatório final. Disponibiliza arquivos de pesquisas e estudos sobre Belo
Horizonte. Disponível em:
<http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/projeto_pbh_sec._xxi.php>. Acesso em: 03
out.
MAUAD, Ana Maria. Ver e conhecer: o uso de imagens na produção do saber histórico
escolar. In: ROCHA, Helenice; MAGALHÃES, Marcelo e GONTIJO, Rebeca. A Escrita
da História Escolar. Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. p.247-262.

NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco; FERREIRA, Tania Maria Bessone
(orgs.). História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de
Janeiro: DP&A; FAPERJ, 2006.

Sem Nome. Informativo da E. M. Anne Frank, Comunidade do Bairro Confisco e


arredores. N. 0, novembro de 2004.

Bairros de Belo Horizonte: Conjunto confisco.


Disponível em: http://bairrosdebelohorizonte.webnode.com.br/conjuntos-populares-/

Histórico do Conjunto Habitacional Confisco. Centro de Referência Popular do Bairro


Confisco BH.
Disponível em: https://www.facebook.com/confiscobh/posts/440726819404942

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
302
PROPOSTA PEDAGÓGICA 2

Autora: Marcelina das Graças de Almeida


Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, Docente na Escola de
Design da Universidade do Estado de Minas Gerais e do Centro Universitário Estácio de
Belo Horizonte

Nível de ensino: Ensino Médio


Tema: O Cemitério do Bonfim e os livros de registro de sepultamentos
Disciplina: História
Interdisciplinaridade: Português, Geografia, Artes
Transversalidade: A morte, o morrer e o culto aos mortos

Documento 1
Título: Livro Registro de Sepultamentos

Gênero:

X textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal,
convite)
__ iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal)
__ cartográfico (formatos: projeto arquitetônico, planta, mapa)
__ micrográfico (formato: microfilme)

Instituição de guarda:

X Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura


___ Museu Histórico Abílio Barreto – Fundação Municipal de Cultura
___ Museu de Arte da Pampulha – Fundação Municipal de Cultura
___ Centro de Referência Audiovisual – Fundação Municipal de Cultura
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
303
___ Outros

Notação do documento: DQ.07.00.00

Objetivos da atividade:

Propor uma inter-relação entre o conteúdo dos livros do registro dos sepultamentos e o
espaço do Cemitério do Bonfim da cidade de Belo Horizonte

Procedimentos/estratégia de ensino:

O Cemitério do Bonfim, para além do cumprimento de suas funções habituais ligadas ao


culto aos mortos, vem sendo cada vez mais utilizado como espaço de educação não
formal. O hábito de ministrar aulas específicas utilizando o espaço cemiterial vem sendo
recorrentemente praticado. Essa prática na Escola de Design da Universidade do Estado
de Minas Gerais se realiza através do trabalho de docentes em disciplinas diversas que
são ministradas para os cursos de Design Gráfico, Design de Produto, Design de
Ambientes e Licenciatura em Artes Visuais. As atividades educativas são coordenadas
pelas docentes Marcelina das Graças de Almeida e Patrícia Pinheiro, como parte do
currículo das disciplinas “Espaços Museográficos” e “Fatores Filosóficos e Culturais I”,
respectivamente. O objetivo das visitas consistia, para além da coleta de material e
investigação acadêmica, a promoção da educação patrimonial.

Entretanto essa ação educativa vem, desde junho de 2012, se estendendo a outros
segmentos da sociedade belo-horizontina através de uma ação de extensão que promove,
em parceria com Fundação de Parques Municipais, FPM e o Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico, IEPHA, visitas mensais ao cemitério com o intuito de
instigar o interesse, despertar o gosto pelo turismo cemiterial e ao mesmo tempo
promover a educação patrimonial. Estas atividades têm a cada dia incrementado de modo
considerável a visibilidade naquilo que se refere ao espaço e consequentemente à
necessidade de ampliar o conhecimento acerca do acervo e história do cemitério.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
304
Nesse sentido a proposta da atividade é correlacionar as visitas e a análise do conteúdo
dos livros de registros de sepultamentos que se encontram no acervo do Arquivo Público
da Cidade de Belo Horizonte, APCBH, que compreendem o período que se estende desde
os anos de 1898 a 1967, de modo que tanto os docentes, quanto discentes envolvidos
possam, ao realizar a visita ao Bonfim, correlacionar os dados contidos nos livros e a
distribuição geográfica dos sepultamentos no espaço cemiterial, identificando as
características dos túmulos, os aspectos estéticos e sociais, bem como detectando as
transformações pelas quais a necrópole vem experimentando ao longo do tempo.

