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GRUPO DE ESTUDOS BAKHTINIANOS [GRUBAKH]

DAS RESISTÊNCIAS À
ESCATOLOGIA POLÍTICA:
risos, corpos e narrativas enunciando uma ciência outra
2

POLIFONIA
RISO
CORPOS
NARRATIVAS

OUTRO
HETEROCIÊNCIA
UNICAMP
IDEOLOGIA
GRUBAKH
GRUPO DE ESTUDOS BAKHTINIANOS
[GRUBAKH]

IV ENCONTRO DE ESTUDOS
BAKHTINIANOS
[EEBA]

DAS RESISTÊNCIAS À
ESCATOLOGIA POLÍTICA:
risos, corpos e narrativas enunciando
uma ciência outra

De 16 a 18 de novembro de 2017

Campinas
SP
Copyright © dos autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida ou
arquivada, desde que levados em conta os direitos dos autores.

GRUPO DE ESTUDOS BAKHTINIANOS [GRUBAKH]

IV ENCONTRO DE ESTUDOS BAKHTINIANOS [EEBA]: DAS RESISTÊNCIAS À ESCATOLOGIA POLÍTICA:


risos, corpos e narrativas enunciando uma ciência outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2017.
1433 p.

ISBN 978-85-7993-464-3

1. Mikhail Bakhtin. 2. Corpos. 3. Heterociência. 4. Narrativas. 5. Riso. 6. Organizador. 7. Autores. I.


Título.
CDD 400
Capa e Diagramação: Hélio Pajeú
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito.
Conselho Científico
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral
(UNIR/Brasil) Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa
(UFSCar/Brasil).
SUMÁRIO
COMITÊ CIENTÍFICO ........................................................................................................... 4
ORGANIZAÇÃO .................................................................................................................... 5
HISTÓRICO ........................................................................................................................... 6
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................... 10
EIXOS TEMÁTICOS ........................................................................................................... 12
PROGRAMAÇÃO ................................................................................................................ 14
GRUBAKH ........................................................................................................................... 16
RODAS DE CONVERSA ................................................................................................... 17

SUMÁRIO
COMITÊ CIENTÍFICO
Prof. Dr. Adail Sobral (UCPel)
Prof. Dr. Augusto Ponzio (UB, Itália)
Prof. Dr. Clécio Buzen (UFPE)
Prof.Dr. Carlos Roberto de Carvalho (UFRRJ)
Prof. Dr. Geraldo Tadeu de Souza (UFSCar)
Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado (UNICAMP)
Prof. Dr. Hélio Pajeú (UFPE)
Prof. Dr. Jader Janer Moreira Lopes (UFJF; UFF)
Prof. Dr. João Vianney Cavalcanti Nuto (UNB)
Prof. Dr. José Radamés Benevides de Melo (IF Baiano – Senhor do Confim)
Prof. Dr. Luciano Novaes Vidon (UFES)
Prof. Dr. Luciano Ponzio (Università di Salento – Lecce – Itália)
Prof. Dr. Marcus Vinicius Borges Oliveira (UFBA)
Prof. Dr. Valdemir Miotello (UFSCar)
Profa. Dra. Adriana Stella Pierini (UNIAraras)
Profa. Dra. Adriane Melo De Castro Menezes (UFRR)
Profa. Dra. Aline Manfrim (UNIFRAN)
Profa. Dra. Ana Beatriz Dias (UFFS)
Profa. Dra. Ana Cristina Guarinello (Universidade Tuiuti do Paraná)
Profa. Dra. Ana Paula Berberian Vieira da Silva (Universidade Tuiuti do Paraná)
Profa. Dra. Camila Caracelli Scherma (UFFS)
Profa. Dra. Carmen Lúcia Vidal Pérez (UFF)
Profa. Dra. Cecilia Maria Aldigueri Goulart (UFF)
Profa. Dra. Claudia Roberta Ferreira (Fundação Bradesco)
Profa. Dra. Inez Helena Muniz Garcia (UFF)
Profa. Dra. Liana Arrais Serodio (UNICAMP)
Profa. Dra. Ludmila Thomé de Andrade
Profa. Dra. Magda de Souza Chagas(UFF)
Profa. Dra. Maria Isabel de Moura (UFSCar)
Profa. Dra. Maria Tereza de Assunção Freitas (UFJF)
Profa. Dra. Marina Célia Mendonça (UNESP-Ribeirão Preto)
Profa. Dra. Marisol Barenco de Mello (UFF)
Profa. Dra. Marissol Prezotto (IBFE)
Profa. Dra. Nara Caetano Rodrigues (UFSC)
Profa. Dra. Nelita Bortolotto (UFSC)
Profa. Dra. Patricia Corsino (UFRJ)
Profa. Dra. Patrícia Zaczuk Bassinello (UFMS)
Profa. Dra. Rosa Maria de Souza Brasil (UFPA)
Profa. Dra. Rosana Novaes (UNICAMP)
Profa. Dra. Rosangela Ferreira de Carvalho Borges (UFSCar)
Profa. Dra. Susan Petrilli (UniBa, Itália)

COMITÊ CIENTÍFICO
ORGANIZAÇÃO
COMISSÃO ORGANIZADORA

Prof. Guilherme do Val Toledo Prado


Profa. Heloísa Helena Dias Martins Proença
Prof. Hélio Márcio Pajeú
Profa. Liana Arrais Serodio
Prof. Ruy Braz da Silva Filho
Profa. Vanessa França Simas

COMISSÃO DE APOIO

Profa. Adriana Stella Pierini


Profa. Ana Cristina Libânio
Profa. Andréia da Silva Ubaldo
Prof. Fernando Cardoso da Silva
Prof. Gabriel da Costa Spolaor
Profa. Grace Caroline Buldrin Chautz
Profa. Idelvandre Vilas Boas de Santana Santos
Profa. Luciane Martins Salado
Profa. Márcia Alexandra Leardine
Prof. Marcos Donizetti Forner Leme
Profa. Maria Irma Chahine Gallo
Profa. Marissol Prezotto
Profa. Nara Caetano Rodrigues
Profa. Neiva de Souza Boeno
Profa. Simone Campana
Profa. Viviane Cristina de Mendonça

ORGANIZAÇÃO
HISTÓRICO
O
EEBA faz parte de um movimento iniciado em 2008, com a criação do CÍRCULO – Rodas
de Conversa Bakhtiniana – pelo Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso na
Universidade Federal de São Carlos (GEGe/UFSCar), coordenado pelo professor
Valdemir Miotello, grande responsável pela ampliação dos grupos de estudos bakhtinianos no
Brasil e pelo contato deste com pensadores do exterior. O EEBA tem seu histórico vinculado
aos encontros do CÍRCULO, realizados anualmente de 2008 a 2010 e bienalmente a partir de
2012 na UFSCar . O EEBA inaugura seu trabalho a partir de 2011 e acontece bienalmente, em
sede itinerante, de maneira alternada com o CÍRCULO. Também os encontros do CÍRCULO
passaram a mudar seu endereço desde 2016, tendo a primeira edição fora da cidade de
origem (São Carlos – SP), em Recife e Olinda/Pernambuco.

I CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana aconteceu na Universidade Federal de São


Carlos, de 07 a 09 de novembro de 2008, para Comemoração do Aniversário de Nascimento de
Mikhail Bakhtin e discutiu o(s) Círculo(s) de Bakhtin, seus temas, suas filosofias, suas teorias,
suas preocupações, trazendo à baila a atualidade dos estudos bakhtinianos no Brasil. O sucesso
do I CÍRCULO foi garantido pela participação ativa dos 180 estudiosos, de todos os níveis de
formação, que se inscreveram com o objetivo de discutir variados temas que constituem a
teoria de Bakhtin e do Círculo a partir do ponto de vista singular de cada um. Deste modo, as
rodas foram organizadas com as seguintes temáticas: “Bakhtin e a dialogia”; “Bakhtin e a
ideologia”; “Bakhtin e os gêneros do discurso”; “Bakhtin e a subjetividade”; “Bakhtin e estética”;
“Bakhtin e a autoria e estilo”; “Bakhtin e cultura”; “Bakhtin e o marxismo”; “Bakhtin e
carnavalização”; “Bakhtin e o Círculo de Bakhtin”; “Bakhtin e a educação”; “Bakhtin e o
humanismo”; “Bakhtin e a mídia”; “Bakhtin e os grupos sociais”; “Bakhtin e análise do discurso”.

II CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: “O PENSAMENTO BAKHTINIANO NA


ATUALIDADE” aconteceu de 6 e 8 de novembro de 2009, na UFSCar, e manteve seu formato
semelhante ao de 2008, mas com algumas pequenas alterações ponderadas pela experiência
anterior. A segunda edição teve como subtemas ou provocações para as reflexões coletivas:
“As ideologias contemporâneas com Bakhtin”; “O humano e as subjetividades na
contemporaneidade”; “A educação e dialogia na atualidade”. Em relação à edição anterior, a
inovação se constituiu a partir da produção escrita de todos os participantes do evento,
gerando o Caderno de Textos e Anotações em formato impresso, publicado pela Pedro & João
Editores, com ISBN e disponibilizado para os conversadores.

III CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: "BAKHTIN E A ATIVIDADE ESTÉTICA: NOVOS


CAMINHOS PARA A ÉTICA", em 2010, marca a decisão pelo GEGe de que o evento seria realizado
a cada dois anos e, deste modo, foi criado o Encontro de Estudos Bakhtinianos (EEBA), como evento
itinerante, a ser promovido por outras instituições, acontecendo de modo intercalado com o Círculo –

HISTÓRICO
7

Rodas de Conversa Bakhtiniana (CÍRCULO), contemplando de maneiras outras as pesquisas e


pensamentos do que hoje chamamos de Círculo de Bakhtin e os estudos bakhtinianos da atualidade do
Brasil e do exterior. Na ocasião, o evento contou com a presença dos professores comentadores e
dos professores Augusto Ponzio e Susan Petrilli da Universidade de Estudos de Bari, Itália, para
compor as Grandes Arenas e, a partir de então, se formou um intercâmbio significativo com as
pesquisas da atualidade italiana marcadas por diferentes perspectivas (dentre elas a Semiótica,
Análise do Discurso, Sociolinguística). O tema principal, no intento de ‘intercruzar’ a esfera estética
com a ética, a partir das imagens e da corporeidade que materializam os discursos se traduziu nos
subtemas: “A estética contemporânea sob o signo das imagens” e “A corporeidade e as exigências
estéticas nas relações no contemporâneo”.

I EEBA: “A RESPONSIVIDADE BAKHTINIANA” realizou-se de 4 a 6 de novembro de 2011, na


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), coordenado pela Profa. Maria Teresa de Assunção
Freitas, uma das pioneiras a estudar o pensamento de Mikhail Bakhtin no Brasil, com os textos
produzidos segundo três sub-temas, [que organizam sua] cuja disponibilização foi organizada na
internet por meio de um blog, denominado Textos do I Encontro de Estudos Bakhtinianos – EEBA,
disponíveis em <http://textoseeba.blogspot.com.br/> e divididos segundo os motivos: (1) “Educação
como Resposta Responsável”, (2) “O Contemplador: vivências estéticas e responsividade” e (3)
“Política como Ação Responsiva”.

IV CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: “NOSSO ATO RESPONSÁVEL”, de 15 e 17 de novembro de


2012, já bienal, aconteceu com poucas modificações no que se refere à versão anterior. O foco geral do
evento girou em torno do "Para uma filosofia do Ato responsável”, obra de Bakhtin publicada no Brasil
pela Pedro & João Editores em 2010, que deu o tom às conversas nas 10 Rodas de Conversa e nas três
Arenas Bakhtinianas constituídas pelos 230 inscritos. Essa edição do evento foi pensada para produzir
conversas que se interligassem a partir de um grande tema e dos eixos: "Sujeito contemporâneo no
mundo contemporâneo”; “Mídia como lugar das novas estéticas”; “Ato político como ato responsável”. As
Arenas tomaram forma debaixo de uma Tenda de Circo sob a responsabilidade do Prof. José Kuiava
(UNIOESTE), “LENDO O HOMEM E O MUNDO”; Prof. Leonardo Andrade (UFSCar) “MOENDO A MÍDIA” e Prof.
João Wanderley Geraldi (UNICAMP), “RESPONDENDO POR MIM MESMO”.

II EEBA: “VIDA, CULTURA E ALTERIDADE”, em 2013, [reuniu] desenvolveu sua temática em três eixos,
“A vida e as esferas culturais”; “Cultura e alteridade”; “Linguagem, educação e ética”. Foi organizado,
em conjunto, pelo Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEBAKH), coordenado pelo Prof. Luciano Novaes
Vidon, do Programa de Pós-Graduação em Linguística, e pelo NEPALES (Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Alfabetização, Leitura e Escrita), coordenado pela Profa. Cláudia Gontijo, do Programa de Pós-
Graduação em Educação, ambos da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). São as áreas de

HISTÓRICO
8

Linguagem e Educação em diálogo com o pensamento de Bakhtin e seu Círculo dentro do atual círculo
bakhtiniano que se formam nessa sequência de eventos. Os cadernos gerados na produção dos textos
dos inscritos estão disponíveis em <https://2eeba.wordpress.com/cadernos-do-ii-eeba/>.

V CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: “PRAÇA PÚBLICA. MULTIDÃO. REVOLUÇÃO. UTOPIA”, de


13 a 15 de novembro de 2014, aconteceu em São Carlos e reuniu 200 conversadores. Com o tema
central se quis aprofundar a compreensão dos trabalhos bakhtinianos: “Estética da Criação Verbal”,
“Marxismo e filosofia da linguagem”, sobretudo, “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento
– o contexto de François Rabelais” e “A construção da Enunciação e outros ensaios”. A estrutura
seguiu a dos anos anteriores, com três Arenas e três sessões de Rodas de Conversa.

III EEBA: “AMORIZAÇÃO: PORQUE FALAR DE AMOR É UM ATO REVOLUCIONÁRIO”, de 16 a 18 de


novembro de 2015, foi realizado pelo Grupo ATOS, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói,
Campus do Gragoatá. O encontro com os convidados foi disparador para o encontro nas Rodas de
Conversas com retomada das discussões nos encontros seguintes. Em forma de Arena, o primeiro
encontro foi com os professores Augusto Ponzio (UNIBA-Itália) e Wanderley Geraldi (UNICAMP) com o
tema “Amorização”; o segundo, também em Arena, com a profa. Susan Petrilli (UNIBA-Itália) e o prof.
Luciano Ponzio (UNISA-Lecce) com o tema “Da prosa da vida e da responsabilidade na arte”; Valdemir
Miotello (UFSCar) e Geraldo Tadeu Souza (UFSCar) com o tema “Amorização e as festas de
renovação”; prof. Guilherme do Val Toledo Prado (UNICAMP) e a profa. Nara Caetano Rodrigues (UFSC),
“Heterociência, uma ciência outra”. Depois das apresentações dos convidados, dividiram-se os
participantes em oito grupos que trataram o mesmo tema simultaneamente, cada um com ao menos
dois comentadores para tratar sobre o tema central e seus desdobramentos na cultura, na vida e no
conhecimento. Ao todo foram Quatro Encontros Dialógicos. O caderno de textos está disponível em:
http://eeba.qlix.com.br/ebook.html

VI CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: “LITERATURA, CIDADE E CULTURA POPULAR”, de 07 a


09 de novembro de 2016, em Pernambuco e Olinda, no Centro de Artes e Comunicação da
Universidade Federal de Pernambuco. Essa edição foi carinhosamente organizada pelo Laboratório de
Investigações Bakhtinianas Relacionadas à Cultura e Informação (LIBRE-CI/DCI/UFPE) em parceria
com o Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe/DL/UFSCar). Como de costume, as
conversas das Rodas e Arenas giraram em torno de um tema central esmiuçado nos seguintes eixos:
“A literatura na estética do cotidiano”; “O orbe estético como materialização da ética”; A cidade como
lugar de constituição dos atos dialógicos; “Os espaços públicos na produção de sentidos e lutas
ideológicas”; “As festas populares de renovação da vida”; “A cultura popular singularizada na
concretude do existir”. Todos os textos dos inscritos, de todos os CÍRCULOS, podem ser encontrados
reunidos em: <http://rodas2016.wixsite.com/rodas/edicoes-anteriores>. Nessa edição, o aspecto

HISTÓRICO
9

inovador, em relação às demais, é que foi promovido o I LITERO-RODAS, um concurso literário em


forma de poesias, contos e crônicas

HISTÓRICO
APRESENTAÇÃO
O
Grupo de Estudos Bakhtinianos (GRUBAKH), da Faculdade de Educação da UNICAMP, tem o
prazer de receber os participantes do IV EEBA – Encontro de Estudos Bakhtinianos – “Das
resistências à escatologia política: risos, corpos e narrativas enunciando uma ciência
outra”.
O EEBA, criado em 2010, chega em sua quarta edição, reafirmando a intenção de
proporcionar um encontro que promova a ampliação de conhecimentos dos estudos dos
filósofos do chamado Círculo de Bakhtin, contribuindo com a atualização das pesquisas
brasileiras e de convidados estrangeiros. O EEBA tem se fortalecido a cada encontro com a
participação de pesquisadores e profissionais de diversas áreas desde a organização à sua
efetivação.
Este evento faz parte de um movimento iniciado em 2008, com a criação do CÍRCULO –
Rodas de Conversa Bakhtiniana – pelo Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso na
Universidade Federal de São Carlos (GEGe/UFSCar), coordenado pelo professor Valdemir
Miotello, grande responsável pela ampliação dos grupos de estudos bakhtinianos no Brasil e
pelo contato deste com pensadores do exterior. O EEBA tem seu histórico vinculado aos
encontros do CÍRCULO, realizados anualmente de 2008 a 2010 e bienalmente a partir de 2012
na UFSCar . O EEBA inaugura seu trabalho a partir de 2011 e acontece bienalmente, com sede
itinerante, de maneira alternada com o CÍRCULO. Também os CÍRCULOs passaram a mudar seu
endereço desde 2016, tendo a primeira edição fora da cidade de origem (São Carlos – SP), em
Recife e Olinda/Pernambuco.

OBJETIVO

O objetivo geral do IV EEBA é reunir pesquisadores de diferentes partes do Brasil e


convidados do exterior para a reflexão em torno do tema “Das resistências à escatologia
política: risos, corpos e narrativas enunciando uma ciência outra”. Para tanto, o GRUBAKH
convida os pesquisadores, curiosos e interessados no pensamento bakhtiniano para
apresentarem suas provocações e contrapalavras nos Encontros Dialógicos, nas Arenas
Polifônicas e nas Rodas de Conversa Bakhtiniana, que constituirão a estrutura do evento.

APRESENTAÇÃO
11

TEMA

As atividades que circunscreverão o IV EEBA 2017 serão em torno do tema “Resistências à


escatologia política: narrativas, corpos e risos enunciando uma ciência outra”.
Acontecimentos diversos têm gerado muita desilusão com a política que se pratica em nosso
país e ampliado a resistência contra o próprio exercício político, como ato ético de homens públicos.
No entanto, cada escolha que envolve outros é política. Quem está na academia é um agente político.
A/O profissional da educação também, circunscrito temporária e espacialmente à sala de aula, com
seus estudantes, seus colegas, sua escola, a comunidade das famílias dos seus estudantes.
Propomos pensar e produzir textos sobre algumas formas de resistir à escatologia política de
uma época em mudança, evitando que o exercício político seja interpretado em dois sentidos
igualmente perigosos: como “juízo final”e como algo a se repudiar, um dejeto. Tomamos as
manifestações humanas narrativas, corporais ou risíveis como formas de resistência à escatologia
política a fim de evitar o esvaziamento do interesse político da sociedade, além de serem modos que
enunciam uma outra ciência, uma ciência do singular, de caráter heterocientífico. Propõe-se um
evento em que o pensamento científico nas ciências humanas se produza em relação com os sujeitos
dialógicos, constituindo também reflexões que se materializarão em dissertações, teses, artigos e
livros, além de, como produto do evento, anais publicado em forma de e-book.

APRESENTAÇÃO
EIXOS TEMÁTICOS
12

CORPOS

N
esse eixo, a ideia é tratar especialmente da produção da atividade estética, com a
metáfora dos corpos sensíveis, que põem e expõem seus conhecimentos e valorações na
produção e na reprodução de si enquanto ato responsivo/responsável nos mundos da
vida e da cultura. Tratar da possibilidade de produção objetiva que caracteriza a atividade
estética em geral, na cultura popular das modas, das tatuagens, das tribos, dos corpos
expostos na internet em redes sociais, do grotesco dos corpos transformados ou em
transformação na vida, no cinema de ficção, na literatura, na música, nas práticas corporais,
nos movimentos Hip-hop, nos grafites, nas danças, nas percussões corporais, enfim,
corpos/gestos/atos que, em diferentes contextos, no exercício do excedente de visão, na
relação estética eu-outro, são marcados e atravessados por diversos sentidos que constituem
suas gestualidades, corporeidades e, em ato, respondem, resistem, transgridem e dialogam
com outros corpos, outras gestualidades, outros mundos.

HETEROCIÊNCIA

O
s objetos dos três eixos anteriores são vivências expressas e objetivações exteriores
que organizam e dão forma a elas definindo sua orientação. A lingüística, como campo
específico que estuda a linguagem verbal descreve o verbal mediante o verbal, porém,
também os signos não verbais podem ser descritos em signos verbais ou não verbais. Assim,
corpos, risos, narrativas são propostos como enunciados concretos com leis específicas e que
tocam milhares de linhas dialógicas vivas envoltas em consciências socioideológicas,
necessitando de uma outra ciência, como orienta Bakhtin. Nesse eixo, propõe-se fazer dessas
três formas vivenciadas de expressão – e tantas outras quanto couberem – materialidade
e/ou percurso para produção de conhecimentos, na medida em que percorrer ou transitar
por elas pode possibilitar o reconhecimento dos contextos e das relações para estudar o
mundo da vida, onde, com os outros, se produz cultura (Ciências, Filosofia, Artes,
Cotidianidades). A produção de sentidos, conhecimentos e Ciências não depende
exclusivamente da reprodutibilidade, não depende da enunciação de sujeitos que tentam em
vão se ausentar, nem das tentativas sempre frustradas e frustrantes – isso quando não
deliberadamente hipócritas – de insistir num pensamento que se espraia somente dentro de
um objetivismo abstrato ou de um subjetivismo idealista. Uma nascente heterociência pode ser
encarada como o ativismo do cognoscente e do cognoscível, a vontade de abraçar os
conhecimentos de modo conscientemente subjetivo, porém essencialmente alteritário, dinâmico e
sempre a se completar de possibilidades axiológicas e semânticas, na construção de pravdas e
questionando as istinas.

EIXOS TEMÁTICOS
13

NARRATIVAS

N
esse eixo, a ideia é trabalhar o estudo de narrativas produzidas nas relações que estabelecemos
com os outros e com o mundo cultural, assim como sua importância como fonte e como meio de
produção de conhecimento. Um exemplo forte – mas nem de longe o único exemplo ou a única
possibilidade –, que cada vez mais ganha força em alguns estudos é o fato das produções narrativas
possibilitarem a inserção dos narradores no campo da filosofia da linguagem bakhtiniana. Essa
inserção é possível porque as narrativas se tornam um ato responsivo de cada sujeito em interação
com os outros e também com outras e novas teorias, que passam a ser compreendidas e fazer
sentidos na vida dos narradores. Além disso, ao narrar – pensando nos aspectos da
alteridade/interação e da continuidade, quiçá a experiência – percebe-se a possibilidade do narrador
se colocar num lugar exotópico, dando acabamento estético provisório ao vivido e vislumbrando
horizontes de possibilidades no presente orientadas pelas memórias de futuro. Diante disso, nesse
eixo, as narrativas serão postas em diálogo com as obras bakhtinianas que estudam mais
especificamente a linguagem, mas também o ato responsável/responsivo.

RISO

N
esse eixo, se propõe estudar o aspecto ético do ridículo, do grotesco, do irônico, do risível com
o outro, como forma de resistência às culturas dominantes. A transformação do que é caro e
estimado em algo que provoca o riso é por si um ato ético. Apesar da indústria cultural tentar
impor padrões, ressurgem algumas manifestações populares – como o carnaval de rua em
contraposição aos carnavais televisionados. Da mesma forma, o humor ganha força, não só como
alívio cômico às tensões do dia a dia do mundo da vida, mas também como crítica social. E, se a crítica
não vem pelo riso, vem por sua antítese complementar: o drama. A força do riso e do drama – atos
expressivos da nossa subjetividade e da nossa alteridade – dão forma à resistência contra a
institucionalidade e contra o poder monopolizante, assim como à diversidade de apropriação e
manifestação de conhecimento. É importante estudar também como novas mídias tecnológicas
desempenham o seu papel na difusão e na democratização desses atos risíveis-responsivos.

EIXOS TEMÁTICOS
PROGRAMAÇÃO
14

16/11/2017 | QUINTA-FEIRA

9h – 10h30 CREDENCIAMENTO ADunicamp

ESPETÁCULO: WWW para Freedom


Auditório da
10h30 – 11h30 Direção, Atuação e Concepção: Esio Magalhães
ADunicamp
Dramaturgia: Esio Magalhães e Tiche Vianna
Produção: Barracão Teatro
Auditório da
11h30 – 13h ABERTURA
ADunicamp

13h-14h30 ALMOÇO

1 ARENA:RISO
Salão Nobre
14h30 -16h Valdemir Miotello (UFScar) Faculdade de
Augusto Ponzio (UNIBA Itália) Educação/UNICAMP

16h CAFÉ

Salas Diversas
16h30 – 18h30 I RODA DE CONVERSA: RISO Faculdade de
Educação/UNICAMP

19h – 22h LANÇAMENTO DE LIVROS E SARAU DO EEBA Bar do Manoel

17/11/2017 | SEXTA-FEIRA
II ARENA: NARRATIVAS
Salão Nobre
9h-10h30 Luciano Ponzio (UniSal-Lecce-Italia) Faculdade de
Liana Arrais Serodio (UNICAMP) Educação/UNICAMP

10h30 CAFÉ

Salas Diversas
11h-13h II RODA DE CONVERSA: NARRATIVAS Faculdade de
Educação/UNICAMP

13h-14h30 ALMOÇO

PROGRAMAÇÃO
15

III ARENA: CORPOS


Salão Nobre
14h30-16h Faculdade de
Hélio Pajeú (UFPE)
Educação/UNICAMP
Katia Vanessa SIlvestri (UNIAraras)

16h CAFÉ Hall do Salão Nobre

16h30-18h30 III RODA DE CONVERSA: CORPOS

APRESENTAÇÃO CULTURAL Gramado do Anexo


18h30 – 19h30 Faculdade de
Bateria Alcalina Educação/UNICAMP

18/11/2017 | SÁBADO

IV ARENA: HETEROCIÊNCIA Salão Nobre


9h-10h30 Faculdade de
Adail Sobral (UCPel) Educação/UNICAMP
Guilherme Prado (UNICAMP)

10h30 CAFÉ Hall do Salão Nobre

Salas Diversas
11h-13h IV RODA DE CONVERSA: HETEROCIÊNCIA Faculdade de
Educação/UNICAMP

13h – 14h30 ALMOÇO

ENCERRAMENTO
Salão Nobre
Bakhtinian@s: próximo EEBA?
14h30 – 16h30 Faculdade de
e
Educação/UNICAMP
Uma novidade!!!!

PROGRAMAÇÃO
GRUBAKH
16

O
GRUBAKH (Grupo de Estudos Bakhtinianos), subgrupo do GEPEC (Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação Continuada) da Faculdade de Educação (FE), Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP) é o anfitrião do IV EEBA.
Temos imenso prazer em receber os participantes do IV EEBA – Encontro de Estudos
Bakhtinianos – “DAS RESISTÊNCIAS À ESCATOLOGIA POLÍTICA: RISOS, CORPOS E NARRATIVAS
ENUNCIANDO UMA CIÊNCIA OUTRA”.
Para que todos os participantes do IV EEBA possam saber um pouquinho de nós,
apresentamo-nos como professoras e professores atuando em diversas funções na Educação
e tomamos de nossas experiências da práxis pedagógica para produzir narrativas pedagógicas
(e as Pipocas Pedagógicas - gênero discursivo criado no GEPEC), como uma forma responsiva
de escutar os estudantes e como sua materialidade estética (que sabemos ser também
cognitiva ou epistemológica e ética) que funciona também como dado de pesquisa para as
investigações acadêmicas, mas não só, pois assumimos as narrativas também como
instrumento de formação, modo de raciocínio, como acontecimento.
Esta nossa escolha é responsiva, porém o que consideramos mais importante ressaltar nesse
momento é que, ao possibilitar aos professores uma exotopia necessária para a produção de
excedentes de visão de si com os outros e de outros consigo, as narrativas tomam do
cotidiano escolar verdades pravdas que dão a eles outra versão da verdade dita istina pelos
meios de comunicação.
Nossa produção narrativa, como instrumento de formação e de produção de
conhecimento heterocientífico, assume maior relevo neste momento em que “a política” está
na berlinda, como vilã das relações sociais, devido à luta desproporcional pela manutenção do
poder nas mãos daqueles que o detêm, criando conflitos conceituais até sobre ações
democráticas mais básicas.
Para a escolha desta temática, nos mobilizaram o reconhecimento do tema do III EEBA
– Amorização: porque falar de amor é um ato revolucionário, para a produção de
conhecimentos na escola, levando em conta a relação afetiva entre professores, seus
estudantes, especialmente como tratada em “Amorizando a pesquisa e construindo uma
heterociência” e o forte impacto do VI CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: Literatura,
Cidade e Cultura Popular e seu alinhamento com a obra de Bakhtin sobre o contexto de
Rabelais dentro da cultura popular do Renascimento e da Idade Média, em relação ao contexto
sócio-político-cultural brasileiro.

CONTATO: grubakh.gepec@gmail.com

GRUBAKH
RODAS DE CONVERSA 17

corpos ......................................................................................................................................... 30

CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E PROFESSORES INICIANTES: experiências de corpos em movimento ........................................................... 31


ARAGÃO, Janaina de Sousa ........................................................................................................................ 31
O CORPO GROTESCO E O CORPO DEFICIENTE: análise das distinções ............................................................................................ 37
BENTES, José Anchieta de Oliveira ............................................................................................................... 37
SOUZA-BENTES, Rita de Nazareth ................................................................................................................. 37
IMAGENS INTERCORPÓREAS EM “ÁGUA VIVA”, DE CLARICE LISPECTOR ........................................................................................... 44
BOENO, Neiva de Souza ............................................................................................................................. 44
ESPELHOS HUMANOS: a relação constitutiva entre os corpos dos grandes professores e os corpos dos pequenos bebês .......................... 57

BRAZ, Ruy ............................................................................................................................................. 57


SALADO, Luciane Martins ........................................................................................................................... 57
O RAP COMO PROTESTO? ANÁLISE DO “RAP REAÇA”, DE LUIZ, O VISITANTE ..................................................................................... 67

CAMPOS-TOSCANO, Ana Lúcia Furquim .......................................................................................................... 67


POESIA SLAM: voz e resistência........................................................................................................................................ 74
CASADO ALVES, Maria da Penha ................................................................................................................... 74
CORPO, FERIDO E INACABADO NA OBRA DE FRIDA KAHLO .......................................................................................................... 82
CHAGAS, Keyrla Krys Nascimento ................................................................................................................ 82
A PARTICIPAÇÃO DOS PROFESSORES E DOS JOVENS ESTUDANTES CONTRA A PEC 241/2016: uma “necessitância” de outros mundos e de outros
corpos ...................................................................................................................................................................... 87
COSTA, Deane Monteiro Vieira..................................................................................................................... 87
CORPOS: cronotopos em cotejos com uma filosofia da sensibilidade e da somaestética ................................................................... 93
COUBE, Roberta Jardim ............................................................................................................................ 93
MOVIMENTOS DE ENUNCIAÇÃO: por uma escuta do corpo da criança ......................................................................................... 101

DUARTE, Angélica .................................................................................................................................. 101


A NATUREZA BAKHTINIANA DA LITERATURA DE HILDA HILST: ou por um mundo mais bufólico! ............................................................ 106
GOMES, Francisco Alves .......................................................................................................................... 106
A RESSIGNIFICAÇÃO DA SURDEZ A PARTIR DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM NA CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA .............................................. 113
GUARINELLO, Ana Cristina ........................................................................................................................ 113
MYSTERIEUX – “SOU GAY, SOU DRAG, SOU BONITA, BEBÊ!”: a tentativa de ocultação do corpo homossexual nas relações escolares ............ 119
LEME, Marcos Donizetti Forner .................................................................................................................. 119

RODAS DE CONVERSA
18

A POBREZA EM CRONOTOPO ........................................................................................................................................... 127


MELLO, Marisol Barenco de ...................................................................................................................... 127
TATUAGEM COMO RESISTÊNCIA NAS PRÁTICAS DOCENTES ....................................................................................................... 138
MOTA, Luciana Lima da............................................................................................................................ 138
CORPO GROTESCO, CORPO POLÍTICO ................................................................................................................................ 144
NUTO, João Vianney Cavalcanti ................................................................................................................. 144
A REPRESENTAÇÃO DO CORPO NA PORNOCHANCHADA: uma análise dialógica de cartazes cinematográficos ......................................... 151

OLIVEIRA, Gilvando Alves de...................................................................................................................... 151


AS DORES DE FRIDA: hipérboles do corpo em um autorretrato ................................................................................................ 160
Oliveira, William Brenno dos Santos ........................................................................................................... 160
ENTRE O DEVER E O DEVIR: questões de escrita na perspectiva da filosofia do ato em três cenas que se completam .............................. 168
PEREIRA JÚNIOR, Tovar Nelson .................................................................................................................. 168
CACILDA .................................................................................................................................................................. 174
RODRIGUES, Rajnia de Vito Nunes............................................................................................................... 174
RODRIGUES, Giulia de Vito Nunes ............................................................................................................... 174
UMA LEITURA DA OBRA O MENINO DE VESTIDO ..................................................................................................................... 179
SANDIM, Rosiane Gonçalves dos Santos ...................................................................................................... 179
CAMARGOS, Moacir Lopes de .................................................................................................................... 179
O CORPO VALORADO EM LA MAJORITÉ OPPRIMÉE: semioses e embates ideológicos ........................................................................ 183
SANTANA, Bárbara Melissa....................................................................................................................... 183
O CABELO COMO SIGNO IDEOLÓGICO: uma leitura a partir da teoria da enunciação bakhtiniana ......................................................... 195
SILVA, Andréia Cristina Attanazio ............................................................................................................... 195
O JONGO NA EDUCAÇÃO FÍSICA: diálogo, ressignificação e resistência nos corpos em movimento ..................................................... 204
SILVA, Carolina Gonçalves da.................................................................................................................... 204
SILVA, Taynara Spulverato da ................................................................................................................... 204
A DESCOBERTA DA SEXUALIDADE: a homoafetividade nos romances ya ...................................................................................... 216

SILVA, Juan dos Santos........................................................................................................................... 216


ALVES, Maria da Penha Casado.................................................................................................................. 216
POR QUE ESCREVER, PROFESSOR?: reflexões acerca da produção de conhecimentos nas aulas de educação física ................................ 227
SPOLAOR, Gabriel da Costa ...................................................................................................................... 227
HETERODISCURSO EM ANÚNCIO: forças centrípetas e centrífugas em tensão na publicidade celebrativa ............................................. 240
VIEIRA, Tacicleide Dantas......................................................................................................................... 240
O POLÍTICO DO CORPO DE FRIDA KAHLO: um estudo dialógico. .................................................................................................. 249
WILLERS, Fernanda Franz ........................................................................................................................ 249

RODAS DE CONVERSA
19

heterociência .................................................................................................. 256

PESQUISADORA INICIANTE DEDICANDO A VIDA À ARTE E AO CONHECIMENTO.................................................................................. 257


AGUIAR, Jullie Belmonte de ...................................................................................................................... 257
A ENTRADA DO CONCEITO DE GÊNEROS DISCURSIVOS NO BRASIL: das normatizações às práticas pedagógicas ...................................... 263
BATISTA, Gilka Fornazari ......................................................................................................................... 263
FORMAÇÃO ÉTICA: produções de conhecimentos na convivência escolar .................................................................................... 276
Cardoso, Fernando ................................................................................................................................ 276
Serodio, Liana Arrais ............................................................................................................................. 276
EM BUSCA DE UMA HETEROCIÊNCIA: ética, estética e epistemologia numa perspectiva bakhtiniana das ciências humanas ........................ 287

CARVALHO, Carlos Roberto de .................................................................................................................. 287


MOTTA, Flávia Miller Naethe ...................................................................................................................... 287
UM CRONOTOPO ARTÍSTICO: por um mundo onde os muros tenham a altura de (pelo menos) duas andorinhas ...................................... 293

CONCENCIO, Márcia de Souza Menezes ........................................................................................................ 293


O GÊNERO SAMBA-EXALTAÇÃONA PERSPECTIVA BAKTINIANA .................................................................................................... 300
COSTA, Flávia Ferreira Lopes da ............................................................................................................... 300
DANTAS, Anne Michelle de Araújo .............................................................................................................. 300
FARIA, Marília Varella Bezerra de ............................................................................................................... 300
A PESQUISA DOCUMENTAL COMO ATO RESPONSÁVEL E RESPONSIVO .......................................................................................... 310
DIAS, Fabricia Pereira de Oliveira .............................................................................................................. 310
ENDLICH, Ana Paula Rocha ....................................................................................................................... 310
O ENUNCIADO COMO RECONHECIMENTO DO SER ................................................................................................................... 316
DINIZ, Magda Renata Marques ................................................................................................................... 316
MELO JÚNIOR, Orison Marden Bandeira de.................................................................................................... 316
OS EFEITOS DE SENTIDOS DA ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA NAS PRÁTICAS DE ENSINO DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS INICIANTES............. 322
ESTANISLAU, Daniele Aparecida Biondo........................................................................................................ 322
CRISTOFOLETI, Rita de Cassia ................................................................................................................... 322
AUTOR, OBRA, LEITOR E TRADUTOR: Mikhail Bakhtin e o processo de tradução de O Retábulo de Santa Joana Carolina, de Osman Lins ......... 330
FERREIRA, Cacio José ............................................................................................................................. 330
A AUDIODESCRIÇÃO COMO TRANSMISSÃO DE UM ENUNCIADO VISUAL INTERNAMENTE PERSUASIVO ...................................................... 340
GARCIA, D’aville Henrique Viana ................................................................................................................. 340
ALVES, Jefferson Fernandes..................................................................................................................... 340
LINGUAGEM E HETEROCIÊNCIA: uma janela aberta para a ideologia do cotidiano ............................................................................ 352
GIOVANI, Fabiana ................................................................................................................................... 352

RODAS DE CONVERSA
20

AS RELAÇÕES DIALÓGICAS NA CAPA DE REVISTA: a (com)posição dos elementos verbo-visuais na construção de sentido ......................... 361
HOLANDA, Maria Fabiana Medeiros de ......................................................................................................... 361
O DECOLONIALISMO ATRAVÉS DAS LINGUAGENS: discursos de reflexão ...................................................................................... 376
JANJÁCOMO, Caroline............................................................................................................................. 376
MORAES, Flávio Henrique ......................................................................................................................... 376
SANTOS, Tábita ..................................................................................................................................... 376
O PROFESSOR AUTOR: planos de trabalho e de aula .............................................................................................................. 385
LEMES, Mariana Martins .......................................................................................................................... 385
COTIDIANO ESCOLAR: meu campo de batalha ...................................................................................................................... 394
LIBÂNIO, Ana Cristina ............................................................................................................................. 394
SERODIO, Liana Arrais ............................................................................................................................ 394
A RELAÇÃO DIALÓGICA ENTRE O DISCURSO RELIGIOSO E A FORMAÇÃO TEÓRICA, IDEOLÓGICA E INDENITÁRIA DO FEMINISMO ISLÂMICO ............ 401
LIMA, Clarice da Conceição Monteiro de ....................................................................................................... 401
ARCHANJO, Renata ............................................................................................................................... 401
E-MAIL PEDAGÓGICOS: narrativas de re(existências) e insistências .......................................................................................... 409
Lucio, Elizabeth Orofino........................................................................................................................... 409
MOTTA, Flávia ....................................................................................................................................... 409
AZEVEDO, Patrícia Bastos de .................................................................................................................... 409
DIÁLOGOS COM E NA INFÂNCIA........................................................................................................................................ 419
MELLO, Marisol Barenco de ...................................................................................................................... 419
A EDUCAÇÃO COMO TERRITÓRIO DA ALTERIDADE .................................................................................................................. 427

MIRANDA, Maria Eliza .............................................................................................................................. 427


TRANSMODERNIDADE E A HETEROCIÊNCIA BAKHTINIANA NO CAMINHO DA DECOLONIALIDADE .............................................................. 444

MORAES, Flávio Henrique ......................................................................................................................... 444


REFLEXÕES SOBRE O DIÁLOGO COM E NA INFÂNCIA ............................................................................................................... 455
OLIVEIRA, Marcus Vinicius Borges .............................................................................................................. 455
BAKHTIN EM MATERIALIDADES OUTRAS: a entoação avaliativa nas produções dos fãs do seriado Sherlock ........................................... 459
PAGLIONE, Marcela Barchi ....................................................................................................................... 459
O POST NOSSO DE CADA DIA: uma análise dos enunciados concretos nas fanpages verdade sem manipulação e movimento Endireita Brasil . 467
PAZ, Morgana Lobão dos Santos ................................................................................................................ 467
O DISCURSO DO OUTRO: a ideologia do sujeito autor e heterodiscurso ...................................................................................... 476
PENHA, Dalva Teixeira da Silva .................................................................................................................. 476
PIRAJUY: experiência e escrita bakhtiniana ....................................................................................................................... 484
RODRIGUES, Giulia de Vito Nunes ............................................................................................................... 484
RODRIGUES, Rajnia de Vito Nunes............................................................................................................... 484

RODAS DE CONVERSA
21

O ATO RESPONSÁVEL DE SER PROFESSORA NO PROFLETRAS .................................................................................................... 492


RODRIGUES, Nara Caetano ....................................................................................................................... 492
REFLEXÕES PARA UMA CIÊNCIA DA SINGULARIDADE............................................................................................................... 500
SANTOS, Andréa Pessôa dos..................................................................................................................... 500
QUESTÕES METODOLÓGICAS NA PESQUISA EM CIÊNCIAS HUMANAS: interlocuções entre Bakhtin e Vygotsky .......................................... 507
SCHADEN, Érica Mancuso......................................................................................................................... 507
OMETTO, Cláudia Beatriz de Castro Nascimento ............................................................................................. 507
AMERICAN WAY OF LIFE: o homodiscurso da vida americana no Young Adult ................................................................................ 513

SILVA, Juan dos Santos........................................................................................................................... 513


CALEIDOSCÓPIO DE MIM: ciência-arte-vida ........................................................................................................................ 524
SILVA, Maria Leticia Miranda Barbosa da ..................................................................................................... 524
DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE MARÍA ZAMBRANO E MIKHAIL BAKHTIN NA BUSCA POR UMA CIÊNCIA OUTRA ............................................... 532
SIMAS, Vanessa França ........................................................................................................................... 532
“SOLO LE PIDO A DIOS”: a enunciação tonitruante do discurso de militância na canção de León Gieco ................................................ 537
SOUZA, Nathan Bastos de ........................................................................................................................ 537
A ESCUTA COMO LUGAR DE FAZER CIÊNCIA ......................................................................................................................... 548

SOUZA, Nathan Bastos de ........................................................................................................................ 548


O PROCESSO DE PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM CRIANÇAS QUE FORAM APROVADAS NOS ANOS ESCOLARES, MAS NÃO APRENDERAM A LER E
ESCREVER ................................................................................................................................................................ 554
STEFANI, Mônika Menezes da Costa............................................................................................................. 554
CRISTOFOLETI, Rita de Cassia ................................................................................................................... 554
UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE AS IMBRICAÇÕES ENTRE ALGUMAS NOÇÕES DA TEORIA BAKHTINIANA E A NOÇÃO DE LINGUÍSTICA APLICADA NA
CONTEMPORANEIDADE ................................................................................................................................................. 561
XAVIER, Manuelly Vitória de Souza Freire ..................................................................................................... 561
LIMA, Clarice da Conceiçao Monteiro de ....................................................................................................... 561
NOVAES, Tatiani Daiana de ....................................................................................................................... 561

narrativas ................................................................................................................... 567

EDUCAÇÃO NA CIDADE E HUMANIDADES: diálogos possíveis com Bakhtin..................................................................................... 567


ADÃO, Alessandra Barbosa ...................................................................................................................... 568
CÔCO, Dilza ......................................................................................................................................... 568

RODAS DE CONVERSA
22

RELATO DE EXPERIÊNCIA: Elza Soares e Bakhtin no meio acadêmico .......................................................................................... 576


ADÃO, Alessandra Barbosa ...................................................................................................................... 576
SANTOS, Mariana Dionizio dos ................................................................................................................... 576
EM DIÁLOGO COM AS NOVAS GERAÇÕES: adolescentes e suas vivências na cibercultura ................................................................. 583
ALMEIDA JÚNIOR, Sebastião Gomes de ........................................................................................................ 583
O MERGULHO EM BAKHTIN: uma experiência epidérmica e científica no processo de autoconsciência ................................................. 599
ALMEIDA, Cleuma Maria Chaves de ............................................................................................................. 599
SENSUALIDADE VAMPIRESCA EM UMA CIDADE CHAMADA FORKS: um olhar sobre a construção erótica da personagem bella na fanfiction bloody
lips ........................................................................................................................................................................ 605
ANDRADE, Jandara Assis de Oliveira ........................................................................................................... 605
NEM SÓ DE LIVROS VIVE O CÉREBRO DO TRIO DE OURO: o florescer erótico de uma jovem bruxa na fanfiction sangue negro ..................... 614
Jandara Assis de Oliveira ANDRADE............................................................................................................ 614
CONSTRUINDO DIÁLOGOS, COMPARTILHANDO SENTIDOS: uma experiência com familiares de crianças das camadas populares .................. 624
ARAÚJO, Mairce da Silva ......................................................................................................................... 624
PESSANHA, Fabiana................................................................................................................................ 624
SALAS DE LEITURA: de como o professor se narra ............................................................................................................... 631
BAPTISTA, Karen César ........................................................................................................................... 631
FADEL, Tatiana ...................................................................................................................................... 631
MOANA, A NÃO-PRINCESA: a nova identidade feminina na disney .............................................................................................. 645
BARROS, Maria Amália Rocha Sátiro de ....................................................................................................... 645
FARIA, Marilia Varella Bezerra de ............................................................................................................... 645
O PROFESSOR E A PESQUISA: narrativas em busca de fundamentos para a prática docente ............................................................ 655

BATISTA, Angélica de Jesus ...................................................................................................................... 655


O FILHO É DA MÃE?: a maternidade e os não-lugares da mulher ............................................................................................... 669
BARBOSA, Priscilla BEZERRA ..................................................................................................................... 669
ROHEM, Clara ....................................................................................................................................... 669
POESIA COMO ATO RESPONSÁVEL DO HOMEM QUE AMA: diálogos com o filme Paterson, de Jim Jarmusch ............................................ 684
BORDE, Patrícia do Amaral....................................................................................................................... 684
SCHADE, Robert .................................................................................................................................... 684
BEBÊ FAZ ISSO !? ....................................................................................................................................................... 691
CAMPANA, Simone Ap. Ferreira ................................................................................................................. 691
HISTÓRIA, NARRATIVA, MEMÓRIA: a enunciação da enunciação como prática dialógica de resistência ................................................. 694
CAMPOS, Edson Nascimento ..................................................................................................................... 694
TIMÓTEO, Herbert de Oliveira .................................................................................................................... 694
DINIZ FILHO, Mariano Alves ....................................................................................................................... 694

RODAS DE CONVERSA
23

A POLIFONIA BAKHTINIANA NA CRÔNICA MUSICAL DE CHICO BUARQUE: ressonâncias na leitura literária .............................................. 712
CARVALHO, Letícia Queiroz de ................................................................................................................... 712
PITTA, Rodrigo Gonçalves Dias .................................................................................................................. 712
MOYOYÁ .................................................................................................................................................................. 723
CARVALHO, Miza .................................................................................................................................... 723
DISCURSO E LINGUAGEM EM MULHER NO ESPELHO ................................................................................................................ 732
CHAMPLONI, Hiolene de Jesus M. O. ............................................................................................................ 732
NARRATIVA E METANARRATIVA: no fio da conversa, um horizonte de possibilidades........................................................................ 741
Chautz, Grace Caroline Chaves Buldrin........................................................................................................ 741
O GÊNERO ENTREVISTA COMO ESTRATÉGIA DE ESTUDO SOBRE A CIDADE E SUAS RELAÇÕES COM A EDUCAÇÃO......................................... 747
CÔCO, Dilza ......................................................................................................................................... 747
SANTOS, Mariana Dionizio dos ................................................................................................................... 747
LEITE, Priscila de Souza Chisté .................................................................................................................. 747
A POSSIBILIDADE DA EMERGÊNCIA DA ALTERIDADE NA ADOLESCÊNCIA ........................................................................................ 756
FERES, Luiza Grieco ............................................................................................................................... 756
RODAS DE CONVERSA COM PROFESSORES: a escuta de si e do outro ......................................................................................... 759

FERREIRA, Luciana Haddad ....................................................................................................................... 759


ENSAIO SOBRE O COTIDIANO ESCOLAR E A CRISE DO ATO NO FAZER DO EDUCADOR ......................................................................... 767
Ferreira, Sandro de Santana .................................................................................................................... 767
UMA BRINCADEIRA DIALÓGICA EM AS AVENTURAS DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, DE LEWIS CARROLL ............................................ 774
FERREIRA, Vania Maria Batista .................................................................................................................. 774
LOUREIRO, Simone de Jesus da Fonseca ...................................................................................................... 774
BENTES, José Anchieta de Oliveira ............................................................................................................. 774
IDENTIDADES PLURAIS: tensões em Master of None .............................................................................................................. 783
FRANÇA, Arthur Barros de ....................................................................................................................... 783
LUGARES DE INFÂNCIAS BAIXADEIRAS NA CRONOTOPIA DE DESENHOS E PINTURAS: ensaios de uma exotopia próxima e uma geografia primeira
............................................................................................................................................................................ 794
FRANCO, José Raimundo Campelo ............................................................................................................. 794
REPRESENTAÇÃO DISSIMULADA, SINGULARIDADE E EU, PROFESSORA .......................................................................................... 806
Maria Irma Chahine GALLO ....................................................................................................................... 806
A DEFINIÇÃO DE FOTOGRAFIA NO DISCURSO DE ALUNOS DO ENSINO BÁSICO: elementos de uma pesquisa interdisciplinar em sala de aula ..... 811
GÂMBERA, José Leonardo Homem de Mello ................................................................................................... 811
A NARRATIVA COMO PRECURSORA DA LITERATURA E O PAPEL DA MEDIAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO PESSOAL E PROFISSIONAL DO SUJEITO........... 836
GARCIA, Ana Carolina Porto...................................................................................................................... 836
OMETTO, Cláudia B. de Castro Nascimento .................................................................................................... 836

RODAS DE CONVERSA
24

ESTRATÉGIAS DE COMUNICAÇÃO USADAS POR IDOSOS NAS INTERAÇÕES SÓCIO VERBAIS ................................................................. 849
GOLINELLI, Rayssa Thayana ...................................................................................................................... 849
GUARINELLO, Ana Cristina ........................................................................................................................ 849
PAISCA, Adriele Barbosa ......................................................................................................................... 849
CONFESSO QUE VIVI: uma análise bakhtiniana dos discursos autobiográficos de Pablo Neruda ......................................................... 854

GOMES, Camilla..................................................................................................................................... 854


CORRÊA, Renata.................................................................................................................................... 854
VOZES EM CONFLITOS : diários de leituras no Ensino Fundamental ............................................................................................ 862
GOMES, Emanuele Mônica Neris ................................................................................................................ 862
HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA: as voluptuosidades de um revisor ........................................................................................... 870
GONÇALVES, Fabíola Barreto .................................................................................................................... 870
O CONTROLE EM WHITE BEAR: análise do embate nas dimensões verbivocovisuais da narrativa do episódio no seriado de Black Mirror ....... 875
GONÇALVES, Jessica de Castro ................................................................................................................. 875
SERNI, Nicole Mioni Serni......................................................................................................................... 875
A COMUNICAÇÃO SUPLEMENTAR E/OU ALTERNATIVA: a visão de professores acerca das interações estabelecidas com seus alunos com oralidade
restrita ................................................................................................................................................................... 886
KRÜGER, Simone I. ................................................................................................................................. 886
BERBERIAN, Ana Paula ............................................................................................................................ 886
13 REASONS WHY E A REPRESENTAÇÃO DO SUICÍDIO: diálogos entre o discurso da saúde e o artístico ................................................ 897
LARA, Marina Totina de Almeida ................................................................................................................. 897
CONTI, Marina Calsolari........................................................................................................................... 897
O TEMPO, O ESPAÇO, A CRIANÇA: o cronotopo da brincadeira .................................................................................................. 911
Elaine de Souza LIMA NETO ....................................................................................................................... 911
“O ESPELHO”: narrando Machado De Assis com escuta de Bakhtin ........................................................................................... 917
LOPES, Ana Lúcia Adriana Costa e .............................................................................................................. 917
LOPES, Jader Janer Moreira .................................................................................................................... 917
“EU TINHA A OBRIGAÇÃO DE FAZER POESIA ENGAJADA”: o desejo de resistir por meio da literatura .................................................... 927
MACEDO, Helton Rubiano de...................................................................................................................... 927
OCUPAÇÕES DE ESCOLAS NO RIO DE JANEIRO: um movimento de luta e resistência política em tempos escatológicos ............................. 937
Machado, Rejane Dias Corrêa ................................................................................................................... 937
.CONVERSA A DOIS: narrativas silenciadas e disputas de sentido no envelhecer ........................................................................... 940
Mazuchelli, Larissa Picinato ..................................................................................................................... 941
O QUE HÁ NO FIM DO ARCO-ÍRIS: a identidade dos novos leitores em comunidades que rediscutem as fronteiras literárias ...................... 951
MELO, Rosângela França de ...................................................................................................................... 951
UMA CONSTRUÇÃO ESTÉTICA COMO ACESSO A UM EXCEDENTE DE INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE ....................................................... 968
MENDES, Gabriela Araujo ......................................................................................................................... 968

RODAS DE CONVERSA
25

PENSANDO AS CRIANÇAS NOS CONTEXTOS DA PESQUISA: o ato ético infantil como possibilidade para a palavra das crianças em presença ... 970
MENEZES, Flávia Maria de......................................................................................................................... 970
CRIANÇAS QUE CHEGAM: um estudo sobre refugiados ........................................................................................................... 977
MILANEZ, Fernanda de Azevedo.................................................................................................................. 977
A CONSTRUÇÃO DO ATO RESPONSIVO NA RELAÇÃO PROFESSOR ALUNO NO CONTEXTO DE UMA ESCOLA ESPECIALIZADA: a enunciação como
elemento central para a alteridade ................................................................................................................................. 981
MONTEIRO, Angélica Ferreira Bêta ............................................................................................................. 981
ARRUDA, Luciana Maria Santos de .............................................................................................................. 981
POR ENTRE NARRATIVAS, MEMÓRIAS E CONVERSAS: o que ensinam crianças na educação infantil ...................................................... 986
MORAIS, Jacqueline de Fatima dos Santos .................................................................................................... 986
FLORES, Roberta de Lima Manceira ............................................................................................................ 986
SOBRE CIDADANIA E HOSPITALIDADE: alguns fragmentos ....................................................................................................... 993
MOURA, Reginaldo Lima de ....................................................................................................................... 993
E QUANDO ELES NÃO FALAM? ....................................................................................................................................... 1002
MUNHOZ, Lucianna Magri de Melo ............................................................................................................. 1002
ENUNCIADOS DISCENTES EM UM PROJETO DE EXTENSÃO....................................................................................................... 1006
NASCIMENTO, Karoline Guimarães ............................................................................................................ 1006
DIAS, Cássia Redovalho ......................................................................................................................... 1006
VIEIRA, Maria Nilceia Andrade ................................................................................................................. 1006
O ENCONTRO COM A PESQUISA NARRATIVA: a singularidade de um modo dialógico de produção de conhecimento ................................ 1011
NOVAIS, Ruslane Marcelino de Mello Campos ............................................................................................... 1011
CÔCO, Valdete .................................................................................................................................... 1011
UM ESTUDO SOBRE DISTOPIA NO CINEMA: Star Wars é distopia ou não? ................................................................................... 1022
OLIVEIRA, Mikaela Silva de...................................................................................................................... 1022
CASADO ALVES, Maria da Penha ............................................................................................................... 1022
PARA UMA RESISTÊNCIA À ESCATOLOGIA: um olhar bakhtiniano .............................................................................................. 1028
OLIVEIRA, Rafael Junior de ..................................................................................................................... 1028
LIMA, Caroline Aparecida de ................................................................................................................... 1028
EFEITOS DE ATIVIDADES DIALOGICAS NO PROCESSO DE ENVELHECIMENTO ATIVO .......................................................................... 1039
PAISCA, Adriele Barbosa ....................................................................................................................... 1039
MASSI, Giselle Aparecida de Athayde ........................................................................................................ 1039
GOLINELLI, Rayssa Thayana .................................................................................................................... 1039
FEIRA E BAKHTIN: relações de vozes, de alimentos e de disputa ............................................................................................. 1050
PAULETTI, Jéssica ............................................................................................................................... 1050
DIALOGANDO COM AS PALAVRAS OUTRAS: cronotopo e extralocalizão, no contexto da descentralidade do eu ...................................... 1059
PEREIRA, Luiz Miguel ............................................................................................................................ 1059

RODAS DE CONVERSA
26

EXPERIÊNCIAS DOCENTES: por que (nos) escrevemos? ........................................................................................................ 1067


PIERINI, Adriana Stella .......................................................................................................................... 1067
PREZOTTO, Marissol ............................................................................................................................. 1067
VOZES E DISCURSOS DOS PROFESSORES DE GEOGRAFIA: um diálogo bakhtiniano ......................................................................... 1075
PRADO, Simone M. ............................................................................................................................... 1075
RESISTÊNCIA EM SALA DE AULA: a prática de uma professora ............................................................................................... 1082
PUCCI, Renata H. P. .............................................................................................................................. 1082
TRÊS GATOS, UM CACHORRO E UM PARDAL: quando a escrita encontra liberdade ........................................................................ 1087
ROHEM, Clara .................................................................................................................................... 1087
BEZERRA BARBOSA, Priscilla ................................................................................................................... 1087
CARTAZES DE MANIFESTAÇÃO: narrativas de resistência no espaço escolar sob um olhar bakhtiniano .............................................. 1097
ROHLING Nívea ................................................................................................................................... 1097
REMENCHE, Maria de Lourdes Rossi .......................................................................................................... 1097
BORTOLOTTO, Nelita ............................................................................................................................. 1097
ESTÉTICA RESISTIVA EM JOSÉ BEZERRA GOMES: a voz da tradição versus a posição particular de santos ........................................... 1111
SALES, Willame Santos de ...................................................................................................................... 1111
O QUE É INTERESSANTE?: enunciados e diálogos de uma criança e adultos sobre a produção infantil ............................................... 1120

SAMPAIO, Ana Alice Kulina Simon Esteves ................................................................................................... 1120


ALTERIDADE: saberes do encontro na cultura escolar ......................................................................................................... 1125
SANTOS, Ana Elisa A. dos ....................................................................................................................... 1125
O CARNAVAL E A PRAÇA PÚBLICA NA WEB 2.0: reflexões sobre novos modos de ser e estar na era das mídias digitais .......................... 1133
SANTOS, Gabrielle Leite dos ................................................................................................................... 1133
REFLEXOS DO VIVIDO EM OUTRO TEMPO-ESPAÇO: uma experiência da educação integral ............................................................... 1144
Idelvandre Vilas Boas S. SANTOS ............................................................................................................. 1144
NARRATIVAS LITERÁRIAS E ESCOLA: formar leitores como exercício de resistência ..................................................................... 1148
SCHEFFER, Ana Maria ........................................................................................................................... 1148
MICARELLO, Hilda ................................................................................................................................ 1148
ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO: conceitos basilares ....................................................................................................... 1160
SERRATTO, Maria Regina Franke .............................................................................................................. 1160
BERBERIAN, Ana Paula .......................................................................................................................... 1160
A CRIANÇA E A ESCOLA NUMA RELAÇÃO DE ALTERIDADE ....................................................................................................... 1167
SILVA, Eliana Rodrigues Medeiros da......................................................................................................... 1167
NA ARENA DA VIDA: meu caminho em verbo ..................................................................................................................... 1173
SILVA, Francisco Leilson da .................................................................................................................... 1173

RODAS DE CONVERSA
27

ESTILO INDIVIDUAL E ESTILIZAÇÃO EM FOCO: o resgate dos contos maravilhosos pela literatura fantástica juvenil ................................ 1187
Rafael Oliveira da SILVA ....................................................................................................................... 1187
LEITURA: abertura para o ser-no-mundo ........................................................................................................................ 1196
SILVA, Rosana P. Plasa.......................................................................................................................... 1196
AZEVEDO, Nikolas Bigler de .................................................................................................................... 1196
CARVALHO, Carlos Roberto de ................................................................................................................ 1196
MEMORIAL ANALÍTICO-DESCRITIVO: um acabamento estético ao vivido a partir de contribuições de Pierre Bourdieu............................. 1207
SILVA, Rute Almeida e ........................................................................................................................... 1207
UM ENSAIO CRONOTÓPICO: o espaço-tempo de um centro de ações comunitárias ...................................................................... 1218
SOUZA, Ana Lucia Gomes de ................................................................................................................... 1218
BARBOZA, Georgete Moura ..................................................................................................................... 1218
HISTÓRIA, TEMPO E NARRATIVA: uma relação entre o pesquisador e o outro, por meio do dialogismo de Mikhail Bakhtin e a experiência em
programa de docência .............................................................................................................................................. 1228
STELLA, Thais Angela ........................................................................................................................... 1228
O MESMO E O DIFRENTE NO MESMO LUGAR: o instituído e o instituinte no ensino de língua portuguesa ............................................... 1236
TARDAN, Denise Lima............................................................................................................................ 1236
REFLEXÕES BAKHTINIANAS PARA PENSARMOS OUTROS CAMINHOS PARA AS ATIVIDADES DE INTERPRETAÇÃO/COMPREENSÃO DE TEXTOS
MATERIALIZADOS NOS CADERNOS ESCOLARES ................................................................................................................... 1246
TEIXEIRA MACEDO, Rômulo ..................................................................................................................... 1246
SCHWARTZ, Cleonara Maria .................................................................................................................... 1246
CONSIDERAÇÕES SOBRE A TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA DA CANÇÃO NA ESFERA ESCOLAR DO ENSINO FUNDAMENTAL II ............................... 1258
UCELLA, Orlando Brandao Meza ............................................................................................................... 1258
NARRATIVAS SOBRE DIVERSIDADE SEXUAL NO ESPAÇO UNIVERSITÁRIO: apontamentos de um percurso investigativo em curso ................ 1265
Hamilton E. S. VIEIRA ............................................................................................................................ 1265
Claudia R. REYES ................................................................................................................................. 1265
DIÁLOGOS ENTRE MILITÂNCIA E EDUCAÇÃO EM UMA COMUNIDADE SEM-TERRA ............................................................................. 1272
VIEIRA, Lilia de Lima ............................................................................................................................. 1272
NARRATIVAS COMO POSSIBILIDADES DE RELAÇÕES DIALÓGICAS E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS ................................................... 1284
VIEIRA, Maria Nilceia de Andrade ............................................................................................................. 1284
REIS, Marcela Lemos Leal ...................................................................................................................... 1284
LOVATTI, Renata Rocha Grola .................................................................................................................. 1284
CÔCO, Valdete .................................................................................................................................... 1284
O PROCESSO TERAPÊUTICO NA SINDROME DE TREACHER COLLINS A PARTIR DE UM ÓTICA DIALÓGICA ................................................. 1290
VIEIRA, Sammia Klann ........................................................................................................................... 1290
ENUNCIADO CONCRETO BAKHTINIANO: resistência à narrativa da escatologia política de capas da revista Veja ................................... 1296
VILLARTA-NEDER, Marco Antonio .............................................................................................................. 1296
RODRIGUES, Andreiza Aparecida Santos .................................................................................................... 1296
NASCIMENTO, Natália Rodrigues Silva do .................................................................................................... 1296

RODAS DE CONVERSA
28

A RÉPLICA DA ARTE COMO ATO RESPONSÁVEL EM RESISTÊNCIA À ESCATOLOGIA POLÍTICA ............................................................... 1311
VILLARTA-NEDER, Marco Antonio .............................................................................................................. 1311
SILVA, Jaqueline Araújo da ..................................................................................................................... 1311
TEIXEIRA, Gislaine Aparecida................................................................................................................... 1311
PRIMEIRAS LETRAS ................................................................................................................................................... 1328

ZERBINATTI, Thaís Otani Cipolini ............................................................................................................... 1328

riso ..................................................................................................................................................... 1333

SAMBA E RESISTÊNCIA ............................................................................................................................................... 1334


BRANCO, Nanci Moreira......................................................................................................................... 1334
O CRONOTOPO BAKHTINIANO NA NARRATIVA DE GUIMARÃES ROSA: O TEMPO DO RISO EM “FAMIGERADO” ............................................. 1340

BRAZ, Cleidson Frisso ........................................................................................................................... 1340


CARVALHO, Letícia Queiroz de ................................................................................................................. 1340
O RISÍVEL E OS MEMES ............................................................................................................................................... 1348

FAJARDO TURBIN, Ana Emília .................................................................................................................. 1348


DIVAGAÇÕES SOBRE O RISO ......................................................................................................................................... 1355
FERREIRA, Fernanda de Moura................................................................................................................. 1355
A PARÓDIA ENTRE A TRANSGRESSÃO E O LIMITE ................................................................................................................. 1363
FIGUEIRA, Filipo................................................................................................................................... 1363
QUANDO O RISO NÃO É REVOLUCIONÁRIO: uma análise da presença de memes em posts do blog do cursinho descomplica ..................... 1371
Marina Totina de Almeida LARA ............................................................................................................... 1371
DEBOCHE OU GRANDE QUADRO?: narrativas do riso enunciando uma palavra outra ..................................................................... 1380

LOPES, Ana Lúcia Adriana Costa e ............................................................................................................ 1380


NEVES, Liliane Correa Mesquita ............................................................................................................... 1380
A CONTRIBUIÇÃO DO RISO CARNAVALIZANTE DO PROGRAMA GREGNEWS PARA A COMPREENSÃO DA LINGUAGEM EM MOVIMENTO E A
DESCONSTRUÇÃO DE VERDADES ................................................................................................................................... 1387
MANFRIN, Aline Maria Pacífico ................................................................................................................. 1387
FALA QUE EU NÃO TE ESCUTO: o riso como resistência a escatologia política ............................................................................. 1395
NOGUEIRA ALCÂNTARA, Ana Paula Carvalho ................................................................................................. 1395
O SITE SENSACIONALISTA E O RISO COMO ELEMENTO QUESTIONADOR DO DISCURSO MIDIÁTICO HEGEMÔNICO ....................................... 1400
PAULA, Danielle Bezerra de .................................................................................................................... 1400
LIMA, Rhena Raíze Peixoto de .................................................................................................................. 1400

RODAS DE CONVERSA
29

CARNAVALIZAÇÃO E REALISMO GROTESCO NOS QUADRINHOS DE HENFIL: o humor como resistência .................................................. 1408
WERNECK, Giovanna Carrozzino ............................................................................................................... 1408
LEITE, Priscila de Souza Chisté ................................................................................................................ 1408
NOÇÕES BAKHTINIANAS: problema do conteúdo, do material e da forma em um cartaz de protesto ................................................. 1427
XAVIER, Manuelly Vitória de Souza Freire ................................................................................................... 1427
NOVAES, Tatiani Daiana de ..................................................................................................................... 1427

RODAS DE CONVERSA
corpos
FORMAÇÃO DOCENTE INICIAL E CONTINUADA E CURRÍCULO
RESUMO
31
Esse texto é um esboço das reflexões iniciais e
interesses da autora, sobre as experiências com a

CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS contação de histórias e quanto, nessa prática, o


nosso corpo se transforma, se reinventa. Percebe-
se nesse momento a contação de histórias como

E PROFESSORES
uma experiência, como uma relação entre sujeitos
possibilitada pela linguagem, onde o corpo, tanto de
quem conta a história, como o que de quem a ouve
se comunica. Bakhtin (1999, 2003) é o autor

INICIANTES: experiências de corpos inspirador dessas reflexões e ele me faz pensar que
a linguagem é tecida nas relações com os sujeitos,
e que uma experiência teatral com contação de
em movimento histórias pode ser percebida como um encontro
repleto de processos de criação entrelaçado por
procedimentos artísticos, pedagógicos, culturais.
Nesses encontros o corpo que se transforma,
também é transformador. O corpo é arquivo, é
história, é bicho, é arte. Os encontros promovem
diálogos com outros corpos, outros sentidos,
ARAGÃO, Janaina de Sousa1 outras histórias.

Palavras-Chave: Corpo. Experiência. Contação de


Histórias. Professores iniciantes.

INTRODUÇÃO

Q
uando se é formada em Artes Cênicas, a maioria das pessoas consegue apenas pensar em ver
você em grandes palcos, em atuações marcantes, interpretando diferentes autores e sendo
dirigida por brilhantes diretores. Inclusive, muitos colegas que estudaram comigo também
pensavam apenas nesse tipo de atuação. E eu, acredito que desde sempre não queria o que todos
queriam, queria mesmo era dar aulas. O que me motivou a fazer a faculdade foi acreditar que dar
aulas de teatro, é e sempre será significativo, tanto para mim, enquanto professora, como para os
alunos, pois a experiência de aula nunca se repete. E o corpo, ah o corpo, esse se transforma no que a
gente quiser, seja em uma cena de improvisação teatral ou em uma contação de histórias.
Sou professora de teatro e o tema corpo sempre me interessou. Tanto o meu corpo, como o
corpo dos outros, principalmente o corpo na dimensão da comunicação, da expressão. Sou uma
pessoa um pouco tímida, mesmo não parecendo, e até hoje quando eu entro em cena para contar uma
história meu corpo inteiro treme, meu coração dispara e preciso respirar e alongar, e acreditar que
tudo vai dar certo. Nosso corpo é sensível e está aberto ao encontro com o outro. Outros corpos,
outros olhares, outras histórias.
O outro, essa é a deixa para falar de Bakhtin. Faz tão pouco tempo que conheço o autor
(março/2017), e mesmo assim posso dizer que ele me conforta, me dá esperanças, me faz acreditar
numa pesquisa significativa uma pesquisa que dê espaço para a criação. Fomos "apresentados",

1
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Biociências da UNESP/ Rio Claro. E-
mail:artejana.aragao@gmail.com

CORPOS
32

digamos assim, pela professora Dra. Laura Noemi Chaluh, atualmente minha orientadora e a agradeço
por isso.
Bakhtin (2003) afirma que “Os elementos de expressão (o corpo não como materialidade
morta, o rosto, os olhos, etc); neles se cruzam e combinam duas consciências (a do eu e a do outro),
aqui eu existo para o outro com o auxílio do outro” (BAKHTIN, 2003, p.394). Sem o outro o jogo teatral
não acontece, assim como não acontece o diálogo, as relações, a vida.
A inspiração de cada um pode vir de diferentes lugares, imagens, sons, provocações, a minha
vem das histórias e da transformação que elas provocam em nosso corpo.

EU E MEU CORPO NA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

Assumo diversos personagens o tempo todo, minhas “caras e bocas” não negam meu
pensamento e se apresentam em meu dia a dia com muita naturalidade, e meu corpo acaba
representando aquilo que sinto.
Adoro contar histórias e o faço através da forma teatral, dramática, usando acessórios
cênicos para criar a ambientação cênica a fim de envolver a plateia que escuta a história de alguma
forma, às vezes como espectadores atentos, às vezes como receptores passivos, porém sempre
procurando uma relação dialógica. Meu acessório predileto é a minha tiara da Minnie, que ajudam a
me transformar no que eu quiser, deixando de lado os medos, dúvidas, menos o frio na barriga,
porque esse não da nunca para perder, pois essa sensação é uma das belezas de fazer teatro.

Figura 1. Essa sou eu fazendo o coelho de focinho tremelicante da História Menina Bonita do Laço de Fita (MACHADO, 2005)

Fonte: arquivo pessoal.

CORPOS
33

Em uma contação de histórias meu corpo experimenta as mais diversas sensações, por
exemplo, a sensação de ansiedade quando subo no alto de uma cadeira e imagino que vou pular de um
penhasco, na história “Maria vai com as outras” de Sylvia Orthof (2008) ou de alívio quando vou cair
dentro de uma piscina depois de um dia tão quente e com um cabelo tão liso, na história da “Peppa” de
Silvana Rando (2009), ou ainda o sentimento de surpresa e gratidão ao encontrar o olhar do outro como
um coelho de focinho tremelicante, em “Menina bonita do laço de fita” de Ana Maria Machado (2005).
Todas essas personagens que se apresentam na contação de histórias, por exemplo,
carregam muito de mim mesma, pois quem escolhe esse repertório, assim como com quem e como
quero dividir sou eu. Se eu não me identifico com a história, não conto, simples assim. Preciso me
apaixonar pela personagem para poder interpretar. Pois eu me abro ao outro e espero que o outro me
receba de braços abertos e que assim aceite dividir essa experiência comigo.
Trago as considerações de Amorim (2003) e que dizem de Bakhtin, porque suas reflexões me
provocam a pensar sobre o lugar que ocupo nessa relação de encontro como outro.

O lugar singular que eu ocupo é também o lugar da minha assinatura. Somente eu ocupo este lugar,
somente eu posso assinar por e neste lugar. E a minha assinatura é aquilo que me torna responsável:
capaz de responder pelo lugar que ocupo num dado momento, num dado contexto (AMORIM, 2003, pp.14-15).

Esse lugar que ocupo, enquanto professora de teatro e contadora de histórias, me mostra que
sou responsável pelos meus atos, implica em dizer que eu assino tudo àquilo que faço ou provoco,
cada gesto produzido, cada “caras e bocas” encenadas, cada impostação de voz utilizada, cada
construção inédita ou cada imitação que meu corpo apresenta. Cada encontro com o outro é um
processo único e com certeza marcará minha trajetória, pois é nesse encontro com o outro que eu
também me construo. Sei que vou usar a minha tiara da Minnie já que é minha marca registrada, pois
onde vou contar uma história, ela está sempre comigo
Eu ainda estou em processo de criação/ construção/ desconstrução/ descobertas/
questionamentos. Que bom. E o meu corpo onde fica nesse processo? Ah, ele está pulsante e em
movimento, e está aqui comigo, ainda tremendo um pouco ao escrever esse texto.

EXPERIÊNCIAS COM A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E PROFESSORES INICIANTES

Minha pesquisa de doutorado está se iniciando agora, então esse caminho da pesquisa está
ainda repleto de dúvidas, questionamentos, necessidades, vontades, o processo de criação ainda está
tão no início. Mesmo assim, criei coragem para dividir com todos vocês um pouco desse processo que
está se iniciando e já borbulhando dentro de minha mente e pulsando em meu corpo e coração.
Temos2 um carinho e também uma preocupação com o processo de formação artística dos
professores iniciantes. Gostaríamos de alguma forma de poder contribuir para a produção de

2
Falo no plural, porque o encaminhamento da pesquisa está sendo construído junto com a minha orientadora.

CORPOS
34

conhecimentos sobre a potencialidade de cada sujeito na contação de histórias na formação desses


professores atentos ao seu fazer docente, sensibilizando os sujeitos da escola na promoção da
formação integral e artística dos alunos. Nossa intenção é fazermos cursos de formação para
discutir, vivenciar, sentir, problematizar, experimentar, criar, transformar o corpo no que quiser.
Pois realmente acreditamos que a experiência com contação de histórias é um caminho concreto para
possibilitar essa formação e torcemos desde já que essas experiências reflitam e refratem, para
além dos muros da escola e do mundo encantado da contação de histórias.
Segundo Lehmann (2007, p.18), a experiência com a contação de histórias está dentro de uma
tendência da experiência teatral contemporânea em embaralhar teatro e vida, para o autor, “[...]
teatro significa um tempo de vida em comum que atores e espectadores passam juntos no ar que
respiram juntos daquele espaço em que a peça teatral e os espectadores se encontram frente a
frente”. Acontecendo assim uma troca de signos, sinais, energias, histórias. Essa troca de experiência
e a consciência dos atos entre artistas e público, por exemplo, é umas das características
importantes do teatro pós-dramático, onde o ato teatral se desenha enquanto um acontecimento.
(está usando
Para Benjamin (1994), em seu texto “O que é Teatro Épico? Um estudo sobre Brecht”, o autor
afirma que o teatro épico tenta modificar as relações e que o mesmo diz respeito à vida e não às
teorias do teatro,

O teatro épico conserva do fato de ser uma consciência incessante, viva e produtiva. Essa consciência
permite-lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e é no fim desse processo, e não no
começo, que aparecem as “condições”. Elas não são trazidas para perto do espectador, mas afastadas
dele. Ele as reconhece como condições reais, não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com
assombro [...]. É no indivíduo que se assombra que o interesse desperta; só nele se encontra o interesse
em sua forma originária. (BENJAMIN, 1994, p. 81).

Quando escolhemos trabalhar com histórias e professores iniciantes, pretendemos perceber


e provocar nesse acontecimento, da contação de histórias, diferentes tipos de reflexões, de relações,
de corpos, de discursos, de experiências, de olhares, de potencialidade corporal e verbal, de autoria,
de símbolos. Dialogando com Bakhtin (1999, p.33), “[...] um signo é um fenômeno do mundo exterior. O
próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio
circundante) aparecem na experiência exterior”. E só aparecem porque, nós, somos professores,
formamos uma “unidade social” e nos permitimos desenvolver um outro olhar sobre nossas próprias
práticas, e na contação de histórias, todos os corpos, o meu e o deles, está transmitindo diferentes
informações.
Estamos percebendo a contação de histórias como uma experiência, como uma relação entre
sujeitos possibilitada pela linguagem, onde o corpo, tanto de quem conta a história, como o que de
quem a ouve se comunica. Através de olhares, movimentos, risos, espantos, suspiros. Cada contação
é única, mesmo que a história se repita, nós todos estamos diferentes, já que cada um de nós é um
sujeito único seja em sua alegria e tristeza, dores e amores, conflitos e interesses, e estamos abertos

CORPOS
35

e inacabados e nesse encontro de muitas vozes e corpos são produzidos diferentes sentidos, sentidos
outros: “[...] O corpo não é algo que se basta a si mesmo, necessita do outro, do seu reconhecimento
e da sua atividade formadora”(BAKHTIN: 2003, pp-47-48).
Durante a experiência com a contação de histórias, os corpos estão presentes nas cenas, nos
jogos e nas discussões. Ora revelado, ora falado, ora interpretado, ora disfarçado, pode-se perceber
que em todas as suas ações o corpo não é neutro: é histórico, plural e, por isso, repleto de significado.
O corpo que se transforma e cria uma nova história se torna, podemos assim dizer, um corpo-
arquivo. E ele pode ser assim,

[...] errante, agenciante, precário, inventivo, desejante, fugitivo de si mesmo e mortal [...] Corpo é
sempre corpo-arquivo, porque formador e transformador de si mesmo e dos enunciados que o fazem, o
delimitam, mas que por isso mesmo, o abrem para devires. (LEPECKI, 2013, p. 7).

Desse modo, entendemos que os sentidos são construídos nas interlocuções, no encontro da
compreensão ativa entre o eu e o outro, em cada diálogo, em cada expressão extraverbal, em cada
olhar. E podemos concluir, juntamente com Freitas (2003, p. 36) que: “[...] os sentidos dependem da
situação experienciada [...] dos horizontes espaciais ocupados pelos sujeitos”, e que, por isso, os
sentidos sempre mudam em cada nova situação e vivência, em cada contexto histórico-social
diferente, em cada espaço-tempo, e também em cada grupo e em cada história.
Diferentes tipos de experiências emergem experiências que passam pela linguagem, pelo
sentido, experiências que tem na contação de histórias e no corpo seu ponto de encontro, de partida,
de possibilidades, de reinvenções.
As lembranças vivenciadas com a contação de histórias ficarão o tempo que cada uma quiser
ou precisar. No momento da contação de histórias, eu enquanto sujeito percebo a minha incompletude,
percebo que sem o outro não adianta contar a mais linda história, e também percebo como a
narração é uma forma artesanal e pessoal de comunicação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dialogar com Bakhtin (1999, 2003) me fez pensar que a linguagem é tecida nas relações com os
sujeitos, e que uma experiência teatral com contação de histórias pode ser percebida como um
encontro repleto de processos de criação entrelaçado por procedimentos artísticos, pedagógicos,
culturais. Essa experiência pode sim provocar muitas sensações, e também situações dedesafios, de
improvisação e interpretação e também possibilitar que surjam corpos sensíveis, autores, políticos,
vivos, concretos, reais. Corpos que levem para sala de aula a potencialidade da contação de histórias e
que tanto alunos, como os professores iniciantes tenham espaço para a construção coletiva, para
vivenciarem experiências significativas com o fazer artístico, para terem autonomia enquanto sujeitos.
Que esses encontros promovam diálogos com outros corpos, outros sentidos, outras histórias.

CORPOS
36

E para-provocar, cutucar e tentar produzir sentido- quero dizer que nosso corpo tem uma
potencialidade capaz de resistir a qualquer tipo de escatologia política, de provocar outras narrativas,
outros corpos, outros mundos, imagináveis ou não, é capaz também de suscitar o riso e também o
choro, mais principalmente de se transformar. Porque o corpo que se transforma, também é
transformador. O corpo é arquivo, é história, é bicho, é arte.
E para finalizar, trago novamente Bakhtin (1999, 2003) e dizer que ele me deu esperanças em
pesquisar e ele me faz acreditar que essa experiência, esse encontro que acontece na contação de
histórias, entre eu e o outro provocam diferentes sentidos, sensações, fazem emergir outros corpos
e cada dia vai clareando a ideia de que essa relação única que acontece também é minha, pois passa
pelo meu corpo, pela minha voz e pela minha alma.

REREFÊNCIAS

AMORIM, Marília. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica. IN: FREITAS,
Maria Teresa, SOUZA, Solange Jobim, KRAMER, Sonia (org). Ciências humanas e pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin.
São Paulo: Cortez: 2003.
BAKHTIN, Mikhail. M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
____________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LEHMANN, Hans-Thies.Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekin. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
LEPECKI, André. Planos de composição: dança, política e movimento. IN: DAWSEY, John; RAPOSO, Paulo; FRADIQUE,
Teresa; CARDOSO, Vânia. A terra do não-lugar: Diálogos entre antropologia e performance. Florianópolis: EDUFSC,
2013.
MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. 7. ed. São Paulo: Ática, 2005.
RANDO, Silvana. Peppa. São Paulo: Brinque-Book, 2009.
ORTHOF, Sylvia. Maria vai com as outras. São Paulo: Ática, 2008.

CORPOS
RESUMO
37
Este artigo trata da comparação entre o corpo
grotesco e o corpo deficiente, a partir das

O CORPO GROTESCO E O distinções entre os dois. Toma-se como principal


referencia os autores docírculo de Bakhtin postas
em “A cultura popular na idade média e no

CORPO DEFICIENTE: análise


renascimento: o contexto de François Rabelais”
para entender o corpo grotesco da Idade Média e
em “Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da
das distinções linguagem” para trabalhar com a noção de signo
ideológico, em comparação com as concepções
atuais do campo dos estudos sobre a deficiência,do
corpo marcado pela anormalidade.O objetivo é
refletir sobre conceitos, como corpo, normalidade,
grotesco e signos ideológicos, que tem a marca
BENTES, José Anchieta de Oliveira3 histórica e a singularidade de usos diversos,
conforme a arquitetônica em que são usados, em
SOUZA-BENTES, Rita de Nazareth4 teorias e contextos distintos.

Palavras-Chave: Corpo Grotesco. Corpo Deficiente.


Signo Ideológico.

1. INTRODUÇÃO

O
corpo grotesco da Idade Média e o corpo deficiente do século XXI não são os mesmos,
precisamos compará-los. Em que se distinguem? Neste sentido, vamos seguir a orientação de
Amorim (2004) quando diz que para comparar é necessário partir da diferença seja o objeto o
outro ou os conceitos postos neste artigo, que fazem relação como o outro.O pesquisador deve
considerar que o ponto de encontro na pesquisa é a partir do outro mediado pelo objeto, ou seja:o
ponto de partida dos estudos dos conceitos de “corpo grotesco” e de “corpo deficiente” baseado na
diferença seja a base filosófico-metodológica prudente para a análise comparativa.
A autora traz como orientação teórica nessa discussãoo movimento de alteridade que se
imbrica ao movimento dialógico, como podemos observar:

Nossa hipótese de trabalho é de que em torno da questão da alteridade se tece uma grande parte do
trabalho do pesquisador. Análise e manejo das relações com o outro constituem, no trabalho de campo e
no trabalho de escrita, um dos eixos em torno dos quais se produz o saber. Diferença no interior de uma
identidade, pluralidade na unidade, o outro é ao mesmo tempo aquele que quero encontrar e aquele cuja
impossibilidade de encontro integra o próprio princípio da pesquisa.Sem reconhecimento da alteridade
não há objeto de pesquisa e isto faz com que toda tentativa de compreensão e de diálogo se construa
sempre na referência aos limites dessa tentativa. É exatamente ali onde a impossibilidade de diálogo é
reconhecida, ali onde se admite que haverá sempre uma perda de sentido na comunicação que se
constrói um objeto e que um conhecimento sobre o humano pode se dar. (AMORIN, 2004, p. 28-29).

3Doutor em Educação Especial. Professor do PPGED-UEPA. E-mail: anchieta2005@yahoo.com.br


4Doutoranda em Filologia e Língua Portuguesa do PPG da FFLCH-USP. E-mail:ritasbentes@yahoo.com.br

CORPOS
38

Ocorre que se popularizou o termo “grotesco” e nessa popularização pode alguém achar que
grotesco é sinônimo de deficiente. Esta pode ser uma razão para tratarmos dessa distinção. O método
comparativo, aqui adotado, pode ser usado para estabelecer a comparação a partir da diferença, das
distinções.
Trataremos da conceituação e da distinção desses dois termos. Em termos, aqui não
interessa estabelecer causas, classificações e diagnósticos dos corpos deficientes: o que interessa
aqui são aspectos socioculturais.
Entende-se por aspectos socioculturais a discussão a) a caracterização das pessoas como
deficientes e não-deficientes, a classe social das pessoas deficientes, a inclusão social e educacional;
b) as crenças a respeito da deficiência e da normalidade; e c) os comportamentos sociais –
preconceituosos, discriminadores – para com as pessoas deficientes.

2. O CORPO GROTESCO DA IDADE MÉDIA

O corpo grotesco é caracterizado por ser inacabado e dual. Ele é sempre “um corpo em
movimento e jamais está pronto nem acabado: está sempre em estado de construção, de criação, e
ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele”
(BAKHTIN, 2002b, p. 277).
A dualidade desse corpo está posta nas composições “fecundante-fecundado, parindo-parido,
devorador-devorado, bebendo, excretando, doente, moribundo” (p. 278). São corpos comuns, que
“copulam, fazem as necessidades, devoram; os seus ditos giram em torno dos órgãos genitais, o
ventre, a matéria fecal e a urina, as doenças, o nariz e a boca, o corpo despedaçado” (p. 279).
O aspecto topográfico representado naideia do espaço corporal que se imbricam no espaço
temporal, é a ambivalência daexistência humana, baseada numa dialética profunda. Bakhtin traz este
sentido do corpo grotesco na “A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de
François Rabelais” (2002). Nessa obra ele esclarece como se dá a influência da cultura cômica
popular na obra de François Rabelais, a partir do contexto do grotesco, abordando o aspecto
topográfico para explicar a respeito do princípio da vida material e corporal, sendo o plano espiritual
rebaixado ao plano material. Eis um trecho utilizado pelo autor em sua obra.

[...] o aspecto topográfico essencial da hierarquia corporal às avessas, o baixo ocupando o lugar do alto;
a palavra localiza-se na boca e no pensamento (a cabeça), enquanto aqui ela é remetida para o ventre,
de onde Arlequim a expulsa com uma cabeçada. Esse gesto tradicional, chute no ventre (ou no traseiro),
é eminentemente topográfico, encontra-se aí a mesma lógica da inversão, o contato do alto com o baixo
(BAKHTIN, 2002, p. 270).

O sentido do corpo grotesco representa, em Rabelais, essencialmente na sua relação com a


cultura popular, vem tratar sobre a compreensão topográfica do corpo que se dá na relação

CORPOS
39

ambivalente entre o alto e o baixo. Isso se associa ao contato do homem com o mundo, com o que o
autor chama de “baixo” material e corporal.
O corpo grotesco é característico da liberdade verbal do século XV, na França, quando o
vocabulário da vida sexual, o comer e o beber exprimiam “uma concepção do mundo” (p. 280), tendo
como característica marcante a dualidade dos corpos, o exagero, a comicidade, a roupa do avesso, a
nudez ou o seminu, as posições invertidas – de trás pra frente, do alto para baixo, os objetos com
outras funções, os papeis identitários invertidos, as relações grosseiras, o vocabulário de elogio e
injúria ao mesmo tempo.
Tudo isso como marca de uma concepção libertadora, popular, em oposição ao oficial ao
poder dominante e opressor do sistema feudal, por isso, o local apropriado para a realização da
contestação ao poder era a praça pública.
Para Bakhtin, era uma “espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime
vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus” (2002a, p. 8).

3. O CORPO DEFICIENTE DO SÉCULO XXI

O que são pessoas deficientes? Pensamos em palavras como “cegos”, “surdos”, “dementes”,
“cadeirantes”, “paralíticos”, “esquizofrênicos”, “doidos” ou quaisquer outros signos ideológicos
designativos que carregam em grande parte marcas de inferioridade, ausência e anormalidade.
A propósito, os signos ideológicos são:

Qualquer produto ideológico é não apenas uma parte da realidade natural e social — seja ele um corpo
físico, um instrumento de produção ou um produto de consumo — mas também, ao contrário desses
fenômenos, reflete e refrata outra realidade que se encontra fora dos seus limites. Tudo o que é
ideológico possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é
um signo” (VOLÓSCHINOV, 2017, p. 91).

Suas características fundamentais é que são únicos e materiais, refletem e refratam uma
outra realidade, estão em um campo da criação ideológica e são fenômenos do mundo externo. Por
essas razões, esses termos usados em uma situação concreta de comunicação, em uma realidade
objetiva, designam pessoas, remetem a alguma noção de anormalidade em comparação com a
normalidade impositiva, o padrão de corpo perfeito.
Então o que é um corpo deficiente? E outras questões emergem:por que são deficientes?
Quem os faz deficientes? Por que são usados esses termos? Se esses termos geram algum
constrangimento, quais os melhores termos, para designá-los? Essas questões podem ser
respondidas por uma teoria que recebe a designação de estudos da deficiência, em uma relação com
os estudos culturais.
Decorrente desses estudos surge,na língua inglesa, entre os anos de 1840 e 1860, segundo
Davis (2006), a concepção de normalidade e a concepção de corpo deficiente/lesionado. Esses

CORPOS
40

estudos passaram a regular todas as políticas públicas, todos os atos realizados na sociedade civil
implicavam o estabelecimento de padrões, da caracterização dos defeitos – anormalidades, com a
padronização de um corpo médio.
A normalização do corpo é uma ocorrência recente da civilização. O termo com a acepção de
regulação de procedimentos ou atos; de estabelecimento de padrões; e, por conseguinte de definição
dos defeitos ou problemas físicos ou mentais, decorrente da anormalidade é bastante recente em
nossa sociedade ocidental.
Antes disso, a acepção da palavra dizia respeito a tirar a esquadria – instrumento para
traçar ângulos –, sendo um termo usado por carpinteiros para traçar suas linhas perpendiculares e
estabelecer o esquadro ou norma de um objeto. Davis (2006) relata que na Grécia antiga o que existia
era a concepção de ideal, que era atribuição somente dos deuses mitológicos, não dos humanos
viventes.
A partir disso, os corpos, nos séculos XX e XXI, passaram a ser medidos, comparados: o peso,
a altura, as diversas dimensões corporais, os órgãos do sentido, os órgãos de locomoção, o nível de
aprendizagem, de inteligência, a alimentação por meio da quantidade de nutrientes a serem
consumidos, a beleza, enfim praticamente todos os aspectos da vida humana, do corpo passaram a
ser medidos, controlados.
Estar fora da média, do estabelecido como padrão acarreta discriminações. Ser deficiente,
neste caso, pode significar problemas sérios de aceitação nos diversos grupos sociais, e até na
constituição de amigos não deficientes.
Compreende-se a ocorrência de episódios de discriminação, as ocorrências de discursos e de
ação que implemente um tratamento desigual, com maldade para com um indivíduo com deficiência,
em razão de uma característica de anormalidade estabelecida no corpo da pessoa.
"A história do corpo no século XX é a de uma medicalização sem precedentes" (MOULIN, 2009,
p. 15), dando muito poder aos médicos, que passam a controlar e a resolver os problemas que dizem
respeito ao corpo. Este poder é realizado pelos diagnósticos feitos com amostras de sangue, urina,
fezes e imagens de raio X, ultrassonografias e com aparelhos sofisticados que utilizam radioatividade
e outras formas de obtenção de filmagens.
Como afirma Ribas (1985, p. 19): “No conjunto dos valores culturais que definem o indivíduo
“normal”, estão incluídos “padrões” de beleza e estética voltados para um corpo bem-formado.
Aqueles que fogem dos “padrões”, de certa forma agridem a “normalidade” e se colocam à parte da
sociedade”.

4. DISTINÇÕES

Corpo deficiente ou anormal não é sinônimo de corpo grotesco, como afirmamos nas duas
teorias. Na teoria de Davis (2006) a concepção de corpo normal surgiu na modernidade, juntamente
com a constituição das nações e do Capitalismo. O surgimento do conceito de corpo normal tornou-se

CORPOS
41

ideologia para a criação do corpo defeituoso, anormal. O processo de constituição da expressão corpo
normal no significado que temos hoje – de sem defeitos ou problemas físicos ou mentais –, foi criado
a partir da noção estatística da curva do sino, com a formulação de que “toda a curva do sino terá
sempre em suas extremidades aquelas características que se desviam da normalidade. Assim, o
conceito da normal vem do conceito dos desvios ou dos extremos” (DAVIS, 2006, p. 6).
O anormal engloba toda conduta que se afasta do estabelecido culturalmente como média de
atuação dos seres humanos na sociedade para uma situação determinada.
Em seu curso a expressão corpo normal abrange a mudança conceitual do vocábulo norma, por
intermédio da estatística, da eugenia, da teoria da curva do sino, com seus respectivos teóricos
Quetelet, Gordian, Galton e Grahan Bell, até chegar ao seu uso e divulgação pelo romance (DAVIS, 2006).
Já o corpo grotesco é a “forma visual relacionada inversamente ao conceito de ideal”,
analisado principalmente na obra de Bakhtin, como “uma qualidade transgressiva de afirmação em
sua inversão da hierarquia política” (DAVIS, 2006, p.4).
Passemos a estabelecer algumas distinções:
O corpo grotesco, na visão bakhtiniana foi estabelecida no século XV com ingrediente da
cultura cômica popular da Idade Média, com as características da comicidade, da mescla com a
natureza, do exagero nas dimensões corporais, coma deformidade e a multiplicidade de órgãos. Já o
conceito de Normalidade foi estabelecido por volta de 1840, juntamente com a Eugenia e a Estatística.
Por falar nisso, a eugenia está associada ao progresso, à visão hegemônica de como o corpo humano
deve ser e ao impedimento de relacionamentos entre raças, segregando as raças que não sejam da
“raça pura ariana”, tendo seu apogeu com o nazismo.
O corpo grotesco está sempre em construção, portanto está inacabado. Já a tendência do
corpo deficiente é considera-lo como acabado, marcado por uma lesão. A ideologia dominante o
caracteriza como inválido, incapaz de aprender, de se locomover, de ter independência. Ele só
alcançaria essa autonomia se por milagre ou por intervenção médica passasse a ser normal.
A caracterização dos corpos grotescos é como não ideal, transgressoras da ordem e
costumes dominantes. Já a do corpo deficiente é de anormal, um problema médico que necessita de
intervenção, ajuda e reabilitação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pode perceber os termos grotesco e deficiente não são semelhantes, conforme os
autores estudados. Cabe a nós fazer alguns indicativos para romper com atitudes preconceituosas e
discriminadoras em relação às pessoas deficientes. A instauração de novos discursos e
comportamentos implica:
a) Quebra dos padrões estabelecidos de beleza. Construir uma educação coletiva como um
projeto político de oposição a qualquer forma de opressão e discriminação, revertendo padrões de
normalidades.

CORPOS
42

b) Uso da Libras, do intérprete e de todas as formas possíveis de comunicação.


c) Uso do Braille e da descrição oral.
d) Ambientes acessíveis, amplos, adaptáveis.
d) Uso do visual e da praticidade na experimentação para a compreensão de conceitos e
teorias.
e) Aceitação de outras formas do escrito, sendo que o interlocutor deve interpretar os
conteúdos, dando coerência ao texto produzido por pessoas deficientes.
f) Busca da comunicação e do uso de diferentes tipos de linguagens para estabelecer a
interação.Levar ao empoderamento, a autorrealização e ao desenvolvimento de identidades
relacionais, que reconheça e aceite o Outro com suas especificidades e diferenças sem tentar moldá-
lo, para os interesses de um dominador.
g) Quebra de padrões elitizados e classe em todos os espaços de convivência com as
diferenças. Possibilitar uma participação efetiva na sociedade, disputando espaços, oportunizando
experiências qualitativas de vida e de realização dos objetivos de vida de cada sujeito, considerando a
deficiência e ultrapassando barreiras.
h) Uso funcional de textos - o importante é estabelecer a compreensão profunda do texto e
utilizá-lo para realizar algo, resolver um problema imediato ou pelo menos encaminhar para a
resolução.
i) Oportunidades de participação em eventos de letramento - a pessoa deficiente irá
participar do seu jeito de ser dessas ocorrências. Considerar o letramento para além de medir as
habilidades funcionais de leitura e escrita, passando a considerar suas implicações e suas
características pessoais de se comunicar.
Por fim, cabe a todos nós identificar o signo ideológico que está por traz das imagens de
grotesco e de deficiente, analisando sua origem, suas valorações e fontes ideológicas que a defendem.
Ao colocar no debate possibilidade de posições sobre o “corpo grotesco” e o “corpo deficiente”,
estamos construindo possibilidades de posicionamentos outros sem o teor de posições
preconceituosas em prol de construir consciências.

REFERÊNCIAS

AMORIM. Temática da alteridade. In: AMORI, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo:
Editora Musa, 2004, p.23-91.
BAKHTIN, M. Introdução: apresentação do problema. In: BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. 5ª ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec. Brasília:
editora universidade de Brasília. 2002. p. 1-50.
BAKHTIN, M. A imagem grotesca do corpo em Rabelais e suas fontes. In: BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média
e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 5ª ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec.
Brasília: editora universidade de Brasília. 2002b. p. 265-322.

CORPOS
43

DAVIS, L. J. A construção da normalidade: a curva do sino, o romance e a invenção do corpo incapacitado no


século XIX. Trad. José Anchieta de Oliveira Bentes. In: DAVIS, L. J. (Ed.). The disability Studies Reader. 2nd ed. New York:
Routledge, 2006, p. 3-16. [texto digitalizado].
MOULIN, A. M. O corpo diante da medicina. In: CORBIN A.; COURTINE J. J.; VIGARELLO G. História do corpo: as mutações
do olhar: O século XX. 3ª. ed. Petrópolis:Vozes, 2009. p. 15-82.
RIBAS, J. B. C. O que são pessoas deficientes? São Paulo: Nova Cultural/Ed. Brasiliense. 1985, p.7-24.
VOLÓCHINOV, V. A ciência das ideologias e a filosofia da linguagem. In: VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da
linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de
Sheila Grillo e EkaterinaVólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 91-102.

CORPOS
RESUMO
44

Neste texto, apresentamos uma leitura da obra

IMAGENS Água Viva (1973), de Clarice Lispector. A escritura


entrelinhar de Clarice, entendida como
arquitetônica do dizer, se constrói no

INTERCORPÓREAS EM
entrelaçamento de arte verbal que evoca imagens
intercorpóreas. Trata-se de uma escritura não
reduzida ao significado semântico das palavras e
apenas ao entendimento da frase, mas, de uma

“ÁGUA VIVA”, DE CLARICE escritura de enunciação. A imagem do corpo tem


papel central nessa obra literária e nos propõe não
somente a temática do “corpo grotesco”, mas

LISPECTOR
também o conceito de “polifonia”, elementos
fundamentais da teoria bakhtiniana e pontos de
partida para realizarmos nossa análise.

Palavras-Chave: Água Viva. Imagens


intercorpóreas. Corpo. Clarice Lispector. Mikhail
BOENO, Neiva de Souza5 Bakhtin

INTRODUÇÃO: ÁGUA VIVA

É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais
escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende
mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já estudei matemática que é loucura do raciocínio –
quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois
o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Fazemo-lo juntos com a
respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena (LISPECTOR, 1998, p. 9).

O
herói-personagem está intensamente feliz. Grita de felicidade. Sente a dor da separação, dor
escura. Contraste de cores em seus sentidos, claro-escuro. Afirma que ninguém o prende mais.
Toma posição. Está consciente e apto à abdução da matemática. Deseja alimentar-se da
placenta, o topos de vida interna. Nascimento-vida. Tem medo. Medo do desconhecido, do devir.
Interroga o outro e segue unido com seu interlocutor, em um corpo, juntos pela respiração. Olha-se
como toureiro na arena, segue desenvolto para desafiar-se e defender-se de si e do outro.
Já nessa cena inicial desenhada por Lispector podemos encontrar as imagens intercorpóreas
teorizadas por Bakhtin (2010), em sua tese A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais (1965), as quais recortamos: “alegria profunda”, “uivo humano”, “dor de
separação”, “felicidade diabólica” (“morte alegre”, “morrer de rir” - em Bakhtin), “loucura do
raciocínio” (lógica abstrata – corpo fechado, autonômo - em contraposição à afiguração concreta –

5Doutoranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso. Bolsista CAPES/PSDE 2016-2017 na Università del Salento,
em Lecce-Itália. Professora de Língua Portuguesa na Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso e Secretaria Municipal de Educação de
Cuiabá. E-mail: professoraneivaboeno@gmail.com.

CORPOS
45

corpo diálogico), “quero me alimentar diretamente da placenta” (placenta: corpo que gera outro
corpo).
Ainda nesse trecho, temos a voz do herói que responde a si mesmo sobre como se faz o
próximo instante: “fazemo-lo juntos com a respiração”, cena que novamente nos propõe a ideia do
corpo não acabado, mas em relação com outro corpo, sempre partindo de um movimento bicorpóreo,
de relações entre corpos, do corpo consigo mesmo e com outros corpos orgânicos ou inorgânicos,
em relações interiores e exteriores. Já nesse fragmento que inicia a obra Água viva se compreende a
presença do conceito de “corpo grotesco” que, como diz Bakhtin (2010), é um corpo realisticamente
considerado em sua indissolúvel relação com o mundo e com outro corpo.
É assim que o leitor-espectador entra em relação com a escritura de Água Viva (1973), em
uma cena plena de imagens que joga com luzes, medidas, sentimentos, nascimentos, inacabamentos,
em suma, imagens de vida plena na sua ambivalente intercorporeidade, que podemos encontrar na
escritura literária, em particular, na “escritura entrelinhar de Clarice” (BOENO, 2016), entendida como
arquitetônica do dizer.

1. METÁFORA DO CORPO, PALAVRA LITERÁRIA E CORPO GROTESCO

Na vida, tudo o que faz parte da realidade material e imaterial pode se tornar signo. No texto
artístico, especificadamente em Água Viva, de Clarice Lispector, obra publicada em 1973, a palavra
literária adquire um valor metafórico no signo do “corpo”, como diz Augusto Ponzio, falando do círculo
bakhtiniano: “um corpo sígnico adquire um significado ‘que vai além da sua particularidade’” (BAKHTIN,
VOLOCHÍNOV, 1929, apud PONZIO, A. 2013, p. 175).
Neste percurso de leitura e em uma primeira estratificação, na tessitura de Água Viva, o
herói-personagem de Lispector se coloca inteiramente em relação corporal consigo mesmo e com
outros corpos - materiais e imateriais; orgânicos e inorgânicos; humano e animal, que dá o tom do
saber e do sabor entre corpos diferentes, num intenso diálogo (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2002), no
sentido bakhtiniano, do ser e estar no mundo da linguagem e da cultura, como podemos re-ler no
fragmento seguinte:

Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. É também
com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo-a-corpo comigo
mesma (LISPECTOR, 1998, pp.10-11).

A metáfora do corpo na escritura entrelinhar de Clarice é o signo que é mais presente nesta
obra literária. Aqui não se pretende analisar a palavra “corpo” do ponto de vista literal e metonímico,
ligado ao seu significado, e de um ponto de vista semântico. A palavra “corpo”, aqui na obra de
Lispector, tem o poder metafórico e a potencialidade de evocar imagens e, portanto, podemos falar de
palavra com valor literário e não simplesmente de palavra do ponto de vista literal. Neste caso,
podemos dizer que a escritura literária é uma “escritura ante litteram” (PONZIO, L., 2017, p. 20).

CORPOS
46

A palavra literária, em geral, multiplica a visão, não se limita na atividade de ler o texto, mas
também o escreve, onde, como sabemos, de um ponto de vista semiótico, sobretudo, no momento de
entender o texto na concepção moderna do texto (segundo Barthes na obra O prazer do texto, 2010,
em que texto, etimologicamente vindo da palavra latina ‘textus’, significa tecido, trama, tela, escritura,
rede sígnica), a leitura é inseparável da escritura: quando leio, escrevo, interpreto, traduzo, re-
escrevo o texto. Nesse sentido, o “tecido” de Lispector se faz; constrói-se lendo-o para além do corpo
textual (fragmentos, entrelinhas: onde o espaço branco da escritura é a chave de leitura), da
materialidade da língua e de toda a musicalidade de sua palavra literária; trabalha-se a si mesmo por
meio de um entrelaçamento contínuo entre palavras e imagens, entre corpos escritos. Um “tecido”
que subverte a transcrição em “escritura intransitiva”, “escritura do corpo”, “corpoescrito” (PONZIO,
A., 2002, p. 10).
Vejamos o fragmento em que o autor-herói, afigurado na imagem intercorpórea de
narradora-pintora-escritora em Água Viva, fala do movimento de escritura como atividade de
pesquisa para ver (DERRIDA, 2010; 2012), e que retoma também o conceito da metáfora do rizoma, de
Deleuze (1998), a raiz que vai avançando lá onde o discurso é fértil.

Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes de árvore descomunal, é assim que te
escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes
mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realização, e tudo isso é uma prece de
missa negra, e um pedido rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e precisa da
anuência de Deus: eis a criação (LISPECTOR, 1998, p. 20).

As palavras de Lispector (“árvore” e “raízes”, por exemplo) provocam imagens que nos
ressoam, recuperam o duplo sentido, a ambivalência, subvertem a visão séria, monológica, monótona,
ordinária do cotidiano possível, do corpo isolado, fechado, autosuficiente e acabado no traço que
segue um contorno. Assim, a palavra-imagem lispectoriana é dupla e reversível, entendida no sentido
de Barthes, quando o linguista diz que a palavra tem pelo menos dois sentidos em um tempo só, em
uma visão obtusa (BARTHES, 1990). Como dissemos, a escritura recupera a ambivalência e a
percepção dupla das imagens e das palavras que não permanecem mais ligadas apenas ao significado
unívoco e unidirecional, na perspectiva tradicional da realidade assim como ela se representa.
Tudo isso pode nos remeter também à imagem bíblica do Jardim do Éden, segundo o livro de
Gênesis, em que o primeiro casal - Adão e Eva - criado por Deus come o fruto proibido da árvore da
ciência, aquela que contém o conhecimento da ambivalência, do bem e do mal.
É por isso, que podemos dizer que a escritura de Lispector, nesse fragmento, não reflete, mas
refrata a realidade dos signos “árvore” e “raízes” e direciona-os à energia pulsante de seu ato de
reescrever a escritura mesma, declarando: “é assim que te escrevo” (LISPECTOR, 1998, p. 20). Sua
escritura que reescreve a imagem da árvore afigurando-a como “árvore descomunal” numa “prece
de missa negra” com “um pedido rastejante de amém”, também realiza uma cena grotesca, no sentido

CORPOS
47

de Bakhtin (2010). Essa cena intercorpórea repropõe as temáticas bakhtinianas não somente do
“corpo grotesco”, mas também de “polifonia”.

1.1 Polifonia, orquestração e visão artística

A polifonia, como Bakhtin (2013) a entende, é heterogeneidade de vozes e reciprocamente


respeitadas, distintas e no mesmo tempo coordenadas através de uma inteligente “orquestração”
(PONZIO, A., 1999). Para o filósofo russo, o caráter polilógico de uma obra literária não é dada pela
presença da forma diálogo, da sucessão de situações em que os personagens dialogam entre si, não
depende da quantidade de intervenções e de partes que se apresentam na obra, mas reguarda a
possibilidade da obra ser discurso feito por mais vozes, com diversos pontos de vista ( idem, p. 347).
Para compreendermos melhor o conceito de “polifonia” é importante estabelecer uma
relação entre teoria literária e cinema baseando-nos no estudo de Augusto Ponzio, em seu ensaio
“Ejzenstein, i canguri e Dupin”, dedicado ao Cinema Augusto6, presente no livro Fuori campo. I segni
del corpo tra rappresentazione ed eccedenza, de 1999, em que se demonstra a semelhança entre a
polifonia bakhtiniana e a “orquestração” de Eisenstein.
O conceito central na pesquisa teórica e criativa de Eisenstein é aquele, como diz A. Ponzio
(1999, p. 347) no início do seu ensaio, da “polifonia dramatúrgica dos meios de ação cinematográfica”.
O termo “polifonia” retoma a teoria de Bakhtin. A orquestra, diz Einsenstein, representa o protótipo de
um correto procedimento capaz de utilizar cada setor expressivo ao máximo das suas possibilidades e
ao mesmo tempo se colocando em “ensemble” (termo em francês que significa “juntos”, formação
musical em que os músicos tocam juntos).
A função dramatúrgica dos meios expressivos comporta uma polifonia funcional capaz de
emerger, em um específico momento da realização de um discurso fílmico, um determinado elemento
expressivo ao máximo das suas possibilidades, em que esse determinado elemento resulta pertinente
mais do que os outros a ser significante principal de que, naquele específico momento, se quer
expressar. Nesse contexto, a polifonia pode ser também concebida como alternância dos meios
expressivos em função do efeito dramatúrgico.
Por isso, a polifonia de Bakhtin é ligada ao conceito de “orquestração” aprofundada por
Einsenstein no cinema, em que há separação de imagem e som, separação da cor de seu objeto,
separação como momento de ruptura de mera coexistência de elementos de um fenômeno, e,
portanto, como momento inicial de superação dos nexos passivos e realísticos (PONZIO, A., 1999,p.
351). “A separação da cor do seu objeto”, como continua a explicar A. Ponzio na sua análise de
construir um diálogo entre o teoria do cinema de Eisenstein e a arquitetônica estética de Bakhtin
(2011), em particular, entre o conceito de “orquestração” e “polifonia”, dissolve a natural convivência

6 Sugerimos a leitura do texto: ‘Cinema Augusto’ alias ‘Cinema Ponzio’, de autoria de Augusto Ponzio, disponível em:
<http://www.augustoponzio.com/files/il_cinema_augusto_.pdf>.

CORPOS
48

do objeto com sua cor, permitindo a realização do cômico na cor, resultando na desvinculação do seu
contexto habitual, carregando-o de novos significados.
Para Eisenstein (PONZIO, A., 1999, p. 352), a “separação” é o momento necessário para cada
criação artística. Essa separação criativa não comporta a autonomia dos elementos separados, mas a
interação deles, requerendo uma mistura e a recombinação desses elementos separados e a posição
deles poderia ser invertida em um recíproca troca de lugar. Em suma, a separação criativa é
complementar à mistura carnavalesca estudada por Bakhtin (2010).
A polifonia dramatúrgica, a separação, a ruptura dos nexos passivos e realísticos, a junção de
coisas normalmente separadas e distintas, tudo isso se encontra no conceito de Eisenstein de “ex-
stasis”. Ex-stasis, em sentido literal, significa “sair fora de si”, indica o momento dinâmico e temporal
de passagem de um registro expressivo a outro, de uma linguagem à outra, como exemplo, diz A.
Ponzio (1999, pp. 353-354), a passagem da imagem à música e da música a cor no cinema de
Eisenstein. O cinema tem a potencialidade de realizar ao máximo o processo de ex-stasis porque
dispõe de meios expressivos e heterogêneos.
Ainda nessa análise, como continua a dizer A. Ponzio (idem) referindo-se aos estudos de
Pietro Montani sobre a obra de Eisenstein, pode-se individualizar uma ligação entre o conceito
eisensteiniano de “ex-stasis” e o conceito bakhtiniano de “corpo grotesco”. E do ponto de vista do
conceito de ex-stasis não existem separações e nem ligações definitivas, objetos autossuficientes e
estáticos, mas, cada coisa é vista no seu devir, no devir multíplice (DELEUZE, 1999), e ligada a um
processo gerativo com outras coisas, criadas e que criam (“fecundante-fecundado”; “devorador-
devorado”, como diz Bakhtin, 2010, p. 278).
Igualmente o corpo grotesco é um corpo em devir, junto com outros corpos e com o mundo
inteiro: todas “as imagens são bicorporais, bifaciais, e prenhes. A negação e a afirmação, o alto e o
baixo, as injúrias e os louvores, estão nelas fundidos e misturados em proporções variáveis”
(BAKHTIN, 2010, p. 359).

Em todas as imagens da festa popular, a negação jamais tem um caráter abstrato, lógico. Pelo
contrário, ela é sempre afigurada, concreta, sensível. Não é o nada que se encontra por trás dela, mas
uma espécie de objeto às avessas, de objeto denegrido, uma inversão carnavalesca. A negação remaneja
a imagem do objeto denegrido, muda principalmente sua situação no espaço, tanto do objeto inteiro,
como de suas partes; transporta-o inteiro para os infernos, põe o baixo no lugar do alto; o trasseiro no
lugar do dianteiro, deforma as proporções espaciais do objeto, exagerando desmesuradamente um
único de seus elementos em detrimento dos outros, etc. (BAKHTIN, 2010, p.360).

Voltando ao trecho em que Lispector (1998, p. 20) escreve as imagens das “nodosas raízes de
árvore descomunal” afigurando-as como “se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos
nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes”, podemos traduzi-las, em termos bakhtinianos,
como “excrescências e ramificações” que têm “um valor especial”, pois “tudo o que em suma
prolonga o corpo, reúne-o aos outros corpos ou ao mundo não-corporal” (BAKHTIN, 2010, p. 277).
Porque o “corpo grotesco é um corpo em movimento”(idem), jamais pronto nem acabado, está

CORPOS
49

sempre em estado de criação, ele mesmo constrói outro corpo, esse corpo absorve o mundo e é
absorvido por ele. E por isso, o papel importante se realiza naquelas partes, naqueles lugares em que
o corpo mesmo se ultrapassa, sai dos seus próprios limites, começa a construção de um outro ou
segundo corpo. Em suma, tomando as palavras de Bakhtin:

[...] a lógica artística da imagem grotesca ignora a superfície fechada, uniforme e cega do corpo, ocupa-
se apenas das sobressaídas [aquilo que sai] – excrescências e brotos [aquilo que nasce, brota] – e dos
orifícios, isto é, somente daquelas coisas que saem dos limites do corpo e que conduzem ao fundo desse
mesmo corpo (BACHTIN, [1965] 1979, p. 348 [tradução nossa]).

Retornando ao sentido da palavra literária, como abordávamos no item anterior, ela não
reflete a realidade descrevendo-a, mas a refrata no processo da afiguração favorecendo o movimento
da escritura. Aqui devemos entender a escritura, em geral, como atividade que não deve ser
confundida com a transcrição. Escrever, portanto, significa fazer ver, construir, desenhar um outro
espaço além do que é visto, dito, pré-escrito, além da linha do confim, além da realidade, além do
mundo dos objetos.
Trata-se de uma escritura que distrai a língua servil, que não sabe fazer outra coisa que não
seja repetir a letra. Somente assim, podemos falar de uma escritura escrevente e incisiva, que se
mostra em seu particular movimento de abertura e escuta, deitada sobre a página, desconsiderando
as expectativas de cada leitor-consumidor (PONZIO, L., 2017). Em síntese, é uma escritura que escreve
sem ver (DERRIDA, 2010; 2012), prevê sem olhos; uma escritura que não coloca a mão avante, que não
antecipa, que não se agarra antes (no sentido de apreender, pegar ou apanhar antes para se
proteger) como faz o cego, mas inaugura um evento, uma escritura que irrompe imprevisivelmente
com um desenho de uma ideia que tem a aparência de um texto escrito.
Nessa cegueira vidente, diz Derrida (2010), a escritura inventa e reescreve a si mesma,
superando os limites e os próprios contornos. Cria um espaço novo, portanto, uma escritura de
descoberta, uma escritura inaugural, uma escritura de pesquisa (DERRIDA, 2012), uma escritura sem
memória (SOLIMINI, 2015), que não seja apenas reconhecimento dos objetos, mas visão (ŠKLOVSKIJ,
1974, p. 16). Uma visão que não se limita ao mundo das aparências, que seja encontro com os objetos
como aparição, como milagroso, como se os objetos fossem vistos por um ser de uma outra espécie,
pela primeira vez (MERLEAU-PONTY, 1984).

2. ILEGIBILIDADE E LITERARIEDADE

A escritura entrelinhar de Lispector na obra Água Viva está na direção de uma escritura
paradoxalmente “ilegível”, conforme a concepção de Barthes (1999) em pesquisa apresentada no livro
Variazioni sulla scrittura. Para ele, o texto de escritura tem duas partes, uma que pode ser chamada
de “consumível”, por se tratar daquilo que é possível entender no texto verbal porque pertence à
dimensão frásica (caracterizada por dois campos de estudo: a semântica: estudo do significado das

CORPOS
50

palavras que compõe o texto; e a sintática: estudo da construção da frase); e a outra, que se pode
chamar de “ilegível”, a parte enunciativa do texto que não se deixa ler uma vez por todas.
Também Bakhtin (2003) faz uma distinção entre frase e enunciação: a frase não é de ninguém,
não é para ninguém e pode ser repetida infinitamente e não muda o seu significado; a enunciação, por
sua vez, é um ato único, irrepetível. Como exemplo de enunciação, podemos dizer a mesma expressão
linguística, várias vezes, mas a segunda vez que a pronunciarmos não é mais a mesma expressão, e
nem nas vezes sucessivas, porque a expressão linguística ganhará um outro sentido e um outro valor,
mesmo que se mantenha também o mesmo tom. Como diz Bakhtin (idem), nós não vivemos em um
mundo de frases, vivemos sim em um mundo de enunciações.
Voltando a Barthes (1999), o conceito de ilegibilidade do texto de escritura pode ser melhor
compreendido na parte em que o linguista/semiólogo francês explica-o como “opacidade gráfica”,
característica de uma escritura que se expõe (literalmente; conteúdo) e ao mesmo tempo esconde
(literariamente; forma), demonstrando uma inconsumibilidade do texto. Essa parte inconsumível,
ilegível é diretamente proporcional ao valor artístico de uma obra que convida o leitor a uma
interpretação/compreensão, a uma leitura-escritura, a uma visão obtusa do texto na direção da
“significância” (espaço onde os signos estão à mercê de todos os significados possíveis).
A ilegibilidade do texto não é a parte defeituosa ou monstruosa da escritura, ao contrário,
constitui o valor adjunto de um texto de escritura, em favor de uma certa “opacidade gráfica”: “a
escritura é frequentemente (ou sempre?) utilizada para esconder aquilo que lhe foi confiada a
mostrar” (BARTHES, 1999, p. 10 [tradução nossa]). Barthes (idem) fala, nesse sentido, da escritura
que esconde, a exemplo da escritura egípcia, cuneiforme. Uma escritura contraluz, contra-ídola, como
diz Luciano Ponzio (2005), ao limite do decifrável e sacrificando a legibilidade do texto nas suas
funções puramente práticas de comunicação, de gravação, de transcrição como meros instrumentos
mnemotécnicos.
A legibilidade clássica institucional, de fato, fecha a obra, liga-a à leitura, prega a obra ao seu
significado, fixa o sentido em uma unidade fechada, univocamente determinada e definida, impedindo a
obra de vacilar, de ressoar, de duplicar-se, de divagar, de diferir (PONZIO, L., 2005).
Esse termo “ilegível” não significa que a escritura seja defeituosa, como citamos
anteriormente, mas que contém a verdade da escritura (BARTHES, 1999, p. 10), a parte criativa, a
valência icônica dos signos (PEIRCE, 1995), que multiplica o texto em suas visões, interpretações, em
uma “leitura sempre recomeçada” (DERRIDA, 1971).
Nessa perspectiva e com o seguinte fragmento de Água Viva, capturamos a percepção de
escritura vidente (DERRIDA, 2010) que antecipa e quer ganhar também sobre a morte:

Eu vou morrer: há esta tensão como a de um arco prestes a disparar a flecha. Lembro-
me do signo Sagitário: metade homem e metade animal. A parte humana em rigidez
clássica segura o arco e flecha. O arco pode disparar a qualquer instante e atingir o alvo.
Sei que vou atingir o alvo (LISPECTOR, 1998, p. 53).

CORPOS
51

Lendo-escrevendo esse fragmento de Lispector, o corpo textual cria novas e contínuas


relações intertextuais (KRISTEVA, 2005) com outros textos no sentido de uma compreensão
responsiva de um leitor que se torna escritor, um leitor em fábula (ECO, 1993), um leitor que se torna
eleitor, que faz escolhas. As imagens, aqui, novamente recobram o conceito de “corpo grotesco”, em
Bakhtin (2010), colocando no jogo da escritura a relação ambivalente entre morte-vida, humano-
animal, orgânico-inorgânico. Além disso, podemos compreender que o herói-personagem, nesse
fragmento, se coloca em relação com a “realidade” afigurando-se na imagem do Signo Sagitário,
como arqueiro (“parte humana”, como declarado) em posição de atirar, que tem esticada a corda do
arco, concentrado, fazendo a mira, defronte ao seu alvo. Eis a metáfora corpórea da visão artística de
Lispector: um “arqueiro de olho e meio” (LIVŠIC, 1989) mirando a realidade. O procedimento da
autora-criadora de ver a realidade tal como se apresenta na vida se realiza na forma indireta, a um
olho e meio, à meia-luz, de soslaio, enviesada, alterada, afigurada. Configura-se, assim, uma outra
forma de ver (visão) a realidade do mundo e das coisas que não seja representação, mas afiguração,
escritura.
A escritura, como estamos desenhando, trabalha, portanto, na direção do “ilegível” (enunciado
anteriormente) e também na direção do “indizível”, do “invisível”, do “inaudível”, do “impossível” como
nos apresenta L. Ponzio, em suas pesquisas sobre a Semiótica do Texto, em especial, dos textos
artísticos, no livro Icona e Raffigurazione, de 2016. Para ele, em Arte só o impossível se pode fazer,
pois o legível, o possível, o visível, o dizível, o audível, nós já temos na representação da “realidade”
(PONZIO, L., 2016).
Nessa escritura se evidencia o valor literário. A “literariedade” é um valor adjunto de uma
obra e não a podemos encontrar em todos os textos escritos. Importante dizer, que o caráter de
literariedade não se limita à Literatura, mas também podemos encontrar em outros textos artísticos.
O procedimento chamado por Jakobson de “literariedade” (valor literário) é percebido não só na arte
verbal (Literatura) mas também nas outras artes não-verbais (pintura, música, fotografia, etc.)
(PONZIO, L., 2015).
Os escritos de Jakobson sobre poética e o conceito de literariedade se entrelaçam com a
concepção de compreensão responsiva dos textos complexos na teoria bakhtiniana, e tal
procedimento (literariedade) envolve uma metodologia de interpretação do texto artístico a partir do
seu herói (em termo bakhtiniano), não do conteúdo (do "dito", segundo Barthes, ou de "que coisa é"),
mas da forma (do dizer, de “como dizer"); não da dimensão frásica (enunciado, significado), mas da
enunciação, como evento irrepetível (a frase, como já dissemos, pode ser repetida infinitamente e não
muda o significado).
A proposta de Jakobson é inovadora (desenhada por ele nas primeiras décadas do século XX)
e está em contraposição aos estudos literários anteriores que pregam à análise do conteúdo da obra
literária, restringindo-a à dimensão psicológica, sociológica, política, filosófica, etc. A literariedade
pode existir ou não em um texto de escritura, de tal forma que podemos falar de pintura literária,
música literária, de teatro literário, etc. (PONZIO, L., 2015, p. 36-39).

CORPOS
52

Assim, quando lemos um texto com valor literário, não vemos somente a dimensão frásica,
literal, mas produzimos imagens em uma compreensão responsiva, que permite ao leitor de ser
escritor, a ação do ler à reação do escrever (PONZIO, L., 2017).
A representação reflete, transcreve a realidade assim como ela é, sem acrescentar nada,
sem introduzir uma nova visão na vida, portanto, não escreve. Ao contrário, a palavra literária refrata,
multiplica o olhar agudo, fixo e fechado em uma visão aberta, dilatada, obtusa - “terceiro sentido”
(BARTHES, 1990). Uma visão obtusa de ângulo maior em referência ao ângulo agudo da Geometria.
O título da obra lispectoriana, objeto de nossa análise, Água Viva, é também metáfora de um
texto que não reflete, mas que refrata, de um texto que escorre, mas que não se deixa ler uma vez por
todas, mostrando seu caráter de inconsumibilidade. Portanto, sendo uma escritura literária, resiste à
“leitura definitiva” (uma vez por todas) “e definitória” (que define) (PONZIO, L. 2017). E com Barthes
(1999), podemos dizer que um texto literário não se encontra no “dito”, mas na arquitetônica do
“dizer”. Em suma, o texto de escritura, como o de Lispector, diz muito mais do que o seu sentido
declarado e literal

3. A IMAGEM DO CORPO

A imagem do corpo afigurado na escritura entrelinhar de Clarice libera a consciência do seu


próprio limite, recoloca em jogo as palavras, repõe em movimento o mundo, aqui ambiguamente
entendido, onde estão colocados juntos: nascimento-morte, alegria-tristeza, visível-invisível,
humanidade-animalidade, sabedoria-estupidez, orgânico-inorgânico, etc., que habitualmente, a “língua
comunicativa” e “técnica” separa para realizar a representação, mas que a “língua expressiva”
recupera delas o sentido duplo (uma palavra deve ter no mínimo dois sentidos) (PASOLINI, 2003). A
língua comunicativa incorpora as palavras em termos. E cada termo põe termo, segundo indicações
de Artaud (PONZIO, L., 2017, p. 196).
A escritura literária, ao contrário, é capaz de inverter o universo e introduzir visões (idem).
Nessa orientação teórica, compreendemos que Lispector no seu romance não transcreve
personagem, situações, fatos, imagens da vida cotidiana, mas introduz uma visão, uma escritura, um
modo de ver, um ponto de vista, e nós, enquanto leitores, não podemos parar de encontrar tudo isso
na vida e finalmente ver (TODOROV, 2009).
Bakhtin (2011) nos ensina e nos lança o desafio, enquanto leitores, de respondermos
responsivamente, sugerindo-nos de introduzir na vida aquilo que nós aprendemos na Arte. A
Literatura, portanto, é capaz de introduzir e de experimentar novos mundos possíveis ou impossíveis
e a vida para ser efetivamente vida, e não repetição de si mesma, deve ver, deve considerar a visão
da Arte. Arte e vida são, assim, reciprocamente envolvidas, uma é responsável pela outra, uma é
culpada pela outra.

CORPOS
53

A escritura literária exercita uma função de despertar, ensina-nos a olhar com novos olhos,
faz-nos ver aquilo que ninguém antes havia suficientemente prestado atenção. A escritura literária dá
a ver coisas, assim como os pintores, músicos, escultores fazem por meio do texto não-verbal.
A imagem do corpo na escritura de Lispector, em Água Viva, é uma imagem sem pose, onde
as figuras não repousam, os movimentos delas variam ao infinito. Por isso, a escritura de Clarice é
uma escritura sem pose, uma escritura que coloca em jogo o corpo, no espaço da Literatura que é o
lugar propenso ao encontro, em que as formas e as cores podem dialogar umas com as outras, e
onde umas não sujeitam as outras (“discurso indireto livre”, em Bakhtin, 2002; 2013).
As leis da gravidade são desconhecidas pela escritura, e nesse sentido, compreendemos o
texto de Lispector como tecido de uma escritura onde a leveza (CALVINO, 1990, p. 15-43), a agilidade e
a fluidez são características que desafiam o peso e a pretensiosidade de um corpo fechado. Sua
escritura, particularmente nesta obra Água Viva, não deve ser lida fixando-se nas palavras em seu
sentido semântico, em seu significado, de forma que, se isso ocorrer, o texto se torna denso, pesado e
não fluido, deixa de ser misterioso, encantador, de prazer prolongado (característica do texto de
prazer, em Barthes, 2010), e, portanto, esse tipo de leitura decodificante mata o sentido, a enunciação,
encerrando o texto em si mesmo, em cada palavra-termo, em um corpo privado, fechado, mono-
lógico.
O corpo afigurado por Lispector é um corpo que se supera, metáfora da atividade da escritura
que deve superar-se a si mesma, deve escrever-se a si mesma, deve reinventar-se como escritura,
renovar-se a si mesma para colocar-se no “espaço literário” (BLANCHOT, 1987), no “tempo grande”
(BAKHTIN, 2011), na altura vertiginosa de uma “escritura inaugural” (DERRIDA, 1971) capaz de
previdência, de imaginar hipóteses de mundos novos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ressonâncias dialógicas

Finalizamos essa leitura com algumas ressonâncias dialógicas desenhadas e outras no devir,
vibrações que nos atravessam e nos desafiam a prosseguirmos com a pesquisa, aqui
especificadamente deitada na temática das imagens do corpo evocadas pela escritura de Água Viva,
tomadas de alguns fragmentos dessa bela obra lispectoriana.
Dessas ressonâncias, podemos dizer que a palavra de Lispector em Água Viva é rica de
imagem com poder literário, de imagem que é “a alteridade, que escapa à identidade”, “como um saco
furado é incapaz de contê-la” (LÉVINAS apud PONZIO, L. 2017, p. 44); é uma palavra que não representa,
mas afigura, que opera por semelhança, na direção da iconicidade, a valência mais criativa do signo
(PEIRCE, 1995).
Diante disso, compreendemos que a característica da palavra literária, em geral, e em
especial, a palavra lispectoriana motiva as múltiplas refrações na leitura do corpo textual da obra em
referência, tal como o fragmento a seguir nos alerta:

CORPOS
54

Não, isto tudo não acontece em fatos reais mas sim no domínio de – de uma arte? sim, de um artifício
por meio do qual surge uma realidade delicadíssima que passa a existir em mim: a transfiguração me
aconteceu (LISPECTOR, 1998, p. 21).

A afiguração nesse fragmento se dá a partir do corpo do herói-personagem e de onde emiti


sua posição crítica, em que as vozes do herói-personagem e da autora-criadora são atravessadas.
Nessa imagem também percebemos, mais uma vez, que a questão do corpo é um elemento essencial
em Água Viva como crítica do corpo habitualmente entendido, um corpo fechado, um corpo privado,
“corpo privado de tudo” (PONZIO, L., 2010).
O corpo afigurado na escritura entrelinhar de Clarice é um corpo com valor literário,
dialógico, intertextual, um corpo, que encontramos na teoria bakhtiniana, no conceito de
intercorporeidade e no conceito de “corpo carnavalesco” ou “corpo grotesco”, descrito com maestria
na obra dedicada à cultura popular e a Rabelais (BAKHTIN, 2010), a qual, como dissemos, foi uma das
bases e ponto de partida para a escrita deste texto.
O corpo textual da escritura entrelinhar de Clarice, nesse percurso interpretativo não diz, não
se redobra no seu sentido imediato e literal, mas no subentendido, na relação desse texto com outros
textos e convida o leitor a uma compreensão responsiva, para além da letra, para fora das margens,
fora das delimitações; convida o leitor a realizar uma leitura que se torna escritura intertextual,
dialógica. Por isso, a escritura entrelinhar de Clarice não se mostra, não se deixa representar, não se
deixa consumir, é metáfora de uma escritura que esconde, que prefere a complexidade do dizer à
simplicidade do dito (BARTHES, 1990).
A linguagem na obra Água Viva apresenta seu caráter de inacabamento, mostrando-se com a
fluidez das palavras em imagens, em um corpo textual inacabado e infinito, assim compreendida pela
voz do herói-personagem no final da obra: “O que te escrevo é um ‘isto‘. Não vai parar: continua”
(LISPECTOR, 1998, p. 95).
Trata-se, por assim dizer, de uma obra que traça o seu próprio modo de dizer e dizer-se na
metáfora do corpo, inovador em sua tessitura e de processo contínuo e vivo, enunciativo, feito uma
reta infinita no “tempo grande” da Literatura (BAKHTIN, 2011), de dialógo polifônico, incompleto e
extralocalizado.

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TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

CORPOS
RESUMO
57

Uma professora e um professor de educação

ESPELHOS HUMANOS: a infantil da rede pública municipal de Campinas, São


Paulo, refletem sobre como seus corpos são parte
da constituição dos corpos dos bebês e das
relação constitutiva entre os corpos dos crianças pequenas. Usando narrativas e
metanarrativas de acontecimentos de seus
grandes professores e os corpos dos trabalhos, conseguimos observar que nossas ações,
gestos e falas são assimilados pelos pequenos
pequenos bebês corpos. Ao mesmo tempo, tivemos a revelação
surpreendente de nossas próprias singularidades a
partir do reflexo de um espelho humano tão
pequeno: seus corpos e seus olhares.

BRAZ, Ruy 7

SALADO, Luciane Martins 8 Palavras-Chave: Educação Infantil. Bebês.


Metanarrativas. Alteridade. Ato Responsável

“O que eu sou, eu sou em par.


Não cheguei sozinho.”
Lenine
SOBRE

Q
uando uma mãe ou um pai nos entrega no colo seu bebê de manhã, exercem um ato de
confiança do qual não têm racionalmente a consciência plena. É claro que os pais e mães sabem
que nos estão confiando a segurança de seus entes mais queridos, ou, como muitos dizem, que
nos estão entregando seus maiores tesouros.
Há, porém, uma dimensão de influência nossa (e de nossas colegas de trabalho) na vida
desses pequenos e novos sujeitos da qual os familiares nem fazem ideia. Dimensão inclusive que a
maioria de nós educadores dificilmente pára para refletir longa e profundamente. Ainda que digamos
com uma certa frequência algo como “somos um exemplo para eles” ou “tá vendo como ela está me
imitando”, raramente usamos ou evitamos usar essa influência sob os pequenos sujeitos de maneira
predominantemente consciente.
Então, o que tentaremos fazer neste texto é uma curta reflexão sobre o nosso papel
profissional na vida dos pequenos sujeitos com quem nos relacionamos como professores tendo em
vista os conceitos que envolvem o círculo bakhtiniano.

DE ONDE VÊM AS VOZES

O primeiro ano da creche é o primeiro contato da grande maioria dos pequenos sujeitos com
qualquer instituição que não seja a sua própria família. Isso significa que é necessário um certo tempo
para que eles se sintam seguros o suficiente para interagirem tranquilamente conosco, adultos da

7 Pedagogo. Professor de Educação Infantil da rede municipal de Campinas-SP. E-mail: ruyotiba@gmail.com.


8 Pedagoga. Professora de Educação Infantil da rede municipal de Campinas-SP. E-mail: lumsalado@gmail.com.

CORPOS
58

turma. Mesmo neste período, sabemos, já há uma apropriação de símbolos na convivência: o


acolhimento, o colo, o pedido de calma, o oferecimento da mamadeira, o “não”, os diferentes tons de
voz, gestos e ações. Porém, o que mais gostaríamos de refletir é sobre os gestos singulares
construídos no diálogo cotidiano ao longo do convívio de grupos específicos, não os gestos culturais
que poderiam acontecer em qualquer creche.
Em outras palavras, o que nos interessa neste primeiro momento são os símbolos construídos
nas coletividades específicas das quais nós somos professores, enunciados através de narrativas que
expõe alguns dos atos de nossos cotidianos.9

VOZ 1: A CANTORIA DO RUY

A sala em silêncio. Quase todas as crianças e os bebês dormindo. De repente, ouvimos, em um


sotaque bebelês, que a baleia é amiga da sereia. Não houve como não rir. Carlos Antônio10 parece ter
escolhido uma hora onde conseguia ouvir a própria voz para entoar o canto que é o maior sucesso
este ano.
Ruy

Choro e disputas. O tédio, a fome e o sono predominam e contaminam a sala com uma
atmosfera de desespero em muitos dias logo antes do almoço. Temos hora exata para sair da sala:
antes, não há lugar no refeitório; depois, atrasa a cozinha. O hiato de tempo que fica entre o fim da
troca de fraldas e a saída quase todos os dias é um caos.
Corro até o cavaquinho, tiro ele da capa e começo a cantar. Por alguns minutos, os sorrisos
retornam. Em volta de mim, dezenas de bebês dançam e cantam as poucas palavras que conseguem
pronunciar.
Ufa!
Ruy

O cantar aglutina. É só começar e as crianças vêm. Em meados do ano, já temos os hits, os


sucessos que emplacaram com aquele grupo de crianças. Cada ano é diferente e não me perguntem o
porquê, pois só faz uns dez anos que tento entender.

9 Nas seções de “vozes”, usaremos a metodologia metanarrativa para refletir sobre o que nos acontece. As metanarrativas são uma prática
importante no Grubakh (Grupo de Estudos Bakhtinianos, vinculado ao GEPEC – Grupo de Estudo e Pesquisas em Educação Continuada – da
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp), do qual ambos fazemos parte e que, portanto, nos constitui. Este
conceito de “metanarrativas” teve sua primeira tentativa de condensação e refinamento pelo grupo no livro “Metodologia de pesquisa narrativa
em Educação: uma perspectiva bakhtiniana” lançado em 2015. As narrativas foram escritas por cada um dos dois autores em suas respectivas
turmas de bebês e crianças pequenas (de 0 a 2 anos). As narrativas estão em itálico e as metanarrativas vêm logo em seguida com uma linha
de espaçamento entre elas.
10 Este e todos os outros nomes das narrativas são fictícios. Os bebês ainda não têm experiência de vida suficiente para nos autorizarem a

usar seus nomes reais conscientes de todas as implicações desta autorização.

CORPOS
59

Pois bem, cantar aglutina. E acalma. Ou melhor, tira o foco do que há de ruim, me parece, pois
cessa instantaneamente a maior parte do choro. Isso, por si, já seria um bom motivo para a prática do
canto nas salas da creche. Dar conforto e bem-estar aos bebês e às crianças pequenas é algo que
procuramos sempre fazer, ainda que as condições sejam adversas.
Acontece que também sabemos dos benefícios cognitivos que a música promove nos seres
humanos, sobretudo nos mais novos. Se por acaso as canções simples que fazemos não ajuda
diretamente nestes tais benefícios que a Neurociência gosta de investigar, ao menos contribui com a
vontade das crianças conhecerem mais a Música, suas facetas e sua diversidade, contribuindo,
portanto, indiretamente.
Mas acima do benefício prágmatico do bem-estar e acima do benefício utilitarista da
Neurociência, é o benefício estético que mais nos encanta. É saber que os bebês e as crianças
pequenas se encantam e são tocadas pelas canções que fazemos em grupo. E como são tocadas, são
transformadas.
A melodia e as palavras de Carlos Antônio mostram como sua relação com a canção acontece.
Os gestos da coreografia, as melodias, as palavras curtas do grupo cantando junto mostram como
nossas relações vão sendo criadas e modificadas no dia a dia.

VOZ 2: A CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DA LU

É hora das crianças contarem a história. Maria sobe na cadeirinha apoia o livro nas pernas e
começa. Vira as páginas, aponta os desenhos e fala as palavras mais frequentes do texto. Mas não
para por aí... As expressões faciais e os gestos revelam o quanto ela esteve atenta e do que ela gostou
mais nas vezes que ouviu a história daquele livro: o susto; o morango sendo retirado do livro e
repartido. Certo momento, Maria lambe o dedo antes de passar a página. Eu nem sabia que fazia isso!
Me vejo em tantos gestos daquela menina que está aprendendo a falar.
Luciane

Quando vou contar histórias posiciono uma pequena cadeira de frente para o tapete grande
da sala, sento-me com o livro nas mãos e a contação tem início. Vivenciamos muitas belas cenas entre
nós, a história, nossos gestos e os gestos dos bebês. Nos surpreendemos encontrando novamente
com nossos atos, atos que se transformam e se repetem quando os bebês, muitas vezes sem fazer
uso de palavras, recontam as histórias.
O gesto de sentar na cadeira revela-se poderoso, pois notamos que as crianças pequenas
disputam, através de empurrões, choros e alguns gritinhos, a possibilidade de ocupar o espaço.
Depois de sentada é hora de posicionar o livro. Para dar apoio e folhear suas páginas muitas crianças
utilizam seus pés dobrados como suporte/descanso para o objeto. O livro ocupa toda extensão de seu
colo e suas pernas e termina apoiado nos pés das crianças que fazem questão de sentar na cadeira.
Precisam subir, sentar-se, e também manter o equilíbrio segurando o livro. Folhear as páginas,

CORPOS
60

observar cada detalhe, apontar com o dedo e conversar desvendando as imagens e letras. Para além
das páginas do livro vão surgindo gestos, gestos do encontro entre nós professores, contadores da
história, e as crianças.
O fato de haver poucas palavras, ou quase nenhuma, revela muito aos profissionais sobre sua
forma de contar, sobre como os bebês se apropriaram e como reinventam seu próprio jeito de contar
histórias.

VOZES 3: QUERO FALAR, MAS NÃO SEI

Como em breve iríamos visitar uma fazenda e andar de cavalo, quis conversar com as
crianças sobre isso. Além de falar, tive a ideia de colocá-las em cima de um brinquedo do parque e
imitar o trote de um cavalo batucando as minhas coxas.
Noutro dia, João queria me dizer alguma coisa. Ele ainda não fala, e confesso que não entendi
o que ele queria. Quando ele percebeu o impasse, batucou nas coxas. Claro! Ele quer brincar de
cavalo.
Luciane

Ivan é uma das crianças mais ativa da sala. Não poupa esforços para se divertir, se faz
entender de várias maneiras, parece entender tudo que lhe dizemos, mas ainda não fala.
No parque, ele bateu em minha coxa e levantou uma de suas pernas. Devo ter feito cara de
quem não entende. Ele tentou de novo. Como ele viu que minha cara não mudou, pegou minha mão e
puxou até o outro lado do quiosque, no centro do parque. Lá, ele apontou a bola e finalmente eu
entendi.
Ele queria que eu fizesse uma ação que anima não só as crianças, mas que, confesso, me
diverte muito: chutar a bola de plástico bem alto e ver ela quicando pelo pátio.
Ruy

Desde quando não falar impede a comunicação? Diríamos até, de uma maneira poética, mas
sem fugir do que nos ensina Bakhtin, que muitas das palavras mais importantes não são ditas pela
fala.
Os bebês entendem muito cedo a importância do outro. Se nos primeiros momentos de vida
podemos dizer que esta sabedoria, do papel do outro em nossas próprias vidas, é “natural” ou
“instintivo”, ao longo do tempo vamos percebendo no convívio com esses pequenos que eles vão dando
valores distintos para o outro ser humano. Eles percebem por suas experiências de vida que o outro é
responsável pelo carinho, pelo atendimento das necessidades e dos desejos. Eles percebem que para
serem felizes dependem dos outros.
O que talvez não percebam é o quanto têm que se entregar para o outro neste processo
também. É um processo não só dialógico, mas também dialético. Se o bebê não se movimenta, não

CORPOS
61

demonstra o que quer. Muitas vezes esse movimento é a contragosto ou, no mínimo, não “instintivo”: o
bebê não somente chora, ele faz gestos que apreende do seu ambiente, códigos usados pelos sujeitos
que estão ao seu redor ou por todo o conjunto social do qual faz parte. E, se ele usa esses códigos,
usa porque viu no outro a causa ou a consequência para usá-lo. Em outras palavras, aprendeu ou foi
modificado pelo outro.

OUTRO CORPO

Cada uma das interações descritas nas narrativas enfatizam o quanto cada criança é
constituída por nossos atos. No convívio diário, elas percebem as funções sociais e comunicativas de
nossos gestos e falas. Mesmo quando não nos apercebemos, o corpo fala para elas sobre padrões e
as consequências desses padrões em cada um de nós, em nossas relações e, consequentemente, no
grupo onde estamos convivendo.
Os gestos são apropriados de maneiras tão variadas quantos são os sujeitos. Quando
emitimos um gesto, este pode ser entendido semelhantemente ao que quisemos emitir ou muito
diferentemente disso. Da mesma forma, quando o gesto é reproduzido, cada bebê pode emitir da
forma que gostaria ou bem diferente disso.
Disto, é preciso ter claro que o que podemos ver são só os gestos. Podemos intuir através de
indícios outras coisas, como o que se sentiu ou o que se pensou, mas ver, somente os gestos. E destes
gestos, notamos alguns reproduzidos de maneira inequívoca, como o mandar beijos tão comum em
nossa sociedade, desde as famílias. Outros porém, somente pessoas que estão há um bom tempo em
convivência com grupos de bebês e de crianças pequenas – e que estão atentas a esses gestos –
conseguem identificar, como o sinal de “legal” produzido não com o dedo pelegar, mas com o dedo
indicador.
Parte destes gestos claramente foram assimilados no cotidiano da creche, e é onde nos
reconhecemos quando prestamos atenção na interação constante que vivemos. Ninar as bonecas é
algo que possivelmente se observa em família ou em outros ambientes da vida cotidiana, seja na
forma de um bebê real, seja na forma de boneca mesmo, quando uma pessoa adulta ou uma criança
mais velha ensina aos bebês esta prática no brincar. Quando, entretanto, uma criança de um ano e
alguns meses senta-se num banquinho de seu tamanho, coloca no chão a sua frente uma cadeirinha
de balanço onde os bebês são ninados, sobre esta cadeirinha uma boneca, e se põe a balançar a
cadeirinha com um dos pés, exatamente como algumas das monitoras da sala fazem, pois têm que
ninar três ou quatro bebês ao mesmo tempo, isso é marcadamente algo apreendido de seu cotidiano
na creche.
Outros gestos, porém, não temos como determinar de onde vêm, mas podemos suspeitar com
certa força. É o caso do gesto mais imperativo e autoritário que a maioria dos bebês logo se
acostuma a fazer quando levanta o dedo indicador, aponta para um coleguinha e pronuncia frases –
oralmente incompreensíveis para nós adultos, na maioria das vezes – em tom de bronca. Este tipo de

CORPOS
62

gesto não é exclusividade das pessoas que trabalham nas creches. Entretanto, não somente o
endoçamos11, mas também o reforçamos temporalmente, uma vez que os bebês ficam acordados
mais tempos dentro da creche que em suas prórpias casas e famílias.
Mais um indício de como nossas relações cotidianas com os bebês constituem-os, pelo mesmo
motivo do exemplo anterior, é a enunciação de uma das primeiras palavras que os bebês falam, o
“não”. Dito e reforçado em todos os lugares, por razões que vão desde a máxima preocupação com o
outro até a completa não consideração, o não sem justificavas é emitido com frequência em nossos
espaços de convívio. Vemos os bebês e as crianças pequenas dizerem não só a palavra, mas com os
tons de algumas das colegas.
Contudo, ainda há algumas flores no jardim. Se gestos que não gostaríamos de ver repetidos
pelos bebês e pelas crianças pequenas aparecem-nos como espelho, outros gestos, adoráveis, que
gostaríamos de ver mais no mundo, brotam notadamente por estarmos juntos e trabalhando com eles
no ambiente da creche. É o caso do abraço. De tanto abraçarmos os pequenos, eles usam do mesmo
gesto entre eles. É muito forte você ver que o carinho e o bem-querer podem ser mostrados e
significados num gesto tão simples e fácil de ser realizado.
Nem tão simples, porém, é o caminhar. E, com certeza, somos nós também que reforçamos
esta ação tão importante. Parte significativa da liberdade que temos para as nossas ações vem do
simples fato de conseguirmos caminhar, ou seja, de nos deslocarmos em pé, deixando as duas mãos
livres para realizarmos outras ações. Caminhar é uma ação muito complexa. É um intercalamento de
equilíbrio e desequilíbrio intensionais no qual a parte do desequilíbrio não pode ser nem muito intensa
nem muito duradoura. Essa complexidade só pode ser aprendida na medida em que se a vive. Mas é
nosso próprio deslocamento pelo espaço das salas e outros ambientes que dão aos bebês a
possibilidade, o aval e provavelmente até parte da vontade de o realizar como ato. E se nós adultos
atuamos como fonte de inspiração para esta ação tão complexa e importante, outros bebês são o aval
mais significativo para ele acontecer. Isto porque é comum ver grupo de bebês começando a
caminhar na mesma semana, ou até no mesmo dia. É como se um audax entre eles conseguisse
romper a grande barreira do primeiro esforço e dissesse para os outros, assim, que é possível; é
como se, ao ver alguém pequeno como você conseguir realizar algo, você dissesse “eu também
consigo”.
E ações como esta vem do exemplo e da significação que os pequenos sujeitos dão. Não é
preciso ensinar teoricamente ou mesmo com “passo a passo” práticos como caminhar. Assim como
não é preciso ensinar-se a falar. Apesar do ambiente onde existem sujeitos falantes ser condição
necessária para que os pequenos sujeitos comecem a falar, não é preciso ensinar-se as pronúncias
dos fonemas, as entonações e outros elementos da fala. É muito bonito, por exemplo, ver as crianças

11Escolhemos usar a primeira pessoa do plural, pois, mesmo quando nós dois, professor e professora das turmas, não usamos destes
recursos que estamos descrevendo, não conseguir extingui-los do ambiente da creche já é algo que diz sobre nossas responsabilidades nas
ações coletivas.

CORPOS
63

pequenas chamando nossos nomes pela primeira vez, mesmo sem ninguém ficar insistindo “fala Ruy;
ru-y” ou “fala Lu; é tão fácil: Lu”.
A racionalidade na qual vivemos é tão poderosa que o planejamento (e a tentativa de
adequação a eles) são imensamente mais fortes que o modo mais antigo e corriqueiro de aprender:
tentativa e erro (e acerto). O erro é ridicularizado e até condenado, pois nos é feito crer que só existe
um “certo” ou uma “verdade” 12. Ainda assim, é tentando e errando até acertar que aprendemos
algumas coisas das mais importantes em nossas vidas, como caminhar e falar.
Nossos corpos são espelhos. Andamos, falamos, enunciamos em diferentes contextos, em
diferentes entonações, tratamos as situações com gesto de acolhimento, de medo, de dúvida, de raiva
e de tantas outras maneiras e significações. Ao nosso lado, diariamente, estão os bebês e as crianças
pequenas, e eles veem o que se pode e o que não se pode e os modos de ocorrência. É assim que veem
que a risada da Lu e sua maneira de jogar a cabeça para trás quando ri é um modo interessante de
expressar alegria e contentamento; é assim que veem que o “eita pêga” do Ruy é um modo possível de
expressar dúvida de proceder.
Os corpos são a ligação entre a vontade e o enunciado 13 , entre a cultura e o ato, e os
pequenos assimilam a todo o tempo, através dos nossos corpos, para seus próprios corpos, as
modalidades possíveis de enunciar e de realizar atos no mundo.

AINDA HÁ O QUE SE CONSIDERAR

Antes de finalizar, queremos chamar a atenção para dois aspectos importantes, que podem
ter ficado claros ao longo do texto, mas podem não ter ficado, e não queremos correr o risco desta
polifonia em específico.
O primeiro aspecto é que não estamos querendo conter as manifestações humanas dos
pequenos e muito jovens sujeitos em teorias psicologizantes – ainda que consideremos que estes
saberes tenham seu valor histórico e, quem sabe, até seu valor contemporâneo como um introdutório
seguro num assunto tão complexo. Ao contrário, queremos ampliar o modelo de observação das
interações dos bebês e das crianças conosco, adultos. Introduzindo conceitos de Bakhtin e de seu
círculo, queremos propor uma maneira de enxergar as relações dos pequenos com outros olhos, com
um certo excedente de visão, por assim dizer.
O segundo aspecto é mais importante e menos evidente, então devemos deixar claro nossa
posição com quem queira dialogar conosco. Esse aspecto resume-se numa contraproposta à
metáfora do espelho utilizada até aqui – e que ainda será usada. Dito isso, pomos a frase em
destaque:
Nem tudo é espelho.

12Ao contrário do que Bakhtin deixa claro (p. 65, 2010), distinguindo “pravda” (verdade na relação) de “istna” (verdade absoluta).
13Tentamos relacionar as manifestaçãoes corporais e os grupos das salas de referência e do ambiente ao redor, considerando inclusive as
famílias, aos conceitos de “enunciado” e de “auditório social” de Volochínov em “Marxismo e filosofia da linguagem” (p. 204, 2017).

CORPOS
64

Com isso, queremos dizer que, apesar de crermos na força e na necessidade do outro para
nossa constituição, não queremos pregar que há somente ações não-inéditas no mundo. Há também
ações instintivas ou naturais ou determinadas geneticamente sim, assim como também há ações
inventadas por cada um dos sujeitos. Para argumentar, podemos citar três exemplos:
Ninguém ensina o bebê como se mama.
Se não houvesse ações inéditas no mundo, estaríamos todos como foram nossos
antepassados.
Se uma criança morde a outra violentamente, não quer dizer que ela viu alguém mordendo ou
mesmo que vivenciou anteriormente uma violência semelhante.
Feitas as devidas considerações, continuemos com o que é importante e move esta escrita: a
força do outro na constituição de cada sujeito. Em outras palavras, voltemos à metáfora, voltemos ao
que é espelho.
Em uma linda passagem de uma de suas aulas, perpetuado no texto célebre “A Hermenêutica
do Sujeito”, Michel Foucault (p. 87, 2006) fala da metáfora do olho14 presente nos diálogos de Platão.
Gostaríamos de utilizar esta outra metáfora, ainda que descontextualizada, pois, como toda boa
metáfora, não só nos ajuda a compreender, mas o faz de maneira poética.
Quando olhamos no olhar de um outro sujeito, inevitavelmente vemos algo que sozinhos não
conseguimos: vemos a nós mesmos, nossa imagem refletida no olho do outro. Quanto mais íntimos
formos de quem estamos olhando nos olhos, mais detalhes vemos sobre nós mesmos. Até o ponto em
que conseguimos ver o nosso próprio olho.
Nossa geração nasceu e viveu em um mundo repleto de espelhos e de autorretratos – ainda
que muitos de nós tenhamos vivido a época pré-digital. Tendo somente esta experiência, nem
chegamos a imaginar uma vida sem saber como realmente nos parecemos. Porém, se lembrarmos
que os vidros com alto grau de transparência são uma tecnologia recente na história humana, que era
muito caro ter um pedaço de metal polido e muito difícil de manter, e que as fotografias surgiram a
menos de três gerações, conseguimos perceber que os instrumentos que nos ajudam a reconhecer
nossa própria imagem são um privilégio – e às vezes um escravizador – que poucos seres humanos
puderam e podem utilizar. É no outro que temos, pois, a nossa mais longa história de relação conosco
mesmos.
A metáfora do olho nos remete imediatamente a dois conceitos fundantes da filosofia
bakhtiniana: o excedente de visão e a alteridade.
Só conseguimos ver o que há em nós mesmos se existe um outro. A alteridade é condição
necessária para nos percebermos.
É esta condição necessária que promove o excedente de visão. Como explica Bakhtin (p. 21,
2003) em “Estética da criação verbal”, só o olhar do outro no mundo me ajuda a perceber coisas que

14 Bakhtin também utiliza esta metáfora quando trata do excedente de visão em “Estética da criação verbal”. Resumimos como interpretamos
que Bakhtin trata essa metáfora na seguinte frase: “Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos” (p.
21, 2003).

CORPOS
65

eu, de minha perspectiva singular, não consigo observar, inclusive partes de mim mesmo – como
cabeça, boca e olhos – e minha imagem como um todo, sobretudo de minhas costas.
Nos bebês, o excedente de visão ajuda não só a perceber o que está a seu redor, mas também
o que está nele. Muitas vezes, o nosso contato com os seus corpos é que chama a atenção para partes
dos corpos das quais antes eles não se apercebiam. Ao mesmo tempo, damos nomes a essas partes,
imprimindo os signos de nosso horizonte social. E todo esse conjunto de atos dá ao bebê a
possibilidade de consciência das coisas que o rodeiam e dele mesmo. Como explica Volochínov (p. 144,
2013) em “A Construção da Enunciação e Outros Ensaios”, a linguagem anda de mãos dadas com a
consciência. Imprimindo nome às coisas, trazemos também a consciência desta coisa.
E chegamos, assim, à última etapa de nossa reflexão. Fomos afetados (aesthesis, parte
estética) por uma percepção de como nossos gestos constituem os getos dos bebês; raciocinamos
(episteme, parte epistemológica) sobre como isso acontece; então, que caminho (ethos, parte ética)
devemos seguir, o que devemos fazer a partir desta percepção?
Os caminhos possíveis são variados. Escolhemos, entretanto, seguir, ou ao menos nos
aproximar, da ética do ato responsável de Bakhtin (p. 71, 2010). Contra a ética material, do fazer
porque é assim, e contra a ética formal, do fazer porque é melhor pra mim, a ética do ato responsável
faz o nosso cabedal de saberes convergir com as possibilidades de ação que temos, ou seja, une o
mundo da cultura com o mundo real.
Ótimo! Mas o que isso significa em nosso caso: professora e professor de bebês?
Esta resposta não é simples, e podemos prosseguir refletindo sobre ela por páginas a fio.
Porém, vamos resumir o conjunto de caminhos que julgamos dever tomar em dois aspectos de nossos
atos cotidianos. Estes dois aspectos, inclusive, relacionam-se a todos os mais recentes documentos
curriculares, tanto em nível nacional quanto em nível municipal, da Educação Infantil. Tomando como
exemplo o chamado Caderno Curricular Temático de Espaços e Tempos do município de Campinas (p.
16, 2014), a indissociabilidade entre o educar e o cuidar é um dos pricípios apresentados para esta
etapa da educação.
O primeiro aspecto de nossos atos cotidianos para que possamos cumprir as condições de
um ato responsável é o desafio. Devemos tratar cada um dos bebês de modo desafiador, para que eles
possam ampliar seu repertório linguístico em todos os aspectos – e isso só pode acontecer quando
consideramos os bebês e as crianças pequenas como sujeitos, ou seja, considerando seus aspectos
“alteritário” e “singular”. Apresentar objetos, ações e símbolos diversos é a condição de vê-los
apropriarem-se do nosso horizonte social, de tomarem consciência do que está no mundo e
consciência de si mesmos. O desafio é diretamente relacionado ao educar, uma vez que esta
ampliação de repertório é intencional e proposta cotidianamente pelos professores e professoras.
O segundo aspecto é a amorosidade. Devemos tratar cada um dos bebês de modo acolhedor,
carinhoso e fraterno, para que eles possam ter segurança e disposição para conviver com outras
pessoas e para continuar conhecendo o mundo. Neste aspecto, temos que repudiar qualquer
manifestação de agressividade, de destempero ou mesmo de indiferença para com os bebês. Este

CORPOS
66

repúdio deve ser ativo, mas igualmente amoroso, uma vez que repudiar violência com violência é
igualmente gerar o exemplo da violência. A amorosidade é diretamente relacionada ao cuidar, uma vez
que ninguém cuida de maneira negligente ou agressiva.
A escolha é, portanto, mostrarmos nossos corpos como produtores de desafios e de
amorosidade. Temos que acordar cotidianamente e nos posicionar contra a reprodução de práticas de
permanência e de opressão. Não há fórmulas, sabemos. Não há uma trilha ou uma estrada segura, se
escolhermos a ética do ato responsável. Cada situação trará novas possibilidades de rumo. Mas a
direção e o sentido, estes sim, são seguros: precisamos ir em direção à transformação.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


__________. Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.
CAMPINAS. Caderno currilar temático da Educação Básica: ações educacionais em movimento. Espaços e
tempos na educação de crianças. Volume I. Campinas: 2014.
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 87-89.
PRADO, G. V. T. et al (org.). Metodologia narrativa de pesquisa em Educação: uma perspectiva bakhtiniana. São
Carlos: Pedro e João, 2015.
VOLOCHÍNOV, V. N. A Construção da Enunciação e Outros Ensaios. São Carlos: Pedro e João, 2013.
__________. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

CORPOS
RESUMO
67
O rap, abreviatura de Rhythm and poetry, é um
gênero musical criado por negros residentes em

O RAP COMO PROTESTO? Nova Iorque na década de 1970, cujos temas


abordam o cotidiano das comunidades negras. No
Brasil, surgiu no início dos anos 80 nas ruas de São

ANÁLISE DO “RAP
Paulo e, embora tenha sofrido resistência da
sociedade e da polícia, sobreviveu nas periferias,
local de evidenciada desigualdade social e violência.
Esse contexto colaborou para sua perpetuação, pois

REAÇA”, DE LUIZ, O permitiu, num ambiente pobre e hostil, denúncias e


críticas sociais. Entretanto, há quem modifique o
conteúdo temático desse gênero discursivo,

VISITANTE
subvertendo sua proposta inicial por meio da
apropriação de estratégias discursivas do rap. É o
caso do “Rap reaça”, de Luiz Paulo Pereira da Silva,
que exalta o coronel Ustra, ex-coronel do Exército
Brasileiro e ex-chefe do DOI-CODI (1970-1974), além
de outras enunciar críticas em sua música. Desse
modo, o objetivo deste artigo é analisar, na esfera
estética, como as valorações e ideologias estão
CAMPOS-TOSCANO, Ana Lúcia Furquim15 configuradas nesse rap, expondo um diálogo de
confronto com outros discursos do gênero. Para
tanto, utilizamos os estudos do Círculo de Mikhail
Bakhtin sobre gêneros do discurso, exotopia e
ideologia. Como resultado, verificamos que, ao
transgredir os sentidos utilizando as estratégias
discursivas do rap tradicional, mas com a escolha
de nomes de personalidades de posicionamento
INTRODUÇÃO conservador e de extrema direita, assim como a
veiculação dessas ideologias, Silva enuncia seu
posicionamento político num embate dialógico de

O
confronto..
s gêneros do discurso, nos estudos do Círculo de Mikhail
Bakhtin, estão atrealados às finalidades das diversas esferas Palavras-Chave: Rap. Gêneros do Discurso.
das atividades humanas que, por sua, são espaços sociais e, Exotopia. Dialogismo..

portanto, éticos expondo, desse modo, valorações e ideologias de um


determinado grupo social. Como afirma Grillo (2006, p. 147)

As esferas dão conta da realidade plural da atividade humana ao mesmo tempo que se assentam sobre o
terreno comum da linguagem verbal humana. Essa diversidade é condicionadora do modo de apreensão
e transmissão do discurso alheio, bem como da caracterização dos enunciados e de seus gêneros.

Por essa perspectiva, propomos analisar o “Rap reaça”, de Luiz, o Visitante que enuncia, em
contraponto ao rap tradicional, uma ideologia de extrema direita, com exaltação ao coronel Ustra que
atuou no período da ditadura militar no Brasil e a Bolsonaro, militar da reserva e, atualmente,
Deputado Federal pelo Rio de Janeiro, um político cujo posicionamento conservador, defende a
ditadura militar.

15 Doutora em Linguística. Profa. do Departamento de Letras do Uni-FACEF Centro Universitário Municipal de Franca. E-mail:
anafurquim@yahoo.com

CORPOS
68

Luiz Paulo Pereira da Silva é um jovem de 22 anos, estudante de Psicologia e morador de um


bairro pobre de Recife, Pernambuco. Considera-se o primeiro rapper de direita do Brasil, embora já
existam outros críticos aos movimentos de esquerda ou com vertente religiosa.
Os temas abordados por Silva evidenciam o conservadorismo, com exaltação à “moral e aos
bons costumes”. Num confronto com o rap tradicional, com temáticas voltadas para a truculência
policial e a vida na periferia, já foi chamado de fascista e levou até uma pedrada no pé. Silva afirma
que “[...] falam tanto que o rap é livre e que pregam a liberdade de expressão, mas são contra a
minha, eu não sou contra a deles" (NOGUEIRA, 2017, online).
Assim, levantamos o seguinte questionamento: na relação dialógica entre o rap tradicional e o
“rap destra”, como são construídos discursos contrários que expõem numa posição diversa outros
olhares sobre o contexto social e político atual?
Desse modo, utilizamos como referencial teórico-metodológico as reflexões do Círculo de Mikhail
Bakhtin sobre gêneros do discurso, ideologia e exotopia a fim de analisarmos como o “rap” é atravessado
por outros olhares, portanto, outras valorações, contrapondo dialogicamente com outros sentidos.
De um gênero oriundo de um contexto de crítica social e de denúncia das desigualdades
existentes principalmente entre a comunidade negra, transgridem-se na relação estética eu-outro os
sentidos primários do rap para uma nova configuração ética e veiculadora de sentidos outros.

1. GÊNEROS DO DISCURSO: a visão excedente nas relações dialógicas

Os gêneros do discurso pela perspectiva do Círculo de Bakhtin, inseridos em um dado


contexto espaço-temporal, são concebidos como produção em constante movimento, como diálogo
não só entre os sujeitos da comunicação, mas também entre enunciados, entre discursos.
As diversas esferas da atividade humana, como sabemos, estão relacionadas à linguagem, ou
seja, o enunciado na esfera do discurso é uma unidade da comunicação humana e não somente uma
sentença inscrita na gramática. Nas palavras de Bakhtin (2000, p. 279)

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que
emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições
específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu
estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional.

As esferas das práticas humanas, devido à heterogeneidade dos grupos sociais, atribuem
valorações diversas e, muitas vezes, contraditórias, aos enunciados. Desse modo, são constituídos
diferentes modos de sentir o mundo, ou seja, de não somente refleti-lo, mas principalmente, refratá-
lo. Para o Círculo, é impossível dar sentido sem haver refração, num processo de olhares e
interpretações diversas. Como afirma Faraco (2013, p. 173), [...] o processo de transmutação do

CORPOS
69

mundo em matéria significante se dá sempre atravessada pela refração das axiologias sociais, ou
seja, a partir de um posicionamento valorativo”.
Nesse contexto, o gênero não deve ser abstraído da esfera que o cria e o usa e nem de seu
posicionamento social, sendo importante levar em consideração o tipo de atividade, o contexto
espaço-temporal e as relações intersubjetivas. Como o tempo é histórico e o espaço é social, os
gêneros representam a realidade de acordo com as manifestações dos sujeitos da comunicação.
Deparamo-nos, assim, com as es/instabilidades, pois a forma pode ser entendida como
representação estética de uma determinada cultura contextualizada no tempo-espaço e como produto
do processo dialógico entre os sujeitos da enunciação.
Esses sujeitos precisam ser olhados pelo olhar do outro, ou seja, é a ideia de “visão
excedente” ou “exotópica” (BAKHTIN, 2000). Por essa concepção, vemos e sabemos sempre algo que o
outro não sabe, devido a sua posição espacial. De acordo com Bakhtin (2000, p. 43)

quando estamos nos olhando, dois mundos diferentes se refletem na pupila dos nossos olhos. Graças a
posições apropriadas, é possível reduzir ao mínimo essa diferença dos horizontes, mas para eliminá-la
totalmente, seria preciso fundir-se em um, tornar-se um único homem.Esse excedente constante de
minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou o único a
ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias – todos os
outros se situam fora de mim.

Compreender os mais diversos gêneros, portanto, é também nos colocarmos no lugar do


outro, é nos identificarmos com o outro a partir de seus valores sociais, de seu tempo, de sua posição
no espaço e depois voltarmos para nosso lugar para a complementação de seu horizonte de acordo
com o excedente de nossa visão, de nosso conhecimento, de nosso lugar, de nossos desejos. Pela
visão excedente, surge um espaço dialógico entre os sujeitos da comunicação e, como um elo de uma
corrente, há atitudes responsivas ativas.
O outro em contato com um determinado enunciado, concorda, discorda, complementa,
confronta, executa atividades ou ordens, deseja determinado objeto, orienta sua vida, saindo de sua
condição de ouvinte e entrando na condição de falante. Assim, na comunicação verbal, o enunciado é
uma unidade real que se inter-relaciona com outros enunciados, em outros momentos, em outros
lugares, ou seja, “é apenas através da enunciação que a língua toma contato com a comunicação,
imbui-se do seu poder vital e torna-se uma realidade” (BAKHTIN, 1999, p.154).
Assim, pela concepção de dialogismo como processo constante da comunicação, os gêneros
podem ser caracterizados como heterogêneos, construídos pelos mais diferentes integrantes das
atividades sociais e com as mais diversas finalidades.
Como os gêneros do discurso objetivam atender às necessidades da interação verbal, os
elementos componentes do enunciado – conteúdo temático, estilo e construção composicional –
também estão intrinsecamente ligados aos valores e funções sociais do processo de comunicação.
O estilo, por exemplo, constitui-se pela escolha dos recursos da língua, como as categorias
lexicais, morfológicas e sintáticas, de acordo com as finalidades de comunicação e, portanto, com a

CORPOS
70

relação intersubjetiva entre o querer dizer do enunciador e a imagem que ele concebe do
enunciatário.
Também vale ressaltar que o estilo está indissoluvelmente ligado ao conteúdo temático e,
consequentemente, aos objetivos de uma dada interação verbal. Nessa ambiência, estilo, intuito
discursivo, contexto sócio-histórico-econômico-cultural e a ambientação espaço-temporal estão
intrinsecamente relacionados.
Cada esfera das atividades humanas exige uma determinada construção composicional, a
saber, o tipo de relação entre os parceiros da comunicação e, por conseguinte, o tipo de estruturação
e de conclusão do todo do enunciado. Também entendemos que, ao empregar um determinado estilo
constrói-se o todo do enunciado que só ocorre por meio da possibilidade de resposta do outro.
Ainda em relação ao intuito discursivo, há de se levar em consideração que o estilo e a
composição estão ligados ao valor atribuído pelo enunciador a um determinado enunciado, ou seja, à
expressividade, às entoações dadas, enfim, ao caráter emotivo, valorativo e expressivo desse
enunciador que, sob a influência de seu destinatário e de sua reação-resposta, acaba por empregar
ou não determinados recursos linguísticos, sem desconsiderar seus próprios valores sociais e
ideologias.

2. “RAP REAÇA”, DE LUIZ, O VISITANTE: um olhar diverso

O gênero rap tem como temática o cotidiano da periferia, pois, como já mencionamos, surgiu
em Nova Iorque, no Bronx, e se constituiu como relato da vida de jovens negros, expondo,
criticamente, sua realidade.
De acordo com Bentes (2006, p. 116), em seus estudos sobre o rap, no Brasil, os temas mais
comuns envolvem:
(i) denúncia social: crítica às condições precárias de saúde, educação, lazer e transporte dos
moradores das periferias; crítica à violência policial (contra os moradores da periferia e contra os
presos comuns), crítica ao desemprego e crítica a todo o contexto político-social que “empurra as
pessoas para o crime e para as drogas” (consumo e tráfico); crítica às práticas religiosas que
incentivam contribuição financeira sistemática dos fiéis; (ii) crítica explícita à política excludente dos
governos; (iii) relatos sobre o cotidiano do crime; (iv) denúncia de preconceito racial; (v) denúncia sobre
as condições carcerárias e sobre o cotidiano na cadeia; (vi) afirmação de uma identidade negra; (vii) a
função social do rap e do movimento hip-hop; (viii) lazer e diversão na periferia; (ix) valorização da
periferia e de seus moradores. Há ainda temas menos recorrentes: a discriminalização da maconha, a
violência contra a mulher, a exploração sexual da mulher, o cotidiano de meninos de rua, a
criminalização da infância, relatos sobre a vida de usuários de droga, alcoolismo.

Enquanto gênero musical, é estruturado por batidas eletrônicas e por outros recursos
sonoros, sempre “cantado” por um homem que fala/relata o conteúdo temático das letras.

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71

É importante salientar que o rap, assim como o grafite e o break, faz parte do movimento do
hip-hop. No Brasil, esse movimento foi mais intenso em São Paulo, na década de 80, invadindo os
bailes da periferia e indo para as ruas, com a dança break, inicialmente.
A partir dessas breves considerações sobre o rap, apresentamos a seguir o “Rap reaça”, de
Luiz Paulo Pereira da Silva, objeto de análise de nossa pesquisa:

#UstraVive (Um Rap Reaça)', de Luiz, o Visitante


As crianças são Ustra, mulheres são Ustra, somos todos Ustra
A gente entende que, independente de idade, não foge da luta
Os moleques aprendem a brincar de polícia e policia é a nossa cultura
De pequeno se aprende que bandido bom é bandido na soltura
Não é por igualdade que tem cota racial
Mas pra que de fato o racismo se torne real
Cobrar dívida histórica agora é fazer o mesmo
Só que branco subordinado do preto
Não querem igualdade, querem vingança
Como se o erros carregássemos de herança
_Antes de dar play em rap, escute o Bolsonaro
Antes de clicar no Genius16, leia Olavo de Carvalho, é..._
Viva o regime militar.
(NOGUEIRA, 2017, online)

Enunciam-se valorações e ideologias opostas ao rap tradicional, visto que há uma crítica a
cotas destinadas a estudantes afrodescendentes para o ingresso nas universidades. Ao contrário de
um discurso de denúncia ao preconceito contra o negro ou ainda de afirmação da etnia, subverte o
sentido ao afirmar que os negros “não querem igualdade, querem vingança”, pois será o branco
subordinado a ele. Aliás, a escolha linguística feita para se referir ao negro é “preto”, termo que tem
forte conotação pejorativa, inclusive presente em várias expressões de valoração preconceituosa,
como: “A coisa tá preta” ou “Serviço de preto” em oposição à cor branca, como “Amanhã é dia de
branco”, por exemplo.
Utilizando-se de um discurso nacionalista, assim como enuncia Bolsonaro, há um diálogo com
o Hino Nacional Brasileiro ao afirmar que “A gente entende que, independente da idade, não foge da
luta”. No contexto do Hino, veicula-se que “um filho não foge à luta” em momentos de defesa à pátria,
afirmando não haver temor caso seja necessário dar a vida pelo país. No rap, a defesa pelo
militarismo ao exaltar o coronel Ustra, que foi chefe do II Exército do DOI-CODI no período de 1970 a
1974 durante a ditadura militar brasileira, reforça o militarismo por meio da repressão e da exaltação
à polícia. O enunciado “As crianças são Ustra, mulheres são Ustra, somos todos Ustra” e o emprego
do hashtag “#Ustravive” incita o ouvinte a aderir à ideologia veiculada na letra desse rap.

16Genius é uma empresa de mídia norte-americana que permite aos usuários fornecer anotações e interpretação de músicas, poemas,
notícias etc. Fundada inicialmente como Rap Genius tinha como propósito divulgar hip-hop, porém, atualmente, apresenta outros gêneros como
música pop , literatura, etc.

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72

O emprego de nomes como Ustra, Bolsonaro e Olavo de Carvalho, este último


conhecido por seu posicionamento conservador e anticomunista, contribuem para a construção de um
discurso de ultra direita, daí ser chamado de “um rap reaça”. A visão de mundo do enunciador
evidencia, mais que um reflexo do mundo, a refração, ou seja, a maneira como concebe e interpreta
sua realidade. Expressando um tom valorativo de que o regime militar é a melhor alternativa para a
sociedade brasileira e discriminando o negro, atua no ato responsivo de olhar para o outro com sua
visão de mundo, num processo dialógico de confronto e de negação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se o rap surgiu para combater o preconceito, expor criticamente a realidade da periferia e


reafirmar a identidade do negro, no rap analisado, o discurso veiculado é um embate a essas ideias.
Subvertendo o sentido de preconceito, Silva afirma que a comunidade negra não quer igualdade, quer
vingança, além de negar a história dos afrodescendentes no Brasil, pois apesar da abolição da
escravatura ocorrida no final do século XIX, a maioria ainda sofre injustiças e vive a desigualdade social.
A construção de sentido desse discurso exalta as ideias extremistas, nacionalistas e
militaristas de Jair Bolsonoro, evidenciando um olhar contrário às causas defendidas nos raps
tradicionais. Transgredindo, Silva responde com seu olhar exotópico, por ocupar um determinado
lugar social e interpretar esse mesmo espaço e o outro sob seu prisma, reiterando suas ideologias
por meio de um discurso laudatório ao regime militar e a personalidades com posicionamento
conservador.
O gênero rap transposto para outra temática é modificado para atender ao intuito discursivo
de seu enunciador. Assim, o estilo, constituído pela escolha de termos que remetem e reiteram a
ideologia de extrema direita, expressa um tom valorativo de incitação à repressão num discurso
nacionalista de que somente a polícia e o regime militar são capazes de defender o Brasil.
No diálogo conflitante com os discursos defensores da liberdade de expressão, de denúncia e
crítica às desigualdades sociais, Silva apropria-se do gênero rap para, como ele mesmo afirma,
“parodiar estratégias e fenômenos da esquerda” (NOGUEIRA, 2017, online). Enfim, num processo de
apropriações e diálogos, o “rap reaça”, informa, discute, exalta uma posição política, como se
piscasse o olho para todos os rappers e dissesse: transgredindo, dou meu recado .

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Gêneros do discurso. In:________. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão;
revisão de tradução de Marina Appenzeller. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
________.(VOLOSHINOV) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

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73

BENTES, Anna Christina. “Um bom lugar”: a arte verbal nos videoclipes do rap paulista. Disponível em: <
https://periodicos.ufrn.br/gelne/article/view/9121/6475>. Acesso em 24 set. 2017.
FARACO, Carlos Alberto. A ideologia no/do Círculo de Bakhtin. In: PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Orgs.). Círculo
de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas: Mercado de Letras, 2013. p.167 – 182.
GRILLO, Sheila V. de Camargo. Esfera e campo. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2006. P.133-160.
NOGUEIRA, Amanda. Inspirado em Chico, rapper louva Bolsonaro e projeta vertente ‘reaça’. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/06/1890534-inspirado-em-chico-rapper-louva-bolsonaro-e-projeta-
vertente-reaca.shtml>. Acesso em 06 jun. 2017.

CORPOS
RESUMO
74

POESIA SLAM: voz e resistência 17 Palavras-Chave: Rap. Gêneros do Discurso.


Exotopia. Dialogismo..