Para a realização dessa atividade é importante que sejam planejadas duas visitas: uma ao
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, para análise e escolha dos livros que serão
mapeados e analisados e outra ao Cemitério do Bonfim, ocasião em que os dados colhidos
na primeira visita possam ser confrontados. Nessa visita, inclusive, sugere-se além das
anotações o uso de máquina fotográfica para captação de imagens e registro das
investigações a serem realizadas em campo.

Os resultados da pesquisa e das visitas técnicas podem ser desdobrados em textos


redigidos pelo corpo discente, bem como a organização de uma exposição fotográfica.

Referências:

ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Morte, Cultura, Memória: Múltiplas Interseções –
Uma interpretação acerca dos cemitérios oitocentistas situados nas cidades do Porto e
Belo Horizonte. 2007. 404 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.

_______.Belo Horizonte, Arraial e Metrópole: memória das artes plásticas na capital


mineira. In. RIBEIRO, Marília Andrés e SILVA, Fernando Pedro da. (org.) Um Século
de História das Artes Plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora C/ARTE /
Fundação João Pinheiro / Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997. Coleção
Centenário.
________. PROJETO DE EXTENSÃO Passeio pelo Bonfim - visitas guiadas Relatório
2012/2013. Belo Horizonte, Escola de Design, 2013.
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
305
________. Cemitério do Bonfim: Arte, História e Educação Patrimonial RELATÓRIO
DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DAS ATIVIDADES DURANTE O ANO DE 2014.
Belo Horizonte, Escola de Design, 2015.

________. A cidade e o cemitério: uma experiência em educação patrimonial. Revista M.


Estudos Sobre a Morte, os Mortos e o Morrer. Rio de Janeiro, Vol.1, n.1, p.217-234, Jan.-
Jun.,2016.

AVELAR, Bruna Dalva e ALMEIDA, Marcelina das Graças de. PROJETO CEMITÉRIO
DO BONFIM: ARTE, HISTÓRIA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL. EDITAL: 01/2013.
Belo Horizonte: Escola de Design/UEMG, 2013. 23 p. Relatório de pesquisa PAPq.

RELATÓRIO FINAL DE PESQUISA DE INVENTÁRIO DO ACERVO DE


ESTRUTURAS ARQUITETONICAS E BENS INTEGRADOS DO CEMITÉRIO DO
BONFIM. Belo Horizonte: IPEHA, 2010.

TRIGUEIRO, Ana Carolina Zegarra e ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Relatório
Final de Pesquisa Projeto Cemitério do Bonfim: Arte, História e Educação Patrimonial.
Edital 04/2014 Belo Horizonte, ED/UEMG, 2015.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
306
ENTREVISTA

Luciana Teixeira de Andrade

Professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC


Minas.

Pesquisadora do CNPq, da Fapemig e do Observatório


das Metrópoles.

Foto: Acervo pessoal

Apresentação

No ano de comemoração dos 120 anos de Belo Horizonte, a REAPCBH entrevista a


professora Luciana Teixeira de Andrade da PUC Minas, para compartilhar suas
experiências sobre os temas pesquisados sobre a cidade, assim como realizar um balanço
dos 120 anos da capital.

REAPCBH pergunta: Pensando na sua experiência com estudantes universitários,


quais seriam os temas mais pesquisados sobre Belo Horizonte e quais as perspectivas
acadêmicas para os estudos sobre a cidade?