CASADO ALVES, Maria da Penha18

As fronteiras rígidas estabelecidas pelos Estados modernos se


tornaram porosas. Poucas culturas podem ser agora descritas
como unidades estáveis, com limites precisos baseados na
ocupação de um território delimitado. Mas essa multiplicação de
oportunidades para hibridar-se não implica indeterminação, nem
liberdade irrestrita. Nestor Canclini

A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Por uma
Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor. É TUDO
NOSSO! Sérgio Vaz

C
onstruímos, ao longo de nossa história no mundo, nossas bibliotecas onde guardamos as obras,
autores, artistas considerados tesouros a serem preservados. Para Canclini ( 2013) essas
coleções, na contemporaneidade, enfrenta sua agonia diante de práticas subversivas e de novas
obras que tensionam o que é considerado colecionável ou canônico. As classificações monologizantes
se esgarçam e a linha demarcatória entre o culto e o inculto, o popular e o erudito cada vez se tornam
mais tênues.
A formação de coleções especializadas de arte culta e folclore foi na Europa moderna, e mais
tarde na América Latina, um dispositivo para organizar os bens simbólicos em grupos separados e
hierarquizados. Aos que eram cultos pertenciam certo tipo de quadros, de músicas e de livros, mesmo
que não os tivessem em sua casa, mesmo que fosse mediante o acesso a museus, salas de concerto e
bibliotecas. Conhecer sua organização já era uma forma de possuÍ-los, que distinguia daqueles que
não sabiam relacionar-se com ela. (CANCLINI, 2013, p. 302).
Canclini nos apresenta um processo dialógico que se dá nas culturas a partir da concepção de
coleção e da ideia de descolecionar como algo constitutivo de diferentes práticas culturais. Longe de
se constituir em algo nocivo, o autor vê esse processo de construção de outras coleções um ato de
relativizar qualquer tipo de fundamentalismo, pois

17
Texto que contempla objetivos do Projeto de Pesquisa Universal financiado pelo CNPQ, Processo n. 409301/2016 – 7.
18 Professora Associada II do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem.

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75

Efetivamente, não há razões para lamentar a decomposição das coleções rígidas que, ao separar o
culto, o popular e o massivo, promoviam as desigualdades. Também não acreditamos que haja
perspectivas de restaurar essa ordem clássica da modernidade. Vemos nos cruzamentos irreverentes
ocasiões de relativizar os fundamentalismos religiosos, políticos, nacionais, étnicos, artísticos, que
absolutizam certos patrimônios e discriminam os demais. (CANCLINI, 2013, p. 307 )

Canclini, ao assim valorar os “cruzamentos irreverentes”, o ato de descolecionar esses


grupos fixos e estáveis nas culturas, permite-nos uma compreensão mais generosa a respeito de
práticas artísticas, estéticas à margem do que é considerado o centro do socialmente valorizado.
Nesse sentido, vale o que observa Bakhtin (2010) ao historicizar a sátira menipéia e a sua existência à
margem dos gêneros sérios da antiguidade. Sua lição nos serve como alerta para pensar que a
cultura é dinâmica, marcadamente histórica e feita por sujeitos históricos que tensionam qualquer
tentativa de monologizar, de absolutizar, de manter categorias rígidas que desconsiderem a movência
da própria vida e da história. Assim, ao longo da história, o sujeito construiu arte, textos, enunciados
estéticos e ocupou espaços para além daqueles considerados adequados para a exposição ou
projeção da boa arte socialmente valorizada. Nossa incursão para entender o Slam se ancora em
percepções sobre sujeito, espaço, forças centrífugas e centrípetas, rua, voz e corpo, resistência,
cultura e linguagem.
Na arena de luta das linguagens, duelam os discursos veiculadores de verdades absolutas (as
forças centrípetas) que tentam impor uma centralização verbo-ideológica que procura conter o
heterodiscurso, as vozes dissonantes (as forças centrífugas). Na babel discursiva, sempre haverá a
tentativa de monologizar e dar a última palavra, palavra-istina. No entanto, na dinâmica discursiva, o
sujeito sempre encontrará outras vozes, outros lugares, outras formas de dizer, outros espaços que
constroem novas sociabilidades à revelia dos museus, teatros, casas de show. Margem, periferia e
centro entram em relações tensas e os sujeitos em suas práticas revelam/desvelam seu
pertencimento. Na contemporaneidade fluida (BAUMAN, 2001) é preciso considerar que os sólidos se
desmancham e novas identidades são forjadas/construídas na heterogeneidade, na mobilidade, no
descentramento.
Marginal. Periférico. Rua. Torneio. Competição. Sujeitos falantes. Corpos em cena. Sujeitos
encarnados. Sujeitos que resistem e assumem a cena sem que sejam autorizados por uma voz que
social que lhe nomeie poeta, escritor, artista. Não há voz chancelada por nenhuma
autoridade/especialista que lhe reconheça ou lhe “dê”a voz. Na roda, o júri pode ser composto por
qualquer um que esteja ali presente. Eis o Slam Poetry19. Dialogicamente, vale ouvir outras vozes
sobre o que nós nomeamos ao longo da história de nossa literatura como “literatura marginal”.
O termo marginal surge na literatura brasileira na década de 1970, com a Poesia Marginal ou
a Geração do Mimeógrafo. Fazem parte desse movimento Ana Cristina César, Cacaso, Paulo Leminski,
Francisco Alvim e Chacal. Em sua maioria são sujeitos do Rio de Janeiro e pertencentes a uma classe
social mais favorecida. O termo marginal também pode remeter a uma produção literária/artística

19
O termo Slam Poetry ou apenas Slam é utilizado para fazer referência aos campeonatos de poesia.

CORPOS
76

fora ou à margem do meio editorial, à revelia do que a academia considera canônico, à péssima
qualidade de material e de linguagem ou aquilo que é produzido por pessoas consideradas de baixa
renda ou “popular”. Podemos, também, recuperar os anos 90 que marcam uma nova entrada na cena
artística “alternativa” de um grupo de escritores que se nomeiam representantes da periferia (São
Paulo). Dos enunciados estéticos desse grupo ganham visibilidade a cultura hip hop, questões sociais
próprias da periferia, linguagem informal, gíria, modos de falar que marcam a identidade desses
sujeitos. Sob ângulo dialógico, a palavra marginal se preenche com valorações de pertencimento de
um grupo a um lugar (periferia) e a uma produção que corre à revelia do que é socialmente valorizado
como a grande arte, a arte socialmente valorizada ou canônica. Para que se nomeie periferia ou
marginal algo, alguém, ou se coloca como centro. Assumimos, neste texto, sob o risco da
superficialidade, que em termos da valoração artística, o centro seria a arte socialmente valorizada e
que compõe nossas coleções do que julgamos canône.
De acordo com Nascimento (2006, p. 18) a nomeação “literatura marginal dos escritores de
periferia” diz respeito tanto a “textos produzidos por escritores da periferia dos demais textos
publicados nos últimos quinze anos que poderiam ser classificados como “literatura marginal’” quanto
os diferencia “das obras dos ditos poetas marginais setentistas.” Nesse texto, nos reservamos o
direito de nomear de poesia ou de arte sem adjetivos que as qualifique, pois reconhecemos seu lugar,
sua importância, seu diálogo incessante na cadeia cultural dialógica em que nos encontramos.
Tratemos de uma dessas manifestações: O Slam. Essa prática discursiva é concebida por nós como
força centrífuga que tensiona o que é considerado boa literatura, poesia, criação, lugar de apreciação
dos tesouros da humanidade. Esses campeonatos de poesia já ocupam a cena cultural em várias
cidades do Brasil e deixam ver que a cultura não diz respeito a lugar fixo, a autores autorizados ou a
público-alvo homogêneo e seleto que podem apreciar a boa arte. Como surgiu o Slam?
O Slam Poetry surge em 1986 com a finalidade de tornar popular a poesia falada. Um operário
da construção civil, Mark Kelley Smith, cria um show-cabaré-poético-valdevilliano que é batizado como
Uptown Poetry Slam. Nasce em parceria com o grupo Chicago Poetry Ensemble. As competições se
expandem de Chicago para a Europa, Itália, França, Suíça e Alemanha. Em 2000, os campeonatos de
poesia chegam ao Brasil. Predominantemente em São Paulo.
Como se organizam os campeonatos de poesia? O que caracteriza os Slams? Esses eventos
são campeonatos de poesia no qual seus participantes/concorrentes têm até 3 minutos para
apresentarem seus poemas, sua performance. Qualquer pessoa pode participar. A poesia é de autoria
do próprio concorrente e nessa performance vale a voz, o gestual, o corpo em cena: não há
acompanhamento musical ou adereços. O texto a ser apresentado pode ser improvisado ou escrito e
memorizado anteriormente. Quanto à forma composicional, não há formato específico. Uma vez que os
participantes competem entre si, quem escolhe/elege o vencedor? No evento, um júri escolhido na
hora por pessoas comuns que ali assistem podem dar nota de 0 a 10. Vence o que conseguir maior
nota. Segue link para vídeo da Slammer Roberta Estrela D’Alva para que se possa ter dimensão desse
evento estético em plena rua.

CORPOS
77

Figura 1. Slammer Roberta Estrela D’Alva vencedora de campeonatos de Slam.

Fonte: https://youtu.be/d7j2hhxdDlc. Acesso em 21.9.2017.

Em franco diálogo com o sarau que sempre andou de mãos dadas com a tradição literária, o
Slam e os novos saraus que estão em cena em diferentes lugares do país têm outros sujeitos, outros
temas, outra performance que os singularizam. Não se declamam os poemas dos grandes poetas, mas
a própria produção desses sujeitos que se veem como atores, sujeitos de linguagem em atos poéticos
nos quais a denúncia, o embate, movem a voz, o corpo e fazem da rua uma ágora dialogicamente
responsiva. Poeta e público se tornam agentes ressignificando espaço e arte. A rua, por sua vez, é
espaço público e pode ser apropriada como um cronotopo onde o sujeito se revela em novas
experiências estéticas. Se em algum momento se pensou que a arte seria aquela a compor uma
coleção resguardada em museus ou espaços insitucionalizados dedicados a sua salvaguarda, essas
experiências urbanas rasuram a “aura” e descolecionam, pois outros gêneros, textos e suportes
ganham a cena e nos convidam a nos reposicionarmos em relação ao que é artístico, ao que é poesia,
ao que é arte.
O espaço urbano das cidades propicia o encontro, os desencontros, cruzamentos
marcadamente heterogêneos e fluxos de toda ordem. Vida e arte em relação dialógica como bem
pensava Bakhtin (2010) ao preconizar que arte e vida não se separam. Ou, ainda, pensando na fluidez
dessa contemporaneidade, novos fluxos que corroem os sólidos:

Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm
dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tipo
(resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer
forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la, assim, mais do que lhes toca ocupar.
(BAUMAN, 2001, p.8)
Nessa contemporaneidade fluida, os espaços e as classificações, os enquadramentos
convivem com a desestabilização e as fronteiras entre produtos, manifestações, objetos, atividades
culturais e artísticas põem em evidência a hibridização, a mestiçagem. A cultura hip hop, a cultura
urbana dão visibilidade a projetos de dizer e manifestações contra-hegemônicas ou como bem nos

CORPOS
78

evidencia Hall (1984), a cultura popular constitui-se como um dos “[...] cenários desta luta a favor e
contra uma cultura dos poderosos: é também o que se pode ganhar ou perder nessa luta. É o campo
do consentimento e da resistência. É, em parte, o lugar onde a hegemonia surge e se constrói. ( p.
109).”
O Slam resistência é esse tempo/espaço onde o sujeito usa a voz e o corpo para resistir. O
Manifesto da Antropofagia Periférica de Sérgio Vaz é a contrapalavra que o poeta lança ao mundo
para defender a arte produzida na periferia, pela periferia e para a periferia:

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor.


Dos becos e vielas há de vir à voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras
um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os
brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e
tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula.
Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção.
Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla
escolha.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. A favor do batuque da cozinha que nasce na
cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”.
Do cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, querem substituir os barracos de madeira.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não
revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo
desprovido de oportunidades.
Um artista a serviço da comunidade, do país. Que, armado da verdade, por si só exercita a revolução.
Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.
Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à
produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? ‘Me ame pra nós!’.
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.
É TUDO NOSSO! (VAZ, 2008, p. 246-250).

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79

A contrapalavra do artista-cidadão reivindica seu lugar no circuito artístico à revelia dos


discursos centrípetos. Politicamente posicionado o artista-cidadão resiste e denuncia. Resiste e
critica espaços, práticas, instituições, sujeitos, manifestações artísticas. Arte que vem da periferia e
não a arte que vai para a periferia. Outro circuito. Outra rota. Outra valoração. A voz da periferia
entra em embate dialógico e parece responder ao que nos afirma Bauman:

[...] Em outro momento é o grupo que volta o gume contra um grupo maior, acusando-o de querer
devorá-lo ou destruí-lo, de ter a intenção viciosa e ignóbil de apagar a diferença de um grupo menor,
força-lo ou induzi-lo a se render ao seu próprio “ego coletivo”, perder prestígio, dissolver-se... Em
ambos os casos porém, a “identidade” parece um grito de guerra usado numa luta defensiva: um
indivíduo contra o ataque de um grupo, um grupo menor e mais fraco (e por isso ameaçado) contra uma
totalidade maior e dotada de mais recursos (e por isso ameaçadora). (BAUMAN, 2005, p. 82-3).

A voz performática de Lucas Afonso (finalista da Copa do Mundo de Slam, na França, em


2016) é responsiva a toda situação política atual: golpe, pec, exploração, trabalhador, corrupção,
políticos corruptos, pobreza e discriminação são palavras-ato que compõem o enunciado do slammer.

Figura 2. Lucas Afonso em Slam.

Fonte: https://youtu.be/_pj13s4MGy4. Acesso em 20.9.17.

Artista e público se encontram numa zona de livre contato, confirmando o que Bakhtin (2010)
falava sobre a praça pública e seu potencial para o encontro e a festa. O espaço urbano é
ressignificado com a arte que contribui para processos de subjetivação e reconhecimento da
alteridade que quase sempre o cotidiano frenético da cidade pasteuriza, naturaliza ou torna invisíveis
os sujeitos.

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O público de um campeonato de poesia, o Slam, não é aquele passivo que apenas assiste, sua
intervenção faz parte do evento e o reconhecimento de que qualquer cidadão pode avaliar, dar sua
opinião sobre a arte é constitutivo do Slam que rompe com chancela do especialista, da autoridade, da
academia, da instituição e faz do expectador/participante o grande júri. Vejamos a seguir cena de
uma avaliação do público sobre o que foi visto/ouvido/vivido na ágora urbana.
Figura 3. Público de um campeonato de poesia.

Fonte: https://youtu.be/_pj13s4MGy4. Acesso em 20.9.17.

INCONCLUSÕES

O artigo teve como objetivo discutir a prática do Slam ou campeonato de poesia como espaço
de exercício da voz e da resistência. Para tanto, discutimos contemporaneidade, cultura urbana,
literatura marginal a fim de compreender como os sujeitos em diferentes tempos/espaços constroem
trajetórias e rotas para além do que é considerado canônico ou artístico. Ao lado da arte socialmente
valorizada outras práticas se gestam e ocupam espaços não institucionalizados para dar vazão a
estética, discursos, manifestações que os representem e a sua comunidade. Portanto, consideramos,
a partir das postulações do Círculo de Bakhtin, o Slam como uma força centrífuga que tira a poesia da
biblioteca, do livro, da coletânea, do espaço institucionalizado e a joga na rua aos ouvidos daqueles
que se disponham a ouvi-la.

REFERÊNCIAS

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BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_____. A teoria do romance I: A estilística. São Paulo: Editora 34, 2015.

CORPOS
81

____. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos-SP: Pedro e João Editores, 2012.
______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad de Pa.ulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
BALBINO, J. Pelas margens: vozes femininas na literatura periférica. Dissertação de mestrado. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/simple-search?query=jessica+balbino. Acesso em 29.9.17.
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Segio
Paulo Rouanet. 1ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
EBLE, T. A.; LAMAR, A.R. A literatura marginal/periférica: cultura híbrida, contra-hegemônica e a identidade cultural
periférica. In: Especiaria - Cadernos de Ciências Humanas. v. 16, n. 27, jul./dez. 2015, p. 193-212.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: EDUSP,
2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. 12. ed.
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JENKINS, H. Cultura da Convergência. Tradução Susana L. de Alexandria. 2. ed. 5. reimp. São Paulo: Aleph, 2015.
NASCIMENTO, E. Performar o discurso: teatro, travestismo, corpo-cidade. VIS: revista do PPG-Arte/UnB, Brasília, DF,
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PALLAMIN, Vera M. Arte Urbana: São Paulo Região Central (1945-1998): Obras de caráter temporário e permanente.
São Paulo, Fapesp: 2000.
Vaz, Sérgio. Cooperifa: antropofagia periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.

CORPOS
RESUMO
82
Frida Kahlo, figura ímpar, sem reservas no falar, no
escrever e no viver. Sujeito cujo inacabamento

CORPO, FERIDO E instigante nos constitui. Os seus autorretratos


notoriamente tomaram uma dimensão ímpar em
sua obra. Mulher que pintava a sua própria

INACABADO NA OBRA DE
realidade, contribuiu de forma inquestionável no
imaginário feminino e artístico até os dias de hoje.
Diante disso, investigamos uma imagem valorativa
da artista recoberta por sofrimentos e dores

FRIDA KAHLO 20
lancinantes de seu ser. A pintura analisada no
presente artigo vislumbra um corpo híbrido que
quer dialogar com o outro, corpo esse posicionado
e de valorações inúmeras. Para tal, nosso estudo
está amparado nos aportes teóricos de Mikhail
Bakhtin, centro de toda nossa fundamentação.

CHAGAS, Keyrla Krys Nascimento21 Palavras-Chave: Frida Kahlo. Autorretrato. Corpo.


Tons volitivo-emocionais.

UMA VIDA DE INACABAMENTOS EM UM CORPO PROVISÓRIO

No fim das contas, podemos aguentar


Muito mais do que imaginamos
Frida Kahlo

O
presente artigo objetiva analisar a tela: O pequeno cervo, e sob lentes bakhtinianas dialogar com
o outro, lentes essas que enxergam um sujeito transitório cujo inacabamento reflete e refrata no
mundo da vida e no mundo da arte: Frida Kahlo. Observamos, em nosso estudo, que a imagem
representada na pintura está cingida em uma linguagem que brada. Abordaremos, dessarte, o corpo
representado em sua obra como enunciado concreto que se torna plural no encontro com o outro.
Em continuidade, importa-nos, para início do debate, a assertiva de Cixous (2010, p. 56, grifo
do autor), que de certa forma nos remete a Frida, que era a própria fragilidade e força: “Et avecquelle
force dansleurfragilité: <fragilité> , vulnérabilité, à la mesure de leurincomparableintensité.”22 .
Frida, com um olhar posicionado sobre a vida e si mesma, transfere para a ponta do pincel
toda dor de sua alma. Em face disso, é importante ressaltar os artigos de Casado Alves (2016, 2012),
que analisam, respectivamente, as cartas de Frida Kahlo, e o diário de Frida como enunciados
concretos, ambos sob uma perspectiva bakhtiniana. Esse brado constante observado em sua obra,
refletindo um corpo com dores lancinantes, rompendo o silêncio de seu interior, perpetuado em
sonidos que atravessam mundos, rasgado sob tons volitivo-emocionais, que tocam o outro

20
Maria da Penha Casado Alves: Orientadora do artigo. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pós-doutorado pela Unicamp.
Professora Associada do Departamento de Letras e da Pós-Graduação em Estudos da Linguagem/UFRN. E-mail: penhalves@msn.com .
21
Especialista em Estudos sobre a Linguagem: Teorias e Ensino/UFRN. Pesquisadora. E-mail: krys_29@hotmail.com
22
“E com tal força em sua fragilidade: <fragilidade>, vulnerabilidade, à medida de sua incomparável intensidade.”(tradução nossa).

CORPOS
83

provocando uma infinitude de respostas no mundo da vida, é que nos incita a investigar seu
autorretrato.
Perante o olhar de inacabamento do sujeito, suas relações dialógicas que respondem em si e
no outro, nos encontramos em consonância com o que alega Bakhtin (2011) a respeito do diálogo dos
enunciados, dos tons volitivo-emocionais. Na tradução brasileira organizada por Bezerra Estética da
criação verbal, o autor faz uma análise sobre o corpo, como também o faz no livro A cultura popular
na Idade Média e no Renascimento (BAKHTIN, 2002), referindo-se ao corpo grotesco.

FRIDA KAHLO, A GRANDE OCULTADORA

Frida, a grande ocultadora, como ela mesma gostava de dizer, é um corpo carregado de
historicidade, com a exotopia de seu olhar sobre si e a vida, marcou o imaginário artístico da época
cuja a imagem valorativa de resistência persiste até os dias de hoje. Para melhor compreender esse
corpo faremos um pequeno sobrevoo no que se refere a vida da artista.
Frida Kahlo nasceu na cidade de Coyoacán, México, em 6 de julho de 1907, mulher
revolucionária, comunista, feminista, figura singular não só para o país em que vivia, mas também
para o mundo. Marcada pela dor depois de um grave acidente de bonde que dilacerou sua
coluna(1925), Frida começou a pintar para aliviar o sofrimento depois desse trágico acontecimento
em sua vida. Em1929, casou-se com Diego Rivera, casamento esse marcado por traições constantes
vidas de seu amado. Seu suplicio teve início depois desse acidente, foram inúmeras cirurgias, por
causa disso não pode ter filhos; grande era o desejo de ser mãe, ela tentou, mesmo o marido e os
médicos não concordando, por causa de sua saúde frágil, não segurou as gestações, foram num total
de 3 abortos.A artista foi uma mulher que amava muito, foi um ser de muitos amores, porém o grande
amor de sua vida sempre foi Diego. Marcada por dores físicas e emocionais, Frida não separou vida e
arte, detalhe que tornou sua obra incontestavelmente extraordinária.

UM CORPO FERIDO REVERBERANDO EM TINTAS

Nosso tecer sobre o híbrido corpo fridiano


Pinto a mim mesma porque sou sozinha
E porque sou o assunto que conheço melhor
Frida Kahlo

Figura 1. O pequeno cervo (ou O veado ferido), 1946.

CORPOS
84

Fonte: Herrera (2011).

Uma imagem híbrida, do corpo de um veadocravado por flechas com a cabeça da própria
Frida, o sangue jorrando das feridas, envolto por árvores de troncos largos. No seu semblante uma
serenidade intrigante, mesmo em meio a dor, por parecer sem saída, com feridas abertas, a sua face
nos remete a uma quietude inquietante. Um galho no chão caído, o mar ao fundo, descendo raios do
céu. A figura que se assemelha a São Sebastião, que é representado de maneira vizinha: amarrado a
uma árvore e atingido por flechas.
Verificamos que o veado é jovem e macho, podemos inferir que a dualidade – homem/mulher
– habita dentro de Frida, não como algo separado mas fazendo parte de sua própria natureza,
concomitantemente. A imagem do cervo pode ser simplesmente explicada pela artista ser de origem
indígena, porém verificamos queo cervo em várias culturas representa fragilidade, agilidade, terra e
céu, como vemos no cenário analisado e longevidade. Notamos, ainda, que na cultura grega o cervo é
símbolo de fervor sexual, por isso, constatamos que há uma relação com a pintura por ser um animal
jovem e ágil, significando virilidade.
Prosseguindo nossa investigação, podemos vislumbrar sensualidade na face de Frida; existe
uma preocupação com a estética em meio ao sofrimento, cabelos penteados, lábios com batom,
maquiada e com brincos.
Os troncos grandes, em volta do cervo, dá uma ideia de estar sem saída, que é o fim; ícone
que dialoga com esse pensamento é o galho caído, visto que em algumas culturas a figura do veado
com uma erva na boca, significa que ele quer curar-se, porém o que se vê na tela é o galho no chão,
podemos então, entender que Frida não acredita mais em sua cura, vida interrompida, o que é
bastante contundente essa concepção pois ela pintou essa tela no período que viajou a Nova York para
uma cirurgia na coluna vertebral. O rosto com a serenidade que intriga, parece estar calmo não por
não sentir as dores, a maceração do seu corpo, senão pelo desfecho que esperava: a morte.
Ademais, em nossa análise, notemos os raios ao fundo da pintura que mais se parecem com
raízes. Raio simboliza guerra e destruição; raiz, o fim. E tudo faz muito sentido, a ligação de terra e céu,
destruição, a guerra – mostrando o conflito em seu interior –, a vida interrompida e a espera do fim.
No que concerne a temática do corpo, recorremos à postulação de Bakhtin (2002, p. 273 e p. 322):

CORPOS
85

[...] As fronteiras entre o corpo e o mundo, e entre os diferentes corpos, traçam-se de maneira
completamente diferente do que nas imagens clássicas naturalistas [...]; [...] concepção grotesca do
corpo nasceu e tomou forma um novo sentimento histórico, concreto e realista [...]

O autorretrato do veado ferido dialoga adequadamente com as citações do corpo grotesco. O eu


ferido de Frida absorvendo o caos em que vivia, num corpo inacabado, em construção com outro corpo,
diante de um cenário cercado de simbologias fronteiriças que constroem a história da própria artista.
Ainda em prosseguimento com nosso estudo, recorremos à citação de Bakhtin (2012, p. 90),
no que diz respeito aos tons volitivo-emocionais, na qual ele afirma:

Um tom emotivo-volitivo, uma valoração real, não se referem ao conteúdo em quanto tal, tomado
isoladamente, mas na sua correlação comigo no evento singular de existir que nos engloba. Não é no
contexto da cultura que uma afirmação emotivo-volitiva adquire o seu tom; toda cultura na sua
totalidade vem integrada no contexto unitário e singular da vida do qual eu participo.

O tom volitivo-emocional baseia-se em um conceito real, concreto, existencial, de alma que


dialoga com o mundo interior e exterior. Tom emotivo-volitivo ou volitivo-emotivo é o pensamento
enquanto processo, o pensamento ainda não pensado. Partindo do princípio de que um enunciado
responde a outros e a arquitetônica da alteridade é eu-para-mim, outro-para-mim e eu-para-outro,
temos uma teia de reverberações infinitas. Em continuidade com esse pensamento, notamos que a
obra O pequeno cervo, reverbera todo sofrimento e posicionamento de Frida perante a vida refletindo
e refratando no outro sob tons volitivo-emocionais o devir de seu ser.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DE UM SUJEITO FRONTEIRIÇO

O encontro que se deu entre Frida Kahlo e Mikhail Bakhtin por meio de seu autorretrato: O
pequeno cervo, reverbera no mundo da vida respostas infinitas de tons volitivo-emocionais que
constitui o outro. A fronteira que nos liga com o outro é fluida e constante e se dá pelo distanciamento
do olhar sobre si e a vida. Seguindo esse pensamento, vejamos o que nos afirma Bakhtin (2011, p. 21):

[...] Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos. Assumindo a
devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la
inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma pessoa só [...].

O nosso lugar no mundo, o que excede de nós, atinge o outro, e esse outro é sujeito inacabado,
provisório e fluido. As reverberações da representação do corpo, dilacerado por tanto sofrimento, na
obra de Frida, tem semelhante impacto no outro como nos postula Bakhtin, a cima. Através das pupilas
da artista que excede sua visão de si mesma e do mundo nos constituímos eventos únicos e
fronteiriços.

CORPOS
86

REFERÊNCIAS

BAKHTIN. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2012.
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 5. ed. São Paulo:
Hucitec, 2002.
______. Discurso na vida e discurso na arte: sobre a poética sociológica. Trad. Carlos Alberto Faraco e Cristóvão
Tezza [para fins didáticos]. Versão da língua inglesa de I. R. Titunik a partir do original russo, 1926.
_______. (V N. Volochínov). Maxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
CASADO ALVES, M. P. Frida Kahlo entre palavras e imagens: a escrita diarista e o acabamento estético. Revista Linha
D’água, São Paulo, v. 25, n. 2, 2012. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/download/47720/52008>. Acesso em: 10 jun. 2017.
______; OLIVEIRA, W. B. dos S. O. O coração que pulsa fora do corpo: imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2016v13n1p1104>. Acesso em: 08
jun. 2017.
CIXOUS, H. Le rire de la Méduse: et autres ironies. Paris: Galilée, 2010.
FOUCAULT, M. El cuerpo utópico. O corpo utópico. Texto inédito de Michel Foucault. Revista IHU on-line. Disponível em:
<http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-ocorpo-utopico-texto-inedito-de-michelfoucault>. Acesso em: 22 nov.
2010.
HERRERA, H. Frida: a biografia. Trad. Renato Marques. São Paulo: Globo, 2011.
KAHLO, F. O diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo. 4. ed. Trad. Mário Pontes. Rio de Janeiro: José Olympio,
2015.
_______. Cartas apaixonadas de Frida Kahlo. Compilação Martha Zamora. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1997.

CORPOS
RESUMO
87

A PARTICIPAÇÃO DOS Palavras-Chave: Frida Kahlo. Autorretrato. Corpo.


Tons volitivo-emocionais.

PROFESSORES E DOS
JOVENS ESTUDANTES
CONTRA A PEC 241/2016:
uma “necessitância” de outros mundos e de
outros corpos

COSTA, Deane Monteiro Vieira23

De ahí que resulte claro: la primera filosofía que trate de analizar el acontecimiento del ser tal y como lo
conoce e acto responsable – es decir, no el mundo creado por el acto, sino un mundo en el que el acto
toma conciencia de sí mismo y en el que se lleva a cabo – no puede generar conceptos, postulados y
leyes generales acerca de este mundo (la pureza teórica y abstracta de acto ético), sino que tan sólo
puede ser una descripción, una fenomenología del mundo de acto ético. Un acontecimiento sólo puede
ser descrito participativamente (BAKHTIN, 1997, grifo nosso).

O
presente texto tem como objetivo apresentar relatos etnográficos colhidos das vivências
políticas, éticas e estéticas escritas no interior de uma escola pública e fora dela. Como aporte
teórico-analítico utilizamos os conceitos de BAKHTIN (1995, 1996) e ELIAS (2000). Por meio
desse aporte buscamos compreender a participação política dos professores e dos jovens estudantes
durante a primeira quinzena do mês de outubro de 2016, antes da segunda votação, no dia 26 de
outubro de 2016, da Proposta de Emenda à Constituição nº 241, a PEC 241, renomeada no Senado
Federal com o nº 55/2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal no Brasil, para os próximos vinte anos,
podendo ser revisado no décimo ano.
De acordo com AMARAL (2016, p. 654), o Novo Regime Fiscal (NRF), válido para a União,
significa, na prática, “congelar”,

23
Professora do Ifes/Campus Vila Velha (ES). Doutora em Educação. Coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Trabalho, Educação e
Juventudes (NETEJUV) que está sediado no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) / Campus Venda Nova do Imigrante (VNI),
deane.costa@ifes.edu.br

CORPOS
88

[...] nos valores de 2016, as despesas primárias do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Poder
Legislativo, do Tribunal de Contas da União (TCU), do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria
Pública da União (DPU) pelo longo prazo de 20 anos, uma vez que os valores somente poderão sofrer
reajustes até os percentuais referentes à inflação do ano anterior, medida pelo Índice Nacional de
Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Com o receio do decreto da “morte” do PNE (2014-2024) e do “congelamento” dos recursos


de investimentos na educação pública brasileira, foi organizada pela direção de ensino da Escola
Imigrante24, e por alguns professores, inclusive a autora desse texto, também professora da Escola
Imigrante, uma aula pública no dia 10/10/2016 para discussão juntos aos estudantes sobre o contexto
político que vivíamos e ainda vivemos.
E em outro turno, no mesmo dia, foi realizado oficinas para elaboração de cartazes e faixas
para serem apresentados em uma caminhada com “apitaço” pela cidade.A movimentação buscou
chamar a atenção da comunidade local sobre os seguintes problemas, aqui traduzidos em perguntas:
(a) em que condições um pensamento teórico da realidade apresentada pelos professores e alunos,
naquela aula pública, poderia se tornar um pensamento ético?;e (b) Como fazer com que a
comunidade do entorno da escola, formada pela imigração italiana no século XIX no Brasil, pudesse
também lutar conosco contra a concentração da riqueza e o aumento da pobreza?,
A partir dessas questões planejamos também uma aula pública no auditório da escola, no
período da noite, dedicada aos pais, responsáveis e toda comunidade, sobre o dever de pensar o
contexto da vida real e concreta de nosso país e da educação pública brasileira.
A enunciação com vistas à participação política, na perspectiva bakhtiniana, não é um produto
individual, mas eminentemente social, sendo que ela se constitui na interação verbal e não-verbal.
Sendo assim, entendo que foram as relações sociais que determinaram as narrativas de luta e de
resistência entre os professores e os estudantes, que de alguma forma, desequilibraram o cenário
pacato dessa pequena cidade do interior do Estado do Espírito Santo.
No manuscrito Para uma filosofia do ato, Bakhtin (1997) destaca que o ato de pensar é sempre
singular e diz respeito a um sujeito único, que se responsabiliza inteiramente pelo pensamento. Mas para
Bakhtin qual seria a distinção entre ato e ação? A pesquisadora Marilia Amorim (2009, p. 22), no seu
artigo intitulado “Para uma filosofia do ato: válido e inserido no contexto”, afirma que “[...] ação é um
comportamento qualquer que pode ser até mecânico ou impensado. O ato é responsável e assinado: o
que quer dizer que ele responde por isso”. Desse modo, a aula pública organizada pelos professores e
com a adesão de alguns estudantes, foi um ato assinado e “[...] um gesto ético no qual o sujeito se revela
e se arrisca [por] inteiro”. Ou seja, um acontecimento, constitutivo de integridade dos professores e dos
jovens estudantes, diante do contexto de desmantelamento da máquina pública educacional.

24 Nome fictício que remete a uma certa concordância com a escola e a historiografia capixaba. A escola está localizada num município de
tradição italiana, no Estado do Espírito Santo (ES), e atende jovens do Ensino Médio. Ela possui um certo prestígio diante dos outros colégios
estaduais da região, isso faz com que a maioria desses jovens deixem suas cidades e venham para a Escola Imigrante, em busca de um ensino
médio com melhores condições de infraestrutura e qualidade de ensino.

CORPOS
89

Mesmo nas relações assimétricas exercidas pelos professores e educandos em suas funções
cotidianas de disputa na balança de poder (ELIAS, 1980), nesse dia de aulas públicas na Escola
Imigrante construiu-se um “equilíbrio de poder”, não necessariamente sinônimo de igualdade de
poder, mas fruto de uma interdependência funcional de luta e de resistência social, um novo atributo
construído em nossas relações.Como nos afirma Elias (1980, p. 80), “o equilíbrio de poder não se
encontra unicamente na grande arena das relações entre os Estados, onde é frequentemente
espetacular, atraindo grande atenção. Constitui um elemento integral de todas as relações humanas”.
No entanto, alguns professores e estudantes que não participaram das aulas públicas e dos
movimentos contra a PEC 241/2016, em virtude do apoio às medidas governamentais, por acreditarem
que o “congelamento” dos “gastos” em direitos sociais poderia salvar o país da crise, passaram a se
distinguir com um status de “estabelecidos” e produziram críticas contra os grupos de professores e
estudantes que se movimentaram nas ruas e na escola. Eram em sua maioria adeptos da ideologia da
“Escola Sem Partido” e defendiam uma liberdade de apenas ensinar. De acordo com FRIGOTTO (2017, p.
13), no chão da escola a esfinge “Escola sem partido” e da “liberdade para ensinar,

[...] quebra o que define a relação pedagógica e educativa: uma relação de confiança, de solidariedade,
de busca e de interpelação frente aos desafios de uma sociedade cuja promessa mais clara, para as
novas gerações, é de “vida provisória e em suspenso”. Esta pedagogia de confiança e diálogo é
substituída pelo estabelecimento de uma nova função para alunos, pais, mães: dedo-duro. Muito mais
grave do que os vinte e um anos de ditadura civil-militar onde os dedo-duro eram profissionais.

Diante disso, estávamos dispostos a ir além do ato de ensinar. Na tarefa de educar, depois de
toda a movimentação do dia, um grupo de estudantes – identificados em uma pesquisa realizada pela
coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Trabalho, Educação e Juventudes (NETEJUV) como a “tribo
dos engajados” (Costa, 2017), por estarem sempre na direção do grêmio estudantil Áurea Eliza 25 –,
produziram um filme que apresentou a nossa passeada e os principais momentos das aulas públicas e
da interação com a comunidade local. No dia seguinte o vídeo foi lançado na internet pelo Grêmio e
contou com um alcance de14.473 (quatorze mil e quatrocentos e setenta e três) visualizações e
diversos compartilhamentos.
O vídeo apresenta os estudantes uniformizados e os professores vestindo roupas de cor
preta, demonstrando o luto da educação pública de qualidade, caso a PEC 241/2016 fosse aprovada.
Todos seguiam pelas ruas da cidade, por meio das vias públicas, modificando a rotina citadina. A
canção escolhida para a apresentação da marcha da Escola Imigrante foi a de Chico Buarque com a
parceria de Gilberto Gil, Cálice. A música destaca uma analogia entre a paixão de Cristo e o sofrimento
vivido pela população brasileira durante o regime autoritário de 1965-1985.

25Homenagem ao nome de uma das vítimas de desaparecimento forçado durante a Operação Marajoara, no Araguaia, em 1973. O grupo tem se
envolvido em questões internas do instituto como a educação profissional em tempo integral, a elaboração de uma programação para atender
os calouros, a participação em jornadas e também nas discussões de caráter nacional, como a luta pelo fim da redução da maioridade penal.

CORPOS
90

Figura 1. Abertura do filme

Fonte:https://www.facebook.com/gremioaureaeliza/videos/619372544901873/?hc_ref=ARQVqtS-wxI68-
jkjmsiTebuCiEEoUBXlisQHLbRdExaelhHSXOlIGqeh5l1m-pf-5w

As faixas e os cartazes que foram produzidos nas oficinas dadas pelos professores de Artes e
política foram destaque na filmagem. Destacaram-se os dizeres:#Educação sem mordaça, #Juntos
somos mais, #Saúde não é gasto, é direito de todos!, #Temer ninguém merece, # Contra a PEC 241/
IF, #Lutar sem Temer, #Somos o futuro da nação, #2016 desordem e regresso!. Três locais da cidade
foram destacadas no vídeo: o Fórum, a Prefeitura e uma creche da cidade. Da creche saíram três
professoras aplaudindo os estudantes e os professores e demonstrando total apoio a luta marchada.
A inteireza da filmagem pode ser compreendida a partir do texto escrito pela presidenta 26do
grêmio estudantil, em 2016, quando ela defendia que:

[...] o grêmio é a voz do estudante dentro de uma instituição, por isso deve ter o máximo de
representatividade em sua diretoria, e prezamos por isso em nossa entidade. É de extrema importância o
mantimento de uma boa comunicação com a escola, visando buscar a solução das demandas dos
estudantes. Nosso grêmio possui 13 cargos, ocupados por estudantes de todos os turnos e séries. Cada
diretor do grêmio possui funções, que estão especificadas no estatuto do mesmo, apesar de haver a
discriminação de cada cargo procuramos sempre trabalhar em equipe, mantendo a organização.
Atualmente possuímos uma sede localizada em uma pequena sala cedida pela instituição, que é o local em
que nos reunimos e organizamos, além de abrigar toda a documentação e pertences da entidade. Mas, o
problema, é a falta da participação dos outros estudantes na pauta de lutas que o grêmio tem produzido.
[...]. Isso é reflexo de uma sociedade, a que a gente vive hoje, aonde se fala muito em política, porque você
ouve muito falar mal do governo ou dos políticos, mas as pessoas não entendem o que tá acontecendo. Elas
veem notícias e simplesmente falam e criticam e só sabem fazer isso [...]. Mas, defendo que o homem é
um ser político e não tem como fugir disso? (COSTA, 2017, p. 11, grifo nosso).

E foi justamente na defesa de que o homem é um ser político que o vídeo produzido pelo
grêmio revelou ou seu vinculou ao “dever do pensar” sobre as concepções de homem, de sociedade e
de cultura política, assinando um compromisso com a singularidade e com a participação social.Tal
assinatura, é o compromisso particular de

26 Termo utilizado pela estudante em referência à presidenta da república, Dilma Rousseff, ainda no cargo em 2016.

CORPOS
91

[...] não se furtar, não se subtrair daquilo que seu lugar único permite ver e pensar. Assinatura é
também inscrição na relação de alteridade: é confronto e conflito com os outros sujeitos. E por fim,
pode-se dizer que a assinatura em Bakhtin é o atestado da passagem do sujeito por um dado espaço-
tempo: ser real e concreto que se apropria de seu contexto, assumindo-o em ato (AMORIM, 2009, p. 25).

Assim sendo, de acordo com FRIGOTTO (2016, p. 12), “[...] diante das “esfinges”27mais vorazes
que nos chegam pela incapacidade de vermos os sinais, pois elas se escondem sob o manto ideológico
de “liberdade”, da formação competente para a competitividade e sucesso na vida dos negócios”, urge
a “necessitância do pensamento-ato” que lute por outros mundos e outros corpos, que ainda não
foram “moídos” pelo

[...] manto martelado pelos poderosos meios de comunicação que fazem parte desta ideologia e passam
a moer os cérebros de pais, crianças e jovens e de corporações políticas contra a escola pública e os
docentes por não ensinarem o figurino que a “arte do bem ensinar” manda. A única leitura do mundo,
da compreensão da natureza das relações sociais que produzem a desigualdade, a miséria, os
sem trabalho, os sem teto, os sem terra, os sem direito à saúde e educação e das questões de
gênero, sexo, etnia, cabe aos “especialistas” autorizados, mas não à professora e ao professor
como educadores. Decreta-se a idiotização dos docentes e dos alunos, autômatos humanos a
repetir conteúdos que o partido único, mas que se diz sem partido, autoriza a ensinar (FRIGOTTO,
2016, p. 12, grifo nosso).

No entanto, se pensarmos no ser acontecimento, na perspectiva bakhtiniana, a “idiotização


dos docentes e dos alunos” por meio das leis ou das ideologias midiáticas, não serve como
justificativa para não pensar ou não criar aquilo cujas condições de possibilidade advêm da minha
singularidade enquanto sujeito. Para BAKHTIN (1997, p. 49) trata-se de “[...] um proceder responsable
[...] um ato basado en el reconocimiento dela singularidad de nuestro deber ser”.
Além disso, a movimentação juvenil na Escola Imigrante, pós-passeata, também trouxe outros
debates de âmbito da vivência e da identificação religiosa, musical, estética, feminista e do
homoerotismo, para dentro dos muros da escola.A construção de suas “tribos”28 de identidade juvenil,
apareceram como um dos elementos constitutivos da singularidade da condição juvenil naquelas
movimentações (Costa, 2015, 2017).Pois, além do aprendizado, os jovens desejam frequentar uma
escola que valorize a sociabilidade, o encontro, pois, mesmo reconhecendo a oportunidade de se
credenciarem para o mundo do trabalho por meio da escola, não admitem a forma como muitas vezes
acontecem as práticas pedagógicas (COSTA, 2017).

27 COSTA (2015).
28 Termo utilizado por FRIGOTTO (2016).

CORPOS
92

ACABAMENTO: sem enunciar a última palavra

Diante do exposto, podemos analisar que as movimentações dos professores e dos alunos, da
Escola Imigrante, contra a Proposta de Emenda à Constituição nº 241, a PEC 241, renomeada no Senado
Federal com o nº 55/2016, foi um pensamento-ato ou um ato de resistência, contra os valores
dominantes que saqueiam os direitos sociais dos mais pobres em nosso país.
Tamanha insistência no dever e na preocupação em elaborar um pensamento crítico por parte
daqueles sujeitos, em uma cultura dominante da privatização dos serviços públicos. O fato de sermos
contemporâneos desse país, de viver num mundo dito “globalizado”, não nos exime da
responsabilidade de reconhecer os pensamentos determinados pelo grande capital e de tomar partido
pelos injustiçados.
Uma leitura atenta de Para uma filosofia do ato coloca necessariamente esse posicionamento.
Parece-me que, justamente o mundo contemporâneo, com seus valores dominantes, “[...] precisa mais
do que nunca de Bakhtin e de sua filosofia moral (AMORIM, 2009, p. 41).

REFERÊNCIAS

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educacionais. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação v. 32, n. 2 (2016).
AMORIM, Marília. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: dialogismo e
polifonia. São Paulo: Editora da Unicamp, 2009.
BAKHTIN, Mijail M. Hacia uma filosofia de lacto ético. De los borradores y otros escritos: comentários de Iris M. Zavala
y Augusto Ponzio. San Juan: Universidad de Puerto Rico, 1997.
COSTA, Deane Monteiro Vieira Costa. As juventudes escolares e suas tribos juvenis: uma saída aos trilhos da vida
comum. Disponível em:
<http://www.gepsexualidades.com.br/resources/anais/6/1466513638_ARQUIVO_Asjuventudesescolaresesuastribosju
venis_DEANE.pdf>. Acesso em:12. Ago.2017
______. Encontros e desencontros juvenis em uma escola. Disponível em:
<http://periodicos.ufes.br/SNPGCS/article/viewFile/1560/1152>. Acesso em:12. Jul.2015.
ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Braga: Edições 70, 1980.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Escola sem partido: imposição da mordaça aos educadores. Revista E-mosaicos:
Multidisciplinar de Ensino, Pesquisa, Extensão e Cultura do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da
Silveira (Cap. UERJ), V.5, N.9, Jun.2016. Disponível em:<http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/e-
mosaicos/article/view/24722/17673>. Acesso em:12. Jul.2017.

CORPOS
RESUMO
93
Apresento um exercício heterocientífico de
pesquisa com sujeitos expressivos e falantes do
ensino médio, Curso Normal, onde me construo

CORPOS: cronotopos em cotejos com cotidianamente professora e venho pensando junto


(aos estudantes e professores de Educação Física)
as questões com/do corpo, das práticas corporais
uma filosofia da sensibilidade e da na formação de totalidades humanas corporais.
Esta pequena costura procura cotejar com Bakhtin
somaestética e Richard Shusterman uma outra consciência
corporal, pautada na filosofia da vida, da
sensibilidade e da somaestética. Interessa a escuta
compreensiva do outro que me altera em que a
unidade das narrativas corporificadas (tal como a
unidade artística de uma obra literária) diz respeito
à realidade efetiva, caminho contextualizado na
COUBE, Roberta Jardim 29
categoria bakhtiniana cronotopo. As corporeidades
são aqui compreendidas como cronotopos que
resistem às intempéries sociais, às reduções da
liberdade: corpos-sujeitos inteiros que ocupam a
escola com carne e sangue; pensamentos
encarnados em atos, que respondem, resistem,
transgridem e dialogam com outros corpos, outras
INTRODUÇÃO30: preliminares de um encontro gestualidades, outros mundos.

Palavras-Chave: Corpos.Cronotopo. Somaestética.


Tons volitivo-emocionais.

E
ste texto é um exercício heterocientíficode minha pesquisa de doutorado com sujeitos
expressivos e falantes do ensino médio, Curso Normal 31 , do Instituto de Educação Professor
Ismael Coutinho (IEPIC), escola pública da rede estadual do Rio de Janeiro, onde aprendoa ser
professora por meio de deslocamentos e alterações no contexto da formação de professores.
Formando e sendo formada por jovens que corroboram a urgência de pensarmos coletivamente
outras pedagogias dos corpos, reconhecendo que somos profissionais da formação de totalidades
humanas corporais (ARROYO, 2017, p.274); inteirezas em processo de construção, já que somos
também seres inconclusos. Corporeidades que resistem às intempéries sociais, às reduções da
liberdade. Sujeitos inteiros que ocupam a escola com carne e sangue; pensamentos encarnados em

29Professora do Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho (IEPIC). Doutoranda em Educação na Universidade Federal Fluminense (UFF),
desenvolvendo a tese Narrativas outras com os corpos: cronotopos em Educação Física escolar, sob orientação da professora Dra. Eda Maria
de Oliveira Henriques. Bolsista CAPES e integrante dos Grupos de Pesquisa: GEPPROFI – Grupo de Estudos de Processos Formativos
Institucionais; Atos UFF - Grupo de estudos bakhtinianos.
30 Procuro assinar esta escrita com o meu ato responsável e responsivo. Isto me leva a reforçar a importância das muitas pessoas que me

auxiliaram e auxiliam a sentir/pensar/agir com uma perspectiva alteritária e empática, pessoas com as quais divido a autoria: os grupos de
pesquisa Atos UFF e GEPPROFI e, sobretudo, o Igor, estudante-narrador desta costura. Alinhar as conversas com o Igor (e não sobre ele) tem
sido um exercício contranarcísico (em encontros poéticos com as metáforas do poeta Leminski) que coloca em xeque os (des)caminhos de
uma pesquisa que se pretende corpórea, heterocientífica, amorosa... em tempos que exigem de nós, educadores, outras pedagogias e outras
conexões com as vidas dos que em algum momento compõem a nossa história.
31 Os estudantes do Curso Normal participam de atividades em dois turnos, a carga horária é maior do que o ensino médio regular, porque

estão incluídas as disciplinas pedagógicas, além de estágios e atividades extras, como oficinas, eventos culturais, artísticos e desportivos. As
diferenciações entre viver na escola e viver a escola pareciam óbvias, todavia expressá-las ainda é algo difícil tanto para os estudantes quanto
para mim.

CORPOS
94

atos, que respondem, resistem, transgridem e dialogam com outros corpos, outras gestualidades,
outros mundos.
Envolver as questões do corpo (dos corpos) em Bakthtin requer atenção ao movimento
unitário de sua obra, considerando a polifonia das ciências humanas, sobremaneira a perspectiva
heterocientífica e do grande tempo, visto que compreende-se a existência de uma ciência outra que
ressalta um plano discursivo em que vozes dialogam e inauguram o dever concreto do sujeito. Sendo o
sujeito encarnado sempre relacional, é importante considerar que os corpos, as materialidades vivas,
estão em contexto dialógico, sendo pelo menos duas consciências que interagem32 .
Compreendo a escrita como um evento em enunciados narrativos em que o mundo teórico e o
mundo da vida interagem no ato responsável do ser humano. Nesse contexto, as leituras e as
conversas com o Grupo Atos UFF trazem à cena a necessidade de pensar a práxis docente embebida
de humanicidade e de vida em que os corpos ocupam um lugar singular em um mundo também
singular concreto. Nessa tarefa empática identifico uma condição para a abordagem estética do
mundo, visto que escuto (e respondo) as narrativas de professorxs e alunxs o mundo como mundo dos
outros, vivências voltadas para sentidos e presenças de alma. A escrita é, portanto, fruto de
pensamentos encarnados, de pessoas em movimento.
Em cotejos com Bakhtin, corpo é um valorem especial,planos ético e estético, e parcialmente
no religioso, e inversamente contrário ao enfoque biológico do organismo. Importa sentir/pensar o
“lugar singular que o corpo ocupa como valor em relação ao sujeito em um mundo singular concreto33
(BAKHTIN, 2003, p.44)”. Contexto em que importa a categoria “outro”: é o outro que torna o meu corpo
“esteticamente significativo”, o “encorpamento estético” realizado, porque o vivenciamento do corpo
se dá em relação com o outro e “[...] a distinção entre os corpos exterior e interior – o corpo do
outro e o meu corpo – no contexto fechado concreto da vida de um homem singular, para quem a
relação “eu e outro” é absolutamente irreversível e dada de uma vez por todas (Ibidem, p.48)”.
Pensar com o corpo é uma expressão redundante que, por conta da maneira cartesiana de
ler/ver o mundo, sou levada a reforçar. Pensamos porque somos um corpo no mundo, cada um à sua
maneira singular de existir. A marca da nossa existência se dá porque somos corpos. E porque somos
corpos dialogamos com os outros, alterando-nos até o último dia de nossas vidas.
Tratar, pois, das questões do corpo é considerar ações de todos os tipos: das mais frívolas,
fúteis, às que ocorrem na cena pública, mais concretas. Essas afirmações não são novidades aos
estudiosos do corpo, como David Le Breton (2007) antropólogo que se dedicou à compreensão da
corporeidade humana como fenômeno social e cultural com motivações simbólicas contidas na
sociologia do corpo. Tratar das questões do corpo é também (e não somente) considerar a

32Essa ideia em construção foi apresentada (e publicada nos anais do) no VIII Fala outra escola: re-existir nas pluralidades do cotidiano, em 25
e 28 de julho deste ano, na UNICAMP.
33 A imagem é uma grande inquietação minha e venho tentando pensar com os sujeitos da minha pesquisa a relação entre cronotopia e corpo

(corporeidade ou consciência somaestética) buscando percepções artísticas vivas nas narrativas (encarnadas) de estudantes e professores
de Educação Física do Curso Normal.

CORPOS
95

importância das emoções34, dos afetos na construção das pessoas, unidades corpóreas singulares e
coletivas, consciências encarnadas.
E é justamente por pensar sobre as questões do corpo com um pensamento encarnado e
amoroso às emoções, afetações humanas, que o encontro com o outro é tingido por matizes
emocionais35. O encontro, o percurso e o os nossos corpos são cronotopos, unidades artísticas, tempo
e espaço valorados em que duas consciências dialogam acerca das suas histórias de vida e formação
sempre permeadas por nossas emoções.

[...] as emoções são sempre secretamente duplas, à maneira de um corpo vivo, que tem necessidade
tanto de substâncias duras – os ossos – como de substâncias macias – a carne. Cabe a nós, se
quisermos refletir, a tarefa de encontrar sinais de inquietação no coração de nossas alegrias
presentes, bem como possibilidades de alegria no coração de nossas dores atuais (DIDI-HUBERMAN,
2016, p.45).

O Igor é o outro com quem eu falo, estudante do Curso Normal do IEPIC, um jovem sempre
muito disposto a contribuir com sua presença marcante nas aulas e para além delas. Nos conhecemos
no início do ano letivo de 2017 e as suas preferências chamaram a minha atenção: Igor escreve textos
literários; refuta a perspectiva heteronormativa, que vê o mundo dentro de um padrão único de
existência; diverte as pessoas ao seu redor com risos e palavras brincantes. Igor canta e dança, fez
balé por anos, e é um questionador e leitor atento.Constrói textos em gêneros distintos e traz em sua
corporeidade algo que toca a minha corporeidade: acabamos por pensar juntos sobre os itinerários
de professores em formação que trazem o corpo para o debate pedagógico.
Se ainda domina nas políticas uma visão imaterial dos alunos, de suas mentes e processos de
aprender (ARROYO, p.275), posso inferir que o Igor é uma corporeidade brincante e resistente às
imposições que nos chegam de fora, das políticas e dos currículos com pouco sentido aos nossos
educandos. Os processos de aprender, com o Igor, (des)constrói a educadora que sou.
Certa vez, durante uma de nossas rodas de conversa em que discutíamos sobre contos de
Machado de Assis, fui presenteada com réplicas sensíveis e amorosas de Igor em relação às histórias
narradas por suas colegas de turma. Narrativas de violências sofridas por meninas e mulheres
escutadas atentamente por Igor e replicadas com sensibilidade. Restou para mim e para os demais
presentes o silêncio: não um silêncio qualquer, mas um silêncio sígnico, demonstrando que estávamos
ali, todos voltados às vivências dos sujeitos sencientes que trouxeram com suas corporeidades as
suas marcas únicas de existência.

34
Pensar o corpo vivo requer pensar nas emoções. Segundo Didi-Huberman (2016), a emoção é um “movimento para fora de si”: ao mesmo
tempo “em mim” (mas sendo algo tão profundo que foge à razão) e “fora de mim” (sendo algo que me atravessa completamente para, depois,
se perder de novo). É um movimento afetivo que nos “possui” mas que nós não “possuímos” por inteiro, uma vez que ele é em grande parte
desconhecido para nós (DID-HUBERMAN, 2016, p.28).
35
Em Formas de Tempo e de Cronotopo no Romance (Ensaios de poética histórica), Bakhtin aponta para a indissociabilidade entre as definições
espaço-temporais e corrobora afirmando que são sempre tingidas de um matiz emocional.E é o cronotopo que determina a unidade artística de
uma obra literária no que ela diz respeito à realidade efetiva (BAKHTIN, 2014, p.349).

CORPOS
96

APRENDENDO BAKHTIN COM O IGOR: filosofia do corpo vivo e senciente

As práticas corporais compuseram a infância de Igor e compõem a sua história atual. Escutar
as suas narrativas é deixar-se afetar por questões surpreendentes acerca da corporeidade como
eixo da relação com o mundo, carregado de sentidos e valores (LE BRETON, 2007, p.7), os quais são
inseparavelmente individuais e sociais – aliás, o homem constrói socialmente seu corpo (Ibidem, p.18).
Falamos, Igor e eu, sobre o corpo vivo e senciente como núcleo organizador da experiência
(SHUSTERMAN, 2012, p.19). Claro que esses conceitos não foram esmiuçados por nós, eles sequer
foram citados ipsis litteris . Após uma de nossas conversas, em movimentos de deslocamentos, ao ler
a obra Consciência corporal, de Richard Shusterman (2012), lia em companhia do Igor, em companhia
de suas palavras e seus gestos.
Quando uma pessoa se torna um professor se torna mais que uma única pessoa 36, escreveu
Igor em resposta à nossa conversa sobre formação de professores. São muitos os que nos habitam,
além de nossos múltiplos “eus”, e é na vida concreta, com as relações com os legítimos outros, é que
percebemos toda formação é relacional e habitada por muitos. E são por meio dos contextos formativos
que percebemos a necessidade de maior sensibilidade com os corpos (ARROYO, 2017, p.276).
E por que a defesa de pedagogias outras? Porque os corpos mutáveis nos obrigam a inventar
pedagogias específicas para cada tempo de formação humana (ARROYO, 2017, p.276).Porque as
nossas práxis precisam estar conectadas às singularidades dos atos, de que fala Bakhtin, porque
reside na singularidade do ato a possibilidade da religação entre cultura e vida, entre consciência
cultural e consciência viva (BAKHTIN, 2012, p.25).
Os cotejos com Bakhtin e o Círculo enfatizam preceitos como alteridade, compromisso e
responsabilidade em eventos que são sempre únicos e irrepetíveis. Na metodologia narrativa nessa
perspectiva os processos formativos são sempre entre sujeitos que falam diante de outros sujeitos
que falam, sem hierarquizações ou quaisquer posições de superioridade – enfatizando as relações
alteritárias. É, portanto, na possibilidade do sujeito que narra estabelecer sempre novas relações e
novas tessituras que considero a intercorporeidade (o diálogo) como um lugar potente de produção
de novos conhecimentos. Importa a compreensão do que Bakhtin denominou arquitetônica concreta
do mundo da visão estética, esta sempre associada ao agir ético no mundo, pois comporta a ação
responsiva do ser indivíduo que é também um sujeito contemplador da arte e da vida as quais
compõem uma unidade.
Trago um recorte do que venho exercitando durante a pesquisa de campo de minha tese de
doutorado, que vale-se do aporte autobiográfico das narrativas de histórias de vida e formação. Neste
tecido, então, estou com as palavras de Igor reverberando e ecoando à medida que também me
alteram e auxiliam a pensar os procedimentos de minha pesquisa – que não é somente minha.
Ao me aproximar do momento de valor emocional de Igor, afasto-me de reflexões abstratas
as quais interpretam o tempo e o espaço separadamente, já que as dimensões tempo-espaciais são

36
Texto escrito em versos por Igor sobre um debate acerca da formação de professores.

CORPOS
97

indissociáveis. E é com o poema Contranarciso, de Paulo Leminski, que reparo com mais afetação o
meu encontro com o Igor, pois:

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós37

Como no poema de Leminski, o Igor está em mim e estou nele, estamos em nós. Nesse
exercício heterocientífico os receios são inúmeros: o maior deles, no momento em que escrevo/sinto,
é produzir a imagem do Igor em sua ausência, que seria mortificar a pessoa única e singular que ele
é. Volto à casa, leio, penso, sinto novamente as palavras de Igor, registradas em aparelho gravador e
também presentes em minhas memórias. Insatisfeita com a minha escrita acadêmica, recorro ao
processo de sentir/pensar/agir a pesquisa com a minha orientadora. Ela fala sobre a importância de
mergulhar nessas minhas/nossas dificuldades e me convida a pensar a formação de professores,
sempre relacional, valorizando as experiências dos sujeitos da pesquisa; lembra que também eu sou
um dos sujeitos da pesquisa. Peço ao Igor um pequeno texto com possíveis questões significativas,
para ele, sobre as nossas últimas conversas. Igor traz um conto e é com ele que procuro
sentir/pensar os corpos como cronotopos, corpos vivos e sencientes com sentimentos e propósitos38
inteiros:

37
LEMINSKI, 1983, p.12.
38
As narrativas de Igor sobre as suas práticas corporais dentro e fora da escola, sobre sua admiração pelo balé e aversão ao futebol, seus
atos brincantes em que o próprio corpo é um corpo brincante, parecem ser questões acolhidas pela somaestética de Richard Shusterman
(2012).

CORPOS
98

Hoje contarei um conto, um conto como nunca antes nesse caderno.


Hoje contarei a história de um menino, um menino com um corpo e pensamento diferentes, esse menino
sou eu, em minha infância não sabia bem quem queria ser! Sempre quis ser o melhor em tudo, o maioral,
o cara perfeito.
Sempre quis ser uma criança diferenciada, e era... Eu tinha nove anos e não jogava futebol (todos os
meninos achavam que eu era e queria ser uma menina), era bem acima do peso, e feio. Minha mãe
sempre me botava em esportes, sempre fiz mais de um esporte de uma vez e isso me fez emagrecer
bastante, e isso fez que eu ficasse mais feio, sempre me achei e ainda me acho estranho.
O esporte me ajudou bastante, pois sem ele eu seria uma criança obesa sedentária e sem vida
social.Agradeço às aulas de Educação Física. Acho que as aulas deveriam ser um pouco mais práticas
[no Curso Normal].

No acabamento estético que faço do Igor ele é um rapaz bonito e uma corporeidade potente
que me ensina a aprimorar a minha práxis docente. Uma pessoa que carrega em sua postura39 a
perspectiva do corpo como fonte primordial de informação e inteligência sensível (SHUSTERMAN, 2012,
p.9). Cotejando com Richard Shusterman, perspectiva em que corpo é também lugar em que se
aprimora a cognição e as capacidades para a virtude e para a felicidade (Ibidem, p.19), releio o texto
(miniconto) escrito por Igor. É um texto responsivo escrito para mim como são responsivos os seus
discursos quando, em momentos de intervenção, auxilia uma colega que chora. Há emoções que os
transformam e me transformam, sendo movimentos em grande parte desconhecidos para nós (DIDI-
HUBERMAN, 2016, p.28).
Nós que somos um corpo no mundo, sonhamos com voos livres e por vezes temos pesos nos
pés. No dualismo obstinadamente dominante de nossa cultura é demasiadas vezes contraposta à
experiência corporal (SHUSTERMAN, 2012, 26). As contradições estão contidas também no corpo e o
autor parece valer-se da somaestética também para problematizar as dicotomias e polarizações da
perspectiva cartesiana. Assim, utiliza o termo somaestética para propor um novo campo
interdisciplinar da prática filosófica40.
A somaestética propõe mais atenção à consciência corporal, voltada para a experiência
corpórea em que o corpo constitui nossa primeira perspectiva ou modo de relacionamento com o
mundo(Ibidem, p.27). É uma prática filosófica que identifica a expressão ambígua do ser humano: uma
sensibilidade subjetiva que experiencia o mundo e um objeto percebido nesse mundo (Ibidem, p.28). É
porque tenho e sou um corpo que manipulo os objetos, sinto distintas sensações, sou capaz de
aprender, ter dúvidas e curiosidades epistemológicas, transformo as situações e contextos que habito
e sou transformada pelas relações que experimento.
As conversas-encontros com Igor continuam. Com elas a relação arte-vida, suas concepções
estéticas, sua maneira de lidar com o texto literário e os diferentes gêneros, considerando a

39
O termo postura é utilizado neste texto como maneira de proceder, de se posicionar no mundo, atitude responsável e amorosa.
40
Os sentidos somaestéticos costumam ser divididos em exteroceptivos (relacionados a estímulos fora do corpo, sentidos na pele),
proprioceptivos (originados dentro do corpo e relacionados à orientação das partes do corpo umas em relação às outras e à orientação do
corpo no espaço) e viscerais ou interoceptivos (que derivam dos órgãos internos e que costumam estar associados à dor) (SHUSTERMAN, 2012,
p.26).

CORPOS
99

alteridade da pessoa humana, suas singularidades e sua unidade. Aprendo mais a teoria bakhtiniana
com a mediação de Igor: as nossas diferenças não-indiferentes potencializam o encontro, a filosofia
da vida, das vidas que teimam em re-existir e são mesmo protagonistas dos debates e da invenção de
outras pedagogias dos corpos (ARROYO, 2017, p.277).

Os projetos sobre os corpos trazem algo novo nas escolas: o corpo passa a estar aberto para o debate.
São frequentes debates com os educandos/as sobre o corpo e seus estereótipos, preconceitos até o
corpo como objeto nas artes, o corpo representado, o corpo como gerador de conhecimentos, valores,
linguagens, performances, estéticas, imaginários, fantasias. Gerador de culturas corpóreas, sociais,
políticas, identitárias. [...]. Representações que ora carregam prazer, orgulho, estima, ora inquietação,
rejeição por preconceitos. Representações que não são permanentes, mas instáveis, mutáveis,
dependendo das idades da vida, de doenças, do imprevisível. O corpo, as aparências corporais são o
palco de mudanças difíceis de ocultar e que não podemos prever e controlar. Questões que já são objeto
de debates e da invenção de outras pedagogias dos corpos (ARROYO, 2017, p.277).

Os corpos estão presentes na formação de professores. Primeiro porque, por razões óbvias,
é por meio do corpo que nos relacionamos com os outros, nos desenvolvemos e aprendemos – o que
marca a existência humana é o corpo. Segundo porque o fenômeno corporeidade se dá no seio da
cultura humana, porque há interações discursivas sígnicas. O corpo é o próprio discurso, segundo
Susan Petrilli e Augusto Ponzio. Desconsideramos o corpo quando o nosso discurso é monológico, ou
seja, quando não escutamos as contrapalavras; quando não somos capazes de ser sensíveis às
corporeidades que falam, por não olhar para a vida. A palavra é corpo, ela tem vida além do ente que a
enuncia. O enunciador é corpo, vive além da instituição escolar e se renova e (des)constrói porque o
outro existe, porque há a relação que é sempre entre corpos – intercorporais.

CONSTRUINDO O PRÓPRIO CHÃO COM AS INCERTEZAS DE CARNE E SANGUE...

Como na canção de Paulinho Moska, vou construindo o chão com as incertezas do sentir-fazer
pesquisa com o meu não-álibi, meu ato responsável e responsivo no mundo. Igor compõe comigo esse
processo em que as práticas corporais estão/são (n)as relações alteritárias e em nossa assinatura,
nossa autoria. As compreensões e alargamentos são sempre corporificadas, pois falamos com os
nossos corpos sensíveis, consciências somaestéticas41.
Somos corpos, mais ou menos expostos, sempre em transformações na vida em que nada é
fixo e acabado e somos prenhe de futuro – não quaisquer futuros, falamos de futuros entrecruzados
com memórias do passado, marcas de nossas histórias contidas em nossos corpos e localizados no
tempo presente42 .Igor e eu somos sujeitos expressivos e falantes de uma determinada comunidade
41
Para Richard Shusterman (2012), a opção por consciências somaestéticas (ou consciências somáticas) evita possíveis associações negativas
com o termo “corpo”. O autor ratifica e intensifica sua preferência pelo termo “soma”, sinônimo de corpo vivo e senciente.
42
Esta imagem parece dialogar com a ideia benjaminiana de entrecruzamento passado/presente/futuro. Para nós, em cotejo com Walter
Benjamin (2012), não basta o tempo vazio e homogêneo, sendo necessário pensar com/no tempo saturado do agora; pensar mesmo outras
relações com o passado, construindo uma experiência com ele.

CORPOS
100

discursiva, compomos outras em outros espaços, e também compomos uma em relação um com o
outro. Elos intermediários apoiados no homem que constituem esta nossa costura, em que os corpos
são diálogos.
Há na escola, nos narrativas dos processos de vida-formação, um matiz emocional como na
arte; matiz sempre impregnado de valores cronotopos: do encontro, da estrada, o próprio corpo como
cronotopo. É preciso sentir-pensar com mais minúcia sobre a filosofia da sensibilidade e da
somaestética em cotejo com a perspectiva bakhtiniana, sem dúvida, de toda forma reforço aqui a
compreensão de que as intercorporeidades (os corpos cronotopos em relação) constituem-se por
diversificados processos de formação humana, de humanicidade encarnada, sendo as emoções
imprescindíveis. Elas (as emoções) transformam o nosso mundo quando se transformam em
pensamentos e ações43. Eis porque ao defender a consciência corporal e as pedagogias as localizo na
perspectiva formativa de totalidades humanas corporais44.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. Por outras pedagogias dos corpos. In: ______. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA:
itinerários pelo direito à uma vida justa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
BAKHTIN, Mikhail. Formas de Tempo e Cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica). In: ______. Questões de
literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2014.
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DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? São Paulo: Editora 34, 2016.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
LEMINSKI, Paulo. Contranarciso. In: LEMINSKI, Paulo. Caprichos e Relaxos. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983.
PONZIO, Augusto. O Cronótopo na obra de Bakhtin. In: Palavras e contrapalavras: circulando pensares do Círculo de
Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.
SHUSTERMAN, Richard. Consciência corporal. São Paulo: É Realizações, 2012.

43
DIDI-HUBERMAN, 2016.
44
ARROYO, 2017.

CORPOS
RESUMO
101
Este presente trabalho, tem como inspiração Bobók
de Dostoiévisk, uma das mais grandiosas menipéias
da literatura universal. Teve como objetivo criar

MOVIMENTOS DE uma mésalliance, desenvolvendo um plano estético


onde seria possível que professores e crianças
pudessem dialogar em um cronotopo de encontro.

ENUNCIAÇÃO: por uma escuta do


Para Bakhtin, o cronotopo determina a unidade
artística de uma obra literária. Ele nos fala também
que no cronotopo do encontro predomina a matiz
temporal e que se distingue por um forte grau de
corpo da criança intensidade no valor emocional. O cronotopo do
encontro aqui é representado pela escola e pelos
ebcontros enunciativos que acontecem na mesma.
Em uma perspectiva dialógica, professores e alunos
dialogam sobre diferentes temas pertinentes à
educação, trazendo o corpo para o diálogo
DUARTE, Angélica 45 expressivo. O diálogo é o lugar onde existe uma
zona de penetração mútua, sendo assim, o discurso
é dialógico por natureza.

Palavras-Chave: Educação. Enunciação.


Corporiedade.
A SALA DOS PROFESSORES: criança enuncia?

Q
uando toca a sirene é como se as luzes da sala do cinema se acendessem, todos sabem
que é hora de levantar e sair. Abrindo a porta da sala deixamos de ser uma coisa e
passamos a ser outra. O corredor passa a ser um lugar para correr, eu me seguro
para não acompanhar os alunos, porque dizem nos corredores, que eu sou professora e que
professores devem dar exemplo, isso é muito chato. Sorrio para os supostos alunos e uso a minha
imaginação para correr junto com eles, ah sim, ali eu posso correr. O grande problema é que o meu
corredor não me leva a uma sala tão legal, é que nos últimos dias o filme que vem passando na sala
dos professores me parece uma mistura de ação, terror e suspense. Atravesso o corredor e dou de
cara com a sala mais temida: a sala dos professores, lugar dos ditos detentores do saber. Aí começa
o filme de ação, sou eu, Tom Cruise em missão impossível 46 , tentando parecer invisível, me
esgueirando pelas paredes da sala, - Normalmente uso a sala porque é lá que fica o banheiro-
atravesso o campo minado, esperando ser imperceptível, - quem nunca desejou isso?- Não costumo
fugir de uma boa conversa, mas tem dias que eu estou tão bem que eu quero só ser invisível mesmo-
não me vejam, por favor! Pedia mentalmente, meu desejo nunca era atendido, nunca conseguia passar
sem ouvir questionamentos, - deve ter algo de errado com a minha roupa, pensava.
̶ Sua sala hoje estava barulhenta! – Mariana47, a professora do quinto ano falava em um tom
de quem puxava assunto – e ali começava o meu filme de terror, eu sentia que aquele era um diálogo

45Angélica Duarte da Silva Araujo, professora da Rede Municipal de Duque de Caxias, mestranda da Universidade Federal Fluminense,
pesquisadora do Grupo de Estudos bakhtinianos Atos/ UFF , onde pesquisa as enunciações infantis. E-mail: angelicaduarteas@gmail.com
46
Missão impossível, filme dos Estados Unidos de 1996, teve Tom Cruise como o protagonista.
47 Nome fictício

CORPOS
102

que não ia ter um final feliz, mas sempre participo da cena esperando que o filme de terror tenha um
final de romance.
̶ É, as crianças falam, enunciam, e às vezes – tom de suspense na minha voz dando ênfase a
cada sílaba- mesmo em si-lên-cio elas dizem!
Uma gargalhada alta toma conta da sala. Meu rosto reflete o meu não entendimento- a
legenda passou rápida demais, eu não entendi o sentido dessa cena- penso.
̶ Você é tão engraçada professora, podia ser comediante. - seu tom é irônico.
̶ Não entendo, por quê? Você não acha que as pessoas não enunciam no silêncio? – questiono.
A sirene toca.
̶ Vamos voltar ao trabalho, alguns têm coisas sérias a fazer aqui. - Mariana fala como quem
escorrega da resposta. Nos encaminhamos para o corredor enquanto respondo:
̶ O riso também é sério, querida Mariana.

ENUNCIAÇÃO DO GESTO

Para eu podermos pensar na enunciação da criança, precisamos resolver o problema da


enunciação para além da palavra verbal. As crianças falam sem a linguagem verbal. O círculo de
Bakhtin vislumbra isso em algumas partes de seus textos, entretanto, não é algo que explicitamente se
colocou. O tom alarga a enunciação para além da palavra verbal, porque o tom é musical, é corporal.
Só que para eu dizer que as crianças enunciam, e eu sei que elas enunciam, eu sei que elas estão em
diálogo ativo conosco, às vezes nós não compreendemos o contexto enunciativo, não temos uma
gramática para escutar as crianças. É sobre entender a gramática da enunciação verbal, não-verbal
ou verbal em construção.
Essa inquietações que nos levam a refletir que, se as criança enuncia, então quais são as
características desse enunciado? O corpo enuncia antes da fala? Sendo assim, os bebês enunciam?
Figura 1. Marlen Max

CORPOS
103

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora.

Hoje nós vamos aprender o que é um auto-retrato. Vocês sabem que muitos pintores famosos
tinham o costume de se auto-desenhar?
̶ Eu não sei desenhar.
̶ Sabe sim Marlen, é só você usar o lápis de cor e fazer do jeito que você sabe.
̶ Eu não sei de jeito nenhum, ninguém nunca me ensinou a desenhar então eu não sei ueh. Olha
aqui! Tudo que eu faço fica feio! - ele exclama com um tom de irritação.
̶ Entendo. O que você queria desenhar?
̶ Eu queria me desenhar, mas eu não sou assim.
̶ Vamos começar pela cabeça, como é sua cabeça?
̶ Não, vamos começar pelo boné! – Ele eleva a voz parecendo interessado.
̶ ok!

O LABIRINTO DA ENUNCIAÇÃO

A palavra na vida, com toda evidência, não se centra em si mesma. Surge da situação extraverbal da
vida e conserva com ela o vínculo mais estreito. E mais, a vida completa diretamente a palavra, que não
pode ser separada da vida sem que perca seu sentido48 VOLOCHÍNOV, 2013, p. 77).

A palavra está na vida, é social e traz com ela todo o contexto histórico. Mas e o gesto?
Quando enunciamos a palavra o corpo vai junto, temos um tom para cada fala, se estamos irritados ou
felizes a mesma palavra traz diferentes tons, e com eles novos significados.

Desta maneira, cada enunciação da vida cotidiana é um entinema socialmente objetivo. É uma espécie de
palavra-chave que somente conhecem os que pertencem a um mesmo horizonte social. As
peculiaridades das enunciações da vida cotidiana consistem em que elas, mediante milhares de fios,
entrelaçam-se com o contexto extraverbal da vida e, ao serem separadas deste, perdem quase por
completo seu sentido: quem desconhece seu contexto vital mais próximo não as entenderá (VOLOCHÍNOV
2013, p. 80).

Sendo assim, se separarmos a palavra do cotidiano, da pessoa, do corpo que enuncia, ela não
terá o mesmo significado.

Tanto o corpo quanto a palavra são fronteiras entre o mundo interior e o exterior, entre o eu e o não eu,
a alteridade. O corpo é a fronteira entre o eu-para-mim e a espacialidade do outro; a palavra (o
enunciado) é fronteira entre o meu dizer interno, semiamorfo- ainda que possível tão somente a partir
da anterioridade do discurso social da alteridade-, e a formulação expressiva dirigida ao outro com fins
de comunicação. A linguagem que recebo está prenhe de um diálogo inconcluso ao que eu tenho que me

48 Valentin Volochínov: A construção da enunciação e outros ensaios, São Carlos: Pedro & João, 2013, p. 77

CORPOS
104

conectar, qualquer palavra que sou capaz de proferir é uma resposta a algo dito antes por outros,
oriento meu discurso sempre para que alcance o outro. Sempre se fala para alguém essa é a essência
do meu eu-para-outro: ato, discurso, literatura. (BUBNOVA, 2016, p. 146)
Desta forma, o corpo do Marlen enuncia seu próprio mundo, pois ao enunciar ele responde ao
mundo. Isso não tem nada de passivo, ele é um sujeito do ato.

Habitualmente respondemos a qualquer enunciação do nosso interlocutor, se não com palavras, pelo
menos com um gesto: um movimento da cabeça, um sorriso, uma pequena sacudidela da cabeça, etc.
Pode-se dizer que qualquer comunicação verbal, qualquer interação verbal, se desenvolve sob a forma
de intercâmbio de enunciações, ou seja, sob a forma de diálogo (VOLOCHÍNOV 2013, p. 63).

O que tem ali que pode dizer que ele enuncia com gestos, tom e atos? E o que nisso tem a
arquitetônica do eu-outro? Na relação eu-outro espacial, temporal e de valor? Como ele suporta a
alteridade e evolui?

Que gênero discursivo é esse em que as crianças enunciam? Poderemos afirmar que as relações
corporais do bebê configuram um gênero, isto é, que elas possuem motivo, unidade temática, autoria,
projeto discursivo, entre outros elementos que compõem os gêneros, segundo Medviédev? Podemos
afirmar que são os elementos não verbais como o choro, o gesto, a brincadeira infantis gêneros
discursivos?49 (BARENCO; LOPES; DUARTE, no prelo)

Crianças enunciam, já que são sujeitos humanos na cultura. Mas mais que isso, a enunciação
transborda em muito a compreensão rasa da parte verbal de um ato comunicativo. A enunciação é
uma situação concreta, comunicativa, que envolve além do falante e do ouvinte todo o presumido da
cena enunciativa, as relações valorativas do contexto próximo e mais alargado da cultura e,
principalmente, um gênero discursivo em seu acabamento estético.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trabalhamos no decorrer deste texto, apresentamos dois acontecimentos do cotidiano da


escola. Um ocorre na sala dos professores e outro na sala de aula. Este texto surge no intuito de
questionar a falta de importância que se dá à fala das crianças, que historicamente são tratadas com
seres da ausência da fala, bem como a enunciação dos gestos corporais que por muitas vezes são
desconsiderados.
Almejamos um lugar onde as crianças possam ser reconhecidas como sujeitos da cultura e
enunciadores da mesma. Onde a fala seja ativa e responsiva, política e transformadora da sociedade.

REFERÊNCIAS

49 Marisol Barenco, Ana Lopes, Angélica Duarte. É possível que a criança enuncie? Por uma educação infantil dialógica. (no prelo).

CORPOS
105

BAKHTIN, Mikhail – Marxismo e Filosofia da Linguagem, São Paulo, Hucitec, 1981.


BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 4 ed., São Paulo : Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma Filosofia do Ato Responsável. Tradução: Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. 2 ed.,
São Carlos : Pedro & João Editores, 2012.
BUBNOVA, Tatiana. Do corpo à palavra. São Carlos: Pedro & João, 2016
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Bobók, Jardim Europa, Editora 34, 2012.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe), PONZIO, Augusto. Palavras e Contrapalavras – Caderno V. São
Carlos: Pedro e João Editores, 2013.
JANER, Jader. BARENCO, Marisol. Autorias Infantis: Processos Intermodais De Criação.
MEDVIÉDEV, P. N. O Método Formal nos Estudos Literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad.
EkaterinaVólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.
PONZIO, Augusto. Procurando Uma Palavra Outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
VOLOCHÍNOV, Valentin. A construção da enunciação e outros ensaios, São Carlos: Pedro & João, 2013.

CORPOS
RESUMO

.
106

Palavras-Chave: Educação. Enunciação.

A NATUREZA Corporiedade.

BAKHTINIANA DA
LITERATURA DE HILDA
HILST: ou por um mundo
mais bufólico!
GOMES, Francisco Alves 50

S
im!
A literatura de Hilda Hilst (1930 – 2004) emana a ideias de
Mikhail Bakhtin. Não sei se ela teve acesso aos escritos
bakhtinianos, porém, uma coisa é certa: os temas que perfilam a escritura da autora, como um todo
perpassam o riso, o corpo e a política. É visceral a maneira como Hilst articula essa tríade, a partir de
personagens despedaçados pela realidade que os oprime. Sim! Há nas obras de Hilda um poder
opressor a perseguir os sujeitos, em tentativas de reificação, coisificação, controle dos corpos ou
simplesmente a fúria do tempo sobre a carne a evocar a velhice. Deus também é um terror, não
gratuitamente Hilst denomina o Supremo como, “uma superfície de gelo ancorada no riso”, dessa
condição, o homem, marionete das possibilidades prementes do viver, tem por opção, apenas tatear
na dimensão que lhe cabe enquanto aprendiz das realidades, do êxtase que vai do espiritual ao
grotesco em sua forma naturalmente disforme. Se para Bakhtin a literatura é um território em que a
cultura vivaz é parte de um todo complexo, e por isso, rico em suas múltiplas possibilidades
interpretativas, para Hilda Hilst nada, em termos de escrita, está fora da vida. Tudo acontece no
interior do caos que compõem o existir, e até mesmo a procura por Deus tem aporte nos caracteres
do corpo, como nos mostra no romance a Obscena Senhora D, romance em que a personagem Hillé
levanta questões sobre a finitude, o obsceno, a experiência enquanto maturação das neuras que
identificam a crueza de se perceber humano, bem como a ideia de falta de sentido da vida. Em 1950
quando pulica Presságios, seu primeiro livro de poesia, Hilst indica de chofre que sua atividade
estética vincula-se ao humano sempre em relação ao incômodo e ao entrelugar, logo, algo que pode
ser visto também como inacabado, incompleto. Por essa incompreensão arreganhada do que é a vida,

50 Mestre em Literatura brasileira. Professor Assistente da Universidade Federal de Roraima (UFRR-Leducarr). E-mail: aluadoalves@gmail.com

CORPOS
107

Hilda prossegue na poesia com Balada de Alzira, Balada do Festival, Roteiro do Silêncio, Trova de muito
amor para um amado senhor, Ode fragmentária, após esse período, em 1967 começa a produzir sua
dramaturgia, composta de oito peças notadamente eivadas no simbólico, já em 1970 publica seu
primeiro livro de ficção denominado Fluxo Floema, obra que demarca outro momento para a autora,
sob os olhos de um tímido conjunto de críticos a chancelar de forma veemente seu nome como uma
das grandes escritoras contemporâneas desse país. Nas décadas de 70 e 80 a produção de Hilda Hilst
alterna-se entre livros de poesia, conto, romance, evidenciando a versatilidade da escritora em
passear por vários gêneros literários. Em 1979 Hilda Hilst concede uma entrevista ao programa
Fantástico sobre sua experiência ao gravar vozes de mortos. Sim! Hilda conversou com mortos, sua
incursão demonstra que existem dois lados, duas moedas para um mesmo Caronte, um que se perfila
nas misérias do dia a dia, outro que se personifica em literatura. A consciência de que a vida é
inacabada ultrapassa Hilda Hilst sistemicamente. O isolamento na Casa do Sol representa no percurso
da autora o recriar da concha, como lembra Gaston Bachelard, na Poética do Espaço. Nesse lugar de
criação, a autora responde ao mundo através da literatura, ecoando a partir da moradia – corpo e
moradia – casa, ambas as dimensões mescladas na vida. Em termos de dramaturgia, Hilda Hilst
engendra oito textos teatrais como forma de mandar um recado a sociedade. Em inúmeras
entrevistas, quando questionada sobre o porquê de escrever teatro, Hilda categoricamente respondia
que havia uma urgência em se comunicar com o outro, em falar com esse desconhecido, mostrando-
lhe o que há de cruel e perverso no regime militar. Hilda praticou o dialogismo de várias formas. Seu
teatro é dialógico, pois se constrói com vistas para o outro, e ainda que a crítica teatral tenha dado
pouca importância à obra dramatúrgica de Hilda é certo e já reconhecido que as oito peças escritas
no período de 1967 a 1969 são dotadas de características singulares. Hilda, bifurcada e intermediada
pelas dimensões de contemplação e criação, ambas latentes no desejo da autora em ser lida por um
público abrangente. Há que se ponderar que a trajetória de Hilda Hilst é marcada por um aglomerado
de fatos que fizeram com que a autora ganhasse um imaginário assentado na devassidão e na loucura,
isto tem influência na maneira como os leitores se aproximam de suas narrativas. Aliás, narrativa é
uma ideia cara na obra hilstiana, pois ela é marcada de polifonia. Sim! Há uma profusão de vozes
entrechocando-se no tecido narrativo, sobreposições de pensamentos vertiginosos que podem
solapar a atenção do leitor desatento e acostumado com o texto ruminado. Com os meus olhos de cão
e Fluxo Floema ou Rútilos são exemplos de narrativas em que o discurso se mimetiza com outras
camadas ideológicas a situar as tramas em verdadeiros amalgamas polifônicos. Por falar em
ideologia, Sim! As personagens de Hilda possuem uma natureza ideológica, pensam a vida de maneira
muito peculiar, uma vez que a ideia de pertencimento está atrelada a algo maior,à liberdade. Em o
Verdugo, peça escrita em 1969, o conflito parte da recusa do Verdugo em matar um homem, o
carrasco acredita na inocência do condenado porque olhou nos seus olhos e porque este também
falava de amor. No jogo de alteridade entre o homem e o Verdugo existem intercâmbios construídos
pelo silêncio, são tantas pausas no texto, que é possível identificar um esforço da autora em lembrar
os leitores que o liame que irmana todos numa mesma condição de luta contra o sistema se faz na

CORPOS
108

pausa, no silêncio, na escuta, pois a construção identitária é mútua, e, ainda que os impactos
ressonem na individualidade, é preciso a performance do interlocutor como materialidade, vísceras,
angústias e a fronteira, afinal alteridade implica reconhecimento da diferença para a criação de novas
redes e saberes que hão de gestar o novo. Há um emblema que diz ser Hilda Hilst uma autora
incompreensível, hermética, do mesmo modo já ouvi que Bakhtin é um teórico de difícil compreensão,
sem uma linha de raciocínio linear. Ora, tanto em Hilda quanto em Bakhtin o conhecimento da vida se
dá por formas que ultrapassam qualquer tipo de linearidade, talvez nem um rizoma abarque a
amplitude do pensamento de Mikhail Bakhtin, tendo em vista que nada está acabado, ou
suficientemente esgotado. Há sempre um devir, ou melhor, há sempre uma possibilidade de
responsividade diante do ato, desse modo, escolha e consciência são os fulcros que impulsionam o
sujeito para o além de qualquer situação em que há risco para a formação das inteligências sociais e
emocionais. Se a carnavalização em Bakhtin implica a demolição do sistema oficial, o que dizer então
de Hilda Hilst ao produzir a tetralogia obscena nos anos 90? Incomodada com a falta de leitores a
autora recorre ao baixo material, a partir do obsceno, para angariar a atenção do mercado editorial
brasileiro e tornar sua literatura visível aos olhos de uma maior parcela de leitores, os efeitos dessa
tentativa foram controversos em termos da crítica especializada, bem como a recepção dos leitores.
Para alguns críticos a incursão de Hilda no obsceno resultou em obras de qualidade questionável, se
colocadas diante de sua produção anterior; para outros, a tetralogia obscena comprova a
competência da autora em exprimir com criatividade e deboche, através do baixo material, o que há
de mais podre na sociedade brasileira. Na obra O caderno rosa de Lori Lamby, a personagem título,
com apenas oito anos de idade partilha suas aventuras sexuais ao passo que este relato caminha lado
a lado ao conflito do pai, personagem escritor, escravo do mercado editorial, uma vez que a seriedade
no país é algo questionável, logo, o editor é quem manda no escritor, dizendo-lhe o que é vendável ou
não, assim, no mundo familiar de Lori Lamby o avesso das relações se constitui matriz para justificar
as confissões sexuais da menininha ao leitor, bem ao estilo dos textos de Lawrence ou Bataille. E o que
dizer então do livro Bufólicas? Formado pelos textos: O Reizinho gay, A Rainha careca, Drida, a maga
perversa e fria; A chapéu, O anão triste, A cantora gritante e Filó, a fadinha lésbica. Hilda apropria-se
de figuras tão ilustres na tradição dos contos de fadas para colocá-las num outro campo discursivo.
Na dimensão grotesca, amenizada aqui pelas construções em redondilha e excesso do risível que a
autora forma este pequeno bestiário carnavalizado. As narrativas sustentam-se na paródia ao passo
que temas como a homossexualidade, o lesbianismo, as degenerências e neuroses eróticas ganham
escopo, pois são também ilustradas pelo cartunista Jaguar. O deboche imposto pelas personagens
nos sete breves poemas ressoa a absurdez presente no mundo de Gargantua e Pantagruel, de
François Rabelais, e ainda que os contextos sejam distintos, o exagero se perfila na exibição das
temáticas, muitas delas silenciadas pela tal da moral e dos bons costumes –em voga no Brasil nos
últimos tempos – nesse sentido, urge a necessidade de que sejam espalhados exemplares de Bufólicas
em pontos de ônibus, banheiros, em guichês de pagamentos de impostos, universidades, escolas e etc.
Acredito também que faria um bem danado às igrejas. Neste sentido, em qualquer lugar que exista um

CORPOS
109

julgo – juiz, sistema oficial, perseguidor, moral, certidão, homens de bem, mulheres de bem, força,
ordem, progresso pela morte, homens de puro reto e retidão, para todos estes, Bufólicas seria
carnavalizador. Na medida em que os sujeitos redescobrissem as fantasmagorias eróticas em pura
violência interna, subjetiva e sexual, certamente ririam um pouco com maior facilidade, logo, o riso e o
rebaixamento os lembrariam de sua humanidade. Por falar em reto – retidão, abordo de forma breve
o texto O anão triste:

De pau em riste
O anão Cidão
Vivia triste
Além do chato de ser anão
Nunca podia
Meter o ganso na tia
Nem na rodela no negrão.
É que havia um problema:
O porongo era longo
Feito um bastão
E quando ativado
Virava... a terceira perna do anão.
Um dia... sentou-se o anão triste
Numa pedra preta e fria
Fez então uma reza
Que assim dizia:
Se me livrasses, Senhor,
Dessa estrovenga
Prometo grana em penca
Pras vossas igreja.
Foi atendido
No mesmo instante
Evaporou-se-lhe
O mastruço gigante.
Nenhum tico de pau
Nem bimba nem berimbau
Pra contá o ocorrido.
E agora
Além do chato de ser anão
Sem mastruço, nem fole
Foi-se-lhe todo o tesão.
Um douto bradou: ó céus!
Por que no pedido que fizeste
Não especificaste pras Alturas
Que te deixasse um resto?
Porque pra Deus
O anão respondeu
Qualquer dica
É compreensão segura
Ah, é, negão? então procura.

CORPOS
110

E até hoje
Sentado na pedra preta
O anão procura as partes pudendas...
Olhando a manhã fria.

Moral da estória:
Ao pedir, especifique tamanho
Grossura quantia. (HILST, 2002, p. 25- 27)

O elemento grotesco problematizado na narrativa coaduna-se com o risível, o drama do anão


Cidão evoca não apenas a ideia de deformação física, o fato de ser anão o que por si só já o classifica
com estranho é amplificado com a presença do pênis anormal no corpo já situado socialmente no
campo da anormalidade. Neste caso a junção dos elementos opostos: corpo pequeno e pênis grande;
contribui decisivamente para o tom da narrativa em que o leitor é deslocado para o riso, como
resultante de forças simbólicas a dirimir uma entrada ideologicamente conservadora no texto. O texto
chama o leitor para outra performance de recepção, é como um gênero do discurso que prepara o
território, apontando ao leitor as sensações, os gestos e as múltiplas ressonâncias possíveis
resultantes com a experiência. No primeiro texto de Bufólicas, O Reizinho gay, “reinava soberano
sobre./ Mas reinava... / APENAS... / Pela linda peroba / Que se lhe adivinhava / Entre as coxas
grossas.” (HILST, 2002, p. 11). Tanto o rei homossexual quanto o anão Cidão possuem o pênis como
elemento de poder, para o primeiro significa reinar apenas pela visualidade, tendo em vista que o rei é
mudo e quando solicitado a verbalizar algo para a Nação, apenas apresenta o membro sexual, “na
rampa ou na sacada”, silenciando, dessa forma qualquer tipo de intervenção discursiva por parte dos
habitantes. Para o segundo, o pênis é um tipo de poder instalado no exótico que não encanta, mas
denota um distanciamento da coletividade. A personagem Cidão, diferente do Reizinho gay, não tem o
voyeurismo coletivo ao seu favor, o que resulta numa busca pela normalidade, haja vista que a
personagem recorre ao divino e à igreja como forma de redenção e ajustamento ao mundo oficial, no
entanto, após a ação divina o resultado é catastrófico, chancelando dessa forma o risível e o grotesco
num corpo que antes não tinha a potência para encantar positivamente, e agora pertence ao
entrelugar. Essas personagens, fantasmagorias de Príapo, simbolizam o que há de mais inacabado na
condição humana. O corpo enquanto território de metáforas vivas evoca sempre a pergunta primeira
a colocar o homem numa situação de desnudamento e vergonha acoplada ao que é natural, grotesco,
risonho e excitante.
Logo, com a presença da ilustração do Jaguar, o texto ganha um aliado poderoso, a imagem
também é responsável por suscitar no leitor a sensação de estranhamento que é abrandada pelo riso.

CORPOS
111

Quando o drama do anão Cidão é colocado diante dos pressupostos religiosos da fé, o deboche
é eminente. Será Deus o responsável por anões com pênis enormes? Na narrativa, Cidão foi “curado”,
mas isto teve um preço. A anulação da sexualidade é prova de que a violência impetrada por sistemas
de dominação e alienação normatiza os corpos. Deus tirou de Cidão seu pau, deste modo, o título do
poema, “O anão triste”, evidencia o duplo horror que pode haver na não aceitação do corpo grotesco
como ele é. Se antes Cidão era grotesco por duas vias identitárias, corpo e pênis; no fim do texto o
risível e o triste meio que partilham os opostos do destino da personagem. A imagem da pedra “preta
e fria” pode muito bem configurar a ideia de túmulo, ou seja, o homem que está adormecido feito um
pênis “meia bomba” que no impedimento de sua plenitude coloca o anão no seguinte mistério da
trindade humana: o primeiro é ser anão, o segundo é ter um pênis longo e o terceiro, na incapacidade
de enrijecer o membro para as alturas, “Virava... a terceira perna do anão.” Nessa equação a
personagem Cidão representa o corpo não oficial que constantemente está em conflito com o entorno
e suas variadas formas de opressão e regulação dos corpos. A natureza do corpo da personagem é
carnavalizada, o exagero do órgão sexual é também evidência do que está no interior, a pulsão
premente erótica a devassar os sujeitos, algo que Hilda Hilst percebeu muito bem e através de sua
consciência estética organizou nos termos da literatura. O grotesco de certa forma pode ser
encarado como a exposição das deformidades que constituem a natureza subjetiva dos seres
humanos. Todas as personagens de Bufólicas estão imersas na diferença, se colocadas diante de
sistemas totalitários que pregam a homogeneidade das coisas. O Reizinho gay é “mudo, pintudão”; A
Rainha careca é farta de cabelos, mas nas partes pudendas é lisa, o que lhe causa sofrimento; assim
o mundo bufólico de Hilda Hilst se constitui de personagens desajustados, que no melhor estilo
outsiderexpõem relações dialógicas com o outro, e por essa condição, são inacabados.
Mikhail Bakhtin é um pensador das liberdades, seu raciocínio ultrapassa um aqui e agora que
se corresponda apenas com a eventualidade passageira, aliás, a ideia de evento como um todo que se
ressignifica é uma porta de entrada convidativa para a experimentação das ideias do filósofo russo.

CORPOS
112

Sim! É possível ler o Brasil a partir de Bakhtin. A atualidade brasileira está calcada num horror
presente e constante a se ramificar em diversos setores da sociedade. Se é que podemos falar que
somos ainda uma sociedade... a selvageria incorporada em novas tecnologias de opressão
chanceladas pelo Estado colocam o país numa situação de perseguição às liberdades. Em tempos em
que se prega ‘cura gay’, só mesmo a bandalheira, o chiste e a piada pronta podem gerar alguma coisa
ou extrato decatarse, a promover certo alívio e esperança em dias mais dialógicos.
Hilda Hilst, esse enigma pétreo, vem sendo redescoberta pela crítica e por leitores ansiosos
por um mundo Bufólico! Sim! É preciso que bufões, bobos e trapaceiros rabelesianos possam
inscrever este mundo num outro local de performatividades sociais. Hilda ao lançar os livros
obscenos afirmava que o riso é uma solução maravilhosa para as dores humanas, portanto, a
necessidade de rir acentua em cada um de nós o desejo por um mundo às avessas diante do que é
exposto diariamente... Sim! Entre Hilda Hilst e Mikhail Bakhtin existem correspondências... tensões...
dialogias...
Avancemos.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.


BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_____. O discurso no romance. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp 1998.
_____. Para uma filosofia do acto. Tr. Bruno Monteiro. Lisboa: Deriva Editores, 2014.
HILST, Hilda. Da poesia: Poesia completa. Rio de janeiro: Companhia das Letras, 2017.
_____. Bufólicas. São Paulo: Editora Globo, 2002.
_____. A obscena senhora D. São Paulo: Editora Globo, 2001.
_____. Com os meus olhos de cão. São Paulo: Editora Globo, 2006.
_____. O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Editora Globo, 2005.
_____. Fluxo Floema. São Paulo: Editora Globo, 2003.
_____. Rútilos. São Paulo: 2003.
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte. Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.

CORPOS
RESUMO
113
A Fonoaudiologia, na área da surdez,
tradicionalmente vem realizando um trabalho com

A RESSIGNIFICAÇÃO DA as crianças surdas enfatizando apenas a aquisição


da oralidade e o desenvolvimento das habilidades
auditivas, tal concepção baseia-se no pressuposto

SURDEZ A PARTIR DAS


de que só assim o surdo pode se aproximar da
comunidade ouvinte majoritária. Este texto, no
entanto, pretende discutir as práticas de linguagem
na clínica fonoaudiológica a partir de uma

PRÁTICAS DE LINGUAGEM perspectiva que considere a história de cada


pessoa surda, sua relação com a linguagem e suas
interações sociais que ocorrem no trabalho com,

NA CLÍNICA
sobre e na linguagem. Nessa concepção a clínica é
percebida como um espaço de mudança, ou seja, de
ressignificação de cada sujeito surdo em sua
singularidade, ou seja, um lugar para que a família e

FONOAUDIOLÓGICA as outras instituições sociais com as quais esse


sujeito se vincula, o percebam como único, social e
histórico. Um espaço em que o discurso é entendido
como uma ponte, um lugar de encontro entre
sujeitos, no qual por meio da alteridade, cada
sujeito surdo possa se apropriar da linguagem e se
constituir nas práticas vivas da língua.

GUARINELLO, Ana Cristina 51 Palavras-Chave: Linguagem. Clínica


Fonoaudiológica. Surdez.

INTRODUÇÃO

I
nicialmente, cabe esclarecer que a Fonoaudiologia, desde seus primeiros cursos, por volta da
década de 1960, foi fortemente direcionada por um olhar medicalizante e por uma perspectiva de
intervenção clínica voltada para a “cura”. Especificamente no que se refere a área da surdez, tal
trabalho clínico, em geral, baseia-se em práticas que enfatizam a aquisição da oralidade e das
habilidades auditivas da criança surda. Esse trabalho sofre forte influência de uma concepção clínico-
terapêutica da surdez, que enfatiza que os surdos devem ser curados e reabilitados por meio do uso
de dispositivos eletrônicos, como aparelhos auditivos e implantes cocleares. Neste trabalho parte-se
do principio que a linguagem pode ser ensinada por meio do treino da fala, articulação, leitura
orofacial e das habilidades auditivas, sendo que a língua de sinais não é utilizada, já que supõe-se que
a única e melhor maneira do surdo inserir-se na comunidade ouvinte é ouvindo e falando.
Esta concepção, geralmente, trabalha com a linguagem entendendo-a como um sistema
fechado, um código estável, e que sua apropriação é feita a partir de um trabalho cognitivo,

51 Doutora em Estudos Linguísticos pela UFPR, Docente da Graduação em Fonoaudiologia e do Mestrado e Doutorado em Distúrbios da
Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: Ana.guarinello@utp.br. Fonte de financiamento: Bolsa de produtividade em
Pesquisa CNPq 303356/2013-8.

CORPOS
114

assegurado ao falante nativo, que depende apenas de uma formação, uma memória boa e de um bom
ensinamento (PONZIO, 2010).
Ao contrário dessa concepção, no trabalho aqui apresentado entende-se a surdez como
diferença e os surdos usuários da língua de sinais como uma minoria linguística, a linguagem é
compreendida como atividade discursiva, constitutiva da própria língua e do sujeito. Assim, afirma-se
que para se apropriar da linguagem, as crianças surdas devem engajar-se em práticas linguísticas
que possibilitem o uso efetivo da linguagem, as quais ocorrem por meio da interação com adultos que
fazem a mediação entre a criança e o objeto linguístico. Esse adulto, no caso da Clínica de
Fonoaudiologia, é o fonoaudiólogo que atribui sentidos e significados à linguagem da criança, agindo
como intérprete na significação e ressignificação de seu uso.
Propõe-se aqui, portanto, um outro olhar para as práticas que ocorrem na clínica
fonoaudiológica com crianças surdas, olhar esse que privilegia a interação e o uso de gêneros
discursivos durante as atividades que ocorrem no setting terapêutico. Entende-se a linguagem como
dinâmica, não restrita apenas ao código, tem uma amplitude subjetiva, a qual abrange a formação
constitutiva de cada sujeito singular e único e na sua maneira de posicionar-se no mundo.
Assim, concorda-se com o posicionamento de Skliar (2003, p.20) quando esclarece que é
preciso

Voltar a olhar bem, isto é, voltar a olhar mais para a literatura do que para os dicionários, mais para os
rostos do que para as pronúncias, mais para o inominável do que para o nominado. E continuar
desalinhados, desencaixados, surpresos, para não continuar acreditando que nosso tempo, nosso
espaço, nossa cultura, nossa língua, nossa mesmidade significam todo o tempo, todo o espaço, toda a
cultura, toda a língua, toda a humanidade (SKILAR, 2003, p.20).

Os sujeitos surdos nessa perspectiva são históricos, culturais, sociais e estão inseridos em
meios sociais organizados, dessa forma para que tenham uma compreensão discursiva ativa
precisam pertencer a uma mesma comunidade linguística (BAKHTIN, 2004). Além disso, para esse
autor os signos também são sociais e criados e interpretados no interior de complexos e variados
processos de intercâmbio social. Assim, ao refletir sobre as práticas terapêuticas fonoaudiológicas é
preciso entender e interpretar a história de cada sujeito, como única e singular. Entender, por
exemplo, que uma criançca que possui pais ouvintes que usam somente a língua oral para se
comunicar, terá muitas dificuldades para participar dos enunciados dialógicos. Compreender que
algumas mães ouvintes param de falar com seus filhos ao descobrir que eles são surdos, e que em
outras famílias os mal entendidos e a falta de interações dialógicas é o que prevalece.
O trabalho com a linguagem na clínica fonoaudiológica quando entende-se a linguagem como
constituiva dos sujeitos pode ser para as famílias e para as crianças surdas muito mais do que
simples reabilitação; a partir desse trabalho pode-se pensar na Clínica de Fonoaudiologia como um
espaço de mudanças, ou seja, de ressignificação de cada sujeito surdo em sua singularidade. Um lugar
para que a família perceba que o discurso é a ponte, o lugar de encontro entre sujeitos. Um espaço
em que, por meio da alteridade, a linguagem possa se constituir na prática viva da língua. Nesse

CORPOS
115

sentido, pode ser sim um espaço de intervenção junto aos pais de crianças surdas, no qual se
promova a escuta das necessidades de cada sujeito e se apontem novos direcionamentos familiares
possibilitando a melhora das relações dialógicas, fundamentais para a constituição destes sujeitos
como pessoas autônomas e participativas socialmente.
Diante disso, ao se focar, durante as terapias fonoaudiológicas, nas práticas de linguagem
entre a criança surda e seus interlocutores é importante ir além das palavras. Ou seja, é preciso
compreender em quais processos sociohistóricos essa família foi constituída; como as
representações da surdez que circulam na sociedade são refletidas na dinâmica familiar, e quais
destas concepções sobre a surdez aparecem nas falas dos familiares. Isso porque as pessoas não
estão isoladas do seu universo social, ao contrário, cada uma destas famílias expressa ideias
construídas pelos discursos que emergem do interior das relações sociais, e neles criam as
dimensões valorativas e avaliativas (FARACO, 2009).
Assim, ao observar as grandes narrativas sobre surdez e como estas se inserem nos
discursos sociais, é possível compreender que uma família ouvinte com uma criança surda poderá ter
uma propensão maior para utilizar a fala para interagir com seus filhos, enquanto a maioria das
crianças surdas sente-se mais a vontade usando recursos visuais, como gestos, o apontar e a língua
de sinais. Desse modo, uma primeira barreira pode começar a ser construída, pois quando não há
uma língua comum entre a família e a criança surda para estabelecer suas interações sociais, há uma
tendência das interações serem estabelecidas por meio do uso da língua como um código pronto e
acabado.
Nesse sentido, a partir dos estudos da linguagem e da constituição do sujeito, defendidos pelo
Círculo de Bakhtin, entende-se que a palavra viva se dá pelo diálogo, pelas enunciações
contextualizadas e pelos momentos de interação. A linguagem, sendo o eixo que funda a relação do
homem consigo mesmo, um ser falante e expressivo, torna-o constituinte da sua própria consciência,
de forma que “o discurso do falante o liberta da condição de objeto” (FREITAS, 1996, p. 171).
Portanto, se é a família a instituição social onde a criança passa a maior parte do tempo, é
acolhida e cuidada, será dentro dela que o sujeito irá se constituir emocional, subjetiva e socialmente.
O fonoaudiólogo na clínica pode, então, explicitar o papel fundamental da família na constituição do
sujeito surdo e mostrar que todo enunciado é uma resposta e não mera repetição; todo enunciado,
não importa como seja produzido (fala, escrita, gestos, expressão facial e corporal, vocalizações, etc),
contém sempre uma resposta e é um elo na cadeia ininterrupta da comunicação sociocultural
(FARACO, 2009). Assim, toda compreensão dos enunciados deveria ser ativa e se opor à palavra do
outro com uma contra-palavra que precisa ser interpretada.
Bakhtin (2004, 2010, 2011) pode então fornecer subsídios teóricos e conceituais para
fundamentar os trabalhos voltados às práticas com, sobre a na linguagem na clínica fonoaudiológica.
O conceito de enunciado, por exemplo, vai de encontro a outro conceito central do arcabouço teórico
de Bakhtin, que fundamenta este trabalho, o de “compreensão ativo-responsiva”, segundo o qual a fala
do locutor deflagra, no outro, um processo de busca de sentido, processo esse que será mais intenso

CORPOS
116

ou menos intenso na medida em que a fala do locutor traga mais ou menos recursos da lingua(gem).
Para Ponzio (2010, p.32) “a palavra viva subtrai-se à relação sujeito-objeto. O outro a quem se dirige,
a quem é destinada, é o outro participante a quem a palavra pede uma compreensão respondente”,
uma tomada de posição. Assim, para este autor a palavra vive na relação de alteridade, de diferença
indiferente, A palavra é sim um evento irrepetível que, enquanto célula viva do discurso, recusa-se ao
conhecimento indiferente que caracteriza a linguística geral e compreende seu ato como único e
singular.
Nesse sentido, compreender o outro significa estabelecer sintonia com ele, ainda que sob a
forma de discordância. Quando nos fazemos compreender pelo outro estamos fazendo corresponder, às
nossas palavras, as palavras dele. Dessa forma, no processo de compreensão ativa e responsiva, a fala
do outro deflagra a inevitabilidade da busca de sentido(s), e essa busca, por sua vez, posiciona “aquele
que compreende” que passa, agora, a ser orientado para a enunciação do outro (PONZIO, 2010).
Para Bakhtin (2004), viver significa tomar parte no diálogo, perguntar, responder, etc, e esse
diálogo acontece por toda a vida; esse discurso produzido ao longo da vida é o simpósio universal. Nesse
simpósio, o fato de não ser ouvido, lembrado, reconhecido é a morte absoluta. È preciso então destacar
que a partir do trabalho clínico pode-se apreender as interações entre filhos surdos e pais ouvintes, e
que essas, muitas vezes, por não partirem de uma língua em comum, são repletas de desentendimentos,
quebras interacionais e mal entendidos, o que causa a morte/ não escuta dos enunciados.
É preciso então, segundo Ponzio (2010), repensar como as palavras são ditas e escutadas
pelos interlocutores que as recebem, já que o que importa não é o dizer, mas o dito, o significante que
se torna significativo. Dessa forma, o conceito bakhtiniano de escuta é fundamental. Ponzio (2010)
propõe uma diferenciação entre ouvir e escutar. Ouvir relaciona-se com a linguística do silêncio, do
código, da redução da enunciação a frase, da redução do signo a sinal, do monologismo, tal forma de
ouvir é comumente praticada por muitos terapeutas e familias os quais tendem a realizar um trabalho
de homogeneização do universo comunicativo, no qual o signo verbal é reduzido unicamente as
características do sinal ou do som. Já escutar é entendido como “não indiferença pela alteridade da
palavra, como acolhida, como atitude de dar tempo a esta, de se entreter com esta; em uma palavra:
como escuta” (p.49).
Essa atividade de escuta aqui proposta, parte do escutar a palavra de cada um (do surdo que
frequenta a clínica fonoaudiológica, de sua família, de seus professores), por meio de uma escuta
única, não redutível ao desejo de ouvir a língua. Escutar de maneira diferente do que em geral é
proposto nessa clínica, ou seja, a percepção de sons, palavras e frases de maneira monológica, fora
das interações verbais. Escutar como compreensão do sentido da enunciação, assim, Bakhtin (2004)
reafirma que uma coisa é a frase e seu entendimento da língua, mas outra coisa é a enunciação, o
entendimento produtor de sentido da palavra viva não reiterável. Nesse sentido, o trabalho com
surdos, comumente usado, no qual o uso de frases com células mortas da língua é enfatizado não
cabe, já que é por meio da palavra viva que a língua participa da não reiterabilidade histórica. Ponzio
(2010) segue explicando que o silenciar proposto pela linguística do silêncio permite apenas a

CORPOS
117

percepção dos sons e dos traços distintivos da língua, ou seja, o reconhecimento e a identificação à
nível fonológico, sintático e semântico. Já o calar é a condição da compreensão do sentido da
enunciação única irrepetível, da unidade concreta da palavra viva.
De acordo com esses autores, o destinatário da palavra é ativo e parte sempre de uma
posição responsiva, por meio do encontro de palavras. “Cada enunciação viva, mesma aquela de quem
começa a falar, tem um caráter de resposta ativa e cada compreensão é, por sua vez, uma resposta,
antes mesmo que o ouvinte “tome a palavra” (PONZIO, 2010, p. 54).
Diferente do silenciar, o calar é escuta e, enquanto escuta que responde, pauta-se na
enunciação. Tal escuta deixa falar e deixa escolher o que se quer dizer, manisfestar numa polifonia
constitutiva. Assim, para escutar é preciso considerar as relações sociais e culturais reconhecidas,
entre diferenças indiferentes à singularidade, relações opositivas e conflitantes. Assim, no trabalho
clínico aqui proposto deve-se levar em conta a singularidade, o calar e o escutar, e não

a imposição da palavra no espaço do silêncio, a sua separação do calar e da liberdade da escuta aberta
à polissemia, retira da palavra o seu caráter humano e a torna algo mecânico e pseudonatural, fazendo
a oscilar entre a convencionalidade do signo a naturalidade do som, a naturalidade daquilo que não tem
mais sentido (BAKHTIN apud PONZIO, 2010, p. 59).

Desse modo, ao se refletir a respeito das práticas dialógicas desenvolvidas em uma clínica
fonoaudiológica é fundamental entender que as relações estabelecidas entre surdos e seus familiares
são singulares, já que cada um possui sua história, seu espaço que não poderá ser ocupado por
nenhum outro. Ao perceber cada surdo e cada familiar como únicos em sua própria existência, cada
um desses sujeitos é “compelido a se posicionar, a responder a sua existência: não temos álibi para a
existência” (FARACO, 2009, p.21).
Assim, cabe aos terapeutas fonoaudiólogos ressignificar as relações familiares para que os
mal entendidos, a falta de resposta, o fingir compreender, a desistência dialógica, a frustração, o
silêncio, o não-falar, o não escutar tornem-se cada vez mais raros, e os dialógos sejam cada vez mais
presentes.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992/ 2011.
FARACO, C.A. Linguagem & diálogo. As idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
FREITAS, M. T. A. Bakhtin e a psicologia. In: FARACO, C.A., TEZZA, C. & CASTRO, G. (Orgs.), Diálogos com Bakhtin. (pp. 165-
187). Curitiba: UFPR, 1996.
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

CORPOS
118

SKLIAR, C.B. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de janeiro: DP&A, 2003.

CORPOS
RESUMO
119
O objetivo desse texto é analisar a tentativa de
ocultação do corpo homossexual nas relações

MYSTERIEUX52 – “SOU escolares e avaliar as consequências desse ato na


vida dos educandos. Através de uma narrativa
densa onde minhas memórias de infância se cruzam

GAY, SOU DRAG, SOU


com minha experiência como professor, travo um
intenso diálogo com Mysterieux, um antigo aluno
que após a experiência com o casamento e com a
paternidade percebe-se homossexual e drag queen.

BONITA, BEBÊ!”: a tentativa de Nesse diálogo questões ligadas diretamente ao


ordenamento político-ideológico de nossas
instituições são questionadas na busca por uma
ocultação do corpo homossexual nas escola que respeite a diversidade e participe do
debate contra o preconceito e a violência de forma

relações escolares responsiva e responsável. O conceito de dialogismo


em Bakhtin dá a sustentação teórica necessária à
compreensão do confronto entre ordem e
desordem contido no corpo grotesco homossexual
tomado aqui, juntamente com a palavra, como arena
de lutas.

LEME, Marcos Donizetti Forner53


Palavras-Chave: Corpo Grotesco. Relações
Escolares. Instituições Políticas e Sociais.
Dialogismo. Arena de Lutas.

INTRODUÇÃO

Aqui tudo parece


Que era ainda construção
E já é ruína
Tudo é menino, menina (…)
Alguma coisa esta fora da ordem,
Fora da nova ordem mundial.
(Caetano Veloso)

O
Brasil passa, hoje, por uma séria crise política e institucional. Após o golpe que depôs, de forma
comprovadamente inconstitucional, um governo legitimamente eleito, um cenário propício ao
conservadorismo escancarou-se. Antigos ideais de “trabalho, família e propriedade” voltaram a
fazer parte da cena politico-ideológica de nossas instituições governamentais. Um discurso moralista,
avassalador dos direitos sociais e individuais, tomou conta das tribunas dos nossos poderes
democraticamente instituídos. Vivemos tempos de instabilidade política, social e econômica.
As conquistas sociais que experimentamos nos últimos tempos, anteriores ao golpe, estão
ameaçadas. Esses avanços que nos permitiram pensar em uma sociedade mais igualitária e menos
exclusiva levaram a público temas nunca antes apreciados de forma tão notória. Debates em torno de

52
Mysterieux é o pseudônimo adotado pelo personagem central da narrativa que sustenta esse trabalho, após assumir-se homossexual; do
francês, misterioso.
53
Mestre em Educação pela FE-UNICAMP; Supervisor Educacional da Secretaria Municipal de Educação de Campinas.

CORPOS
120

questões como as de gênero e sexualidade passaram a fazer parte do cotidiano das nossas
instituições, dos meios de comunicação, das nossas casas e ruas. O machismo e a violência contra as
mulheres, a homofobia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção e a
maternidade/paternidade vividas por casais homoafetivos, dentre outros temas, passaram a ser
debatidos publicamente. Nessa toada, o Brasil parecia caminhar rumo a um futuro mais livre de
violências.
Porém, na mesma proporção em que liberdades individuais e direitos sociais eram
conquistados, a intolerância e o conservadorismo ganhavam forças. Em nome de “Deus” e abençoados
pelo capital, “homens de bem”, conservadores da “moral” e dos “bons costumes” também passaram a
se opor publicamente, de forma veemente, a qualquer direito que colocasse em cheque suas
convicções e suas doutrinas, ditadas como regras únicas a serem observadas por todos. É bom
lembrar que, na perspectiva das relações díspares, preconiza-se a detenção das regras como forma
de detenção do poder.
O atual cenário de instabilidade política que vivemos propicia esse enfrentamento e a emersão
de antigos conceitos e preconceitos. Como diz o poeta Chico Buarque, “atordoado eu permaneço
atento, na arquibancada, para a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa”. Um “monstro”
que, apesar de um tanto adormecido, nunca esteve vencido.
A escola, enquanto arena de debates, por onde devem circular as mais variadas formas de
compreensão da vida, passou a ser alvo desse conservadorismo ascendente. Na contramão da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação que defende o pluralismo de ideias como um dos alicerces da
Educação brasileira esse movimento retrógrado esforça-se em coibir o dialogo em torno das
questões de gênero e sexualidade taxando-as de imorais e ideológicas. No Plano Nacional de Educação
e na Base Nacional Comum Curricular, termos como “identidade de gênero” e “orientação sexual”
foram suprimidos. No Poder Legislativo das esferas nacional, estaduais e municipais circulam projetos
de lei que visam cercear professores e alunos do direito ao amplo debate de ideias, classificando
qualquer manifestação de opiniões de “doutrinação ideológica”.
Essas questões me afetam diretamente; sou homossexual, pai de um filho adotado por mim e
meu companheiro, e professor. Graças aos avanços conquistados com muita luta e muita dor, hoje
tenho uma família organizada e legítima e sentindo-me livre para debater com meus alunos gênero e
sexualidade; temo em perder esses direitos; temo por meu filho e por meus alunos...
Esse texto, alicerçado na narrativa de minhas memórias em relação direta com uma
experiência por mim vivida com um aluno entre os anos 2000 e 2017, tem por objetivo analisar a
necessidade da manutenção e ampliação do debate em torno das questões de gênero e sexualidade
nas escolas como forma de coibir a violência, manter e ampliar direitos e projetar um futuro livre de
discriminações e preconceitos.
No interior da escola uma diversidade enorme de corpos transita; alguns, por não se
adequarem às normas binárias de construção do gênero e da sexualidade são ocultados na esfera do
oficial. Apesar disso, são corpos que falam, enunciam-se.

CORPOS
121

A concepção de dialogismo em Bakhtin (2004) orientará minhas perspectivas de análise e me


servira de aporte na busca pela compreensão da palavra e do corpo enquanto signos ideológicos e
arena de lutas onde valores contraditórios se digladiam produzindo sentidos múltiplos para um
mesmo objeto.

1. ENCONTROS E DESENCONTROS COM O MENINO DE OLHOS AZUIS: memória e narrativa

O sujeito que narra toma conhecimento do vivido, de maneira singular, posicionando-se ética e
esteticamente. No entanto existe um compromisso alteritário com o outro, que me completa-incompleta
e nesse processo o pesquisador não está só e tampouco e onisciente. Ao narrar o sujeito coloca-se em
movimento de interpenetração no mundo teórico e no mundo da vida, ampliando, dessa forma, sua visão
(PREZOTTO e outros, 2015, p.13).

De repente, eu o vejo pelas redes sociais vestido de menina, afirmando sua homossexualidade
e gritando para quem quisesse ouvir: “Sou gay, sou drag, sou bonita, bebê!” Mas, espera aí, ele não
havia casado há pouco tempo? Tão jovem, pensei, quando vi suas fotos pelo facebook; ela, também,
que cara de menina... Tempos depois, uma filha.
Eu o conheci ainda garoto. Aqueles olhos azuis eram tão grandes e reluzentes que era
impossível passarem despercebidos. Pequenino, tinha cabelos ondulados e furinhos na bochecha
rosada que davam-lhe ares angelicais.
Parecia-me feliz. Sempre com um sorriso nos lábios, cativava a gente sem muito esforço. Era
inteligente, perspicaz, comunicativo e, por vezes, zangado e rabugento. Eloquente, destacava-se nas
aulas pelos seus comentários e elucubrações e na escola pelas novidades que sempre trazia consigo.
Um dia apareceu com um violino, exibindo-se pomposo entre um acorde desafinado e outro. A voz era
aguda feito a minha, quando criança. A proximidade mais com as meninas do que com os meninos
também era uma característica sua que o assemelhava muito a mim, na infância.
Nas festas da escola, era sempre destaque. Gostava de fazer teatro, de cantar... Não parecia
muito fã de futebol e outras brincadeiras de meninos. Cultivava pela inspetora de alunos da escola um
amor quase filial.
Destacando-se em relação aos demais adolescentes, às vezes eu o percebia discriminado por
não ser igual à maioria. Essa diferença, porém, me cativava.
Eu também fui um menino diferente. Assim como ele, eu me destacava muito mais nas artes
que nos esportes, muito mais na referência com o feminino do que com o masculino. Mas,ao contrário
dele, eu era calado e solitário.
Por vezes, paro para pensar o quanto eu sofria por ser diferente. Minha voz aguda parecia
incomodar, meus trejeitos delicados eram motivos de chacota, minha inabilidade com os esportes me
isolava - o professor de Educação Física ignorava meu isolamento, fazendo de conta que não me via.

CORPOS
122

Eu, pelo contrário, via aquele menino; o admirava, me encantava por suas peripécias, pela sua
vivacidade, pela sua graça...
Porém, quando olhei suas fotos de casamento circulando pelas redes sociais percebi que algo
me havia escapado. Porque um rapaz tão jovem e tão cheio de energia resolvera casar-se tão cedo?
Apesar da convicção e da felicidade que demonstrava em seus posts, algo parecia estar fora de
contexto. Dei-lhe as felicitações e, à distância, pela internet, passei a “segui-lo”.
Descobri que gostava de cozinhar, que sentia um carinho enorme pela filha, que trabalhava
numa empresa de telefonia celular, que gostava de pentear e maquiar suas amigas, que era
apaixonado pela jovem esposa, que frequentava a igreja e que vivia uma vida comum, quase adaptado
às normas e padrões socialmente aceitáveis (quase, não fosse o gosto pelas maquiagens e cabelos).
Tudo isso, no entanto, soava-me como uma brincadeira de casinha, como um conto de fadas.
Aí, de repente, o vejo travestido de Mysterieux, uma belíssima drag queen, que exibia-se pela
internet, sem o menor pudor. Que transformações haviam acontecido na vida daquele garoto que o
levaram de um extremo a outro em tão pouco tempo? Indaguei...
Apesar de minha curiosidade, por conta da distância que nos separava, achei um tanto
invasivo questioná-lo diretamente. Lembrei-me, então, da inspetora de alunos por quem ele era
apaixonado na escola e procurei por ela.
A história que segue nada tem a ver com um conto de fadas ou com uma brincadeira de
crianças; são fatos da vida real. Cansado de ser agredido e violentado em suas reais perspectivas de
vida aquele sorridente rapaz havia sucumbido às expectativas da família e da igreja, casando-se para
provar a todos que era “homem”. Por um tempo foi “feliz”, vivendo seu conto de fadas como um
príncipe que, ao encontrar sua princesa, cavalgava em direção a um final feliz. Mas o sonho, que mais
era dos outros do que dele durou pouco; a carruagem virou abóbora, o príncipe virou princesa e,
apropriando-se da sua história real o garoto que um dia conheci cheio de vida, reencontrou-se
consigo mesmo.
Um encontro nada pacífico, convenhamos. Numa de suas primeiras publicações na internet,
após ter assumido sua homossexualidade, ele fala do quanto sua convivência com alguns colegas e
professores, na escola, foi difícil. O quanto foi agredido por ser diferente. O quanto teve sua
sexualidade questionada e como isso o obrigou a assumir determinadas posições de defesa. Será que
toda aquela vivacidade e todo aquele seu jeito extrovertido não passavam de mecanismos de defesa?
Será que ele era mesmo feliz? Ou, na perspectiva de Certeau (1994)54, será que isso tudo eram táticas
de reelaboração do que estava posto como estratégias do poder? Confesso que eu não enxergava ou,
talvez, não quisesse enxergar esse jogo.
Quando criança, meu mecanismo de defesa, contra os ataques constantes que eu sofria, era
provar para todo mundo que eu era um garoto inteligente e capaz. Adotando um ar sisudo, quase sem

54Certeau em “A invenção do cotidiano: artes do fazer” nos orienta a compreender de que forma os sujeitos ordinários, utilizam-se de práticas
cotidianas como falar, ler, circular, etc. enquanto táticas de reelaboração da ordem a seu favor, em contraposição às estratégias de
manutenção do poder organizadas na forma da lei, da ciência, da política, da moral etc.

CORPOS
123

sorrir, eu lutava para convencer a todos da minha seriedade e dedicação. O que a escola não percebia
era o medo que habitava dentro de mim.
Eu também não percebia o medo que habitava aquele garoto de olhos azuis...
A família, segundo suas postagens, também foi e continua sendo um obstáculo nessa sua
trajetória de busca por si mesmo. Apesar de perceber na mãe certo aporte, ainda luta para convencer
seus familiares de que é possível ser feliz, sendo aquele a quem deseja ser.
O texto que segue, copiado de sua página no facebook, revela um pouco desse ser. Vejamos:

“Eu era um pequeno menino, com um coração de princesa . Com duas meninas irmâs, ou melhor, três
irmãs, a terceira era eu, claro . Brincávamos de boneca, eu fazia roupas para as bonequinhas delas,
😊

arrumava cabelo e etc... Ah, eu também queria ser uma boneca; aqui está uma em transformação. Numa
viagem para outro país onde fui com minha tia e minha mãe, entramos numa loja, eu ainda pequeno.
Para minha mãe e tia um paraíso porque haviam carros de brinquedo e bonecos de heróis pra todos os
lados, mas o meu paraíso estava no setor de meninas, um pouco delicado, rosa com coisas brilhando e
etc... Encanei que queria uma máquina de lavar porém de bonecas, rosa... Mamãe e titia fizeram de tudo
pra que os carros e coisas de menino me chamassem a atenção, mais o meu escândalo por querer
coisas de meninas as convenceram do que eu queria e não o que elas queriam... Te pergunto: uma gay se
torna gay ou nasce gay?”

Possíveis respostas para esse e outros tantos questionamentos poderiam ser debatidas pela
escola; porque não? Afinal, no seu interior, ainda, não deve circular o tão exaltado pluralismo de ideias
defendido pela LDB?
Do meu tempo de menino, para os dias atuais, muita coisa mudou. Apesar de eu ter me
resolvido bem com minha sexualidade, a escola pouco contribuiu nesse processo; a não ser por suas
próprias contradições. A negação e a ocultação da palavra e do corpo também são construtivas de
sentidos. Daí os questionamentos que trago para esse debate.
Depois de tantos avanços em relação à conquista de direitos civis e individuais por pessoas
LGBTs, a escola não deveria trazer esse debate para dentro de seus muros? Depois de revelados e
trazidos à tona todo o sofrimento e toda a violência que sofremos no universo de uma sociedade
machista, não seria papel da escola proteger seus alunos? Porque a escola ainda insiste em ocultar
no seu discurso e no seu cotidiano, o corpo e a estética homossexual?

2. O CORPO AMBIVALENTE: uma estética a ser ocultada

A vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. (BAKHTIN, 1993, p. 23). O
cânon grotesco deve ser julgado dentro de seu próprio sistema. (Idem, p. 26)

O corpo homossexual é ambivalente porque carrega em si traços do feminino que se fundem e


se confundem com o masculino. Nos jeitos e trejeitos, na fala, nos trajes, ou seja, no movimento do

CORPOS
124

corpo, todo sujeito homossexual, revela essa ambiguidade em maior ou menor escala, pública ou
veladamente. No corpo da “drag queen” essa ambivalência é pra lá de explicita. Roupas femininas,
maquiagens, assessórios, tudo muito exagerado, são marcas da performance que as caracterizam;
enunciando-se no feminino - “sou bonita, bebe!” - elas aproximam-se do espetacular, do cômico, do
risível. Vestem-se para a festa, não para ser mulher.
Se a ambivalência do corpo homossexual incomoda a escola, o da drag queen a coloca em
cheque. Não há lugar para esses corpos grotescos no currículo escolar.
Analisando a cultura na Idade Média e no renascimento a partir das obras de Rabelais, Bakhtin
chama nossa atenção para as imagens do grotesco, como imagens “ambivalentes e contraditórias que
parecem disformes, monstruosas e horrendas, se consideradas do ponto de vista da estética
“clássica”, isto e, da estética da vida cotidiana preestabelecida e completa” (BAKHTIN, 1993, p.22).
Na cultura ocidental moderna, gênero e sexualidade são tratados numa perspectiva binária;
homens e mulheres, apesar de avanços experimentados nos últimos tempos, ainda mantêm papeis e
comportamentos bem definidos – um bom exemplo disso, no Brasil, é o cumprimento entre pessoas do
mesmo sexo: enquanto as mulheres trocam beijos na face, os homens cumprimentam-se com um
aperto de mãos; dois homens beijando-se, mesmo que de maneira formal, não é uma atitude muito
aceitável, culturalmente.
“Bicha”, “boiola”, “viado”, “sapatão”, “caminhoneira”, ”franchona” são alguns dos adjetivos
criados histórica e culturalmente para denominar de forma pejorativa, homens e mulheres que se
atrevem a questionar com suas atitudes e seus corpos esse padrão.
Esses corpos grotescos, desviantes, rebeldes, questionadores da ordem binária, quando não
evadidos, circulam pela escola e com ela estabelecem um intenso diálogo. A ambivalência que
carregam rompe com ordem “normal” das coisas, criam afetos e desafetos, promovem o debate.
A escola, porem, oculta esses corpos de seus currículos. Essa ocultação tem uma função
disciplinadora. “A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica especifica de um poder que toma os
indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 1987, p.
143), ou seja, indivíduos que ao serem controlados pela ordem, passam a exigir a perpetuação dessa
mesma ordem.

3. A PALAVRA E O CORPO COMO ARENA DE LUTAS

O ser refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina essa
refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma
comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes. (BAKHTIN, 2004, p. 46)

Esse enfrentamento entre o estabelecido e reelaboração do estabelecido faz do corpo uma


arena de lutas onde valores contraditórios se digladiam.

CORPOS
125

“Diálogo e corpo estão conectados e a imagem que Bakhtin utiliza para essa conexão é o
corpo grotesco” (SILVESTRI, 2014). Nesse corpo falam a ordem e a desordem, o controle e a
desobediência, a disciplina e a indisciplina; nesse corpo enfrentam-se poder e resistência.
Ocultar esses corpos no cotidiano (como fazia meu professor de Educação Física) negar sua
existência, isolá-los, são estratégias do poder na tentativa de monologizar o discurso, como forma de
atribuir à vida sentidos estáticos e imutáveis.
O menino de olhos azuis dialogava com a escola. Indiciado nos seus gestos, no seu corpo, o
desejo em ser uma princesa que desde muito cedo o perseguia, estava lá, implícito no dialogo. A
escola, porém não o escutava; eu não o escutava.
Talvez, faltasse-nos tempo e espaço. Falar de sexualidade e gênero na escola, assim em como
nas demais instituições sociais que estruturam a organização de nossa sociedade, ainda é um tabu.
Apesar de fazer parte do currículo oficial da escola, esse tema sempre foi marginal. Limitando-se as
perspectivas do biológico, sexo e gênero, na maioria das vezes, são tratados no universo de um
cientificismo racionalista e formal que pautado em generalizações, ocultam o dialógico.
Como já observado, corpo e palavra estão conectados. Se no corpo enunciam-se marcas do
confronto entre poder e resistência, na palavra, enquanto “fenômeno ideológico por excelência”
(BAKHTIN, 2004, p. 36), esse confronto se evidencia.

A palavra acompanha e comenta todo signo ideológico. Os processos de compreensão de todos os


fenômenos ideológicos (um quadro, uma peça musical, um ritual ou um comportamento humano - grifo
meu) não podem operar sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação
ideológica - todos os signos não verbais - banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente
isoladas e nem totalmente separadas dele. (Idem, p. 37 e 38)

Enquanto signo ideológico a palavra torna-se, então, o centro das disputas, arena de lutas.
Gênero, sexualidade e ideologia, adquirem sentidos múltiplos que evidenciam tais disputas. Não é a toa
que as forças conservadoras lutam para retirar do currículo essas palavras num esforço em conter a
circulação de sentidos no seu interior.
Refletindo e refratando tais sentidos a palavra cumpre o seu papel de “signo ideológico (…)
[que tem], como Jano, duas faces [onde] toda critica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva
pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Essa dialética interna do signo não se
revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária” (Ibidem, p.47).
Vivemos essa crise…

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que aconteceu no ínterim entre o casamento e a ascensão de Mysterieux eu não sei; meu
jovem aluno nada disse a esse respeito em suas postagens pela internet. O que eu sei é do drama que
esse rapaz viveu; o que eu sei e do drama que eu também vivi; um drama mais comum do que

CORPOS
126

imaginamos. Diferente desse caso onde o protagonista da história se expos publicamente, na maioria
das vezes, os personagens da trama permanecem no anonimato; muitas das vezes suicidam-se ou
envolvem-se em situações de extrema violência. Mesmo os que se expõem, sofrem.
Nossas instituições sociais não podem continuar se omitindo diante de tanto sofrimento.
Precisamos debater o movimento da vida, expandir o diálogo, abrir espaços para que os sujeitos
possam se posicionar, possam dizer de si com franqueza e possam ser ouvidos com a mesma
franqueza. Precisamos garantir a circulação dos corpos e das palavras com todas as contradições
que os constituem. Precisamos transformar a escola em um espaço de possibilidades.
O drama vivido por aquele menino de olhos azuis poderia ter sido menos amargo se a escola o
tivesse enxergado; se nela houvesse espaços e tempos para que ele pudesse se expor com maior
clareza, para que seu corpo pudesse circular mais livremente.
Vivemos tempos difíceis. A luta em torno da palavra acirrou-se; as forças conservadoras e
monolizadoras do discurso emergiram com muita força. A disputa está posta, como nunca.
A escola não é uma instituição autônoma, nem política e nem socialmente; nela circulam as
mais variadas verdades; múltiplas variantes do conceito de ética e moral digladiam-se no seu interior.
Sujeitos de diversas composições sociais e econômicas circulam por seus edifícios; nela o dialogismo
é intenso…
Nesse enredo, Bakhtin nos convoca a participar do diálogo de forma responsável e responsiva.
A buscar pela subjetividade do outro enquanto evento único e irreprodutível. A assumir um
compromisso ético e estético com a alteridade repudiando qualquer forma de generalização do outro,
sem álibi, sem exceção (BAKHTIN, 2010). .

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 2 ed. São
Paulo, SP - Brasília, DF: Hucitec, 1993.
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. 11 ed. São Paulo, SP: Hucitec, 2004.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato. 2 ed. São Carlos, SP: Pedro & João, 2012.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Nova edição, estabelecida e apresentada por Luce Giard.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: histórias da violência nas prisões. 25ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.
PREZOTTO M.; CHAUTZ G. C. C. B.; SERODIO L. A. Prefácio in Metodologia narrativa de pesquisa em Educação: uma
perspectiva bakhtiniana. Org. PRADO G. do V. T.; SERODIO L. A.; PROENÇA H. H. D. M.; RODRIGUES N. C. 1 ed. São Carlos,
SP: Pedro & João, 2015.
SILVESTRI K. V. T. Carnavalização como transgrediencia da multidão. Tese (doutorado) Universidade federal de São
Carlos: 2014. Em https://repositorio.usfscar.br/bitstream/handle/ufscar/5638/6108.pdf?sequence=1 Acesso em
29/09/2017.

CORPOS
RESUMO
127
Resistir no corpo. Para Bakhtin, o elogio a
Dostoiévski vem da competência criadora desse em
criar dominantes artísticos da posição do autor, da

A POBREZA EM personagem e da ideia em que esses dois últimos


lutam, no cronotopo artístico, contra as muitas
formas de acabamento e mortificação que a palavra

CRONOTOPO
em ausência pretende, no autor monológico. Em
minha lida com a leitura, compreensão e pesquisa
em Bakhtin, no Grupo Atos UFF, vimos buscando a
construção de planos discursivos em ciências
humanas, no campo da Educação, em que as
mulheres, homens e crianças com quem
encontramos, na vida, na arte e na ciência,
mantenham suas vozes vivas e perturbando nossos
MELLO, Marisol Barenco de 55 acentos monológicos. Este presente texto é uma
tentativa de compreender como Dostoiévski
construiu esse dominante artístico, lendo
cronotopicamente uma passagem ressaltada por
Bakhtin, em que essa construção é vivamente
compreensível. Trata-se do diálogo da personagem
Diévuchkin, de Gente Pobre, em seu ativo processo
1. PERCEBER-SE POBRE de tomada de consciência sobre ser pobre,
recusando ao mesmo tempo, os acabamentos de
pobreza aos homens destinados, do exterior,

N
portanto em ausência de quem se fala. A
ão sei se porque comecei a procurar as imagens de São personagem volta o rosto aos discursos
monológicos e diz-se, na sua autoconsciência
Petersburgo do século XIX para pensar o contexto de O Capote, formando-se, no diálogo tenso com os seus outros
de Gogol, e Gente Pobre, de Dostoiévski, mas a temperatura e, nesse processo, é toda a Rússia que embate-se,
ideologicamente. Aprender essa beleza nos ensina
aqui começou a baixar e dos 18° já chegou aos 10°, bem baixa para resistências e re-existências diante de nossas
final de setembro, início da primavera no Brasil amanhã. Ou esfriou, próprias vidas.
ou eu sinto no corpo o frio de que falo no texto. Procurei algo para Palavras-Chave: Cronotopo. Pobreza. Dostoiévski.
me aquecer, e volto a escrever. Este texto não é sobre o frio, mas da Dialogismo. Arena de Lutas.

pobreza vivida no frio, no caso em São Petersburgo, por Makar


Diévuchkin e Akaki Akakiévitch, heróis de Dostoiévski e Gogol, em
diálogo. Seu tema, o capote, ou a falta dele no frio, ou a imagem da pobreza no cronotopo do capote,
ou o cronotopo do botão.
Para Bakhtin o homem revela-se pelo próprio homem, revela-se em primeira pessoa. Tendo
Dostoiévski como referência, Bakhtin afirma que o homem – como todas as personagens de
Dostoiévski – é um ideólogo. A pobreza não existe como algo em universal: ser pobre pode ser
descrito pelo homem pobre, como valor.
Claro que a pobreza existe como realidade social. Em uma sociedade capitalista, onde para
sobreviver é preciso ter – ou ser – objetos de valor para troca que são acumulados por alguns,
muitas pessoas não conseguem sequer o necessário para sobreviver. Claro que o fenômeno social da
pobreza como contraparte ativa da acumulação de capital por alguns grupos e seres humanos é real.
Sociologicamente ela assim pode ser percebida, descrita, vista como coisa. Mas ser pobre é
experiência vivida na relação dos homens no mundo, e não cabe nas descrições e análises que se
pretendem gerais. É sobre o perceber-se pobre que trata este texto, pela via das imagens literárias.

55
Professora da Faculdade de Educação da UFF. E-mail: sol.barenco@gmail.com

CORPOS
128

Gogol escreve e publica, entre 1840 e 1843, O Capote. Dostoiévski vai dizer mais tarde “todos
nós descendemos de O Capote de Gogol", e insere, ele mesmo, quando da escrita de Gente Pobre, a
obra na obra. O que diz O Capote de tão pungente à alma russa? Bakhtin toma em consideração essa
relação no segundo capítulo de sua tese Problemas da Poética de Dostoiévski, intitulado A personagem
e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski. Bakhtin está nesse capítulo afirmando o caráter
único da obra de Dostoiévski no que diz respeito à personagem, que não é objeto ou fenômeno da
realidade, mas sim um “ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma, como posição
racional e valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante” (Bakhtin, 2013, p.
52). Essa posição, esse ponto de vista que é a personagem é autoconsciente e, principalmente,
inacabada, aberta nessa construção na relação com o mundo da sua vida. Nesse mesmo capítulo,
Bakhtin nos diz que Dostoiévski nunca representou o funcionário pobre, mas fez falar de sua
autoconsciência um funcionário pobre – Diévuchkin e outros. Sobre a diferença entre Gogol e
Dostoiévski, Bakhtin diz:

Aquilo que se apresenta no campo de visão de Gogol como conjunto de traços objetivos que se
constituem no sólido perfil sociocaracterológico da personagem é introduzido por Dostoiévski no campo
de visão da própria personagem, tornando-se aqui, objeto de sua angustiante autoconsciência;
Dostoiévski obriga a própria personagem a contemplar no espelho até a figura do “funcionário pobre”
que Gogol retratava”. (Bakhtin, 2013, p. 53-54)

Mas o que em Gogol faz Dostoiévski vibrar, aos 23 anos de idade, e escrever (1844-1845)
Gente Pobre, obra epistolar que foi imediatamente considerada uma obra prima? "Um novo Gogol
apareceu!", disse Nekrassov. O Capote e Gente Pobre são obras sobre perceber-se pobre de um ponto
de vista amplamente reconhecido, compreendido, por seus leitores, até os tempos atuais: a pobreza
concretizada nas vestes esfarrapadas e a vergonha de portar-se essa pobreza diante do outro. A
pobreza que sou em meu fato.
Gogol escreve a história de um funcionário pobre, Akaki Akakiévitch, cujo capote esfarrapado
era fonte de zombaria de seus colegas. Após economizar ao longo de muitos anos ele pôde finalmente
pagar o alfaiate para fazer outro, o que lhe recobra a dignidade por pouquíssimo tempo, já que o
capote é roubado. Morre logo após, e seu fantasma passa a assombrar S. Petersburgo, na busca pelo
seu capote. Uma narrativa incrível de Gogol (2008) nos traça o frio e a dor de Akaki Akakiévitch em
seu esfarrapado capote:

Um poderoso inimigo espreita em Petersburgo as pessoas que gozam de vencimentos de


aproximadamente quatrocentos rublos. Este inimigo é nosso clima setentrional, que no entanto tem a
fama de ser muito saudável. Pela manhã, entre oito e nove, naquela hora em que os funcionários se
dirigem a seus ministérios, o frio é justamente tão penetrante e ataca com uma tal violência a todos os
narizes, sem distinção, que seus infelizes proprietários não sabem onde se abrigar [...]
Desde algum tempo, Akaki Akakiévitch percorria correndo esta distância fatal, sentindo-se inteiramente
enregelado, especialmente nas costas e nos ombros. Ele veio a se perguntar se não era culpa de seu
capote. Examinou-o quando chegou em casa e descobriu que em dois ou três lugares, precisamente nas

CORPOS
129

costas e nos ombros, o pano havia assumido a transparência de uma gaze e o forro havia praticamente
desaparecido. (p. 16-17)

Não sei se um leitor de Gogol pode penetrar profundamente no sentido dessas palavras se
nunca sentiu frio. O frio que permanece por uma temporada de meses do ano, e com o qual não nos
acostumamos nunca. O frio que penetra nas habitações mal vedadas, que congela os corpos pela
manhã ao sair de casa, que não deixa dormir à noite e, principalmente, que denuncia a falta de
recursos no vestuário para proteger o corpo deste “inimigo” poderoso. Em São Petersburgo, as
temperaturas caem até a -8° entre novembro e março. O casaco roto é, além disso, signo da pobreza
no corpo. Gogol escreve:
É preciso observar que o capote de Akaki Akakiévitch alimentava também os sarcasmos de
sua repartição. Haviam mesmo retirado a nobre denominação de casaco para tratá-lo
desdenhosamente por “capote”. De fato, a vestimenta tinha um aspecto muito estranho. Sua gola
diminuía ano após ano, pois ela servia para remendar outros lugares. Os remendos não colocavam em
destaque o valor do alfaiate; o conjunto era pesado e bastante feio.
Gogol desenha o quadro familiar com que muitos de nós nos lembramos dos anos mais difíceis
de nossas vidas. Akaki Akakiévitch corre entre sua casa e o vestíbulo do ministério, cinco ou seis ruas,
mundo enregelado e hostil, inimigo, mortal. Encurta com a corrida a “distância fatal” para doer menos
o que, quem já sentiu frio, sabe a intensidade. O capote feio é ao mesmo tempo o objeto mais precioso
e o mais abjeto. Na repartição, signo de sua condição inferior.
Mas em toda essa dor, ela é a dor de um terceiro que não sou eu, embora possa com ele me
solidarizar. Esse homem é objeto de nossa contemplação, ainda que emocionada. Não me dirijo a ele,
nem tampouco ele se dirige a mim, como um tu. A voz última é a do narrador, Gogol.
Imagino que Dostoiévski, como um homem russo do século XIX também se solidariza com
Akaki Akakiévitch, mas vai além disso. Ao escrever Gente Pobre produz um diálogo que vai além do
sentido das poucas palavras de Gogol a esse estar entre as pessoas, trajado como um homem pobre.
A força da imagem de Akaki correndo em Petersburgo e sendo alvo da zombaria dos funcionários é
alargada por Dostoiévski através da posição autoconsciente de Makar Diévuchkin, que fala na carta à
sua amada Várienhka. Ouvimos na leitura dessa carta sua voz, sua revolta, sua vergonha;
praticamente nesse momento estamos na sala com ele, de frente para ele, com ele nos
envergonhamos.
A construção de Dostoiévski é a seguinte: primeiro, em uma carta sobre livros que trocam,
Várienhka empresta a Makar O Capote, e este se indigna com a leitura, reconhecendo-se a tal ponto na
personagem e sentindo-se exposto, a isso reage. Primeiro declama um histórico de bom funcionário,
para após isso dizer: “pois dar-se-á o caso de que me não possam deixar viver em paz no meu
canto?” (p. 224). Não se sabe mais se fala de Akaki ou de si: “que tem de particular, minha filha,
quando o piso da rua é mau, caminhar nas pontas dos pés para não estragar as botas? Para que hão
de encher-se páginas e páginas a custa do próximo, para dizer que às vezes tem as suas dificuldades

CORPOS
130

de dinheiro e que nem sequer prova chá?” (p. 224). Sua irritação é com a exposição dessa condição,
por Gogol, da vida de Akaki Akakiévitch, nos anos em que economizou para comprar o novo capote.
Mas a descrição que está exposta é a sua própria: “Como se toda gente, sem exceção, fosse obrigada
a tomar chá! Por acaso olho eu para a boca dos outros, para saber o que comem? Fiz eu algum dia
semelhante ofensa a uma pessoa? Não, minha filha. Então por que fazer mal a quem mal não faz?”
(idem).
Sua certeza de ter sido exposto segue-se na revolta:

Uma pessoa esconde-se, oculta-se, acobarda-se, e até chega a acanhar-se de mostrar a ponta do nariz
por temor das troças, pois já se sabe que tudo neste mundo pode prestar-se para zombarias. “Vamos,
põe a tua vida toda a reluzir em letra de forma, tanto a pública como a privada, que tudo se publique e se
leia e provoque motejos e risadas!” Já uma pessoa não pode sair à rua. Aqui está tudo escrito, tudo...
que até pela maneira de andar podem conhecer uma pessoa! (idem, p. 225)

Em outra carta Makar Diévuchkin diz a Várienhka que as “dívidas e o péssimo estado da minha
roupa me aborrecem enormemente”. Tentando pensar como conseguir emprestados 40 rublos, ele diz
a ela seus planos para melhorar o vestuário:

Com cinco rublos compro um par de botas. Pois digo-lhe a verdade, não sei se amanhã terei coragem
para apresentar-me na repartição com estas que possuo. Também não deixava de vir a tempo uma
gravata, pois esta que agora uso já tem quase um ano; mas como me deu um avental velho, não só fiz
um peitilho como também uma gravata, e portanto, por agora, não se pensa mais em comprar uma nova.
De maneira que botas e gravata já eu tenho. O que me falta ainda são os botões. Com certeza que há de
estar de acordo comigo a respeito dos botões: não se pode passar sem eles e a casaca do meu
uniforme não tem mais nem metade dos que tinha. Até tremo quando penso que Sua Excelência poderia
reparar em semelhante prova de desleixo e dizer-me qualquer coisa... e com toda razão [...] Só de
pensá-lo sinto uma tal vergonha que até me parece que desfaleço... Sim, minha filha, não poderia
sobreviver a essa vergonha...

Aqui os botões aparecem pela primeira vez, prenunciando o contexto de valor de Makar
Diévuchkin como o homem que se envergonha da ausência destes em sua casaca, o valor dessa
condição frente ao ministro aqui antecipadamente se revela. O valor. É justamente frente à Sua
Excelência que a condição suportada se tornará insuportável. Makar não conseguirá o empréstimo e
seu pesadelo se tornará realidade. É a cena mais forte do romance, pelo tom emotivo da personagem
e de sua dor.
Assim como Gary Morson (2015) disse que Dostoiévski só pôde escrever a passagem da
guilhotina de O Idiota por ter ele mesmo passado pela situação da condenação e comutação da pena
no último minuto, a cena de Diévuchkin diante do ministro expressa o tom emocional que me arrisco
dizer que a maioria de nós já viveu de alguma forma. Estar diante do outro, de um outro a quem
gostaríamos que nos considerasse especialmente honrados, expondo o signo da miséria é o vexame
maior, a dor presente todo o tempo que culmina na avaliação pública e no julgamento que confere o

CORPOS
131

fim do humano em nós. Dessa forma, a cena escrita por Dostoiévski é uma das mais comoventes de
sua vida de escritor, e a vamos ler a partir dos valores cronotópicos da cena.

Makar Alieksiéievitch, Sua Excelência chama-o imediatamente. Causou-nos um transtorno terrível com a
sua cópia!” Foi isto apenas o que ele me disse, mas foi o bastante. Não é verdade, minha filha, que era
suficiente? Fiquei rígido, como morto; já não sentia e fui até ao gabinete do ministro... Quero dizer, os
meus pés é que me levavam porque eu, propriamente, estava mais morto do que vivo! Conduziram-me
através de uma sala, depois doutra e doutra... até o gabinete de Sua Excelência... Foi então que percebi
onde estava. Não posso dizer-lhe ao certo nada do que pensei naquele momento. Via apenas que Sua
Excelência estava ali, de pé, e à volta todos os outros. Creio que nem sequer fiz uma reverência;
esqueci-me de fazê-la. Estava tão emocionado que me tremiam os lábios e as pernas. E não me faltava
razão para isso, minha filha! Em primeiro lugar porque sentia uma imensa vergonha, e depois porque ao
voltar casualmente a vista, à direita, e ao ver-me num espelho, tive motivo mais do que suficiente para
me deixar cair no chão. Acrescente-se a tudo isto que eu sempre tenho procurado conduzir-me de
maneira como se não existisse, pelo que nem de longe poderia supor que Sua Excelência tivesse
qualquer notícia acerca da minha pessoa. [...]
Pois Sua Excelência, muito aborrecido, exclamou imediatamente:
- Mas que disparate vem a ser este que pôs aqui, criatura? Onde é que tinha os olhos? Um documento
desta importância, que é preciso enviar imediatamente! Em que estava pensando, homem?
E ao mesmo tempo Sua Excelência voltava para Ievstafi Ivânovitch. Eu ouvia apenas palavras soltas que
me pareciam vir de muito longe: “Descuido! Negligência! Só serve para provocar contratempos!...”
Abri a boca, mas não disse nada. Queria desculpar-me, pedir perdão, mas não podia. Sair a correr... Mas
nisso nem era possível pensar. De repente aconteceu alguma coisa... alguma coisa, minha filha, que
ainda agora mesmo me envergonho de contar... o meu botão... o diabo o leve... o meu botão, que estava
apenas preso por um fio, caiu de repente (talvez eu lhe tivesse mexido sem dar por isso), foi tombar
sobre o chão e, a rolar, acabou por ir cair mesmo aos pés de Sua Excelência, no meio do silêncio
sepulcral que ali reinava. Foi essa a minha justificação, a minha desculpa, tudo quanto tive para dizer a
Sua Excelência! As consequências não se fizeram esperar. Sua Excelência, logo a seguir, fixou-se
atentamente no meu aspecto e no meu fato. Eu pensei que estava a ver-me no espelho... Com isto fica
tudo dito... Então curvei-me para apanhar o botão e colocar outra vez no seu lugar aquele desertor
inoportuno. Estava completamente atordoado! Agachei-me e estendi a mão para apanhar o botão, mas
este continuou a rolar como um pião e por mais esforços que eu fizesse não conseguia alcança-lo... De
maneira que estava assim a dar grandes provas da minha habilidade! Senti que me fugiam as últimas
forças e que tudo estava perdido. Toda a dignidade desaparecera: a minha parte humana estava
absolutamente aniquilada. [...] Até que por fim consegui apanhar o botão... Mas em vez de reparar a
minha tolice, de pôr-me em posição de sentido, vou e ponho-me a querer prendê-lo no lugar donde
pendiam apenas dois fiozinhos, como se ele pudesse ficar ali colado... E ainda por cima conseguia rir-me
do sucedido, sim ainda tinha a desfaçatez de me pôr a rir... (261-263)

Qual foi o corte, o motivo disparador do encontro? O erro de Makar Diévuchkin sobre o
parágrafo copiado, que o faz ser chamado à presença de Sua Excelência.

Makar Alieksiéievitch, Sua Excelência chama-o imediatamente. Causou-nos um transtorno terrível com a
sua cópia!” Foi isto apenas o que ele me disse, mas foi o bastante. Não é verdade, minha filha, que era
suficiente?

CORPOS
132

O que é bastante e suficiente aqui é o fim de uma farsa, de um ocultamento mantido a muito
custo por Makar Diévuchkin: estar fora do olhar de Sua Excelência, o ministro.
Assim é a cidade, na arte e na vida: os pobres estão separados espacialmente dos ricos, em
lugares que geograficamente marcam o centro e as periferias das cidades. Makar mora em um
cubículo de uma cozinha de uma casa de cômodos, e ali vive sua existência, em um mundo separado
de outros homens como o ministro. A chamada à sala do ministro explicita, nessa junção inesperada o
contexto de separação que, pelo efeito estético evidencia a crítica à sociedade de classes em São
Petersburgo dos anos de 1840.
Interessante é pensar no cronotopo da repartição pública do ministério como lugar de
reunião de homens de diferentes classes sociais e hierarquias. O cronotopo avizinha, ainda que
separados em diferentes repartições, homens de diferentes esferas sociais. O ministério como
cronotopo artístico apresenta, em compressão, a multiversidade social da visão da cidade de São
Petersburgo, com as suas diferenças espalhadas na geografia da cidade (separação essa
naturalizada, que já não vemos). Nessa Petersburgo de Dostoiévski, tendo por lado de fora o frio, o
branco da neve gelada ressalta mais ainda a densidade do interior do ministério. Essa densidade do
ministério, que tanto aparece em Gogol quando em Dostoiévski, aparece especialmente no vestíbulo,
limiar entre a imagem branca do “lado de fora” e o interior do ministério aquecido e movimentado
pela tensão das contradições sociais comprimidas.
O cronotopo denso do ministério será comprimido mais ainda a partir do erro de Makar
Diévuchkin. O erro é o corte, o motivo do encontro entre Makar e o Ministro, narrado densamente por
Dostoiévski enquanto estreitamento crescente e tenso do espaço entre os dois personagens.
Conforme se reduz e se comprime o espaço entre os dois – as salas e a sala final, os corpos e o
encontro dos corpos – o tempo condensa-se e torna-se lentíssimo – o contrário da vida que é quick
ou zhivoi – e a pobreza como realidade concreta emerge em um flash, em um rápido olhar, no
encontro eu-outro.
Podemos dizer que o motivo que começa a narrativa é a iminência da revelação pública de
uma vida concreta privada. Trata-se da exposição pública da vida de um homem, Makar Diévuchkin, um
homem pobre. A publicização de sua condição privada a partir de sua própria culpa, de seu erro
caligráfico – sua punição, a morte.
Justamente o que ele condenou em Gogol, na carta anterior em que se indigna com tamanha
invasão da privacidade, agora ocorre com ele. O trecho que está anterior ao evento trata de uma
morte anunciada:

Até tremo quando penso que Sua Excelência poderia reparar em semelhante prova de desleixo e dizer-
me qualquer coisa... e com toda razão [...] Só de pensá-lo sinto uma tal vergonha que até me parece que
desfaleço... Sim, minha filha, não poderia sobreviver a essa vergonha...

O tempo da cena do encontro é medido pelo tempo da morte. Pela imobilização do homem na
densidade da vergonha – de estar assim diante do outro, de aparecer – há a suspensão do tempo real

CORPOS
133

no silêncio sepulcral: uma dupla imobilidade. A compressão do espaço no seu máximo – pela vergonha
– que dobra sobre si mesmo o tempo saturado imobiliza tudo exceto o botão, esse se torna o
protagonista maldito – o desertor – o único que se move, como ejetado pela pressão extrema, e
tomba aos pés do ministro.
Parece que vemos em câmera lentíssima esse herói atravessando o tempo denso que lhe
resiste, preenchendo em pontilhado temporal o espaço entre os dois homens – o pobre e o rico – em
um movimento que vai de cima para baixo, como deve ser a queda. Queda do que? Do humano em
Diévuchkin, deixando apenas um fio solto no capote. Aos pés do outro, suprema reverência final, na
morte do homem do lado de cá.
A imagem de herói, imagem de homem que Dostoiévski cria é dupla. Por um lado há o homem
interior exteriorizado na ação que narra. Como personagem, é representante do mundo, um
ideologema do funcionário pobre – tema muitas vezes tomado por Dostoiévski. Aqui, em resposta de
Dostoiévski a Gogol, o capote é o homem.
Mais tarde, o botão é o homem que tomba. Seu corpo alegoriza-se na metonímia do botão, que
enquanto herói deserda o homem e tomba. É o próprio homem tornado um cronotopo no interior de
outro cronotopo.
Importante é que não é um homem em si, em sua dor, mas sim um homem assim porque
assim se torna diante do outro homem, de quem buscava tornar-se inexistente. É diante de Sua
Excelência que a falta de dignidade, habilidade, humanidade – nas suas palavras – revela-se
concretamente pelo autor no cronotopo do botão.
O botão, ele mesmo vivo, é ideologema não sublimado. Era já signo quando narrado pela sua
ausência – “não se pode passar sem eles e a casaca do meu uniforme não tem mais nem metade dos
que tinha” – e, quando presente e desertor, liga os dois homens em sua alteridade, juntando ambos
em um eu-outro. O botão não cai, tomba, encontra sua tumba no sepulcro da ausência de palavras na
sala – o silêncio sepulcral. Dificilmente teremos uma imagem mais potente para dizer do homem
diante do homem em sua encarnada diferença – essa mesma construída pelas separações das
esferas da cultura e pela divisão social do trabalho.
Como em tantas obras artisticamente fortes, o complexo folclórico a que se referia Bakhtin
está presente na cena, avizinhando os elementos e criando o efeito de suspensão da vida ordinária.
Morte, corpo, chão, por um lado, olhar, riso, redenção, amor, por outro, na sequência da narrativa.
Seria o complexo folclórico em sua força o lume da qualidade estética de um texto?

2. O CRONOTOPO DO BOTÃO: riso, vida, morte, alteridade

Um botão, como um objeto da cultura, não teria talvez hoje a força simbólica da época de
Dostoiévski. Em um artigo sobre a história dos uniformes militares russos, Aleksandr Verchínin nos
mostra que, em 1840, quando da escrita de Gente Pobre, os botões eram objeto de realce nos
uniformes, em alguns sobretudos e kaftans eram muitos e designavam, por sua quantidade e

CORPOS
134

distribuição, a hierarquia dos seus portadores. Eram ainda objetos caros, feitos de osso, madeira ou
metal que possuíam valor especial, valor esse que Dostoiévski ressalta, trazendo o botão de
Diévuchkin como cronotopo – o tempo da miséria condensado no objeto que não se sustenta diante da
revelação no espaço público, e cai.
No mundo cronotopicamente comprimido por Dostoiévski na repartição, nas salas, no
gabinete, na distância do olhar, na reunião pelo movimento do botão, até o encontro dos corpos no
aperto de mãos, a miséria do homem é revelada no meio da sala, publicamente, na praça pública que é
criada artisticamente na narração literária. A pobreza não é da ordem da vida privada, eis a unidade
temática da cena.
A força artística do cronotopo complexo do botão é a tensão da contradição social imobilizada
no encontro dos homens, e projetada no movimento da queda do botão – reunião trágica do que se
revela e se aniquila. Nessa tensão emerge o olho do outro, a visibilidade, o que vê a si no outro que vê,
ou que se vê na pupila do olho do outro e, botão sem fio, cai no chão.
O que há nesse olhar do outro sobre si que vê o que antes estava aqui e eu não via? Assim é
perceber-se mal vestido diante do outro: ver-se com o excedente do olhar do outro em mim. Antecipo
– e não há passagem do tempo, é um antecipar no momento do encontro – sua crítica, seu valor, e
vejo o que sempre esteve ali como se fosse a primeira vez; e o é de fato: a primeira vez que vejo com
esse olhar alterado pela presença do valor do olhar do outro.
Quando diante do olhar de Sua Excelência o ministro, Makar Diévuchkin se vê, vê o que pensou
e tentou ocultar insistentemente até então. “Eu pensei que estava a ver-me no espelho”. Que espelho é
esse? Não o espelho em que me vejo com meus olhos, mas o espelho que contém o excedente claro
para mim somente nesse instante. Já a mirada para o espelho portava esse olhar alterado:

Em primeiro lugar porque sentia uma imensa vergonha, e depois porque ao voltar casualmente a vista, à
direita, e ao ver-me num espelho, tive motivo mais do que suficiente para me deixar cair no chão.

Antecipando – no momento – o que vê o outro, vê-se como se fosse pela primeira vez: é
outro-eu o meu próprio ver. Duplo de mim no meu olhar invadido e alterado... vejo e é trágico o que
vejo. “Com isto fica tudo dito...”, Makar desaba. É o destronamento do humano em um homem.
Destronamento do que se mantinha privado, que posto a público, desmorona o homem. A cena toda é a
tragédia da morte do homem diante do outro homem. O que sustenta a humanidade de um homem
pobre, senão essa invisibilidade presumida? A humanidade é a vida, seu fim é a morte, ainda que
permaneçamos respirando. O acabamento que Makar Diévuchkin sofre no encontro com o outro é a
sua morte, o fim de sua farsa, de seu ocultamento: sua revelação.
O que Dostoiévski narra de fato é a cena de uma morte. Vejamos pelos seus elementos
materiais, as palavras da composição. Ao ser chamado pelo nome até a sala de Sua Excelência, ele
morre pela primeira vez.

Fiquei rígido, como morto; já não sentia e fui até ao gabinete do ministro... Quero dizer, os meus pés é
que me levavam porque eu, propriamente, estava mais morto do que vivo!

CORPOS
135

Mas essa sensação de torpor ainda não é a morte, ainda que ele a desejasse. Ao ver-se no
espelho na presença dos homens no gabinete, ele revela seu projeto de estar morto em vida, para
eles:
E não me faltava razão para isso, minha filha! Em primeiro lugar porque sentia uma imensa vergonha, e
depois porque ao voltar casualmente a vista, à direita, e ao ver-me num espelho, tive motivo mais do que
suficiente para me deixar cair no chão. Acrescente-se a tudo isto que eu sempre tenho procurado
conduzir-me de maneira como se não existisse, pelo que nem de longe poderia supor que Sua Excelência
tivesse qualquer notícia acerca da minha pessoa. [...] [grifos meus]

A primeira vez que Makar tomba, é por sua própria vontade: “me deixar cair no chão” é ato
voluntário, já que se revela vivo na relação que trai seu projeto de como se não existisse para aquele
outro. Mas no encontro condensado do cronotopo que fica cada vez mais apertado, a morte advém do
fato de ser visto dessa forma pelo outro, com seus olhos.

o meu botão... o diabo o leve... o meu botão, que estava apenas preso por um fio, caiu de repente (talvez
eu lhe tivesse mexido sem dar por isso), foi tombar sobre o chão e, a rolar, acabou por ir cair mesmo
aos pés de Sua Excelência, no meio do silêncio sepulcral que ali reinava.

Os elementos materiais da composição da narrativa da queda do botão são tomados de


imagens relacionadas à morte – o diabo o leve – foi tombar – silêncio sepulcral. É Makar quem se
desprende de seu fato, de seu capote indigno e cai, humano na morte, desabado de sua existência
pobre revelada – com todas as suas forças para prender-se humano cortadas de repente na
revelação.
Senti que me fugiam as últimas forças e que tudo estava perdido. Toda a dignidade desaparecera: a
minha parte humana estava absolutamente aniquilada.

A imagem é lenta porque o tempo é tão condensado que vemos cada passagem desse tombo,
aflitos para que ela termine, mas ela ainda continuará.

Então curvei-me para apanhar o botão e colocar outra vez no seu lugar aquele desertor inoportuno.
Estava completamente atordoado! Agachei-me e estendi a mão para apanhar o botão, mas este
continuou a rolar como um pião e por mais esforços que eu fizesse não conseguia alcança-lo... De
maneira que estava assim a dar grandes provas da minha habilidade!

Makar volta a si e vai buscar-se no chão, mas esse rodopia e traz o patético para a cena. A
imagem de Makar rindo-se, no final do drama, é grotesca. Ele tenta colar novamente o botão ao
capote, gesto fatídico, tarefa impossível: após morrer, tombado, não há como voltar o tempo, não é
mais possível estar vivo daquele modo surrado e miserável. O homem está já todo do lado de fora. E
ele ri: a vizinhança da morte e o riso trazem o complexo folclórico para a textura da cena,
humanizando-a em um nível insuperável.

CORPOS
136

Mas o que resulta a seguir é o inesperado – para Makar em sua morte. O outro lhe estende a mão e o
firma, como a um igual.
Logo que o último tinha acabado de sair, imediatamente Sua Excelência, puxando da carteira, tirou uma
nota de cem rublos.
- Olhe, isto é tudo o que posso... aceite...
E, ao dizer isto, meteu-me a nota na mão.
Então senti um estremecimento em todo o meu ser e não tenho palavras para descrever a comoção que
me tomou. Tentei pegar-lhe na mão para beijá-la mas ele ruborizou-se, Várienhka, e... ao dizer isto não
me afasto nem um milímetro da verdade, minha filha... ele pegou na minha mão indigna e apertou-a, sim,
pegou nela simplesmente e apertou-ma tal qual como se fosse a mão dum seu igual, de alguma pessoa
altamente colocada, como ele. (p. 253)

Makar vive essa resposta do ministro como o sinal da restituição de sua vida em outras
bases, humanas, pois equipotente, um seu igual, como ele. Igualado não na diferença social, mas
elevado. A densidade da relação social da cena encontra aqui nesse desfecho a miséria humana em
sua verdade mais crua. Não há superação das relações de classe, mas o desejo de ser igual na pessoa
altamente colocada. O ministro não se move, senão em sua compaixão, Makar ao contrário morre –
enquanto pobre – e renasce reconhecido como humano, na equipotência das mãos que se encontram
“como se fossem iguais”.
Makar existe enquanto ser amorosamente afirmado. Reconhecido como existente, exatamente
o contrário de seu projeto de tornar-se não existente para esse outro. No estender e encontrar das
mãos o Dostoiévski alcança a maior compressão cronotópica: aqui Makar eleva-se na existência igual
ao ministro, um momento onde toda a humanidade torna-se uma, alteritariamente, amorosamente eu-
outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E POSSÍVEIS ANÁLISES ULTERIORES

Na narrativa literária lida cronotopicamente, percebemos o adensamento gradativo do tempo


pela compressão do espaço, desde São Petersburgo e suas separações, até o botão que une os dois
homens concretamente, reunindo toda a contraditória e esmagadora condição social da pobreza. A
força desse enunciado é por podermos escutar tudo isso “de dentro” da autoconsciência de Makar
Diévuchkin, que nos ensina que a autoconsciência está toda do lado de fora: é diante do outro, e nesse
momento único, que se pode ver a si com o excedente do olhar do outro em si.
Como Bakhtin realizou nas nove partes de seu texto Formas do Tempo e Cronotopo no
Romance, pela leitura das formas que tomam o tempo e o espaço valorados nas diferentes obras
artísticas, pode-se compreender a imagem de homem criada pelo autor na personagem.
Aqui nessa leitura chegamos à imagem de homem que Makar Dievúchkin afigura, na
complexidade do cronotopo criado por Dostoiévski. Em tantas outras leituras que temos tido contato,
onde o cronotopo artístico vem sendo compreendido como descrição possível do ato responsável,
parece que é uma imagem do humano enquanto centro de valor único que emerge. Desde a nossa
leitura do texto Formas do Tempo e Cronotopo no Romance vimos percebendo que o homem/herói é

CORPOS
137

possível de ser revelado no projeto de dizer do autor pelos elementos do cronotopo: espaço, tempo e
valor. Assim como na leitura do poema de Puskhin ao fim de Para uma Filosofia do Ato Responsável,
Bakhtin parece estar nos dizendo que o ato humano é possível de ser apreendido enquanto espaço e
tempo valorado. No cronotopo artístico, o humano enquanto valor parece ser acessado pela leitura do
tempo e espaço do herói, criados pelo autor. Será o cronotopo a chave para a descrição do ato
responsável, do homem em ato, na arte e na vida? Ler o humano na obra de arte, a partir da entrada
do cronotopo não terá o sentido da compreensão da imagem de homem que o autor constrói, mais do
que entender o espaço e o tempo da imagem literária?
Aqui nesse texto, bem como no ensaio de Bakhtin Formas do Tempo e Cronotopo do Romance,
o que se buscou foi encontrar a imagem de homem/imagem do herói em suas possibilidades estéticas
de ser, na arte. Na literatura, poesia, e outras formas de arte, essa imagem de homem cria um tipo
de humanidade que está presente na vida, mas que muitas vezes não é possível ver, pelas separações
sociais das esferas da cultura. Talvez por isso essas imagens artísticas possuem mais força quanto
mais avizinham esferas da cultura que foram separadas, como morte-vida-riso e outras séries do
complexo folclórico. Aquilo que aprendi na arte, devo colocar em ação na vida (Bakhtin): formas de
compreender e reinventar o humano na arte e na vida.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance . São Paulo, Brasil, Hucitec, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Dagli appunti degli anni Quaranta. Trad. do russo de Augusto Ponzio. Corposcritto, n. 5. Bari, Edizioni
dal Sud, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. do russo de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Brasil,
Forense Universitária, 2013.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Gente Pobre. Trad. de Fátima Bianchi. São Paulo, Brasil, Ed.34, 2011.
GOGOL, Nicolai O Capote. Trad. de Roberto Gomes. Porto Alegre, Brasil, L&PM, 2008.
MORSON, Gary Saul. O Cronotopo da Humanicidade: Bakhtin e Dostoiévski. In: Bemong, Nele, et al. Bakhtin e o
Cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. São Paulo, Brasil, Parábola Editorial, 2015.
PONZIO, Augusto. O Cronótopo na Obra de Bakhtin. In: Palavras e Contrapalavras: circulando pensares do Círculo de
Bakhtin. São Carlos, Brasil, Pedro & João Editores, 2013.
PONZIO, Augusto. A Revolução Bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo, Brasil,
Contexto, 2009.
PONZIO, Luciano. Visioni del testo. Lecce, Pensa MultiMedia Editore, 2016.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência
da linguagem. Trad. do russo de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo, Brasil, Ed.34, 2017.

CORPOS
138
RESUMO

TATUAGEM COMO O presente texto intenciona relacionar os

RESISTÊNCIA NAS
atravessamentos acerca da docência, do corpo e da
relação com o outro; indagações sobre o tornar-se
docente, reflexões sobre as práticas vividas como
discente, e a tatuagem como marco de resistência

PRÁTICAS DOCENTES e força no comprometimento consigo e com o outro


no cotidiano.

Palavras-Chave: Tatuagem. Resistência. Ato


Responsivo.

MOTA, Luciana Lima da56

INTRODUÇÃO

P
restes a colar grau no curso de Pedagogia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
– UNIRIO, as reflexões sobre práticas docentes efervesciam na mente. Com uma proposta de
emprego para assumir uma turma de Pré-Escola I em uma escola da zona sul na cidade do Rio
de Janeiro – com crianças de aproximadamente quatro/cinco anos – as indagações sobre a docência
surgiam à medida que o caminho se desdobrava diante de meus pés.
Perante aos desafios, me encontrava em diversos questionamentos pertinentes à docência,
principalmente na relação do processo de letramento precoce na educação infantil – que ocorre na
maioria das instituições. Ao mesmo tempo, procurava resgatar memórias que me faziam revisitar um
local aproximado aos quais meus futuros alunos se encontrariam.
Logo, ao me ver professora, busquei retornar aos momentos de minha infância, como aluna, e
rememorar as expectativas, angústias e demais sensações sobre a época na qual o letramento,
“pouco a pouco”, aterrissava em minha rotina. Foi quando me deparei com a memória da obra de René
Magritte, “Espelho Falso”, presente numa apostila de artes enquanto cursava a 5ª série, e sua
profunda relação com meu passado como aluna, e meu presente como professora.
Portanto, este artigo tem o objetivo de abordar a relação entre a obra que torna-se tatuagem
em meu corpo, carregada de sentidos diversos, mesclados entre passado, futuro, e a proposta de um
diálogo inicial com o ato responsivo de Bakhtin.

56
Mestranda em educação no Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro,professora de educação
infantil contratada do Colégio Pedro II, bolsista CNPq, membro do Grupo de Pesquisas Culturas e Identidades no Cotidiano. E-mail: luciana-
lmota@hotmail.com

CORPOS
139

1. LUCIANA, 5ª SÉRIE, E A APOSTILA DE ARTES.

Primeiro ano do segundo segmento do ensino fundamental, grandes expectativas, desde


corrigir os ímpetos de chamar as professoras de “tia”, até poder estrear finalmente os grandes
momentos de escrita com caneta esferográfica azul, nas folhas de fichário recém-adquiridas para o
novo ciclo.
Ao recebermos, no início do ano, o material didático da disciplina de artes, lembro-me de
perceber algo diferente; não era um formato de livro, mas sim, uma apostila. Grande, de capa
vermelha, cujo seu conteúdo trazia abordagens iniciais de diferentes artistas; Salvador Dalí, Tarsila do
Amaral, Aleijadinho, Matisse, Magritte, Picasso, e por aí em diante.
Folheando as páginas da apostila, a obra de Magritte intitulada “Espelho Falso” ganha minha
atenção; a imagem cobria quase a metade da folha em formato A3, mas não foi seu tamanho que
causou impacto; se bem me recordo, a obra trazia uma sensação de deslocamento e ao mesmo
tempo, de conforto.

Figura 1. “Espelho Falso”, de René Magritte.

Fonte: pt.wahooart.com

A meu ver, um olho que olha fixamente, porém ao vê-lo, dá a ideia de nos permite ver o que há
dentro de si, soava como um diálogo justo para minha perspectiva de dez/onze anos de idade. As
nuvens por detrás dos olhos, o céu azul que rememora o carinho por dias de praia ensolarados e a
sensação de bem-estar, traziam sorrisos aos lábios.
Passaram-se tempos desde que havia visto pela primeira vez a obra de Magritte, que ainda
assim, continuava presente em minha vida. Enquanto os rascunhos destinados às últimas folhas dos
cadernos eram preenchidos por tentativas de desenhos de olhos, eu seguia indagando o motivo pelo

CORPOS
140

qual aquilo me atravessava tão brutalmente, de forma atemporal. Não tardei a entrar na faculdade
depois que me formei na educação básica, e ainda assim, alguns costumes se mantinham, bem como
as tentativas de desenho de olhos, iguais (ou não) aos que a apostila de artes havia me mostrado
sobre Magritte.
Ao aprofundar os estudos sobre educação na época de graduação, não considero um acaso
perceber que, prestes a colar grau no curso de Pedagogia, me peguei revisitando alguns momentos
marcantes como discente, a fim de refletir sobre a prática docente e que tipo de professora eu
poderia me tornar. Neste dado momento de minha vida, uma constatação alcançou as reflexões
atravessadoras; era como se a Luciana de dez, onze anos, conversasse em alto e bom tom com a
Luciana da atualidade. A primeira dizia: “Deixei de desenhar para aprender a escrever, e só percebi
isso na 5ª série.”. Para a Luciana de 24 anos, aquilo soava ultrajante, revoltante, deslocador. Dentre
indagações como “não seria a escrita uma forma de desenho?”, os questionamentos sobre que tipo de
professora eu me tornaria seguiam. Em meio à tudo isso, fiz minha decisão: dois dias antes de colar
grau, tatuei a obra de Magritte na face interna de meu braço esquerdo – e as promessas sobre ser
uma professora na qual eu acreditava, seguiam.

2. OLHARES

Antes de debruçar-me em sentidos subjetivos sobre o caso, algumas contextualizações


precisam ser feitas. Dentro do âmbito da educação infantil, muito se discute acerca do processo de
letramento da criança, e este assunto torna-se um debate constante quando instituições (como a
escola na qual viria a atuar) assumem a potencialidade do letramento não como mera decodificação
de símbolos e códigos, mas como grande investimento na leitura de mundo que a criança vive
diariamente – como consta nas Diretrizes Curriculares Nacionais:

adotar estratégias para que seja possível, ao longo da Educação Básica, desenvolver o letramento
emocional, social e ecológico; o conhecimento científico pertinente aos diferentes tempos, espaços e
sentidos; a compreensão do significado das ciências, das letras, das artes, do esporte e do lazer;
(BRASIL, 2013, p. 33)

Além deste processo ser compreendido, por lei, nos anos iniciais do ensino fundamental, a
educação infantil, como primeira fase da Educação Básica, é defendida como vasto campo de
possibilidades para vivenciar as diferentes perspectivas e potências a partir das e com as crianças.
Sendo professora de uma turma de quatro/cinco anos em uma escola particular na zona sul
do Rio de Janeiro, alguns impasses surgem conforme as reflexões acontecem. Por não querer que
meus alunos deixassem de desenhar para começar a escrever, retorno à uma infância que deixou de
explorar o prazer das brincadeiras com aquarela para melhorar a curvatura de letras, a fim de que
não parecessem verdadeiros “garranchos”, como nos era pontuado na época da alfabetização.