Luciana Teixeira de Andrade responde: Posso responder essa pergunta a partir da


minha experiência como orientadora de teses e dissertações na PUC Minas e também por
acompanhar parte da produção sobre a cidade em função das pesquisas que desenvolvo.
Em todos esses casos, haverá uma marca da minha inserção institucional e da minha área
de pesquisa. O que vem a seguir, portanto, não tem o rigor científico de uma avaliação

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
307
que contemple toda a produção acadêmica sobre a cidade. São apenas registros de
avaliações parciais. Importante dizer isso, tanto como um alerta sobre o que aqui será
dito, como também para chamar a atenção sobre a necessidade de tal avaliação que, pelo
que conheço, ainda não foi feita. E, sobre isso, vale também dizer que a produção
acadêmica de teses, dissertações e artigos sobre a cidade cresceu muito nas últimas
décadas em função da expansão das universidades públicas e privadas, e dos programas
de pós-graduação.
Por incentivo do próprio APCBH, que em duas ocasiões me convidou para fazer
palestras, tentei, nessas oportunidades, me informar um pouco além do que a rotina de
trabalho nos exige acerca do estado da arte das pesquisas sobre Belo Horizonte. Foram
sempre incursões limitadas no que diz respeito às fontes e em função do tempo que tinha
para me dedicar a essa tarefa. Na primeira oportunidade, analisei os registros produzidos
pelo APCBH, das 172 teses e dissertações apresentadas no projeto Novos Registros, desde
o seu início, em 1993, até 2011, como mote para a fala no evento Cidade em Debate que
comemorou os vinte anos do Novos Registros. Importante chamar atenção aqui que esses
dados não abrangem a produção acadêmica sobre a cidade, mas somente as obras
selecionadas pelo APCBH para apresentação no Novos Registros.
Nessa fala destaquei os espaços, os temas e os períodos das obras. Em relação ao
espaço, o Centro histórico da cidade aparecia como o lugar privilegiado das
apresentações. Interessante foi observar que apesar das muitas mudanças por que vem
passando, como a perda de parte da sua centralidade, desde que passou a dividi-la com
novos espaços, mesmo assim o Centro continuou a atrair a atenção dos pesquisadores,
interessados, possivelmente, em acompanhar essas mudanças. Em seguida, apareciam os
bairros do pericentro, localizados no entorno do Centro, e, em terceiro lugar, mas já com
um número bem menor de trabalhos, as periferias e as favelas de um lado, como territórios
da pobreza, e o eixo sul e a Pampulha de outro, como territórios das classes médias e
altas. Interessante notar que se foram poucas as apresentações sobre as favelas e as
periferias, menor ainda foram as apresentações sobre os bairros dos estratos altos.
Em função de um projeto de pesquisa sobre favelas em Belo Horizonte, pude
observar que cresceu o número de estudos sobre favelas na cidade. Em um levantamento
realizado em 2011, com ajuda de dois bolsistas, identificamos 42 teses e dissertações
sobre favelas em Belo Horizonte. A maioria estudos de caso sobre favelas específicas,
que tratavam de temas como habitação, reassentamento, urbanização, organização social,
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
308
crime e violência, seguido de outros como juventude, trabalho, educação, sexualidade.
Poucos, mas que vale o registro, com abordagens sobre memória e produção cultural. O
que reforça a visão (limitada) da favela como um problema social. A favela da Serra era,
à época desse levantamento, a mais estudada, seguida por Santa Lúcia, Cabana, Pedreira
e Taquaril. Os estudos de caso qualitativos predominavam, mas identificamos também
trabalhos quantitativos que comparavam algumas favelas com as periferias ou outros
espaços da cidade. Faltavam trabalhos com abordagens mais amplas, a exemplo da tese
pioneira, e nunca publicada, de Berenice Guimarães Cafuas, barracos e barracões: Belo
Horizonte, cidade planejada, de 1991.
Como acima mencionado, a falta de estudos sobre os espaços de moradia dos
estratos altos da população não é uma idiossincrasia local, ela se reproduz em outros
lugares do país. Parece que o fato de 1% da população do país concentrar 25% da renda
total não se configurou ainda em um problema real de pesquisa. Arriscaria duas hipóteses
para isso. A primeira estaria relacionada ao fato dos cientistas sociais terem maior empatia
com os pobres e os excluídos. Ao estudá-los estariam também denunciando seus
problemas. E, num certo sentido, procurando ser solidários para com eles. Daí que a
representação da favela e da pobreza como um problema, o que acaba por reforçar os seus
estigmas, não seja algo deliberado, seria, ao contrário, um efeito não desejado ou mesmo
não esperado. A segunda tem a ver com acesso. Os ricos dificilmente se rendem aos
pesquisadores, um exemplo é a dificuldade que o próprio Censo Demográfico tem para
recenseá-los. Seus lugares de moradia, em geral, são muito bem protegidos dos intrusos,
entre eles, os pesquisadores que querem saber como vivem, suas rendas, escolaridade,
opiniões etc. Já os mais pobres não têm esses mesmos recursos e se rendem mais
facilmente às nossas intromissões.
Voltando aos dados das apresentações das teses e dissertações no Novos Registros,
um outro recorte possível é o do tempo, ou das décadas. A tarefa não é fácil, pois os
estudos não são necessariamente por décadas, há vários que abordam períodos mais
longos. O que eu tentei foi perceber o foco em determinadas décadas – tentando
compreendê-las como representativas de algum momento da vida da cidade e do país.
Como comentarei adiante, a partir de um levantamento mais atualizado desses mesmos
dados pelo próprio APCBH, notam-se algumas diferenças entre o meu levantamento e

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
309
este último, o que pode ter a ver com a diferença temporal (a publicação162 do APCBH
abordou as apresentações até o ano de 2016, cinco anos a mais), mas também pela
dificuldade que tive em classificar, por um critério em grande parte arbitrário, os trabalhos
em décadas. Mas vamos lá.
Foi possível identificar uma concentração das apresentações em estudos sobre a
Primeira República, mas que não era maior do que nas décadas atuais (1990-2000). São
dois dados interessantes. O fato de ser uma cidade planejada parece exercer um grande
fascínio. Afinal, poder investigar um fenômeno com um início tão identificável, atraiu
um grande número de pesquisadores. Além do planejamento da cidade, muitos outros
aspectos da Primeira República foram também estudados: cafés, cinema, modernismo,
carnaval, vida social e intelectual, esporte, lazer, futebol, catolicismo, ordem social,
imprensa. Diferentemente, os estudos sobre a década de 1960, apresentavam um viés mais
político, mas também cultural, dos movimentos artísticos. Na década de 1970,
permaneceu o interesse pela dimensão política, com o acréscimo da questão urbana, da
expansão e o crescimento populacional da cidade e sua região metropolitana. As
apresentações de trabalhos com foco nas décadas de 1990 e 2000 evidenciavam uma
preocupação com o tempo presente, mesmo levando-se em conta o predomínio das
apresentações oriundas dos programas de pós-graduação em história no Novos Registros.
Neste ano de 2017, o APCBH lançou a publicação A trajetória do projeto Novos
Registros, que com mais critérios e tempo do que o meu levantamento, muito
exploratório, construiu uma estatística das apresentações entre 1993 e 2016. Ainda que
as formas de organização dos dados sejam diferentes (essa publicação trabalhou com as
regiões administrativas), verificou-se uma concentração das apresentações na região
Centro Sul da cidade (onde se localiza o Centro histórico). Em relação aos tempos, nossas
classificações divergem um pouco, e, como não teria como voltar a esses dados, deixo
aqui o registro para que, caso haja interesse, seja objeto de outras explorações.
Diferentemente dos meus resultados, eles identificaram uma distribuição mais
homogênea por décadas.
A segunda oportunidade que tive, mais uma vez provocada pelo APCBH, para
falar das pesquisas sobre a cidade foi no evento O arquivo e a cidade. A produção do
conhecimento em Belo Horizonte: perspectivas acadêmicas, realizado em 2017. Para esse

A Trajetória do Projeto Novos Registros do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, 2017.
162