CORPOS
141

Refletir sobre essas práticas – as vivenciadas como aluna e as que estava prestes a assumir como
professora – realocam os pensamentos sobre o que Bakhtin (2011) na passagem abaixo:

Da mesma forma, uma emoção interior e o todo da vida interior podem ser vivenciados concretamente
— percebidos internamente — seja na categoria do eu-para-mim, seja na categoria do outro-para-mim;
em outras palavras, seja como vivência própria, seja como vivência desse outro único e determinado.
(BAKHTIN, 2011, p. 44)

A relação do eu-pra-mim abria-se à medida em que pensava sobre a relação do outro-pra-


mim e vice-versa. Buscando imaginar o que as crianças da futura turma reservariam de indagações e
percepções acerca de minha prática, pensava em constante diálogo sobre o que eu, enquanto criança,
pensava sobre as práticas que gostaria de ter visto, vivenciado, participado.
É claro que tais estratégias não possuem soluções especiais para uma prática que contemple
à todos; mas acredito ser imprescindível a reflexão sobre tais possibilidades a fim de buscas
aproximadas sobre práticas dialógicas.

3. A RESISTÊNCIA NA TATUAGEM E SENTIDOS ALÉM: corpo como promessa

Era uma tarde ensolarada. Vinte e duas crianças sentavam-se ao redor, no chão, entre
professora e auxiliar de turma. O momento da roda como parte inicial de nossa rotina aos poucos
agregava-se como uma oportunidade de compartilhamento das novidades. Meu braço estava
enfaixado por plástico filme, e sua parte interna ainda não era facilmente vista. Dentre brincadeiras
de respiração e corpo, ergui o braço e apontei para a novidade. Olhos tão surpresos quanto os de
Magritte me encaravam de volta. Alguns sorrisos, outros rostos ainda perplexos, testas franzidas e
onomatopeias habitavam a sala. As crianças logo se aproximaram, curiosas sobre a novidade da
novidade; a nova tatuagem da nova professora. Muitas perguntaram o motivo pelo qual fiz isso.
Ingênua ou não, lhes dizia “Fiz isso por mim quando tinha a idade de vocês.” Muitos estranhamentos
estavam estampados nas carinhas da turma. Eu também me estranhava, quase sempre. Mas cada vez
mais, tornava-se algo assinado, próprio; estranhar-se a fim de revisitar a si e o outro.
Uma vez ouvi de uma colega do grupo de pesquisa: “Consciência é um caminho sem volta”. A
pesquisa em educação realizava esse deslocamento em mim, como pontua Passos (2014) no trecho
abaixo:
Trata-se de uma perspectiva dialógica que contribui para a compreensão do cotidiano, não naquilo que ele
carrega de repetição e reprodução, mas principalmente naquilo que está presente como criação anônima
do “homemcomum”, como invenção, assim como anuncia Certeau (1994). (PASSOS, 2014, p. 228)

Quantos momentos fora da repetição me acompanharam desde a quinta série (ou antes) até
aqui, para que eu decidisse trazer, em uma releitura da obra de Magritte, uma história que
correlaciona passado, presente e futuro, em relação à docência? Os encontros do cotidiano alargam

CORPOS
142

horizontes. Na consciência já abrangida, encontra-se a delicadeza dos detalhes, das coisas belas,
daquilo que não é mero acaso, mas encontro.
Figura 2. A tatuagem

Fonte: Instagram.com

O que diz minha tatuagem quando sua imagem precede meus intentos? O que vêem as
crianças, meus colegas de trabalho, as pessoas que cruzo na rua? A gama de respostas é infinita, mas
a responsabilidade da mensagem inicial que me fez agir, me encaminhando para a resistência da
tatuagem, é o que dá fluxo ao movimento – das práticas, da vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ideia inicial de trabalhar o ato responsivo a partir da perspectiva bakhtiniana ainda é uma
proposta na qual aos poucos me debruço; as interações e possibilidades de interlocução são diversas,
conforme ocorrem as vivências, que ressignificam a todo momento os sentidos que dialogam com a
tatuagem.
O encontro (Passos, 2014) do ato responsivo ao olhar no espelho; o olho que vê os olhos da
criança, que enxerga de volta dentre as nuvens e céu azul da imagem – aquilo lhes diz algo
aproximado ou diferenciado do que Magritte me dizia, quando cursava a quinta série?
Não trago respostas, nem palavras que encerram essas possibilidades. Busco, por meio da
citação abaixo, demonstrar de certa maneira como penso a relação da tatuagem com a resistência.
Resisto ao não desejar que os momentos livres das crianças se resumam a estratégias de letramento.
Que na medida do possível, sigam vinculando arte e vida, a fim de descobrirem diferentes
possibilidades de expressão e o habitar na contemporaneidade:

CORPOS
143

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende
ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo
dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles
sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em
qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos
esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso,
tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada
absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo. (BAKHTIN,
2011, p.410)

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_________. Para uma Filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica / Ministério da Educação.
Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.562p.
PASSOS, Mailsa Carla Pinto. Encontros cotidianos e a pesquisa em Educação: relações raciais,
experiência dialógica e processos de identificação. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 51, p. 227-
242, jan./mar. 2014.

CORPOS
144
RESUMO

CORPO GROTESCO,
CORPO POLÍTICO Palavras-Chave: Tatuagem. Resistência. Ato
Responsivo.

NUTO, João Vianney Cavalcanti57

D
iversos são os sentidos do estilo grotesco. Pode ser instrumento de sátira, denunciando
alegoricamente defeitos morais. Pode representar o mal, o demoníaco; mas, em culturas não
ocidentais, também representa divindades benévolas. Para Schlegel, o grotesco, que também
denomina arabesco, envolve “a destruição da ordem habitual do mundo na livre excentricidade das
imagens” (SCHLEGEL, F. apud ECO, 2014, p. 280). Para Victor Hugo o grotesco realça o sublime,
atuando por contraste (HUGO, 2012, p. 33). No contexto de um romantismo gótico, o grotesco exprime
o horror, como explica Kayser (2003), contribuindo para um tipo de atmosfera psicológica em que o
familiar torna-se estranho, inquietante,conforme o termo freudiano Unheimlich (FREUD, 2010). Já no
final do século XVIII, Francisco de Goya constrói plasticamente a relação entre o grotesco e o que
Freud denominaria inconsciente, na gravura “O sono da razão produz monstros” (GOYA, 1997, p. 9),
entre outras gravuras de sua série Caprichos. Em sua manifestação carnavalesca, o grotesco,
associado ao cômico, tem sentindo ambivalente, abrangendo não somente os aspectos negativos da
sátira, como também o sentido positivo de fecundidade e renovação, como explica Bakhtin, em sua
análise de obra de Rabelais (BAKHTIN, 1996).
Seja como for, o grotesco perturba, choca, ainda que seu efeito possa variar do horror ao
riso. Para Umberto Eco, o grotesco, uma das manifestações do feio, exprime a “harmonia perdida e
malograda” (ECO, 2014, p. 135), distinguindo-se da “harmonia perdida”, presente no sublime e no
trágico, e da “harmonia possuída”, própria do belo e do gracioso, que induz à serenidade.
É com esse sentido perturbador que o grotesco também tem sido utilizado como meio
contundente de crítica estética, social e política – espécie de continuação da atitude decadentista de
“épaterlebourgeois” – tornando-se estilo frequente nas vanguardas do início do século XX e também
na arte contemporânea. No entanto, é o efeito perturbador do grotesco, se, por um lado envolve
crítica, também pode ser interpretado como provocação gratuita ou manifestação de puro mau gosto,
pois essa função do grotesco é próxima ou coincide com a ironia, que demanda uma capacidade
interpretativa mais sofisticada do receptor.

57
Professor Adjunto de Teoria da Literatura da Universidade de Brasília (UnB); líder do Grupo de Pesquisa Literatura e Cultura da UnB.

CORPOS
145

O grotesco torna-se ainda mais perturbador, quando – com o sem o espírito carnavalesco
analisado por Bakhtin – envolve a representação do que o pensador russo denomina “baixo material e
corporal”, ou seja, a partes e funções do corpo relacionado com as necessidades, os prazeres e os
efeitos fisiológicos (BAKHTIN, p. 323-383). Como observa Umberto Eco, “nas culturas em que existe
um forte senso de pudor, o gosto por sua violação manifesta-se através do oposto do pudor, que é a
obscenidade” (ECO, 2014, p. 131). Afirma Umberto Eco que o obsceno “vai adquirir, enfim, um papel
dominante em boa parte da literatura do século XIX e nas vanguardas do século XX, justamente para
destruir os tabus bem-pensantes e, ao mesmo tempo, aceitar todos os aspectos da corporalidade”
(ECO, 2014, p. 150). Neste caso, acusações de pornografia não são incomuns, ainda que o corpo
grotesco, em geral, oponha-se aos padrões de beleza sensual da maioria dos filmes pornográficos (os
“corpos de modelo”).
Todas essas considerações vêm a propósito da polêmica sobre a exposição “ Queer Museu”,
em Porto Alegra. Trata-se de uma exposição de manifestações artísticas relacionadas com o conceito
de queer. O termo, que tem o sentido original, de “esquisito”, “estranho”, é também utilizado, no baixo
calão da língua inglesa, como sinônimo de homossexual. Originalmente um insulto, passou a ser
utilizado a partir dos anos 80, nos Estados Unidos, para designar toda uma série de estudos
relacionados com homossexualidade, ou melhor, sexualidades marginais, e cultura. A utilização de um
termo de baixo calão para designar determinado campo de estudos por si só é uma provocação, no
sentido de não assimilação ao padrão oficial bem comportado. Trata-se, portanto, de uma estratégia
simbólica que, por meio do próprio significante, já indicia uma crítica ao comportamento repressor da
“heteronormatividade homofóbica”, cujo caráter performativo foi apontado e analisado por Judith
Butler (2002), influenciando diversos estudiosos, como é o caso, no Brasil, de Denilson Lopes (LOPES,
2002) e Guacira Lopes Louro (LOURO, 2004). Reação mais escrachada à norma é o estilo camp,
associado a certos exageros, com ênfase proposital no caricatural, como a estética dragqueen
(SONTAG,1987; LOPES, 2002; ECO, 2014).
A exposição “Queer Museu” foi encerrada abruptamente por causa da oposição violenta de
grupos conservadores. Por causa das imagens associadas à sexualidade – inevitável, como o próprio
título da exposição indica –, muitas delas com exploração de traços grotescos e representações do
baixo material e corporal, e também pelo fato de não ter qualquer restrição ao ingresso de menores
de idade, a mostra foi acusada de fazer apologia à zoofilia e à pedofilia.
Não faltou quem, em nome da fé cristã, se regozijasse com a interdição de um tipo da “arte
satânica”. A respeito disto, cabe uma breve relação entre grotesco e sagrado na cultura ocidental,
especialmente em suas manifestações cristãs, em comparação com outras culturas. Observa Bakhtin
(1996) que, em suas manifestações primordiais, o grotesco, associado ao carnavalesco, era também
vinculado ao sagrado, de que é exemplo o culto a Dioniso. Somente com o desenvolvimento das
sociedades de classe é que o grotesco cômico foi sendo afastado das cerimônias oficiais e relegado
para a cultura não oficial, popular. Na religião cristã, é nítida a distinção entre a representação das
imagens santas – todas baseadas na representação corporal completamente antigrotesca, que

CORPOS
146

Bakhtin denomina “clássica”. Grotescas são as representações dos pecadores, dos diversos pegados,
dos diabos e de Satã; nunca as de Deus, da Virgem Maria, de Jesus e dos santos, contraste que se
percebe nitidamente nos nos quadros de Hieronimus Bosch. Já a representação do Diabo, ao
contrário, foi ganhando traços grotescos, da imagem ainda clássica de Lúcifer no momento da queda
à representação caprina, baseada nas imagens do deus Pã e dos sátiros (LINK, 1998). A representação
grotesca do Diabo infunde pavor no homem medieval, mas também provoca-lheriso, no teatro e nas
manifestações carnavalescas da Idade Média (BAKHTIN, 1996). No entanto, fora do âmbito da religião,
também há representações do Diabo bem distintas do estilo grotesco. No Fausto, de Goethe (apud
ECO, 2014, p. 182), após uma série de metamorfoses grotescas, o Diabo assume o aspecto de um
gentleman. Aspecto semelhante, sem qualquer preâmbulo grotesco, tem o Diabo quando aparece a Ivã
Karamavov, segundo esta descrição do narrador, no romance Os Irmãos Karamázov, de Dostoievski:

Era um senhor qualquer, ou melhor dizendo, um tipo conhecido de gentleman russo, de idade avançada,
quifrisaitlacinquantaine, como dizem os franceses, com um tom grisalho não muito pronunciado no
cabelo escuro, bastante longo e ainda basto e no cavanhaque aparado. Vestia um paletó marrom,
evidentemente feito pelo melhor alfaiate, porém já gasto, com um corte de mais ou menos dois anos
antes e já totalmente fora da moda, de sorte que as pessoas bem-postas na sociedade não usavam
semelhante vestuário fazia já dois anos. A camisa, a gravata comprida em forma de cachecol, tudo era
como usavam todos os gentlemen elegantes, mas a camisa, caso se reparasse de mais perto, estava
meio suja e o cachecol largo muito surrado. As calças xadrez do visitante lhe caíam magnificamente,
mas também eram claras demais e decerto muito justas, como já não se usam hoje em dia, o mesmo
acontecendo com o macio chapéu de feltro que o visitante trazia e que estava totalmente fora da
estação. Em suma, tinha boa aparência e minguados recursos nos bolsos. (DOSTOIEVSKI, 2008, p. 822)

Já no romance Dr. Fausto, de Thomas Mann, o Diabo tem uma aparência pequeno-burguesa,
com aspectos esportivos. Como afirma Umberto Eco, “no século XX, ele se tornará absolutamente
‘laico’ [...]: nem aterrorizante nem fascinante, infernal em sua mediocridade e em sua aparente
mesquinhez pequeno-burguesa, ele agora é mais perigoso e preocupante, pois já não é inocentemente
feio como se constumava pintá-lo”. (ECO, 2014, p. 182).
Contudo, como observa Umberto Eco, se o Diabo perdeu seus traços grotescos,
apresentando-se como uma pessoa comum (pelo menos em representações laicas), o mesmo não se
pode dizer do outro, do inimigo. A representação negativa do outro, frequentemente com traços
grotescos, é comum deste a Antiguidade clássica, como referência aos povos bárbaros, acentuando-
se, na cultura cristã, nas representações dos muçulmanos e dos judeus. No século XIX, abrange o
racismo “científico” como as descrições de etnias diversas do branco europeu por CesareLombroso
(apud ECO, 2014, p. 197).
O outro também pode ser aquele indivíduo classificado como anormal. Para Foucault, durante
os séculos XVII e XVIII – período que denomina “Idade Clássica” – o discurso psiquiátrico, convocado
em auxílio dos processos jurídicos, define a figura do anormal. Trata-se do indivíduo cujos traços
físicos e psicológicos tornam-no passível de vir a praticar ações antissociais ou mesmo delituosas.
Foucault identifica, na formação do discurso psiquiátrico moderno, três tipos de anormal: o monstro, o

CORPOS
147

indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora. A figura do monstro, que remonta à Antiguidade é
formada por traços grotescos, cujo caráter transgressor Foucault enfatiza:

O monstro, da Idade Média ao século XVIII de que nos ocupamos, é essencialmente o misto. É o misto de
dois reinos, o reino animal e o reino humano: o homem com cabeça de boi, o homem com pés de ave –
monstros. É a mistura de duas espécies, é o misto de duas espécies: o porco com cabeça de carneiro é
um monstro. É o misto de dois sexos: quem é ao mesmo tempo homem e mulher é um monstro. É um
misto de vida e morte: o feto que vem à luz com uma morfologia tal que não pode viver, mas que apesar
dos pesares consegue sobreviver alguns minutos, ou alguns dias, é um monstro. Enfim, é um misto de
formas: quem não tem braços nem pernas, como uma cobra, é um monstro. Transgressão, por
conseguinte, dos limites naturais, transgressão das classificações, transgressão do quadro,
transgressão da lei como quadro: é disso de fato que se trata, na monstruosidade. Mas não acho que é
só isso que constitui o monstro. Não é a infração jurídica da lei natural que basta para constituir – no
caso do pensamento da Idade Média sem dúvida, com toda certeza no do pensamento dos séculos XVII e
XVIII – a monstruosidade. Para que haja monstruosidade, essa transgressão do limite natural, essa
transgressão da lei-quadro tem de ser tal que se refira a, ou em todo caso questione certa suspensão
da lei, seja civil, religiosa ou divina. Só há monstruosidade onde a desordem da lei natural vem tocar,
abalar, inquietar o direito, seja o direito civil, o direito canônico ou direito religioso. É no ponto de
encontro, no ponto de atrito ente a infração à lei-quadro, natural, e a infração a essa lei superior
instituída por Deus ou pelas sociedades, é nesse ponto de encontro de duas infrações que vai se
assinalar a diferença entre a enfermidade e a monstruosidade. A enfermidade é, de falto, algo que
também abala a ordem natural, mas não é uma monstruosidade, porque a enfermidade tem seu lugar no
direito civil e no direito canônico. O enfermo pode não ser conforme a natureza, mas é de certa forma
previsto pelo direito. Em compensação, a monstruosidade é essa irregularidade natural que, quando
aparece, o direito é questionado, o direito não consegue funcionar. O direito é obrigado se interrogar
sobre seus próprios fundamentos, ou sobre suas práticas, ou a se calar, ou a renunciar, ou a apelar
para outro sistema de referência, ou a inventar uma casuística. No fundo, o monstro é a casuística
necessária que a desordem da natureza chama no direito. (FOUCAULT, 2001, p. 83-84)

Embora apresente exemplos do imaginário, Foucault também analisa casos reais, como
irmãos siameses e hermafroditas, e os problemas religiosos e jurídicos relacionados com esse tipo
de “monstruosidade”.
A demonização do outro explica a primeira motivação de grupos conservadores para a
agressão e censura ao “Queer Museu”. A suposta apologia apedofilia e zoofilia, apontadaem certos
quadros (sempre os mesmos exemplos, em uma exposição bem ampla) é apontada como causa da
revolta. Mas seria mesmo a causa inicial? As acusações apelam para a indignação dos cristãos e da
“gente de bem”, intensificando o tom patético dos protestos. No entanto, não me parece que essa
suposta apologia seja a primeira motivação. A verdadeira inicial provém da própria palavra queer, já
bastante conhecida fora dos meios acadêmicos e da língua inglesa. Em caso de qualquer dúvida: o
texto da mostra explica a associação da exposição com sexualidades marginalizadas. Arrisco afirmar
que, diante do clima extremamente conservador de certos setores da sociedade brasileira, bastante
acirrado em tempos recentes, que a palavra e o conteúdo anunciado, bem como o fato de levar o tabu
ao espaço oficial do museu, por si só criou uma hostilidade prévia. Portanto, as acusações apenas
reforçaram uma hostilidade que já estava pronta. Na urgência em denunciar e proibir a exposição,

CORPOS
148

seus detratores não tiveram o cuidado de procurar enxergar a crítica e a denúncia que as próprias
obras faziam.
A utilização do estilo grotesco como forma de crítica à sociedade contemporânea é bem nítida
no quadro Cruzando Jesus com o Deus Shiva, de Fernando Baril (1996), que reproduzo abaixo, para
tornar mais clara a análise:

Destoando do cânone religioso cristão, Baril agrega traços grotescos à imagem de Cristo: as
mãos dos dois braços superiores de Cristo são ramificações que formam árvores, apresentando o
traço grotesco da mistura de imagens do reino humano e vegetal, que também está presente na
vegetação (bonsai?) da parte inferior do quadro. As próprias árvores são corpos compósitos, pois

CORPOS
149

têm frutas diversas, sendo, portanto, uma mistura de árvores. Em torno da imagem de Cristo
crucificado, estão quatorze braços, o que nos lembra a imagem da deusa Kali, identifica da natureza –
em seu aspecto tanto destruidor como recriador – , esposa do Deus Shiva (mencionado no título do
quadro). A imagem cristã é associada à imagens do Hinduísmo, religião que nunca separou o sagrado
do grotesco (vejam-se as conhecidas imagens de Ganesh, deus da sabedoria, um corpo humano com
cabeça de elefante). Mas, no quadro de Baril, os braços não fazem parte da figura de Cristo, apenas
flutuam em torno dela, sugerindo um universo de valores estranhos à sacralidade da figura original.
Essa sugestão é acentuada pelo aspecto meio mecânico desses braços, como se fossem braços de
bonecos. E é ainda mais pelos objetos que esses braços usam ou seguram. Desses objetos, somente o
peixe é um símbolo cristão. Os demais são ícones da sociedade industrial: luvas, cachorro-quente,
mangueira, luvas de boxe, entre outros. Uma das mãos segura um rato morto. Embora não seja um
produto industrializado como os outros, o rato, como animal nocivo que prolifera nas grandes cidades,
pode ser associado à sujeira aos dejetos, aos esgotos, que essa mesma sociedade pretende esconder
(pelo menos nos espaços privilegiados) e que, no entanto, permanecem. Esta associação
complementa-se pela presença do rato vivo na mesa que sustem a imagem de Cristo. O grotesco da
imagem acentua-se nos braços inferiores, terminados não por mãos, mas por pés e (aparentemente)
pênis. Os pés de Cristo estão calçados por tênis, mas um ícone da sociedade industrial
contemporânea. Outros ícones estão sobre a mesa: um computador, parte de uma garrafa plástica de
coca-cola, velas (que podem ser associadas à religião, mas também a qualquer tipo de esoterismo),
uma imagem de Marilyn Monroe e uma lata contendo uma série de objetos, dialogando com a pop art
de Andy Warhol.
O tratamento da imagem é profano, no sentido de dessacralizador, como seria qualquer
tratamento que não envolvesse a pura adoração, incluindo qualquer estudo, ou mesmo a reprodução
de imagens de Cristo, da Virgem Maria, ou de qualquer imagem sacra em camisetas ou objetos de
souvenir (o kitsch religioso) que certos cristãos ostentam orgulhosamente, sem ver nisso qualquer
traço de ofensa. Tão empenhados em denunciar a blasfêmia, o grupos conservadores não leram
(mesmo porque, para ler, é preciso contemplar) a crítica mordaz à sociedade de consumo e a
adaptação do sentimento religioso ao seu ethos. É esse tipo de adaptação que preside as diversas
teologias da prosperidade, as quais associam a felicidade ao consumo, não tendo o pudor de ocultar
seu interesse comercial ao exporem à venda os mais variados objetos “milagrosos” – capazes de
melhorar ou mesmo salvar a vida do fiel –, sejam esses objetos supostas relíquias (como lascas da
cruz de Cristo), ou objetos industriais, como vassouras, sabonetes de detergentes “ungidos”.
Os ícones, lidos também como símbolos, permitem a associação do que está exibido com
aspectos do sistema que sustenta esse ethos, os quais não aparecem. Por exemplo: a hipocrisia dos
pastores que ficam milionários por meio dos dízimos e outras receitas, com suas igrejas-negócios,
que prometem prosperidade neste mundo e salvação no outro, mas são isentas de impostos, ao
mesmo tempo em que demonizam o outro (geralmente aquele que não se submete ao seu controle
biopolítico ou que não se enquadram nos seus padrões), de maneira agressiva e sistemática,

CORPOS
150

buscando influenciar também nas ações do governo, ao atacarem, por exemplo, ações educativas que
envolvam o que denominam “ideologia de gênero”.
A imagem que escolhi analisar não reflete predominantemente sobre o principal aspecto que
preside a mostra: a sexualidade. No entanto, explora o aspecto político do corpo grotesco. Seja como
meio de satirização, ironia, crítica, irrupção da cultura não oficial – como demonstra Bakhtin (1996)
em sua leitura de Rabelais – o efeito perturbador do grotesco opõe-se à serenidade do corpo
gracioso. Sua desarmonia provocante desvela as relações, muitas vezes sutis, de poder.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tr. Yara
Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília: Edunb, 1996.
BUTLER, J. Criticamente subversiva. In: JIMÉNEZ, R. M. M. Sexualidades transgressoras: una antología de estudos
queer. Barcelona: Icária Editorial, 2012. p.
DOSTOIÉVSKI, F. Os irmãos Karamázov. Tr. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2008. V. 2.
ECO, U. História da feiura. Tr. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro. Tr. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2014.
FOUCAULT, M. Os anormais. Tr. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
FREUD, S. O inquietante. In: ______ .Além do princípio do prazer. Tr. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010. p. 329-376.
GOYA, F. de. Gravuras de Goya. Brasília: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Telebrasília.
HUGO, V. Do grotesco e do sublime. Tr. Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 2012.
KAYSER, W. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Tr. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003.
LINK, L. O Diabo: a máscara sem rosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LOPES, D. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
LOURO, G. L. O corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
SCHLEGEL, F. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Tr. Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994.
SONTAG, S. Notas sobre o Camp. In: Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.

Da INTERNET

COLLING, L. Mais definições em trânsito. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/TEORIAQUEER.pdf .


Acesso em 26.09.2017

CORPOS
RESUMO
151
No Brasil, nos anos de 1970, houve uma
efervescência na produção cinematográfica e,
nessa década, foram realizadas comédias eróticas,

A REPRESENTAÇÃO DO que foram rotuladas de pornochanchadas. Essas


comédias fizeram um grande sucesso frente ao
público brasileiro, mas sempre foram

CORPO NA
ridicularizadas pela crítica que as julgava como
cinema mal realizado. Se, por um lado, as películas
foram consideradas inferiores, por outro, os seus
cartazes foram, muitas vezes, considerados, pela

PORNOCHANCHADA: uma crítica especializada, superiores aos seus filmes,


visto que possuíam uma linguagem visual
esteticamente bem elaborada e, juntamente, com
análise dialógica de cartazes seus títulos provocavam, no público leitor, não
apenas a sensação de que se estava vendendo um

cinematográficos produto de qualidade indiscutível como também o


desejo de frequentar as salas de cinemas.O cartaz
cinematográfico consolidou-se então como peça
primordial para divulgação e propaganda dos
filmes. Assim, o objetivo deste é analisar, por meio
da linguagem verbo-visual, a representação do
corpo em dois cartazes de filmes desse período: A
OLIVEIRA, Gilvando Alves de 58 Super fêmea (1973), de Anibal Massaini Neto,e Os
garotos virgens de Ipanema (1973),de Oswaldo de
Oliveira. Para a análise desse corpus, nossa
pesquisa ancora-se, principalmente, nas
concepções de Bakhtin (2006, 2010a, 2010b, 2010c)
sobre linguagem, enunciação, dialogismo.
INTRODUÇÃO Metodologicamente, situamos a pesquisa na
vertente qualitativa de base sócio-histórica. Por
meio das duas análises de enunciados concretos,
observamos, tanto na materialidade linguística

N
quanto na imagética, as relações dialógicas que se
os anos 1970, os gemidos não vinham apenas dos porões da estabelecem entre os enunciados, os leitores
ditadura. No escuro das salas de cinema, podia se ouvir, presumidos e o contexto sócio-histórico

constantemente, os gemidos dos amantes advindos das telas. Palavras-Chave: Cinema. Cartaz cinematográgico.
Nessa época, houve uma explosão de filmes bem mais atrevidos e Pornochanchada. Dialogismo.

extravagantes fomentados, principalmente, pela liberação sexual e


pela repressão política desencadeada pelos militares na década
anterior. Foi, nessa conjuntura, que o cinema brasileiro começou a produzir filmes em escala
industrial (produção em série) adentrando, definitivamente, na produção de cinema soft core59para as
massas, fomentado pelas leis de incentivo do governo militar. A partir daí, tornou-se comum, no
Brasil, dizer que o cinema nacional só tinha “mulher pelada e sacanagem”.
No cinema produzido nessa época, o cartaz cinematográfico foi uma peça primordial para
divulgação e propaganda dos filmes. É um gênero de comunicação de massa que – utilizando-se
geralmente de uma linguagem verbo-visual – pode ser utilizado com intenções prioritárias diversas:
promover a divulgação de produtos e de espetáculos de entretenimento, informar, ensinar, orientar.
Suas diversas réplicas podem ser afixadas em diferentes suportes: muros da cidade ou murais, em

58
Doutor em Linguística Aplicada pela UFRN. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor do ensino básico do
Instituto Federal do Rio Grande do Norte.E-mail: gilvandoalves@hotmail.com
59
Aqueles filmes cujas cenas apresentam a nudez – geralmente da mulher – e o ato sexual, marcadamente, implícito, encoberto, sugerido,
foram rotulados de soft core.

CORPOS
152

uma vitrina, na parede interna de um prédio, num painel de rua etc. Além disso, tanto podem se
direcionar ao público geral quanto a um público específico. No caso específico das pornochanchadas,
os cartazes foram, muitas vezes, considerados, pela crítica especializada, superiores aos seus filmes,
visto que possuíam uma linguagem visual esteticamente bem elaborada e provocavam, no público
leitor, a sensação de que se estava vendendo um produto de qualidade indiscutível e,
consequentemente, despertava o desejo de frequentar as salas de cinemas.
O sucesso das pornochanchadas, em parte, foi atribuído à publicidade que se realizou,
principalmente, sob a forma de cartazes. A maioria deles foram assinados por dois ilustradores:
Ziraldo Alves Pinto e José Luiz Benício. O primeiro confeccionou cartazes para a divulgação dos filmes
cariocas, e o segundo, para os filmes paulistas. Por haver diferenças estéticas entre a
pornochanchada carioca e a paulista, o estilo dos dois era bastante diferenciado. As peças cariocas
apresentavam uma linguagem próxima a do cartoon, enquanto os cartazes paulistas, na maioria das
vezes, utilizavam a imagem das atrizes por meio do desenho de Benício (vide o cartaz de A
superfêmea).
Por meio de fotos ou desenhos, os cartazes da pornochanchada da década de 70 eram
confeccionados privilegiando a imagem feminina. A mulher sempre ocupava uma posição de destaque,
visto que, na pornochanchada, mais do que os filmes, o produto a ser divulgado e comercializado era a
imagem feminina. Neles, as mulheres eram reproduzidas seminuas ou totalmente vestidas, mas
estavam prenhes de sensualidade. Assim, o imaginário sobre a mulher brasileira era construído, e a
imaginação, supostamente, masculina passou a ser penetrada por uma profusão de mulheres belas,
curvilíneas, fogosas, voluptuosas, cuidadosamente desenhadas ou estrategicamente fotografadas.
Quanto aos homens, quando eram representados, apareciam figurativamente como vítimas da
sensualidade feminina (o traído, o seduzido etc.).
A partir dessas constatações iniciais, traçamos o propósito deste trabalho.Neste artigo, nos
interessa investigar como se realizaa representação do corpo por meio da linguagem verbo-visual em
cartazes da pornochanchada. Para isso, selecionamos dois cartazes: o primeiro, do filme A super
fêmea (1973), de Anibal Massaini Neto; e o segundo, Os garotos virgens de Ipanema (1973), de Oswaldo
de Oliveira.

2. ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Esta pesquisa se insere na área da Linguística Aplicada de perspectiva sócio-histórica. Para


realizamos a análise, detemo-nos na investigação dos elementos verbo-visuais presentes na forma
composicional de dois cartazes de comédias eróticas produzidas na década de 1970 como também
analisamos o projeto de dizer constituidor/constituinte da forma arquitetônica. Como fundamento
teórico prioritário,para nortear o nosso estudo, baseamo-nos nas formulações sobre linguagem
advindas do Círculo de Bakhtin (2006, 2010a, 2010b, 2010c), tais como a concepção dialógica de
linguagem e as reflexões atinentes à analise dialógica do discurso. Ademais, faz-se necessário

CORPOS
153

também utilizarmos, como embasamento teórico, espificamente, as concepções bakhtinianas de


enunciação e enunciado
A teoria da enunciação bakhtiniana é regida pelo princípio da dialogia. Bakhtin entende
dialogismo – princípio constitutivo da linguagem e a condição de todo discurso – como as
manifestações de diferentes vozes que mantém um permanente diálogo, nem sempre simétrico e
harmonioso, entre diversos discursos que configuram uma determinada sociedade. Isso pressupõe
que todo discurso é constituído por outros discursos, mais ou menos aparentes, desencadeando
diversas relações de sentido.
Além disso, as relações dialógicas se estabelecem também entre o eu e o outro nos
processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos. Assim, ao se conceber o dialogismo
como o espaço interacional entre o eu e o outro no texto, admitimos que o outro tem um papel
fundamental na constituição do sentido, pois, como reitera Bakhtin (2006, 2010a, 2010b, 2010c) ao
longo de sua obra, nenhuma palavra é nossa, mas transporta em si a perspectiva da voz do
outro.Considerando que a língua é um fenômeno social e de interação verbal e, por isso, considerada
em situações concretas, em que os interlocutores, o espaço, o tempo e o propósito comunicativo são
fundamentais para a construção de sentido, Bakhtin desenvolve uma concepção de enunciação.
Para o autor russo, a enunciação é fruto da interação entre dois sujeitos historicamente
situados e não pode existir fora de um contexto sócio-ideológico. Isso significa que, ao se produzir um
enunciado – seja ele verbal e/ou não verbal –o enunciador deixa em seu texto, além de meras
informações, índices sobre a sociedade em que está inserido, sobre o seu núcleo familiar, sobre suas
experiências, sobre o modo como vê o mundo. Assim, quando o sujeito produz um texto, também
conjectura sobre o que o outro para quem o texto se dirige gostaria ou não de ouvir ou ler.
Na teoria bakhtiniana, denomina-se de enunciado a unidade mínima da comunicação
discursiva, de caráter social e, consequentemente, de conteúdo ideológico. Sua estrutura é
condicionada pelo contexto social que é o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão.
Para desenvolver este estudo, optamos,metodologicamente, pelo paradigma qualitativo. Essa
escolha foi provocada por dois motivos. Primeiro, ao fato de considerarmos a pesquisa, em sintonia
com o pensamento de Bakhtin, como uma relação entre sujeitos, portanto, numa perspectiva dialógica.
Além disso, como pretendíamos analisar a arena onde se confrontam diversas vozes sociais e estudar
a linguagem por meio de enunciados únicos que estão mergulhados em um contexto sócio-histórico,
julgamos que o paradigma qualitativo era o que possibilitava uma leitura mais adequada dos cartazes
que compõem o corpus desta investigação.

3. REPRESENTAÇÃO DO CORPO EM CARTAZES DA PORNOCHANCHADA

Nos cartazes da pornochanchada, o propósito prioritário, como já se afirmou anteriormente


era representar as mulheres de modo que fossem olhadas e desejadas. Por isso, frequentemente, o
posicionamento de seu corpo ou de seu olhar estava enquadrado como se a mulher estivesse

CORPOS
154

oferecendo ao expectador –na maioria das vezes o homem – a sua nudez, a sua feminilidade. Nesses
cartazes, a nudez nunca era frontal, como podemos observar no cartaz do filme A super fêmea
reproduzido a seguir.

Figura 1. Cartaz do filme A Super Fêmea, de Anibal Massaini Neto.

Fonte: Cinemateca Brasileira. Disponível em: <http://cinemateca.gov.br/local/cartazes/CN_0694.jpg>. Acesso em: 3 fev. 2016.

No cartaz de Asuper fêmea (1973), dirigido por Anibal Massaini Neto, por exemplo,apesar de a
atriz Vera Fisher estar completamente nua, os braços e as pernas cruzados, além de uma pulseira,
envolvem o seu corpo bem delineado por curvas, impedindo que suas partes mais íntimas (seios e
baixo corporal) sejam reveladas. Somados a isso, os olhos (sedutores, chamativos, convidativos) da
atriz direcionados ao expectador, essencialmente masculino, funcionam como um convite para que ele
desfrute daquela feminilidade, aspecto constante na confecção dos cartazes.Em outras palavras, na
representação do feminino nos cartazes da pornochanchada, o olhar fetichista masculino
transformava as mulheres em objeto de culto erótico e, consequentemente, reforçava a visão
machista da sociedade brasileira da década de 1970. Assim, de acordo com o discurso construído no
cartaz, ser “super fêmea, naquele contexto,significava seruma mulher que projetava a sua vida para
atender os anseios de uma sociedade machista e falocêntrica.
É verdade que, muitas vezes, havia mais nudez nos cartazes dos que nos filmes. A
sensualidade representada nos cartazes e os títulos apelativos garantiam a presença fiel do público
masculino que parecia acreditar na promessa realizada por eles. Embora fosse, de certa maneira,
“enganado”, esse público parecia não se incomodar com o que era efetivamente ofertado nas salas de
cinema: filmes maliciosos com leves pinceladas de erotismo.

CORPOS
155

No entanto, essa relação (lucrativa) entre o público e a pornochanchada foi criticada, na


época, por Paulo Emílio Salles Gomes (1976). Para ele, no processo de divulgação dos filmes, vendia-se
– por meio dos títulos, das chamadas apelativas, dos cartazes – um produto, mas não o tinha para
entregar, uma vez que os filmes eram esvaziados de conteúdo pornográfico e, às vezes, de conteúdo
erótico. Salles Gomes acreditava ainda que a constante propaganda enganosa poderia provocar o
afastamento do público, uma vez que ninguém ia mais confiar no que os títulos dos filmes insinuavam.
Na composição dos cartazes, outro destaque são os títulos dos filmes que compõem com a
imagem o propósito comunicativo prioritário da peça publicitária. Muitos títulos eram construídos a
partir da utilização, na maioria das vezes, do duplo sentido. Em sendo assim, abundavam títulos
maliciosos que sugeriam situações eróticas: Como era boa a nossa emprega (1973), Gente que transa
(1974), Ainda agarro esta vizinha (1974), A banana mecânica (1974), Cada um dá o que tem (1975), Eu
dou o que ela gosta (1975), O bem dotado (1978), Nos tempos da vaselina (1979). Sem qualquer pudor,
dezenas de títulos de natureza erótica eclodiam e derrubavam, em termos de bilheteria, produções
norte-americanas bem comportadas, bem produzidas, bem divulgadas, como, por exemplo, O
poderoso chefão (1972) e Tubarão (1975). O nome dos filmes funcionava, portanto, como chamariz
para que o público se reencontrasse novamente com o cinema nacional.
Os títulos dos filmes, quando iam compor os cartazes, recebiam diversos tratamentos
gráficos (caligrafia, tamanho das letras, cores etc.) com o intuito de produzir o sentido desejado pelos
cineastas. No caso da pornochanchada, isso era fundamental, pois o resultado final não só teria de
seduzir o público mas também de driblar os sensores. Entretanto, alguns cartazes, depois de prontos,
foram, muitas vezes, censurados, e suas exposições, proibidas nas salas de cinema. Nesse caso, para
o cartaz ser liberado, havia necessidade de mudar o nome do filme para ficar ao gosto dos censores.
Foi o caso, por exemplo, de Os machões (1972) que, anteriormente, se chamava Os bonecas. Como
Ziraldo já tinha confeccionado o cartaz, foi necessário fazer uma emenda para o filme ser divulgado e
exibido. A propósito dos títulos, era rotineiro o fato de diversas películas precisarem ser renomeadas:
A filha da cafetina virou A filha da madame Betina (1973); O anjo devasso tornou-se Anjo loiro (1973);
Os homens que eu tive, transformou-se em Os homens e eu (1973), entre outros, tiveram seus nomes
modificados.
No cartaz do filme A superfêmea, por exemplo, para reforçar atributos que, geralmente são
associados à natureza dicotômica feminina, o título é grafado em duas cores: roxo e laranja. A
primeira cor é o resultado da mistura equilibrada do vermelho com azul e a segunda da mistura exata
do vermelho e do amarelo.A cor vermelha que está associada paixão, excitação e desejo está presente
na composição das cores dos caracteres do título.Roxo pode simbolizarpurificação – pode estar
associado ao lado espiritual da mulher – mas também é a cor da magia e do feminismo. No cartaz,
colore a palavra “super”, sugerindo que a superioridade feminina está, possivelmente, na manutenção
de sua ingenuidade. Jáa segunda, laranja avermelhado, colore a palavra “fêmea”e faz alusão ao
desejo, à paixão sexual, ao prazer, à dominação, à agressão e à sede de ação.É relevante perceber
ainda que, nesse caso, a cor roxaestá, de uma certa forma, envolvida, limitada pela cor laranja–

CORPOS
156

localizada nas extremidades – como se quisesse dizer que, o desejo despertado pela mulher
relaciona-se,não a sua essência espiritual, mas às suas formas corpóreas externas.
Ademais, a palavra “fêmea” em oposição a palavra “macho” reforça, discursivamente, a
representação do lado “animalesco” da mulher. Nesse contexto social, espera-se assim que a mulher
cumpra o papel de promotora de prazer e/oude procriadora em uma sociedade, nitidamente,
falocêntrica. Em outras palavras, constrói-se, no cartaz, do filme, uma visão do que se esperava da
mulher nos anos de 1970: não se queria uma “super-mulher”, como prenunciava o feminismo, que
batalharia por um espaço de igualdade entre homens e mulheres, mas uma “fêmea” cumpridora de
seus instintos biológicos.
Essa característica ambivalente que é,tradicionalmente,atribuída às mulheres fica mais
patentes quando associamos o título do filme à imagem da mulher representada no cartaz.É possível
deduzir que a “superfêmea” não vai quebrar nenhum tabu nem promover nenhuma revolução sexual,
mas apenas desempenhará o papel estereotipado que era, normalmente, esperado da mulher naquele
contexto social.Portanto, o cartaz é um veículo da materialização do desejo sexual por meio da
representação erótica dos atributos corpóreos femininos que são almejados pela sociedade
falocêntrica.
Analisaremos, agora, a feitura do cartaz, cuja autoria também é de Benício, do filme Garotos
virgens de Ipanema (1973).
Figura 2. Cartaz do filme Os Garotos Virgens de Ipanema, de Oswaldo de Oliveira.

Fonte: Cinemateca Brasileira. Disponível em: <http://www.cinemateca.gov.br/local/cartazes/CN_0851.jpg>. Acesso em: 3 fev. 2016.

No cartaz desse filme, o título, com caracteres em cor preta, aparece centralizado na parte
superior e apresenta um elemento simbólico: dois lírios brancos. As flores destacam a palavra

CORPOS
157

“virgem” e substituem “o pingo” da letra “i”. Elas parecem brotar da letra da palavra “virgem” e
quase se fundem à palavra “garotos”. Há, nitidamente, a tentativa de fusão do signo verbal e do não
verbal como se os dois fizessem parte de um só corpo “garotos virgens”.Nesse caso, a utilização de
um lírio branco reforça, simbolicamente, a pureza e a falta de experiência sexual dos protagonistas da
película.
Entretanto, ao mesmo tempo que simboliza pureza, os dois lírios podem também representar,
semioticamente, as tentações carnais e o erotismo. O lírio é uma flor considerada hermafrodita por
possuir os órgãos masculinos e femininos em sua estrutura. Nesse caso, a flor possui um pistilo
saliente que funciona como representação fálica e remete a sentidos relacionados tanto à sexualidade
quanto à eroticidade. No caso do cartaz do filme, a florsimboliza o próprio ato sexual por meio da
junção das genitálias feminina (representado pelo formato do conjunto de pétalas) e masculina
(representado pelo pistilo). Sendo assim, o pistilo representa o pênis dos garotos virgens que desejam
penetrar a genitália, a flor, a fim de perderem as suas virgindades.
As mulheres, além de possuírem formas femininas estereotipadas (vestem biquínis, têm
cabelos esvoaçantes, estão maquiadas com as bocas entreabertas e olhos fechados), são retratadas,
por meio do cartoon, sorrindo abertamente, como é comum nos cartazes da pornochanchada,
inclusive a que aparece mais ao fundo praticando topless.São mulheres brancas e, aparentemente,
mais velhas que os dois rapazes. Ao contrário deles, não apresentam índices ligados à pureza. Elas se
contrapõem aos rapazes, pois são representadas na posição social de sedutoras. Por isso, as bocas
das garotas apresentam-se abertas e delineadas por batom, o quesugere as suas disponibilidades
para a prática do sexo oral. Além disso, as formas femininas estão centralizadas e ocupam um espaço
bastante significativo do cartaz, visto que, como já dissemos, estão ali para atraírem os olhares
masculinos.
Há ainda a tentativa de provocar humor. Nesse casso, a situação cômica é constituída pela
cena em que um rapaz joga um líquido nas nádegas das mulheres.Se considerarmos que se trata de
água, ela pode estar sendo utilizada,possivelmente, para diminuir o estado de excitação do garoto, que
a utiliza para apagar “o seu fogo”, interromper a sua ereção, ou a para diminuir o desejo das
mulheres. A excitação do jovem está representada pela expressão de desejo (os olhos arregalados, a
língua acariciando os lábios, as sobrancelhas arqueadas). Porém, esse líquido pode ser interpretado
de outra maneira.Ele pode ser uma alusão a leite. Nesse caso, o líquido branco pode representar a
ejaculação do sêmen, resultado do orgasmo do rapaz.
A imagem da região pubiana do rapaz está escondida por trás das nádegas das garotas que se
encontram encostadas – tentativa de estimular e sugestionar a imaginação do leitor – a fim de
sugerir que ele se encontra, possivelmente, com o pênis intumescido. Já o segundo garoto possui uma
expressão facial assustada, provocada pela situação visualizada por ele. O seu olhar está direcionado
à região pubiana de uma das garotas. Todos esses elementos (título, imagens, cores), em conjunto,
estão a serviço, como já foi dito, da publicidade, antecipando a narração do filme, o que se confirmará,
ou não, no momento em que a película for vista.

CORPOS
158

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, podemos afirmar que o cartaz do filme é considerado um enunciado concreto,
como definiu Bakhtin, por estar carregado de acentos e entoações ideológicas e por ser oriundo de
sujeitos situados sócio-historicamente no mundo. Além disso, sua natureza híbrida, linguagem verbal e
não verbal, não o desqualifica como enunciado, porque esses dois planos estão devidamente
articulados a partir de um projeto gráfico e de um projeto discursivo. Portanto, não podem ser
analisados separadamente. Eles só podem ser compreendidos na enunciação, constituída por
discursos que circulam socialmente.
No caso dos cartazes analisados, os discursos construídos refletem e refratam um momento
significativo da cultura brasileira que precisa ser analisado. Dentre eles, sobressai-se o discurso
oficial que pregava a dominação dos fortes sobre os mais fracos, destacando-se, sobremaneira nos
enunciados analisados, a supremacia do homem sobre a mulher.Os cartazes estão impregnados desse
discurso conservador, representante de forças centrípetas, reforçando os papeis sociais
desempenhados por homens e mulheres. Esse discurso se cristalizou em torno do riso e do tema da
sexualidade e estava, principalmente, embasado nas relações de poder.
Sendo assim, a maioria das pornochanchadas refletia e refratava esse pensamento, visto que
suas narrativas tratavam, reiteradamente, de problemáticas relativas às relações sexuais,
reforçando sempre a visão de que estar no poder significava estar, literalmente, em cima do outro. De
acordo com esse discurso oficial, a manutenção das relações patriarcais era o modo de perpetuar a
organização tradicional da instituição família.
Entendemos, por fim, que o cinema produzido na década de setenta tem uma multiplicidade de
vozes que precisam ainda serem investigadas. Como o nosso estudo foi apenas um pequeno mergulho
nesse universo, novas lentes são necessárias para focalizarem outros matizes, outros recortes,
outros ângulos, que permeiam esse produto cultural. Além disso, pelo fato de romper a barreira do
tempo e não conseguir calar-se, a pornochanchada é merecedora de ser vista por outros olhares
para, assim, construirmos novos dizeres ainda não revelados sobre ela e, consequentemente,
compreendermos melhor a essência da sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

ABREU, N. C. Boca do lixo: cinema e classes populares. Campinas, SP: Unicamp, 2006.
_____. O olhar pornô: a apresentação do obsceno no cinema e no vídeo. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1996.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 12. ed.
São Paulo: Hucitec, 2006.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 5. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010a.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010c.

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159

BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos
Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
_____. O discurso na vida e o discurso na arte. In: DIETZSCH, M. J. (Org.). Espaços da linguagem na educação. São
Paulo: Humanitas, 1999, p. 11-39.
SALLES GOMES, P. M. Ela (a pornochanchada) dá o que eles gostam? Entrevista concedida a Maria Rita Kehl. Movimento.
São Paulo, n. 29, p. 20, 1976.

CORPOS
RESUMO
160
Entre os anos 30 e 40 do século passado, o México
viu surgir, das cinzas da revolução mexicana, uma
figura singular. Frida Kahlo é descrita, até hoje, pelo

AS DORES DE FRIDA: imaginário social – em seus quadros, em suas


fotografias – como uma mulher que marcou uma
época e que se tornou símbolo de lutas, e isso se
hipérboles do corpo em um autorretrato60 estende até a contemporaneidade. Criou-se, em
volta da pintora mexicana, várias imagens sociais
que eram delineadas no jogo dialógico entre suas
obras e seus interlocutores. Tomando como
referência essas assertivas, este trabalho tomou
como procedimento realizar uma análise de uma
tela de Frida, um autorretrato em que a pintora dá
OLIVEIRA, William Brenno dos Santos 61
visibilidade e representatividade ideológica ao seu
corpo físico. Nosso principal objetivo é analisar a
tela e considera-la como um enunciado socialmente
e axiologicamente valorado, na qual ela pinta, com
cores embevecidas pela dor física, uma imagem de
si que revela as respostas aos seus dilemas
1. FRIDA E SEU CORPO EM TEMA E TELA... pessoais e políticos. Representações que dialogam
com temáticas como o amor, a traição, a amizade, a
dor e seu estar no mundo. A nossa análise
encontra-se ancorada nas postulações teóricas da
O que faz com que eu experimente uma grande dor é possuir um Análise Dialógica do Discurso (ADD), que tem como
teórico-base o filósofo russo Mikhail Bakhtin (2003,
corpo. Se não tivesse corpo, que dor poderia experimentar? Lao 2009, 2013). Esta pesquisa insere-se na área da
Tsé Linguística Aplicada e possui um enfoque
qualitativo-interpretativista.

A
interrogação de Lao Tsé (2010, p.189) sugere que o corpo não Palavras-Chave: Frida Kahlo. Corpo. Cultura.

se basta a si mesmo, exige referentes diversos. Para ser de


verdade, tem que ver seu reflexo em algum lugar, tem que ouvir
seus diferentes ecos, tem que atingir seus limites e comprovar que
se move, tem que nomear e ser nomeado, tem que saber se imaginar, tem saber ser desejado. No
corpo doente, no corpo torcido, no corpo dilacerado a paixão se torna obsessão por necessidade, e
não há repouso. Para compensar a perda da normalidade, que se vive como dor, incapacidade ou
monstruosidade – ou a tríade em diferentes proporções -, o corpo exagera nas metáforas e nos
símbolos, e em seu desses pero recorre a prescrições de todo tipo: médicas, religiosas, charlatãs,
informais, seja o que for que o ajude a se reinventar em desgraça. Falamos aqui não de qualquer
corpo, mas do corpo de uma mulher dilacerada pela de uma carnificina ideológica e cultural, mas
também amorosa. O corpo de Frida Kahlo demanda restituição constante desde muito cedo. Habitado
por imaginação superabundante e inteligência viva, recebe golpes drásticos que o marcam por toda
vida, que o atassalham para sempre.
As coordenadas são muito conhecidas: nasceu em 1907 com espinha bífida; aparentemente,
poliomielite aos seis anos de idade; politraumatismo por acidente de trânsito aos dezoito, com ferida
penetrante na cavidade abdominal causada por uma barra de ferro e fraturas múltiplas no cotovelo,
coluna vertebral, pélvis, perna e pé direito; três abortos (um espontâneo, dois cirúrgicos); alcoolismo,

60
Maria da Penha Casado Alves: Professora Associada do departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
61Mestre em Estudos da Linguagem. Prof. Assistente do Departamento de Tecnologia da Informação da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Prof. do Ensino Básico da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Natal – RN. E-mail: william.oliveira@imd.ufrn.br

CORPOS
161

tabagismo, anorexia e uma morte, aos 47 anos (1954), sob suspeita de suicídio. E a dor, evidentemente,
as dores de Frida, em idas e vindas, emergem no centro de sua criação artística. O espaço mais
visível no qual Frida elabora e reelabora as fraturas de seu corpo é, claramente, sua pintura, que pode
ser descrita por inteiro como um grande autorretrato, um autorretrato total múltiplo, desaforado; ali
na tela estão, de maneira destacada: a coluna quebrada, a cama de hospital, a pélvis, o gesso e as
faixas, as agulhas, o colete de aço, as úlceras tróficas... Mas há também outros espaços nos quais
Frida pratica a recomposição de seu corpo enquanto a pintura converge: o espaço de uma sexualidade
inquieta e nada convencional, o espaço do diário epistolar, e, em especial, o espaço da consulta
médica, assim como, o espaço da cultura mexicana.
Se o espelho é o referente mais primário e o desejo – o olhar o do outro -, o mais complexo,
como afirma Bakhtin (2003)

Contemplar a mim mesmo no espelho é um caso inteiramente específico de visão da minha imagem
externa. Tudo indica que neste caso vemos a nós mesmos de forma imediata. Mas não é assim;
permanecemos dentro de nós mesmos e vemos apenas o nosso reflexo, que não pode tornar-se elemento
imediato da nossa visão e vivenciamento do mundo: vemos o reflexo de nossa imagem externa mas não a
nós mesmos em nossa imagem externa; a imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante e não
dentro do espelho; o espelho só pode fornecer o material para a auto-objetivação, e ademais um material
não genuíno. De fato, nossa situação diante do espelho sempre é meio falsa: como não dispomos de um
enfoque de nós mesmos de fora, também nesse caso nos compenetramos de um outro possível e
indefinido, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição axiológica em relação a nós mesmos; também
aqui tentamos vivificar e enformar a nós mesmos a partir do outro. Daí a expressão original e antinatural
de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na vida. (BAKHTIN, 2003, p. .30)

Há entre ambos inúmeras maneiras pelas quais o corpo obtém notícia de si e encontra sua
razão e seu sentido. Nas habilidades de brincadeira e do trabalho ou nas nimiedades do ócio; no
esporte e no espetáculo, praticados ou apenas assistidos; na roupa e nos detalhes infinitos do cuidado
pessoal; no que se come e no que se excreta; nas reviravoltas do sexo; na coleção de fotos que o
tempo vai juntando em uma caixa de sapatos; na literatura e na filosofia, na psicanálise, no
conhecimento científico, na arte.
Nosso próximo passo é mostrar as cores teóricas que deram um contorno dialógico ao nosso
trabalho.

2. RETOQUES TEÓRICOS SOB O CORPO FRIDIANO

Compreendemos que “O acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência,


sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos .” (BAKHTIN, 2003, p. 311).
Isso reforça a nossa inquietação discursiva de querer ouvir várias vozes em todos os momentos
desta pesquisa, selecionando aquelas que melhor servirem ao nosso propósito comunicativo. Nesse
sentido, subsidiamos nosso artigo nas considerações do Círculo de Bakhtin para a criação de um todo
integrado (arquitetônica) a respeito da tela em análise, em que poderemos compreender suas

CORPOS
162

práticas discursivas através de estudos nos quais as categorias serão, sempre, construídas em
diálogo com o nosso corpus.

2.1 Uma concepção dialógica de linguagem

Para situar o contexto desta pesquisa assim como o objeto, demarcaremos a concepção de
linguagem em que nos apoiamos. Trata-se de uma concepção sócio-histórica situada e construída nas
bases sociais do discurso, uma concepção dialógica de linguagem. Portanto, vemos a linguagem como
interação social e discursiva, “constitutivamente dialógica” que é construída pelo sujeito e que o
constrói.
Em “Para uma filosofia do Ato Responsável” (BAKHTIN, 2010) – livro que data do início da década
de vinte do século passado – a inquietação de Bakhtin com a linguagem aparece subordinada às suas
reflexões sobre ética e filosofia. Observamos que, nesse texto, o filósofo da linguagem já a compreende
como atividade, concreta, vinculada à dimensão da vida e entendida, portanto, como concreta. Ela
carrega expressividade, atitudes valorativas dos sujeitos em relação ao seu objeto discursivo.
Partindo disso, podemos afirmar que, baseados nessa perspectiva teórica, pensamos a
linguagem constituindo o mundo social e os sujeitos que vivem nesse mundo, em relação à outros
tantos sujeitos e em relação a si mesmo. Desse modo, foi preciso, para compreender essa difícil
relação (sujeito & mundo), nos remeter à discussão que VOLÓCHINOV (2017) fazem a respeito de
linguagem, infraestrutura e superestrutura; assim como as determinações ideológicas e as atitudes
responsivas desses sujeitos implicados em infraestruturas e em atividades da base econômica social.
Portanto, temos:

Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois socialmente organizados e, mesmo que não
haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual
pertence o locutor. [...] Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância
muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. [...] Ela constitui justamente o produto da
interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através
da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade.”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 73).

Dessa maneira, e vendo por esse prisma, pretendemos contornar, dar cores discursivas a
essa autora-criadora, com a finalidade de traçar o ethos desta mulher que foi martirizada pelas
traições de seu esposo, mulher do profano e levou uma vida regada pelas revoluções, artes e figuras
significativas da sociedade mexicana e mundial da época.
Por conseguinte, intentamos, aqui, problematizar a linguagem em um enunciado-tela
construído diante das relações sociais, históricas e culturais de Frida com seus outros. Sendo estes
circulantes das esferas discursivas do “mundo da vida” da própria autora, que se posiciona em defesa
de ideologias diversas.

CORPOS
163

Assim sendo, compreendemos que o ser humano é um ser de língua(gem). Essa característica,
construída social, cultural e historicamente, nos diferencia de outros animais. É por meio desse sistema
de signos que atuamos socialmente no “mundo da vida”, como bem afirma Bakhtin (2003).
Em outras palavras, essa teia dialógica – e aqui nos referimos à noção teórica de dialogismo
encontrada nas formulações da Análise Dialógica do Discurso (ADD) – permite-nos alcançar os
projetos discursivos que surgem diante da interação com um mundo que é semiotizado, carregado de
valores e ideologias. Tais projetos ganharam sentido naquilo que Bakhtin vai chamar de “enunciado”.
Diante disso, e parafraseando Bakhtin, compreendemos que esses enunciados são
corporificados em arcabouços culturais, através dos quais, pragmaticamente, bebemos, namoramos,
resenhamos a vida alheia, compramos, brigamos, rimos, opinamos, ou seja, atuamos e fazemos nossa
marca estilística circular por esferas sociais distintas. A esse “corpo enunciativo” Bakhtin nomeia
como “gênero do discurso”.
Portanto, recorremos à concepção bakhtiniana de gêneros discursivos como construção
sócio-histórica de sujeitos em interação, para melhor embasar nossa dissertação. Ao definir o
conceito, Bakhtin (2003, p. 261) enfatiza que: “o emprego da língua efetua-se em forma de
enunciados”, e tais enunciados estão se realizando o tempo todo nos diversos campos da atividade
humana, evidentemente, cada campo vai produzir seus “tipos relativamente estáveis de enunciados”
(Bakhtin, 2003, p. 262), que vão ser os gêneros do discurso conforme a concepção bakhtiniana.
Volóchinov (2017) também afirma que “o discurso escrito é de certa maneira parte integrante
de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma,
antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.” (p. 128). Sendo assim, é preciso que
haja, em qualquer atividade que envolva gênero do discurso do ponto de vista bakhtiniano, assim como
a exposição de ideias e posicionamentos de maneira satisfatória, atingindo o objetivo esperado pelo
autor e alcançando o seu leitor/interlocutor, um trabalho de elaboração permanente fazendo com que
o texto, no fim de todo processo se constitua em um ato de dizer que se dirige a um outro.
Nessa perspectiva, estamos compreendendo a carta pessoal como gênero discursivo, que surge
em uma relação de convívio cultural e pertence à esfera do convívio social da época que, em seu
processo de formação, utiliza e reelabora uma diversidade de gêneros primários, ou seja, gêneros mais
simples, para integrarem a sua composição. Nesse sentido, os gêneros que vão compor os secundários
(complexos) transformam-se, ganhando assim um caráter específico, como afirma Bakhtin (2003, p.
319): “perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios”.
Ainda no campo do discurso, Bakhtin (2003) nos chama atenção por colocar que o ser
humano é um ser do discurso, formado ideologicamente pelo discurso e se expressando em
“enunciados” que são nomeados também pelo filósofo russo como “gêneros discursivos”, assim
podemos afirmar que o gênero discursivo carta pessoal, neste momento, organiza e expressa o
discurso de Frida Kahlo de maneira tal que nos permite resgatar os seus posicionamentos axiológicos
e mapear, por meio desse estilo particular de escrever da autora, uma imagem que ela pinta dessa
vez com palavras.

CORPOS
164

2.2 O sujeito bakhtiniano

Conforme o exposto, interessa-nos a visão de sujeito que seja balizada construção social,
histórica e cultural, seguindo o Círculo de Bakhtin – atual ADD. Não se pode pensar em sujeito
desprendido de seu círculo social, desconsiderando sua história e as influências externas ao próprio
sujeito. Muito menos, aviltar a possibilidade de um sujeito acabado, pleno de sentido, sem espaços
para os inacabamentos que são inerentes aos seres de linguagem. O sujeito bakhtininano é inacabado.
Ele estará, sempre, no limiar do acabamento que o outro lhe dará. Em outras palavras, é o outro quem
me define, me acaba esteticamente, e esse acabamento pode se modificar ao passo que esse outro,
também, é modificado e acabado por seus interlocutores.
Acompanhada dessa noção de sujeito, associamos nossa dizer, também, ao conceito de
alteridade que, assim como a concepção anterior, é discutida ao longo de toda obra de Bakhtin.
Compreende-se, portanto, a alteridade como essa necessidade estética e, provavelmente, absoluta que
o ser de linguagem tem do outro. Nesse sentido, o único que é capaz de criar uma imagem valorada, dar
acabamento a esse sujeito é a relação eu-outro. Em outras palavras, só outro tem teria como atribuir
uma personalidade ao eu, sem esse outro essa imagem externa simplesmente não existe.
Corroborando com nossas inquietações, Bakhtin (2003, p. 34) afirma:

De fato, só no outro indivíduo me é dado experimentar de forma viva, estética (e eticamente),


convincente a finitude a finitude humana, a materialidade empírica limitada. O outro me é todo dado no
mundo exterior a mim como elemento deste, inteiramente, limitado em termos espaciais; em cada
momento dado eu vivencio nitidamente todos os limites dele, abranjo-o por inteiro com o olhar e posso
abarcá-lo todo com o tato; vejo a linha que lhe contorna a cabeça sobre o fundo do mundo exterior, e
todas as linhas do seu corpo que o limitam no mundo;[...] (p.34)

Diante disso, podemos afirmar que a maneira de vivenciamos, como pesquisadores, estudantes,
leitores, situados em um lugar específico, o eu de Frida kahlo se diferencia da maneira como
experenciamos o nosso próprio eu. Isso, em linhas gerais, reforça a ideia de alteridade que está
diretamente relacionada com grande metáfora bakhtiniana: a relação interacional entre um eu e um outro.

2.3 O corpo fridiano através das lentes bakhtinianas

Ao pensarmos dialogicamente sobre as representações do corpo cultural, inserido em uma


semiosfera específica da vida de Frida, precisamos da voz de Bakhtin sobre o corpo grotesco em
Rabelais. Em sua obra, “A Cultura Popular na idade média e no renascimento”, ele nos oferece uma
lente teórica confortável e condizente com o nossos objetivos, nesta pesquisa.
Em primeiro lugar, é importante olhar para o corpo fridiano, representado em seus
autorretratos, sem querer justificar seus exageros apenas pela “filiação” surrealista (classificação
que a própria Frida renegou). Ocorre que é importante considerar essas hipérboles visuais e
metafóricas, também, como um traço do grotesco nas representações do corpo, trazidas pela pintora

CORPOS
165

na tela em análise. No entanto, ao tratar do exagero, Bakhtin afirma: “O exagero (hiperbolização) é


efetivamente um dos sinais característicos do grotesco [...]; mas não é o mais importante.” (p. 268).
Assim sendo, como marca do grotesco, consideramos a presença de hipérboles, mas não podemos
reduzi-las a simples marcas.
O corpo grotesco, e defendemos que é ele que aparece na tela de Frida, que analisamos nesse
artigo, dialoga com o já dito e o exterior. Ele é uma composição em acabamento. Atravessado pelos
horrores das dores físicas e afetivas. Sobre isso, as ideias do círculo assenhoram-se, nesta aba, ao
nosso dizer para nos dar terreno sólido. Vejamos:

Como já sublinhamos várias vezes, o corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto
nem acabado: está sempre em estado construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo; além
disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele [...] (grifos do autor). (BAKHTIN, p. 277)

Nesse sentido, compreendemos o corpo, representado na tela “ columna rota”, como uma
refração axiológica das dores que a pintora carregava em seu seio identitário. Ele – o corpo –
absorve, literalmente e não literalmente, o mundo que constituía Frida Kahlo e era constituído por ela.

3. O CORPO REPRESENTADO PELAS HIPÉRBOLES DA DOR

“A coluna quebrada” (tradução livre) foi pintado logo após Frida ter passado por uma cirurgia
em sua coluna vertebral. A operação a deixou acamada e “trancada” em um espartilho metálico, o que
ajudou a aliviar a dor intensa e constante que tanto a atormentara.
Na pintura, ela é se autorretrata em pé, no meio de uma paisagem completamente árida,
rachada. Seu torso é envolto em cintos de metal, revestidos com tecido que fornecem pressão e
suporte para as costas. Eles impedem que o corpo de Frida entre em colapso, uma possibilidade que é
anunciada pela imagem que corre pelo meio de seu torso.
Na tela, aparece uma coluna jônica, completamente fraturada, no ponto de colapso e que
substituiu a coluna vertebral de Frida. A sua cabeça repousa sobre o capitel. O rosto banhado em
lágrimas é um dos sinais de dor, mas não somente física. Atitude que consideramos um mote da
própria representação simbólica da pintora sobre ela mesma. As unhas, perfurando seu corpo, são
mais um símbolo da dor física constante que ela enfrentou.
Os pregos, ao longo da coluna, marcam os danos causados pelo acidente em 1925, enquanto
os que seguem seu seio esquerdo referem-se sim a uma dor emocional, a seu sentimento de solidão e
a impossibilidade de ser mãe.
Enxergamos, na representação do corpo de Frida, nesse autorretrato, uma dose de hipérbole
que é simbólica do ponto de vista bakhtiniano. Frida utiliza esse elemento grotesco para demarcar a
intensidade das dores que vinham das mais variadas fontes (dor física, dor afetiva, indignação política,
entre outras). Sua vida fora marcada pelos dissabores que, ao passo que a deixavam mais frágil, a
tornavam mais forte, mais representativa de uma cultura e de um sopesar dialógico.

CORPOS
166

Figura 1. Columna rota de Frida Kahlo

Fonte: www.thinglink.com/scene

Os pregos, espalhados por vários pontos da tela (não apenas no corpo físico), indicam
múltiplas representações sígnicas.
Dessa maneira, podemos dizer que há uma correlação axiológica, acionada pela narrativa
judaico-cristã, instaurada no seio popular de qualquer civilização colonizada pelos vieses da igreja
católica. Dores são dialogicamente representadas nas figuras dos pregos. Relembrando os que
mantiveram à cruz o messias da lenda cristã.
Ora, esses mesmos ícones perfuram a carne do rosto, dos braços, dos seios, etc. Eles
também estão sobre a coluna jônica que, figurativamente, representa a coluna partida de Frida, no
entanto, posicionados sobre as fissuras do concreto, parecem mais dar sustentação à coluna da
pintora. Duplamente orientados, eles sustentam e causam dor. Frida, portanto, não pode se dar ao
luxo de livrar-se dessa dor. Ela terá de carregá-la para sempre.
Observando-se, com mais atenção, o prego que está sobre o seio esquerdo, vemos que este é
de um tamanho maior e está posicionado sobre o coração da pintora. Imagem que nos remete às dores
causadas pelas inúmeras decepções amorosas que seu esposo, homem que ela mais amava, provocou.
Saindo dos pregos e olhando para o tecido branco que envolve a parte de baixo do corpo –
lugar onde deveria aparecer a vagina - compreendemos que a pintora interdita o sexo e, ao mesmo
tempo, continua a dialogar com o mito bíblico (o manto que envolveu Jesus). No entanto, o
enquadramento que é dado, ou seja, o lugar em que Frida pinta esse tecido branco é muito
representativo. Ela esconde o seu sexo e, ao mesmo tempo, ensaia mais uma metáfora de dor
hiperbólica. O fato de não poder gerar filhos. O manto branco que envolveu o filho de deus na
narrativa cristã é o mesmo que a impede de ser mãe. Leva de si um de seus mais ávidos desejos.
Pra finalizar nossa análise, trazemos a voz do próprio Bakhtin (2010, p. 366), este
asseverando que assim como “o corpo, o sentido sabe gritar na roda. Num caso como em outro, a

CORPOS
167

imagem torna-se grotesca e ambivalente[...]”. Encontramos essa ambivalência na representação


simbólica do corpo fridiano em “Columna rota”.

DIZERES (IN)ACABADOS E A ESPERA DE OUTRAS VOZES

O diálogo com o corpo de Frida Kahlo, pintado na tela “Columna rota”, nos leva a conclusões
precisas, principalmente, quando colocamos as lentes da análise dialógica do discurso(ADD).
No entanto, no contexto mais amplo da ambivalência, ocorrem inversões que colocam o mundo
de Frida de pernas para o ar. Elas são inversões unilaterais, funcionando no interior de uma
hierarquia dominante (uma MULHER, pintora, DEFICIENTE FÍSICA...), capazes de se estabelecer na vida
cotidiana. O corpo em análise não é uma unidade fechada, completa; ele é e sempre será inacabado,
supera a si mesmo, transgride os seus próprios limites, resiste.
Esperamos, com essa introdutória discussão, provocar outros pares a contribuir com nossas
inquietações sobre a constituição sociocultural dessa mulher que representa um ícone da cultura
mexicana de uma determinada época.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. VIEIRA, F. V.
(Trad.) São Paulo: Editora Hucitec, 2010.
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro. Zahar, 2001.
CANCLINI, N. Culturas híbridas. São Paulo. Edusp, 2008.
HERRERA, Hayden. Frida: a biografia. MARQUES, R. (trad.) São Paulo: Globo, 2011.
KAHLO, F. Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo. ZAMORA, M (comp.), RIBEIRO, V (trad.). Rio de Janeiro: José
Olympio,1997.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. GRILO, S.; AMÉRICO, E.V.(Trad.) São Paulo: Editora 34, 2017.

CORPOS
RESUMO

. 168

Palavras-Chave: Frida Kahlo. Corpo. Cultura.

ENTRE O DEVER E O
DEVIR: questões de escrita na
perspectiva da filosofia do ato em três cenas
que se completam

PEREIRA JÚNIOR, Tovar Nelson 62

1. MONTANDO A CENA

A
ntes de mais nada, uma imagem: quando criança, contraía os dedos dos pés numa briga entre
carne e alvorada. Na hora do dever, à tarde – tinha mais ou menos uns 9 anos de idade – ia para
um quartinho nos fundos da casa, atrás da garagem, e me deitava rendido por um
reconhecimento tácito de que não teria força suficiente para fazer o dever de casa. Melhor dito,
NESSE DIA de que me recordo deitei na cama do quartinho meio fugido de minha mãe que me obrigava
a fazer o para casa. De outro modo, o dever de casa não vinha ao encontro de meu devir, de minha
existência aberta e irrepetível. Ali, tudo era fechamento.
Dever, essa palavra-carcaça (depois é que seria lavada pela torrente das contra-palavras).
Quando, no entanto, uma proposta – mão que tira pra dançar – que te desafia instala-se o
processo de conversão do dever em devir. Respondo com minha vida – seja aqui pensada como uma
proposta de escrita que fisga no acontecimento.
O convite pode ser exigente, que te meta medo, desafio até a medula, “não vou dar conta”, não
importa, mas você o abraçou como seu, sem querer, alguém passou-te o braço sobre os ombros, não
sabe pra onde vai, mas o caminho desconhecido te diz respeito. Há aí uma oportunidade, um parto
pode acontecer.
Vamos lá:

O ato deve encontrar um único plano unitário para refletir-se em ambas as direções, no seu sentido e
em seu existir; deve encontrar a unidade de uma responsabilidade bidirecional, seja em relação ao seu

62Mestre em Linguística Aplicada. Prof. Substituto do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal Fluminense, Campus Santo
Antônio de Pádua. E-mail: tvrniu@gmail.com

CORPOS
169

conteúdo (responsabilidade especial), seja em relação ao seu existir (responsabilidade moral), de modo
que a responsabilidade especial deve ser um momento incorporado de uma única e unitária
responsabilidade moral. Somente assim se pode superar a perniciosa separação e a mútua
impenetrabilidade entre cultura e vida. (BAKHTIN, 2010: 43-44)

Retenho isso: “Responsabilidade especial como momento que incorpora a unidade da


responsabilidade moral”.
Nesse caso, não sou desalojado de mim para responder com compostura aquilo que intuo ser
o adequado para que meu texto circule gerando rendimentos no mercado linguístico escolar.
A resposta fora do corpo enquanto aqui-agora aberto, ontologicamente vocacionado a ser
mais (FREIRE), funciona no encalço da repetibilidade, dos já-ditos que são perseguidos e valorados
enquanto tais. Tentando me instalar sem êxito no plano axiológico do outro-avaliador produzo um dizer
natimorto. “Nesse sentido, o interlocutor acaba não apenas por impor-se ao locutor, mas também por
ameaçar destruir o próprio papel de sujeito que este deveria ter numa relação intersubjetiva.”
(BRITTO, 2003:123)
Ou seja, posicionando a ideia de “relação intersubjetiva” na arquitetônica bakhtiniana (eu-
para-mim; eu-para-o-outro; outro-para-mim), vemos que o problema não é o deslocar-se na direção
do outro, a “saída de si”, mas o fato de a saída não contar com o momento de “volta a si”, tornando o
ato da escrita desvitalizado, falso. Sobral (2009:30) coloca a questão nos seguintes termos:

Bakhtin considera legítimo que o eu saia de si para aproximar-se do outro, e vice-versa, mas afirma
enfaticamente que essa saída deve ser sempre seguida de uma ‘volta a si’: aquele que se põe no lugar do
outro e não volta ao lugar que lhe pertence é infiel a si e ao outro! Porque cada sujeito ocupa um lugar
ímpar, peculiar, irrepetível, insubstituível no mundo.

Acho que foi Merleau-Ponty quem me disse a primeira vez que o tato é o sentido fundamental
humano. Nele nos sentimos enquanto peso específico na existência. E se o signo é também aquela
concretude na qual a atividade da consciência é possível, então a linguagem é corpo. Começamos a
sentir o peso das palavras...
Nesse sentido, o que é a responsabilidade especial como momento que incorpora (encorpa) a
unidade da responsabilidade moral? Que é a escrita autoral como momento que encorpa a unidade da
responsabilidade moral?
É o momento em que encontro um caminho, de dentro da vida irrepetível, que se alonga
criativamente sobre um suporte que não o meu corpo. E não é que o texto que se escreve
autoralmente simplesmente mude do suporte corpo para o suporte papel. Acontece é que ao me
debruçar sobre o papel crio, no acontecimento, com esse suporte e segundo a vocação linear da
escrita – dizer esticado no tempo – um corpo novo parido das linhas de força que forcejam em mim,
comigo, que não coincido com nada, mas não deixo de estar relacionado com tudo no fluxo.
Eis a escrita que, forçosamente, é corpo subversivo (na grande relação dialógica
contemporânea) em resposta a tudo aquilo que é fechamento, exigência de devolução de já-ditos.

CORPOS
170

Aqueles (não só sujeitos, mas instituições como concretizações de linhas de força necrófilas) que nos
exigem a devolução de seus dizeres não querem ler nosso testemunho escrito enquanto conteúdo,
mas averiguar se a natureza de nosso gesto é a de quem soube se conformar. Se nosso corpo é dócil
e mais: se somos docilmente competentes para perpetuar discursos averiguáveis por sistemas
avaliativos externos.
Ainda agora vejo uma mulher com toda pinta de gente viva, mas quando, dando uma volta,
contemplo-lhe o rosto, testemunho suas órbitas vazias. Intuo que não poderei conversar, interagir
com ela. Não porque ela não me veja, mas porque sinto/sei se trata de uma entidade vazia, carente de
posicionamento axiológico na vida. As redações que leio de meus alunos.
Redações (esse é o termo adequado nesse caso) também fruto, resposta não-responsiva na
própria cena pedagógica de que participo como educador. Momento, ato técnico em que não fui capaz,
acabou sendo de ser assim, de dar corpo à unidade de uma responsabilidade moral que não
aconteceu. Crise do ato ético contemporâneo.
Naquele dia, retorcido na cama no quarto atrás da garagem, não tinha a menor noção de que o
meu desastre se dava numa arquitetônica, que era um desastre arquitetônico, nem minha mãe, nem
minha professora, acho.
Não importa, de qualquer modo. As crianças também não tem álibi. A noção da arquitetônica,
nesse caso, não serve para transferir ao outro a responsabilidade de meu ato, isso é impossível,
simplesmente, mas para compreender que meu ato se dá em resposta ao outro e, nesse sentido,
posso compreendê-lo melhor. E até assumi-lo mais, inclusive.

2. CENAS EM TORNO DA ESCRITA

Uma aluna da quinta série definiu por escrito a árvore como uma flor gigante.

Nessa linguagem infantil, embora de modo desajeitado, expressa-se a individualidade do autor; a


linguagem ainda não está despersonalizada. O sucesso da missão de introduzir o aluno na língua viva e
criativa do povo exige, é claro, uma grande quantidade e diversidade de formas e métodos de trabalho.
(BAKHTIN, 2013:7)

Os alunos do seminário diocesano ensaiaram sonetos rimados na atividade de escrita


automática surrealista que lhes foi proposta para “soltar a mão”.
Utilizando a mesma dinâmica de escrita automática a que aludimos no tópico anterior,
também conhecida como “cura da mão mirrada”, um aluno perguntou: professor, o que é que eu tenho
que escrever? E o professor: qualquer porra, qualquer merda. Lua cheia no rosto do aluno. Um
terceiro desatou uma gargalhada.

CORPOS
171

(O palavrão, o corpo-palavrão na sala de aula como ato responsável, “responsível”, como quer
o Sobral. Qual o nome do palavrão na linguística? Não sei... A gargalhada como irrupção da vida.
Arquitetonicamente: a tentativa de resposta viva ao todo em que se tenta fazer educação, por parte
do educador, na forma de uma proposta de produção que gerasse abertura, que permitisse a escrita
na abertura. A linha de força do fechamento insistindo no aluno: “o que tenho que escrever?”. O
professor responde na base do palavrão porque precisando de corpo pra seguir sendo. Responde a
tudo ali em jogo. O aluno-outro, terceiro da história ri, explode em riso, esse riso dele que até hoje
brilha aqui).

Brilhar pra sempre,


Brilhar como um farol,
Brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar,
Que tudo mais vá pro inferno,
Este é o meu slogan
E o do sol.

(MAIAKOVSKI trad. Augusto de Campos, 2014:90)

Molécula

O sistema nervoso
maquinaria poética,
no poeta.
Poesia também se faz
com o corpo,
essa molécula.

Corpo opaco
que decompõe a
luz solar
em múltiplos cromatismos.

Dito de outro modo:


O corpo atravessado
pelo sol é
que cria o arco-íris.
(TVRJR)

3. O DEVER-DEVIR NO JOVEM DOSTOIÉVSKI

Na excelente biografia escrita por Joseph Frank obtemos algumas informações valiosas para
compreender o gênio criativo de Dostoiévski. Tais informações, no entanto, servem não só para

CORPOS
172

nossos interesses vorazes em torno da gênese da obra do prosador russo, mas podem ser também
bastante valiosas para compreendermos a teoria bakhtiniana.
No primeiro dos cinco tomos da biografia, dentre outras coisas, acompanhamos os bastidores
da escrita do primeiro romance, Gente Pobre (Pobre Gente, na tradução), o qual projetou Dostoiévski
como importante nome na cena literária russa do século XIX. Em certo momento, Frank compartilha
com o leitor um instigante trecho de uma das cartas de Dostoiévski ao irmão Mikhail, datada da
primavera de 1845, na qual relata aquilo a que se dedicava enquanto não estava escrevendo: “Leio.
Leio como um alucinado, e ler tem um estranho efeito sobre mim. Estou relendo alguns livros que já li
antes, e é como se uma nova força se infiltrasse dentro de mim. Penetro em tudo, compreendo o
significado exato de tudo, e é daí que retiro minha capacidade de criar.”
Em outra passagem, um interessante e sugestivo trecho da famosa “visão do Nievá”, em que o
autor, escrevendo vinte anos depois do ocorrido, produz um texto que estaria relacionado ao
momento em que concebe o enredo de Gente Pobre. Quando ele se anuncia mais salientemente, pelo
menos:
Estremeci, e foi como se meu coração se enchesse de uma golfada de sangue quente que, subitamente,
irrompia com uma sensação de poder até então desconhecida. Eu parecia compreender, naquele
instante, alguma coisa que até então apenas me excitava, mas que ainda não fora interpretada; era
como se meus olhos se abrissem para algo de novo, para um mundo completamente novo que eu
desconhecia e de que apenas tomava conhecimento por meio de certos rumores obscuros, por certos
sinais misteriosos. Senti que minha vida começava naquele exato minuto...

Momento em que a vida se dobra sobre si mesma; ato criativo em que o sujeito “apalpa as
intimidades do mundo”, o todo intuitivamente vislumbrado de seu próprio projeto literário, antes
vagamente aludido para si mesmo. Momento, no entanto, que se faz como resposta em uma época, a
muitos autores, à história estético-político-cultural do Ocidente e da Rússia, às intrincadas relações
familiares e afetivas gerais das e nas quais participava o autor.
A imagem apta a dar conta do ato vivido no corpo é essa: “foi como se meu coração se
enchesse de uma golfada de sangue quente que, subitamente, irrompia com uma sensação de poder
até então desconhecida.” Para além do puro conteúdo semântico do dito, vale testemunharmos a
força do dito em si na imagem plasticamente forjada segundo a experiência linguístico-perceptiva.
Linguagem que se faz como resposta que encorpa a unidade do ato responsável. Dever-devir.
Devir, respostas nas obras, na tensão arquitetônica do romance polifônico, em determinada
altura da trajetória do artista no mundo, com os outros, testemunho alteritário. Responsabilidade
técnica como momento da unidade da responsabilidade moral.
Essas imagens literárias criadas por Dostoiévski, desde nosso ponto de vista, dão carne àquilo
que Bakhtin defende em para uma filosofia do ato, por exemplo na passagem em que trata da
possibilidade de compreensão – não-conceitual, embora – do interior do ato, por parte daquele que
age responsavelmente, bem como da possibilidade de enunciação dessa experiência:

CORPOS
173

[...] e fica-lhe claro também o sentido real e o sentido que merece consideração por conta das relações
recíprocas entre ele, estas pessoas e estes objetos, - a verdade (pravda) de um determinado estado de
coisas – e seu dever inerente ao ato, não a uma lei abstrata do ato, mas sim o dever real, concreto,
condicionado pelo lugar que somente ele ocupa no contexto dado do evento. (BAKHTIN, 2012, p. 83)

Seria inexato crer que esta verdade concreta do ato [...] seja inefável, que, de qualquer modo só se
possa experimentá-la no momento em que se age, mas que não seja possível enunciá-la de maneira
clara e distinta. (BAKHTIN, 2012, p. 83)

4. EXERCÍCIO DE METALINGUAGEM COMO CONSIDERAÇÃO FINAL

Ao falar sobre a relação entre o dever e o devir, a partir de questões da escrita, pretendi, no
corpo – aconteceu de imanentemente ser assim – não só adejar em torno de uma temática, mas que
este mesmo dizer fosse em si um devir se fazendo texto. Entrego-o às contra-palavras.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos:
Pedro e João editores, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução, posfácio e notas Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2013.
FRANK, Joseph. Dostoiévski: as sementes da revolta. Trad. Vera Pereira. – 2 ed – São Paulo: Edusp, 2008.
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. Trad. Boris Schnaiderman, Augusto de Campos e Haroldo de Campos – São Paulo:
Perspectiva, 2014.
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 2009. Série Ideias sobre linguagem.

CORPOS
RESUMO
174

O trabalho exposto a seguir é uma experiência de

CACILDA interrelacionar saberes da antropologia, da história


e da filosofia da linguagem de Bakhtin a fim de
promover um texto que promova uma
corporificação a um objeto das primeiras
disciplinas, a travesti
RODRIGUES, Rajnia de Vito Nunes 63

RODRIGUES, Giulia de Vito Nunes 64

Palavras-Chave: Escrita dialógica. Corpo.


Sexualidade

INTRODUÇÃO

A
seguir, daremos início a um trabalho que teve como objetivo articular saberes sobre e com a
travesti brasileira da Bahia no formato de herói, ou melhor, heroína. Escolhemos-na a partir da
leitura de Don Kulick, que faz uma etnografia junto a travestis em Salvador. Na intenção de
pensar a partir de Bakhtin, temos em consideração conceitos como exotopia, contra-palavra,
responsividade de forma articulada às escritas de Don Kulick, um antropólogo que fez uma etnografia
com travestis prostitutas em Salvador, na Bahia. Baseados de forma livre em suas escrita, pensamos
as falas de Banana, a travesti, a fim de investir naquilo que não é dito pelas travestis no trabalho de
Kulick e então tensionarmos o seu método etnográfico. Essa articulação foi pensada para
exercitarmos um dos objetivos de Bakhtin, a não-mortificação do outro. Assim, queremos tornar autor
e personagem em dois personagens que conversam de forma equipotente. Desta forma, postos em
lugares iguais, podemos deixar que suas vozes se encontrem e que resultem num encontro entre dois,
onde a mesa é posta para verdades ambíguas e conflituosas.
Pretendemos encher as palavras, deslocá-las e tensioná-las a partir de uma personagem
que, em si, já é um campo de batalha. A travesti é escolhida aqui pela sua potencialidade de bagunçar
as categorias que tentamos imprimir na ciência quando pensamos em gênero, em sexualidade, em
corpo e em beleza. Ela nos permite perceber a ficção que nossos compartimentos metodológicos e
políticos promovem e aos quais levamos a sério ao ponto de estruturar nossas vidas para nós
mesmos e para os outros, assim nos e os mortificando igualmente.

BANANA

O chão emite barulho. Suas pedras não deixam que a vida seja lisa e fácil. Tem que ter cuidado
por onde pisa. São pedras de sabe-se lá quando. Já apoiava o chão das primeiras putas brasileiras e

63 Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal
Fluminense. Assistente de pesquisa e comunicação no Observatório de Sexualidade e Política (ABIA).
64 Graduada em Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do Grupo Atos/UFF. Formada em

montagem e edição de filme pela Escola de Audiovisual Darcy Ribeiro.

CORPOS
175

dos primeiros colonos filhos da puta. Tem sangue, tem suor, tem gozo e teve sonho nos remendos
dessas pedras. Não era como se pensava65. A gente adocicou as palavras, a gente que botou tempero
nesse angu, a gente que deu pros portugueses, a gente que trabalhou enquanto esses brancos
coçavam o saco, engordavam e nos batiam. Não teve nada de cordial. Aqui em Salvador e vida não é
fácil não. Nunca foi. Mas se aquele homem acertou em alguma coisa foi na força. A gente cria o tempo
todo. Mas a gente cansa também. Se antes a gente podia ser mulher de um homem só, ganhar coisas
finas, agora a gente tem que pagar um dobrado66. É óbvio que o povo fala. Mas não são eles que
pagam as minhas contas. Agora, a gente tem que pagar pro seu Luiz por esse apartamento de merda.
Os crackudos pagam menos e moram no andar de baixo, amontoados lá quase67. Talvez para se
aquecerem ou se protegerem. As meninas moram aqui no segundo andar. Não tem luxo não, mas vem
dar uma olhada no nosso cantinho pra tu ver se não é gostosinho. No meu quarto, tem uma janela bem
de frente pra porta. Do lado de lá só vejo a parede do vizinho, mas pelo menos entra luz. Adoro brincar
com ela na cama com um cliente. Deixar ela espelhar na minha pele escura. Fico linda. Eles ficam
loucos. Meu peito lá no pescoço, metade prateada, metade misteriosa. Gostosa. Você tem um corpo
que muita mulher não tem. Mete logo senão vai murchar, eu falo pra eles. Aí que eu fico doida e meu
pau fica logo duro. O Renatinho quer que eu fale que eu gosto de ser putinha. Eu gosto mesmo. Mas
não é por causa de você não, querido. Gosto de dar. Gosto de sexo. Quem não gosta é mulher casada
há 20 anos que não goza há 30. E como eu disse, eu não sou mulher. Ou sou?

DON E BANANA

Preciso me montar, daqui a pouco os homens chegam. Um cigarrinho antes porque nóis não é
santa. Já passei creme e óleo nesse cabelo mas hoje ele não tá legal. Banana joga o cabelo pra lado,
pro outro, parte no meio. Um olhar cansado e irritado. Então se aproxima bem do espelho. Olha essa
sobrancelha e esse pelo aqui no buço. Peraí. Cadê aquela pinça? Ela olha para um lado, olha para o
outro, enquanto seu cabelo voa e estala cortando o ar. Será que uma dessas bichas pegou a minha
pinça? Pronto. Ah, pronto. Estica-se para alcançar a pinça que estava no pote junto a mil outros
objetos de pintura. Se uma coisa que as travestis têm, é maquiagem. Nós, putas, sabemos nos cuidar,

3
Gilberto Freyre ainda é uma das grandes referências para uma teoria da formação da "sociedade brasileira". Em seu livro "Casa-grande e
senzala", de 2006, ele argumenta que a formação brasileira se deu no encontro fraternal entre as culturas africanas e portuguesa, que
estabeleceu o ethos brasileiro e a família patriarcal brasileira. Ele argumentava que a influência africana foi essencial para a característica
cordial, amigueira e doce presente nas falas, na comida, nos carinhos com que os filhos eram tratados e com que os homens eram cuidados.
Apesar do protagonismo negro na formação de seu argumento, ele negligenciou os conflitos que aconteciam nas trocas diárias, exaltando a
aparente cordialidade com que escravos negociavam por sua sobrevivência e manutenção da sua família ao longo do tempo. (Para mais
informações sobre a crítica a Freyre, ver Robert Slenes (2011) e Mariza Corrêa (1994).)
66 Ainda segundo Freyre, a prostitutas em Salvador conseguiam se estabelecer e tinham mais riqueza do que as próprias senhoras brancas.

Em sua pesquisa, ele coleta evidências de que muitas mulheres escravas conquistavam a sua independência ao se relacionarem com um
senhor de engenho que as enchiam de joias preciosas, imóveis etc. Além disso, elas serem as mulheres com quem os portugueses saíam a
eventos sociais, enquanto a esposa ficava em casa e passava a sua herança ao marido.
67 A partir daqui, utilizamos como referência e adaptamos livremente o trabalho etnográfico de Don Kulick, "Travesti: prostituição, sexo, gênero

e cultura no Brasil", de 2013.

CORPOS
176

visse? Passei hidratante, creme de pentear, óleo pra puxar o brilho, perfume estrategicamente no
cu... Então ela pisca. Volta-se ao espelho. Fixa-se e tira alguns pêlos. Afasta-se e se olha. Fixada e
fumando. Então seus olhos correm pro lado, avista alguma coisa e se estica. Pega o lápis de olho e
começa a desenhar a sobrancelha. Faz um desenho bem arqueado. O que ela vê quando se olha no
espelho? Segundo Butler, não importa o que ela vê, o conceito de gênero ou de sexo, são conceitos
construídos e legitimados historicamente e que vão estruturar a forma como a sociedade se organiza,
se divide e se hierarquiza. Nesse caso, as travestis não estariam em lugar nenhum. Na verdade
estariam à margem da margem. Seriam o perfeito exemplo da construção do sexo como conceito e
categoria fundamental que pode ser descontruído criticamente. Pensando a partir de Bourdieu, essas
seriam pessoas que conseguiriam sobrepor à estrutura estruturada, a sua própria agência e
estrutura.
Ela leva a mão a cabeça. Do que você tá falando, gringo? A vida acontece e você falando
essas palavras difíceis aí? É simples. A gente faz o que quer. Eu queria dar, dei. Queria virar
prostituta, virei. Comecei porque assim ganho mais dinheiro do que na roça. Oxi, que trabalho de
corno, visse? O dia inteiro embaixo do sol a pino. Meu pai ainda me batia quando me pegava no mato
com Zezinho. Minha mãe falava que eu iria pro inferno. Aqui na cidade, pelo menos temos o elo do
silicone. Nós, travas, apesar do nosso falar forte, da gente brigar muito, da gente competir por
marido, por boyzinho, o elo do silicone nos une. A gente se cuida, se protege, somos irmãs e ainda
botamos silicone uma na outra. Um dia te chamo para uma sessão. Tá quase na hora de repor o meu.
A tampa de super bonder que tapa os furos das injeções de silicone saíram e às vezes sai um pouco. É
incrível que as travestis suportem ritos que as fazem, em caráter permanente, aderir a essa vida. Ai,
Don, a gente não escolhe, ela que escolhe a gente. Eu prefiro seeeeer essa metamorfose ambulante.
Só por que dói e é "permanente"? Tanta gente faz coisa pior. Você tem uma tatuagem que eu já vi. Tem
gente doida que se pendura em ganchos. Agora você quer vir pra cima de mim por conta de um
pouquinho de silicone? Ser mulher é sofrer.E os homens que pagam pra comer a gente? Eles são o
quê? São viados? E os que pedem pra gente comer? Ser mulher é difícil. Mas então você se categoriza
como mulher? Interessante. A nativa utiliza a categoria mulher, quando se utiliza de ritos e
performances para se assemelhar a um ideal feminino, acoplando dispositivos que a fazem transitar
entre sexos. Lá vem você de novo. Deixa de ser literal. É jeito de s expressar. Mas a gente é mulher
também. Como você também é uma das meninas. Você não adora dar esse cu e desmunhecar? Eu já te
vi, bicha.Voltemos à etnografia. Bicha!
Não se preocupe não. Ela funciona. É assim que eu me destaco e chamo atenção dos
boyzinhos. Aprendi esse truque quando trabalhava no cinema. Naquela escuridão toda, só assim pros
homens distinguirem a gente. Maquiagem pronta, cabelo pronto, agora falta o quê? Ah, claro. Banana
atravessa o pequeno quarto até a cômoda e abre uma das gavetas. Arqueia mais as sobrancelhas,
enquanto as pontas da boca giram levemente para baixo, como que puxando todo o resto. Nenhuma
calcinha limpa? Agora mais rápido, músculos mais rígidos, passos mais fortes, sopros mais firmes, vai
até uma caixa e tira uma calcinha preta de renda. Volta ao espelho desenregecida. Coloca a calcinha

CORPOS
177

pelos pés, um depois o outro, alcançando-os com os braços longos mas pára nos joelhos. Levanta o
tronco. Olha-se. Olha o rosto e logo desvia o olhar ao reflexo da calcinha. Então se agacha com as
mãos nos joelhos e com as pernas afastadas para não deixar a peça escorregar. Nessa posição, gira a
escápula e desliza o braço da frente para as costas de baixo para cima, para então descer de novo até
a bunda. Entre as nádegas, puxa o escroto e o pênis. Aff, fala direito, Don. É a porra do pau. Com os
peitos, a gente chama atenção. Tem homi que fala que nós somos mulher com pau. Tem outros que
falam que nós somos homem com peito. Deixa eles acharem o que quiserem. Nasci Bentinho. Mas
Banana é meu nome artístico. Eu uso os dois. Isso te confunde? Puxa-os para trás enquanto estica a
calcinha na frente e pressiona com força o pau contra o períneo e a calcinha o segura lá. Ela alisa de
novo a calcinha, dessa vez com as duas mãos e então dá um tapa leve na parte da frente. Agora
sorrindo, já com os cantos de volta para o seu movimento direção acima e mostrando os dentes.
Minha buceta. Depois então anda até o altar de diversos santos que tem. Em uma pequena prateleira,
Banana deixa velas, pedras, ervas, um copo d'água, a imagem de Nossa Senhora, de Iemanjá, de Iansã.
Ela recolhe um incenso que já estava aceso e enchia o quarto de uma fumaça acinzentada que levava
para fora, por baixo da porta espremida, a limpeza promovida pelos santos. Banana então pegou o
incenso feito de folhas e rodopiou sua mão, da cabeça aos pés, formando anéis de fumaça, anéis de
proteção. Depois de protegida, vestiu o vestido e em seu decote, por baixo do peito, escondeu uma
pequena tesoura de unha afiada. É assim que a gente pega os manés. Dar é arte, roubar faz parte.
Quando o sol já dera lugar à escuridão límpida e taciturna da noite, quando sua irritação
dominara o céu, as luzes da cidade se acendiam no Pelourinho. Um carro para na frente de Banana,
com as luzes apagadas no interior. Mas vê-se o brilho duplo das lentes dos óculos de alguém e um
ponto avermelhado em brasa, que acompanhava a fumaça do cigarro.
Ei, você! Pode me olhar. Me olha que eu gosto. Você acha que eu sou estranha? Ah, uma
mulher estranha. Pois é. Aí que tá. Eu não sou mulher. E tenho peito sim. Como não é meu? Eu trabalhei
muito e paguei caro por eles. Sofri muito por eles também, cê num sabe como dói. Às vezes, a gente
fica toda esburacada, quando dá errado, quando a gente coloca muito de uma vez só. Mas vale a pena,
hein. Muito melhor do que muitos que você vê por aí. A gravidade não é cafetão desse corpo aqui. Que
tal essas pernas aqui? Tá bom pra você, mon amour? Não adianta sair de fininho. Cê me olhou, agora
vem cá. Abaixa esse vidro e olha de frente, num olha de rabo de olho não. Esses pés e essas mãos são
grandes mesmo. Maiores que os seus, inclusive. Num vou nem falar nada. Nem preciso lembrar o
ditado. Ah, não fica sem graça. Você tá me mapeando toda, eu tô te respondendo. Quer saber, adoro
meus pés grandão. Eu piso firme. Toda me querendo. E todos me querendo. To te dizendo, todos me
querem. Querem ser meus amigos, ou ter meu corpo ou comungar com meu corpo. Eu sei que você tá
me querendo também. Pode querer. É de todo mundo. Sou uma mulher com pau. Sou um homem com
peito. Sou uma sereia. Sou uma trava e uma puta. Sou um deserto, sem começo ou fim.

CORPOS
178

BANANA

Ele é que nem todos os outros. Pode ser até bicha e entender que a gente goste de homem. Mas
eu vejo como ele nos olha. Eu me arrumando e ele só me observando. Uma amiga me ajudaria, me
daria opinião, ou pelo menos me elogiaria. Ele só fica ali, de longe, com olhos profundos, escrevendo
naquele danado caderno. Quando vamos caçar os clientes é a mesma coisa. Todas nós de um lado e
ele do outro, para não ser confundido. Deus que me livre, né, ser confundido de gringo estudioso por
puta bahiana. Mas a cor da pele já nos distancia mesmo quando estamos perto. Essa pele preta aqui
sabe muito mais que essa branca. Ser pobre e preto tem seu valor. A gente de novinho já aprende as
coisas da vida. A gente não fica se enganando com teorias que criam ficções sobre a realidade. A vida
é a batida de um coração. É o sangue que pulsa quando a gente tá apaixonada, quando a gente tá cheia
de tesão, quando a gente conquista, quando a gente compra aquela saia, quando a gente consegue
comprar a televisão pra nossa mãe, quando a gente é feliz. A gente tem os santos dos nossos lados. A
gente canta e dança e sorri e não envelhece que nem esse pessoal. Pra quê eu quero saber de
gênero? Eu quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci e poder me orgulhar e ter
a consciência que o pobre tem seu lugar. Ou deixar de ser pobre, pode ser bom também.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
HUCITEC EDITORA, 2013.
_____. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
_____. Para uma Filosofia do Ato Responsável. São Paulo: Pedro & João editores, 2012.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São
Paulo: Global, 2006.
KULICK, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013.

CORPOS
RESUMO

Dentre os diversos temas179 da literatura


contemporânea tem recebido destaque, por
exemplo, a questão de gênero. Então, para estudar

UMA LEITURA DA OBRA O


esta problemática atual tomamos a obra da
literatura infanto juvenil O menino de vestido (2014)
do autor inglês David Wallians. A narrativa se centra
em Dennis, personagem central, e sua relação com

MENINO DE VESTIDO o pai e amizade com uma colega de escola, Lisa. O


que justifica nossa escolha por este tema é o fato
de este ser de extrema relevância, sobretudo para
os profissionais que atuam na área da educação,
tendo em vista a constante violência física e
simbólica que muitas pessoas sofrem quando seus
corpos são afetados pela questão de gênero. Com a
leitura e análise da obra, observamos que, apesar
SANDIM, Rosiane Gonçalves dos Santos 68
de viver em um cronotopo (espaço-tempo)
dominado por uma ideologia hegemônica pautada
CAMARGOS, Moacir Lopes de 69
pela heteronormatividade, Dennis brinca com a
noção de gênero ao se vestir de menina e passar
por uma aluna francesa na sala de aula de sua
escola. Ao final da narrativa, o leitor percebe que
ele segue um novo caminho para buscar sua
autonomia nos espaços sociais por onde circula:
PRIMEIRAS PALAVRAS casa, escola, bairro. Enfim, quando Dennis vive suas
aventuras como diferente (garota), ele compreende
as relações entre cultura, gênero e identidade e sua
Meu corpo tem fomes respondibilidade ética perante os outros

Proibidas Palavras-Chave: Gênero. Literatura. Identidade


Tem fomes comprometidas
Fomes em tenra idade
Terras desimpedidas
[...]
Meu corpo é fora da lei
Caderno de poesia
Teima em ser transgressor
Queima na própria folia

D
este excerto de um poema do poeta Charles Silva podemos pensar as diferentes narrativas que
descrevem os corpos e os padrões (vestimentas, por exemplo) que nos são impostas antes
mesmo de nascermos – menino azul, menina rosa. Como somos acostumados a regras
heternormativas, o título do livro pode remeter a muitos leitores a ideias de riso, pois um menino de
vestido sugere de imediato que o personagem é gay, é afeminado. Ou seja, ainda que seja um menino,
ele já recebe toda a carga negativa de ser efeminado, o que o desvaloriza como sujeito e também
revela o lado negativo e frágil que muitos comentam quando o tema feminino vem à tona. E, em
tempos de uma política que seja democrática, o professor que ler/recomendar este livro pode ser

68
Graduanda em Letras Português e Literaturas na Universidade Federal do Pampa, Campus Bagé, RS.
69Doutor em Linguística. Prof. Associado de Língua e literatura espanhola/francesa na Universidade Federal do Pampa, Campus Bagé, RS. E-
mail: lopesdecamargos@gmail.com

CORPOS
180

demitido, ter o livro confiscado, queimado, dentre outras coisas absurdas que vemos a cada dia como
notícia em momentos fragilizados de desgoverno.
Ao tentarmos esconder de nós mesmos, nossos sentimentos, por culpa ou até mesmo
vergonha, criamos em nosso interior o que a psicologia denomina de conflito interno. Vivemos, muitas
vezes, reféns de nós mesmos, sufocando emoções e sensações que poderiam ser plenamente
vivenciadas, mas pelo medo dos pré-conceitos, rótulos ou estereótipos que os outros nos nomeiam e
nos violentam, acabamos não experenciando momentos que poderiam ser de muita aprendizagem. É
nessa realidade que vive Dennis, personagem principal da obra O menino de vestido do autor inglês
David Wallians.
Abandonado pela mãe aos nove anos, Dennis, com 12 anos, vive com o que sobrou de sua
família, ou seja, seu pai e seu irmão. O pai, recluso, pouco ou nada afetuoso e depressivo que após ser
abandonado juntamente com os filhos, criou uma série de regras de convívio que afetam diretamente
Dennis, pois na casa é extremamente proibido qualquer manifestação que remeta as lembranças da
mãe que os abandonou ou demonstrações de carinho, principalmente abraços. Com o irmão Dennis
mantém uma relação típica de adolescentes, com brigas frequentes. Mesmo assim, nota-se, por parte
do autor, algum cuidado para demonstrar que os três se esforçavam bastante para viverem de
maneira semelhante a uma típica família.
Dennis encontra meios para fugir dessa triste realidade. Ao se dedicar ao futebol, ele passa a
ser o principal jogador de seu time na escola. Mas, ele também aprecia os vestidos da revista Vogue,
especializada em moda feminina. A narrativa mostra que esta paixão do garoto por moda é uma
característica bastante acentuada em sua personalidade, o que contrasta com sua inocência ainda
não maculada pelo machismo pseudomoralista. Ele acha mais divertido os vestidos e trajes femininos
do que as roupas sem graça feitas para os homens, principalmente um vestido amarelo florido que
estampa a capa de uma revista e que se assemelha muito com um que sua mãe usa numa foto meio
chamuscada que ele esconde, sendo esta a única lembrança que tem dela.
Sua vida tem uma reviravolta quando conhece Lisa, a menina tipicamente popular na escola
devido a sua beleza. Dennis descobre que ela nutre as mesmas paixões que ele: a moda e as revistas
Vogue! O fruto dessa amizade são as frequentes visitas que Dennis faz à Lisa. Os dois passam horas
apreciando e folheando a coleção de revistas. É justamente numa dessas visitas que Lisa sugere que
Dennis vista-se como menina, o que acaba revelando um processo de alteridade pois ele acaba
descobrindo seu “eu”, nele mesmo, sendo que agora ele pode ser livre para fazer tudo aquilo que suas
regras de convívio não permitem, sem ser julgado ou apontado, ousando até mesmo ir para a escola
passando-se por uma aluna francesa de intercâmbio.
Sua aventura de salto alto, desdobra-se em situações divertidas, pois consegue ser cortejado
por um colega, passa desapercebido aos olhares de seu melhor amigo e ainda assiste uma aula de
francês, disfarçado de aluna estrangeira, sem sequer saber uma frase completa no idioma. Seu
“outro eu/ela” acaba sendo descoberto quando sua paixão por futebol fala mais alto que sua paixão
por vestidos, o que acarreta sua expulsão da escola e uma constrangedora visita à sala do diretor que

CORPOS
181

o humilha impiedosamente por sua atitude impensada e nada usual, pois onde já se viu, um menino
vestido com roupas de menina em uma instituição respeitosa como uma escola?
Nesse aspecto o autor foi bastante feliz, pois ao demonstrar que a sociedade reprime quem
expõe ou expressa seus sentimentos (de forma feminina), mesmo que de modo inocente e
despretensioso, também abre o questionamento sobre as regras/condutas impostas, afinal de contas,
até onde sabemos, nenhuma lei determina que homens não possam usar vestidos. Mesmo assim o
escritor comete um deslize quase homofóbico ao afirmar que “andar de salto alto é difícil, mas que ele
nunca andou”, como se dissesse “homens não usam salto alto”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um aspecto na obra que aparentemente deixou uma lacuna foi o seu final que pareceu ter sido
abreviado, inclusive a relação de Dennis com seu pai que de conturbada, de uma hora para outra,
passa a ser saudável e afetuosa, sem dar maiores explicações, demonstrando que os sentimentos
podem aflorar e se modificar sem o embasamento de palavras bonitas.
Mas o livro tem inúmeras mensagens proveitosas, como por exemplo o fato de que um menino,
ou um homem, usar um vestido ou qualquer outra peça do vestuário feminino, não determina sua
orientação sexual, ou estilo de vida, pois se o fazem pode ser pelo desejo de se livrarem das amarras
dos rótulos e imposições sociais, de uma existência infeliz e opressora ou então até mesmo para
receber um pouco de atenção.
A obra traz ainda uma verdadeira demonstração de amizade, que supera qualquer
adversidade, pois não é o que vestimos que determina quem somos ou o quanto amamos e somos
amados pelas pessoas que nos são próximas, mas sim o sentimento de confiança e amor fraterno
recíproco.
Finalmente, um ponto bem abordado pelo autor foram as humilhantes críticas e ofensas que o
diretor da escola faz ao personagem, sendo que o mesmo não teria condição nenhuma de fazê-las,
afinal de contas nossas escolhas, desejos e fetiches, nem sempre são tão diferentes das convenções
que hipocritamente abominamos.
Recheado de gravuras, o livro nos presenteia a cada página lida, principalmente com a
reflexão sobre a dor, os desejos e os sentimentos encarcerados e reprimidos dentro de cada pessoa,
que a sociedade insiste em recriminar quando são expostos. E quando o assunto tem nosso corpo
como ponto de atenção a moralidade nos policia, uma vez que os corpos devem seguir as normas e
padrões sociais para meninos e meninas, mas quem tem coragem carnavaliza corpos, desvia das
normas e renasce, mostrando que a ideologia cotidiana tem seu dia de festa, de renovação, de fuga da
lei.

CORPOS
182

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2015.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
SILVA, C. Denúncias do corpo. Florianópolis, Editora UFSC, 2011.
WALLIANS, David. O menino de vestido. Tradução de São Paulo: Ed. Intrínseca, 2014. 192 p.

CORPOS
RESUMO

Este artigo se volta à análise 183


discusiva do corpo
semiotizado no curta metragem francês La Majorité
Opprimée (2010), dirigido por Eleonore Pourriat. A

O CORPO VALORADO EM
obra mencionada explora as relações entre os
gêneros masculino e feminino a partir da inversão
das performances de gêneros na sociedade

LA MAJORITÉ OPPRIMÉE:
contemporânea e semiotiza, por meio de sua
constituição estética, os corpos feminino e
masculino e os embates ideológicos que os
demarcam no mundo da vida. A partir do arcabouço
semioses e embates ideológicos teórico-metodológico do Círculo de Bakhtin e o
conceito de signo ideológico, há como objetivo
analisar como se inscrevem tais embates
ideológicos nos corpos representados na obra. As
discussões realizadas neste estudo apontam que o
corpo semiotizado é valorado culturalmente a
partir das relações entre sujeitos no horizonte
SANTANA, Bárbara Melissa70 ideológico do sistema patriarcal

Palavras-Chave: La Majorité Opprimée. Signo


ideológico. Corpo

INTRODUÇÃO

O
presente artigo tem como objetivo analisar a semiose dos corpos feminino e masculino em La
Majorité Opprimée71, curta metragem francês, dirigido por Eleonore Pourriat e lançado na rede
social Youtube em 2011. O enredo da obra se dá em torno de um dia na vida do protagonista que
vive em uma sociedade às avessas em que as relações de gênero são invertidas e os sentidos de
machismo e feminismo são deslocados, respectivamente, para femismo e masculinismo. Na inversão,
papéis de gênero masculinos são vividos por mulheres e papéis de gênero feminino são vividos por
homens. Na narrativa o protagonista passa por episódios de assédio, estupro, culpabilização da
mulher violada e de censura ao corpo da mulher.
La Majorité Opprimée como obra artística semiotiza valores quando traz para o texto o que há
na vida e consequentemente, semiotiza os conflitos ideológicos inerentes ao corpo físico da vida.
Vemos os corpos representados na obra como elementos valorados ideologicamente, pois pertencem
ao domínio da arte e são parte do enredo do curta metragem. A dicotomia entre os corpos
representados em La Majorité Opprimé semiotiza os conflitos sociais vivenciados pelas mulheres em
relação a seus corpos no sistema patriarcal. Os conflitos sociais em embate no signo ideológico
transcendem na obra a partir da semiotização no curta metragem, dado que o signo ideológico
refrata e reflete esses conflitos da vida para a obra e da obra para a vida. Para tratarmos dessa
representação de valores na obra, tomamos como fio condutor as discussões do Círculo sobre o
signo ideológico e sua dialogicidade dada por meio da linguagem.
Esse embate de ideologias refletidas e refratadas no corpo semiotizado é o cerne da reflexão
aqui proposta, que se estrutura a seguir em um tópico de discussão teórica em são apresentados

70 Mestre e Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa. Membro do Grupo de Estudos Discursivos. E-mail:
barbaramelissasantana@gmail.com
71
Link de acesso ao vídeo mencionado https://www.youtube.com/watch?v=bHJqNpJ8xAQ&t=2s

CORPOS
184

pontos da teoria bakhtiniana utilizados na análise, um tópico seguinte de discussão analítica em que
são trazidos para o texto recortes de cena como objeto de análise articulados com a teoria do Círculo
de Bakhtin. Ao final, a discussão é concluída a partir do diálogo entre as demais partes do texto.

1. IDEOLOGIAS EM CONFRONTO

O signo ideológico é constituído mediante contratos sociais, assim como a reverberação de


determinados discursos ocorre de acordo com as ideologias dominantes e as infraestruturas sociais.
As manifestações ideológicas que sinalizam tentativas de enquadramento e “cristalização” das
expressões de gênero feminina e masculina são provenientes da infra e da superestrutura. Essas
manifestações se materializam na língua e emanam na fala, no nível individual da língua, em que
ocorre o embate com as ideologias das super e infraestrutura. Em decorrência dessa apropriação ou
discordância de ideologias no nível da língua e da potencialidade ideológica do signo, as ideologias são
analisadas nesse nível. Portanto, se torna impossível abordar ideologias sem se apropriar e analisar a
língua em uso pelos falantes, ou seja, o ato enunciativo.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Voloshinov evidencia “o problema da relação recíproca
entre a infra-estrutura e as superestruturas” (BAKHTIN (Voloshinov), 1997, pág. 41), em que se discute
a relação de diálogo existente entre as ideologias e como essas ideologias se posicionam em
determinadas esferas sociais ao mesmo tempo que influenciam outras esferas. A questão central é
compreender “como a realidade (a infra-estrutura) determina o signo, como o signo reflete e refrata
a realidade em transformação.” (BAKHTIN (Voloshinov), 1997, p. 41). A análise desse nível direciona a
palavra enquanto signo ideológico e como material semiótico que infere essa natureza semiotizada no
enunciado e consequentemente na vida. A vida está, portanto, semiotizada no enunciado, em razão das
valorações da palavra e do discurso. A importância dessa natureza do signo decorre da valoração
social, ideológica e cultural que a ele se vinculam:

Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo produto natural, tecnológico ou
de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias
particularidades. Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e
refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista
específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro,
falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são
mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que
é ideológico possui um valor semiótico. (BAKHTIN (Voloshinov), 1997, p. 32)

Nesse sentido, além da natureza semiótica da palavra, outro aspecto relevante nessa
problemática é a flexibilidade e a pluralidade da palavra e do signo. Flexibilidade e pluralidadade, pois
ela se insere em múltiplos contextos sociais, como ressalta Voloshínov “[...] a palavra penetra
literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base
ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter público, etc.” (BAKHTIN

CORPOS
185

(Voloshinov), 1997, p. 41). O signo fundamenta todos os domínios do conhecimento e as relações


sociais que o configuram. Ele é amorfo e composto por incontáveis fios sociais, provenientes de
diversas ideologias que em embate, se opõem ou se reafirmam.
Por representar o lado social da linguagem no nível do sujeito além de representar a ideologia
hegemônica, a palavra emana as transformações sociais que se dão ao nível da fala, na ideologia
cotidiana:

[...] a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo
daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para
sistemas ideológicos estruturados e bem formados.” (BAKHTIN (Voloshinov), 1997, p. 41).

No nível da fala, na palavra, ocorrem as valorações de gênero. A linguagem, pela língua e


mediante a palavra, constrói o gênero do sujeito. É nas relações da realidade, nas infra e
superestruturas, que ocorrem as valorações de “feminino” e “masculino” nos enunciados e na
palavra. As modificações no contexto social são mobilizadas pela fala e se dão na infraestrutura e nas
relações verbais, onde, como dito anteriormente, ocorrem valorações que determinam o gênero. O
corpo, como dado social valorado, é constituído como tal por meio do ato, nas relações entre sujeitos.
A valoração do signo são os elementos que constroem a mulher como sujeito feminino. O discurso e
as ideologias patriarcais são desse modo refletidos e refratados no signo, como demonstra a
arquitetônica de inversão de La Majorité Opprimée.
Além de ser refletido no signo ideológico, o sujeito se refrata nele. Essa condição de refração
do sujeito no signo sinaliza, consoante Voloshínov “O confronto de interesses sociais nos limites de
uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes.” (BAKHTIN (Voloshinov), 1997, p.
46). O sujeito mulher feminista representado em La Majorité Opprimée, portanto, ao se refratar no
signo, representa o embate entre “índices de valor contraditórios”, pois confronta a ideologia
hegemônica do patriarcado e responde a ela sob um fundamento feminista, em que há
questionamentos e confrontos ao discurso oficial.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, como mencionado anteriormente, esse “confronto de
interesses” representa especificamente a luta de classes sob o tom socioeconômico e a divisão entre
classes em decorrência de poder aquisitivo. Em La Majorité Opprimée o quadro apresentado
representa um tipo de luta entre direitos de gêneros, em que no lugar da classe social desfavorecida,
há a mulher em desvantagem em contraposição à supremacia masculina, que na obra aparece
presumido na inversão entre performatividades de gênero feminina e masculina.
Além de a infra e superestrutura serem pontos fundamentais na análise do complexo social,
os movimentos ideológicos que circulam entre esses dois espaços são o alicerce básico das
construções de estereótipos que, conforme Butler, cristalizam o gênero. Para a autora:

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura
reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância,
de uma classe natural de ser. (BUTLER, 2015, p. 69)

CORPOS
186

Os estereótipos e as identidades de gênero são, portanto, convenções sociais calcadas em


ideais provenientes da ideologia hegemônica. Butler problematiza essa cristalização levando em conta
o tom negativo que a cristalização das práticas discursivas gera à construção dos gêneros,
incorporando-se como um discurso rotulador enraizado nas infra e superestrutura.
A estudiosa questiona a hegemonia de instituições que influenciam e determinam práticas
reguladoras do gênero e discute a pressuposição de que a repetição de determinadas práticas
garantem a formação de identidades de gênero, ou seja, em palavras claras, Butler provoca a ideia de
que se o sujeito pratica determinados atos do “ser mulher” predeterminado política e culturalmente,
ele torna-se mulher. A consagração da repetição de “modos de ser mulher” pelo poder hegemônico –
que se baseia em princípios que favorecem a ideologia econômica e política – nesse sentido é
analisada por dois focos.
Essa bilateralidade da concepção do gênero pelo viés discursivo gera dois pontos
sobressalentes: Primeiro, há um consenso de que o sujeito constrói sua identidade de gênero
discursivamente e, portanto, a partir de seu outro. E em segundo lugar, esse “fazer discursivo” do
gênero, acaba originando estereótipos de identidades femininas, trans e masculina. Nesse sentido, as
práticas discursivas que configuram os gêneros e a performance são cristalizados pela ideologia
hegemônica. Ao trazer “estrutura reguladora altamente rígida” (2015, p. 69), Butler convoca um
conjunto de ideologias superiores, inferidas discursivamente pelas superestruturas e dialoga com as
questões de relação de poder que acontecem na linguagem.
Como visto, a formação do gênero feminino e masculino se desvincula da pressuposição
natural e binária de homem e mulher e acontece a partir dos discursos e da formação cultural do
sujeito. O sujeito mulher é uma realização que se dá em razão do discurso, na linguagem. A concepção
de gênero se dá em meio aos enunciados e discursos, assim como as ideologias e valores que os
permeiam. A concepção da mulher e os fazeres que a contornam são composições e valorações que
emergem de acordo com a relação do sujeito com seus outros, com os discursos e a sociedade. O
“ser mulher”, portanto, como concepção de gênero, é uma construção discursiva construída social e
ideologicamente, nos confrontos de vozes sociais.

2. O CORPO VALORADO

A construção arquitetônica de La Majorité Opprimée ressalta, entre outras questões, a


problemática da inscrição do corpo no sistema. Os valores ideológicos incutidos no comportamento e
na postura das personagens homem e mulher são reverberados no modo como o corpo feminino e
masculino são representados na obra. O corpo coberto/ velado x o corpo livre/ à mostra, o jogo de
valorações inerente ao modo como os corpos feminino e masculino são representados são aspectos
que resgatam o embate ideológico intrínseco ao patriarcado.
Na figura 01 há um confronto entre a valoração dos corpos no curta metragem. De um lado,
uma mulher sem camisa e de outro, um homem vestido. No plano visual, a polarização desses corpos

CORPOS
187

denota uma configuração social que os constitui socialmente como tal. Em outros momentos do curta,
como nas figuras 02 e 03, o corpo feminino é colocado em foco e há uma tensão gerada pela censura
a esse corpo. No primeiro recorte de cena, a mulher, que representa na obra a voz machista, está
sem blusa enquanto o homem empurra um carrinho de bebê. Esses elementos visuais da cena se
concretizam como signos ideológicos que reverberam índices valorativos da sociedade retratada e
ironizada no curta metragem.
O corpo vestido e o corpo não vestido trazem ecos do sistema em que se inserem as relações
entre gêneros. O não vestido, em contraposição ao vestido, denota mais que uma escolha dos sujeitos
em vestir-se ou não, ele denota a construção social de que o corpo masculino é livre e o corpo
feminino, censurado. O próprio teor do diálogo retratado na cena denota sobre os índices de valor que
embasam a relação entre os sujeitos representados. A mulher, de um lado sem camisa, interpela o
homem em um tom de assédio, enquanto o homem se esquiva, com respostas rápidas e se afasta. Há
um confronto hierarquizado que perpassa o lugar social desses corpos na sociedade femista.

Figura 2: O homem vestido e a mulher sem camisa

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=bHJqNpJ8xAQ&t=2s, 2015

Na figura 2 há a sequência da materialização da dicotomia entre os corpos feminino e


masculino na obra. O homem, do lado direito, posicionado ao fundo, aparece empurrando o carrinho
de bebê enquanto no primeiro plano, a mulher corre, sem camisa. Há uma construção histórica e
cultural sobre esses corpos que é concretizada na obra por meio do confronto entre o corpo livre e o
corpo velado. Neste caso, La Majorité Opprimée coloca em cena o embate ideológico entre o que é o
corpo feminino e o que é o corpo masculino na sociedade feminista retratada.
Não são apenas corpos biológicos, são corpos valorados social e culturalmente, e a dicotomia
entre esses dois corpos é nítida na constituição estética da cena. O corpo masculino é livre para

CORPOS
188

estar ou não coberto, enquanto o corpo feminino deve estar coberto. A censura ao corpo feminino na
obra é observada ao longo da narrativa e no diálogo entre os elementos de cada cena. Na figura 02 se
destaca a oposição entre como são as construções sociais de homens e mulheres na sociedade
contemporânea, oposição entre a naturalização do que é semiotizado na obra como o corpo masculino
livre, que pode ser mostrado e o corpo feminino velado.
Nos recortes seguintes (Figuras 03 e 04) existe um zoom que foca em determinadas partes
do corpo do homem, como o peito e a gola da camisa que ele está abrindo, bem como o foco nas
pernas, no momento em que ele puxa a bermuda no intuito de cobrir suas pernas. São duas
focalizações diferentes nesse corpo estético que semiotiza o corpo feminino do mundo ético, da vida.

Figura 3: O homem e a mulher andam na rua

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=bHJqNpJ8xAQ&t=2s, 2015

Como elemento visual, o enfoque no desabotoar da camisa e os olhares preocupados da


personagem para os dois lados da rua denotam o aspecto valorativo do ato de desabotoar a blusa e
expor essa parte do corpo, ainda que de forma mínima, com apenas alguns botões abertos. Esse
enquadramento cênico tem como foco o ato responsível e responsável desse sujeito e as valorações
sociais e culturais refletidas e refratadas no ato. O ato de abrir o botão da camisa reverbera a
objetificação do corpo feminino na sociedade assim como a censura a esse corpo. A câmera foca no
peito do personagem e na gola da blusa assim como a sociedade foca o corpo da mulher quando ela o
expõe. Expor o corpo é, por sua vez, um ato que remonta à culpa atribuída à mulher caso seu corpo
seja violado.
O ato desse sujeito semiotizado no texto é perpassado por valorações culturais e ideológicas
da vida. Quando a câmera se volta completamente ao enquadramento da gola da blusa, esse foco
mostra a perspectiva social e as valorações que entornam o desabotoar da blusa. O desabotoar da

CORPOS
189

blusa pela mulher consiste em mostrar mais o corpo da mulher, expor o colo e seios. Pelo olhar
patriarcal, essa exposição denota uma provocação ao homem e indica que a mulher está se colocando
em uma condição de vulnerabilidade ao assédio e ao estupro. O cruzamento de vozes sociais que
ocorre no ato do homem abrir sua gola e os discursos que cruzam esse ato, por sua vez, constituem o
personagem e também constituem, na interlocução homem-mulher, o sujeito feminino contemporâneo.
Esse cruzamento consiste no desejo da mulher de vestir-se à vontade em embate com a cobrança e
censura a esses atos que a colocam em situação de vulnerabilidade.
Nesse embate, o fato do homem abrir a camisa e o enfoque da câmera nesse momento da
cena também representam o confronto da personagem com o discurso patriarcal que lhe impõe o
medo de abrir os botões. Embora se preocupe e olhe para os dois lados antes de abrir a blusa, ele os
abre e esse ato incute um desafio à ordem patriarcal. O ato infere o posicionamento axiológico do
personagem que assume uma postura sem álibi e singular, que é só dele e por meio da qual esse
sujeito responde aos outros que o envolvem.

Figura 4 O foco na gola do homem

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=bHJqNpJ8xAQ&t=2s, 2015

Em outro momento da narrativa, no qual o protagonista está sentado na delegacia reportando


o estupro do qual foi vítima, ocorre mais um enfoque da câmera em seu corpo, que salienta o seu
gesto de puxar a bermuda para baixo no intuito de cobrir suas pernas. Nessa circunstância, o
personagem é intimidado pela delegada que o atende, sentada à sua frente e que ao ouvir seu relato
sobre o caso (Figura 04 e 05) ironiza que “Em plena luz do dia...e nenhuma testemunha... Interessante
huh?”, aludindo à possibilidade de o protagonista estar inventando o ataque que ele sofreu.

Figura 5: O foco nas pernas do homem

CORPOS
190

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=bHJqNpJ8xAQ&t=2s, 2015

Esse encadeamento de elementos visuais da obra, o diálogo das personagens e os enfoques da


câmera são elementos materiais do texto que servem de base para pensar nos conflitos ideológicos
que fundamentam a representação dos corpos masculino e feminino na obra. O embate ideológico é
visto na cena quando a mulher passa correndo sem camisa ao lado do homem (Figura 2), onde vemos
uma clara contraposição de como são valorados histórico e socialmente esses dois corpos. Existem
juízos de valores que embasam o “poder estar sem camisa” e o “dever estar de camisa”. No nível
semântico, “poder” e “dever” são lexemas de base divergente e oposta. “Poder” andar sem camisa é a
liberdade de escolha para um homem de usar a camisa ou não em determinadas ocasiões, sendo que
o não uso não gera a esse sujeito o estupro, por exemplo, enquanto à mulher a roupa curta, o
desabotoar da blusa, o mostrar um pouco da perna são gestos socialmente censurados, que geram a
culpa à mulher caso ela seja assediada ou estuprada, como mostra o próprio curta (Figuras 34 e 35).
Não apenas a estética visual das cenas denota o embate ideológico em relação ao corpo, mas
também o tom emotivo-volitivo das personagens. Seus gestos, o tom com que falam e o modo com que
olham, por exemplo. Na figura 01, em que uma mulher se apoia na parede com o braço, sem camisa,
denota uma despreocupação em estar sem camisa, bem como a atitude incisiva dela estar à frente do
homem e tentar continuamente a puxar assunto por meio de assédio. No recorte de cena 03, por sua
vez, o zoom da câmera e o enquadramento na gola da blusa é um deslocamento da cena que denota a
preocupação com o ato de abrir a gola e essa preocupação em abrir a gola se dá no embate entre as
expectativas da sociedade patriarcal, que como mostra o curta, é uma sociedade que censura o corpo
da mulher.

Figura 6: A delegada e o homem (de costas) na delegacia

CORPOS
191

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=bHJqNpJ8xAQ&t=2s, 2015

Como vimos anteriormente, o corpo é valorado e essas valorações se dão no nível da


linguagem, na cultura e nas ideologias, no embate entre ideologias. Os elementos cênicos que
analisamos são signos ideológicos que compõem o todo enunciativo da obra estética. Para o Círculo,
as palavras ou objetos expressam índices de valores quando são colocados em diálogo com uma
realidade social. No caso dos elementos cênicos que temos em vista, interpretamos os efeitos de
sentido sobre os quais discorremos pois eles tem uma orientação sociológica que se banha no
horizonte ideológico da sociedade patriarcal.

São signos objetos materiais isolados; como vimos, qualquer objeto da natureza, da técnica ou do
consumo pode tornar-se signo, mas com isso adquirem um significado que está fora do âmbito de sua
existência isolada (do objeto da natureza) ou da sua destinação [...]. (VOLOSHÍNOV, 2013, p. 193)

Nesse sentido, o corpo não é um dado biológico apenas, mas remete à realidade que o
contextualiza, às construções culturais que o envolvem e à forma como a sociedade patriarcal o vê e
constrói os sujeitos. O aspecto biológico do corpo é um pressuposto que se embate com o olhar social
sobre ele. O sentido cultural do corpo ultrapassa seus limites biológicos e é construído na alteridade,
nas relações discursivas.
A roupa curta ou a roupa antes do joelho não é uma roupa como qualquer outra. Pelo viés
femista explorado na obra, essas roupas deixam à mostra o corpo desejado, o corpo-objeto, objeto-
corpo. Nessa cultura o curta nos mostra o corpo masculino entendido como um corpo à mercê das
mulheres e que, se deixado à mostra, é um corpo-convite, convite ao corpo. O estupro é, por
conseguinte, uma situação provocada que concerne ao homem que provocou o assédio.
A inversão cultural femista dá a liberdade do corpo masculino às mulheres que entendem o
corpo à mostra como um corpo à disposição e, portanto, o estupro é culpa da vítima pois ele usava

CORPOS
192

“camisa curta” e “bermudas antes do joelho”. Essa inversão e o efeito de sentido irônico sintetizam o
embate ideológico patriarcal e a construção histórica do que é o corpo feminino na sociedade. Nesse
embate se colocam em choque as vozes sociais machistas e feministas sobre o corpo da mulher, que
são verificadas na fala da personagem.
O Estado, a Igreja e a Família, como instituições sociais, reverberam esse discurso e o
oficializam como forma de instituir e confirmar a ideologia machista. Ao impor um modelo social de
família em que o homem é o líder financeiro e a mulher a principal responsável pelas atividades
domésticas e maternais, o patriarcado joga à margem o potencial feminino de ser um líder financeiro
da família e também infere essa ideia a outros contextos sociais e profissionais em que se nota a
ausência de mulheres em determinados cargos empregatícios em razão de seu ofício doméstico e
maternal. La Majorité Opprimée parte da maternidade para abranger aspectos outros do patriarcado
que encarceram a mulher em estereótipos, a limitam em razão de sua natureza feminina e a privam
de usufruir de direitos que homens usufruem, em razão do gênero. O resgate desses machismos
verificados no cotidiano se dá na construção verbivocovisual da obra. A arquitetônica do curta
compreende, nos diversos níveis do enunciado, aspectos cotidianos que delatam a desigualdade a
partir do signo, que ideológico, abrange o embate de luta de classes.
Sob a ótica da inversão, a imagem feminina é, portanto, maternal, doméstica e objeto de
desejo. As três cenas observadas ressaltam esses elementos culturais que envolvem a formação do
sujeito feminino na sociedade contemporânea. O corpo feminino é liberado e aceito na erotização e no
desejo masculino sobre a mulher. O corpo físico, neste sentido, é pensado a partir da valoração
cultural realizada sobre ele.

O ser, refletido no signo, não apenas reflete, mas também se refrata. O que é que determina esta
refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma
comunidade semiótica: ou seja: a luta de classes. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1997, p. 46)

Nesse sentido, o corpo físico reflete e refrata índices valorativos. O modo como se
configuram as expressões de gênero masculino e feminino e a forma como elas se empreendem no
corpo físico se embasa nos embates ideológicos contemporâneos. O corpo da mulher reflete a
ideologia machista e também reflete a ideologia feminista, assim como refrata a ambos. Há um
intercâmbio de vozes imanente ao corpo físico. Ele é, por sua vez, também moldado pelas inferências
culturais de seu espaço e tempo. Assim, quando dizemos que o corpo feminino exposto é aceito caso
se encaixe em uma situação de erotização e objetificação do mesmo, inferimos que essa aceitação é
um ato social que incute as valorações ideológicas sobre o corpo e reverbera estereótipos de
feminilidade.
Vemos que o nível visual da cena (Figura 1) atenua a desigualdade cultural que engendra a
relação dos gêneros feminino e masculino. Do lado esquerdo, o homem ouve, cuida da criança e se
cobre. Do outro, na lateral direita, a mulher invade o homem com um assédio mascarado de elogio
enquanto está sem camisa. A liberdade e o controle, como dicotomias sociais sobre o corpo, estão

CORPOS
193

estampadas no espaço da cena. A censura do corpo feminino em detrimento da liberdade do corpo


físico masculino são consensos sociais criados historicamente com base em interesses político
ideológicos. O signo, como elemento ideológico e dialógico concretizado no limiar entre o tema e o
contexto socioideológico engendra o diálogo entre as personagens e incorpora na situação, a
ideologia oficializada. Os recortes de cena apresentam embates de valores sociais e históricos
mediante o signo ideológico, no ato enunciativo em razão do índice valorativo a eles inerente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise realizada, percebemos uma construção cultural dos corpos que se dá no
signo ideológico, socialmente, na relação dialógico-dialética entre super e infraestruturas. No embate
entre as ideologias femistas e masculinistas são semiotizadas no curta metragem e,
consequentemente, no mundo da cultura, as ideologias machistas e feministas provenientes do mundo
da vida. Semiotizados na obra estética, os corpos reverberam índices valorativos e são valorados
ideologicamente, em um movimento de reflexo e refração que perpassa os limiares entre o mundo da
vida e o mundo da arte.
O corpo feminino é, portanto, valorado socialmente como o corpo censurado que, por ser
objeto do patriarcado, não é livre, enquanto o corpo masculino é um corpo com liberdade sobre si.
Isso se dá em La Majorité Opprimée por meio da representação visual dos corpos feminino e
masculino em que o primeiro é sempre vestido, em um ato maternal ou de censura, enquanto que o
segundo é representado sem roupa, no exercício do poder de censura ao primeiro. Essas
construções, materializadas no signo ideológico se referem ao horizonte ideológico da sociedade
contemporânea que, por sua vez, é demarcada pelo discurso de autoridade patriarcal.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, C. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
BAKHTIN, M.(VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
BAKHTIN, M. (MEDVEDEV). El método formal en los estudios literarios. Madrid: Alianza, 1994.
BAKHTIN. M. (1992). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2011.
BAKHTIN, M./VOLOSHINOV, V. N. Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica. Tradução de C. A.
Faraco; C. Tezza. Circulação restrita. [1926].
BAKHTIN. M. (1929). Problemas da Poética de Dostoievski. São Paulo: Forense, 1997.
BAKHTIN. M. M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
BAKHTIN, M. M. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.
BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

CORPOS
194

VOLOSHÍNOV, V. A palavra na vida e na poesia: Introdução ao problema da poética sociológica. In: BAKHTIN, M. Palavra
própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2011.
VOLOSHÍNOV, V. A palavra e sua função social. In: A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos, SP:
Pedro & João Editores, 2013.

CORPOS
RESUMO
195
Este artigo foi produzido no âmbito de uma pesquisa
de doutorado, em curso, que tem por interesse
pesquisar os sentidos que mulheres negras

O CABELO COMO SIGNO constroem sobre seus cabelos.O diálogo com as


sujeitas da pesquisa é o procedimento teórico-
metodológico privilegiado do estudo, que tem

IDEOLÓGICO: uma leitura a partir


acontecido de forma presencial e online. Nesse
contexto, tomando como base a teoria da
enunciação elaborada por Mikhail Bakhtin e seu
Círculo e o diálogo com as participantes da
da teoria da enunciação bakhtiniana investigação, o texto em questão visa apresentar
uma discussão concebendo o cabelo como um signo
ideológico, cujos sentidos produzidos sobre suas
diferentes texturas são construídos histórica e
culturalmente.

SILVA, Andréia Cristina Attanazio 72 Palavras-Chave: Cabelo. Signo


Enunciação. Bakhtin e seu Círculo
ideológico.

INTRODUÇÃO

A
pesquisa de doutorado que venho realizando tem como tema a relação entre mulher negra e
cabelo. A partir do reconhecimento do cabelo como um signo ideológico que reflete e refrata as
enunciações sobre ele, que também orientam e modificam o signo, meu estudo tem por objetivo
construir narrativas com mulheres negras sobre seus cabelos, buscando compreender que sentidos
elas constroem sobre a estética dos mesmos. A investigação se fundamenta na Teoria da Enunciação
de Mikhail Bakhtin (2006; 2010),nas discussões sobre a relação exotópica entre pesquisador/a e
pesquisados/as, com base no mesmo autor (BAKHTIN, 2011; 1997), nos debates sobre a ética nas
pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, a partir de Rita Ribes Pereira (2015), nas contribuições de
Nilma Lino Gomes (2008; online, 2005; 2002), dentre outras referências dos estudos de raça e gênero
para pensar estas relações na sociedade brasileira, bem como na literatura feminina de mulheres
negras, concebida como teoria social, que nos auxiliam na compreensão, sempre parcializada, das
relações da mulher com a cultura e o cabelo.
Esse estudo está articulado ao projeto de pesquisa “Educação e contemporaneidade: crianças,
jovens e redes de conhecimento”, coordenado pela ProfªDrª Maria Luiza Oswald (ProPEd/UERJ), na
medida em que aponta para a potência das redes de conhecimento presenciais e online na
ressignificação de conhecimentos hegemônicos que foram construídos a partir da construção de um
projeto de sociedade colonial, em especial sobre a estética dos cabelos de mulheres negras.

72Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(ProPEd/UERJ). Bolsista CAPES/MEC tendo em vista a realização de doutorado sanduíche no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade
de Coimbra, como parte do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior.Integrante do grupo de pesquisa “Infância, Juventude, Educação e
Cultura” (IJEC), coordenado pela ProfªDrª Maria Luiza Magalhães Bastos Oswald(ProPEd/UERJ). Endereço eletrônico: attanaziobkp@gmail.com.

CORPOS
196

Coerente com o objetivo da pesquisa e com os referenciais teórico-metodológicos que a


norteiam, o diálogo com as sujeitas pesquisadas vinha ocorrendo apenas a partir de encontros
presenciais com as sujeitas da pesquisa, convidados a partir do meu ambiente de trabalho. Entretanto,
fui me aproximando do Facebook73 como mais uma possibilidade de campo empírico, tendo em vista a
efervescência das discussões sobre as estéticas dos cabelos nesta rede social, sobretudo entre
mulheres, e adotei o Messenger, plataforma para mensagens particulares associada à referida rede
social, para a tessitura do diálogo com as sujeitas da pesquisa. Sendo assim, o material de pesquisa
que tem sido produzido nesse processo são arquivos de áudio com o conteúdo das conversas
presenciais, transcrições das mesmas, imagens produzidas através do mecanismo Print Screen, em
que o conteúdo da tela é inteiramente salvo no computador ou celular e, ainda, documentos de textos
em que são salvas no meu computador pessoal os diálogos que são produzidos online.No curso da
pesquisa, muitas foram as questões levantadas pelas mulheres com as quais conversei, tendo o
cabelo como fio condutor. Foi a partir dessas narrativas que a reflexão que segue se desenrolou.

1. O CABELO COMO DISCURSOS EM DISPUTA

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico,
instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e
refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a
algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo.74
Bakhtin/Volochínov

A epígrafe com que inicio esta reflexão é parte da obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem”, em que Bakhtin
/Volochínov 75 (2006; 2010b) 76 , no âmbito de um complexo e rico trabalho depesquisa, aponta as
intrínsecas relações entre linguagem e consciência, linguagem e ideologia,linguagem e sociedade,
dentre outras, nos revelando o papel da linguagem no funcionamento da vida social e o
desenvolvimento desta através daquela. Escolho trazer para o princípio dessa discussão a passagem
acima porque ela nos permite, de imediato,esse encontro com a natureza do signo que, como se nota,
é social e ideológica. Para as questões que aqui nos interessam, esse é o ponto de partida.
Bakhtin /Volochínov (2006; 2010b) nos ajuda a entender que o signo é de caráter vivo e
dinâmico, tendo em vista que os seus sentidos são construídos em conformidade com os contextos

73 Maior rede social online atualmente, cujo endereço eletrônico é <https://www.facebook.com/>, que veio atingindo grande proporção
mundial nos últimos anos, em breve um espaço de tempo.
74 Disponível em: <http://www.fecra.edu.br/admin/arquivos/MARXISMO_E_FILOSOFIA_DA_LINGUAGEM.pdf>. Acesso em: 11 set. 2017.

75A presença do nome dos dois autores se justifica pelo fato de que a publicação russa do texto original, em 1929, teve a assinatura de

Volochínov, entretanto, estudos posteriores mostraram que, pela semelhança com as produções de Bakhtin, tais como “Problemas da poética
de Dostoievski” (2010c) e “Cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais” (2010a), seria dele também a
autoria do texto em questão.
76 Cabe pontuar que utilizei ambas versões da obra citada, tendo em vista que uma me auxilia com as possibilidades de um documento no meio

virtual e a outra, na materialidade do texto impresso.

CORPOS
197

sociais que os abrigam. Ele é móvel porque reflete e refrata a realidade em que está inserido. Reflete
porque ele nos diz sobre o meio que o cerca e refrata porque ele também responde a esse meio,
transformando-o com suas sempre novas e modificadas significações. Tais significações não são
produtos de um único indivíduo isoladamente, embora cada sujeito na sua particularidade também
contribua para essa construção, mas elas são elaboradas na coletividade de uma dada esfera social.
Por esta razão, o signo é interindividual, os seus sentidos múltiplos e variados são sempre sociais,
guiados por acordos coletivos.
O título deste artigo anuncia o cabelo como um signo ideológico. Para pensar essa questão,
em diálogo com as contribuições bakhtinianas sobre a linguagem, trago também falas das
mulheresque estão participando de meu estudo de doutorado, como já salientado.Neste momento, é
Evie77 quem chamo para a conversa.Referindo-se ao procedimento adotado por muitas mulheresde
alisar os cabelos crespos,antes praticado também por ela, a professora nos ajuda a perceber que
esse é um movimento motivado, muitas vezes, por uma construção histórica ideológica que confere
uma marca pejorativa à textura crespa dos cabelos de homens e mulheres, coerente com um projeto
de sociedade racista. Segundo ela, “por toda história de sofrimento do negro, tudo que faz alusão ao
que é negro precisa ser de alguma forma embranquecido. Pra ficar legal, precisa embranquecer de
alguma forma, que é para ficar aceitável.”
Esse relato de Evie faz menção ao fato de que o cabelo crespo, ao longo da formação da
sociedade brasileira, é valorado com um grau muito menor em relação ao cabelo de fio reto.
Convencionou-se socialmente, certamente por razões étnicas, que a exibição dos cabelos crespos não
estaria coerente com os padrões identificados como belo, como Giseli78, outra professora com quem
dialoguei na pesquisa, nos mostra:

Quando a gente é nova, a gente quer esconder o que a gente tem… Assim, como da nossa raça, porque,
assim, é uma coisa que as pessoas têm assim como ‘não é bonito’.[…] O cabelo do branco é baixinho,
ninguém bota o cabelo pra cima. Então, eu queria esconder isso. Queria ele baixinho, mesmo o cabelo
cacheado, mas eu não queria meu cabelo cheio.

É importante observar que o desejo de Giseli em esconder seu cabelo armado não é produto
subjetivo de sua consciência individual, de outro modo,a opção por exibi-lo “baixinho” faz parte de uma
construção social que organiza determinados códigos de beleza,hierarquizando os sinais diacríticos
da cultura europeiae estadunidense em detrimento daafricana. Referindo-se aos discursos de duas
publicidades da marca Louis Vuitton, Pistori (2014, p. 150) nos auxilia a entender que “são os diálogos
entre as diversas esferas ideológicas os responsáveis pelos efeitos de sentido”produzidos pelos
discursos. Esses efeitos de sentidos são múltiplos e variados, assim como também o são os discursos.
Dessa forma, o que se vê nesse processo de aceitação ou rejeição do cabelo crespo é uma disputa

77 Há alguns anos, Evie tem lecionado, na unidade em que trabalhamos, como professora regular de turmas de crianças com três anos de
idade.
78 Giseli entrou em 2015 na creche onde está lotada. Na ocasião, ela trabalhou com crianças com necessidades especiais em processo de

inclusão escolar, na sala de Atendimento Educacional Especializado. Em 2016, Giseli está como professora regular de uma turma de um ano.

CORPOS
198

entre discursos, uma disputa entre signos, em que usar o cabelo armado ou não é uma contrapalavra
que responde ou que silencia respostas a outros tantos enunciados. Isso nos faz pensar que o cabelo
e sua textura são signos que dialogam com outros diálogos, ratificando ou refutando seus discursos.
Essa tensão é evidenciada por esta fala de Evie, quando ela diz que:

[…] a gente fica com preguiça, às vezes, de ficar tendo que… Como é que eu vou dizer? Que produzir
esse discurso para as pessoas que não estão com essa visão política aberta, entendeu? Que não veem
racismo onde tem, que não veem preconceito onde tem. Que acham que tudo é frescura de quem é
negro. Aí, rola um pouco disso, e, para isso, eu não tenho paciência.

Evie questiona a concepção largamente difundida socialmente de que as repetidas


circunstâncias de marginalização do negro – de suas culturas, de suas histórias, de suas belezas –
são discursos produzidos em função de uma suposta autovitimização dos mesmos, concepção essa
que desloca as mazelas raciais da esfera ideológica e cultural para reposicioná-la equivocadamente
no campo de uma subjetividade psicológica individualizada. Essa deformação conceitual no que tange
às evidências de uma sociedade colonizada, ao mesmo tempo em que provoca um lastimável avanço
das estruturas de base europeizadas, retardando as urgentes e necessárias reformas étnicas e
sociais, também corrobora, consequentemente, para a reverberação do mito da democracia racial.
Nesse contexto, fica claro que por ser o signo ideológico, ele tem seus sentidos situados do
lado de fora da materialidade que o carrega, ao mesmo tempo em que também materializa a ideologia.
Nesse sentido, o signo é sempre axiológico e, por estar ligado a sistema de valores, ele é híbrido,
heterogêneo, permanecendo numa arena de disputa constante, já que suas diversas possibilidades de
significação não estão determinadas a priori. Por conseguinte, a compreensão de um signo ideológico
não passa pela apreensão de um sentido único e enclausurado do mesmo, numa suposta síntese do
seu significado. Dessa maneira, apesar da probabilidade de alguma fixidez na sua constituição, que o
orienta e o norteia, por seu sentido não ser da ordem do “eu”, mas pertencer à ordem do “nós”, ele
não é estático e monológico.

2. SENTIDOS E SIGNIFICADOS PRODUZIDOS EM TORNO DAS CONCEPÇÕES DE CABELO

Nas linhas acima, está explícita a dialeticidade do signo, cujos sentidos são produções
ideológicas e culturais nem sempre harmoniosas e consonantes entre si. Assim, vale pontuar a pouca
coerência e consistência em se conceber os significados dicionarizados como definições que
supostamente abarcariamtoda a grandeza e completude dos signos, embora a elaboração dos
dicionários seja com essa pretensão. Portanto, seguir com tal entendimento seria o mesmo
queinsistir no aprisionamento dos signos em uma significação limitada, pontual, paralisada no tempo e
no espaço. Sendo assim, a fim de problematizá-los, resolvi trazer para cá os resultados de uma

CORPOS
199

consulta à palavra “cabelo” em dois dicionários online. Nessa investida,encontrei as conceituações a


seguir:
Cabelo […]
1 Conjunto de pelos que recobrem a cabeça humana.
2 Pelo que nasce em qualquer parte do corpo humano[…].
3 POR EXT Conjunto de pelos que cobrem o corpo de certos animais […].
4 Mola de aço delgada, espiralada, que regula o movimento de relógios pequenos.
5 Tipo de lã que, durante o processo de beneficiamento, é separada da lã suja.
EXPRESSÕES
Cabelo agastado, COLOQ: Vcarapinha.
Cabelo bom, COLOQ: cabelo liso. […]
Cabelo de cupim, REG (N.E.): Vcarapinha.
Cabelo de espeta-caju, REG (N.E.): cabelo grosso e eriçado. […]
Cabelo lambido, COLOQ: cabelo liso e sem volume.
Cabelo pixaim, COLOQ: cabelo encarapinhado […].
Cabelo ruim, COLOQ: cabelo muito crespo, difícil de pentear.[…]
De arrepiar o cabelo, FIG: assombroso, espantoso.[…]
Pôr os cabelos em pé, COLOQ: apavorar, assustar.[…] (MICHAELIS DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA
PORTUGUESA, online)79
ca·be·lo |ê| […]
1. Conjunto do pelo da cabeça, e, por extensão, do corpo humano.
2. Cada um desses pelos.
3. Pelo comprido de certos animais.
4. Espiral reguladora dos relógios de algibeira.
[…]
cabelo aguado
• Ralo e fino.
com o(s) cabelo(s) em pé
• [Informal] Em estado de susto ou de medo. […] (PRIBERAM, online)80

Podemos perceber nessas estruturas verbais um encapsulamento dos sentidos da palavra em


questão, desconsiderando as tensões e a dialogicidade do termo no confrontamento dos inúmeros
discursos que o compõem.Isso porque “cabelo” tem sentidos muito mais amplos e complexosdo que a
compreensão de que sãopelos que revestem o couro cabeludo, o corpo de seres humanos e de alguns
animais, além de mais um ou dois significados.Os dicionários pesquisados trazem, na sequencia das
definições, algumas expressões que incluem a palavra “cabelo”. Algum leitor desavisado
poderiaimaginar que, nessas expressões, estariam presentes os conflitos e a diversidade de sentidos
que envolvem o termo em pauta, pela variedade das mesmas.Na minha leitura, isso não acontece. Ao
contrário,as referidas expressões pincelam estereótipos indesejados sobre os cabelos, reforçando-
os, enquanto que emudece tantos outros sentidos possíveis. Dessa maneira, no que o faz, também

79 Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=cabelo>. Acesso em: 13 set. 2017.


8 Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/cabelo>. Acesso em: 13 set. 2017.

CORPOS
200

ratifica modelos,repercute padrões e ecoa a tentativa de um lugar-comum, porque, ainda que os


significados dicionarizadossejam termos restritos e engessados, eles também, em certa
escala,refletem e refratam o signo.
A exemplo do que foi pontuado acima, vou me deterem retomaralgumas expressões.De acordo
com o dicionário aqui em foco, a expressão “cabelo bom” pode ser apresentada como sinônimo para
“cabelo liso”, assim como “cabelo ruim” é identificado sem nenhum pudor ou constrangimento como
“cabelo muito crespo, difícil de pentear” (MICHAELIS DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA,
online)81. Aceitando essas adjetivações para apresentar as texturas lisas e crespas dos cabelos, o
dicionário em questão contribui para a propagação de versões preconceituosasem relação aos
cabelos, silenciando outras, semoferecera possibilidade de um tensionamento das mesmas, seja
através de uma observação ou comentário, seja através de uma nota de rodapé, de um link para
outras produções oude uma indicação bibliográfica.
Desse mesmo modo, fazendo novamente uma alusãoacrítica aos cabelos crespos, que são, por
suas especificidades constitutivas, armados e volumosos,o dicionário de que se trata ratifica a
identificaçãodas expressões, propaladas socialmente de forma não ingênua,“De arrepiar o cabelo” e
“Pôr os cabelos em pé” (MICHAELIS DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA, online)82 com as
ideias de pavor, pânico, susto ou assombração(a última expressão citada aparece também de forma
bastante semelhante no segundo dicionário mencionado anteriormente). Somam-se a essas imagens
também a analogia geralmente feita de que cabelo crespo seria sinal de descuido e negligência com a
própria aparência.Esses são discursos que, dialeticamente, compõem alguns dos sentidos que são
produzidossobre o signo cabelo. No entanto, muitos outros, inclusive em contraposição a estes, são
deixados de fora dos dicionários.
Do campo em que falo– a educação,penso que não podemos passar por esses discursos
impunemente, tendo em vista que eles têm relação com um projeto de sociedade que não é o nosso, se
almejamos contribuir para uma educação ética, alteritária e libertadora, do ponto de vista das
identidades, das expressões estéticas, das manifestações étnicase de muitos outros que colocam o
outro como centro desse processo.
Sendo assim, considero que os significados dicionarizados que foram trazidos para esse texto
são representativos de enunciações sobre o cabelo crespo que o colocam no lugar do déficit - do
déficit da beleza, do déficit do cuidado - ou no lugar da valorização de aspectos que poderiam ser
avaliados, dependendo do ângulo de visão, de forma negativa, a exemplo da sua maleabilidade.
Toda essa opacidade que envolve a compreensão dossentidos da palavra “cabelo” vai ao
encontro da filosofia da linguagem postulada por Bakhtin /Volochínov (2006; 2010b), “colocando o
estudo do signo no centro de uma investigação ideológica” (BRAIT, 2013, p. 46), em que cada signo é
resultado, não acabado, cabe ressaltar, da produção de sentidos construídos a partir do diálogo entre
enunciados de conteúdos diversos, daí sua natureza dialógica, cuja motivação reside no tempo e no

81Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=cabelo>. Acesso em: 13 set. 2017.


82Ibidem.

CORPOS
201

espaço em que se localizam.Logo, “compreender a linguagem nessa perspectiva implica corroborar a


ideia de que os sujeitos respondem ativamente a tudo aquilo que lhes causa ressonância, uma vez que
as palavras são carregadas de sentido ideológico” (SZYMANSKI; BROTTO, 2013, p. 237).
É nesse sentidoquepodemos entender que os sentidos atribuídos a diferentes texturas de
cabelo são parte da cultura, posto que “compreender um signo consiste em aproximar o signo
apreendido de outros signos já conhecidos” (BAKHTIN /VOLOCHÍNOV, 2006, p. 32; 2010b, p. 34). Nessa
mesma direção, continuamos autores,

a compreensão é umaresposta a um signo por meio de signos. E essa cadeia de criatividadee de


compreensão ideológicas, deslocando-se de signo em signo para umnovo signo, é única e contínua: de
um elo de natureza semiótica (e,portanto, também de natureza material) passamos sem interrupção
paraum outro elo de natureza estritamente idêntica. Em nenhum ponto acadeia se quebra (BAKHTIN
/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 32; p. 34)

Dessa maneira, o sentido produzido sobre algo não está na constituição do elemento em si,
mas na produção ideológica sobre ele, que, coerentemente com o que já foi destacado, não acontece
de maneira serena e linear. Cíntia83, professora, que também participa da pesquisa de doutorado ora
mencionada, deixa transparecer em seu relato esses embates sígnicos. Segundo ela,

quando a pessoa começa nesse processo [de parar de alisar o cabelo], eu acho que ela idealiza o cacho.
‘Ah, meu cabelo é crespo… vou entrar nessa moda.’ Começa assim, né? ‘Vou entrar nessa moda… vai
ficar aquele cacho cheio e lindo.’ Na maioria das vezes, quando a pessoa é de origem negra mesmo, ali,
como eu digo, da senzala, o cabelo não fica cacheadinho não, fica só frisado. Então, dá aquele choque
maior ainda.

Essascontradições que Cíntia compartilha relacionadas à expectativa do novo cabelo após um


período livre dos processos químicossão formuladas por intermédio do diálogo com discursos outros
que chegam até os sujeitos de modos diversos e a partir dos quais eles compõem suas narrativas,
reafirmando-os, rejeitando-os ou, quem sabe, estabelecendo pontos de intersecção entre eles, dentre
outras possibilidades.Desse modo, esses outros discursos, aliados até certo ponto ou entrando em
confronto,formam o cenário ideológico para a enunciaçãode Cíntia,que traz como questões a
abdicação da textura lisa do cabelo, o desejo de um cabelo com cacho, a identificação ou não da
concepção do cabelo crespo ou cacheado como moda, a analogia entre cabelo frisado, ancestralidade
negra e senzala, a minimizaçãodo valor estético do cabelo dito frisado, o acolhimento do cabelo não
anelado com espanto e decepção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

83 Cíntia é professora formada e, atualmente, assume a função de estimuladora materno-infantil atuando nas salas de aula da creche em que
trabalha, em parceria com as professoras regulares das turmas. As estimuladoras materno-infantil cumprem, nas creches municipais de
Duque de Caxias, uma carga horária de 30 ou 40 horas semanais de efetivo exercício de suas funções, dependendo do regime sob o qual foram
contratadas pela respectiva Secretaria de Educação.

CORPOS
202

Por fim, cabe sublinhar que o cabelo é um signo ideológico que, ao ser percebido enquanto tal,
abrem-se caminhos para que haja maior flexibilidade, acredito eu, na compreensão de que as
concepções e narrativassobre ele são passíveis de desconstruções e reconstruções, considerando
muitas outras possibilidades de significações, além das que já estão estabelecidas. Sobre a temática
em foco neste artigo, muitas outras questões poderiam ser trazidas para a discussão, entretanto,
dados os limites desse trabalho, finalizo-o aqui com essas palavras de Bakhtin /Volochínov (2006, p.
30; 2010b, p. 32) que nos ensinam que “ao lado dos fenômenos naturais, do material tecnológico e dos
artigos de consumo, existe um universo particular, o universo de signos .” (grifos do autor).

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203

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45732013000100015&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 18 set. 2

CORPOS
RESUMO
204
Este trabalho apresenta uma reflexão acerca da
Educação Física como prática dialógica que, além de

O JONGO NA EDUCAÇÃO conduzir corpos em movimento, é capaz de


instaurar diálogo, resistência e um interminável
processo de ressignificação, próprio da linguagem.

FÍSICA: diálogo, ressignificação e


O objetivo é refletir sobre (e propor) uma
abordagem dialógica e transdisciplinar da Educação
Física, de forma que se evidencie seu pertencimento
ao campo da linguagem, conforme estabelecem
resistência nos corpos em movimento documentos oficiais, como os PCNs. Espera-se, com
isso, lançar uma contrapalavra à polêmica recente
quanto ao lugar da Educação Física na escola,
valorizando sua importância como prática
transdisciplinar essencial na formação do aluno. A
reflexão será desenvolvida segundo os conceitos do
SILVA, Carolina Gonçalves da84 Círculo de Bakhtin, o que pressupõe uma
compreensão da linguagem como produto da
SILVA, Taynara Spulverato da85 comunicação de sujeitos historicamente situados,
materializada em signos ideológicos – como
entendemos ser o jongo. Neste texto, discute-se,
mais especificamente, como essa expressão afro-
brasileira oriunda das senzalas, produz sentidos,
diálogos e ressignificações materializadas nos
INTRODUÇÃO corpos que dançam, cantam e batucam na aula de
Educação Física. Portanto, o que se propõe aqui é

S
que o aluno seja entendido não só como corpo
ancionada em fevereiro de 2017, depois de intenso debate público estético em movimento, mas como sujeito ético,
atravessado por e articulador de discursos e
e de muitas emendas na medida provisória inicialmente proposta, ideologias; um sujeito que, orientado por disciplinas
a polêmica reforma do ensino médio deixou muitas dúvidas sobre como a Educação Física (enquanto prática de ensino
dialógica), é capaz de ler e produzir textos
a oferta/obrigatoriedade de disciplinas e sobre a Base Nacional Comum significativos em linguagens diversas,
Curricular (BNCC), que estabelece seus conteúdos (ainda em fase de principalmente a corporal.

elaboração). Mais recentemente, outra polêmica protagonizada pelas Palavras-Chave: Educação Física. Diálogo. Jongo
esferas política e escolar foi reavivadacom a votação do Supremo
Tribunal Federal acerca do ensino religioso nas escolas. Num contexto
de instabilidade política e de intensas discussões sobre os caminhos da
educação no Brasil, este texto se apresenta como uma contrapalavra, como mais uma voz que se
integra a essas polêmicas, defendendo o papel relevante que a Educação Física, trabalhada da forma
dialógica, desempenha no contexto escolar.
O objetivo destas reflexões é, portanto, valorizar o ensino-aprendizagem dialógico de
Educação Física, tomando-a como prática transdisciplinar que vem, ao longo dos anos, firmando sua
importância e legitimidade para além das intervenções no corpo biológico (no sentido de melhora na
performance esportiva e/ou na promoção de saúde). A disciplina estabelece diálogos não só com
áreas biológicas e da saúde, mas com outros campos do saber, da área de linguagens, como a Língua
Portuguesa, ou não, como aHistória e a Geografia. Ela coloca em contato, ainda, corpos e sujeitos,
estes e seu meio, seu tempo, sua cultura. Assim, este texto se posiciona a favor da ideia de que a

84
Mestra em Linguística e Língua Portuguesa - UNESP Araraquara. E-mail: carol_gse@yahoo.com.br
85
Bacharela em Ed. Física. Faculdade Metropolitana de Campinas. E-mail: taynara.spul@gmail.com

CORPOS
205

Educação Física tem evidenciado, também, suas contribuições como componente fundamental da área
de linguagens e da formação do aluno enquanto sujeito ativo física e discursivamente, responsivo e
responsável, portador de um corpo estético e ético.
As discussões aqui desenvolvidas são produto do encontro dialógico entre duas autoras que
reconheceram em seus trabalhos recentes um eixo principal em comum: concepções de linguagem
que a percebem como materialidade significativa, concretizada em textos diversos - verbais, verbo-
visuais, corporais -, mas sempre capazes de instaurar embate, produzir cultura, ressignificar signos
e subjetividades. Um dos trabalhos, no campo dos estudos discursivos, na grande área da linguística,
partia da concepção de linguagem do Círculo de Bakhtin para pensar a produção de sentido e os
conflitos ideológicos em enunciados verbo-visuais do gênero capa de revista (SILVA, 2017)86. O outro
buscava se ater aos embates estabelecidos entre uma escola Municipal e um Ponto de Cultura, ambos
localizados na cidade de Campinas-SP, e atuou durante a criação e a execução de um projeto
educacional que tinha o jongo como um dos temas centrais (SPULVERATO, 2016)87.
Para a discussão proposta nesse evento, foram trazidos do primeiro trabalho alguns
conceitos do Círculo de Bakhtin (como os de linguagem, signo ideológico e esfera de atividades
humana) que foram,à época, mobilizados na análise de enunciados verbo-visuais, mas que podem ser
produtivos, ainda, na análise de outros tipos de materialidades, como o jongo (dançado, cantado e
tocado). Do segundo trabalho, resgatamos justamente a temática do jongo, uma prática discursiva
produto da cultura afro brasileira, originária das senzalas, que se materializa nos próprios corpos em
movimento na aula de Educação Física. Com esse diálogo buscou-se reforçar o papel transformador
de uma prática de ensino-aprendizagem de Educação Física mais dialógica, significativa e
transdisciplinar.
A primeira seção deste artigo aborda a concepção bakhtiniana da linguagem, que possibilita
entender a comunicação entre sujeitos para além de sua dimensão verbal, de seu caráter sistemático
e normativo, contemplando sua natureza dialógica, viva e dinâmica. É essa abordagem da linguagem
que permite pensar o jongo enquanto signo ideológico, produtor novos sentidos e identidades, sempre
em transformação, materializados nos corpos também sempre em movimento. Nesse primeiro
momento, discute-se também a inserção da Educação Física na área de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias, juntamente com as disciplinas de Língua Portuguesa, Literatura e Língua Estrangeira
Moderna, Artes e Informática, estabelecida por documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), desde o final dos anos
noventa.
Na segunda seção sugerimos uma proposta de abordagem dialógica da Educação Física na
escola, em que se supere a visão motriz, tendo como enfoque a práxis. A análise parte de enunciados
verbais, os chamados pontos do jongo, para refletir sobre seus outros elementos constitutivos, como

86SILVA, C. G. Um olhar dialógico para a polêmica na imprensa: os sentidos de “maconha nas capas de revista”, 2017. Dissertação de mestrado
(Linguística e Língua Portuguesa) – UNESP Araraquara. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/151035
87 SPULVERATO, T. R. S. Jongo do casarão para a escola, 2016. Trabalho de conclusão de curto (Graduação em Educação Física). Faculdade

Metropolitana de Campinas

CORPOS
206

o som dos tambores, as roupas, os gestos e movimentos. A partir de discussões levantadas em


trabalhos anteriores, refletimos sobre a capacidade de ressignificação do signo ideológico jongo –
principalmente quando levado para a esfera escolar-; sobre os diálogos possíveis não só entre
disciplinas, mas entre sujeitos, esferas e visões de mundo postas em jogo por meio dessa prática;
sobre a construção da identidade do sujeito em contato com a cultura afro-brasileira que o constitui.
Sugerimos, por fim, uma abordagem transdisciplinar do jongo, que favoreça o diálogo principalmente
entre a Educação Física e outras áreas (principalmente o Português, por serem essas as áreas de
estudo das autoras), mas com outras disciplinas, como a História e a Geografia, por exemplo, e num
contexto ainda mais recente, com o ensino religioso na escola.
Buscamos, com isso, propor uma abordagem da prática de Educação Física (e da prática de
ensino de quaisquer disciplinas, principalmente as da área de linguagens), que entenda o aluno não
como corpo físico que deve ser passivamente adequado às práticas da instituição escolar, mas como
um corpo em movimento, produtor de discursos, de sentidos, agente ativo na produção de cultura.

1. LINGUAGEM E CORPO: onde a Linguística e a Educação Física se encontram

Analisar as manifestações da linguagem (o discurso) e a produção de sentido a partir da


perspectiva do Círculo de Bakhtin, Medviédev e Volochínov, pressupõe um entendimento da linguagem
para além de seu caráter sistemático, invariável e abstrato; ou daquilo que tem de individual e criativo
(Brait, 2006, p.23). Para a autora, a perspectiva bakhtiniana contempla suas várias dimensões,
tomando-a como “uma forma de conhecer o ser humano e suas atividades, sua condição de sujeito
múltiplo, sua inserção na história, no social e no cultural, pela linguagem, pelas linguagens”.
O pensamento bakhtiniano permite, portanto, que o estudo da linguagem não se restrinja a sua
dimensão linguística ou verbal, epropõe que se realizeuma abordagem translinguística – a qual é
possível adotar para lidar com linguagens concretizadas em diferentes materialidades. Neste
trabalho, o que sustenta essa concepção de linguagem é, principalmente, o conceito de signo
ideológico.
Para o Círculo, estamos rodeados de produtos ideológicos que são mais do que elementos
materiais de uma realidade concreta. Nessa abordagem, os signos ideológicos são “objetos de tipo
especial, aos quais são inerentes significado, sentido e valor interno” (MEDVIÉDEV, 2012, p.48).
Constituem o signo, portanto, uma dimensão concreta (sua materialização física), e uma dimensão
simbólica, uma vez que ele produz sentidos, veicula concepções de mundo de sujeitos constituídos
socialmente, situados na história, atravessados por ideologias.
Assim, quando lidamos com o signo ideológico, na concepção do Círculo, se lida com
“verdades ou mentiras, coisas boas ou más, triviais ou importantes, agradáveis ou
desagradáveis”(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 96), com um valor ideológico, um sentido vivencial
atribuído a um material: à palavra, ao som, ao gesto, às vestes, ao corpo, no caso do jongo. Nesse
contexto, é importante reforçar que o conceito de signo ideológico transcende o de signo linguístico e

CORPOS
207

se estende a outras materialidades produtoras de sentido, carregadas de visões de mundo. A


concepção bakhtiniana de signo abrange, dessa forma, “todos os produtos da criação ideológica –
obras de arte, trabalhos científicos, símbolos e cerimônias religiosas etc.” (MEDVIÉDEV, 2012, p.48.
Destaques nossos); “todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo”, que
também reflete e refrata uma realidade exterior (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 29. Destaques
nossos). A partir desse ponto de vista, são signosos fenômenos ideológicos materializados “[...] como
som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer“
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 31. Destaques nossos).
É nesse sentido que compreendemos o jongo como signo ideológico, como produto da
interação dialógica entre sujeitos; como um conjunto de signos produtores de sentidos e de conflitos
ideológicos que se materializam principalmente em três elementos concretos: no corpo em
movimento, na palavra cantada e nos sons que produzem as mãos que batucam. Enquanto signo
dinâmico e vivo, os sentidos do jongo já não são enumeráveis como seus elementos materiais
constitutivos, já que são produtos de contextos específicos, variáveis de acordo com cada tipo
interação entre sujeitos situados social e historicamente88.
Para esta discussão é importante ressaltar, ainda sobre o signo ideológico, que seu sentido
não é dado de antemão, ou atribuído individualmente por cada sujeito, mas “está na relação social de
compreensão, união e coordenação mútua entre pessoas diante de um signo”. Em cada interação, em
cada situação comunicativa específica (nos quilombos, nas apresentações culturais, na escola, por
exemplo), os mesmos sons, gestos e cantos que caracterizam o signo jogo podem produzir diferentes
sentidos.Neste texto,nossas reflexões se voltam ao jongo enquanto prática simbólica que,mobilizada
na esfera educacional, mais especificamente na aula de Educação Física, produz sentidos outros,
manifestos na linguagem verbal, vocal, sonora e corporal.
Desde que foi inserida no campo área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)(BRASIL, 2000), juntamente com a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB)(BRASIL, 1996), atem havido esforço para que a disciplina se distancie de
uma redutora concepção biologizante do corpo. Trata-se de percebê-lo não apenas como
materialidade física, mas como um corpo orgânico em movimento que é, também e ao mesmo tempo,
um corpo social, atravessado pela história e por conflitos ideológicos; produtor de cultura e de
sentidos por meio de seus gestos, de seu corpo, de seus movimentos e práticas.
Essa concepção de Educação Física mais dialógica e mais significativa, que estabelece diálogo
entre sujeitos, entre eles e sua cultura, seu meio e seu tempo e que ultrapassa os limites da prática
livre de esportes consagrados ou da competição, não é proposta recentes, uma vez que vem sendo

88
Na perspectiva do Círculo, as formas relativamente estáveis de interação (BAKHTIN, 1997) são os chamados gêneros discursivos. Assim, é
possível dizer que os sentidos do signo “jongo” variam de acordo com o gênero discursivo no qual ele se materializa (seja como uma
apresentação cultural, uma prática escolar, celebração religiosa) e, consequentemente, com a esfera de atividade humana à qual esse gênero
pertence (artística, escolar, religiosa). , já que cada gênero/esfera possui sua forma de compreender e ressignificar a realidade (MEDVIÉDEV,
2012, p.196).

CORPOS
208

explicitada e valorizada em documentos oficiais, como os PCNs, conforme mostra o fragmento a


seguir:

Sendo o corpo, ao mesmo tempo, modo e meio de integração do indivíduo à realidade do mundo, ele é
necessariamente carregado de significado. [...] É com o corpo que somos capazes de ver, ouvir, falar,
perceber e sentir as coisas. O relacionamento com a vida e com os outros corpos dá-se pela
comunicação e pela linguagem que o corpo é e possui. Essa é a nossa existência, na qual temos
consciência do eu no tempo e no espaço. O corpo, ao expressar seu caráter sensível, tornar-se
veículo e meio de comunicação. [...] Os gestos, as posturas e as expressões faciais são mantidos ou
modificados em virtude de o homem ser um ser social e viver num determinado contexto cultural. Isto
significa que os indivíduos têm sua forma diferenciada de se comunicar corporalmente, que se
modifica de cultura para cultura. E o indivíduo, por sua vez, aprende a fazer uso das expressões
corporais, de acordo com o ambiente em que se desenvolve como pessoa. Isso quer dizer que todo
movimento do corpo tem um significado, de acordo com o contexto.(BRASIL, 2000, p. 38. Destaques
nossos)

Os trechos destacados evidenciam o caráter sígnico do corpo, que é entidade física e


simbólica, material e significativa. Segundo o documento, o corpo é linguagem e é por meio dele, do
contato dele com o os outros corpos e com o mundo sensível, é que tomamos consciência de nossa
existência enquanto seres sociais, vivendo ativamente num dado contexto cultural, comunicando-nos
por meio das várias linguagens às quais o corpo pode recorrer.
Se, por um lado, a lei contempla - ainda que sem oferecer exemplos concretos - aspectos
fundamentais do ensino-aprendizagem de linguagens, entre elas a Educação Física, por outro lado, a
proposta de abordá-la em seu caráter social e cultural, histórico e ideológico; de estudar o corpo
como produtor de linguagem e de sentido, em toda sua complexidade; de dialogar com outras áreas do
saber,parece não ter deixado de ser um desafio para o professor da disciplina (mesmo mais de uma
década após sua implementação), conforme mostram, por exemplo, os estudos de Ladeira e Darido
(2003) e de Santoset al. (2012).
Segundo os autores, a inserção da Educação física na área de Linguagens, Códigos e
Tecnologias é motivo de controvérsia e discussão entre os professores da disciplina. Estes, mesmo
sendo os “responsáveis pelo alcance daqueles objetivos governamentais, não conseguem concebê-la
como uma linguagem e nem estabelecer relações com as demais disciplinas que compõem a área”
(SANTOS et al 2012, p.577). Isso porque, aparentemente, estariam mais evidentes as relações da
Educação Física com a saúde e a qualidade de vida do que com as linguagens (MATTOS; NEIRA,
2001).Além disso, ambos os trabalhos apontam que poucos estudos sobre a educação física escolar
têm se dedicado a investigar as relações dessa com as demais disciplinas integrantes da área de
linguagens códigos e tecnologias.
Aproveitando essas lacunas nos estudos da Educação Física e a proposta do evento de
abordar a temática do corpo responsivo, transgressor e resistente inserido no contexto político do
Brasil contemporâneo, lançamos uma contrapalavra aos debates sobre o papel dessa disciplina na
escola e na constituição do sujeito. Propomos que ela seja entendida como prática de ensino capaz de

CORPOS
209

auxiliar o aluno a ler e a produzir textos – no sentido mais amplo do termo –materializados em
diferentes linguagens e signos; que seja valorizada, enquanto forma de diálogo, produtora de sentidos.
Na última seção deste trabalho, também nos esforçamos para estabelecer relações dialógicas entre o
jongo, na Educação Física, e o estudo das influências de línguas africanas no Português brasileiro,
como forma de tornar mais tangível o que consideramos ser uma mais abordagem transdisciplinar de
conteúdos relevantes para a formação de um aluno consciente de seu corpo e de seu lugar como
sujeito ativo na sociedade e na cultura.

2. O JONGO NA ESFERA ESCOLAR: o corpo é cultura

2.1. O corpo e a história em movimento

O jongo, dança afro-brasileira oriunda das senzalas, tem como elementos comuns: a dança,
realizada em roda com casais se revezando ao centro, os pontos (cantos entoados durante a prática)
e os tambores. Os três elementos, que se apresentam em sintonia durante as rodas, são recursos que
podem ser explorados durante as aulas de Educação Física, pois além de serem práticas físicas, que
põem em movimento o corpo biológico, estão carregados de sentidos, historicamente construídos,
que permitem uma maior compreensão dos eventos do passado (e do presente), assim como de
traços marcantes da cultura afro-brasileira.
Proclamado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como
patrimônio imaterial, em 2005, o jongo foi reconhecido, desde então, como bem cultural de um grupo
formador da sociedade brasileira, que deve ser preservado por ela e pelo Estado, com respaldo da
constituição:

Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se
manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas,
musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais
coletivas). A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 215 e 216, ampliou a noção de patrimônio
cultural ao reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial. O patrimônio
imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em
função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de
identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade
humana. (BRASIL, 2017)89

Uma das justificativas para que o jongo fosse inserido entre os patrimônios imateriais da
cultura brasileira baseava-se no fato de tratar-se de “um elemento de identidade e resistência
cultural para várias comunidades e também espaço de manutenção, circulação e renovação do seu
universo simbólico.” (IPHAN, 2007, p. 11). Essa expressão cultural consolidou-se nas fazendas de café,
durante o período escravocrata, como forma de divertimento, apenas tolerado pelos senhores

89 Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234

CORPOS
210

porqueestes temiam que suas objeçõespudessem colocar“em risco a sobrevivência de seus


trabalhadores” (IPHAN, 2007, p. 22).
Segundo Matos e Abreu (2009) os primeiros registros sobre o jongo, datados do século XVIII,
se referiam a essa prática como batuques, nome genérico, que abarcava, além do jongo,outras
expressões culturais praticadas por negros cativos. Esse olhar desinformado dos que observavam, de
fora, a prática do jongo, contribuiu para que as especificidades das manifestações culturais de matriz
africana fossem historicamente apagadas perante o olhar do senso comum, redutor e
homogeneizante 90. Ao levar o jongo para a escola (ou a escola até o jongo?), a Educação Física pode
ajudar a desconstruir e, principalmente, a reconstruir esses sentidos historicamente cristalizados na
língua e na sociedade, que foram construídos a partir de um olhar etnocêntrico e redutor.
Os relatos referentes aos batuques são encontrados em códigos penais, escritos de
administradores coloniais e cronistas do Brasil e, também, em registros de viajantes. Em muitos
deles, conforme aponta Stein (1985, p. 204), o jongo era citado como “danças e candomblés”,
considerada uma práticabárbara e temida pelos senhores, que acreditavam que ela proporcionaria
aos escravos uma oportunidade de organizar “sociedades secretas, aparentemente religiosas, mas
sempre perigosas, pela facilidade com que alguns negros astutos podem usá-las com finalidades
sinistras”.
Conforme apontou a pesquisa do IPHAN (2007, p.15), esse olhar depreciativo às expressões
culturais dos negros cativos, que as consideravam práticas “bárbaras”, “perigosas” e que a
relacionavam invariavelmente (ainda que não fosse o caso) a ritos religiosos, foi um dos fatores
contribuintes para o desaparecimento do jongo. Somente anos depois, ele passou a ser rememorado
em diversas comunidades na região Sudeste, em ocasiões singulares, dada ao contexto de cada lugar,
mas que tinham entre suas características motivadoras, o fortalecimento da identidade de indivíduos
e/ou comunidades.

No Sudeste brasileiro, em muitas das comunidades com descendentes de escravos, o Jongo


desapareceu, tanto pela dispersão de seus praticantes em consequência da migração e dos processos
de urbanização, como pelo obscurecimento dessas práticas por outras expressões de maior apelo junto
ao crescente mercado de bens simbólicos. Ou também devido à vergonha motivada pelo preconceito,
expresso pelos segmentos da sociedade abrangente, relativo às práticas culturais afro-brasileiras
(IPHAN, 2007, p.15).

Conforme observado, o jongo está impregnado, de símbolos que, ora são marcados por
estratégias de sobrevivência ao período de cativeiro, ora são marcado por perseguições motivadas
pelo temor de autoridades. Uma expressão cultural que mostra os movimentos de resistência, de um
povo que mesmo em uma situação subjugada de trabalho forçado, cantava, dançava, batucava e
louvavam, nas rodas de jongo. Imaginar o belo, o alegre em um período sombrio, como da escravidão,
diverge da visão apresentada ao longo desses anos na esfera escolar, que geralmente conhece
90
Tal como ocorreu historicamente com o temo “macumba”, do quimbundo, que outrora designava um instrumento de percussão africano, mas
que hoje é evocado em tom pejorativo para designar quaisquer cultos religiosos de origem africana (MICHAELIS, 2017).

CORPOS
211

apenas a história da escravidão a partir de imagens de negros açoitados, acorrentados, que viviam
somente para exercer o trabalho braçal.
Além dos tambores, as vestes também produzem sentido. Enquanto os homens geralmente
trajam camisa e calça comprida (com tecido que se assemelha ao linho), não raramente dobrada até a
altura do joelho, as mulheres costumam vestir saias longas, rodadas e floridas, somadas ao uso do
torso - que se assemelha ao turbante. Este adereço pode, aliás, ajudar a estabelecer um diálogo
significativo com o contexto atual dos alunos, já que ele foi, recentemente, tema de polêmicas
veiculadas na mídia91. Além disso, o item já foi incorporado pelo mercado da moda e é consumido
(como produto comercial, não cultural) inclusive pelos jovens em idade escolar.
Discutir os sentidos do turbante, seus usos históricos, sua apropriação pelo mercado, sua
presença no vestuário e na forma de expressão corporal dos próprios alunos é uma forma
ressignificar signos constitutivos da história e da cultura afro-brasileiras e da própria identidade do
aluno. Conforme observou Vidal (2009), as vestes, intramuros da escola, podem representar os
“vários segmentos sociais” dentro do espaço escolar, uma vez que a compreendemos que sua
dimensão significante se realiza “como pura marca material” (SILVA, 2014, p. 91). Pensar na
possibilidade de levar o jongo para a escola exige um olhar cuidadoso que permita explorar todos
esses elementos envolvidos em tão simbólica expressão cultural, desde as vestes, os cantos, a
contextualização histórica, até os instrumentos musicais envolvidos.
Nesta subseção, apontamos, ainda que brevemente, alguns aspectos significativos do jongo
que podem ser explorados no contexto escolar - como sentidos dos sons dos tambores e os
significados das vestes, ontem e hoje -, como forma de contextualizar essa produção cultural como
tema relevante e coerente com a Educação Física associada à área das linguagens. A seguir,
sugerimos, a partir da materialidade verbal de dois pontos cantados no jongo, outros sentidos,
conflitos e ressignificações manifestos verbal e corporalmente que podem ser percebidos numa aula
de Educação Física (em diálogo com outros campos do saber), desde que ela lide com o corpo em
movimento como parte da sociedade, da história e da cultura.

2.2. O verbal e o corporal produzindo sentidos

Parte importante da roda de jongo, juntamente com os tambores e os movimentos do corpo,


são os versos cantados, chamados de pontos. Esses cantos variam muito de um local para outro, pois
surgem de situações cotidianas, ou de particularidades da comunidade. Geralmente a liderança da
comunidade começa o ponto, os demais participantes repetem em coro. Os versos a seguir são
entoados especificamente numa roda de jongo na Comunidade Jongo Dito Ribeiro, em Campinas-SP.
Saravá Nossa Senhora do Rosário/ Saravá São Benedito/ Vamos abrir roda de jongo rezo que esteja
comigo/ Saravá esse Tambu/ Saravá esse terreiro/ Saravá os Preto Velho/ Saravá Dito Ribeiro 92

91 Disponível em: http://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1861267-polemica-sobre-uso-de-turbante-suscita-debate-sobre-


apropriacao-cultural.shtml
92 Jongo Comunidade Dito Ribeiro, Campinas-SP. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MLkSMGa5eB4

CORPOS
212

Nessa comunidade específica, os elementos culturais, como a saudação yorubá “Saravá”, e a


proteção que se pede aos santos Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, precedem a formação da
roda, mas não são elementos recorrentes de todasas rodas de jongo. Como temos enfatizado aqui, os
elementos recorrentes são a dança, o canto e os tambores, produzindo efeitos diversos (não
necessariamente associados à esfera religiosa), de acordo com os sujeitos e as comunidades
envolvidas. O formato de roda, por outro lado, pode ser percebido como característica importante
dessa prática, já que a comunidade se reúne num círculo, fazendo com que as vozes se misturem para
que, juntas, possam ressoar com mais força.
Mais uma vez, o tambor também aparece como elemento fundamental (referido como tambu),
saudado pelos participantes, assim como o terreiro (que geralmente se refere a um espaço de terra
batida). Antes de entrar na roda alguns indivíduos tocam as pontas do dedos na cabeça, e
posteriormente no tambor; outros, somente tocam a ponta dos dedos no tambor, como se pedissem
licença para participar do diálogo. Quando a roda de jongo se inicia, casais se revezam ao centro,
realizando um gesto particular dessa dança, a umbigada (na qual encenam tocarem umbigo contra
umbigo). Os demais gestos variam de região para região, assim como os pontos.
É importante lembrar que cada um desses gestos, instrumentos, sons e palavras produzem
seus sentidos específicos em contextos particulares, e que não cabe a este trabalho investigá-los,
visto que ele é apenas uma proposta geral de abordagem do corpo que supere a ideia do biológico na
Educação Física, resgatando o sujeito social e a cultura que a constituem enquanto linguagem. Cabe
considerar, ainda, que a Educação Física, por mais que se atente em levar o contexto histórico do
jongo, não pode dar conta de suas singularidades regionais, estritamente relacionadas ao meio que
em que ele está sendo praticado.
Assim, todos esses sentidos podem ser melhor explorados, com a Educação Física em diálogo
com outras disciplinas, entre elas cabe destacar a História e a Geografia. A primeira poderia
aprofundar o estudo da história da formação da sociedade brasileira, para além da violência sofrida
pelo negro quando de sua escravização no território do Brasil. A disciplina poderia, por exemplo,
buscar contar uma história da África que tem início muito antes da escravidão, com a rica e
diversificada cultura do continente que também nos constitui enquanto país.
Encaminhando as discussões para seu encerramento, ainda que temporário, vejamos mais
um ponto de jongo para refletir sobre os sentidos e ressignificações expressos não só na linguagem
corporal, mas também na linguagem verbal, como se nota nos enunciado a seguir:

Tavadurumindocangoma me chamou/ Tavadurumindocangoma me chamou/ Disse levante povo cativeiro


já acabou93

93
Ponto de Jongo, gravado por Clementina de Jesus, em 1966. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XJ2nwx7khq8

CORPOS
213

O ponto transcrito acima, regravado pela cantora brasileira Clementina de Jesus, exemplifica
as muitas ressignificações pelas quais o jongo vem passando ao longo dos séculos. Mesmo atualizado
numa gravação transmitida via internet, numa das plataformas de comunicação mais difundidas hoje,
muito diversas das condições de produção de um ponto de jongo “original”, as marcas da
historicidade desse canto permanecem refletidas e refratadas na materialidade linguística do
enunciado, preservada na interpretação da cantora.
Na palavra “durumindo” (dormindo), por exemplo, a alteração no grupo consonantal “rm” pode
ser percebida como uma “epêntese explicada pela regra fonotática que prefere a estrutura
consoante-vogal”, resultando no acréscimo de um –u entre as consoantes (MENDONÇA, 1973, citado
por ALKMIN, 2009). Segundo a linguista, tal marca na fala é atribuída ao contato do português
brasileiro com línguas africanas.Nesse sentido, é possível resgatar nos pontos de jongo – seja na
fonética ou no léxico – marcas históricas do contato entre culturas e línguas.
No contexto escolar, seria possível, por exemplo, relacionar o estudo do jongo, na Educação
Física, com o estudo da língua portuguesa em contato com as línguas africanas, observando as
contribuições de culturas africanas para a formação da língua e da sociedade brasileira. Caberia,
ainda, à disciplina de Língua Portuguesa, observar como os signos linguísticos de origem africana
podem aparecer carregados de sentidos negativos (a despeito de seus vários sentidos possíveis),
como as palavras “macumba” e “batuque”, citadas neste trabalho, ou, ainda, a palavra “maconha”,
cujos sentidos historicamente acumulados são discutidos, por exemplo, por Silva (2016).
Por último, resta apontar nesse canto, o conflito ideológico que ali se reflete/refrata, não só
na materialidade verbal, mas também sonora. Afinal, é o tambor (cangoma) que vem anunciar o fim do
cativeiro, no último verso. É o instrumento que desperta o sujeito de seu sono, abrindo-lhe os olhos
para um futuro de liberdade. Mais uma vez, fica evidente a inserção do jongo na categoria de signo
ideológico, na verdade, de um conjunto de signos ideológicos; isto é, de elementos significativos, que
veiculam visões de mundo. No caso, trata-se da visão de mundo do sujeito que resistiu à escravidão
para ver um dia em que o cativeiro será apenas memória. Nesse movimento dinâmico de forças
dominantes e marginais refletido e refratado no jongo, a cultura popular (manifestações
discursivas/culturais de caráter extraoficial) é ressignificada e traz o não-oficial a um lugar de
destaque (dentro da escola). Oferece-se, então, ao sujeito aluno, “uma visão do mundo, do homem e
das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial”, numa apropriação da
palavra de Bakhtin (1987, p.4-5), quando este se refere à cultura popular no contexto rabelaisiano
No canto, na dança e na percussão que constituem o jongo se identificam, portanto, traços
que evidenciam mais do que elementos históricos, culturais e identitários de dados grupos sociais,
mas questões ideológicas, como o conflito de classes que se desenvolve na arena desse signo
ideológico (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p.45).
No jongo, entrecruzam-se, então, juízos de valor que instauram conflitos, por exemplo, entre o
senhor e os escravos, a servidão e a liberdade, entre o discurso dominante e aquele que, ao longo de
séculos, vai das margens ao centro, tecendo seu caminho de resistência. “Na verdade, é este

CORPOS
214

entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006,45); são justamente esses embates que fazem com que o jongo
permaneça sendo um material simbólico de tamanha relevância no contexto educacional brasileiro
contemporâneo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões brevemente apresentadas neste texto não tinham como objetivo fazer uma
análise exaustiva dos sentidos produzidos pela prática do jongo, mas apontar algumas possibilidades
de trabalhar a temática na aula de Educação Física, entendida como prática dialógica, capaz de
estabelecer diálogos entre disciplinas (principalmente a História e a Língua Portuguesa, neste
trabalho, mas não apenas elas), entre cronotopos, entre sujeitos e culturas. Esperamos, ainda, que a
ideia de transdisciplinariedade, tão cara a diversas teorias, documentos oficiais e discursos
reconhecidos, tenham se mostrado um pouco mais palpável, possível de inserir na complicado
contexto escolar brasileiro.
Finalmente, espera-se que, com esses apontamentos, seja possível olhar para a Educação
Física enquanto prática significativa, capaz de contribuir na formação de um sujeito mais consciente
de si e de seu papel como sujeito ativo da sociedade/cultura que faz parte.

REFERÊNCIAS

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BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão. 2ª. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
______. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.
Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1987.
BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
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Diário Oficial da União, Brasília, 1996.
BRASIL, lei no 10.639, Brasília, 9 de janeiro de 2003. Estabelece diretrizes da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira”, e dá outras providências.

CORPOS
215

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares


nacionais: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEF, 2000.
IPHAN; Jongo no Sudeste, 5º Volume da série de Dossiê, Brasília – DF, 2007.
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MEDVIÉDEV, P.N. O método formal nos estudos literários. Tradução de Sheila Grillo e
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STEIN, S. J. Vassouras, a Brazilian coffee country (1850-1900): the roles of planter and slave in
plantation society. Princeton: Princeton University press, 1985.
VIDAL, D. G. No interior da sala de aula: ensaio sobre a cultura e a prática dos escolares. Currículo
sem fronteiras, v.9, n.1, 2009.

CORPOS
RESUMO
216
Este trabalho tem por objetivo analisar como se dá
o processo discursivo de construção dos corpos
sexualizados no gênero Young Adult. Ainda sem

A DESCOBERTA DA muita visibilidade acadêmica por estar inserido na


coleção das obras best-seller, o gênero retrata a
juventude contemporânea e, mais especificamente,

SEXUALIDADE: a homoafetividade
a problemática em torno do processo de se inserir
na sociedade e de se adequar a sua realidade. O
processo de análise se mostra possível a partir do
estudo das proposições teóricas de Mikhail Bakhtin
nos romances ya e da orientação de linguagem como construção
social o que permite uma investigatgação sobre as
representações desses corpos na literatura. Nessa
perspectiva, a partir da obra “Aristóteles e Dante
descobrem os segredos do universo” (2014) foi
possível estabelecer um recorte representativo
SILVA, Juan dos Santos 94 desse gênero, a fim de se observar como se dá a
construção discursiva da sexualidade e o quanto o
ALVES, Maria da Penha Casado 95 gênero discursivo em foco é reflexo dos sujeitos
que o leem. Sendo a construção dos significados
situadas em circunstâncias sócio-históricas
INTRODUÇÃO particulares, como propõe Moita Lopes (2006), a
pesquisa problematiza esse processo de
sexualidade dos corpos a partir do discurso e
̶ O que você tem contra adultos? evidencia esses sujeitos participantes desse
̶ Eles têm ideias demais sobre quem cronotopo. Junta-se ao arcabouço teórico de
Guacira Louro (2014) e Judith Butlher (2003), na
somos. Ou sobre quem deveríamos
intenção de, respectivamente, nos permitirem
ser. discutir a construção desses corpos sociais (e
(SAÉNS, 2014, p.137) sexuais) e evidenciar a construção do ser a partir
do discurso. A pesquisa se insere na área da

A
Linguística Aplicada e se orienta teórico-
globalização conseguiu romper com diversos paradigmas e metodologicamente por uma investigação
questões que vinham sendo cristalizadas desde as épocas mais qualitativa dos dados.

remotas, sobretudo aquelas ligadas às questões morais e Palavras-Chave: Young Adult. Sexualidade.Corpos.
éticas do ser humano. A Idade Média teve um gigantesco domínio da Cronotopo. Contemporaneidade

Igreja Católica, a qual por meio do discurso censurou os assuntos


considerados inadequados e fez do meio social um espaço
extremamente homogêneo e desprovido do que era visto naquela época como impuro. Esse discurso
monológico (BAKHTIN, 2008) nada mais é do que um mecanismo linguístico responsável por negar os
discursos outros e perpetuar uma imagem singular e cristalizada sobre os fatos da vida, penalizando
aqueles que tentam se desviar dele. Esse poder monológico está nas mãos justamente daqueles que
estão no poder e é por isso que sua natureza é mutável, uma vez que variará com o tempo – uma vez
que a posição de poder vem sendo ao longo do tempo passada de grupo a grupo, como vivenciamos o
poder da igreja, da nobreza e, hoje, da burguesia.
Sobre isso, se faz necessário resgatar a noção de que a linguagem possui significados que
não são intrínsecos a si, mas resultado da interação dos sujeitos em um dado espaço/tempo
(cronotopo) (BAKHTIN, 2015; VOLOCHINOV, 2017). Nesse sentido, ao recortarmos dado período

94Aluno de graduação em letras (língua portuguesa e literaturas) e bolsista de iniciação científica (CNPq) na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. E-mail: juanfflorencio@gmail.com
95Professora Doutora, UFRN.E-mail: penhalves@msn.com

CORPOS
217

histórico teremos sujeitos singulares historicamente que observarão os fenômenos de linguagem e


suas manifestações com um olhar bem peculiar de acordo com o plano de fundo que o integra e
constitui. É confuso, portanto, imaginar um avanço temporal que persiste em carregar determinadas
estruturas cristalizadas. Mesmo derrubando o poder da Igreja, a sociedade burguesa ainda
permanece com muitas das suas doutrinas e ideologias. A questão é que, como bem menciona Marx,
“a burguesia cria um mundo a sua imagem e semelhança” (1999). Esse pensamento se encaixa aos
demais grupos que antecederam esse grupo social na posição de poder. Igreja, nobreza e burguesia
possuem sistemas sociopolíticos específicos os quais, logicamente, precisam de sujeitos específicos
para fazer suas engrenagens funcionarem da melhor forma. Portanto, monologizar os discursos a fim
de que se crie esse tipo de indivíduo específico, mais rentável, homogêneo e lucrativo é um objetivo
estrutural desse sistema.
No meio desse sistema, é esperado que se haja um sério policiamento dos corpos do sujeito
dispostos nesse sistema. Para o capitalismo é muito mais interessante se ter um contingente de
pessoas homogeneizadas, sem identidades destoantes, dentro de uma mesma forma e guiadas
ideologicamente para a manutenção da construção do sistema. A construção de um pensamento
crítico, o ato de assumir identidades autênticas ou de seguir outros caminhos que não aqueles pré-
estabelecidos, causa reações de contenção por parte de todo o sistema. Sobre essas dissidências
identitárias há diversos exemplos, mas neste artigo trataremos de um muito específico e que tem
ganhado destaque nos estudos antropológicos, históricos e da linguagem – sobretudo na linguística
aplicada: a homoafetividade. Tendo em vista esse público específico, este trabalho se propõe a
investigar como se dá o processo de descoberta da homoafetividade nesse momento da vida e como
as ferramentas de massa – sobretudo a literatura – auxiliam nesse processo de identidade. Para
tanto, será utilizada a obra “Aristóteles e Dante descobrem os segredos do universo” como
exemplário representativo dentro da literatura Young Adult.

1. O MUNDO E A AVENTURA DA DESCOBERTA

Um dos resquícios do domínio da igreja para a sociedade capitalista foi o problema de se


discutir questões relacionadas ao sexo e a sexualidade. Para Foucault (1998), vivemos por muito
tempo em uma era vitoriana, na qual as famílias e as instituições sociais em nome de uma “moral” e
dos “bons costumes” varreram para baixo do tapete todos os assuntos dentro desse campo. Na
contemporaneidade, ferramentas tecnológicas como a internet propiciam a reabertura das ágoras
gregas de uma forma mais democrática e com uma quase infinita possibilidade de informações. É
nesse espaço que a questão da sexualidade encontra espaço para ser discutida, abordada,
experenciada e, como parte integrante de um sistema cultural, ressignificada (LOURO, 2016;
VOLOCHINOV, 2017).
Ainda que dentro desse sistema “mais aberto” ao diferente e às discussões sobre o “novo”,
ainda há a coerção aos que se aventuram nesse universo de descobertas do próprio corpo e se

CORPOS
218

revelam diferente do modelo padrão para a sociedade. Essa questão de uma identidade padrão é
evidenciado pelos mecanismos de poder e fazem com que

de qualquer forma, investimos muito nos corpos. De acordo com as mais diversas imposições culturais,
nós os construímos de modo a adequá-los aos critérios estéticos, higiênicos, morais, dos grupos a que
pertencemos. As imposições de saúde, vigor, vitalidade, juventude, beleza, força são distintamente
significadas, nas mais variadas culturas e são também, nas distintas culturas, diferentemente atribuídas
aos corpos de homens ou de mulheres. Através de muitos processos, de cuidados físicos, exercícios,
roupas, aromas, adornos, inscrevemos nos corpos marcas de identidades e, consequentemente, de
diferenciação. Treinamos nossos sentidos para perceber e decodificar essas marcas e aprendemos a
classificar os sujeitos pelas formas como eles se apresentam corporalmente, pelos comportamentos e
gestos que empregam e pelas várias formas com que se expressam. (LOURO, 2016, p.15)

O corpo em conjunto com seus adornos, características, formas e gestos são questões
fundamentais para a formação da identidade. É a partir da análise desse corpo que os sujeitos o
relacionam com determinadas visões. O cabelo longo fará com que pensamos em um estilo
alternativo, hippie ou rockeiro, caso seja longo e escuro acompanhado de brincos, maquiagem escura
ou traços mais sombrios. A camisa da série remeterá automaticamente a imagem de um fã que tenta
representar seu hobbie na sua identidade visual. Outros corpos, no entanto, terão sua imagem ligada
a questões fora desse padrão, com o é o caso do negro de dreads que possivelmente será ligado à
sujeira, drogas e desvio moral. Ou o gay, que ao se permitir fugir de um padrão de vestimenta pode
ser visto como devasso, impuro e imoral. Essa visão não é por acaso e não se baseia em algo verídico,
mas em um estereótipo que nada mais é do que uma ferramenta coercitiva para guiar esses
indivíduos para dentro da norma.
Imaginar esse processo de normatização é extremamente irônico ao se falar de uma
sociedade que propaga cada vez mais uma ideia de autonomia e que influencia a sermos quem somos.
A realidade é que se pode ser quem quiser, desde que seja um modelo estabelecido pelo sistema.
Sobre isso, é fugaz essa percepção da formação identitária e de seu conflito na adolescência. É
justamente o período no qual os sujeitos começam a se reconhecer como indivíduos singulares e,
muitas vezes, é um processo doloroso perceber a necessidade de se mutilar em diversos aspectos
para poder entrar dentro da caixa padronizada do mundo social. A escola tem papel decisivo nesse
processo, já que não é de forma alguma uma instituição sem ideologia ou passiva, na realidade, tem
atuado silenciosa e sistematicamente na homogeinização desses alunos enquanto os prepara para o
mundo burguês como futuros operários.

2. HERÓIS DA LITERATURA DE MASSA

Ao se entender a linguagem como construto dos sujeitos em dado cronotopo, é de se imaginar


que cada recorte específico do tempo demonstrará necessidades comunicativas específicas dos
sujeitos. Na contemporaneidade com uma quantidade substancial de novas tecnologias e gêneros

CORPOS
219

provenientes dos smartphones, computadores e diversos novos apetrechos tecnológicos os


processos de hibridização e intercalação propiciam o rearranjo de velhos gêneros em estruturas
repaginadas capazes de darem conta dos interesses comunicativos das pessoas.
Esse processo de mudança das estruturas discursivas afeta também a literatura, a qual tem
suas formas de narrativa alteradas em decorrência do plano de fundo que se estende atrás dela. Esse
é o caso do Young Adult96, o qual como já defini em trabalhos anteriores (SILVA & CASADO ALVES, 2016,
2017, no prelo) trata-se de um gênero com protagonistas entre catorze e vinte anos que a partir de
um grande conflito – a morte dos pais, a descoberta da homossexualidade, um grande amor ou
alguma outra questão pertinente a esse período – irão passar por uma longa jornada até chegar
enfim, a um certo amadurecimento frente a situação. Ainda sobre o gênero, é importante perceber
que
as obras YA são um retrato muito semelhante da realidade juvenil contemporânea, a qual teve suas
práticas discursivas totalmente alteradas com as mudanças causadas pela globalização. Essas
mudanças, novos hábitos, práticas identitárias e diversos fenômenos discursivos podem ser observados
a partir da leitura dessas obras que transmutam a realidade juvenil para os enredos de ficção. Sendo os
gêneros os provedores do processo de interação dos sujeitos, torna-se pertinente, portanto, definir
como esse gênero se estrutura na contemporaneidade, tendo em vista ele não ser novo (a literatura
para jovens já existe há bastante tempo), mas ter um novo arranjo devido ao cronotopo em que se
encontra. (SILVA; CASADO ALVES, no prelo)

Nesse sentido, essas obras se repaginam nesse momento e se tornam um grande


representativo da identidade desse público juvenil. No cenário contemporâneo, os pais precisam
trabalhar cada vez mais na busca de um ideal de vida propagado pelo sistema capitalista e os filhos,
por sua vez, passam muito tempo na escola onde constroem relações de alteridade com os outros
alunos e em casa, na frente de livros ou da tela do computador (jogando, assistindo filmes e séries
nas redes de streams ou socializando nas redes sociais), nesses casos, construindo a alteridade com
personagens fictícios ou com amigos virtuais. Sobre isso, Maffesoli (2005) teoriza sobre uma geração
que não tem mais os pais como exemplo a ser seguido e como fonte de inspiração, na realidade, os
jovens cada vez mais enxergam nos personagens da literatura de massa a fonte de sua identidade e
material para tentar preencher o seu inacabamento.
Essa questão pode ser facilmente visualizada no gigantesco consumo dessa cultura de massa,
sejam por meio dos livros juvenis sejam pelas produções cinematográficas. Nessas linguagens a
juventude encontra personagens com os mesmos dilemas deles. Jovens que tentam encontrar seu
local no mundo a medida em que são repulsados por determinados sistemas ou não conseguem se
encaixar em lugar algum. A produção de obras que tratam a sexualidade tem aumentado nos últimos
anos, inclusive no Brasil em que filmes como “Hoje eu quero voltar sozinho” (2014) e autores como
Vinícius Grossos tratam a questão da homoafetividade nesse viés juvenil e situado na cultura nacional.

96
A partir de agora nos referiremos ao gênero com sua abreviação: YA (Young Adult).

CORPOS
220

Dos autores mais prestigiados do YA, John Green e David Levithan possuem obras que tratam a
questão de forma abundante, inclusive na obra Will & Will (2013) escrito em parceria por eles.
Em "Aristóteles e Dante descobrem os segredos do universo", somos apresentados a dois
personagens principais: Aristóteles e Dante. Ambos possuem quinze anos e vivem uma vida comum
como a de outros adolescentes. A trama é narrada por Aristóteles (ou Ari, como é mais utilizado no
livro). O rapaz vive com seus pais, uma família bem estruturada de classe média e de origem
hispânica que tem poucos problemas, e um desses poucos é o irmão de Ari que está na prisão e os
pais nunca conversam sobre isso. Essa ausência de comunicação preocupa o menino, que gostaria de
saber sobre o irmão, mas a família não dá brechas para que isso seja possível. Por sua vez, Dante tem
menos brechas na sua personalidade e está muito mais ciente daquilo que ele é. Apesar de não ser
algo explícito no início da trama, o menino tem consciência da sua homossexualidade e será
extremamente importante essa demonstração para chamar a atenção do Aristóteles de que ele
também possui algo mal resolvido dentro de si.
A trama da história vai sendo desenvolvida de uma forma natural, com uma linguagem sem
muitos rebuscamentos e extremamente próxima daquela utilizada pelos adolescentes de quinze anos
da atualidade. A questão da linguagem é o que torna o YA tão aclamado pelos leitores, já que a
construção e o discurso ingênuo das personagens que vão se complexificando e amadurecendo ao
longo das tramas é responsável por potencializar a questão da alteridade durante a leitura e
contribuir para o processo de identificação a partir das personagens.

Dante passou a tarde toda limpando o quarto. E eu, lendo o livro de um poeta chamado William Carlos
Williams. Nunca tinha ouvido falar dele, mas até aí nunca tinha ouvido falar de ninguém. E até que entendi
alguma coisa. Não tudo, mas alguma coisa. E não odiei. Fiquei surpreso. O livro era interessante; não era
idiota, bobo, pedante nem intelectual demais... nada do que eu pensava que poesia era. Alguns poemas
eram mais fáceis que outros. Alguns eram inescrutáveis. Comecei a achar que talvez soubesse o
significado dessa palavra. Fiquei pensando que poemas são como pessoas. Algumas pessoas você
entende de primeira.Outras você simplesmente não entende... e nunca entenderá. (SAÉNS, 2014, p.40)

O posicionamento de Aristóteles no excerto anterior revela uma questão interessante sobre a


prática da leitura na adolescência e, por consequência, na escola. É extremamente comum que os
alunos rejeitem muitas das leituras propiciadas por esse espaço por elas tratarem de temas que são
considerados chatos ou irrelevantes para esses sujeitos. A razão para isso é bem clara, o aluno,
muitas vezes, não consegue se enxergar nessas narrativas por tratarem de temáticas mais adultas,
de caráter social e, sobretudo, propiciarem não exatamente uma diversão, mas um momento de
leitura de proposição, que necessita bastante esforço para ser compreendida. Esse processo é
diferente da leitura que grande parte dos alunos procuram, na qual por meio de situações próximas
do seu cotidiano ele consiga estabelecer laços com a história e encontrar respostas para as suas
lacunas. Isso pode ser possível se na narrativa o sujeito encontrar personagens que possuam um
corpo semelhante ao seu, ou seja, se esses jovens procuram na ficção sujeitos verossímeis, com

CORPOS
221

pulsões semelhantes, decepções, crises de identidade e uma longa jornada de redenção em busca
desse “eu”.
A escola acaba, portanto, auxiliando na construção de uma certa repulsa pela literatura à
medida que ignora as leituras prévias do aluno e convida para a sala de aula apenas as obras elegidas
como canônicas. Essa insistência advém de um discurso monológico que tenta definir o que é a leitura
boa e a ruim e, ao mesmo tempo, tenta perpetuar essa literatura “ruim” às margens. Essa
permanência apenas no canônico revela as forças verbo-ideológicas, as quais as forças de contenção
(centrípetas) forçam o aluno a permanecer em um sistema de conceitos cristalizados e unificados e,
em contrapartida, as suas outras leituras o convidam a sair desse sistema fechado e visualizar outras
possibilidades, desse modo funcionando como forças centrífugas. Romances que tratem da
homossexualidade com tanta força não eram tão comuns no passado e, portanto, seu aparecimento
em romances que tentam naturalizar e colocar no mesmo patamar de um romance hétero entram em
conflito com essa normatização presente na literatura e, simultaneamente, na sociedade
contemporânea. Dessa maneira, livros, séries, filmes e outras manifestações artísticas da pós-
modernidade têm intrínsecos discursos de emancipação e igualdade que entram em choque constante
com os conceitos cristalizados da sociedade, sobretudo no que tange às questões sexuais de uma
sociedade filha da era vitoriana.
As personagens fictícias acabam, portanto, contribuindo para a afirmação das identidades
individuais. O ato solitário de ler possibilita, a partir da alteridade, a efetiva construção do sujeito e,
em seguida, torna esse ato de ler coletivo ao se agrupar em comunidades de leitores, nas quais essa
leitura compartilhada como prática social situada, cria laços coletivos de identidade e sujeitos que
encontram a partir da leitura espaço para discutirem, se reconhecerem, testarem seus corpos e,
efetivamente, moldar suas identidades em um espaço menos hostil. É aí, portanto, que surge a
importância da análise desse material consumido por esses sujeitos.

3. HOMOSSEXUALIDADE NA VIDA, HOMOSSEXUALIDADE NA ARTE

A questão da sexualidade precisa estar situada historicamente para que se possa fazer uma
análise efetiva de suas representações nos artefatos culturais, afinal, a construção dos significados
relacionadas a ela dependem disto. No Brasil, espera-se que a adolescência seja justamente o período
em que a sexualidade aparece e é perfeitamente aceitável que esses jovens sejam sexuados. No
entanto, essa questão do ser sexuado acontece de forma distinta, sobretudo ao se levar em
consideração a questão do gênero. A primeira questão é que se espera uma sexualidade
heterossexual e não-reprodutiva, ou seja, a questão da homoafetividade não é compreendida como
natural por grande parte da sociedade e, em casos heterossexuais, a gravidez é algo que deve ser
evitado a qualquer custo (PAIVA, 1996, p.214).
Compreender as identidades sociais como únicas e cristalizadas é uma questão que deve ser
derrubada para a compreensão dos sujeitos presentes na modernidade fluida. Nesse sentido, é

CORPOS
222

essencial a compreensão dessas identidades como fragmentadas, uma vez que Hall (1990, p. 233)
“[…] talvez em vez de pensarmos a identidade como um fato já completo, […] deveríamos pensar a
identidade como uma ‘produção’, que nunca está completa, sempre em processo e sempre constituída
dentro, e não fora das representações. Ou seja, somos uma espécie de colônia de identidades, uma
série de fragmentos que formam o nosso eu, sempre em trajetória e em mudança. Assim, surge outra
questão referente à sexualidade que são suas combinações. Ou seja, para a mulher, o sistema guia
que sua sexualidade deva ser controlada ao máximo, enquanto que a dos meninos deve estar aberta
para não conseguir resistir a nenhuma chance de se envolver em uma prática sexual, evidenciando a
imagem do homem viril, sexual e macho.
Esses construtos sociais criam estereótipos que se cristalizam no meio social e servem como
modelos a serem seguidos, justamente os modelos os quais o sistema considerará correto. Se
assumir enquanto pessoa homoafetiva causa um grande abalo no espaço social em que o sujeito se
encontra, assim como visualizar um discurso que dialoga com homossexualidade causa um certo mal-
estar nos que observam esse discurso.

Quando uma figura de destaque assume, publicamente, sua condição de gay ou de lésbica também é
frequente que seja vista como protagonizando uma fraude; como se esse sujeito tivesse induzido os
demais a um erro, a um engano. A admissão de uma nova identidade sexual ou de uma nova identidade
de gênero é considerada uma alteração essencial, uma alteração que atinge a "essência" do sujeito.
(LOURO, 2016, p.15)

Talvez a grande problemática em torno das questões de gênero e sexualidade estejam


ancoradas justamente no fato de que nossos corpos são, em última instância, aquilo que parece mais
fixo e concreto no mundo cultural. A certeza de uma sexualidade e de um corpo que dita identidades
são uma das poucas coisas as quais não conseguimos ainda enxergar direito enquanto fluida nos
processos sociais em constante alteração do meio social. Os discursos dominantes normatizaram
tanto as questões de sexualidade e gênero que não esperamos que haja ambiguidades ou
inconstâncias com ele. No entanto, há. Afinal, “os corpos são significados pela cultura e são,
continuamente, por ela alterados (LOURO, 2016, p.14).
Ao tratar a questão da homossexualidade de uma forma tão natural e sem qualquer
implicitude, o YA utiliza um processo de hibridização e intercalação para moldar a literatura juvenil
atual a um novo olhar da situação baseado no cronotopo que se estende como seu plano de fundo.

As novas tecnologias reprodutivas, as possibilidades de transgredir categorias e fronteiras sexuais, as


articulações corpo-máquina a cada dia desestabilizam antigas certezas; implodem noções tradicionais
de tempo, de espaço, de "realidade"; subvertem as formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou
de morrer. (LOURO, 2016, p.10).

As novas possibilidades de transgredir estruturas socialmente cristalizadas reverberam


também em uma possibilidade de transgredir modelos literários pré-estabelecidos e romper as auras

CORPOS
223

das coleções tidas como únicas e insubstituíveis (BENJAMIN, 1985; CANCLINI; 2003). O panorama
social em que nos encontramos guiam os autores a produzirem novas narrativas, os leitores a
procurarem outros artefatos culturais e o mundo a, forçosamente, ser encaminhado a rever
determinados conceitos e abrir as fronteiras a novos contingentes ideológicos que se esgueiram
pelas frestas solidificadas dos modelos padrões e reivindicam reconhecimento. São tempos em que os
ideias da modernidade enfrentam constantes questionamentos e passam a serem reescritos,
principalmente, no que se refere à definição de um sujeito homogêneo (MOITA-LOPES, 2002). A
evidência dos romances YA afirmam a constante luta de uma população evidenciada como diferente e
destinada às margens. Esses discursos se recusam a ecoarem dentro de armários e começam a
chegar nos outros cômodos da casa, na literatura, na cultura... na arena discursiva. Arte e vida
dialogam com o inevitável: os discursos do Sul (MOITA-LOPES, 2006) precisam ser ouvidos.

4. YOUNG ADULT E OS SEGREDOS DO UNIVERSO

Espancaram... – ele sussurrou. – Espancaram meu Dante até não


poder mais. Quebraram costelas, socarem seu rosto. Ele está
cheio de hematomas. Fizeram isso com meu filho.
Era estranho querer abraçar um adulto. Mas minha vontade era
exatamente essa.
Terminamos o café.
Não fiz mais perguntas.

(SAÉNS, 2014, p.137)

A literatura YA tem em si uma característica interessante que vai totalmente de encontro a


uma das principais críticas à literatura de massa. O entretenimento do gênero não é mero
passatempo ou possui uma narrativa conformativa a qual não gerará questionamentos no leitor e a
edificação de um pensamento crítico. Na realidade, essa percepção por si só já é falha por
desconsiderar a individualidade de cada sujeito, que pode muito bem se desenvolver com inúmeras
narrativas, por mais que desprovidas de grandes efeitos linguísticos, ao ligar essa literatura ao seu
conhecimento de mundo (um efeito dialógico) e produzir novos conhecimentos. O YA, em específico,
traz os discursos dessas identidades constantemente apagadas das narrativas sociais e tenta
demonstrar, claro que em uma perspectiva ainda juvenil e frágil, a realidade quando se assume
publicamente esse discurso homossexual.
No caso da obra, um grupo de garotos viu Dante beijando um outro rapaz e o espancaram. A
escola é o primeiro local em que jovens lidam com discursos distintos daquele de suas casas e onde
começam a se formar as primeiras noções de diferença, uma vez que longe do discurso
homegenizador de casa, tem de lidar com sujeitos únicos e formados a partir de discursos outros. A
identidade do sujeito se forma, portanto, a partir da diferença. E essa diferença é afirmada contra
aquilo que está mais próximo e, consequentemente, gera mais ameaça (BORDIEU, 1979, p. 558). O

CORPOS
224

discurso homofóbico surge justamente na normatização do que é ser homem em uma sociedade
capitalista e conservadora. Essa definição de homem estabelece, por consequência, modelos que são
refratados, e estes são evidenciados e punidos pela sociedade a partir de comportamentos mais
evidentes como o do romance, ou silenciosamente como as constantes tentativas de apagamento
dessas pessoas no meio social.

Senti vontade de dizer que nunca tivera um amigo, nenhum, nenhum de verdade. Até Dante. Senti
vontade de dizer que não sabia que existia gente como Dante no mundo, gente que observa estrelas, que
conhecia os mistérios da água, que sabia o suficiente para entender que os pássaros pertenciam ao céu
e não deveriam ser derrubados de seu voo gracioso por tiros de moleques idiotas e cruéis. Senti
vontade de dizer que Dante transformara minha vida e que eu jamais seria o mesmo, jamais. E que, na
verdade, minha sensação era de que Dante tinha salvado a minha vida, não o contrário. Senti vontade de
dizer que ele tinha sido o primeiro ser humano além da minha mãe com quem pude falar de coisas que
me assustavam. Senti vontade de dizer tantas coisas e, contudo, não tinha as palavras. (SAÉNS, 2014,
p.336-337)

Talvez o período da adolescência seja tão conflituoso por, além dos hormônios a flor da pele e
a busca pelo pertencimento em um mundo hostil em que nem toda identidade é tolerada, os jovens
estavam em uma infância em que tudo parecia totalmente explicado e destinado a um felizes para
sempre. As narrativas da infância estão repletas de mundos mágicos, príncipes que tiram princesas
de uma situação ruim e vivem para sempre felizes, sentimentos simples e facilmente resolvidos e os
pais que estão ali para resolver qualquer coisa que aconteça. A adolescência, por sua vez, traz os
primeiros amores não correspondidos, a desesperança, o entendimento de um mundo complexo e
nada libertário, as responsabilidades e, sobretudo, o encaminhamento homogeneizador para uma vida
que parece pré-estabelecida (escola, faculdade, trabalho, família, aposentadoria e morte). A vida boba
e sem sentido de Aristóteles começa a fazer mais sentido ao encontrar Dante, o que se justifica pelo
seu reconhecimento de si mesmo a partir da observação do amigo homossexual e do fato desse amor
ser a sua resposta para os segredos do universo.
Ao representar essas questões pertinentes a uma juventude contemporânea tão recheada de
questionamentos e dificuldades de se encontrar, o YA possibilita, por meio do artefato artístico, a
fomentação da alteridade a partir da ficção. A sexualidade, os problemas familiares, a questão da
identidade são transformadas em narrativas e os adolescentes podem, a partir da prática da leitura,
ter um material para tecer reflexões e comentários que burlam o sistema cristalizado da escola e da
sociedade. O poder centrífugo dessas narrativas possibilitam um desapego de definições pré-
estabelecidadas e encaminham para uma compreensão de uma sociedade fluida e com novas
demandas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

CORPOS
225

A cultura de massa tem cada vez mais atraído a atenção de pesquisadores e grupos que até
então olhava com desdém para os integrantes desse sistema. A razão para isso é a constante
percepção de que essas produções discursivas simbolizam algo muito mais latente do que apenas
uma leitura a serviço do entretenimento ou do prazer rápido. Na realidade, é representativo das
narrativas reais de um público situado em uma convergência e espaço fluido o qual tem suas questões
representadas por meio da ficção. Nesse sentido, pode-se entender essas construções como anti-
hegemônicas à medida que corroem o homodiscurso dominante e propiciam o aparecimento de novas
vozes no meio social.
O Young adult possui em sua estrutura interna um conteúdo temático que oferece abertura
para muitos dos dilemas juvenis contemporâneos, e ao propiciar a voz para públicos até então
marginalizados, faz com que essas vozes ecoem e ganhem mais força e representatividade. Quanto à
questão abordada neste trabalho, a homoafetividade tem a partir dessa literatura um vetor centrífugo
capaz de tirar do armário os leitores que se afugentam e, por consequência, levá-los à luz do espaço
social, onde seus corpos poderão entrar em evidência e, enfim, assumir seu espaço de direito. Como
proposto por Bakhtin (2011), nosso acabamento está no outro, no qual a partir do olhar, da interação e
da reflexão nos constituímos axiologicamente. A ressignificação dos corpos pode ser também a
ressignificação do nosso tempo, o qual tão fluido e poroso pode ser também mais democrático e
libertário.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.
______. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
______. Teoria do Romance I: a estilística. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.
BAUMAN, Z. Intimations of postmodernity. Londres, Routledge, 1992.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Segio
Paulo Rouanet. 1ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
BORDIEU, P. A distinção. Paris, Minuit, 1979.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiros: Edições Graa, 1988.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: EDUSP,
2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. 12.
ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.
JENKINS, H. Cultura da Convergência. Tradução Susana L. de Alexandria. 2. ed. 5. reimp. São Paulo: Aleph, 2015.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva 3. ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
MAFFESOLI, Michel. Cultura e comunicação juvenis. Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 2, n.4,p.11-27, 2005.

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226

MARX, K.;ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
SILVA, J. S.; CASADO ALVES, M. P. Young Adult: um olhar dialógico à (re)invenção dos gêneros juvenis. No prelo.
______. A corrosão do heterodiscurso: uma cosmovisão das estruturas discursivas da literatura juvenil. In: XXVI
Jornada do Grupo de estudos linguísticos do Nordeste (GELNE), 2016, Recife.
______.A selva juvenil: uma análise dialógica da construção da sexualidade no young adult. In: X Congresso
internacional da Abralin, 2017, No prelo.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da
linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

CORPOS
RESUMO
227

Esta narrativa tem como objetivo refletir sobre a

POR QUE ESCREVER, produção de conhecimentos e o lugar da escrita, a


partir de uma experiência de trabalho com o tema
Esporte Adaptado nas aulas de Educação Física,

PROFESSOR?: reflexões acerca da


realizado com turmas de 6º e 7º anos do Ensino
Fundamental II, em uma escola particular de
Campinas. Em diálogo com a Filosofia bakhtiniana,
destacamos as noções de excedente de visão,
produção de conhecimentos nas aulas de identidade/alteridade e também expressão no
percurso pedagógico construído e narrado.
educação física
Palavras-Chave: Educação Física. Expressão.
Produção de conhecimentos
SPOLAOR, Gabriel da Costa 97

INTRODUÇÃO

A
s aulas de Educação Física Escolar têm como objeto de estudo a Cultura Corporal. O corpo nesse
campo de conhecimento, não mais olhado somente por suas características biológicas, como
feito em outros momentos históricos da área (SOARES, 1996), mas principalmente em sua
constituição histórico-cultural, enfim, em seu processo de humanização.
Na relação histórica com o mundo, com as coisas e com os outros, o ser humano se expressa
corporalmente a partir de sua gestualidade e de variadas linguagens outras, produzindo sentidos e
significados (VOLÓCHINOV, 2017) no seu agir. Por se expressar e compartilhar suas impressões
singulares com os outros, estes corpos também acessam impressões outras, incorporando-as,
marcando em sua carne a cultura da qual tomam contato (FONTANA, 2001; PINO, 2005).
Nesse processo dialógico, as significações já existentes na cultura são incorporadas, mas
também atualizadas, renovadas, na medida em que os corpos se apropriam destas e se expressam
singularmente (BAKHTIN, 2011). A cada ato responsável (BAKHTIN, 2012), cada gesto, cada expressão, o
ser humano compartilha novamente com o mundo suas experiências e impressões, deixando suas
marcas singulares em outros seres humanos, em outros corpos e no mundo da cultura de modo geral
(BUBNOVA, 2015).
As práticas corporais, os esportes, os jogos, as brincadeiras, as lutas, as ginásticas, as
danças, o circo, entre tantas outras manifestações da Cultura Corporal, foram e ainda são produzidas
nesse processo dialógico ininterrupto (BRASILEIRO et al, 2016). Elas só existem na nossa sociedade
porque os corpos se expressam, dialogam e produzem sentidos e significados específicos para
aqueles gestos. Mundo da vida e mundo da cultura imbricados a cada ato responsável (BAKHTIN, 2012).

97Mestrando em Educação Física na Universidade Estadual de Campinas. Membro do GRUBAKH (Grupo de Estudos Bakhtinianos) e do EscolaR
(Grupo de estudo e pesquisa sobre Educação Física Escolar) ambos na mesma instituição. Professor de Educação Física na Educação Básica. E-
mail: gabriel.spolaor@hotmail.com

CORPOS
228

Esse conjunto de produções, criadas na dinâmica social, compõe o universo da Cultura


Corporal. Constituem as identidades dos sujeitos. Os grupos sociais dos quais os sujeitos se
aproximam, as práticas corporais que realizam, as preferências por roupas, acessórios, entre outros
materiais que utilizam, enfim, suas formar de agir no mundo. Ao compor suas identidades, marcam
também suas diferenças.
Há que se destacar que na literatura da Educação Física escolar, identidade e diferença têm
sido tratadas a partir dos Estudos Culturais e Pós-críticos da Educação (NUNES e NEIRA, 2006). Nesse
referencial, a diferença é tratada como produtora da identidade, como aquela parcela da Cultura
Corporal que tensiona a identidade, os discursos e símbolos de um grupo. Ao tentar romper as
fronteiras, a diferença acaba por ameaçar a estabilidade de identidade e por isso, acaba por ser
afastada, marginalizada, negada e até mesmo apagada nas relações de poder. Nessas fronteiras entre
identidade e diferença que as tensões, os conflitos e os preconceitos residem. Apesar da grande
contribuição deste grupo para a área, percebo que as discussões e observações do movimento da
identidade e diferença tem se concentrado apenas no nível coletivo, na relação entre grupos culturais.
No diálogo com a Filosofia bakhtiniana é possível tensionar essa forma de olhar para a
identidade e diferença, uma vez que, procuro olhar para as tensões entre grupos culturais, como
efeitos produzidos pela relação eu-outro. A dinâmica dos discursos, símbolos e significados tentando
manter-se provisoriamente estáveis entre os grupos, como efeitos da produção de enunciados,
expressões singulares em sentidos e significação, situados em tempo e espaço, que movimentam a
initerruptamente e irrepetível cadeia criativa de signos. Enfim, tento trazer à tona a noção de
alteridade, do eu constituído de vários outros (MIOTELLO, 2014).
Ao tratar de alteridade, Geraldi (2013) em diálogo com Bakhtin, nos fala:

A alteridade é o espaço da constituição das individualidades: é sempre o outro que dá ao eu uma


completude provisória e necessária, fornece os elementos que o encorpam e que o fazem ser o que é.
No corpo biológico que somos constituímos histórica e geograficamente o sujeito que seremos – não
sempre o mesmo, mutável segundo suas relações, incompleto e inconcluso. Muitos e um só: unidade e
unicidade, que por histórica não significa permanência do mesmo, mas mutabilidade no supostamente
mesmo. (p.12-13)

Dessa forma, assim como a Cultura Corporal é produzida de forma ininterrupta a cada gesto,
cada ato responsável, cada escolha dos seres humanos, cada expressão, as fronteiras entre eu-outro,
seguem a mesma dinâmica. Durante as aulas, além de apresentar e tematizar as manifestações
culturais e as suas gestualidades específicas, as fronteiras entre corpos, entre eu-outro precisam
ser deflagradas, estudadas e compreendidas, para serem diluídas, reorganizadas, borradas em busca
de uma sociedade mais justa, responsável, democrática e menos preconceituosa.
A partir destas considerações, nesta narrativa (PRADO et al, 2015) tenho como objetivo
refletir sobre a produção de conhecimentos e o lugar da escrita nas aulas de Educação Física.

CORPOS
229

1. CONSTRUINDO UM LUGAR PARA A ESCRITA NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA

A partir da concepção já apresentada, das aulas de Educação Física, desenvolvi um trabalho


com as turmas de 6º e 7º ano na escola que atuo em Campinas. Ele aconteceu no final do 2º trimestre
de 2017 e teve como tema o Esporte Adaptado, com destaque especial na Cultura Corporal das
pessoas com deficiência visual, assim como, as modalidades esportivas paralímpicas específicas
deste grupo.
Tínhamos no início, como objetivos desta tematização, permitir que os alunos: (1) refletissem
sobre as possibilidades de movimento no cotidiano das pessoas com deficiência visual, reconhecendo
suas potencialidades e dificuldades; (2) vivenciassem os Esportes Adaptados (Atletismo, Goalball e
Futebol de 5), explorando suas diferentes gestualidades e formas de diálogo corporal; (3)
experimentassem diferentes papéis (guia, cego, árbitro, entre outros); (4) compreendessem as
regras, os códigos, estratégias e os elementos técnico-táticos das modalidades.
Porém, no desenvolvimento do projeto percebemos que no processo de apropriação destes
conhecimentos, os alunos e eu no papel de professor não só incorporávamos o já criado, mas na
responsividade ativa também produzíamos muitos conhecimentos outros, dinamizando a própria
tematização.
Como professor, meu maior dilema era a questão da produção de conhecimentos nas aulas de
Educação Física. Durante a graduação dentro dos grupos de estudo e nas disciplinas entrei em
contato com as várias abordagens (SOARES, 1996) que tratam do tema de formas diferentes. A meu
ver, ainda com lacunas a serem discutidas. Ora ligado estritamente ao fazer técnico de um corpo
biológico, como critica Daolio (2013). Ora ao desenvolvimento motor de um ser abstrato distante do
mundo cultural, como na teoria de Go Tani (1989).
Nas abordagens próximas da vertente crítica da educação encontro também certo
reducionismo. Na Crítico-Emancipatória de Kunz (1991) em diálogo com a Fenomenologia, apesar da
ampliação da noção de movimento, não mais de um ser abstrato, mas de um corpo próprio do sujeito
que dá sentidos para o seu agir, o seu se-movimentar, penso que a teoria fica em uma filosofia que
pouco dialoga com o mundo da cultura. Faltam elementos que interliguem a experiência vivida dos
sujeitos com a produção cultural, com a produção de signos.
Por outro lado, na abordagem Crítico-Superadora em sua discussão sociológica (SOARES,
1992) encontro a noção de movimento como forma de expressão, como linguagem produtora da
Cultura Corporal, ancorada na dinâmica histórica e social. Porém, essa noção é apenas citada e pouco
aprofundada, na medida em que os autores se preocupam com as manifestações do esporte, da
ginástica, das lutas, do jogo, como conteúdos a serem tratados, e se esquecem da dimensão do
movimento como forma de expressão e linguagem. A ênfase fica na ressignificação das manifestações
culturais, em busca da luta de classes, deixando de lado o produzido nas próprias relações sociais,
nas próprias práticas em que o corpo expressa e produz material semiótico e ideológico necessário
para a transformação social. Olham para a cultura em um nível macroscópico e não para a pista que

CORPOS
230

os próprios autores deixaram, da expressão corporal como forma de linguagem, o que possibilitaria o
olhar microscópico em diálogo com o macro.
Essas noções de expressão, de linguagem, de sentidos dados ao movimento constituem meu
olhar para a produção de conhecimentos nas aulas, mas apesar do diálogo, não me reconheço como
representante de nenhuma destas abordagens. Penso que ainda seria necessária a reflexão de muitas
questões em cada uma delas, visto que são teorias produzidas no meio acadêmico, ainda inconclusas
e com pouca implicação com a prática pedagógica dos professores. Sem esse diálogo com o cotidiano
a teoria se prende em uma estrutura, perde a possibilidade de reconstrução, perde sua vida.
Inquieto com as produções dos alunos no processo pedagógico, sobre o papel de suas
expressões e linguagens na construção de conhecimentos, via nas relações sociais, outras formas de
produção passando pelos meus olhos, não só nas vivências práticas de uma modalidade, nas trocas de
gestos e diálogos corporais, mas também ao assistirmos vídeos, vermos fotos e discutirmos o tema
nas rodas de conversa. A cada ato, cada gesto, cada expressão, cada encontro, signos e significações
renovadas (BAKHTIN, 2011).
Diante desta intensa criação, me preocupava em como esses conhecimentos poderiam ser
registrados, colecionados e valorizados. Não podíamos perder e deixar passar tantas produções!
Como as reflexões produzidas nas rodas de conversa poderiam ser registradas? Como as
experiências corporais e os conhecimentos ali produzidos poderiam ser guardados, compartilhados,
redinamizados?
A Filosofia bakhtiniana me pareceu um importante ponto de ancoragem, mostrando como o ato
responsável é potente em sua dimensão ética, estética e epistemológica (BAKHTIN, 2012). De acordo
com Geraldi (2013) “Todo ato responde; a todo ato, outros atos responderão. A responsabilidade é,
portanto, bifronte: com o passado que o ato interpreta e com o futuro que o ato desencadeará nas
respostas que receber” (p. 21). O ato não só limitado ao movimento, ao gesto dentro de uma prática,
mas em uma noção ampla que considera o pensar, o sentir, o falar, o escutar, o ver, o escrever, o
desenhar, o fotografar, o filmar, o cantar, o brincar e tantas outras infinitas formas de agir no mundo
que extrapolam até mesmo as palavras aqui escritas.
O ato responsável nessa perspectiva bakhtiniana, conecta o mundo da vida, da experiência do
sujeito, com o mundo da cultura, das produções da humanidade, permitindo que estes permaneçam
sempre inconclusos em processo de construção. Cada ato responsável em sua singularidade dialoga e
compõe as produções singulares de tantos seres humanos outros. Os conhecimentos se produzem
nesse devir, nesse ato responsável que em diálogo com o outro, permite a interminável conexão do
presente com o passado, abrindo possibilidades sempre novas, possibilidades de criação de um
futuro. Penso que a educação precisa se preocupar com esse futuro.
Nas atividades propostas, eu e os alunos, compartilhávamos nossas percepções, expressadas
em nossos gestos, nossas falas, nossas intervenções. Cada um do seu lugar, mostrando sua forma de
olhar para o mundo, constituída e constituindo a dos outros. Os vários excedentes de visão (BAKHTIN,
2011) em pleno exercício.

CORPOS
231

Sobre essa noção de excedente Geraldi (2013) diz:

Na relação com o outro, este sempre me vê na paisagem em que estou, com um pano de fundo que me é
inacessível. Essa inacessibilidade a si próprio, no contexto em que se está, mostra-nos nossa
incompletude fundante. É no panorama em que estou, que o outro vê, que adquiro para ele contornos
definidos. Somente ele pode me fornecer esses contornos, essas definições provisórias. Em
consequência, ele tem um excedente de visão com que poderá preencher, na forma de uma completude
provisória, minha incompletude. Obviamente, dele eu também sou um outro e, como tal, com excedente
de visão. Ambos incompletos, só temos uma forma de relação que possa preencher o vazio: a
aproximação dialógica é a forma de encontrar completudes provisórias. (p.18)

Ao passo que me encantava com a responsividade dos alunos e minha própria, tinha dúvidas
se eles conseguiam compreender a importância dos outros no processo de aprendizagem. Se eles
compreendiam que os outros estavam mostrando em todo momento, o que eles não viam do seu lugar.
Os outros mostrando em suas expressões o que viam dos próprios colegas. Talvez isso precisasse
ser melhor desenvolvido.
Além disso, me doía por não conseguir guardar, materializar em uma expressão, uma
linguagem que os permitisse exercitar o excedente de visão também para consigo mesmos, se vendo
como outros e compreendendo que seus conhecimentos singulares referentes à Cultura Corporal,
estavam sempre se alterando, sendo produzidos a cada ato responsável, a cada experiência ali
construída, a cada diálogo. Os conhecimentos se produziam na relação com os outros alunos, à
medida que mostravam o que não podíamos ver. Mas faltava também o espaço dos alunos olharem
para si mesmos, do seu próprio ponto de vista, já em outro lugar.
Apesar da potência da aula de Educação Física, me sentia também limitado. Isso que pensava,
parecia muito distante do modelo de aula encontrado nas escolas. Elas tinham uma eficácia simbólica,
já deflagrada pelos autores da área (BRACHT, 1999; DAOLIO, 2006; 2013). Um modo de funcionamento
aprendido e muito aceito, em que os alunos apenas realizam as práticas corporais, sem reflexão e
discussão sobre o que fizeram. Sem a possibilidade de materializar o realizado corporalmente em
expressões outras. A meu ver, esse formato limita as produções de conhecimento e as próprias
potencialidades expressivas do corpo, uma vez que têm em sua construção, ainda muito fortes, os
discursos da área biológica e também tecnicista do fazer pedagógico.
Novo de carreira e também na escola me sentia preocupado com diversas questões. Até onde
poderia tensionar o olhar dos alunos? Tensionar o modelo de aula que eles tinham aprendido? Pensei
que além do espaço para a experiência dos gestos e das modalidades práticas, precisava valorizar o
diálogo, a reflexão. Em relação às produções, pensei em começar com narrativas visuais (ALMEIDA
JUNIOR; PRADO, 2013), apenas com fotos e no máximo, com a escrita de algumas legendas, afinal, aula
de Educação Física era para praticar esporte, para suar, para jogar e não para escrever! Escrever é
responsabilidade de outras disciplinas, contextos outros, muito diferentes do território da quadra, do
fazer corporal.

CORPOS
232

A foto como expressão talvez fosse mais aceita por todos, permitindo o registro das
experiências da aula, dos gestos, da dinâmica e também produzindo novos sentidos e significações do
ponto de vista de quem tira e também de quem observa. No caso dos alunos fotografados, ao se
verem nas fotos, poderiam enxergar seus corpos de outro lugar, a partir do olhar de um outro que
fotografou e construírem novos conhecimentos. No planejamento estava tudo certo, porém a dinâmica
da vida nos desloca, quebra as estruturas, nos leva para outros trajetos e deflagra nossa inconclusão.
Primeiro dia de aula com o tema Esporte Adaptado e as questões levantadas para a discussão
coletiva foram: Como vocês imaginam o mundo de um cego? Como vocês acham que é ser cego?
Nesse momento, a ideia de escrever não havia surgido. Não estava no planejamento. Porém,
em resposta às questões levantadas, muitos quiseram dar suas opiniões e falar o que achavam.
Discutimos sobre a locomoção de um cego, o uso de outros sentidos, a necessidade de ajuda,
pensamento, imaginação, preconceito e tantos outros temas, tão complexos para jovens de doze anos.
Essa responsividade me surpreendeu muito! Me impulsionou!
A intenção do debate inicial era apenas a de abrir a imaginação para a possibilidade de um
mundo completamente diferente a ser estudado. Não esperava tamanha complexidade no rumo que as
discussões nos levaram e de impulso responsivo, sem muito planejamento, solicitei que eles
colocassem no papel aquilo que havíamos acabado de conversar. As fotos não dariam conta de
materializar o que falamos ali. Após tantas intervenções interessantes e ricas em dúvidas e
elaborações, seria um desrespeito não guardar aquilo de alguma forma!
Apesar da melhor das intenções, em resposta ao meu ato, começaram os estranhamentos:
“Professor, por que precisamos escrever nas aulas de Educação Física? Nós nunca fizemos isso
antes! O que isso tem a ver com o tema de nossas aulas? Aff, que coisa chata!” Estas foram
algumas perguntas e comentários que muitos alunos me fizeram quando solicitei a escrita.
Para mim, parecia tão óbvia a resposta para as dúvidas ali apresentadas, que no momento em
que escuto os enunciados, sinto-me deslocado. Percebo não só nas perguntas, mas também nos
olhares estranhados, nas expressões de chateação e na resistência para ir à mochila buscar o papel e
a caneta, a distância de compreensões e a fronteira que existia e ainda existe entre a minha
concepção de escrita como ato responsivo, como evento (SERODIO; PRADO, 2017) e a dos vários
meninos e meninas com quem iniciei o diálogo ali. A escrita como expressão, que para mim, como ato
corporal dialógico, produz e cria sentidos e significações referentes a um tema, se encontrava com a
concepção dos alunos, com a ação sem sentido e desnecessária no contexto de uma aula de Educação
Física.
Ao pedir para que eles escrevessem, sinto que além de tensionar a fronteira do papel e
caneta no território da quadra, estava também dinamizando o contorno dos corpos, das identidades
do ser aluno desta disciplina. Eu não me colocando no lugar aceito para um professor de Educação
Física e tentando levar comigo os alunos.
Assim como fui deslocado, meu pedido também produziu deslocamentos. Imagino que eles
tenham pensado: Como assim, eu vim aqui para jogar e esse professor que eu nem conheço

CORPOS
233

direito quer me fazer escrever? O outro sempre nos mostra o que não podemos ver (BAKHTIN,
2011). Penso que meu trabalho como professor iniciou ali, na dúvida dos alunos em relação ao meu
pedido de escrita. Mas também, na dúvida que se produziu em mim: Como mostrar para eles a minha
compreensão?
Hoje percebo que um caminho possível, talvez seja a valorização dessas expressões como
algo importante, único e irrepetível. Que ninguém mais poderia produzir a não ser o sujeito do ato, em
diálogo com outros, em um contexto singular. No caso do texto, mesmo se utilizando das mesmas
palavras, é sempre singular em relação aos sentidos, a significação e o conhecimento que ali se
constroem (BAKHTIN, 2016). No momento da aula, já acreditava nisso, mas demorei mais algumas
aulas para tomar consciência e descobrir a forma de sensibilizar os alunos.
Nos escritos era possível entrar em contato com as respostas para a provocação de
escrever em uma aula de Educação Física. Para o tensionamento do ser aluno nesta disciplina. Algo
que gostaria de destacar, pensando, escrevendo e ouvindo os alunos, agora de outro lugar, é que nem
todos resistiram da forma como narrado acima. Houve sim aqueles que se sentiram menos
deslocados, aceitaram com maior facilidade a proposta. Mas ainda assim, acho que existia, existe e
sempre existirá a fronteira entre a forma com que eu olho para a escrita e a deles. Talvez um
desdobramento interessante seja compreender esses outros olhares também! Todavia, dei ênfase aos
olhares de estranhamento, pois naquele momento, eles constituíram uma experiência que me marcou
muito como professor.
As escritas foram as mais variadas, confirmando a felicidade que tive ao escutar as
expressões nas rodas de conversa. Uma linha, duas, três... Uma folha... Uma palavra... Pontinhos
representando a escrita em braile... enfim, enunciados, ricos em pravdas (BAKHTIN, 2012), ricos em
verdades singularidades. Mostravam variadas respostas para as perguntas levantadas sobre o tema
de estudo, cada um do seu lugar, com a sua compreensão do discutido. Compartilho alguns desses
escritos:

“(1) O mundo de cego deve ser difícil e preto, ele tem que decorar o percurso onde ele anda e usar uma
bengala.
(2) O mundo de um cego deve ser preto, eles têm 2 braços e 2 pernas. Como ele anda? Também não sei!
Eles devem sentir tristeza por ser DIFERENTE. E deve ser difícil, hein?
(3) Eu acho que o cego imagina o mundo como as pessoas dizem que ele é, pois ele se inspira nas falas
dos outros e “vê” o mundo do jeito dele.
(4) Eu imagino que deve ser bem difícil de se localizar. Deve ser necessário ajuda e as outras coisas
devem ser mais fáceis de ouvir e cheirar. Deve ser bem escuro. Resumindo, seus sentidos são mais
aguçados e a localização mais difícil. Ele também necessita imaginar o mundo como é.
(5) Eu acho que o mundo de um cego é o que ele imagina. Se ele imagina que é bonito e alegre é o que
ele pensa. Então é esse mundo para ele. Mas, todos têm uma visão diferente para o mundo e para cada
detalhe dele, desde uma moeda até o universo. Enfim, sei que ser um cego no começo é difícil, mas se a
pessoa apenas aceitar ser cego, ela vai descobrir que é “única”, diferente e aceitar os fatos é o melhor
a se fazer.

CORPOS
234

(6) Na minha opinião a maioria das pessoas sentem dificuldades no começo, mas com o tempo se
acostumam. Também acho que os cegos têm uma audição melhor. Os cegos têm muitas diferenças em
relação a nós.
(7) Para mim, ser cego é muito diferente do que todos pensam. Muitas pessoas acham que cego é algo
muito negativo, que não é muito valorizado no mundo, mas o cego que se sobressai é tão capacitado
quanto alguém que pode ver.” (ESCRITOS DOS ALUNOS DO 7º ANO)

Algo que chama atenção é o lugar da escrita, a identidade de um ser vidente mostra-se de
forma clara. Eles escrevem em um tom imaginativo. Deflagram a fronteira entre o seu mundo e o
mundo de um cego. Mostraram que ao escrever, iniciaram também o esforço alteritário de se colocar
no lugar de um outro e tentar enxergar o mundo do seu ponto de vista.
Não entrarei no diálogo com cada enunciado singular, visto as características deste trabalho.
Porém, a escrita naquele momento, se mostrou uma importante produção de conhecimento, pois
permitiu que após a conversa e a escuta de vozes outras, cada um materializasse no papel a sua
apropriação singular sobre o tema. Mesmo que não escrevendo tudo o que poderiam (talvez pelo
contexto da escrita ser na aula de Educação Física) o que foi expressado ali, já era muito rico, muito
importante para ser guardado e posteriormente compartilhado.
Após esse momento de escrita que durou não mais do que dez minutos, as duas aulas
seguintes voltaram para a sua dinâmica normalmente aceita, com jogos, brincadeiras e atividades
práticas. Ainda na aula da escrita, trabalhamos com a vivência de ser cego, em que os alunos
colocaram faixas cobrindo os olhos e tinham de se locomover pelo espaço da quadra, andando por
obstáculos, saltando, desviando, se equilibrando, fazendo rolamentos.
Além de cegos, os alunos passaram também pelo papel de guias, trabalhando com a mediação
tátil (em que o cego segura no braço do guia para andar) e a verbal (em que o cego se movimenta
apenas a partir da voz do guia). O corpo e suas variadas expressões já se faziam presentes. A
chamada de atenção para a importância do outro se construía.
Na segunda aula do tema, saímos do contexto da quadra e fomos passear pela escola. Algo
nunca experimentado antes por eles. Definimos as duplas, o ponto de partida e de chegada. A
mediação do guia deveria ser estritamente verbal, sem tocar no cego, exceto em momentos de risco
de acidente. Lembro que essa atividade gerou muita animação nas turmas, mas também receio do que
aconteceria. Fiquei muito preocupado com os acidentes, tentei antecipar várias situações na
explicação da proposta, desde os degraus, os pilares, as escadas. Cobrei dos guias cuidado redobrado
e muita responsabilidade. Não sabia ao certo os efeitos que essa atividade teria na experiência dos
alunos, mas percebia em seus olhares a preocupação e necessidade de maior cuidado para com os
outros.
Andando em grupo, muita gritaria, muito barulho, os funcionários estranhando tantos alunos
vendados pelos espaços da escola. Como professor tinha que olhar o grupo como um todo, não deixar
dispersar, orientar nas mediações dos guias, ficar atento para qualquer risco de acidente. Foi uma
atividade muito intensa! Chegando ao local determinado, trocamos as vendas e quem era guia, virava
cego e quem era cego, virava guia.

CORPOS
235

Na época não percebi, mas nessa troca permiti o exercício do excedente de visão (BAKHTIN,
2011) em relação ao primeiro momento da escrita (que eles só imaginavam como era ser cego), do ser
guia, assim como do ser cego. Excedente de visão esse, que não aconteceu somente com os olhos,
mas com o corpo inteiro, nas suas mais variadas gestualidades, linguagens e expressões
(VOLOCHINOV, 2017).
Depois dessa caminhada pela escola, subimos para o campo de futebol e iniciamos o trabalho
com atletismo adaptado, com a modalidade de corrida. Nessa prática, cegos e guias dão as mãos e
correm em uma pista por 100, 200, 400 metros. Adaptamos a atividade para as nossas condições,
correndo apenas em linha reta, de uma ponta até a outra do campo.
No final da vivência, já com o tempo de aula quase acabando, sentamos no gramado e
começamos a conversar sobre as experiências. Percebi ali, o mesmo entusiasmo encontrado no
primeiro dia de aula. Todos falando alto, ao mesmo tempo, com vontade de compartilhar o que
sentiram corporalmente nas atividades. Durante a caminhada e a corrida via e ouvia os diálogos, tudo
muito rápido, pouco aprofundado, afinal, não parava em um lugar por muito tempo. Só senti a
dimensão, a potência das trocas quando pedi para os alunos falarem. Seus enunciados me
provocaram novamente, todo aquele conhecimento, que não existia antes (era só imaginado em um
primeiro momento) se produziu nas relações, na experiência. Não podia deixar passar, perder aquilo!
Pela segunda vez na semana, propus a escrita. Narrativas que contassem o que cada um
sentiu, aprendeu, experimentou tanto como cego, quanto como guia. Tensionei novamente o que era
provisoriamente estável e percebi dois movimentos interessantes no grupo.
O primeiro de grande aceitação. Dessa vez, eles tinham o que contar e ao perceber isso,
aproveitei para tentar explicar a importância da escrita. “Gente, isso que vocês estão me contando é
muito rico, vocês compreendem que nós não podemos deixar apenas na conversa? Isso precisa ir
para o papel, tenho certeza que ficaremos com um material muito bonito depois!”. Os olhos brilharam,
consegui sensibilizar grande parte do grupo e mostrar que eles haviam produzido conhecimentos
importantes para a aula.
Porém, um segundo movimento aconteceu, me deslocando e me fazendo parar para pensar
novamente sobre o lugar da escrita como forma de produção de conhecimento na Educação Física. O
sinal tocou e a escrita combinada com tanto entusiasmo e carinho, virou lição de casa!
Novo estranhamento, nova tensão... que produziu desdobramentos que nunca imaginaria. O
outro nos mostra o que não podemos ver. Nossos atos produzem efeitos e aqui vão alguns
questionamentos que ouvi: “Onde já se viu? Lição de casa de Educação Física? Você está seguindo
alguma apostila? Quer transformar a aula de Educação Física numa aula teórica? A aula vai ficar
chata assim! ” As fronteiras não estavam somente nas turmas, mas também de forma mais ampla na
cultura da escola.
Estava iniciando uma proposta e não esperava que produzisse estes efeitos. Tão bonitos em
um sentido, mas tão ofensivos em outro. Demorei um pouco para absorver os comentários,

CORPOS
236

compreender que eles eram expressos, pois falavam de um outro lugar, uma outra perspectiva, que
estava um pouco distante da construção que estava tentando produzir ali com meus alunos.
Não, eu não quis deixar a aula chata! Não estava seguindo apostila e muito menos
transformando a aula teórica e abstrata! Pelo contrário, estava chamando atenção para a produção
de conhecimento que acontecia no próprio cotidiano da aula, nos encontros, nos diálogos corporais,
nas experiências, na dinâmica da vida. Como professor, tinha responsabilidade de não perder isso no
processo!
Gostaria de compartilhar aqui alguns dos escritos desse segundo momento:

(1) A minha experiência foi muito positiva. Pude perceber o quanto é difícil fazer uma atividade sem
enxergar. Utilizei outros sentidos como por exemplo: A audição, o tato e o olfato. Percebi que estávamos
na cantina pelo barulho do Ensino Médio e pelo aroma da comida da cantina. Utilizei o tato para segurar
no corrimão da escada e para sentir as paredes. A atividade do campão foi a mais complicada para mim,
pois não dava para usar o tato e os outros sentidos! Tínhamos que confiar muito nos nossos parceiros
que estavam nos guiando. Foi uma experiência muito rica em aprendizado!

(2) Quando coloquei a faixa nos olhos, o mundo ficou preto. Não sabia se tinha algo ou alguém na minha
frente. Eu andava devagar, com as mãos estendidas tateando o lugar. Foi estranho ter que depender de
alguém para andar e para viver meu dia. Ao correr, o frio na barriga aumentava e a mão apertava cada
vez mais forte. Ao parar, o alívio de estar bem e poder tirar a faixa, olhar o mundo. Nem todos podem
tirar essa faixa de si. Quem pode, aproveita. Quem não pode, sonha!

(3) Na última aula nós nos vendamos e um amigo nos guiou pela escola. Eu me achei muito estranha,
mas foi legal saber como é complicada a vida do deficiente visual. Achei estranho termos que confiar
tanto em alguém e quando essa pessoa saía só um pouco de perto eu já me sentia completamente
perdida. Foi difícil “me virar” algumas vezes só ouvindo a voz do guia, tendo que me basear
completamente na minha audição. A experiência valeu a pena!

(4) Primeiramente, quando colocamos as vendas e fomos conduzidas por nossas duplas, eu me senti um
tanto desorientada, mas depois consegui me deslocar com mais facilidade. Porém, já quando corremos
de olhos vendados eu me senti muito desorientada e confusa, achando que em algum momento eu
bateria de cara em alguém ou alguma coisa. Foi uma experiência incrivelmente diferente. Gostei de
experimentar ficar cega e percebi o quão difícil e estranho deve ser a vida de alguém com deficiência
visual.

(5) Para mim, a sensação de andar por parte da escola vendada foi muito legal e um pouco assustadora
(preocupante), pois eu senti que não tinha mais o “controle” de onde ir, do que fazer. Tinha que dedicar
toda a minha confiança na minha colega. Não poder ver o espaço a minha volta, foi assustador, pois isso
é uma coisa tão simples, que só quando é tirada de nós mesmos é que vemos o quanto era importante.
Na minha opinião, o exercício mais preocupante foi o de correr vendado com alguém preso aos seus
braços. Para tudo dar certo era preciso uma sintonia por ambas as pessoas, confiar na visão de um
outro colega, um outro alguém... isso é algo muito estranho, você não é mais dono do seu próprio jogo!

(6) Quando eu coloquei a venda eu fiquei perdido. Tudo ficou escuro. Então, eu percebi que não podia
depender mais da minha visão. Passei a depender de uma outra percepção. Cada passo que eu dava
tinha que ser devagar, um a um, passo a passo. Percebi que as minhas mãos passaram a ser muito
importantes para me darem segurança e me localizar. Percebi a importância que uma outra pessoa

CORPOS
237

teria para me guiar. Sozinho, eu estaria perdido no mundo. A experiência me fez perceber, como nunca,
a importância das pessoas nas nossas vidas. E como devemos estar atentos a quem precisa de nossa
ajuda. A importância da solidariedade.” (SEGUNDO ESCRITO DOS ALUNOS DO 7º ANO)

Textos tão bonitos, tão significativos, tão ricos em experiência e conhecimentos. Para mim,
algo que fica muito forte nos enunciados é sobretudo a importância do outro nas nossas vidas, no
nosso mundo, no nosso existir. Cada vez que leio, percebo novos elementos (sinto que ainda existe
muito para ver) e me surpreendo com os efeitos daquela aula. Como professor, tentando não ser
indiferente para a expressão dos alunos, me senti deslocado! Nunca imaginei que permitiria a
construção de tantas reflexões importantes, em um simples passeio pela escola. Não estava no meu
planejamento, no meu plano, foi algo que percebi e aprendi também na relação com eles. Aprendo
muito com todos!
Lembro deles me contanto que esse segundo texto foi mais fácil de ser escrito. Primeiro,
porque eles já tinham a experiência de escrever em uma aula de Educação Física. Já sabiam que eu
não corrigiria o escrito em uma classificação de resposta certa e errada. Cada expressão ali, a sua
maneira, com a sua caligrafia, com a sua verdade era importante para a aula!
Em segundo lugar, porque nessa escrita, diferentemente da primeira, eles haviam vivenciado
com seus próprios corpos como era ser cego! A experiência corporal permitiu que os enunciados ali
produzidos no papel, fossem constituídos pela dinâmica da vida, pela existência singular de cada um
na relação com os outros. A escrita não como uma tradução do vivido corporalmente, mas como um
outro ato responsável, um outro evento, um momento de pausa, de silêncio, de diálogo (ZIMMERMANN,
2015) com a aula, na produção de sentidos e significações renovadas sobre a Cultura Corporal.
Expressão com signos de outra natureza semiótica (VOLÓCHINOV, 2017). Corpoenunciado.
Foi a partir destes escritos que em conversa com as turmas decidimos pela escrita de um
livro. Um livro que contasse sobre as aulas, sobre as experiências e sobre os conhecimentos ali
produzidos. Que permitisse outras pessoas, na relação dialógica com os enunciados,
compreendessem as dificuldades e possibilidades de ser cego. Que compreendessem o esforço
alteritário dos alunos ao longo do processo, ao se colocarem no lugar, no ponto de vista dos colegas,
dos cegos, dos guias e depois retornarem para o seu lugar, enxergando outras coisas, percebendo o
mundo de outra forma.

ACABAMENTO PROVISÓRIO

Muito já aconteceu após o compartilhado aqui. Esse texto mostra uma parte da sistematização
que tenho feito como professor/narrador/pesquisador da Educação Física escolar em diálogo com o
referencial da minha área e a filosofia bakhtiniana. Mostra a minha responsividade ao expressado por
meus alunos, por outros professores colegas de trabalho, estudo, pesquisa e também por amigos e
familiares. Muitas vozes ecoam nesses enunciados, e este é apenas um acabamento provisório para

CORPOS
238

as reflexões do que consigo observar nesse momento. Como me disse uma importante interlocutora
desse trabalho: “Você encontrou um problema de pesquisa para a vida!”
Sem esquecer a especificidade da disciplina, o trato pedagógico da Cultura Corporal, na sua
produção histórica e também dentro das aulas, na apropriação singular de cada aluno, penso que
valorizar as expressões corporais nas suas mais variadas formas, torna-se necessário. Produzimos a
Cultura Corporal, suas significações e seus conhecimentos, a partir dos gestos e diálogos corporais,
das conversas, das reflexões, das escritas, das fotografias, dos vídeos, enfim, na dinâmica incessante
de atos responsáveis.
Hoje considero a escrita como uma expressão muito importante para as aulas de Educação
Física. Seu lugar ainda precisa ser reconhecido, sensibilizado e valorizado com mais atenção. Apesar
de muito potente, os efeitos que esse ato pode produzir na dinâmica de uma aula, de um grupo, podem
variar do encantamento e da criação até a recusa e negação. Aqueles comentários que recebi de
meus alunos e também após a segunda escrita das turmas, foram muito importantes para a reflexão
deste trabalho! Agradeço profundamente essas vozes e penso que as opiniões ali expressadas, não
podem ser esquecidas ou apagadas. Elas precisam ser consideradas, visto que, mostram a concepção
hegemônica de escrita que permeia nosso cotidiano escolar. Até mesmo nessa área, que trata do
corpo, ele ainda precisa ser liberado, desamarrado, colocado em outras identidades provisórias, para
se expressar e produzir cultura de forma mais potente.
Fecho esse texto com mais um escrito de meus alunos... vozes estas que originalmente
impulsionaram o meu ato responsável de escrever aqui!

“Nessas aulas aprendemos que apesar das diferenças, temos os mesmos direitos e devemos ser
respeitados por isso! Porém, temos diferentes pontos de vista e com isso podemos perceber as nossas
diferenças e ajudar uns aos outros.
Respeito deveria ser natural,
mas na sociedade é conquistado.
Não importa a raça, cor ou etnia,
todo cidadão tem que ser tratado igual.
Cego, mudo, surdo e deficiente,
são gente como a gente!
Fazem o que fazemos,
comem o que comemos,
então por que tratá-los diferente?
Deficiência pode ser genética,
classe social, oportunidade,
se temos preconceito com isso,
o que vai acontecer com a humanidade?”

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CORPOS
239

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ZIMMERMANN, A. C. Sobre pausas e silêncios. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 29, p. 55-61, 2015.

CORPOS
RESUMO
240
A publicidade, como esfera da criação ideológica em
plena atividade, produz enunciados concretos
responsivos às questões sociais suscitadas na

HETERODISCURSO EM contemporaneidade. De certo, sua recusa a


legitimar a heterodiscursidade constitutiva da vida
social culminaria numa comunicação afásica, senão

ANÚNCIO: forças centrípetas e


inexpressiva e fracassada. Assim, os comerciais de
hoje, na sua ousada ambição de originalidade,
novidade, ineditismo, aparecem, cada vez mais,
alinhados aos discursos circulantes, posicionando-
centrífugas em tensão na publicidade se estrategicamente como um catalisador de
tendências, propostas, avaliações. Nesse sentido, o
celebrativa que ainda se qualifica como transgressão, negação,
ruptura frente à tradição, passa a não só
participar, mas também protagonizar o que é
anunciado em nosso tempo. Considerando essa
realidade, para analisar práticas discursivas
oriundas da publicidade, tomamos como
VIEIRA, Tacicleide Dantas 98 pressuposto uma perspectiva de ciência capaz de
admitir, à sua identidade de disciplina, os prefixos
trans, multi, pluri, in, inter: a Linguística Aplicada,
mestiça e nômade (MOITA LOPES, 2009), – no seu
profícuo diálogo com as concepções teórico-
metodológicas do Círculo de Bakhtin (2011, 2015,
2017). Como recorte de nossa pesquisa de
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS doutorado, este artigo objetiva abordar uma peça
publicitária, da marca Johnson & Johnson, criada

A
para a data comemorativa do Dia das Mães, do ano
publicidade, como esfera da atividade humana, investe-se de de 2017, tecendo uma discussão sobre a
dinamicidade, plasticidade, complexidade. Suas práticas de (des)centralidade dos discursos monologizantes
nela e problematizando como a publicidade se
linguagem, saturadas ideologicamente, refletem e refratam os manifesta nessa época, declaradamente, de
diversos posicionamentos em (in)tenso diálogo na realidade resistência. No comercial, o corpo de uma criança,
na sua sócio-história, ao representar a diversidade,
concreta, constituindo-se expressão do heterodiscurso que se torna-se núcleo de tensões entre forças
desencadeia na vida social. Na contemporaneidade, esse campo da centrípetas e centrífugas do mundo verbo-
ideológico.
criação ideológica assume-se inclinado a explorar sobremaneira a
relativa estabilidade do que anuncia, produzindo enunciados que Palavras-Chave: Heterodiscurso. Forças
Centrípetas. Forças Centrífugas. Publicidade
superam a previsibilidade e a expectativa do público a quem se
reporta e alcançando a originalidade que lhe parece ser tão cara.
Essa propensão possibilita o enfoque de temas, aspectos e
questões até então interditados por uma tradição cujos padrões se estabeleciam numa conduta
homogênea, monológica, dogmática. Obviamente, essa postura atual é responsiva a um quadro social
em efervescência, em que grupos historicamente alijados, silenciados, ignorados ou circunscritos à
categoria de “minorias”, passam a conhecer e a validar seus direitos, ganhando expressividade e
notoriedade.
Assim, a despeito de a publicidade se caracterizar, em boa medida, por divulgar, fomentar e,
de certo modo, perpetuar padrões comumente excludentes, sua imprescindível interlocução com os
segmentos sociais em que atua e para quem comunica tem reconfigurado seus projetos de dizer,
trazendo à tona conteúdos e perspectivas antes confinados perifericamente. Isso é perceptível ao

98Doutoranda em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte. E-mail: tacicleidevieira@gmail.com

CORPOS
241

pesquisarmos as recentes práticas discursivas advindas dessa esfera, especialmente aquelas


produzidas para datas comemorativas, quando, registre-se, há maior saldo de vendas no mercado, o
que atesta seu êxito enunciativo.
Nelas, a diversidade e a inclusão recebem status de protagonistas, ressignificando
paradigmas cristalizados ao longo de décadas e fazendo com que o público esteja, de diferentes
modos, representado. Nesse sentido, um volume de comerciais, com a iniciativa um tanto inédita de
abordar temáticas e posições descentralizadas, publica-se nas diferentes mídias, replicando, também,
discursos contingentes, transitórios, fronteiriços, resistentes. Em seu propósito, como força motriz
da “sociedade de consumidores” (BAUMAN, 2008), a publicidade responde às demandas sociais e, pela
mudança, continua a transformar consumidores em clientes.
Considerando essa realidade, este trabalho objetiva analisar uma prática discursiva publicada
em maio deste ano, por ocasião do Dia das Mães, de uma marca de produtos infantis, Johnson &
Johnson, compreendendo como forças centrífugas e centrípetas (BAKHTIN, 2015) incidem e resistem
nessa peça. Tal comercial, cumpre antecipar, materializa a aludida disposição da publicidade de
movimenta-se no sentido de dialogar com diferentes perspectivas, visões de mundo, avaliações
sociais. Com base numa concepção de linguagem dialógica e axiológica, postulada pelo Círculo de
Bakhtin, afiliamos este trabalho à área da Linguística Aplicada, a qual se preocupa com problemáticas
tradicionalmente assinaladas como periféricas, transitivas, fortuitas.
Como campo de conhecimento, de acordo com Rojo (2006, p. 253), resultante “do nexo entre
a privação social sofrida e a levitação teórica desejada”, a LA, na sua vertente sócio-cultural ou sócio-
histórica, mostra-se particularmente profícua para a interpretação de um objeto que assume como
epicentro a diversidade. Ao justapor, à palavra disciplina, os prefixos hetero, trans, multi, pluri, in,
inter, essa área “mestiça e nômade” (MOITA LOPES, 2009) possibilita problematizar as privações
sofridas por determinados grupos sociais e acolhê-las mediante o engajamento de múltiplos saberes,
orientados na direção dos discursos de resistência e de reexistência no interior da ciência e das
práticas discursivas que organizam a vida em sociedade.

2. HETERODISCURSIVIDADE E(M) PUBLICIDADE: pressupostos teórico-metodológicos

Mesmo uma breve e pontual visita aos escritos de Bakhtin deixa patente que o autor não se
voltou para os fenômenos linguísticos stricto sensu. Afamada é a sua contrapalavra aos discursos de
sua época, sobretudo àqueles que tomavam a linguagem de um ponto de vista estritamente formal,
num vácuo social que a resumia a uma “casca linguística abstrata” ou a um “esquema semântico
igualmente abstrato”. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2017, p. 13).
Na sua filosofia da linguagem, como contraproposta às forças que centralizavam uma visão
imanente da língua(gem) e da ciência, o autor delineou um método sociológico, compreendendo os
sujeitos como centros de valor que (inter)agem e vivem heterodiscursivamente. Assim, advogou uma

CORPOS
242

disposição para a língua na sua integridade concreta e viva, argumentando que o discurso é
constitutivamente dialógico e ideológico.
Segundo Bakhtin (2011), nós falamos por enunciados e não por orações isoladas. Um enunciado
é matriz e nutriz de outros enunciados, os quais “são correias de transmissão entre a história da
sociedade e a história da linguagem.” (op. cit. p. 268). Em sua perspectiva, portanto, os enunciados só
existem na e para a sociedade que os elabora. Ou seja, se desvencilhados do seu seio sócio-histórico,
dos seus acentos valorativos, das entoações avaliativas que o penetram e significam, perdem sua
concretude e seu projeto de dizer degenera.
Nessa dinâmica, cada elemento da língua, tomado como material no enunciado concreto,
obedece às exigências da avaliação social expressa pela entonação circunstancial e histórica. Além
disso, “a palavra entra no enunciado não a partir do dicionário, mas a partir da vida, passando de um
enunciado a outros.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 185). Essa cadeia dialógica e axiológica, composta por elos
que suscitam respostas, corrobora o fato de que a linguagem é constituída e constituinte de práticas
sócio-historicamente apreciadas, as quais exprimem posições plurais, coincidentes ou não, na
complexa corrente da comunicação discursiva.
A responsividade, como um dos pontos articuladores dessa concepção de linguagem,
corresponde à síntese da relação “eu-outro”, sendo um traço definidor do enunciado concreto que
perpassa decisivamente sua compreensão. Trata-se de uma noção imbricada, portanto, à leitura do
comercial a ser analisado, o qual se constrói sob a interferência de forças sociais de ordem vária,
enredadas e coexistentes na sua forma, ainda que caracterizadas por orientação oposta.
Nessa direção, ao compreendermos esse modo de existência da linguagem, fica claro que

A estratificação e o heterodiscurso se ampliam e se aprofundam enquanto a língua está viva e em


desenvolvimento; ao lado das forças centrípetas segue o trabalho incessante das forças centrífugas da
língua, ao lado da centralização verboideológica e da unificação desenvolvem-se incessantemente os
processos de centralização e separação. (BAKHTIN, 2015, p 41).

Ainda que localizada, pelo pensador russo, no escopo da prosa romanesca, essa discussão
não está limitada à teoria do romance. Discursivamente, podemos compreender as forças centrípetas
como aquelas responsáveis pela manutenção de verdades universalizantes, generalistas e estanques.
Estão associadas aos discursos para a cristalização de estereótipos, de crenças sociais e de padrões
culturais impostos pela tradição. Correspondem a um conjunto de avaliações hegemônicas,
monológicas, pautadas por uma ótica social hierarquicamente consolidada, nomeadamente
excludente.
Em outra via, há as forças centrífugas, as forças de resistência, responsáveis pela proposição
de verdades contingentes, provisórias, movediças. Estão associadas aos discursos de desconstrução
de estereótipos e de visões de mundo doutrinadoras. Correspondem a um conjunto de avaliações
sociais marginais, dialógicas, pautadas por múltiplas visões de mundo, difusamente interatuantes.

CORPOS
243

O embate entre forças centrípetas e centrífugas é uma conhecida consequência da vida em


sociedade. Entretanto, na contemporaneidade, a dialética dessas forças nos enunciados manifesta-se,
por vezes, surpreendentemente: o bloqueio imposto às forças centrífugas tem sido gradativamente
confrontado, senão desviado, e os movimentos sociais, que se (re)produzem discursivamente, têm
provocado novas reações nas diversas esferas da comunicação, dentre as quais a publicitária.
Como práticas de linguagem, os comerciais recebem a atuação de forças de centralização,
unificação, homogeneização, as forças centrípetas; e de forças de dispersão, separação,
diversificação, as forças centrífugas. Se, de acordo com o Círculo de Bakhtin, “onde não há signo
também não há ideologia” (VOLOCHINOV, 2017, p. 91), as avaliações atravessam os signos e suscitam
(des)continuidade, dominação, subjugação, empoderamento, resistência, a depender das relações que
determinados grupos sociais travam em um dado momento histórico.
Na lida desses enunciados, importa interpretar essas relações dialógicas complexas, em que
cooperam discursos que refletem e refratam posicionamentos ideológicos distintos, materializados no
conjunto de signos que se apresenta. O “mundo verboideológico”, como referencia Bakhtin (2015, p.
39), vive numa relação indissolúvel com os processos de (des)centralização sócio-política e cultural,
sendo reconfigurado por eles. Nessa lógica, mesmo a publicidade, que costuma ser regida
majoritariamente por forças centrípetas, centralizando comportamentos hegemônicos e contribuindo
para hierarquizar o consumo por grupos sociais, é compelida a voltar-se, ainda que moderadamente,
às demandas sociais contemporâneas, e, como resposta aos processos de descentralização sócio-
política em curso, abre-se ao outro, ao diferente, ao oprimido.
A partir dessas noções, podemos criar inteligibilidade para o comercial publicitário
selecionado, problematizando como a publicidade se manifesta nessa época, declaradamente, de
resistência.

3. RESISTÊNCIA E REEXISTÊNCIA NO COMERCIAL “BEBÊ JOHNSON’S”: forças centrípetas e


centrífugas em tensão

Por tratarmos de um exemplar de comercial publicitário configurado nas modalidades verbal,


visual e sonora, presumimos que qualquer tentativa de descrição, por mais minuciosa que seja, esteja
fadada à insuficiência. No entanto,diante da indeclinável expectativa de contextualização da peça
publicitária, a título de apresentação, reproduziremos, a seguir, algumas cenas pinçadas do vídeo99.

99 Sugerimos a consulta ao site, a seguir, para assistir ao comercial na íntegra:


https://www.youtube.com/watch?v=T2VgUGOm9Mg

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244

Figura 1: cenas do comercial analisado.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=T2VgUGOm9Mg

Sinteticamente, podemos situar o comercial com os seguintes dados: como item da campanha
da empresa Johnson & Johnson Brasil para a data comemorativa do Dia das Mães 2017, a peça
focaliza, em primeiro plano, cenas que capturam partes do corpo de um bebê, evidenciando suas
experiências táteis (numa superfície limpa e porosa) e suas descobertas sensório-motoras (como o
ensaio para se erguer ou se arrastar) embaladas por uma melodia semelhante àquelas encontradas
numa caixinha de música tradicional. Essas imagens conduzem o olhar do telespectador e o envolvem
na trama do bebê que se experimenta no mundo, nas descobertas próprias da fase inicial da vida,
delicadamente simples e fáceis de reconhecer. As versões de 30 e de 60 segundos passam 50% de
seu tempo nesse recorte do corpo do bebê, registrado por zoom in100, para, enfim, ressignificarem a
ideia de descoberta já presente no vídeo. Ao focalizar-se, pela primeira vez, a face do bebê, o
observador é que vive uma descoberta emocionante: na tela, aparece uma criança com Síndrome de
Down. O comercial despede-se com a seguinte afirmativa, a qual, deve-se destacar, aparece
segmentada: “Para nós e para todas as mães/ todo bebê é um bebê Johnson´s”.
A referida peça é obra da agência DM9, uma das maiores e mais premiadas do Brasil, com 27
anos no mercado, e tornou-se viral, colecionando comentários e respostas do público em redes
sociais poucos minutos após o lançamento. Além de ser veiculada na internet, apareceu na TV, com
estreia em horário nobre do dia nove de maio de 2017. Na sua constituição, sobressai a ideia
perspicaz de retirar de cena o protagonismo explícito das mães, mesmo no seu dia, para fazer

100 Ampliação ou aproximação da imagem no vídeo.

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245

estrelar os protagonistas de todas elas, seus filhos. Essa ousadia, muito provavelmente, já lograria
êxito. Mas a iniciativa de tornar protagonista quem raramente (ou jamais) ocupa esse papel,
consultado o histórico da publicidade com crianças, certamente é responsável pelo impacto, pela
popularidade e pela reverberação do comercial, que trouxe respeitável visibilidade para a Johnson &
Johnson Brasil.
Naturalmente, a peça não se produz no vazio. Seu conteúdo já é conhecido e avaliado, sobre
ele incidem vozes e forças sociais que apontam para diferentes direções, pressionando como este
novo enunciado delineará uma posição axiológica, (cri)ativamente responsiva. O corpo, aspecto
central no vídeo, é o expediente sumarizador da presença e, quiçá, da prevalência, das forças
centrífugas no comercial.
Nessa linha, uma retrospectiva de comerciais do gênero, ou seja, voltados para o mercado
infantil, certamente evidencia a recorrência de um padrão: criança branca, de olhos claros, saudável,
bela. A novidade para o público, geralmente, está menos atrelada ao corpo em cena do que a um
lançamento de produto ou a um enredo emocionante. No entanto, nos últimos anos, especialmente nas
campanhas de datas comemorativas, crianças de diferentes perfis têm sido focalizadas nos
comerciais. Neste ano, seguindo essa tendência, a Johnson & Johnson Brasil celebrou o Dia das Mães
apresentando, como estrela do seu comercial, uma criança com Síndrome de Down, cuja publicidade
costumava ser restrita. Essa escolha é tributária de um horizonte social que luta em favor do múltiplo
e do diferente. Ao importar para o seu modo de fazer publicidade um desdobramento da
heterodiscursividade intrínseca à vida social, a empresa garante o tom atual/inovador do comercial.
Essa tonalidade é sublinhada pelo alinhamento do vídeo aos discursos de inclusão, de empatia
com a diversidade e de busca por igualdade, o que é concentrado nos valores que norteiam a
campanha, os quais se produzem influenciados por forças centrífugas, ou seja, que, apontam para o
heterogêneo, o anulado, o descoberto.
Como o conteúdo desse enunciado remete à homenagem no Dia das Mães, por se tratar de
uma peça assinada por uma marca cujo slogan é ”Promovendo a saúde e o bem-estar das pessoas”,
sua composição alude ao cuidado e ao zelo direcionados, nesse caso, para os filhos, especificamente,
para um filho que, segundo a empresa, representa a celebração da diversidade. Tal conteúdo é
balizado, sobretudo, pela incidência das forças centrífugas, representadas pela escolha de se
valorizar positivamente um sujeito que era tratado de maneira indiferente, ou mesmo negativa.
Voltada para produtos de higiene, o que pode ser inferido a partir do cenário clean, com cores
sutis e leves, no ambiente doméstico protegido e zelado, que aparece no vídeo em segundo plano, a
Johnson & Johnson traz, aparentemente, o estereótipo do bebê que, de modo costumaz, atua na
publicidade (branco, olhos azuis, belo, fofo), mas supera essa visão ao agregar uma imagem diferente
a ela: a figura da criança com Síndrome de Down, o retrato de um bebê que personifica a diferença. A
Johnson’s, no que é atinente aos “seus bebês”, promove a chegada de “um outro de si”, ou seja, um
bebê diferente, porém igualado. Importa ponderar, no entanto, que a relativa primazia das forças

CORPOS
246

centrífugas na escolha do protagonista não suprime a interferência das forças centrípetas no


comercial.
A sentença verbal, ao final do filme, por exemplo, pode ilustrar o embate dessas forças. A
primeira parte dela tende a reforçar o caráter de homenagem ao apresentar o trecho “Para nós e
para todas as mães”, como se o “para” introduzisse os destinatários de algum feito, no caso, da
homenagem do comercial. Até esse momento, o excerto parece uma dedicatória, uma confissão de
finalidade. Mas, a ele é somada uma ideia que completa e reconfigura o sentido: “todo bebê é um bebê
Johnson’s”. Esse complemento, junto ao enquadramento conferido ao corpo em foco, autodeclara a
inclusão pela generalização “todo bebê é”, seguida do predicativo ou da característica comum,
correspondente ao próprio nome da marca “é um bebê Johnson’s”. Essa qualificação, em certa
medida, pode ser interpretada como produto da influência de forças centrípetas coexistentes na peça.
Se, por um lado, a sentença verbal é forjada para acentuar o reconhecido valor de
pertencimento ao todo, de integração, de incorporação, valores obtidos pela insígnia “Johnson’s”; por
outro, ao declarar que “todo bebê é um bebê Johnson’s”, o comercial acaba por afirmar que é preciso
assumir categoricamente essa posição, do contrário, a frase seria dispensável. Assim, a própria
assertiva pode ser interpretada como um depoente de que a inclusão não parece ser tão natural,
óbvia e consensual quanto o comercial busca sugerir, uma vez que necessita ser verbalizada, em
caixa alta, ao final.
Considerando essa discussão e observando a peça na sua totalidade, podemos compreender o
caráter de inclusão, a temática da descoberta e a forte comoção levantados pelo vídeo como
balizados pelas forças dos diferentes discursos que gravitam em torno do comercial. Na composição,
o enquadramento da imagem, a profundidade, o plano, o zoom in, regulando o ângulo de visão e a forte
aproximação do objeto filmado, a sequência, os cortes, a revelação e a surpresa pela descoberta do
objeto total (o bebê com Síndrome de Down) são signos ideológicos, consumadores de um projeto de
dizer que dialoga opositivamente com avaliações de exclusão, de separação, de segregação. Esse
propósito é explicitado por meio do corpo em evidência e da sentença final que, ao ser destacada,
consente a inferência de que é preciso reafirmar o diverso, numa espécie de autojustificação frente a
discursos centralizadores que subjugam o que não se insere nos seus parâmetros.
Assim, o comercial publicitário parece superar a previsibilidade e realizar sua ambição de
originalidade. Se, numa direção, as primeiras cenas do corpo infantil levam a crer que estamos diante
de algo esperado, essencializado; em outra, seu enfoque unido à face ressignifica a interpretação,
tornando a existência do outro visível. Ao resistir a seguir um estereótipo, o vídeo promove uma
reesxistência do corpo apresentado, abre para ele um novo fundo dialógico, numa proposta de
existência diferente, alternativa, movente, como o público-alvo que, diverso como se reconhece a cada
dia, vê-se representado ali.
A campanha, portanto, contrariando a tradição relativa a um determinado tipo de publicidade,
posiciona-se favoravelmente à diversidade e celebra o Dia das Mães descentralizando o estabelecido.
Desse modo, enquanto atualiza sua interlocução com os discursos contemporâneos de inclusão,

CORPOS
247

contribui, ainda que moderadamente, para retirar a privação sofrida por crianças com corpos
diferentes do que se aquilatou como ideais de perfeição na mídia. De seu modo peculiar, pois, afina-se
aos posicionamentos de resistência, recusando-se à manutenção de um padrão estético infantil
previsível e imutável. Assim, à medida que responde ao seu tempo, a publicidade da Johnson alcança
exitosamente seu propósito: emocionar, pela identificação, o consumidor, e torná-lo, por decorrência,
seu cliente.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No comercial analisado, o corpo da criança – em sua sócio-história – aparece, a princípio,


como elemento representativo da homogeneidade, como dado reforçador do discurso de que todas as
crianças em cena na publicidade são as mesmas do ponto de vista físico. No entanto, as cenas com
recortes do corpo são inteiradas e sua totalidade enfatiza um representante da diversidade. Na tela,
os traços característicos de uma criança com Síndrome de Down emocionam, pelo ineditismo, o
telespectador, que vê, finalmente, protagonizando o vídeo, um bebê que, convencionalmente, foi
mantido alijado, velado, secundarizado na mídia.
Esse movimento de inserir um corpo diverso como principal, aqui interpretado como
resultante da incidência de forças centrífugas em diálogo com as centrípetas, vai de encontro a
valores hegemônicos e evoca aqueles provenientes de outros grupos sociais, de uma chamada
“minoria”. Sua presença numa esfera tradicionalmente massificadora e mantenedora de padrões
sociais, muitas vezes, excludentes, pode ser compreendida como resposta aos discursos
contemporâneos que pressionam a mudança de mentalidade em relação à diversidade. A
responsividade no comercial torna-se ainda mais flagrante na sentença verbal que o encerra,
marcando claramente a posição da empresa em relação às crianças não associadas ao estereótipo
construído e alimentado por forças centrípetas em contraponto às centrífugas.
O embate entre forças espelha sentidos carregados de posições axiológicas, visões de mundo,
avaliações sociais. Compreender essa tensão dialógica e sua plenitude nos enunciados concretos
permite problematizar as práticas discursivas que constituem o mundo da vida e tratar questões
sociais relevantes. Nesse sentido, é possível entender como a publicidade, esfera que dita a vida para
o consumo, têm se posicionado face ao heterodiscurso dialogizado, especialmente nas épocas
celebrativas, quando os índices de consumo se ampliam ano após ano.
Pelo exposto, a despeito de ainda haver, (também) na publicidade, muita resistência a
importar o outro, a retirá-lo de um lugar de privações e a distanciá-lo do sofrimento, a vocação de
mercado dessa esfera parece cogitar alternativas e mudanças frente aos modelos estáticos que ela
mesma avaliza. Nesse cenário, é imperativo insistir na transformação da realidade. Certamente, como
metaforizado por Rojo (2006), com a leveza de pensamento é possível ressignificar a vida social. Sem
ela, permaneceremos sob forças centralizadoras, enrijecidos e fadigados por uma implacável
resistência a resistir.

CORPOS
248

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.


_____ Teoria do Romance I: A estilística. 1ª ed São Paulo: Editora 34, 2015.
BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar,
2008.
MEDVIÉDEV, P.N. O método formal nos estudos literários. São Paulo: Editora Contexto, 2012 (1929).
MOITA LOPES, L. P. Da aplicação da linguística à linguística aplicada indisciplinar. In: PEREIRA, R.C.;
ROCA, P. (Orgs.). Linguística aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto,
2009.
ROJO, R. H. R. Fazer linguística aplicada em perspectiva sócio-histórica: privação sofrida e leveza de
pensamento. In: MOITA-LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006.
VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da linguagem: Problemas Fundamentais do Método
Sociológico na Ciência da Linguagem. 1ª ed.. São Paulo: Editora 34, 2017.
_____. Discurso na vida e discurso na arte: problemas da poética sociológica. Disponível em:
<http://www.uesb.br/ppgcel/Discurso-Na-VidaDiscurso-NaArte.pdf.> Acesso em 30 ago. 2017.

CORPOS
RESUMO
249

O POLÍTICO DO CORPO DE Palavras-Chave:

FRIDA KAHLO: um estudo dialógico.

WILLERS, Fernanda Franz101

7 de Julho
Em 1954, uma manifestação comunista percorreu
as ruas da Cidade do México.
Frida Kahlo estava lá, de cadeira de rodas.
Foi a última vez que foi vista viva.
Morreu, sem ruído, pouco depois.
E se passaram uns quantos anos até que a fridama-
nia, tremendo alvoroço, a despertou.
Ressurreição ou negócio? É isso o que merecia uma
artista alheia a qualquer exitismo e ao lindismo, autora
impiedosa de autorretratos que a mostravam sobrance-
lhuda e bigoduda, crivada de agulhas e alfinetes, apu-
nhalada por trinta e duas operações?
E se tudo isso fosse muito mais do que manipula-
ção mercantilista? Uma homenagem do tempo, que ce-
lebra uma mulher capaz de transformar sua dor em cor?
(Eduardo Galeano, 2012)

INTRODUÇÃO

N
este artigo me coloco a escrever sobre o uso político que a Frida Kahlo fez da sua imagem e do
seu corpo, colocando-o em relação com o esvaziamento de sentidos políticos, culturais e
revolucionários e o acréscimo de sentidos publicitários, mercadológicos que vem sendo
atribuídos ao seu corpo, imagem e obra contemporaneamente.
Assim, cotejando diferentes usos da imagem da artista, que em contextos diferentes
produzem interpretações distintas dela para o outro, busco encontrar e compreender o dialogismo
presente em sua representação material - aqui, signo ideológico.
Para Bakhtin, onde não há texto não há objeto de pesquisa e de pensamento. Assim,

101
Acadêmica do curso de pedagogia da Universidade Federal da Fronteira Sul

CORPOS
250

O texto “subentendido”. Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de
signos, a ciências das artes (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) opera com textos
(obras de arte). São pensamentos sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras sobre as
palavras, textos sobre textos. (BAKHTIN, 2011. pg 307)

Segundo a compreensão Bakhtiniana, o que torna o corpo um signo ideológico é a sua


materialidade enquanto objeto, a sua materialidade histórica e a sua valoração ideológica, que no
decorrer das produções e reproduções enunciativas constróem-se signos. O que caracteriza o signo
é a sua forma ideológica, “é seu caráter semiótico que coloca a todos os fenômenos ideológicos sob a
mesma definição geral” (BAKHTIN, 2014. Pg. 33).
Por isso, “um corpo físico vale por si próprio: não significa nada e coincide inteiramente com
sua própria natureza. Neste caso, não se trata de ideologia” ao mesmo tempo que ”toda imagem
artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico” (BAKHTIN,
2014. Pg. 31). Assim, o objeto (signo) não só reflete uma realidade, mas também refrata uma outra,
podendo lhe ser fiel ou distorcer a realidade. Em tempos de escatodologia política é ainda mais
intrigante observar, via signo ideológico, as relações e entrecruzamentos de sentidos antagônicos
para com o mesmo objeto de estudo.

TODO CORPO É POLÍTICO

Frida nascera mulher. E ser mulher no início do século XX não era coisa simples, haviam
caminhos a ser seguidos, Frida não entrou na caixinha moldada pela sociedade da época. Era atrevida.
Bissexual. Casou com Diego Rivera e viveu com ele um romance tumultuado. Foi traída. Também traiu.
Não conseguiu realizar o desejo de ser mãe. Abortava. Vestia-se da cultura de seus antepassados,
sempre com trajes tipicamente mexicanos.
Frida teve o seu corpo mutilado aos 18 anos. Empalada.
Frida foi comunista. Militante. Estudiosa.
Frida é artista. Pintou a sua dor, usou cores fortes, vivas. Pintava a sua realidade. Teve
dificuldades em produzir sob encomendas e em atender o que era esperado dela.
De acordo com a biografia escrita por Hayden Herrera, Frida nasceu em 1907 mas em seus
diários optou por escrever que nascera em 1910, ano importante da revolução mexicana. Essa escolha
já indica a intencionalidade em vincular sua história de vida com a sua militância comunista.
Frida sempre manifestou no cotidiano de sua vida suas aspirações revolucionárias e nem o
seu funeral foi isento de manifestações políticas, “com os braços erguidos e punhos em riste, a
multidão cantou a ‘Internacional’, o hino nacional, a ‘Jovem guarda’, marcha fúnebre de Lênin”
(HERRERA, pg. 528). Herrera, escreveu que:

Embora não pairem dúvidas sobre quais eram suas simpatias, a intensidade da visão política de Kahlo
continua sendo objeto de certa controvérsia. Para algumas pessoas, Frida era uma heroína de esquerda;
para outras, uma mulher essencialmente apolítica. O grau de engajamento lhe é atribuído parece

CORPOS
251

depender da inclinação da pessoa com quem ela estava falando e, é claro, das posições que Diego
estivesse professando no momento. Assim, os esquerdistas tendem a ver Frida como uma ardorosa
comunista, ao passo que os que são ingênuos ou indiferentes à política, ou os que reprovam o
comunismo de Kahlo, tendem a defini-la como uma criatura não política. (HERRERA, 2011. Pg. 415)

O diálogo entre autora e o público que a contempla permite que sentidos outros sejam
produzidos ainda que não tenham sido intencionais e nem mesmo verdadeiros. A linguagem, como
conceituou Volochínov, é “o produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus
elementos tanto a organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou” (
VOLOCHÍNOV, 2013. pg. 141). Nas linguagens artísticas, a materialidade da obra está inserida em
determinado contexto social da mesma forma que os sujeitos que recebem o fenômeno artístico
também estão.
Ao mesmo que tempo que para quem estudou a vida de Frida Khalo chega a conclusão de que
se
pode afirmar com certeza é que, pelo menos a partir da década de 1940, Frida passou a ressaltar o
conteúdo social na arte e a fomentar o desenvolvimento político de seus pupilos, recomendando leituras
marxistas e incentivando o seu envolvimento nas discussões políticas entre ela e Diego. A pintura, dizia
ela, devia desempenhar um papel na sociedade. (HERRERA, pg. 415)

Quem desconhece ou considera desinportante conhecer a história da autora acaba por dar
significados outros para aquilo que vê, ouve, sente… isso faz parte do diálogo, assim como a
interpretação do dito e não dito. Como escreveu Bakhtin

A lógica das consciências é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo


social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a
palavra, o gesto significante, etc. constituem o seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o
simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe
conferem. (BAKHTIN, 2014. Pg. 36)

ENTRECRUZAMENTO: o pop e o popular

Não se passa um dia sequer sem que eu veja o rosto da Frida Kahlo estampado em algum
lugar. No meu próprio quarto tenho várias representações da sua imagem e obra. A reprodução em
massa da sua imagem vem aumentando com o passar dos anos, atribui-se sua imagem como símbolo
de movimentos sociais ao mesmo tempo que corporações da indústria da moda a vendem como um
produto cool.

CORPOS
252

Figura 1. Camiseta da marca Zara.

Fonte: http://www.fridakahlocorporation.com/

A primeira e segunda imagem são a camiseta e estampa da marca Zara. Zara é uma rede de
lojas, uma multinacional espanhola que foi avaliada, pela Forbes, em 2,85 mil milhões de euros e
frequentemente é denunciada por manter trabalhadores em situação análoga à de escravos.
Frida odiava o imperialismo e consumismo exacerbado, vestia-se sempre de trajes típicos
mexicanos para lembrar da história de seus antepassados. As imagens a seguir são trabalhos que são
produzidos por artesãs feministas.

Figuras 2 e 3: Produtos das Marias Lavrandeiras

Fonte: facebook Marias Lavrandeiras

CORPOS
253

O Uso da imagem da Frida ganha significados diferentes nos contextos apresentados, tanto
por quem produziu a camiseta quanto para quem a compra ou de uma grande empresa de vestuário
ou de trabalho artesanal com identificação com a vida e obra da pintora.
Não é raro encontrar imagens que retratam Frida através do embranquecimento de sua pele,
nas imagens abaixo uma clínica de estética utilizou em sua publicidade alterações que mudam um de
seus traços mais marcantes e enfatizados por ela própria, a sobrancelha.

Imagens 4 e 5: divulgação clínica de estética

Fonte: https://exame.abril.com.br/marketing/marca-usa-frida-kahlo-depilador-facial/

Como escreveu Bakhtin:

Na realidade, todo signo ideológico vivo tem, como Jano, duas faces. Toda crítica viva pode tornar-se
elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior mentiras. Esta dialética
interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção
revolucionária.

EU PARA MIM. EU PARA O OUTRO.

Khalo escreveu que

Alguns críticos tentaram me classificar como surrealista; mas eu não me considero surrealista [...] Eu
realmente não sei se meus quadros são surrealistas ou não, mas sei que são a expressão mais sincera
de mim mesma. [...] Eu detesto o surrealismo. Pra mim, parece uma manifestação decadente de arte
burguesa. Um desvio da verdadeira arte que as pessoas esperam de um artista [...] Eu quero ser digna,
com minha pintura, do povo a que eu pertenço e das ideias que me fortalecem [...] Eu quero que minha

CORPOS
254

obra seja uma contribuição para a luta das pessoas em seu esforço pela paz e liberdade. ( HERRERA,
2011. pg. 32)

Vejo que Frida tinha muita segurança e convicção de quem ela era e de quem ela queria ser
para os outros, sobre os ideais revolucionários que ela pretendia ter a sua imagem relacionada, tanto
é que:
Quando os médicos determinaram que as tintas de Frida fossem levadas embora do quarto, ela pintou o
colete que então estava usando com batom e iodo. Existe uma fotografia em que Diego observa a esposa
acamada enquanto ela pinta cuidadosamente um martelo e uma foice num colete que cobre seu torso
inteiro. (HERRERA, pg 468)

O esvaziamento dos sentidos político, revolucionário e cultural acontece intencionalmente


dentro da organização globalizada da cultura hegemônica que busca o monologismo da cultura
burguesa, reproduzindo a falsa ideia de neutralidade como se o signo não fosse ideológico por
natureza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do olhar bakhtiniano para o mundo e entendendo que a palavra é o signo ideológico
por excelência, nas linguagens artísticas e representações de imagem muito posso compreender,
dentro da mesma perspectiva da valoração sígnica, a imagem como um gênero do discurso. Como
escreveu Bubnova:

CORPOS
255

Tanto o corpo quanto a palavra são fronteiras entre o mundo interior e o mundo exterior, entre o eu e o
não eu, a alteridade. O corpo é a fronteira entre eu-para-mim e a espacialidade do outro; a palavra (o
enunciado) é fronteira entre meu dizer interno, semiamorfo - ainda que possível tão somente a partir da
anterioridade do discurso social da alteridade -, e a formulação expressiva dirigida ao outro com fins de
comunicação. A linguagem que recebo está prenhe de um diálogo inconcluso ao que eu tenho que me
conectar, qualquer palavra que sou capaz de proferir é uma resposta a algo dito antes por outros,
oriento meu discurso sempre para que alcance o outro. Sempre se fala para alguém essa é a essência
de meu eu-para-outro: ato, discurso, literatura. (BUBNOVA, 2016. pg.146-147)

O dialogismo que permeia as relaçoẽs discursivas permite que dentro de contextos distintos
significados diferentes sejam constantemente sentidos e reproduzidos a partir de um enunciado.
Como escreveu Paulo Leminski, “na luta de classes, todas as armas são boas: pedras, noites e
poemas.”

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec, 2014.


________, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BUBNOVA, Tatiana. Do corpo à palavra: leituras bakhtinianas. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016.
HERRERA, Hayden. Frida: a biografia. São Paulo : Editora Globo S. A, 2011.
VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaievich. A construção da Enunciação e Outros ensaios. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2013.

CORPOS
256

heterociência
CORPOS
RESUMO
257

Este texto apresenta produção de sentidos iniciais

PESQUISADORA INICIANTE de uma pesquisadora iniciante a partir dos


primeiros contatos com conceitos de Bakhtin.

DEDICANDO A VIDA À Palavras-Chave:


Heterociência
Bakhtin. Experiência.

ARTE E AO
CONHECIMENTO
AGUIAR, Jullie Belmonte de 102

INTRODUÇÃO

P
artindo de estudos e discussões no grupo de pesquisa no qual participo103, surgiu a necessidade
de entender o processo dialógico da produção de sentidos que emprego no meu estudo sobre
Bakhtin. O autor, ao tratar de conceitos complexos - como o conceito polifonia - em obras como
“Problemas da poética de Dostoiévski”, escreve de forma que as vozes do texto conversam com as
ideias e suposições que tenho ao buscar entender o que está proposto. Além disso, é preciso recorrer
às obras de Dostoiévski para saber o que e o porquê, ou seja, ter mais pontos de partida para
construir um caminho para o entendimento, não digo nem entendimento em si, porque devido à
densidade e peculiaridade dessa bibliografia, novos sentidos estão sempre sendo propostos. O que só
reafirma o carater dialógico dessa escrita.
Ao pensar sobre escrever numa perspectiva bakhtiniana em ciências humanas, por meio de
conceitos como polifonia, percebi que me falta uma abrangência de leitura que me possibilite maiores
interpretações. Mesmo assim, não deixei que isso me impossibilitasse de escrever. Sempre haverá
pontos de partida, sejam eles quais forem. O passo inicial já foi dado, no caso, o interesse em produzir
conhecimento.
A interdisciplinaridade é o pressuposto básico da formação teórica. Até o momento, tudo que
já vivenciei, percepções e sensações por meio de experiências, o que aprendi com os outros e o que
os outros me ensinaram (palavras próprias e palavras alheias), tudo com o que já tive contato ressoa

102 Graduanda em pedagogia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Integrante do GEPELID (Grupo de estudos e pesquisa sobre
linguagem e diferenças coordenado pelos Prof. Dr. Carlos Roberto de Carvalho e Prof.ª Dr.ª Flávia Miller Naethe Motta) e bolsista de Iniciação
Científica PIBIC/CNPq. E-mail: jullie.bel.aguiar@gmail.com

CORPOS
258

na minha escrita (alguém insiste na existência da neutralidade?), pois nas palavras que se revelam os
sujeitos. Essa característica é um aspecto preponderante na pesquisa em ciências humanas. Quem é
esse sujeito?
O conhecimento tem aspectos polifônicos, dialógicos e alteritários. Tal especificidade, nos
remete a uma dimensão de criação mais ampla.
Vou construir minhas compreensões a partir da leitura e imersão nas obras de Bakhtin,
Obviamente, para a leitura constituir sentido, será necessária uma interpretação e ressignificação,
tarefa que requer tempo e devida reflexão.
Ainda em Problemas da poética de Dostoiévski, em uma das reuniões do grupo de pesquisa,
uma citação presente na orelha do livro nos rendeu uma boa conversa: “Ser significa comunicar-se
pelo diálogo”. É na linguagem que o homem se revela, e por meio dela que produzimos sentidos. Por
meio de uma frase, por algumas palavras, é possível elaborar pensamentos e questionamentos indo
muito além do ponto de partida. O curioso é que a mesma frase, se lida por alguém que não está
contextualizado nesse estudo, pode não render muito, e remeter apenas a uma lógica da linguagem,
que o diálogo é uma forma de comunicação.
É evidente a necessidade de reconhecer a amplitude do que esta proposto ao iniciar estudos
bibliográficos nessa área. A variedade de textos, que dialogam entre si, corresponde à intensa
produção de conhecimento e esta é posteriormente apropriada por outros sujeitos. A alteridade é um
conceito chave para perceber que aspectos da autoria do outro irão se relacionar com a identidade
do leitor. Novamente, um leitor que conhece as obras de Dostoiévski entenderá de forma diferente em
comparação a outro, desconhecedor desse repertório. A visão de mundo exposta em uma pesquisa,
tangencia a totalidade existente. Sendo um fragmento exposto e estudado, o que não corresponde ao
conhecimento mais amplo do mundo, é interessante lembrar também, que as pessoas estão em
posições diferentes, têm visões diferentes. Ser polifônico é reconhecer a não existência de um ponto
de vista único.
O diálogo é onde os sentidos aparecem. A relação eu-outro no texto não acaba quando é
finalizada a escrita, ele continua ativo. Essa relação é dialógica e alteritária.
O conceito de sujeito já revela muito da perspectiva bakhtiniana em pesquisa, ao considerar o
ser expressivo e falante, considera-se também sua experiência, o que fundamenta a característica
desse viés do pensamento heterocientífico, no caso, as autorias. Quais são as vozes presentes, e o
que elas dizem? Qual o ponto de partida dessa enunciação?

1. ARTE, VIDA E CONHECIMENTO

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.


Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).

CORPOS
259

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.


Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

(BARROS, Manoel de. “Tratado geral das grandezas do ínfimo”)

Quando comecei a apreciar os conceitos de Bakhtin eu não sabia que era o que era, na
optativa “Interdisciplinaridade: Epistemologia e Metodologia”, tive contato com autores como Marilia
Amorim (2002) e Charlot (2006). Eram abordadas questões da linguagem e de pesquisa. Também foi o
momento de mais clareza em saber que o sentido se dá na enunciação. Tais questões já me faziam
refletir, e foi em uma dessas aulas que conheci a tripla dimensão da cultura: Arte, Vida e
Conhecimento. E isso ficou marcado, tanto que decidi realmente escrever sobre o assunto e nesse
momento já fui delineando minha pesquisa, no caso, aplicada ao trabalho monográfico.
A vida acadêmica sempre foi meu foco, existem muitas oportunidades na graduação, sabendo
disso, fui buscando formas de atingir meus objetivos de desenvolvimento. Um trabalho com a ideia de
“Emancipação por meio da arte” foi nascendo ao considerar que a arte e o conhecimento são
fundamentais para vida. Decidi escrever meu resumo de pesquisa para submissão em congressos,
submeti em um congresso sobre infância. Desenvolvi a ideia e um tempo depois tive um retorno. Não
foi aprovado. Mesmo tendo pertinência, o tratamento apressado na escrita, o não aprofundamento nos
conceitos e inclusive frases incompletas, tornaram meu trabalho sem foco e consequentemente
recusado.
Usei o termo “pesquisa qualitativa de cunho reflexivo” ao indicar minha metodologia. A
articulação entre arte vida e conhecimento, embora ainda inconsciente para a autora, era uma ideia
central desse texto. Também indiquei ideias como: “a criança é produtora e reprodutora de cultura”,
uma noção que pode ser relacionada ao que trago nesta introdução: a relação eu-outro. Falei ainda
em: “construir relações possíveis” que é um aspecto da ressignificação e apropriação do que foi
proposto numa relação de ensino-aprendizagem.
Um tempo depois, reli o texto e também a justificativa de ter sido recusado. Tive outra
compreensão. Meu eu já não era o mesmo. Esse movimento de auto reflexão é um encontro de duas
vozes presentes no mesmo autor. E pode-se considerar uma terceira agora, essa que vos escreve. E
também considerando quem lê... mais uma.

A observação em uma pesquisa de abordagem sócio-histórica, se constitui pois em um encontro de


muitas vozes: ao se observar um evento depara-se com diferentes discursos verbais, gestuais e
expressivos. São discursos que refletem e refratam a realidade da qual fazem parte construindo uma
verdadeira tessitura da vida social” (FREITAS, 2004, p.33)

Dialogar com as vozes presentes na escrita desse texto instaura uma multiplicidade de pontos
de vista.

CORPOS
260

Walter Benjamin considera que "[...] um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos
encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites porque é apenas
uma chave para tudo aquilo que veio antes ou depois" (1994, p. 15). Essa citação nos remete à questão
do tempo. Em Bakhtin, cronotopo corresponde a reconhecer eu a existência humana se dá em um
momento e um lugar. Tempo e Espaço, a posição epistemológica define o ponto de vista. Os
acontecimentos, na esfera do cotidiano, instauram uma experiência comum a um conjunto de sujeitos,
por exemplo, trinta alunos em uma sala tendo aula com um professor. Tal fato, nos remete a uma
cultura escolar que varia de acordo com o lugar onde esses alunos estão. A experiência comum varia
a cada sujeito, em nível macro, todas as possibilidades de formação que alguém pode ter, ou não ter,
constituem a esfera de formação pessoal e social que determina como esse alguém irá se posicionar
diante do mundo.
Indo além nessa questão temporal, quando pedi orientação para o professor que coordena o
grupo de pesquisa, perguntando o que eu poderia fazer para ter mais clareza com os conceitos de
Bakhtin, tive uma resposta sucinta: “esperar”. Até onde sei, para apropriar-se de conhecimento, é
preciso estar em contato com ele e buscar aproximar-se de seu significado e implicações, mas nunca
me ocorreu que o tempo também influencia nesse movimento, pois como já escrevi anteriormente, as
conexões possíveis e amplitude da ressignificação de um estudo demanda maior reflexão, para
reconhecer as relações entre o que já sei e o que pretendo saber. E isso varia com o tempo. Olhando
para o passado, quando eu vejo textos que estudava no primeiro período da graduação e que
considerava difíceis, hoje em dia percebo que não é bem assim. A cada novo estudo, mais um ponto de
vista é revelado ou um detalhe percebido. Provavelmente, daqui a alguns anos, quando eu reler esse
trabalho, chegue a outras conclusões.
Considerando o conceito de grande tempo, que possibilita trazer enunciados diferentes que
ecoam em diferentes momentos, vivemos em uma época na qual, com a intervenção da internet,
podemos buscar no google algumas palavras chave e descobrir quase tudo que nossa curiosidade
permitir. Inclusive ao buscar, por exemplo um filme, nos apresentam informações com links que nos
direcionam para outros contextos mais amplos. Ao buscar o elenco podemos saber em quais outros
filmes os atores também atuaram, ou então quais enredos e personagens já foram trabalhados.
Articular minha vida para produção de conhecimento e contemplação da arte, é investir no
que chamei de essência. O que é essencial para vida? Julgo essencial manter-me em movimento,
sempre buscando ir além do que já sou. Em meio a tanta produção literária, tanta arte, criadas por
pessoas que possuem uma história, um contexto, só de pensar sobre a abrangência de produções e
vivências, fico inspirada. Tanto a conhecer e pouco tempo para apreciar.

CORPOS
261

2. BUSCA CONSTANTE

O projeto que atualmente o GEPELID vem trabalhado, “Em busca de uma heterociência: ética,
estética e epistemologia numa perspectiva bakhtiana das ciências humanas” aborda questões
levantadas por meio desse trabalho.

Para o heterocientista o mundo não é um absoluto, o mundo está sempre sendo e que, portanto sobre
ele é sempre possível tecer outras interpretações e que ninguém detenha a última palavra. A questão
não é um embate entre narrativas e narratividades, a questão nos parece ser bem outra: não permitir
que uma única visão de mundo venha prevalecer sobre outras”. (MOTTA; CARVALHO, 2017, p. 6)

Ao ser proposta outra forma de começar, e abrir-se para o mundo desencadeando uma série
de percepções que aparecem sob outra ótica, o caminho traçado já não é o mesmo em comparação a
uma escrita com enunciados escritos somente pelo objetivo de serem lidos, pressupondo certa
identidade da coisa dita e seus possíveis sentidos. A palavra não deve ser calculada, tem que ser
apenas ela. A margem para interpretações possíveis de um mesmo texto reafirma o caráter
polissêmico das produções humanas e culturais.

Contribuir para que a produção da ciência seja responsiva e responsável porque humanamente
referenciada nas diversidades das culturas e, portanto, uma ciência, não arrogante, que possa abarcar
o humano em todas as suas dimensões, pois é no âmbito dessas três dimensões que vivem os humanos.
(MOTTA; CARVALHO, 2017, p. 9)

Ambos fragmentos discorrem sobre essa forma de narrativa/escrita que é possível pela
linguagem. A pesquisa em ciências humanas tem essa característica, a expressividade contida revela
a memória e as experiências tratadas no contexto histórico-social. “Cada história é um ensejo de uma
nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta, etc.; essa dinâmica ilimitada da
memória e da constituição do relato, com cada texto suscitando outros textos[...]” (BENJAMIN, 1994).
Ao pensar sobre algo, passamos por categorias cognitivas, e, ao definir a epistemologia do próprio
saber, a consciência do aprendizado remete a uma abordagem emancipatória.

Ora, uma vez que a linguagem é o que caracteriza e marca o homem, trata-se de restaurar nas ciências
humanas o espaço do sentido O sentido da palavra é o caminho para o resgate daquilo que no homem é
sujeito, no qual ele não se anula e nem se desfaz. (JOBIM E SOUZA, 1994, p. 51)

São narrativas que contam a experiência humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho foi pensado numa proposta de escrita acadêmica com viés heterocientífico que
buscou ir além de uma única visão, a autoria dos sujeitos expressivos e falantes compõe uma ciência

CORPOS
262

polifônica e dialógica, compreendendo outras formas de produzir conhecimento científico. Pedi que um
amigo lesse meu trabalho para que eu percebesse, por outro ponto de vista, e descobri que atingi o
objetivo de marcar minha autoria na escrita, foi-me dito que o texto possui minha voz.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Marilia. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em Ciências Humanas. Cad. Pesq. [online]. 2002, n. 116, pp.
07-19.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas na poética de Dostoiévski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
BARROS, Manoel de. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura. 7. ed São Paulo: Brasiliense, 1994.
CHARLOT, Bernard. A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e práticas: especificidades e desafios
de uma área do saber. Rev. Bras. Educ. [online]. 2006, vol. 11, n. 31, pp. 7-18.
FREITAS, M. T.; KRAMER, S.; JOBIM E SOUZA, S. Ciências humanas e pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. 2 ed. São
Paulo: Cortez, 2007.
JOBIM E SOUZA, S. Infância e linguagem Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. 10 ed. São Paulo: Papirus, 1994.
MIOTELLO, V.; MELLO, M. B. Questões Bakhtinianas para uma heterociência humana. Revista teias v. 14, n. 31, 218-226,
2013. Acesso em 26 de setembro de 2017.
MOTTA, F. M. N.; CARVALHO, C. R. Em busca de uma heterociência: Ética, Estética e Epistemologia numa
perspectiva bakhtiana das ciências humanas. Projeto GEPELID: UFRRJ, 2017.

CORPOS
RESUMO
263
Este artigo tem como principais objetivos
apresentar e discutir a entrada do conceito de
gêneros do discurso – tal como postulado por

A ENTRADA DO CONCEITO Mikhail Bakhtin e seu Círculo (2010) – no Brasil, bem


como levantar e discutir uma hipótese principal a
respeito dos motivos pelos quais se verifica uma

DE GÊNEROS
tendência entre os professores, especialmente
aqueles dos anos iniciais do Ensino Fundamental, a
desconhecer ou dominar parcialmente as
contribuições do filósofo soviético no campo da

DISCURSIVOS NO BRASIL: linguagem. A hipótese que se levantou é de que a


entrada relativamente recente desse conceito no
país é a responsável pelas inseguranças dos

das normatizações às práticas pedagógicas professores ao fazerem a apropriação /


ressignificação didática do conceito. Essa hipótese,
que tem desdobramentos muito significativos,
apontou para a necessidade cada vez mais
inescapável e determinante de investimento maciço
do poder público em cursos de formação inicial,
continuada e em serviço dos professores,
BATISTA, Gilka Fornazari 104
especialmente daqueles dos primeiros anos do
Ensino Fundamental. A metodologia se caracteriza
por ser de caráter bibliográfico, tendo se baseado
principalmente nos escritos do próprio Bakhtin e
seu Círculo (2010) e de Mortatti (2000), além de
outros autores que deram sustentação às
INTRODUÇÃO discussões.

E
Palavras-chave: Gêneros do Discurso. Ensino
ste estudo tem como objetivo apresentar e discutir a entrada Fundamental. Formação de Professores.
do conceito de gêneros do discurso – tal como postulado por
Mikhail Bakhtin e seu Círculo (2010) – no Brasil. Além disso,
pretende-se levantar uma hipótese principal a respeito dos motivos pelos quais se verifica uma
tendência entre os professores, especialmente aqueles dos anos iniciais do Ensino Fundamental, a
desconhecer ou dominar parcialmente as contribuições do filósofo soviético no campo da linguagem, a
despeito de essas contribuições terem sido apropriadas pelo discurso oficial no campo da Educação
desde o final do século XX, notadamente pelas normatizações ou prescrições referentes aos
primeiros anos do Ensino Fundamental.
A base desse estudo se sustenta sobre o próprio filósofo soviético, que instaura, dentre
outras categorizações de grande vulto para a filosofia da linguagem, o conceito de gêneros
discursivos, os quais, segundo o autor, são “tipos de enunciados relativamente estáveis” – o que será
apresentado e discutido mais adiante. Além disso, as contribuições de Mortatti (2000) são de grande
relevância para esse artigo, pois fazem uma retomada histórica das tendências teóricas envolvidas no
campo da alfabetização nas últimas décadas, evidenciando as diferenças entre os estudos teóricos, o
discurso oficial e as práticas pedagógicas dentro das salas de aula dos primeiros anos do Ensino
Fundamental. Dessa forma, a metodologia utilizada para a produção desse estudo calcou-se sobre
pesquisa de cunho bibliográfico, através de livros impressos e artigos disponíveis em sites confiáveis,
notadamente aqueles ligados a universidades e revistas eletrônicas de renome.

104 Licenciada em Letras e Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas. Mestranda em Educação pela mesma Universidade. Profª de
Língua Portuguesa do SENAI (Rio Claro / SP). E-mail: gilkabatista@bol.com.br

CORPOS
264

Estudar a entrada do conceito de gêneros discursivos no Brasil e sua apropriação pelos


professores, especialmente aqueles ligados à alfabetização e ao letramento nos anos iniciais do
Ensino Fundamental, se justifica na medida em que o conceito é fundamental para a compreensão do
funcionamento da comunicação discursiva nas várias esferas de atuação humana. Além disso, o
conceito de gêneros discursivos tem consequências marcantes para o ensino da língua – como
considerar, nesse ensino, a língua intimamente vinculada às práticas sociais dos falantes, em
processo constante de interação.

1. O CONCEITO DE GÊNEROS DISCURSIVOS NA PERSPECTIVA BAKHTINIANA E SUA APROPRIAÇÃO


PELO DISCURSO OFICIAL

Antes de qualquer passo, é preciso apresentar, em linhas gerais, o que o próprio Bakhtin
postula como gêneros discursivos. As principais teorizações sobre o conceito encontram-se no
capítulo “Os gêneros do discurso”, presente no livro “Estética da criação verbal”, publicado
originalmente em Moscou, postumamente em 1979.
Mikhail Bakhtin (1895 – 1975), filósofo soviético da linguagem, é responsável, juntamente com
outros pensadores que formaram o chamado Círculo de Bakhtin, pela criação do conceito de gêneros
discursivos, além de tantas outras definições que hoje são categorias de análise em várias disciplinas
e áreas do conhecimento, como Psicologia, Antropologia, História, Filosofia, Crítica Literária, etc.
Bakhtin e seu Círculo foram inovadores ao analisar o discurso tanto na arte como na vida, observando
como os enunciados se combinam para formar, de acordo com o autor, os gêneros do discurso.
Também é deles a contribuição de se considerar a linguagem sob uma perspectiva dialógica: um
produto das relações sociais e das condições materiais e históricas de cada tempo, tecendo-se
sempre em diálogo com inúmeros enunciados já proferidos.
Original para a época em que foi produzida – décadas de 1920 e 1930 – sua teoria da
linguagem só foi valorizada a partir da década de 1960, quando um grupo de intelectuais soviéticos a
redescobriu. Seu nome e sua produção, assim como boa parte do legado do Círculo, chegam ao
ocidente na década de 1970. No Brasil, especificamente, passamos a conhecer e estudar Bakhtin
somente a partir da década de 1980.
Para o filósofo soviético, “o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade
humana” (BAKHTIN, 2010, p. 261). Além disso, “[...] cada enunciado particular é individual, mas cada
campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso” (idem, p. 262).
Assim sendo, uma língua se manifesta sempre em forma de “enunciados”, sejam orais ou
escritos, proferidos pelos falantes em cada "campo de utilização da língua”, isto é, em cada esfera de
atividade humana ou também chamado de domínio discursivo. Cada uma dessas esferas – a jurídica, a
religiosa, a acadêmica/escolar, a artística/literária, a jornalística, a científica, a publicística, etc –

CORPOS
265

elabora “tipos relativamente estáveis de enunciados”, que são, para o autor, chamados de “gêneros
do discurso”. Por exemplo: na esfera acadêmica/escolar, temos vários tipos relativamente estáveis
de enunciados; ao serem agrupados, dão origem a certos gêneros discursivos, como o seminário; a
prova; o artigo científico; as anotações (de caderno e de lousa); a aula; a palestra; o debate, dentre
tantos outros gêneros.
Segundo Bakhtin (2010), cada gênero do discurso tem um conteúdo temático, um estilo e uma
estrutura composicional próprios. O conteúdo temático não é o assunto propriamente dito de um dado
texto, mas sim o domínio de sentido a que um gênero está relacionado. Por exemplo: no gênero cartas
de amor, o conteúdo temático é aquele vinculado às relações amorosas. Já o estilo corresponde à
“seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua” ( idem, p. 261). Essa seleção
sempre está ligada à esfera de atividade humana ou domínio discursivo em que o falante está inserido
no momento de utilização daqueles tipos relativamente estáveis de enunciados. Retomando o exemplo
das cartas de amor, poderíamos classificar o estilo como íntimo, já que a seleção dos recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais pressupõe um interlocutor próximo, com quem se tem
intimidade. Finalmente, a estrutura composicional diz respeito à forma como se estrutura e se
organiza o texto. Ainda tomando como exemplo as cartas de amor, é frequente encontrar nesse
gênero a indicação de local e data e os nomes de quem escreve e para quem se escreve.
É importante frisar que cada gênero corresponde às condições relativas a cada campo da
atividade humana, o que liga intimamente o uso da língua pelo falante às práticas sociais que envolvem
a linguagem verbal em cada contexto. Assim, nas palavras do autor,

Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de
dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada função
(científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva,
específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados
estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis (idem, p. 266).

Deve-se ainda destacar a “relativa estabilidade” dos enunciados. Bakhtin (2010) ressalta que
os enunciados devem ter uma estabilidade, caso contrário, se precisássemos reconstruir “livremente
e pela primeira vez cada enunciado” (idem, p. 283), seria praticamente impossível a comunicação
discursiva. Porém, essa estabilidade é relativa, já que cada enunciado é individual e único, proferido
por um falante também único.
Retomando o exemplo das cartas de amor: podemos, em um texto pertencente a esse gênero,
não expor o local e a data em que o texto foi escrito; podemos, eventualmente, suprimir o nome de
quem o escreveu; podemos, ainda, escrever muito ou escrever pouco. Nada disso, entretanto,
descaracterizaria aquele texto como pertencente ao gênero cartas de amor. A relativa estabilidade
dos enunciados fica ainda mais evidente quando se trata de poemas: temos, na história da literatura,
poemas de variadíssimos conteúdos temáticos e de diversas estruturas de composição, assim como
de variados estilos. Nem por isso, entretanto, todos os textos que são considerados poemas deixam

CORPOS
266

de sê-lo, já que, apesar das diferenças entre si, há uma estabilidade que os une sob a mesma
classificação: pertencem ao gênero discursivo poema. Isso se deve ao fato de circularem na mesma
esfera de atividade humana – a artística/literária – e apresentarem função social semelhante.
Além disso, apesar de únicos e individuais, os enunciados estão sempre ligados a outros
enunciados já proferidos, e até mesmo ainda por proferir. Para Bakhtin (2010), todo falante é por si
mesmo um respondente em maior ou menor grau: “Ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter
violado o eterno silêncio do universo” (idem, p. 272). Essa cadeia discursiva revela o caráter dialógico
da linguagem, que é um dos pressupostos mais importantes de Bakhtin e seu Círculo para a filosofia
da linguagem: quando falamos ou escrevemos o que quer que seja, estamos dialogando com
enunciados anteriores e até mesmo subsequentes, pois “Cada enunciado é um elo na corrente
complexamente organizada de outros enunciados” (idem, ibidem).
Outro pressuposto que deriva dessas teorizações é de que os falantes de uma língua apenas
se comunicam através de enunciados – os quais, como já se verificou, quando agrupados em tipos
relativamente estáveis, dão origem aos gêneros do discurso. Assim, “falamos através de
determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente
estáveis e típicas de construção do todo” (idem, p. 282). Isso traz uma consequência de máxima
importância para o ensino da língua na escola: “aprender a falar significa aprender a construir
enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por
palavras isoladas)” (idem, p. 283).
Isso quer dizer que não dominar determinado gênero do discurso torna a comunicação quase
impossível nos vários campos da atividade humana, o que denota a íntima relação que existe entre os
gêneros e as práticas sociais. No ensino da língua, portanto, como ainda se pode insistir em ensinar
palavras e orações, especialmente nos primeiros anos do Ensino Fundamental, e desprezar a unidade
real da comunicação – o enunciado?
Assim sendo, “muitas pessoas que dominam magnificamente uma língua sentem amiúde total
impotência em alguns campos da comunicação precisamente porque não dominam na prática as
formas de gênero de dadas esferas” (idem, p. 284). Isso tem como consequência que é o domínio dos
gêneros, e não apenas da língua, o que garante a comunicação discursiva. Essa é a principal
justificativa para o trabalho com gêneros na escola, notadamente aqueles que se constroem em estilo
mais formal.
Observa-se, assim, que o domínio dos gêneros discursivos é uma forma de se adequar às
diversas situações de uso social da língua, seja em sua modalidade oral ou escrita. Segundo Bronckart
(2012), “a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática
nas atividades comunicativas humanas”.
É sob essa perspectiva que os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
(BRASIL, 1997), por exemplo, concebem o ensino da língua nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
Além desse exemplo, podemos observar as contribuições da teoria de gêneros discursivos de Bakhtin

CORPOS
267

e seu Crírculo também nos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, (BRASIL,
1998) e nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2006).
Nesse sentido, verifica-se nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa das
Séries Iniciais que:

Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do convívio com textos verdadeiros,
com leitores e escritores verdadeiros e com situações de comunicação que os tornem necessários.
Fora da escola escrevem-se textos dirigidos a interlocutores de fato. Todo texto pertence a um
determinado gênero, com uma forma própria, que se pode aprender. [...] A diversidade textual que
existe fora da escola pode e deve estar a serviço da expansão do conhecimento letrado do aluno.
(BRASIL, 1997, p. 28).

Observa-se, portanto, que os PCN sugerem um processo de ensino e aprendizagem de Língua


Portuguesa baseado na diversidade de gêneros discursivos existentes nas situações comunicativas
reais do cotidiano. Também apresentam os gêneros como passíveis de ensino e de aprendizagem na
escola.
Além disso, os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, publicados em
1998, também apontam algumas das contribuições de Bakhtin e seu Círculo, ao afirmarem que:

As palavras só têm sentido em enunciados e textos que significam e são significados por situações. A
linguagem não é apenas vocabulário, lista de palavras ou sentenças. É por meio do diálogo que a
comunicação acontece. São os sujeitos em interações singulares que atribuem sentidos únicos às falas.
A linguagem não é homogênea: há variedades de falas, diferenças nos graus de formalidade e nas
convenções do que se pode e deve falar em determinadas situações comunicativas. Quanto mais as
crianças puderem falar em situações diferentes, como contar o que lhes aconteceu em casa, contar
histórias, dar um recado, explicar um jogo ou pedir uma informação, mais poderão desenvolver suas
capacidades comunicativas de maneira significativa. (BRASIL, 1998, p. 121).

Verifica-se também neste documento oficial a adoção de conceitos e categorias criados pelo
filósofo soviético e seu grupo, como “enunciado” e “dialogismo”, além dos próprios gêneros
discursivos, implícitos na passagem “contar o que lhes aconteceu em casa, contar histórias, dar um
recado, explicar um jogo ou pedir uma informação”. Subsiste, ainda, no trecho citado, a perspectiva de
linguagem como produto e produtora das relações sociais, através da interação. Vale ressaltar que
essa perspectiva interacionista de linguagem não é adotada apenas por Bakhtin e seu Círculo, mas
encontra-se disseminada nos trabalhos de vários pensadores, como o psicólogo também soviético L.
S. Vygotsky e o psicólogo suíço Bernard Schneuwly, além de Jean Paul Bronckart, cujos estudos
contribuem de forma maciça à área da Educação.
Por fim, verificam-se os postulados de Bakhtin e seu Círculo também nas Orientações
Curriculares para o Ensino Médio, publicadas em 2006. Nelas, lê-se:

A visão aqui defendida supõe uma estreita e interdependente relação entre formas linguísticas, seus
usos e funções, o que resulta de se admitir que a atividade de compreensão e produção de textos

CORPOS
268

envolve processos amplos e múltiplos, os quais aglutinam conhecimentos de diferentes ordens, como já
referido.
Sabemos que a escola tem a função de promover condições para que os alunos reflitam sobre os
conhecimentos construídos ao longo de seu processo de socialização e possam agir sobre (e com) eles,
transformando-os, continuamente, nas suas ações, conforme as demandas trazidas pelos espaços
sociais em que atuam. Assim, se considerarmos que o papel da disciplina Língua Portuguesa é o de
possibilitar, por procedimentos sistemáticos, o desenvolvimento das ações de produção de linguagem
em diferentes situações de interação, abordagens interdisciplinares na prática da sala de aula são
essenciais. (BRASIL, 2006, p. 27)

Na passagem destacada, novamente se observa a linguagem vista como produto e produtora


das interações sociais, a qual deve ser abordada na escola a partir da diversidade de situações
comunicativas. Além disso, também se faz referência à íntima interdependência entre formas, usos e
funções da língua, o que, em grande medida, Bakhtin e seu Círculo utilizam na caracterização dos
gêneros discursivos.
No entanto, apesar de maciçamente presentes nas normatizações (MORTATTI, 2000) ou
prescrições (LOUSADA ET AL, 2011), isto é, nos discursos oficiais, as contribuições de Bakhtin no
campo da linguagem são relativamente pouco conhecidas pelos professores, especialmente aqueles
dos primeiros anos do Ensino Fundamental. Quando conhecidas, essas contribuições representam aos
professores grande dificuldade em sua ressignificação didática. Veremos adiante que uma possível
causa para esse cenário é a entrada recente do conceito de gêneros discursivos no Brasil e sua
quase imediata apropriação pelo discurso oficial, o que faz com que não se tenha ainda tido o tempo
necessário para transformar normatizações em concretizações (MORTATTI, 2000).
Nesse sentido, o próximo passo desse estudo busca destacar através de quais portas entram
no Brasil as contribuições de Bakhtin e seu Círculo, especialmente aquelas que envolvem o conceito de
gêneros do discurso e de língua na perspectiva de interação.

2. A ENTRADA DE BAKHTIN NO BRASIL E OS EMBATES TEÓRICOS

As contribuições de Bakhtin e seu Círculo no campo da filosofia da linguagem entram no Brasil


somente a partir da década de 1980, mais especificamente no final do decênio. Mortatti (2000) faz
belíssimo estudo sobre os sentidos que a alfabetização assume ao longo de mais de um século, no
Estado de São Paulo. Esse estudo pode ser verificado no livro “Os sentidos da alfabetização – São
Paulo, 1876-1994”. No capítulo 4 desse livro, chamado “Alfabetização: construtivismo e
desmetodização”, a autora propõe uma discussão sobre a entrada no Brasil das contribuições de
Emilia Ferreiro e Ana Teberosky sobre a psicogênese da língua escrita – o que se convencionou
chamar de “construtivismo”. Além disso, a autora apresenta outras perspectivas teóricas, as quais
entram quase no mesmo momento no país, e acabam por conflitar com as abordagens ditas
“tradicionais” e com o “construtivismo” (que ganhava força naquele período).

CORPOS
269

Uma dessas novas perspectivas é justamente a interacionista, da qual fazem parte as


contribuições de Bakhtin e seu Círculo, que se evidencia na produção de Ana Luiza Bustamante
Smolka, da Faculdade de Educação (FE) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
notadamente em seu livro “A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo
discursivo” (1989). Basicamente, Smolka questiona o postulado construtivista, buscando deslocar o
eixo das discussões de como se ensina e se aprende a língua para por quê e para quê se ensina e se
aprende a língua. Assim, segundo Mortatti:

A abordagem proposta por Smolka contribui, mediante sua disseminação a partir do final da década de
1980, para o delineamento de uma tendência verificada nas tematizações, normatizações e
concretizações relativas à alfabetização: o gradativo deslocamento para o “discurso interacionista”,
decorrente de certo esgotamento e questionamento do “discurso construtivista” – sem, no entanto, que
se o desconsidere e sem que se abandone a abordagem psicolinguística – , processo do qual acaba por
resultar um outro tipo de ecletismo, sintetizado nas expressões “socioconstrutivismo” ou
“construtivismo-interacionista”. (MORTATTI, 2000, p. 276).

Como se observa nessa passagem, os estudos de Smolka buscam questionar o discurso


construtivista a partir de nova perspectiva de análise das ações envolvidas em ensinar e aprender a
língua materna na escola. Suas contribuições são valorizadas e consideradas, sem, porém, que haja o
abandono das práticas ditas “tradicionais” e das abordagens ditas “construtivistas” em sala de aula.
Assim como Smolka, João Wanderley Geraldi, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL),
também da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), adota a perspectiva interacionista em seus
trabalhos, dos quais o livro “O texto na sala de aula” (2006) é um grande exemplo de deslocamento de
como ensinar e aprender a língua para por quê e para quê se ensina e se aprende, enfocando as
posições políticas dos professores. Segundo o autor:

[...] mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a


linguagem é vista como um lugar de interação humana. Por meio dela, o sujeito que fala pratica ações
que não conseguiria levar a cabo, a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo
compromissos e vínculos que não preexistem à fala. (GERALDI, 2006, p. 41).

Dessa maneira, a linguagem efetiva a vida – assim como é efetivada por ela, num processo
dialético. Essa perspectiva retoma postulados de Bakhtin e do Círculo, para quem “[...] a língua passa
a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de
enunciados concretos que a vida entra na língua”. (BAKHTIN, 2010, p. 265). É assim que Geraldi propõe
um intensivo trabalho com textos, numa tentativa de ensinar e aprender a língua a partir de sua
materialização cotidiana e das práticas sociais envolvidas em seu uso (BATISTA-DE OLIVEIRA, 2012).
Porém, apesar das pesquisas e produções teóricas envolvendo a perspectiva interacionista,
da qual Bakhtin e o Círculo fazem parte fundamental, houve uma tentativa de conciliação pouco
esclarecida entre ela e o construtivismo, principalmente nos discursos oficiais. Segundo Mortatti:

CORPOS
270

Mesmo que diferentes do ponto de vista epistemológico, esses dois referenciais teóricos
[construtivismo e interacionismo] vão sendo incorporados e apresentados, pelo discurso oficial, como
complementares entre si [...]. Como decorrência do referencial teórico construtivista e de sua posição
contrária à utilização de cartilhas e métodos de alfabetização, disseminou-se, num discurso “pelo
baixo”, um método eclético de novo tipo. Resultando na combinação dos métodos tradicionais com as
implicações pedagógicas das pesquisas de Ferreiro, esse “método” baseia-se no diagnóstico e posterior
classificação “construtivista” dos alfabetizandos em “pré-silábicos”, “silábicos” e “alfabéticos”, a partir
dos quais o professor deve desenvolver um “trabalho” que respeite a realidade da criança e seu ritmo
de construção do conhecimento, de preferência com textos e por meio deles. (MORTATTI, 2000, p. 286,
grifos da autora).

Observa-se que a entrada no Brasil das contribuições de Bakhtin e seu Círculo para os
estudos da linguagem se faz de forma conflituosa; os embates teóricos se dão principalmente no
campo das tematizações (produções e pesquisas acadêmicas), porém se estendem para o discurso
oficial (as normatizações, segundo Mortatti (2000)) e atingem as concretizações, ou seja, as práticas
pedagógicas cotidianas dos professores. O “método eclético de novo tipo”, do qual trata a passagem
acima, deixa os professores, em geral, pouco seguros quanto a como trabalhar a alfabetização – em
especial após a maciça presença, no cenário educacional, das contribuições dos Estudos do
Letramento, notadamente a partir da primeira década deste século.
Pode-se afirmar, portanto, que, se no campo das tematizações há clareza, em geral, quanto às
filiações teóricas de cada estudo e de cada pesquisa, não se pode afirmar o mesmo quanto à
apropriação dessas tematizações pelo discurso oficial e muito menos quanto aos efeitos das
contribuições de cada corrente teórica em sala de aula. Esse é um dos desdobramentos da hipótese
que será analisada a seguir.

3. A DIFERENÇA ENTRE O DISCURSO OFICIAL E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COTIDIANAS:


discussão de uma hipótese

A principal hipótese que se pode levantar para o fato de que os professores em geral não
dominam o conceito de gêneros discursivos nem conseguem, na maior parte das práticas, realizar
uma adequada ressignificação didática do conceito é por ser esta uma categoria relativamente
recente no país, que ainda conflita com abordagens ditas “tradicionais” de ensino e aprendizagem de
Língua Portuguesa.
Essa hipótese tem desdobramentos significativos: o fato de a entrada do conceito de gêneros
discursivos ser relativamente recente no país pode justificar a pouca atenção que é dada a ele nos
cursos de formação inicial de professores, falha essa que se tem buscado sanar com programas de
formação continuada, como Pró-Letramento e Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, por
exemplo. Essa pouca atenção se potencializa diante de um cenário nacional de pouco
comprometimento do poder público com a qualidade dos cursos de formação inicial de professores. A
profusão de cursos a distância em prazos aligeirados e de faculdades particulares que praticamente

CORPOS
271

apenas vendem diplomas nessa etapa da formação desfavorecem o aprofundamento teórico e as


reflexões baseadas na leitura atenta e cuidadosa dos clássicos. Sem uma base teórica sólida, os
professores dificilmente podem justificar suas práticas e questionar as normatizações, assim como é
improvável que construam autonomamente adaptações significativas do discurso oficial.
Além disso, a entrada recente do conceito de gêneros discursivos no Brasil faz com que,
mesmo que encampado pelo discurso oficial, se tenha ainda, na prática, muitas “bricolagens” ou
visões ecléticas, devido à convivência das tematizações e normatizações com as concretizações
(MORTATTI, 2000), estas que, na maior parte das vezes, não acompanham a velocidade com que
aquelas se efetivam.
Em outras palavras: segundo Hébrard (2000), existem três tempos da escola; o tempo de
base, o tempo das políticas de educação e o tempo dos discursos. O tempo de base se caracteriza por
ser aquele das práticas pedagógicas, o qual é muito lento. Já o tempo das políticas de educação,
considerado de velocidade intermediária, diz respeito à organização da escola. Por fim, o tempo dos
discursos: com enorme velocidade, os discursos pedagógicos se modificam, conforme se produzem
estudos acadêmicos sobre a escola e a educação.
Assim, existe a tendência a se produzirem discursos oficiais no campo da Educação numa
velocidade muito maior do que o tempo necessário para que esses discursos sejam traduzidos em
práticas pedagógicas efetivas, dentro das salas de aula, o que prejudica a apropriação competente,
crítica e reflexiva dos conceitos envolvidos nos discursos oficiais – como é o caso dos gêneros
discursivos. Essa discrepância se potencializa quando são oferecidos e criados poucos espaços de
troca de experiências e de reflexões coletivas entre os professores. Sem a troca de experiências e a
reflexão sobre a ação pedagógica cotidiana, dificilmente as práticas se modificam.
Vale ressaltar que espaços importantes para essa troca e essa reflexão são os cursos de
formação continuada (de caráter municipal, estadual ou nacional) e os espaços criados pela formação
em serviço, organizados dentro da própria escola, pela própria equipe docente. Nunca é demais
afirmar que é responsabilidade do poder público investir nos cursos de formação continuada, assim
como é responsabilidade direta da coordenação pedagógica de cada escola criar espaços
significativos e produtivos de estudo, reflexão e discussão entre os professores sobre suas práticas
pedagógicas cotidianas.
Outro desdobramento da hipótese levantada acima – o conceito de gêneros discursivos é
pouco dominado pelos professores dos primeiros anos do Ensino Fundamental, em geral, devido à sua
entrada relativamente recente no Brasil – é de que nem o próprio discurso oficial é claro em suas
determinações, abrindo margem a muitas falhas de compreensão por parte dos profissionais que não
são especialistas em língua. Além disso, conforme se ressaltou na seção anterior, o próprio discurso
oficial também propõe um “método eclético de novo tipo”, ao tentar compatibilizar tendências e
posturas teóricas muitas vezes divergentes.
Simone Bueno B. da Silva (2005) discute, em seu artigo intitulado Leituras de Alfabetizadoras,
“a natureza dos problemas de compreensão de duas alfabetizadoras (Neusa e Samira) na leitura dos

CORPOS
272

Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa para o primeiro e o segundo ciclos do


ensino fundamental” (SILVA, 2005, pp. 143-4).
A partir de sua pesquisa, a autora conclui que muitas das dificuldades de compreensão das
professoras citadas devem-se à profusão de termos próprios à área da Linguística na parte
introdutória do documento. Como certos conceitos linguísticos não são abordados pelos cursos de
Pedagogia atuais (nem eram pelos extintos cursos de Magistério), as professoras sentiram-se
desamparadas diante deles: é o caso do conceito de gêneros discursivos. Quanto a ele, as professoras
sentiram dificuldades de compreensão principalmente na seguinte passagem, localizada na página 26
dos PCN:

Pode-se ainda afirmar que a noção de gêneros refere-se a “famílias” de textos que compartilham
algumas características comuns, embora heterogêneas, como visão geral da ação à qual o texto se
articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de literariedade, por exemplo, existindo em
número quase ilimitado. (BRASIL, 1997, apud SILVA, 2005, p. 152).

De acordo com a autora, até mesmo no momento de realizar a leitura em voz alta dessa
passagem, ambas as professoras hesitaram e “engasgaram” ao pronunciar a palavra “literariedade”,
o que segundo Silva (2005) indicia uma falha no processamento cognitivo responsável pela
compreensão. Dessa forma, conclui a autora:

[...] o que nos pareceu mais saliente na leitura dos dados foi o grande número de definições de
conceitos linguísticos na parte introdutória, o que exige do leitor maior familiaridade com uma área da
linguagem que não faz parte dos cursos de Pedagogia e Magistério por meio dos quais foram formadas
as alfabetizadoras e, portanto, não compõem o conjunto dos conhecimentos prévios das professoras.
(SILVA, 2005, p. 149)

Silva (2005) ainda afirma que essa falta de familiaridade com os conceitos próprios dos
diversos campos da Linguística compromete a compreensão não apenas de ideias centrais postuladas
pelo documento como também da terminologia secundária, ou seja, palavras que não teriam, no texto,
papel fundamental. Isso significa que as professoras da pesquisa, que podem representar um público
muito mais amplo, não conseguiram sequer diferenciar ideias principais de ideias secundárias ao
longo do texto, devido à falha de compreensão dos termos utilizados pelos PCN. Silva (2005) finaliza
seu artigo destacando a pouca atenção que é dada aos conceitos linguísticos ao longo de todo o
documento. O conceito de gêneros discursivos, por exemplo, aparece numa apresentação de apenas
quatro páginas, juntamente com tantos outros conceitos, e não é retomado ao longo do texto.
Isso claramente dificulta a apropriação da teoria pelos professores e a adequada
ressignificação didática do conceito. Quanto ao tema da apropriação, Machado e Lousada (2010)
afirmam que “a apropriação dos gêneros textuais é necessária para o desenvolvimento do professor
e do seu trabalho” (MACHADO e LOUSADA, 2010, p. 622). Porém, as autoras defendem, a partir das
ideias de Vygotsky, que é necessário tempo e ocasião para que o conceito de gêneros discursivos

CORPOS
273

possa ser incorporado pelos professores como instrumentos, e não mais que sejam apenas uma
imposição como artefatos. Baseadas no psicólogo soviético, as autoras caracterizam o artefato como
um “objeto”, seja material ou simbólico, construído sócio-historicamente. Porém, por si sós, os
artefatos não são capazes de mediar a ação humana. Por exemplo: não é a mera existência do
conceito de gêneros discursivos que promove um ensino de língua mais contextualizado. Para que isso
ocorra, é preciso que os artefatos se tornem instrumentos, ou seja, é preciso que os conceitos sejam
apropriados e transformados em construções psíquicas – então capazes de mediar as ações
humanas.
Considerando, como Vygotsky, que todo aprendizado ocorre primeiramente em uma instância
interpessoal para depois tornar-se intrapessoal (BATISTA-DE OLIVEIRA, 2012), observa-se ainda mais a
necessidade de se promoverem espaços e tempos de qualidade para que o conceito de gêneros
discursivos e suas implicações para o ensino da língua materna sejam discutidos, problematizados e
construídos coletivamente pelos professores, para que depois sejam internalizados e efetivamente
apropriados, traduzindo-se em práticas pedagógicas mais consistentes e competentes no ensino da
língua materna.
Isso nos leva novamente à questão da formação dos professores e dos espaços e tempos
envolvidos nessa formação, os quais possibilitariam a construção desse tipo de práticas pedagógicas
mencionadas acima. Os próprios PCN (BRASIL, 1997) afirmam que cabe ao professor a decisão de
quais gêneros trabalhar em quais anos de quais ciclos e em quais contextos: “No entanto, o critério de
seleção de quais textos podem ser abordados em quais situações didáticas cabe, em última instância,
ao professor” (BRASIL, 1997, p.71).
Paralelamente, Koch e Elias (2010) apontam que a didatização dos gêneros acaba existindo,
quando este fenômeno social, histórico e cultural é levado para dentro da escola e se torna um objeto
de ensino e de aprendizagem – ainda que se deva buscar aproximar os alunos dos contextos reais de
uso dos variados gêneros. Essa didatização envolve “[...] uma transformação, ao menos parcial, do
gênero: simplificação, ênfase em determinadas dimensões, etc” (KOCH e ELIAS, 2010, p. 74). Vale
ressaltar ainda que as autoras afirmam: “Quanto mais claramente o objeto de trabalho é descrito e
explicado, mais ele se torna acessível aos alunos [...]” (idem, ibidem).
Ora, o professor é o grande responsável por essa didatização: pela escolha de quais textos
pertencentes a quais gêneros serão trabalhados em dado ano; pela escolha de quais dimensões do
gênero serão enfatizadas; pela decisão sobre as simplificações que o gênero poderá sofrer; por
descrever e explicar adequadamente esse objeto de ensino e aprendizagem. Isso nos leva à grande
questão da formação: ainda que o aluno não precise conhecer a teoria por trás do conceito de
gêneros discursivos para se inserir (e ser inserido) nas práticas sociais de fala, leitura e escrita, o
professor tem a obrigação de conhecê-la e os responsáveis por essa obrigação são os cursos de
formação de professores: formação inicial, continuada e em serviço.
Ficam claras, dessa forma, tanto a responsabilidade do professor em sala de aula quanto a
responsabilidade principalmente do poder público de garantir formação consistente aos profissionais

CORPOS
274

da educação, notadamente no que se refere à apropriação do conceito de gêneros discursivos pelos


professores dos primeiros anos do Ensino Fundamental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das discussões apresentadas neste artigo, verifica-se que as contribuições de Mikhail
Bakhtin, filósofo da linguagem soviético, e seu Círculo sobre os estudos da linguagem e mais
precisamente sobre o conceito de gêneros discursivos são fundamentais para o ensino de língua
materna na escola.
Tanto é assim que esse conceito aparece fortemente marcado no discurso oficial, figurando
como base para o trabalho com a Língua Portuguesa desde a Educação Infantil até o Ensino Médio.
Porém, esse fato não garante que os professores, principalmente aqueles que atuam nos primeiros
anos do Ensino Fundamental, tenham, em geral, se apropriado do discurso oficial, traduzindo-o em
práticas pedagógicas consistentes e competentes envolvendo o conceito de gêneros do discurso.
A principal hipótese explicativa analisada para o fato de em sala de aula os professores
terem, em sua maioria, dificuldades no trabalho com os gêneros discursivos é porque essa categoria
de análise teve uma entrada relativamente recente no país – a partir do fim da década de 1980,
quando passou a ser estudada e a conflitar com outras perspectivas de ensino de língua, como as
“tradicionais” e as ditas “construtivistas”.
Essa hipótese e os vários desdobramentos que dela decorrem apontam para uma necessidade
cada vez mais inescapável e determinante: o investimento maciço do poder público em cursos de
formação inicial, continuada e em serviço dos professores, especialmente daqueles dos primeiros
anos do Ensino Fundamental. O conceito de gêneros discursivos, dada a sua dilatada importância para
o ensino e a aprendizagem da língua materna (e de como estar no mundo através da língua), precisa
ser apropriado e internalizado pelos professores, de forma que consigam construir práticas
pedagógicas mais competentes no ensino da língua. E uma das únicas vias de acesso a esse novo
quadro é através da formação do professor.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
BATISTA-DE OLIVEIRA, Gilka Fornazari. O trabalho com a escrita no contexto do ensino profissionalizante: a
produção dos alunos e a mediação da professora. Trabalho de Conclusão de Curso. Campinas, SP: [s.n.], 2012.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional
para a Educação Infantil — Brasília, 1998.
BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Linguagens, códigos e
suas tecnologias – Brasília, 2006.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa – Brasília,
1997.

CORPOS
275

BRONCKART, Jean Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo sociodiscursivo. São
Paulo: EDUC, 2012.
GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006.
HÉBRARD, Jean. O objetivo da escola é a cultura, não a vida mesma. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, vol. 6, nº
33, p. 5-17, 2000.
KLEIMAN, Angela B.; MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles (orgs.). Letramento e formação do professor: práticas
discursivas, representações e construção do saber. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005.
KOCH, Ingedore; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2010.
LOUSADA, Eliane Gouvêa; MUNIZ-OLIVEIRA, Siderlene; BARRICELLI, Ermelinda. Gêneros textuais em foco: instrumentos
para o desenvolvimento de alunos e professores. Estudos Linguísticos, v. 40, p. 627-640, 2011.
MACHADO, Anna Rachel; LOUSADA, Eliane Gouvêa. A apropriação de gêneros textuais pelo professor: em direção ao
desenvolvimento pessoal e à evolução do “métier”. Linguagem em (Dis)curso, Palhoça, SC, v. 10, n. 3, p. 619-633,
set./dez. 2010.
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização. São Paulo – 1876 /1994. São Paulo: Editora UNESP,
2000.
SILVA, Simone Bueno B. da. Leituras de alfabetizadoras. In KLEIMAN, Angela B.; MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles
(orgs.). Letramento e formação do professor: práticas discursivas, representações e construção do saber.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005.
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. São
Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2008.

CORPOS
RESUMO
276
Narrativas provocam o estudo do tema. Mas
narrativas são afigurações dos momentos de uma
unidade viva, concretamente tangível e singular: o

FORMAÇÃO ÉTICA: produções evento. Este texto é trazido pelo


professor/autor/narrador/personagem
narrativas/materialidades dialógicas e das
das

de conhecimentos na convivência escolar reflexões propostas que convida uma leitora de seu
grupo de estudos a concordar provisoriamente com
duas visões de sujeitos que coexistem e se
concretizam nas relações numa sala de aula,
constituindo todos os sujeitos de modo singular:
como produto e como processo. A formação desses
sujeitos pressupõe uma visão de Ciência que fica
CARDOSO, Fernando 105
abalada quando as experiências desses sujeitos são
levadas em conta, não no coletivo, mas nas relações
SERODIO, Liana Arrais 106
um-a-um singular-a-singular. Essa ciência do
particular que gera e é gerada por procedimentos
únicos coexiste e se concretiza nas relações, em
que tanto o pensamento mais abstrato quanto a
prática quase fisiológica fazem parte dos
acontecimentos, constituindo todos os sujeitos de
A QUESTÃO EM QUESTÃO... modo singular. Serão esses procedimentos,
responsivamente viáveis, de uma ciência outra, uma
“O que significa, porém, para uma vida, que possibilita pensar na formação ética na
escola?.
pôr-se – ou ser posta – em jogo?”
(AGAMBEN, 2007, p. 60). Palavras-Chave: Narrativa. Ato responsável. Ética.

C
Heterociência. Convivência escolar
onsiderem, leitores, que nós vamos tratar da vida das
personagens em uma narrativa, cujo autor (participante da
narrativa, como um dos personagens entre os outros) englobou a partir de eventos
contundentes para si e para o narrador (o próprio autor). O narrador é também o autor que engloba
os personagens que narra e que busca, narrando, não só contar o acontecimento, mas questionar a si
mesmo de suas posições valorativas no acontecido, num ato responsivo seu a esses outros
participantes, figurando, na narrativa, como uma das personagens. Como parte da trama, o autor, que
é também professor de história, ao narrar reflexivamente faz da narrativa um instrumento de
produção de conhecimento, dentre os demais acontecimentos de sua vida de professor de história no
cotidiano escolar: ele compartilha suas narrativas com uma das participantes de seu grupo de
estudos daí surge este texto.
Todos os três elementos – um horizonte espacial comum aos falantes, o conhecimento e a
compreensão comum da situação e a valoração compartilhada igualmente pelo autor e os leitores,
desta situação, conforme está em Volochínov ([1926] 2011, p.156; 2013, p. 78) – estão presentes, com o
acréscimo da participação do autor no acontecimento, o que nos leva a considerar que as narrativas
pedagógicas têm um cunho, até certo ponto, biográfico e autobiográfico ou confessional (BAKHTIN,
[1929] 2003, p. 128-153), porém funcionam como a criação de um ponto extralocalizado (porquanto lhe

105 Professor de EF e EJA nas redes municipais de ensino de Taubaté e Campinas.Professor-pesquisador do GRUBAKH-GEPEC-UNICAMP. E-mail:
fecasi.nosferatu@yahoo.com.br
106 Pesquisadora-colaboradora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC) da Faculdade de Educação na Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP) e coordenadora do Grupo de Estudos Bakhtinianos (GRUBAKH). E-mail: laserodio@gmail.com

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277

fornece um corpo exterior) e transgrediente no tempo e no espaço (BAKHTIN, 2003, [1929] p. 91) do
autor que se torna narrador e personagem entre os demais personagens. Mas não só.
A característica que queremos marcar aqui como separação (não que seja a única) entre a narrativa
pedagógica e os textos literários confessionais ou autobiográficos elencados historiograficamente por Bakhtin no seu
primeiro livro sobre Dostoievski está na diretriz axiológica, não estando no eu-para-si (BAKHTIN, [1929] 2003, p.138),
no eu-para-si-com-os-outros-para-si.
As narrativas que criamos são um ponto de extralocalização de um indivíduo não indiferente
aos demais indivíduos envolvidos, as quais passam a ser ele próprio (as narrativas) um evento
concreto. Além das narrativas assumirem o papel de “materialidade” da pesquisa na “metodologia
narrativa de pesquisa em educação” (PRADO; et all, 2015) elas são o centro do qual emanam e para o
qual convergem as buscas, cujas questões da pesquisa iluminam, a elas retornando nas
interpretações metanarrativas (SERODIO; PRADO, 2015). Mas muito mais, possibilitam estabelecer uma
unidade concreta entre o mundo da vida e o mundo da cultura, como ato, como escrita-evento
(SERODIO; PRADO, 2017)
Em tempo: neste texto estamos trazendo um tema candente em tempos de transição
paradigmática (SANTOS, 1988; 2009): a ética. Do jeito que ela surgiu numa conversa entre os
estudantes e o professor e mesmo resultante de observações do professor acerca de
comportamentos verificados junto aos alunos num momento de atividade em grupo proposta pelo
docente. E também informada pelas discussões a respeito do ato ético como têm surgido no grupo de
estudos bakhtinianos, o GRUBAKH/GEPEC 107 neste último ano (2017). A pergunta: “como é possível
produzir conhecimentos éticos sobre a ética nas escolas?” parece encontrar respostas nas relações
entre os estudantes e o professor. É o que nos dizem as narrativas que aqui trazemos. O que dirão a
vocês, leitores?
Para este texto o professor/autor/narrador/personagem das narrativas e das reflexões
propostas tendo nas narrativas sua materialidade, convida o leitor a concordar provisoriamente com
uma noção de sujeito. Ou melhor, duas visões dos sujeitos que convivem dentro de si mesmos, numa
sala de aula: o sujeito como produto e o sujeito como processo. Ou ainda: essas duas visões de
sujeitos coexistem e se concretizam nas relações, constituindo todos os sujeitos de modo singular.
No primeiro caso, a visão que temos dele se pauta por um foco na identidade como algo
ensimesmado e pertencente a ele essencialmente, resultando uma visão do indivíduo como algo
estabilizado, um produto – como um ser que se autodetermina.
No segundo, o sujeito é visto como constituído por relações alteritárias intersubjetivas,
historicamente constituídas na sua relação com uma cultura e a sociedade na qual se insere; sua
própria condição de parte constituinte do todo social e das relações que o constituem tem um viés de
precariedade e de não determinação sobre a totalidade por ele.

107
O GRUBAKH é um subgrupo do GEPEC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Formação Continuada), na Faculdade de Educação, UNICAMP
(Universidade Estadual de Campinas). Formamos um grupo de estudos bakhtinianos da filosofia da linguagem, do qual fazem parte seus
círculos diretos – contemporâneos a ele – ou indiretos – contemporâneos a nós – formado por profissionais da escola de várias áreas,
funções e níveis de ensino, que se reúne para buscar sentidos, respondendo aos acontecimentos que lá têm seu lugar, tempo e relações
sociais concretizados em suas narrativas.

CORPOS
278

Quais seriam as implicações possíveis destas definições para o professor quando ele lança seu olhar sobre a
questão da ética, presente no ambiente escolar cotidiano no qual ele interfere como sujeito responsável e responsivo
em sua função social (profissional), imerso nas mesmas relações cotidianas entre os sujeitos?

METANARRATIVA PEDAGÓGICA 2 DO PROFESSOR EM DIÁLOGO

O sujeito como produto reside em seu ensimesmamento. A escola atua junto a ele, não junto a
seus atos, mesmo quando diz o contrário, por exemplo, quando trata de atos “infracionários”. Explico-
me: mesmo se formos olhar a história do sujeito para justificar ou entender seus atos, a relação entre
o hoje e o ontem aparece numa relação mecânica causal, tal como- faz isto hoje porque em sua
formação teve tais aprendizagens, vivências e formação numa relação entre as temporalidades que o
formaram vista de maneira direta em sua causalidade; aqui, a relação entre os tempos aparece como
cumulativa, sequencial e mecânica. Isto aparece de acordo com uma visão do sujeito enquanto
estabilizada como produto das temporalidades, tende mesmo, por este mecanismo, a condenar o
sujeito num presentismo fatalista: ele é assim, então tenderá a ser sempre assim, isto é dele e a ele
pertence.
Quando o professor/narrador/pesquisador vai pensar no ato responsável bakhtiniano –
responsivo e participante; não indiferente (BAKHTIN, 2012) –, ele percebe a constituição singular do
sujeito como uma expressão de relações intersubjetivas que abrem questões à sua constituição social
e histórica, presente numa sociedade que é contraditória e em abertura, posto que é processual,
inacabada e incompleta em ambos – o sujeito singular e a sociedade – que se entrelaçam em suas
constituições recíprocas. Se as relações constituem o sujeito e ele interfere igualmente em sua
construção (sendo parte dela), daí emergem algumas constatações possíveis:

o ato dos outros deve ser pensado nele e para com ele numa teia de direitos, deveres e
responsabilidades sobre as escolhas que são também do professor na relação com o outro e do outro
para com ele, já que ambos constroem o todo da relação ali posta;

o ato dos outros também pertencem ao professor e os seus a eles, presentes que estão naquele
momento e espaço em relação, daí que cabe a todos a responsabilidade de intervenção e construção.

As relações entre os tempos presente, passado e futuro são assim dinâmicas e


qualitativas/axiológicas. Tem a ver com o valor e sentido. O ato responsável se refere então a uma
visão de temporalidade histórica posta no concreto das relações intersubjetivas na qual o sujeito age
e interfere (escreve a história) – aliás, os sujeitos em relação. O presente então não existe senão
como momento no qual o dado (passado, ato realizado) se abre em perguntas sobre o devir histórico,
ao cindir o dado como produto pronto e acabado e revelá-lo processo que se questiona sobre o que
virá.

No momento em que realmente vivo a experiência de um objeto-mesmo que apenas pense nele – o
objeto se torna um momento dinâmico daquele evento em curso que é o meu pensá-lo-experimentá-lo;
ele adquire, assim, o caráter de alguma coisa por se realizar, ou, mais precisamente, ele me é dado no

CORPOS
279

âmbito do evento na sua unidade, dos quais são momentos inseparáveis o que é dado e o que está para
se cumprir, o que é e o que deve ser, o fato e o valor. Todas estas categorias abstratas são aqui
momentos de uma unidade viva, concretamente tangível e singular: o evento. (BAKHTIN, 2010, p.122-123)

Os atos são assim constantes aberturas questionando-nos sobre o nosso amanhã a partir do
ontem construído, instaurando então o dever de pensarmos sobre os sentidos socialmente
constituídos como norteadores das relações, dos sujeitos e consequentemente de seus atos, sua
ética. Bakhtin acaba mobilizando no professor/narrador/autor/personagem esta relação entre o agir
e a temporalidade, quando vista de maneira dinâmica, sendo capaz de produzir e se pensar sobre seus
sentidos (o experienciado e o compreendido).
O ensimesmamento não permite esta pergunta por que parece ser mais fatalista e estável, e
enxerga aquela ética como presente no outro, não me atravessando (não presente em mim), visto
como dado (algo posto ou realizado) do sujeito, não de seu ato, anulando a concepção de processo, de
inacabamento, presente no ato (algo no qual devo interferir para vir a se realizar com a minha
participação responsiva).
Trata-se de trazer as relações para esta reflexão (cognitiva) e mobilizar então a dimensão
(ética) das relações intersubjetivas valorativas para a possibilidade de uma construção/reconstrução
(co-constituição) coletiva horizontalizada (política) pela dialogia. É ainda relacional esta perspectiva
porque ela chama a mim e ao outro ao convite de se problematizar não apenas a ação do outro, mas
também a minha, bem como as nossas visões uns sobre os outros. Este pensamento assim nos
permite ser “sujeitos e objetos de reflexão” sobre os nós, que nos constituem e para os quais as
narrativas pedagógicas se tornam materialidade fixada (passado, o posto) e poderoso instrumento
(futuro, a reflexão que retroalimenta o agir) para o sujeito professor de história e seus
interlocutores, já que as narrativas são um elo presente com o passado constantemente
compreendido “por uma visão de sentido vivo da vivência na expressão”, como diz Bakhtin ([1974-79]
2003): “[o] problema da compreensão. A compreensão como visão do sentido, não como visão
fenomênica e sim uma visão do sentido vivo da vivência na expressão, uma visão do fenomênico
internamente compreendido, por assim dizer, autocompreendido.” (BAKHTIN, [1974-79] 2003, p.396)
Inversamente, na linha cronológica/histórica dos fatos, e até mesmo metodológica da
produção de metanarrativas bakhtinianas (SERODIO; PRADO, 2015, p. 91-128), remetemo-nos agora aos
acontecimentos que mobilizaram estas reflexões num diálogo em que o concreto, o abstrato, a teoria,
a prática participam de um constante abrir e fechar em suas conversas: de onde partiram, afinal,
estas reflexões do professor.