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
310
evento, levantei as teses e as dissertações produzidas no Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais da PUC Minas (PPGCS) onde leciono e oriento. Investiguei pelo título
e quando este não era suficiente, pelo resumo, 274 dissertações e teses que, até aquele
momento, estavam no Banco de Teses do PPGCS. Como salientado acima para o caso
das apresentações no Novos Registros, trata-se também aqui de uma amostra: as teses de
um programa de pós-graduação, em um universo bem mais amplo. Outro viés de qualquer
amostra como essa é a sua relação com a área de concentração, linhas de pesquisa e,
muitas vezes, com pesquisadores específicos. O PPGCS tem como área de concentração
Cidades: Cultura, Trabalho e Políticas Públicas, e três linhas de pesquisa: Cultura,
Identidades e Modos de Vida, Políticas Públicas, Participação e Poder Local e
Metrópoles, Trabalho e Desigualdades.
Dessa segunda investida, os dados mais significativos que apurei foram os
seguintes: 49% da produção foi sobre a cidade de Belo Horizonte; 11% sobre a Região
Metropolitana de Belo Horizonte, 23% sobre Minas Gerais e 10% sobre outros espaços.
Os 7% restantes eram estudos comparativos. Mais uma vez os espaços centrais e, dentro
destes, os espaços públicos, foram os mais estudados. Seguidos pelas favelas e periferias
e depois pelos bairros pericentrais. Isso para as teses e dissertações que versavam sobre a
cidade de Belo Horizonte. Três temas atravessavam, com maior frequência, as
dissertações e as teses das três diferentes linhas de pesquisa: a) juventudes, b) patrimônio
e memória e c) pobreza, vulnerabilidade e desigualdades sociais. Um conjunto
significativo se inseria no campo das políticas públicas, com investigações sobre as
políticas educacionais, de habitação, de saúde, de assistência social, de juventudes, entre
outras. Dentre esses, um subgrupo significativo versava sobre as políticas públicas
urbanas, como orçamento participativo, conselhos municipais, planos diretores e gestão
municipal e metropolitana. Alguns temas novos ou ligados à conjuntura também
apareceram, como a Copa do Mundo de 2014, mobilidades e ocupações urbanas.
O segundo grupo abordou os temas relacionadas à cultura e aos modos de vida, à
memória e ao patrimônio cultural. Distintas manifestações culturais como dança, teatro,
cinema, grafite e festas foram analisadas, assim como instituições como museus e centros
culturais. O terceiro grupo, teve como foco as questões do trabalho (formal, informal,
mercado de trabalho, reestruturação produtiva), das profissões (de camelôs, policiais,
médicos, bancários, funcionários públicos entre outras), da pobreza e da vulnerabilidade
social, mental e física. Nesse último grupo há um conjunto importante de trabalhos sobre
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
311
população de rua. Há que se destacar ainda dois outros temas: o da criminalidade e da
segurança pública e os estudos sobre gênero. Em menor número estão os estudos sobre
religião, cor ou raça. A baixa ocorrência deste último tema, como no caso da classe alta,
acima destacado, não é uma característica do PPGCS da PUC Minas. Trata-se de uma
lacuna nacional. Ainda que seja uma das desigualdades mais persistentes, não foi até
então estudada como deveria. Minha intuição, em razão da atual mobilização em torno
do tema, é que essa produção venha a ser incrementada em breve.

REAPCBH pergunta: Os estudantes têm procurado acervos de arquivos públicos?


Como você vê o papel do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte no contexto
das pesquisas dos estudantes universitários?

Luciana Teixeira de Andrade responde: A facilidade de acesso a fontes digitais tem