NARRATIVAS DO ACONTECIMENTO

Numa conversa com algumas alunas de EJA em Campinas, que são mães, algumas delas
observaram a “desobediência dos filhos” como um traço das transformações históricas recentes
presente na sociedade, as quais localizam nas éticas cotidianas vivenciadas e valoradas por elas

CORPOS
280

negativamente. Eis que surgiu então uma reflexão entre nós, possibilitada pelo professor, para se
pensar esta questão, aqui aparecendo de modo mais formalizado do que foi, em linhas gerais:

Estabelecer a relação de formação ética da criança com base na surra e na pancada faz com
que a criança não faça aquilo que é "errado" porque entende o sentido daquilo não poder ser feito. A
surra não permite o diálogo pela busca mais profunda de um sentido sobre a ação do sujeito e a
consequente intervenção do outro- permanecendo assim sem sentido, não tende, pois, a ser regra
internalizada: “a questão é que ela tem medo de apanhar”, fato apontado por uma das alunas. O agente
regulador do sujeito está pois fora dele, sendo externo e superficial pois que não modificou o sujeito
em sua concepção de mundo que o orienta para a relação com o outro. Um sujeito disciplinado não é
aquele que tem uma regulação fora de si...mas interna a si mesmo, construída na relação com os
outros, não ensimesmado.
A lógica controladora, portanto, estabelece relações ético-políticas artificiais e estabilizadas
porque os atos não são vistos como momentos de abertura para o diálogo e a reflexão do porquê dos
agires para consigo e para com o outro. Uma vida fundada no "não querer sofrer" é muito diferente
de uma vida fundada no "quero ser feliz". O sujeito deve aprender a escolher desde cedo para
aprender que seus atos têm consequências e assim vai desenvolvendo sua autonomia de
ação/reflexão. Isto não significa dizer que formar para a autonomia é formar para a ausência de
respeito a regras ou formar um ser humano egoísta que tudo pode, tal seria fuma visão rebaixada de
liberdade e autonomia - qual seja: de que ser livre é fazer o que se quiser a despeito do outro. A
autonomia é quando construímos a relação de formação para o e com o outro, não para ser o
hierarquicamente submetido estabilizado como uma cópia do eu hierarquicamente dominador, tendo o
eu ensimesmado direcionador como “exemplo”. Quando nossas escolhas estão voltadas para ele, sua
construção autônoma, sua individuação, não para mim, este sujeito então aprende que ser livre não é
sê-lo egoisticamente e pela anulação do outro. Esta anulação do outro é justamente o jogo da força e
do "quem pode mais chora menos" do poder que estabiliza pela anulação e reproduz ( ao invés de ser
criação).

Outra questão apontada pelas alunas-mães foi que seus filhos parecem “dar mais ouvidos”
aos colegas do que a elas. Com esta questão ainda presente em mim, observei/vivenciei o que segue,
numa outra aula e em outra turma no dia seguinte, e deixei me levar pelo fluxo de pensamento
suscitado por aquela conversa que acabamos de resgatar:

Quando um professor chama a atenção de um aluno apressadamente sem praticar a


observação e a tentativa de compreensão de alguns atos, cai no automatismo que se aproxima da
concepção subjetiva de produto, exercendo - em alguma medida - o papel de um agente regulador
externo. Notei justamente numa atividade em grupo que um dos alunos da noite, um adolescente, não
se envolvia muito com a atividade, tendo feito parte dela enquanto os outros amigos seus fizeram a
maior parte, mexendo ele no celular durante boa parte do tempo - resolvi não intervir, mas observar

CORPOS
281

ele, sua relação com os colegas e pensar depois a respeito antes de buscar uma interferência junto
ao grupo. O que vale mais para aquele aluno? A consideração do professor, como figura de
autoridade, sobre seu comportamento e ética ou a dos colegas de seu grupo de estudos? O que
aconteceria se fosse antes um camarada seu que apontasse sua conduta como erro? Talvez
funcionasse como uma regulação externa a princípio que teria mais potencialidade de internalização,
dada a aproximação afetiva entre eles observada por mim durante aquela mesma atividade. Daí talvez
a importância da Assembleia de classe na qual os alunos criam as regras norteadas por certos
valores construídos por nós. A "falta" do aluno não se daria como uma afronta em relação à figura de
autoridade externa do professor e por uma ética imposta por ele ao todo dos alunos verticalmente a
partir de meus valores estabilizados, mas com relação à horizontalidade do grupo na busca de
sentidos do viver/conviver ali- construindo todos esta reflexão e ação sobre si mesmos e sobre os
outros. É uma possibilidade de se pensar as éticas dos sujeitos como construção social nas relações,
não como produtos estabilizados e externos a ele, mas em constante construção de pessoas
mobilizadas em sua condição de sujeitos arquitetos da própria história.

Em suma: aprender a não querer sofrer é muito diferente de aprender a ser feliz…
alteritariamente. Uma escola que não se coloca como tarefa o zelo pela felicidade dos sujeitos que a
compõe e a busca de sentidos pelo estar/agir/ interferir no mundo é, no mínimo e de antemão, um
projeto de fracasso. Um sujeito disciplinado assim não é aquele que tem uma regulação fora de si,
mas interna a si mesmo.
Quando a aprendizagem escolar ou a formação humana não considera os sujeitos, suas
identidades, histórias, saberes podemos pensar que este sujeito não aparece como ponto de partida
(dado, ato cometido em relação ao outro e assim social externalizado) e ponto de chegada (ato
refletido com o outro para a compreensão do mesmo nas relações sociais de onde se origina e
interiorizada). Sem mobilizar o relaciona presente nos atos, de onde se originam e para o qual
retorna, podemos estar criando uma relação meramente formal do que seja aprender e formação do
sujeito: falta sentido porque falta o "eu" neste lugar em sua condição de sujeito. O eu está expulso e
muito ou tudo do que o eu significa. Assim, emerge o ato mecânico, o cumprimento burocrático do
fazer verticalmente instituído como aspecto do poder controlador, o desinteresse no conhecer/ser
efetivo e envolvido... Anulados os sujeitos, anula-se a vida e assim não se pergunta sobre os sentidos
do que estamos fazendo. Sem os sentidos tudo tende à abstração, à técnica, à uniformidade externa
ao sujeito. A separação entre escola e vida, entre viver e aprender, entre eu e o outro está dada. E o
pior: não percebemos que também está cindido o encontro do eu comigo mesmo por meio do outro,
posto minha configuração social e relacional. Não encontrar-se com o outro pela teia de sentidos é
negar o que há de mais humano em nós. É nos perguntarmos: "Há quanto tempo eu não me encontro
comigo mesmo?” As narrativas são um poderoso instrumento de resgate desta dinâmica e de nós na
constituição dos circuitos sociais de ação e valoração éticas, políticas e cognitivas.

CORPOS
282

ESCUTAS RESPONSIVAS DAS NARRATIVAS E METANARRATIVAS NA PRODUÇÃO DE UM


CONHECIMENTO ÉTICO NA CONVIVÊNCIA

A avaliação das ações dos sujeitos no ambiente escolar pode se dar na consideração dos
sujeitos como produtos ou processos em suaS éticaS observadaS. A visão sobre o sujeito como
produto é aquela que comumente encontramos na escola: trata-se de se ver o comportamento como
constituinte de seu ser, essencialmente, algo que lhe pertence, sua identidade. O comportamento do
sujeito é um fragmento da realidade cujo relacional com o todo fica extremamente precarizado,
reduzido. O comportamento, pois, não é encarado como constituído em seus fundamentos, nos
processos sociais que valoram suas ações, internalizadas e exteriorizadas por cada um.
A visão do sujeito como processo se dá numa outra lógica: seu eu e ações estão em conexão
com uma realidade social contraditória que o gestou; desta forma, as ações são
construídas/desconstruídas/reconstruídas a partir dos conjuntos de relações que nos constituem,
postas num dado momento histórico, e as quais constituímos, é a lógica da alteridade, que emerge
como pertencente aos sujeitos em sua maneira de ser e estar em suas ações no mundo. As tensões
ou estabilidades que aí emergem por concordâncias ou conflitos geram um movimento e uma
instabilidade processual, o dado é, neste sentido, provisório, em acabamento constante.
Posto que o narrador acredita na perspectiva de se pensar a ética dos seus alunos e a sua em
relações e questionamentos constantes, resulta daí uma adoção do sujeito como processo e uma
crítica da visão do mesmo como produto: o autor/narrador conta aquilo que o mobilizou a pensar
mais e com mais profundidade, convidando a participar dessa reflexão, desde a produção orientada,
para uma leitora privilegiada da (meta)narrativa e com a qual seus pensamentos tomam outra forma,
a forma de um texto a ser compartilhado num Encontro de Estudos Bakhtinianos, a fim de se pensar a
questão para além de si mesmo (ou a partir de si mesmo com os outros) numa expansão do refletir
numa lógica relacional e social.
A referência à Agamben (2007) é feita a guisa de expor a possível posição passiva da
personagem, que pode ser vista com mais gravidade ainda quando essa personagem é alguém tão real
quanto o/a narrador/a, justamente a perspectiva comumente adotada pela escola ao olharmos para
os alunos numa ética formal e vertical, imposta pelos detentores de prestígio social no ambiente
escolar ao pensar e impor a ética de todos ali.
A arquitetônica concreta bakhtiniana (BAKHTIN, 2010) nos tem ajudado a ver as personagens
dos textos narrados como “outros” que me constituem na relação – eu-para-mim, o-outro-para-mim,
eu-para-o-outro (BAKHTIN, 2010).
O modo como temos interpretado na metodologia narrativa de pesquisa por meio do gênero
narrativa pedagógica (PRADO, 2013) e suas variantes, pontualmente as “pipocas pedagógicas” (PRADO
et al, 2017, p. 9-22) e as metanarrativas bakhtinianas (SERODIO et al, 2015, p. 129-151) é diverso. Um
deles é o aqui citado anseio por um devir histórico. E nos leva a ver e a enfatizar aqui que desde o
momento em que o evento vivido constitutivamente de modo alteritário/dialógico se torna uma
materialidade narrativa porque antes foi uma experiência importante para o/a professor/a. Essa

CORPOS
283

diversidade/singularidade tornam as narrativas e as metodologias, paradoxalmente singulares,


mesmo que aos poucos essas singularidades possibilitem uma generalização particular ou, como
dizemos, nos possibilitem tirar lições.
Fazemos questão de dizer que, ao tratar de ética na escola, entramos numa questão candente
em tempos de escatologia política: é possível uma formação ética na escola? (SERODIO, 2015).
Reafirmamos com Bakhtin (2010):

Não é nossa intenção fornecer um sistema ou um inventário sistemático de valores, no qual conceitos
puros (idênticos a si mesmos em conteúdo) sejam ligados entre si à base de uma correlação lógica. O
que pretendemos fornecer é uma refiguração, uma descrição da arquitetônica real concreta do mundo
dos valores realmente concretos, seja espacial ou temporal, de valorações reais, de afirmações, de
ações, e cujos participantes sejam objetos efetivamente reais, unidos por relações concretas de
eventos no evento singular do existir (aqui as relações lógicas não são mais que um momento ao lado
dos momentos espaciais, temporais e emotivo-volitivo concretos). (BAKHTIN, 2010, p.122-123).

Refiguração essa em que apostamos cada vez mais alto, em primeiro lugar nas narrativas
pedagógicas, como ponto de partida do segundo lugar na cronologia que temos apontado: as
metodologias narrativas de pesquisa em educação (PRADO et al, 2015). No entanto sabemos que uma e
outra são as duas faces de uma folha de papel em branco. A refiguração dos acontecimentos vividos e
reconhecidos como uma experiência tal que se tornam motivo para escrita tem uma força reversiva –
cognitiva, estética e ética – na expressão sobre a vivência e passa a ser colocada de um outro modo:
epistemologicamente.
E, ao tempo em que essa expressão é orientada para um auditório social que constitui e é
constituído numa cultura relativamente bem formada, aproveitando-se da estabilidade dos
subentendidos ideológicos que formam os argumentos, conteúdos, práticas, relações,
comportamentos, a escola (seus profissionais e estudantes) apresenta em potência uma ciência
outra, ciência dos pequenos atos do cotidiano que, quando socialmente válidos, podem vir a se
tornarem conhecimentos dominantes (VOLÓCHINOV, 2017, p. 213). Boaventura Santos (1988; 2009) diz
algo que se pode colocar em diálogo: que a ciência aspira ser senso comum.
Ou seja, a produção das narrativas por um professor de história que participa das histórias
que narra importa para ampliar os diálogos sobre as ciências humanas, para que se legitime um modo
aliás legitimado nos próprios acontecimentos narrados sobre os quais e nos quais esse professor tem
refletido, não somente pelo conteúdo do acontecimento mas porque participava junto com seus
estudantes deles, pondo-se e pondo as vidas com ele em jogo, como diz Agamben na nossa epígrafe,
que se completa assim:

Ética não é a vida que simplesmente se submete à lei moral, mas a que aceita, irrevogavelmente e sem
reservas, pôr-se em jogo nos seus gestos. Mesmo correndo o risco de que, dessa maneira, venham a
ser decididas, de uma vez por todas, a sua felicidade e a sua infelicidade. (AGAMBEN, 2007, p. 61)

CORPOS
284

A partir do momento em que as narrativas se tornam a verdade do acontecimento (pravda) ao


mesmo tempo em que são o ato/pensamento desse indivíduo na relação com o outro, a neutralidade
científica e verdade universal (istina) se tornam obscenas. Uma obscenidade, no entanto, palpável e
dialógica. E nos permite ver como a área de formação do professor lhe possibilita uma produção de
sentidos das relações éticas entre os estudantes pautadas na relação causal do tempo histórico,
mesmo quando ele adentra uma visão relacional alteritária, constitutiva e constituinte das linguagens
(campos disciplinares, idiomas, emoções-volições, gestos, risos, artes, filosofias...) em que e com os
quais dialogam e que o leva a “observar as relações”, bakhtinianamente “participar” delas, como ato
responsivo aos acontecimentos nas relações entre os estudantes.
A “arquitetônica real concreta do mundo dos valores realmente concretos” só pode se expor
a alguém para o reconhecimento, a reflexão, a crítica, quando tornada um material que se dê com
mais ou menos resistência aos sentidos (fisiológicos e semióticos) do/a professor/a em sua
constituição social/cultural e formação profissional; só quando se materializa por meio de uma
expressão orientada por e para um auditório social do qual toma muito das formas e conteúdos
mobilizados por ele/a, seja para proferir, pintar, tocar, desenhar, esculpir, etc., ou, nesse caso,
escrever.
Esta dialogia é também marcada por uma concepção de historicidade como constituinte dos
sujeitos e que permite, em maior ou menor medida, uma compreensão dos comportamentos
individuais mobilizados pela narrativa na perspectiva aqui defendida e, consequentemente, como
crítica à visão predominante na escola sobre as éticas dos humanos do professor, enquanto criador
de tal pensamento.

UM ARREMATE MEIO CAPRICHOSO...

Como sabemos, é uma falácia dizer que a teoria na prática é outra. Tanto quanto dizer que o
pensamento abstrato seja desligado das experiências concretas. Mais ou menos aprofundadamente,
já durante o acontecimento convivido por um/a professor/a com seus estudantes, estão participando
ativamente do diálogo enunciados culturais de sistemas ideológicos cotidianos e dos sistemas
ideológicos mais bem formados (VOLÓCHINOV, 2017, p. 214-215) que permeiam o ato responsável do
professor, juntamente com suas impressões estéticas.
Desse modo, nos antecipamos a alguma crítica bem vinda, dizendo que essas metanarrativas
nascem enquanto constitutivas e participantes, junto dos fatos e vivências narrados, emergindo
metanarrativas como se as narrativas é que as justificassem. Estamos sempre defendendo que a
narrativa proporciona a metanarrativa ou reflexões que levam à produção de conhecimentos. Mas é
possível, como este texto traz, inverter a lógica da metanarrativa como exercício de formação no
diálogo amplo, ao contar a metanarrativa para alguém, quando esse alguém faz parte do auditório
social do/a narrador/a, antes ou misturado com a narrativa.
E, para amarrar, é não só possível, mas inevitável, uma formação ética na escola. Seja
ensinando uma ética formal, autoritária, teórica, de trocas desiguais ou pelos atos éticos que são

CORPOS
285

compostos pelos conhecimentos técnicos especializados ou culturais, pelas impressões estéticas


do/a professor/a na convivência, em atos responsivos aos estudantes, proporcionando-lhes didática,
afetiva e responsivamente momentos de perguntar e procurar respostas, buscar sentidos para a
existência junto com os outros a eles não indiferentes, ou que, por meio dessa oportunidade,
passarão a ser.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: Profanações. Tradução e apresentação de Selvino J. Assmann. São Paulo:
Boitempo, 2007, p.55-63.
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Gêneros do Discurso - GEGE/UFSCar. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João
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PRADO, Guilherme do Val Toledo. Narrativas Pedagógicas: indícios de conhecimentos docentes e desenvolvimento
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Guilherme do Val Toledo; et al. Pipocas Pedagógicas IV: narrativas outras da escola. São Carlos: Pedro & João
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência pós-moderna. In: Estudos
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SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
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CORPOS
286

VOLOCHÍNOV; Valentin N. A palavra na vida e na poesia. Introdução ao problema da poética sociológica. In: VOLOCHÍNOV;
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VOLOCHÍNOV, Valentin N. Palavra na vida e a palavra na poesia. Introdução ao problema da poética sociológica. In:
VOLOCHÍNOV, Valentin N. A construção da enunciação e outros ensaios. Organização João Wanderley Geraldi. São
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VOLÓCHINOV, Valentin N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário: Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório:
Sheila Grillo. Sâo Paulo: Editora 34, 2017.

CORPOS
RESUMO
287

EM BUSCA DE UMA Este texto apresenta a visão dos integrantes do


GEPELID – Grupo de estudos e pesquisas sobre
linguagem e diferenças sobre a pesquisa em

HETEROCIÊNCIA: ética, estética e


ciências humanas numa perspectiva bakhtiniana de
heterociência. Aborda ainda as consequências da
adoção deste modelo tanto na metodologia de
pesquisa quanto na apresentação de seus
epistemologia numa perspectiva bakhtiniana resultados.

das ciências humanas


Palavras-Chave: Heterociência. Metodologia de
Pesquisa Bakhtiniana. Gênero Texto Acadêmico

CARVALHO, Carlos Roberto de


MOTTA, Flávia Miller Naethe

INTRODUÇÃO

... a perspectiva de uma teoria dialógica [...] deve reconhecer a infinidade do processo dialógico em que
todo dizer e todo dito dialogam com o passado e o futuro e paradoxalmente deve reconhecer a unicidade
e irrepetibilidade dos enunciados produzidos em cada diálogo. Aceitar essa fórmula paradoxal: todo
enunciado é único, mas nenhum isolado (grifo do autor, SERIOT, 2009, P. 12) implica abandonar a posição
epistemológica que somente admite como científico ( e verdadeiro dentro de cada categoria) o
enunciado relativo àquilo que se repete, àquilo que é imutável, àquilo que é produto de abstrações
deduzidas todas as particularidades como ‘desvios’ não significativos da realidade concreta. (GERALDI,
2012, P. 20)

Este texto apresenta a base que fundamenta a pesquisa ora inicial do GEPELID – Grupo de
estudos e pesquisas sobre linguagens e diferenças. Recortamos sua fundamentação e a trazemos
para um debate mais amplo, pois acreditamos estar diante da perspectiva de adotar de fato, com as
incertezas que essa adoção acarreta, uma maneira heterocientífica de tratar nossas questões éticas,
estéticas e epistemológicas.
De início destacamos duas implicações da adoção do pensamento do filósofo da linguagem
Mikhail Bakhtin para as especificidades da produção do conhecimento na área das ciências humanas
que merecem especial atenção: a abordagem dos sujeitos da pesquisa pelo pesquisador compreendida
como ato dialógico e a apresentação das compreensões obtidas a partir da pesquisa submetida ao
gênero texto acadêmico pensado de forma “alargada” para comportar aspectos relativos à autoria.
Já há tempo que a metodologia de pesquisa em ciências humanas vem sendo questionada em
busca de uma melhor aproximação da pesquisa aos seus objetos. Charlot (2006) aponta duas
distinções fundamentais entre as ciências ditas duras e as do homem e da sociedade, seriam seus

CORPOS
288

pontos de partida e sua memória. Enquanto as ciências “duras” partem de seu ponto de chegada,
sendo de tal forma cumulativas, as ciências humanas e sociais avançam a partir de seus pontos de
partida. “Quando há avanço nessas ciências é porque foi proposta uma outra forma de começar (e
porque se prova que ela produz resultados) ...” (p. 17).
Para Bakhtin (2011) a especifidade das ciências humanas precisa considerar que elas tratam
da relação entre o pesquisador e sujeitos expressivos, falantes. Nesse caso, aquele que busca
conhecer não faz a pergunta a si mesmo ou a um terceiro, na presença de um objeto mudo, coisa
morta, mas o faz diretamente àquele que pretende conhecer (p. 394).
As dimensões ética e estética se conjugam nas ciências humanas para dar origem à
epistemológica – arte, vida e conhecimento. A tripla dimensão da cultura atravessa a tudo na
existência humana e vai marcar os atos como irrepetíveis e de total responsabilidade do sujeito.
Amorim (2007) afirma o caráter conflitual e problemático de nosso campo de pesquisa que acarreta
compreender que a transparência não existe no discurso próprio, nem no do outro. Entretanto,

A ilusão da transparência a qual se renuncia não deve, porém, ser confundida com uma renúncia à
teoria e a todo trabalho de objetivação e conceitualização. A polifonia em ciências humanas não exime o
pesquisador do trabalho de análise. E sabemos que o trabalho do conceito tende necessariamente a uma
tradução universalizante da diversidade. Na tensão entre os polos singularizante e universalizante, está
segundo Bakhtin o desafio e a riqueza das ciências humanas e somente uma postura relativista pode
querer fugir a essa questão (p. 12).

Quando reconhecemos a pesquisa por este viés, isso nos leva a reconhecer a necessidade de
que as técnicas utilizadas remetam à análise de formas de enunciação (escrita, oral, visual, corporal,
imagética) e ainda, a uma busca de ampliar o gênero “texto acadêmico” para reintroduzir nele a
dimensão estética, tal como pensada neste texto, de forma a unir arte, vida e conhecimento, as três
esferas culturais da vida humana.
O título nos sugere uma viagem na e pela linguagem. Uma aventura, ética, estética e literária:
uma aventura heterocientífica em direção aos conhecimentos expressos em vários gêneros de textos,
em várias culturas, em várias epistemologias.
Compreendem-se gêneros textuais como fatos culturais: opções estéticas, éticas e
epistemológicas: modos de ver, de pensar e de organizar as diversas experiências humanas; como
formas jurídicas do dizer: do poder ou do não poder dizer, como arte dos fatos que nos impõe
regimes de verdades, critérios de classificação e validação; que hierarquizam homens, culturas e
sociedades: que dividem-nas entre primitivas e civilizadas; entre orais e escriturísticas e que, por
fim, praticam seja por arrogância, indolência, ignorância, cinismo ou maldade violências simbólicos
(BOURDIEU, 1989) e epistêmicas (SANTOS, 2010), impondo-nos valores, crenças, gostos, verdades e
mentiras, coisas boas ou más, impõe-nos visões de mundo (BAKHTIN, 2002).
Frente aos epistemicídios (SANTOS, 2010) as formas hierárquicas e monológica de pensar
porque não dialogam com outras formas de conhecimento, impõe-se nos uma atitude carnavalizada
(BAKHTIN, 2010b) solidária e desobediente; uma atitude que seja capaz de colocar em questão as

CORPOS
289

epistemologias das práticas científicas ocidentais sem, no entanto, eliminá-las, antes tratando-a como
uma das formas de pensar entre tantas outras formas; impõe-se nos a necessidade de uma ética da
diferença que acolha de modo amplo e irrestrito outros saberes humanos e que devem ser
respeitados como tais, pois se, assim, não o for, é violência simbólica, exclusão, dominação,
desumanização. Epistemicídio (SANTOS, op.cit.).
Daí decorre esse sentimento de urgência: instituir uma pesquisa que trabalhe com e a partir
da linguagem de maneira dialógica e solidária de modo que se possa acolher outras racionalidades
(outras linguagens) e sempre de modo amoroso, responsivo e responsável. Portanto, mas que ir
contra isto ou aquilo cabe-nos colocarmos disponíveis para pensar a vida pelos seus múltiplos pontos
de vista, polifonicamente e polissemicamente (BAKHTIN, 2011). Pois, se não deste jeito, estaríamos
repetindo os mesmos vícios monológicos, autoritários, arrogantes e redutivos da ciência ocidental.
Segundo Homi Bhabha,

A linguagem da crítica é eficiente não porque mantém eternamente separados os termos [...], mas na
medida em que ultrapassa as bases de oposição dadas e abre um espaço de tradução: um lugar de
hibridismos... (BHABHA 1998, p.51).

Assim sendo ao adotarmos uma perspectiva heterocientífica, uma perspectiva epistêmica


plural, dialógica, polifônica e híbrida, não nos cabe mais estar contra ou a favor desta ou daquela
prática de produzir conhecimento, antes, nem uma, nem outra, muito pelo contrário, pois como nos diz
Rilke (1986) a vida sempre tem razão. Em lugar da negação desta ou daquela posição, o diálogo, a
negociação que possa traduzir e promover a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios.
Que a vida seja ela mesma como está sendo, sem transcendência em que

[...] cada posição é sempre um processo de tradução e transferência de sentido. Cada objetivo é
construído sobre o traço daquela perspectiva que ele rasura, cada objeto politico é determinado em
relação ao outro e deslocado no mesmo ato crítico (BHABHA, 1998, p.53).

Nossa posição político-epistemológica e ideológica, a de não nos colarmos absolutamente


contra ciência ocidental, de forma alguma significa mantermo-nos neutros frente às tristes
realidades que ela nos institui e espalha: guerras, miséria, mortalidade de milhares de seres humanos,
destruição ambiental. Criticar a ciência ocidental não significa negar suas contribuições positivas e
nem tampouco se esquecer de seus modos perversos. A questão não é a ciência, mas o quê, a que e a
quem ela serve. Não é apenas uma questão epistemológica, mas ética e moral.
Neste sentido, estamos contra o modo arrogante e indolente da razão ocidental (SANTOS,
2008, 2010) que nos últimos quatro séculos, tornou-se o instrumento de acumulação capitalista e
acabou por transformar o mundo inteiro em seu laboratório e seu balcão de negócios onde todas as
formas vida, dentre essas, a humana que passou valer como coisa, enquanto bem a ser negociado ou
descartado, não como valor em si mesmo. Nessa marcha insensata da ciência capitalista, em sua

CORPOS
290

busca alucinada e cega de acumulação de capital e de bens materiais, os fins passaram a justificar os
meios e os meios têm sido os piores possíveis.
Daí a necessidade de estabelecer confrontos epistemológicos, éticos, estéticos e políticos nos
quais se possa constituir uma prática cientifica que abranja, conforme Bakhtin, as três esferas da
cultura humana, a saber: arte, vida e conhecimento. E essa unidade indissolúvel - cuja síntese está
em cada sujeito que a incorpora responsavelmente sem delegar a outrem o que lhe compete fazer -
que a aventura heterocientífica nos impõe outras formas de dizer, de dissertar, de narrar, de modo
que possamos abarcar de modo plural as experiências mundanas, pois, trata-se de saber que

Nas condições de um mundo comum, a realidade não é garantida primordialmente pela “natureza
comum” de todos os homens que o constituem, mas antes pelo fato de que, a despeito de diferenças de
posição e da resultante variedade de perspectivas, todos estão sempre interessados no mesmo objeto.
[...] O mundo comum acaba quando é visto sob um único aspecto e só lhe permite apresentar-se em uma
única perspectiva (ARENDT, 2007, P. 67).

A citação de Hanna Arendt (op.cit) nos ajuda a situar a gravidade dos fatos, o que está em jogo
não é mais qual tipo de ciência seria capaz de responder tais ou quais questões separadamente, a
questão seria como pensar o mundo pelo meu ponto de vista, sem, no entanto, destruir outros tantos
pontos de vistas, outras formas de agir e compreender o mundo e tal modo que ele não se acabe.
Tarefa de Sísifo, e que não se acaba, tarefa diária.
Daí, mais uma vez, a ideia que nos conquistou: a ideia de heterociência: em lugar da ciência
monológica, indolente e arrogante (SANTOS, op.cit) a ciência dialógica e prudente; em lugar da
homofonia a polifonia das vozes e em lugar de um único modo de dizer a polissemia dos conceitos e a
sua tradução para outros contextos (Bhabha) uma necessidade vital para que o mundo não se acabe.
Uma das formas de luta contra esse modo de pensar único e redutivo é o de trabalhar com as
narrativas, de modo que a ideia que temos de mundo não seja reduzido a uma única narrativa da
verdade sobre o mundo. Para o heterocientista, o mundo não é um absoluto, o mundo está sempre
sendo e que, portanto sobre ele é sempre possível tecer outras interpretações e que ninguém
detenha a última palavra. A questão não é um embate entre narrativas e narratividades, a questão nos
parece ser bem outra: não permitir que uma única visão de mundo venha prevalecer sobre as outras.
Daí para nós ser a heterociência não ser tão somente uma arte de pensar, mas antes uma
arte do fazer, do conversar para poder narrar o presente de forma sutil. Pois, é de nosso
entendimento que diante do mundo caótico em que nós encontramos, o ato de narrar e de poder narrar é uma das repostas
humanas imprescindível para que se possa organizar o caos em cosmos, para que se possa produzir sentidos. Como bem nos
lembra de Medina na passagem que transcrevemos abaixo sobre a importância epistemológica das narrativas:

[...] ao narrar o mundo, a inteligência humana organiza o caos em cosmos. O que se diz da realidade
constitui outra realidade, a realidade simbólica. Sem essa produção cultural – a narrativa- o humano
ser não se expressa, não se afirma perante a desorganização e as inviabilidades da vida. Mais do que
talentos de alguns, poder narrar é uma necessidade vital (MEDINA, 2003, p. 47-48)

CORPOS
291

REFERÊNCIAS

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VOLOCHINOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

CORPOS
RESUMO

.
293

Palavras-Chave:

UM CRONOTOPO
ARTÍSTICO: por um mundo onde os
muros tenham a altura de (pelo menos) duas
andorinhas

CONCENCIO, Márcia de Souza Menezes 108

INTRODUÇÃO

U
ltimamente venho cismando, prestando atenção em muros. Pode até ser coincidência, mas se
recebo mensagens nas redes sociais, um convite para assistir um documentário, um livro chega
às minhas mãos e vou olhar com atenção, o que encontro? Muros. Os espanhóis Pablo
IraburueMigueltxo Molina lançaram em 2015 um documentário com esse nome, provavelmente,
movidos por esse mesmo incômodo que me circunda – um mundo cada vez mais dividido por muros e
a banalização da ideia de que o que há de cada um dos lados, de cada um desses muros são humanos,
iguais em sua essência.
Andei me questionando em que momento a ideia do muro começou a me interpelar. De um
certo modo, sempre, não é? A história humana vem repetidas vezes atrelada à história de algum
muro. Seja ele o de Jerusalém, derrubado pelo Rei Nabucodonosor e reconstruído por Neemias, o de
Berlim, o que separa os Estados Unidos do México, a África do Sul do Zimbabwe, ou a cerca-muro de
Melilla entre Espanha e Marrocos. Muros da vida. Muros da vida?Calma... sei que não podemos ficar
pensando assim sobre esses muros! Afinal, temos a arte! E a sua relação com a vida se dá em todo
momento.Bakhtin (2015, p. XXXIV) nos fala que “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-
se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade”.
Assim, me encontro com O Muro, de Manoel de Barros (2012, p.59) onde “O menino contou que
o muro da casa dele erada altura de duasandorinhas.(Havia um pomar do outro lado do muro.)Mas o
que intrigava mais a nossa atenção principal era a altura do muro que seria de duas
andorinhas”.Imaginem! Cada muro daqueles que citei antes com a altura de duas andorinhas, aves

Mestranda em Educação na Universidade Federal Fluminense. Professora na Rede Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro.
108

Pesquisadora do Grupo ATOS/UFF. E-mail: biaconcencio@yahoo.com.br

CORPOS
294

migratórias que atravessam o planeta e conhecem “os muros” de sua existência, as suas fronteiras –
calor, sol, vento, frio extremo – não com os olhos, mas com seus corpos miúdos, onde lutar ou
desistir significa viver ou morrer. Percebem o quanto uma, melhor dizendo, duas andorinhas - pois,
para Bakhtin (2015, p. 19), “Com um só e único participante não pode haver acontecimento estético”-
podem perfeitamente se tornar a medida de um muro? Só assim os muros do mundo cessariam de
aprisionar, cercear sonhos!
Bakhtin (2015, p. XXXIII) nos fala ainda que “Os três campos da cultura humana – a ciência, a
arte e a vida – só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade”. Aqui, como
dizem meus amigos do GrupoAtos109 Bakhtin deixou uma pista quente: para que haja uma estética no
cotidiano é preciso um olhar estético sobre a vida. Olhar a vida “como se”, sem nos deixar aprisionar
sentidos. Nem mesmo (ou muito menos) se estivermos falando de muros. Às vezes elesseparam,
outrasprotegem, enfeitam,segregam, envergonham, enunciam... enunciam? Epa! Foi aí mesmo que
começou a minha cisma com o muro!
Figura 1. Pintura feita no muro da escola pelos jovens da ocupação

Fonte: Acervo da autora

109
Grupo de Estudos Bakhtinianos / ATOS/ UFF

CORPOS
295

Essa foto que fiz questão de trazer para o texto foi tirada em meados de 2016 na escola da
Rede Estadual do Rio de Janeiro, em Niterói, onde eu trabalhava. A pintura que ela retrata, como
muitas outras espalhadas pelos muros da escola, foram feitas pelos estudantes que participaram do
movimento de ocupação das escolas, um movimento de crítica e luta contramedidas do governo que
ameaçavam(e continuam ameaçando), direitos e avanços já conquistados até então.
Em um primeiro momento aconteceram as ocupações protagonizadas pelos estudantes da
Rede Estadual de São Paulo, no final de 2015, em resposta à medida do governador Geraldo Alckmin de
“reorganização escolar” – Reorganização escolar? Sim. Foi esse o nome que eles deram - onde mais
de noventa escolas seriam fechadas.
Em abril de 2016 as ocupações eclodiram na Rede Estadual do Rio de Janeiro com pelo menos
70 escolas ocupadas durante quatro meses sob a reivindicação de pressupostos mínimos para uma
educação de qualidade.
Nos últimos meses de 2016 oitocentas escolas públicas no Paraná e centenas pelo pais
incluindo universidades, foram ocupadas em protesto à medida provisória de reforma do Ensino
Médio, ao projeto de lei que defende a aberração da “escola sem partido” e também em protesto à
proposta de emenda constitucional que congela gastos públicos por vinte anos, prejudicando
diretamente as áreas de educação e saúde, atingindo de forma mais contundente as pessoas mais
pobres.
Ocupar escolas colocando-se no caminho desse projeto de poder foi o ato responsável,desses
estudantes. Para Bakhtin (2012, p.99), “ser realmente na vida significa agir, é ser não indiferente ao
todo na sua singularidade”.
Sei que essa parte ficou um pouco chata, mas eu precisava contextualizar as condições em
que a fotografia foi tirada, concorda? Agora podemos voltar um pouco no texto?Mais precisamente na
foto onde vemos os enunciados no muro.
Foi aquela imagem, onde arte e vidavinculadas pela unidade da minha responsabilidade,que me
levou a vivenciar, compreender e responder com a minha vida àquele evento. Quando eu vi essa
imagem pela primeira vez, seus últimos traços ainda estavam nascendo. Comecei a pensar naquela
figura como a contrapalavra. Contra a palavrado sistema escolar? Sim, mas também em resposta ao
que um muro é capaz de enunciar. E isso não é uma maluquice minha. Para Bakhtin os enunciados,
unidade mínima da comunicação humana,

Tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de
outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensão
ativamente responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa
compreensão). (Bakhtin, 2015, p. 275)

Bakhtin nos diz ainda que “Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as
ideias dos outros é que a ideia começa a ter vida.”(2013, p. 98. grifo do autor). Talvez por isso a
imagem no muro tenha me impactado tanto. Ela traduz uma vontade de verdade que ora vem do muro
–fechamentos e certezas - ora vem dos estudantes retratados – possibilidades e aberturas,

CORPOS
296

resultando em uma imagem que me remete a um discurso indireto livre. É a ideia libertadora dos
estudantes na ideia “aprisionante” do muro, sem, contudo, diluírem-se ao ponto de não sabermos os
limites de cada uma, como na compreensão de Bakhtin sobre o poema de Pushkin, Razluka
(separação), de 1830 onde

Todos os componentes concretos da arquitetônica convergem em torno de dois centros valorativos (o


herói e a heroína) e são ambos igualmente envoltos em um único evento da atividade estética, humana,
valorativa, afirmativa. Nesta unidade do evento estes círculos valorativos da existência interagem entre
eles, mas nunca até a fusão. (BAKHTIN, 2012, p. 132)

Bakhtin destaca no poema de Pushkin (citado no parágrafo anterior) e nas obras de Rabelais e
Dostoiévski, entre outros, a criação de um plano estético onde um método artístico, a polifonia,
mantém vivo os sentidos do homem. “O mundo no romance polifônico criado por Dostoiévski é o
mundo a partir do ponto de vista de cada uma das personagens, todas inacabadas, enunciando suas
tensões e embates com o mundo”. (GRUPO ATOS, 2016, p. 228).
Oliveira (2016), sintetiza algumas peculiaridades de Bobók, obra polifônica de Dostoiévski,
ondepersonagens inacabados revelamsuas consciências em discursos polêmicos e ambivalentes:

Bakhtin (PPD, 2013) sinaliza particularidades importantes utilizadas em Bobók: a imagem do narrador e o
tom da sua narração impregnado de ironia e polêmica, dialogado e ambíguo, no limiar da loucura; o tom
vacilante, bivocal, com discurso internamente dialogado (p.158); o autor-criador cria uma “situação
extraordinária para provocar e experimentar uma ideia filosófica” (p.130), ou seja, a experimentação de
uma palavra, de uma verdade (pravda); apresenta o homem em sua totalidade e toda a vida humana em
sua totalidade (p.131); a síncrise ou confronto (p.132); a anácrise, “técnica de provocar a palavra pela
própria palavra” (p.126); a atitude familiar e profana do enredo fantástico; as liberdades de tipo
carnavalesco; pode situar-se no campo do inverossímil; e tão importante quanto, participa do existir-
evento como ato responsável com a sua singularidade e irrepetividade, intervindo, pensando do interior
do ato. (OLIVEIRA, 2016, p. 165 e 166)

Tal como no mito de Perseu onde o herói mata a Górgona olhando-a pelo espelho, Bakhtin nos
convocaa olhar enviesadamente para a arte e construirrelações humanas em bases dialógicaspara
pensarmos a ciênciaem contraposição aos modelos que buscam interpretar a vida através de
fórmulas e regras metodológicas e pensam a ciência como discurso único da verdade.Ele nos convoca
a buscar uma ciência outra, uma heterociência construída pelo sujeito em seu ato responsável,
irrepetível e singular. Sujeito que é um ser expressivo e falante. “É a ideia de Deus em presença de
Deus” (Bakhtin, 2015, p. 394) como perspectiva de relação entre pesquisador e sujeito da pesquisa.
Tardan (2015), ao referendar a centralidade da participação única no existir que a teoria de
Bakhtin convoca, nos fala que

Temos o dever de assegurar a nossa participação no existir nos colocando no mundo a partir da
concretude da nossa visão estética que construímos através dos significados, dos sentidos e dos
valores acerca da ação ética realizada por nós sempre na relação com o outro. (TARDAN, 2015, p. 122)

CORPOS
297

Do meu lugar único como fundamento do meu não-álibi no existir, escrevo um contoaberto e
inacabado onde na unidade da minha responsabilidade, arte e vida tornam-se singulares em mim.

***
Era véspera das férias escolarese o fim da tarde estava quente e estranhamente silencioso.
Sentadasno pilotis do bloco B, eu e Jake aguardávamos a chegada deAna, a mãe da estudante, que se
atrasara para buscá-la. Tento, em vão, puxar assunto para esquecer do calor de dezembro e espantar
a “moleza” que ele provoca, pois, brincar no celular parecia ser a melhor maneira de esperar para
Jake.
Olho ao redor e as frases e figuras que estampam as paredes e os muros da escola começam
a me deslocar suavemente para as lembranças daquele ano difícil. Durante a ocupação aqueles
espaços tomaram a vez das folhas de caderno e se ofereceram como páginas às escritas
subversivasdos jovens que protagonizaram esse capítulo da história dessa e de tantas outras escolas
no ano de 2016.
Me detenho na imagem do muro que está na minha frente. Essa pintura me perturba, mexe
comigo desde o dia em que a vi sendo criada pelos estudantes na ocupação. Ela mostra um jovem que
agachado ao pé do muro, oferece as mãos em concha, como suporte para o outro subir.
Será que os autores dessa pintura sabiam que do outro lado do muro havia outra escola? Mas
e se aquela escola do outro lado do muro pudesse ser mais do que outra escola, sendo a escola outra
que esses jovens reivindicavam? Hum... ...qualquer hora dessas vou até lá para ver como é que ela
funciona...
Ai... e a Ana que não chega... O calor está me consumindo, meus olhos pesam e nessa
sensação de moleza relaxo o corpo. Começo a dormitar, vem aquela leveza e quando me esforço para
reabrir os olhostenho a impressão de que os jovens da cena do muro estavam se mexendo... ... e
estavam mesmo!
- Ei! Eu conheço esses dois... Milenne! Kauã!
- Oi, tia!
- Você vai mesmo pular esse muro? Do lado de lá tem outra escola!
Sem parar para questionarMilenne tomou impulso nas mãos de kauã, subiu e pulou ligeira,
enquanto me respondia que queria mesmo encontrar outra escola!
- Na verdade, eu também quero encontrar outra escola...Kauã,você também vai pular o muro?
Kauã resume sua resposta a um “já é” e eu pergunto se antes ele pode também me dar pé-pé.
Ele se agacha, coloca a mão em concha e me olha sorrindo, zombeteiro. Eu vacilo e ele, com
impaciência me pergunta “qual é, tia? Vai amarelar?”
- Não. Eu vou pular, mas para mim não é tão fácil!
- É difícil pra geral, tia. Bora lá!
Caraca! Esse menino sempre me desmonta com essas respostas “maduras”. Bem-feito para
mim! Quem tem a “medida” do outro?Ninguém tem...

CORPOS
298

Enfim, subo e quase sem olhar, pulo ao encontro de Milenne que fita o alto do muro à procura
do irmão - Kauã! Anda logo!
- Calma... ...pronto! Chegou o rei!
Milenne não perde a chance de “inflar a bola” do irmão. No fundo, é muito amor envolvido...–
Hahaha! Rei do 94 ou do IEPIC?
- Fala sério? Ó, se aqui for mesmo a escola que geral procura, ou geral vai ser rei ou geral
vai ser bobo. Eu voto no bobo, tá ligada?
A porta de uma das salas se abre e umas 20 crianças saem correndo, animadas em direção à
horta, acompanhadas pelo professor Rafael. A última criança a sair da sala vem em nossa direção.
“Vem também, tia Márcia! Hoje nós vamos plantar feijões! ” O menino faz o convite e retoma o
caminho da horta correndo de costas, parecendo se divertir...
- E também depois vamos matar os feijões! Comemora ele antes de passar pelo pequeno
portão.
Seguimos em direção à horta e lá encontramos as crianças e Rafael em um círculo em volta
dos canteiros. Nos juntamos ao grupo que, nesse momento, escutava o professor110 atentamente:
- Para começarmos, escolhemos falar do ciclo da vida, a importância da morte na
preservação de toda ecologia terrestre. Para isso escolhemos plantar feijões nos canteiros para
depois matá-los e assim realizar o que é chamado de adubação verde. Em nossa proposta não há
espaço para um projeto que não seja nutrido pela vontade de quem é mais importante neste trabalho,
os estudantes desta escola.
Milenne me olha com cumplicidade, mas logo se volta para dar atenção a Kauã, que
cochicha alguma coisa em seu ouvido. O que foi aquele olhar de Milenne para mim? Parecia me dizer
que encontrou alguma pista sobre a escola que procuramos, mas posso estar enganada. Não sei.
Poderia ser também um olhar de desconfiança, descrédito no que ouvira. Uma escola com um projeto
nutrido pela vontade dos estudantes? Será que valeu a pena pular aquele muro para estar aqui?Bem,
pelo menos o mais importante já aconteceu, não é? Noslançamos em busca da escola outra!
Rafael prossegue falando pausadamente, como se quisesse garantir a compreensão
de todos - A proposta é a seguinte: vamos reviver um espaço da escola que está em coma, e que os
estudantes lhe atribuem o título de antigo cemitério. Esse espaço é onde já funcionou uma horta. Nada
mais justo que, para revivê-lo, iniciemos o projeto de uma horta.
Foi um rebuliço total nesse momento! As crianças só queriam falar sobre a lenda do
diretor da escola que se encontrava sepultado ali naquele lugar!
-É naquele terceiro canteiro ali que ele está enterrado!
- Você nem sabe de nada, Patrick! Tem uma parte em cada canteiro! A bunda foi enterrada
exatamente aí onde você está sentado! Hehehe!

110
As falas desse personagem escritas em itálico foram retiradas do texto Ensaio sobre as mãos e a vida, de Jefferson Campos, bolsista do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID – UFF), na escola onde eu trabalhava como professora no ano de 2013.

CORPOS
299

- Muito engraçado, Kauã! Agora, quem não souber o nome do diretor é quem vai estar sentado
no canteiro onde “morre” a bunda dele!
- É Ismael!!!! - Todos gritam em uníssono, para escapar da maldição...
- Onde “morre” a bunda dele? O que é isso, Rafael?
- Ué, Márcia... se tivesse viva, a bunda viveria, mas como ele já morreu e a bunda também, ela
morre lá, não é não?Hahaha
O clima era de descontração, alegria, beliscões, sustos para cada um que estivesse distraído
na mira de Kauã – Ismael veio puxar seu pé!
Esgotadas as narrativas mais bizarras que aquela horta já testemunhou, o professor
retoma a atenção de todos e lembra que ainda precisariam terminar a pauta para iniciarem juntos o
planejamento do próximo encontro. Um planejamento coletivo? Preciso chegar mais perto de Kauã e
Milenne! Pude vê-los trocando comentários e me lembrei da atuação dos dois na ocupação da escola
onde reivindicavam justamente o protagonismo discente, um currículo vivo.Me aproximo deles me
arrastando por fora da roda e pergunto baixinho:
- Estou animada com essa escola! E vocês? Acham que podemos comemorar e dizer aos
quatro ventos que encontramos a escola outra?
- Tia! Tia, acorda......minha mãe passou mensagem no meu celular dizendo que está do lado de
fora do portão me esperando. Epediu para você ir lá fora também pra ela te dar um abraço e desejar
boas férias. Vamos?
Um pouco tonta ainda, caminho em direção ao portão ao lado de Jake. Olho mais uma vez para
a imagem do muro. Ela já não me perturba.
***
REFERÊNCIAS

BAKHTIN. Mikhail. Estética da criação verbal. 6ªed., São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.
______. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2º ed., São
Carlos, SP: Pedro e João Editores, 2012.
______. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2013.
BARROS, Manoel de. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004
GRUPO ATOS. Constelar. In Constelar: aprendendo o exercício de uma heterociência. Aleph (UFF. Online), v. 15, p.
223-245, 2016
MUROS. Direção: Pablo Iraburu e Migueltxo Molina Produção:Itiziar Garcia e Marga Gutiérrez.Espanha. Arena
Comunicación Audiovisual.2015. Filme disponível em http://wallsmuros.com/
OLIVEIRA, Leticia Neves de. Dois Contos de Escola: Ética, Estética e Conhecimento. 2016. 180 f. Dissertação
(Mestrado em educação) Universidade Federal Fluminense. Niterói, 08 de março de 2016
TARDAN, Denise Lima. Tons da Vida, IN: Palavras Próprias-alheias: Ela. Vida, Arte, Alteridade. São Carlos:
Pedro&João Editores, 2015

CORPOS
RESUMO
300

Este artigo propõe uma análise preliminar acerca

O GÊNERO SAMBA- do gênero samba-exaltação da escola de samba


Grêmio Recreativo da Portela. Para tanto, pauta-se
nas contribuições do Círculo de Bakhtin acerca do

EXALTAÇÃONA
estudo dos gêneros do discurso.O objetivo é propor,
a partir do samba-exaltação, uma nova leitura
dessa manifestação cultural que se transformou em
um grande empreendimento na contemporaneidade

PERSPECTIVA bem como identificar as características que esse


gênero adquire nessa esfera social.Os resultados
levam à reflexão de que a escola Grêmio Recreativo

BAKTINIANA
da Portela utiliza estratégias discursivas na
construção do gênero samba-exaltação que visa
elevar a autoestima da escola e de seus
integrantes, a consolidação, participação ativa e
permanência da comunidadeonde está localizada
bem como a reafirmação de sua importância para o
COSTA, Flávia Ferreira Lopes da 111 público.

DANTAS, Anne Michelle de Araújo 112

Palavras-Chave:Samba-Exaltação. Gêneros do
FARIA, Marília Varella Bezerra de 113
Discurso. Escolas de Samba.

CONSIDERÇÕES INICIAIS

O
samba-exaltação, também conhecido como hino de exaltação ou samba de esquenta, é um
gênero discursivo caracterizado pela exaltação das qualidades das escolas de samba. Os
sambas-exaltação que têm ampla divulgação midiática tornam-se hinos. São sambas entoados
durante os ensaios e antes dos desfiles das agremiações. Assim como outros hinos de forma geral
(nacionais, religiosos, institucionais, etc) faz parte de uma estratégia discursiva que visa construir um
modo de ser e pensar, elevar a autoestima da escola e dos participantes, desenvolvendo um
sentimento de pertencimento à uma determinada nação, grupo ou comunidade. São discursos que se
reiteram, influenciando e monologizando modos de pensar, para que todos da comunidade sintam-se
envolvidos pela mesma esfera.Apesar de ter uma entoação diferente, o samba-exaltação pode “ser
entendido como uma representação sonora” (VILA NOVA, 2006) da escola de samba, que objetiva a
construção e consolidação da identidade da instituição, desenvolver o sentimento de pertencimento e
elevar a autoestima da comunidade. Essas canções podem ser entendidas como práticas discursivas
que disseminam e consolidam identidades de uma forma mais ampla.
De acordo com Moraes (apud Ribeiro, 2010, p. 15) a tradição discursiva de exaltação “tem sua
origem na literatura grega com os hinos homéricos” cujos versos se aproximavam do louvor aos

Aluna regular do Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte(UFRN). E-
111

mail: flaviaflopes2007@hotmail.com
112
Aluna regular do Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte(UFRN).). E-
mail: annemichellea!yahoo.con.br
113
Professora titular do Departamento de Letras da UFRN e Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem(PPGEL) da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).). E-mail:mariliavbf@yahoo.com.br

CORPOS
301

Deuses ou heróis. Já os hinos pátrios (nacionais) teve seu primeiro registro no século XVI e,
principalmente, século XVIII pós-revolução francesa. Moraes explica que o conceito de hino relaciona-
se a três práticas de comunicação verbal:

O conceito de hino, historicamente, está ligado a três práticas da comunicação verbal: (i) às atividades
populares festivas e religiosas da Grécia Antiga, (ii) ao fenômeno denominado “nação” e aos conceitos a
ele imbricados como “nacionalismo” - o que culminou na formação dos estados nacionais - e, por fim,
(iii) a quaisquer entidades ou instituições que tomam esse gênero como sua parte representativa
(MORAES, 2010, p.15).

Atualmente é uma prática comum no nosso dia adia, seja na escola, num estádio de futebol ou
em qualquer outro momento cívico. Os hinos mais conhecidos são os nacionais e religiosos. Mas como
Moraes demonstrou em sua pesquisa sobre canções homéricas, há aqueles hinos feitos
especificamente para um determinado público, a exemplo dos hinos de exaltação das escolas de
samba e hinos de futebol.
Os hinos são enunciados que atuam como forças centralizadoras de modos de pensar,
denominada por Bakhtin de forças centrípetas – “aquelas que buscam impor certa centralização
verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real” (FARACO, 2009, p.69), pois tenta tornar o signo
monovalente, construindo uma ideia de unidade dentro da diversidade. Em Marxismo e Filosofia da
Linguagem, Bakhtin e Volochinov confirma que “a classe dominante tenta tornar monovalente o signo
– que é, no entanto, sempre polivalente – imprimindo-lhe, com este gesto, um caráter de deformação
do ser a que remete o signo” (FARACO, 2009, p.71). Nesse percurso reflexivo, podemos apontar os
hinos nacionais como exemplos de onde atuam forças centrípetas, pois constroem uma ideia de nação
homogênea, forjando tradições e um passado de glórias, excluindo toda e qualquer diversidade.
O morro, a favela e o subúrbio do Rio de Janeiro criaram o gênero samba que conhecemos
hoje, um gênero de raízes africanas e marcado pela oralidade. Dentro desse gênero, surgem outros
(samba de roda, samba de partido alto, samba enredo, entre outros) que, apesar da melodia ser
parecida, diferenciam-se de acordo com o seu propósito comunicativo. Antes de alcançar o status de
símbolo da cultura nacional, por exemplo, o samba serviu não apenas como diversão e socialização
entre os sujeitos, como também, instrumento de luta e resistência contra a exclusão e segregação
como discutimos no capítulo anterior. Nesse período, o samba atuava como força centrífuga, que no
entendimento de Bakhtin seriam “aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras,
por meio de vários processos dialógicos [...] a sobreposição de vozes etc.” (FARACO, 2009, p. 70)
Osamba de exaltaçãosurgiu em 1930 quando Getúlio Vargas, então presidente da República,
visava à construção de uma consciência nacional. O samba, gênero até então produzido e consumido
nos morros e favelas da cidade do Rio de Janeiro, considerado produto da malandragem, passa a ser
usado como uma estratégia discursiva ideológica de exaltação a nacionalidade e do entusiasmo ao
trabalho. Esse período é marcado como centro de onde emanaram os discursos circulantes da
brasilidade.

CORPOS
302

Para descer o morro e ocupar o asfalto, o samba passou a ser controlado pelo governo e, por
isso, sofreu uma série de exigências e mudança em suas composições.Os sambas-enredos, por
exemplo, foram obrigados a trazer temas nacionais que mostrassem as dádivas do país efatos
históricos. Foi assim que, aproveitando-se ainda mais do gênero que a ditadura Vargas estimulou o
aparecimento do chamado samba cívico, conhecido também como samba-exaltação. A principal
característica desse gênero era a exaltação das belezas naturais do Brasil, temas patrióticos e
ufanistas. Nesse período, vários compositores passaram a criar sambas-exaltação de cunho
patriótico. “Aquarela do Brasil” foi o primeiro e mais conhecido samba deste gênero e responsável
por difundir uma tradição discursiva de exaltação.

Outras denominações afastavam-se da caracterização meramente musical e informavam sobre certos


predicados como em samba cívico ou marcha patriótica. A composição de Ari Barroso ajudou a definir o
formato e o nicho do samba de exaltação. A Enciclopédia da Música Brasileira Erudita Folclórica e
Popular especifica que o samba de exaltação, também chamado samba de exaltação, seria
caracterizado por melodia extensa e letra de tema patriótico, cuja ênfase musical recai sobre o arranjo
orquestral inclusive com recursos sinfônicos. (FILHO, 2009, p.05)

Hoje, com a grande rivalidade entre as agremiações, o samba-exaltação é uma prática comum
dentro da quadra das escolas de samba. Assim como os hinos nacionais e religiosos, o samba-
exaltação é uma espécie de ritual cujos versos exaltam e enaltecem as qualidades e vitórias da escola
de samba. Ajuda a manutenção do sentimento de pertencimento, na construção de uma identidade
para a escola e propagação de valores. Quando o hino da escola é entoado, os participantes sentem-
se tocados, motivados e mais próximos à agremiação. São sambas feitos para os próprios torcedores
e desfilantes. É o momento de construção do sentimento patriótico, representa a agremiação e o
espaço da comunidade, e de fato, coloca-se como uns dos elementos constitutivos da escola.
Partindo desse conhecimento, este artigo propõe analisar uma letra de samba-exaltação da
escola de samba da Portela, a fim de compreender como estes enunciados atuam no projeto de
manter vivo o sentimento de pertencimento à agremiação e na consolidação e reafirmação de sua
importância dentro da comunidade. Para tal analise recorremos aos estudos de Mikhail Bakhtin e do
seu Círculo, no que concernem à discursões acerca dos gêneros discursivos.

GÊNEROS DISCURSIVOS

Analisar o gênero samba de exaltação a partir da teoria bakhtinianaé compreender que “a


verdadeira realidade da língua é a interação verbal mediada por enunciados/enunciações concretas”
(Bakhtin 1995, p.121). A língua só se manifesta por meio de enunciados concretos, vivos e únicos, nas
várias esferas de atividade humana (jurídica, publicística, artística, religiosa). Esses enunciados
proferidos pelos serem humanos, refletem e refratam a realidade de onde são produzidos porque não
podemos desvincular de suas condições de produção, do momento histórico do qual emergem. Para

CORPOS
303

Bakhtin a verdadeira compreensão da língua é exterior porque faz parte de uma criação histórica,
parte das interações entre indivíduos nas várias esferas de atividades sociais.
O Círculo de Bakhtin construiu suas concepções teóricas confrontando dialogicamente com
outras que estavam vigentes, outros enunciados, opiniões e pontos de vista até então produzidos e em
circulação. À época predominava uma tradição de estudos da linguagem que consideravam o gênero
um agrupamento de procedimento. Os gêneros eram concebidos a partir da categorização e
descrição tipológicas e arbitrárias. De acordo com Bakhtin e o círculo, o estudo dos gêneros é mais
complexo, pois faz com que todas as esferas de atividade humana funcionem. São formas de
comunicação humana que tem regras e finalidades tecidas na interação social. Todas as interações
são mediadas pelos gêneros do discurso e é issoque confere o caráter de uma prática social a todo
discurso.
Os estudos postulados por Bakhtin e Círculo inovaram e ampliaram a compreensãodos
gêneros discursivos. Uma análise fechada na palavra como faz a linguística tradicional recai em uma
análise formal da língua porque todo e qualquer discurso verbal desvinculado da vida, da situação
pragmática extraverbalserá desprovida de sentido.
O estudo dos gêneros a partir da teoria do círculo é mais complexo porque o gênero tem
dupla orientação, orienta-se para seus interlocutores e, em segundo lugar, para o seu conteúdo
temático e mais uma vez a orientação para o outro que está fora e para o tema.Quando Bakhtin
discute em O Discurso no Romance o modo de funcionamento dialógico da linguagem, explica que os
enunciados voltam para ver o que já foi dito sobre aquele tema, se apropriam do que foi dito,
reestruturam, posicionam-se, concordam, discordam, contradizem e ao mesmo tempo se orientam
para quem vai se dirigir. Assim cada gênero se orienta tematicamente para acontecimentos reais da
vida. Estão sempre em função da sociedade, sempre mudando porque são dinâmicos.
Em um de seus textos, Volochínov(2014) diz que gênero é uma forma de comunicação social
que organiza, constrói e acaba (no sentido de acabamento) de maneira específica a forma gramatical
e estilística do enunciado, assim como a estrutura do qual ele depende. Nesse sentido, existem, ao
longo das obras desses autores, várias definições de gênero que Bakhtin (2015) sistematizou em sua
obra mais conhecida Estética da criação verbal.
Há aqueles gêneros discursivos que fazem parte de diálogos cotidianos e também os que
fazem parte “da vida pública, institucional, artísticas, científica e filosófica” (MACHADO, 2014, p. 155).
Bakhtin classifica esses diferentes gêneros em primários e secundários. Os primários têm outro
processo de aquisição por estarem relacionados às relações cotidianas, enquanto os secundários são
mais complexos, pois têm relação com a ideologia, têm a ver com os sistemas de desenvolvimentos
mais complexos.
O gênero é integrante da concepção de linguagem do círculo e ele é mais complexo. Isso
porque os gêneros acompanham a história da sociedade e sua cultura. É o meio pelo qual organizamos
nossos modos de falar. Para que exista interação entre os sujeitos é preciso conhecer os gêneros do
discurso porque são responsáveis por moldar os discursos. Para Bakhtin, “cada campo de utilização

CORPOS
304

da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do
discurso” (BAKHTIN,2016, p.12). Essa relativa estabilidade dada por Bakhtin quer dizer que os gêneros
são construtos socais e adquire distintos formatos em época diferentes, para diferentes sujeitos e
diferentes modos de interações.
Bakhtin chama atenção também para a heterogeneidade dos gêneros, pois está ligado às
esferas de criação ideológica. E essas esferas de atividade humana não são fixas no tempo, no espaço
e axiologicamente. Os gêneros, por serem construtos históricos, acompanham a cultura e o tempo.
Hoje, por exemplo, existem gêneros que não existiam em outros tempos ou foram modificados. Dado
acontemporaneidade estão mais ágeis, dinâmicos e mais objetivos.
Compreender os gêneros discursivos como dispositivos da cultura pelos quais organizamos a
vida, retira os gêneros de uma concepção que vai além das categorizações e descrições tipológicas
como tradicionalmente fizeram a linguística formalista e objetivista. Os gêneros fazem com que todas
as esferas comunicativas funcionem.Toda comunicação está relacionada com as condições de
produção, às finalidades da comunicação e ao momento histórico. A plasticidade dos gêneros
armazenam nossos modos diferentes de dizer e este armazenamento é dialógico, pois são históricos,
construtos sociais que se modificam com o tempo.Ao estudar o enunciado dentro de uma perspectiva
bakhtiniana é levar em conta que ele reflete e refrata realidades. São espaços de lutas ideológicas
que revelam forças centrífugas e centrípetas.
São essas especificidades que vão definir o conteúdo temático, o estilo e a construção
composicional de cada gênero. Por que estão relacionados com a vida, com a época que produz
formas diferentes de interação social que se materializam por meio dos gêneros do discurso.
Partindo dessa perspectiva de gênero, analisaremos enunciados que advêm da esfera
musical/artística, escrito pelos compositoressambistas Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro
(1980),pertencente à escola de samba Grêmio Recreativo da Portela.
Recordando o pensamento de Bakhtin e Círculo, ao estudar qualquer noção que seja o objeto
de estudo, não podemos desvincular do contexto de produção deste enunciado. Todo discurso é de
natureza social e ideológica, portanto, analisar qualquer gênero do discurso é necessário definir a
esfera e a situação de comunicação em que ele ocorre. Sendo assim, ao falarmos de escola de samba
na contemporaneidade, não podemos deixar de levar em conta que, diferente do século anterior, hoje,
as escolas de samba se institucionalizaram e tiveram que se adaptarem às novas exigências ao
assumirem o título de símbolo da cultura nacional. Há muitos interesses políticos e econômicos em
torno das agremiações, que astransformaramem espaços dedisputas, tensões, conflitos e de
significados simbólicos. Não podem ser consideradas apenas como manifestação cultural, mas como
uma grande Instituição financeira, um grande empreendimento que abarca grandes
responsabilidades.
A escola de samba Grêmio Recreativo da Portela, localizada no bairro de Cascadura, zona
norte do Rio de Janeiro, é considerada a mais antiga agremiação do Estado do Rio de Janeiro. Ao
contrário de outras escolas, a Portela não faz parte do que podemos denominar de comunidade e sim

CORPOS
305

um grande bairro do subúrbio carioca. Seu nome também não faz relação a esse bairro como outras
escolas. Para Pavão (2005), por ser um bairro heterogêneo, a escola de samba da Portela não
desperta interesse dos moradores, caindo muitas vezes no esquecimento. A indústria cultural
contribui para que a memória da agremiação ultrapasse fronteiras locais, incorporando indivíduos de
outras localidades. De acordo com o pesquisador, as transformações e característicos do próprio
bairro contribuíram para a substituição da “comunidade tradicional” pela “comunidade eletiva”. Há,
nesse sentido, um deslocamento das relações sociais do contexto local. Pessoas que, por afinidade,
elegem a escola como elemento de identidade (Pavão, 2005).
Em seus tempos áureos, a escola de samba Grêmio Recreativo da Portela, manteve-se
vitoriosa por sete anos consecutivos. É conhecida na história do carnaval por acumular o maior
número de vitórias, com 21 campeonatos. Depois do último título conquistado em 1984 não ganhou
mais estandarte, mesmo tendo cultivado muitos admiradores como Paulinho da Viola, Marisa Monte,
Zeca Pagodinho, Tereza Cristina e até mesmo do Wall Disney.A escola foi durante muito tempo mal
classificada nos desfiles. Esse ano, após anos sem vitória, conseguiu sair vitoriosa e desfilar no grupo
das campeãs.

Portela Na Avenida (samba-exaltação) Tua água altaneira é Espírito Santo


No templo do samba
Portela As pastoras e os pastores
Compositor: Mauro Duarte E Paulo Vem chegando da
César Pinheiro Cidade, da favela
Para defender as suas cores
Portela Como fiéis na santa missa da capela
Eu nunca vi coisa mais bela Salveo samba, Salve a Santa, Salve
Quando ela pisa a passarela ela
E vai entrando na avenida Salve o manto azul e branco da Portela
Parece a maravilhosa de aquarela que Desfilando triunfal
surgiu Pelo altar do Carnaval
O manto azul da padroeira do Brasil
Nossa Senhora Aparecida
Que vai se arrastando
E o povo nas ruas cantando
É feito uma reza, um ritual
É a procissão do samba
Abençoando
A festa do divino carnaval
Portela,
É a Deusa do samba o passado revela
E tem a velha guarda como sentinela
É por isso que eu ouço essa voz que me
chama
Portela
Sobre a tua bandeira este divino
manto

CORPOS
O gênero acima é um samba-exaltação. O que determina essa classificação é a sua forma
composicional, ou seja, elementos que exaltam a escola de samba, texto curto, cantado, dividido em
partes, construído na relação entre letra e melodia própria do gênero samba (conjunto de
instrumentos musicais, denominado como bateria).
A religiosidade é uma característica que se faz presente neste samba-exaltação, dando a ideia
de participarem de uma“procissão”, “feito uma reza, um ritual”. A escola de samba é comparada a
“Padroeira do Brasil”,a “Nossa senhora Aparecida”, a águia, símbolo da escola, é o “espírito santo”; a
avenida por onde as escolas de samba desfilam é o “altar”, o público participante “como fiéis na santa
missa da capela”, o ensaio ou desfile da escola é a “festa do divino”. Assim, no plano estilístico, todo
campo semântico dos enunciados remetem a temas religiosos como “abençoado”, “divino manto”,
“templo”, “pastoras e os pastores”, “salve o samba, salve a santa, salve ela”, “salve o manto”. Em
alguns momentos percebemos também a escolha de símbolos próprios a temas nacionais, como
“sobre tua bandeira”, “defender as suas cores” e“triunfal”. Nesse sentido, o samba-exaltação deve
ser compreendido enquanto unidade real de comunicação, mantendo relações com outros enunciados
já ditos: os hinos religiosos e nacionais.
Não é por ingenuidade que temas religiosos e/ounacionais aparecem em letras de samba-
exaltação. Todas as escolhas lexicais fazem parte de um projeto de dizerque busca conquistar a
adesão do público por meio do discurso religioso e patriótico.Apoderam-se de símbolos ideológicos já
estabilizados, mais aceitos socialmente, como é o caso dos símbolos religiosos e nacionais, com o
intuito de exercer maior influência. Observamos desse modo, a combinação dos gêneros: hino
religioso, hino nacional e samba-exaltação, caracterizando uma construção híbrida. De acordo com
Rojo (2006, p. 176), a hibridização é uma construção típica das canções populares.
Sobre gêneros híbridos Bakhtin explica:

Chamamos de construção híbrida um enunciado que, por seus traços gramaticais (sintáticos) e
composicionais, pertence a um falante, mas no qual estão de fato mesclados dois enunciados, duas
maneiras discursivas, dois estilos, duas “linguagens”, dois universos semânticos e axiológicos. Entre
esses enunciados, estilos, linguagens e horizontes, repetimos, não há nenhum limite formal –
composicional e sintático: a divisão das vozes e linguagens ocorre no âmbito de um conjunto sintático,
amiúde no âmbito de uma oração simples, frequentemente a mesma palavra pertence ao mesmo tempo
a duas linguagens, a dois horizontes que se cruzam numa construção híbrida e, por conseguinte, tem
dois sentidos heterodiscursivos, dois acentos (BAKHTIN, 2015, p. 84).

Esses enunciados são direcionados ao público em geral que participa dos ensaios da escola
dentro da quadra ou no cortejo que antecedeo desfile na avenida. Faz parte de uma estratégia
discursiva que visa elevar a autoestima da escola e dos participantes, desenvolvendo um sentimento
de pertencimento.Para Bakhtin e o Círculo os gêneros discursivos tem como um dos elementos o
projeto de dizer do locutor.

Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal,
das necessidades de uma temática (do objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc.

FORMAÇÃO DOCENTE INICIAL E CONTINUADA E CURRÍCULO


307

Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este renuncie à sua individualidade e à sua
subjetividade, adapta-se ao gênero escolhido (2015, p. 301).

Podemos dizer que o samba-exaltação enquadra-se dentro do que Bakhtin denomina de


gênero secundário, pois é produzido em uma esfera de atividade sociocultural mais complexa, mais
elaborada.

Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular
(primários e secundários),ou seja, dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer
estudo [...] Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade
do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a
historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida (2015, p. 282).

Esse gênero chama atenção também pelo seu caráter axiológico-entonacional, pois são
carregados de valores, harmonizados com tom musical capaz de envolver e emocionar e é esse valor
“que faz de um “enunciado-palavra” se tornar um hino” (MORAES, 2010, p.15). O momento de entoação
de um hino seria como o apagamento das singularidades em prol de um discurso unificador que
corresponde às ideologias pretendidas.
Para Voloshinov/Bakhtin a entoação é outro aspecto importante dos enunciados. Quando
explicam a relação dos enunciados com a situação extraverbalque o produz, diz que a entoação-
expressiva é responsável pelo sentido pleno do discurso verbal, é ele quem completa o significado do
que se enuncia.O entendimento do enunciado não depende apenas do conhecimento da situação
extraverbal, ele pode se expandir quando temos acesso ao horizonte global da situação. “A entoação
estabelece um elo firme entre o discurso verbal e o contexto extraverbal – a entoação genuína, viva,
transporta o discurso verbal para além das fronteiras do verbal, por assim dizer”
(VOLOSHINOV/BAKHTIN, 1976).
No caso do samba-exaltação, a entoação vem da necessidade dos interlocutores de criarem
um sentimento patriótico pela escola de samba. É a emoção causada pela entoação do hino que causa
esse efeito nos participantes. Por isso que nesse caso, a compreensão global do enunciado é
exapandida pela entoação dada ao enunciado.

Na entoação, o discurso entra diretamente em contato com a vida. E é na entoação sobretudo que o
falante entra em contato com o interlocutor ou interlocutores – a entoação é social por excelência. Ela é
especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera social que envolve o falante
(VOLOSHINOV/BAKHTIN, 1976, p. 10).

Voloshinov/Bakhtin nos adverte de que a entoação só adquire força quando existe “apoio
coral”dos interlocutores. Sem a “comunhão de julgamentos básicos” o discurso perde sua capacidade.
Nesse sentido, o samba de exaltação toma força e adquire significados pretendidos quando há o
envolvimento dos participantes.Para esses pensadores a “entoação viva na fala concreta

HETEROCIÊNCIA
308

emocionalmente carregada”. Levando em consideração a entoação dada aos sambas-exaltação, é


capaz de dar uma atitude ativa a escola de samba, torna-la objeto vivo.

[...] cada instância de entoação é orientada em duas direções: uma em relação ao interlocutor como
aliado ou testemunha, e outra em relação ao objeto do enuncia como um terceiro participante vivo, a
quem a entoação repreendeu ou agrada, denigre ou engrandece. Essa orientação social dupla é o que
determina todos os aspectos da entoação e a torna inteligível (VOLOSHINOV/BAKHTIN, 1976, p.13).

São todos esses aspectos do discurso verbal que fazem com que o samba-exaltação adquira
sentido. Ele toma forma nesse processo de orientação: o falante (sambistas), o interlocutor (público
participante) e o tópico (escola de samba). Isso porque faz parte de um evento social. É “a alma social
do discurso verbal” que lhe “dá também significa artístico” (VOLOSHINOV/BAKHTIN, cap. IV, p.13).Nesse
sentido, o samba-exaltação adquire ainda mais sentido por causa de uma série de fatores – a
entoação, a situação extraverbal, o discurso verbal e o todo significado que a escola de samba
engloba.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar o samba-exaltação da escola de samba Grêmio Recreativo da Portela, percebemos


que todos os símbolos reforçam a ideia de que as escolas de samba vão muito além de uma
manifestação carnavalesca. Há no samba-exaltação estratégias discursivas com valores persuasivos
que busca adesão do público por meio de símbolos religiosos e nacionais.O hino funciona como uma
espécie de manutenção da autoestima da agremiação e um projeto de manter vivo o sentimento pela
escola. Apesar da entoação do samba-exaltação ser diferente dos hinos nacionais e religiosos, alguns
signos presentes nestes sambas, como a referência à bandeira, próprio dos hinos nacionais, e temas
de referência religiosa, mantêm o efeito que se pretende e reforça o projeto de dizer.
No universo das escolas de samba é crescente a rivalidade entre as agremiações. Novas
escolas estão sempre surgindo e renovando-se. Não existe mais escola de samba pequena.
Quandoobservarmos os desfiles das escolas de samba não temos ideia de que por trás do exuberante
desfile há grandes responsabilidades e imposições por parte das autoridades que ameaçam o lado
independente das agremiações (LEOPOLDI, 2010, p.19). A relação que a agremiação desenvolve com a
comunidade é imprescindível para que tenha bons resultados e mantenha-se dentro do grupo das
campeãs. O desfile não pode ser de forma mecânica, precisa ter emoção, envolvimento e dedicação.
Por esse motivo, as escolas precisam sempre buscar estratégias para consolidação e permanência
do público e da comunidade onde está localizada.
É preciso ainda levar em consideração que vivemos em tempos em que nada é permanente,
com a força da globalização não é possível garantir mais um público fiel, mesmo dentro da própria
comunidade. As novas gerações se podem ser atraídas por outros gêneros musicais como forma de

HETEROCIÊNCIA
309

expressão e de identidade, a exemplo do funk carioca e do rap. Na indústria do turismo carnavalesco,


o desfile das escolas de samba não é mais a única manifestação cultural que atrai um grande público.
O samba-exaltação pode ser entendido como uma representação sonora da escola de samba,
que objetiva a construção e consolidação da identidade da instituição e desenvolver o sentimento de
pertencimento da comunidade. O fato de ser música desperta mais sensibilidades dos participantes,
além de alcançar de forma mais ampla e rápida maior número de simpatizantes à escola. É também
um projeto de manter vivo o sentimento de pertencimento à escola e uma necessidade de afirmação
das agremiações que reforçam símbolos que adquirem significados em meio à realidade à qual está
inserido. O discurso dos compositores opera como uma forma de afirmação da identidade desses
espaços e da própria escola.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra.
São Paulo: Editora 34,2016.
BAKHTIN, M. O problema do enunciado. In: _____. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. M./VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico
na ciência da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
CASADO ALVES, M.P. O cronotopo da sala de aula e os gêneros discursivos. In: Signótica, Goiânia, v. 24, n. 2, pp. 305-
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_____. O enunciadoconcretocomounidade de análise: a perspectivametodológicabakhtiniana. Livro da UFSC, no prelo.
FARACO, C. A.Linguagem e Diálogo: as ideias linguísticas de Bakhtin. São Paulo: Criar, 2006.
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FILHO, JOÃO ERNANI FURTADO. Samba de exaltação: fantasia de um Brasil brasileiro. Revista trajetos, v.7, n. 13, 2009.
GRILLO, S.V.C. A noção de ‘tema do gênero’ naobra do Círculo de Bakhtin. In: EstudosLingüísticos (São Paulo), v. 1, p.
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LEOPOLDI, José Sávio. Escola de samba, rituais e sociedade. UFRJ. 2010.
MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: Bakhtin: conceitos-cheave/Beth Brait (org). 5 ed. 2 reimpressão. São Paulo:
Contexto, 2014.
MORAES, Flávio Henrique. O gênerohinonaperspectivaBakhtiniana: umaabordagemdialógica do Hino do MST e de
outros enunciadosconcretos. Dissertação de Mestrado. UFSCAR, 2015.
ROJO, R. Gêneros do discurso no círculo de Bakhtin: ferramentas para a análisetransdisciplinar de
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http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/eventos/cd/Port/117.pdf. Acessoem 15.10.16.
VOLOSHINOV/BAKHTIN, M. Discursonavida e discursona arte (sobrepoéticasociológica).Tradução de Carlos Alberto
Faraco&CristóvãoTezza. Circulaçãorestrita. [1926]

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
310

Trata da possibilidade de diálogo entre a pesquisa

A PESQUISA documental e os conceitos de Mikhail Bakhtin, que


entende os textos como elos de uma complexa
corrente de enunciados. Toma como base as

DOCUMENTAL COMO ATO


experiências de pesquisa sobre políticas e
programas de alfabetização produzidas no Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e
Escrita do Espírito Santo (NEPALES) para afirmar os

RESPONSÁVEL E textos acadêmicos como posicionamentos políticos


diante das ações governamentais. Nesse sentido,
afirma a pesquisa como ato responsável e

RESPONSIVO
responsivo.

Palavras-Chave: Políticas de Alfabetização.


Pesquisa Documental. Ato Responsável

DIAS, Fabricia Pereira de Oliveira 1

ENDLICH, Ana Paula Rocha2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

C
omo integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do
Espírito Santo (Nepales), temos, como uma das temáticas de trabalho, as políticas e programas
governamentais dirigidos à alfabetização de crianças em nosso país. Muitos dos estudos
concluídos se detiveram sobre essas ações (STIEG, 2012; DIAS, 2013; CÔCO, 2014; ENDLICH, 2014;
CORNÉLIO, 2015; ANTUNES, 2015) e, nesse movimento, a pesquisa documental tem assumido papel
importante, uma vez que nosso corpus analítico é composto quase que exclusivamente de textos
escritos, impressos e/ou divulgados digitalmente. Segundo Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009, p. 5),
esse tipo de pesquisa constitui-se como “[...] um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas
para a apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos”.
De uma forma genérica, as ações previstas por esses autores diante dos documentos são
apreender, compreender e analisar. Contudo, as lentes bakhtinianas nos auxiliam a aprofundar e
problematizar essas ações de pesquisa, entendendo esses documentos como enunciados, pensando
as relações dialógicas travadas em meio à elaboração desses impressos e ponderando sobre o
diálogo entre eles e o pesquisador, dentre outros elementos. Além disso, a seleção desses
determinados conceitos, muito mais que por uma mera aproximação com nosso corpus de pesquisa,
revela nosso posicionamento, nosso ponto de vista sobre o mundo, nossa singularidade e assinatura
diante de opções teóricas que poderiam se descolar da vida.

1 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, na linha de pesquisa
Educação e Linguagens. Professora alfabetizadora daSecretaria Municipal de Educação da Serra (Espírito Santo). Email: fabricia30@gmail.com
2
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, na linha de pesquisa Educação
e Linguagens. Pedagoga no Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). Email: anapaulaend@hotmail.com

HETEROCIÊNCIA
311

Portanto, fundamentamos nossas pesquisas na concepção bakhtiniana de linguagem, que nos


instiga a pensar sobre essas tensas relações durante a leitura desses documentos. Mais que uma
opção teórico-metodológica, Bakhtin (2010b, p. 45) nos revela que “[...] eu, que realmente penso e sou
responsável pelo ato do meu pensar [...]” assumo posicionamentos, reconheço e assino pontos de
vista. Assim, acreditamos que nossas pesquisas se revelam como ato responsável, e também,
responsivo pois todo enunciado é resposta (BAKHTIN, 2006).
Neste texto, objetivamos discutir a potencialidade do uso das lentes bakhtinianas na leitura de
documentos, por meio dos conceitos de enunciado, signo ideológico, autoria e ato responsável. Mais
que apontar uma arquitetônica teórico-metodológica, almejamos, pelo delineamento dos conceitos
bakhtinianos envolvidos nas pesquisas documentais que temos desenvolvido, situar nossa condução
da pesquisa como um ato político/responsável, uma vez que não nos eximimos de nosso
reconhecimento, de nossa assinatura, exprimindo posicionamentos e escapando a uma suposta
neutralidade exigida por um determinado fazer científico. Assim, reiteramos a afirmação de Bakhtin
(2010b, p. 101) que nos revela que “[...] tudo em mim [...] deve ser um ato responsável [...]”. A pesquisa
constitui-se em mais um deles.

1. AS LENTES BAKHTINIANAS PARA A PESQUISA COM DOCUMENTOS

O diálogo com Bakhtin, na leitura dos documentos sobre políticas e programas, nos ensina, em
primeiro lugar, a ver a importância dos textos para as pesquisas. Acreditamos, a partir dos
apontamentos do autor (BAKHTIN, 2006, p. 307) sobre a pesquisa no campo das ciências humanas e
sociais, que “Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento”. Entendido como uma
especificidade das ciências humanas (e por que não de outras ciências?), o texto materializa os
sentidos humanos, seus pensamentos, aquilo que o homem deseja exprimir de si mesmo e do mundo
por ele criado. Assim, não há como esse sujeito ser estudado sem se considerar textos, criações suas
e que enunciam a seu respeito. Concordamos com o autor que, “Independentemente de quais sejam os
objetivos de uma pesquisa, só o texto pode ser o ponto de partida” (BAKHTIN, 2006, p. 308).
Além disso, por meio dos textos compreendemos os seres humanos, ou a consciência do outro
e seu mundo. Assim, não há texto neutro: todos são configurados a partir de pontos de vista,
carregados ideologicamente, norteados por perspectivas histórica e socialmente construídas. “A
palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN E VOLOCHÍNOV, 2010, p. 36); é a arena onde
se confrontam valores sociais, dada sua composição a partir de homens e mulheres constituídos e
constituintes de um determinado contexto. Assim, a leitura dos documentos com as lentes
bakhtinianas nos ajuda a compreender a construção das políticas voltadas para a alfabetização, seu
contexto de produção, as disputas entre diferentes pontos de vista e a visão de educação e de
alfabetização que as fundamentam.
Justificada a importância do texto na pesquisa, as ponderações bakhtinianas conduzem-nos,
ainda, a entender que nosso objetivo com a análise de documentos alcança os sujeitos que os

HETEROCIÊNCIA
312

produziram e seu contexto social. Alcançar esse homem social implica tratar o enunciado como
queestruturado socialmente e, por isso, importa-nos compreender a situação social mais ampla de
produção do documento, ou seja, contexto histórico-político nacional e internacional em que os
programas governamentais são produzidos.
Por outro lado, Bakhtin também aponta para a singularidade do enunciado, resultado das
interações sociais entre aquele que fala ou escreve e aquele que responde. Tendo como
características seu endereçamento, sua conclusibilidade (mesmo que provisória) e a possibilidade de
alternância entre os sujeitos no discurso, os enunciados (além de evidenciarem os seres humanos
que os constituem) mostram-nos também seus destinatários: o público a que se dirigem; seus
interlocutores mais próximos e também aqueles mais distantes, no tempo e no espaço; aqueles que os
compreendem de forma mais imediata e aqueles que os estudam e os investigam; aqueles que
concordam com eles e os que deles discordam.
Além da destinação do enunciado, há um outro aspecto que também detemos nossa atenção
no desenvolvimento de pesquisas documentais: a autoria. Com Bakhtin (2006) compreendemos que,
na produção de um enunciado, estão refratados os discursos anteriores que já trataram dele e as
respostas que podem ser esperadas pelo autor por parte dos destinatários possíveis daquele texto. O
autor, portanto, não se enuncia isolado do contexto em que está inserido nem dos demais sujeitos que
também se enunciam sobre o objeto do discurso. A perspectiva bakhtiniana impõe considerar o autor-
pessoa não como o locutor direto do enunciado, como se transmitisse ou expressasse de forma
imediata seus pensamentos e opiniões. O autor-criador, que integra o texto, participa da significação
do enunciado, que é produzido num determinado momento social e histórico.
E, nessa lógica, a palavra não pertence somente ao seu autor; seu ouvinte ou leitor também
tem direitos sobre ela, bem como aqueles que destinaram à palavra suas vozes antes mesmo do autor
que ora se enuncia. A palavra, portanto, é interindividual: pertence ao falante, àquele que responde a
ela e a todos os sujeitos que já dirigiram suas enunciações a esta palavra encontrada pelo autor.
Pensando um pouco mais nas palavras de Bakhtin (2006), assim como não existem palavras sem
dono, também não há apenas um proprietário das palavras, um só dono. Afinal, a palavra não pertence
apenas àquele que fala, mas a todas as vozes que um dia responderam a ela.
Os enunciados, portanto, são definidos em meio à sua própria natureza dialógica e à
responsividade humana, uma vez que são constituídos na relação entre falante/escrevente e
ouvinte/leitor e dependem, fundamentalmente, das réplicas direcionadas a ele. Por isso também
foram definidos por Bakhtin e Volochínov (2010) como um dos elos de uma cadeia comunicativa
ininterrupta e infindável, alimentada pelas respostas e réplicas humanas. E, nesse sentido, a inclusão
desses sujeitos (falantes e ouvintes) na análise dos documentos torna-se de fundamental importância
para a compreensão da natureza das suas enunciações.
Como um desses interlocutores, gostaríamos de discorrer um pouco mais sobre as
enunciações do interpretador, entendido aqui como o pesquisador. Bakhtin (2006, p. 309) caracteriza
esse sujeito como um dos destinatários dos enunciados, que “[...] reproduz (para esse ou outro fim,

HETEROCIÊNCIA
313

inclusive para fins de pesquisa) o texto (outro) e cria um texto emoldurador (que comenta, avalia,
objeta, etc.)”. Nessa condição, ele interroga, analisa, pondera e, assim, dialoga com outros enunciados,
buscando a “molduragem” pelo contexto dialógico que o enquadra e que “[...] lapida os contornos do
discurso de outrem como o cinzel do escultor” (BAKHTIN, 2010a, p. 156). Situamos esse sujeito como
parte do enunciado a ser produzido a partir de sua compreensão responsiva já antecipada pela
própria palavra a ser analisada; nós nos constituímos nesse novo participante com nossa visão de
mundo e nossos pontos de vista; nova consciência que se situa na fronteira onde se desenvolve o novo
acontecimento da vida do texto, os novos enunciados.
Compreender, pois, um texto, significa entender a expressão da consciência do outro, suas
ideias sobre o mundo. Daí concordarmos com Bakhtin (2006) que, no movimento de compreensão,
situam-se duas consciências, dois sujeitos: “É [o] encontro de dois textos – do texto pronto e do texto
a ser criado, que reage; consequentemente, é o encontro de dois sujeitos, de dois autores” (BAKHTIN,
2006, p. 311). Esse fato permite a conclusão de que a compreensão numa perspectiva dialógica nunca
será passiva, puramente receptiva, mera dublagem que, no máximo, reproduz o que já foi dito, “[...]
não trazendo nada de novo para a compreensão do discurso [...]” (BAKHTIN, 2010a, p. 90).
Assim, reconhecemos nosso lugar de pesquisador (ou interpretador) que emoldura
determinados enunciados, compreende-os responsivamente, numa tensa relação dialógica de
aproximações e distanciamentos, que não nos exime da responsabilidade ética de discutirmos e
avaliarmos questões relevantes sobre a alfabetização das crianças nesse período.
Nesse movimento ininterrupto e infinito do diálogo, podemos nos deparar com a seguinte
questão: há possibilidade de fugirmos de um possível esgotamento dos discursos? Há como se pensar
em ineditismo? Para Bakhtin (2006), cada enunciação é irreprodutível: mesmo que tratem de um
mesmo objeto, os enunciados são únicos. Mesmo “A reprodução do texto pelo sujeito (a retomada
dele, a repetição da leitura, uma nova execução, uma citação) é um acontecimento novo e singular na
vida do texto, o novo elo na cadeia histórica da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2006, p. 311). Da
ordem do reproduzível, apenas o sistema de linguagem e sua estrutura.
Portanto, o diálogo sobre e com determinado objeto/texto/documento continua, motivado
pelas respostas humanas dirigidas e instigadas pelas palavras. Para Bakhtin (2006, p. 334, grifos do
autor), “A palavra quer ser ouvida, entendida, respondida e mais uma vez responder à resposta, e
assim ad infinitum”. Seu maior temor é a irresponsividade, ou seja, o fim do diálogo e das respostas
humanas.
Sintetizando nossas reflexões, compreendemos os documentos das diferentes políticas
dirigidas à alfabetização das crianças a partir de sua constituição como enunciado, conhecendo seus
autores e destinatários mais imediatos por meio daquilo que defendem como balizas para a
alfabetização das crianças. Emolduramos essas balizas pela compreensão do contexto em que se
insere esses enunciados e problematizamos as intenções de seus produtores, constituindo novos
enunciados a partir de nossa compreensão ativo-responsiva. Posicionamo-nos, portanto, como um

HETEROCIÊNCIA
314

interpretador, buscamos dialogar com esses enunciados e não os dublar, não nos eximindo de uma
postura responsável diante de nossos estudos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base em nossas leituras dos conceitos bakhtinianos, buscamos neste breve texto
mostrar como essa teoria tem grande potencial para referenciar pesquisas documentais. No caso de
nosso grupo de pesquisa, Nepales, a teoria bakhtiniana nos ajuda a compreender ativa e
responsivamente, como enunciados, os documentos relacionados com os programas governamentais
e políticas de alfabetização em nosso país.
Quando nos debruçamos sobre os textos como enunciados, os consideramos como resposta a
um contexto de produção mais amplo, como também produções humanas num contexto mais
específico. Ademais, precisamos reconhecer que não há neutralidade nos documentos, mas há sim
posicionamentos políticos e autoria de sujeitos que ocupam seus lugares na sociedade. Assim, um
programa pode ser escrito em meio a disputas políticas, debates e interesses diversos. Muitas vozes
aparecem em seus enunciados, outras podem ser silenciadas.
Da mesma forma, nossos enunciados, como pesquisadores, interpretadores, não são neutros.
Assumimos nossa posição política que entende a alfabetização como prática social e cultural, que
envolve dimensões política, crítica e criativa, além de linguísticos (GONTIJO, 2008). Todo enunciado
espera resposta, inclusive os enunciados oficiais. Nesse sentido, não nos furtamos, como
profissionais da educação e como pesquisadores, de colocar nosso posicionamento diante dos rumos
da alfabetização em nosso País. Assumimos, reconhecemos e assinamos nossas enunciações. Com
efeito, o diálogo com Bakhtin pode potencializar e fortalecer as pesquisas documentais e nos mostra
outro modo de produzir pesquisa científica, por meio do dialogismo e do respeito ao outro, sem nos
eximirmos de nosso lugar.

REFERÊNCIAS

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Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015.
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BAKHTIN, M.; VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.

HETEROCIÊNCIA
315

CÔCO, D. Avaliação externa da alfabetização: o PAEBES-ALFA no Espírito Santo. 2014. 404 f. Tese
(Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.
CORNÉLIO, S. D. V. Perspectiva do letramento: mudanças e permanências nos livros didáticos de
alfabetização. 2015. 266 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2015.
DIAS, F. P. de O. O Bloco Único no Município da Serra: contribuições à História e à Política da Alfabetização (1995
a 2003). 2013. 184 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013.
ENDLICH, A. P. R. Diálogos sobre a alfabetização, a leitura e a escrita no Programa Provinha
Brasil. 2014. 184 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2014.
SÁ-SILVA, J. R.; ALMEIDA, C. D. de; GUINDANI, J. F. Pesquisa documental: pistas teóricas e
metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, Rio Grande do Sul, n. 1, p. 1-14,
2009. Disponível em<https://www.rbhcs.com/ rbhcs/article/view/6/pdf>. Acesso em: 02 fev. 2016.
STIEG, V. Propostas e práticas de alfabetização em uma turma do segundo ano do ensino
fundamental no município de Vila Velha/ES. 2012. 311 f. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
316

O ENUNCIADO COMO Palavras-Chave:

RECONHECIMENTO DO
SER
DINIZ, Magda Renata Marques 3

MELO JÚNIOR, Orison Marden Bandeira de4

1. ENUNCIADO: uma via de mão dupla

P
ara uma compreensão da língua e de sua constituição a partir
de uma concepção dialógica, é de suma importância
reconhecer que a sua “realidade efetiva” é “o acontecimento
social da interação discursiva que ocorre por meio de um ou de
vários enunciados” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 242). Vale ressaltar que o
conceito de enunciado, apesar de diferir do conceito de oração, que
é definida como “unidade da língua” (BAKHTIN, 2016a, p. 44) enquanto
sistema (objeto da linguística), não descarta os elementos da sua
materialidade, visto que as formas sintáticas “são as que mais se
aproximam das formas concretas do enunciado” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 242). É por essa razão que
Voloshinov (1983a), em seu ensaio The Construction of the Utterance [A construção do Enunciado], ao
explicar como um enunciado da vida cotidiana se contitui, asserta que ele é composto de elementos
verbais (a escolha lexical, a ordem dessas palavras e a entonação) e não verbais [a audiência (os
interlocutores reais ou pressupostos) e a situação (o tempo e o lugar, o tema e a avaliação dos
interlocutores)].
Por outro lado, somente a interpretação sintática, por mais estreita que esteja diante das
condições reais da fala, não satisfaz o entendimento real do enunciado. Para Bakhtin (2016b, p. 93),
“[o] objeto da linguística é apenas o material, apenas o meio de comunicação discursiva mas não a

3 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:
magdarmd@gmail.com.
4
Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Prof. Adjunto do Departamento de
Linguas e Literaturas Estrangeiras Modernas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: junori36@cchla.ufrn.br.

HETEROCIÊNCIA
317

própria comunicação discursiva, não o enunciado de verdade, nem as relações entre eles (dialógicas),
nem as formas da comunicação, nem os gêneros do discurso”. Buscamos, pois, compreender o
enunciado a partir de quem é o sujeito que fala.
Sendo o enunciado a “unidade real da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2016a, p. 22), a
análise deste, apesar de não descartar a análise dos elementos puramente linguísticos [a parte verbal
do próprio enunciado] (BAKHTN, 2010; VOLOSHINOV, 1983b), “não pode ser feita dentro dos limites da
linguística do sistema” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 357-358), por meio de uma abstração, diante de um
objetivismo abstrato. Para o enunciado, são apresentadas três características: alternância dos
sujeitos falantes; conclusibilidade garantindo a ação responsiva e estabelecendo relações tais como
de perguntar, objetar, aceitar e ordenar; escolha de um gênero discursivo para representar o dizer
(GRUPO DE ESTUDOS DOS GÊNEROS DO DISCURSO, 2009).
A partir dessa concepção de enunciado, Brait, em Análise e teoria do discurso (2010, p. 13-14),
explica que um trabalho analítico e metodológico deve

[...] esmiuçar campos semânticos, descrever e analisar micro e macro-organizações sintáticas,


reconhecer, recuperar e interpretar marcas e articulações enunciativas que caracterizam o(s)
discurso(s) e indicam sua heterogeneidade constitutiva, assim como a dos sujeitos aí instalados.E mais
ainda: ultrapassando a necessária análise dessa ‘materialidade lingüística’, reconhecer o gênero a
que pertencem os textos e os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades
em que esses discursos se inserem e, a partir desse diálogo com o objeto de análise, chegar
ao inusitado de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar ativamente de
esferas de produção, circulação e recepção, encontrando sua identidade nas relações dialógicas
estabelecidas com outros discursos, com outros sujeitos.

Dessa forma, os enunciados estão relacionados sempre com um tipo de atividade em que os
participantes estão envolvidos e com os gêneros do discurso, “que são tão heterogêneos e
multiformes como são as nossas práticas sociais” (ALVES, 2008, p. 139), servindo como uma unidade
de classificação: “reunir entes diferentes com base em traços comuns” (FARACO, 2009, p. 123). Desde
sempre porque falamos situados, “nossos enunciados (orais e escritos) têm [...] conteúdo temático,
organização composicional e estilo próprios correlacionados às condições específicos e às finalidades
de cada esfera de atividade” (FARACO, 2009, p. 126). Para Grillo (2006, p. 147), o conceito de esfera
constitui-se em uma “importante alternativa para pensar as especificidades das produções
ideológicas (obras literárias, artigos científicos, reportagens de jornal, livro didático, etc.) sem cair na
visão imanente da obra de arte do formalismo nem no determinismo do marxismo ortodoxo”.
Com base nessa breve discussão sobre o conceito de enunciado e de sua composição, bem
como do processo de compreensão ativa e análise dialógica de enunciados, este trabalho objetiva
analisar a fala de Mirian5, participante do Promil, sobre o “ser” mulher. Para melhor contextualizar o
estudo, faremos, em primeiro lugar, um breve registo sobre o Promil; posteriormente,

5
De acordo com o termo de consentimento livre e esclarecido – documento que autoriza a publicação do enunciado–, expomos o nome real da
participante.

HETEROCIÊNCIA
318

apresentaremos, de forma sucinta, a participante entrevistada, para, por fim, analisarmos as


respostas por ela dadas a duas perguntas: O que é que é ser mulher? e O que é mais importante na
vida de uma mulher?

1.1 Um brevíssimo registro sobre o Programa Mulheres Mil

Por entendermos que uma dada situação e um dado auditório, no caso, pesquisadora e alunas,
determina o enunciado no sentido geral da intervenção linguística, do tema e da entonação, a escolha
das palavras e a sua disposição(VOLOSHONOV, 1983b), começamos nossa conversa por meio da
apresentação do cronotopo de nossa pesquisa.
Tendo o pescado e o rejeito de pesca como presentes naturais à região, os cursos
autorizados pelo Governo Federal e realizados no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Rio Grande do Norte nos anos de 2012, 2013 e 2015 foram: Gastronomia do Pescado; Operador de
Beneficiamento de Pescado; e Artesanato com Rejeito de Pesca. Assim, os cursos funcionam como
uma materialização de ações do Programa Mulheres Mil: Educação, Cidadania e Desenvolvimento
Sustentável, doravante Promil6.
No Brasil, esse modelo de programa foi estruturado em torno dos eixos Educação, Cidadania e
Desenvolvimento Sustentável, a partir de 2007, com o objetivo de promover a inclusão social e
econômica de mulheres desfavorecidas das Regiões Nordeste e Norte do Brasil, permitindo-lhes
elevar a escolaridade das cursistas por meio do estabelecimento de parcerias entre instituições
educativas.

1.2 Uma participante do Promil

Compreender quem são as participantes desse programa é considerar, sobremaneira, que


nosso objeto de estudo é o ser “expressivo e falante”, que “nunca coincide consigo mesmo e por isso
é inesgotável em seu sentido e significado” (BAKHTIN, 2010, p. 395). Diante disso, qualquer formulação
teórica que pretenda compreender o ser em essência e apresentar as orientações para sua vida terá
como princípio o mundo da vida, porque é nesse espaço que os seres realizam o ato ético cuja ação
humana é concreta, responsável e posicionada, emergindo em relações intersubjetivas; é nesse
espaço que os seres “vivem, criam, conhecem, contemplam e morrem” (OLIVEIRA, 2012, p. 269).
De acordo com uma entrevista realizada no período de janeiro de 2016 a janeiro de 2017 no
município de Macau, onde as participantes estudavam, a maioria afirmou ser marisqueira de profissão

6Esse programa, instituído pela portaria do Ministério da Educação de nº 1.015, de 21 de julho de 2011, insere-se no Plano Brasil sem Miséria e
integra um conjunto de ações que consolidam políticas públicas governamentais de inclusão educacional, social e produtiva de mulheres em
situação de vulnerabilidade social. Convém explicitar que o referido programa foi concebido a partir dos conhecimentos difundidos pelos
Community Colleges Canadenses, os quais se alicerçam em experiências de promoção da equidade social, advindas de ações desenvolvidas
com populações desfavorecidas no Canadá, ao longo de dez anos. Nesse país, o sistema denominado ARAP (Avaliação e Reconhecimento de
Aprendizagem Prévia) incide na certificação das aprendizagens formais ou não formais das participantes, propiciando qualificação em diversas
áreas profissionais. Disponível em: <http://mulheresmil.mec.gov.br>. Acesso em: 03 out. 2017.

HETEROCIÊNCIA
319

e ser solteira, porém cabe uma ressalva: considerava-se solteira perante seus documentos, mas
casada diante da sociedade.
Para esta nossa conversa, trazemos o enunciado de Mirian no intuito de conhecermos melhor
essa participante.

2. O ENUNCIADO COMO RECONHECIMENTO DO SER MULHER

Por estarmos diante de um campo bastante complexo, visto que o sujeito ativo “intui sua
unicidade, que se percebe único, que reconhece estar ocupando um lugar único que jamais foi
ocupado por alguém e que não pode ser ocupado por nenhum outro” (FARACO, 2009, p. 21),
começamos a conversar com a participante Mirian, de 33 anos, que inicialmente foi marisqueira, tem
uma filha e estudou até o ensino fundamental (incompleto), a fim de compreender como pensa sobre a
questão O que é que é ser mulher?

É um pouco/pesada, é sobrecarregada, é muita exigência, sabe, do lado filho, do esposo, entendeu? Você
tem que ser dona de casa, você tem que ser mãe, você tem que ser amante e num pode/ se faltar um
desses já vem reclamação, já vem, entendeu? É muito/ às vezes eu me sinto muito sobrecarregada,
apesar de num trabalhar fora. Eu fico imaginando como seria se eu trabalhasse fora, qu’eu tenho muita
vontade, mas nunca tive oportunidade.

Poderíamos trazer duas grandes temáticas a partir do enunciado de Mirian: autonomia do ser
e trabalho. O contexto mais amplo desses temas dialoga com as funções sociais indicadas para serem
exercidas pelas mulheres, e não pelos homens ou vice-versa. Por conseguinte, para Bakhtin (2010b, p.
366, grifo do autor), “a distância é a alavanca mais poderosa da compreensão” e “sua autêntica
imagem externa pode ser vista e entendida apenas por outras pessoas, graças à distancia espacial e
ao fato de serem outras”.
Ao tentar definir O que é que é ser mulher?, Mirian traz a presença da voz do outro na
constituição de seu discurso. Ela se autodescreve a partir do olhar do outro(“é muita exigência”;
“você tem que ser...”), como os valores são concebidos na sociedade em que vive (“se faltar um
desses já vem reclamação”), dando o acabamento a partir dessa posição axiológica, na interação com
a pesquisadora no momento da entrevista/conversa.
Esse momento está sendo visto como a exotopia do olhar, na acepção de se situar em lugar
exterior como uma mão dupla, pois essa mulher assumiu a responsabilidade de responder e também a
obrigação de assumir suas responsabilidades frente ao discurso dos outros. Conforme reitera
Amorim (2006,p. 97), o “outro que está de fora é quem pode dar uma imagem acabada de mim”.
Sobre a questão O que é mais importante na vida de uma mulher?

Eu acho que é um conjunto entendeu, pra ela se sentir feliz ela tem que se sentir realizada tanto
profissionalmente como assim se sentir amada também é muito importante. Pra gente, pra nossa
autoestima é muito importante quando você sente que aquela pessoa lhe dá valor, aquela pessoa lhe

HETEROCIÊNCIA
320

ama, entendeu? Tanto os seus filho como o seu esposo e, às vezes, eu não me sinto assim. Mas sou feliz.
Apesar dos pesares, eu sou feliz porque eu sinto qu’eu atingi algum/ assim uma meta da minha vida/ foi
isso/ dar uma família a minha filha, que eu não tive. Como pobe, graças a Deus, num falta nada a ela,
coisas qu’eu passei e ela nunca chegou a passar. Hoje eu posso dizer isso, entendeu? Então, isso pra
mim é uma realização. Na minha vida, muito importante, muito marcante pra mim, eu poder dar a minha
filha o pouco qu’eu/ eu tive muito pouco, mas ainda poder dar coisas melhores, qu’eu num tive pra ela.

O ser de linguagem carece e constitui-se desde sempre de relações com os outros e com as
coisas da vida, tendo consciência do que enuncia por meio da e na linguagem. Ademais, a
interpretação juntamente com a valoração dos enunciados vão além de simples decodificação do
alfabeto e entendimento das estruturas fixas da língua. Nessa ideia, Mirian ao fazer o reforço com as
expressões: “graças a Deus”, “Hoje eu posso dizer isso”, “Então, isso pra mim é uma realização”, “Na
minha vida, muito importante, muito marcante pra mim, eu poder dar a minha filha o pouco eu/ eu tive
muito pouco, mas ainda poder dar coisas melhores, qu’eu num tive pra ela” representa o quanto as
necessidades básicas como alimentação e moradia são valoradas por essa pessoa, e que não
puderam ser usufruídas, na infância, por Mirian.
Sua responsividade é exercida a partir do momento em que sua unicidade se faz consciente e
é compreendido o poder de ação, do agir, do ato não indiferente. Hoje, Mirian pode oportunizar uma
vida mais confortável em termos financeiros a sua filha do que seus pais puderam lhe oferecer.
Em ação responsiva, o eu não vive só para si, e a relação com o outro torna-se precípua: “o eu
e o outro são, cada um, um universo de valores” (FARACO, 2009, p. 21). Em razão disso, ao
correlacionar esses universos, quadros axiológicos distintos irão sendo formados, e essas distinções,
constitutivas de nossos atos, de nossos enunciados, marcarão que o ser da linguagem é
definitivamente único e singular, por excelência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por compreendermos a linguagem como um acontecimento social de interação (VOLÓCHINOV,


2017), sendo a linguagem verbal vista como uma prática sociocultural, concretizando-se em diferentes
gêneros do discurso, atravessada por posições axiológicas, e o sujeito – enunciador, constituído
socialmente a partir da interação verbal na relação com o outro e que se apropria de sua língua –,
como aquele que a atualiza em seu dizer, organiza seus pensamentos e transmite suas ideias a outros
sujeitos, foi possivel analisar as respostas de Mirian, que muito mais do que oraçãoes são
posicionamentos socioideológicos do que é ser mulher no meio em que está inserida. Não podemos
esquecer, ainda, que o enunciado suscita uma resposta, um posicionamento, uma avaliação e até a
possibilidade de ressignificar muitas coisas que aconteceram na vida. Por fim, o ato discursivo
precisa ser contextualizado e analisável somente no conjunto do todo acabado, por ser um
acontecimento plenamente social (VOLÓCHINOV, 2017).

HETEROCIÊNCIA
321

REFERÊNCIAS

ALVES, M. P. C. O diário de leitura e o exercício da contrapalavra: a escrita de professores em formação inicial. In:
ZOZZOLI, R. M. D.; OLIVEIRA, M. B. F. de (Org.). Leitura, escrita e ensino. Maceió: UFAL, 2008. p. 137-156.
AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p.
95-114.
BAKHTIN, M. M. Metodologia das Ciencias Humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 393-410.
BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização e tradução de Paulo
Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. p. 11-69.
BAKHTIN, M. M. O texto na lnguística, na filologia e em outras ciências hmanas. In: BAKHTIN, M. M. Os gêneros do
discurso. Organização e tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016b. p. 71-107.
BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010.
p. 9-31.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
GRILLO, S. V. de C. Esfera e campo. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p.
133-160.
GRUPO DE ESTUDOS DOS GÊNEROS DO DISCURSO. Palavras e contrapalavras: conceitos, categorias e noções de
Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
OLIVEIRA, M. B. F. Um olhar bakhtiniano sobre a pesquisa nos estudos do discurso. Filologia e Linguística Portuguesa,
n. 14. v. 2, p. 265-284, 2012.
VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem (1929). Trad. Sheila Grillo; E. Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
VOLOSHINOV, V. N. The Construction of the Utterance. In: SHUKMAN, Ann (Ed.). Bakhtin School Papers. Oxford: RPT
Publications, 1983a. p. 114-138.
VOLOSHINOV, V. N. Discourse in Life and Discourse in Poetry. In: SHUKMAN, Ann (Ed.). Bakhtin School Papers. Oxford:
RPT Publications, 1983b. p. 05-30.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
322

OS EFEITOS DE SENTIDOS DA Este texto traz para o campo de discussão as


práticas pedagógicas das professoras que iniciam
nas turmas de alfabetização e vão sendo afetadas

ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA pela mediação das orientações pedagógicas,


considerando as enunciações instauradas nas
vivências com as professoras nos encontros de

NAS PRÁTICAS DE ENSINO DE orientação como lugar de produção de sentidos,


assumindo as perspectivas de Vygotsky (2000) que
o homem é sujeito histórico e cultural que se

PROFESSORAS constitui nas relações entre sujeitos, e Bakhtin


(1999 e 2003) de que os enunciados postos em
circulação são atravessados por enunciados

ALFABETIZADORAS alheios e, entendendo a dinâmica da interação


verbal entre interlocutores como espaço de
produção de experiências que nos constituem.

INICIANTES7
Palavras-Chave: Orientação Pedagógica.
ESTANISLAU, Daniele Aparecida Biondo 8
Alfabetização. Trabalho Docente.

CRISTOFOLETI, Rita de Cassia 9

INTRODUÇÃO

E
ste texto é fruto de um projeto de mestrado vinculado à linha de pesquisa “Linguagem e Arte em
Educação”, do Grupo Alfabetização, Leitura e Escrita-Trabalho Docente na Formação Inicial de
Professores – ALLE-AULA da Universidade Estadual de Campinas, cadastrado no Diretório dos
Grupos de Pesquisa do CNPq e, mais especificamente, a um projeto financiado pelo CNPq - Processo
nº 401404/2016-1 (Projeto-Mãe), que busca compreender aspectos relativos ao trabalho a favor da
formação de leitores na escola básica.
A discussão apresentada neste artigo emerge das muitas inquietações suscitadas na escuta
atenta acerca da prática de professoras que iniciam a docência nas turmas de alfabetização. Para
compreender, nos espaços construídos pela mediação da linguagem, indícios das angústias que as
acompanham no trabalho docente, colocamo-nos marcadas pelos lugares de alunas, professoras,
orientadoras e pesquisadoras que nos constituem.
Estar próxima das condições de produção imediata e histórica de nossos interlocutores e das
formas de circulação do sentido da alfabetização no contexto da escola básica, abre campo para um

7
Esse trabalho foi escrito em parceria com a professora Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto, doutora em Educação. Professora da
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte – DELART. E-mail:
cbometto@yahoo.com.br
8 Pedagoga pós-graduada em neuropsicologia. Orientadora Pedagógica na escola CNEC-Capivari e professora efetiva da rede municipal de

ensino de Capivari S/P. E-mail:danieleestanislau@gmail.com


9 Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Campus São Mateus. Departamento de Educação e

Ciências Humanas. E-mail: ricacri@uol.com.br/rita.cristofoleti@ufes.br

HETEROCIÊNCIA
323

estudo que temos abordado diariamente, fio a fio: o “espaço da orientadora pedagógica” nas relações
estabelecidas com as professoras alfabetizadoras no início da docência.
Vivenciando a experiência de orientar a prática de professores alfabetizadores, os momentos
de escuta foram nos revelando o quê as professoras buscam na relação estabelecida entre
orientador e professor; o que esperam que compartilhemos com elas marcadas pelas nossas
vivências, vistas por elas, como de boas práticas. Sobre isso, Cortella discorre que:

Há um ditado Chinês que diz que, se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando
um pão, e, ao se encontrarem, eles trocam os pães, cada homem vai embora com um, porém, se dois
homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando uma ideia, e, ao se encontrarem, eles
trocam as ideias, cada homem vai embora com duas. Quem sabe é esse mesmo o sentido do nosso
fazer, repartir ideias para todos terem pão... (2006, p.159).

E perdidas entre documentos, cronogramas, papéis, apostilas, fichas individuais de alunos,


avaliações, prazos, crianças desejosas por aprender a ler e escrever, as professoras, quando
conosco encontram, buscam em nossas “cestas” - como uma cesta de pães - ideias para serem
compartilhadas, afim de que todas tenhamos “pães”.
Discutir a prática da professora alfabetizadora iniciante, demanda compreender que:

[...] conhecer o outro não é apenas sabe-lo outro. O conhecimento do outro se dá por meio do
estreitamento dos vínculos entre o eu e o outro. O estreitamento das relações entre sujeitos se produz
de modo mais profícuo por meio da relação intencional de mutualidade, reciprocidade e da
interpenetração de seus universos subjetivos distintos, por meio da compenetração possível, a partir do
conhecimento que o eu possui em relação ao outro e vice-versa. (MAGALHÃES; OLIVEIRA, 2011, p. 108).

Nesse sentido, assumimos a perspectiva histórico-cultural de desenvolvimento humano


elaborada por Vygotsky (2000) e a perspectiva enunciativo-discursiva desenvolvida por Bakhtin (1999
e 2003). Embora se inscrevam em distintos campos do conhecimento, - Vygotsky na psicologia e
Bakhtin em estudos da linguagem -, suas referências aproximam-se ao abordar em suas teorias os
processos de constituição humana e de produção de sentidos no âmbito da constituição histórico-
cultural dos sujeitos humanos centrado e mediado pela linguagem. Alinhar-se a essa forma de
abordagem possibilita o pesquisador estar inserido no dinamismo da realidade de seres humanos
distintos, (sobre)vivendo em um mundo de relações marcadas pela disputa de poderes, pela tensão e
pela constante negociação de sentidos.
Estar atenta para as enunciações instauradas nas vivências com os professores nos
encontros de orientação, para buscar indícios no que concerne ao movimento do professor
alfabetizador que se encontra em processo de formação e que ao mesmo tempo são responsáveis
pela formação de alunos leitores e escritores na escola básica trazem algumas indagações para o
campo de discussão: Como os sentidos produzidos pelos momentos de orientação pedagógica afetam

HETEROCIÊNCIA
324

as ações dos professores, suas expectativas, valores e princípios que norteiam sua atividade como
alfabetizadores?
Bakhtin nos ensina a olhar para as enunciações desses sujeitos concretos - professores e
crianças - com suas vivências, contradições, desejos e pensamentos sobre a linguagem oral e escrita,
que emergem nos e dos contextos vividos porque é na interação verbal entre os sujeitos que nascem
os enunciados. Uma vez que “a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um
grupo organizado no curso de suas relações sociais” (BAKHTIN, 1999, p. 35), o enunciado nunca é
neutro, ele é atravessado pelas muitas vozes que nos constituem e nele devem ser buscados seus
sentidos, que são sempre sentidos entre enunciados.
Nessa perspectiva, aprender a falar é aprender a construir enunciações. As enunciações são
de natureza social,

Na realidade, o ato de fala, ou mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma
ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das
condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social. (BAKHTIN, 1999, p. 109).

Assim, o único meio pelo qual as palavras podem significar é serem entendidas. E o único meio
pelo qual são entendidas é o constituído por locutores particulares e por ouvintes, que também são
locutores, em situações particulares.
A palavra, fenômeno ideológico por natureza, está presente em todos os atos de compreensão
e “serve de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN, 1999, p.41). Ela
preexiste a cada ser humano, individualmente considerado, mediatiza sua apreensão de eventos do
real e é apropriada e elaborada ativamente no fluxo das relações sociais.

1. DESAFIOS E DIFICULDADES ENFRENTADAS PELO PROFESSOR INICIANTE EM TURMA DE


ALFABETIZAÇÃO

A palavra “alfabetização” soa assustadoramente quando, já com os pés na sala de aula, nos
damos conta que gostar de criança é preciso, mas não basta na docência. Na lida diária da sala de
aula somos atormentadas pelas perguntas que não se calam “Mas como se ensina a ler e a escrever?
O que fazer? Como fazer? Por que as crianças não aprendem? Com quem podemos dividir nossas
dúvidas? A quem recorrer?
A memória referente às angústias da professora iniciante que fomos tomam nossos
pensamentos justamente na conversa com as professoras iniciantes, que assumiram, pela primeira
vez, uma turma de alfabetização. Nessas relações compreendemos que outros sentidos acerca da
nossa posição enquanto pesquisadoras são colocados em circulação.
O início da carreira docente é marcado pela inserção em um ambiente desconhecido,
momento que pode ser decisivo para que o professor enfrente as dificuldades e busque superar suas

HETEROCIÊNCIA
325

limitações com determinação, ou que simplesmente abandone a profissão ao desvelar os dissabores


imbricados na docência.
Vivenciando o ambiente escolar, e tendo a oportunidade de observar a prática das
professoras iniciantes em turmas de alfabetização, fica evidente o jogo de poder que se estabelece no
ambiente escolar. Direção e coordenação não realiza um acompanhamento pedagógico sistemático,
uma vez que tanto estão envolvidas com questões administrativas e burocráticas urgentes quanto se
espera que o professor domine todos os conhecimentos para seu ofício. Os colegas de trabalho, na
maioria das vezes, olham com preconceito para o professor iniciante, tentando julgar se ele será um
professor ativo, com novas ideias, forçando os demais a saírem da zona de conforto, ou se ele não
dará conta de alfabetizar a turma que lhe fora atribuída. Nesse contexto, o professor iniciante quase
sempre se cala.
No entanto, a docência perpassa o domínio dos conteúdos a serem ensinados, o domínio das
técnicas estudadas na graduação para alfabetizar, uma vez que, para além dessas preocupações que
são inerente à profissão, há toda uma preocupão de ordem subjetiva, de produção de sentido sobre o
que é ocupar efetivamente o lugar do professor alfabetizador, sobre o que é exercer, efetivamente, o
ofício de ser professor alfabetizador.
A oportunidade de compartilhar as experiências vividas no início da carreira com as colegas,
mas também com as pesquisadoras interessadas nesse modo de constituição estabelecem um vínculo
de confiança, momentos nos quais temos acesso ao discurso desses profissionais que necessitam de
escuta, considerando que o lugar social de onde olhamos é constitutivo dos significados e sentidos
atribuídos às essas relações.

2. CONTRIBUIÇÕES DE VYGOTSKY E BAKHTIN PARA A DISCUSSÃO

Na perspectiva teórica de Vygotsky (2000), o homem é um ser histórico-cultural, que se


constitui através de interações com o meio, com os indivíduos que convive, com signos e
instrumentos. Os signos são os mediadores entre os homens na medida que representa, evoca ou
torna presente o que está ausente, sendo a palavra um exemplo deles. Através das palavras Vygotsky
(2000) encontrou a unidade de análise do pensamento e da fala, os significados das palavras são
mutáveis no decorrer das relações concretas de vida social. Considera-se instrumento “tudo aquilo
que se interpõe entre o homem e o ambiente, modificando suas formas de ação [...] os instrumentos
acabam transformando o próprio comportamento humano.” (FONTANA; CRUZ, 1997, p.58), nesse
sentido, ao transformar a natureza, o homem transforma a si mesmo e a relação instaurada com o
meio social vai se produzindo historicamente, sendo um ciclo de constante transformação e
ressignificação das experiências vividas por cada indivíduo na dinâmica da vida social.
Nesse constante movimento de constituição humana, Bakhtin (2003) destaca que ela não
ocorre de modo natural e nem individual, mas origina-se e se desenvolve nas relações sociais
instauradas e mediadas pela linguagem. Nesse olhar, a linguagem em circulação nas relações vividas

HETEROCIÊNCIA
326

no cotidiano da escola e nos momentos destinados às orientações dos professores, é carregada de


sentidos e significados que vão se produzindo nas interações entre esses sujeitos, que mediam
diretamente a constituição dos interlocutores envolvidos.
Para Bakhtin (1999, p.113) “a palavra é uma espécie de ponte, lançada entre mim e os outros.
Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor”, a palavra
materializa e mediatiza os enunciados, a palavra é arena de encontro e confronto entre os pontos de
vista, uma vez que se posiciona sempre na relação entre o eu e o outro. “É a palavra que carrega de
um para o outro o ponto de vista de cada um, e que vai constituir o outro, constituindo [o eu]” (GEGe,
2009, p. 84. Grifo dos autores).
Na linguagem em funcionamento, a palavra, que é uma unidade da língua e, como tal, repetível,
dialoga com outras palavras, constitui-se a partir delas. Nos enunciados, que são a unidade da
linguagem em funcionamento, a palavra assume uma expressividade entonativa. Seus sentidos têm
relação com o momento e a situação dados e também com a história em que se inscrevem; têm
relação com os sujeitos envolvidos, mediata e imediatamente, na dinâmica interacional em curso; têm
relação com os lugares sociais por eles ocupados, com suas experiências, com suas apreciações e
juízos.
Bakhtin (apud BARROS 1997, p. 30) menciona que “a alteridade define o ser humano, pois o
outro é imprescindível para sua concepção: é impossível pensar o homem fora das relações que o
ligam ao outro” e, Magalhães e Oliveira (2011, p.105) discorrem que “é na relação com a alteridade que
os indivíduos se constituem, em um processo que não surge de suas próprias consciências, mas de
relações sócio-historicamente situados”.
Nesse sentido, entendendo que os momentos de orientação pedagógica só são possíveis na
relação e interlocução com o outro, a compreensão e produção de sentido depende e perpassa pelas
réplicas produzidas nesses momentos – e também nas salas de aula – assim como as
“contrapalavras” enunciadas pelos sujeitos dessas relações. Como descrito por Bakhtin,
“compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra” (1999, p.132) que por sua vez, afeta as
significações pessoais de cada sujeito, aos quais essa atividade ganha sentido.

Todo enunciado constitui-se a partir de outro enunciado, é uma réplica a outro enunciado. Portanto, nele
ouvem-se sempre, ao menos, duas vozes. Mesmo que elas não se manifestem no fio do discurso, estão aí
presentes. Um enunciado é sempre heterogêneo, pois ele revela duas posições, a sua e aquela em
oposição à qual ele se constrói. (FIORIN, 2006, p. 24).

Essas réplicas são materializadas em palavras, em gestos, em silêncios, em aceitação, nas


recusas, nos modos de agir... Nessa ótica, é possível explorar a dinâmica nas interações e a
construção dos “simulacros intersubjetivos”, sobretudo quando se trata do contexto extra-verbal dos
enunciados, o enunciado nunca é neutro, nele os valores podem ser percebidos por meio das
expressões e da entonação (BARROS, 1997).

HETEROCIÊNCIA
327

Aproximando tais perspectivas, compreendemos que a pesquisa em ciências humanas


demanda estabelecer uma relação de mutualidade e respeito entre os sujeitos envolvidos, pensando
nos desdobramentos da pesquisa, e em como damos a ver os dados levantados de forma respeitosa
com o outro, sobre isso, Magalhães e Oliveira discorrem que realizar pesquisa na perspectiva
enunciativo-discursiva,

[...] significa fazer escolhas metodológicas no desenho e na condução de pesquisas que possibilitem o
desenvolvimento de relações de colaboração crítica entre os participantes, o que só se faz viável e
profícuo à medida que o envolvimento entre eles se constrói por meio de uma relação de alteridade,
marcada por confiança e respeito. (2011, p.110)

A discussão caminha também pela formação docente, uma vez que os encontros de orientação
pedagógica se constituem como espaço dialógico; estar inserida em um contexto em que a formação
de professores e o trabalho docente são entendidos, em uma perspectiva dialógica significa
considerar que

[...] toda pesquisa configura uma história – a sua história singular -, que é relativa a determinadas
condições de produção e a um tempo histórico do qual o próprio pesquisador não se exclui. Suas
verdades não são prontas e acabadas, mas verdades datadas e situadas, verdades produzidas em um
processo intersubjetivo, cuja características se aproximam do funcionamento de um caleidoscópio, cujo
segredo está no movimento. (FONTANA, s/d, p.05)

Nessa ótica, há de se considerar o olhar do professor que inicia na turma de alfabetização,


suas condições de produção imediatas e históricas, uma vez que, no ambiente escolar é o professor
que direciona o trabalho pedagógico partindo dos pressupostos que ele acredita, pois as práticas por
ele adotadas impulsionam (ou não) a aprendizagem da linguagem escrita permeada pelos sentidos,
pressupostos esses que poderão ser colocados em cheque ou poderão convergir nos momentos com
a orientadora pedagógica, diálogos que serão constitutivos e formativos para os professores
envolvidos na pesquisa e para a orientadora pedagógica, que também aprende e se constitui na
relação, na qual os sentidos de sua atuação irão tomando forma.
Acerca da formação de professores, Cristofoleti (2015, p. 17) defende e se alinha ao grupo de
trabalhos produzidos denominados de não-hegemônicos que,

[...] entendendo a formação de professores como um processo de produção de sentidos, que é


instaurado, materializado, constituído e mediado pela linguagem, [...]em favor da apreensão dos sentidos
da escola, da docência, da formação [...]que efetivamente circulam e são elaborados nas interlocuções
produzidas nas relações de formação, na especificidade de suas condições de materialização.

Desta perspectiva semiótica, os sentidos produzidos e a formação docente, se desenham


dentro dos limites possíveis às interações verbais. Nesse sentido, compreendemos a formação de
professores como um processo de produção de sentidos entre enunciados, que se instauram e se

HETEROCIÊNCIA
328

materializam pela linguagem, na dialogia, na alteridade, nas condições imediatas e mais amplas de
produção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

É comum, no trabalho diário da sala de aula surgirem inquietações como: “Mas como se ensina
a ler e a escrever? O que fazer? Como fazer? Por que as crianças não aprendem?, e longe de querer
respostas prontas à estas perguntas, os momentos de conversas nas orientações pedagógicas nos
permite ressignificar nossas práticas, construir novos sentidos e pensar nas múltiplas possibilidades
de consituição do ser professor em formação na atividade do trabalho docente.
A discussão da prática de professores iniciantes em turmas de alfabetização na ótica das
perspectivas de Vygosty e Bakhtin, permite considerar todos os envolvidos como sujeitos da ação,
situados em um tempo e espaço sócio-histórico, que constituem-se na e pela linguagem, em uma
relação dialógica e polifônica, marcada pela alteridade.
Nesse modo de olhar, os diálogos partilhados nos momentos de orientação vão tomando
sentido pelas réplicas produzidas, pelas muitas vozes que se fazem presentes nos discursos, que
afetam os modos de elaborações da profissionalidade.
Assim, os sentidos sobre a escola, sobre suas práticas, sua organização, de que os sujeitos se
apropriam e singularizam como próprios, são construídos continuamente nas relações sociais
produzidas na própria escola e naquelas em que a escola é tematizada, seja nas conversas cotidianas,
nas teorizações estudadas, nos espaços de orientação pedagógica, nos cursos de formação
continuada. É nas condições objetivas das relações sociais, que são sempre relações de poder,
marcadas pelas múltiplas pertenças – pertença de classe social, pertença de gênero, raça, geração
etc. – e lugares sociais, distintos e assimétricos, ocupados pelos interlocutores, que os sentidos da
escola, da docência, da democratização, da participação, da qualidade do ensino, da autonomia, da
identidade, centrais nas teorizações hegemônicas acerca da profissionalidade docente, vão sendo
apropriados e elaborados, tornando-se parte daqueles que os enunciam.
Os sentidos elaborados e a formação docente, portanto, constroem-se dentro dos limites
possíveis às interações verbais.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução e introdução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
BAKHTIN, Mikhail. (VOLOCHINOV). Marxismo e Filosofia da Linguagem. 9.ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às teorias do discurso. In: BRAIT, Beth. (Org.) Bakhtin,
dialogismo e construção do sentido. São Paulo: Unicamp, 1997.
CORTELLA, Mario Sérgio. A escola e o conhecimento - fundamentos epistemológicos e políticos. São Paulo, Cortez:
Instituto Paulo Freire, 2006. (Este livro corresponde à Tese de Doutorado do autor.

HETEROCIÊNCIA
329

CRISTOFOLETI, Rita de Cássia. A supervisão de estágio: interlocuções sobre a inserção de professores em formação
nas escolas de Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Campinas, 2015. Tese (Doutorado).
Universidade Estadual de Campinas.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
FONTANA, Roseli. CRUZ. Nazaré. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo: Atual, 1997.
FONTANA, Roseli Aparecida Cação. Contribuições da abordagem enunciativa de Bakhtin para a compreensão das
elaborações dos sentidos da docência nos processos de formação inicial de professores. Mímeo, s/d.
GRUPO DE ESTUDOS DOS GÊNEROS DO DISCURSO - GEGe - UFSCAR. Palavras e contrapalavras: Glossariando
conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
MAGALHAES, Maria Cecília Camargo; OLIVEIRA, Wellington de. Vygotsky e Bakhtin/Volochinov: dialogia e alteridade.
Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n.5, p.103-115, 1º semestre 2011. Acesso em
http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/viewFile/4749/5077
VIGOTSKI, Lev Semyonovich. Pensamento e da Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
_____. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
330
George Steiner, em Depois de Babel, enfatiza que o
desvelar dos signos verbais de uma língua por meio

AUTOR, OBRA, LEITOR E de signos verbais de outra língua. Já Bakhtin


postula os não limirtes para um contexto dialógico.
Nesse sentido, pensando a dialogia e os caminhos

TRADUTOR: Mikhail Bakhtin e o


necessários para a transposição de um texto para
outra língua, este artigo aborda algumas
considerações sobre o processo tradução do conto
Retábulo de Santa Joana Carolina, de Osman Lins,
processo de tradução de O Retábulo de para a língua japonesa, a partir do viés dialógico.
Além de discutir algumas interrelações entre o
Santa Joana Carolina, de Osman Lins autor, a obra, o leitor e o tradutor nas etapas que o
processo de tradução exige para construção de um
trabalho literário em outra língua, questões
poéticas em relação ao rigor da escrita osmaniana
também serão debatidas em consonância com o
pensamento de Baktin. Para ele, é necessário que a
FERREIRA, Cacio José 10
linguagem encontre vida no texto traduzido, ou seja,
a alteridade que gera o dialogismo. Portanto, a
tradução é a relação com o outro e com o novo. O
texto traduzido encara um novo cenário cultural e
requer um “renascimento” no lugar de chegada.
INTRODUÇÃO

N
Palavras-Chave: Tradução.Dialogismo. Retábulo de
o texto Metodologia das ciências humanas, no livro Estética da Santa Joana Carolina. Osman Lins. Bakhtin
Criação Verbal, Mikhail Bakhtin postula que “não existe nem a
primeira nem a última, palavra, e não existem fronteiras para
um contexto dialógico” (BAKHTIN, 2003, p. 410). Para reforçar tal assertiva, Bakhtin abraça os
romances de Dostoiévski para criar uma definição do que é o dialogismo. No texto de Dostoiévski, a
alteridade gera o entrelaçamento com o outro. A voz autoritária do autor não é suprema e não há o
apagamento de vozes dos personagens. “Assim, pois, nas obras de Dostoiévski não há um discurso
definitivo, concluído, determinante de uma vez por todas. [...] A palavra do herói e a palavra sobre o
herói são determinadas pela atitude dialógica aberta face a si mesmo e ao outro” (BAKHTIN, 2008, p.
291).
Nesse caminho, pensando a definição de dialogia bakhtiniana, o objetivo desse trabalho é
tentar mostrar pontos de contato entre autor, obra, leitor e tradutor em o Retábulo de Santa Joana
Carolina, de Osman Lins. O conceito de dialogismo será diluido no artigo por meio dos elementos já
mencionados, principalmente a tradução para o japonês 11, explorando os contextos e os embates
sociais que a obra apresenta.
O Retábulo de Santa Joana Carolina, publicado em 1966, é uma das nove narrativas que
compõem Nove, novena, de Osman Lins. O rigor da escrita floresce no conto por meio de uma
estrutura que “se inspira na forma pictórica ou escultórica do retábulo”(FERRAZ, 2016, p.82). Na
narrativa, sacraliza a vontade humana por meio da humildade de Joana Carolina. “O ‘Retábulo’ é uma
relização literária construída exatamente como um grande painel, formado por doze ‘Mistérios’, que

10 Doutorando em Literatura (UnB). Prof. Assistente da Faculdade de Letras da Universidade Federal doAmazonas. E-mail:
caciosan@hotmail.com
11 Tradução realizada por Cacio José Ferreira.

HETEROCIÊNCIA
331

poderiam ser considerados os capítulos da obra, recobrindo a inteira existência de Joana Carolina, do
nascimento à morte”(FERRAZ, 2016, p.82). Os ornamentos que figuram em cada mistério controem
outros mistérios na via dolorosa da vida de Joana, personagem principal. O rigor estético
perfeitamente calculado de Osman Lins cria a poesia que entremeia o texto e transcende a palavra. No
entanto, não é apenas isso. Há uma singularidade que vai além degustação da palavra. O rigor envolto
pela sensiblidade do escritor conduz a uma percepção rítmica inerente a cada discurso. O escritor
“transmuta a carne em verbo, partindo da especificidade das artes visuais e a transformando em
matéria de discurso”(NITRINI, 1987, p.211). Palavras diluidas em micronarrativas e ornamentos
ressoam em forma de poesia que cromatizam o espaço no conto. As cores juntam-se aos
personagens e intensificam ainda mais a sensação poética. Dessa forma, o ritmo dilata a narrativa de
tal maneira que gera na prosa osmaniana uma oralidade poética. A alteridade das vozes permite o
leitor ter as sensações que a personagem Joana exala em seus diversos estágios de vida. Além disso,
tudo tem uma sincronicidade poética. Essa poética não ocorre somente na musicalidade das palavras,
mas em harmonia com a imagem, com a voz, com a força e com a vida simples que constroem as
características de Joana. Além disso, o rigor da escrita poética que abarca a totalidade do conto é
uma característica na escrita de Osman Lins. É uma totalidade que permite a inserção de mais
elementos pelo leitor, mas sem desvirtuar o sentido. Jerusa Ferreira (2009, p. XV), no prefácio de a
Poética do Traduzir, de Henri Meschonnic, amplia ainda mais tal pensamento ao afirmar que “ritmar a
oralidade nos traz a oralidade como característica de uma escrita, realizada em sua plenitude só
através de uma escrita”.
Um intinerário baseado na poesia de Osman Lins em o Retábulo de Santa Joana Carolina é
uma discussão importante, contudo o objetivo desse trabalho é outro. Objetiva elencar os caminhos
utilizados na tradução da narrativa osmaniana pelo viés dialógico. Assim, a tradução no sentido literal
do texto não foi o intuito, mas a tradução que contempla o orginal e o social da língua, além disso,
buscando construir um diálogo com o leitor. Como entender o universo rigorosamente ordenado de o
Rétábulo em língua japonesa? Nesse sentido, o pensamento de Germana Sousa(2014, p.105), ao
abordar quesitos relacionados à tradução do romance Les liaisons dangereuses, de Laclos, ilustra
bem o cuidado do tradutor diante de uma escrita muito bem pensada: “a percepção e compreensão
[...] desse entrelaçamento de vozes narrativas, além do conhecimento mínimo sobre os caminhos
percorridos pela obra na cultura de partida, levam o tradutor e o crítico a executar com maior
habilidade a sua tarefa”. Ainda, de acordo com Sabine Gorovitz(2014, p.172), “cada gênero textual e
seus diversos desafios possuem seus encantos. [...] Outro fator que parece prevalecer é o fato de
traduzir um texto que ainda não foi traduzido para o português, ou seja, o fator funcional da escolha
(prestar um serviço à comunidade)”.
Em Problemas da Poética de Dostoiévski (2010), Bakhtin destaca que as relações dialógicas
entre discursos se realizam por meio das ações humanas, ou seja, a relação com o outro. No caso da
tradução de o Retábulo de Santa Joana Carolina, uma relação com outra língua, outra cultura e por

HETEROCIÊNCIA
332

meio de concessões discursivas possibilitam a recepção pelo leitor japonês. Nesse sentido, Bakhtin
ressalta que

a linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que usam. É precisamente essa comunicação
dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for
o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.) está
impregnada de relações dialógicas (BAKHTIN, 2008, p. 208).

Nessa perspectiva, ao pensar a tradução do Retábulo, já havia um estudo aprofundado da


língua e da cultura japonesa texto pelo tradutor, buscando conhecer a percepção e a compreensão do
texto original e sua possível tradução para o japonês. Nesse sentido, de acordo com a citação acima, a
tradução também está repleta de relações dialógicas. Também foi realizada uma sondagem em
relação à tradução da narrativa para a língua japonesa. Outro fator, também dialógico, que
intensificou ainda mais a possibilidade de tradução: Osman Lins desejava que seus diversos textos
literários fossem traduzidos para o japonês, conforme carta-resposta (encontrada no arquivo
IEB/USP) enviada pela Literary Agency Division, de Tóquio, para Osman Lins, em 1974, reverbera sobre
a tradução de Avalovara:

We believe that the abovementioned title would be of interest to Japanese readers and that we might
well be able to sell Japanese translation rights therein. If the rigths are available, we should be pleased
to have you send a reading copy to us, extending the option period for three months after receiving your
book (Arquivo IEB-USP, Fundo Osman Lins, OL-LIT-AVALOVARA/CX2/P4/03).

A tradução é um novo texto. Sabe-se que todo texto provém de uma voz, de uma pessoa. “Todo
texto tem um sujeito, um autor falante (o falante, ou quem escreve). Os possíveis tipos, modalidades e
formas de autoria” (BAKHTIN, 2003, p. 308). A carta de Osman Lins é um exemplo de que não é
preciso separar a linguagem da materialidade da vida social.

1. A DIALOGIA E A TRADUÇÃO DO RETÁBULO DE SANTA JOANA CAROLINA

Conforme destacado anteriormente, o trabalho em evidência é construído a partir das


relações entre autor, obra, leitor e tradutor que sinalizam os caminhos dialógicos no momento da
realização da tradução de o Retábulo de Santa Joana Carolina, de Osman Lins. Diversos
posicionamentos teóricos e pensamentos distintos serão destacados a seguir, mas o enfoque
principal continua sendo a busca pelo dialogismo na tradução. Assim, a partir do diálogo entre o conto
osmaniano, a tradução e de análises entre o momento do traduzir e a captura da poesia que permeia
toda a narrativa, camadas de tradução devem ser pensadas para chegar a um trabalho literário
situado socialmente na língua de chegada, ou seja, na língua japonesa, sem perder os ornamentos
poéticos e o rigor da escrita osmaniana. Nesse sentido, é uma tarefa que precisa ser compreendida
em profundidade, conforme postula Umberto Eco:

HETEROCIÊNCIA
333

Tentar compreender como, mesmo sabendo que nunca se diz a mesma coisa, se pode dizer quase a
mesma coisa. A essa altura, o problema já não é tanto a ideia da mesma coisa, nem a da própria coisa,
mas a ideia desse quase. Quanto deve ser elástico esse quase? Depende do ponto de vista: a Terra é
quase como Marte, na medida em que ambos giram em torno do Sol e têm a forma esférica, mas pode
ser quase como qualquer outro planeta girando em outro sistema solar, e é quase como o sol, pois
ambos são corpos celestes, é quase como a bola de cristal de um advinho, ou quase como uma bola, ou
quase uma laranja (ECO, 2007, p. 10).

O pensamento de Umberto Eco remete, de certa forma, a uma tradução por equivalência. No
entanto, essa herança do estruturalismo oferece ao tradutor uma referência fechada do fazer a
tradução. Compreender bem o que está traduzindo é necessário. Enxergar a língua como estratificada
pode ser danoso. A língua não deve ser definida somente pela dicotomia significante x significado.
Assim, acessar as veredas da compreensão significa nunca dizer a mesma coisa mesmo querendo
afirmar tal verdade? A metáfora do reflexo do mundo no fundo de cisterna é um bom exemplo. Parece
ser uma cópia do mundo, mas há uma distância entre a matriz e o reflexo. Basta um pequeno
mergulho de um sapo na água para gerar ondas que construirão diversas interpretações do mundo
refletido. De forma análoga, comporta-se a língua. Diversos fatores sociais alteram o percurso de
uma mensagem. Na tradução não seria diferente. Nesse sentido, para McCleary,

As instituições do poder central costumam preferir que todo mundo jogue pelas mesmas regras (as
delas, obviamente!) e por isso tentam controlar o comportamento das pessoas, inclusive o
comportamento linguístico. Mas como já vimos, é difícil que o controle sobre os usos que as pessoas
fazem da língua seja total. A variação que sempre existe em qualquer língua permite que seus falantes
possam exercer uma certa liberdade para definir quem são e a quais grupos pertencem (MCCLEARY,
2009, p.58).

Não há receitas ou formas prontas para a realização da tradução. A competência e a


sensibilidade do tradutor, o conhecimento das questões culturais e sociais da língua, a compreensão
do texto orignal formarão o texto traduzido. É necessário tentar entender a onda causada pelo
mergulho do sapo, ou seja, há uma relação direta entre os diversos olhares linguísticos de um povo
em relação à língua e os diversos fios que tecem o social. A junção, o descarte, a recriação textual, as
teorias da tradução e as tradições estão no social e na língua, ou seja, a palavra do outro começa a
tomar corpo e forma. É relação com o outro. Há uma interrelação entre os autores. A intencionalidade
da tradução pela criação de um autor a partir de um texto que já existe é intencional e, de certa
forma, busa uma resposta, um diálogo com o outro. Nesse sentido, de acordo com Nuto,

A principal característica da pluridiscursividade romanesca é ser intensamente dialogizada: os diversos


discursos do romance criticam-se mutuamente, não existindo mais uma concepção ingênua de língua
pura, superior ou sagrada. Ao contrário do que costumava acontecer em certa vertente da comédia ou
mesmo de romances mal realizados, os estilos de outrem não tem função apenas de caracterização,
mas deixa transparecer visões de mundo específicas, muitas vezes antagônicas. Ao utilizar o termo
“pluriv ocalidade” Bakhtin remete a idéia de que cada discurso é uma voz, isto é um sujeito com plenos
direitos de ter sua visão de mundo representada (NUTO, 2009, p.84).

HETEROCIÊNCIA
334

Dessa maneira, é possível enxergar a tradução como formação de um novo texto dialogando
com o original, com a língua de chegada, com o autor e com as ideias do texto. Ela não é um ser
construido de pedaços homogêneos, mas dotado de particularidades heterogêneas que podem definir
a obra e um povo. A personalidade da tradução deve ser moldada pelas regras sociais existentes no
momento de presença do ser. O tradutor-autor então, utiliza o emaranhado de regras para compor a
sua forma de trabalhar o texto tradutório, ou seja, cada tradução é singular. É preciso adequar aos
princípios linguísticos, sociais e culturais para onde a palavra está renascendo, transmutando. Dessa
maneira, a compreensão perpassa pelos manuais que já existem e criam novos caminhos, permitindo,
assim, entender o processo de tradução, pois ela

é fruto da resolução de uma tensão, até poder-se-ia dizer do equilíbrio instável entre duas ações
aparentemente simples: reter na língua de chegada algo de peculiar da língua de partida, criando
estranhamento e hibridismo, e naturalizar, ou seja, apagar os rastros da língua de partida, que se defaz
e é subsituida por outra (GOROVITZ, 2014, p.172).

Nesse caminho entre o ‘estranhamento e o hibridismo’, buscando um sentido estável, a


tradução de o Retábulo de Santa Joana Carolina perpassou por diversos questionamentos até chegar
a um consenso final entre o texto original, o tradutor, e pricipalmente, a língua e o discurso de
chegada. Um exemplo concreto foi o título do conto. Exigiu um conhecimento social amplo de utilização
da palavra ‘santa’. Se fosse uma tradução por equivalência, poderia ser サンタ (santa) ou 聖 (sei),
mas ao enveredar pela ótica cultural e social da tradução, a escolhida foi 聖 (sei). サンタ (santa) é
muita utilizada nas celebrações e orações católicas. Tem um sentido de santidade celestial dos santos
canonizados. Logo, o conto de Osman Lins possui 12 mistérios contados em forma de retábulos. Há
uma tendência imediata do tradutor em associar os mistérios à santidade dos santos. Entretanto,
analisando a vida de Joana Carolina, percebe-se que a santidade atribuida a ela é singular, humana e
dessacralizada de pesdestal. De certa forma, é um desdobramento de olhares do tradutor, não só no
texto a ser traduzido, mas no exterior dele. Na cultura de chegada. Há elementos de exotopia.
Destarte, 聖 (sei) abarca o sentido social como uma santidade a partir da capacidade de suportar a
dor e ter um espírito de liderança. Joana possui tais características e por meio das ações diante de
uma vida difícil, ela obtém o auto-controle do sagrado, realçando sua santidade. Esse auto-controle
surge na simplicidade da vida, dos cenários e do próprio retábulo que transporta as palavras para o
enquadramento artístico sacralizado.

2. MOVIMENTOS DE APROXIMAÇÃO E DE DISTANCIAMENTO NA TRADUÇÃO

Antes da efetivação da tradução do Retábulo de Santa Joana Carolina para a língua japonesa,
a ideia do autor, o contexto do texto, o leitor foram imaginados pelo tradutor. Como um conto com
características tão brasileiras poderia ser compreendido pelo leitor japonês? No entanto, a diferença
consciente entre o original e a tradução é a condição necessária para que a alteridade, por meio da

HETEROCIÊNCIA
335

utilização da relação dialógica, aconteça. A diferença de ambientação linguística de uma mesma


história exige a dialogia. A tradução exige cuidados e conhecimentos que extrapolam o texto original,
conforme já mencionado, para que sua recepção seja bem vista pela público de chegada. Para Lica
Hashimoto (2017, p.23.), tradutora de Haruki Murakami para o português, “a tradução, portanto,
passou a ser um poderoso instrumento de formação de identidades culturais, pois ela é obrigada a
voltar-se para as diferenças culturais e linguísticas de um texto estrangeiro”.
Outro ponto importante nesse processo de tradução foi manter a formato do texto em relação
ao original. Osman Lins elaborou elementos visuais que ajudam a tecer a urdidura da trama e
complementar o sentido. Nesse caminho, ao traduzir o texto, houve uma tentativa de aproximação do
formato, com pequenas diferenças em razão das singularidades de cada língua. Mas ao falar de
alteridade, esbarra-se em contextos de identidade, de desencontro e encontro, semelhanças,
diferenças e novas descobertas.No sétimo mistério, por exemplo, o autor compara a escrita à
tecitura de um tapete. Além disso, há um ritmo ao ler a narrativa. Na primeira tentativa de tradução,
percebeu-se que essa ‘forma’ da tecitura em parte se perdia. O sentido do texto permanecia, mas
ainda sem a complementação visual. No entanto, ao ler o texto orginal, notava-se que faltava algo. O
ritmo estava quebrado, a poesia da forma e da leitura estava ao redor da tradução, mas não dentro
do texto. Henri Meschonnic deu voz nesse momento ao afirmar que

o ritmo mostra que o primado caduco do sentido se faz substituir por uma noção mais possante, mais
sutil também, já que ela pode se realizar no impercceptível, por seus efeitos de escuta e de tradução: o
modo de significar. No que a aventura da tradução e do ritmo são solidárias (MESCHONNIC, 2010, p.56).

Certamente, a tradução precisava ser repensada, corfome tabela 1 e 2.

Figura 1. Primeira tradução


ミステリー・其の7
紡いで織り、散らばっているものを纏めて揃える者、そうし
なければ殆どが無駄になる。幾何学者の同じ血筋を引く(スピナ
ー、羊、スピンドル、羊毛 )者が必要とされない基点を定めて繋
ぐ。スピンドル、糸巻き棒、織機などが発明される以前は( 羊
毛、リネン、繭、綿、羊毛 )糸を引っ張り、交差させる綿と絹は
未だ真っ暗闇の情況にあるリンボに( ウェバー、縦糸、織機、
絹 )潜ったままだった。光明を差し込ませる秩序への願いであ
る、これ等を波動に、つまり人間の物である魂によって光を与え
て変える。私たちに必要なもの( 羊毛、横糸、鉤針編み、デッサ
ン、羊毛 )、毛織物やリネンは織物であるから、これらは詩で秩
序が保たれているから、穏やかで、毅然とした私たちの想像力の
勝利を象徴し( タペストリー、刺繍枠、糸巻き棒、羊毛 )そし
て、厳重な縦糸の絡みや交絡できた織物だからである。このよう
に最も高貴な表現として更に気高い規律( 羊毛、裁縫、縫い針、
綿花の鞘、羊毛 )を以って開花して飾られるのは:鉤針編みで、タ
ペストリーで、錦織である。従って( スピナー、羊、スピンド
ル、羊毛 )錬金術、代数、マジック、綿畑と羊、繭、リネン畑が
再発生するかのように( 羊毛、横糸、繭、綿花の鞘、羊毛 )反抗
的な側面を減少し、しかしより長く生存する。
Tradução 1

Fonte:LINS, 1966, p. 106.

HETEROCIÊNCIA
336

Figura 2. Segunda tradução

Fonte: LINS, 1966, p. 106.

Se o leitor fizer apenas uma leitura visual do texto orginal e traduzido perceberá diversas
diferenças em relação ao visual. A tentativa de aproximação visual na tradução teve o intuito de fazer,
assim como no texto original, com que o leitor da língua de chegada entendesse a metáfora do tecer o
texto e de tecer o tapete. Ambas revelam uma singularidade que permite ao leitor inferir um
conhecimento de si e do outro. Em ambos os trabalhos há uma organização estética. A tradução é um
novo texto, por isso jamais será igual. Além disso, os dados não são fixos e a possiblidade de outro
arranjo pelo tradutor é real. Isso não quer dizer extrapolar a obra original. A tradução permite ao
leitor da língua de chegada o acesso à obra de outra cultura construindo uma intertextualidade e
inserindo seu mundo na obra. Jauss (1994, p.25)destaca bem isso ao postular que “a obra não é um
objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se
trata de um monumento a revelar monologicamente seu ser temporal. Ela é, antes, como partitura
voltada para a ressonância sempre renovada da leitura”. Por conseguinte, essa metamorfose que a
tradução faz, permite alongar a obra entre culturas tão distintas. Derrida (1998, p.110) complementa:
“um texto só sobrevive se é, ao mesmo tempo, traduzível e intraduzível”.
Outro ponto a ser destacado na tradução do Retábulo de Santa Joana Carolina é a tradução do
nome da ave ‘Galo-de-Campina’. Essa ave brasileira de cabeça e pescoço vermelho não é tão
importante para o conto, mas servirá de exemplo para explicar uma variação de língua para língua
como processo de escolha do tradutor, pensando no receptor de chegada, ou seja, não há uma
verdade única na tradução. Há uma interação dialógica entre as escolhas que o tradutor utiliza para
concretizar uma tradução. Na tradução para o inglês, realizada por Adria Frizzi, ‘Galo-de-Campina’
aparece como “Black-Throated Cardinal”, ou seja, “Cardeal de Garganta Negra”. A tradutora escolheu
um pássaro americano bem popular, com caracterísitcas semelhantes ao pássaro designado por
Osman Lins. A tradutora do Retábulo de Santa Joana Carolina para o alemão, Marianne Jolowicz,
também utilizou a mesma estratégia. A tradução ‘Galo-de-Campina’ surge como ‘kleinen Vogel’ –

HETEROCIÊNCIA
337

pássaro pequeno de cabeça preta, mas que imita, de certa forma, as caracteríticas do Galo de
Campina. Já para o japonês 草原コック(Sōgen kokku) foi a tradução escolhida. Não existe um
pássaro japonês com esse nome e é, de certa forma, uma tradução literal. No entanto, o leitor japonês
entenderá imediatamente que é um pássaro. Acredita-se que tal tradução não atrapalhará a
compreensão pelo público japonês, pois “língua não é um fim em si mesma na tradução, mas sim um
meio de permitir o contato entre culturas e realidades diversas” (LACERDA, 2010, 137) . O trecho a
seguir, de o Retábulo de Santa Joana Carolina, ilustra a discussão acima em relação ao quarto
mistério:

Original: Nosso pai gostava de animais. Ensinou um Galo-de-Campina a montar no dorso de


uma cabra chamada Gedáblia, esporeando-a com silvos breves (LINS, 1966, p.93).
Tradução para a língua japonesa: 私たちの父は動物好きであった。「ジェ
ダブリア」と名づけた山羊の背中に「草原コック」が乗るようになつか
せた、簡潔な口笛で刺激して。
(FERREIRA, 2017, s/p.).

Tradução para a língua inglesa: Our father liked animals. He taught a black-throated
cardinal to ride a goat named Gedáblia, and spur it on with short whistles (FRIZZI, 1995, p.116).
Tradução para o alemão: Unser Vater liebte die Tiere. Er brachte es einem kleinen Vogel
bei, auf dem Rücken einer Ziege mit Namem Gedáblia zu reiten und sie mit kurzen Pfiffen anzutreiben
(JOLOWICZ, 1978, p.95).
Nesse trecho traduzido para a língua japonesa, a tradução ‘草原コック’ (Sōgen kokku)
seguirá com uma nota explicativa sobre a ave descrita por Osman Lins, levando o leitor japonês a ter
mais informações em relação ao Galo de Campina. Nessa perspectiva, “o tradutor acumula as funções
de receptor e emissor, é o fim e o princípio de duas correntes de comunicação, separadas mas
interligadas:

Autor – texto – receptor = Tradutor – texto – Receptor


Fonte: Bassnet, 2003, p.72.

Portanto, o tradutor é o elo entre duas culturas e precisa entender bem de ambas, inclusive o
contexto social. Nesse viés, Henri Meschonnic postula que na tradução o pensamento da linguagem é
transformado.

Por isso a poética tem um papel crítico, contra as resistências que tendem a manter o saber tradicional:
cuidar para que esta comunicação não passe pelo todo da linguagem: vigiar para que a língua não faça
esquecer o discurso. Nesta única condição, traduzir é contemporâneo daquilo que movimenta a
linguagem e a sociedade, e traduzir se faz acompanhar de seu próprio reconhecimento (MESCHONNIC,
2010, p. 21/22).

HETEROCIÊNCIA
338

Bakhtin também reforça a amplitude da cultura e da literatura. Os entreleçamentos de


combinações de sentidos também estão presentes na tradução. Além disso, não deixa de ser um
espaço do eu e do outro. Para Bakhtin

O mundo da cultura e da literatura é, em essência, tão ilimitado quanto o universo. Não estamos falando
de sua amplitude geográfica (aqui ela é limitada) mas das profundidades dos seus sentidos, as quais são
tão insondáveis quanto as profundezas da matéria. A infinita diversidade de interpretações, imagens,
combinaçõesfiguradas dos sentidos, de materiais e de suas interpretações (BAKHTIN, 2003, p. 376).

Ou ainda, na voz de Lacerda (2010, p.137), “o tradutor – antes de ser um tradutor – atua como
um leitor/intérprete do texto original. E, nesse caso, é fundamental considerar que o autor do original
e o tradutor possuem experiências de vida distintas, o que os levar a possuir discursos também
diferentes”, mas que se entrelaçam.

PALAVRAS FINDAS

Conforme vimos, os possíveis caminhos para a realização da tradução do Retábulo de Santa


Joana Carolina, sob o olhar do dialogismo de Bakhtin, perpassam por diversos olhares e linhas da
tradução e por interrelações com o outro. O dialogismo está presente nessas relações de linguagens,
de práticas discursivas e na concepção da tradução de um texto até a ‘avaliação’ do leitor. No meio
desse caminho está o autor, os personagens e o tradutor. Esse embate de vozes dá ao texto original e
ao traduzido a essência dialógica defendida por Bakhtin. Ainda, o enfoque dado às realidades socio-
culturais distintas (português/japonês) possibilitou refletir e buscar uma aproximação pragmática do
texto de Osman Lins na cultura de chegada (a japonesa).
As diversas possiblidades de tradução do conto osmaniano foram pensadas em relação à
forma, a compreensão do texto original e a interlocução que tradução faz entre os falantes distintos
nas mais variadas situações de comunicação. Tais ações partiram da ideia de que o tradutor deve
enveredar por caminhos tradutórios contextualizados, pensando no dinamismo da língua e suas
multifaces. Assim, buscou entender os contatos entre entre autor, obra, leitor e tradutor por meio da
tradução entre o português/japonês como fatores que possuem núcleos que podem movimentar os
processos de cultura e de comportamento da língua, ou seja, relações discursivas que permeia o
sujeito e mundo.
Portanto, a urdidura da escrita de o Retábulo de Santa Joana Carolina faz com que o tradutor
adentre à caverna escura da escritura osmaniana e ali participe do jogo textual, mediando o voo do
pássaro em uma sala sem janelas, apenas com frestas. A beleza do texto, a palavra escrita por meio
do fio de prumo, a tessistura densa e racional são elementos que compõem a força de traduzir e a
tradução da narrativa de Osman Lins. É como se no traduzir do texto osmaniano existisse “um
Anchieta pregando, com alegria e desespero, o seu evangelho” (LINS,1979, p. 7). A dificuldade exige um
preparação constante do tradutor em busca de uma compreensão mais sócio-cultural da escritura e

HETEROCIÊNCIA
339

da tradução. Mas ter riscos é arranhar o próprio corpo do texto para que o outro entenda a dor que
ali se encontra.

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HETEROCIÊNCIA
RESUMO
340
Palavras-Chave:

A AUDIODESCRIÇÃO COMO
TRANSMISSÃO DE UM
ENUNCIADO VISUAL
INTERNAMENTE PERSUASIVO 12

GARCIA, D’aville Henrique Viana13


ALVES, Jefferson Fernandes14

1. UMA NOVA FORMA DE VER A DEFICIÊNCIA E A INCLUSÃO SOCIAL

A
princípio, é importante considerarmos que a noção acerca de deficiência hoje não é a mesma de
anos atrás; nem mesmo a forma de expressá-la por meio da língua se manteve intacta, mas
acompanhou o próprio movimento axiológico da história que toma como foco as pessoas com
deficiência e suas relações nas diversas esferas sociais. No passado, por exemplo, vemos que
Vygotsky usou termos como “defectologia”, “defeito”, “crianças anormal”. Atualmente, esses termos
deixaram de ser usados, já que podem configurar preconceito, mas ainda é possível verificar a
manifestação dos termos “portadores de deficiência”, “deficiente” em alguns contextos enunciativos,
sobretudo, naqueles que mobilizam interlocutores que desconhecessem os movimentos e as
iniciativas em defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Essas expressões, frutos das épocas
em que foram produzidas e enunciadas, entram em choque com a designação "pessoa com
deficiência", a qual decorre do próprio movimento de protagonismo e de autodeterminação destas
pessoas.
Isso acontece porque - enquanto cidadãos de direitos e deveres e, cada vez mais, agentes
sociais - eles não podem ser reduzidos à deficiência como se todas as suas identidades fragmentadas
(Hall, 2015) estivessem subordinadas a ela. Assim, privilegia-se o uso do termo “pessoa”, “aluno”,
“professor”, ou quaisquer outros substantivos, antes de “deficiência” até o dia em que não precise

12 Este trabalho é resultado final da especialização em Leitura e produção de textos, pela UFRN, sob orientação da Profª Maria da Penha.
Também se vincula aos estudos para a escrita da dissertação de mestrado, sob orientação da profª. Maria Bernadete e co-orientação do Prof.
Jefferson Alves.
13 Mestrando vinculado ao PPgEL-UFRN. Bolsista CNPq. Email: daville.01@hotmail.com

14 Professor Doutor vinculado ao PPgED e PPGArC/UFRN. Email: jfa_alves@msn.com

HETEROCIÊNCIA
341

mais do segundo termo. Desse modo, podemos compreender a própria esfera de designação do outro
e de si como um campo de disputa e de relação de poder, na medida em que a nominação social é
problematizada dialogicamente, expondo as múltiplas vozes que se encerram na estereotipização.
As expressões apresentadas não são ditas de maneira neutra, mas caracterizam o pensar de
uma sociedade que ainda enxerga as pessoas com deficiência por um quadro axiológico da falta e da
incapacidade. É inegável a existência, até os dias atuais, de noções caritativa, médicas e
assistencialistas, que restringem as possibilidades de autonomia, contribuindo para convergir sobre
essas pessoas a identidade de seres defeituosos e incapazes. Acaba, por esse motivo, restando, para
muitos deles, a reclusão em seus ambientes familiares, a assistência e a caridade governamental e
comunitária.
Isso tem sido uma luta, uma vez que, até os dias atuais, muitos ainda são tidos como seres
“menores”, inferiorizados, como aponta Paulo Freire. Ele apresenta uma perspectiva de
contraposição que diz respeito à forma de ver humanizada. Esse pensamento humanizador reverbera
o que Vygostsky (2003) falou a respeito da cegueira ao desenvolver uma noção social sobre ela, mas
que pode ser aplicada para as diversas deficiências. Isso vai de encontro ao pensamento médico-
assistencialista que ainda atravessa a sociedade. Para ele:

A cegueira, ao criar uma formação peculiar da personalidade, reanima novas forças, altera as direções
normais das funções e, de uma forma criadora e orgânica, refaz e forma a psiquê da pessoa. Portanto, a
cegueira não é somente um defeito, uma debilidade, senão também, em certo sentido, uma fonte de
manifestação das capacidades, uma força (por estranho e paradoxal que seja!). (VYGOTSKY, 2003)

A forma de ver do teórico vem ganhando expressividade nos últimos anos, pois não podemos
mais pensar em sujeitos com faltas, anormalidades ou inabilidades, mas em alguém capaz de
desenvolver múltiplas habilidades à medida em que as dificuldades são problematizadas e
enfrentadas. Assim, é importante considerar a existência de interditos (ou barreiras) sociais para
que, a partir disso, sejam pensados em métodos e maneiras para superá-las.
Isso é reforçado pela Lei Brasileira de Inclusão, em vigor desde 2015, a qual considera pessoa
com deficiência como aquela que tem qualquer impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
sensorial ou intelectual. Esse impedimento, em interação com determinadas barreiras, pode, como
afirma o artigo segundo, “obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas.” (BRASIL, 2015)
Essa necessidade de participação plena e efetiva na sociedade torna cada vez mais legítimos
os protestos das pessoas com deficiência por espaço, visibilidade e voz social, e, por conseguinte,
pela superação das formas de interdição à respectiva participação social. Um exemplo disso foi o
movimento que surgiu no século XX, com destaque para a sua segunda metade, chamado “Nada sobre
nós sem nós”, o qual vai de encontro às organizações, planejamentos, leis, recursos e tudo que pode
surgir em prol desses sujeitos sem consultá-los e sem considerar a respectiva participação. Assim,
almejava-se que a constituição de políticas públicas orientadas para as pessoas com deficiência

HETEROCIÊNCIA
342

considerassem a participação destas pessoas não apenas como beneficiárias, mas, sobretudo, como
protagonistas.
A consequência, sem dúvidas, foram os avanços e leis estabelecidas para garantir e ratificar
os direitos das pessoas com deficiência, bem como os esforços de quebra de barreiras, de diversas
ordens, que restringem a participação social. A Lei de Inclusão da Pessoa Com Deficiência ainda
considera, em seu artigo terceiro, a acessibilidade como:

possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços,


mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus
sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público
ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com
mobilidade reduzida (BRASIL, 2015)

O enunciado "acessibilidade", por conseguinte, expressa um posicionamento responsivo,


portanto, político à própria compreensão de "acesso", a qual orbitava em torno da democratização ou
massificação de determinadas esferas de participação social, mas que não considerava as pessoas
com deficiência como partícipes. Neste sentido, destacamos a acessibilidade comunicacional, a qual
foca a necessidade de desencadeamento de processos tradutórios que considerem as singularidades
comunicacionais das pessoas com deficiência como sujeitos respondentes que lutam pela
participação nas diversas esferas sociais de interação enunciativa.

2. A AUDIODESCRIÇÃO NA PERSPECTIVA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA VISUAL EM TRAMAS


DIALÓGICAS

Para o círculo de Bakhtin, o enunciado não surge do nada, mas é resultado de uma cadeia de
outros enunciados, para os quais é responsivo. Por sua vez, esse mesmo enunciado, organicamente
respondente, também é prenhe de resposta, ou seja, será terreno fértil para outras palavras ou ações
que surgirão. Em outros termos, as relações humanas, o ato de existir e interagir com sujeitos só
acontecem, pois agenciamos as vozes sociais com as quais interagimos.
Tal fato poderia fazer pensar que todo processo de construções de enunciado só se dá no polo
da repetição, mas, para Bakhtin (2015a, p. 74), cada texto se constitui em um novo tempo e espaço,
orientado a pessoas distintas sócio e historicamente. Isso faz com que se singularize, inclusive, o
sentido da palavra, favorecendo a plurissignificação daquilo que se diz, mesmo que lance mão de
termos semelhantes logicamente. Em outro termos, cada ação (ou enunciado) humana, mesmo ela
representando a apropriação e a transmissão de outras ações, uma vez que, mesmo fazendo uso do
já-dito, também abarca o não-dito por estar em um contexto de enunciação diferente de qualquer
outro. O texto, enquanto discurso, reflete e refrata todos os outros textos com os quais interage.
É a partir disso, da teorização feita pelo círculo sobre relações dialógicas, que este trabalho
se motiva, uma vez que nos debruçamos sobre uma ação responsiva que surgiu para o curta-
metragem A Força. Essa ação é, na verdade, o roteiro de audiodescrição, gênero discursivo que

HETEROCIÊNCIA
343

corresponde à tradução intersemiótica do signo visual em signo verbal. Assim, esse gênero consiste
em verter a imagem em palavra, orientada para as pessoas com deficiência visual, incapazes de ter
acesso ao mundo imagético caso não haja esse recurso. Essa tradução é feita não de maneira lógica,
mas dialógica, pois se firma num posicionamento daquele que enuncia, que é o audiodescritor-
roteirista. Isso porque, todo sistema de signo pode ser traduzido para outros sistemas de signos de
maneira lógica, mas o texto não pode ser traduzido dessa maneira devido às diversas possibilidades
de se falar sobre determinado objeto (BAKHTIN, 2015a, p. 76).
A audiodescrição, dessa forma, é um recurso que surgiu na contemporaneidade como uma
força que se orienta pela perspectiva responsiva das pessoas com deficiência visual (cegueira, baixa
visão) para permiti-las olhar o mundo pelas palavras alheia. Em outros termos, a audiodescrição pode
ser tida como uma palavra solidária que ratifica a luta das pessoas com deficiência visual,
proporcionando-as a apropriação a recursos visuais e audiovisuais que atravessam a sociedade.
Esse recurso de acessibilidade consiste na tradução intersemiótica das imagens e promove a
expansão do horizonte discursivo dos usuários. Isso torna mais favorável a acessibilidade nos
ambientes até então não frequentados por eles. Ou seja, essas pessoas podem ter acesso a eventos
culturais, cinema, teatro e às demais informações imagéticas à medida em que as fronteiras
existentes entre o que podem ou não fazer são reduzidas.
Além do mais, Alves (2014, p. 263) reforça o posicionamento de a audiodescrição ser um
recurso que faz superar um confinamento pelo qual as pessoas cegas vivem, em muitos momentos,
afirmando que

a transformação das informações imagéticas em palavras amplia as possibilidades de apropriação


estética por parte das pessoas com deficiência visual, proporcionando a superação do confinamento
cultural a determinadas esferas.

Alves (2014) segue afirmando que “a audiodescrição se configuraria em um enunciado verbal


que acompanha e que comenta um enunciado audiovisual, convertendo-se em uma contraimagem.”
Essa forma de encarar a força mediadora da audiodescrição se assenta na perspectiva de que o
processo de atribuição de sentido por parte das pessoas com deficiência visual desencadeia um
movimento de configuração mental de imagens próprias que, embora possa estabelecer uma relação
de concordância com que é enunciado pelo audiovisual acessível, demarca o movimento autoral
singular daquele que se coloca em uma posição (física e ideológica) de espectador.
Assim, não se pode pensar nessas palavras desvinculadas tanto de uma imagem quanto de um
sujeito que a comente, o que nos permite defender veementemente, com base nas teorias em que nos
apoiamos, a inexistência de uma audiodescrição ausente de subjetividade.
A imagem, por um lado, é produto de um ponto de vista, sendo imanente a ela a visão
ideológica de quem a fez (pintor, fotógrafo, desenhista, designer); a palavra que descreve e
audiodescreve (considerando que o roteirista pode não ser o locutor da audiodescrição), por sua vez,

HETEROCIÊNCIA
344

vem marcada pelo olhar exotópico e pela maneira como o audiodescritor se apropria do enunciado do
outro, o que caracteriza, mais uma vez, um posicionamento axiológico.
Na audiodescrição de vídeos, isso fica bem marcado pelo fato de a objetividade ser mais
exigida, já que a inserção da audiodescrição deve ser feita nos momentos de silêncio dos personagens
da filmagem; não é adequado à locução sobrepor a fala ou sons importantes para o vídeo. Tal fato faz
com que se busque palavras menores – com significado semelhante –, a sintaxe mais concisa e, sem
dúvidas, o olhar seletivo do audiodescritor nas escolhas por imagens que sejam mais relevantes para
a pessoa com deficiência visual.
Dessa maneira, lançamos mão dos estudos dialógicos da linguagem para refletir sobre as
maneiras de apropriação dessa imagem e de sua transmissão em palavras. Para isso, consideramos
Bakhtin (2015, 2015a, 2015b) e Volóchinov (2017) como aportes teóricos para a construção das
reflexões a seguir.

3. O DISCURSO ORIENTADO PARA O DISCURSO DO OUTRO NA AUDIODESCRIÇÃO: a bivocalidade


de direcionamento única

Para Bakhtin (2016), o enunciado não pode se resumir a relações lógicas, como aponta os
estudos estruturais e formais da língua, uma vez que a linguagem não é uma forma fria, ausente da
ação do homem, bem como do espaço e tempo onde está inserida. Pelo contrário, é necessário ver os
enunciados como um modo de agir humano mediado por uma orquestração de vozes sociais, às quais
ele nomeia de relações dialógicas.
Para ele, não é possível agir socialmente sem agir com e para o outro. Isso porque nossos
enunciados e ações advêm do que apreendemos na interação social. Assim, para os estudos dialógicos
da linguagem, não podemos, necessariamente, falar de subjetividade, mas de intersubjetividade, uma
vez que nos constituímos na alteridade.
Bakhtin, falando a respeito das relações dialógicas, afirma:

A confiança na palavra do outro, a aceitação reverente (a palavra autoritária), o aprendizado, as buscas


e a obrigação do sentido abissal, a concordância, suas eternas fronteiras e matizes (mas não limitações
lógicas nem ressalvas meramente objetais), sobreposições do sentido sobre o sentido, da voz sobre a
voz, intensificação pela fusão (mas não identificação), combinação de muitas vozes (um corredor de
vozes), a compreensão que completa, a saída para além dos limites do compreensível, etc. Essas
relações específicas não podem ser reduzidas nem a relações meramente lógicas nem meramente
objetais. Aqui se encontram posições integrais, pessoas integrais (o indivíduo não exige uma revelação
intensiva, ela pode manifestar-se em um som único, em uma palavra única), precisamente as vozes. A
palavra (em geral qualquer signo) é interindividual. Tudo que é dito, o que é expresso se encontra fora
da “alma” do falante, não pertence apenas a ele [...]. (BAKHTIN, 2016, p. 97-98)

É nesse sentido de confiança em que se constrói a acessibilidade de pessoas com deficiência


visual, uma vez que não há possibilidade de se apoiar no próprio enunciado imagético para a

HETEROCIÊNCIA
345

construção do sentido. O áudio do material, por si só, não permite construção de uma contra-imagem,
fazendo com que se necessite de inserir a locução do roteiro.
A responsabilidade do audiodescritor, por esse motivo, é de grande proporção, já que ele será
mediador da compreensão da pessoa cega. Em outros termos, o não vidente só poderá “enxergar” por
meio da palavra alheia, só terá acesso ao conteúdo audiovisual por meio da audiodescrição. O
audiodescritor-roteirista torna-se autor-criador da audiodescrição, por mais que o enunciado que é
gênese dessa tradução não seja dele; no caso, o vídeo. Ainda assim, o seu enunciado se materializa em
um novo contexto de produção, vislumbra um novo público, responde a ele, antecipa réplicas,
esclarece ou obscurece informações; se constrói, de fato, no terreno aperceptivo da pessoa com
deficiência visual, considerando suas habilidades no contato com o gênero discursivo em questão.
Segundo Bakhtin (2016, p. 76), “o acontecimento da vida do texto, isto é, sua verdadeira
essência, sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” [Grifo do autor].
Nesse caso, a audiodescrição existe entre a relação do audiodescritor com a pessoa cega. Mesmo que
não a conheça ou tenha interagido pessoalmente com ela, o roteirista constrói uma identidade mental
para seu público.
Assim, o audiodescritor, reiterando a noção de elo discursivo, tanto responde a um enunciado,
que é o material audiovisual, quanto responde à imagem presumida do público para quem ele enuncia.
Dessa forma, seu enunciado não pode corromper ou transgredir aquilo que está posto no vídeo, pois,
se assim o fizer, a pessoa com deficiência não terá a compreensão esperada ou adequada, bem como
haverá deturpação do enunciado alheio, que é a imagem. Não pode, portanto, ser parodiada.
Contrariamente, a audiodescrição deve agir com orientação única em relação ao enunciado
que a origina, ou seja, deve manter a mesma orientação semântica, permitindo uma mesma
compreensão, mesmo que seja sob o ponto de vista do audiodescritor. Dessa forma, é possível
aproximar esse fato das palavras de Bakhtin (2015b), que discorre sobre uma das formas de
transmissão do discurso alheio: a estilização.
Segundo ele,

A estilização pressupõe o estilo, ou seja, pressupõe que o conjunto de procedimentos estilísticos que ela
reproduz tenha tido, em certa época, significação direta e imediata, exprimiu a última instancia da
significação. (BAKHTIN, 2015b, p. 217)

Em outros termos, a estilização é a apropriação do estilo de outro e a sua transmissão sem a


desconstrução desse estilo. Não chega a ser como discurso direto, revestido de aspas, subordinado a
um enunciado de autoridade; até porque o fato de ser transmitido de um sistema semiótico para outro
não permite que a palavra seja pronunciada literalmente. Muito pelo contrário, o enunciado chega ao
audiodescritor como uma imagem internamente persuasiva.
A depender do contexto, do gênero fílmico a que a palavra autoral se subordina, essa
audiodescrição vai sofrer variação. Bakhtin (2015a, p. 133) afirma que emoldurações distintas vão
existir a depender da forma de se transmitir o discurso alheio. Assim, não se pode, de maneira alguma

HETEROCIÊNCIA
346

dissociar o contexto da palavra autoral do contexto da palavra alheia. Na audiodescrição, portanto, a


palavra é metade daqueles que produziram o vídeo e metade daquele que traduz, parafraseando
Bakhtin (2015a, p. 140).
O teórico ainda afirma que

A palavra do autor, que representa e emoldura o discurso do outro, cria para este uma perspectiva,
distribui sombra e luz, cria a situação e todas as condições para que ele ecoe, por fim penetra nele de
dentro para fora, insere nele seus acentos e suas expressões, cria para ele um campo dialogante.
(BAKHTIN, 2015a, p. 155)

Isso leva, mas uma vez, a crer que o papel do audiodescritor é contribuir para a construção
de um terreno de compreensão para a pessoa com deficiência, considerando que essa compreensão é
um ato dialógico. É dessa maneira que se pode construir um enunciado acessível para esses sujeitos.
Até aqui, entendemos como ponto primordial reconhecer a existência de sujeitos que atuam
na produção da audiodescrição, que são os audiodescritores-roteiristas, bem como o consultor e o
público com deficiência visual. A atuação deles, mesmo que o terceiro aja indiretamente, se manifesta
por meio de uma relação dialógica, resultado da interação entre sujeitos, em que a imagem alheia
chega ao ouvinte como palavra sem deturpação, distorção; chega à pessoa com deficiência sem ser
difamada, mas com a mesma orientação semântica do vídeo.
Com vistas a essas noções, a próxima seção analisará como se deu a construção de um
enunciado acessível para esses indivíduos. Assim, nos debruçaremos sobre alguns recortes de um
roteiro de audiodescrição, bem como as imagens, com a intenção de fazer conhecidos os enunciados
alheios e os autorais, para, então, poder interpretar como se deu a apropriação e a representação
desses enunciados.
O roteiro de audiodescrição, em questão, foi escrito para um curta-metragem chamado A
Força15, de Teotônio Roque e Buca Dantas, produzido pela ONG Olhares. Esse filme chegou ao setor de
Acessibilidade da Secretaria de Educação a Distância da UFRN (SEDIS) por meio de uma parceria feita
entre o setor e a ONG. Aquela se comprometeu em tornar acessível o curta, com recursos de
audiodescrição, legendagem para surdos e ensurdecidos (LSE) e janela de Libras, como forma,
inclusive, de iniciar um trabalho mais incisivo no campo da acessibilidade comunicacional.
Esse material serviu como marco inicial dos trabalhos da equipe com vídeos e videoaulas, uma
vez que, a partir dos conhecimentos adquiridos empiricamente durante o processo, foi sendo
percebido aquilo que era ou não adequado às traduções. O roteiro de audiodescrição, por exemplo, foi
produzido por dois membros do setor, Rafael Garcia e Andreia Gurgel.

15
Sinopse: “Homem está à beira da morte e experimenta a alucinação de que está se afogando. A partir daí, a vida do personagem é resgatada,
em uma cronologia, através de fotografias que mostram o sertão, suas causas, consequências e a inserção do homem nesse universo.”.
Quanto à audiodescrição, ela foi produzida no setor por Rafael Garcia e Andreia Gurgel, em 21.07.2014; teve o olhar exotópico de, Klístenes
Braga e Bruna Leão, doutorandos e profissionais que atuam na realização de legendagem e de audiodescrição, vinculados ao Laboratório de
Tradução Audivisual (LATAV) da UECE; e de um consultor em audiodescrição, vinculado à UFRN, Sidney Trindade. Esses são os três roteiros
sobre os quais no debruçaremos para a análise. O vídeo está no YouTube, no canal da SEDIS. O link de acesso está referenciado.

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347

4. A IMAGEM E A PALAVRA – O DISCURSO ALHEIO E O DISCURSO AUTORAL: A ação de construir a


acessibilidade em vídeos

A seguir, apresentaremos de cinco frames do curta A Força, os quais foram recortados das
três cenas do filme: o momento antes da morte do velho; o delírio de morte, representado de maneira
fílmica por uma sequência fotográfica e, por fim, o cortejo fúnebre desse velho.
Figura 1. Print do curta-metragem A Força com audiodescrição

Para a imagem anexada neste trabalho, os audiodescritores privilegiaram este roteiro:


“Câmera alta. Um velho calvo, de pele branca e camisa aberta agoniza em uma rede. Ao seu redor,
senhoras rezam com terço na mão, descansados sobre seu peito.” Nessa audiodescrição, notam-se
três períodos, com pequenas descrições físicas do personagem e da cena. Não se descreve, por
exemplo, traços de roupa, cor e modelo de rede, uma vez que o tempo e o espaço de inserção da
descrição não permitiriam.
Vê-se, também, o uso de uma linguagem cinematográfica para apresentar a posição da
câmera em relação ao personagem, o que é relevante para a pessoa cega, já que ela está assistindo a
um filme em que a gramática do cinema auxilia na compreensão das cenas.
Neste momento, é importante destacar a celeridade para a inserção da audiodescrição, uma
vez que, por ser imagem dinâmica, as cenas mudam em velocidade que, muitas vezes, não permite a
descrição completa de todos os possíveis signos. Não se apresenta, por exemplo, expressão facial do
velho e modelo de camisa, que é social com manga curta e quadriculada.
Figura 2. Print 2 de cena do curta A Força

HETEROCIÊNCIA
348

Para este frame, segundos após o anterior, a descrição elegida pelos roteiristas é: “A câmera
se distância, revelando os rostos das senhoras, que vestem roupas escuras e véu.”. Aqui percebemos
novamente a inserção da linguagem cinematográfica e orações subordinadas adjetivas. A primeira
subordinada é uma reduzida em gerúndio, mostrando que a cena acontece de forma contínua, não com
recortes; a segunda, por sua vez, introduz uma adjetivação explicativa para essas senhoras. Isso,
somado à descrição anterior, pode permitir à pessoa com deficiência inferir que essas senhoras já
estão conscientes de que a morte do velho é certa e, portanto, se vestem do seu luto para chorar ao
seu redor, em uma espécie de ritual espiritual para a consagração da alma do moribundo.
Logo após essa cena, o curta dá início a uma sequência de fotos que apontam
para a vida desse velho, em uma espécie de delírio de morte.

Figura 3. Print de uma das fotos da sequência fotográfica do curta

Para essa fotografia, a descrição escolhida pelos audiodescritores foi: “Ao lado de um pote de
barro, rapaz bebe água, refletido num espelho.”. Notamos uma oração fora da ordem direta,
antecipando o adjunto adverbial à medida em que coloca o sujeito para depois, bem como a oração
adjetiva explicativa reduzida em particípio.
Isso pode se justificar pelo fato de o pote de barro ter muita importância para a cultura
sertaneja, uma vez que, em muitos locais desfavorecidos pelas ações do clima e do governo, a forma
mais comum de armazenamento de água dentro de casa é pelos potes de barro. Além disso, vemos
que, em um plano mais próximo à câmera, desfocado, há imagens que não foram descritas, como
canecas e pratos, provavelmente de barro também. Por não poder descrever todos os utensílios
desse material tão utilizado pelo sertanejo, é possível que se tenha privilegiado apenas o pote, que
estava em foco pela câmera.

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Figura 4. Print de foto da sequência fotográfica

Para esta fotografia foi descrita: “Numa paisagem árida, um homem sem camisa, de calça
comprida e descalço, movimenta a terra com uma enxada.”. Novamente, a ênfase dada pelos
audiodescritores está no adjunto adverbial de lugar, com o possível objetivo de destacar este em
detrimento do próprio sujeito, que aparece introduzido por um artigo indefinido.
Percebemos também que a fotografia favorece a compreensão da identidade desse sujeito,
que, colocado quase na centralidade do enquadramento, lavra a terra. A enxada aparece em primeiro
plano; ele, em um intermediário, uma casa de taipa ao fundo, quase escondida pelo seu corpo. Em
plano contra plongée, ou seja, tirada de baixo para cima, vemos que a câmera também amplia a
imagem do céu em detrimento da terra e do próprio sujeito, diminuindo-os.

Figura 5. Print do cortejo fúnebre

Para esta última cena, a do cortejo fúnebre, os audiodescritores elegeram como descrição
este enunciado: “Sob sol do fim da tarde, em meio à vegetação catingueira com serra ao fundo, um
cortejo fúnebre se desloca da esquerda para a direita. Em sentido contrário, uma mulher caminha
levando um balde na cabeça.”. Nessa cena, primeiramente vista em plano aberto, os audiodescritores
decidiram destacar, novamente, os adjuntos, deslocando-os para o início. Estes elementos, mais
discursivos do que linguísticos, são apresentados tanto em ordem de aparição na cena quanto em
ordem de relevância, quando duas imagens surgem quase que simultaneamente.
Assim, em uma posição de cima para baixo, ou seja, do céu à terra, destaca-se,
primeiramente, o adjunto temporal; depois, apresenta-se o adjunto espacial. Por fim, em ordem de

HETEROCIÊNCIA
350

relevância, fala-se, primeiro, da aparição do cortejo fúnebre, que surge no enquadramento da


esquerda e se desloca para a direita; depois, da mulher com balde na cabeça, que surge no
enquadramento da direita. Ambos se encontram quase ao centro, e cada um continua seguindo seu
caminho.

5. PALAVRAS (IN)CONCLUSAS PARA ESTE ELO

A partir de tudo que foi contemplado aqui, embora seja necessária a objetividade e concisão
de linguagem por parte de quem descreve, com a intenção de dar maior possibilidade para o ouvinte
construir suas próprias impressões a partir da palavra alheia, advogamos a não neutralidade da
audiodescrição. Volochínov (2017), sobre enunciados neutros, afirma que “a língua, no processo de
sua realização, não pode ser separada do conteúdo ideológico ou cotidiano ” (p. 181). As novas
pesquisas já têm defendido esse ponto de vista. Um exemplo disso é Alves (2012, p. 285) que,
orquestrando o pensamento do círculo bakhtiniano em soma à pratica da audiodescrição, considera
que
Tais enunciados [as audiodescrições], por conta do nosso posicionamento axiológico, não apenas
descrevia, mas reconfigurava fragmentos do mundo visível, uma vez que não apenas anunciamos tais
fragmentos, mas os valoramos.

Nesse aspecto teórico, a audiodescrição é uma palavra valorada que surge em processo
dialógico: tem-se o vídeo; audiodescritor, autor da palavra solidária e amorosa; e a pessoa com
deficiência visual, pensada e contemplada durante o processo de tradução audiovisual, a quem se
destina o olhar e o falar do tradutor das imagens. Ela é um ato que se opõe à indiferença social, uma
vez que amplia as possibilidades de as pessoas com deficiência agirem autonomamente na
apropriação de elementos culturais cotidianos, como os filmes e vídeos. Além disso, ela pode ampliar
e desenvolver os laços humanos e sociais à medida em que as pessoas que não conseguem ver são
inseridas ativamente na sociedade quando passam a olhar por meio das palavras dos outros, por meio
das palavras solidárias construídas socialmente. É nessa transmissão do enunciado alheio que a
pessoa com deficiência tem a possibilidade de “enxergar” pelas palavras alheias.
Embora já estejam sendo feitas pesquisas a respeito da audiodescrição e os diálogos sobre a
inclusão de pessoas com deficiência visual se ampliando, ainda é preciso afirmar: a audiodescrição
precisa de maior destaque e aprimoramento com bases nas diversas áreas de pesquisa, como
educação, fonoaudiologia, linguística descritiva e linguística aplicada, estudos culturais e sociais,
cinema, entre outras.
Além do mais, é importante unir todos os conhecimentos possíveis, tornar cada vez mais
dialógicos os trabalhos, permitir nas pesquisas a orquestração de vozes das de diversas áreas do
conhecimento humano e científico; bem como é imperativo dar voz às pessoas com deficiência visual.
Não se pode fazer pesquisa sobre esses sujeitos, mas com eles, tendo-os como protagonistas de sua
própria inclusão. Tudo isso deve ser feito, portanto, a fim de construir maior inteligibilidade a respeito

HETEROCIÊNCIA
351

de formas e métodos de ampliar a audiodescrição nos ambientes educacionais e culturais, nos quais
as pessoas com deficiência visual participam ou deveriam participar.

REFERÊNCIAS

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Acesso em: 29 set 2017.
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VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
352
O presente artigo tematiza questões relacionadas à
linguagem e sua relação com a noção de

LINGUAGEM E heterociência advinda dos estudos bakhtinianos.


Tem por objetivo refletir sobre como lidar com o
cotidiano e a partir dele contribuir com a ciência de

HETEROCIÊNCIA: uma janela


nossa época. Cotidiano este frequentemente
desprezado porque nele somos levados a
reconhecer a unicidade de cada sujeito, a
singularidade de cada momento, enfim, implica abrir
aberta para a ideologia do cotidiano o caminho para as incertezas. Pretende-se dialogar
com o paradigma emergente das ciências proposto
por Boaventura Santos no sentido de produzir
conhecimentos e desconhecimentos, uma vez que
não há nesse início de século lugar para um
cientista ignorante especializado que faz do cidadão
GIOVANI, Fabiana 16 comum um ignorante generalizado. Produzir
ciência, considerando a ideologia cotidiana é partir
do princípio de que nenhuma forma de
conhecimento é, em si mesma, racional. É tentar
dialogar com outras formas de conhecimento
deixando-se penetrar por elas. Nossa base teórica
está pautada nos estudos de Bakhtin em diálogo
INTRODUÇÃO com autores que lidam com a ciência, como Morin e
Prigogine.
"Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio
descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, Palavras-Chave: Linguagem. Heterociência.
sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, Ideologia do cotidiano
ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que
vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca
virmos a ser..."

A
ssim inicia o seu texto sobre "Um discurso sobre as ciências" Boaventura de Sousa Santos.
Embora, cronotopicamente, o autor esteja se referindo a um período de quinze anos do final do
século XX, seu dizer é atemporal e dialoga com a realidade que vivenciamos hoje em pleno século
XXI. O autor expõe que ao analisarmos a situação presente das ciências em seu conjunto, olhamos
para o passado e produzimos uma imagem de que o campo teórico prevalecente nos dias de hoje foi
estabelecido e mapeado pelos grandes cientistas que viveram entre os séculos XVIII e os primeiros
vinte anos do século XX. São representantes dessa classe de Adam Smith e Ricardo a Lovoisier e
Darwin, de Marx e Durkheim a Max Weber e Pareto, de Humboldt e Planch a Poincaré e Einstein.
O autor nos fala também de um paradigma emergente nas ciências. Podemos dizer que
adentramos ao novo século com uma consciência de que o positivismo não nos serve como parâmetro
para desenvolver as ciências – humanas ou não. Não se pode ignorar o desejo de complementarmos o
conhecimento das coisas com o conhecimento do conhecimento das coisas, quer dizer, com o
conhecimento de nós mesmos. E que melhor lugar para esse processo de (re)conhecimento do que

16Doutora em Linguística e Língua Portuguesa. Prof. Adjunta IV da Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA – Campus Bagé/RS. E-mail:
fabiunipampa@gmail.com

HETEROCIÊNCIA
353

uma ideologia considerada do cotidiano17? A ciência precisa brotar desse terreno cotidiano. Afinal,
não são as pessoas de carne e osso que se beneficiam com e a partir dela?

1. IDEOLOGIA DO COTIDIANO E PRODUÇÃO DE CIÊNCIA. POR QUE NÃO?

O conhecimento científico não pode se restringir, como mostra Boaventura Santos (2010), a
um conhecimento mínimo que fecha portas a muitos outros saberes sobre o mundo. Não pode
continuar desencantado e triste que transforma a natureza – ou o espaço da ideologia cotidiana –
num meio automático. Secundando Prigogine (1979), esse conhecimento científico não pode ser um
interlocutor terrivelmente estúpido. É preciso furar esse anel do poder que circula em torno das
ciências e que analogicamente, se assemelha com a Cidade das Letras de Rama (1985).
Pensar em uma ideologia cotidiana e considerar a proposta de Boaventura Santos com seu
paradigma emergente nos incita a recusar um rigor científico fundado no rigor positivista,
matemático, automático. Rigor esse que ao quantificar os fenômenos, os desqualifica, e que

i) ao objetiva-los, os objetualiza e os degrada, e


ii) ao caracteriza-los, os caricaturiza.

Associar a ciência pura e simplesmente a uma ideologia dominante é contribuir para a ideia de
industrialização da ciência tanto em nível de aplicação como em nível de organização da investigação
científica.
Precisamos, enfim, pensar nesse paradigma emergente das ciências proposto por Boaventura
Santos que deixe de produzir conhecimentos e desconhecimentos. Não há nesse início de século lugar
para um cientista ignorante especializado que faz do cidadão comum um ignorante generalizado.
Produzir ciência, considerando a ideologia cotidiana é partir do princípio de que nenhuma
forma de conhecimento é, em si mesma, racional. É tentar dialogar com outras formas de
conhecimento deixando-se penetrar por elas.
É preciso ressaltar que essas reflexões estão pautadas no(s) constructo(s) bakhtiniano(s).
Travando o diálogo com o autor e seu Círculo de estudos, especialmente sobre a ideologia do
cotidiano, temos as seguintes palavras:

Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a


partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão
assim normalmente o tom a essa ideologia. Mas, ao mesmo tempo, esses produtos ideológicos
constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano; alimentam-
se de sua seiva, pois, fora dela, morrem, assim como morrem, por exemplo, a obra literária acabada ou
a ideia cognitiva se não são submetidas a uma avaliação critica viva. Ora, essa avaliação crítica, que é a
única razão de ser de toda produção ideológica, opera-se na língua da ideologia do cotidiano (BAKHTIN,
2006, p. 113).

17 Ideia defendida por Bakhtin.

HETEROCIÊNCIA
354

2. MUDANÇA DE PARADIGMA

Adotamos como ponto de partida a compreensão bakhtiniana de que as ciências humanas não
são outra coisa senão tratar da vida humana que começa a ser pensada a partir do nascimento social
do homem. Assim, o autor e Círculo de estudos fazem uma aposta na questão dialógica, uma vez que o
homem, desse modo, não pode ser ou tornar-se mudo. Dessa forma, esses estudiosos e nós –
enquanto pesquisadores envolvidos com a linguagem e com a ciência – rejeitamos a exatidão
científica que trata o homem como coisa e propomos com a teoria que nos respalda uma penetração
profunda da intercompreensão por meio do que Bakhtin (2003) chama de heterociência, ou seja, uma
metalinguagem de todas as ciências. Geraldi (2006) corrobora com essas questões ao dizer:

Se num passado recente acreditamos que a validade de nossos enunciados nos era dada pelo fato de ele
descreverem o real, hoje perdemos a inocência e ficamos ao léu: donde extrair alguma validação de
nossas compreensões? Obviamente esta pergunta somente faz sentido para aqueles que pretendem
viajar para terras do além das certezas patrocinadas pelas teorias (GERALDI, 2006, p. 137).

Concebemos então que pesquisar - especialmente em ciências humanas - é lidar com


linguagem e, consequentemente, com o cotidiano e a partir dele contribuir com a ciência de nossa
época. Cotidiano este frequentemente desprezado porque nele somos levados a reconhecer a
unicidade de cada sujeito, a singularidade de cada momento, enfim, implica abrir o caminho para as
incertezas.
Essa mudança de perspectiva proporciona que se deixe uma janela (e por que não várias!)
aberta para a ideologia do cotidiano.

3. CAMINHOS A SEREM PERCORRIDOS

E tratando da linguagem, é possível construir uma metodologia (não um


método) capaz de orientar o pesquisador no emaranhado de
complexidades que a linguagem comporta [...] Geraldi (2012)

Utilizamos os estudos de Bakhtin (2003) para - na construção de uma heterociência - dialogar


com a opção metodológica possível de ser adotada e concordamos, principalmente, com a
confirmação do autor de que o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. Nessa
condição, o ser é inesgotável em seu sentido e significado.
Quem estuda a linguagem não está interessado em recortar a língua tampouco esmiúça-la. A
heterociência proporciona que na e pela linguagem se faça um mergulho de compreensão profunda da
atividade verbal. E nesse acontecimento, os indícios são fundamentais.
Os indícios que rastreamos e que direcionam o nosso olhar a alguma interpretação, não é
sinônimo de exatidão. Por lidarmos com linguagem e, portanto, com produções de sujeitos reais em
situações cotidianas, o ser que se auto-revela nesses contextos não pode ser forçado, nem tolhido. O

HETEROCIÊNCIA
355

ser é livre18 e por isso não apresenta nenhuma garantia. Assim o conhecimento que nos é possível
construir não pode dar nada nem garantir uma certeza19, como fato estabelecido com precisão e
dotado de importância prática e única para a nossa vida (Cf. PRIGOGINE, 2011).
Embora seja posto que as ciências procuram o que permanece imutável em todas as
mudanças, trabalhar com sujeitos da vida real, é fazer com que estes se abram livremente ao nosso
ato de conhecimento 20 . Não se pode, portanto, transferir esse conhecimento a categorias do
conhecimento material. Nas palavras bakhtinianas (1993), “a formação do ser é uma formação livre.
Nessa liberdade podemos comungar, no entanto não a podemos tolher como um ato de conhecimento
(material)”. Ainda, segundo Morin:

No pensamento ocidental, pode afirmar que há um grande paradigma que operou a disjunção entre o
mundo da ciência, que se consagra aos fenômenos materiais, e o mundo do espírito que se consagra à
liberdade e não obedece ao determinismo. Essa disjunção provocou a grande separação entre a cultura
científica e o mundo das humanidades (MORIN, 2009 p. 84).

Os indícios que se levantam com as análises nessa perspectiva de fazer pesquisa e ciência
partem de uma historicidade. O fechamento que se apresenta – conhecimento e interpretação – dar-
se-á de acordo com o contexto. Isso porque estamos nos colocando num lugar onde termina a
cientificidade exata e começa o que Bakhtin (2003) chama de heterocientificidade.
Morin (2009) revela uma compreensão necessária - desde o fim do século XX - de que o
mundo não gira sobre um caminho previamente traçado, como uma locomotiva que anda sobre trilhos.
Tendo o futuro como algo absolutamente incerto, é preciso pensar com e na incerteza, mas não a
incerteza absoluta, porque, segundo o autor, sempre navegamos num oceano de incerteza por meio de
arquipélagos de certezas locais.
Esperamos - com essa nova forma de fazer ciência - dar um novo passo, sair do lugar21. Essa
é uma etapa de um movimento dialógico de interpretação no qual dialogam elementos como o ponto de
partida (o texto e um movimento retrospectivo), contextos do passado (movimento prospectivo) e
antecipação do futuro contexto. Em outras palavras, Bakhtin diz:

O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de texto eclode a
luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. Salientemos que esse
contato é um contato dialógico entre textos (enunciados) e não um contato mecânico de “oposição”, só

18 Essa liberdade não exime o sujeito de responder. Isso porque o ser é eticamente responsável, ainda que a sua vida ética seja incerta, posto
que se reflete na alteridade a qual não podemos controlar. Assim, não podemos ter garantias ou certezas de uma vida que é eticamente
dinâmica fluída e singular
19 Imortalidade nas palavras de Bakhtin

20 A filosofia da ciência, em sua fase mais positivista, nos mostra que o caminho trilhado pela ciência é o da busca por verdades e de

regularidades nos objetos em estudo. Agora que vivemos em um tempo de incertezas, estas verdades e regularidades já não podem mais ser
buscadas. Os objetos científicos simplesmente não respondem a essa demanda. Nosso ato de conhecimento só pode ser direcionado a um
sujeito responsável e responsível, ou seja, a certeza não cabe mais nas ciências, nem mesmo nas exatas, como evidencia Prigogine (2011).
21 Sobre, conferir o texto de apresentação do livro Para uma filosofia do ato responsável: “A concepção bakhtiniana do ato como dar um

passo”, de Augusto Ponzio.

HETEROCIÊNCIA
356

possível no âmbito de um texto (mas não dos textos e dos contextos) entre os elementos abstratos (os
signos no interior do texto) é necessário apenas na primeira etapa da interpretação [...]. Por trás desse
contato está o contato entre indivíduos e não entre coisas (BAKHTIN, 2003 p. 401).

Ainda segundo Morin (2009), um conhecimento só é pertinente na medida em que se situe num
contexto. Assim, a palavra, polissêmica por natureza, adquire seu sentido uma vez que é inserida num
texto. Reforçando, o texto em si mesmo adquire seu sentido no contexto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao trabalharmos com vida, com sujeitos, estamos lidando com precisão e profundidade.
Porém, a precisão a qual nos referimos não é a mesma de identidade (a=a) como ocorre nas ciências
naturais. Trata-se da precisão como uma superação da alteridade do alheio sem sua transformação
no puramente meu (substituições de toda espécie, modernização, o não reconhecimento do alheio,
etc.).
Compartilhamos com Bakhtin (2003) que não existe a primeira nem a última palavra, assim
como não há limites para o contexto dialógico. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo –
seja este presente, passado ou futuro – existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos,
mas que em algum momento, serão relembrados e vivenciados em forma renovada de acordo com o
novo contexto. Assim, os indícios que construirão nossas análises não será algo morto8. Outros
sentidos aparecerão e terão sua “festa” de renovação.
É importante ressaltar que a opção pelo paradigma indiciário como encaminho metodológico
faz-se uma escolha interessante e rica porque concede rigor metodológico para análises do tipo
qualitativa, em que se busca compreender realidades não percebidas diretamente. No entanto, não
podemos nos esquecer de que se trata de seres humanos, portanto, se lida com textos subjetivos. Por
isso, o rigor é coerente com os passos seguidos pelo pesquisador, de acordo com os indícios por ele
encontrados.
De acordo com Espada Lima (2006) a atenção sobre o particular, proposta por Ginzburg em
sua reflexão sobre o paradigma indiciário, aponta o olhar para a micro história. A intenção não é a de
que o historiador abra mão da totalidade, entendida como a “conexão profunda que explica os
fenômenos superficiais”, mas refletir sobre o universal e singular através da “micro” história é a
única forma de conhecer o que se quer saber por meios da análise circunscrita dos fenômenos que a
revela indiretamente. Em outras palavras, poderíamos dizer que a quebra momentânea da totalidade
nos dá a oportunidade de conhecer mais e melhor sobre ela.
Finalizamos, afirmando que o material de análise na construção da heterociência podem ser
textos – orais ou escritos, produzidos cotidianamente – e o confronto do pesquisador com os mesmos
será buscando sentidos para daí construir respostas. Os textos, sob olhar do pesquisador, serão
colocados em relação com a vida, com as coisas e com o mundo (Cf. MIOTELLO, 2012).

HETEROCIÊNCIA
357

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HETEROCIÊNCIA
358

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Ferreira. São Paulo: Editora da Unesp, 2011.
SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. Sao Paulo: Cortez, 2010

HETEROCIÊNCIA
359
RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar como s


o processo discursivo de construção dos cor
sexualizados no gênero Young Adult. Ainda
muita visibilidade acadêmica por estar inserido
coleção das obras best-seller, o gênero retra
juventude contemporânea e, mais especificame
a problemática em torno do processo de se ins
na sociedade e de se adequar a sua realidad
processo de análise se mostra possível a parti
estudo das proposições teóricas de Mikhail Bak
e da orientação de linguagem como constru
social o que permite uma investigatgação sobr
representações desses corpos na literatura. Ne
perspectiva, a partir da obra “Aristóteles e D
descobrem os segredos do universo” (2014)
possível estabelecer um recorte representa
desse gênero, a fim de se observar como se d
construção discursiva da sexualidade e o quan
gênero discursivo em foco é reflexo dos suje
que o leem. Sendo a construção dos significa
situadas em circunstâncias sócio-histór
particulares, como propõe Moita Lopes (2006
pesquisa problematiza esse processo
sexualidade dos corpos a partir do discurs
evidencia esses sujeitos participantes de
cronotopo. Junta-se ao arcabouço teórico
Guacira Louro (2014) e Judith Butlher (2003)
intenção de, respectivamente, nos permiti
discutir a construção desses corpos sociais
sexuais) e evidenciar a construção do ser a pa
do discurso. A pesquisa se insere na área
Linguística Aplicada e se orienta teór
metodologicamente por uma investiga
qualitativa dos dados.

Palavras-Chave: Young Adult. Sexualidade.Cor


Cronotopo. Contemporaneidade

HETEROCIÊNCIA
360

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
361
Palavras-Chave:

AS RELAÇÕES
DIALÓGICAS NA CAPA DE
REVISTA: a (com)posição dos
elementos verbo-visuais na construção de
sentido

HOLANDA, Maria Fabiana Medeiros de22

INTRODUÇÃO

D
urante o nosso dia a dia somos bombardeados com diversos tipos de informações seja ela
verbal ou não verbal. Nessa perspectiva, os veículos de comunicação se debruçam cada vez
mais em transmitir fatos e acontecimentos associados a algum tipo de imagem, uma vez que no
mercado editorial existe um leque de publicações cujo interesse e enfoque destina-se sempre a
alimentar a curiosidade de um público-alvo. Por isso, tal segmentação do público permite à revista
criar um artefato jornalístico capaz de satisfazer, por meio de seu estilo de texto e seleção da
matéria, um público de idade e gênero diferente. Pensando nisso, a construção de título e de imagens
na capa de revista, foco do nosso objeto de estudo, tem como propósito atingir e manter seu público-
alvo.
Em detrimento disso, esse artigo tem como foco analisar uma capada revista Mundo Estranho.
Para isso, propomos uma leitura do verbo-visual presente na mídia impressa, mas especificamente da
capa da revista, edição Junho de 2016. Esse enfoque busca identificar as relações dialógicas presente
na capa analisada, uma vez que a análise da capa problematiza as formas e as interações entre o
verbal e o não verbal levando em conta algumas regularidades enunciativo-discursivas e que tipificam
a interação mediada por esse gênero na mídia, com foco na composição e construção das relações
dialógicas com outros enunciados. Os resultados apontam que o sentido, nesse gênero, tem sua

22Mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL/CNPQ/UFRN) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
E-mail: hmfabiana@hotmail.com

HETEROCIÊNCIA
362

construção na relação dialógica entre a dimensão verbal e visual, cabendo ao leitor recuperar o fio
discursivo que os une. Esse artigo é um recorte do resultado da pesquisa de mestrado que foi
desenvolvida pelo programa de Pós-graduação em estudos da linguagem da UFRN e se insere na Área
da Linguística Aplicada (LA). Além disso, a nossa fundamentação teórica estar pautadanos conceitos
relacionados ao dialogismo, signo ideológico, enunciado concreto, gêneros discursivos e as relações
dialógicas com base na teoria de Bakhtin e o Círculo, bem como de seus estudiosos como Brait (2014)
e Faraco (2009).

1. POR UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA DA LINGUAGEM

Nos escritos do intitulado Círculo de Bakhtin, identificamos o enunciado como uma categoria
essencial para as reflexões sobre Língua(gem), suas relações de alteridade e valoração social. Em
uma divisão didática, Marxismo e Filosofia da Linguagem se apresenta em 3 partes, cujo objetivo é
estudar um campo de pesquisa da filosofia, em que não somente estuda as relações entre
pensamento e linguagem, mas evidencia a importância da palavra e da fala em diferentes perspectivas
discursivas.
Nesse sentido, Bakhtin e seu círculo, constituído de grandes pensadores, anteciparam-se no
tempo ao refutar a análise estruturalista da linguística saussureana, segundo a qual o interesse
recaía no estável, na estrutura, no invariável.
A natureza dialógica do discurso apresenta como princípio nuclear o desdobramento na
perspectiva discursiva da linguagem. O conceito de enunciado como manifestação dessa dialogia
interna – eu e outro – não se reduz ao texto, mas se volta para o outro na forma de atitudes
responsivas, uma vez que, o enunciado está sempre refletindo ou refratando ideologicamente a voz
alheia, por meio de posicionamentos que garantirão particularidades próprias ao desenvolvimento
interacional da comunicação humana. E isso é perceptível nas relações sociais em que os sujeitos
estão inseridos socioideologicamente na e pela linguagem.
Consequentemente, o eu e o outro estabelecem enunciados valorativos numa cadeia
discursiva, pois, para Hall (2010), o mundo tem de ser construído para significar, uma vez que a
linguagem e a simbolização são os mecanismos utilizados pelos quais o sentido é produzido. Na
verdade, a compreensão de que a palavra permanece sempre alheia ao outro se torna constitutiva da
vida social. Conforme assevera Ponzio (2011, p.193), “O eu, como a língua, nunca é unitário, possui
alteridade, uma pluridiscursividade, um plurilinguismo interno, uma pluralidade e diversidade interna
de vozes (heteroglossia)”.
Em decorrência disso, temos uma pluralidade de vozes que não se cala, mas reflete e refrata
na relação de interação entre o enunciador e o seu interlocutor. Nesse caso, o outro é refratário a
qualquer tentativa de anular e subjugar a identidade do eu, uma vez que esse “eu” necessita do outro
para construir o próprio mundo e a si mesmo.

HETEROCIÊNCIA
363

Com essa concepção, temos formas de comunicação que circulam nas diversas esferas
comunicativas da atividade humana, as que preenchem um formato mais ou menos estável, uma forma
composicional e um estilo. Nesse sentido, os textos estão centrados na sua materialidade, os quais se
voltam para os enunciados que, na concepção dialógica discursiva, mantêm um diálogo contínuo entre
o eu, o outro e o contexto social. Autores como Faraco (2009) afirmam que o Círculo prezava por dois
objetivos na concepção da linguagem e seus possíveis problemas. O primeiro diz respeito às
objetivações da historicidade vivida, obtidas pelos processos de abstração típicos da razão teórica e o
segundo diz respeito à construção de uma teoria marxista da chamada criação ideológica, ou seja, da
produção e dos produtos.

2. GÊNEROS DISCURSIVOS

Com o passar do tempo, a sociedade evoluiu em todos os âmbitos e assim, podemos pensar
nas várias transformações pelas quais tem passado e como tais mudanças têm promovido um novo
olhar no fazer cultural dessa sociedade contemporânea. Nessa perspectiva, Bauman (2001), em uma
análise da sociedade moderna postula haver uma transição da sociedade sólida para a líquida.
Segundo Bauman (2001), essa liquidez preenche os espaços, os meios com a mesma
velocidade que se dissipa, ao contrário da solidez que só aceita a forma já estabelecida. Assim, a
sociedade moderna líquida não se fixa a um tempo e a um espaço específico, mas procura transitar
em diversos cronotopos, cuja relação tempoespaço influencia na construção axiológica de um sujeito
imerso em situações complexas, heterogêneas e transitórias. Sobre isso, Casado Alves (2012) ratifica
a influência do cronotopo no gênero discursivo quando afirma que:

[...] cada gênero do discurso pressupõe um cronotopo legítimo para serem enunciados e recebidos pelo
ouvinte/leitor. Assim, o lugar e o tempo (cronotopo) onde o ouvinte/leitor tem acesso ao gênero
discursivo é, muitas vezes, fundamental para que ele possa compreender sua estruturação, seu projeto
discursivo e o seu direcionamento. Esses lugares/tempos não são externos aos gêneros, mas
constituintes de sua forma e de seu conteúdo, como também, de seu modo de produção e de recepção
(CASADO ALVES, 2012, p. 308).

Pensando na funcionalidade dessa modernidade líquida, cada gênero discursivo imerso na


sociedade apresentará características próprias que servirá a determinado campo de atuação, tempo
e espaço, já que à medida que cresce e se criam diferentes atividade de trabalho, os gêneros
discursivos vão evoluindo e se tornando primordial nas diferentes esferas da comunicação humana,
uma vez que todas as nossas ações são externadas por meio da linguagem, seja oral seja escrita, e
estão vinculadas a algum gênero discursivo.
Nesse sentido, a palavra é prenhe de duas faces que refletem e refratam um posicionamento
ideológico. Dessa forma, ela está ancorada na concepção bakhtiniana de que toda interação verbal é
pautada por meio da linguagem, que se lança como uma ponte ligando o “eu” e o “outro”, numa
construção de teias de sentidos promovidos a partir de enunciados concretos, ou seja, a palavra é o

HETEROCIÊNCIA
364

território compartilhado do falante e do ouvinte. Logo, a utilização da linguagem emana de uma


relação dialógica, na qual dois ou mais integrantes refletem e refratam as condições específicas de
cada sujeito utilizando a linguagem, exercendo, assim, uma forte influência sobre o “outro”.
A realização da comunicação humana visa atender a diferentes necessidades de uso e estas
acontecem em vários contextos sociais, nos quais o falante faz isso observando vários critérios,
mesmo que não conscientemente, como nos afirma Bakhtin:

A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso.
Essa escolha é determinada pela especificidade de um campo da comunicação discursiva, por
considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela
composição pessoal dos seus participantes, etc. A intenção discursiva do falante, com toda a sua
individualidade e subjetividade, é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e
desenvolve-se em uma determinada forma de gênero (BAKHTIN, 2011, p. 282).

Diante do exposto, podemos perceber que a produção de enunciados não se dá de forma


aleatória e sem planejamento, pois os falantes, ao escreverem e/ou falarem, possuem determinadas
intenções comunicativas e, por isso, buscam, em seu projeto de dizer, escolhas que proporcionem a
aquisição de resultados positivos frente aos seus objetivos anteriormente estabelecidos.
Nessa perspectiva, os gêneros discursivos são concebidos como dispositivo de organização,
troca, divulgação, transmissão e, sobretudo, uma fonte inesgotável de criação de mensagens em
contextos culturais específicos. Isso ocorre devido ao fato de mesmo antes de configurar como
grande campo de produção de mensagens, os gêneros representam elos de uma cadeia discursiva
que não apenas une, mas também dinamiza as relações entre as pessoas e/ou sistemas de
linguagens. Para Bakhtin:

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as
possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o
repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se
complexifica um determinado campo (BAKHTIN, 2011, p. 262).

Ademais, a diversidade e a heterogeneidade dos gêneros discursivos são mantidas por causa
das constantes relações entre gêneros e as diversas formas de organização do discurso entre os
sujeitos no mundo, que podem mesclá-los de acordo com a sua necessidade comunicativa intencional.
Portanto, esse contato com os diversos gêneros discursivos pode tornar um sujeito mais preparado
para as diferentes situações comunicativas.

3. ENUNCIADO CONCRETO

De origem russa, viskázivanie significa ato de enunciar, exprimir, transmitir pensamentos,


sentimentos etc. Esse termo utilizado por Bakhtin (2010a) já aponta para o ato concreto de uso da
linguagem. Para ele, enunciado concreto se opõe à oração, pois esta é uma unidade abstrata,

HETEROCIÊNCIA
365

enquanto o enunciado é considerado a unidade real da comunicação. Por isso, existem diferenciações
para o enunciado concreto e a oração. Para o autor, o enunciado pressupõe uma autoria, consiste em
uma unidade real de comunicação; o enunciado pressupõe um acabamento mais específico como o
gênero discursivo a ser utilizado; a atitude responsiva do outro; a alternância dos sujeitos; a posição
valorativa em relação à realidade; enquanto a oração, não pressupõe autoria, é uma unidade
significativa da língua, que possui acabamento gramatical. A oração é neutra.
Nesse contexto, percebemos que o enunciado concreto só se realiza na interação verbal,
comprometendo-se, assim, com uma visão que concebe o sujeito como historicamente situado e
inacabado passível das influências dos diferentes contextos sociais. Isso se confirma quando
pensamos ser o princípio constitutivo do enunciado concreto a contraposição entre a dicotomia
eu/outro.
Existem três elementos caracterizadores do enunciado concreto, são eles: i) a alternância dos
sujeitos da comunicação; ii) o acabamento específico do enunciado; e iii) a relação do enunciado com o
enunciador e com os outros parceiros da comunicação. O primeiro faz menção a essa alternância por
meio dos interlocutores, seja numa conversa informal, seja numa obra literária. Essa alternância é o
grande impulsionador da réplica, cuja responsividade é condição para a concretização da cadeia
dialógica, uma vez que a relação entre os sujeitos ocorre “face a face”, no interior do enunciado,
disseminando discursos por meio do postulado da réplica. Assim, essas réplicas, são comumente
chamadas de reações-respostas a enunciados anteriores que

[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa


simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou
parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-la, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se
forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a
partir da primeira palavra do falante (BAKHTIN, 2011, p. 271).

Todo “enunciado responde a um enunciado anterior, ou a uma realidade concreta” (CASADO


ALVES, 2016, p. 167). Por isso, ao assumir um posicionamento diante de alguma situação comunicativa,
o falante/ouvinte manifesta sua visão de mundo em detrimento de outros falantes. Por conseguinte,
sem o postulado da réplica, não teríamos um enunciado concreto e, sim uma simples unidade da
língua. Para Bakhtin (2011), a concepção dialógica pressupõe sempre o outro como parte integrante do
discurso e, portanto, há sempre de considerar o discurso do outro em detrimento do discurso que
produz em si mesmo.
O segundo elemento trata do acabamento específico do enunciado que, segundo Bakhtin, dá-se
de três formas: exauribilidade do objeto e do sentido; um projeto de discurso ou vontade de discurso
do falante; e as formas típicas composicionais e de gênero do acabamento. É importante pontuar que
os três fatores definidores do acabamento específico serão instituídos em função do gênero
discursivo e da esfera de comunicação. Além disso, esse acabamento diz respeito a não conclusão, a
um processo de inacabamento em consonância com o projeto de dizer e com os gêneros discursivos.

HETEROCIÊNCIA
366

Por último, a relação do enunciado com o enunciador e com os outros parceiros da


comunicação verbal. Para Bakhtin (2011), o enunciado é sempre direcionado a alguém. Sob essa ótica,
ele aponta que a composição e o estilo do enunciado não são os únicos responsáveis pela relação
valorativa entre os aspectos semântico-objetal dos discursos. Nesse processo, estão em jogo as
relações valorativas, não somente com o elemento semântico ou com os elementos linguísticos mas
também temos de levar em consideração a relação do enunciador com os enunciados dos
participantes da comunicação verbal.

4. O GÊNERO CAPA DE REVISTA

Na perspectiva bakhtiniana, todos os enunciados possuem formas relativamente estáveis, de


modo que o gênero discursivo possui três elementos fundamentais, a saber: conteúdo temático, estilo
e construção composicional. Esses elementos situam os gêneros em cada esfera social. Diante dessa
realidade, consideramos a capa de revista como gênero, pois ela elenca características que lhe são
típicas.
A fim de atingir o público pretendido, a capa de revista acaba sendo o responsável por
agregar um caráter publicitário à revista. Para entender as características inerentes a esse gênero,
corroboramos o que diz Puzzo (2009b) sobre a capa de revista:

Sob esse enforque, as capas de revistas são consideradas gêneros discursivos secundários, por
exigirem um processo de elaboração complexo. Há um enunciador, representado por uma equipe de
produção responsável por anunciar as matérias veiculadas em cada edição: informações, reportagens,
resenhas, geralmente de interesse imediato. Além desse anúncio, existe a necessidade de tornar os
assuntos relevantes e atraentes para o leitor, de modo a provocar seu interesse pela aquisição e leitura
desse material anunciado nas capas. Sendo assim, na elaboração desse enunciado há a participação de
vários profissionais: redator, diagramador, ilustrador, fotógrafo ou artista plástico, entre outros,
dependendo das imagens a serem projetadas (PUZZO, 2009b, p. 65).

Considerando que as capas são enunciados concretos, de acordo com os pressupostos


bakhtinianos, temos, no processo de elaboração, os elementos comuns como: chamadas referentes às
temáticas sobre as matérias versadas na revista, elaboração e preparação estética das imagens e da
diagramação que constitui o know-how, bem como a assinatura e o logotipo da empresa de
comunicação responsável pela edição, de modo que sejam imediatamente reconhecidos como tal pelo
público leitor. Além disso, as capas possuem um acabamento mais ou menos estável.
As empresas buscam, por meio da criação da marca, uma valorização perante o público.
Portanto, a ideia é articular a publicidade e a qualidade do produto para sustentar a marca em um
mercado competitivo. Nesse sentido, as relações dialógicas imbricadas na comunicação verbal e não
verbal tornase, para Gonzales (2003), um mecanismo para desvendar significados, uma vez que:

HETEROCIÊNCIA
367

A fotografia estabelece em nossa memória um arquivo visual de referência insubstituível para o


conhecimento do mundo. Essas imagens, entretanto, uma vez assimiladas em nossas mentes, deixam de
ser estáticas; tornam-se dinâmicas e fluidas e mesclam-se ao que somos, pensamos e fazemos. Nosso
imaginário reage diante das imagens visuais de acordo com nossas concepções de vida, situação
socioeconômica, ideologia, conceitos e préconceitos (GONZALES, 2003, p. 45).

Há, pois, por parte dos elementos não verbais, uma tendência em propiciar diferentes leituras,
além de provocar diversos impactos em cada leitor. Outro ponto de extrema relevância é pontuado
por Puzzo (2009a), quando afirma:

No processo de elaboração, portanto no nível imediato, o diálogo se estabelece entre os componentes


da equipe de produção afinados com a editoria. Esse processo dialógico evidencia-se na escolha da
unidade temática que gerenciará todo o projeto verbal e visual: chamadas, e sua distribuição na página,
os tipos gráficos, imagens ou fotos, cores e outros elementos composicionais. Pela unidade temática
mantida no enunciado, o(s) enunciador(es), pressupõe(m) um leitor correspondente ao público/leitor da
revista. Além disso, considera também os possíveis interesses pelos episódios ocorridos no contexto
imediato. Desse modo, as capas são concebidas em função de relações dialógicas complexas (PUZZO,
2009a, p. 65)

Assim, a capa da revista ME anuncia as principais curiosidades e reportagens contidas no


interior da revista. No entanto, na própria capa, existe uma hierarquia em relação à chamada principal
da revista, visto que os outros assuntos ficam distribuídos em lugares estratégicos de acordo com o
grau de importância. Dessa forma, esses elementos constituem um enunciado concreto em vários
níveis. Entre eles, o linguístico e o extralinguístico, cuja organização interna tornará a capa mais
atrativa ao leitor.
Assim, o conteúdo temático, a forma de composição e o tratamento estético dado à capa
representam o gênero capa de revista. Como gênero discursivo, a capa apresenta uma característica
prototípica que possibilita o seu reconhecimento imediato. Além disso, Bakhtin (2011) afirma que todo
enunciado é igualmente determinado pela especificidade de um campo de comunicação, ou seja, cada
enunciado é particular e individual no seu campo de atuação. E é essa individualidade que tornará a
revista reconhecida no mercado editorial e entre os leitores.

5. RELAÇÕES DIALÓGICAS E O PROCESSO DE CARNAVALIZAÇÃO

Conceitos como dialogismo, relações dialógicas, polifonia e carnavalização não são apenas
termos ligados à teoria literária e/ou análise linguística. Esses conceitos vão de encontro à profusão
de qualquer prática política, cultural e econômica que tenta impor um discurso monológico,
excludente e monofônico direcionador da sociedade.
Na perspectiva bakhtiniana, o processo de comunicação está longe de ser passivo, pelo
contrário, para esse estudioso da linguagem, todo ato de fala ocupa uma posição responsiva em
relação ao discurso do falante/ouvinte, pois:

HETEROCIÊNCIA
368

Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau
desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela
forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensão passiva do significado do
discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena,
que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta (BAKHTIN, 2011, p. 271).

Diante disso, temos uma palavra que reflete e refrata diversos posicionamentos ideológicos,
alicerçada em ondas crescentes de ecos e ressonâncias verbais que culminam em um produto
ideológico. Sob esse viés, o hiato dialógico se manifesta na possibilidade de diferenciação, quando a
palavra é direcionada de uma forma e volta de outra, ou quando se embaraça em um enunciado e se
desembaraça em dois, a palavra vai formando uma cadeia discursiva, tendo consciência ou não, é
sempre internamente dialógica e em diferentes graus. Desse modo, surge o conceito de polifonia que,
segundo Bakhtin (2010b, p. 5), “Dostoievski é o criador do romance polifônico. Criou um gênero
romanesco essencialmente novo”.
No romance polifônico, os personagens (ao menos os personagens principais) assumem a
autoria do discurso, sendo verdadeiros sujeitos que ressoam, interagem e dialogam com todas as
vozes dos personagens, ou seja, no plano artístico, os personagens de Dostoievski não são apenas
objeto do discurso do autor, mas sim os próprios sujeitos desses discursos. Desse modo, os
personagens no romance polifônico assentam-se numa diversidade de um “eu” em relação a outro
“eu” nas narrativas, uma vez que,

Suas obras marcam o surgimento de um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura
a voz do próprio autor no romance comum. A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a
palavra do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas
características, mas tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui independência
excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadnunando-se de
modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis (BAKHTIN, 2010b, p. 5).

O escritor não está isolado no mundo, blindado das influências sociais, políticas e econômicas.
Tanto a obra literária quanto o autor sofrem influências externas, e por isso eles se configuram como
personagens que estão de passagem construindo um enredo carregado de signos dos mais diversos
significados.
Dessa forma, Bakhtin aponta, nas obras de Dostoiévski, uma atmosfera fantástico-
carnavalesca (BAKHTIN, 2011, p. 201). Essa característica permite ao romance dostoievskiano uma
dinamicidade, um jogo carnavalesco com a imagem da sociedade cheia de contrastes, de mudanças,
de anseios, de súbitas transformações que permitem aos personagens secundários ainda mais
contrastes carnavalescos. Por exemplo, o autor estabelece diálogo entre o paraíso e o inferno, de
modo variado, refletindo uma ambivalência carnavalesca. Nesse caso, Bakhtin ratifica a importância
da carnavalização, uma vez que:

HETEROCIÊNCIA
369

A carnavalização tornou possível a criação da estrutura aberta do grande diálogo, permitiu transferir a
interação social entre os homens para a esfera superior do espírito e do intelecto, que sempre era
predominantemente esfera da consciência monológica una e única, do espírito uno e indivisível que se
desenvolve em si mesmo (no Romantismo, por exemplo). A cosmovisão carnavalesca ajuda Dostoiévski a
superar o solipsismo tanto ético quanto gnosiológico (BAKHTIN, 2011, p. 205).

Temos, assim, um jogo de luzes e sombras articulado com palavras que se confrontam e se
revelam na disputa por um lugar presumível, coerente com os diversos fios direcionadores de uma
nova poética, capaz de movimentar um jogo dialógico infinito. A dialogicidade está entrelaçada nas
constantes interações sociais dos indivíduos.
Ademais, ligado ao conceito de relações dialógicas está a noção de carnavalização no escopo
desta pesquisa. Um conceito que nos interessa mobilizar, na medida em que Bakhtin aponta para a
importância de elementos como o riso e o grotesco, pois tais manifestações emergiam na cultura
popular das diversas formas como: manifestações com monstros, banquetes orgiásticos, palhaços,
deformidades físicas, entre outras.
A carnavalização em Bakhtin (2011) é um conceito que se reporta a um conjunto de variadas
manifestações de festividades, ritos e tipos carnavalescos, o qual tem o sentido puro da essência do
carnaval em suas raízes primitivas, atrelado ao desenvolvimento de classes sociais, repleto de
símbolos e de desconstrução de rituais hierarquicamente estabelecidos. As diferentes manifestações
do riso e do culto compartilhadas na praça pública, nos festejos opunham-se à cultura oficial, ao tom
sério, religioso e feudal dominante na época.

6. ANÁLISE DO CORPUS

Esta pesquisa está inserida no campo da Linguística Aplicada e configura-se como sendo de
natureza qualitativa-interpretativista, de abordagem sócio-histórica, já que esta concebe a
construção do conhecimento como uma interação que se realiza entre sujeitos (FREITAS, 2007). Essa
escolha metodológica se alinha com o aporte teórico que orienta a nossa análise. Entendendo,
portanto, que a pesquisa se realiza em um encontro entre sujeitos, são fundamentais conceitos como,
por exemplo, signo ideológico, gêneros discursivos, enunciado concreto e relações dialógicas
(BAKHTIN, 2011; BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010; BRAIT, 2014; FARACO, 2009).
Na condição de unidade da comunicação humana, o enunciado carrega valores sociais,
transita em esferas diversas de atividade, serve a múltiplos objetivos (BAKHTIN, 2003). Com base
nisso, podemos dizer que o enunciado tem natureza mediadora das práticas sociais, envolvendo o
mundo dos sujeitos e evidenciando seus atravessamentos ideológicos, políticos, históricos,
mercadológicos.

HETEROCIÊNCIA
370

Figura 1 – Capa 1

Fonte: Revista Mundo Estranho, n. 181, jun. 2016.

Para a escritura desse artigo selecionamos a capa de revista referente ao mês de


junho/2016. Partindo do pressuposto teórico-metodológico, a imagem foi elaborada com o intuito de
manter o dialogismo em vários níveis, uma vez que a imagem busca uma interação entre a linguagem
verbal e visual a fim de informar ao seu público leitor sobre a reportagem-chave da revista.
Inicialmente, percebemos na capa dessa edição a referência a uma das organizações
secretas que reverbera o culto à liberdade, à fraternidade e à igualdade entre os homens: a
Maçonaria. Para isso, a organização tem princípios fundamentados na tolerância, na filantropia e na
justiça. O seu caráter secreto deve-se a perseguições, à intolerância e à falta de liberdade
demonstrada pelos regimes políticos da época. Hoje, com os ventos democráticos, os maçons
preferem manter-se dentro de uma discreta situação, espalhando-se por todos os países do mundo.

HETEROCIÊNCIA
371

O termo maçonaria é de origem francesa, cujo significado é construção. Em relação às


origens dos maçons, não existe uma voz homogênea, pelo contrário, é bastante controversa. Alguns
historiadores defendem que a origem foi no Antigo Egito, outros relatam que foi nos tempos de
Salomão, e outros ainda afirmam que surgiu no período do Iluminismo.
Sendo uma sociedade secreta, seus membros são aceitos por convite expresso e integrados à
irmandade universal, por uma cerimônia denominada iniciação. Os maçons trazem consigo muitas
simbologias. A disposição das cadeiras, o altar, os três degraus, a rocha bruta e a rocha polida, o
compasso, o esquadro e o grande “G”, são alguns símbolos relacionados à maçonaria.
Em detrimento disso, essa análise tomou como amostra a capa de revista que aborda vários
elementos da maçonaria. A imagem primária da capa traz à tona duas colunas, que representam o
suporte a uma estrutura superior e dão sustentação à obra. Nos templos maçônicos, eram utilizadas
tanto colunas inspiradas no templo de Salomão quanto na arquitetura Grega. Na parte superior, está o
“olho que tudo vê”, mais um elemento simbólico que indica aos maçons que o criador está vigilante a
todos. Normalmente, o olho maçônico, também chamado olho da providência, tem um semicírculo de
luz sob o olho.
Ainda referente às colunas, observamos outros ícones de poder estampado nas colunas. Na
parte superior, do lado esquerdo, temos o triângulo isósceles usado por povos da antiguidade como
símbolo do divino. No lado direito, observamos a chave como símbolo muito comum nos graus maçons,
pois ela é um símbolo de inteligência, prudência e discrição.
Seguindo a descrição dos elementos não verbais, observamos que, ao lado da imagem da
chave, aparece um ramo de acácia, que representa para os maçons a imortalidade da alma, um dos
preceitos da ordem. Na parte inferior do lado direito, encontram-se, ainda, as seguintes imagens: o
nível (cujo significado para a maçonaria é de igualdade e justiça); em seguida, o problema de Euclides
(representado por três quadrados), essencial ao trabalho dos pedreiros que deram origem ao grupo
maçom.
Já a imagem central, exposta na capa de revista, é a representação do compasso, articulado
ao esquadro e, na ponta do compasso, a presença do círculo. Além disso, de forma destacada no meio
do compasso e do esquadro, temos a letra “G”. O compasso traz em si uma forte representação para
a maçonaria, pois representa o plano espiritual. Somado a ele, temos a ocorrência do círculo,
centralizado, pois o círculo traçado com o compasso representa as lojas maçônicas. Outro elemento
diz respeito ao esquadro, ele é um instrumento da engenharia civil, resultante da união das linhas
verticais e horizontais, mas, para o grupo maçom, representa o plano terreno e também a ação do
homem sobre a matéria e a ação do homem sobre si mesmo. Semanticamente, ele representa a
conduta, cuja obediência deve ser guiada pela linha reta. Além disso, simboliza a moralidade, a retidão
e as coisas concretas do mundo.
No tocante à letra “G”, entre o compasso e o esquadro, não existe uma definição categorica
quanto a ela. Ela é a sétima letra do alfabeto, considerado o número da perfeição. No entanto, uma das

HETEROCIÊNCIA
372

teorias vigentes diz respeito à afirmação de que começou nos locais de origem anglo-saxônica,
simbolizando o grande Arquiteto do universo.
Outro símbolo atrelado à maçonaria é o piso xadrez. Esse piso não era simplesmente uma
peça decorativa, visto que o pavimento mosaico tem uma simbologia para os maçons, é o chão de
todos os rituais de lojas maçônicas. Além desse aspecto, o xadrez representa a dualidade entre o bem
e o mal.
Somados a esses elementos não verbais na capa, logo abaixo da foto principal, temos a
manchete “SEGREDOS DA MAÇONARIA” em caixa alta, cujo objetivo é colocar em evidência a manchete
da revista; e o resumo da notícia “Descubra o que rola entre portas fechadas na sociedade que há
séculos influencia a história. Os símbolos misteriosos, os rituais, as teorias da conspiração sinistras e
muito mais!”, cujo objetivo é explicar e comentar de forma sintética a imagem ilustrativa da
publicação.
Desse modo, a revista construiu uma imagem manipulada/trabalhada com um dos símbolos
da maçonaria, o compasso, com predominância da cor amarela. Esse tom ocupa a maior parte do
espaço compositivo, tanto do elemento verbal (o título da revista) quanto do não verbal (imagem
principal centralizada em destaque). Depreende-se que foi tratada pelo design com o objetivo de
construir um sentido para o leitor. Nesse caso, a cor é mais uma fonte para a construção de sentido,
pois “a cor está, de fato, impregnada de informação, e é uma das mais penetrantes experiências
visuais que temos todos em comum” (DONDIS, 2007, p. 64).
Além do fato de a imagem central está vinculada à cor amarela, concebe-se que isso não é
uma escolha aleatória por parte do grupo de design da revista. Esse tom de cor remete à luz e ao
calor, e não somente isso, tratando-se das relações de analogia, a função da cor amarela,
especificamente na imagem central da capa, é de remeter ao ouro, cujo sinônimo representa a
riqueza e o dinheiro. Esses elementos estão correlacionados com a maçonaria. Nesse caso, o efeito de
sentido está associado não apenas à cor mas também ao conjunto de outros elementos visuais e
verbais. A analogia metafórica de riqueza é também construída no próprio título da revista, ao
apresentar um tom dégradé nos tons de laranja e amarelo, cujo significado também remete à riqueza
e à prosperidade.
Estabelecendo o diálogo entre os elementos verbais e não verbais presentes no enunciado,
apontamos que a questão abordada neste estudo é que a revista, como produto final, seria um
simulacro de um produto real. Dessa forma, para que ocorra o projeto de dizer, faz-se necessário
articular os elementos verbais – como a manchete e o resumo da notícia – com os elementos não
verbais, ou seja, os símbolos maçons. Nesse caso, a alternância desses elementos é que garantirá,
por parte do leitor, um conhecimento compartilhado, que permite a este um posicionamento de
adesão ou não em relação ao tema da capa do mês. A adesão inicial se dará na medida em que o leitor
opta por comprar a revista em detrimento do interesse por essa temática.
Sabemos que as relações dialógicas delineadas por Bakhtin ultrapassam o diálogo face a face
e, por isso, o diálogo não é apenas representado em um enunciado por meio da alternância entre as

HETEROCIÊNCIA
373

vozes. Pensando no nosso objeto de análise, concluímos que as relações dialógicas desenhadas na
capa de revista buscam um diálogo entre diversas vozes, ou mesmo conhecimentos compartilhados
capazes de produzir no leitor a construção de sentidos. Quanto ao horizonte dialógico, procuramos
entendê-lo, conforme pontua Bakhtin, quando afirma que:

A palavra do autor, que representa e emoldura o discurso do outro, cria para este uma perspectiva,
distribui sombras e luz, cria a situação e todas as condições para que ele ecoe, por fim penetra nele de
dentro para fora, insere nele seus acentos e suas expressões, cria para ele um campo dialogante
(BAKHTIN, 2015, p. 155).

A capa de revista é considerada um gênero discursivo secundário e tem a elaboração


complexa e isso torna o processo de criação um grande desafio para a equipe envolvida na
elaboração dela, uma vez que a capa é constitutiva de um enunciado concreto, na perspectiva
bakhtiniana, pois traz um posicionamento e uma ideologia determinada.
A imagem apresentada na capa é uma representação de uma história real, alicerçada em
símbolos cuja representatividade está traçada para revelar um mundo que, para muitos, ainda está
permeada de mistério: a maçonaria. Apesar disso, para que o objetivo da capa seja alcançado,
pressupõe que o leitor tenha um conhecimento prévio da temática exposta, ou seja, ele precisa ter um
referencial. Para isso, o leitor deverá estabelecer conexões dentro do enunciado com todos os
elementos que compõem a capa de revista.
Uma única capa reúne, em seu conteúdo, uma infinidade de elementos icônicos que
proporcionam diversas informações para diferentes leitores. Essa possibilidade de leitura propicia
análises e interpretações múltiplas, cuja relação dialógica fica a critério do repertório cultural e da
ideologia de cada leitor.
Desse modo, as imagens dos símbolos maçônicos que se apresentam de forma separada, ao
ser articuladas com a manchete e com o resumo da matéria, acabam por, juntas, formar um
enunciado concreto que, dependendo do leitor, terá um sucesso maior do que outro. Conforme
ressalta Puzzo (2009, p. 130):

A articulação entre a linguagem verbal e a visual, além de atrair a atenção do público, despertando o
desejo de compra e propiciar a apreensão imediata dos assuntos tratados na revista, exerce o poder
persuasivo, levando-o a encampar as ideias subjacentes ao enunciado expresso.

Cada um dos elementos ilustrados na capa é responsável por fazer menção a um conteúdo
histórico, ou seja, a um acontecimento ligado à história. Diante disso, as relações dialógicas
estabelecidas para esse enunciado advêm de um conhecimento histórico compartilhado pelo leitor, no
qual os aspectos verbais e não verbais tornam-se fundamentais para a construção de sentidos. O
desejo em adquirir a capa perpassa pelos diversos fios dialógicos que conduzem o leitor a uma
interação com a temática exposta em cada capa de revista. Diante disso, as relações dialógicas estão
intrinsecamente ligadas ao conjunto verbo-visual. Separadamente, esses elementos não dialogariam

HETEROCIÊNCIA
374

como enunciado concreto e, mais ainda, dificultariam a compreensão do leitor diante da capa de
revista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esse artigo tivemos um conjunto de reflexões teóricas acerca de diversos conceitos
bakhtinianos, os quais se tornam primordial para a vida e vivencia da teoria no campo das ciências. O
estudo de orientação bakhtiniana constata a dialogicidade dos gêneros, uma vez que é constitutivo da
linguagem. Segundo, Bakhtin o dialogismo não se limita apenas a relação entre palavras e enunciados,
mas também são imperativas as relações ideológicas e vozes sociais imbricadas nas falas dos
sujeitos.
Para dar início a este trabalho, compreendemos que os papeis sociais que cada sujeito
assume no tempo e no espaço foi fundamental para perceber as relações dialógicas que se trançavam
em cada capa analisada. Nessa perspectiva, o estudo de orientação bakhtiniana constata a
dialogicidade dos gêneros, uma vez que é constitutivo da linguagem. Segundo Bakhtin (2010a), o
dialogismo não se limita apenas à relação entre palavras e enunciados, mas também são imperativas
as relações ideológicas e as vozes sociais imbricadas nas falas dos sujeitos. A esse respeito, como
pressuposto teórico-metodológico este estudo está alinhado à Linguística Aplicada, uma vez que busca
criar inteligibilidade a partir das relações dialógicas presentes nas capas de revista.
Após confrontar os dados gerados e, consequentemente, os elementos verbais e não verbais
nas capas analisadas, observamos que esses enunciados ecoam vozes de outros enunciados. Isso foi
possível de observar a partir das análises dos dados gerados, pois mostrou que a utilização dos
recursos textuais e dos recursos imagéticos foram indispensáveis para apresentar a capa com apelo
atraente, despertando a atenção do leitor. Desse modo, as imagens apresentadas acabam por, juntas,
formar um enunciado concreto que, dependendo do leitor, terá um sucesso maior do que outro, haja
vista que cada informação, seja ela verbal, seja não verbal, faz menção a outros enunciados
precedentes e subsequentes da comunicação discursiva.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na


ciência da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010a.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucit,
1993.
BAKHTIN, M. A teoria do romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2015.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016.

HETEROCIÊNCIA
375

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiésvski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010b.
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BRAIT, B. Estilo. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2014.
CASADO ALVES, M.P. O enunciado concreto como unidade de análise: a perspectiva metodológica bakhtiniana. In:
HAMMES, R. R. ;ACOSTA, R. P. (Org.). Estudos dialógicos da linguagem e pesquisas em linguística aplicada. São
Carlos: Pedro & João, 2016. p. 163-177.
DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2009.
MUNDO ESTRANHO. São Paulo: Editora Abril, n. 181, jun. 2016
PONZIO, A. A Revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. 1. ed. São Paulo: Contexto,
2011.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
376

No passado colonialista muitas raças foram

O DECOLONIALISMO desfavorecidas em razão de outras. Atualmente no


entanto, vemos muitos traços dessa colonialidade
que ainda não foram, de fato, abolidos. Através

ATRAVÉS DAS
deste texto, nos pautando nas obras bakhtinianas,
buscamos eleger a linguagem viva como a
ferramenta capaz de, enquanto ato resposável e de
capacidade responsiva, e trazemos neste contexto

LINGUAGENS: discursos de dois diferentes discursos, um pautado no campo da


comunicação social, e outro no cinema, para, com
também o aporte teórico necessário para justificar
reflexão nossas escolhas, propor o uso da linguagem como
objeto capaz de modificar essa realidade e
emancipar a sociedade para uma convivência que
respeite a miscigenação e a pluralidade enquanto
caracterísitica de riqueza social e humanitária.
JANJÁCOMO, Caroline 23

MORAES, Flávio Henrique 24 Palavras-Chave: Ato responsável. Decolonialismo.


Linguagem
SANTOS, Tábita 25

INTRODUÇÃO

[…] Quando a personagem e o autor coincidem ou estão lado a lado diante de um valor comum ou frente
a frente como inimigos, termina o acontecimento estético e começa o acontecimento ético que o
substitui ( o planfeto, o manifesto, o discurso acusatório, o discurso laudatório e de agradecimento, o
insulto, a confissão relatório, etc.); quando, porém, não há nenhuma personagem, nem potencial, temos
um acontecimento cognitivo ( um tratado, um artigo, uma conferência) ; onde a outra consciência é a
consciência englobante de Deus temos um acontecimento religioso ( uma oração, um culto, um ritual)”
(BAKHTIN, 2003, p.20).

O
princípio da linguagem está na interação verbal, procedimento que situa as manifestações
comunicativas no campo dos embates ideológicos, travados entre diferentes esferas, pois
“Qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado
pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais
imediata" (BAKHTIN, p. 114, 2006), portanto pelo horizonte social (ideológico) dominante.
A escravidão com vistas à produção econômica para a exportação e outros fatores
sociohistóricos, colocam o Brasil como um país com marcas recentes da colonização. Embora a
população brasileira seja etnicamente miscigenada e por isso diversificada, a questão de raça na
distinção social ainda prevalece de modo que há um contínuo processo de marginalização do negro, do
índio e da mulher, por exemplo, fato que instaura a sub-representação dessas populações.

23 Mestranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade na Universidade Federal de São Carlos.


24 Doutorando em Linguística na Universidade Federal de São Carlos.
25 Mestranda Mestranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade na Universidade Federal de São Carlos.

HETEROCIÊNCIA
377

E como o colonialismo se perpetua? Como escapamos desse panóptico projetado há séculos,


mas que ainda permanece e a ele corroboramos por meio da apreciação do belo e da compreensão
por epistemes que não nos representam? Primeiramente, é preciso compreender que habitamos a
matriz colonial de poder, na qual somos hierarquizados por meio de uma máquina de produzir
diferenças ( princípio da colonialidade) sendo a força motriz dessa máquina “a percepção",
fundamentada na sensação do "olho", da visão, das sensorialidades visuais.
Tais processos de diferenciação, as quais se expressam no campo das classes sociais, das
estratificações e das segmentações urbanas e da ordem capital, também se dá na tradição disciplinar
da academia. Sempre envoltos pela ordem do discurso que se projeta sobre “nosso” modo de pensar,
as disciplinas enquanto meio pelos quais disciplinamos nosso trajeto de apreensão e compreensão
subjaz questionamentos que são da ordem do humano que se diz universal, todavia, as singularidades
presentes na nossa forma de pensar enquanto colonizados não vem à baila como seria preciso.
Sugerimos então neste texto, a linguagem viva, em interação, como ferramenta de reflexão e
luta para a mudança da posição de aceitação inerte da situação de colonizados, para a nova postura
de sujeitos independentes, múltiplos, miscigenados.
Desta forma, passaremos por duas faces da linguagem, através de dois diferentes discursos
enquanto forma de comunicação e arte conjuntamente, elegendo a palavra em sua propriedade
virtual, entendida por Levy (2011) como não simplesmente o contrário do real, mas o exato oposto do
atual, o desterritorializado, aquele ou aquilo que não habita um tempo e espaço presente. Neste
sentido, toda forma de linguagem, como diz Levy (2011, p.35), "lemos ou escutamos um texto", é um
processo de virtualização26, pois que enquanto o pensamento está apenas conosco, individualmente,
ele existe em nós, um tempo e espaço específicos, entretanto, quando o expressamos, seja
verbalmente, seja por meio da escrita, seja com um gesto, este pensamento se aparta de nós, é
desterritorializado, podendo então percorrer o tempo, ele torna-se capaz de incompletar o outro e
levá-lo à assumir a posição de uma consciência responsiva (Bakhtin, 2010) que altere a condição
verdadeiramente emancipatória da nossa sociedade atual e também futura.

1. DISCURSO 1: visões colonialistas em palavras destrutivas

Ao interiorizar nosso discurso, o outro o preenche com sua carga ideológica própria e o
ressignifica à sua forma. A campanha publicitária de responsabilidade social criada pela agência
italiana Armando Testa, por exemplo, buscou impactar com um discurso que enfocou a discriminação
e o preconceito em alguns contextos possíveis. A campanha consiste em peças que tratam os
estereótipos impostos à sujeitos que acabam, de alguma forma, sendo considerados em uma posição

26
A virtualização em Bakhtin poderia ser compreendida com o processo da significação, isto é, uma parte do sentido, não em sua totalidade,
pois cada elemento de uma obra de arte ou de um enunciado cotidiano tem em seu fundamente a palavra alheia, dita e falada por um humano
vivo e real.

HETEROCIÊNCIA
378

inferiorizada, por não se enquadrarem nos padrões que a mentalidade dominante estipula como sendo
os modelos corretos do ser.
Neste sentido, a campanha assume o papel de metalinguagem e traz ao contexto a ideia das
palavras que, quando precursoras do preconceito, são capazes de destruir uma vida. A palavra então,
neste caso, virtualizaria o pensamento discriminatório, que passaria do campo das ideias, ao campo
das significações, que carecem do outro para ser e passam a integrar o coletivo (LEVY, 2011).
A vítima discriminada é representada no contexto pela figura que se destrói à passagem da
palavra que adentrou seus ouvidos, e que com tamanha agressividade é capaz de destroçar sua
consciência. Neste sentido, bem nos cabe recorrer à Bakhtin e a seu conceito de exotopia, "aquela em
que uma das duas pessoas engloba inteiramente a outra e por isso mesmo a completa e a dota de
sentido" (1997, p. 7). Mas nem sempre esse completar pode ser benéfico, assim, podemos ver que a
vítima, como retratada no anúncio, ao ouvir o termo que partiu da consciência do outro e tornou-se
um objeto virtualizado, automaticamente fará um esforço de compreensão, e é neste momento que o
discurso expresso sofre uma nova atualização (LEVY, 2011), sendo interiorizado, portanto,
(re)significado, e por seu caráter violento, destroça a consciência do indivíduo discriminado.
Ao ser exposto à visão exotópica do outro, o sujeito sente-se rotulado e visto pelo outro de
uma forma que nunca poderá se auto enxergar, isto parece destruir sua incompletude que segundo
Bakhtin (1997) é a condição do existir. Ele é posicionado pelo outro como um ser reduzido a uma
existência de caráter inferior e completa, sem possibilidade de modificação, assim a própria visão de
si mesmo, e as outras visões possíveis são substituídas por essa ótica erroneamente completa que o
outro não só oferece, como impõe, deixando a vítima muitas vezes, incapaz de contestar, exatamente
por esta falsa impressão de completude devastadora.

Figura 1. Campanha de resposabilidade social (1)

Fonte:http://www.adeevee.com/aimages/201411/04/armando-testa-avvenire-famiglia-cristiana-words-can-kill-print-365985-adeevee.jpg

HETEROCIÊNCIA
379

Assim, a campanha trabalha a palavra que, quando empregada sobre pré conceitos
formulados nas bases de sentidos decorrentes dos processos colonialistas, podem causar danos
irreparáveis, e fazer da linguagem, enquanto sistema vivo de conexão com o outro, ferramenta de
dialogismo, do lugar que deveria ser de incompletude (BAKHTIN, 1997), uma arma capaz de um
verdadeiro envenenamento social.
Entretanto, faz-se urgente dizer que esta está longe de ser a função única da linguagem. Os
efeitos dependem mais de quem dela faz uso, e portanto, se ela pode ser empregada na destruição
das relações humanas, pode ainda ser trabalhada para religá-las através de movimentos de
conscientização. A própria campanha comprova este argumento ao se apossar da linguagem para
conectar-se com o outro e mobilizá-lo a pensar sobre a tragédia da discriminação.
Para alterar de fato nossa cultura que ainda se faz submissa a tantas formas de estereótipos,
é preciso mais do que nunca incompletar-se e incompletar o outro, e nada mais adequado do que a
linguagem para essa função. O discurso enquanto ato responsável (BAKHTIN, 2010), é aquele capaz de
compreender o outro e tornar-se, mediante esta compreensão, um ato também responsivo, que se
comprometa com a incompletude fundadora. Para Bakhtin (2010,), se nos tornamos acabados,
prontos, nos tornamos também não viventes, pois que passamos à indiferença, e é a isso que a
linguagem enquanto ato responsável se opõe, quando ela é capaz de compreender as mazelas que
afligem o outro, ela se torna ferramenta da incompletude, e torna-se ainda capaz de dar a ele uma
resposta que também venha para incompletá-lo.
Em uma segunda peça da campanha já descrita, temos toda a mesma distribuição dos
elementos já apresentados na figura 1, todavia, a personagem central é substituída de um sujeito com
as caracterísiticas afrodescendente para outro que traz as caracterísiticas físicas e vestuais árabes.
A palavra que de maneira cortante o atravessa e o destrói também é substituída de "negro" para
"terrorista".
Figura 2. Campanha de resposabilidade social (2)

Fonte:http://www.adeevee.com/aimages/201411/04/armando-testa-avvenire-famiglia-cristiana-words-can-kill-print-365986-adeevee.jpg

HETEROCIÊNCIA
380

Desta forma, mais uma vez a campanha vai de encontro à crítica da produção de estereótipos
decorrentes dos valores culturais dominantes, e compreendendo de maneira responsável, que é pelas
palavras que se dá a exclusão destrutiva do outro, se apossa delas em um ato responsivo que visa
escancarar essa insistência nos padrões colonialistas, denunciando-os e também levando a sociedade
como um todo à reflexão para novos atos responsáveis de compreensão, que ajam para as
modificações que visam a verdadeira mudança destes valores ainda escravocratas, se não com
correntes, escravocratas pelas palavras, estas mesmas que tentam ser libertárias.
O vivenciamento interno das imagens em um enredo na figura do personagem que promove a
ação e, por isso, a ação do autor e da consciência geradora e que antevê suas determinações na obra
partem da materialidade real de onde se está no contexto em que a obra é produzida. Embora as
imagens sejam do contexto da Itália, a questão da colonialidade do subjugamento e de domínio sobre o
povo negro e árabe está mais que claro. No entanto, a questão da autoria e do protagonismo do negro,
por exemplo, para com sua própria condição não são realizados, para isso:

“[...] Quando eu vou na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas
mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e
cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade
mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas.”(JESUS, 1997, p. 76)

Em Quarto de Despejo, há o protagonismo na voz de Carolina Maria de Jesus lançado em


Agosto de 1960 e que teve sucesso absoluto justamente pelo caráter inovador da linguagem da obra
em relação ao tema, mas também pelo fato de que essa voz pôde circular por meios em que antes não
podia. A luta para que o Brasil se reconheça como não branco e eurocêntrico possibilitando que vozes
outras sejam materializadas é uma das vias pelas quais o decolonialismo deve se efetivar.

2. DISCURSO 2: o poder das vozes

Compreendemos até agora que a arte também reproduz discursos ideológicos e perpetua
preconceitos, além de colocar muitas vezes, o homem colonizador como o narrador e detentor dos
direitos de contar a história.
O lugar que a personagem que representa essa parcela excluída ocupa na literatura é sempre
coadjunvante, estilizado de forma sexualizada, embranquecida ou objetificada. A produção romântica
no Brasil importa valores estéticos da Europa por parte de seus principais representantes que são, na
sua quase totalidade, homens brancos que pertencem a uma elite. Em consequência, a criação
literária do seu período os colocará na antecena textual de modo estereotipado e fragmentado.
Em romances como Mãe, O Demônio Familiar, Iracema, Lucíola de José de Alencar, ou então,
em “ O mulato” e “ O Cortiço” de Aluísio Azevedo, em que a mulher, o negro e o índio são temas e não
vozes autorais dos mesmos, os quais são ora reduzidos ao lugar da sexualização , da disponibilidade
para o prazer, ora como inocentes e puros, ora como elementos de discórdias ou servidão, ora de

HETEROCIÊNCIA
381

negro e índios que buscam tornar-se brancos, especificamente em “ O mulato” e “ Rei Negro” ( 1914)
de Coelho Neto. Ocorre, então, no processo de criação literária, a imposição subalterna e o subjugo da
exotopia do homem branco aos moldes dos padrões sobretudo franceses e portugueses da época
sobre o diferente, ou seja, das populações já mencionadas.
No entanto, é interessante observar que em outros países colonizados, este tipo de situação
se repete. Os negros são traduzidos pelas vozes dos brancos, são intermediados por outros sujeitos e
não eles próprios. E raramente tem algum papel de destaque em filmes de sucesso.
Como recente exemplo da consequência dessas vozes brancas se sobrepondo às negras,
houve em 2016 uma grande polêmica em torno do maior e mais prestigioso prêmio do cinema mundial,
conhecido como Oscar, entregue anualmente pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, em
Los Angeles, Califórnia. As pessoas do mundo todo encheram as redes sociais de críticas em relação
às indicações e premiações que envolvem quase sempre pessoas brancas, desde 1929. O que faz com
que a grande indústria do cinema consiga reforçar massivamente os seus discursos, ideologias e
cultura em detrimento às outras.
Dentro desse contexto de análise histórica e com a finalidade de se observar a questão da
linguagem como forma de perpetuar o colonialismo tanto no Brasil como fora dele, analisamos o filme
Histórias Cruzadas27 baseado em fatos reais - no original chamado de The Help - e que retrata a vida
de mulheres negras do Mississipi, nos Estados Unidos, na década de 1960, época de segregação racial
e de extremo racismo no país.
Nesta época, as famílias brancas que quisessem alcançar um padrão ideal precisavam ser
compostas por: marido, esposa, filhos, empregada negra e um casa própria com banheiro separado
para as serviçais, já que os negros "poderiam trazer doenças aos brancos". Issp revela uma
completa hipocrisia, uma vez que as mulheres negras eram quem cuidavam das crianças brancas,
seja no banho, roupa ou alimentação enquanto não deveriam tocar nas mulheres brancas ou sequer
olhar nos olhos delas. As crianças acabavam se apegando às serviçais mais que as próprias mães,
porém quando cresciam precisavam tratar todos os negros de igual modo.
Nesse contexto, surge uma jovem escritora branca que não compactua com aquela visão de
mundo e não pretende se casar ou ter filhos. Ela decide criar um livro a partir do ponto de vista das
domésticas, divulgando as injustiças e crueldades que elas viviam, o que faz com que as mulheres
negras passem a ganhar voz, e a gostar do que ouviam. As histórias delas não eram mais contadas
apenas de forma intermediadas pelos brancos, porque alguém decidiu ouví-las e isso fortaleceu o
senso de identidade e de grupo delas, na medida que as outras negras começaram a ouvir as vozes de
suas companheiras ecoando e quiseram falar também.
No entanto, quando começaram a sofrer retaliações individuais por parte das patroas e
também serem perseguidas pela sociedade pelas denúncias que faziam, elas resolvem lutar juntas,
criando elos e experimentando do empoderamento e identidade de grupo. Elas então perceberam que
podiam e deveriam lutar por igualdade e por direitos.

27
Histórias cruzadas: Tate Taylor. [dublado]: Disney/Buena Vista, 2011. (146 min).

HETEROCIÊNCIA
382

O ponto crucial do filme é a parte final, quando uma das mulheres negras percebe que pode
ser escritora também. Ela quer ser a voz. Não quer nem mesmo que uma branca a represente, mesmo
que de forma justa e integral. Ela quer escrever, quer falar. A mulher negra entende que a linguagem
tem o poder de libertá-la ou escravizá-la.
Podemos observar esta ideia à luz de Mikhail Bakthin (1993, p.45) muito bem interpretado por
Geraldi (2015, p.83) ao elencar a questão das alteridades e instabilidades na obra do autor russo,
onde é destacada a importância que Bakthin dava aos atos singulares e dos processos de sua
realização. Quando enfatizou a dicotomia: mundo da cultura e mundo da vida, ao mesmo tempo que
questionava o que era afinal necessário para a construção de novos enunciados.

Trazer as singularidades dos atos, debruçar-se sobre o evento, sobre o particular produz um regime de
pensamento de dupla direção: de um lado se distancia da engrenagem estrutural que reduz cada
ocorrência a mero exemplo da abstração, jogando as diferenças no cesto de lixo das não-
essencialidades; de outro lado permite um enriquecimento constante das compreensões sempre em
processo de construção e, através delas um enriquecimento do mundo da ação, dos atos (GERALDI,
2015,p. 87).

Dentro deste ponto de vista Geraldi ainda questiona com que palavras se farão esse novos
atos? Uma vez que os sentidos são sempre produtos dos sujeitos carregados de interpretantes e suas
histórias.
É preciso que elas surjam das vozes outras, da alteridade para a compreensão de que nem
tudo é como deve ser, ou é como tem que ser. Neste contexto, o autor traz o relato de uma
pesquisadora que decidiu ouvir a opinião de meninos de rua sobre assuntos da vida, mas que
praticamente não conseguiu exprimir muito deles: As crianças de rua já haviam aprendido a se
silenciar sobre tudo. Sabiam que não havia espaço para suas opiniões ou ouvidos para suas falas e se
calaram. “Desconfiança e silêncio são estratégias de sobrevivência no meio da rua. E para estes
sujeitos sociais, se integrados à sociedade organizada, no lugar subalterno a eles destinados, o
silêncio, mais uma vez, será a estratégia de sobrevivência” (Geraldi, 2015, p. 93)
Esta mesma alusão pode ser utilizada na análise do filme “Histórias Cruzadas”, pois as negras
aprenderam a ficar em silêncio para que pudessem trabalhar e ganhar seus sustentos, mesmo diante
de toda a crueldade a que eram submetidas. Aquele parecia ser o único caminho possível. E quando a
escritora branca quis dar voz a elas, elas se aquietaram, até que pouco a pouco foram
experimentando o poder libertador das palavras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos discursos estudados até aqui vimos que em face a esses domínios, a modernidade
exige que nos dediquemos especificamente a fim de que não possamos ver como a lógica da
colonização se estabelece, a qual ainda hoje é fundada em ideia de progresso ou desenvolvimento.
Encontra-se, como fio condutor das relações entre aqueles domínios da enunciação, fundada,

HETEROCIÊNCIA
383

basicamente, sobre o patriarcado e a teologia cristã disseminada na secularização da filosofia e da


ciência.
A matriz colonial de poder tem duas esferas, ou seja, dois níveis de enunciado, primeiro os
projetos de discurso que circulam e de um segundo, o qual trata da questão do controle sobre o
conhecimento que estrutura os domínios sobre o qual se erige a modernidade. No entanto, se a
linguagem pode aprisionar ela também pode libertar, desde que sejam ouvidas as vozes outras.
Buscamos neste texto trazer discursos que fizeram da liguagem uma ferramenta
emancipatória enquanto responsiva, uma vez que para suas elaborações, o uso da compreensão que
para Bakhtin (2010) já é o próprio ato responsável em si, foi aplicado em uma crítica aos discursos
que intentam manter os padrões colonialistas erguidos. Assim, se é pela palavras que a colonilidade,
enquanto arma de submissão, se mantém, é por esta mesma palavra que o decolonialismo se
desenvolve, trazendo à luz atitudes de responsabilidade social efetiva.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São
Paulo, SP: Martins Fontes, 1997.
_______. Estética da criação verbal. Introdução e tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes,
2003.
_______. Marxismo e filosofia da linguagem. 12.ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
_______. Para uma filosofia do ato responsável. Organização de Augusto Ponzio; Tradução de Valdemir Miotello,
Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João, 2010.
_______. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza para uso didático e
acadêmico, de Toward a Philosophy of the act (Austin: University of Texas Press, 1993.
GERALDI, J.W. Ancoragens: Estudos bakthianianos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2015. 176 p.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 6 ed. São Paulo: Ática, 1997.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. A construção da Enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro e João Editores,
2013.

HETEROCIÊNCIA
384

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
385
Há muitas vertentes teóricas frequentemente
utilizadas para pensar o professor e a autonomia
docente. Argumentamos que a perspectiva teórica

O PROFESSOR AUTOR: do professor autor, construída aqui a partir das


contribuições do pensamento bakhtiniano sobre
autor e autoria, é relevante na medida em que nos
planos de trabalho e de aula permite considerar aspectos ainda pouco
explorados sobre o papel do professor para a aula e
para a educação escolar. A partir dela, evidencia-se
o caráter responsivo da prática docente, bem como
os diferentes momentos em que o aluno (o outro do
professor) permeia o trabalho docente. Assim,
amplia-se o debate sobre autonomia docente,
LEMES, Mariana Martins 28
englobando também a importância desta na
elaboração de planos de trabalho e de aula.

Palavras-Chave: Professor. Aula. Autoria

INTRODUÇÃO

N
os estudos em educação, há diversas perspectivas teóricas utilizadas para pensar o professor
e a autonomia docente. As que assumem o professor como proletário, ou como profissional, ou
ainda como intelectual crítico-reflexivo, por exemplo, já foram muito abordadas, e trouxeram
importantes contribuições para o entendimento que temos hoje do papel que o professor ocupa na
sociedade contemporânea. No entanto, tais perspectivas não abordam aspectos fundamentais do
trabalho docente, e nem sempre contribuem para pensarmos o professor em sua prática–
especialmente quando admitem uma separação entre a concepção e a execuçãono trabalho
docente.Ao partir da crítica ao modelo econômico capitalista, muitas das concepções teóricas
utilizadas ainda hoje deixam de focalizar a prática docente em si, e sua importância para a
aprendizagem escolar. Além disso, como indica Contreras em seu livro Autonomia de professores
(2002 [1997]), elas apresentam também limites explicativos.
Propomos então uma nova abordagem para pensarmos o professor, elaborada a partir do
trabalho docente e da relação entre professor e alunos, utilizando as concepções de autor e autoria
desenvolvidas pelo Círculo de Bakhtin29. Buscamos com isso propor os contornos iniciais de uma
possível fundamentação teórica, que permita, talvez, explorar novos aspectos do papel do professor
para a educação escolar.

28 Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Professora de Geografia do Ensino Básico – Secretaria da Educação do
Governo do Estado de São Paulo. E-mail: mariana.martins.lemes@gmail.com.
29 Nos referimos aqui às obras produzidas entre as décadas de 1920 e 1970, na União Soviética. Elas foram elaboradas no contexto de um

grupo de intelectuais de diversas áreas (incluindo linguística, literatura, arte, biologia etc.) que se reunia (especialmente nas décadas de 1920
e 1930) para dialogar e produzir conhecimento sobre diferentes temas (BRAIT e CAMPOS, 2009). Esse grupo foi denominado de Círculo de
Bakhtin por Leontiev em 1967 (SÉRIOT, 2015 [2010]). Mas Bakhtin não era o único intelectual de relevância do grupo, por isso, há uma
dificuldade de estabelecer limites claros de autoria entre os trabalhos e concepções desenvolvidos pelos intelectuais do Círculo de Bakhtin. No
presente trabalho, indicaremos a autoria da maneira como foi atribuída pelas editoras, mas reconhecemos a existência desse debate, ainda em
curso (e apontado também por Faraco [2009], Sériot [2015], e outros), sobre a autoria das obras.

HETEROCIÊNCIA
386

1. AUTOR E AUTORIA

Nos séculos XVII e XVIII o conceito de autor foi utilizado basicamente para indicar a pessoa
que criava e respondia por uma obra. Ganha depois outros significados em meio aos debates sobre
responsabilidade e direitos sobre a obra. Mas é no século XX, especialmente com Barthes, Foucault e
Bakhtin, que a discussão se deslocou das questões legais e de remuneração sobre a produção da
obra, para o processo criativo do autor (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2012 [2004]).
Bakhtin abordou a questão do autor e do processo criativo em diferentes momentos de sua
produção30, formulando um quadro teórico-filosófico complexo sobre o tema. Em cada um desses
momentos Bakhtin considerou a questão da autoria sob um diferente enfoque. Dessas considerações
apontaremos aquelas que, a nosso ver, mais contribuem para pensarmos o professor e sua
autonomia.
Segundo Bakhtin, toda ação humana é permeada pela linguagem e, por isso, possui expressão
semiótica – seja verbal ou não-verbal. A linguagem é empregada pelo ser humano em enunciados, que
carregam em sua composição características do contexto no qual foram elaborados. Cada campo de
atividade humana elabora características estáveis de enunciados, que envolvem questões formais e
funcionais, definindo diferentes gêneros do discurso. Esses gêneros orientam nossa prática
discursiva e podem ser classificados em dois grandes grupos: os primários (gêneros mais simples,
normalmente orais, estreitamente vinculados às condições imediatas da comunicação discursiva) e os
secundários (complexos, predominantemente escritos, e fazem parte de um convívio cultural mais
organizado):
Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se
perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da
atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua
efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes
desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as
finalidades de cada referido campo, não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem [...]
mas, acima de tudo, por sua construção composicional. [...] Evidentemente, cada enunciado particular é
individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.
(BAKHTIN, 2010 [1924], p.261 e 262 – itálico do autor)

Todos as pessoas agem a partir e através da linguagem, e organizam seu discurso segundo os
gêneros determinados pelos campos de ação humana. Ao exprimir-se em qualquer um desses campos
o indivíduo elabora enunciados, que podem ser identificados enquanto unidades da comunicação

30 Argumento desenvolvido por Arán (2014). O primeiro momento corresponderia à década de 1920, englobando as obras escritas no âmbito do
Círculo de Bakhtin. O segundo momento, quando o autor estava exilado, entre 1930 e 1959, no qual Bakhtin se dedicou ao estudo do romance. E
finalmente o terceiro momento, que corresponderia às obras elaboradas entre 1960 e 1975, nas quais o autor aprofunda sua abordagem
acerca da epistemologia no campo das Ciências Humanas.

HETEROCIÊNCIA
387

discursiva, delimitados pela alternância dos sujeitos do discurso31. O enunciado é a materialidade do


acontecimento irrepetível de utilização do aparelho linguístico em um dado contexto, abarcando as
dimensões social, cultural, histórica, psicológica etc. do mesmo (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2012
[2004]).
Cada enunciado é um conjunto de sentidos que sucede e antecede outros enunciados. Os
sentidos do enunciado são determinados pelo autor, que possui dada intenção e que realiza essa
intenção em uma expressão semiótica. Portanto, todo enunciado possui um autor e, se todos os seres
humanos elaboram enunciados ao agir no mundo, todos são autores. Ainda que os enunciados que
elaboramos pertençam a determinado gênero do discurso – ou seja, correspondam a características
formais e funcionais de um dado campo de ação humana – eles também são únicos e formam elos
singulares na cadeia da comunicação discursiva.
Poderíamos então, ao menos inicialmente, definir o autor como a consciência criadora que, ao
agir, expressa-se semioticamente, imprimindo características próprias de sua individualidade no
enunciado, tornando-o único. Mas o enunciado nunca está apartado da cadeia comunicativa, ou seja,
sempre sucede e precede outros enunciados. Todo enunciado possui tonalidadesdialógicas, resultado
da relação do autor com o seu outro. Há, por exemplo, a dialogia referente à concepção do objeto do
discurso: seja qual for o objeto para o qual se volta o enunciado, ele já foi em algum outro momento
considerado por outros indivíduos, em outros enunciados. Assim, todo objeto do discurso responde a
determinados momento histórico e meio social, e carrega consigo significados múltiplos:

Ora, todo discurso concreto (enunciado) encontra o objeto para o qual se volta sempre, por assim dizer,
já difamado, contestado, avaliado, envolvido ou por uma fumaça que o obscurece ou, ao contrário, pela
luz de discursos alheios já externados a seu respeito. Ele está envolvido e penetrado por opiniões
comuns, pontos de vista, avaliações alheias, acentos.
[...]
A interação dialógica que, no interior do objeto, ocorre entre diferentes elementos de sua apreensão e
prévia combinação socioverbal, torna complexa a concepção de tal objeto.
(BAKHTIN, 2015 [1975], p.48-49)

Assim, quando o autor aborda um objeto em seu enunciado, todos os sentidos já atribuídos a
ele estão presentes também. Na prática discursiva do autor está a palavra do outro, e por isso “A
concepção do seu objeto pelo discurso é dialógica” (BAKHTIN, 2015 [1975] – p. 52). O discurso do autor
se depara, a todo momento, com o discurso do outro sobre o objeto.
Os diferentes sentidos, opiniões e pontos de vista sobre o objeto do enunciado configuram
apenas uma forma de dialogicidade interna do discurso. Há ainda outra dialogia com a qual o autor
tem de lidar em sua prática discursiva, relacionada a respostas possíveis ao enunciado elaborado ou,
como denominou Bakhtin, ao discurso responsível antecipado. Quando o autor elabora um enunciado,

31 Segundo Bakhtin: “O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, delimitada com precisão pela alternância dos
sujeitos do discurso e que termina com a transmissão da palavra ao outro, por mais silencioso que seja o ‘dixi’ percebido pelos ouvintes [como
sinal] de que o falante concluiu a sua fala” (BAKHTIN, 2016 [1953], p. 29).

HETEROCIÊNCIA
388

ele o faz tendo em vista o outro que o ouvirá (ou lerá), por isso, imprime em seu texto determinadas
características, na tentativa de antecipar a interpretação e a resposta (linguística e/ou concreto-
expressiva) desse outro. Cria-se, assim, um encontro entre o autor e seu outro em uma nova
dialogicidade interna do discurso: “O falante procura orientar sua palavra – e o horizonte que a
determina – no horizonte do outro que a interpreta, e entra em relações dialógicas com esse
horizonte” (BAKHTN, 2015 [1975] – p.55).
Há ainda mais um aspecto de dialogicidade interna do discurso que devemos apontar: Segundo
Bakhtin, a língua viva e em desenvolvimento experimenta processos de descentralização que a
estratificam em distintas linguagens socioideológicas. Há também processos que visam a unificação
da língua, mas esses atuam em um meio de heterodiscurso, ou seja, em um meio onde a língua já está
estratificada:

Com essa estratificação de gêneros da linguagem entrelaça-se a estratificação profissional (em sentido
amplo) da linguagem, ora coincidindo, ora divergindo dela: a linguagem do advogado, do médico, do
comerciante, do político, do mestre, etc. Essas linguagens evidentemente se distinguem não só por seu
vocabulário: envolvem determinadas formas de diretriz internacional, formas de assimilação e avaliação
concreta. (BAKHTIN, 2015 [1975], p.63)

Como resultado, operamos a partir de diversas linguagens 32 e orientamos nossa prática


discursiva a partir de diferentes gêneros. O autor então se posiciona diante disso ao elaborar um
enunciado, explicitando em maior ou menor medida esse heterodiscurso em seu enunciado. Segundo
Bakhtin, algumas formas de escrita não apresentam essa diversidade (como o poema) enquanto
outras (como o romance) acolhem o heterodiscurso e a diversidade de línguas, apresentando em sua
estrutura certo plurilinguismo social. O autor, assim, é também aquele que, ao criar, considera a
estratificação da língua e determina em que medida ela participará de maneira explícita da obra.
Faraco resume essas três formas de dialogicidade interna do discurso para Bakhtin, ao indicar que
todo dizer apresenta três dimensões diferentes de dialogicidade:

todo dizer não pode deixar de se orientar pelo “já dito”. Nesse sentido, todo enunciado é uma réplica, ou
seja, não se constitui do nada, não se constitui fora daquilo que chamamos hoje de memória discursiva;
todo dizer é orientado para a resposta. Nesse sentido, todo enunciado espera uma réplica e – mais –
não pode esquivar-se à influência profunda da resposta antecipada. [...]
todo dizer é internamente dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação de múltiplas vozes sociais [...].
Essa dialogização interna será ou não claramente mostrada, isto é, o dizer alheio será ou não destacado
como tal no enunciado [...]. (FARACO, 2009, p. 59 e 60 - negrito e itálico do autor)

Logo, o autor é uma consciência criadora que, ao elaborar enunciados, participa de diversas
formas de relações dialógicas, sejam referentes ao objeto, ao plurilinguismo, ou ao discurso

32
Como explicita Bakhtin: “Em cada momento concreto de sua formação, a língua é estratificada em camadas não só de dialetos [...], mas
também – o que é essencial para nós – em linguagens de socioideológicas: linguagens de grupos sociais, profissionais, de gêneros, linguagens
de gerações, etc.” (BAKHTIN, 2015 [1975], p. 41).

HETEROCIÊNCIA
389

responsível antecipado (sua posição na cadeia discursiva, já que todo enunciado responde aos
enunciados que o precederam, e é elaborado considerando os possíveis enunciados que o
sucederão33). Mas, além disso, o autor é também responsável pelo acabamento estético da obra,
definindo uma totalidade de sentido para o enunciado. Essa questão fica ainda mais clara no caso do
Romance. Como aponta Bakhtin, o autor:

[...] é o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra,
e este é transgrediente a cada elemento particular desta.
[...]
O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens
juntas enxergam e conhecem, como enxerga e conhece mais que elas, e ademais enxerga e conhece algo
que por princípio é inacessível a elas, e nesse excedente de visão e conhecimento do autor, sempre
determinado e estável em relação a cada personagem, é que se encontram todos os elementos do
acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas vidas, isto é, do
todo da obra.
(BAKHTIN, 2010 [1924], p. 10-11 – itálico do autor)

Tal excedente de visão, para Bakhtin, não se encerra em obras literárias: está também
presente na vida34. Todos possuímos excedentes de visão sobre os outros, e todos possuímos um
olhar limitado, fragmentário, sobre a nossa condição no mundo. Os horizontes dos indivíduos não são
coincidentes, pois cada ser humano ocupa uma posição singular no mundo – todos estamos situados
em contextos únicos. Quando um contempla o outro, assim, vê-se coisas distintas. O nosso olhar para
o outro abarca aspectos do horizonte desse outro que ele mesmo não tem acesso:

Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse – excedente sempre presente em
face de qualquer outro indivíduo – é condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu
lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado
conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim.
(BAKHTIN, 2010 [1924], p. 21 – itálico do autor)

Mas é possível reduzir as diferenças que existem entre horizontes de visão a partir do que
Bakhtin denomina de atividade estética: em uma relação dialógica, o indivíduo que contempla,
completa o horizonte do indivíduo contemplado. Coloca-se no lugar dele (empatia), retorna a si mesmo
após tal compenetração e age a partir dessa compreensão do horizonte do outro. Trata-se de um ato
responsível e participativo, pois não é indiferente ao outro. Nessa atividade estética, quando o
indivíduo, a partir da sua posição singular no mundo, considera o horizonte subjetivo do outro,

33
Há ainda outras relações dialógicas apontadas por Bakhtin, mais presentes no Romance, como a relação entre autor e personagem –
argumento desenvolvido principalmente nos textos Problemas da poética de Dostoiévski e Autor e personagem na atividade estética (este
último pode ser encontrado no livro Estética da criação verbal). (ARÁN, 2014).
34
Como indica Bakhtin: “Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente
vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre
verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver [...]” (BAKHTIN, 2010 [1924], p. 21)

HETEROCIÊNCIA
390

encontra-se também a expressão semiótica – ou seja, o enunciado. Consequentemente, o enunciado é


um acontecimento também singular e decisivo.
Dessa forma, para o indivíduo é necessário o olhar de outro para que seu horizonte fique
completo. Se ele tentar abarcar todo esse horizonte usando sua percepção (um olhar para si), jamais
conseguirá compreender a si mesmo enquanto imagem e corpo externos.
Tal condição de inacabamento, segundo Bakhtin, é inerente ao nosso corpo interior. Mas na
prática autoral é possível expressar um estado interior com a criação de um corpo alheio em um novo
plano axiológico, ou seja, ao produzir um enunciado (e participar das relações dialógicas que isso
implica), o indivíduo cria uma representação de mundo na qual seu olhar abarca tudo. Assim, o autor é
também a consciência criadora dotada de excedente de visão em seu enunciado: é ele quem confere
acabamento ao mundo por ele representado em expressão semiótica e consegue, de seu lugar
singular, conferir-lhe sentido.

2. O PROFESSOR-AUTOR DOS PLANOS DE AULA E DE TRABALHO

Se todo enunciado possui autoria e se todos nos expressamos por meio de enunciados, todos
os indivíduos (incluindo professores e alunos) são também autores. No seu trabalho, o professor
participa da cadeia de comunicação discursiva elaborando enunciados relativamente estáveis que
pertencem ao gênero do discurso escolar. Esse gênero do discurso apresenta uma variabilidade
interna, e os enunciados elaborados pelos sujeitos que participam desse campo de atividade humana
culminam em diferentes tipos de texto. Os enunciados elaborados pelo professor estão contidos em
diversos tipos de texto do gênero escolar (tais como Reunião de Pais e Professores, ATPC 35, Reuniões
Pedagógicas em Hora Atividade36 etc.). Desses, os que mais nos interessam para a investigação das
interferências são os planos detrabalho, plano de aula37 e a própria aula.
O plano de trabalho é aquele que o professor elabora considerando o que será desenvolvido
ao longo de um determinado período (como dez aulas ou um bimestre) com suas turmas. Nesse plano,
o professor pode prospectar quais são os conteúdos que abordará, as dinâmicas possíveis, bem como
os objetivos que pretende atingir ao longo desse período, além de outros fatores. Já o plano de aula é
menos abrangente, e focaliza o que o professor pretende fazer em um período mais restrito, de uma
aula, com cada turma. Normalmente esse plano também engloba conteúdos, dinâmicas, objetivos etc.,
mas estes são pensados segundo sua operacionalidade em um determinado lugar, com um certo
grupo de alunos, por um período ininterrupto de 45 ou 50 minutos38.

35 Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo, momento que deve compor a jornada semanal de trabalho docente segundo a Resolução SE nº8 de 19
de janeiro de 2012 – referente às escolas estaduais de São Paulo. Até 2012, recebia a denominação de HTPC – Hora de Trabalho Pedagógico
Coletivo.
36 A Hora Atividade faz parte da Jornada Básica Docente: “ Compreende-se por hora atividade o tempo de que dispõe o docente para o

desenvolvimento de atividades extra-classe[...]” (SÃO PAULO [Município] – Lei nº 14.660, Art. 16, 2007).
37 A distinção desses planos elaborados pelos professores aparece em documentos oficiais da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo

e da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (que se refere aos planos de trabalho como planos de ensino).
38 Nos referimos aqui à duração da hora-aula nas escolas da rede municipal (45 minutos) e da rede estadual (50 minutos).

HETEROCIÊNCIA
391

Ao elaborar seus planos de aula e trabalho, o professor cria um enunciado: parte de uma
intenção (por exemplo, prospectar a realização de uma dinâmica para trabalhar determinado tema
com a turma) e realiza essa intenção enquanto expressão semiótica, imprimindo-lhe sentido. O
professor determina as características desse enunciado considerando não só os elementos estáveis
do gênero escolar, mas também a dialogia do objeto do enunciado (ou as outras concepções que já
existem sobre o tema que pretende abordar com a turma), e a possível resposta de quem o lerá (seja
o próprio professor-autor, seja a coordenação pedagógica da escola, que pode eventualmente
requisitar os planos39).
Esses elementos da dialogia interna do discurso são determinantes na estrutura
composicional dos enunciados plano de aula e plano de trabalho. Os planos do professor tangenciarão
e refletirão os discursos alheios sobre o seu objeto, e terão configurações distintas dependendo de
quem será o seu leitor. O plano de aula, por exemplo, se for elaborado considerando que apenas o
professor o lerá, terá uma composição diferente da que obteria caso fosse escrito com o objetivo de
ser entregue ao corpo pedagógico e/ou administrativo da escola.
A produção desses planos é também uma atividade que contém dialogia, onde o excedente de
visão do autor (professor) abarca várias questões. O professor considera os horizontes subjetivos de
outros sujeitos (seus alunos, por exemplo) para criar a expressão semiótica. Como os planos são
tipos de texto que envolvem prospectar outras ações, o professor-autor também tem de considerar
situações futuras possíveis. Para criar um plano de aula ou um plano de trabalho, além de definir
objetivos e estabelecer estratégias, o professor cria uma representação de mundo que envolve as
possíveis condições de trabalho na escola (ainda que essas condições não estejam detalhadas
explicitamente no plano). Retoma-se aqui o princípio de exterioridade40 para Bakhtin: o professor, em
seu posicionamento axiológico, é quem olha para a escola e para cada turma de alunos a partir de
uma posição externa, podendo abarcar com esse olhar aspectos fundamentais do contexto para poder
elaborar planos de aula e trabalho que possuam acabamento e sejam efetivos.
Esses planos elaborados pelo professor-autor são fundamentais para o seu trabalho, pois
orientam como será sua prática ao longo das aulas. Mas o plano de trabalho e o plano de aula não
podem ser confundidos com a aula, que é um texto formado por enunciados elaborados por diferentes
sujeitos (professor e alunos). Além dos elementos de dialogia interna do discurso, a aula coloca
indivíduos em relação dialógica direta, pois se efetiva nas condições de comunicação discursiva
imediata. A aula possui vínculo imediato com a realidade concreta – ao contrário dos planosde aula e
de trabalho.
Como há várias consciências (autores) envolvidas no acontecimento da aula, a forma como se
dará o acabamento dela é imprevisível, isso porque os alunos também são autores de enunciados

39 A leitura dos planos de trabalho e ensino é algo já previsto no caso das escolas estaduais de São Paulo, nas quais os gestores
(coordenadores pedagógicos) devem verificar se os planos abrangem os conteúdos indicados no Currículo do Estado de São Paulo (SÃO PAULO
[Estado] - Caderno do Gestor, 2010). Isso não significa afirmar que os planos são de fato lidos pelos coordenadores.
40 Como indica Faraco: “[...] o princípio da exterioridade: é preciso estar fora; é preciso olhar de fora; é preciso um excedente de visão e

conhecimento para poder consumar o herói e seu mundo esteticamente” (FARACO, 2009, p. 93 - negrito do autor).

HETEROCIÊNCIA
392

irrepetíveis, são indivíduos singulares em contextos únicos. Mas isso não significa que o acabamento
da aula é aleatório: o plano de aula é um enunciado elaborado pelo professor visando justamente
preparar previamente elementos do texto aula para que um dado objetivo seja atingido durante sua
interação com os alunos. Assim, o plano de aula prevê uma coesão interna à aula, assim como o plano
de trabalho propõe uma coesão interna a um conjunto de aulas. Mesmo que imprevisível em muitos
aspectos, se o professor orientar a sua prática discursiva a partir dos seus planos – além de
considerar as relações dialógicas da aula – o texto aula provavelmente corresponderá, ao menos em
parte, aos objetivos previamente estabelecidos pelo professor e à relação dialógica que se estabelece
entre professor e alunos.
Tanto na elaboração dos planos quanto na realização da aula, os alunos são o outro do
professor. O excedente de visão do aluno está presente na elaboração de seus enunciados, assim
como o excedente de visão do professor está presente nos seus planos e na sua enunciação durante a
aula. O professor só o é em sua relação com o aluno, e sua imagem exterior se efetiva e ganha
acabamento nessa interação onde há diferenças intersubjetivas – e vice e versa. Portanto, o
professor-autor pode ser pensado como sujeito responsível em seu agir no mundo - ele pensa e age a
partir da posição singular que ocupa, sendo uma consciência criadora singular.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Num cenário hipotético, no qual o professor pudesse se dedicar apenas ao ensino de sua
ciência e à aprendizagem dos seus alunos, os planos de trabalho e de aula seriam desenvolvidos
visando os objetivos estipulados pelo professor, reforçando-se a autonomia docente. Porém, exige-se
do professor que ele considere outras questões em seu trabalho. A forma como hoje está organizada
a instituição escolar parece influir ou comprometer a autoria do professor, pois estabelece
mecanismos que buscam determinar previamente aspectos dos planos. Isso fica claro ao
considerarmos, por exemplo, o Currículo do Estado de São Paulo (que propõe planos de ensino anuais
para cada disciplina). Ao que parece, há mecanismos que buscam garantir certa uniformização nos
planos de trabalho e de aula dos professores – cerceando sua autonomia autoral. A perspectiva
teórica do professor-autor, assim, lança luz sobre outros problemas que envolvem o trabalho docente
na sociedade contemporânea, abrindo caminho para novas investigações sobre a escola e a educação
escolar no Brasil.

REFERÊNCIAS

ARÁN, Pampa Olga. A questão do autor em Bakhtin. Bakhtiniana, São Paulo, Número Especial, p. 04-25, jan/jul 2014.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 5a ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010 [1924]. 476p.
______. Os gêneros do discurso. 1a ed. São Paul: Editora 34.2016 [1953]. 176p.
______. Teoria do romance I: a estilística. 1a ed. São Paulo: Editora 34, 2015 [1975]. 256p.

HETEROCIÊNCIA
393

BRAIT, Beth e CAMPOS Maria Inês Batista. Da Rússia czarista à web. In.: BRAIT, B. (org.). Bakhtin e o círculo. São Paulo:
Contexto, 2009. p. 15-30.
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 3a ed. São Paulo: Contexto, 2012
[2004]. 555p.
CONTRERAS, José. Autonomia de professores. 1a ed. São Paulo: Cortez, 2002 [1997]. 296p.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. 1a ed. 2009. 168p.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação.Resolução 8, de 19 de jan. 2012. Dispõe sobre a carga horária dos
docentes da rede estadual de ensino.
______. Secretaria da Educação. Caderno do gestor, 2010.
SÃO PAULO (Município). Prefeitura do Município. Lei nº 14.660, de 26 de dez. de 2007. Dispõe sobre alterações das
Leis nº 11.229, de 26 de junho de 1992, nº 11.434, de 12 de novembro de 1993 e legislação subsequente, reorganiza o
Quadro dos Profissionais de Educação, com as respectivas carreiras, criado pela Lei nº 11.434, de 1993, e consolida o
Estatuto dos Profissionais da Educação Municipal.
SÉRIOT, Patrick. Vološinov e a filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola Editorial, 2015 [2010]. 128p.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
394
Com o objetivo de ressignificar as experiências da
orientadora educacional, vividas no cotidiano
escolar, com adolescentes do 6o ao 9o ano, de uma

COTIDIANO ESCOLAR: meu escola municipal do sul de Minas Gerais, são


apresentadas duas narrativas e as metanarrativas
produzidas em diálogo com a teoria bakhtiniana e
campo de batalha outros pesquisadores. As narrativas pedagógicas e
as metanarrativas tornam exercícios potentes de
reflexão (trans-formação) dos atos dos sujeitos
envolvidos no processo educativo na escola. O
cotidiano escolar se configura como o nosso único
campo de batalha, levando em consideração a
multiplicidade de sentidos que a palavra nos
LIBÂNIO, Ana Cristina 41
remete: batalha como esforço na construção de
uma escola dialógica e, batalha como espaço de
SERODIO, Liana Arrais 42
combate, de tensões e conflitos inerentes ao mundo
contemporâneo que os sujeitos da educação fazem
parte.

Palavras-Chave: Cotidiano Escolar. Narrativas.


Metanarrativas. Compreensão. Ato Responsável.
INTRODUÇÃO

E
m tempos tão difíceis“assistimos”, meio atônitos, o desmanche
das políticas sociais de educação e saúde após o golpe parlamentar de 2016. Nós, do chão da
escola, sentimos os efeitos dos desdobramentos deste golpe: no aumento do desemprego dos
pais dos alunos,nas dificuldades enfrentadas para os atendimentos solicitados às instituições que
apoiam a escola como: CRAS, Conselho Tutelar, Posto de Saúde, CIAP2 etc. Neste contexto, se insere a
escola onde uma das autoras, a Ana Cristina trabalha,no sul de Minas, como orientadora do ensino
fundamental IIecompartilho as narrativas do cotidiano escolar.Fazendo parte do Grubakh, essas
narrativas passam a ser compartilhadas e têm permeado intensamente nossas reflexões, tornando-
se nossas alheias palavras, nos quais “[a]s valorações subentendidas aparecem então não como
emoções individuais, senão como atos socialmente necessários e consequentes” (VOLOCHÍNOV,
[1926]2011, p. 80; 2013, p.158.).43O cotidiano é meu único campo legítimo de batalha. É minha arena. É
nele que sou 44 . Temos dito repetidamente nos encontros. Até poeticamente ficar diferente... Ao
compartilharmos nosso cotidiano por meio das narrativas, buscamos ressignificar o vivido à luz da
teoria bakhtiniana.
Trazer o cotidiano escolar como acontecimento: “As falas são sempre associações, liames,
teceduras do aqui e agora com o já dito, com o já conhecido, que recebe das circunstâncias

41
Orientadora Educacional da rede municipal de ensino, membro do GRUBAKH-GEPEC. E-mail: kecalibanio@hotmail.com
2
Centro Integrado de Apoio Pedagógico, órgão instituído na gestão municipal com o objetivo de atender os alunos com laudo médico
42 Pesquisadora-colaboradora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC) da Faculdade de Educação na Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP) e coordenadora do Grupo de Estudos Bakhtinianos (GRUBAKH). E-mail: laserodio@gmail.com
43 Valentin N. Volochínov fazia parte do primeiro dos círculos chamados bakhtinianos e algumas de suas obras têm sido atribuídas a Mikhail

Bakhtin conforme a concepção dos editores e o desenvolvimento dos conhecimentos historiográficos do período de sua produção. Nas
Referências, assumimos uma dupla autoria, porém no corpo do texto referenciamos Volochínov [1926] seguido do ano em que saíram no
Brasil as duas edições deste artigo (2011; 2013). As últimas pesquisas de Sheila Grillo e EkaterinaVólkova Américo (2017) são importantes para
essa reflexão. Acesso em 03/10/2017. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/8962.
44 Em itálico, palavras ditas e repetidas nos encontros do GRUBAKH, marcadas em nossos cadernos de notas.

HETEROCIÊNCIA
395

interlocutivas novas cores e novos sentidos” (GERALDI, 2015,p.81). O que impacta e me 45 obriga a
narrar? Narrar para elaborar o acontecido, para cotejar a vida escolar tão cheia de tantos outros!
Um outro com quem convivo, mas não conheço, que se revela em acontecimentos dos quais eu faço
parte, mas nem sempre estou estou inteira, pois me surpreendo não só com o outro, mas com o eu
que na relação emerge e se concretiza na escrita, surpreendendo o já dito e repetido tantas vezes...
Narrar o acontecimento é buscar as contrapalavras e tentar compreender os sujeitos
envolvidos e ao compreendê-los me compreender neste imbricado de relações do contexto escolar
tão cheio de rótulos, laudos e limites preestabelecidos. “A compreensão é uma forma de diálogo; ela
está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor a
palavra do locutor uma contrapalavra. [...]”(BAKHTIN,2004,p.132).
As narrativas aqui apresentadas são narrativas pedagógicas ‘colhidas’ do viver-agir no
cotidiano escolar. São acontecimentos potentes de investigação, as possíveis centelhas
monadológicas de Walter Benjamin...
A metanarrativa (SERODIO; PRADO, 2015) é uma narrativa pedagógica que se materializa a
partir da retomada de uma narrativa anterior, buscando compreender os papéis sociais dos sujeitos
(em relação) no cotidiano escolar. Mergulhados neste processo reflexivo,nos colocamos não
indiferentes e, responsáveis/responsivos por este outro com quem nos importamos. O ato de narrar
e metanarraramplia as reflexões abrindo a possibilidade da vivência em ato do excedente de visão
segundo Bakhtin (2010,p.21-25).

1.PRIMEIRA NARRATIVA

É um só os mundos?
O garoto havia chegado atrasado repetidamente e, naquele dia, os pais foram avisados. Quando cheguei
à direção o garoto branco disse:
̶ Conta pra eles Ana Cristina, como é meu pai. Ele tá lá fora e vai me bater.Quando ele me pega, ele dá
soco, ele não bola...
Nesse momento a diretora pontuou:
̶ Por que você está chegando sempre atrasado e a gente toda vez chamando sua atenção, te avisando!
Nesse momento o garoto vira pra mim e diz:
̶ Eu tento separar as coisas, para não misturar problemas de casa e a escola, por isso não falei.
junho/2017

A escola ensina a ciência fragmentada em disciplinas escolares, o pensamento cartesiano


posto em prática sistematicamente: categorizar, analisar, comparar, etc., enfim, enaltecer o
conhecimento objetivo sobre o mundo. O pesquisador, inserido em uma concepção positivista de

45A partir daqui, a mudança da concordância com a 1ª pessoa ora do singular, ora do plural é proposital. Sou singularmente constituída pelos
outros, os quais são constituídos por mim, na cultura que criamos nesse grupo em que convivemos e na escola como arena comum aos/as
grubakhtinianos/as do GEPEC.

HETEROCIÊNCIA
396

pesquisa, se mostra o mais “neutro” possível. Tomando distância de seu objeto de pesquisa, ele
acredita ver o todo.
É deste mundo escolar que viemos. É desta escola que fazemos parte. A subjetividade é
desvalorizada para a compreensão da realidade objetivamente totalizada e dada como verdade.
Aprendemos a cindir o mundo entre o certo e o errado, o objetivo e o subjetivo, o racional e o
emocional, o normal e o patológico, o particular e o geral (SANTOS,2003). Quando o meu aluno diz: “ eu
tento separar as coisas”me diz: eu tento ser dois: um aqui na escola, o estudante; e o outro lá em
casa, com meus problemas pessoais.
Só que os mundos se misturam. Se misturam no nosso viver-agir também na escola.Misturam
para todos os sujeitos envolvidos no processo educacional: professores, alunos e funcionários. Os
contextos históricos nos afetam, nossa história de vida nos afeta, as relações que estabelecemos
dentro e fora da escola nos afetam. Agimos com uma vida inteira segundo Bakhtin(2010).
Mas foi criado “um abismo entre o motivo do ato” (que objetiva uma verdade universalmente
abstrata) “e seu produto” (BAKHTIN, 2010, p.115), realizado com o reconhecimento das relações
singulares e suas verdades cotidianas. “O ato é atirado no mundo teórico com base no requisito vazio
da legalidade” [...] “formal”, como diz ainda Bakhtin (2010, p. 76-77). Assim, “a crise contemporânea é,
fundamentalmente, crise do ato contemporâneo” (BAKHTIN, 2010, p.115).Essa crise é o resultado da
“abstração de si” como “artifício técnico” que, porém, “encontra justificação já desde o meu lugar
único, onde eu, que conheço, me torno responsável e obrigado por este reconhecimento” (BAKHTIN,
2010, p. 108). Na delicadeza desse ponto onde pode haver um encontro está o “reconhecimento que me
obriga responsavelmente” (BAKHTIN, 2010, p. 108) e que entra em crise na escola, onde os
conhecimentos e os reconhecimentos, ainda que sejam produzidos nas instituições cujo papel social –
e o papel social de cada professor/profissional – é o do ensino, nas relações da formação, o qual é
também tecido nas relações individuais constituídas numa cultura que procura apagar um dos
mundos que compõem a vida do estudante (e as próprias vidas de profissionais), ou seja, o mundo
afora da escola. Que fique fora esse mundo, a escola não quer dar conta, ou tomar consciência dele.
Não podemos também desconsiderar a tensãoa que é submetida a escola, devido à
obrigatoriedadeda realização das avaliações externas, que acabam impondoobjetivos pedagógicos
(políticos) e, consequentemente, processos de trabalho, determinando o que deve e o que não deve
ser valorizado. Neste contexto, a realidade e os sujeitos históricos ali inseridos são desconsiderados
como indivíduos de desejos, emoções, ao mesmo tempo em que toda a rede que (se) alimenta (d)o
capitalismoorienta esses desejos e emoções para o consumo, a competição e o fracasso/mérito.

Esta uniformidade somente importa e interessa aos processos avaliativos contemporâneos.


Supostamente todos deveriam saber as mesmas coisas e nos mesmos tempos para devolverem o
‘depósito’ efetuado pelo sistema... Claro que desconsiderando as diferenças de entrada, as condições
sociais distintas, etc.(GERALDI, 2015p.100)

HETEROCIÊNCIA
397

Quando o meu aluno não me diz de seus problemas, de sua vida pessoal que talvez justificasse
seus atrasos, ele não acredita que a escola pudesse compreendê-lo, acolhê-lo em sua singularidade. E
ele não acredita, não porque fez profundos estudos sociológicos, históricos, psicológicos, jurídico,
curriculares, o que seja... Não acredita porque reconhece naquilo que os outros lhe dizem a ele de si,
uma contraposição, uma nãocoincidência com o que ele reconhece como compatível: do que eles
dizem dele e de si próprios em seus atos, compostos por muitas linguagens expressivas, para ele; e
nem o que ele próprio diz de si e dos outros no encontro com os outros.
“Todavia não se trata a contraposição matemática, quantitativa, entre o mundo infinitamente
grande e um ser humano pequeno, entre uma unidade e uma multidão infinita de unidades-seres” que
pode se sustentar do ponto de vista teórico, “mas não está nisso o seu sentido real” (BAKHTIN, 2010,
p.109).

E a pergunta que se coloca é: em que plano é realizada esta relação de valor, para que seja necessária e
realmente válida? Somente no plano da consciência participante. O pathos da minha vida pequena e do
mundo infinito é o pathos do meu não-álibi participativo no existir, e o alargamento responsável do
contexto dos valores realmente reconhecidos do meu lugar único. Se eu me afasto deste lugar único,
ocorre uma cisão entre o mundo infinito possível do conhecimento e o pequeno mundo de valores por
mim reconhecidos (Bakhtin,2010, p.109-110).

Ele, o estudante que aparece na narrativa, metanarrativamente, para as autoras deste texto,
não acredita na empatia dos adultos com os quais convive, a consciência participante aparece para
ele cindida. Mas não irremediavelmente, pois há na escola na diversidade das singularidades e de
contraposições, atritos, tensões entre linguagens expressivas – às vezes as palavras dizem algo que o
corpo não corrobora, etc. – transgrediências prenhes de sentidos. Além do encontro com adultos que
não se enquadram totalmente da verdade-resistência criada pelo estudante, de que a escola não o
compreende, quando surge em sua vida algum profissional que o veja em sua integridade, ainda que
em momentos isolados e iluminados, quiçá, pelas narrativas e pelo mundo cultural que os une na
“mesma” crise do ato e que, aos poucos e dialogicamente andam procurando outra ciência, que dê
conta de acompanhar os pensamentos ainda sombreados que clamam por expressão e auditório
social.

2. SEGUNDA NARRATIVA

De dia
Recebi um e-mail da secretaria da educação solicitando que eu divulgasse entre os alunos, a partir de 15
anos completos, a possibilidade de cursarem o CMEJA.
Fiz o levantamento e ficamos assustados com o número de alunos que estão em defasagem série/idade
em nossa escola. Dentre eles o Nelson46.

46 Nome fictício.

HETEROCIÊNCIA
398

Nelson é um garoto que está cursando pela terceira vez o sétimo ano. Um garoto cuja dureza da vida
não conseguiu apagar sua alegria e bom humor.
Durante o intervalo para o lanche perguntei:
̶Nelson, você tem interesse de estudar no CMEJA?
̶ Não dona. Eu adooooro esta escola! Mas de dia.
̶ Por queque você gosta dessa escola Nelson? Escreva para mim sobre isto.
̶ Ah dona! Escrever eu não sou bom não, mas se a senhora quiser me entrevistar.
Agosto/2017

Ao encaminhar um aluno para o CMEJA fica um gosto de fracasso nagarganta, a escola não
conseguiu cumprir seu papel.
Apresentamos esta narrativa no movimento explícito de voltar às palavras ditas e marcadas
na carne, como palavras-minhas-próprias, tendo como objetivo compreender o cotidiano e iluminá-lo
como possibilidade de vir a ser, talvez outro.
Um aspecto que me chamou a atenção nesta narrativa é quando o aluno se esquiva de
escrever, mas se prontifica para uma entrevista. Quando foi proposto a ele a escrita, foi pensando na
possibilidade de, ao ingressar na corrente verbal expressa já como reflexão, como gênero secundário
(BAKHTIN, 2003; SERODIO; PRADO, 2015), pudesse ter um efeito reversivo para sua vida escolar: nas
relações que ele estabelece com colegas, professores e com a autora da narrativa, enquanto sua
orientadora e participante de seus atos. “Ele tem, portanto, uma experiência de mim que eu próprio
não tenho[...]”(GERALDI,2015,p.107) O desejo da escrita que aparece na narrativa foi motivado pelo
desejo de saber os porquês de ele gostar da escola; de conhecer a escola por meio do seu olhar...
A escrita na escola é sempre entrave para a maioria dos alunos, principalmente os
repetentes. Vivem, de forma geral,”um rechaço linguístico com maiores consequências afetivas [...].
Quando se rejeita o dialeto materno de uma criança, rejeita-se a mesma por inteiro [...]”(FERREIRO
apud COLELLO,2007), rejeita-se seu mundo. Uma linguagem essencialmente dialógica, polifônica e
responsiva segundo Bakhtin (2015), não é considerada pela escola, pois...

O modelo de letramento escolar, orientado por uma dimensão ideológica e restritiva da escrita, acaba
por condicionar as práticas de ensino adotadas, impedindo decisivamente a ‘aventura da
comunicação.’[...] a ação pedagógica ensina a escrever ao mesmo tempo que rouba do indivíduo a
possibilidade de intercâmbio, o gosto pela expressão e, acima disso, o direito à palavra.
(COLELLO,2007,p.77)

Assim, os alunos se negam às palavras escritas sendo, por sua vez, coibidos de ser, estar e
significar o mundo.
Uma pergunta se apresenta: o que a narrativa nos possibilita enxergar do que fizemos
enquanto equipe pedagógica durante os anos de escolaridade deste aluno e de muitos outros? A
escola, como parte da sociedade, rotiniza os acontecimentos, padroniza os procedimentos e apagaas
singularidades... Dificultaria assim o ato ético? Tendo em vista a afirmação de Geraldi (2015) em seus

HETEROCIÊNCIA
399

estudos bakhtinianos“ é no singular que o tom emocional e volitivo toma corpo enquanto parte
inalienável do ato ético”(GERALDI, 2015, p. 110).
O sistema educacional organiza de forma perversa uma maneira de se “livrar” do problema
que a defasagem série/idade acarreta,transferindo para o CMEJA as dificuldades com as quais não
se consegue lidarna escola. Mas por esta não contávamos: o aluno gosta da escola! Mas de dia.
Pontuou.
Como não há um procedimento sequer que procure avaliar o que, de fato não importa para o
sistema educacional – óbvio –, temos que inventar outros procedimentos, senão não estaremos
fazendo uma avaliação honesta nem mesmo para os padrões cientificamente neutros esperados.
Nelson já assistiu aos colegas que vão para o CMEJA engrossarem as estatísticas de evasão
escolar, pois sabe da preocupação das mães com o estudo noturno no bairro, onde a escola se insere.
Os alunos, de uma certa forma, se protegem (ou resistem?) quando tentam se manter na escola
regular?
Talvez resistindo se protejam e a nós todos, constituindo uma possibilidade cultural de
resistência ao dado/imperativo em favor do vivido/contingente. Talvez se protegendo nos ensinem a
resistir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudar Bakhtin é compreender a vida por meio do ato responsivo-responsável que lida com
as vidas constituídas dialógica/alteritariamente, em seus tempos espaços e relações sociais
cotidianas um-a-um singular-a-singular e culturais em seus sistemas ideológicos bem formados por
meio de suas expressões linguageiras.
Quando narro um acontecimento do cotidiano escolar, trago para a reflexão a vida na/da
escola,com seus sujeitos históricos, inacabados e inconclusos. A imperfeição como possibilidade de
criação. Como valor!
Ao metanarrar debruço-me sobre as palavras e sobre os atos, trazendo uma afiguração
(PONZIO, L., 2002) do mundo da vida e do mundo da cultura na tentativa de compreender o que se vive
(ou o que se escolhe viver) no cotidiano escolar. Tomo consciência, neste processo reflexivo, do meu
inacabamento no olhar do outro. Tomo consciência das minhas faltas, dos meus erros... que por vezes
não são erros ou faltas em relação ao conhecimento estabelecido como válido. Tomo consciência dos
desdobramentos dos meus atos que muitas vezes são tomados como devaneios, utópicos, mas são só
atos responsivos a outros indivíduos expressivos e falantes, afetivos e volitivos, hegemonicamente
desconsiderados como indivíduos expressivos e falantes, afetivos e volitivos.
Percebemos o cotidiano como o meu(o nosso) único campo de batalha, como possibilidade de
vida e, porque não de sonho?

HETEROCIÊNCIA
400

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo: PauloBezerra. Prefácio à edição francesa:
Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 6ªedição,2015.
______. Tema e significação na língua. In: ______. Marxismo e filosofia da linguagem. 11.ed São Paulo: Hucitec,2004.
COLELLO, S.M.G. A escola que (não) ensina a escrever. São Paulo : Paz e Terra,2007.
______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & JoãoEditores, 2010.
GERALDI, J.W. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2015.
______. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores, 2015.
PONZIO, Luciano. Visioni del texto. Bari: Edizione B. A. Graphis, 2002.
PRADO, G.V.T. et al. Metodologia narrativa de pesquisa em educação: uma perspectivabakhtiniana. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2015.
SANTOS, A. Didática sob a ótica do Pensamento Complexo. Porto Alegre:Sulina,2003.
SERODIO, Liana Arrais; PRADO, Guilherme do Val Toledo Prado. Metanarrativas bakhtinianas: uma etapa dos estudos
do GRUBAKH. In: PRADO et all. In: Metodologia narrativa de pesquisa em educação: uma perspectiva bakhtiniana. São
Carlos: Pedro&João, 2015.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
401

Este artigo apresenta um recorte da minha

A RELAÇÃO DIALÓGICA ENTRE dissertação de Mestrado em andamento, que visa


entender a relação dialógica entre o discurso
religioso presente no Alcorão e a formação teórica,

O DISCURSO RELIGIOSO E A ideológica e indenitária do feminismo islâmico. A


análise e compreensão dessa relação dialógica se
realizará com base no referencial conceitual da

FORMAÇÃO TEÓRICA, teoria bakhtiniana. O feminismo islâmico e sua


influência nas sociedades islâmicas serão
discutidos com base nas obras de Stéphanie Latte

IDEOLÓGICA E INDENITÁRIA DO Abdallah (2010/2012), Margot Badran (2010), Souad


Eddouada e Renata Pepicelli (2010), e ainda de
Malala Yousafzai (2013). A principal referência para

FEMINISMO ISLÂMICO embasar a concepção de identidade deste trabalho


será apoiada em Hall (2005), Bohn (2003) e
Bauman (2006).

Palavras-Chave: Relação Dialógica. Alcorão.


LIMA, Clarice da Conceição Monteiro de 47 Feminismo Islâmico

ARCHANJO, Renata 48

INTRODUÇÃO

O
feminismo surge por volta da década de sessenta enquanto movimento social, com o intuito de
reivindicar para as mulheres, os mesmos direitos já assegurados aos homens e perseguir um
ideal de sociedade marcado pela equidade entre os gêneros. Desde o seu nascimento, o
movimento já se caracterizava como político, pois a sua constituição sempre foi fundamentada nas
questões que emergem a partir de discussões políticas.
Ao longo da história, o movimento passou por uma série de transformações de caráter social
e se aprofundou nas questões políticas, uma vez que ele “Abriu, portanto, para a contestação política,
arenas inteiramente novas da vida social: a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão
doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças” (HALL, 2005, p.45). Justamente pelo seu caráter
político, o feminismo não é um movimento homogêneo e muito menos marcado por apenas uma voz, já
que “Ele politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação” (HALL, 2005, p.46).
Partindo desses pressupostos, é necessário compreender que o feminismo representa e
contempla mulheres — e também vítimas de misoginia, como homens transexuais e pessoas não-
binárias —, que são diferentes entre si e dotadas de especificidades características de algum meio
social e/ou condicional. Diante dessas especificidades, o movimento feminista acabou se dividindo em

47
Mestranda em Linguística Aplicada no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. E-mail: claricelima.mv@gmail.com
48
Professora de Língua Francesa do Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas da UFRN. Doutora em Estudos da
Linguagem pela UFRN. renaarchanjo@gmail.com

HETEROCIÊNCIA
402

vertentes, questão constituídas por teorias que norteiam suas pautas e demandas. No Ocidente, por
exemplo, há uma grande identificação, principalmente, com três dessas teorias: a radical, a
interseccional e a liberal.
Apesar da importância da vivência das mulheres em meio a uma sociedade injusta, machista e
extremamente misógina, o feminismo também se constitui de teorias sólidas, ajudando o dinamismo
do movimento e guiando, de forma científica, a busca pelos tão almejados valores da equidade, do
respeito e da segurança. As teóricas feministas foram, sem dúvida, uma imensurável contribuição,
tanto para a concepção, quanto para o desenvolvimento intelectual e social do movimento. Portanto, o
feminismo é uma junção de teoria e prática, uma junção de cientificidade e vivência, e, sem essa união,
o movimento não estaria fortalecido e conquistando uma série de direitos, tornando-se bem popular.
Em contramão ao Ocidente, nas sociedades árabes que foram expostas às ideias islâmicas, o
processo se deu praticamente de maneira inversa. Há mais de 1300 anos, quando o Alcorão 49 foi
revelado, Deus teria rompido com a ideia vigente das sociedades da época, que não viam as mulheres
como seres humanos e que, por isso, não mereciam os mesmos direitos dos homens, e teria então
estabelecido que a mulher, contrariamente ao que se pensava, seria exatamente igual ao homem no
que diz respeito a direitos e deveres. Deus teria se preocupado em enfatizar essa igualdade em todo o
texto corânico e dentre as várias passagens ilustrativas dessa afirmação destacamos: “Eu não
desconsiderarei o trabalho de qualquer um de vós no Meu caminho, seja homem ou mulher, porque
procedeis uns dos outros” (Alcorão 3:195).
Além disso, o Alcorão concede à mulher uma série de direitos, que foram conquistados há
pouco tempo pelo o Ocidente e depois de muita luta do movimento feminismo. Dentre os direitos
concedidos por Deus, segundo o Islam, no século VII, estão: o “direito ao voto”, o “direito à herança e à
propriedade”, o “direito a trabalhar e a estudar”, o “direito ao divórcio”, o “direito ao dote 50”, dentre
outros.
É difícil imaginar que uma religião que carrega o estigma social de machista e que,
supostamente, coloca suas seguidoras na posição de oprimida e submissa possa ter desenvolvido um
discurso religioso tão igualitário e de respeito às mulheres. Todavia, a resposta é simples: o Islam
estabelece em sua essência que todos são iguais perante a Deus e o Alcorão celebra a diversidade
entre as pessoas, uma vez que, para a religião, não há distinção de etnia, gênero, classe social ou
qualquer outro tipo de distinção.
Contudo, no decorrer do tempo, os ideais islâmicos de equidade acabaram por se perder,
mesmo em algumas sociedades muçulmanas. Azim (2013) expõe esta questão e a explica de maneira
didática:

Devemos esclarecer, primeiro, que as enormes diferenças entre as sociedades muçulmanas acabam
por gerar generalizações muito simplista. Há um vasto espectro de posturas em relação à mulher no

49
Escritura Sagrada para muçulmanos (Islam).
50
O dote muçulmano é um valor que a família do noivo paga a noiva e que funciona como uma espécie de seguro matrimonial, para assegurar a
mulher caso algo acontece ao marido.

HETEROCIÊNCIA
403

mundo muçulmano atual. Essas posturas diferem de uma sociedade para a outra e dentro de cada
sociedade individual. Contudo, podemos discernir certos traços gerais. Quase todas as sociedades
muçulmanas, em maior ou menor grau, se desviaram dos ideais do Islam, com respeito à condição das
mulheres. Estes desvios, na maior parte, direcionam-se para uma ou duas direções. A primeira é mais
conservadora, restritiva e orientada pelas tradições, enquanto que a segunda é mais liberal, orientada
pelos costumes ocidentais (AZIM, 2013, p. 74).

De fato, apesar dos ideais de igualdade contidos no Alcorão, algumas sociedades muçulmanas
não os respeitam, comprometendo, assim, os direitos femininos previstos na religião. Dessa forma, as
mulheres muçulmanas acabaram sendo lesadas no decorrer da história, a partir do momento em que
os seus direitos foram negados.
Aliado a esse desrespeito, em algumas sociedades muçulmanas as mulheres que professam o
Islam encontram dificuldades com o feminismo— que não as contempla e em alguns casos não
respeitam suas escolhas e autonomia. Nesse sentido, o feminismo Ocidental se mostra também como
inimigo dessas mulheres por não ser capaz de representa-las em sua diferença e especificidade.
Todavia, as ideias feministas ocidentais abriram o caminho e inspiraram uma nova corrente, intitulada
“feminismo islâmico”, a qual se propõe a defender pautas e demandas específicas das mulheres
muçulmanas. Segundo Abdallah (2010), uma teórica islâmica:

Ce courant revendique notamment un droit à l’interprétation (ijtihad) susceptible de promouvoir l’égalité


des sexes, des rôles nouveaux dans les rituels et les pratiques religieuses, des changements dans les
domaines du droit familial, du droit pénal, et des pratiques juridiques et politiques (ABDALLAH, 2010). 51

O feminismo islâmico enquanto corrente feminista também se apoia naquela união entre a
“teoria e prática” já citada. Ao passo que a vivência das mulheres muçulmanas é extremamente
importante, a teoria desenvolvida pelas pesquisadoras da área (citar nomes e ano de publicação)
também é fundamental. No entanto, a teoria feminista islâmica apresenta uma peculiaridade em
relação às de outras vertentes: ela encara o próprio Alcorão como principal referencial teórico. O
discurso religioso, nesse caso, é analisado e interpretado a favor da vertente. O trabalho das teóricas
e feministas islâmicas acima citadas e que ancoram esta pesquisa, é analisar esse discurso religioso
e promover um impacto nas práticas sociais, seja incitando as mulheres a lutar pelo seu direito a
partir da compreensão de que ele foi garantido por Deus, seja pelas intervenções sociais que visam as
transformações nas sociedades em que vivem.
É curioso pensar que uma vertente feminista tenha um livro religioso como principal base
teórica. É ainda mais estranho pensar que esse discurso religioso foi capaz de constituir uma

51
Tradução livre: Esta corrente reivindica especialmente o direito à interpretação (ijtihad) suscetível de promover a igualdade dos sexos, dos
novos papeis nos rituais e nas práticas religiosas, das mudanças nos domínios do direito familiar, do direito penal, e das práticas jurídicas e
políticas.

HETEROCIÊNCIA
404

identidade política bem demarcada e comprometida com a busca de uma sociedade mais justa e
igualitária.

1. JUSTIFICATIVA

É justamente esse caráter curioso que motiva o desenvolvimento desta pesquisa, que objetiva
entender esse processo de construção indenitária a partir de um discurso religioso específico e sua
relação com as práticas sociais. O material que vem sendo produzido por teóricas e feministas
islâmicas é extremamente rico e interessante, pois são responsáveis por teorizar de maneira mais
simples e didática o discurso mais complexo encontrado no Alcorão— que por muitas vezes é
inacessível para mulheres que não compreendem árabe e nem tem acesso à obra transliterada, como
é o caso do Paquistão na época do Talibã 52 ; segundo Malala (2013), o governo paquistanês se
aproveitava do fato da maioria da população não saber árabe para propagar ideias distorcidas do
Alcorão, a fim de justificar as ações ditatoriais e a eliminação dos direitos das mulheres, como, por
exemplo, estudar e sair livremente de casa.
O feminismo islâmico desenvolve um papel decisivo nas sociedades árabes/muçulmanas. Suas
pesquisas desempenham a busca pelo restabelecimento dos ideais do Islam, que outrora foram
esquecidos e que hoje são desrespeitados com maior naturalidade. É perceptível que “Ces publications
contribuent à diffuser des travaux d’interprétation du Coran (tafsir) et de réflexion sur la
jurisprudence islamique (fiqh) de femmes et d’hommes faisant valoir les droits conférés aux femmes
par l’islam” (BADRAN, 2010, p. 25)53. Logo, essa produção populariza entre as mulheres um discurso
esquecido e deixado de lado em algumas sociedades islâmicas.
Esta pesquisa deseja investigar principalmente como o discurso religioso presente no Alcorão
se tornou referência para o feminismo islâmico e como esse discurso ajudou a construir uma
identidade política e ideológica do corpus atingido diretamente pelos problemas das sociedades em
questão.

2. QUESTÕES DA PESQUISA
Qual a contribuição do Alcorão para a constituição teórica, ideológica e indenitária do
feminismo islâmico?
Qual a importância do discurso religioso do Alcorão para o processo constitutivo identidade
nas sociedades islâmicas?

52
Governo ditatorial que ascendeu ao poder nos países Afeganistão e Paquistão com o apoio da aliança entre EUA e Arábia Saudita.
53
Tradução livre: Estas publicações contribuem na difusão dos trabalhos de interpretação do Alcorão (tafsir) e de reflexão sobre a
jurisprudência islâmica (fiqh) das mulheres e dos homens fazendo valer a pena os direitos conferidos as mulheres pelo o Islam.

HETEROCIÊNCIA
405

3. OBJETIVOS

3.1 Objetivo Geral


Analisar e compreender como os discursos religiosos presentes no Alcorão se
tornaram a principal teoria para o feminismo islâmico, e como esses discursos contribuíram para a
constituição ideológica e indenitária de mulheres nascidas no meio de uma sociedade islâmica.
3.2 Objetivos específicos
Compreender a importância do discurso religioso do Alcorão para a constituição do
feminismo islâmico; Investigar como a ideologia religiosa presente no Alcorão é capaz de guiar a
constituição da identidade social, política e ideológica das mulheres.

4. METODOLOGIA

Tendo o feminismo islâmico se popularizado nos últimos anos, as ideias de igualdade


presentes no discurso religioso, a produção científica atual conseguiram ultrapassar as barreiras da
academia e influenciar as práticas sociais, de modo que a sensibilização dessas mulheres
representadas e contempladas pelo feminismo islâmico se desse de maneira sistêmica e decisiva
para uma nova formação histórica, política, indenitária e ideológica.
Para tanto, utilizaremos inicialmente o método exploratório, pois há o desejo de se
familiarizar com o fenômeno que está sendo pesquisado. Para constituir a pesquisa, será levantada
uma extensa bibliografia que ajudará na compreensão mais precisa do tema. Esse levantamento
refere-se às principais produções acadêmicas de teóricas do feminismo islâmico nos últimos anos. Os
trabalhos das feministas islâmicas Rábea Nacira, Stéphanie Latte Abdallah, Malala Yousafzai, Margot
Badran, Benazir Bhuto, Khaleda Zia serão analisados e esmiuçados, na tentativa de entender o
processo de popularização positiva desse discurso religioso.
Além desse levantamento bibliográfico para fins de análise, a pesquisa propõe-se a coletar, de
um modo mais empírico, histórias orais de mulheres pertencentes que vivem em sociedades
islâmicas, para assim, construir o corpus dessa pesquisa. É importância ressaltar que o corpus será
constituído por discursos de mulheres atuantes na luta pelos direitos das mulheres na sociedade
marroquina. Essas histórias irão possibilitar a compreensão do impacto causado pela vertente na
sociedade alvo no que diz respeito aos direitos das mulheres, além de também mensurar de maneira
objetiva a relação existente entre as mulheres muçulmanas, no geral, com a teoria apresentada pelo
feminismo islâmico.
Em seguida, os dados obtidos, tanto no levantamento documental quanto nas entrevistas,
serão analisados, a fim de buscar respostas que sejam capazes de compreender o processo

HETEROCIÊNCIA
406

estabelecido como objetivo desta pesquisa. Os resultados adquiridos poderão ser satisfatórios para
sanar as questões de pesquisa. Caso não, eles nortearão os futuros direcionamentos deste trabalho.
Por fim, é importante estabelecer que o primeiro momento do estudo se desenrolará em volta
de dois grupos de países. O primeiro refere-se as sociedades que foram pioneiras no feminismo
islâmico, como a Turquia, o Marrocos, a Tunísia e o Egito, pois são os países em que a produção
teórica vem se fortalecendo e influenciando cada vez mais a dinâmica social. O segundo trata-se das
sociedades em que a ação do feminismo islâmico é mais agressiva e intensa, como é o caso da Arábia
Saudita e do Iran, já que ao longo da história, esses dois países construíram uma sociedade
extremamente misógina e nociva para as mulheres, pois desenvolvem uma política que vai
abertamente de encontro, com os ideais da religião. Por sua vez, o segundo momento da pesquisa, que
diz respeito as coletas das histórias orais e a construção do corpus, será realizada com mulheres da
sociedade marroquina.

5. REFERENCIAL TEÓRICO

O referencial teórico construído para esta pesquisa passa por algumas teorias de diferentes
domínios científicos. Para compreender e sistematizar a noção de feminismo islâmico, o principal
material teórico é a produção científica de várias feministas islâmicas, mas principalmente as obras
de Stéphanie Latte Abdallah (2010/2012), Margot Badran (2010), Souad Eddouada e Renata Pepicelli
(2010), e Malala Yousafzai (2013).
Esse referencial será importante para compreender essencialmente quais seriam as
demandas e pautas estudadas, assim como entender o objetivo principal do movimento feminista.
Margot Badran(2010) sintetiza de maneira prática esse objetivo:

Le féminisme islamique est au cœur d’une transformation qui cherche à se faire jour à l’intérieur de
l’islam. Transformation et non réforme, car il ne s’agit pas d’amender les idées et coutumes patriarcales
qui s’y sont infiltrées, mais d’aller chercher dans les profondeurs du Coran son message d’égalité des
genres et de justice sociale, de ramener ce message à la lumière de la conscience et de l’expression et
d’y conformer, par un bouleversement radical, ce qu’on nous a si longtemps fait prendre pour de l’islam
(BADRAN, 2010, p. 25).54

Para entender o conceito de identidade e também o processo de identificação, que é


importante para analisarmos a relação do discurso religioso do Alcorão com o processo de
construção indenitária das feministas islâmicas, nos fundamentaremos nas análises de Stuart Hall
(2005), que traça noções de identidade e caracteriza o sujeito na pós-modernidade.

54
Tradução livre: O feminismo islâmico está no coração de uma transformação que visa surgir de dentro do Islam. Transformação e não
reforma, pois ele não deseja alterar as ideias e costumes patriarcais que estão infiltradas, mas buscar nas profundezas do Alcorão sua
mensagem de igualdade de gênero e justiça social, para trazer de volta esta mensagem à luz da consciência e da expressão e de confirma-la,
por uma reviravolta radical, o que nós tivemos por tanto tempo como Islam.

HETEROCIÊNCIA
407

Por fim, a teoria bakhtiana (2002), será primordial para analisar os discursos presentes no
Alcorão, assim como as práticas discursivas desenvolvidas nas sociedades árabes/muçulmanas. A
análise discursiva dos textos religiosos é necessária para compreender: (i) o que impulsiona o
interesse das feministas islâmicas pela literatura religiosa como base teórica, (ii) entender como a
ideologia religiosa presente no Alcorão é capaz de guiar a constituição da identidade social, política e
ideológica das mulheres em questão. Segundo a teoria bakhtiana:

Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A palavra
é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso
não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a “ideologia do cotidiano”, que se
exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas
(BAKHTIN, 2002).

6. CONCLUSÃO

O presente artigo mostrou um recorte da minha pesquisa em andamento, que está sendo
desenvolvida com o intuito de compreender a relação dialógica entre o Alcorão e o feminismo islâmico
e de como esse discurso religioso foi capaz de influenciar a formação teórica, ideológica e indenitária
dessa corrente feminista. Esse recorte evidência todos os detalhes da pesquisa como objetivos,
questões de pesquisa, justificativa, assim como, descreve a metodologia já utilizada até aqui e também
como ela se desenrolará a partir dos próximos passos.
Até o presente momento, foi realizado o levantamento bibliográfico sobre o tema, o qual foi
importante para analisar e assim, pensar e planejar a segunda etapa da pesquisa da melhor forma
possível a fim de coletar dados que realmente contribuam para responder de maneira satisfatória as
questões de pesquisa aqui postas.
A partir do levantamento documental, foi delimitado que o corpus será constituído apenas com
depoimentos de mulheres inseridas nas sociedades marroquinas, assim como, foi decidido que a
entrevista se limitaria a uma questão que impulsione a reflexão acercar do temo, para que assim,
possamos coletar histórias via narrações orais.

REFERÊNCIAS

"O Alcorão" - tradução de Mansour Challita ISBN 978-8-7799-168-6 -Ed. 1ª - Jan.2010.


ABDALLAH, Stéphanie Latte. Féminismes islamiques et postcolonialité au début du XXI° siècle. Critique
internationale, Paris : França, n.209, p.53-70, 2012.
________. Le féminisme islamique, vingt ans après: économie d’un débat et nouveaux chantiers de recherche.
Critique internationale, Paris : França, n.46, p. 10-19, mar. 2010.
AZIM, Sherif Abdel. A Mulher no Islam: mito e realidade. Ontario: Society of The Revival of Islamic Heritage, 2013.
BADRAN, Margot. Où en est le féminisme islamique ?, Critique internationale, Paris: França, n.46, p. 25-44, mar.
2010.

HETEROCIÊNCIA
408

BAKHTIN, M. (V.N. Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem, 9a. Edição.Editora: Hucitec, Annablume. 2002.
________.Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução do russo por Aurora F. Bernadini, José
P. Júnior, Augusto G. Júnior et al. 3. ed. São Paulo: Ed. Unesp/ Hucitec, 1993.
________.(V.N. Volochinov). Le discours dans la vie e le discours das la poésie. Contribution à une poétique
sociologique. Tradução do russo por Georges Philippenko. In.: TODOROV, Tzvetan. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique
- suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris: Éditions du Seuil, 1989.
BAUMAN,Z. 2003 Comunidade: a busca por segurança no mundo atualTrad. Plínio Dentzien). Jorge Zahar Editor.
BOHN, Hilário I. As exigências da pós-modernidade sobre a pesquisa em linguística aplicada no Brasil. Linguística
aplicada e contemporaneidade, São Paulo: Brasil, p.11-23. 2005.
EDDOUADA, Souad. PEPICELLI, Renata. Maroc: vers un « Féminisme islamique d´État », Critique internationale, Paris :
França, n.46, p. 87-100, mar. 2010.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10a ed. Rio de janeiro: dp&a; 2005.
YOUSAFZAI, Malala. Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e o foi baleada pelo Talibã. 1°
edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
409

E-MAIL PEDAGÓGICOS: Palavras-Chave:


narrativas de re(existências) e insistências

LUCIO, Elizabeth Orofino 55

MOTTA, Flávia 56

AZEVEDO, Patrícia Bastos de 57

24 DE AGOSTO DE 2017

Cara Flávia Motta,

E
screvo esse e-mail ato/evento pedagógico, pois, ao ver no
Facebook a divulgação do VII EEBBA, lembrei-me dos encontros no IM/UFRRJ, de nossas
narrativas de re(existências) e in( sistências) ede risadas e marcas de uma pequena história de
uma outra docência na academia.
Pensei então em escrever esta mensagem, e-mail, carta, convite, ato/evento pedagógico que
pretende ser, sobretudo, uma carta-interesse. Registro,pois a escrita do ato em nossa história de
vida docente, no Instituto Multidisciplinar de Nova Iguaçu da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, está, no momento entre rios, uma vez que, do Belém do Grão Pará ao rio Guamá da UFPA e do
Rio de Janeiro e à Baixada Fluminense, existem rios que nos separam e também trazem margens e
nascentes de um trabalho desenvolvido entre os docentes e as crianças na/da Baixada Fluminense
nos anos de 2015 e 2016.
Vamos narrar nossas (re) existências, insistências e risadas no IM/UFRRJ para o VII EEBBA?
Conto com sua resposta responsiva e responsável e envio de presente um pequeno fragmento
das Memórias Inventadas de Manoel Barros para que possas relembrar nossas invencionices na
disciplina de Estágio Supervisionado na Educação Infantil. Eis nosso Manoel entre as ruas de barros de
Belém e da Baixada:

Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa
data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse usando só esse

55 Doutora em Educação. Profª. Adjunta do Instituto de Educação Matemática e Científica da Universidade Federal do Pará. E-mail:
orofinolucio@ufpa.br
56 Doutora em Educação. Prof.ª Adjunta do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail:

flaviamnmotta@gmail.com
57 Doutora em Educação. Prof.ª Adjunta do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail:

patriciabazev@gmail.com

HETEROCIÊNCIA
410

advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os
passarinhos. Ou: tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os
lagartos e os musgos. Assim: tem hora que eu sou quando um rio. E as garças me beijam e me
abençoam.

E quando Flávia Motta...


Beijos e abraços de Belém do Grão Pará, direto do Mirante do Rio Guamá!

Elizabeth Orofino

27 DE AGOSTO DE 2017

Cara Flávia Motta,

Escrevo esse segundo e-mail ato/evento pedagógico, pois, ao ver no Facebook duas
postagens, lembrei-me novamente dos encontros no IM /UFRRJ e de meu início de história de
docência na UFPA.
Pensei então em escrever novamente esta mensagem, e-mail, carta, ato/evento pedagógico,
apesar de sua resposta silêncio. A exotopia exige silêncio para que se encontre nexos/sentidos com o
mundo do outro, porque o falar posterior precisa ser ao mesmo tempo revelador e provocador de
reações.
Minha provocação é repleta de reações ao contexto que estamos vivendo no país e que, de
alguma forma, veio com a postagem de um aluno da UFPA, escrita em imagens do Facebook, e que me
levou a pensar NOVAMENTE sobre a possibilidade de abrir horizontes para um outro modo de fazer
outra ciência: uma heterociência (BAKHTIN, 1926,2003; MELLO, 2013). Uma ciência que una vida-arte-
conhecimento e que se funda em um princípio estético, compreendendo as fotografias,imagens,
músicas,histórias em quadrinhos, poesias como “um modo de dizer o conhecimento por meio da
linguagem” (GERALDI, 2011).
Termino com a carta da filha da professora agredida, compartilhada no Facebook:

A educação é o único caminho! Minha mãe me ensinou isso quando eu ainda era criança. Ela ainda
frisava: Pobre só tem três saídas: estudar, estudar e estudar. Essas marcas ecoaram em mim, como
várias outras, porque esta é a função dos pais: nos deixar marcas.
Dediquei minha graduação em estudar a educação, meus estágios, meus trabalhos e minhas revoltas.
Sempre acreditei e continuo acreditando que a educação é o único caminho possível. Continuo
acreditando que a educação é o único caminho possível para libertar um povo da alienação. Mas hoje,
quando cheguei em casa e vi o rosto da minha mãe desfigurado, eu, sinceramente, pensei que no nosso
país isso não será possível. Pelo menos não tão cedo. Pelo menos não nas próximas décadas.
Lembro-me do dia em que minha ficha caiu para o fato de que o fracasso da educação não é um
acidente, é um projeto. Naquele dia voltei pra casa com a garganta doendo. Hoje, eu tive a certeza de
que o fracasso da educação, meus amigos, é um projeto. Sabe todas as rodas de conversa que fazemos
pra tentar repensar a educação? Vai adiantar pouco, quase nada.

HETEROCIÊNCIA
411

Estamos remando contra a maré. E aos 23 anos de idade, hoje, quando vi o rosto da minha mãe, eu
joguei a toalha. Para os que continuam lutando e repensando: desejo boa sorte. E faço apenas um pedido:
NÃO CULPABILIZEM O PROFESSOR. Não tente dizer o que um professor deveria fazer. Você não está lá. O
soco no rosto da minha mãe foi de um aluno de 15 anos e também do poder público, do piso salarial, da
jornada desumana de trabalho e da condição precária. Não importa o que você acha, acredite, eles já
estão fazendo muito.
Dispensamos as mensagens de apoio a Bolsonaros e a favor da redução da maioridade penal. Essas
medidas não vão resolver um problema estrutural. Este é um problema estrutural.

No mais, agradecemos o apoio e carinho.

Quando Flávia Motta...


Beijos e abraços de Belém do Pará, em frente do Mirante do Rio Guamá!

Elizabeth Orofino

10 DE SETEMBRO DE 2017

Querida Beth,

Que susto levei quando vi o tamanho da monografia que você orientou! Fiquei me perguntando
o quanto há para ser dito no universo acadêmico pelas pessoas que estão no dia a dia da escola e
agora recebem a chance de se formarem pedagogas numa Universidade Pública Federal de qualidade.
Estava agoniada já de ver sua demanda por conversas e minha incapacidade de respondê-las
na pressa dos dias de hoje. Fico culpada cada vez que não respondo na urgência que imagino
necessária para mostrar benquerença ao meu interlocutor.
Ficar longe é difícil e solitário, não é? A universidade às vezes é tão árida.Imagino vivê-la
entre pessoas ainda não familiares, cúmplices, amigas. O conselho é um só: mostre sua doçura e as
conquiste com o que você tem de melhor: sua garra, sua determinação, sua parceria.
Vamos falar sobre o texto do EEBA, sobre a disciplina de linguagem que daremos juntas no
PPGEDUCano que vem. Vamos falar sobre tudo, mas eu precisava começar te dizendo que estou aqui.
Coloco-me no lugar de outro, para que nosso diálogo aconteça, e respondo, com firmeza, ai seu
convite: sejamos outro para cada uma, inauguremo-nos numa nova conversa em que vida, arte e
conhecimento circulem e permitam que tragamos nossos olhares para uma roda dialógica.
Abri seu texto, vou começar a trazê-lo para a conversa. Já, já escrevo de novo.
Beijos carinhoso de uma carioca da gema para quem agora vive na quentura úmida de Belém
do Pará.
Flávia Miller Naethe Motta

HETEROCIÊNCIA
412

Ontem na aula de estágio, comentei que Larissa (minha neta) definiu carta como um e-mail
que segue pelo correio. Pensei que nossas conversas podem bem se dar por aqui. Pensei ainda que
precisamos desfiar com cuidado as linhas que tecem o gênero acadêmico e não pensei isso à toa não;
estou lendo uma qualificação de doutorado que se esmera em ser boa naquilo que é. Fiquei com medo.
Como dizer os ditos de outras formas? Como recolocar a vida e a arte no cenário do conhecimento e
não o perder ao fazer isso? Aí, com as dúvidas, vem Aline e sua monografia ilustrada, vem Andréa e
sua ata do encontro do grupo em cordel, vem Ana Alice e o livro de fotografias das crianças. E as
formandas do PARFOR, o que achariam de um gênero alargado mais próximo da vida real, menos
“limpo” e acabado?
Beijos carinhosos de um estado que luta para sobreviver aos homens de terno que usurparam
tudo o que podiam, mas não conseguiram acabar com a nossa potência de viver.

14 DE SETEMBRO DE 2017

Cara Flávia,

Boa tarde de domingo!!

Primeiro peço desculpas por responder apenas hoje sua mensagem, ou seja, no fim do
feriado,mas ocorreu aqui na UFPA a primeira exposição fotográfica, intitulada "Ver-as-vidas em
leituras e escritas em Belém do Grão Pará" que é integrante do projeto que estou desenvolvendo aqui
na UFPA e que dei o seguinte título: Trans-vendo a docência: a fotografia revela leituras e escritas em
Belém do Grão Pará.
Flávia, as fotografias tiveram por temática leituras e escritas e foram produzidas em
diversas regiões de Belém pelos alunos do curso de Licenciatura Integrada, no tema Teoria e prática
da alfabetização: aprendendo a ler e a escrever I. Essa atividade permitiu o desenvolvimento da
linguagem visual e o uso de tecnologias digitais, proporcionando aos futuros docentes a criação de
um saber fazer, associado aos seus contextos de atuação, a reflexão e a ressignificação das práticas
de leitura e escrita em Belém do Pará.
Penso nesse saber fazer, nas alunas do PARFOR que tanto fizeram e fazem, que potencializam
o vivido na monografia que irá nos unir para pensarmos no caminho que também escreveu a autora,
como formadora da equipe de alfabetização no município de Queimados.
Flávia, são tantas questões, entre a formação docente inicial e continuada e a tríade arte-
vida-conhecimento, mas lembro nitidamente que, na verdade, foi em nosso encontro no IM-UFRRJ que
iniciei esse processo, unindo arte-vida-conhecimento, pensando esses "gêneros alargados" ou "novos
gêneros" ou "gêneros transgressores" para esfera acadêmica. O que acha de pensarmos em conjunto
sobre a questão, pois Aline e sua monografia ilustrada, Andréa e sua ata do encontro do grupo em
cordel, Ana Alice e o livro de fotografias das crianças estão potencializando gêneros na esfera

HETEROCIÊNCIA
413

acadêmica de "forma alargada", ou são "novos gêneros" ou "gêneros transgressores" para essa
esfera?
Sua neta e seu enunciado sobre o gênero e-mail, definido como"carta como um e-mail que
segue pelo correio", que me levou a pensar as questões sobre o gênero acadêmico. Também lembrei-
me de outra voz infantil, do menino Arthur, saudades de nosso diálogo com Patrícia Bastos, dos
enunciados potentes do menino rei e de um livro artigo que não foi ainda escrito pelo trio.
Acabo de relembrar um enunciado de 2014 e outro de 2016 do menino rei Arthur:

Arthur 18/08/2014
Eu: Arthur vem, vou arrumar você para dormir.
Arthur: Eu queria ser adulto.
Eu: Por quê?
Arthur: Queria fazer tudo que eu quisesse.
Eu: Mesmo adulto nós não fazemos o que queremos.
Arthur: Alguém é mandadora com você?
Eu: Comecei a rir... Fiz cosquinha nele - Sim, muita gente é mandadoura comigo e eu também sou
mandadoura com um monte de gente.
Arthur: Ah, você é muito mandadora.
Quase desmaiei de rir...
Acho que até sou mandadoura mesmo, mas meu filho consegue contestar os meus mandos. Acho que ele
não vai poder me acusar de autoritária...

Arthur 14/05/2016
Arthur: Como é o nome do país que gosta do Temer?
Eu: Ta difícil, com a popularidade dele, não sei quem gosta dele.
Arthur: Lembrei o nome, golpista.
Eu e o pai rimos, ele completa.
Arthur: Quem nasce lá e GOLPISTEIRO!!!

16 DE SETEMBRO DE 2017

Querida Beth ,

A vida anda tão corrida que, quando nos damos conta, já se passaram 7 longos dias desde a
sua última comunicação. A universidade anda um lugar perigoso, há gente adoecendo por lá.
Conversa-se muito sobre depressão, suicídio, remédios controlados, as mais variadas dores, e penso
que vivemos tempos de muito sofrer, na política, na economia, na ética e na nossa vida. Os meses
passaram a ter cor, mas elas não colorem nossos dias. Setembro amarelo.
Verdade que, quando trazemos Arthur ou Larissa, tudo parece perder o interesse e, eles, em
primeiro plano nos mostram que o olhar da criança rompe com o dado, pega a realidade pelo pé e a
faz dar uma cambalhota. Manoel de Barros já falava, no livro sobre o nada, que “Não gosto de dar
confiança para a razão, ela diminui a poesia".

HETEROCIÊNCIA
414

E já que trouxe a razão para a conversa, vou te responder o que penso sobre novas maneiras
de falar sobre o conhecimento, esforço feito no grupo de pesquisa e no trabalho individual de membro,
que, num ato ético e responsável, compreende que arte, vida e conhecimento são as três dimensões
necessárias à cultura humana, logo deveriam estar por inteiro em nossos fazeres pessoais e
acadêmicos. Não concordo com a ideia de novos gêneros, ou gêneros transgressores, nem mesmo
gosto da ideia do hibridismo, que me foi sugerido por uma estudiosa de Bakhtin; penso que opero na
esfera do texto acadêmico, formoprofessores(as) e pesquisadores(as) e é nesse terreno que penso
em lutar o bom combate. Alargar um gênero é compreender que ele vinha estreito, mal cabendo nos
seus limites, assim como eu, quando ganho uns quilinhos e tento vestir as mesmas roupas. Penso
(sempre, eu, sempre na primeira pessoa, e ainda como eu da enunciação que se reconhece nesse
lugar) que,se o gênero texto acadêmico deixou de lado, faz algum tempo a vida e a arte, trata-se, sim,
de alargá-lo e permitir que ele propicie uma experiência que abarque as três dimensões: ética,
estética e epistemologia. No fundo, pesquisa é o que me seduz, mas pesquisa que reconhece que o seu
sujeito é falante e que se dá porque entramos em diálogo. Concordo com Geraldi (2012):

... a perspectiva de uma teoria dialógica [...] deve reconhecer a infinidade do processo dialógico em que
todo dizer e todo dito dialogam com o passado e o futuro e paradoxalmente deve reconhecer a unicidade
e irrepetibilidade dos enunciados produzidos em cada diálogo. Aceitar essa fórmula paradoxal: todo
enunciado é único, mas nenhum isolado (grifo do autor, SERIOT, 2009, P. 12) implica abandonar a posição
epistemológica que somente admite como científico (e verdadeiro dentro de cada categoria) o
enunciado relativo àquilo que se repete, àquilo que é imutável, àquilo que é produto de abstrações
deduzidas todas as particularidades como ‘desvios’ não significativos da realidade concreta. (p. 20)

Pensar na ciência, a partir dessa perspectiva traz, de imediato, duas consequências: para a
pesquisa e para escritura do texto de pesquisa. Já faz tempo que esse debate se trava no interior do
campo e Charlot mostra uma diferença que precisa ser levada em conta para desenvolver uma
reflexão sobre tal: enquanto as ciências “duras” partem de seu ponto de chegada, sendo de tal forma
cumulativas, as ciências humanas e sociais avançam a partir de seus pontos de partida. “Quando há
avanço nessas ciências, é porque foi proposta uma outra forma de começar (e porque se prova que
ela produz resultados) ...” (p. 17). Por outro lado, há a questão do texto acadêmico e do que ele
compreende enquanto gênero textual. O que cabe num texto científico? Precisamos camuflar a
existência do enunciador? “Percebe-se”, “observa-se”. Ora se não há um “eu” escondido que enuncia
para um “tu” também não muito claro.
Nosso grupo compreende os gêneros textuais como fatos culturais: opções estéticas, éticas e
epistemológicas: modos de ver, de pensar e de organizar as diversas experiências humanas; como
formas jurídicas do dizer: do poder ou do não poder dizer, como arte dos fatos que nos impõe
regimes de verdades, critérios de classificação e validação; que hierarquizam homens, culturas e
sociedades: que asdividem entre primitivas e civilizadas; entre orais e escriturísticas e que, por fim,
praticam seja por arrogância, indolência, ignorância, cinismo ou maldade violênciassimbólicos

HETEROCIÊNCIA
415

(BOURDIEU, 1989) e epistêmicas (SANTOS, 2010), impondo-nos valores, crenças, gostos, verdades e
mentiras, coisas boas ou más, impõe-nos visões de mundo (BAKHTIN, 2002).
Bom, acho que a conversa está avançando e, se vamos convidar alguém para fazer parte dela,
o momento é agora, do contrário, corremos o risco de ela não mais tomar pé na bagunça de questões,
conhecimentos e vidas vividas aqui relatadas.
Fecho com uma fala da Larissa que propôs à sua mãe que namorasse sua dinda, pois que elas
se amam demais...
Beijos num calor de quase 40 graus e olha que ainda estamos no inverno carioca.
Flávia

26 DE SETEMBRO DE 2017

Cara Patrícia Bastos,


Saúdo-te, neste dia, após nosso encontro na banca de monografia de uma aluna do PARFOR do
IM-UFRRJ, com a canção de Milton Nascimento:

Cuidar da vida
Cuidar do mundo
Tomar conta da amizade

Patrícia, precisamos de pessoas como você "com alegria e muitos sonhos, espalhados no
caminho", pois, por mais que estejamos desiludidos, cansados e sem esperanças não podemos nos
entregar.
Arthur e seus enunciados, relembrados por mim e Flávia nas mensagens anteriores, e nossas
experiências de/na vida potencializam os contrastes experimentados, as contradições, sobretudo,
com os inéditos dos quais nossa vida foi e é palco na universidade pública. Nas palavras de Paulo
Freire, em sua Pedagogia da Esperança, ou com as possibilidades aparentemente raras
de reversibilidade e imprevisibilidade humanas, parafraseando Hannah Arendt, em sua análise
da Condição Humana ou no fragmento do livro Estética da Criação Verbal, trazido abaixo:

Na pergunta: “quem sou?” Ouve-se a pergunta: “quem são meus pais, quais são minhas origens?” Sou
somente o que já sou; não posso negar meu já-aqui existencial, pois não é a mim que ele pertence, mas à
mãe, ao pai, às origens, à nação, à humanidade. (BAKHTIN, 2003)

Podemos pensar, dessa forma, Patrícia, Flávia, Arthur, que somos somente o que já somos!?
Ultrapassamos a preocupação corrente de apenas transmitir ao estudante os conhecimentos
com o máximo de eficácia para abordarmos o ensino sob uma nova ótica. Nós sabemos que a vida na
universidade pode tornar-se um período de florescimento cultural e não uma série de restrições a
serem suportadas. Após a defesa de monografia de uma mulher que veio de classe menos favorecida,
da Baixada Fluminense, mãe de três filhos, professora e universitária do PARFOR, sabemos que é

HETEROCIÊNCIA
416

possível romper o mito do sofrimento, mesmo que o contexto brasileiro nos faça sofrer. Portanto,
sabemos que a alegria e o afeto são os únicos valores redentores e autênticos e é o melhor caminho
para o elo arte-vida e conhecimento.
Penso que os enunciados de Arthur e da neta de Flávia mostram-nos situações sócio-
discursivas dos encontros e eventos na vida e fazem-nos sorrir risos dialógicos com a criança que
mostra que nossa responsabilidade precisa ser partilhada.
Nossa responsabilidade partilhada é uma resistência política!
Com afeto, envio o fragmento da música Bom dia Belém, de Edyr Proença e Adalcinda Camarão:

Há muito que aqui no meu peito


Murmuram saudades azuis do teu céu
Respingos de ausência me acordam
Luando telhados que a chuva cantou
A doída saudade que quer me acabar
Sem a "chuva das duas " que não pode faltar

30 DE SETEMBRO DE 2017

Bom dia, Beth e Flávia,


Vocês sabem como a vida é corrida, principalmente para quem é multitarefas como somos
nós. Hoje termina o XI Enpeh - Encontro Nacional de Pesquisadores em Ensino de História - e vocês
sabem que essa é minha seara e militância. Neste tempo tão tenebroso e dolorido, temos que ter
alguns alentos para além do cotidiano familiar, pois, sem sobra de dúvida, para mim, minha família é
meu porto seguro. O Enpeh e meus encontros com colegas e amigos do campo do ensino de história
são esses lugares de alento.
São 7h e 54min, às 9h e 30 min irei para uma atividade de encerramento desse Encontro: a
visita ao Cais do Valongo, sendo assim, vou escrever, nesse momento breve, algumas reflexões sobre
o ser mãe, nesses tempos tão bicudos, e ser mãe do Arthur. Menino que estou tentando educar para
ser um homem sensível às questões que me aquecem a alma, entre elas a luta antimachista, com uma
visão de mundo menos preconceituosa.
Então, neste momento, estou aguardando que ele chegue com o pai para participarmos da
visita guiada ao Cais do Valongo. Quero muito que ele participe desta atividade, pois ajudará na
formação dele como sujeito mais sensível neste mundo que está tão insensível.
Vocês que me conhecem há algum tempo sabem como eu me defino e penso. Sou mulher,
carioca, sem religião, militante das causas sociais e feminista. Desafiada diariamente a formar nesta
sociedade racista, misógina e classita um homem que seja capaz de ser sensível e não compactue
com a manutenção do status quo. Quero crer que estou fazendo isso, mas saber de fato se estou
conseguindo eu não sei, mas esse é meu horizonte de expectativa e espero seja minha contribuição
para o mundo.

HETEROCIÊNCIA
417

Pode parecer para alguns uma vida muito vazia e de propósito pequeno, mas, com
sinceridade, não tenho ambição maior.
Semana atrasada, estávamos os três jantando - eu, Arthur e meu marido - conversando como
fazemos diariamente no jantar:

Eu: Está muito difícil atualmente, cada vez me sinto mais invadida e oprimida pelo machismo.
Arthur: Mãe, tudo para você é machismo.
Eu: Sim e é mesmo, pois o feminino neste pais é fortemente atacado.
Arthur: Você é mulher, é feminina?
Eu: Sim.
Arthur: Eu sou menino, sou masculino?
Eu: Sim.
Arthur: Mamãe é feminina pois põe FÉ nos MENINOS.

Comecei a rir, pois Arthur está na fase de alfabetização e uma de suas diversões é partir das
palavras para entender os sentidos que elas têm e a possibilidade que há da escrita de outras
palavras e sentidos com as sílabas. Ao tomar a palavra feminino e reconstruir seu sentido, ele de fato
produziu e reconduziu a conversa e dialogou diretamente com o tema que estávamos travando. Não de
qualquer forma, mas de uma forma bem precisa e alentadora.
Antes de ser desafiada por vocês a pensar como ele, transita pelo diálogo comigo e pelos
sentidos tecidosque não havia me dado conta do quanto ele compreendeu e significou meu diálogo
com ele e o pai. Agora, respondendo essa demanda, relembrei o fato e percebi o quanto as crianças
transitam nessa construção complexa de sentido e argumentação.
Como alguém que vem do campo da história, só consigo pensar no presente como um todo
múltiplo que se constitui nessa permanência, rupturas e significação do passado. O horizonte de
expectativa que constituirá o futuro, isto é, o presente é habitado pelo passado e pelo futuro em uma
constituição densa de significação. Nesse sentido, meus diálogos com o Arthur no café da manhã e
nos jantares, sempre a mesa e o alimento como mediador, estão repletos dessa experiência individual
e coletiva de construção de subjetividade e possíveis trajetórias para o futuro.
Quando ele fala que eu ponho FÉ nos MENINOS e, de certa forma, reconhece que essa é minha
esperança em relação a ele, é o que eu e meu marido estamos trabalhando ao educá-lo. Eu de fato
espero que ele seja um homem melhor e, nesse sentido, eu ponho FÉ nos MENINOS, ponho fé que ainda
há esperança de transformação desta materialidade caótica.
Beth e Flávia, vou, durante o dia de hoje, pensar um pouco mais sobre esse desafio e escrever,
pois, vamos combinar, amigas, que é uma tarefa bem complexa essa que vocês me pediram. O
exercício de exotopia e produção de significados que ele me provoca é bem difícil. Porém, alimentada
pelo Enpeh e com muitas saudades do meu filho, estou feliz de poder fazer isso com vocês.
Esqueci de dizer que estou desde terça-feira na casa de Gabriela, aqui no Centro do Rio, pois
essa cidade partida não me permitia participar do Enpeh, vindo de minha casa, uma vez que o inferno
da Avenida Brasil me consumiria mais de 4 horas diárias. Então, estou lotada de saudades dele e

HETEROCIÊNCIA
418

aguardando a sua chegada. Estou também preocupada, pois está chovendo e pode ser que o passeio
seja suspenso e quero tanto fazer essa caminhada com ele. Acho muito significativo que ele conheça o
Rio e sua complexidade histórica.
Termino inquieta pela provocação feita e prometo que ainda, até o final do dia, dialogo mais
com vocês.
Abraços apertados.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
419

O texto busca compreender como é possível a

DIÁLOGOS COM E NA construção de um plano discursivo, na vida, na arte


e na ciência, onde seja possível o encontro
plenivalente entre adultos e crianças. Traz algumas

INFÂNCIA
considerações a partir dos aportes bakhtinianos e
exercita escritas de pesquisas com crianças, nessa
perspectiva.

Palavras-Chave: Infâncias. Diálogos. Heterociência


MELLO, Marisol Barenco de 58

A
ntes de tomarmos o tema como natural de ser proferido, é preciso compreender a enorme
força política de se enunciar a possibilidade da existência de diálogos com a infância, e de
diálogos na infância. Por diferentes problemas de concepção histórica e social dos sujeitos, ou
concepções pedagógicas forjadas em estudos psicológicos, em concepções materializadas das
ciências sociais e humanas em geral, há uma pesada bagagem que nos impedem de ver a criança
como um outro, mas sim como uma pintura no vidro59.
Como resultado dessa pesada bagagem e dessa imagem sobreposta, as práticas com as
crianças em nossa cultura – e as práticas das crianças – são práticas desde o externo, à revelia das
crianças reais, autoritárias e no fim objetificantes, mortificantes e violentas. Bakhtin fala em seus
Apontamentos dos Anos 40 e no texto que parece ser o desenvolvimento dessas notas, em Problemas
da Poética de Dostoiévski, que a palavra em ausência é violenta e uma mentira.

A palavra-violência pressupõe um objeto ausente e mudo, que não escuta e não responde, não se dirige
a ele, nem exige o seu consenso; é uma palavra em ausência. O conteúdo da palavra sobre o objeto
nunca coincide com o seu conteúdo para si mesmo. O conteúdo lhe dá uma definição com a qual ele
nunca pode concordar, por princípio, interiormente (Bachtin, 2004, tradução dos autores).

Em Problemas da Poética de Dostoiévski, ao discutir a relação da personagem com o autor,


Bakhtin afirma a liberdade radical do homem em Dostoiévski, que viola todas as leis que lhe são
impostas, mas principalmente a palavra mortificante:

O herói de Dostoiévski sempre procura destruir a base das palavras dos outros sobre si, que o torna
acabado e aparentemente morto (Bakhtin, 2013, p.67)

Bakhtin reconhece a genialidade do tratamento artístico de Dostoiévski justamente no fato


deste criar um plano onde o herói não é um homem acabado pelo ponto de vista do autor, monológico,

58
Professora da Faculdade de Educação da UFF. Grupo ATOS UFF. E-mail: sol.barenco@gmail.com
59
Leonardo da Vinci dizia que a representação é como uma pintura no vidro que, sobreposta ao mundo, sobrepõe o próprio mundo. Vemos não
o mundo, mas a sua representação.

HETEROCIÊNCIA
420

mas um plano em que o herói desenvolve sua consciência do mundo e de si mesmo em diálogo com
outras consciências isônomas a ela, no mundo. Um homem, para Dostoiévski, é um ser tomando
consciência de si e do mundo, é um ponto de vista sobre o mundo e sobre si, é uma posição valorativa
e racional, sobre o mundo e sobre si mesmo. Esse é o homem vivo: o que fala, o que conhece, o que
está vivo em relação profunda e dialógica com o mundo.
A verdade desse homem só é acessível ao diálogo (Bakhtin, 2013, p. 67), “diante do qual ele
responde por si mesmo e se revela livremente”.

A verdade sobre o homem na boca dos outros, não dirigida a ele por diálogo, ou seja, uma verdade à
revelia, transforma-se em mentira que o humilha e mortifica caso esta lhe afete o “santuário”, isto é, o
“homem no homem”. (idem, p. 67)

Essa palavra-violência (que é também mentira) conflui no criador, com milhares de motivos pessoais
que turvam a sua pureza com a sede de sucesso, de influência e reconhecimento (não da palavra, mas
do criador) aspirando a se tornar uma força opressora e consumidora. A palavra quer exercer
influência de fora e determinar de fora. (Bachtin, 2004, tradução dos autores)

Essa palavra-violência é a palavra enunciada sobre a criança, sem a sua possibilidade de


resposta, de participação responsiva na enunciação sobre si. Recusamos essa palavra violenta e
mentirosa, e acreditamos na necessidade da criação de planos dialógicos com as crianças.
A decorrência de não tomarmos em conta a criança como participante dialógica nos
enunciados sobre si é que historicamente seus fazeres, dizeres, modos de ser e estar no mundo são
tomados como mimos e curiosidades, e não como a palavra autêntica de um ser humano único e
singular, que enuncia na cultura. Ou não são tomados como verdade ou são percebidos como pontos
relativos em uma linha contínua de desenvolvimento que vai dar em um modelo adulto determinado,
como ponto de chegada, incompletos de uma maneira colonizada, ou seja, se completarão no futuro.
A incompletude do humano, que Bakhtin e tantos outros afirmam como a base da
humanicidade, do humano no homem é de outra natureza: é a infinitude absoluta, a total abertura para
o infinito interno, a irrevogável impossibilidade de acabamento. Um homem acabado é um homem
morto. Dar acabamento a um ser humano é mortificá-lo (ao menos para quem crê nesse
acabamento).
Ele não é real. Por detrás desse vidro de tolos as crianças produzem enunciados responsivos
na vida, as crianças conhecem o mundo e o transformam. As crianças se empoderam nos saberes da
vida – pelas vozes dos povos ou pelas instituições. Para o bem e para o mal. Ainda que o horizonte das
práticas adultas contenha suas formas – e parece que nelas vão-se diluir – a pluralidade dos atos
infantis existe e precisa ser escutada.
O diálogo é a categoria central da ontologia bakhtiniana – como para Paulo Freire – já que o
ser humano inicia sua existência em resposta a outro enunciado, que o interpela, convida, provoca a
dizer. Não temos acesso ao mundo, nem a nós mesmos, diretamente. É de modo oblíquo que
acessamos a existência, via linguagem. Essa é não um objeto abstrato, mas o próprio ato humano de

HETEROCIÊNCIA
421

responder, via oblíqua, à vida que o provoca. Nesse processo é preciso pelo menos dois, e o eu que
enuncia, o faz sempre em resposta, ou seja, em segundo. O outro ocupa a posição privilegiada na
ontologia bakhtiniana da concessão da existência ao eu. Porque tu falas comigo, eu existo, assim
resume Augusto Ponzio o cogito bakhtiniano. Minha obrigação ontológica: a escuta. Escuta
compreensiva, escuta que já engendra no seu processo, simultaneamente, a compreensão e a
resposta. Escuta que só se faz possível na suspensão momentânea do eu, da identidade, das forças
enfraquecidas da solidão da necessidade útil e funcional. Escuta que é abertura plena e perda de si, no
outro. No mesmo processo, e pisando sobre a tangente do mundo, essa perda não é absoluta: retorno
a si e à posição única que ocupo diante do outro, o que pode ver o que este mesmo não tem como ver
– seu entorno, seu corpo, seu tempo passado e futuro. Empatia/compenetração/escuta e exotopia. Os
dois movimentos indissociáveis da posição dialógica – na vida – e da posição autoral – na arte.
Assim, e nada menos do que isso, deve ser o plano dialógico a ser criado para o diálogo com a
infância. Cabe dizer que esse plano recoloca de modo radical a humanidade em um plano humano, pois
que a mortificação dos seres crianças é uma parte colonizadora e embaraçosa da nossa história. O
diálogo é sempre humanizante, uma vez que implica na atitude política e pública da instauração de
uma lógica ex-eu, extra-identitária, extra-privada, não violenta, em presença, do lado de fora – na
praça pública da vida.
Não são dois eus que dialogam – a alteridade é o conceito chave, aqui. Dialogam dois seres
humanos diferentes, únicos, que se alargam mutuamente no processo. A palavra outra talha,
interrompe, corta o fluxo ininterrupto do eu que de outra forma segue ao horizonte, tudo dominando e
colonizando. Nesse lugar único se inaugura o acontecimento da existência – que cria o eu, o outro, e o
mundo, cronotopicamente.
Mais uma vez, é preciso ir ao acontecimento desse diálogo sem as bagagens, e até mais, como
disse Derrida, sem nos prepararmos e sem nos protegermos, sem antecipar, saber antes, sem
apreender, ver vir o que vem (Derrida, 2012, p. 69). Derrida diz que por nossos olhos verem à frente, o
acontecimento corre o risco de ser neutralizado e, portanto, nada vem, nada acontece (idem, p. 70).
Um acontecimento é o que vem; a vinda do outro como acontecimento só é um acontecimento digno
desse nome, isto é, um acontecimento diruptivo, inaugural, singular, na medida em que precisamente
não o vemos vir. Um acontecimento que antecipamos, que vemos vir, que pré-vemos, não é um
acontecimento: em todo caso é um acontecimento cuja acontecimentalidade é neutralizada,
precisamente, amortecida, detida pela antecipação (idem, p. 70).