levado os atuais pesquisadores a limitarem suas pesquisas às fontes disponíveis na
internet, um mundo de coisas muito distintas, que incluem acervos de arquivos,
periódicos, teses, etc., bem como trabalhos de qualidade duvidosa, em detrimento das
pesquisas em fontes históricas cujo principal lugar são os arquivos. Mesmo na área da
sociologia que tem como uma de suas marcas centrais a preocupação com a modernidade
e com o tempo presente, as pesquisas históricas e de sociologia histórica são muito
relevantes. E, até mesmo as pesquisas etnográficas e de campo, não devem prescindir de
investigações históricas. Além do que, a comparação, seja no tempo, seja no espaço, é um
dos traços essenciais da disciplina. O que comumente chamamos de contexto é
profundamente influenciado pela história. Acho que é até desnecessário bater nessa tecla,
talvez seja mais importante procurar por algumas explicações e as armadilhas que se
escondem por trás delas. Penso que uma delas sejam as transformações aceleradas que
vivemos, o que tem levado a um sentimento de urgência, inscrito nessa tentativa de
desvendar o presente.
Uma outra é o fenômeno da globalização que numa interpretação limitada levou à
análise dos fenômenos sociais em diferentes espaços como produtos de processos globais.
Como se essa força, a globalização, desconsiderasse as condições históricas e os
contextos locais. Ainda que essa interpretação venha sendo questionada há algum tempo
e, mais recentemente, com força ainda maior, ela é uma marca de muitos estudos sobre
os chamados temas globais (alguns deles temas tipicamente da moda da qual o ambiente
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
312
acadêmico não está imune), para ver como “se manifestam” nas nossas cidades e
realidades. Nesses casos, a história e o contexto são secundarizados e, muitas vezes,
sacrificados para que o fenômeno possa ser analisado tal como em outros lugares
(entendido aqui como os centros hegemônicos da produção de teorias). Trata-se de um
equívoco teórico e metodológico que abre mão da compreensão da realidade local a partir
de uma investigação aprofundada para apenas tentar identificá-la ou colocá-la em um
fluxo de acontecimentos cuja matriz são os países centrais ou do Norte. O que se verifica
em muitos desses casos é que a produção desses países, focada em realidades muito
específicas, é exportada, mas também aceita, como teoria geral e universal. Trata-se de
uma questão de poder, de quem produz teoria, mas que vem encontrando algumas
resistências. Uma delas tem a ver com a produção de conhecimentos e de teorias que
sejam fortemente ancoradas na nossa realidade, e não como casos “fora” da explicação
dominante. Na perspectiva da interpretação dominante seremos sempre casos periféricos,
para os quais falta algo para “chegarem lá”, ou seja, na globalização central, ou em
qualquer outra referência central que seja tomada como modelo. Ao assim fazer, apenas
alimentamos com dados uma explicação hegemônica. A outra atitude, é pensarmos nas
diferenças ou nas múltiplas narrativas. Para isso, a pesquisa histórica, assim como a
pesquisa de campo, é fundamental. Como alguns pesquisadores vêm chamando a atenção,
as descrições novas e contra hegemônicas precisam percorrer esse segundo caminho.

REAPCBH pergunta: Quando Belo Horizonte foi inaugurada, o seu projeto


baseava-se em ideais de modernidade. Passados 120 anos, como a capital mineira
pode ser entendida no contexto brasileiro, considerando tal projeto de construção?