A abertura dialógica para a humanicidade com as crianças pressupõe a confiança em uma


surpresa não previsível, não antecipável, não amortizável. Não existem garantias, de toda forma. Aqui
podemos perceber claramente porque o tema dessa conversa é, por si só, um grito e um projeto: o
diálogo com e na infância é a construção de um plano dialógico que nos liberte dos discursos
antecipadores e envelhecidos, de toda forma abstratos, sobre os seres humanos que chamamos
crianças. E, mais, que nos liberte desses enunciados que nos cegam para a vida que está diante de

HETEROCIÊNCIA
422

nós. Enunciados que curem enunciados, que ressuscitem enunciados, e que criem outros planos de
visão, outras possibilidades de perceber a vida.
Dostoiévski fez isso, com maestria, segundo Bakhtin. Com ele vimos construindo esses planos
dialógicos, na vida, na escola e na pesquisa. Percebemos que a arte vem se configurando, no dizer de
Mailsa Passos, como decolonizadora dos discursos envelhecidos e enrijecidos da academia, da ciência,
das instituições e da vida. Tratamos de construir planos dialógicos na vida e na escrita, planos
estéticos onde as crianças sejam um tu, a quem dirigimos a palavra, e não um objeto que nosso saber
último mortifica. Aprendizagem cotidiana de não dar, de não começar, de não fundar, mas de escutar,
de ir com, de responder, de nos refundarmos como humanos.
Nossos desafios são esses: nos colocar no mundo ao lado e de frente às crianças, as escutar
como um outro e a elas responder. Nos colocar no plano do autor, diferente por princípio desse outro
na vida, e construir uma posição enunciativa autoral não violenta, não em ausência, mas com
Dostoiévski e Bakhtin construir uma posição enunciativa dialógica, autoral, na tangente da vida,
compromissadamente participante da vida.
Algumas experiências dialógicas. Ana está na escola pública, buscando construir com as
crianças pequenas uma compreensão de seus processos de aprendizagem, em favor do fim das
avaliações e laudos que excluem e separam crianças de crianças, crianças dos contextos de vivências
escolares, crianças de si mesmas. Aqui o momento em que entrou na sala de aula, pela primeira vez.
Sem planejar, deixando-se acolher pela hospitalidade infantil, Ana se apresenta e começa a trabalhar,
com as crianças.
- Meu nome é Ana e eu, como vocês, também estudo e estou fazendo um trabalho para minha faculdade,
sobre as crianças e os lugares que têm aqui na escola para aprender. Então eu vou ficar aqui com vocês
por um tempo.
- Você tem professora?
- Tenho.
- Senta aqui, ó!
- Esse é seu caderno?
- O que você está escrevendo?
- É sobre a gente?
(Olham meu caderno)
- Ela está fazendo o mesmo que a gente!
(Ana Lúcia Lopes, 2016)

A construção do plano dialógico escrito em forma de conversas enquanto gênero é o trabalho


de Ana, que tenta ainda reapresentar os diálogos escritos enquanto conversas para as crianças, na
perspectiva da pesquisa-com.
O mesmo processo é vivido aqui por Liliane, na tentativa do relatório de aula dialógico:

Em outro momento com a turma onde Verônica estudava fomos à Sala de Informática, pois eu tinha
recebido um email de uma amiga, com novas imagens do planeta Terra tiradas de um satélite. Eu os
reuni em volta do computador e começamos a ver as imagens. Então o aluno Ryan começa a cochichar.
- Essa tia é professora mesmo, né?

HETEROCIÊNCIA
423

- É mesmo!- responde o Felipe


- Ela sabe muita coisa.
- Ela ensina um monte de coisas.
- Ela não fica só passando dever, ela sabe mais coisas.
Entrei na conversa deles.
- Por que vocês estão dizendo isto? Por que eu sou professora mesmo?
Então a Verônica responde:
- É que você sabe mais coisas do que as outras professoras, por que você não ensina só dever. Você
ensina muitas coisas.
(Liliane Neves, 2015)

Aqui se revelam, nas palavras das crianças, concepções sobre ensinar, aprender e ser
professora como o sujeito que sabe coisas, para além do dever. Liliane busca pensar a formação dos
professores e professoras, e o diálogo com as crianças aqui informa uma pista importante do
processo: as crianças sabem o deveria ser a escola, o que é ser um “professor de verdade”.
As crianças são sujeitos na cultura, e a escola enquanto instituição na cultura tem o dever
ético sem álibi de fazer confrontar as ideologias que circulam na cultura. Esse trecho da pesquisa de
Márcia Concêncio nos revela o desafio da escuta. Com crianças das classes populares de uma escola
pública em Niterói, RJ, buscando inaugurar um projeto dialógico de trabalho, essa é a cena discursiva.

“Boi chifrudo”! “Feio”! Estas foram algumas falas sobre Zumbi dos Palmares, registradas quando, ao
tentar incentivar o nascimento de um novo Projeto de Trabalho [...], trouxemos uma proposta onde
seriam observadas imagens colocadas na parede com espaços em branco para os registros das
impressões que causavam nas crianças. Ao ver o cabelo crespo da atriz Thais Araújo em uma das
imagens, Thayane, uma das alunas da turma 401, logo se identificou, porém, demonstrou dificuldades
para reconhecer e registrar sua constatação, precisando de uma mediação para ter segurança de
escrever: “Lembra meu cabelo quando eu era criança” [...] “hoje em dia meu cabelo melhorou muito”.
[...] "A África é seca, é o país mais pobre e só tem negro"; "Eu sei que todos os angolanos, ou seja,
africanos nem um é rico"; “Como os africanos sobrevivem na África sem comida?” As atividades
pensadas e realizadas no projeto “Sanibonani, Baobá” surgiram de afirmativas e perguntas como estas,
registradas pelas crianças na construção do índice.
(Marcia Concêncio, 2015)

Dialogar com as crianças é enfrentar, na palavra, os sentidos do mundo todo. E com elas
escutar o tom da própria voz, perguntar-se: penso isso mesmo ou repito o que pensam outros? O que
assino, enquanto ato único e irrepetível? Coletivamente, reacentuar, escolher os próprios tons,
escolher o que assino enquanto autor, único e irrepetível, de minha vida.
A cultura popular é a chave dessa ligação histórica entre a vida de todos os homens e nossas
vidas singulares. Enunciar é despertar os sentidos presentes e oprimidos, nas palavras, nas imagens,
nos gêneros. É escolher o acento próprio, belo porquanto único, porquanto humano. Patrícia assim
contra-assinou a obra de Luan e Wallace, na mesma escola de Márcia.
Luan: Eu e o Wallace aqui vamos inventar um rap.

HETEROCIÊNCIA
424

Wallace: Hoje o meu dia começou assim, sem pé, sem cabeça, sem meio, sem fim. Sei que esse carma tá
grudado em mim. Minha prima de 5 anos, sempre perguntando [?] Eles tão voltando? Eu sei lá, é meu
pensamento, eles tão guardados no meu peito aqui dentro.
Luan: Olha eu vou falar, eu vou falar então... [pausa]
Wallace: Olha eu vou falar, eu vou falar então... Só porque o Luan é feio pra caraca, então... Eu fui lá no
morro, eu meti um papo, o Luan me chamou pra ficar do teu lado...
Luan: Olha eu vou falar, eu vou falar agora, tu parece uma formiguinha, tu parece uma bola...
Wallace: Olha eu vou falar, eu vou falar agora, do nada você apareceu, foi dentro da minha escola...
Luan: Olha eu vou falar, eu vou falar agora, do nada você apareceu... Deixa quieto! Olha eu vou falar, eu
vou falar, então, Wallace veio do Palácio, do 94, então...
Luciano: De quem é o primeiro rap que vocês cantaram?
Luan: Era dele [olhando para o Wallace].
Luciano: Era seu? E como é que começa mesmo?
Wallace: [Repete o rap] Hoje o meu dia começou assim, sem pé, sem cabeça, sem meio, sem fim. Sei que
esse carma tá grudado em mim. Minha prima de 5 anos, sempre me perguntando [?] Eles tão voltando?
Eu sei lá, é meu pensamento, eles tão guardados no meu peito aqui dentro.
Luan: Ele não inventou. Você inventou? [olhando para Wallace]
Wallace: [Balança a cabeça afirmativamente]
Luan: É? Então também vou inventar! Tia, não tem aquele que eu cantei naquele dia? Fui eu que inventei,
naquele dia... Saiu da minha cabeça, tá?
[Luan canta o rap do menino Jesus] Hoje é o dia do menino Jesus, mas sou eu que carrego a minha cruz.
Escute dona eu pedi pra me ajudar, se você não me ajudar a fome vai me matar.
Luan: Oi gente, eu tô aqui pra inventar um rap, é... qualquer um, um rap assim que eu sei. Então, agora eu
vou inventar um, eu e o meu amigo aqui, Wallace. Eu faço primeiro, ele continua, termina. Então...
[Luan começa o rap] Eu vou falar, eu vou falar da minha vida então, o meu irmão tomou um tiro de oitão.
Agora eu vou falar, eu tô muito triste, quando ele morreu, então...
[Wallace continua, repete o rap que havia cantado antes] Hoje o meu dia começou assim, sem pé, sem
cabeça, sem meio, sem fim. Sei que esse carma tá grudado em mim. Minha prima de 5 anos, sempre me
perguntando [?] Eles tão voltando? Eu sei lá, é meu pensamento, eles tão guardados no meu peito aqui
dentro.
Luan: Então, esse foi o rap da paz...
Wallace e Luan: ...que nós inventamos. Por hoje é só. Boa tarde.
Wallace: Muito obrigado pela atenção. Tchau.
(Patrícia Borde, 2015)

Os dois meninos, muito levados, abraçados compuseram esse rap, obra em que como dupla
enunciaram seus pontos de vista sobre o mundo, sua versão da vida enquanto crianças habitantes de
comunidades favelizadas do Rio de Janeiro, no gênero oral ritmado, com Patrícia e Luciano, que
dialogavam com eles sobre o que eles sabiam fazer na vida. Criaram em resposta.
Outro plano é o que vem tentando construir Angélica, em diálogo com crianças bem pequenas,
entre 2 e 4 anos. Aqui nesse desafio, percebemos que dialogar com crianças significa alargar nosso
conceito de linguagem para além dos nossos restritos meios discursivos da palavra. Muitas das suas
crianças ainda não falam, mas enunciam e dialogam. O desafio de Angélica é penetrar nessas camadas
não verbais do diálogo. Assim fazendo, revela nossas formas mortificantes agindo desde cedo, na
constituição das visões de mundo e de si das crianças, como nesse episódio sobre auto-retrato.
- Eu não sei desenhar.

HETEROCIÊNCIA
425

- Sabe sim Marlen, é só você usar o lápis de cor e fazer do jeito que você sabe.
- Eu não sei de jeito nenhum, ninguém nunca me ensinou a desenhar então eu não sei ueh. Olha aqui!
Tudo que eu faço fica feio! - ele exclama com um tom de irritação.
[...]
- Eu queria me desenhar, mas eu não sou assim.

Figura 1. O menino

Fonte: Angélica Duarte, 2016

Não sei desenhar, eu fico sempre feio, não sou assim: dessa forma Marlen olha, com olhos
outros suas linhas no papel. Necessário inventar um outro tempo discursivo, onde, como diz Bakhtin, o
tempo não seja uma linha, mas um movimento complexo de rotação do corpo (Bachtin, 2004). No
mesmo movimento que o menino nega sua linha, ele dança com seu corpo e recria o tempo do
encontro, no mesmo pendão que coloca os corpos no mundo “de baixo” e as linhas e escrituras no
mundo “de cima”. Com o corpo, Marlen enuncia o tempo em sua rotação, o tempo todo da humanidade
que é bela porque a amamos.
As crianças sabem algo que perdemos: seus traços são coletivos. A “reserva” de seus
saberes não está na memória nem em outra função cognitiva, mas está disponível no conjunto todo do
mundo, como as crianças da pesquisa de Maria Letícia.
Figura 2. O ipê rosa, por Júlia, Geovanna e Karine

Fonte: Maria Letícia Miranda, 2015

HETEROCIÊNCIA
426

Não há limites para esse acervo: o tesouro da língua (Bakhtin, sobre Saussure), o
caleidoscópio dos sentidos (Derrida) está disponível a todos, na vida. Com a mão do outro risco o
mundo que crio para poder ver o mundo. Esse deve ser o epíteto do diálogo com e nas infâncias:
alargo-me para caber na arquitetônica eu-outro diante desse outro que é uma criança, e invento
outras humanicidades que balizem outros encontros entre crianças, enquanto mundos novos a
disposição de todos.
Mas ainda estamos na antessala desse mundo. Bem, não seria a antessala um lugar de espera,
de anterioridade à sala? Absolutamente. Como o vestíbulo, a antessala é limiar, lugar que não é fora
nem dentro, mas momento de crise: para Bakhtin e Dostoiévski, o melhor lugar para se estar.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, MIKHAIL. Dagli appunti degli anni Quaranta. Trad. do russo de Augusto Ponzio. In: Corposcritto, n. 5. Bari :
Edizioni dal Sud, 2004.
BAKHTIN, MIKHAIL. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. do russo de Paulo Bezerra. 5 ed. Rio de Janeiro :
Forense Universitária, 2013.
DERRIDA, JACQUES. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Trad. Marcelo Jacques de
Moraes. Florianópolis : Editora UFSC, 2012.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
427

A EDUCAÇÃO COMO Palavras-Chave:

TERRITÓRIO DA
ALTERIDADE 60

MIRANDA, Maria Eliza 61

1. O CONTEXTO DA PESQUISA

E
stamos trabalhando com uma concepção que considera a Escola e o espaço da aula como um
sistema aberto, portanto não linear, e por isto passível de transformação. Como sistema aberto,
a Escola e as aulas não respondem apenas à função técnica de transmissão de conhecimentos
como muitas vezes tem sido considerada, pois ao pensarmos a escola e a aula no contexto social,
cultural, político e econômico fica mais evidente compreender sua relevância no contexto territorial
também. Assim, a visão que se pode ter da Escola e da aula se amplia muito e tornam-se imprevisíveis
os efeitos que a escolarização contemporânea promove na sociedade e na cultura. E por que não dizer
também no mundo do trabalho e da técnica.
Assim, como um sistema aberto, a escola se caracteriza com um nível alto de complexidade,
seja pública ou particular; e, é preciso que seja conhecida como Instituição historicamente produzida
pela sociedade, e assim também como uma possibilidade da produção do humano.
Aqui não escolhemos pensar a escola como instituição propriamente dita, mas adentrar em
sua esfera de ação a partir dos sujeitos professor e aluno, implicados diretamente no trabalho que
nela se realiza: o ensino e a aprendizagem.
Muitas questões envolvem esta escolha, mas assim fazemos dada a insistente afirmação de
professores, tanto bacharéis e licenciados como apenas licenciados, os quais declaram “não saber o
que fazer na sala de aula” e cuja descrição é de um cenário em que os alunos se apresentam no
ensino fundamental II e no ensino médio, segundo professores, com muitas defasagens e inúmeras
dificuldades de aprendizagem acompanhadas de comportamentos inadequados para o ambiente da
aula. É necessário que se explicite aqui, que a ideia de “não saber o que fazer” aparece também nas

60
Este artigo é resultado das discussões que se realizaram quando da apresentação da Comunicação que apresentamos no EGAL - Encontro de
Geógrafos da América Latina em Lima, Peru, em 2013, intitulado “A reinvenção da prática docente: interfaces e aproximações para a
ressignificação da prática docente”.
61 Docente e Pesquisadora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana – Linha de Pesquisa: Geografia, Educação e Ensino. E-mail: elizamir@usp.br

HETEROCIÊNCIA
428

práticas discursivas de estudantes estagiários em formação inicial da Licenciatura, de professores


em formação continuada com pouco tempo de experiência profissional, e também de professores com
muito tempo de experiência profissional.
A ideia de “não saber o que fazer” de professores, em geral, aponta uma tendência do longo e
complexo processo de transformações contraditórias da escola e da formação de professores no
mundo contemporâneo, em que assistimos a uma espécie de esgotamento do papel do professor e da
escola, não sem profundos questionamentos quanto à profissionalidade do professor e de sua
formação.
Já em 1999, AntonioNóvoa considerava que

[...] a formação de professores precisa ser repensada e reestruturada como um todo, abrangendo as
dimensões da formação inicial, da indução e da formação contínua (Hargreaves, 1991). Os modelos
profissionais de formação de professores devem integrar conceptualizações aos seguintes níveis: ‘(1)
contexto ocupacional; (2) natureza do papel profissional; (3) competência profissional; (4) saber
profissional; (5) natureza da aprendizagem profissional; (6) currículo de pedagogia’ (Eliot, 1991, p.310).
Parece evidente que, tanto as Universidades como as escolas, são incapazes isoladamente de responder
a estas necessidades...(grifo nosso). As evoluções recentes da investigação em ciências da educação e,
sobretudo, as correntes que procuram estimular uma atitude investigativa no seio dos professores têm
vindo a consolidar as bases teóricas e conceptuais... Assim sendo, é natural que os esforços inovadores
na área da formação de professores contemplem práticas de formação-acção e de formação-
investigação[...]62

É considerando a perspectiva apontada por Nóvoa que decidimos verificar inicialmente, a


partir de ‘falas’ com enunciados de professores, as relações que há, mas nem sempre explicitadas,
entre os efeitos que o contexto contemporâneo exerce sobre os processos de ensino e aprendizagem,
e também sobre as relações que ocorrem na Escola, especialmente no espaço da sala de aula, em que
aparece a complexidade que envolve estas relações, particularmente a relação professor-aluno,
especialmente quanto à visão que os professores têm de sua própria formação, as concepções de
conhecimento, de aprendizagem, de escola, de mundo enfim, com as quais realizam seu trabalho, e
cujos efeitos têm sido analisados também por avaliações externas à escola, inclusive dos alunos, e a
tendência perniciosa que circula na esfera social, de responsabilização efetiva dos professores pela
baixa qualidade do ensino e consequentemente da aprendizagem.
Apesar do processo que no Brasil transcorre a partir do final da década de 70, o qual passa
pelo fortalecimento e mesmo a constituição de associações profissionais, pela criação de instituições
específicas para a formação de professores e a construção/elaboração de um conjunto de
conhecimentos e técnicas que vão caracterizar a formação do professor, no caso dos professores do
ensino público do Estado de São Paulo, que é o âmbito da pesquisa que estamos realizando, não se
conseguiu evitar a emergência do “não saber o que fazer” diante da realidade contemporânea da sala
de aula.

62 NÓVOA, Antonio. “O Passado e o Presente dos Professores” IN: Profissão Professor, Porto Editora, Portugal, 1999, p.26.

HETEROCIÊNCIA
429

O enfoque curricular na formação de professores tem evoluído especialmente em três


campos, a saber:

[...]metodológico, com uma atenção privilegiada às técnicas e aos instrumentos da ação; disciplinar,
centrado no conhecimento de uma dada área do saber; científico, tendo como referência as ciências da
educação, numa perspectiva autônoma ou enquadradas por outras ciências sociais e humanas
(especialmente a psicologia). Estes polos tendem a reproduzir dicotomias várias, nas quais, aliás, a
epistemologia das ciências da educação tem estado encerrada: conhecimento
fundamental/conhecimento aplicado, ciência/técnica, saberes/métodos, etc.63

Na verdade, o currículo da formação de professores tem manifestado uma tendência que vem
sendo denominada prescritiva com efeitos muito negativos para o trabalho do professor na sala de
aula, com inclusive a impossibilidade de o professor compreender a condição das crianças e
adolescentes no contexto contemporâneo, observando-se à tendência de medicalização de crianças e
adolescentes para suportar e acompanhar os processos da escolarização, fato ‘novo’ no contexto
educacional mais recente.
O efeito mais visível e imediato para as práticas docentes é a tendência de des-naturalização
do papel do professor por algumas políticas públicas de educação que tendem a intervir na ação
própria dos professores, com a perda de autonomia deste quanto à relação que este tem com os
conhecimentos e os saberes dos quais são portadores, pela expansão da adoção destas políticas
curriculares (prescritivas), desconstruindo, também, a tradicional concepção de que professores são
transmissores destes conhecimentos.
Ocorre que as crianças e adolescentes, atualmente, tem acesso livre a conhecimentos e
informações de diversos tipos, e estão expostos a eles, sem mediação, especialmente pelos meios de
comunicação de diversos suportes tecnológicos, especialmente tecnologias de informação, com
acesso a WEB, redes sociais e jogos eletrônicos.
A ocorrência desta condição nova da população escolarizável foi prevista pelas políticas
públicas da década de 90 que induziram a aceleração da incorporação tecnológica no meio
educacional escolar pela aquisição, em massa, de computadores e outros equipamentos para escolas,
além do desenvolvimento de diversos programas direcionados a professores, que até hoje, ainda não
garantiu que a maioria dos professores incorporasse sua utilização nas práticas profissionais
cotidianas.
O problema é recente historicamente, mas com profundos efeitos nos processos escolares
como um todo, e muito evidente no contexto do ambiente da sala de aula. Tornam-se complexas
especialmente a velocidade da mudança do perfil dos alunos do ensino fundamental e ensino médio, e
a fragilização dos processos de alfabetização na escolarização inicial, comprometendo o processo de
aprendizagem no percurso escolar como um todo. E ainda, a demora em se identificar o problema, o

63Ibid, p. 28.

HETEROCIÊNCIA
430

qual não se encontra suficientemente disseminado e abordado muito lenta e superficialmente nos
processos de formação inicial e educação continuada de professores.
O Círculo de Pesquisas e Estudos de Novas Fronteiras Teóricas para a Formação de
Professores de Geografia e Outras Áreas do Currículo foi criado em 2009 e vêm trabalhando com um
Programa de Pesquisas que se iniciou com professores de Geografia da Educação Básica e, que com o
passar do tempo, foi agregando mais professores que passaram a considerar a possibilidade de
identificar interfaces e aproximações entre diversas tendências teóricas contemporâneas, a partir
das quais se pudesse examinar o contexto de esgotamento em que as práticas docentes se encontram
e concordaram em estudar alguns sistemas de pensamento prospectados em diferentes áreas de
conhecimento para sustentar a análise crítica de aspectos decisivos envolvidos no espaço aula que
passou a ser considerado o espaço onde se concentram as contradições que caracterizam a Escola,
em geral, e a esfera de ação dos professores, em particular.
O problema que reafirmamos como recente, historicamente falando, supõe ainda diversos
aspectos críticos que caracterizam, paradoxalmente, o contexto de amplas mudanças que estão
ocorrendo na condição sociocultural, econômica e política do mundo contemporâneo, o que, aliás, vem
sendo estudada por diversas tendências teóricas também contemporâneas, que reconhecem a
existência destas mudanças que se aprofundam a partir da década de 70, e que se caracterizam pela
expansão da relação entre ciência e tecnologia, contribuindo para a emergência de uma nova
condição na inter-relação que articula as dimensões que estão envolvidas entre o meio técnico,
científico, informacional e comunicacional do capitalismo em sua etapa atual com profundos efeitos
que podem ser observados não apenas nos processos gerais da sociedade, mas também suas
implicações para os processos em particular da esfera educacional.
A este respeito assim define Milton Santos quando se refere aos processos de mudanças
mencionados:

Neste período [após a década de 70], os objetos técnicos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e
informacionais, já que, graças à extrema intencionalidade de sua produção e de sua localização, eles já
surgem como informação; e, na verdade, a energia principal de seu funcionamento é também a
informação. Já hoje, quando nos referimos às manifestações geográficas decorrentes dos novos
progressos, não é mais de meio técnico que se trata. Estamos diante da produção de algo novo, a que
estamos chamando de meio técnico-científico-informacional [...]64

Em relação ao contexto da inter-relação dos meios técnico, científico, informacional e


comunicacional no último quartel do século XX, Hargreaves o caracteriza como contexto de pós-
modernidade, cujos efeitos são profundamente sentidos na esfera de ação educacional, e considera
que o processo de mudanças que se verifica nesta esfera pode ser considerado intrinsecamente
relacionado à modernidade, conforme se expressa quando afirma que:

64SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Edusp, São Paulo, 2002, p.238.

HETEROCIÊNCIA
431

Por ejemplo, lainformación se organiza de forma distinta, se processa com mayor rapidez y tanto
elacceso a lamisma como sudivulgaciónestánmás generalizados, com enormes consecuencias para las
pautas de comunicación y control de la vida econômica y de lasorganizaciones. De modo parecido, el
predomínio de laimagenenlasociedadpostmodernalleva a câmbios cualitativos em relación com lasfases
anteriores. La cultura visual instantânea, com suespectáculo y superficialidad, empieza a suplantar el
discurso moral, lareflexiónestudiada y el debate público rigurosocaracterizabalas culturas
moralesorales. Este tipo de cosas marca profundamente loscambiosenlaorganización y la experiencia de
la vida económica, política, de lasorganizaciones y personal, que son más que simples prolongaciones o
exageraciones de lo anterior [...]65

Levando em consideração o contexto de emergência do meio técnico científico informacional e


a consequente expansão comunicacional dele decorrente, percebemos a partir da etapa piloto de
nossa pesquisa, cujas sondagens iniciais realizamos nas Oficinas Didáticas da 1ª edição do Programa
de Desenvolvimento do Ensino e Aprendizagem Mediada de Geografia para a Educação Básica, em
2009, que os professores de Geografia dos sistemas públicos de ensino participantes do Programa,
apontavam claramente que sua formação inicial e, também continuada, não atendiam mais suas
necessidades teóricas e metodológicas, e que sentiam necessidade de estudos de aprofundamento
teórico que apoiassem a elaboração de alternativas didáticas e metodológicas diferenciadas para o
enfrentamento das condições de aprendizagem atual que seus alunos apresentam, cotidianamente, em
sala de aula, onde as atuais práticas docentes não recobrem mais a possibilidade de superação
destas condições.66
Na verdade, os professores manifestam muita angústia em relação à necessidade de mudar a
prática docente sem a clara compreensão de que seu mal estar já se configura como uma ruptura e
consequência do contexto contemporâneo de emergência do meio técnico científico informacional e
comunicacional que altera profundamente os tempos e espaços na sociedade, desorientando e
desacomodando os diversos sentidos estabelecidos, afetando sobremaneira a esfera de ação
educacional onde ocorre seu trabalho, ou seja, a escola propriamente dita.
Na etapa piloto detectamos que os professores sentem necessidade de apoiar o
desenvolvimento intelectual de seus alunos, mas não tem ideia de como poderiam desenvolver novas
práticas que colaborem para a superação das dificuldades de aprendizagem que seus alunos
apresentam, bem como a mudança de comportamento e hábitos que são necessários para favorecer
a emergência do potencial de aprendizagem dos alunos e o consequente desenvolvimento de seu
trabalho e de sua prática no próprio espaço de trabalho que é o espaço da aula.

65HARGREAVES, Andy. Profesorado, cultura y postmodernidad – Cambianlostiempos, cambia el professorado.EdicionesMorata, S. L. Madrid, 1995.
p 72.
66 Tema tratado no artigo: MIRANDA, Maria Eliza. Contribuição ao debate atual sobre a Formação de Professores no Brasil: pela formação de

futuras gerações na perspectiva da reconstrução do sociocultural. Revista do Departamento de Geografia USP. FFLCH. nº 20, p. 7-18. 2010.

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432

2. INTERFACES E APROXIMAÇÕES ENTRE LINGUAGEM E MEDIAÇÃO

As reflexões aqui apresentadas se orientaram pela adoção, inicialmente, de algumas


concepções como a de mediação e a de dialogicidade que interessam para nossa pesquisa,
especialmente quanto à contribuição que estas concepções oferecem para se repensar o trabalho
docente e as interações na sala de aula. Além disso, diversos autores podem contribuir para
resignificar o sentido da escola e do papel do professor, tendo como perspectiva a possibilidade de
pensar o ensino de Geografia e mesmo de outras áreas do currículo escolar considerando a prática
docente também como prática discursiva e de mediação da aprendizagem.
Assim, temos considerado esta pesquisa como uma pesquisamediada e dialógica, em
movimento, sendo que isto quer dizer que se trata de uma pesquisa de base, qualitativa e que a
metodologia e as técnicas utilizadas são elaboradas em conjunto com os próprios participantes da
aplicação da pesquisa num ambiente aberto, de estudos e reflexões com aplicabilidade nas condições
vigentes do trabalho de cada docente na escola pública comum em que atuam.
A escolha das condições de realização da pesquisa considerou a possibilidade dos marcos
teórico e metodológico serem desenvolvidos com o próprio grupo de professores envolvidos, e
também a possibilidade de a pesquisa ocorrer em tempo real, isto é, ser aplicada em condições
cotidianas de ensino e das práticas escolares. A abrangência envolvida se refere à prática didática e
pedagógica em si, do professor em sala de aula, não interferindo diretamente nas dinâmicas previstas
nos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas, nem no Plano de Ensino inicial preparado para o
desenvolvimento do trabalho curricular previsto para a disciplina que o professor está ministrando no
ano letivo. As sequências didáticas funcionam como uma mudança de abordagem didática das
disciplinas escolares de cada professor nas turmas em que estão sendo aplicadas.
É preciso assinalar aqui também que a decisão de realizar a pesquisa com professores
voluntários numa dinâmica distante do ambiente das reuniões pedagógicas das escolas em que
trabalham deve-se à tendência comum e insistente da visão que muitos professores têm acerca da
banalização do papel do professor pela equipe de gestão e, muitas vezes, colocam que não há
possibilidade de realização de estudos para apoiar a reflexão sobre a prática pelos professores e sua
possibilidade de modificação da prática na Escola.
Afora a cultura política centralizadora que existe no sistema educacional com regulações e
normatizações de toda ordem, cada escola produz também seu modo de lidar com esta condição que é
subjacente às relações entre seus membros e estabelecida na prática cotidiana. Observe-se que é
comum a tendência política que insiste na obrigatoriedade de participação de professores no
colegiado das reuniões pedagógicas valorizando em sua forma a possibilidade de consenso,
atribuindo-lhe uma importância que não se verifica na prática social da educação.
A este respeito, Hargreaves assinala que

Enla perspectiva micropolítica, las diferencias entre los grupos de uma organizacióncobranmayorrelieve
que lassemejanzas. La forma en que algunosindividuos y grupos ponemenpráctica sus valores a

HETEROCIÊNCIA
433

expensas de otros o elhecho de tenerel poder y la influencia suficientes para configurar otros valores a
imagen de lossuyospropiosconstituye una preocupación clave. Enla perspectiva cultural, elliderazgo es
una cuestión de gestión y justificación. Enla perspectiva micropolítica, se trata, más bien, de una
cuestión de poder y control [...]67

É importante destacar que este autor também assinala ainda que

Nila perspectiva cultural nila perspectiva micropolítica poseen uma interpretación privilegiada o más
precisa de lasorganizaciones y de las relaciones colegiadas dentro dellas. Ningunatieneelmonopolio de
lasabiduría. Pero el predomínio de laprimeraperpsectivaenlainvestigación sobre la cultura escolar, ha
dado uma importância injustificada a lasinterpretaciones de lacolegialidaddelprofesorado y a
lasprescripcionesrelativas alamisma que más se inclinam por el consenso... quierollamar especialmente
laatención sobre las dimensiones peorcomprendidas y menos reconocidas de la cultura escolar y de
lacolegialidaddelprofesorado: las de carácter micropolítico.68

Adotamos assim, a perspectiva de “cultura de colaboração” em oposição a “colegiabilidade


artificial”69 adaptando de Hargreaves as características que este autor identificou para a relação
colaborativa que pode existir entre a Universidade e professores da Educação Básica articulando
ensino, pesquisa e extensão no processo de sensibilização de professores para participarem de
Pesquisas acadêmicas.
A formação do grupo de Pesquisa foi estabelecida no sentido de uma participação espontânea
em que o engajamento se deu pelo nível de identificação que se realizou com uma adesão inicial, que é
comum a todos que se interessaram, apesar da diversidade na participação. Voluntária, dado que não
se trata de nenhuma imposição, senão do valor que os participantes reconhecem na proposta da
pesquisa. E orientada para o desenvolvimento, pois participar da pesquisa também vem ao encontro
de uma iniciativa que se relaciona com diferentes demandas do trabalho e da prática docente,
apoiando a necessidade de encontros informais e frequentes os quais possam contribuir para refletir
sobre o trabalho que realizam fora do alcance da micropolítica que prevalece na maioria das escolas
em que atuam (HARGREAVES, 1999, p. 218 e 219).
Adotamos uma relação com a Escola para o desenvolvimento da Pesquisa no sentido de obter
a anuência em relação à realização da Pesquisa no âmbito da escola especialmente em relação aos
alunos dos professores envolvidos na proposta e na perspectiva de valorizar a individualidade do
projeto de trabalho de cada professor e na condição de “professores elaboradores e aplicadores” de
sequências didáticas assumindo como sendo de sua livre escolha experimentar elaborar e aplicar
outro modelo didático para verificar quais as contribuições que podem ser observadas tanto para a

67 HARGREAVES, 1999. p. 215 e 216.


68 Ibid.
69 Para efeito de nossa Pesquisa, consideramos a “colegiabilidade artificial” referida por Hargreaves correspondente a concepção de “trabalho

coletivo na Escola” conforme se pode verificar com as recentes políticas educacionais no Estado de São Paulo que incorporaram remuneração
para esta atividade na própria jornada de trabalho docente.

HETEROCIÊNCIA
434

experiência docente, como para o nível de aprendizagem alcançado pelos alunos e, também, como
metodologia de pesquisa.
Na verdade, a participação dos professores sempre foi voluntária e segundo suas próprias
falas70, o fato de os Encontros de trabalho de planejamento e estudos para elaboração das sequências
didáticas ocorrerem de sábado num calendário negociado e num ambiente distante das pressões
administrativas que ocorrem na escola, significou uma alternativa que despertou interesse, em que
pese muitos deles trabalharem em mais de uma escola. Os professores participantes da Pesquisa são
muito motivados e admitem que seus locais de trabalho não têm representado senão um “posto de
trabalho” que, muitas vezes, não se articula e não guarda identidade nem sistemicamente quando se
trata de escolas de mesma rede escolar, e que não se corresponde como instituição sistêmica quando
são de redes escolares diferentes.
No ambiente do Círculo os professores se sentem acolhidos sem a pressão da hierarquização
da escola, o que favorece se sentirem à vontade para refletir junto aos demais participantes, num
ambiente em que também são valorizados e cujos interlocutores podem trocar experiências e
informações, o que os auxilia a fortalecer a compreensão da importância social, política e cultural do
trabalho que realizam, e em conjunto com professores de diferentes escolas podem enxergar as
variáveis e especificidades de cada uma, que em última instância, interferem na realização do
trabalho docente, e caracterizam o desenraizamento que os sistemas educacionais tendem a induzir,
simultaneamente, na esfera social e cultural, e na própria esfera interna do trabalho nas escolas.
O extraordinário deste processo foi a predisposição que os professores demonstraram ter
para a reflexão e diálogo sobre seu trabalho, sobre suas práticas e a oportunidade de estudar e
experimentar outras alternativas teóricas e metodológicas que estimulam sua afirmação como
sujeitos discursivos, autores privilegiados do gênero discursivo textual “aula” tal como encontramos
em Sergio Roberto Costa71.
A concepção da aula como um gênero discursivo textual é interessante, pois se trata de uma
concepção que auxilia o professor a identificar outros aspectos que envolvem seu trabalho e cujas
características e natureza podem ser compreendidas conforme Sérgio Roberto da Costa, explica que

[...] na produção de um gênero, vai haver sempre uma interação determinada, regulada pela
organização enunciativa da situação de produção, que é definida por alguns parâmetros sociais:
o lugar social da interação (sociedade, instituição, esfera cultural, tempo histórico);
os lugares sociais dos interlocutores ou enunciadores (relações hierárquicas, relações interpessoais,
relações de poder, etc.) e finalidades da interação (intenção comunicativa do enunciador). Além disso, a
forma composicional e as marcas linguísticas (gramática) dependem do gênero a que pertence o texto e
esse gênero operante dependerá da situação da enunciação em curso na operação.”72

70Estas “falas” estão registradas em áudio e vídeo e não serão apresentadas aqui, pois estão sendo ainda analisadas como textos orais que
poderão ser integradas aos resultados finais da própria Pesquisa no formato audiovisual.
71COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Autentica Editora, Belo Horizonte, 2008, p. 22 e 23.

72Ibid p. 18 e 19.

HETEROCIÊNCIA
435

3. A ESCOLA: ‘esfera de ação’ na sociedade

Adotamos a possibilidade de trabalhar e pensar a Escola como um lugar de trabalho na


sociedade destacando, porém sua dimensão educacional como uma situação de interação
sociocultural e de formação discursiva, e, ao mesmo tempo, como um domínio discursivo para tentar
superar a perspectiva reprodutivista, técnica e operacional, burocrática até, que tem predominado
nas análises e discursos da própria gestão escolar sobre os problemas escolares e a formação de
professores que, segundo os professores envolvidos, circulam na própria escola e em certa medida
na sociedade.
Passamos a considerar a dinâmica das relações que se realizam na escola, e especialmente
na aula, como uma esfera de ação que integra diversos sujeitos discursivos, mas que nesta Pesquisa,
nos interessa especificamente o professor e o aluno. Assim, a aula se caracteriza como uma dentre
tantas ações que ocorrem na escola, mas cuja centralidade ganha relevância devido ao caráter de
formação discursiva que permeia a relevância sociocultural da própria escola como se pode
evidenciar pelo desenvolvimento dos indivíduos que conseguem realizar o percurso escolar como um
todo, com consequências e desdobramentos importantes para o próprio desenvolvimento da
sociedade e a necessária formação cultural dos sujeitos envolvidos.
Em que pese os esforços de tipologia que não esgotam a diversidade e a heterogeneidade de
gêneros discursivos textuais possíveis, estamos considerando a aula como gênero textual que faz
parte do discurso escolar seguindo a orientação que separa o discurso acadêmico do discurso
escolar em que pese muitos gêneros textuais, neste caso, serem comuns aos dois gêneros
discursivos.73
Esta abordagem que estamos desenvolvendo é complexa, pois as temáticas que envolvem a
questão da aprendizagem de gêneros discursivos textuais têm circulado apenas nos programas de
formação de professores da área de Códigos e Linguagens do currículo escolar. Os professores das
áreas de Ciências Humanas e de Ciências da Natureza não são formados para considerar as reflexões
e os debates teóricos envolvidos no papel da escola como espaço comunicacional e de práticas de
linguagem, apesar da importância que esta concepção tem para o desenvolvimento do trabalho
docente e para a aprendizagem das ciências humanas e das ciências da natureza, em que pese figurar
entre os objetivos do Ensino Fundamental nos Parâmetros Curriculares Nacionais, assim formulado74:

[...] utilizar as diferentes linguagens — verbal, matemática, gráfica, plástica e corporal — como meio
para produzir, expressar e comunicar suas ideias, interpretar e usufruir das produções culturais, em
contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação.

Na verdade, o foco didático colocado na questão da aprendizagem da linguagem para


professores que não ensinam as disciplinas escolares da área de Códigos e Linguagens, já aparece

73 Ibid, p.23.
74
portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf – acesso em 17/06/2012.

HETEROCIÊNCIA
436

nas práticas discursivas dos professores de Geografia que insistentemente consideram que está
muito difícil ensinar e não sabem o que fazer porque os alunos no Ensino Fundamental II e Médio
apresentam muitas dificuldades de leitura e de escrita. Esta ideia é compartilhada pelos demais
professores de outras áreas que participavam acompanhando seus colegas de Geografia ao longo dos
Encontros, e até o presente momento, como os de História, Biologia, Ciências, Matemática e Língua
Inglesa. É bom ressaltar aqui o interesse que professores de outras disciplinas demonstram na
temática por nós estudada e a identificação destas como um dos problemas da qualidade do ensino
que é verificada com avaliações externas aos sistemas escolares que são de domínio público e de
senso comum nos debates sobre o ensino no Brasil.
É compreensível que os professores não saibam o que fazer, e identifiquem de um modo geral,
as dificuldades de aprendizagem dos alunos em diversas disciplinas escolares com os problemas
relacionados à leitura e à escrita, pois tanto a Geografia como as demais disciplinas escolares
utilizam diversos materiais e recursos que envolvem complexas habilidades de leitura e escrita como
mapas, gráficos, imagens de diversos tipos e especialmente textos, particularmente de livros
didáticos, mas também artigos de jornal, artigos de opinião, artigos científicos, ensaios, literatura,
poesia, e toda espécie de textos produzidos no suporte eletrônico digital das tecnologias de
informação, que entretanto chegam aos alunos em formato de cópia na lousa ou cópia em papel.
A condição que vêm alterando a estruturação da linguagem e dos processos de aprendizagem
das gerações escolares atuais guardam íntima relação com a aprendizagem e sua relação com a
estruturação do pensamento e, consequentemente, com os comportamentos observáveis, e que na
escola configuram inúmeros problemas considerados como “de disciplina” e inadequação de
convivência no ambiente escolar, não sem reflexos para os resultados de aprendizagem obtidos pelos
alunos.
Segundo Joaquim Dolz e Bernard Schneuwly,

Na sua missão de ensinar os alunos a escrever, a ler e a falar, a escola, forçosamente, sempre
trabalhou com os gêneros, pois toda a forma de comunicação – portanto, também aquela centrada na
aprendizagem – cristaliza-se em formas de linguagem específicas. A particularidade da situação escolar
reside no seguinte fato que torna a realidade bastante complexa: há um desdobramento que se opera
em que o gênero não é mais instrumento de comunicação somente, mas é, ao mesmo tempo, objeto de
ensino-aprendizagem. O aluno encontra-se, necessariamente, num espaço do “como se”, em que o
gênero funda uma prática de linguagem que é, necessariamente, em parte, fictícia, uma vez que é
instaurada com fins de aprendizagem...
No desdobramento mencionado, é produzida uma inversão em que a comunicação desaparece quase que
totalmente em prol da objetivação, e o gênero torna-se uma pura forma linguística, cujo domínio é o
objetivo. Em razão dessa inversão, o gênero, instrumento de comunicação, transforma-se em forma de
expressão do pensamento, da experiência ou da percepção. O fato de o gênero continuar a ser uma
forma particular de comunicação entre alunos e professores não é, absolutamente, tematizado; os
gêneros tratados são, então, considerados desprovidos de qualquer relação com uma situação de
comunicação autêntica. Nessa tradição os gêneros escolares são os pontos de referência centrais para
a construção, por meio dos planos de estudo e dos manuais, da progressão escolar, particularmente no
âmbito da redação/composição. Sequências relativamente estereotipadas balizam o avanço das séries

HETEROCIÊNCIA
437

escolares, sendo a mais conhecida e canônica, que pode, entretanto, sofrer variações importantes, a
‘descrição – narração – dissertação’, gêneros aos quais vêm se juntar, em certas épocas históricas, a
resenha, o resumo e o diálogo. 75

Conforme os próprios autores citados, novas questões surgem da hipótese desenvolvida,


assim sistematizada por eles:

[...] quanto mais precisa a definição das dimensões ensináveis de um gênero, mais ela facilitará a
apropriação deste como instrumento e possibilitará o desenvolvimento de capacidade de linguagem
diversas que a ele estão associadas. O objeto de trabalho sendo, pelo menos em parte, descrito e
explicativo, torna-se acessível a todos nas práticas de linguagem de aprendizagem.76

Os problemas teóricos apontados nesta hipótese se entrecruzam com outras questões


colocadas pelos professores e não se restringem obviamente à questão da aprendizagem de
linguagem em si, mas até a própria estruturação da aprendizagem na escola.

4. PROBLEMAS NOVOS, NOVAS CONCEPÇÕES

O que, afinal, aprenderiam os alunos numa prática didática com foco na aprendizagem de
linguagem numa aula de Geografia? Ou de Biologia ou qualquer outra área do currículo escolar? O que
teria de saber um professor de Geografia, ou de Biologia além dos conhecimentos da área em que
atuam? Mas, a aprendizagem de linguagem não se realiza na disciplina Língua Portuguesa?
Estas e outras questões emergiram das reflexões que fizemos e rápida foi a constatação de
que os alunos do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio apresentam uma alfabetização
comprometida, e pelo fato de já estar ultrapassado o percurso inicial da escolarização do Ensino
Fundamental I, seria necessário desenvolver e explorar novos modelos e estratégias didáticas que,
simultaneamente, promovessem uma mudança nas práticas docentes de professores não
alfabetizadores, licenciados para ensinar as diversas disciplinas escolares e viabilizassem as
condições para que os alunos pudessem superar as dificuldades de leitura e de escrita e,
concomitantemente, aprendessem os conteúdos previstos para as etapas escolares subsequentes ao
Ensino Fundamental I.
O desafio que se colocou seria possível se fossem feitas as aproximações com campos de
conhecimento que pudessem se relacionar com os problemas colocados, e apoiar o enfrentamento do
problema da aprendizagem na aula.
A aproximação que realizamos foi com os campos de conhecimento que relacionam a
linguagem e os processos de aprendizagem em geral, já que em princípio, a aula é uma situação

75SCHNEUWLY, B. e DOLZ, J. “Os Gêneros Escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino” IN: Gêneros Orais e Escritos na
Escola. Mercado das Letras, Campinas, 2010. p.65 e 66.
76 Ibid. p.76.

HETEROCIÊNCIA
438

comunicacional e a ciência se produz com diferentes gêneros discursivos textuais também; além
disso, o modelo vigente de aprendizagem de Linguagem especificamente nas aulas da disciplina de
Língua Portuguesa não está assegurando, no processo de escolarização como um todo o
desenvolvimento de habilidades cognitivas e competências que possam ser transferidas para a
aprendizagem das demais disciplinas escolares.
Além disso, a formação de professores das disciplinas das áreas de Ciências Humanas e de
Ciências da Natureza não contemplam o campo vasto da Linguagem e muito menos da Filosofia da
Linguagem.
Então, como poderíamos pensar em trabalhar com o desempenho linguístico dos alunos
também nas demais disciplinas escolares, e até, o que deveriam os professores saber, inclusive os
próprios professores de Linguagem, já que esta aprendizagem medeia e deve ser transferida e
generalizada implicitamente para todas as demais aprendizagens que ocorrem na escola?
A formação de professores deveria envolver inevitavelmente a discussão do processo de
aprendizagem, incluindo o papel do professor, do material da aprendizagem e sua linguagem, e o
próprio potencial de enunciador do aluno. A respeito disto, segundo Alex Kozulin,

Uma tendência moderna nas teorias da educação e da aprendizagem, da qual as abordagens Vigotskiana
e Feuersteiniana pertencem, coloca ênfase na atividade construtiva do aprendiz, na adequação dos
materiais ao desenvolvimento cognitivo e na participação do professor no projeto e na execução de
atividades da sala de aula acima e além de uma mera provisão de informação. 77

As questões suscitadas a partir da razão apontada pelos professores de que não sabem o que
fazer diante da situação da alfabetização dos alunos a partir do Ensino Fundamental II, o problema
torna-se mais complexo em nossa Pesquisa.

5. PROCESSO DE APRENDIZAGEM

Seguindo as pistas colocadas na aproximação entre Vigostki e Feuerstein que encontramos


em Kozulin (2012) passamos a considerar o entrecruzamento de algumas ideias destes teóricos, o que
denominamos de interfaces de diferentes sistemas teóricos.
Na verdade, os processos de aprendizagem que acontecem ao longo da escolarização estão
extremamente implicados com o modo como os conhecimentos estão organizados (em disciplinas), os
conceitos e as “regras” de pensamento que os caracterizam, o processo de desenvolvimento do aluno
e a aprendizagem do pensamento científico com a elaboração gradativa de conceitos científicos.

6. VIGOTSKI

77KOZULIN, Alex. Inter-relação entre os paradigmas Vygostkinianos e da Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM) na capacitação
de docentes. Publicado em http://www.cdcp.com.br/artigos.php (consulta do sítio em 30/06/2012).
Tradução autorizada pelo autor.

HETEROCIÊNCIA
439

É em Vigotski também que encontramos um delineamento claro do papel e da importância da


escola quando afirma:

O desenvolvimento dos conceitos científicos na idade escolar é, antes de tudo, uma questão prática de
imensa importância – talvez até – primordial do ponto de vista das tarefas que a escola tem diante de si
quando inicia a criança no sistema de conceitos científicos. Por outro lado, o que sabemos sobre essa
questão impressiona pela pobreza. É igualmente grande a importância teórica dessa questão, uma vez
que o desenvolvimento dos conceitos científicos – autênticos, indiscutíveis, verdadeiros – não pode
deixar de revelar no processo investigatório as leis mais profundas e essenciais de qualquer processo
de formação de conceitos em geral.78(grifo nosso)

São importantes as colocações de Vigotski até hoje, em que pese já serem mais difundidas
suas ideias, pois indicam aspectos importantes que se relacionam com a formação de professores
que, de modo geral, não exploram os temas tratados por este autor para o desenvolvimento geral da
prática docente desconhecendo ou considerando, de modo superficial, as correlações entre os
processos de desenvolvimento do aluno bem como seu processo de aprendizagem. A esse respeito,
ele também afirma:

[...] do ponto de vista psicológico dificilmente poderia haver dúvida quanto à total inconsistência da
concepção segundo a qual os conceitos são aprendidos [...] em forma pronta no processo de
aprendizagem escolar e assimilados da mesma maneira como se assimila uma habilidade intelectual
qualquer.
Mas a prática também mostra a cada passo o equívoco dessa concepção. Não menos que a investigação
teórica, a experiência pedagógica nos ensina que o ensino direto de conceitos sempre se mostra
impossível e pedagogicamente estéril. O professor que envereda por esse caminho costuma não
conseguir senão uma assimilação vazia de palavras, um verbalismo puro e simples que estimula e imita
a existência dos respectivos conceitos na criança, mas na prática, esconde o vazio. Em tais casos, [o
indivíduo] não assimila o conceito, mas a palavra, capta mais de memória que de pensamento e sente-se
impotente diante de qualquer tentativa de emprego consciente do conhecimento assimilado. No fundo
este método de ensino de conceitos é a falha principal do rejeitado método puramente escolástico de
ensino, que substitui a apreensão do conhecimento vivo pela apreensão de esquemas verbais mortos e
vazios.79

E ainda que,

[o conceito científico] pressupõe necessariamente outra relação com objetos, só possível no conceito, e
esta outra relação com o objeto, contida no conceito científico, por sua vez pressupõe necessariamente
a existência de relações entre conceitos, ou seja, um sistema de conceitos. Desse ponto de vista,
poderíamos dizer que todo conceito deve ser tomado em conjunto com todo o sistema de suas relações
de generalidade, sistema esse que determina a medida de generalidade própria desse conceito, da

78 VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2ª ed. – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. 241.
79Ibid, p.247.

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440

mesma forma que uma célula deve ser tomada com todas as suas ramificações através das quais ela se
entrelaça com o tecido comum (grifo nosso). Por outro lado, fica claro que, do ponto de vista lógico, a
delimitação de conceitos [infantis] espontâneos e não espontâneos coincide com a delimitação de
conceitos empíricos e científicos.80

É interessante destacar aqui como Vigotski teve uma compreensão antecipada em seu tempo
acerca dos processos cognitivos que atualmente são problematizados quanto a sua fisiologia devido
também ao avanço das pesquisas no campo da neurociência quando estabeleceu uma comparação
entre o “sistema de relações de generalidade que o conceito possibilita” afirmando “da mesma forma
que uma célula deve ser tomada com todas as ramificações através das quais ela se entrelaça com o
tecido comum” (grifamos na citação anterior).

7. FEUERSTEIN

Feuerstein formulou critérios de mediação81 que contribuem para o professor aprimorar sua
prática de também apoiar o desenvolvimento dos processos cognitivos que são subjacentes a toda e
qualquer aprendizagem. E diferentemente de Vigotski, Feuerstein considera que o professor tem um
papel fundamental no processo de aprendizagem, porém não como colaborador, mas como mediador
da aprendizagem. Além disso, não abordou a questão da linguagem em si, mas o modelo que
desenvolveu com a Teoria da Experiência de Aprendizagem Mediada interessa para nossa pesquisa,
pois passamos a considerar que a interação mediacional proposta por este autor entre professor e
aluno, pode ser caracterizada também como uma situação comunicacional que apresenta aspectos
muito significativos para se repensar a prática docente em sala de aula, com foco nas relações
‘professor e aluno’, ‘professor e conhecimento‘, ‘aluno e aluno’ e ‘aluno e conhecimento’.
Fazendo uma analogia nas situações convencionais do ambiente escolar também
consideramos os materiais que se utilizam e que devem e podem ser trabalhados em sala de aula com
os critérios que Feuerstein preconiza para o desenvolvimento da aprendizagem mediada, em que pese
sua teoria não tratar diretamente da aprendizagem de linguagem ou de algum conteúdo escolar
disciplinar, mas tão somente a eficiência dos processos de aprendizagem do aluno.
A partir dos critérios de mediação propostos por Feuerstein, o professor pode refletir e
ressignificar a relação que estabelece com seus alunos, redefinindo inclusive seu próprio papel, o
valor do conhecimento e a finalidade da aula, a qual passa a ser compreendida como um espaço de
mediação necessariamente dialógica e onde ocorrem interações entre os sujeitos implicados na aula
cujo sentido é o de garantir a aprendizagem integral e não apenas a transmissão de conteúdos no
sentido do cumprimento de um programa curricular.

80Ibid, p.294.
81 Os critérios de mediação propostos por Feuerstein são: a)Reciprocidade e Intencionalidade, b) Transcendência e c) Significado. Ver
FEUERSTEIN, R. KLEIN, Prina S. TANNEMBAUM, Abraham J. Mediated Learning Experience (MLE) – Theoretical, Psychosocial and Learning
Implications. FREUND PUBLISHING HOUSE LTD, 1999. London, England. p. 17 a 51.

HETEROCIÊNCIA
441

Os materiais didáticos também passam a ter outro sentido e uma importância crucial, pois
passam a ser utilizados como instrumentos de mediação e, se cuidadosamente selecionados, passam
a funcionar como uma referência para os alunos. A aula passa a se caracterizar, principalmente,
como uma situação de interação e de comunicação que recoloca a finalidade da própria escola e da
aula, cujo objetivo maior se propõe a favorecer e acompanhar o desenvolvimento do aluno e apoiar a
aprendizagem de conhecimentos sistematizados nas diversas disciplinas do currículo escolar. A aula
passa a ser um ambiente com condições para a ocorrência da transferência da aprendizagem de
processos cognitivos que contribui para o desenvolvimento de práticas interdisciplinares.

8. BAKHTIN

A aplicação dos critérios de mediação de Feuerstein supõe uma didática mediada e dialógica
que focaliza e dá ênfase ao processo da aprendizagem e não apenas ao cumprimento de uma dada
programação, o que não significa um esvaziamento dos conhecimentos e conteúdos da aula, mas que,
pelo contrário, valoriza sua importância, pois o aluno aprende a pensar e enunciar as regras que
fundamentam e caracterizam a estruturação dos conhecimentos estudados nas diversas disciplinas
escolares, aprendendo também gêneros de discursos que passam a fazer parte do seu cotidiano, e
que, segundo Bakhtin, devem ser compreendidos como resultante das práticas de comunicação de
uma dada esfera de ação, que no caso é a esfera de ação escolar, que possui marcas indeléveis do
gênero de discurso acadêmico.
Como uma ação comunicacional que contém elementos discursivos, a mediação da
aprendizagem na sala de aula pode ser compreendida como um gênero discursivo secundário,
conforme se expressou Bakhtin:

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se
perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da
atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua
efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes
desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as
finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou
seja, pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por
sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a
construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente
determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada
enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros de discurso.

A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são infinitas porque são inesgotáveis as
possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o
repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se
complexifica um determinado campo...

HETEROCIÊNCIA
442

Não se deve, de modo algum, minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros discursivos e a
dificuldade daí advinda de definir a natureza geral do enunciado. Aqui é de especial importância atentar
para a diferença essencial entre os gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos)
– não se trata de uma diferença funcional. Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances
dramas, pesquisas científicas de toda a espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas
condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado
(predominante o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No processo de sua formação eles
incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da
comunicação discursiva imediata. Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se
transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os
enunciados alheios. 82

A aproximação e articulação das inesgotáveis questões de dialogia encontradas em Vigotski,


Feuerstein e Bakhtin não interessam aqui apenas para o ensino de Geografia, mas para a educação
escolar como uma totalidade. Na Geografia nos deparamos com a “contraposição de natureza e
homem”, assim como nos dilemas das relações na Escola, onde “não interessam as árvores no
bosque, mas os homens nas cidades” (Bakhtin, 2010). A cidadania depende da alteridade que é possível
se constituída, simultaneamente, em práticas dialógicas entre iguais com infindáveis enunciações do
humano, não para servir ao Estado, mas para constituir o caráter humano na Sociedade. E,
obviamente, só o compreendemos mais profundamente a partir e com

[...] os dois extremos do pensamento e da prática: (o ato) ou dois tipos de relação (a coisa e o indivíduo)
... O processo de coisificação e o processo de personalização não é, de maneira nenhuma, uma
subjetivação. O limite aqui não é o eu, porém o eu em relação de reciprocidade com outros indivíduos,
isto é, eu e o outro, eu e tu.83

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As concepções aqui apresentadas têm sido estudadas nas inúmeras reuniões de trabalho com
os professores participantes da Pesquisa, as quais vem ocorrendo nas diversas reuniões do Círculo
de Pesquisa e de Estudos, considerando o ritmo e o modo como os participantes vem se apropriando
das ideias e concepções destes autores, que já não lhes são totalmente desconhecidos, porém
passam a ser pensados no sentido de fundamentar suas práticas docentes.
Após diversas etapas de elaboração e aplicação de sequências didáticas por gêneros
discursivos textuais no ensino fundamental II e no ensino médio, no período de 2010 e 2016, os
professores de Geografia e professores de outras áreas do currículo escolar, envolvidos ou
participantes ativos da pesquisa declaram que já estão modificando suas práticas docentes e sentem
necessidade de aprofundar os estudos teóricos, para consolidar este conhecimento que tem
promovido maior sentido e segurança em modificar suas práticas docentes.

82BAKHTIN, M. A Estética da Criação Verbal. WMF Martins Fontes, São Paulo, 2010, p. 261, 262 e 263.
83Ibid, p. 407.

HETEROCIÊNCIA
443

Na verdade, os professores participantes da Pesquisa começam a compreender a relevância


de uma formação teórica para fundamentar as escolhas didáticas que fazem no desenvolvimento de
seu trabalho docente, com especial ganho que já obtiveram quanto à competência de planejamento,
pois o processo de planejamento que realizamos das sequências didáticas por gênero discursivo
textual lhes assegurou uma visão crítica da relação que vinham desenvolvendo com o conhecimento e
com seus alunos em sala de aula. Declaram compreender melhor os complexos aspectos envolvidos
na aprendizagem de seus alunos e mesmo a natureza do desenvolvimento destes, não sem um enorme
ganho quanto às mudanças comportamentais e o incremento do interesse destes na aula.84

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. A Estética da Criação Verbal. WMF Martins Fontes, São Paulo, 2010.
COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Autentica Editora, Belo Horizonte, 2008.
FEUERSTEIN, R. KLEIN, Prina S. TANNEMBAUM, Abraham J. Mediated Learning Experience (MLE) – Theoretical,
Psychosocial and Learning Implications. FREUND PUBLISHING HOUSE LTD, 1999. London, England.
HARGREAVES, Andy. Profesorado, cultura y postmodernidad – Cambianlostiempos, cambia el
professorado.EdicionesMorata, S. L. Madrid, 1995.
KOZULIN, Alex. Inter-relação entre os paradigmas Vygostkinianos e da Experiência de Aprendizagem Mediada
(EAM) na capacitação de docentes. Publicado em http://www.cdcp.com.br/artigos.php (consulta do sítio em
30/06/2012). Tradução autorizada pelo autor.
MIRANDA, Maria Eliza. Contribuição ao debate atual sobre a Formação de Professores no Brasil: pela formação
de futuras gerações na perspectiva da reconstrução do sociocultural. Revista do Departamento de Geografia
USP. FFLCH. nº 20, p. 7-18. 2010
NÓVOA, Antonio. “O Passado e o Presente dos Professores” IN: Profissão Professor, Porto Editora, Portugal, 1999.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Edusp, São Paulo, 2002.
SCHNEUWLY, B. e DOLZ, J. “Os Gêneros Escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino” IN: Gêneros
Orais e Escritos na Escola. Mercado das Letras, Campinas, 2010.
VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2ª ed. – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

84 Os resultados das diversas etapas da Pesquisa desde 2009 até 2016 estão sendo preparados para publicação a partir de 2018.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
444
O objetivo desse pequeno texto é compreender
como a noção de modernidade está atrelada a
construção do imaginário e da concretude

TRANSMODERNIDADE E A geográfica da América e como a enunciação


dialógica promovida pelo Círculo de Bakhtin
contribui a partir do deslocamento do que até então

HETEROCIÊNCIA BAKHTINIANA se compreendia da linguagem no que se refere a


teoria da enunciação e como tal empreendimento se
concretiza como ato responsável de se fazer

NO CAMINHO DA heterociência. Farei isso por meio de duas fontes


teorias, desde já em cotejo e como ato responsável
em se mesclar e não dicotomizar os atos de

DECOLONIALIDADE pesquisas. As duas teorias a que me refiro: a


primeira e mais ampla centra-se no Círculo de
Bakhtin e a segunda, auxiliar e inaugural nos
estudos bakhtinianos, a trata da perspectiva
decolonial focada na abordagem de Walter Mignolo,
Aníbal Quijano e Enrique Dussel.

MORAES, Flávio Henrique85 Palavras-Chave: Heterociência. Decolonialismo.


Transmodernidade. Dialogia

INTRODUÇÃO

[…] a elaboração do eurocentrismo na perspetiva hegemômica do conhecimento, da versão


eurocêntrica da modernidade, e de seus dois principais mitos fundacionais: um, a ideia-imagem da
história da civilização humana como uma trajetória que parte do estado de natureza e culmina na
Europa. E dois, outorgar sentido às diferenças de natureza ( racial) e não de história do poder. Ambos os
mitos podem ser reconhecidos, inequivocadamente, no fundamento do evolucionismo e do dualismo, dois
dos elementos nucleares do eurocentrismo. ( QUIJANO, p.238, 2005)

Pode-se afirmar que, no livro de Rabelais, a amplitude cósmica do mito se associa a um agudo sentido
da atualidade num “panorama” contemporâneo, assim como no sentido concreto e na precisão próprios
do romance realista […] Através do ponto de vista popular, expressno livro de Rabelais, abriam-se
perspectivas mais amplas, que transgrediam o quadro do caráter progressista limitadoao qual tinham
acesso os movimento da época.(BAKHTIN, p.385-386, 2010)

I
nicialmente, faço um questionamento inicial: A nossa leitura de mundo enquanto brasileiros
acadêmicos e pensadores da linguagem não pode deixar te ter em vista quais noções
essenciais? Bem, lançada a pergunta de abertura agora faz-se necessário alicerçar
nossas referências para pensarmos sobre a mesma.
Nos textos de grande circulação entre os estudantes da linguagem dialógica tais como: “Os
gêneros do discurso” (2011) “Metodologia das ciências humanas” (2011), ambos contidos em Estética
da Criação Verbal”, destaco alguns pontos essenciais:

1. A LÍNGUA EFETUA-SE EM FORMA DE ENUNCIADOS CONCRETOS

85 Doutorando em Ciência, Tecnologia e Sociedade na Universidade Federal de São Carlos

HETEROCIÊNCIA
445

“O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados ( orais e escritos) concretos e únicos,


proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem
as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e
pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos […] estão
ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado
campo da comunicação”. (BAKHTIN, p.261-262, 2011, grifos meus).

Hoje, quando falamos de enunciado, nos parece muito óbvio e permanente a apreensão da
língua por meio desse conceito, mas é imprescindível saber que a maior parte da linguística do século
XIX focalizou os estudos da língua por meio de diretrizes sistêmicas, a qual recaia sobre uma
abordagem de redução estrutural fundada na segmentação: oração, frase, período, a qual, por sua
vez, repercutia a corrente de pensamento lógica, de Port-Royal a Saussure.
Nos estudos literários, prevaleciam estudos comparativos entre os gêneros, mas não se fazia
uma distinção primordial: entre gêneros primários e secundários, o que possibilitou perceber que, a
depender de cada esfera social, que havia uma determinada circulação de tipos de enunciados. Ou
seja, os gêneros do discurso são modos relativamente estáveis de enunciados moldados em estilos,
temas e forma, tendo com o parâmetro o lugar de onde se fala ( ato de fala).
Em outras palavras, o bate-papo de pessoas no ponto de um ônibus quando processado em
uma revista ou crônica literária, as discussões entre duas comerciantes em um centro de compras
balanceadas e cotejadas com os direitos e deveres dos meandros jurídicos são exemplos da
materialização do que se passa na triavialidade da vida, gênero primário, para um secundário (mais
complexo e que requer organização, institucionalização) o qual se serve das comunicabilidades das
esferas primárias, sem as quais não poderia existir. Por último, reforça-se com as palavras próprias
e alheias do próprio Bakhtin: “ A própria relação mútua dos gêneros primários e secundários e o
processo de formação histórica dos últimos lança luz sobre a natureza do enunciado ( e antes de tudo
sobre o complexo problema da relação de reciprocidade entre linguagem e ideologia)”. (BAKHTIN,
p.264, 2011).

2. TODO E QUALQUER ENUNCIADO É PARTE INTEGRANTE DE UM PROJETO DE DISCURSO QUE NÃO


SE ENCERRA NEM NAQUELE QUE EMITE O ENUNCIANDO NEM NO OUTRO QUE O RECEBE

Em outras figuras, ao dizermos a alguém: “oi”, ao silenciarmos a uma pergunta que nos foi
feita, ao mandar um emotion no whatzap ao interlocutor, pressupõe-se uma vontade de dizer a
alguém, de demonstrar uma mensagem, uma informação, de expor um sentimento. Procura-se
transmitir algo próprio ( mas não exclusivamente seu) ao outro. Nada é plenamente próprio nem tão
somente alheio.
Se os enunciados sempre estão adequados a um determinado meio ( campo/esfera social),
ou seja, se sempre pertencem a um gênero do discurso, o falante para a efetivação de cada ato de

HETEROCIÊNCIA
446

fala terá selecionado, organizado e filtrado os elementos recolhidos da língua o conteúdo e a forma
pela qual se veiculam também ocorrerá o mesmo. Não se levantará o tema “ Reforma Agrária” em
uma mesa de jantar de uma família de fazendeiros, mas caso isso seja realizado, terá de sido lapidado,
de forma oblíqua e indireta, a menos que projeto de discurso seja causar um tremendo mal-estar.

3. A CONSCIÊNCIA DO AUTOR É A CONSCIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA

Enunciado. Gênero do discurso. Campo ou Esfera social. Esses três conceitos só existem em
cotejo um com o outro levam-nos a um terceiro que os fundamentam: a exotopia. O autor é aquele que
abrange a consciência interna de todos os elementos da obra, “ o autor é a unidade tensamente ativa
do todo acabado, do todo da personagem e da obra, e este é transgradiente a cada elemento
particular desta. […] A consciência do autor é a consciência da consciência, isto é, a consciência que
abrange a consciência e o mundo da personagem com elementos por princípios transgradientes a ela
mesma e que, sendo imanentes, a tornariam falsa. (ibdem, p. 10)”.
Mas o que vale saber que o autor é o centro de tensão da obra? É o mesmo que dizer que o
maestro de uma orquestra tensiona por meio da organização e seleção de todos os elementos que a
compõem uma exotopia, um modo de enxergar e de se fazer música. Há um projeto imbuído no ato
musical do maestro bem como há um projeto no ato de fala do autor. Isto posto, qualquer que seja o
material que lemos, ele estará mediado não só pela esfera de onde existe, masmas também por
conteúdos que vão para além do que se pretende dizer, que são, por isso, transgradientes.
Penso que a música “Apesar de você86” de Chico Buarque seja um bom exemplo para entender
o que exponho:

“Hoje você é quem manda/ Falou tá falado/Não tem discussão/ A minha gente hoje anda falando de
lado/ e olhando pro chão […] Você que inventou esse estado/Você que inventou esse estado/ Apesar de
você amanhã há se ser outro dia [...]”

As unidades personagens que estão modalizadas por determinados verbos : “ você [manda,
fala, inventou]”, “gente [anda falando de lado, olhando pro chão], ressaltam um tema transgradiente
ao que se expressa, pois não se substantiva “você”, uma vez que esse dado está interdito,
impossibilitado de ser expresso diretamente no pequeno tempo no qual se inseria (Ditadura Militar,
1971). Os elementos da canção, em seu todo, são tensionados pelo autor, de modo que esse é o centro
primeiro e fundamental da obra enquanto mediador. Nele reside a onisciência e onipresença no todo
da obra.
Em vista disso, a cada vez que lermos uma obra literária, o que também vale para outros tipos
de enunciados, mas em menor grau, é preciso que saibamos que o todo do enunciado coteja em si
para além de seu próprio interior uma infinda potencialidade dialógica. Fale-se, afirma-se muito mais

86 Compacto simples nº 365.315. Apesar De Você: proibida pela censura do regime militar (1964/1985). Esse compacto foi recolhido.
Desalento: do disco CONSTRUÇÃO, 1971

HETEROCIÊNCIA
447

do que o arranjo gramatical possa demonstrar. A forma é consoante ao horizonte social do qual
emerge. Os interlocutores em qualquer obra sempre serão reais, porém, de modo transfigurado,
oblíquo, pois não seria possível enxergar à vida em seu avesso por ela mesmo. A vida e a arte são
internalizadas pela exotopia materializada, na canção, na pintura, etc., sendo o autor a unidade
panorâmica de consciência que tensiona as demais partes em detrimento de se chegar pela trama e
enredo ao que se pretende.

4. NOSSA ENUNCIAÇÃO PERTENCE A UM GRANDE PROJETO DE DISCURSO: grilhões epistêmicos


e o projeto da decolonialidade

Já sabendo que a língua se expressa por meio de enunciados concretos e que os mesmos
sempre carregam um projeto de discurso, faz-se importante conhecer uma visão das coisas que
incidem diretamente em nossas formas de saber e de perceber o mundo a partir da posição de
latinoamericanos, de uma nação que passou por um violento processo de colonização. Nesse sentido,
já com vistas a solucionar a proposição que inicia esse texto, entremeios à perspectiva do Círculo de
Bakhtin, cotejo o pensamento bakhtiniano o pensamento decolonial por uma razão muito simples: é
preciso, bem como feito pelo Círculo com relação aos estudos da linguagem tirando-a da imanência
lógica, realçar que os índices de valores sociais singulares dos povos são suprimidos por hegemonias
discursivas, ou seja, pelo eurocentrismo que se efetua, bem como enuncia Quijano na epígrafe que
introduz esse artigo, sob os eixos “míticos” do evolucionismo e do dualismo. A solução a essa
hegemonia discursiva só pode dar-se por meio da enunciação. É preciso enunciar que há uma
condição colonial que pretende permanecer em nós por sua dicotimia e ideia de “progresso”.
O descolonialismo, primeira denominação dada à teoria que fora resultado do conjunto de
estudos principalmente literários e culturais evidentes em algumas universidades estadunidenses e
inglesas, propoẽ que os estudos sociais deveriam ter um caráter discursivo que contemplasse o
social, que se descentralizasse as narrativas dos sujeitos contemporâneos, que houvesse um
distanciamento das concepções essencialistas e que o conceito de modernidade fosse compreendido
a partir da crítica aos discursos dominantes

O projeto pós-colonial é aquele que, ao identificar a relação antagônica entre colonizador e colonizando,
busca denunciar as diferentes formas de dominação e opressão dos povos. Como uma escola de
pensamento, o pós-colonialismo não tem uma matriz teórica única, sendo associado aos trabalhos de
teóricos como Franz Fanon, Albert Memmi, Aimé Césaire, Edward Said, Stuart Hall e ao Grupo de Estudos
Subalternos, criado na década de 1970 pelo indiano Ranajit Guha. (ROSEVICS, p.1, 2014)

O Grupo de Estudos Subalternos, ao qual se referencia Rosevics, consistia em um grupo de


intelectuais latino-americanos que viviam nos Estados Unidos e desenvolveram seus estudos
influenciados pelos processos de redemocratização da região e por debates pós-coloniais. A
desagregação desse grupo se deu em razão da percepção de que a episteme utilizada era de base
europeia como a proposta por Gramsci, Foucault, Derridà e o próprio Ranajit Guham, indiano. O grupo

HETEROCIÊNCIA
448

de intelectuais percebeu que seria uma traição ao propósito coletivo se utilizar de epistemes
europeias para se compreender especificidades não europeias

“É neste sentido que surge a crítica decolonial trazendo a necessidade de decolonizar a epistemologia
latino-americana e os seus cânones na maior parte de origem ocidental. Como aponta Grosfoguel, é
preciso decolonizar não apenas os estudos subalternos como também os pós-coloniais”.(ROSEVICS, p.2)

Nesse sentido, elevando a percepção sob os domínios do “nosso” conhecimento, vê-se que
esse têm dependência epistêmica, o que nos coloca um local do saber de colonizados justamente por
reiteramos um modus operandi de se enxergar o mundo. Buscando diferenciar o processo político de
descolonização da perspectiva teórica que se enseja, Walter Mignolo propõe a denominação aos
estudos que tocam na questão do colonialismo de: decolonial.
Sob o prisma desse autor, é defendido que para alcançarmos certa liberdade epistêmica é
preciso que nos libertemos da estética em detrimento da esteses (as sensações, os processos de
percepções, nas formas plurais de apreensão dos sentidos.). Todos os animais que contém sistema
nervoso central, todos os povos e etnias desenvolvem a esteses, são detentores do sentir e de fazer
desse sentir sua própria arte, sua própria orientação perante a poiésis. No entanto, o que se privilegia
no campo das sensações gira em torno do que se consagrou como estética, a qual têm como centro o
conceito de belo "e que atinge fundamentação categórica sobretudo a partir dos “juízos” kantianos de
modo que a partir do século XVII o conceito de esteses se restringe ao conceito de sensação belo,
disso se desencadeou a estética como teoria e a arte como prática. Isso já preconizado em Bakhtin
em sua compreensão do ato responsável quando o mesmo em Para uma teoria do ato responsável
enuncia que

a percepção estética não consegue também apreender a unicidade do evento singular, porque a imagem
que configura são objetificadas, ou seja, são retiradas, em seu conteúdo, do devir efetivo e singular, e
não participam dele (participam somente como momento da consciência viva e vivente do
contemplador)” (BAKHTIN, 2012,p.41).

Embora e estudo da estética da ciração verbal tenha sido o pilar dos estudos de Bakhitn, o
mesmo não comprendia esse conhecimento em separado da vida fosse em qualquer instância. Nesse
sentido, há uma tentativa e pretensão de se descolonizar do eixo cartesiano os estudos da linguagem.
Votando à questão do decolonialismo, vale aqui uma pergunta de suma importânica: Como o
colonialismo se perpetua? Como escapamos desse panóptico projetado há seculos, mas que ainda
permanece e a ele corroboramos por meio da apreciação do belo e da compreensão por epistemes
que não nos representam? Primeiramente, é preciso compreender que habitamos a matriz colonial de
poder, na qual somos hierarquizados por meio de uma máquina de produzir diferenças ( princípio da
colonialidade) sendo a força motriz dessa máquina “a percepção", fundamentada na sensação do
"olho", da visão, das sensorialidades visuais.

HETEROCIÊNCIA
449

Tais processos de diferenciação, as quais se expressam no campo das classes sociais, das
estratificações e das segmentações urbanas e da ordem capital, também se dá na tradição disciplinar
da academia. Sempre envoltos pela ordem do discurso 87 que se projeta sobre “nosso” modo de
pensar, as disciplinas enquanto meio pelos quais disciplinamos nosso trajeto de apreensão e
compreensão subjaz questionamentos que são da ordem do humano que se diz universal, todavia, as
singularidades que subjaz nossa forma de pensar enquanto colonizados não vem à baila como seria
preciso.
Um exemplo disso é a própria noção de pós-modernidade que, em síntese leviana que aqui
faço, coloca-se como o período em que se questiona as identidades estruturais concebidas após a
solidificação do mundo global, plenamente interativo sob o qual se projeto uma gama infinitesimal de
possibilidades e de formas de vida. O que defende Mignolo é que não havia modernidade antes da
invasão e do empreendimento capitalista nas Américas. E esse é um ponto fulcral para se adentrar no
âmago da questão colonial. O que hoje se sugere como pós-modernismo para aquele que aqui já
habitava ou que aqui se estabeleceu não tem validade translógica, dado que não se considera que todo
o empreendimento cambial de mercadorias e de cultura fundamenta a modernidade. Isso posto,
enxergar as oscilações nas formas de vida ou na própria concepção da estética sem considerar que
o moderno ( aproximo a ideologia do desenvolvimentismo) e o conceito de moderno e própria estética
são disposotivos de controle nos coloca diante um contrassenso. Retomo aqui o poema de Oswaldi da
seguinte forma:
Quando o português chegou / Debaixo duma bruta chuva/ Estetizou o índio/Que pena!Fosse
uma manhã de sol e sem pólvora, a esteses do índio tinha despido/ O português”.
O caminho sugerido por Mignolo é o da "desobediência”, que compreendo também como o
caminho da translogística reversa, ou seja, quando se olha para aquilo que fora reportado pela
história levando em consideração as esferas de produção de tal discurso e ao seus imediatos e
anteriores destinatários, qual seja o mais importante: a atividade mental que circunda esse sujeito. A
disciplinarização do saber é um dispositivos de controle que embora por vezes nos leve a considerar
a cultura local, o singular, o não cânone, o não literal, etc, parte de uma episteme, da visão inicial
daquele que estruturou as faculdades humanas. Não basta negar o legado grego da síntese, nem tão
pouco a síntese de Hegel, mas ir além levando em consideração que o modo como se vê, como se faz
ciência é, por princípio a síntese que causa diferenças, pois a voz e as imagens dos sujeitos e ao que
os mesmo eram sujeitos pré-colombianos ainda foi e ainda é pouco reportada. A matriz colonial de
poder funciona por por meio de 5 domínios principais, quais sejam: o econômico, o da autoridade em
união ao da política, o da natureza, o do conhecimento e o da sexualidade. Em fase a esses domínios, a
modernidade exige que nos dediquemos especificamente a fim de que não possamos ver como a lógica
da colonização se estabelece, a qual ainda hoje é fundada em ideia de progresso ou desenvolvimento.
Encontra-se, como fio condutor das relações entre aqueles domínios a enunciação, fundada,
basicamente, sobre o patriarcado e sob a teologia cristã disseminada na secularização da filosofia e

87 Faço aqui alusão a o texto de Foucault “ A ordem do discurso”.

HETEROCIÊNCIA
450

da ciência. A matriz colonial de poder tem duas esferas, ou seja, dois níveis de enunciado, primeiro os
projetos de discurso que circulam e de um segundo, o qual trata da questão do controle sobre o
conhecimento que estrutura os domínios sobre o qual se erige a modernidade.
Tendo isso em vista, o pensamento linguístico no Brasil é resultado de um processo de
imposição segmentador e funcional que fundamentou todo processo de colonização das Américas, em
especial, à América Latina, o qual tinha por objetivo primordial planificar, ordenar em uma unidade
rigorosa as categorias humanas e espacias dos domínios dos reinos ibéricos. A experiência das
construções das cidades e todo o empreeendimento geral da colonização nas Américas no que tange a
ordem social se concretiza em uma realidade física a partir das ciências matemáticas que, como já
referido, adveio do pensamento cartesiano que, à época das grandes navegações, a fortuna crítica da
europa tinham-no como o único válido.
A edificação das cidades americanas mantidas à cordel y regla (instruções reais espanholas)
expressavam o projeto de formatação social que se estabeleceu nas Américas: “ A cidade foi o mais
preciso ponto de inserção na realidade desta configuração cultural e nos deparou com um modelo
urbano de duração secular: a cidade barroca” (RAMA, 1985, p.24). Esse rigoroso ordenamento das
cidades representavam a separação, a dicotomização entre as palavras e as coisas imposta
sobretudo nos séculos XVI e XVII no que se chama idade barroca [ clássica para franceses]. Nesse
sentido reitera Rama (1985, p.27):

momento crucial da cultura do Ocidente em que, como viu sagazmente Michel Foucault , as palavras
começaram a separar-se das coisas e a triádica conjunção de umas e outras através da conjuntura
cedeu ao binarismo da Logique de Port-Royal que teorizaria a independência de ordem dos signos. As
cidades, as sociedades que as habitarão, os letrados que as explicarão se fundem e se desenvolvem no
mesmo tempo em que o signo “deixa de ser uma figura do mundo, deixa de estar ligado pelos laços
sólidos e secretos da semelhança e da afinidade com que marca”, começa a “significar dentro do
interior do conhecimento” e “ dele tomará sua certeza e sua probabilidade.

A ordem social se concretiza em uma realidade física a partir das ciências matemáticas, em
especial, ao pensamento de Descartes, considerado, à época, um dos únicos válidos e não
contaminados 88 . Com isso, conclui-se que a experiência da construção das cidades e todo
empreendimento geral da colonização nas Américas, em especial, teve por base os sistemas de
categorização e segmentação. Em outras palavras, leio que os povos americanos sofreram um
estupro induzido e planificadamente projetado por parte dos europeus, à guisa do método dos
princípios reguladores tal como se faz em um jogo de xadrez, projeto aquele que impunha a unidade,
planificação e ordem rigorosa, reiterando a modalização real de à cordel e regla.

88Acredita-se, na época, que haviua pensamentos contaminados e puros a depender das proximidades com a religião ou o caráter de não
racional.

HETEROCIÊNCIA
451

Nesse contexto de extrema objetividade e planificação foi efetivada o ordenamento das


cidades, o qual se fundamentou a partir do regimento e registro das Letras, quais sejam jurídicas,
científicas, contábeis, etc., de epistemes qu advém da orde e da urbe .
Não obstante dessa realidade, os estudos linguísticos no Brasil quando não estão ligados às
línguas de povos e comunidades indígenas e às variações regionais que as mesmas desempenham,
voltam-se para temas que tomam a singularidade cultural e social por meio de teorias do discurso de
orientação francesa ou, mais das vezes, na perspectiva bakhtiniana. No entanto, há empreendimentos
teóricos e metodológicos que carregam significativo teor de singularidade.
A obra “ Estudos Discursivos à brasileira: uma Introdução introdução89” foi organizada por
Baronas ( 2015) a partir da hipótese de que no Brasil ná há somente teorias próprias do idioma, mas
também “teorias brasílicas do discurso”. Com o propósito de dar conta dessa hipótese Baronas
referencia a MODULO e BRAGA 2012,90 os quais: “ destacam como 'propostas já estruturada em terras
brasílicas' a de Back e Mattos (1972), a Sociolinguística paramétrica de Tarallo e Kato (1989), a
Semântica de contextos e cenários de Ferrarezi Jr. (2010) e a Abordagem multissêmica de Ataliba
Teixeira de Castilho (2010) ” (BARONAS, 2015, p.16, grifos meus). O autor ainda reforça sua hipótese
quando retoma a palestra do Professor Rodolfo Ilari relaizada em 2013 na qual o mesmo faz apologia a
teoria a “Teoria dos Garfos” do Prof. Issac Nicolau Salum. Àquelas teorias brasílcas Baronas sugere
as seguintes: Semótica da Canção porposta por Luiz Tatit (2007); a Semântica do Acontecimento,
porposta por Eduardo Guimarães (2005); a Teoria dos Esteriótipos Básicos e dos Esteriótipos opostos,
prosposto por Sírio Possente, a Teoria do Silêncio, proposto por Eni Orlandi, A análise do discurso
verbo visual, proposto por Brait a partir de 1995 e a Abordagem foucaultiana do discurso proposta
por Gregolim e seu grupo GEAD ( ibdem, p. 2015)
Nesse ínterim, olhando para a História da Linguística e dessa mesma no Brasil, Neto (2005)
faz um panorama da linguística partindo da tese de Nietzsche sobre a história, qual seja: a história
está ao serviço da vida. Tal asserção advém do questionamento “Por que se faz historia” ? Segundo a
visão nietzschiana, faz-se história por três razões: i) porque se é ativo e ambicioso, - o sujeito busca
no passado fatos aliados para justificar as ações presentes os quais são colocados como
“monumentais” visando a um futuro também monumental; ii) faz-se história porque se tem prazer em
venerar e conservar – objetiva-se obter na história as descrições e análises que corroboram para a
manuntenção do que já está dado, trazendo as próprias palavras de Neto (p.3) “ é a história feita por
quem julga que o melhor do presente é o que não altera o passado”, isto é, trata-se de um fazer
monumental da história tradicional e iii) faz-se história porque se sofre e tem-se necesidade de
libertação – o sujeito sofre e busca no passado as caudas de seu sofrimento condenando-o e
julgando-o a partir de um processo de negação e reafirmação investigativa obtendo com isso o que se

89 Nessa obra há um artigo produzido por Mônica Baltasar Diniz e Flávio Henrique Moraes que versa sobre a semiótica da canção com
o objetivo de apresentá-la didaticamente ao leitor colocando em evidência a singularidade de teoria no que tange ao releitura da obra de
Greimas em conformidade com estudos saussurianos e a inserção dos conceitos músicais no escopo da teoria.
90 O artigo “ Uma teoria brasileira do idioma” foi publicado na Edição 78 da Revista Língua Portuguesa, em Abri de 2012. (MODULO E
BRAGA;2012).

HETEROCIÊNCIA
452

chama de história crítica. Esses modos de se fazer história não são escolhidos por parte do indivíduo,
mas são determinações sociais, por isso não são arbitrários, mesmo havendo significativo fator
subjetivo.
O autor relaciona essa visão triádica da história com a proposta de Konrad Korner que
identifica três tipos gerais de texto historiográfico em ciências da linguagem. Ao primeiro tipo
Komerdenomina como história-resumo, o qual em linhas gerais representa o pesquisador veterano
que em fim de carreira busca nos anais da história e dos percursos da ciência aquilo que se relaciona
com sua vereda de investigação “ É uma história que olha para o passado e nele seleciona os “vultos”
(os monumentos) que, com sua atividade científica, conduziram a disciplina, inexoravelmente, à
proposta esposada pelo autor, que é vista como a acumulação de um processo unidimensional e
progressivo que se constrói no tempo” (NETO, p.5) ao feitio da história monumental. O segundo tipo
descrito por Korner relaciona-se ao 3º tipo de fazer história enunciado por Nietzche, ou seja, àquele
que faz a história crítica, tratando do jovem pesquisador que se opõe ao pensamento estabelecido
identificando erros no passado que justifiquem suas novas propostas. Endosso a esse último tipo de
fazer história e pesquisa. Por fim, o último tipo se relaciona ao pesquisador tradicionalista que busca
no passado um modelo ideal sem levar em conta as particularidades do momento presente, isto é, faz-
se pesquisa no presente a fim de manter a cordel y a regla métodos e modelos teóricos em
renovando-se apenas novos objetos.
Valho-me desse visão panorâmica e analógica de NETO (2006) e BARONAS (2015) sobre a
historiografia da linguística no Brasil pela razão epistêmica a partir da qual essa ciência se
desenvolve e que, por sua vez, está pouco imbuída de inovações ou caracterizações brasileiras, assim
como salienta MATOSSO (in NETO, 2006, p.13):

Uma história da linguística deveria concentrar sua atenção na Europa do século XIX até os nossos dias
incluindo, naturalmente, a América como uma extensão da cultura européia e, entrementes, outros
países não-europeus que assumiram os principais traços e tendências do pensamento científico
dominante. (p. 13)

Nota-se de forma geral que o fazer das ciências da linguagem no Brasil ora é
predominantemente tradicional ora monumental, embora tenhamos trabalhos como o de Maria Irma H.
Coury, de Carlos Franchi e os já referenciados por (BARONAS, 2015) ou de Luiz Tati. Tal realidade
coloca-me diante identificação da problemática: seria preciso buscar um modo de se fazer estudos da
linguagem (re)vendo suas singularidades frente sua epistemologia e a metodologia no que tange ao
Brasil?
A epistêmica que reveste as teorias brasileiras do discurso ainda seguem diretrizes de
pensamento que não questionam o próprio fundamento que as constituiu, qual seja : os domínios do
saber ( trazendo à baila Foucault). Uma vez que nosso fazer científico linguístico depende desse
pensamento dominante, tal como afirmou Mattoso, seria então necessário para o empreendimento
dessa linguística brasílica uma perspectiva que endosse aquele questionamento que se adota. Isso

HETEROCIÊNCIA
453

posto, coloco de encontro ao que se sugere a perspectiva decolonial de Water Mignolo, em especial, a
qual, por sua vez, é dissidente da nova fortuna de pensamento que se propõe a repensar a condição
colononial do pensamento pela qual grande parte das ciências sul-americanas se orientam. Em linhas
gerais, o autor defende por meio dessa forma de se enxergar a linguagem que nosso fazer científico
é, em grande parte, resultado de um mecanismo disciplinador de dominação. Com isso, Bakhtin, na
perspectiva de emancipar ao outro pela alteridade que advém da não da sintese, mas da pluralidade
“relativamente estável” dos múltiplos enunciados, nos possibilita partir do singular e irrespetível sem
a necessidade de se chegar ao universal.

5. BREVE E INSTÁVEL CONCLUSÃO

A partir desse brevíssimo percurso expositivo, afirmo que a noção essencial que os
estudantes do discurso têm de ter em vista é que todo e qualquer enunciado concreto estará inserido
em um gênero do discurso. Se como afirma Mignolo que pertencemos a um panóptico do qual o fio
condutor é a própria enunciação, então cabe-nos compreender quais são as instituições reguladoras
dos gêneros secundários que reiteram a nossa condição de colonialidade. Nesse sentido, as obras que
lemos, a forma como pensamos a obra, se puramente disciplinados por epistemes que não considere
a nossa condição de latinos ou não europeus em relação, não nos emanciparemos. Clama-se a uma
heterocientificidade.
Por meio de uma “disciplina” translógica orientada pelo Círculo de Bakhtin, é preciso que
cheguemos a um (re)conhecimento junto à língua, à literatura e a toda gama simbólica do que se vê e
se estuda na academia. Não podemos nos esquecer as condições de dependência forçada e proposital
a que somos submetidos pelas grandes potências econômicas. Precisamos reconhecer, ainda mais no
atual contexto político/econômico no qual nos encontramos, que a palavra própria e alheia de grande
parte dos materiais do gênero secundário reverberam exotopias múltiplas, muitas vezes, reiterando
condições que não valorizam a alteridade. Bakhtin nos dá as chaves de abertura de pensamento
justamente quando sempre coloca o outro como a fonte primordial da nossa constituição, sendo o
mundo tanto de Rabelais quando de Doistoiéski, ou então de Machado ou Mel Duarte, a plenitude da
pluralidade, jamais o mesmo, no tempo do agora, do outrora e do amanhã ( pequeno e grande tempo)
sendo o humano reconhecido em suas determinações sócio-históricas e, por isso, em sabendo de seu
passado, possa descolonizar a si e ao outro.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Martins Fontes:São Paulo,2010.


______. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Hucitec:São Paulo, 1995.
BALLESTRIN, Luciana. O giro decolonial. 36º Encontro Anual da Anpocs. Águas de Lindoia. Out/2012.
BARONAS, Roberto Leiser Baronas (Org.) Estudos Discursivos à brasileira: Uma introdução.

HETEROCIÊNCIA
454

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Balhtin e o Direito: Uma visão transdisplinar. Nuria Fabris Editora: Porto Alegre, 2014.
CHAIN, Izi Gomes da Cunha. O diabo nos porões das caravelas: Campinas: Pontes Editora,2003.
DUSSEL, Enrique. The invention of the Americas. Nova Iorque: Contuinuum, 1995.
GERALDI, José Wanderley. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianosde construção.
HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Lamparina: São Paulo, 2015.
MEDINA, Cremilda. Povo e Personagem. Editora Ulbra: São Paulo, 1996.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O Método Formal no Estudos Literários. Editora Contexto: 2003.
MIGNOLO, Walter. Aiesthesis Decolonial: A rtículo de reflexión. Univedidad de DUKE, 2002.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialiadade do saber:
Eurocentrismo e ciências socais. Perspectivas Latino-americas. Buenos Aires: CLASCO, 2005.
RAMA, Angel. A cidade das Letras. São Paulo; Brasiliense, 1985.
RAMA, Angel. A cidade das Letras. São Paulo; Brasiliense, 1985.MORIN, Edgar. Nome de Deuses. Editora Unesp: 2002.
VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. A construção da Enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro e João Editores,
2013.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
455

REFLEXÕES SOBRE O Palavras-Chave:

DIÁLOGO COM E NA
INFÂNCIA

OLIVEIRA, Marcus Vinicius Borges 91

INTRODUÇÃO

Este texto é continuidade do texto “O diálogo com e na infância”, escrito para o III EEBA e foi
parte de minha apresentação na mesa com mesmo título que dividi com a professora Marisol Barenco
de Mello no evento chamado “Bakhtin e Paulo Freire; Diálogos na região de Mato Grande”. Sendo assim,
este texto foi escrito para dialogar, ainda que implicitamente, não somente com Bakhtin, mas também
com Paulo Freire.
Esclarecemos, antes de mais nada, que por diálogo, tanto em Bakhtin como em Paulo Freire,
não estamos falando restritamente de conversa face a face e nem de consenso. Ao falar em diálogo,
estamos falando em movimento de inconclusão permanente, de percursos interpretativos que se
ancoram com interpretações passadas e que se abrem a um horizonte de futuro, da possibilidade de
se abrir ao diálogo, em Paulo Freire, de pronúncia (que pressupõe profundo amor aos homens e ao
mundo) ou da impossibilidade de se fechar a ele, como na leitura Ponziana sobre o dialogismo
Bakhtiniano.
É preciso ter claro também que por infância não entendemos nada monológico; sabemos que a
infância não existe da mesma forma para todos e nem sempre existiu sempre da mesma maneira no
decorrer da nossa história. Neste sentido, encarando a diversidade que temos tanto historicamente
quanto geograficamente, talvez fosse até melhor falar de infâncias.

91 Doutor em Linguística. Prof. Adjunto do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal da Bahia. E-mail:
marcus.oliveira.fono@gmail.com

HETEROCIÊNCIA
456

O DIÁLOGO COM E NA INFÂNCIA

Retomando um dos trabalhos pioneiros sobre a infância, de Phillipe Ariès (1978), A história
Social da Família e da Criança, perceberemos que para o autor a infância não esteve presente em
grande parte da história da humanidade, sendo relativamente recente. O autor descreve um período
em que tão logo conquistasse uma certa independência física, os menores eram colocados no mundo,
como adultos. Não havia, por exemplo, roupas próprias para infância, nem uma valorização do seu
jeito de ser, o sentimento da infância pertence à modernidade, um processo histórico de educação e
de hierarquização do saber.
A infância, a grosso modo, na idade média, terminaria quando a criança adquire a fala. Ela
deixaria de ser infans, ou seja, incapaz de fala e se tornaria falante. É importante refletir o que
significa determinar um período pela impossibilidade de falar, porque neste sentido a infância estaria
destinada ao silêncio. Contudo, o diálogo na infância é, necessariamente, de outra ordem. Para
Bakhtin, o reconhecimento da palavra enquanto sinal – com seu caráter estável – é apenas uma das
fases da compreensão do signo, este único a cada situação, ligado ao seu uso concreto. O signo tem
caráter ideológico, requer uma compreensão ativa. Tais reflexões bakhtinianas foram posteriormente
desenvolvidas por Ponzio (2010). Este autor relaciona o silenciar com o caráter acústico do som e o
calar à compreensão responsiva. Enquanto um conceito é responsável apenas por ouvir, o outro
escuta. Ponzio dá grande relevância à escuta como “arte da palavra”, como um tipo de envolvimento
em que se possibilita que a palavra seja escutada. Para ele, a Filosofia da Linguagem é a Filosofia da
Escuta.
Um ponto relevante para refletir sobre aspectos singulares do diálogo na infância passa pelo
entendimento de percursos interpretativos que comportam necessariamente uma relação triádica,
constituídos de: i) um interpretante, aquele que confere um significado ao signo, ii) um interpretado,
um objeto que recebe significado, que é interpretável e iii) algo de objetivo, preexistente, o “material”
a que se pode submeter uma interpretação.
A simbolicidade é a expressão do caráter convencional do signo, ou seja, da relação
estabelecida com base em um código, uma lei. Símbolos são signos que dependem eminentemente do
interpretante, já que existe uma lei prévia que estabelece sua relação com o objeto. Já a indicialidade
expressa a relação de contiguidade, de causa e efeito. Nestes dois casos, existe uma relação de forte
dependência entre o signo e o objeto. Para Petrilli (2013:268), o signo icônico é aquele que menos
depende de um código ou convenção, e no qual se realiza o grau máximo de independência do signo em
relação ao seu objeto. A relação icônica é aquela que contém traços de “afinidade, atração, inovação,
criatividade, dialogicidade e alteridade”, devido à relativa autonomia de significação do objeto em
relação ao interpretante.
Me parece que este último, justamente aquele que exige maior dialogicidade, que mais se
relaciona com a loucura da infância, apontada por diversos autores, desde Durkheim a Rotterdam, a
extrema labilidade com que se pode passar do riso ao choro, do caos a ordem, em um estalar de

HETEROCIÊNCIA
457

dedos. Essa inventividade intimamente ligada ao corpo parece requerer percursos interpretativos
icônicos, profundamente dialógicos, em que a compreensão responsiva nem sempre seguirá caminhos
de argumentação lógica. São interpretantes que abrem novas semioses, diferentes caminhos que
impedem uma relação puramente racional como parâmetro dialógico, e condiz uma relação de cunho
mais emocional, imprevista, improvisada.
É por isso que o diálogo na infância requer o diálogo com a infância. É no tempo da
brincadeira, carnavalesco por natureza, que reconhecemos que a infância é um lugar estivemos. A
infância é, sobretudo para quem não está nela, uma memória do que se desconhece.
Ao contrário do que ocorre no envelhecimento, onde a sociedade erroneamente tende a
considerar alguns indivíduos como já concluídos, a infância é reconhecidamente o lugar da
inconclusibilidade, de uma certa futuridade. No entanto, esta abertura em excesso, em tempos de
excessivo produtivismo em que vivemos, tem levado a objetivação do tempo da infância e da procura
do desenvolvimento de capacidades e habilidades que levem a criança mais seguramente ao mercado
de trabalho. Atualmente, os jogos e desenhos animados já descrevem as habilidades que a criança
desenvolverá enquanto brinca, como se o próprio brincar não tivesse um valor em si.
Não se pode menosprezar a violência desta lógica da objetificação das relações, seus
malefícios. Essa busca excessiva pela produtividade na infância recebe contornos patológicos, não é à
toa que temos recebido uma enxurrada de categorias clínicas que subjazem a comportamentos
culturalmente aceitos em outras épocas. A situação é pior nos contextos relativos à pobreza. Oliveira
e Oliveira (no prelo) retomam estudos que tendem a associar níveis econômicos com desenvolvimento
de linguagem e alertam para a visão preconceituosa tanto sobre a própria (neuro) linguística quanto
para os modelos reducionistas adotados para conceber a relação cérebro e linguagem. Os autores
afirmam criticamente que uma certa concepção neoliberal do que é a pobreza, destituída dos
determinantes sociais e históricos que lhe constitui, se encaixa perfeitamente à ideia de que o homem
pode ser medido e quantificado, como se fosse possível superar a condição de pobreza social através
do aumento das capacidades individuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A medicalização da educação tem representado uma forma cruel de adaptação da infância


para os fins da sociedade atual, resultado da extrema adaptação para a funcionalidade, para o
mercado cada vez menos disposto a receber a singularidade, o imprevisto. Contudo, em contraposição
à ideologia da produtividade, que orienta todo o sistema de comunicação-produção, o direito à
alteridade existe enquanto infuncionalidade. De acordo com Ponzio (2010), retomando o pensamento
de Emmanuel Lèvinas, o direito à infuncionalidade é o direito de valer por si, como alteridade não
relativa, como único. Principalmente na infância, é necessário que as crianças possam escapar de
serem funcionais.

HETEROCIÊNCIA
458

REFERÊNCIAS

ARIÉS, P. História social da criança e da família. 2a ed., Rio de Janeiro: Guanabara: 1973. p.279
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, [1979] 1997.
OLIVEIRA, E.C. OLIVEIRA, M.V.B. Linguagem e Pobreza: contribuições da Neurolinguística Discursiva, Revista Estudos
Linguísticos, no prelo.
PETRILLI, S. Em outro lugar e de outro modo. Filosofia da linguagem, crítica literária e teoria da tradução em, em
torno e a partir de Bakhtin. São Carlos, Ed. Pedro e João, 2013.
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro e João, 2010.
ROTTERDAM, E. Elogio da Loucura. Vol.278. Porto Alegre: L&PM; 2002

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
459
Com base em preocupações recorrentes acerca da
pertinência teórica da contribuição dos estudos do
Círculo B.M.V para pesquisas que envolvam outras

BAKHTIN EM materialidades como o signo não verbal, traz-se


aqui uma possível resposta a esse questionamento.
Propõe-se, nesse trabalho, o estudo do seriado

MATERIALIDADES
televisivo como gênero discursivo a partir de sua
configuração contemporânea em circulação na
Rede, a qual traz como constituinte de sua
movimentação na esfera de atividade midiática a

OUTRAS: a entoação avaliativa nas presença dos fãs como participantes ativos de sua
produção, circulação e recepção. Será feita
primeiramente uma explicitação teórica acerca do
produções dos fãs do seriado Sherlock gênero e do enunciado como ato irrepetível, pleno
de valoração social, a partir de trechos teóricos,
para então demonstrar-se em uma análise de duas
fotografias de fãs do seriado como tais
materialidades e categorias podem ser pensadas
para esses enunciados. Defende-se, assim, o estudo
de materialidades não-verbais a partir do Círculo,
PAGLIONE, Marcela Barchi 92 bem como a construção de respostas de fãs como
produções autorais.

Palavras-Chave: Gênero discursivo. Seriado


televisivo. Entoação avaliativa. Signos não-verbais

INTRODUÇÃO

D
entro do eixo proposto de heterociência, nossa proposta é trazer um texto bakhtiniano que leve
em conta a relação sujeito-objeto como dialógica, constituinte do pesquisador e da pesquisa.
Conforme Geraldi, podemos pensar em uma “[...] heterocientificidade própria das ciências
humanas – [...] é consequência de seu objeto, não reduzido a ‘coisa morta’ sobre que se debruçaria o
pesquisador” (2012, p. 30). A especificidade das ciências humanas estaria em sua proposta de
pesquisa em que o objeto atua como um outro com quem me relaciono enquanto sujeito e não como
algo pronto, aguardando somente ser decifrado. Fazer pesquisa dentro das ciências humanas, em
nosso caso, dentro da filosofia da linguagem do Círculo B.M.V. (Bakhtin, Medvíedev, Volochinov) ,
implica sempre em uma posição responsiva do sujeito pesquisador, em sua relação de constituição
mútua com seu objeto de pesquisa. Pesquisador e objeto de pesquisa, assim, constroem-se
mutuamente em uma relação dialógica.
Dentro dessa concepção, também não podemos tomar o objeto como dado empírico. Ao
levarmos em consideração que entramos em contato com o mundo a partir de seu reflexo e refração,
via ideologia, na linguagem, apontamos que o mundo é sempre valorado e não como fato. Dentro de
nossa perspectiva, a relação entre sujeito e mundo é mediada pela ideologia. Ao enunciar sobre algo,
colocamos nosso posicionamento e, quando refletimos sobre esse pensamento no campo da ciência,
percebemos que nos colocamos como pesquisadores ao enunciar sobre um objeto, ao mesmo tempo
em que esse objeto também já me aparece valorado por outros sujeitos, em outros momentos e locais

92Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa pelo PPG da Unesp/Araraquara, membro do Grupo de Estudos Discursivos - GED. E-mail:
marcelapaglione@gmail.com

HETEROCIÊNCIA
460

da existência. A linguagem e, portanto, o enunciado, são marcados pela avaliação social, a entonação
avaliativa dos sujeitos em uma situação de interação (VOLOCHINOV, s/d).
Nesse trabalho, nos propomos a pensar, sem deixar de lado a questão inacabamento e da
entonação avaliativa presentes em nosso objeto de pesquisa, o seriado Sherlock (2010), da rede BBC –
trata-se de um seriado que ambienta as narrativas de Conan Doyle acerca do detetive Sherlock
Holmes para o século XXI – como gênero discursivo em sua relação de resposta com seus fãs.
Primeiramente, discorreremos acerca da proposta de se trabalhar materialidades não-verbais com
base no Círculo e como o seriado e a produção dos fãs estão relacionadas a essa proposta, como
enunciados únicos e irrepetíveis. Em um segundo momento, analisaremos duas produções autorais de
fãs de forma a entender concretamente como se dá sua valoração em sua resposta ao seriado.

1. GÊNERO SERIADO: um olhar bakhtiniano para o não-verbal

Uma das questões que nos atormentam enquanto estudiosos do Círculo, com base em suas
reflexões filosóficas acerca da linguagem, é a possibilidade teórica de se estudar diversas
materialidades que não as verbais calcadas somente em seus escritos. Em resposta a algumas
indagações, propomos nesse trabalho uma breve reflexão acerca da amplitude da concepção de signo
e enunciado – consequentemente, de gênero – para essa vertente dos estudos da linguagem, pois, ao
buscarmos nas obras fonte, podemos repensar a teoria, ver nuances em sua elucidação que nos
permitem outras compreensões e ampliar nossa abrangência acerca da pertinência teórica acerca de
nossos estudos.
Em uma nota de rodapé presente na edição Teoria do romance I: A estilística (2015), Bakhtin
traz a seguinte consideração: “[...] Tudo consiste em que entre as ‘linguagens’, quaisquer que sejam,
são possíveis relações dialógicas (originais), isto é, elas podem ser interpretadas como pontos de
vista sobre o mundo (p.68). Ao tratar sobre a natureza dialógica da palavra, Bakhtin se refere ao
sentido lato de palavra: enunciado. Assim, o autor se refere às outras linguagens, mesmo que
brevemente, pois o sentido de sua reflexão acerca do diálogo (ou da heterodiscursividade, como ali é
nomeado) as cercam.
Também Volochinov, em Marxismo e filosofia da linguagem (2014), ao explicitar a natureza
ideológica do signo e a ligação intrínseca entre o material semiótico e o ideológico, dá como exemplo a
foice e o martelo, instrumentos convertidos em signos ideológicos:

[...] um instrumento pode ser convertido em signo ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do
martelo como emblema da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um sentido puramente
ideológico. Todo instrumento de produção pode, da mesma forma, se revestir de um sentido ideológico:
os instrumentos utilizados pelo homem pré-histórico eram cobertos de representações simbólicas e de
ornamentos, isto é, de signos. Nem por isso o instrumento, assim tratado, torna-se ele próprio um
signo. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2014, p. 32)

HETEROCIÊNCIA
461

Ao escolher esse material imagético como seu exemplo, o autor já coloca ali seu
posicionamento acerca da concepção de signo para o Círculo, a qual defendemos não ser restrita
para a materialidade verbal.
Dentro dessas reflexões, defendemos a possibilidade de pensarmos o seriado televisivo como
um gênero discursivo, um tipo de enunciado relativamente estável, dentro de uma materialidade
sincrética pela qual seus episódios-enunciados se constroem, assim como as produções dos fãs são
realizadas em outras materialidades, como a imagética, conforme veremos adiante.
Se, conforme Medvíedev (2012), devemos ver a realidade com os “olhos do gênero”, o qual a
reflete e refrata conforme um dado horizonte ideológico de um sujeito em um determinado tempo-
espaço, é imprescindível notarmos o caráter móvel dessa representação, em um jogo entre a
instabilidade e estabilidade dos enunciados, agrupados em tipos relativamente estáveis (BAKHTIN,
2011). A vida está em pleno fazer-se e, em cada ato de criação estética de uma obra, ela se apresenta
de uma determinada maneira, valorada, enviesada e esteticamente acabada. Dessa maneira, há uma
relação entre a sociedade histórica e a história dos gêneros, em uma via de mão dupla entre os meios
de representação e a realidade. Assim, “novos meios de representação forçam-nos a ver novos
aspectos da realidade, assim como estes não podem ser compreendidos e introduzidos, de modo
essencial, no nosso horizonte sem os novos recursos de sua fixação” (MEDVÍEDEV, 2012, p. 199).
Também o seriado é aqui entendido como gênero discursivo, um enunciado que ganha força
nos anos 50 com uma configuração que passa por modificações até chegarmos nos fenômenos das
redes sociais, como Game of Thrones (2011), Black Mirror (2011), e Sherlock (2010)93. A partir de
extensa produção desde seu nascimento até a era contemporânea, vemos traços de uma relativa
estabilidade, como a duração comum de 40 a 50 minutos para seriados dramáticos e a exceção de
Sherlock, que possui episódios de 90 minutos; a questão do cliffhanger como uma marca discursiva
característica de produções seriadas – e que não se encontra em Black Mirror, por exemplo, uma
série com episódios autônomos relacionamos pela temática –, entre outros, para citarmos somente a
formatação.
Uma das questões principais que observamos no desenvolvimento histórico do gênero é o
vínculo estabelecido na contemporaneidade entre os seriados e as redes sociais, como blogs no
Tumblr, grupos no Facebook, perfis no Devianart e canais no Youtube, por exemplo, os quais permitem
uma continuação da experiência do fã e telespectador em um determinado universo ficcional – em
uma concepção transmidiática, conforme apontado por Jenkins (2006) – e, nesse processo, a
possibilidade de espaços para produção e divulgação de enunciados autorais. Ao mesmo tempo em
que seriados ganham espaço na Rede em uma tentativa de angariar e se aproximar de seu público
consumidor, os fãs também o ganham respondendo aos episódios, criando teorias, cosplays,
fanvideos, fanfics, de modo que a recepção e circulação do seriado, nessa esfera de atividade

93 Trabalhamos em nossa tese em andamento Fenômeno Sherlock: a recepção social do gênero seriado a respeito do gênero seriado, na qual
trazemos, em um primeiro capítulo, um histórico de produções e características para agruparmos esses enunciados divergentes em um
mesmo tipo, além de explicitarmos a peculiaridade de Sherlock como um fenômeno nas redes sociais.

HETEROCIÊNCIA
462

midiática, conflui para a criação de produções mais interativas partindo do próprio seriado, como o
trailer interativo para a terceira temporada de Sherlock94. Dessa maneira, há uma relação entre fãs
e seriado que possibilita, mesmo na perspectiva do Círculo, na qual os ouvintes são sempre co-
autores, participantes na produção dos enunciados, uma maior visibilidade dos fãs como sujeitos
ativos nas etapas de movimentação do gênero. Fãs e seriado são colocados em uma relação dialógica
constituinte.
Nota-se que pensamos essas relações e categorias a partir da perspectiva do Círculo B.M.V.
e, sem deixarmos de lado a especificidade de suas reflexões focadas em literatura, alçamos vôo e nos
lançamos em direção a uma produção contemporânea, sincrética e circulada nas redes sociais, de
maneira a demonstrar a possibilidade de abrangir a reflexão teórica sobre gênero para além da
materialidade verbal. Adentramos agora no terreno das produções dos fãs, também não restritas ao
verbal, mas na qual vemos na prática a construção responsiva de seus enunciados, marcados por
elementos do seriado ao qual respondem, porém plenos de entoação avaliativa.

2. O ATO RESPONSIVO: a valoração dos fãs do seriado Sherlock

Os fãs recebem a obra, porém não apenas a assistem. A configuração do gênero seriado na
contemporaneidade possibilita que elas o respondam, principalmente na Rede, seja com teorias, com
vídeos, fanfics, fóruns, fotografias, pinturas etc. Os episódios não chegam a eles de maneira neutra,
mas são respondidos, refletidos e refratados em seus enunciados responsivos que assumem
diferentes configurações de materialidade, não apenas a verbal.
A partir do princípio da responsabilidade e responsividade do enunciado concreto para o
Círculo, entendemos que os fãs respondem ao seriado não como cópias de um enunciado original, mas
como produções únicas. Tal concepção de originalidade é rechaçada por Bakhtin em Estética da
Criação verbal (2011), uma vez que o enunciado e o signo sempre trazem em si vozes e
posicionamentos dos sujeitos que já o enunciaram e ainda o enunciarão.
Cada enunciado é realizado em um ato irrepetível. Mesmo que se mantenha a formatação, o
conteúdo e o estilo utilizados em outro, o tempo-espaço de enunciação é único, os sujeitos são outros,
logo, o enunciado é outro. De acordo com Bakhtin (2010), um enunciado é entendido na dimensão do
acontecimento, único e irrepetível no existir como evento, logo, as produções dos fãs, como
enunciados, também o são. Nesse sentido, elas não são cópias, subjugadas a um enunciado canônico.
Os elementos do seriado presentes em si são revalorados, recuperados como resposta ativa, que
comenta e insere um posicionamento daquele fã-autor, concretizados na escolha de uma
materialidade, das cores, no conteúdo a ser expresso de uma maneira (estilo) específica, além da
própria escolha do gênero discursivo em que essa enunciação se materializa.
O elemento regente da organização desse enunciado, para o Círculo, é a entoação. De acordo
com Volochinov (s/d), ela estabelece uma atitude viva em relação ao herói (objeto de que se fala),

94
Disponível em: https://view.wirewax.com/8004686. Acesso em: 01/10/2017.

HETEROCIÊNCIA
463

organiza o todo significativo, seleciona o conteúdo, a forma e o estilo de produção. Da mesma maneira
que o Sherlock é uma resposta à obra romanesca de Conan Doyle e contém em si sua configuração
particular – por exemplo, com o detetive construído de maneira tecnológica, o alívio cômico com
personagens criadas apenas para o seriado, a relação ambivalente com John Watson, entre outras –
também as respostas dos fãs podem ser tomadas em sua especificidade afim de identificarmos sua
peculiaridade e a avaliação social dos fãs a partir dos elementos materiais, sígnicos, sejam eles
verbais ou não verbais.
Entre as produções responsivas dos fãs, os cosplays são práticas recorrentes de fãs da
chamada cultura geek: ela abrange, além dos seriados, as HQs, filmes, animes e mangás, por exemplo.
Aqui, analisamos duas fotografias feitas a partir de dois cosplays, denominadas SHERLOCK – Believe in
Sherlock e Sherlock: The Fall of Reichenbach , ambos de 2012, que respondem ao episódio The
Reichenbach Fall (2012), caracterizado pela falsa morte de Sherlock Holmes:

Figura 7. Sherlock: The Fall of Reichenbach

Fonte:. http://yinami.deviantart.com/art/Sherlock-The-Fall-of-Reichenbach-330476492. Acesso em: 01/10/2017

Na imagem acima, vemos uma reconstrução da morte de Sherlock conforme retratada no


seriado. Apontamos um rosto pálido, em contraste com a cor escura do cabelo, do chão e das roupas,
além do efeito “vinheta” na edição da imagem, que a deixa mais escura. O rosto, no centro da foto,
bem como seu olhar, chama nossa atenção. Com os olhos abertos, olhando para a câmera, para quem
o olha (nós), Sherlock nos observa, em seu local de falsa morte, onde foi visto pela última vez.
Enquanto a cor pálida sugere morte, em conjunto com a cor avermelhada perto da cabeça, como o
sangue decorrente do choque do corpo com o concreto, os olhos, vivos, observam seu observador, em
um olhar desafiador.

HETEROCIÊNCIA
464

Figura 8 - Rosto ensanguentado de Sherlock em The Reichenbach Fall

Fonte:. Sherlock, 2012.

Depreendemos elementos similares na construção da fotografia do cosplay em diálogo com a


imagem retirada do seriado, pois,as cores utilizadas são similares, há um tom azulado e escuro que
envolve toda a imagem, apesar de que na fotografia há bastante luminosidade e contraste, enquanto
em Sherlock, a luminosidade é muito baixa, tornando as cores mais apagadas. No entanto, no cosplay,
o sangue não está em evidência, como está na figura. Nela, construímos a imagem de um sujeito vivo,
que nos encara, ao contrário da construção do episódio, que visa fazer o público (e John) a acreditar
e, sua morte, com sangue em seu rosto e um olhar vazio. Assim, há elementos que se afastam e se
aproximam do seriado, conforme a valoração do sujeito autor, quem imprime sua marca, seu toque
pessoal ao trabalho, conforme suas valorações.
Observemos agora, outro cosplay na imagem acima em que consta uma pessoa vestida de
Sherlock ao lado de uma pichação onde lemos “Believe in Sherlock” (acredite em Sherlock):
Figura 9 - SHERLOCK: Believe in Sherlock

Fonte:. http://shigeako.deviantart.com/art/SHERLOCK-Believe-in-Sherlock-338819159. Acesso em: 01/10/2017

HETEROCIÊNCIA
465

A pichação, no centro da fotografia, automaticamente se destaca por seu posicionamento,


bem como pela coloração feita com tinta amarela vibrante, similar à presente no episódio The Blind
Banker (2010). Ela causa um contraste com as outras pichações e com o cenário ao redor, apagados
diante da cor forte e iluminada. No caso, a cor faz referência direta ao código usado pela máfia
chinesa em Londres dentro da narrativa do episódio citado.
Ao ser recriada no cosplay, a tinta, similarmente ao processo de identificação dos membros
da máfia chinesa, constroe-se como um código da fandom de Sherlock, que possibilita o contato entre
os fãs do seriado. No entanto, mais do que reconhecimento como parte de um grupo, a recorrência do
enunciado “I believe in Sherlock” comporta-se como uma campanha criada por fãs em resposta à
destruição do nome de Sherlock feita por Moriarty em The Reichenbach Fall. No seriado, o detetive é
considerado como fraude pela sociedade em favor de Richard Brook, identidade criada por Moriarty
que o acusa de te-lo contratado para realizar os crimes solucionados. Apesar de ter derrotado seu
nêmesis, Sherlock morre como uma fraude e, em razão disso, os fãs criaram a campanha sobre
acreditar Sherlock, em sua verdade e que Moriarty era real.
Tal questão aparece em enunciados de fãs, como fanfics, fanarts e fanedits, nos quais
repercute a ideia de que John defende Sherlock, assim como é sugerido em seu blog, por sua
postagem “He was my best friend and I'll always believe in him”95, na qual defende seu amigo. Essa
mesma postura é seguida por aqueles que acreditam em Sherlock, no caso, os fãs do seriado, que
repercutem o enunciado “Acredite em Sherlock Holmes” como um grito de guerra na fandom.
Assim, notamos que o seriado, em especial Sherlock, possibilita uma interação com os fãs na
Rede, de maneira que suas respostas podem ser identificadas como produções autorais, nas quais a
recorrência de elementos do episódio em questão é permeada por seu horizonte ideológico e
consequente avaliação social. A escolha pela coloração utilizada – seja da tinta ou do sangue –, pelo
cenário – imitando o local da “morte” do detetive ou o local de pichações presente no seriado, pelo
ângulo da câmera, pela representação do sujeito da fotografia que recupera o figurino tradicional de
Sherlock, todos são elementos que trazem marcados na produção tanto seu aspecto responsivo
quanto sua particularidade como ato responsável, único na existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos trazer para discussão a possibilidade de analisarmos as produções em


materialidades não-verbais, no caso, imagéticas, além de defendermos a autenticidade das respostas
dos fãs de Sherlock como produção. Percebemos, em nossas análises, as compreensões responsivas
dos fãs do seriado, sendo que estes tentam desvendar o enigma e construir seu ponto de vista em
relação a falsa morte de Sherlock Holmes. Seja em qual for a materialidade, em teorias , fanarts,
cosplays etc., eles colocam ali sua voz, sua entonação valorativa em resposta ao enunciado do

95
Ele era meu melhor amigo e eu sempre irei acreditar nele. (Tradução nossa). Disponível em: http://johnwatsonblog.co.uk/blog/16ajune.
Acesso em: 22/03/2016.

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466

episódio The Reichenbach Fall (2012). Tais respostas, ao mesmo tempo em que os aproxima como um
grupo com interesses em comum – os insere em uma fandom –, também individualiza seus
enunciados, marcados por um estilo autoral de produção, único e irrepetível no existir. Não vemos,
portanto, as produções como subjugadas a um enunciado “original”, que corresponderia ao seriado.
Esperamos, com esse trabalho, auxiliar nas reflexões contemporâneas brasileiras acerca da
pertinência teórica do Círculo em relação aos signos não-verbais, bem como refletir sobre a atividade
dos fãs que envolve uma concepção contemporânea do gênero seriado.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN/VOLOCHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2014.


BAKHTIN. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2011.
____. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
____.Teoria do romance I: A estilística. São Paulo: 34 ed, 2015.
GERALDI, J. W. Heterocientificidade nos estudos linguísticos. In: Palavras e contrapalavras: enfrentando questões da
metodologia bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
MEDVÍEDEV, P. O Método formal nos estudos literários. São Paulo: Contexto, 2012.
SHERLOCK: 2° Temporada. Direção: Paul McGuigan, Toby Haynes. Produção de Mark Gatiss, Steven Moffat. Londres: LOG
ON, 2012. 2 dvds (270 min), widescreen, color. Produzido por BBC (UK). Baseado nas obras de Arthur Conan Doyle.
VAUTHIER, B. Auctoridade e tornar-se autor: nas origens da obra do “Círculo B.M.V.” (BAKHTIN, MEDVEDEV, VOLOCHINOV).
In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. v. 1. Série Bakhtin – Inclassificável.
Campinas: Mercado de Letras, 2010.
VOLOCHINOV, V. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco
& Cristóvão Tezza. Circulação restrita.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
467

O POST NOSSO DE CADA Palavras-Chave:

DIA: uma análise dos enunciados


concretos nas fanpages verdade sem
manipulação e movimento Endireita Brasil

PAZ, Morgana Lobão dos Santos 96

Por mim se vai à cidade dolente


Por mim se vai à eterna dor
Por mim se vai à perdida gente
Justiça moveu o meu alto criador
Que me fez com seu divino poder,
O saber supremo e o primeiro amor.
Antes de mim coisa alguma foi criada
Exceto coisas eternas, e eterna eu duro
Deixai toda esperança, vós que entrais!
Dante Alighieri

INTRODUÇÃO

A
s redes sociais, especificamente o Facebook, estão no cotidiano das pessoas. Para Moita Lopes
(2010) a Internet amplia as possibilidades de relacionamentos sociais para além dos horizontes
tradicionais (do mundo da família, da escola, dos amigos etc.), nos coloca de forma dramática
frente a frente com a alteridade e com a politização da vida social, assim, a tela do computador deixa
de ser somente um local onde se busca informação e passa a ser, principalmente, um lugar de
construção, de disputa, de contestação de sentidos. Desse modo, as redes sociais são tidas como
espaços sócio-discursivos que ampliam/potencializam/amplificam e promovem o surgimento de
vários gêneros discursivos e suportes de texto. As novas interações construídas e constituídas
pela/na internet geram novas relações sociais, novos padrões de relacionamento com o outro e com
o mundo, posicionamentos ideológicos situados axiologicamente.
É possível fazer uma analogia entre as redes sociais e o mito da caverna de Platão. Neste, os
sujeitos, imersos na caverna, ao olharem para uma parede na qual são projetadas, por meio da luz de
uma fogueira, imagens do mundo externo, tais sujeitos acreditam/julgam que elas são a única

96Mestranda e bolsista CAPES em Linguística Aplicada no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. E-mail: morganalobao@hotmail.com

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468

realidade que existe, devido ao fato de estarem totalmente imersos nesse contexto. Ninguém atenta
para o fato de que são apenas sombras projetadas e que a vida real se dá do lado de fora da caverna,
nesse sentido, as sombras se sobrepõem ao real. Assim, tomando como ponto de partida essa
analogia, é possível afirmar que existe nas redes sociais, além de uma inversão de paradigmas, uma
refração do mundo off-line. Já que as redes são construídas/constituídas por sujeitos sócio-
historicamente situados e eles, enquanto seres de linguagem, refletem e refratam o mundo externo à
web.
Ao concebermos os usuários das redes sociais, emergidas da web 2.0, como sujeitos de
linguagem faz-se necessário situar em qual concepção de linguagem estamos ancorando nosso texto.
Para tanto, retomaremos, brevemente, o percurso histórico dos estudos sobre linguagem.

1. A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM PARA O CÍRCULO DE BAKHTIN97

Tendo como ponto de partida as reflexões do Círculo de Bakhtin (2003, 2006, 2015), pode-se
afirmar que houve mudanças/avanços significativos no que concerne as concepções de língua e de
linguagem. Bakhtin e Volochinov (2006) em seus postulados criticam duas concepções de linguagem
que estavam em evidência na sua época. Uma delas, seria a língua como representação do
pensamento na qual o sujeito era visto como um ser psicológico, individual, sujeito absoluto de seu
dizer, o texto era tido como um produto lógico do pensamento do autor no qual caberia ao leitor,
unicamente, “captar” essa representação mental, sendo passivo na leitura que, por fim, era
compreendida como atividade de captação das ideias, sem considerar, para tanto, as experiências, os
conhecimentos do leitor. Nessa perspectiva, a linguagem é concebida com expressão do pensamento
de um sujeito monológico, individualista. Nessa visão, prevalece a máxima se o sujeito “pensa bem, se
expressa bem”.

Só o grito inarticulado de um animal procede do interior, do aparelho fisiológico do indivíduo isolado. É


uma reação fisiológica pura e não ideologicamente marcada. Pelo contrário, a enunciação humana mais
primitiva, ainda que realizada por um organismo individual, é, do ponto de vista do seu conteúdo, de sua
significação, organizada fora do indivíduo pelas condições extra-orgânicas do meio social. A enunciação
enquanto tal é um puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela
situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma
determinada comunidade lingüística. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006, p. 124).

Para Bakhtin e o Círculo, o homem necessita do outro para a aquisição da linguagem e, para
tanto, é inconcebível pensar esse sujeito isolado do mundo e das interações sociais. Uma vez que,

97
Denomina-se Círculo de Bakhtin um grupo de pensadores advindos de áreas diversas (Literatura, Jornalismo, Linguagem, Ciências Naturais,
Música, dentre outras). Participavam dele M. Bakhtin, Volochinóv, Medviédiev, Lev Pumpianski, MatveiKagan, Maria Iúdina e Ivan Solertinski.
Imputa-se a esse grupo a discussão e a publicação de textos que tinham como centralidade questões atinentes à linguagem, ao sujeito e aos
modos de funcionamento dialógico e ideológico da palavra em diferentes esferas.

HETEROCIÊNCIA
469

Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação
verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e
começa a operar. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006, p. 109)

Na outra concepção, a Língua é vista como código, como instrumento de comunicação. Nessa
concepção, o sujeito era concebido como um ser “assujeitado” ao sistema, à estrutura e
caracterizado por uma espécie de “não-consciência”. O texto era visto como produto da codificação
de um autor/emissor a ser decodificado por um receptor (leitor/ouvinte). Para isso, bastava o
receptor ter conhecimento do código utilizado. A leitura era concebida como uma atividade que exige
do leitor o foco no texto, na sua linearidade, no sentido das palavras e das estruturas do texto. A
leitura era uma atividade de reconhecimento, de reprodução meramente.
Feitas as críticas a essas duas concepções, anteriormente apresentadas, Volochinov defende
a língua como interação, como atividade dialógica, na qual o sujeito é compreendido como
ator/construtor social. Indivíduo ativo que dialogicamente se constrói e é construído no texto. O texto
é visto como o lugar da interação e da constituição de sujeitos. O texto materializa contextos, pontos
de vista, discursos e se relaciona retrospectivamente e antecipadamente com outros textos. A leitura
é concebida como uma atividade interativa complexa de construção de sentidos e, como tal, exige que
o leitor acione conhecimentos linguísticos e mobilize, também, seu conhecimento de mundo e um
vasto conjunto de saberes concernentes ao evento de comunicação. Na perspectiva bakhtiniana, a
linguagem constitui sujeitos e é constituída por sujeitos ideologicamente situados, pois

O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde
o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006, p. 30)

A essas concepções, anteriormente enfocadas, Bakhtin/Volochinov (2006), nomeou-as de


subjetivismo individualista, de objetivismo abstrato e de linguagem como interação. Para esses
pensadores, a realidade da linguagem não estaria nem no sujeito monológico nem no sistema
linguístico somente, mas nos enunciados concretos sócio-culturalmente construídos nas mais
diversas interações em diferentes esferas da atividade humana. As considerações feitas ao longo
deste artigo, se ancoram nas reflexões de uma Linguística Aplicada híbrida, mestiça e indisciplinar
concebida por Moita Lopes, tendo em vista, que a autora desenvolve a pesquisa nessa área.Nessa
perspectiva, o presente trabalho aborda, com base na concepção dialógica de linguagem, concebida
como construto social, as concepções de enunciado concreto e de responsividade.

2. A CONCEPÇÃO DE ENUNCIADO CONCRETO E RESPONSIVIDADE PARA O CÍRCULO DE BAKHTIN

Para Bakhtin, enunciado e enunciação não são categorias distintas. Enunciados plenos
possuem autoria, que responde pelo texto, é sempre direcionado a um outro e sempre tem um
acabamento, uma conclusibilidade possível.Bakhtin só pensa linguagem na vida, no sujeito encarnado,

HETEROCIÊNCIA
470

a concretude está na linguagem e é ela que nos faz humanos.Só a linguagem verbal permite a
construção de passado e futuro. Para ele, não há autodidata, todos nós aprendemos com o outro
mesmo que este outro não esteja de corpo presente ele se apresenta por meio de enunciados
concretos seja texto na modalidade escrita ou em qualquer outra.A linguagem já se presenta como
atividade e não como sistema já nos primeiros textos do Círculo, nos quais o enunciado é entendido
como ato singular, irrepetível, concretamente situado e emergindo de uma atitude responsiva e
valorativa. Assim:

No tocante aos enunciados reais e aos falantes reais, o sistema da língua é de índole meramente
potencial. E o significado da palavra, uma vez que é estudado por via linguística (a semiologia
linguística), só é definido com o auxílio de outras palavras da mesma língua (ou de outra língua) e nas
suas relações com elas; só no enunciado e através do enunciado tal significado chega a relação com o
conceito ou imagem artística ou com a realidade concreta. (Bakhtin, 2016, p.93)

Bakhtin/Volochinov (2006) afirmam, em seus postulados, que nós lidamos sempre com a voz
alheia, que não há um ser adâmico nomeando o mundo pela primeira vez, que o sujeito nasce, cresce e
morre no processo de interação social. Não há emissor e receptor, mas sim, interlocutores, pois há
alternância de sujeitos. Nessa concepção de linguagem, todo enunciado é direcionado a alguém, o
outro é o nosso horizonte sempre. Logo, o segundo polo do texto não é uma mera abstração
linguística, o enunciado tem natureza concreta, plena, viva, nos mais diversos campos da atividade
humana e da vida é uma unidade real da comunicação discursiva e o discurso, nessa perspectiva, só
existe de fato na forma de enunciados concretos de determinados falantes, sujeitos de discurso.
Bakhtin afirma que

O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já existente fora dele, dado e acabado.
Ele sempre cria algo que não existia antes dele, absolutamente novo e singular e que, ademais, tem
relação com o valor (com a verdade, com a bondade, com a beleza etc.).”. (Bakhtin, 2016, p.95)

Assim, a palavra viva não conhece um objeto como algo totalmente dado, falar sobre tal objeto
é assumir uma atitude, um posicionamento. A palavra, para o Círculo é sempre carregada de valores,
e o valor é o axiológico, o ideológico, as palavras/signos, nessa concepção, refletem e refratam o
mundo. A refração significa que não apenas se descreve o mundo com signos, mas se constroem
diversas interpretações desse mundo a partir de diversos horizontes apreciativos dos grupos
humanos. Desse modo,

O enunciado pleno já não é uma unidade da língua (nem uma unidade do ‘fluxo da língua’ ou ‘cadeia da
fala’), mas uma unidade da comunicação discursiva, que não tem significado, mas sentido. (Isto é, um
sentido pleno, realizado com o valor – com a verdade, a beleza, etc. – e que quer uma compreensão
responsiva que inclua em si o juízo de valor.) (Bakhtin, 2016, p.103).

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471

No que concerne àcompreensão do enunciado, implica-se um horizonte espacial comum dos


interlocutores, implica-seo conhecimento e a compreensão comum da situação, implica-se a avaliação
comum e o seu direcionamento.A compreensão do enunciado implica sempre resposta.Toda
compreensão da fala viva, do enunciado vivo, é de natureza ativamente responsiva (graus diversos);
toda compreensão é prenhe de resposta, seja ao concordar, discordar, completar, aplicar entre
outras.
Desse modo, o enunciado é pleno de tonalidades dialógicas: tonalidade de expressão,
tonalidade de sentido, tonalidade de estilo, tonalidade de composição. Não há quem escreva sozinho,
luta-se com o pensamento/voz do outro desde a hora que se acorda até a hora que se vai dormir.

Todo enunciado tem sempre um destinatário (de índole variada, graus variados de proximidade, de
concretude, de compreensibilidade, etc.), cuja compreensão responsiva o autor da obra discursiva
procura e antecipa. Ele é o segundo (mais uma vez não em sentido aritmético). Contudo, além desse
destinatário (segundo) o autor do enunciado propõe, com maior ou menor consciência, um
supradestinatário superior (o terceiro), cuja compreensão responsiva absolutamente justa e pressupõe
quer na distância metafísica, quer no distante tempo histórico.”. (Bakhtin, 2016, p.104)

Assim, é possível considerar os postspublicados na rede social: Facebook como enunciados


concretos tendo em vista que foram/são construídos por sujeitossócio-historicamente situados,
sendo assim, pleno de totalidades dialógicas. Com essa perspectiva, nossa análise será feita dos posts
escolhidos para esse artigo.

3. METODOLOGIA

A pesquisa se orienta por uma abordagem qualitativa dos dados, considerando-se que os
sujeitos se constroem discursivamente e que interessa à Linguística Aplicada (LA) construir
inteligibilidade sobre práticas discursivas que se dão em esferas diversas da atividade humana.
A construção dos dados se dá a partir do enfoque de uma pesquisa qualitativa-
interpretativista, lançando mão da interpretação dos índices discursivos, a partir do paradigma
indiciário de Ginsburg (1990), que denunciam (escolhas lexicais, enquadramento do discurso alheio,
imagens) os posicionamentos, o axiológico e a visão de mundo dos sujeitos. O recorte se dá
temporalmente, delimitando-se um período de postagens que recobre o processo de impeachment da
presidente Dilma Rousseff nas páginas Verdade sem manipulação e Movimento EndireitaBrasil.
Contudo, atendendo as especificidades do gênero artigo e considerando sua limitação, nos
restringiremos a analisar, apenas, uma amostragem do corpus, especificamente, dois enunciados.

HETEROCIÊNCIA
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4. ANÁLISE DIALÓGICA DOS ENUNCIADOS

Figura 1. Print de um post da página Verdade Sem Manipulação

Fonte: https://www.facebook.com/VerdadeSemManipulacao/. Acesso em: 30.set.2017

Em meados de junho de 2013, a fanpage Verdade sem Manipulação foi criada na plataforma
Facebook. Encontra-se registrado nessa fanpage, na seção “sobre”, uma auto declaração, na qual o
sujeito(s) criador(se) da fanpageafirma(m) que a página possui o objetivo de esclarecer boatos e de
mostrar a outra visão de fatos que polemizam os meios de comunicação. Atualmente, registram-se
649.787 curtidas e 649.353 seguidores no Facebook.
O enunciado, cuja data é de 27 de março de 2016, constitui o período da pré-admissibilidade do
impeachment pela Câmara dos Deputados. Nesse período, houve vários embates e polêmicas acerca
de sua legalidade: uns afirmavam que o impeachment tinha base legal; outros afirmavam que o
impeachment, na verdade, era um golpe. Ao pôr o enunciado sob nossas lentes, é possível depreender
seu posicionamento sobre a polêmica em questão.
A fanpageVerdade sem Manipulação, cujo nome, na perspectiva bakhtiniana, nos remete a um
paradoxo,se posiciona sobre a polêmica de modo imperativo quando se dirige ao seu interlocutor
solicitando que ele “deixe de passar vergonha”ao comparar o impeachment sofrido pelo ex-presidente
Collor de Melo nos anos 90 com o “golpe” que estava sendo atentado contra, a até então, presidenta
Dilma Rousseff e, segundo a página, contra o povo. A página afirma,categoricamente, que são
situações completamente diferentes logo não cabe estarem sob o mesmo julgo. Por fim, a fanpagediz:
“Menos analfabetismos político por-favor”, o que nos leva a inferir que ela considera todos os que
estão coadunando com o posicionamento de que ambos processos de impeachment são legais e que
possuem a mesma base jurídica, são analfabetos jurídicos.

HETEROCIÊNCIA
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Figura 2. Print de um post da página Movimento Endireita Brasil

Fonte: https://www.facebook.com/VerdadeSemManipulacao/. Acesso em: 30.set.2017

A fanpage Movimento Endireita Brasil iniciou suas postagens no Facebook em junho de 2009.
Na página afirma-se ter como missão identificar e apoiar pessoas e ideias, que possam transformar o
cenário político brasileiro em um ambiente onde a estrita observância da moral e da ética seja regra
e não exceção, dentro de um Estado Democrático de Direito. Até a data de acesso, possuía 671.233
curtidas e 654.239 seguidores no Facebook.
O post elencado, da fanpage MovimentoEndireita Brasil, cuja data é de 14 de abril de 2016,
assim como o enunciado analisado anteriormente, constitui o período da pré-admissibilidade do
impeachment pela Câmara dos Deputados. Ao analisá-lo fica evidente o posicionamento da página
sobre a polêmica em questão. O enunciado analisado, resgata um período da história da democracia
brasileira no qual houve um outro processo de impeachment cujo presidente, na época, renunciou
como sugere a expressão no post “pede pra sair”. Esse enunciado é bem conhecido nas redes
sociais. “Pede pra sair” viralizou como meme após ser utilizado pelo Capitão Nascimento, personagem
principal do filme Tropa de Elite, durante um treinamento exaustivo de caráter eliminatório, ao se
dirigir a policiais corruptos que queriam ingressar na corporação do BOPE a fim de que eles,
subjugados como fracos, desistissem.
Fica evidente a equiparação, equivocada, que a fanpage faz dos dois processos de
impeachment mencionados. O post, ao se dirigir a até então presidenta Dilma Rousseff, por meio do
vocativo bem demarcado no texto verbal, sugere, além da renúncia, que ela possui proximidade com o
ex-presidente Collor ao fazer uso do termo “amiguinho” e ao fazer isso, discursivamente, fica explícito

HETEROCIÊNCIA
474

que o objetivo da postagem é associar a imagem da presidenta, que não possuía nenhuma acusação
de crime de responsabilidade administrativa que causasse dolo à nação (o que era requisito jurídico
básico para a admissibilidade do impeachment), a péssima e desgastada imagem do ex-presidente
Collor que renunciou poucas horas antes do seu julgamento. Outro indício que reforça essa
associação de imagens é a imagem vinculada logo abaixo do texto verbal na qual a presidenta está
olhando para um espelho e ao invés de ter sua imagem refletida vê a imagem do ex-presidente que
também está utilizando a mesma faixa presidencial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao nos debruçamos sobre a análise dos posts selecionados, que aqui se limita a uma
amostragem do corpus da pesquisa em andamento, a fim de atender as especificidades do gênero
artigo e considerando sua limitação, observa-se que são construídos e constituídos por sujeitos e são
dotados de historicidade. Sendo assim, podem ser implicados como construtos sociais e, por isso,
podem ser considerados com enunciados concretos. Pois, os posts analisados, no presente trabalho,
são dotados de dialogismos, não se trata de analisar frases abstratas, todas as postagens aqui
analisadas refletem e refratam visão, ideologia e posicionamentos de sujeitos que estão na vida.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Para uma Filosofia do Ato. Tradução, não-revisada e de uso didático e acadêmico, de C. A. Faraco e C.
Tezza. 1993.
_____. Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2016.
_____. Teoria do romance I: A estilística. São Paulo: Ed. 34, 2015.
_____. Problemas da poética de Dostoiévski. 5ª ed., Rio de janeiro, forense universitária, 2010.
______. (VOLOSHINOV, V. N.). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na
Ciência da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
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475

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HETEROCIÊNCIA
RESUMO
476
Pesquisadores tem se dedicado aos estudos da
linguagem, refletindo sobre as práticas discursivas
e as tomadas de posição dos sujeitos. A

O DISCURSO DO OUTRO: a discursividade constitui-se nos momentos


discursivos tomados pelos sujeitos enunciativos, os
valores, as vozes, as manifestações do eu e do
ideologia do sujeito autor e heterodiscurso outro, enquanto sujeitos são reveladas através de
elementos linguísticos e discursivos. O trabalho
objetiva analisar as vozes que permeiam o discurso,
considerando o discurso citado como elemento
responsável pela presença do outro e pelos
posicionamentos discursivos, bem como as
manifestações do outro no discurso. A pesquisa é
PENHA, Dalva Teixeira da Silva98 de cunho qualitativa. Faz-se uma análise em textos
acadêmicos, mais precisamente, monografia de
graduação, pretende-se também conhecer a
formação ideológica dos sujeitos a partir do
discurso do outro. Os dados revelam que os sujeitos
são axiológicos e seus discursos mostram que a
ideologia se constitui a partir do heterodiscurso. O
aporte teórico que orienta a pesquisa advém da
1. INTRODUÇÃO concepção dialógica de linguagem
Volochinov/Bakhtin (1997, 2003), e de

N
estudiososseguidores do escritor russo, como Brait
as relações sociais dialógicas, usamos a linguagem para (2005); Faraco (2009); faz-se menção também às
realizar nossas ações discursivas e interagir com o outro, contribuições teóricas de Maingueneau (1989). Para
a discussão e a análise, retoma-se às contribuições
como sujeito do discurso e parceiro nas relações discursivas. de MOTTA-ROTH; MEURER (2002; 2010). Os
Segundo Bakhtin (2008, p. 209)," as relações são resultados mostram que a dialogicidade da
linguagem propicia ações discursivas ideológicas e
extralingüísticas. Ao mesmo tempo não podem ser separadas do formadoras do sujeito-autor.
campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral
Palavras-Chave: Discurso. Posicionamentos.
concreto.” Nesses dizeres, ficamos cientes de que a comunicação só Ideológicos
acontece dentro das relações dialógicas, no verdadeiro campo da
vida, impregnada de elementos sociais e culturais que constituem os
sujeitos do discurso.
Podemos ver, assim, que a linguagem não existe se não for no social, nas relações entre os
sujeitos. É, portanto, a comunicação dialógica que dá vida à linguagem, em cujos campos da linguagem
são imprescindíveis as relações dialógicas.
Muitas pesquisas nos últimos anos se dedicaram à dialogicidade, mais especificamente no que
se refere às práticas de linguagem acadêmicas. O texto acadêmico foi alvo de muitos pesquisadores, e
a maioria deles quis romper com o que diz os manuais de redação cientifica, quandoafirmam que o
discurso cientifico é objetivo e isento de singularidades. O pensamento desses pesquisadores (PENHA
2010) e outros; é de que o texto acadêmico traz singulariades dos sujeitos e vozes de outros sujeitos.
Podemos conferir também em (NUNES E FLORES, 2008); (PEDROSA, MATOS e MELO, 2012), nessa
perspectiva, nosso trabalho objetiva analisar as vozes que permeiam o discurso, considerando o
discurso citado como elemento responsável pela presença do outro e pelos posicionamentos
discursivos, bem como as manifestações do outro no discurso.

981 Aluna do curso de pós-graduação em Letras – PPGL (Programa de Pós - graduação da Universidade Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
E-mail: dalvinhateixeira@yahoo.com.br.

HETEROCIÊNCIA
477

Tomando por base esses estudos é que nos propomos a realizar um estudo que tem o outro
como imprescindível para a dialogicidade da linguagem acadêmica.
Faremos aqui um recorte de uma pesquisa institucional, realizada por nós na UERN, Autoria no
gênero monografia, na qual analisamos autoria no texto monográfico, mas em parte dessa pesquisa
discutimos a relação eu e outro. Neste recorte, trazemos os discursos usados pelos sujeitos no texto
acadêmico, mencionamos como esses sujeitos são citados. Para orientar essa nossa pesquisa,
trazemos a seguinte questão de pesquisa: como os estudantes das monografias analisadas citam o
discurso do outro e que posicionamentos discursivos são possíveis perceber no discurso do outro.
Trazemos para o nosso trabalho, o discurso de duasmonografias das cinco por nós analisadas, para
esse recorte de apenas duas monografias, fizemos um sorteio.
Teoricamente, o nosso trabalho se respalda em Bakhtin (1990, 2006), na sua concepção de
dialogismo e de discurso citado; Maingueneau (2002), Brait (2006 2008). Retoma também
ascontribuições de Motta-Hoth e Meurer (2002; 2010).

2. O DISCURSO DO OUTRO: o que diz Bakhtin

O discurso não remete somente ao conteúdo do discurso, mas inclui-se no outro discurso, em
sua estrutura sintática, integrando de forma composicional.
Em “Marxismo e Filosofia da linguagem”, Volochinov (1997, p. 144) afirma que “O discurso
citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente na
origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do contexto narrativo.”
Assim, vemos que o discurso citado é autônomo, passa de um contexto para outro sem perder
a sua estrutura e seu conteúdo semântico. A enunciação, no contexto em que é transmitida,
pressupõe uma terceira pessoa, ou seja, a pessoa a quem está sendo transmitida. E é essa terceira
pessoa que reforça a influência das forças sociais organizadas sobre a força da opressão do
discurso. (VOLOCHINOV, 1997).
Desse modo, é necessário que sejam consideradas as características das condições de
produções e suas finalidades, pois é o contexto situacional que contribui para o processo de
apreensão ativa do discurso.
As formas como demarcamos o discurso alheio (discurso direto ou indireto) não são
promissoras para a apreensão ativa e apreciativa do discurso do outro. Essas formas são
padronizadas, porém só ganharam forma de acordo com as tendências dominantes de apreensão do
discurso do outro; isto é, as formas da língua influenciam, estimulam ou inibem o desenvolvimento das
tendências da apreensão apreciativa do discurso.
Nesse contexto, é evidente que a língua, de acordo com a situação, a época ou os grupos
sociais, determina as variantes e formas de uso. Atendendo, pois, às especificidades de épocas, e de
grupos, a língua se transforma, ao longo do tempo, em lugares específicos.

HETEROCIÊNCIA
478

Nas relações sociais dialógicas, apoderamo-nos do discurso do outro para refutar, discordar,
validar. As vozes que permeiam nossos textos são vozes sociais e históricas, que expressam pontos
de vista.
Na heteroglossia dialogizada, conforme afirma Bakhtin (2003), há o confronto de pontos de
vista, há aceitação, encontros, desencontros. Nessa luta travada pela linguagem, em que as vozes se
contrapõem, destacam-se as forças centrífugas, que nos impõem verdades. Essas forças referem-se
aos grupos de que fazemos parte, como família, academia, associações, etc.
Daí, vemos que são essas convenções sociais que nos impõem normas, valores e ações
discursivas, dentro do padrão exigido por elas. Portanto, assim como nos assegura Volochinov (1997,
p. 146),
É preciso levar em conta todas essas características da situação de transmissão. Mas isso não altera
em modo a essência do problema. As condições de transmissão e suas finalidades apenas contribuem
para a realização daquilo que já está escrito nas tendências da apreensão ativa, no quadro do discurso
interior; ora essas últimas só podem desenvolver-se, por sua vez, dentro dos limites das formas
existentes numa determinada língua para transmitir o discurso.

Assim, vemos que o contexto é imprescindível na produção do discurso, pois este se processa
considerando as condições de produção, bem como os interlocutores, ou seja, leva-se em conta o
auditório social, para a articulação dos discursos.
Por outro lado, para a apreensão do discurso por parte desse auditório social, Volochinov
(1997, p. 147) nos diz que: “Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o
que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior.”
Assim, no processo discursivo, os sujeitos, nas relações dialógicas de enunciação de outrem,
apreendem e apreciam, e isso pode ser significativo para a produção dos seus próprios discursos; e
faz com que existam suas réplicas nos planos dialógicos que funcionam na dinâmica das relações
sociais.
Parafraseando Ponzio (2008), podemos dizer que na nossafala está sempre a fala do outro e
que utilizamos as mais diferentes formas de demarcar o discurso do outro, destacamos a palavra do
outro através de aspas, comentários,crítica, repudio, etc.
Assim, percebemos que nossos discursos orais ou escritos pressupõem outros discursos,
isto é, constituem-se a partir de outros, esse ponto de vista está intimamente ligado ao que diz Ponzio
(2008, p. 102):

Todo texto, escrito ou oral, está conectado dialogicamente com outro texto. [...] Portanto, toda palavra
que se expressa de forma concreta, ou seja, toda enunciação, nunca é unidirecional: enquanto expressa
seu próprio objeto, expressa direta ou indiretamente sua própria posição acerca da palavra alheia.

Em relação à estrutura sintática do discurso citado, existem diferentes modelos e variantes,


e, geralmente, pode-se dizer que esses “modelos sintáticos são os do discurso direto, indireto, e
semi-indireto ou indireto livre”. (VOLOCHINOV 1997 p. 145)

HETEROCIÊNCIA
479

Desse modo, convém lembrar que as enunciações, enquanto instrumentos de comunicação


discursiva não condicionadas às condições mutáveis da comunicação sócio - verbal, são determinadas
pelas condições sociais e econômicas da época, em se tratando da transmissão do discurso de
outrem.
Discutiremos, a seguir, a inserção de voz na cuja categoria de análise retoma todas as outras
mencionadas e discutidas, pois é notório que a singularidade ou subjetividade do sujeito é uma forma
do próprio sujeito se inserir no seu texto; constituir-se, de forma pessoal, sujeito do seu dizer.
A inserção de voz podeacontecer através do distanciamento do texto ou impessoalidade,
percebemos essa categoria no texto, quando o autor se manifesta através da voz do outro, o sujeito
apresenta e discute a temática em questão, usando o discurso de outro autor, no qual, ele se baseia
para fundamentar seu ponto de vista.
A manifestação de ponto de vista ou posicionamento, acontecequando o sujeito-autor discute
a temática por ele trabalhada e opina, critica, comenta. Nessa categoria, é a partir da abordagem
teórica que o autor desenvolve o seu texto; ele discute o tema e faz comentários, críticas, apresenta
sugestões, argumenta, de maneira precisa e eficiente, com o intuito de convencer, e, às vezes, até
persuadir seu leitor. Essa é, pois, uma das mais significativas inserções de voz no texto, uma vez que é
o sujeito-autor do textoque se insere no seu próprio texto.
Como manifestar ponto de vista, ou posicionar-se? O sujeito-autor faz isso, a partir do
discurso do outro; os seus comentários têm por base a teoria discutida no texto do outro. É bom
relembrar que, como diz Bakhtin (2003) “[…] em qualquer enunciado, quando estudado com mais
profundidade em situações concretas de comunicação discursiva, descobrimos toda uma serie de
palavras do outro [...]. Assim, conforme o pensamento de Bakhtin (2003), vemos que os enunciados
são permeados pelas vozes dos outros, ou seja, é “[…] um elo na cadeia da comunicação discursiva e
da relação com outros enunciados a ele vinculados”.
Dessa forma, como as vozes se misturam, é bom ter consciência de que o sujeito-autor pode
se constituir sujeito, mesmo usando o discurso do outro, parafraseando-o quase que igual ao texto do
outro. A inserção de voz está inserida, também, na categoria demarcação do discurso alheio, pois,
quando o autor usa discurso direto, indireto ou indireto livre, está incorporando ao seu texto outras
vozes.
Desse modo, fica claro que o discurso citado ou reportado é uma enunciação sobre outra
enunciação, por isso deve ser a refratação da palavra do autor, isto é, o sujeito-autor deve citar o
discurso do outro, entendendo-o e interpretando-o. Assim, deve haver entre os dois discursos
relações dialógicas.

HETEROCIÊNCIA
480

3. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DO DISCURSO DO OUTRO COMO FORMA DE AUTORIA

Para a analisarmos o discurso do texto no texto acadêmico, fazemos uso de duas monografias
de alunos do Curso de Letras Vernáculas (DLV), do Campus Avançado Profa. Maria Elisa de
Albuquerque Maia (CAMEAM), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
A monografia número 1 que tem por título: “Argumentação e ensino: as teses sobreoensino de
gramática no curso de letras”, o trabalho tem por objetivo identificar as teses defendidas pelos
professores sobre o ensino de gramática, no curso de Letras da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN).
O corpus se constitui de três entrevistas, aplicadas aos docentes de cada habilitação, a saber:
um professor da habilitação de língua portuguesa, um de língua inglesa e um de língua espanhola,
sendo que analisamos duas questões de cada entrevista.
Nesse trabalho podemos indicar como marcas de autoria as inserções de voz que se dão
através do discurso citado através de paráfrase, de discurso direto e de discurso indireto.
No trecho que segue podemos ver a inserção de voz no discurso citado através de paráfrase:
Depois de um longo período, entre declínios e ascensões, a retórica é retomada. Em
contraponto ao pensamento Cartesiano, que considerava a razão da lógica como único caminho a se
chegar à verdade, Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005), vêm mostrar na obra “Tratado
da Argumentação” que a ciência matemática não deve ser vista como o único meio de promover o
raciocínio.
Veja mais uma inserção de voz em forma de paráfrase:

Perelman-Tyteca (2005) resgatam a retórica Aristotélica configurando uma nova retórica que, através
de suas técnicas de persuasão, seja capaz de complementar a atividade racional, mostrando que a
razão não é fruto apenas de cálculos ou provas irrefutáveis.

O sujeito se constitui autor quando dá voz ao outro através de citação direta:

Como o fim de uma argumentação não é deduzir consequências de certas premissas, mas provocar ou
aumentar a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento, ela não se
desenvolve nunca no vazio. Pressupõe, com efeito, um contacto de espíritos entre o orador e o seu
auditório: é preciso que um discurso seja escutado, que um livro seja lido, pois, sem isso, a sua ação
seria nula. (PERELMAN, 1993, p. 29)

Veja mais uma citação direta que mostra a voz do autor:

[...] na argumentação, tudo que se presume versar sobre o real se caracteriza por uma pretensão de
validade para o auditório universal. Em contrapartida, o que versa sobre o preferível [...] será ligado a
um ponto de vista determinado que só podemos identificar com o de um auditório particular, por mais
amplo que seja.

HETEROCIÊNCIA
481

Podemos ver que o discurso do outro é uma forma do sujeito autor constituir o seu dizer, e é
manifestado das mais diversas formas, o discurso indireto é também uma forma de autoria, vejamos:

De uma forma ou de outra, isso é o que conhecemos por ethos. Caráter do orador que, sem dúvida,
influenciará no conjunto de características exigidas ou esperadas por determinado auditório de seu
locutor. Este deverá se mostrar em condições mínimas de credibilidade, pois o auditório deve ser
envolvido no discurso pela credibilidade, forjada no discurso – ethos discursivo – ou não, do locutor.

O discurso indireto consiste na voz do autor com base nos autores que ele leu para o
embasamento teórico, esse tipo de discurso se confunde com a paráfrase.
A monografia nº 02 tem por título: “Da universidade à educação básica: as teses acerca do
ensino de gramática defendida por docentes” refere-se a uma pesquisa uma realizada com os
docentes do ensino fundamental, médio e superior do CAMEAM e tem por objetivo: analisar o discurso
dos docentes de língua portuguesa da educação básica ao ensino superior, bem como as concepções
dos professores em relação ao ensino de gramática.
A autora faz o seguinte comentário a respeito de ethos:
O ethos do professor da escola básica, ensino fundamental e do ensino superior são
semelhantes. Pois eles defendem uma pratica de ensino de gramática ligada a uma perspectiva
interacionista. Enquanto que a do ensino médio está mais distanciada do ensino relacionado com a
interação, tendo em vista que ele defende o ensino da gramática voltado para a gramática normativa e
descritiva.
A autora define bem o ethos,e também apresenta o conceitodepathos,e de logos. Essas
definições são feitas com base no pensamento de outros autores, podemos dizer que esta é uma
forma de manifestar autoria, quando parafraseamos outros autores e como ela apresenta esses
conceitos como discurso dela, é também autoria por manifestar posicionamentos. Há uma mistura de
discurso direto e comentários. Vejamos os conceitos de ethos.
Para Meyer (2007), o ethos é uma excelência que não tem objeto próprio, mas se liga à
pessoa, à imagem que o orador passa de si mesmo e que o torna exemplar aos olhos do auditório, que,
então, se dispõe a ouvi-lo e a segui-lo.Portanto, ao proferir o discurso o orador deve despertar o
interesse dos seus interlocutores, transmitindo confiança e credibilidade àqueles a quem pretende
persuadir.
Nos dizeres de Reboul (2004, p.48), “O ethos é o caráter que o orador deve assumir para
inspirar confiança no auditório, pois, sejam quais forem seus argumentos lógicos, eles nada obtêm
sem essa confiança”. Isso implica dizer que o orador ao argumentar necessita revelar aos ouvintes
suas qualidades e pretensões, transmitindo-lhes confiança, por meio da imagem que está sendo
projetada.
Mostramos alguns conceitos de pathos,apresentados pela autora:

HETEROCIÊNCIA
482

No processo de construção do discurso, temos também como parte integrante o pathos, que
“é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no auditório com o seu
discurso” (REBOUL, 2004, p.48).
A guisa de conclusão, podemos acrescentar segundo Meyer (2007, p.36) que “Se o ethos
remete as respostas, o pathos é a fonte das questões e estas respondem a interesses múltiplos, dos
quais dão prova as paixões, as emoções ou simplesmente as opiniões”. Por essa razão, “[...] o orador
deve levar em consideração as paixões do auditório, pois, se elas exprimem o aspecto subjetivo de um
problema, respondem a ele também em função dos valores da subjetividade implicada”. (MEYER, 2007,
p.36).
Vejamos o que a autora diz sobre o logos:[...] o logos que se trata daquiloque você vai dizer.
Desse modo, é preciso sempre considerar esses elementos para que, possamos alcançar os fins
pretendidos ao longo do discurso.
Assim, evidenciamos que a autora através do discurso do outro parafraseia, comenta e
manifesta posicionamentos, e isso são formas de autoria. Vejamos mais comentários da autora, o que
assegura uma forma de autoria que especificabem o posicionamento do autor.
Assim, compreendemos que a argumentação é uma forma de interação que se dá por meio do
discurso, no qual podemos interagir uns com os outros, expondo nosso ponto de vista de modo que,
possamos vir a influenciar a opinião dos nossos interlocutores.
Nesse sentido, essa imagem se constitui por meio do discurso, não se limitando apenas aquele
que argumenta, uma vez que é preciso considerar os seus ouvintes.
Com base no exposto, podemos observar que a dedução é um ato em que partimos de uma
realidade mais geral a fim de obtermos explicações mais particulares, sendo esse um método que nos
proporciona partir do que é conhecido para assim se chegar ao desconhecido.
Com base nos comentários apresentados, consideramos que autoria é um elemento
discursivo e centrado na dialogicidade do discurso, nenhum autor parte de um discurso único, o
discurso é bivocal e as vozes retratam o social e trazem para o texto a cultura, os costumes, os
valores, a singularidade. Ser autor é ser único, mas é ser constituído a partir do outro.

4 CONCLUSÃO

O sujeito constitui-se das múltiplas relações com outros sujeitos do discurso. Assim,
evidenciamos que ser autor é estar imerso em um processo axiológico de relações, as quais são
valoradas. É, portanto, nesse processo discursivo, que o discurso é tido como social, uma vez que é
efetuado, conforme ações discursivas, considerando alguns elementos dessas ações, tais como: o
contexto sócio-ideológico dos sujeitos, e os sujeitos com os quais se dialoga.
A autoria é expressa, também, pelo uso do discurso do outro, manifestado de diferentes
formas: direto, indireto, indireto livre ou entre aspas. Dessa forma, a autoria é dar voz ao outro. É
travar diálogo com outra consciência.

HETEROCIÊNCIA
483

As diversas formas de manifestação do discurso do outro, como discurso direto, discurso


indireto e paráfrase revelam a autoria do sujeito a partir do discurso do outro.
Os posicionamentos feitos pelo sujeito-autor são forma de autoria em que o sujeito assume e
define posição ideológica, ou seja, apresenta ponto de vista e deixa expressa a sua ideologia.
Dessa fora, concluímos que constituir-se autor é apresentar ponto de vista, a partir do
discurso do outro, podemos constatar isso no texto acadêmico, nele o autor expõe seu ponto de vista.
Ser autor é, portanto, manifestar-se; é refratar, aceitar, negar, julgar; isso ocorre quando o sujeito-
autor se enquadra no texto por ele produz.

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HETEROCIÊNCIA
RESUMO
484
O trabalho que segue advém do artigo monográfico
em licenciatura, do curso de Ciências Sociais. Ele
trata da experiência no projeto de extensão Vídeo e

PIRAJUY: experiência e escrita Transmissão de Conhecimento em aldeias Guarani.


A equipe do Laboratório do Filme Etnográfico
organizou oficinas de vídeo em aldeias Mbyá, em
bakhtiniana Maricá, Kaiowá, em Campo Grande, no Mato Grosso
do Sul e Nhandeva, em Pirajuy, também no Mato
Grosso do Sul. Este trabalho, especificamente se
deteve a última, devido ao caráter intenso e
transformador da experiência em campo, tanto
para a equipe do laboratório, quanto para os
próprios Nhandevas. No entanto, era preciso voltar
RODRIGUES, Giulia de Vito Nunes 99
no texto, a partir de uma ciência outra, uma ciência
de orientação dialógica, em que não se fala sobre,
RODRIGUES, Rajnia de Vito Nunes100 mas com as pessoas, uma de frente para a outra,
em termos de palavra e contrapalavra.

Palavras-Chave: Experiência. Autoridade


Etnográfica. Escrita Dialógica

INTRODUÇÃO

A
oficina na aldeia Pirajuy, Paranhos, dos Guarani Nhandeva, foi a mais intensa, aqui houve
experiência. Experiência não é informação. Esta nos entrega algo que não sabíamos antes, como
ao ler um livro, um jornal, como ao fazer uma viagem ou ir à escola. Mas não, necessariamente
nos toca ou afeta ou produz conhecer. Experiência também não é opinião. Esta é o que sujeitos
modernos e informados têm como distinção de quem sabe e de quem está em falta. A opinião se
constrói a partir da aquisição de capital cultural. Quem não pode adquiri-lo, não tem uma opinião
válida ou argumentos suficientes. Entretanto, a doxa também não é experiência.
Experiência é tampouco sinônimo de trabalho. Este exige uma postura ativa e impositiva com o
mundo. O sujeito moderno, além de ser um sujeito informado e transbordante de opinião, é um sujeito
que deseja o que não é, que deseja conformar o mundo à natureza e à sua natureza, de acordo com os
seus imperativos.
O que esse sujeito consegue é que nada lhe aconteça, nada lhe toque, nada o ameace. Já o
sujeito da experiência é um sujeito exposto, tombado, que saboreia os acontecimentos de acordo com
o que eles fazem com o seu corpo. Isso exige uma abertura essencial, uma disponibilidade
fundamental a toda a vulnerabilidade e risco que uma experiência pode trazer.
Passamos duas semanas alojados em uma escola, junto com os Nhandevas de outras aldeias
ao redor como Amambai e Limão Verde. Também participaram os Kaiowá de Panambizinho e os Mbyá
de Maricá. Dessa vez, além de Verá Mirim, contamos com Luciana Pará Poty, sua filha, Para’í, sua tia
Taita, Minju e seu irmão Kuaray; e, Uanderlei, da aldeia Mbyá de Itaipuaçú. Tivemos também a
participação de Alberto Alvares, cineasta, ator e professor das línguas Guarani.

99 Graduada em Licenciatura em Ciências Sociais. Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Formada em Montagem e
Edição pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro. E-mail: giulia.vnr@gmail.com.
100
Graduada em Relações Internacionais, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-Graduação em Sociologia, pela Universidade Federal
Fluminense, em andamento. E-mail: rajnia.vnr@gmail.com.

HETEROCIÊNCIA
485

A oficina ficou dividida em duas partes, nos primeiros cinco dias, tivemos o FIDA, Fórum de
Inclusão Digital nas Aldeias, organizado pela ASCURI, com Gilmar Galache e Eliel Benites. Com o apoio
da UFF, o projeto viabilizou a vinda do professor convidado Ivan Molina, que tem experiências com
oficinas de vídeo com etnias localizadas na Bolívia, como os Aymaras e os Urus, povo d’água.
Eles mostraram filmes produzidos por etnias indígenas da Bolívia, propuseram exercícios de
animação, como a feitura de um objeto que simula algo muito parecido com os frames de um material
digital, através de quatro desenhos diferentes, mas seguidos temporalmente, colados em um lápis ou
um galho, que ao girar, criava-se movimento. Algo como desenhar na ponta de algumas folhas
seguidas e passá-las rapidamente, como um pequeno filme. Aqui, me chama atenção um paralelo entre
a minha hipótese de que a etnografia não é exclusiva dos antropólogos, do mesmo jeito que o cinema
não é exclusivo aos cineastas, mas de todos aqueles que vivem e se deslocam, deslocam seu olhar, a
partir de tilts, panorama e plongée.
Propuseram também algumas práticas iniciais com a câmera, o gravador de som, o
microfone, a fim de produzir, em pequenos curtas, uma história em poucos planos. Já preparando
para os próximos dias de oficina que a equipe do Laboratório do Filme Etnográfico havia preparado.
Enfim, a oficina começa. Todos prontos para contar uma história. O grupo ao qual fui
designada era o grupo que elegeu trabalhar o tema da escola guarani. Todos os dias, os jovens
Nhandeva tem que acordar muito cedo e pegar um ônibus que vai para a cidade, levá-los para ter aula
na escola dos brancos, onde são chamados de bugres, onde a língua não é o guarani, mas o português,
onde aprendem sobre matemática, física, geopolítica internacional e nada do que pode ser importante
para eles.
A educação carece de espaços de interlocução, como Kelly Cristina Mota (2007) deflagra. A
autora defende que são poucos circuitos acadêmicos que oferecem esse espaço, que é preciso criar
mais eventos científicos para que os professores troquem com seus pares. No entanto, eu percebo
que existe um enclausuramento desse espaço de interlocução, como se ele apenas pudesse se dar
dentro de paredes, principalmente paredes da academia. E como se essa interlocução só pudesse se
dar com cientistas. Essa é uma visão que exclui as pessoas, as que vivem as relações sociais, as que
poderiam contribuir enormemente com sua experiência e com suas interrogações, para produzir um
espaço acadêmico de construção horizontal e, definitivamente, uma discussão mais complexa. Apoio-
me em Viveiros de Castro quando ele fala que a antropologia pertence ao grand dehors, ao ar livre,
esse é seu elemento natural e cultural. Em paralelo, é possível pensar que talvez o lugar da educação,
do conhecimento, não é a escola, mas onde as pessoas estão e estão porque desejam estar, não
porque são obrigadas.
Na Oficina foi produzido um outro filme sobre a escola. A história pessoal de uma das jovens
que participou da oficina, Mita Cunha Arandu. Esse filme conta a história das violências cotidianas que
ela sofreu na escola dos brancos, indo ao limite de internarem a protagonista em um hospital
psiquiátrico, por se rebelar contra os professores que diziam que ela era burra, que ela não entendia
nada.

HETEROCIÊNCIA
486

Também teve filme sobre a oficina e teve filme sobre as tradições, com depoimento dos mais
velhos. O narrador, aqui, não é o detentor do saber ou da fala, mas aquele que demonstra a
capacidade de acessar e mobilizar saberes. De acordo com Trinh Minh-Ha (1991), a narração faz com
que a verdade seja uma construção e além. Os limites entre verdade e mentira são multiplicados,
revertidos e deslocados. Nesse caso, nomear só pode ser transitório, posicional e não consegue fixar
significado nem engendrar verdades. A narração é inseparável da dimensão da criatividade.
Na condição de falar pelo outro, nomear no lugar do outro, conhecimento é vinculado a
competência e qualificação, palavras que servem bem a uma postura produtivista, típica da
experiência em instituições formadoras de conhecimento. Seguindo essa lógica, verdade fica no
singular e equiparada a algo que se captura, que se perde, que se descobre. No entanto, narração
nunca é uma reflexão passiva e encerrada em si mesma, ela só pode ser isso, enquanto opera a
representação. A Antropologia Compartilhada não opera pela representação, nela não se fala pelo
outro, nem sobre o outro, mas com o outro.
Na oficina, depois veio a montagem. Fomos orientados por Ivan Molina, durante esse período,
sob um regime rigoroso; as jornadas dos grupos de edição iam das 7h às 3h da manhã. A dança ficou
para depois. Isso foi um problema. Os Nhandeva não dançavam e cantavam há 40 anos e agora não
queriam mais parar. Mas pararam, às ordens de Ivan, para editar. Ao mesmo tempo, fui percebendo
que quando eles não desejavam estar ali editando, eles iam dormir mais cedo ou iam tomar tereré. As
artimanhas acontecem de mil jeitos diferentes.

Neste ano, ingressamos no grupo bakhtiniano Atos, da UFF e Giulia entrou no projeto Pibic
sobre autorias infantis. Atualmente, a pesquisa se encontra no momento de aprofundamento da teoria
do Círculo de Bakhtin. Neste semestre, tivemos como eixo principal a relação arquitetônica entre
autor e personagem na obra artística. Essa relação, na vida e com os interlocutores da pesquisa, é o
ato responsável. Ele é uma posição radical de alteridade aberta com o outro. Nesse caso, nossa
tentativa vai na contramão da objetificação das crianças com quem dialogamos, portanto não
podemos escrever sobre elas, mas com elas. Por isso, nesse semestre, focamos na escrita dialógica
e polifônica que Bakhtin estuda na relação de Dostoiévski com seus personagens, para criarmos uma
escrita outra, uma relação outra e uma escola outra. Esses exercícios, que cotejam com o filme
Neruda de Pablo Larrain, farão parte de um livro de metodologia de escrita de pesquisa, que devemos
publicar em breve.
Organizamos um evento de lançamento do livro da participante do grupo Atos, Denise Lima
Tardan, que conversou conosco sobre a escuta atenta e as consequências desse alargamento. Denise
cria planos estéticos, por meio de cartas que trocou com seus alunos, em um diálogo de frente e
aberto. Ela nos ensina que a alfabetização, por meio das cartas, cria novos sentidos para a escola e

HETEROCIÊNCIA
487

para a realidade. A professora Sandra Lima também estava na conversa e nos ajudou a pensar ainda
mais possibilidades com os gêneros discursivos.
Esse encontro com as professoras e com o filme Neruda, ajudou-nos inclusive no processo de
escrita da defesa de dissertação e das teses das participantes do grupo Atos. Miza nos apresentou ao
Toumani e à palavra mandingue, através de ensaios e menipéias, enquanto que Angélica nos
apresentou às crianças da sua escola, por meio de roteiros cinematográficos e Maria Letícia , o
pássaro de Galeano e várias outras vozes, nos mostraram que crianças são artistas enquanto falam e
brincam. Todos do grupo saíram ainda mais potentes dessa experiência e tivemos certeza que o
caminho é pela literatura como teoria social decolonizante.
Durante a disciplina eletiva Tópicos Especiais em Linguagem, Cultura e Processos Formativos:
Estudos Bakhtinianos, além de participar na sistematização dela, fazendo as listas de presença e os e-
mails, participei como aluna e pude conversar com outros pesquisadores que também estudam o
Círculo de Bakhtin e fazem recortes diferentes da teoria. Valdemir Miotello nos trouxe sua leitura,
principalmente do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, de Volochinov; Luciano Ponzio nos explicou
sua abordagem sobre a afiguração artística; e Augusto Ponzio nos explicou sobre o Cronotopo, como
uma unidade que atravessa todo o trabalho de Bakhtin.
Por estar apenas há três meses na pesquisa, estamos ainda no processo de aprofundamento
da teoria bakhtiniana, através das leituras e dos exercícios de escrita. No entanto, é preciso ser dito
que cada encontro, que organizamos e participamos, alargou radicalmente nossa teoria, nossa visão
de mundo, de escola e das crianças. Todos esses encontros, sejam presenciais, inventados pela
literatura, mediados pelo livro ou via Skype, nos fazem hoje ter clareza sobre o projeto de sociedade e
de mundo que precisamos construir, sobre como deve ser feito, no nosso caso, e quando falo nosso,
quero dizer o grupo Atos, que nossa luta é na palavra. Buscamos não a palavra neutra, mas
conscientes das disputas ideológicas que a palavra carrega, buscamos o confronto dialógico e
alteritário contra a palavra que mortifica, a palavra objetificante.
Segue abaixo o desenvolvimento de um exercício de escrita, revisando a nossa experiência em
Pirajuy, tentando uma revisão crítica junto à heterociência e à relação autor e personagem de
Bakhtin:

1.
Já faz muito tempo. três anos quase. Ela nem deve lembrar dessa conversa. Eu lembro de um
pedacinho só. Eu posso sentir acontecendo de novo. Não entendia do que se tratava e esperei que ela
terminasse de falar. Eu tive um câncer no peito. Eu até tenho uma marca que eu tenho vergonha de
mostrar para os meninos. Lembro de ficar imaginando se ela tirava o sutiã quando se deita com os
meninos, ficava imaginando também se era uma marca tão grande assim, se era feia, duvido que fosse
feia. Marcas não conseguem ser feias, mesmo que quisessem, mesmo que rasgassem o corpo todo.
Tadinho do meu pai, ele já sofreu tanto. Já me levou tantas vezes ao hospital. Achou que eu iria
morrer. Eu não morri lá, mas agora eu acho que eu vou morrer. Eu devo ter respondido como todas as

HETEROCIÊNCIA
488

outras vezes, como se eu não estivesse mesmo lá presente e tivesse engolido um frasco de frases
feitas que tiram um sorriso amarelo e nos tiram da conversa. Fugi, fiz o que sei fazer melhor. Acho
que agora era um momento silencioso, aproximavamos-nos da casa do Seu Eduardo e vimos Lisandrea
e seus vários irmãos e filhos tomando tereré à sombra das casas de taipa. Fitamos olhares, mas não
acenamos. Com certeza eu estava adiando ao máximo aquela visita. Se eles não resolvem entre si
suas questões, como é que por algum momento eu pude pensar que eu resolveria alguma coisa. Eu
devo ter estragado tudo, como sempre. Talvez não, já faz bastante tempo, talvez agora seja seguro
voltar, talvez eu tenha uma segunda chance em Pirajuy. A conversa seguiu sobre nossas possíveis
tendências lésbicas.

1.1 Comentário

Percebi que em minha primeira tentativa, não consegui sair da autoexpressão. Ou seja,
continuei escrevendo de modo monológico. Na tentativa seguinte, experimentei nomear o meu outro, o
do texto, com o nome de Natacha, a fim de tentar uma distância do texto, uma saída para a exotopia,
para criar um texto com valor formal-artístico e não apenas estetizado e também tentei construir um
personagem que não era outro de mim, o profesor Ivan Molina, como mencionado na parte inicial do
texto.

2. NATACHA

Natacha não sabe se é verdade quando os Mbyás falam que onça vem atrás de quem se deita
com um primo. Que onça é essa? Um mais velho em transe xamânico? Uma onça mesmo? Ou histórias
para assustar as crianças e ensinar o tabu do incesto? Nota-se que ela leu os cadernos de
antropologia direitinho ou talvez seja porque sua mãe é médica e acredita em ibuprofeno. Ela acredita
apenas no que vê e, ainda por cima, faz interpretações teoricamente embasadas. Edipianamente
embasadas. Sem ter lido mais que 20 páginas de Freud. As onças nunca tiverem chance alguma.
Ainda por cima, é branca e tem nome russo. Como ela poderia entender qualquer coisa que
não seja europeia? Ela sonha em conhecer o Cáucaso e ter um amor de verão com um moreno italiano
chamado Marrrchélo. No entanto, ela se encontra na parte mais oeste do estado, quase na fronteira
com o Paraguai. Ela consegue ver os marcos da fronteira, desde a casa dos indígenas que a
acolheram. Eles fazem duas refeições por dia que consistem em batatas, frango e arroz branco,
cozidos juntos na panela, formando um ensopado que quase não tem gosto de nada. Mas ela come
mesmo assim, tentando produzir nela a tal da horizontalidade que se fala tanto, mas que nunca viu
nem sentiu de ninguém. Nem mesmo dos próprios indígenas.
Ela pelo menos, por saber que não entende nada, supõe que se eles são horizontais, livres e
extra-hierárquicos, ela não saberia identificar. Ela ao menos tem noção de que Victor Turner, falando
sobre os Ndembu, contraria muitas coisas que eles falam e que isso não é ser muito rigoroso. E de

HETEROCIÊNCIA
489

que a fixação de Malinowski pelo seu diário de campo e pela construção de uma canoa trobriandesa ,
na verdade na verdade é porque ele queria fugir dali o mais rápido o possível.
Ela também queria fugir dali. Pensava na mãe e na avó constantemente nos dois primeiros
dias. Ainda por cima vomitou durante uma madrugada rasgada de trovões. Vomitou porque conseguiu
bebida com os indígenas mais jovens e fumou maconha pior do que a que ela conseguia na sua cidade.