Luciana Teixeira de Andrade responde: Essa questão pode ser abordada de diferentes
perspectivas. Vou tratar aqui da dimensão socioespacial. Belo Horizonte, cidade
planejada no final do século XIX, sob os ideais da modernidade e cujo principal modelo
à época era Paris, antecipou as reformas urbanas pelas quais passariam outras capitais
brasileiras mais antigas. Tais reformas tiveram como foco principal a mudança
urbanística e social do centro histórico, recuperando-o para as classes de mais alto status,
com a consequente expulsão dos mais pobres para as favelas ou periferias. O
planejamento de Belo Horizonte destinou diferentes espaços para os diversos grupos
sociais. Se alguns foram privilegiados com a garantia de ocupação de um espaço dotado
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
313
de infraestrutura e tiveram até mesmo as suas casas construídas, como foi o caso dos
funcionários públicos, outros, como os construtores da cidade, não tiveram a mesma sorte.
Restaram-lhes as favelas, que surgiram antes mesmo da cidade ser inaugurada, ou a
ocupação da zona suburbana, ainda carente de infraestrutura.
O que se percebe aí é o tratamento diferenciado dos grupos sociais, com a exclusão
da política habitacional justamente dos que dela mais precisavam. Aliado à questão da
moradia, houve também um maior controle dos usos dos espaços públicos centrais da
cidade. Várias medidas, como os códigos de posturas, reprimiam o comportamento tido
como “não civilizado” nas áreas centrais da cidade, constrangendo e mesmo
criminalizando os usos dos espaços públicos para o trabalho e o lazer dos mais pobres. Já
os cronistas da época convidavam os habitantes da cidade (apesar do tom geral do convite,
ele se dirigia apenas àquela parcela que lia os jornais) para ocuparem as ruas largas e
vazias da cidade com atividades como o footing e a frequência aos cinemas, teatros,
lanchonetes e restaurantes. Ou seja, alguns comportamentos eram identificados como
próprios à cidade moderna e, portanto, legitimados, enquanto outros eram criminalizados
com os rótulos de vadiagem, desordem e mendicância. O planejamento de Belo Horizonte
não produziu uma cidade mais igualitária e justa. Algumas parcelas da população
puderam usufruir dos seus benefícios e outras não, o que mostra que, nesse aspecto, da
ordem socioespacial, a Belo Horizonte planejada não difere de várias outras capitais
brasileiras.
Passados 120 anos, não é possível dizer que a cidade tenha se tornado mais
igualitária. Tomando mais uma vez o aspecto socioespacial, o que as pesquisas mostram
é a contínua expulsão dos mais pobres para as áreas mais distantes do centro, seja para as
bordas da cidade, seja para os municípios da região metropolitana. Isso não significa dizer
que nada mudou. Belo Horizonte se modificou imensamente, seja em termos
populacionais, superando em muito as expectativas de seus planejadores, seja na forma
de ocupação do espaço, na sua paisagem e nas formas de sociabilidade. Indicadores
sociais de acesso aos serviços urbanos como água, luz, serviços sanitários, urbanização,
entre outros, melhoraram significativamente, como de resto em todo o país. A
verticalização excessiva alterou a paisagem da cidade, sua qualidade de vida e as formas
de sociabilidade. Some-se a isso a ocupação das ruas pelos carros, o que transformou as
tão faladas ruas largas e vazias, em espaços claustrofóbicos. A partir dos anos 1980, a
violência vem alterando as formas de sociabilidade nos espaços residenciais e nos espaços
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
314
públicos. Casas se fecham para as ruas, com a construção de muros, colocação de cercas
elétricas e concertinas. Uma paisagem de guerra com a qual vamos aos poucos nos
acostumando. Crescem as formas de controle privado nos espaços públicos e
semipúblicos com a utilização de seguranças privados cuja “proteção” é continuamente
questionada. Ou seja, a continuidade das políticas públicas repressivas e focalizadas em
determinados grupos sociais, com a complementação dos controles privados, produz uma
cidade ao mesmo tempo mais vigiada e mais insegura. Essas mudanças são fruto de
muitas tensões e conflitos entre os diferentes interesses dos grupos que vivem e atuam na
cidade.
As mudanças na infraestrutura das periferias são produtos de lutas sociais, muitas
vezes trocadas por votos. A verticalização e a destruição de espaços públicos e de áreas
verdes encontraram resistências que culminaram ora em vitórias dos preservacionistas,
ora dos interesses imobiliários. O mesmo se pode dizer em relação ao patrimônio
histórico, uma política que se construiu com derrotas e vitórias e muitas tensões entre os
diferentes interesses. Uma parte positiva dessas tensões foi ter resultado em uma
ampliação considerável do seu escopo inicial, seja em relação aos espaços da cidade, seja
em relação aos tipos de bens protegidos, materiais e imateriais.
Se em seus primórdios BH foi representada como uma cidade ambivalente,
moderna no plano urbanístico, mas tradicional nos costumes de seus moradores, hoje suas
tensões se amplificaram e suas representações se tornaram mais complexas com a
emergência de novos atores e novas reivindicações de direito. Mas se entendemos o
tradicionalismo como uma força contrária ao ideal moderno da democracia e dos direitos
da cidadania, Belo Horizonte, como outras cidades do país, vive a tensão que parece não
ter fim, entre uma certa modernidade e um imenso atraso social.
2017, ano que Belo Horizonte completou 120 anos, foi um ano difícil para o país
e para a cidade. Tempos de perdas de direitos, de desmobilização e de acirramento sociais,
de abusos autoritários e de intensificação da mercantilização da vida, de retrocessos nos
valores democráticos, morais e culturais. Como é comum às comemorações, as falas sobre
o seu aniversário, revelaram um grande afeto dos moradores pela cidade. A esperança é
que esse afeto, elemento importante nas lutas sociais, se converta em um aliado às lutas
por uma cidade mais igualitária, mais justa e plural.

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de


2017‐ ISSN: 2357‐8513
315
REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 4, n. 4, dezembro de
2017‐ ISSN: 2357‐8513
316

Você também pode gostar