3. IVAN MOLINA

Havia um general. Ivan Molina. Magro, inclusive com as bochechas para dentro, mas parecia
forte e atlético. Comedor voraz de tangerinas. Para cada exercício que ele designava ele falava: 2
minutos e nada más. O que era para ser a prova de autoritarismo, virou o lema da oficina. Carisma é
uma coisa inexplicável. Não sei se ele fica guardado nos olhos ou na voz ou no seu sotaque. Ele era
boliviano e amigo próximo de Evo Morales. Natacha pensava então que deveria ser uma pessoa
revolucionária e sensível, pois cantava Violeta Parra na hora do jantar com seu carrasco Gilmar
Galache. Ela descobriria 1 ano mais tarde que ele se importava mais com sua fama do que realmente
fazer filmes com indígenas. E que seu carisma apesar de ser real era também pretensioso. Ele
arqueiava as sobrancelhas como alguém que sempre sabe mais que os outros. Mas que mal tem? Ela é
boba, superficial, mas boa. Sua melhor amiga é linda, comunicativa e sem alma. Não se tem tudo.
Mas ela tentava ter tudo. Ser tudo. Até se tornar um autômato e não saber mais o que queria
da sua vida, das suas relações. Não sabia nem mais escolher um livro para ler. E quando finalmente
escolhia um, era porque alguém importante comentou sobre. Mas talvez as onças poderiam salvá-la.

3.1 Comentário

Apesar de não ser possível nos puxarmos pelos próprios cabelos, percebi que estava dando
acabamento estético para o personagem Ivan e não escutando sua voz, tratando-o como objeto,
mortificando-o. Tentei ser dialógica no exercício seguinte, mas já adianto que o próximo foi comentado
pelos meus colegas do grupo Atos e me devolveram que não consegui ser transgrediente, que era
óbvio que Natacha era eu mesma.

4.

Não estavam em meio a ocas ou da floresta, mas paredes de concreto azuleijadas. Ali era a
escola da aldeia. A única diferença entre uma escola qualquer e essa era o espaço da fogueira. Já ia
anoitecendo e a acendiam. Muitos voltavam logo para as salas fosse para namorar, para fugir do frio
ou para terminar o trabalho e ganhar estrelinhas imaginárias de condecoração do general Ivan
Molina. Ele não era bem um general, mas poderia ser. Era amigo próximo de Evo Morales e parecia
estar formando a guerrilha guarani. Sem armas, mas câmeras. Enquanto ele fazia todos ficarem

HETEROCIÊNCIA
490

ansiosos para completar suas tarefas, ele cantava Violeta Parra com seu amigo violeiro. Natacha, que
já havia desistido de ser boa em alguma coisa, decidiu investir em conhecer as pessoas dali ou pelo
menos fingir que estava conhecendo, na medida em que uma branca de olhos claros com 30 kilos a
mais consegue numa aldeia indígena em que todos são meio amarronzados e avermelhados, magros e
fortes pelo trabalho no campo ou pela escassez da comida e falam quase unicamente guarani. Ela
elegeu primeiro os que poderiam se comunicar com ela melhor e como sabia 5 línguas, mas nenhuma
delas era o guarani, sentou ao lado do general. Sob aquela luz do fogo e aquele céu estrelado, Ivan já
não parecia mais o terrível, parecia sim alguém que anda pelas montanhas dos Andes, como a música
que ele cantava. Natacha pediu dicas de como saber montar melhor, como se fosse como andar de
bicicleta ou descascar laranjas. Ivan respondeu que a montagem é como matar a amante. Natacha
achou que aquele encontro poderia ter sido um daqueles momentos catárticos em que tudo começa a
fazer sentido e as coisas começam a dar certo, mas ela continuou a edição do jeito que sabia fazer,
até alguns anos mais tarde desistir definitivamente da edição. Ivan continuaria sua missão da
guerrilha cinematográfica indígena, no entanto fora descoberto pela própria Natacha que suas
preocupações talvez fossem mais teóricas que reais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de ter falhado na escrita, continuamos no empreendimento de uma escrita outra que
não faça dos nossos companheiros de diálogo em ventrílocos. Com o aprofundamento na teoria
bakhtiniana, é preciso voltar ao fato de os Nhandevas terem voltado a cantar e dançar, depois de 40
anos. Percebi que no meio desse cenário formativo e oficial, outras questões estavam sendo
mobilizadas. Enquanto os organizadores estavam preocupados em produzir filmes, uma mudança, um
ponto excêntrico na história dos Nhandevas e nas nossas, estava a despontar.
Muitos deles falavam o quanto nada acontecia por ali. Em comparação com as aldeias Mbyá e
Kaiowá que também estiveram no evento, a aldeia de Pirajuy não tinha uma Casa de Reza. Mas tem,
espalhado pela região, uma quantidade considerável de aldeias evangélicas. Por isso, por não serem
batizados na casa de reza, mas nas igrejas, seus nomes também não são guaranis, mas karaí, ou seja,
não indígena. Também não tem realizado rituais, como o do milho ou da xixa.
O encontro, acredito, foi uma grande festa de renovação. Dançamos e cantamos todos os dias,
tanto as danças Mbyá, quanto as Kaiowá. Também participamos do ritual de batizar o milho e
transformá-lo em bebida sagrada. Esta bebida consiste em milho, cuspe, fezes e pedras. Com esses
elementos, acontece a fermentação e assim conseguimos a bebida ritual, um tipo de cerveja. Desde
então, os Nhandeva estão se mobilizando para construir uma Casa de Reza.
Precisamos voltar, agora em diálogo com Bakhtin, para entender os processos e retomar as
relações que tenho, mas, dessa vez, de maneira dialógica, alteritária e responsiva. Talvez agora,
produzir filmes não parece ser o que eles estavam dizendo como importante, não havia escutado suas

HETEROCIÊNCIA
491

vozes. Mas agora, escutamos um burburinho e acreditamos que é pelos encontros, pelo
acontecimento transformador, que nos une a história inteira e a todos os homens, por onde devemos
prosseguir.
Giulia teve um sonho depois dessa experiência, um sonho com lobisomen. Sempre teve pavor
de lobisomens. Assistimos a quase todos os filmes de terror dos anos 90 e 2000, muitos eram de
lobisomens terríveis e, por isso, ficou traumatizada. Foi assolada em sonho por vários desses, durante
os anos. Mas depois de Pirajuy, teve um sonho com um lobisomen. Parecia uma loba, na verdade, e ela
a chamava para ser lobisomen também. Para se arriscar e seguir com ela, na luz do nascer do sol,
aquela luz que ainda é cinza, mas que está prestes a se tornar azul, que guarda em seu ventre o
futuro transformador. A loba se chama Cacilda. Mas isso já é material para outro texto.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
HUCITEC EDITORA, 2013.
_____. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
_____. Para uma Filosofia do Ato Responsável. São Paulo: Pedro & João editores, 2012.
FERRAZ, Ana Lúcia M. C., Dramaturgias da Autonomia. São Paulo, Editora Perspectiva, 2009.

_____. A experiência da duração no cinema de Jean Rouch. Doc On-line, n.08, Agosto 2010, pp.190-211.
MEAD, Margaret. A Antropologia Visual em uma Disciplina de Palavras. The Hague: Mouton Éditeur, 1975.
MINH-HA, Trinh, When the moon waxes red: Representation, gender and cultural politics. Routledge: New York, London,
1991.
MOTA, Kelly C. C. S. História de vida como metodologia de ensino. UFMG: XIII Congresso Brasileiro de Sociologia,
2005.
ROUCH, Jean. The Camera and Man. IN: Principles of Visual Anthropology. P. Hockings(ed.). Chicago: Aldine: p.83-102,
2003.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
492
Nas últimas duas décadas, as questões
relacionadas à formação do professor para atuar
no ensino de língua portuguesa na escola básica

O ATO RESPONSÁVEL DE têm motivado reflexões e ações tanto de


pesquisadores quanto das equipes que têm
proposto as políticas públicas nacionais. O

SER PROFESSORA NO
Profletras surge como uma das ações do conjunto
de políticas governamentais de incentivo à
formação continuada do professor que está
atuando no ensino fundamental, nas redes públicas

PROFLETRAS municipais e estaduais. Com o objetivo de formar


professores para melhorar a qualidade do ensino
nas escolas, o mestrado é voltado para as questões
do ensino de língua. Assim, a produção do trabalho
final segue a orientação nacional, que aponta como
foco de investigação temas da realidade escolar,
voltados para o ensino e aprendizagem na disciplina
de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental. Nosso
RODRIGUES, Nara Caetano 101 propósito, nesse ensaio, é refletir sobre as
interações realizadas em uma disciplina no Curso
de Mestrado Profissional em Letras-
INTRODUÇÃO PROFLETRAS/UFSC, problematizando as escolhas
teórico-metodológicas e sua constituição como ato

O
responsável na proposição de um outro modo de
Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) ver e fazer ciência na pós-graduação.
é um curso de pós-graduação strictu sensu em rede, que foi Palavras-Chave: Formação de Professores.
criado em 2012, no âmbito do Sistema da Universidade Aberta Aticulação de Saberes Docentes. Produção de
Conhecimento. Ato Responsável
do Brasil (UAB), tendo como instituição Coordenadora Nacional a
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), conforme a
Resolução nº 043/2012-CONSEPE, de 15 de maio de 2012.
Para ingresso no curso, os/as interessados/as precisam ter concluído a graduação em curso
reconhecido pelo MEC, estar atuando no ensino fundamental e ser aprovado/a no Exame Nacional de
Acesso, que é de responsabilidade da Instituição Coordenadora (no caso, a UFRN). Após aprovação, ao
fazer a matrícula no Profletras, o/a estudante passa a ser aluno/a da UFSC e, ao concluir o curso,
receberá o título de Mestre em Letras fornecido por essa universidade (ou pela outra Instituição
Associada a qual esteja vinculado/a).
Em 2013, fui convidada a participar da equipe do Profletras/UFSC e, em 2014/2, ministrei a
disciplina “Estratégias do trabalho pedagógico com a leitura e a escrita”102, a qual tomarei como
referência para problematizar minha atuação na pós-graduação.
Como o objetivo do curso é a formação de professores de Língua Portuguesa para atuação na
Educação Básica, mais precisamente no Ensino Fundamental II, entendi o convite como uma
oportunidade de ocupar uma posição sujeito para a qual me senti preparada tanto por ter mais de 20
anos de experiência na educação básica e no ensino superior, quanto pela formação em doutorado em
Linguística Aplicada, com enfoque no/a professor/a da escola básica; além de estar, naquele

101 Doutora em Linguística. Professora Titular do Colégio de Aplicação do Centro de Ciências da Educação e docente permanente do
PROFLETRAS/UFSC. E-mail: nacaetano@yahoo.com.br
102 Em 2015/1, ministrei a disciplina “Alfabetização e letramento” e, em 2016/1 e 2017/1, ministrei novamente a disciplina “Estratégias do

trabalho pedagógico com a leitura e a escrita”.

HETEROCIÊNCIA
493

momento, realizando estágio pós-doutoral103 na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de


Campinas104 (FE/UNICAMP).
As ementas das disciplinas do mestrado já estavam definidas no projeto proposto pela
Instituição Coordenadora e, em maio de 2014, foi realizado o III Fórum Nacional de Comissões
Temáticas do Profletras, na UFRN, tendo por finalidade a construção coletiva dos planos de ensino das
disciplinas pelos professores das diversas Instituições Associadas que ministrariam cada disciplina.
Como a formação desses professores diferia bastante quanto à área de concentração, os conteúdos
de cada tópico do programa foram motivo de ampla discussão antes de passarem a fazer parte do
plano de ensino. Os diversos horizontes apreciativos, constituídos a partir do diálogo que cada
professor estabeleceu com os autores de sua área, culminaram numa listagem de referências
bastante ampla, a qual foi divida em Bibliografia Obrigatória e Bibliografia Complementar, totalizando
quase 40 títulos, no intuito de contemplar as diferentes possibilidades de abordagem.
A complexidade da elaboração de um plano de ensino comum, para ser desenvolvido por
docentes das diversas Instituições Associadas ao ministrarem a disciplina “Estratégias do trabalho
pedagógico com a leitura e a escrita”, também pode ser atribuída à natureza da própria disciplina, que
envolve praticamente todo o trabalho com ensino de Língua Portuguesa na escola, uma vez que se
propõe a discutir estratégias do trabalho com as práticas de leitura e escrita. A abordagem de tais
práticas não pode prescindir das práticas de oralidade e de análise linguística, sob pena de ir contra o
que está proposto nos documentos oficiais, no sentido da articulação entre as práticas de linguagem
como fio condutor de qualquer trabalho a ser desenvolvido nas aulas de Língua Portuguesa no Ensino
Fundamental.
Assim, embora não seja possível aprofundar as reflexões produzidas sobre o trabalho com as
práticas de leitura, escrita, oralidade e análise linguística – o que é atribuição de várias disciplinas do
programa – também não é possível pensar as estratégias do modo estanque. Essa especificidade faz
com que se abra um leque de reflexões visando à articulação dessas práticas no trabalho
desenvolvido em sala de aula.
Como não será possível a descrição e interpretação de todo o processo de constituição da
disciplina, proponho-me aqui a tecer algumas considerações acerca do papel dos participantes nas
interações a partir dos estudos do Círculo de Bakhtin e de seus comentadores e a refletir sobre a
relação horizontal proposta nas aulas, por meio da proposição de seminários, nos quais dividi o
protagonismo e a responsabilidade com os mestrandos professores em aulas dialogadas – no sentido
bakhtiniano!
Para tanto, apresento, a seguir, a minha compreensão do sentido da aula como acontecimento
(GERALDI, 2010) e do papel dos mestrandos professores na construção de conhecimento no

103 Motivo pelo qual só passei efetivamente a desenvolver atividades docentes no programa, em setembro de 2014, quando do retorno do
afastamento para pós-doc.
104 O estágio pós-doutoral foi realizado sob a supervisão do Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado, professor da FE/UNICAMP e coordenador

do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC), vinculado ao Programa de Pós-Graduação dessa Faculdade de Educação.

HETEROCIÊNCIA
494

Profletras, tomando como referência as interações na disciplina “Estratégias do trabalho pedagógico


com a leitura e a escrita”.

1. O LUGAR DA TEORIA E DA PRÁTICA NA AULA NA PÓS-GRADUAÇÃO

A aula – como acontecimento – não pertence exclusivamente nem ao mundo da ciência, nem
ao mundo da vida 105 . Como diz Bakhtin (2003, p. XXXIV), quando discute arte e responsabilidade,
“[a]rte e vida [assim como ciência e vida] não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular
em mim, na unidade da minha responsabilidade”.
No acontecimento da aula, não existe o binômio teoria x prática, não de maneira polarizada,
como mutuamente excludentes. No momento em que o professor faz a elaboração didática, está
lidando com algo que ele já ressignificou para a/na prática, por isso não é mais possível falar da
teoria pura, pois sua fala está sempre atravessada pelo saber-fazer, construído na prática. A cisão
entre o agir concreto dos sujeitos e o pensar sobre o agir dos sujeitos é justamente o que Bakhtin
condena na sua teoria do ato (BAKHTIN, 2003; BAKHTIN, 2010). De acordo com Sobral (2007, p. 105),
para o pensamento do Círculo há entre o prático e o teórico uma “reação de interconstituição
dialógica” que integra ambos na produção de atos e de enunciados.
No mundo da ciência, é possível construir um discurso essencialmente teórico, geral, por
meio da abstração, desprovido das particularidades da prática, pois “[e]nquanto objetivações, a visão
estética e o conhecimento filosófico e científico são incapazes de apreender a eventicidade e o devir”
(AMORIM, 2004, p. 73). Na pós-graduação, o contrário não é verdadeiro: não estamos falando de
professores leigos, portanto alguma teoria sustenta o discurso que agencia a prática, mas a teoria e
a prática estão de tal forma amalgamadas que não é possível separar. E, dessa forma, produz-se um
saber sobre o fazer pedagógico, que é de outra natureza, pois ele traz a marca do vivido, do
acontecimento único do ato realizado, que, como diz Amorim, “concentra e correlaciona, dentro de um
contexto único, o universal e o individual, o real e o ideal”. A autora ressalta que “uma ação
responsável não deve se opor à teoria e ao pensamento, mas incorporá-los em si como momentos
necessários”. (AMORIM, 2004, p. 74).
Tendo como aporte teórico o pensamento do Círculo de Bakhtin, não se pode dizer que um
professor que cursou quatro anos de uma faculdade de Letras desconhece o mundo da teoria. Ele
pode não ter tido acesso às teorias que estão sendo discutidas naquela disciplina, mas alguma teoria
o levou a formar-se professor e ir para a sala de aula. Na sua atuação como professor, ele não
“inventa”, não cria algo absolutamente novo, pois, entendendo a linguagem como essencialmente
dialógica, sabemos que ninguém cria sozinho. Por outro lado, vale lembrar que a percepção e a
apreensão do mundo pelo sujeito só pode existir na situação concreta vivida pelos sujeitos. A

105Retomo aqui a compreensão de aula como acontecimento e do professor como produtor de conhecimentos por meio do agenciamento de
saberes de diferentes naturezas, problematizada em Rodrigues (2011).

HETEROCIÊNCIA
495

apreensão do mundo é sempre situada e se dá na consciência do sujeito, entendida como instância


social e histórica (SOBRAL, 2007, p. 106-107).
Nos últimos 30 anos, muitas reflexões foram produzidas e permaneceram no mundo da
ciência, abstraídas que estão da realidade vivenciada pelo professor – discursos de outros. Num
curso de mestrado (profissional!), o professor não assina as novas teorias in toto, porque ele não é
uma tábula rasa à espera dos novos conhecimentos produzidos na academia.
Se alguns discursos sobre as novas teorias ainda não tiveram ressonância nas aulas da pós-
graduação é porque há outros discursos anteriores formando o professor. O surgimento de novas
teorias sobre o ensino não apaga a historicidade da constituição do sujeito professor, cuja formação
se constituiu em outro contexto, no qual a prática pedagógica era orientada por outros discursos, os
quais continuam valorados na esfera da escola. Como diz Bakhtin (Volochinov) (1992), os temas só
entram no grupo social quando o grupo começa a valorar esses temas, por isso os professores se
apropriam de alguns discursos enquanto outros discursos não entram no seu horizonte apreciativo.
Quando o professor não assimila106 esse discurso do outro, a teoria continua como palavra
alheia, da qual ele não se apropria. Configura-se como uma palavra autoritária, que não possibilita a
emergência do eu. Por outro lado, na medida em que o professor valora, assimila e transforma as
palavras do outro em palavras suas, ele realiza uma compreensão ativa desse discurso que provém
de outra esfera e que é ressignificado no diálogo com a esfera escolar, com o fazer pedagógico, com
a elaboração didática.
O professor tem uma atitude responsiva mais ativa diante das novas questões que surgem
nas interações com os alunos na aula (e para as quais a ciência não se (pre)ocupa com a resposta),
ou seja, a responsabilidade imediata do professor é muito mais com o acontecimento da aula do que
com os discursos da esfera científica. Como diz Amorim (2004, p. 76), a alteridade é um conceito
fundamental para Bakhtin, pois “[a] responsabilidade se torna responsividade, mas é sempre na
relação com o outro”. No caso do professor, o aluno é o “outro” para quem sua posição ético-
dialógica implica uma resposta imediata.
O professor que atua em sala de aula fala de um lugar que é diferente do de um pesquisador
teórico, sua fala vem significada pelo fazer; ele fala do lugar de quem faz e reflete à luz da prática.
Como o Mestrado Profissional em Letras tem entre as suas finalidades a formação de professores de
Língua Portuguesa para atuação na Educação Básica, mais precisamente no Ensino Fundamental II, é
compreensível que ele traga situações da prática para criar inteligibilidades para os textos teóricos
que está lendo. É da sua formação anterior e da prática que ele traz as contrapalavras para se alinhar
ou se distanciar das teorias abordadas.
Os outros (pesquisadores) teorizam sobre o evento único do ser professor, mas só ele vive
esse evento único sendo professor. É o professor que realiza o ato, ou seja, é ele quem assina a aula,
é ele que não tem álibi para não ser professor no momento do acontecimento da aula e que, ao

De acordo com Morson & Emerson (2008, p. 235), assimilação “é um termo geral empregado por Bakhtin para designar os processos
106

mediante os quais o discurso dos outros vem a desempenhar um papel no nosso próprio discurso interior”.

HETEROCIÊNCIA
496

mesmo tempo, só se torna professor no acontecimento da aula, pois a unicidade do ser responsável
não pode ser expressa teoricamente, mas descrita e participativamente experimentada (BAKHTIN,
2010; GERALDI, 2010).
Isso não significa dizer que os/as professores/as mestrandos não sejam capazes de produzir
e não produzam reflexões teóricas na esfera da pós-graduação. Eles/as produzem ensaios, artigos e
dissertações, tomando como “objeto de pesquisa” a sua prática – ou as práticas da esfera da escola –
e problematizando-a no diálogo com os discursos teóricos.
O entendimento e a legitimação da prática docente como uma experiência produtora de
conhecimento me leva a concordar com Tardif e Raymond, quando dizem que o saber do professor
está, sim, “nos lugares de formação”, mas também está “na confluência entre várias fontes de saber
provenientes da história de vida individual, da sociedade, da instituição escolar, dos outros atores
educativos” (TARDIF E RAYMOND, 2000, p. 215).
Isso posto, passo, a seguir, a refletir sobre as interações realizadas nas aulas da disciplina
“Estratégias do trabalho com a leitura e a escrita”, assumindo o seminário como um espaço de
circulação e de construção de saberes que se constituem no diálogo entre os vários saberes
docentes agenciados por mim e pelos professores mestrandos nas aulas da pós-graduação.

2. O SEMINÁRIO COMO ESPAÇO DIALÓGICO DE CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO

A partir de um plano de ensino definido coletivamente, conforme explicitado acima, no meu


planejamento individual organizei as leituras contemplando títulos presentes na bibliografia
obrigatória e na complementar, dividindo o protagonismo com os professores mestrandos: dos 11
encontros, seis em que a orquestração das vozes na abordagem dos textos ficou sob minha
responsabilidade e 5 encontros nos quais os professores mestrandos trariam seu excedente de visão
sobre os textos lidos em forma de seminário.
Além de jogar luz sobre partes do texto lido, foram desafiados a problematizar a leitura,
trazendo um exemplo de atividade prática do livro didático adotado ou de outro material usado em
suas aulas, resultado da elaboração didática do próprio professor. A proposta era que os mestrandos
professores atribuíssem sentidos ao texto lido estabelecendo um diálogo entre o texto acadêmico e a
atividade prática, manifestando, assim, a sua compreensão das ideias dos/as autores/as lidos e
exercendo um olhar exotópico para o material didático utilizado em suas aulas. Com essa proposta,
acreditei estar me afastando da concepção de aula entendida “como em encontro ritual, e por isso
com gestos e fazeres predeterminados, de transmissão de conhecimentos”, a qual Geraldi (2010, p.
81) alerta para a necessidade de uma revisão, e acredito ter me alinhado mais a uma concepção de
aula como acontecimento, uma vez que abria espaço para a experiência, para o vivido, compor a aula.
Assumindo uma concepção de linguagem como interação (BAKHTIN (VOLOCHINOV), 1992),
acreditei estar fazendo uma opção metodológica - e também política - coerente com o referencial
bakhtiniano no qual ancoro minha prática. Como diz Geraldi, “toda e qualquer metodologia de ensino

HETEROCIÊNCIA
497

articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade –
com os mecanismos utilizados em sala de aula.” (GERALDI, 1984, p. 42).
Por mais que o autor estivesse se referindo ao ensino de Língua Portuguesa na escola básica,
essa reflexão pareceu-me pertinente para pensar o trabalho na disciplina “Estratégias pedagógicas
para o trabalho com a leitura e a escrita” e balizou minhas escolhas didático-pedagógicas.
Alguns questionamentos que me ocorreram e me levaram às escolhas que fiz: - - Se adoto
uma concepção de linguagem como interação, como silenciar a voz do outro, no caso o mestrando-
professor?
- Se entendo o professor como produtor de conhecimentos, como ministrar aulas centradas
na metodologia transmissiva (GERALDI, 1984)?
- Se defendo a legitimidade dos saberes docentes de diversas naturezas como constitutivos
do professor (TARDIF e RAYMOND, 2000), como não legitimar o saber da prática trazido por ele?
- Se me alinho com o pensamento de Geraldi (2010, p. 95), quando diz que a nova identidade do
professor é a de um sujeito capaz de “olhar para o aluno como um sujeito que também já tem um
vivido, para transformar o vivido em perguntas”, como levar respostas prontas para perguntas que os
professores mestrandos não trouxeram?
- Se defendo uma avaliação como processo e como possibilidade de aprendizagem, na qual
“quem aprende não pode ausentar-se” (ANTUNES, 2006), como não considerar o olhar do professor
mestrando sobre o próprio processo de aprendizagem por meio da autoavaliação?
- Se acredito que teoria e prática não são excludentes, nem precisam constituir saberes
opostos, mas podem imbricar-se e alimentar-se mutuamente, como não adotar na minha prática uma
postura coerente com o aporte teórico de referência lido na disciplina?
As respostas que construí e ainda estou construindo para tais questões me levaram a optar
por aulas mais horizontalizadas, nas quais sempre havia um planejamento e leituras de referência,
mas que não estavam prontas para serem ministradas, estavam, sim, em devir (BAKHTIN, 2010).
Procurando me distanciar do conceito de transposição didática e adotando o conceito de elaboração
didática (HALTÉ, 1998), acredito ter aberto espaço para “a aula como acontecimento”, na qual o vivido
pode ser transformado em perguntas e fazer parte da aula na pós-graduação também.
Se, por um lado, os textos de referência para serem lidos nos seminários foram planejados
previamente, por outro, houve uma abertura para que os professores mestrandos escolhessem o
texto com o qual mais se identificavam ou cuja temática mais os inquietava ou mais se aproximava de
seus focos de interesse nos projetos de pesquisa que estavam desenvolvendo.
Além disso, a proposta de que os textos fossem tomados como excedente de visão que
possibilitasse olhar para materiais didáticos que fazem parte da elaboração didática dos professores
mestrandos possibilitou que o vivido se transformasse em contrapalavra aos textos lidos, ou seja, a
vida na escola entrando na vida na pós-graduação.

HETEROCIÊNCIA
498

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo acreditando que, como docente responsável pela disciplina e também professora de
educação básica, não tenho álibi para adotar práticas incoerentes com minhas escolhas teóricas, isto
é, buscar essa coerência é um ato ético constitutivo da posição única que ocupo, ainda assim, a
reação-reposta dos professores mestrandos não foi só de alinhamento às minhas escolhas.
Só para citar algumas contrapalavras que se chocaram com o que considero minha atitude
responsável, fui questionada quanto à opção pelo seminário, ao invés da aula expositiva; precisei lidar
com a desqualificação de uns em relação à leitura apresentada por outros; houve quem se manteve na
abordagem do autor, não trazendo outras vozes da experiência e do seu vivido para dialogar. Ainda,
outra reação que entendi como manifestação de não alinhamento foi a não atribuição de uma nota na
autoavaliação.
Enfim, essas são “perguntas” para as quais não encontrei as respostas ainda, mas, como diz
Geraldi:

E aí está a função do professor, que sozinho não precisa dar conta dos sentidos todos de cada um dos
elementos constituintes da resposta à pergunta formulada, mas é seu dever organizar com os alunos
mais perguntas e buscar em colegas, em profissionais, nas fontes, na herança cultural, os
esclarecimentos disponíveis: é aqui que a pesquisa começa, é aqui que o caminho começa a ser
construído e ele somente passa a ter existência depois de percorrido, na narrativa que se escreve deste
processo de produção. (GERALDI, 2010, p. 97-98).

Mesmo não tendo refletido aqui sobre um processo de pesquisa na concepção estrita do
termo, espero ter apresentado mais alguns elos na cadeia da comunicação no que diz respeito a um
outro modo de pensar a produção de conhecimento na esfera acadêmica, considerando a experiência
e o vivido como constitutivos do fazer ciência e não como um polo oposto ou excludente.

REFERÊNCIAS

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Bakhtin Conference (11.: 2003 : Curitiba, PR, Brazil). Proceedings of the Eleventh International Bakhtin Conference – XI
Conferência Internacional sobre Bakhtin, Curitiba, July 21-25, 2003; edited by Carlos Alberto Faraco, Gilberto de Castro,
Luiz Ernesto Merkle; organization Universidade Federal do Paraná. Curitiba: [s.n], 2004, p. 73-76.
ANTUNES, I. C. A avaliação da produção textual. In . In: BUNZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia (Orgs.). Português no Ensino
Médio e formação do professor. São Paulo: Contexto, 2006, p. 163-180.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_____. (VOLOCHINOV). (1929) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. Trad. do francês por Michael Lahud e Yara F.Vieira. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992.

HETEROCIÊNCIA
499

GERALDI, J. W. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI, J. W. (Org.). O texto na sala de aula. 2. ed.
São Paulo: Ática, 1984. p. 41-48.
_____. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
RODRIGUES, N. C. A construção dialógica do discurso do professor de língua portuguesa. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2011.
HALTÉ, Jean-François. O espaço didático e a transposição. Fórum Linguístico, v. 5, n. 2, 2008, p. 117-139. Tradução de
Ana Paula Guedes.
MORSON, G. S. & EMERSON, C. Bakhtin: criação de uma prosaística. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo:
Editora da Universidade de são Paulo, 2008.
SOBRAL, A. Ético e estético na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In: BRAIT, B. (Org.). [2005] Bakhtin:
conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2007. p. 103-121.
TARDIF, Maurice; RAYMOND, Danielle. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educ.
Soc. v.21 n.73 Campinas dez. 2000. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302000000400013

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
500
A partir da leitura da obra “Para uma filosofia do
ato responsável” apresento uma reflexão sobre

REFLEXÕES PARA UMA apontamentos bakhtinianos que nos convocam a


pensar sobre uma ciência outra, ciência centrada
na singularidade e na alteridade inequívoca do ser.

CIÊNCIA DA SINGULARIDADE Partindo dessa perspectiva, e da trajetória reflexiva


que Bakhtin nos apresenta sobre: o existir-evento
único, a arquitetônica da alteridade, a potência da
linguagem, a verdade-pravda, a visão estética
transgrediente e a afiguração, entrevejo
possibilidades metodológicas para uma
SANTOS, Andréa Pessôa dos 107
heterociência. Entendida aqui como uma ciência
outra, própria das Ciências Humanas, uma ciência
não da coisa muda, generalizante e de
classificações abstratas, mas da escuta do sujeito
responsivo falado e falante.

INTRODUÇÃO
Palavras-Chave: Ato Responsável. Heterociência.

E
Metodologia
m “Para uma filosofia do ato responsável”, Bakhtin expõe um
denso percurso reflexivo acerca de seu extenso projeto
filosófico. Nesta obra, escrita nos anos de 1920, trazida a público pela primeira vez em 1986, e só
traduzida para o português em 2010, ele aponta as premissas de sua “Filosofia do ato responsável”
(“Filosofia primeira” ou “Filosofia moral”). Ao traçar detalhadamente sua trajetória reflexiva na busca
de outras possibilidades para o entendimento de aspectos e fenômenos que constituem o mundo da
vida concreta (o mundo vivido) e da cultura (o mundo representado), Bakhtin nos provoca a pensar
sobre os limites e as sistematizações realizadas por correntes científicas e filosóficas que, à época,
insistiam em compreender o mundo da cultura e o mundo da vida separadamente.
Ao problematizar as bases do idealismo, subjetivismo e do formalismo Bakhtin rebate teses
que buscavam consolidar, insistentemente, conceitos e leis universais só explicáveis a partir de
compreensões e classificações abstratas e generalizantes. Assumindo o desafio, Bakhtin busca outra
forma de compreensão da experiência da vida real em sua eventicidade irrepetível e concreta.
Eventicidade composto pela singularidade do existir, pela unicidade real e irreptibilidade da ação do
sujeito responsivo e participante. Assim, ele nos aponta caminhos para a compreensão do ato
postupok (ato responsável único e singular).
Analisando as correntes filosóficas que buscam uma unidade teórica, através do conteúdo-
sentido (que objetivam uma abstração do ato-ação), e cotejando a unidade da ação-ato historicamente
real, Bakhtin (2010b) traça diferenças peculiares entre essas duas unidades e, sem descuido,
considera que ambas, embora com perspectivas distintas, façam parte e sejam consideradas como
momentos inseparáveis na valoração do ato responsável, ato ético (BAKHTIN, 2010b, p. 44).
Partindo desta premissa, e da crítica à pretensão universalista dessas correntes filosóficas
(destinadas a um teoricismo), Bakhtin nos apresenta os fundamentos de sua “Filosofia do ato
responsável” e, consequentemente, os fundamentos de uma ciência outra, uma heterociência, própria

107Doutora em Educação (UFF). Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UERJ/FEBF. Realizou Doutorado Sanduíche na Università degli
Studi di Bari - Aldo Moro - Itália, como bolsista PSDE/CAPES, sob a supervisão de Augusto Ponzio. E-mail: a.pessoas@ig.com.br

HETEROCIÊNCIA
501

das Ciências Humanas, entendidas como ciências do homem, ciências não da coisa muda, mas da
escuta desse sujeito responsivo falado e falante.

REFLETINDO SOBRE O EXISTIR-EVENTO ÚNICO E A ARQUITETÔNICA DA ALTERIDADE

Inicialmente, é preciso salientar que na perspectiva de Bakhtin o sujeito tem inevitavelmente


diante de si a responsabilidade por sua unicidade e singularidade no seu existir-evento único.
Unicidade que o coloca em um lugar onde nenhum outro poderá estar. Singularidade absoluta que o
coloca diante da relação com a vida do universo inteiro; colocando-o, por isso, em relação não só com
a sua singularidade, mas com a singularidade de diversos centros individuais igualmente
atravessados por esta responsabilidade intransferível (Bakhtin, 2010b).
Nessa relação não há nenhuma possibilidade deste eu (com seus eus) agir em seu ato
individual e responsável, como se fosse um ato de uma única consciência subjetiva, ensimesmada, e
que pudesse, portanto, desconsiderar suas implicações com outros centros valorativos sem a
presença imprescindível do outro. Não o outro genérico e abstrato, mas o outro enquanto partícipe
incondicional de sua própria existência, um outro na sua singularidade que ocupa um lugar no espaço-
tempo e na medida dos valores que eu não posso ocupar, próprio pelo não-álibi de cada um no existir.
O eu, em sua unicidade e singularidade, e o outro, com sua inescapável presença, ocupam,
cada qual, com o seu universo de sentidos emotivo-volitivos específicos (vividos de maneira real e
responsável), o centro da vida concreta do evento único do existir. Evento este que se realiza em
relações discursivas mantidas entre os diversos centros valorativos de responsabilidades e de
singularidades emotivo-volitivas do eu.
A unicidade e singularidade do eu, na sua arquitetônica espaço-temporal e axiológica, se
objetiva e se realiza na relação com o outro, sobretudo, numa visão indireta do outro. Nesta visão
indireta, realizada nas interações estabelecidas pelo sujeito, entram em jogo três
momentos/movimentos imprescindíveis à arquitetônica da alteridade: eu-para-mim, o-outo-para mim,
e eu para-o-outro (Bakhtin, 2010b).
A partir desta premissa, da arquitetônica da alteridade, entende-se que o mundo será
valorado de forma diferenciada pelo eu e pelo outro. Nessa perspectiva, o eu perde o lugar de centro
da enunciação, que passa a ser compartilhado como o outro. Ao perder o lugar central, o eu não se
fixa nem eu-indivíduo nem no outro, fixa-se, por assim dizer, no espaço dialógico estabelecido através
da linguagem, que se instaura num movimento contínuo de palavras que se entrecruzam no momento
da enunciação.
A relação axiológica específica entre o eu e o outro compõe de maneira original o conceito de
alteridade de Bakhtin, distinguindo-o da relação eu-outro também tratada por outros pensadores de
seu tempo (Benveniste, Bubir, Ducrot).
A originalidade do deslocamento da relação eu-outro levado a cabo por Bakhtin promoveu o
que Ponzio (2011) chamou de uma “revolução bakhtiniana”. Uma revolução frente às formas de

HETEROCIÊNCIA
502

monologismos, disfarçadas ou não, levadas a cabo por correntes filosóficas, que até então,
promoviam um reflexão abstrata e não diferenciada das conceitualizações do “outro” e do “diálogo”.
Noções estas que, segundo Ponzio (2011, p. 12), até hoje vêm servindo à reprodução de uma noção de
“identidade indiferente”. Bakhtin revoluciona no momento em que propõe o entendimento de um
dialogismo entre “diferenças não abstratas” que, por razões constitutivas, não podem ser
indiferentes ao outro.

A POTÊNCIA DA LINGUAGEM E A VERDADE-PRAVDA

Enfrentando a difícil tarefa de propor caminhos possíveis para a compreensão desta “unidade
da ação-ato” Bakhtin avança em suas reflexões considerando que a linguagem seria o grande ponto de
encontro e de compreensão das relações estabelecidas na arquitetônica da alteridade, e na
concretude do evento-existir. A linguagem seria, assim, o caminho para o entendimento da unicidade e
singularidade deste ato responsável, historicamente constituído.
Nessa direção, Bakhtin (2010b) compreende que o enunciado - aqui entendido como palavra
plena, palavra única, responsavelmente significativa, e que coloca o sujeito em posição singular e
irrepetível no evento único do existir - poderá ser a verdade do ato dado (pravda). Para ele a verdade
singular (pravda) guarda relevante diferença se comparada à verdade absoluta (istina); verdade esta
tão perseguida pelos estudiosos das correntes científicas e filosóficas que se ocupam do que ele
chamou de “unidade teórica”, que objetiva a abstração do ato-ação.
Para Bakhtin, portanto, “[...] a verdade (pravda) do evento não é, em seu conteúdo, uma
verdade (istina), identicamente igual a si mesma; é, ao contrário, a única posição justa de cada
participante, a verdade (pravda) do seu real dever concreto” (BAKHTIN, 2010b, p. 104).
Reforçando o seu argumento quanto à potencialidade da linguagem, Bakhtin esclarece que a
linguagem desenvolveu-se historicamente e inicialmente a serviço do “pensamento participante e do
ato” concreto, prestando-se a ações de pensamentos abstratos somente mais tarde. Assim, ao
cotejar as referidas unidades e os caminhos possíveis para se compreender a verdade concreta do
ato responsável, Bakhtin (2010b) afirma: “[...] tenho para mim que a linguagem seja muito mais
adaptada para exprimir exatamente esta verdade do que para revelar o aspecto lógico abstrato na
sua pureza” (BAKHTIN, 2010b, p. 83).
A unicidade do ato poderá ser justamente compreendida a partir do entendimento da
linguagem e, mais especificamente, do enunciado; que, conforme já dissemos, é entendido como sendo
a palavra viva e plena que compõe a própria “unidade real” do “existir-evento único” (BAKHTIN, 2010b,
p. 42).
A compreensão da verdade-pravda poderá ser atingida a partir do entendimento da plenitude
da palavra viva. Palavra esta que, sendo notada quanto aos seus aspectos emotivo-volitivos ativos,
estabelecidos nas relações singulares entre o eu e o outro, poderá revelar a verdade (pravda). Vale
ressaltar que, esta perspectiva bakhtiniana não pode ser compreendida e chancelada pelo ponto de

HETEROCIÊNCIA
503

vista da verdade universal (istina), que propõe estudos de unidades teóricas e de conteúdo-sentidos
que objetivam abstrair a ação do ato.
A verdade-pravda só poderá ser compreendida quando considerada pelos próprios partícipes
do ato singular; e na observância das visões valorativas que se encontram na unicidade do ato-ação,
ato este responsavelmente concretizado por consciências que agem.
O ato singular não se dá através de uma razão subjetiva, nem mesmo poderá ser
compreendido por consciências não encarnadas (BAKHTIN, 2010b, p. 104-105). Tal ato só poderá ser
dimensionado pelo sujeito consciente que, inevitavelmente age na irrepetibilidade e unicidade do
espaço-tempo que ocupa diante do mundo que lhe é dado, e onde se encontra irremediavelmente
circunscrito. Assim, nas palavras de Bakhtin (2010b):

Este ato produtivo único é precisamente aquele no qual se constitui o momento do dever. O dever
encontra a sua possibilidade originária lá onde existe o reconhecimento do fato da unicidade da
existência de uma pessoa e tal reconhecimento vem do interior dela mesma, lá onde esse fato se torna
o centro responsável, lá onde eu assumo a responsabilidade da minha própria unicidade, do meu próprio
existir. (BAKHTIN, 2010b, p. 99).

Este ato produtivo único, que revela as visões valorativas de cada participante, poderá ser
mais bem compreendido, sobretudo, a partir da compreensão da palavra. Palavra viva (célula viva da
ação responsável) que, enquanto enunciação, recusa-se ao ato indiferente. Ato este tão reverenciado
pelas perspectivas teóricas que buscam na “unidade teórica” (“conteúdo-sentido” que abstrai o ato-
ação) a verdade universal, a verdade-istina.

RESPONSABILIDADE NÃO-INDIFERENTE, VISÃO ESTÉTICA TRANSGREDIENTE E AFIGURAÇÃO:


possibilidades metodológicas

Indicando que o objeto de sua filosofia moral é a arquitetônica do ato responsável (que se
constitui na totalidade do existir-evento singular), Bakhtin tece genuínas considerações sobre os
caminhos possíveis para a realização de análises coerentes com a “arquitetônica do mundo de
experiência vivida” (BAKHTIN, 2010b, p. 122), que tem como premissa a ação responsável, sem álibi e
sem possibilidade de escapatória.
A responsabilidade de que trata Bakhtin não se refere à responsabilidade enquanto ação
técnica (BAKHTIN, 2010b, p. 117). Para entendermos melhor seus argumentos, vale ressaltar que a
responsabilidade técnica, ou indiferente, é aquela que se constitui a partir de valores absolutos
instaurados por um sistema valorativo que condiciona todos os outros valores da vida às relações
relativas, funcionais e, portanto, indiferentes ao outro.
A responsabilidade a que Bakhtin se refere é de outro tipo. É uma responsabilidade sem álibis,
absoluta. Responsabilidade do ato responsável, onde o ato é compreendido como o centro único de
valores e tons emotivo-volitivos do lugar único da participação no existir. Uma responsabilidade,

HETEROCIÊNCIA
504

portanto, não-indiferente. Responsabilidade que se estabelece a partir da relação eu-para-mim


(centro da origem do ato) que, diante da possibilidade e do dever do existir, inescapavelmente se
posiciona na participação no existir. Responsabilidade esta, portanto, como sendo o ponto nevrálgico
da arquitetônica do mundo real da experiência vivida.
Ressaltando que os atos responsáveis (dessas “consciências que agem”) têm componentes
comuns (não no sentido de conceitos ou lei gerais), Bakhtin adensa suas reflexões e nos apresenta
fundamentos que sustentam possibilidades para a compreensão destes atos responsáveis,
considerados no âmbito mesmo de seu momento emotivo-volitivo.
Sem pretender, de modo algum, construir inventários de valores lógicos e unitários, ou
mesmo construir uma filosofia que aponte um sistema ideal de diversos valores possíveis para os
atos responsáveis (a partir de uma possível transcrição teórica de dimensões sistemáticas
absolutas), Bakhtin (2010b, p. 123-124) afirma:

O que pretendemos fornecer é uma afiguração108, uma descrição da arquitetônica real concreta do
mundo dos valores realmente vivenciados, não governado por um fundamento analítico, mas como um
centro de origem realmente concreto, seja espacial ou temporal, de valorações reais, de afirmações, de
ações, e cujos participantes sejam objetos efetivamente reais, unidos por relações concretas de
eventos no singular do existir [...]. (Grifo nosso).

O desafio é, portanto, compreender a arquitetônica do mundo de experiência vivida a partir de


afigurações e descrições destas experiências irrepetíveis que se dão em âmbito de momentos
emotivo-volitivos concretos, de relações espaço-temporais específicas. Assim, Bakhtin nos indica que
as relações do “eu-para-mim”, “o outro-para-mim” e “eu-para-o-outro” sejam considerados como
alguns dos pontos fundamentais para a realização destas afigurações e descrições da verdade-
pravda dos atos.
Aprofundando cada vez mais sua compreensão das possibilidades de entendimento da
arquitetônica da alteridade e do ato concreta Bakhtin irá vislumbrar o potencial do mundo da visão
estética (do mundo da arte) como sendo aquele que melhor pode afigurar os planos que compõem o
ato concretamente vivido.
Assim, através da arte, e, sobretudo, da palavra literária, Bakhtin refletirá sobre a presença e
natureza do herói na obra estética. Observando detalhadamente a posição e visão transgrediente e
extralocalizada do autor diante de seu herói, Bakhtin afirma que o centro valorativo da arquitetônica
do evento estético é o ser humano.
Obviamente não o ser humano no sentido abstrato, conforme estudado nas diferentes
correntes onde persiste o teoricismo, mas um ser humano concreto e mortal, constituído de sentidos
valorativos e emotivo-volitivos particulares. Aquele que, no “[...] centro valorativo da arquitetônica do

108
Na tradução da obra “Para uma filosofia do ato responsável”, editada pela Pedro e João Editores, em 2010, Valdemir Miotello e Carlos
Alberto Faraco optam por traduzir a palavra russa izobraženie pela palavra portuguesa refiguração. No entanto, recentemente, os autores, têm
optado por traduzir a palavra russa empregando o termo afiguração.

HETEROCIÊNCIA
505

evento da visão estética é um ser humano, mas não como um qualquer, de conteúdo idêntico a si
mesmo, mas como uma realidade concreta amorosamente firmada.” (BAKHTIN, 2010b, p. 127).
Assim, somente a apreciação do valor deste homem mortal poderá fornecer a escala de
medidas das séries espacial e temporal da vida e do ato responsável do homem concreto.
A linguagem e o mundo da visão estética podem esclarecer as relações sui generis
estabelecidas nas interações do ato responsável do homem mortal. A linguagem e o mundo da visão
estética, e, sobretudo, como já foi dito, a palavra literária, podem, portanto, afigurar a arquitetônica
da alteridade e do ato singular.
Na sequência de suas reflexões sobre a palavra literária, Bakhtin (2010b, p. 130), valendo-se
de um breve exemplo prático, analisa, em “Para uma filosofia do ato responsável”, a obra lírica de
Pushkin, Razluka [Separação], escrita em 1830. A partir da materialidade do texto, Bakhtin sinaliza os
contextos valorativos dos personagens que, com suas diversas especificações espaço-temporais,
tons emotivo-volitivos e atribuições de sentidos adquirem valor real e concretude a partir da
afiguração dos lugares singulares que ocupam.
Bakhtin deixa claro que tal compreensão só é possível por conta mesmo da participação do
“autor-artista e contemplador” e “autor-herói”, que, com sua visão exotópica, extralocalizada e
transgrediente, consegue afigurar a alteridade e os momentos concretos do existir dos personagens
de Pushkin.
Com tal exemplo, e sob o ponto de vista da palavra literário (que será retomada como central
no conjunto de sua obra), Bakhtin demostra que a filosofia do ato responsável pode ser uma
fenomenologia, que descreve de modo participativo o mundo da ação da vida. Vida esta não
exteriormente contemplada, mas como ação que parte de centros valorativos concretos, de
consciências que agem e reagem.
Bakhtin (2010b, p. 143) deixa claro que o dever concreto da responsabilidade do ato, enquanto
evento único do existir é determinado, sobretudo, na contraposição valorativa entre o eu e o outro.
Para ele todos os valores da vida real e da cultura (que também constituem a arquitetônica do mundo
real do ato realizado) são obrigatoriamente caracterizados em termos de alteridade. Portanto, a
arquitetônica concreta entre o eu e “todos aqueles que para mim são outros” não é casual, nem
passiva, mas ativa e imperativa.
Posto está, portanto, que os diferentes contextos e centros de valores do eu e do outro
inevitavelmente interagem e se correlacionam nos momentos concretos do existir. Desse modo, ao
traçar detalhadamente sua trajetória reflexiva sobre a Filosofia do ato responsável, Bakhtin nos
convoca a pensar numa ciência outra, ciência centrada na unicidade, na singularidade e na alteridade
inequívoca do ser.

REFERÊNCIAS

HETEROCIÊNCIA
506

BAKHTIN, Mikhail. Per una filosofia dell'atto responsabile. Traduzione dal russo di Luciano Ponzio. Lecce: Pensa
Multimedia, 2009.
______. Estética da criação verbal. 5. ed. Tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010a.
______. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução do italiano Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São
Carlos: Pedro e João Editores, 2010b.
PONZIO, Augusto. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010a.
______. Encontros de palavras. O outro no discurso. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010b.
______. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto,
2011.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
507
Para esse trabalho, propusemo-nos o debate
acerca das propostas metodológicas de dois
importantes autores para os estudos nas ciências

QUESTÕES humanas. No campo da linguagem Mikhail Bakhtin e


da psicologia Lev Vygotsky. Essa discussão tem
como objetivo explicitar as aproximações das

METODOLÓGICAS NA
propostas teórico-metodológicas dos autores. Para
isso, recorremos à subseção “Problemas de
método”, do livro “Formação social da mente”
(1989) de Lev Vygotsky e “Observações sobre a

PESQUISA EM CIÊNCIAS epistemologia das ciências humanas”, do livro


“Estética da criação verbal” (2003) de Mikhail
Bakhtin. Esse estudo propiciou-nos explicitar os

HUMANAS: interlocuções entre


diálogos entre as propostas metodológicas dos
autores, embora saibamos que existem
especificidades nas duas propostas metodológicas
que não devem ser apagadas. Nossa intenção foi de
Bakhtin e Vygotsky contribuir com a discussão dos pressupostos
metodológicos de ambas teorias, destacando a
importância da compreensão dos fenômenos, por
meio do processo em que ocorrem, buscando o
modo como funcionam e se materializam na e pela
linguagem e não somente como se apresentam.
SCHADEN, Érica Mancuso 109
Palavras-Chave: Metodologia. Bakhtin. Vygotsky
OMETTO, Cláudia Beatriz de Castro Nascimento 110

INTRODUÇÃO

E
ste texto é fruto de um projeto de doutorado vinculado à linha de pesquisa “Linguagem e Arte em
Educação”, do Grupo Alfabetização, Leitura e Escrita-Trabalho Docente na Formação Inicial de
Professores – ALLE-AULA da Universidade Estadual de Campinas, cadastrado no Diretório dos
Grupos de Pesquisa do CNPq e, mais especificamente, a um projeto financiado pelo CNPq - Processo
nº 401404/2016-1 (Projeto-Mãe), que busca compreender aspectos relativos ao trabalho a favor da
formação de leitores na escola básica e às práticas de leitura possibilitadas pelos professores, em
salas de leitura da SEE/SP, aos alunos que frequentam o ensino fundamental - anos finais. Nos limites
deste texto, propusemo-nos o debate acerca das propostas metodológicas de dois importantes
autores para os estudos nas ciências humanas, Mikhail Bakhtin no campo da linguagem e Lev Vygotsky
no campo da psicologia.
Para isso, recorremos à subseção “Observações sobre a epistemologia das ciências
humanas”, do livro “Estética da criação verbal” (2003) de Mikhail Bakhtin e “Problemas de método”,
do livro “Formação social da mente” (1989) de Lev Vygotsky.
O interesse pela proposta metodológica de ambos os autores relaciona-se à nossa filiação
aos pressupostos téoricos de Bakhtin e Vygostky, isto é, às perspectivas discursivo-enunciativa e

109Doutoranda em Educação da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: ericamancs@gmail.com


110Doutora em Educação. Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Departamento de Educação,
Conhecimento, Linguagem e Arte – DELART. E-mail: cbometto@yahoo.com.br

HETEROCIÊNCIA
508

histórico-cultural do desenvolvimento humano, respectivamente. Trata-se de dois pressupostos


teóricos que nos movem em termos de identificação pessoal e por proporem que a produção e o
tratamento dos dados de um estudo deva acontecer de forma processual, pela mediação da
linguagem. Esse já pode ser destacado como um dos pontos de diálogo entre Bakhtin e Vygotsky: a
ênfase se dá na linguagem como o lugar da produção de sentidos e no processo do desenvolvimento
do fenômeno mais do que no resultado final.
Consonâncias são encontradas também na filiação teórica dos autores, como aponta
Magalhães (2011): Bakhtin e Vygotsky elaboraram suas propostas teóricas à luz do materialismo
histórico-dialético. Ademais, ambos os autores trabalharam com a questão da alteridade. Aqui, ainda
com as contribuições de Magalhães (2011), vale uma ressalva: para Vygotsky, a alteridade relacionava-
se à relação de ensino, cujos interlocutores estariam presentes no mesmo espaço epistemológico,
por exemplo, uma sala de aula. Perspectiva distinta de Bakhtin, que defendia a necessidade do outro,
não disposto no mesmo espaço epistemológico do sujeito, visto que sua preocupação asssentava-se
na alteridade constitutiva dos sujeitos.
Agora, uma importante diferença entre as propostas teóricas analisadas. Essa distinção está
no âmbito do foco da abordagem desses estudos: Bakhtin tinha como preocupação a linguagem e o
processo de interação verbal; Vygotsky preocupava-se, especificamente, com as relações de ensino.
Embora haja essa diferenciação, ambos se unem quanto à importância das relações sociais para a
constituição dos sujeitos.
A seguir, exporemos com mais detalhes as contribuições das propostas discursivo-
enunciativa de Bakhtin e histórico-cultural do desenvolvimento humano de Vygotsky para
problematizar o método na pesquisa em ciências humanas. Para isso, recorreremos a dois textos, um
de cada autor, que tratam especificamente dessa assunto.

1. O MÉTODO EM MIKHAIL BAKHTIN

Em “Observações sobre a epistemologia das ciências humanas”, presente no livro “Estética da


criação verbal” (2003), por meio da explicação de conceitos teóricos concernentes à linguagem,
desenvolvidos por Mikhail Bakhtin, buscamos compreender a proposta de método de pesquisa pelo
autor. Um desses conceitos trata-se da compreensão, a qual é formada por diversos atos,
caracterizados por serem autônomos, mas que só são entendidos por meio do processo de
compreensão.
Diante disso, segundo Bakhtin, a compreensão seria composta por quatro atos: 1. a percepção
do signo, em termos psicofisiológico, quanto à palavra, cor, forma espacial; 2. o reconhecimento do
signo (conhecido ou desconhecido pelo sujeito) e sua significação geral na língua; 3. a significação
contextual do signo; e 4. a compreensão dialógica ativa pelo sujeito (a concordância ou discordância; e
os juízos de valor). O resultado do processo de compreensão seria a descoberta do que existe no
mundo.

HETEROCIÊNCIA
509

Outro conceito importante para esse debate é o de sentido. O sentido, para Bakhtin, é
composto por dois elementos: a imagem e o símbolo. Posto ser inacabado, o sentido se relaciona com
a rememoração (acontecimentos passados) e com a presunção do possível (acontecimentos futuros).
Por isso, o sentido compreende-se por outros sentidos e sua investigação não deve ser por meio das
Ciências Exatas substanciada pela racionalização científica.
O afastamento, defendido pelo autor, dos métodos oriundos das Ciências Exatas é explicado no
trecho a seguir, em que distingue os estudos desenvolvidos nas Ciências Humanas dos nas Ciências
Exatas:

As ciências exatas são uma forma monológica de conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e
pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que pratica o ato de cognição (de contemplação) e
fala (pronuncia-se). Diante dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (incluindo o homem)
pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e
estudado a título de coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo;
consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico (BAKHTIN, 2003, p.404, grifos
do autor).

Nesse ensejo, para Bakhtin, as Ciências Humanas (estudo do espírito humano) e as Ciências
das Letras (estudo da palavra) são constituídas pela historicidade e dialogia. Com relação à dialogia, o
autor esclarece que o processo de sua formação se inicia pela palavra do outro; “palavra do outro”
transformada na “palavra pessoal-alheia”, com o auxílio de outras “palavras do outro”; e, por fim,
torna-se palavra pessoal do sujeito. Esse caminhar da palavra do outro para a palavra do sujeito
ocorre pelo esquecimento de sua origem. Esquecer é importante para se significar. Esse é o processo
pelo qual o sentido se instaura na linguagem, segundo Bakhtin.

A palavra do outro torna-se anônima, familiar (numa forma reestruturada, claro); a consciência se
monologiza. Esquece-se completamente a relação dialógica original com a palavra do outro: esta relação
parece incorporar-se, assimilar-se à palavra do outro tornada familiar (tendo passado pela fase da
palavra “pessoal-alheia”). A consciência criadora, durante a monologização, completa-se com palavras
anônimas. Este processo de monologização é muito importante. Depois, a consciência monologizada, na
sua qualidade de todo único e singular, insere-se num novo diálogo (daí em diante, com novas vozes do
outro, externas) (BAKHTIN, 2003, p.407, grifo do autor).

Outro ponto, destacado pelo autor, que concebe sentido à palavra é a entonação. Pelo tom, por
exemplo, pode-se dar um sentido de ordem em palavras que não significam mando. Por isso, a
entonação e as condições de produção dos enunciados, o contexto em que se produzem, promovem a
polifonia do sentido. Dialogia e polifonia são elementos que compõem o processo criativo do sujeito, e
dos sentidos.

Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este se
perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, aqueles que
nasceram do diálogo com os séculos passados, nunca estão estabilizados (encerrados, acabados de

HETEROCIÊNCIA
510

uma vez por todas). Sempre se modificarão (renovando-se) no desenrolar do diálogo subsequente,
futuro. Em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade inumerável,
ilimitada de sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto, no desenrolar do diálogo, ao sabor de
sua evolução, eles serão rememorados e renascerão numa forma renovada (num contexto novo). Não
há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento. O problema da
grande temporalidade (BAKHTIN, 2003, p.414-415).

Entendemos que o método de pesquisa de Bakhtin considera o inacabamento do sujeito e do


sentido. O sentido original (primeiro) se apaga para que, pelo processo criativo, surjam novos
enunciados. Isso só se efetua pela relação dialógica, quando o sujeito se transforma com e pelo outro.
O outro promove a compreensão, mediante a réplica (resposta) do sujeito ao dizer do outro,
no movimento de concordar ou discordar das palavras alheias. O ato enunciativo, propostos por
Bakhtin, envolve desde as formas linguísticas, as palavras e as relações morfológicas e sintáticas
constituintes, como os elementos não-verbais, o contexto, em que a enunciação ocorre. Assim, a
réplica se relaciona ao conceito de “compreensão ativa”, desenvolvido pelo autor, em que, pelas
relações sociais entre os sujeitos, sentidos são produzidos.
A compreensão, constituída por atos autônomos, cujo sentido é formado por seu processo,
pela dialogia do sujeito com o outro, com outros sentidos, presentes e ausentes, caracteriza a análise
científica, proposta por Bakhtin, que se afasta dos preceitos das Ciências Exatas, do objeto-coisa, do
sujeito-coisa, movimento que permite que a polifonia se instaure. Dessa maneira, a análise científica
pela compreensão não emudece, ao contrário permite que objeto de estudo fale.

2. O MÉTODO EM LEV VYGOTSKY

Na subseção “Problemas de método”, do livro “Formação social da mente” (1989), Vygotsky,


ao tratar sobre o método de pesquisa, propõe que dado um problema científico requerer ser tratado
sob nova perspectiva, o método e a análise podem ser modificados. Nesse contexto, ao corresponder
ao problema tratado, os métodos de pesquisa não devem ser somente transformações dos já
existentes.
Para ilustrar essa questão, Vygotsky destaca a situação em que se encontrava a Psicologia
em sua época, momento em que qualquer tipo de processo e experimento psicológico era tratado pelo
viés do estímulo-resposta. No entanto, essa proposta metodológica, advinda das Ciências Naturais,
não conseguia responder à investigação sobre as funções psicológicas superiores, restringindo-se
somente às funções psicológicas elementares, condição relacionada aos estudos experimentais.
Com o objetivo de investigar as funções psicológicas superiores, Vygotsky propôs seu método,
caracterizado da seguinte maneira: a investigação científica volta-se para a análise do processo e não
para análise do objeto de pesquisa em si. Trata-se, portanto, da história do processo, da análise de
seus componentes principais, de seu desenvolvimento, cuja variância de tempo deve ser considerada
referente ao objeto tratado. Isto é,

HETEROCIÊNCIA
511

se substituímos a análise de objeto pela análise de processo, então, a tarefa básica da pesquisa
obviamente se torna uma reconstrução de cada estágio no desenvolvimento do processo: deve-se fazer
com que o processo retorne aos seus estágios iniciais (VYGOTSKY, 1989, p.45).

Além disso, esclarece que a investigação científica deve se valer mais da explicação do que da
descrição dos fatos. Isso porque “a mera descrição não revela as relações dinâmico-causais
subjacentes ao fenômeno” (idem). Diferentemente, é o caso das psicologias mais introspectivas, que
necessitam, segundo o autor, da ênfase na descrição do que na explicação dos fatos. Diante isso,
Vygotsky relaciona, para efeito da análise científica, o caráter genotípico para a explicação e o
caráter fenotípico para a descrição.
Em seus dizeres, se houvesse correspondência entre essência e sua manifestação exterior,
valendo-se do fenótipo, não havia necessidade da existência da ciência, já que os fatos cotidianos
seriam facilmente explicáveis. O autor, baseando-se em Karl Marx, alerta que essa correspondência
direta não se concretiza:

Na realidade, a psicologia nos ensina a cada instante que, embora dois tipos de atividades possam ter a
mesma manifestação externa, a sua natureza pode diferir profundamente, seja quanto à sua origem ou à
sua essência (VYGOTSKY, 1989, p.46).

Dessa maneira, Vygotsky explicita que busca a essência dos fenômenos psicológicos e não
somente a descrição deles, embora não desconsidere as características externas do fenômeno
(idiossincrasias), no processo da análise científica.
A análise científica também não deve se restringir ao “comportamento fossilizado”, que são
processos ou estágios, com duração longa, que, por conta do tempo, fossilizaram-se, repetidos de
maneira mecanizada. Isso porque “eles perderam sua aparência original, e a sua aparência externa
nada nos diz sobre a sua natureza interna” (idem). Assim, é preciso buscar a origem do fenômeno, por
meio do processo de seu desenvolvimento:

para isso, o pesquisador é frequentemente forçado a alterar o caráter automático, mecanizado e


fossilizado das formas superiores de comportamento, fazendo-as retornarem à sua origem através do
experimento. Esse é o objetivo da análise dinâmica (VYGOTSKY, 1989, p.47).

Outro ponto que é importante apontar, refere-se ao conceito de história, utilizado pelo autor.
Com o intuito de estudar a psicologia historicamente, baseando-se na ótica da análise do
processo/desenvolvimento do que da análise do resultado, Vygotsky rejeita a postura de muitos
pesquisadores de sua época que tratavam a história como sinônimo de eventos do passado.
Apoiando-se no materialismo histórico-dialético, o autor explica que “estudar alguma coisa
historicamente significa estudá-la no processo de mudança; esse é o requisito básico do método
dialético” (idem). Por meio do movimento/mudança compreende-se a essência do fenômeno.

HETEROCIÊNCIA
512

Rejeitando as posturas mecânicas de investigação científica, o fenômeno, caracterizado por


Vygotsky como fenômeno complexo, não é um conjunto de processos separados, que se somam ou se
subtraem, devendo ser compreendido por todo o seu processo. Em sua época, segundo o autor, os
psicólogos davam mais ênfase ao tempo de reação e tempo da resposta a um estímulo do que ao
processo desse aprendizado e entendimento da própria reação. Diante disso, postula que, as
informações do fenômeno, entendido como um processo, poderiam ser coletadas desde os primeiros
momentos, por exemplo, desde os primeiros encontros com o sujeito da pesquisa. Diante disso,
Vygotsky afastou-se das metodologias experimentais que associavam estímulo-resposta, posto que,
não promove com que o pesquisador compreenda como os sujeitos organizam seus comportamentos,
quais métodos acionam para tal situação (VYGOTSKY, 1989).
Compreender como um fenômeno ocorre torna-se mais importante, para Vygotsky, do que a
mera descrição desse fenômeno. Para esse autor, o processo, a mudança, a essência e a
interpretação do fenômeno são ações pertinentes à análise científica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por esse estudo, observamos que há diálogos profícuos entre as perspectivas teórico-
metodológicas propostas por Vygotsky e Bakhtin do que dissonâncias, embora existam especificidades
nas duas propostas teórico-metodológica que não devem ser apagadas. Ressaltamos que ainda há
muito por desvelar, no entanto, nossa contribuição foi destacar alguns pontos de convergência, tais
como, a importância da compreensão dos fenômenos, por meio do processo em que ocorrem,
buscando o modo como funcionam e não somente como se apresentam. Ademais, ambas as propostas
comprometem-se em dar voz ao sujeito, cujo ato interpretativo é composto também pelo contexto
histórico, pelo seu acontecimento. A mera descrição do objeto traz um único sentido para a análise
científica, algo que ambos os autores visam transpor.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


MAGALHÃES, M. C. C.; OLIVEIRA, W. de. Vygotsky e Bakhtin/Volochinov: dialogia e alteridade. Bakhtiniana, São Paulo, v. 1,
n.5, p.103-115, 1º semestre 2011.
VYGOTSKY, L. S. Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
513
A partir do estudo das proposições teóricas de
Mikhail Bakhtin e da orientação de linguagem como
construção social é que se faz possível o recorte

AMERICAN WAY OF LIFE: o para uma análise investigativa sobre o reflexo da


cultura americana no gênero Young Adult. Enquanto
maior potência econômica mundial, os Estados
homodiscurso da vida americana no Young Unidos é um dos maiores produtores de artefatos
culturais semióticos, como a literatura, filmes,
Adult111 séries e artistas musicais. Procura-se entender,
portanto, como se dá a veiculação dessa cultura
comerciável que é exportada para o mundo todo
levando intrínseca a si a cultura norte-americana.
Tendo a intenção de expandir seu domínio cultural
por meio do “American way of life” essas obras
acabam fomentando a criação de identidades
SILVA, Juan dos Santos112 específicas. Para entender esse processo, a fortuna
crítica de autores como Hall (2015) e Maffesoli
(2005) permitem a compreensão da formação
identitária no mundo contemporâneo e nos jovens.
Juntam-se a esse arcabouço Jenkins (2015) e
Os deuses simplesmente se mudaram, para a Alemanha, para a Canclini (2003) para situar o sujeito em análise e
França, para a Espanha, por algum tempo. Aonde quer que as compreender como se dá essa construção
ideológica e valorativo nos discursos advindos dos
chamas brilhassem mais, lá estavam os deuses. Eles passaram enlatados americanos. A pesquisa se insere na área
vários séculos na Inglaterra. [...] Goste ou não – e acredite, uma da Linguística Aplicada e se orienta teórico-
porção de gente não gostava muito de Roma também -, os metodologicamente por uma investigação
Estados Unidos são agora o coração da chama. São a grande qualitativa dos dados.
potência do Ocidente. E, portanto, o Olimpo é aqui. E nós estamos
Palavras-Chave: Young Adult. Identidade. American
aqui. (Rick Riordan, 2009, p. 81) way of life. Cultura. Contemporaneidade

INTRODUÇÃO

A
o se debruçar sobre o estudo da linguagem pelo viés da Linguística Aplicada, é necessário
assumir essa como um artefato histórico, moldada pelos sujeitos que a utilizam e, como sugere
Bakhtin, uma arena de conflitos. Essa linguagem, portanto, está inseparável da questão do poder;
para o filósofo russo, cada signo, mais do que um mero reflexo, ou substituto da realidade, é
constituído no sentido de ser produzido dialogicamente no contexto de todos os outros signos sociais.
Assim como o sujeito, a comunidade também se forma nessa arena de conflitos, no qual os discursos
combatem uns com os outros, silenciam e ascendem a partir da queda do outro. Esse poder da
linguagem é visto ao longo de toda a história da humanidade, e pode ser observada claramente ao se
perceber como determinadas nações detiveram, a partir de suas línguas e linguagens produzidas, o
poder em determinados períodos da história.
Durante a Idade Média, período no qual as artes e sobretudo a literatura estiveram nas mãos
de uma pequena aristocracia, todos os documentos eram escritos em latim e todas as produções
exaltavam a cultura romana, sobretudo os aspectos ligados à religião – já que o clero residia no topo

111
Trabalho orientado pela Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves, Professora Doutora em Comunicação e Semiótica. Professora Associada da
área de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e do Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem. E-mail: penhalves@msn.com
112
Aluno de graduação em letras (língua portuguesa e literaturas) e bolsista de iniciação científica (CNPq) na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. E-mail: juanfflorencio@gmail.com

HETEROCIÊNCIA
514

da pirâmide social da época. A explicação para isso é bem clara ao se observar o processo de
dominação projetado por Roma que se estendia por quase toda a Europa, o norte da África e boa parte
da Ásia. Essa dominação fez com que o latim se expandisse por esses territórios e levasse consigo a
cultura romana, na qual a Igreja levou às outras regiões aquilo que era de seu interesse e que faria
dos povos conquistados mais próximos do espectro romano.
Ao abrir um romance juvenil ou passear pelas séries e filmes da Netflix, é evidente perceber
que grande parte deles são produções vindas do solo americano. Isso quer dizer que essas obras são
visões e produções que observam o mundo e seus fenômenos de um ponto de vista norte-americano
e, no que compete a construção de ambientes verossímeis, esses são feitos seguindo os moldes do
país. Assim, é comum observar determinados aspectos que se repetem e, muitas vezes, passam
despercebidas – ou já como comuns – no plano de fundo das obras, como as constantes idas à
Starbucks ou lanchonetes de fast-foods, o uso de aparelhos Apple, a posse de casas grandes e
escolas com armários, ônibus amarelos, líderes de torcida, times de futebol americano e outras
questões já habituadas desse estilo de vida.
Essas representações são fruto do "American way of life" (ou estilo de vida americano)
símbolo e ferramenta de propaganda do período pós-primeira guerra no qual o país gozava de uma
excelente situação econômica a partir do fornecimento de alimentos e recursos bélicos para os
países envolvidos no conflito. A divulgação em massa desse estilo de vida buscava, justamente,
influenciar os demais países da América a sonhar esse “sonho americano” e buscar, por meio do
consumismo desenfreado, um nível de vida semelhante ao dos americanos. Entretanto, o sistema
estaria ameaçado com a quebra da bolsa em 1929 e os movimentos de contracultura que surgem para
questionar esses valores consumistas e conservadores, como é o caso dos grupos hippies e do Rock.

1. A FORÇA DAS LINGUAGENS DO OLIMPO CONTEMPORÂNEO

A estratégia de um modelo de divulgação de ideais e ideologias por meio da arte tem sido uma
forma de substituir costumes nativos de uma determinada cultura pelos padrões enlatados da cultura
yankee, que é uma poderosa arma para garantir a posição máxima de poder como representante
maior do imperialismo global. É a partir dessa estratégia que se percebe, cada vez mais, uma
indiferenciação entre jovens de inúmeras partes do mundo, os quais a partir de uma constante
desterritorização (CANCLINI, 2003) e dos inúmeros campos discursivos presentes nos aparelhos
fornecidos pela globalização, faz com que eles consumam, leiam, assistam, comam e bebam as
mesmas coisas daqueles que estão há milhares de quilômetros. No Brooklyn ou em uma favela do Rio
de Janeiro, há sempre um McDonald’s por perto, os filmes exibidos pela televisão ou pelos serviços
online retratam esse modo de vida americano, assim como, as obras literárias consumidas por esse
público.
As ideologias são (re)significações da realidade, ou seja, construções edificadas a partir da
interação dos sujeitos e cristalizadas ao longo do tempo. Esse fenômeno do poder tem sua concretude

HETEROCIÊNCIA
515

na vida a partir das práticas discursivas e contribuem, portanto, para a produção, reprodução ou
transformação das relações de dominação entre as classes sociais (FAIRCLOUGH, 1996). Levando em
consideração essa constatação, temos que as práticas discursivas de qualquer esfera são
influenciadas por relações ligadas ao poder e, quase sempre, reproduzem um discurso dominante. Ou
seja, imaginar as produções advindas de uma realidade americana como neutras ou livres de uma
questão ideológica de dominação é um fato facilmente questionável.
Se compreendermos a linguagem como arena de disputa dos discursos, os Estados Unidos
possui uma produção cultural que é comercializada de forma intensa e desenfreada por todo o mundo.
Esse consumo exacerbado de mercadorias que se inicia na Era dos Extremos (HOBSBAWM, 1995) e se
alarga até hoje, tem por objetivo uma dominação simbólica que, cada vez mais, compromete a
solidificação dos costumes locais que são, paulatinamente, substituídos por um estilo ocidental,
consumista e norte-americano. Esse processo influencia, portanto, a criação das identidades das
“colônias” americanas, as quais como consequências da globalização geram uma “McDonaldização”
(KUMARAVADIVELU, 2005) cultural na qual as identidades se constroem a partir de relações de
alteridade construídas com protótipos culturais enlatados. As palavras são tecidas a partir de uma
multidão de fios ideológicos, e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios
(VOLOCHINOV, 2017), nesse sentido, as estruturas de dominação estarão intrínsecas às produções
culturais advindas dos Estados Unidos, sobretudo no Young Adult por ser uma literatura consumida,
justamente, no momento de busca ávida pela identidade e lugar no mundo. Dessa forma, criam-se
obras enlatadas que são exportadas em grande número para o Brasil e outros países, uma
consequência do fenômeno de consumo dos best-sellers. Assim, este trabalho objetiva investigar
como se dá essa construção dos romances tendo esse cenário americanizado como plano de fundo e
como a prática da leitura desse material favorece para a construção das identidades dos sujeitos
leitores.

2. TRANSMUTAÇÃO DE ESTRUTURAS ENLATADAS

O mundo globalizado propiciou ligações profundas entre as diversas regiões do mundo, de


modo que um evento que acontece em um determinado país pode, e provavelmente irá, ocasionar
reações em um país extremamente distante e que possui poucas relações com aquele. Tudo isso
deve-se ao processo de avanços tecnológicos e da própria intensificação da globalização, que dispôs
relações intensas entre todas as regiões do globo. Esse processo de conexões, ao se imaginar os
diversos conteúdos trocados e a constante interação entre os sujeitos desses locais, deu início ao
processo da cultura da convergência, o que como propõe Jenkins refere-se (2009, p.29)

ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos


mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a
quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma
palavra que consegue definir transformações técnicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo

HETEROCIÊNCIA
516

de quem está falando e do que imaginam estar falando. No mundo da convergência das mídias, toda
história importante é contada, toda marca é vendida e todo consumidor é cortejado por múltiplas
plataformas de mídia.

Essa nova estruturação dos sistemas de interação e construção de linguagem entre os


sujeitos globais é força motriz para que se diminuam as fronteiras entre as mais diferentes nações e
se inicie um processo de desterritorização (CANCLINI, 2003). A própria noção de um sujeito global
evidencia essa contemporaneidade na qual cada vez mais a partir do consumo dos mesmos produtos,
obras, filmes e diversos outros materiais se constrói sujeitos muito mais próximos em termos de
hábitos ainda que muito distantes. Essa facilidade de compartilhamento acaba, portanto, sendo uma
oportunidade para um prevalecimento das construções culturais da nação dominante. Isso pode ser
observado de forma bem claro ao se perceber a enxurrada de obras “Made in USA” nos cinemas e
livrarias. Tem-se, portanto, uma evidência dessas narrativas no mercado, o qual fica explícito uma
dominação cultural que privilegia os enlatados em detrimento da cultura local.
Seguindo a reflexão de Maffesoli (2005) sobre as juventudes da contemporaneidade, é
perceptível a constante queda da ordenação da lei do pai, ou seja, a estrutura vertical (fálica) de um
sujeito detentor do poder tem sido colocada em questão à medida em que as questões cristalizadas
das sociedades ocidentais são colocadas em jogo e questionadas. Isso se justifica pelo avanço de um
processo tecnológico que permite a circulação de vozes outras em um ambiente como o das ágoras
gregas, nas quais agora o discurso pode circular com maior (ainda que limitada) liberdade. O cimento,
portanto, o qual é responsável por edificar esses corpos sociais encontram-se agora na comunicação
de massa, local no qual personagens da ficção ou celebridades guiam esses jovens em processo de
construção identitária por um caminho em que a postura moralizadora é deixada muitas vezes de lado
na busca de “se encontrar”.

Véu islâmico, quipá judeu, lenço Hermès, roupas íntimas Calvin Klein, poderíamos à vontade multiplicar
os signos e as marcas que podem ser consideradas o mesmo que manifestações do sentimento de
pertencimento. Stricto sensu, “nós somos” isso que fixamos como um emblema de reconhecimento.
Mesmo, e sobretudo, se uma tal afirmação provoca ou choca aqueles que “não o são”. O umbigo exposto
de uma maneira “sexy”, a circuncisão religiosa, assim como o piercing íntimo favorecem os êxtases
comunitários. Eles são o mesmo que rituais anódinos ou exacerbados por meio dos quais as microtribos
contemporâneas exprimem suas afinidades eletivas; por meio dos quais elas transfiguram um cotidiano
dominado por uma lógica mercantil em uma realidade espiritual que, às vezes, ao se proteger atrás da
máscara da transcendência, sempre não é menos profundamente humana: isso que vejo com outros,
aqui e agora. (MAFFESOLI, 2005, p. 24)

A partir das reflexões de Maffesoli e das considerações sobre a cultura da convergência e a


expansão do pensamento mercantil propiciado pelo capitalismo é perceptível a estruturação de um
sistema no qual, cada vez mais, as identidades se relacionam com o consumo. A fascinação de alguns
jovens por filmes dos anos 80 e 90 somado a afinidade por bandas como The Smiths e roupas mais
distantes do habitual vendido em lojas de departamento são o suficiente para evidenciar esse sujeito

HETEROCIÊNCIA
517

como hipster ou alternativo. Essas identidades acabam, portanto, fortalecendo um mercado financeiro
no qual venderá os artefatos necessários para que se possa, enquanto dono, se afirmar como
pertencente a determinado grupo. O fato é que as identidades se constroem a partir das coleções dos
objetos da contemporaneidade. Os livros da estante, as músicas nas playlists dos sites de streaming,
os canais inscritos no Youtube e diversas outras novas formas de se colecionar moldam a forma com
a qual os indivíduos são vistos e constituídos.

A agonia das coleções é o sintoma mais claro de como se desvanecem as classificações que distinguiam
o culto do popular e ambos do massivo. As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis e
portanto desaparece a possibilidade de ser culto conhecendo o repertório das "grandes obras", ou ser
popular porque se domina o sentido dos objetos e mensagens produzidos por uma comunidade mais ou
menos fechada (uma etnia, um bairro, uma classe). Agora essas coleções renovam sua composição e
sua hierarquia com as modas, entrecruzam-se o tempo todo, e, ainda por cima, cada usuário pode fazer
sua própria coleção. As tecnologias de reprodução permitem a cada um montar em sua casa um
repertório de discos e fitas que combinam o culto com o popular, incluindo aqueles que já fazem isso na
estrutura das obras: Piazzola, que mistura o tango com o jazz e a música clássica; Caetano Veloso e
Chico Buarque, que se apropriam ao mesmo tempo da experimentação dos poetas concretos, das
tradições afro-brasileiras e da experimentação musical pós-weberiana. (CANCLINI, 2013, p.304)

A cultura situada na convergência possibilita, então, diversos modos de se colecionar aquilo


que represente o sujeito. Essas atividades de formação de identidade estão quase sempre ligadas a
uma atividade que gere prazer (CANCLINI, 2003), já que são nesses ambientes que se tem espaço
para uma certa subjetividade e criação de valores. Em paralelo a isso, os amigos se unem muitas
vezes para realizar essas atividades em grupos, o que mais uma vez evidencia a questão identitária,
dessa vez relacionada a formação de grupos os quais possuem sua dinâmica orbitando em torno de
um ou vários tópicos específicos os quais caracterizam e singularizam esse bando. Nesse sentido, é
evidente a visão de que ao se considerar o outro, é necessário perceber que ele não é externo a mim,
pelo contrário, me constitui (BAKHTIN, 2011). Ou seja, é a partir da minha relação com o outro que,
enquanto sujeito inacabado, é possível me constituir.
A nação americana está, portanto, intimamente ligada a essa questão de construção dos
processos identitários e autoafirmativos da sociedade contemporânea ao considerá-lo o Olimpo de
onde saem os mais diversos artefatos semióticos a serem consumidos pelo público consumidor. Os
escritores americanos escrevem as obras juvenis a partir das suas percepções do mundo juvenil
americano. A boa recepção dessas obras em países como o Brasil, Austrália e Noruega, por exemplo,
não é de forma alguma estranha, já que os múltiplos artefatos artísticos e discursos vindo desse país
produtor já garantiram jovens extremamente semelhantes aos seus e situações extremamente
verossímeis. Nessa perspectiva, os leitores de ficção científica endeusam as produções de George R.
R. Martin, a comunidade LGBT produz/consome gigantesco conteúdo ligado às divas pop, os viciados
em série movimentam o serviço altamente rentável da Netflix e os adolescentes buscam, cada vez
mais, respostas para suas inquietações nos produtos da cultura de massa. O que se cria nesse
espaço do capital é o indivíduo-massa, o qual segundo Bosi (2002, p. 249)

HETEROCIÊNCIA
518

quando entra no universo da escrita (o que é um fenômeno deste século), o faz com vistas ao seu
destinatário, que é o leitor-massa, faminto de uma literatura que seja especular e espetacular. Autor e
leitor perseguem a representação do show da vida, incrementado e amplificado. Autor-massa e leitor-
massa buscam a projeção direta do prazer ou do terror, do paraíso do consumo ou do inferno do crime,
de uma literatura transparente, no limite sem mediações, uma literatura de efeitos imediatos e
especiais, que se equipare ao cinema documentário, ao jornal televisivo, à reportagem ao vivo [...], o
filme, imagem em movimento, teria tornado supérflua, para não dizer indigesta, a descrição miúda [...].
Uma cena de um minuto supriria, no cinema, o que o romancista levou mais de uma dezena de páginas
para compor e comunicar ao seu leitor.

Essa situação descrita por Bosi ilustra o funcionamento de um mercado editorial o qual o
escritor já tem em vista um público extremamente específico para o qual sua produção é dirigida em
cheio. Afinal de contas, no contexto da produção cultural com vistas ao lucro do capital, a publicação
de um livro deve gerar lucros que justifiquem a sua publicação. É esse um de deus mais importantes
objetivos nesse contexto. O consumo de romances juvenis estrangeiros no Brasil é grandiosíssimo,
bem como uma predileção por eles por parte do público nacional. A explicação para isso é bem
simples, tendo em vista que as editoras nacionais priorizam a publicação daqueles livros que tiveram
um considerável número de venda nos Estados Unidos, os chamados best-sellers. Ou seja, acontece
algo semelhante com o que acontece com os produtos primários dos países subdesenvolvidos. Os
melhores (levando em consideração uma questão quantitativa relativa ao número de vendas) são
exportados para outros locais. Nesse sentido, geralmente apenas os “bons” enlatados chegam ao
Brasil, portanto, maior a chance de agradar o leitor e fidelizá-lo, já que as narrativas em série e os
autores precisam de leitores que mais do que a leitura de um livro, perpetuem a compra por outros
livros dessa série ou autor.
Esse consumo gigantesco de enlatados traz consigo os valores americanos e, portanto, faz
com que o público juvenil queira se aproximar cada vez mais do espectro da cultura yankee. Isso pode
ser percebido desde muito cedo no jovem brasileiro, seja pela constante mimese de personagens dos
programas televisivos ou filmes, a compra do material escolar de um determinado personagem ou o
sonho já enraizado de conhecer a Disney. Todos esses atos estão valorados por uma questão
identitária, a qual é revelada a partir de um produto e influenciada por um sistema maior que constrói,
lucra e molda os pontos de vista a partir de uma cultura que se expande para além de suas fronteiras.

3. POR UM HETERODISCURSO NO ROMANCE YOUNG ADULT

Este artigo vem sendo construído sob o argumento de que os artefatos da cultura americana
estão constituídos por valoração simbólica que, além de carregar seus costumes e modos de vida
para outros países, faz com que esses se tornem objetos de desejo e busca. Esse pensamento
contribui para a ideia de uma literatura de massa que corrobora com os mecanismos do poder e,
portanto, estaria aliada a um processo de alienação dos sujeitos, dando-lhes, além de entretenimento,
conforto frente à situação que enfrentam. Sobre isso, seria possível estabelecer essas obras como

HETEROCIÊNCIA
519

conivente com o que Bakhtin chama de forças centrípetas, as quais agem em favor de um discurso
unificador e homogêneo, o qual tenta permanecer cristalizado em determinadas estruturas da língua e
das disposições sociais.
Entretanto, essa visão não se sustenta. É verdade que o modelo ideológico americano está
intrínseco a essas produções. O fato de a literatura de massa ter elementos identitários e construção
de verossimilhança, pensando um sujeito universal, mas acima de tudo em um perfil americanizado
também é uma realidade. Apesar disso, imaginar leitores passivos e inocentes na era da convergência
reflete não só uma falta de conhecimento do público o qual se investiga, mas também uma falta de
profundidade – o que pode ser claramente entendido pelas poucas pesquisas neste campo da
literatura juvenil contemporânea – no que se refere às estruturas desses romances.
Nessa perspectiva, a ideia de uma literatura juvenil descartável e como canal de um discurso
homogeneizante pode ser questionado a partir de três questões principais: a infiltração de questões
excludentes, o leitor interativo e a construção da alteridade.
Ao se propor tratar das questões da juventude, o Young Adult necessita chegar a lugares
pouco explorados pela obra juvenil destinada a esse público até então. Nesse sentido, a
homossexualidade, as questões dos adolescentes latinos, pessoas fora do padrão estético, a
transexualidade e diversas outras questões pertinentes a esse momento driblam o tabu social e, por
meio da literatura, constrói narrativas refratadas da realidade contemporânea. Ao fazer isso, essa
literatura permite a entrada desses assuntos nos lares, ambiente pouco propício para discussões em
volta dessas temáticas mas que, no entanto, no livro, jovens conseguem visualizar, a partir do outro,
situações das quais eles se sentem próximos, possuem dúvidas ou gostariam de vivenciar, porém as
forças de contenção social os impedem. Por meio da literatura YA 113, o adolescente consegue viver
aquilo que, muitas vezes, não é apropriado para o mundo real. Enquanto inacabado, observar o outro
faz o sujeito ir, pouco a pouco, se constituindo. Até que essa formação transborde em discurso. Nesse
sentido, a ideia de um romance como força centrípeta no sentido de unificar esse indivíduo ao padrão
cristalizado implode. Na realidade, ao permitir a relação com o outro, esses sujeitos são sugados para
sua verdadeira identidade e convidados a assumi-la frente ao discurso monológico, sendo essa
narrativa um exemplo claro de força centrífuga.
A partir dessa perspectiva, a noção de uma literatura como mero entretenimento ou
anestésico social adquire fragilidade, uma vez que essa nova forma de contar histórias para o público
juvenil revela pontos os quais constantemente a sociedade tenta varrer para baixo do tapete. Ao
funcionar como força centrífuga, esses romances propiciam, a partir de uma leitura
fundamentalmente dialógica com leitor e com o mundo contemporâneo, a oportunidade de se
encontrar axiologicamente e poder ressignificar-se ou se afirmar com mais força no meio o qual está
inserido.
É importante ressaltar, ainda, um olhar mais atento para essa questão da representatividade,
sobretudo no que tange à sexualidade. Os casais homoafetivos, por exemplo, estão quase sempre

113
A partir de agora nos referiremos ao gênero com sua abreviação: YA (Young Adult).

HETEROCIÊNCIA
520

representados de uma maneira extremamente higienizada, como participantes de uma classe média, a
sexualidade não tão explícita – apesar de presente - e um mundo quase sempre mais tolerante do que
aparenta. Isso resulta em uma representação da homoafetiva que representa apenas um leque desses
indivíduos, nesse caso, um grupo mais normativo e, consequentemente, mais fácil de ser aceito pelo
sistema. No entanto, essa representação constante da homossexualidade nessas obras permite uma
crescente infiltração nas paredes dos conceitos solidificados da sociedade, e pouco a pouco, autores
como David Levithan e Benjamim Alire Sáenz, por exemplo, burlam esse sistema e apresentam
narrativas em variados espectros mais representativos e longe de uma imagem única. Talvez seja
justamente esse rompimento crescente com uma era vitoriana (Foucault, ano) que faz dessas obras
tão atraentes para esse público de hormônios em conflito, os quais conseguem ver seus dilemas
muito bem representados por esses escritos.
Imaginar um leitor que recebe textos como quem recebe um lanche de fast-food o qual não
atribui qualquer sentido a esse produto depois de consumi-lo tem uma noção quase falida na
contemporaneidade. Isso porque ligados por um sistema de interconexões, o limiar entre leitor e
autor se estreita cada vez mais e dá origem a uma cultura participativa (JENKINS, 2015). O processo
de formação identitária a partir dessas leituras é muitas vezes tão forte que seus leitores não
conseguem suprir sua necessidade de identificação frente a obra apenas lendo. São nesses momentos
que a leitura deixa de ser um ato individual para ganhar mais espaço no espaço social a partir de
outros gêneros, como acontece com os leitores que dramatizam as partes favoritas da obra,
escrevem outras histórias a partir de uma perspectiva própria (fanfics) e se organizam em grupos
que ampliam os sentidos do texto e da própria compreensão desse sujeito leitor.

Um sentido descobre suas profundidades ao encontrar e ao tangenciar outro sentido, um sentido alheio:
entre eles se estabelece um tipo de diálogo que supera o caráter fechado e unilateral desses sentidos,
dessas culturas . [...] No encontro dialógico, as duas culturas não se fundem nem se mesclam, cada uma
conserva sua unidade e sua totalidade aberta, porém ambas se enriquecem mutuamente (BAKHTIN, 1982,
p.352).

As construções de sentido individuais encontram nas comunidades de leitores, fóruns online e


redes sociais o sentido do outro. Essa interação dialógica é responsável por, a partir do olhar para o
sentido do outro, construir as diversas visões sobre aquilo que se observa e fazer surgir o processo
de criticidade.
A questão da alteridade surge, portanto. Enquanto sujeito inacabado, a contemplação dos
outros sujeitos – ainda que nas folhas de papel, na tela do smartphone, no cinema ou no navegador – é
fundamental para a construção do eu. Se os significados se constroem na interação e negociação
entre os sujeitos (Volochinov, 2017) é a partir desse ato de leitura que o leitor se permite enxergar o
mundo a partir de outros olhos e, nesse momento, tudo é incerto. Afinal, ao se permitir distanciar de
si para observar pelos olhos do outro, as estruturas correm o risco de ruírem, desabarem e,
posteriormente, se edificarem a partir de novas estruturas.

HETEROCIÊNCIA
521

É sempre necessário lembrar, como bem citou Bosi (2002, p. 255) “nem tudo que é dito
novamente é simplesmente ‘dito de novo’; novamente pode ser também advérbio de modo; dizer
novamente: dizer de maneira nova”. Ao confrontar Bosi e Bakhtin, percebemos uma constante
interação entre os sentidos dos enunciados literários ao longo das últimas décadas. A partir de um
cronotopo específico, o romance – seja canônico ou de massa – se adapta para melhor representar
aquele de quem tenta falar. O maniqueísmo nesse processo apenas evitaria um enriquecimento mútuo.
A alteridade, portanto, é essencial no processo de se reconhecer no outro e, a partir dele, enquanto
sujeito inacabado, se conectar ao mundo.
A grande crítica que se faz às obras da literatura de massa se refere ao fato de “serem obras
as quais não possuem uma proposição, apenas entretém e dão a sensação de conforto aos seus
leitores”, o que evidencia uma voz galgada no senso comum. A literatura YA tem sido alvo de
preocupação por parte de pais e educadores, curiosamente, por romper com as obras infanto-juvenis
que até então traziam aventuras as quais caminhavam necessariamente para um final feliz – ou ao
menos agridoce. Ainda que se tenha construções enlatadas com vistas ao lucro e a difusão intrínseca
de um modelo de vida americano, o YA rompe em diversos aspectos com o que outras literaturas
juvenis vinham fazendo até agora. Não no sentido de criar um novo gênero, mas um novo modo de
narrar. O espetáculo é, muitas vezes, substituído por narrativas de adolescentes comuns, em bairros
comuns, sem superpoderes, grandes habilidades, beleza e nem ao menos uma vida estabilizada. Esse
romance sem uma grande jornada de aventura e sem um herói todo poderoso é resultado de uma
transmutação114 das questões juvenis contemporâneas. Mais do que uma aventura, muitos desses
jovens querem se encontrar nas páginas, interagir com os personagens e conseguir estabelecer laços
com a narrativa que, evidentemente, dirá muito sobre a identidade desse que lê.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mundo rígido e cristalizado o qual os sistemas do poder acharam ter construído ao longo
dos séculos, tem se mostrado cada vez mais poroso e fluido, assim como foi defendido pelo filósofo
Bauman (1992). A modernidade, as identidades, o amor e diversas outras relações pertinentes às
construções sociais do sujeito começam a ser entendidas como realmente são; líquidas, ocasionais,
momentâneas e destinadas a fragmentassem caso tentam se perpetuar em um estado mais sólido.
Enquanto proposta de exportação de uma cultura enlatada que se axpande por todo o mundo,
os Estados Unidos está correndo o risco de manusear uma faca, que como descrita por João Cabral
de Melo Neto, que seja apenas uma faca só lâmina. A medida que tenta homogeneizar grupos e dispor
de sujeitos mais alinhados e dentro de um certo padrão por meio de uma cultura massificadora, o país
também permite a criação de uma cultura letrada e a veiculação de tantas ideias que, por diversas
vezes, escritores, roteiristas, pensadores e demais produtores fogem do sistema padrão e inovam

114
Explicar o conceito.

HETEROCIÊNCIA
522

suas obras ao ponto de se distanciar desse aspecto “tranquilizador” e causar reflexão, dúvida e
questionamento para os espectadores.
A literatura YA é um claro exemplar desse processo, na medida em que convida seus leitores
a, independente do sistema em que se vive, assumir sua verdadeira identidade e ter a autonomia de
seguir seu caminho particular independente dos discursos que tentem sufocar essa identidade aos
confins do corpo. Em uma cultura da convergência, esse aspecto também incute mudanças em
diversos outros locais. Imaginar um jovem da américa central ou do sul que lê uma obra cuja
representação da homossexualidade é feita de forma a vê-la como normal no meio social, é pensar
em um sujeito que pode contribuir na luta pela justiça social desse grupo o qual é extremamente
marginalizado nesse “topos”, uma vez que o machismo opera de uma forma muito mais intensa na
América abaixo da América do Norte. É possível observar, portanto, que o YA tem funcionado como
uma grande força centrífuga na atração de sujeitos para fora dos armários, quartos, casas e
mundinhos. A literatura, construída sob moldes americanos, transcende essa questão e representa o
jovem do mundo, cada romance com suas particularidades, ampliando a representatividade e
corroendo aos poucos o homodiscurso que tenta se instaurar frente às diferentes vozes. As grossas
e pesadas pedras que circundam os valores da sociedade ocidental precisam lidar com os constantes
tsunamis da era contemporânea. No final das contas, cada vez mais chegamos perto de conferir se o
velho ditado estava certo e após os constantes choques e corrosões, poderemos enfim chegar ao
momento em que as pedras do sistema furarão e as vozes do sul (MOITA-LOPES, 2006), finalmente,
entrarão.

REFERÊNCIAS

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______. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
______. Teoria do Romance I: a estilística. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.
BAUMAN, Z. Intimations of postmodernity. Londres, Routledge, 1992.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Segio
Paulo Rouanet. 1ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
BOSI, Alfredo. Os estudos literários na era dos extremos. Em: Flávio Aguiar (org.), Antonio Candido: Pensamento e
Militância. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
FAIRCLOUGH, N. Language and power. New York: Longman, 1996.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: EDUSP,
2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. 12.
ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.
HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. 1941-1991. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1995.

HETEROCIÊNCIA
523

JENKINS, H. Cultura da Convergência. Tradução Susana L. de Alexandria. 2. ed. 5. reimp. São Paulo: Aleph, 2015.
KUMARAVADIVELU, B. Desconstruindo a linguística aplicada: uma perspectiva pós-colonial. In: In: FREIRE, Maximina M.
ABRAHAO, Maria Helena Vieira. BARCELOS, Ana Marta Ferreira. (Orgs). Linguística aplicada e contemporaneidade.
São Paulo: Pontes Editores, 2005.
MAFFESOLI, Michel. Cultura e comunicação juvenis. Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 2, n.4,p.11-27, 2005.
MARX, K.;ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
RIORDAN, Rick. O Ladrão de Raios. Tradução Ricardo Gouveia. 2. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da
linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
524

CALEIDOSCÓPIO DE MIM: Este texto é um exercício de criação de um plano


estético polifônico para enunciar na ciência.
Apresenta um diálogo revelando algumas forças de
ciência-arte-vida tensão que disputam espaço na arena das ciências
humanas. Coloca em cena as dificuldades e os
desafios da construção de uma heterociência.

Palavras-chave: Pesquisa. Ciência. Estética


SILVA, Maria Leticia Miranda Barbosa da 115

ASSIM ACONTECEU...

O outro não é somente o outro em relação a você, mas é também outro de você, o outro de cada um. E
você o pode encontrar no momento em que sai do papel, sai do gênero, sai da identidade, sai do padrão,
sai das emboscadas mortais das oposições, dos conflitos. Ali se encontra a sua outra palavra.
Augusto Ponzio, 2010, p.10.

L
á fomos nós, subindo a trilha da montanha, já desenhada no chão. Caminhávamos sem pressa...
Conversando... Rindo... Olhando... Cheirando as cores e toqueando, com o corpo, a vida. Marisol,
Reginaldo, Paty, Lili, Marcelo, Denise e eu, amigos do Atos116, tentando olhar a vida e a arte com
olhos de Bakhtin.
Era um sábado do mês de abril. O Museu de Inhotim parecia ter se preparado para a nossa
chegada! O céu se pintara de branco e azul. As plantas se vestiram de todos os tons de todas as
cores. O vento andava preguiçoso ao nosso lado, nos acompanhando tranquilo. Enormes borboletas
azuis sapateavam agitadas pelos jardins.
Sem nos darmos conta, com a respiração ofegante pela subida, chegamos ao alto do morro.A
paisagem se abria em um grande vale contornado por montanhas. Demos de cara com uma máquina,
ViewingMachine, obra do dinamarquês OlafurEliasson!

115Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense; Pesquisadora do Grupo Atos/UFF, Grupo de Estudos Bakhtinianos, no qual
pesquiso autorias infantis e processos de criação artística das crianças na escola. Professora de Artes Visuais do Colégio Pedro II.
116 Grupo Atos/UFF- Grupo de Estudos Bakhtinianos.

HETEROCIÊNCIA
525

Figura 1. Fotografia de Inhotim

Fonte: Arquivo pessoal

Chegamos perto.Todos queriam ver, tocar e girar, como meninas e meninos crianceando o
desconhecido. Rodamos o gigante de ferro de um lado para o outro e, sem demora, Paty colocou o
rosto na abertura menor do caleidoscópio e soltou a voz, ao ritmo de Gilberto Gil:
-Ô, ô, ô, ô, ô, ô,ô! Ah! Aaah!
Ô, ô, ô, ô, ô, ô,ô! Ah! Aaah!

Figura 2- Cantando no caleidoscópio

Fonte: Arquivo pessoal

A voz de Paty ecoou pelo tubo, produzindo um som abafado, que contrastava com aamplitude
dorosto dela, multiplicado infinitamente por um jogo deespelhos.
Depois que todos brincaram bastante com a obra e se afastaram, me aproximei para
experimentá- la com tranquilidade, sem pressa esozinha. Aproximei o rosto da abertura maior para
ver o que encontraria ali dentro. A natureza imediatamenteescorreu para dentro da máquina! No
movimento de girar o aparelho de um lado para o outro, aquele gigante fazia com que a natureza
capturada se modificasse em seu interior, a cada leve movimento que eu fazia.
Também gritei para experimentar a minha voz naquele espaço. Ela ecoou abafada e estranha
dentro do tubo tão comprido e estreito.
Dei a volta e aproximei a cabeça do outro lado da abertura. Queria repetir a mesma sensação,
só que de um ponto de vista diferente. Enquanto me aproximava, fui vendo infinitos reflexos do meu
rosto aparecendo dentro da máquina e, ao mesmo tempo,fui escutandouma confusão de vozes que

HETEROCIÊNCIA
526

pareciam discutirno seu interior.Achei estranho: eu não estava falando nada e não tinha mais ninguém
por perto! Dei um pulo para trás, assustada!
Olhei ao redor, meus amigos estavamtodos sentados em um pedra conversando ea paisagem
vibrava em silêncio. Não haviaoutra pessoa ao redor da obra, além de mim!
Curiosa, aproximei novamente o rosto, dessa vez lentamente, quando vi todos os meus reflexos
novamente, só que, desta vez,encontrei osilêncio. As vozes haviam se calado.
'Talvez seja o cansaço, uma alucinação', pensei. 'Não, não foi isso.Eu realmente escutei vozes,
foi real'. Resolvi ficar um tempo esperando para ver o que aconteceria.
Passado o susto inicial, fiquei ali, parada, espreitando, olhando para cada uma de mim e
novamente aconteceu:
-Não se sinta culpada por estar aqui. Queremos dizer a você, Obcecada e Culpada, que, às
vezes, é bom afastar o olho do livro para enxergar melhor as palavras e a vida.Sair um pouco de casa,
conversar com os colegas também ajuda a criar espaço para escutar as entrelinhas do livro.
- Ôôôô, Pensa que Tudo Sabe, você tá doida, tá? O que você está falando, minha filha? Sair do
livro? Fale por você, não me inclua nesse "queremos dizer". Eu sou contra esse passeio. Precisamos
terminar a tese. Olhaaa a teseee! Precisamos ler, escrever, estudar, pensar nos métodos, na coleta
de dados, pensar nos resultados! Escrever, escrever, escrever. Ler, ler, ler. Não devíamos estar aqui,
PASSEANDO! Você tá pensando que vai ser fácil essa pesquisa? Depois não diga que eu não avisei! -
gritou revoltadaIrritada e Negativa.
- Querida, calma, tudo vai dar certo! - entrou na conversa Suave e Mansa, com uma voz
serena e tranquila - Sabemos que será um desafio! Ninguém aqui vai parar de estudar só porque
passamos um fim de semana no museu-
-Pelo contrário, estar em diálogo direto com a artetambém é uma forma de alargar sentidos
na vida e na pesquisa!
Tudo bem, tá bom, eu sei - continuou Pensa que Tudo Sabe- já vou refazer o que disse, antes
que alguma devocês me corrija! Não estamos em "contato direto com nada", foi um modo de dizer. Sei
que nos constituímos pela linguagem e não acessamos a vida diretamente! O que quis dizer é que é
bom ver a arte com todos os sentidos, sair um pouco do diálogo das obras só peloslivros! Éimportante
ter um contato com a materialidade da obra também.
-Calma, não!!!- não se aguentou e esbravejouIrritada e Negativa- Sou pé no chão! Realista! Tô
vendo que essa pesquisa não vai dar certo com esses passeios! Perderemos o controle do tempo e
dos prazos.
Do meio do tubo à esquerda, surgiu uma voz gargalhante:
-Gente, é ÓTIMOOO que tudo saia do controle! O controle é a parte mais chata da vida e das
ciências! Vamos combinar, né? A vida é TOTALMENTE aberta ao imponderável! Pensar "ter tudo sob
controle" é apenasuma ilusão!
-Doida Varrida, só você mesmo para falar isso tão diretamente assim!- disse Suave e Mansa,
identificando-sebastante com a fala da colega- Você vai provocar a ira de muitos pesquisadores! Sabe

HETEROCIÊNCIA
527

disso, né? Você sabe que alguns se agarrama essa lamentável ilusão de ter tudo sob controle! De que
é possível desenvolver um "método de pesquisa para ser aplicado"; de que é possível se "afastar
emocionalmente do trabalho e ser "imparcial", para "garantir a neutralidade científica" na "análise
dos dados"!! E, finalmente, chegar a uma "verdade única e universal"!!!!
-É isso o que eu digo o tempo todo para vocês!- continuou eufóricaDoida Varrida- Fazer
pesquisa nas ciências humanas com os mesmos métodos usados nas ciências exatas ou naturais não
é mais aceitável! O homem não é um objeto pra ser testado, medido e avaliado! Isso é loucura! É
ficção!
Nesse momento precisei respirar! Sair do tubo para pensar! 'O que estava acontecendo ali?
Será que estou doida?', pensei, 'Escutando minhas próprias vozes discutindo na minha frente?'. Ao
mesmo tempo, estava gostando da discussão, tinha tudo a ver com a minha pesquisa! Respirei fundo
três vezes, voltei e mergulhei o rosto novamente no buraco.
-Por isso precisamoscriar uma heterociência com Bakhtin!Uma ciência outra que dialogue
com o homem da vida! Que busque não uma verdade única, mas uma verdade na relação! Que busque
não apenas respostas, mas que formule novas perguntas para o mundo!
-O quêêêê? Formular novas perguntas? Mais perguntas? Nãoooooo!! Já tenho muitas, não
quero mais perguntas!!!- começou a chorar em pânico Pensa que Sabe Nada-Não vou aguentar, não
vou suportar!!! Não posso mais viver com todas essas perguntas que me atormentam todos os dias:O
que é arte? O que é cronotopo? O que é heterociência?É muita pergunta!!!! Não podemos mudar
teórico?- as lágrimas pulavam da pobre coitada que estava desesperada, que parecia sonhar com o
dia em que encontraria todas as respostas para o mundo.
-Querida, mantenha a calma!Não fique assim! É bom ter perguntas! O que seria do mundo
sempre com as mesmas perguntas?- disse calmamente Suave e Mansa.
-Escutem aqui, todas vocês, preciso que compreendam uma coisa de uma vez por todas:
Bakhtin nos provoca a uma revolução na forma de viver e pensar as relações do mundo
contemporâneo! - falou com um tom firme, Decida e Segura- Elenos ajuda a ver o caráter inacabado,
dialógico e alteritário da constituição do homem. Nossa pesquisa vai continuar com ele, não é possível
mais voltar atrás nesse posic...
-Já sei o que você vai dizer- interrompeu Irritada e Negativarevirando os olhos e inundando o
caleidoscópio com deboche e descrença.- Vocêjá repetiu mil vezes isso: "com Bakhtin podemos pensar
uma ciência do sujeito expressivo e falante, uma ciênciaque não objetifique o homem na pesquisa,
podemos pensar uma pesquisa do ato singular". Balela! Não sei como fazer isso! É melhor fazer aquilo
que já sabemos! Pode até parecer bonito isso, mas inventar moda na tese é arrumar problema com a
banca!
-Irritada e negativa, não adianta tanta ironia! Não se trata de um discurso sem sentido, já
conversamos sobre isso muitas vezes. Com Bakhtin assumimos uma outra maneira de estar no
mundo, de ver o homem e de fazer pesquisa! Precisamos deslocar os sentidos dos pensamentos
colocados para nós como verdades inalteradas! A ciência que transforma o homem em uma abstração

HETEROCIÊNCIA
528

pouco tem contribuído para a melhoria das relações no mundo!Sei que algumas de nós têm medo de
tentar fazer diferente, mas é preciso criar! Esse é um caminho sem volta- continuou Decidida e
Segura.
-Queridas, olhem ali quem está com o dedo levantado esperando a vez!Medo de Errar quer
falar! Vamos escutá-la!
-Não sei bem... pode ser que eu não tenha entendido muito bem... mas tenho uma coisa pra
falar... pode parecer boba... se for... peço desculpas...
-Fala logo, minha filha! Pare de gaguejar! Vai falar alguma besteira mesmo! Só você ainda não
percebeu que todo mundo fala uma besteira e manda mal. Acontece com todos!
-Não fala assim com ela!Ela tem medos: medos de infância!Diziam que ela que falava "demais",
que seria mais amada "calada" e "obediente"! Desde então, ela desenvolveu uma inclinação para não
falar, um talento para apurar silêncios117. Por isso tem medo de falar! Não sabe ser escutada! Prefere
não ser notada! - sussurrou Suave e Mansa para a colega que estavairritada e sem paciência- As
vozes que querem a manutenção do poder e da ordem fizeram um trabalho de silenciamento com ela,
um trabalho de muitos anos.
-Medo de Errar, manda ver, estamos te escutando!- encorajou Doida Varrida.
-É que tem uma coisa... Eu gosto de pensar em uma ciência do ato único, também concordo
que não existe uma verdade absoluta, universal, válida para todos os homens e em todos os lugares.
Mesmo sem saber como fazer essa ciência, eu me identifico com ela! Mas ... tem uma coisa que não
entendo bem... se Bakhtin quer uma ciência do ato único e irrepetível, teremos que fazer uma ciência
para cada ato?Teremos uma ciência para cada sujeito?
Todas ficaram em silêncio. Entreolhavam-se, pensavam e piscavam sem parar os olhos. A
seriedade tomou conta dos espelhos. Pensei: 'O sério está voltado para o concluído. Pede resposta.
Estabiliza. Pareceque sempre precisamos ter as respostas. É chamado de ignorante quem não tem
respostas'.
...

De repente,Doida Varrida solta uma gargalhada daquelas que destoem o mundo:


-HaHaHaHaHa!!! Boa, Medo de Errar! Mandou bem! Eu também fico pensando nisso!!! Não
precisam ficar com essas caras sérias!!! Não precisamos ter sempre uma resposta para todas as
perguntas. Que importa não saber? Não saber é muito mais amplo que saber.
A 'liberdade ri'.
-Querida Medo de Errar, sua pergunta é a mesma de várias outras vozes.
De repente, uma voz firme e toda explicada, novata na conversa, surgiu lá no fundo e começou
a explicar:
-Bem, já conversamos que Descartes foi importante para um novo posicionamento do homem
frente aos dogmas da época. Ele contribuiu para a reformulação de paradigmas e pensamentos,

117
Mia Couto-retirado do meu caderno de anotações de "Frases belas".

HETEROCIÊNCIA
529

porém, o seu racionalismo virou um dogma e foi levado às últimas consequências para se alcançar
uma verdade universal. Pensar que o conhecimento válido é só o conhecimento da ciência, que apenas
pela razão chegamos a um conhecimento verdadeiro e que é possível um conhecimento universal são
concepções herdadas do racionalismo cartesiano. Precisamos atualizar essas questões, criar novos
paradigmas e práticas para o mundo contemporâneo, paradigmas que considerem o sujeito implicado
nos atos, na vida- discursou Explicada e Prolixa.
- Olhem... Estou dizendo que deveríamos ir para casa estudar! Que maluquice é essa, gente?
Vocês tão doidas! Como fazer uma ciência do sujeito singular? Como assim "uma verdade do ato"?
Será preciso uma ciência para cada sujeito praticamente! Isso não existe!
- É isso!!! Estamos falando da ciência do ato, do sujeito vivo da vida, não do homem estudado
em "laboratórios", "homem coisa", abstraídoda vida e das relações humanas - gritou Doida Varrida,
animadíssima, sacudindo até a alma!
-Não tenha medo, Irritada e Negativa, não tenhamedo de ousar, de fazer algo diferente.
Precisamos provocar mudanças, a ciência também é uma área de disputa de sentidos e poder.
Devemos assumir um posicionamento ético e estético nesse processo! Devemos resistir às linhas que
tensionam e desejam o aniquilamento do humano!
- Ai! Queridas, vocês de novo com essa ideia de que os "sentidos sempre disputam e que tudo
no homem é luta de força"!!!- falou baixo elevitando,Equilíbrio e Harmonia- Por que vocês não dão um
descanso? Não daria para todos viverem em harmonia? Em equilíbrio planetário? Igualdade e paz? Por
que vocês acham que tudo é disputa? Hummmm...Vamos pensar que existe uma harmonia entre os
movimentos regulares dos astros do céu. Há uma simpatia entre os elementos planetários e
universais. Vamos tentar viver em paz.
-Não. Não dá. É assim quando se olha a vida com Bakhtin! Você compreende que o homem se
faz na linguagem e que cada palavra enunciada é ideológica e disputa sentidos e poder. São as forças
centrípetas e centrífugas em nós e no mundo. Sem tensão não existe vida! O equilíbrio é a morte!
Equilíbrio e Harmonia abaixou o olhar. Depois da posição tão firme de Decidida e Segura, ficou
pensativa, parecia não se convencer.
-Como fazer isso? Como fazer essa ciência?- perguntou Pensa que Nada Sabe.
-Ainda não sabemos, precisamos construí-la. Mas temos pistas!
-Não vai dar certo- retrucou Pessimista e Negativa.
-O desafio dessa ciência outra é, primeiro, enfrentar que o sujeito das ciências humanas não é
uma coisa morta, mas é um sujeito vivo, expressivo e falante, certo?E para fazer pesquisa com o
sujeito expressivo e falante, só falando com ele e escutando-o. Não podemos fazer pesquisa falando
pelo outro, colocando palavras em sua boca, como se este fosse um boneco, uma marionete em
nossas mãos.
-Vejam quantas certezas das ciências modernas essas ideias bakhtinianas abalam.!!!! Muitos
pesquisadores USAM o outro para realizar suas pesquisas, desenvolvem enormes tratados de
massacre do humano analisando o objeto (o homem) e, no fim da pesquisa, como se existisse um fim,

HETEROCIÊNCIA
530

tiram uma conclusão a partir de uma neutralidade analítica em que o todo é fragmentado em partes
para ser entendido, o pesquisador dá a sentença final: coloca uma verdade sobre o outro aniquilando
o humano!- denunciava Decidida e Seguracom um discurso eufórico.
- Companheiras e companheiros, precisamos de um Manifesto Bakhtiniano. Nossa organização
precisa se reunir epensar práticas de pesquisa que considerem a escuta! Não podemos mais aceitar a
ciência que cala, silencia, fala do homem por trás, pelas costas! Isso é mortificante! Não podemos
aceitar e realizar tais práticas. Os pressupostos pelos quais partimos não são pressupostos
arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais. Estamos falando de indivíduos reais, suas ações e
condições materiais na vida, nos intercâmbios sociais, com sua linguagem da vida real. Totalmente
contrário dessas filosofias que descem do céu para a terra118. Vozes de todos os cantos, uni-vos!-
gritou Revolucionária e Transformadora.
Todas gritaram aclamando! Foi uma gritaria geral! O espírito revolucionário tomou conta da
grande maioria! Aquilo de alguma forma tocava e mobilizava muitas vozes que pareciam ter em
comum, não só o desejo de compreender o mundo, mas o de compreender para transformá-lo. Foi
potente sentir a vibração daquele evento.
Mesmo com a voz trêmula,Medo de Errar era a que mais gritava! Ela carregava as dores de
uma educação do silenciamentoe parecia não querer desistir de falar. Junto às vozes dos colegas do
grupo, ela ganhava força e parecia não quererse tornar ausência novamente.
- Pensa que Tudo Sabe, você me irrita com esse seu ar de que tudo sabe. Mas, já que você
pensa que tudo sabe, mas que, na minha opinião, não deve saber nada tanto assim, fala logo então:
Como fazer essa ciência outra?- perguntou um pouco menos irritada, Irritada e Negativa, parecendo
querer pensar no assunto.
-Eu não sei. Eu desejo saber, mas não sei.
...
Todas se olharam!Pensa que Tudo Sabe assumia que não sabia!
A ausência de som foi tão grande que eu podia ouvir a piscada de olhos de cada uma!
-Como assim? Você sempre sabe de tudo!
Foi quando...Ploft! Senti algo cair e escorrer lentamente pelo meu ombro. Tirei o rosto imediatamente
do tubo e olhei: uma gosma verde, um pouco amarelada, com pequenos farelos marronsescorria pelo
meu braço... Passei alguns instantes tentando limpar o excremento recebido de algum pássaro e,
quando voltei ao tubo, todas elas haviam sumido!
Gritei, chamei, mas nenhuma das vozes voltou a enunciar ali dentro.
Pensava no meu braço, ao mesmo tempo em que pensava nas vozes e na pesquisa. 'Não posso
objetificar o outro'.'Não quero calar as vozes das crianças nesse processo.''Também não quero calar
a minha', 'Mas como?, Como vou limpar isso?','Como fazer manter aos sujeitos vivos?', Como escutá-
los?'.

118
Karl Marx- retirado do meu caderno de anotações"Frases potentes".

HETEROCIÊNCIA
531

'-Vamos, Lê', - uma voz me puxou - , 'vamos andar até 'SonicPavilion'. Vamos escutar os sons, urros e
as vozes da terra'.
'Escutar o quê?' - , perguntei.
E lá...uma outra conversa se iniciou...

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra, 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução: Valdemir Miotello e Carlos Faraco. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2010.
PONZIO, Augusto. A Revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coordenação de
tradução: Valdemir Miotello. São Paulo: Editora Contexto, 2011.
PONZIO, Augusto. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
PONZIO, Luciano. Visionidel testo. Lecce: Pensa Multi Media Editore, 2016.
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez
Editora, 2013.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
532
Este ensaio procura revelar reflexões acerca das
possíveis articulações entre os pensamentos de

DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE María Zambrano e Mikhail Bakhtin, dois filosofos do


século XX, que buscaram articular vida e literatura.
O diálogo possível a partir das contribuições

MARÍA ZAMBRANO E MIKHAIL bakhtinianas e zambranianas, neste texto,


perpassam o tema das metodologias em ciências
humanas. Busco revelar as críticas à uma ciência

BAKHTIN NA BUSCA POR UMA positivista e os argumentos a favor de uma


heterociência, a partir desses dois autores.
Ademais, compreendo a pesquisa narrativa como

CIÊNCIA OUTRA uma metodologia possível para o estudo em


ciências humanas, não só em razão dos movimentos
possíveis pelo pesquisador narrador, mas também
pelas vozes dos sujeitos que compõem a pesquisa.

Palavras-Chave: María Zambrano. Mikhail Bakhtin.


SIMAS, Vanessa França 119
Heterociência. Pesquisa Narrativa

INTRODUÇÃO

A
o realizar uma pesquisa narrativa cujas questões são "Como me constituo como professora no
início da docência? Como o outro me constitui? Como a escrita me constitui?", me coloco no
lugar de professora pesquisadora e investigo a minha própria prática pedagógica. Os dados que
me ajudam a responder essas questões são narrativas que escrevia sobre as aulas e que
compartilhava com um grupo de interlocutores composto por professores da educação básica,
coordenadores pedagógicos, formadores e professores universitários. As interlocuções feitas por e-
mails com esse grupo, a partir dessas narrativas, também compõem o conjunto de informações
disponível para a pesquisa.
Neste contexto metodológico, começo a notar críticas por parte da academia e dos meios de
divulgação científica em relação a essa maneira de fazer pesquisa, isto é, desqualificam o exercício
investigativo que não buca generalizações e construções de verdades, mas sim construções de
compreensões a partir da experiência única de cada sujeito.
Mikhail Bakhtin me auxilia na busca por compreensões acerca do inventar-me professora,
bem como acerca dos movimentos possíveis no processo de narrar o vivido e de pesquisar
narrativamente. No decorrer da pesquisa também tive contato com a obra de María Zambrano, o que
além de possibilitar a construção de compreensões a respeito do ato de escrever (que também me
constitui como professora e pesquisadora), possibilitou a construção de relações entre o pensamento
dela e o de Bakhtin.
Nesta texto, não tenho a intenção de discorrer sobre as lições da pesquisa realizada, muito
embora tenha sido necessário contextualizar o leitor para que saiba qual o ponto de onde parte a

119Doutoranda na Faculdade de Educação da UNICAMP (Brasil) e na Facultad de Ciencias de la Educación da UGR (Espanha). E-mail:
vanessafsimas@gmail.com

HETEROCIÊNCIA
533

minha reflexão. A intenção aqui é de revelar compreensões a respeito de uma ciência outra —
diferente daquela validada como científica pelo positivismo. Compreensões essas, possíveis a partir
do intenso diálogo com María Zambrano e Mikhael Bakhtin, bem como a partir do exercício de
pesquisar narrativamente a minha própria prática.

1. BAKHTIN E ZAMBRANO: dois filósofos que articulam vida e literatura

Tanto Mikhail Bakhtin (1895-1975) como María Zambrano (1904-1991) eram filósofos, que
viveram durante o século XX. Bakhtin era russo, diferentemente dos muitos que o consideravam e o
consideram filólogo, ele se denominava como filósofo, o que é bastante visível em sua obra Para uma
filosofia do ato responsável, na qual desenvolve suas ideias acerca da linguagem em relação ao ato
(PONZIO, 2010). María Zambrano era espanhola, desenvolvia seus pensamentos combatendo a redução
da filosofia como método de conhecimento do mundo, mas considerando-a como vida. Dessa maneira,
fez com que vida e pensamento sejam impossíveis de se separar em sua obra (MAESTRE, 2011).
Ambos, de certa forma, pensavam vida e literatura de maneira articulada. Empresto as
palavras de Ponzio em relação a Bakhtin e de Maestre em relação a Zambrano, para revelar essa
relação entre vida e literatura.

Na escrita literária, Bakhtin encontra realizada a compreensão da arquitetônica que sua filosofia moral,
ou filosofia primeira, se propõe: esta instaura uma relação que permite a manutenção da alteridade do
centro de valor de tal arquitetônica, que é considerado de um ponto de vista transgrediente,
extralocalizado, exotópico, por sua vez único e outro. Trata-se exatamente do relacionamento autor
herói no âmbito do texto literário [...] ele parte de uma refundação da filosofia e percebe que as
exigências estabelecidas nos seus prolegômenos para uma filosofia do ato responsável têm a efetiva
possibilidade de realização na escrita literária, enquanto esta é mais ou menos capaz, segundo os
gêneros e subgêneros literários, de colocar-se fora da dimensão de identidade e da diferença-
indiferença e delinear, de um ponto de vista participativo e não indiferente, uma arquitetônica da
alteridade (PONZIO, 2010, p. 31 e 33)

La literatura, nuestra mejor manera de historiar, y también de pensar, se alimenta del pueblo y,
posteriormente, se lo devuelve sintéticamente transformado, o sea poéticamente sentido. La literatura,
la gran filosofía de España, es nuestra horma del «sin sentido», en un cierto sentido, de la vida. Si crece
la literatura, el estilo, entonces también crece la vida del pueblo, su alma. (MAESTRE, 2011, p. 15)

Ao relacionar esses excertos com a pesquisa que venho desenvolvendo é necessário


considerar que na investigação em questão, apesar de se tratar de uma tese (o gênero discursivo
portanto é tese) o tipo de texto que escolhi para realizá-la foi a narrativa. Ademais, a opção por
registrar a pesquisa durante a pesquisa e não somente no final da pesquisa (depois de ter produzido
os dados, construído categorias, analisado os dados etc.) também é um aspecto relevante que devo
aqui deixar registrado.

HETEROCIÊNCIA
534

No exercício de narrar reflexivamente as aulas e realizar a pesquisa narrativamente, ocorria


o que Ponzio e Maestre apontam em relação aos pensamentos Bakhtiniano e Zambraniano
respectivamente. Isto é, ao narrar sobre a minha prática me fazia autora e personagem, ao fazer-me
personagem (através das narrativas) possibilitava um ponto de vista transgrediente. O local
extralocalizado que ocupava ao ser autora tornava acessível, a mim mesma, percepções outras,
aspectos antes inconscientes. Dessa forma, era possível voltar à sala de aula com outras
compreensões em relação à prática de ensino e às relações estabelecidas no cotidiano escolar.
Parafraseando, Maestre, posso dizer que a narrativa reflexiva se alimentava do cotidiano escolar e de
seus sujeitos e, posteriormente, devolvia a esses sujeitos maneiras de ser e fazer (CERTEAU, 2008)
sinteticamente transformadas, narrativamente sentidas.

2. UMA CIÊNCIA OUTRA

Bakhtin (2010a), no texto Metodologia das Ciências Humanas, faz uma crítica à ciência exata
positivista quando usada nas ciências humanas. O autor afirma que as ciências exatas, como forma
monológica do saber buscam encontrar causas genéricas e confirmar suas hipóteses, no entanto,
nessas ciências há um sujeito e o objeto (mudo). Não é possível, embora ainda hoje ocorra, que nas
ciências humanas as pesquisas se desenvolvam da mesma maneira que nas ciências exatas, uma vez
que
o ser da alma humana, o qual se abre livremente ao nosso ato de conhecimento, não pode estar tolhido
por esse ato em nenhum momento substancial. Não se pode transferir para eles as categorias do
conhecimento material (BAKHTIN, 2010a, p.395).

Ao dizer do conhecimento da coisa e do conhecimento do indivíduo, Bakhtin indica que esses


atos de conhecer são atos distintos. Sugere, ao que se refere a coisa, que o ato de conhecê-la é
totalmente unilateral, vez que a coisa é algo sem vida (monológico). Já, ao mencionar o conhecimento
do indivíduo, ou seja, as ciências humanas, fala em "campo das descobertas, das revelações, das
tomadas de conhecimento, das comunicações" (2010a, p.394), lembrando que, nesse caso, há o
ativismo do cognoscente e o ativismo do cognoscível, configurando um movimento dialógico.
Nesse viés, Bakhtin propõe uma heterociência

A interpretação das estruturas simbólicas tem de entranhar-se na infinitude dos sentidos simbólicos,
razão por que não pode vir a ser científica na acepção de índole científica das ciências exatas.
A interpretação dos sentidos não pode ser científica, mas é profundamente cognitiva. 'Cumpre
reconhecer a simbologia não como forma não científica mas como forma heterocientífica do saber,
dotada de suas próprias leis e critérios internos de exatidão' (Aviérintsiev) (2010a, p. 399).

María Zambrano também faz críticas a ciência (quando aqui escrevo a ciência escrevo me
referindo a uma ciência única, detentora de verdades e não como ciências plurais), ao discorrer
sobre o método.

HETEROCIÊNCIA
535

Lo propio del método es la continuidad, de tal manera que no sabe pensar en un método discontinuo. Y
como la conciencia es discontinua — todo método es cosa de la conciencia — resulta la disparidad, la no
coincidencia del vivir conscientemente y del método que se le propone. [...] Si el método se refiere tan
sólo al conocimiento objetivo, viene a ser un instrumento, lógico al fin y sin remedio [...] Y queda
entonces como instrumento disponible a toda hora. Mas no a toda hora el pensamiento sigue la lógica
formal ni ninguna otra por material que sea. [...] sólo en método que se hiciese cargo de esta vida, al fin
desamparada de la lógica, incapaz de instalarse como en su medio propio en el reino del logos asequible
y disponible, daría resultado. Un método surgido de un «Incipit vita nova» total, que despierte y se haga
cargo de todas las zonas de la vida [...] Un método así no puede tampoco pretender la continuidad que a
la pretensión del método en cuanto tal pertenece (2011a, p.125).

En lo intelectual, la «forma mentis», consecuencia del predominio del Método, sea o no cartesiano, opera
decisivamente; y así tenemos una creciente reducción de las diversas, plurales formas de iluminación a
la claridad (la «clarté») homogénea, extensa. Una claridad que rechaza las tinieblas sin penetrar en
ellas, sin deshacerlas en penumbra, sin abrir en ellas filos de luminosidad. La claridad ha de ser
constante y homogénea. Y toda luz discontinua es desatendida, desvirtuada (2011b, p. 75).

E, assim como Bakhtin propõe uma heterociência, Zambrano discorre sobre a Guía:

[...] no toda la experiencia se resignaría a ascender a ciencia. Alguna, tal vez, se resistirá siempre, por
temor a dejar abandonado algo que la ciencia no había de recoger: alguna función imposible de llenar
por el conocimiento universal y objetivo. [...] Creencias originarias son transformadas en ideas, en
nociones que aún están vivas. Pero ha habido algo, experiencias precisamente, que no se dejaron
reducir a universalidades, que se resistió a ascender al cielo de la objetividad. [...] lo que ha sido método
para el resto de Europa ha sido la Guía para España. Método, a su vez, pero no de la ciencia sino de la
vida en su transformación necesaria. (ZAMBRANO, 2008, p.83)

Acredito que María Zambrano, ao afirmar que não é toda experiência que se resignaria a
ascender a ciência, se refere a essa ciência que deixa o que não lhe convém abandonado. A ciência
que para provar suas hipóteses recolhe da experiência o que lhe é favorável, a ciência que busca
provar, generalizar, reduzir muitas situações diferentes a seus aspectos comuns para poder produzir
o conhecimento.
Seria um dos papéis da heterociência revelar esse algo, que a "senhora ciência" deixa de
colher por não ser generalizável? Arrisco mais, seria um dos seus papéis, além de revelar esse algo,
mostrar, que mesmo particular e talvez por essa razão, esse algo pode ser considerado como parte
do processo de produção de conhecimentos (conhecimentos e não conhecimento)?

CONSIDERAÇÕES, PORÉM NÃO FINAIS...

Nessa discussão sobre outras ciências possíveis, faz-se imprescindível que me questione
sobre como fazer essas ciências outras, essas ciências com o outro. Acredito que pesquisar
narrativamente não possibilita somente uma polifonia (BAKHTIN, 2015) na pesquisa, mas ainda
movimentos possíveis ao narrar: distanciar-se, produzir acabamentos estéticos provisórios (BAKHTIN,

HETEROCIÊNCIA
536

2010a), construir memórias de futuro (BAKHTIN, 2010a) e, a partir delas, mudar o presente de maneira
mais atenta.
María Zambrano (2011b) dizia que ver a realidade como realidade é um despertar a ela. Como
despertar à realidade se a busca é por realidades imutáveis e, a(s) realidade(s), por sua vez, é (são)
sempre inacabada(s)? Para que seja possível despertar à(s) realidade(s) é preciso visualizar o
acabado, para isso produzir acabamentos estéticos e, de outro lugar, conscientizar-se do que antes
era imperceptível. É ainda necessário escutar atentamente as muitas vozes que constroem,
progressivamente, essas muitas realidades, ao invés de enxergar somente uma realidade.
Diante disso, acredito que podemos dizer que a pesquisa narrativa e o registro de pesquisas
de maneira narrativa vão de encontro com as metodologias positivistas, muitas vezes validadas na
academia. Isso porque nas pesquisas narrativas (se desevolvidas de uma maneira que considere as
vozes dos diferentes sujeitos) é possível a expressão da subjetividade de cada sujeito, bem como as
compreensões construídas a partir de cada experiência, ao invés de generalizações ou verdades
absolutas.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010a.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco.São Carlos:
Pedro & João Editores, 2010b.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. paulo Bezerra. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2015.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
MAESTRE, Agapito. Introducción. In: ZAMBRANO, María. Notas de un método. Madrid: Editorial Tecnos, 2011. p. 13-54.
PONZIO, Augusto. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo. In: BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato
responsável. Trad. Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. p.9-40.
ZAMBRANO, María. Hacía un saber sobre el alma. Madrid: Alianza Editorial S.A., 2008.
ZAMBRANO, María. Claros del bosque. 2011a.
ZAMBRANO, María. Notas de un método. Madrid: Editorial Tecnos, 2011b.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
537
Neste texto trabalhamos com o contexto de
produção/recepção da canção “Solo le pido a Dios”,
autoria do cantor argentino León Gieco, e

“SOLO LE PIDO A DIOS”: a analisamos a materialidade da letra com vistas a


estudar o discurso de militância como enunciação
tonitruante. Na revisão bibliográfica, justificamos e
enunciação tonitruante do discurso de apresentamos a perspectiva dos estudos culturais
como prática de intervenção política, em uma
militância na canção de León Gieco primeira subseção; na seguinte, privilegiamos os
estudos de Charaudeau (2006) e Angenot (2015)
sobre o discurso militante e cotejamos as
categorias desses autores com as questões de
alteridade e ato ético, tal como produzidas pelos
estudos de Bakhtin (2010a; 2011).

SOUZA, Nathan Bastos de 120

Palavras-Chave: Enunciação tonitruante. Discurso


de militância. Canção argentina

INTRODUÇÃO

Merecer la vida, no es callar y consentir


Tantas injusticias repetidas…
Es una virtud, es dignidad
¡Y es la actitud de identidad más definida!”.

Honrar la vida, Eladia Blázquez

P
ensar em resistências à escatologia política não é tarefa apenas do hoje, do instantâneo, é uma
questão que entra no “grande tempo”. Como Bakhtin (2011, p. 363) ensina, tudo aquilo que nasce
e está todo e integralmente inscrito no hoje morre junto ao presente, de modo contrário,
aquelas obras que reunem em si os séculos passados entram na ordem do tempo futuro, mais
permanente, que o autor chamou “grande tempo”. É assim com a canção “Solo le pido a Dios”, letra de
León Gieco, que é objeto de estudos deste texto e que comprendemos como uma enunciação
tonitruante do discurso de militância.
A canção de autoria de León Gieco, um cantor do rock nacional argentino, foi produzida em
meio a um contexto delicado em seu país que passava por quase duas décadas sob regime militar:
entre 1966 e 1973 uma primeira didatura, considerada “branda” (PUJOL, 2010), seguida de uma
abertura democrática que durou apenas três anos, quando acontece um segundo golpe de estado há
exata uma década do anterior ter sido deflagrado, essa seria a ditadura mais “sangrenta” conforme
Pujol (2010), que inicia em 1976 e termina em 1983.
Em 1982, a junta militar dá seus últimos suspiros e a Guerra das Malvinas, com as centenas de
mortes e os prejuízos financeiros gerados, foi o estopim e causou o retorno da democracia. No último
ano do regime, um ato constitucional proíbe na Argentina a difusão de músicas em inglês, o que foi
bastante benéfico para autores do rock nacional, como Gieco, e que fez com que “Solo le pido a Dios”

120Mestrando em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Prof. Substituto de Linguística e Língua Portuguesa da
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). E-mail: nathansouza@unipampa.edu.br

HETEROCIÊNCIA
538

fosse transformada rapidamente em um hino de resistência ao mesmo tempo que um pedido de


socorro nas vozes dos jovens.
Mercedes Sosa, que estava exilada na Europa desde 1979, começou a se familiarizar com essa
canção de Gieco por meio de uma fita cassete enviada pelo autor (BRACELI, 2010). Mercedes mesmo
no exílio não parou de trabalhar e incorporou ao repertório de seus shows “Solo le pido a Dios”, que
em pouco tempo se tornou uma das canções mais esperadas em suas atuações em todo o mundo. Em
1982 ainda, Mercedes, arriscando a própria vida, voltou à Argentina para dar alguns concertos em
Buenos Aires e o sucesso maior deles foi a canção ora estudada interpretada por ela e por Gieco. O
efeito de adesão no público que “Solo le pido a Dios” causava era impressionante (veja-se as cenas do
documentário “Cómo un pájaro libre”).
Nesse ínterim, tomamos a canção como objeto cultural que permite vislumbrar um projeto
ideológico ali gestado. O que era insuportável (a ditadura, a censura) se tornaria ainda mais
insuportável, no dizer de Wisnik (1980), se a canção acabasse ou fosse silenciada:

O que acontece calar a boca de um vulcão semi-ativo: desses que exalam há séculos um vapor contínuo?
Um grito, um clamor que o tempo todo escapa entre o que se deseja e o que vive: talvez só seja possível
entender o uso da música assim, perguntando da sua força, e da força da demanda que a sustenta no ar.
Se toda a música usada por nós fosse calada de repente, talvez isso abalasse profundamente a ordem
das coisas, pois, pelo menos por um momento, tornaria o insuportável insuportável (grifo do autor)
(WISNIK, 1980, p. 17).

Assim, para localizarmos nossa reflexão e delimitarmos o campo possível deste texto,
realizamos um recorte na canção que privilegia o estudo da materialidade da letra da canção, tal
como é possível por meio do método sociológico desenvolvido por Bakhtin (2009), relacionando as
formas materiais com o contexto de produção/recepção. Na revisão bibliográfica, em uma primeira
seção, justificamos e localizamos os estudos culturais à moda latino-americana com base nas
manifestações da cultura popular e como prática política; na segunda subseção, privilegiamos a
perspectiva do estudo de Charaudeau (2006) e de Angenot (2015) a respeito do discurso militante
cotejados com as categorias baktinianas de alteridade de ato ético.

1. A EMERGÊNCIA DOS ESTUDOS CULTURAIS LATINO-AMERICANOS COMO PRÁTICA POLÍTICA

Os estudos culturais surgiram por volta dos anos 1950/1960, no mundo anglofalante e se
configuraram, desde então, como um campo interdisciplinar, funcionando como um “movimento
democratizador da cultura” (SZURMUK e IRWIN, 2009, p.9). Na América Latina o conceito de estudos
culturais ainda é muito recente (talvez por esse motivo sua emergência) e, embora parta, sobretudo,
dos estudos anglo-saxônicos, guarda heranças com a ensaística do século XIX e o ensaio crítico do
século XX (SZURMUK e IRWIN, 2009, p. 10).
Alguns momentos são decisivos para o desenvolvimento dos estudos culturais latino-
americanos, dentre eles, destacam-se:

HETEROCIÊNCIA
539

A tradição ensaística latino-americana dos séculos XIX e XX;


As influências da recepção dos textos da Escola de Frankfurt, do Centro para Estudos Culturais de
Birmingham e do Pós-estruturalismo francês.
A decisiva relação horizontal (sul-sul) com os avanços intelectuais dos projetos acadêmicos de outras
áreas geográficas sobre os estudos do subalterno e o pós-colonialismo;
O desenvolvimento de uma agenda de estudos culturais latino-americanos nos Estados Unidos, originada
nos movimentos sociais de políticas de identidade – especialmente feminismo, movimentos chicano e
afro-americano, militância gay – no questionamento dos cânones e das epistemologias, além, é claro, da
participação progressivamente aumentada de intelectuais latino-americanos em universidades daquele
país (cf. SZURMUK e IRWIN, 2009, p. 10).

É interessante perceber que no movimento dessas relações horizontais (sul-sul), que origina
as chamadas “epistemologias do sul” (SANTOS e MENESES, 2009), se encontram as agendas dos
considerados “países subalternos” e intelectuais provenientes deles se alçam, contraditoriamente, a
países de grande tradição científica, causando a divulgação da perspectiva teórica nos grandes
centros e a tradução de suas publicações nas diferentes línguas. Por exemplo, o caso de Edward Said,
palestino, que desenvolveu sua carreira acadêmica nos Estados Unidos; também Stuart Hall,
jamaicano, que se radicou na Inglaterra e de lá desenvolveu sua teoria. A contradição entre lutar
contra o sistema colonial e estar infiltrado nele, como foi o caso dos dois estudiosos acima
mencionados, não foi problema para os desenvolvimentos que ambos deram à reflexão sobre a
cultura e o desvelamento das questões sociais exigidas por ela.
Não por acaso, então, os estudos culturais sempre se orientam em uma perspectiva de
prática de intervenção política (cf. SZURMUK e IRWIN, 2009, p.11), necessária quando os intelectuais
perceberam que no final da modernidade e a extinção das colônias na maior parte do mundo, o
pensamento pós-colonial se impõe e é preciso uma luta por espaços acadêmicos pelos autores que
não provém dos grandes centros de investigação, mas mesmo assim tem contribuições no sentido das
lutas sociais.
A perspectiva dos estudos culturais desenvolvida na América Latina, originária dos trabalhos
ensaísticos dos últimos dois séculos (XIX e XX), tem como questões de base as discussões entre o
nacional e o continental, o rural e o urbano, a tradição versus a modernidade, a memória e a
identidade, mas dá especial atenção ao papel desenvolvido pelos intelectuais e pelas instituições na
formação de discursos e de práticas sociais, culturais e políticas. Por tais motivos, muitos críticos
têm questionado o caráter cosmopolita dos estudos culturais latino-americanos, argumentando que

[…] en América Latina los estudios culturales tienen una tradición propia anterior a la importación de
los modelos de prácticas de estudios culturales que se originaron en la academia norteamericana en los
años ochenta y noventa (SZURMUK e IRWIN, 2009, p.12).

HETEROCIÊNCIA
540

Em contraposição, o enfoque dos trabalhos desenvolvidos na América Latina tem se dado com
especial atenção à chamada “cultura popular” (CANCLINI, 1983), interessando-se, em específico, por
suas formas no eixo da modernidade e em luta com o capitalismo.
Dessa maneira, nos parece que existe a emergência dos estudos culturais latino-americanos,
partindo da reflexão de Santos (2009, p.23), porque “o pensamento moderno ocidental é um
pensamento abissal”, que se dá conforme um jogo de luzes, tornando partes da realidade visíveis e
outras, por conseguinte, invisíveis. Conforme esse pensamento, o universo se divide em dois: “o
universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A distinção é tal que ‘o outro lado da
linha’ desaparece enquanto realidade, tornando-se inexistente, e é mesmo produzido como
inexistente” (SANTOS, 2009, p. 23).
Em outras palavras, continuando o raciocínio do autor, é impossível a co-presença dos dois
lados da linha. Assim, é reforçada a emergência dos estudos culturais nas relações de ordem
horizontal (sul-sul) porque na mesma medida em que o norte (configurado aqui metaforicamente
como o “poder”) lança luz sobre si mesmo, lança trevas na direção contrária. Nos termos de Bautista
(2014), temos que “pensarnos a nosotros mismos, pero, desde el horizonte histórico y cultural de
nuestra propia realidad, desde nuestros propios problemas, desde nuestras propias concepciones,
desde nuestras propias ‘cosmovisiones’ ” (BAUTISTA, 2014, p.83).
Por fim, recuperamos uma informação que delimita esse quadro de referências dos estudos
culturais à moda latino-americana. Conforme Szurmuk e Irwin (2009), entre 1996 e 1997 a revista
britânica Journal of Latin American Cultural Studies entrevistou uma série de estudiosos da cultura
latino-americana que se consideravam representantes do movimento no continente. Quase sem
exceção, os intelectuais que se alinhavam às questões da cultura se declaravam interessados na
investigação de temas da agenda nacional (como foi o caso de B. Sarlo) ou o desenvolvimento de
programas distintos daqueles da agenda norte-americana (como N. G. Canclini, que declarou, ademais,
ter se envolvido com estudos culturais sem ao menos saber como denominavam a corrente de
estudos, ou seja, que seu trabalho é anterior à nomenclatura).
Nessa mesma série de entrevistas, Szurmuk e Irwin (2009) informam que J. Franco delineou
três operações que os discursos metropolitanos realizam sobre as perspectivas epistemológicas
advindas do “terceiro mundo”, quais sejam, 1) a exclusão, justificada segundo a ideia de que o terceiro
mundo é irrelevante à teoria; 2) a discriminação, porque o terceiro mundo é irracional, segundo os
discursos metropolitanos, e, portanto, subordinado ao conhecimento racional produzido na metrópole;
e 3) o reconhecimento, justificado apenas pelo fato de considerar-se que o terceiro mundo é um lugar
do instintivo (cf. SZURMUK e IRWIN, 2009, p.16).
Por fim, para concluirmos esta seção, vale o apontamento a respeito do uso de categorias e
de dados que se localizam ideologicamente na América Latina, sobretudo em sua parte hispano-
falante. Nos termos de Santos (2009), o que acontece, em geral, é a produção de uma invisibilidade
sobre a América Latina e os bens culturais produzidos neste continente. Desse modo, tomar como
objeto de estudo e reflexão a cultura popular latino-americana, materializada em uma canção como

HETEROCIÊNCIA
541

aqui ou em um cancioneiro como desenvolvido por nós em outro estudo (SOUZA, 2017 no prelo), se
configura, antes de gesto de pesquisa, como ato político, ético.

2. A ENUNCIAÇÃO TONITRUANTE DO DISCURSO DE MILITÂNCIA

Bakhtin (2011, p. 356) que a palavra viva, que não se separa do ambiente diálógico busca “ser
ouvida e respondida. Por sua natureza dialógica, ela pressupõe também a última instância dialógica”.
O movimento que instaura o dialógico no interior da palavra é da natureza dela, que que ser “ouvida”,
que busca “escuta”, que procura o “outro” como lugar único de constituição. E, afirma o autor russo,
“É inadmissível a solução à revelia. Minha palavra permanece no diálogo contínuo, no qual ela será
ouvida, respondida e reapreciada”, isto é, a palavra não busca um diálogo viciado sem interação.
Essa palavra que busca escuta está desde o diálogo cotidiano até os tratados filosóficos mais
desenvolvidos, atravessando os gêneros discursivos de ponta a ponta, dos mais simples até os mais
complexos. É interessante que, para o caso do discurso da canção, gênero produzido como meio de
entretenimento, ligado à fruição estética, a palavra não apresenta um a priori que seja político, que
apresente intenções de discussão de temas pertinentes às mazelas sociais.
Contudo, considerado o contexto que informamos na introdução deste texto, fica claro que os
objetos estéticos produzidos durante os vários anos que a Argentina passou sob regime militar
refletiriam e refratariam essa realidade, de modo que a canção daquele país entre os anos de 1960 e
1980 apresenta características de forte crítica social, condições de produção que geraram o que
ficou conhecido mais tarde como “canção de protesto”. Charaudeau (2006, p. 40) afirma que, nesse
ínterim, não é o discurso que é político, “mas a situação que assim o torna. Não é o conteúdo do
discurso que assim o faz, mas é a situação que o politiza”.
De acordo com Angenot (2015, p. 145), a essência da retórica do militante é querer sempre
colocar muitas palavras no mundo, “muito convencer e muito explicar, muito esclarecer, tornar muito
coerente” (idem). Assim, ao dar corpo e voz à luta e convidar o público a entrar nessa empreitada, o
traço distintivo da retórica miltante é o excesso. Isso acontece porque o ato de cantar na canção
militante se torna ato ético que

[...] supera toda hipótese, porque ele [o ato] é – de um jeito inevitável, irremediável e irrevogável – a
realização de uma decisão; o ato é um resultado final, uma consumada conclusão definitiva; concentra,
correlaciona-se e resolve em um contexto único e singular já final o sentido e o fato; [...] o ato constitui
o desabrochar da mera possibilidade na singularidade da escolha uma vez por todas (BAKHTIN, 2010, p.
80).

Dessa maneira, o ato ético é uma tomada de posição, que é feita de uma vez por todas,
irretornável, com a qual se deve responder com o todo do corpo e o todo da responsabilidade. Já que
sabemos, como o filófoso russo explica que “viver significa participar do diálogo [...]” (BAKHTIN, 2011,
p. 348) e essa participação se dá “com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo,

HETEROCIÊNCIA
542

os atos” (id.ibid). Em outros termos, no mundo do ato, mundo da vida, entramos com o todo de nós
mesmos, do “corpo à palavra” (BAKHTIN, 2011; BUBNOVA, 2016), isto é, com o todo material exterior e
com o todo interior que se exterioriza em direção ao outro.
Qualquer tentativa de escapatória da responsabilidade mais especializa, tal é o caráter
inevitável da responsabilidade que o ato coloca em cena (PONZIO, 2012). É por esse motivo que, nas
lutas contra as ditaduras na América Latina, tantos tenham dado “o rosto a bater”, porque naquele
contexto em específico não seria possível se negar a dizer a palavra, para retomarmos a reflexão de
Wisnik (1980), seria deixar que o insuportável se tornasse insuportável.
Nessa esteira, Charaudeau (2006, p. 272) explica a constituição dos grupos de militância
partindo do pressuposto de que fazem parte da sociedade cidadã, que são sujeitos que partilham “com
ela a preocupação com a coisa política e se caracteriza[m] por uma especificidade que é seu
engajamento na ação”. De acordo com essa definição, o sujeito militante é aquele que ao perceber
algo que não vai bem no ambiente político decide levantar-se contra algo. É o que acontece com os
movimentos sindicalistas ou partidários nos distintos momentos da sociedade moderna.
Historicamente, os grupos militantes, no entendimento de Charaudeau (2006), sempre
estiveram à sombra dos partidos políticos, interessados no que acontece nos bastidores da vida
política. Seu discurso se constroi com base em uma imagem combativa, integrando um imaginário de
virilidade (“Nós combatemos”)121 ou de fecundidade (“Nós combatemos por nossos filhos!”). Para o
caso de “Solo le pido a Dios”, objeto de nossa atenção aqui, a constituição do grupo de militância
adpeto às ideias veiculadas pela canção se deu de maneira diferente, já que não há a priori uma ação
sindicalista ou partidária envolvida que convoce o levante.
Nesse sentido, o grupo de militância ali previsto se constitui, no dizer de Charaudeau (2006, p.
274), de maneira um pouco mais espostânea, “ao sabor das situações de crise”. Isso se deu por
motivo de que era preciso uma força – que adveio da juventude nesse caso – para que a resistência à
ditadura, em vias de acabar, se corporificasse, se tornasse uma resistência de uma juventude
acossada pela censura política, pelos ataques à democracia, ultrajada há quase vintes anos, quando
do surgimento de “Solo le pido a Dios”.
Se o discurso dos insurrectos se levanta contra algo que está nas instituições, portanto
contra uma forma de poder institucional, é preciso que sua enunciação seja tonitruante, colossal, um
grito catártico. Ademais, esse grito não pode ser apenas de uma parcela pequena da sociedade, é
preciso que no contexto social de uma época a enunciação militante encontre força em um coro de
vozes, uma vez que “uma só voz nada termina e nada resolve. Duas vozes é o mínimo da vida, o mínimo
da existência [...] “Nenhum nirvana é possível para uma só consciência” (BAKHTIN, 2010b, 322-323).
Charaudeau (2006, p. 275) argumenta que “O ativismo militante é sempre exteriorizado de maneira
tonitruante, pois ele sabe que se opõe ao que está institucionalmente instalado e que goza no sistema
democrático de certa legitimidade”.

121 Os exemplos são de Charaudeau (2006).

HETEROCIÊNCIA
543

Sobre a questão de legitimidade, trata-se de reconhecimento, que os outros conferem a


alguém, dando poder a essa pessoa. Em um caso como o das ditaduras, no qual um pequeno grupo se
impõe sem o consentimento popular, que se instala por usurpação do poder (forma antinômica de
legimitade) (CHARAUDEAU, 2006), as vozes dos insurrectos, em geral, são abafadas paulatinamente
para a produção de um efeito de bem-estar social. Puro efeito de sentido. No caso em que analisamos
neste texto, a legimidade que o governo ditatorial não possui entre a juventude argentina, por que
usurpou o poder, violentou e censurou todo o tipo de levante, é concebida a Mercedes Sosa e León
Gieco que tornam a canção “Solo le pido a Dios” um hino da juventude rebelde. A canção, não por
acaso, foi gravada pelos dois cantores argentinos e por Milton Nascimento em disco denominado
“Corazón americano”, em 1984.

3. “SOLO LE PIDO A DIOS”: um pedido mais político que devoto

Passemos neste momento à análise propriamente dita da canção “Solo le pido a Dios”, sob a
qual incidiremos um olhar que atente para a materialidade da canção funcionando no discurso
militante.
A canção não confrontava diretamente os militares, mas mesmo assim foi uma das canções
mais notórias na esfera da divergência do governo. Em muito pouco tempo se tornaria um hino
pacifista, assim ficando registrada na memória popular (PUJOL, 2010). A canção teve grande difusão à
época da guerra das Malvinas e ganhou popularidade com a proibição do governo ditatorial de que as
canções em inglês não poderiam ser tocadas em rádios argentinas. “Solo le pido a Dios”, “Nació como
plegaria y el público la adoptó como himno” (PUJOL, 2010, p. 312). Eis a letra:

Solo le pido a Dios


Que el dolor no me sea indiferente
Que la reseca muerte no me encuentre
Vacía y sola sin haber hecho lo suficiente

Solo le pido a Dios


Que lo injusto no me sea indiferente
Que no me abofeteen la otra mejilla
Después que una garra me arañó esta suerte

Solo le pido a Dios


Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente

HETEROCIÊNCIA
544

Solo le pido a Dios


Que el engaño no me sea indiferente
Si un traidor puede más que unos cuantos
Que esos cuantos no lo olviden fácilmente

Solo le pido a Dios


Que el futuro no me sea indiferente
Desahuciado está el que tiene que marchar
A vivir una cultura diferente
(GIECO, 1984, faixa 11)

Nessa canção, temos uma repetição formal que resulta no sentido de um desejo do locutor.
Todas as estrofes da canção iniciam com o verso “Solo le pido a Dios” (“Só peço a Deus”) em que a
conjugação do verbo “pedir” no presente do indicativo completado semanticamente com “a Deus” –
fazer um pedido a Deus, que se transforma em vários pedidos subsequentes – e o advérbio “Solo”
(“só” ou “somente”, dependendo do contexto) que altera o sentido de todo o enunciado, porque “solo”
indica que o pedido é muito singelo, muito pequeno.
Também em todas as estrofes o segundo verso inicia com a partícula “que” seguida de um
substantivo que se torna o núcleo nominal da oração. Os versos são orientados pela estrutura “que +
substantivo” seguida “no me sea indiferente”. Assim, temos a expressão de um desejo do locutor
introduzida como pedido a Deus nos primeiros versos de cada estrofe; cuja especificidade é dada nos
segundos versos por meio de uma nominalização: “el dolor”, “lo injusto”, “la guerra”, “el engaño”, “el
futuro”. Portanto, o desejo do locutor é que a dor, a injustiça, a guerra, o engano e o futuro não lhe
sejam indiferentes; é esse seu pedido a Deus.
Os versos finais das duas primeiras estrofes ainda repetem a mesma estrutura, que depois é
modificada nas estrofes subsequentes. Nos dois últimos versos da estrofe um temos um segundo
desejo “que la reseca muerte no me encuentre/vacía y sola sin haber hecho lo suficiente”
subordinado ao primeiro que é “que el dolor no me sea indiferente”. Em outros termos, para esse
caso, há um laço de causalidade, porque em primeiro lugar o pedido de que a dor não seja indiferente
ao locutor enlaça o sentido de que antes de encontrar a morte é preciso fazer o suficiente para evitar
a dor.
Esse diálogo aqui proposto se dá no sentido de mostrar que a dor que o locutor busca
prevenir não é a sua própria, mas a dor do outro, assim esse é um discurso de militância tonitruante
em defesa dos outros. E se para isso é preciso “dar a cara”, colocar o corpo, “Que no me abofeteen la
otra mejilla/Después que una garra me arañó esta suerte”, porque em defesa daquilo que é injusto –
o verso a que esses dois últimos se subordinam é o segundo da segunda estrofe, “Que lo injusto no me
sea indiferente” – que não seja ultrajada a outra “mejilla” (“bochecha”, lado do rosto), já que uma
“garra” arranhou o outro lado. Em outros termos, retomando a perspectiva bakhtiniana, o ato de
cantar a injustiça é um ato ético com o qual o locutor entra com o todo do corpo e da voz na luta; um
ato que é impossível não responder.

HETEROCIÊNCIA
545

Na estrofe três o núcleo nominal desse pedido a Deus é que a guerra não lhe seja indiferente
ao locutor, porque se trata de um monstro grande que pisa forte na inocência das pessoas.
Novamente, o discurso de militância se alça para a defesa de alguns que não percebem o perigo ou
não se levantam contra ele. Em outras palavras, a guerra não pode lhe ser indiferente por motivo de
que destrói tudo que está ao seu alcance. Os versos três e quatro dessa estrofe são tão fortes que na
execução são repetidos como uma espécie de micro-refrão.
A quarta estrofe da canção parece diretamente ligada ao problema das ditaduras e, portanto,
cronologicamente muito específica, já que a Argentina saia a poucos meses do pesadelo da ditadura. O
verso “Que el engaño no me sea indiferente” subordina os últimos dois dessa estrofe “Si um traidor
puede más que unos cuantos/Que esos cuantos no lo olviden fácilmente”.
Nesse sentido, que a enganação (ou mentira) não seja indiferente porque se o traidor pode
mais que um grupo grande, que esse mesmo grupo se organize e não o esqueça com facilidade. Daí o
poder que os grupos organizados da juventude rebelde obteve ao final da ditadura, com a reabertura
democrática. A última estrofe, que completa a canção com o desejo de que o futuro não seja
indiferente, conclui na mesma direção que apontamos sobre o problema da ditadura, agora que já não
se precisa mais “marchar”, que o futuro não seja indiferente, porque antes foi preciso fugir
desenganado de sua cultura para outro país, como os cantores exilados políticos fizeram.
Para concluirmos essa análise, conforme Pujol (2010, p. 312), a canção foi escrita como um
pedido indireto, porque a despeito de ser um pedido “a Dios”, ele se dá indiretamente às pessoas. A
retórica da canção é estratégica, na forma de uma oração religiosa faz um reclamo mais social que
individual, mais político – no sentido de querer modificar a realidade – que devoto. “Gieco pone a Dios
como ultima ratio de aquello que, en rigor, solo el hombre puede resolver” (PUJOL, 2010, p. 312).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Yo no canto por cantar...”


Víctor Jara

Para tecermos alguns comentários finais, retomando a questão da escatologia política,


podemos afirmar que o ato de cantar da canção militante de León Gieco tem muito que ver com o ato
ético de que nos fala Bakhtin (2010a). O autor russo trata o ato ético como uma decisão dada de uma
vez por todas, com a qual é preciso arcar em responsalibilidade, já que o dizer não é à revelia, em um
vazio social.
A enunciação de “Solo le pido a Dios” deve ser tonitruante, um grito catártico, colossal porque
se levante contra algo que é imensamente poderoso e, na mesma medida, violento. Assim, o cantar
para militar é um ato de revolução no sentido de que é colocar o corpo, é dar voz à luta. É entrar no
mundo da vida com a responsabilidade, dar o rosto a bater, dar o corpo e a voz à luta dos rebeldes.
Assim, a conhecida frase de Víctor Jara, na epígrafe desta seção de considerações finais,
serve como modo de explicação desse ato justificado no contexto da Argentina pós-guerra das

HETEROCIÊNCIA
546

Malvinas e em pleno final da ditadura mais sangrenta: é preciso um levante organizado, que se
traveste de pedido a Deus, mas que é mais político que devoto, mais ideológico que religioso. “Yo no
canto por cantar” resume a perspectiva da canção de protesto e de militância na Argentina e na
América Latina, em que cantar se configura como a única possibilidade para resistir à barbárie.
Por fim, de acordo com Bakhtin (2011, p. 184), que discute a questão da resistência na arte,
“Devemos sentir na obra a resistencia viva à realidade de acontecimento do existir; onde não existe
essa resistência, onde não existe saída para o acontecimento axiológico do mundo, a obra é uma
invenção e em termos artísticos jamais convence”. Desse modo, o discurso de “Solo le pido a Dios” se
configura como resistência viva á escatologia política, como saída, como ato de escape. Para obter
seus objetivos de levante, o discurso da canção parte de uma enunciação tonitruante, que é a única
forma possível de manifestar-se contra as instâncias mais altas do poder, contra os aparelhos do
estado opressor.

REFERÊNCIAS

ANGENOT, M. O discurso social e as retóricas da incompreensão: consensos e conflitos na arte de (não) persuadir.
Organização Carlos Piovezani. São Carlos: EdUFSCar, 2015.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de M. Lahud e Yara Vieira. São Paulo: Ed. Hucitec, 2009.
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010a.
BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010b.
BAUTISTA, J. J. ¿Qué significa pensar desde América Latina? Introducción a una pregunta. In. BAUTISTA, J.J. ¿Qué
significa pensar desde América Latina? Hacia una racionalidad transmoderna y postoccidental. Madrid: Ediciones
Akal, 2014, p. 75-89-.
BUBNOVA, T. Do corpo à palavra: leituras bakhtinianas. Tradução, organização, e notas de Nathan Bastos de Souza. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2016.
CANCLINI, N.G. As culturas populares no capitalismo. Trad. Paulo Coelho. São Paulo: Brasiliense, 1983.
CHARAUDEAU, P. Discurso político. Trad. Dilson Cruz e Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2006.
GIECO, L. Solo le pido a Dios. Intérpretes Mercedes Sosa e León Gieco. In. SOSA, M. GIECO, L. NASCIMENTO, M. Corazón
americano. Buenos Aires: Philips Records, 1984. Disco sonoro. Faixa 11.
PONZIO, A. Revolução bakhtiniana. Tradução coordenada por V. Miotello. São Paulo: Contexto, 2012.
PUJOL, S. Canciones argentinas (1910-2010). Buenos Aires: Emecé Editores, 2010.
SANTOS, B.S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In. SANTOS, B.S.
MENESES, M.P. (orgs.) Epistemologias do sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p.23-73.

HETEROCIÊNCIA
547

SZURMUK, M. e IRWIN, R.M. Presentación. In. SZURMUK, M. e IRWIN, R.M. Diccionário de Estudios culturales
latinoamericanos. México: Siglo XXI, 2009, p 7-37.
WISNIK, J.M. O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez. In. BAHIANA, A. M.; WISNIK, J.M.;
AUTRAN, M. Anos 70 – Música Popular. Rio de Janeiro: Ed. Europa, 1980, p. 7-24.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
548

A ESCUTA COMO LUGAR Neste pequeno ensaio refletimos sobre a noção de


escuta, tal como desenvolvida no interior dos
estudos bakhtinianos. Utilizamos, nesse sentido, o

DE FAZER CIÊNCIA
mirante epistemológico previsto pela teoria
desenvolvida pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin,
aquele relacionado com as questões do dialogismo
e da alteridade. Damos atenção, sobretudo, para a
compreensão do mestre italiano Augusto Ponzio
desses fatos, em sua longa reflexão sobre as
temáticas em textos trauduzidos no Brasil.
SOUZA, Nathan Bastos de122 Propomos, por fim, no bojo da reflexão de M.
Bakhtin e de A. Ponzio, que a escuta se configura
como lugar de fazer de ciência, como mirante
epistemológico.
[...] Eu me escuto no outro, com os outros e para os outros. [...]
eu encontro a mim mesmo na voz inquieto-emocionada do outro,
encarno-me na voz cantante do outro, encontro nela um enfoque
autorizado de minha própria emoção interior; pelos lábios de uma
possível alma amorosa eu canto a mim mesmo. Palavras-Chave: Escuta. Responsabilidade.
Filosofia da linguagem
Mikhail BAKHTIN
O silêncio impõe que se fale, mas não é escuta.

Augusto PONZIO

A
escuta é uma noção teórica central neste trabalho e provém de uma orientação para a filosofia
da linguagem bakhtiniana. O que implica o “colocar-se à escuta”? O presente texto visa
responder a esta questão123.
Sendo uma noção central para a filosofia da linguagem, a questão da escuta é colocada como
uma “filosofia da escuta”. No interior da qual entra em cena o papel inalienável da palavra do outro, da
sua compreensão e de sua resposta. Para Ponzio (2010b), o problema fundamental da filosofia da
linguagem é a questão do outro, como consequência, o problema da palavra do outro, “reconhecida
como uma busca da escuta. Trata-se de uma filosofia da linguagem, então, como arte da escuta”
(PONZIO, 2010b, p. 23). Uma “arte” que obriga que um sujeito conceda ao outro o seu tempo. A escuta
não se dá sem um tempo reservado para ela, não acontece sem alteridade. O tempo da escuta é um
tempo outro, reservado exclusivamente para a escuta. É “tempo grande”124, nas palavras de Bakhtin
(2011).

122
Mestrando em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Prof. Substituto de Linguística e Língua Portuguesa da
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). E-mail: nathansouza@unipampa.edu.br
123
O leitor certamente notará a tendência de desenvolver essa discussão a partir das contribuições de Augusto Ponzio em diferentes textos
que publicou no Brasil. A verdade é que o autor italiano desenvolve sua noção de escuta a partir da leitura que faz de Mikhail Bakhtin. Sendo
assim, a ideia de escuta é bakhtiniana, mas a encontramos refinada em Ponzio e utilizamos quase somente este autor como norte nesse
quesito.
124 “Tempo grande” é uma noção que Bakhtin (2011) movimenta para compreender a estética. Parece ser possível deslocá-la para compreender

eticamente o mundo, é um tempo grande em relação ao tempo curto, efêmero, das relações diárias, é da ordem da escuta o tempo grande.

HETEROCIÊNCIA
549

Ponzio (2010a) afirma que para procurar uma palavra outra, “outra no sentido de alteridade,
não de alternativa” (p.14), é preciso ter tempo para sua escuta, para uma palavra diferente,
essencialmente não indiferente, na “singularidade” e “unidade do ato” (BAKHTIN, 2010). Palavra outra
que só acontece “no dar um tempo ao outro” (idem) e, em consequência dessa busca pela escuta,
temos o seguinte: “Da centralização do eu à centralização do outro: é a revolução bakhtiniana125”
(idem). Isto é, a partir do momento em que pensamos em uma escuta responsável, que se dá na
unidade da responsabilidade, no ato mesmo, concordamos que o ponto de vista deve se deslocar, do
eu para o outro.
A revolução bakhtiniana, nesses termos, seria a virada da ontologia filosófica vigente.
Fatalmente se ficássemos sob o ponto de vista do eu – da identidade deformante – não lograríamos
nunca a palavra outra, fundante para a filosofia da escuta. Conforme Geraldi (2008:11), essa revolução
coloca em aberto dois acontecimentos, quais sejam, uma mudança que “não só põe em discussão toda
a direção da filosofia ocidental, mas também, a visão de mundo dominante em nossa cultura”. Em
outros termos, é possível afirmar que a “escuta como lugar de fazer ciência”, como propomos neste
texto, é lugar de mudança e de pensares outros a respeito do mundo científico; a virada
epistemológica que a escuta provocou na filosofia (como os dois autores anteriores afirmam)
apresenta contribuições para a ciência da linguagem.
Outro ponto importante para essa discussão é a dos verbos “escutar” e “ouvir”, os quais
sugerem sinonímia, de um ponto de vista semântico mais fechado. Contudo, não acontece o mesmo do
ponto de vista da filosofia da linguagem bakhtiniana. Ponzio (2007) afirma que o “querer ouvir” –
como no interrogatório policial, na comissão de exame, no confessionário ou na sessão de psicanálise
- é monológico. No sentido de que há de um lado um sujeito com essa vontade de ouvir, mas
colocando-a direcionada de pronto, ou seja, as perguntas que se faz ao outro são alinhadas para que
ele responda justo o esperado: a verdade126.
O querer ouvir tem uma característica eminentemente monológica porque força a dizer. A
escuta, por seu turno, difere por ser respondente, para tanto convoca o acontecimento acarretando,
assim, a irrepetibilidade. Dito de outro modo, na relação de alteridade que a escuta pede não há álibis
para não ser, não há garantias para não existir. Na escuta exige-se a unidade do ser em evento.
O que caracteriza a escuta e a diferencia de ouvir é a convocação do outro. Outro que não é
qualquer um no mundo, simplesmente um sujeito diferente do eu, ele é único na relação com o eu. Não
é um outro à revelia, mas outro que seja único na nossa relação co ele. Nas palavras de Ponzio
(2010a),

O outro não é somente o outro eu, mas serve o Outro que te diga único, um outro que te diga “tu és
único no mundo”, que te ordene único, que te diga “somente tu podes me ajudar”: sozinho não podes
dizer a ti mesmo e não pode ser. Cada um é único, com certeza, mas não é único a nível ontológico; é
único existindo em relação, na relação com o outro, é único na palavra viva, na outra palavra que se

125 De fato, a “revolução bakhtiniana” é tão cara ao pensamento de Augusto Ponzio que o autor dedicou um livro para tratar do assunto.
126 Conjectura filosófica: seria o ouvir, nessa acepção, mais um rastro do cartesianismo?

HETEROCIÊNCIA
550

relaciona com uma palavra outra. É necessário um outro que “te escolha, te eleja, responsabilize sem
álibis”, dizendo-te “somente tu, unicamente tu e ninguém mais” (PONZIO, 2010a, p. 23).

De acordo com o autor, do topo de nossa identidade não é possível buscar escuta, procurar
uma palavra outra. Nessa relação viva com a alteridade há escuta. Ali onde reina o discurso da
identidade a palavra outra não resiste, não há escuta assim. Somente porque mantemos relações com
outro, de maneira não indiferente, é que pode haver escuta. Também, afirma Ponzio (2007; 2010a;
2010b) há algo que prepara a escuta, isto é, antes dela é preciso um determinado contexto. De novo
nos vemos às voltas com termos muito próximos semanticamente; no entanto, para a filosofia da
linguagem são essencialmente distintos: “silenciar” e “calar”.
Segundo Ponzio (2007), a teoria bakhtiniana apresenta uma distinção entre as condições de
percepção do som, as condições de identificação do signo verbal e aquelas da compreensão do
sentido da enunciação. “Das primeiras duas, [...] faz parte o silêncio; enquanto o calar se acha entre
as condições de compreensão de sentido” (p.28). O silêncio, de acordo com o autor, permite que se
perceba o som e as “unidades da língua” (BAKHTIN, 2009), nos níveis da fonologia, da sintaxe e da
semântica. No que diz respeito ao calar, é a condição de compreensão de sentido127.
Aproximando-nos das noções de escutar e ouvir, tal como discutidas antes, o calar está para
a escuta tanto quanto o ouvir está para o silêncio. Em outros termos, calar e escutar são termos da
teoria do diálogo bakhtiniano, o ouvir e o silêncio são monológicos. Quando nos calamos nos abrimos
para a escuta responsável; quando nos propomos a ouvir – como imposição ao dizer do outro – o
silêncio se instaura, aí está o monológico, não existe o “eticamente responsável” (BAKHTIN, 2010). Nas
palavras de Ponzio (2007),

O silêncio está relacionado com a língua e com o seu substrato físico, de ordem acústica e fisiológica. O
calar, ao contrário, está relacionado com a enunciação e com o sentido e com seu substrato
propriamente humano, histórico-social. (PONZIO, 2007, p.28-29).

O autor italiano segue sua explanação e afirma que a diferença entre filosofia da linguagem e
linguística é que a última assume como objetos próprios de análise recortando a língua e a frase do
silêncio, os quais permitem perceber sons e identificar signos verbais. “O silêncio não é só a única
condição dos objetos de que essa linguística se ocupa, mas também o seu limite, além do qual só se
acha negação e grau-zero” (PONZIO, 2007, p.29). Desse modo, a linguística se ocuparia da língua e das
formas do silêncio, já à filosofia da linguagem caberia estudar as formas do calar, na mesma medida
em que a escuta é o lugar de acontecer de uma relação alteritária fundante para as ciências
humanas.

127Bakhtin (2009) já apresentava uma distinção muito próxima: as “unidades da língua” – fonema, morfema, sintagma, semema – e as
“unidades da comunicação verbal”- o enunciado. Seriam as primeiras, no dizer de Ponzio (2007), da ordem do silêncio; a última unidade seria,
assim, da ordem do calar.

HETEROCIÊNCIA
551

A respeito do calar, o autor continua, é a situação ou “a posição de onde começa a enunciação


ou a posição em que é recebida” (PONZIO, 2007, p.30). É condição para a escuta o calar, que exige
uma “posição de escuta” (idem). A enunciação visa o calar da escuta respondente. “Se retirado o
calar da escuta respondente resta o silêncio, ao qual, evidentemente, a enunciação nunca se dirige.”
(PONZIO, 2007, p.32). E o autor reafirma essa posição:

O calar permite que a enunciação escape ao silêncio inquisidor, coercitivo do sistema linguístico, cujo
caráter fascista [...] não está no fato de que impeça dizer, mas, pelo contrário, pelo fato de obrigar a
dizer, a repetir os significados fixos, consagrados pela ordem do discurso. [...] O calar é escuta e,
enquanto escuta respondente, é pausa de enunciação não repetível (PONZIO, 2007, p.32).

Conforme aponta o autor, o silêncio tem um caráter fascista, o de obrigar a dizer; nesse ato
forçoso está o gérmen da repetição do igual, do mesmo. Isto é, voltamos à questão da verdade:
quando obrigamos o outro a dizer, com vontade de ouvi-lo falar, estamos esperando dele a verdade
imutável e racional. Nada mais estranho à filosofia contemporânea; nada mais estranho aos estudos
bakhtinianos e sua filosofia da linguagem. Isto implica que, quando nos calamos e nos colocamos em
uma posição de escuta responsável, temos uma “verdade”, mas uma verdade na relação, uma verdade
pravda, nos termos de Bakhtin (2010).
Ponzio (2007) continua sua explanação ao afirmar que a “escuta deixa falar e deixar escolher
o que se quer dizer, deixa manifestar e tem por alvo os signos na sua constitutiva plurivocidade e
contraditoriedade” (p. 32). O querer ouvir, por sua parte, obriga a “univocidade, a pertinência às
perguntas, a coerência, a não contradição” (idem). A escuta enquanto maneira de se construir uma
relação ética com o outro é o único lugar de ser de um sujeito respondente, coerente com a teoria de
base de nosso trabalho. Ela só pode acontecer no lugar em que as relações de hierarquia estão
abolidas, não há um sujeito “autorizado” ou “legitimado pelo poder” que obrigue a relação que
imponha ao outro o dizer.
A escuta, podemos afirmar, se dá através da exotopia, do lugar que o outro ocupa em relação
ao eu. Somente do lugar de outro que se pode dizer a respeito do eu. Bakhtin (2011) é incansável ao
afirmar que somente o outro consegue ter uma visão espacial mais completa 128 do aspecto exterior
do eu, ele consegue, desde seu lugar no mundo, olhar e se relacionar conosco exotopicamente. Este
outro tem, “desde siempre, una determinada ventaja sobre mí, que se debe a esta posibilidad de ver
en mí aquello que es inaccesible a mí propia mirada” (BUBNOVA, 2015, p.23). Ou seja, o outro tem uma
vantagem que é estética sobre o eu. A escuta só acontece se trabalhamos sob a perspectiva de um
respeito ao outro, ao seu tempo e ao seu lugar de intransponível responsabilidade. Esse excedente,
que permite a escuta, tem uma particularidade, afirma Bakhtin (2011):

Mais completa porque não é possível uma visão completa do aspecto exterior do outro, ainda que do ponto de vista da alteridade, ignoramos
128

uma parte do corpo alheio que não é acessível quando o olhamos frente a frente.

HETEROCIÊNCIA
552

[Ele] nunca é utilizado como emboscada, como possibilidade de chegar-se e atacar pelas costas. Esse é
um excedente aberto e honesto, que se revela dialogicamente ao outro, um excedente que se exprime
em discurso voltado para alguém e não a revelia. Todo o essencial está dissolvido no diálogo, colocado
cara a cara (BAKHTIN, 2011, p. 355).

O outro, primeiro a vir ao mundo e a povoá-lo, significou tudo a nossa volta e quando
nascemos estamos embebidos na palavra dele, por isso sua vantagem desde sempre. Note-se que o
excedente de visão não pode ser interesseiro, que se dê em uma emboscada. Ele é uma relação na
qual eu e outro nos (in)completamos dialogicamente. Ele é aberto e honesto, volta-se para alguém
situado no mundo e não a qualquer sujeito. Partir do ponto de vista de um excedente como
possibilidade de escutar é “sair da trincheira da identidade, parar com os álibis da identidade, curar a
alergia ao outro, recuperar a saúde da não indiferença pelo outro, como condição de paz preventiva”
(PONZIO, 2014, p.94). Somente na perspectiva de uma mudança ontológica dos parâmetros filosóficos
vigentes é que podemos discutir essa filosofia da escuta.
Amorim (2010), por seu turno, afirma que o conceito de exotopia se dá por meio de duas teses
bakhtinianas, a primeira delas nos interessa mais129: “o estético e o epistemológico são irredutíveis
ao um” (p. 105). Assim, no mínimo dois sujeitos, que são diferentes, mas não indiferentes, dois olhares,
duas vozes que procuram escuta. Petrilli (2013) completa, a respeito da palavra, com o seguinte: “O
pior mal que pode acontecer à palavra é a ausência de escuta, a ausência de interlocutor, não o calar,
que é condição da escuta [...], mas o silêncio” (p. 95). Por fim, para escutar é preciso sair da
defensiva, abrir-se para o outro e calar-se para dar a ele o tempo necessário.

REFERÊNCIAS

AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In. BRAIT, B. Bakhtin: outros conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2010.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de M. Lahud e Yara Vieira. São Paulo: Ed. Hucitec, 2009.
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BUBNOVA, T. Las metáforas epistemológicas de los sentidos em Bajtín: ver, oir, hablar (discurso, corpo,
transcendência). In. Revista da Abralin/Associação Brasileira de Linguística. São Carlos: UFSCar, 2015.
GERALDI, J. W. Apresentação à primeira edição. In. PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a
ideologia contemporânea. Coordenação de tradução de Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
PETRILLI, S. Em outro lugar e de outro modo. Filosofia da linguagem, crítica literária e teoria da tradução em, em
torno e a partir de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.
PONZIO, A. Encontro de palavras: o outro no discurso. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010b.

129A segunda tese bakhtiniana, de acordo com a autora é: “o conceito de exotopia afirma que a criação é sempre ética, pois do lugar singular
do criador derivam-se valores” (AMORIM, 2010, p.105).

HETEROCIÊNCIA
553

PONZIO, A. Identidade e mercado de trabalho: dois dispositivos de uma mesma armadilha mortal. In. MIOTELLO, V. e
MOURA, M.I. (orgs.). A alteridade como lugar da incompletude. São Carlos: Pedro & João Editores, 2014.
PONZIO, A. Introdução à edição brasileira. Filosofia da linguagem como arte da escuta. In. PONZIO, A.; CALEFATO, P.;
PETRILLI, S. Fundamentos de filosofia da linguagem. Tradução de Ephraim F. Alves. Petrópolis: Vozes, 2007.
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. Tradução de Valdemir Miotello et.al.. São Carlos: Pedro & João editores,
2010a.
PONZIO, A. Revolução bakhtiniana. Tradução coordenada por V. Miotello. São Paulo: Contexto, 2012.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
554
Este artigo é parte de uma pesquisa de mestrado
que pretende analisar os processos de produção de
O PROCESSO DE PRODUÇÃO DE sentidos em crianças que foram aprovadas nos
anos escolares, mas não aprenderam os conteúdos

SENTIDOS EM CRIANÇAS QUE FORAM específicos propostos, principalmente no que se


refere aos domínios da leitura e da escrita.
Fundamentado no pensamento de Mikhail Bakhtin
APROVADAS NOS ANOS ESCOLARES, sobre a interação do sujeito com o mundo, na
linguagem, na polifonia e no dialogismo, este

MAS NÃO APRENDERAM A LER E


trabalho tem o objetivo de investigar e discutir tais
aspectos a fim de analisar os processos interativos
que acontecem na sala de aula e na escola,
ESCREVER 130 considerando a importância das mediações do
professor, a história-cultural dos alunos, as
relações de ensino e as condições sociais de
produção do trabalho pedagógico que é instaurado
STEFANI, Mônika Menezes da Costa 131 na sala de aula.
CRISTOFOLETI, Rita de Cassia 132

Palavras-Chave: Aprendizagem. Fracasso escolar.


Mikhail Bakhtin.

INTRODUÇÃO

E
ste texto é fruto de um projeto de mestrado vinculado à linha de pesquisa “Linguagem e Arte em
Educação”, do Grupo Alfabetização, Leitura e Escrita-Trabalho Docente na Formação Inicial de
Professores – ALLE-AULA da Universidade Estadual de Campinas, cadastrado no Diretório dos
Grupos de Pesquisa do CNPq e, mais especificamente, a um projeto financiado pelo CNPq - Processo
nº 401404/2016-1 (Projeto-Mãe), que busca compreender aspectos relativos ao trabalho a favor da
formação de leitores na escola básica e às práticas de leitura possibilitadas pelos professores, em
salas de leitura da SEE/SP, aos alunos que frequentam o ensino fundamental - anos finais. No grupo
de pesquisa temos estabelecido interface com um projeto de pesquisa da Universidade Federal do
Espírito Santo (sob nº de registro na PRPPG Ufes 7465/2016) cuja preocupação é a educação
inclusiva e o ensino e aprendizado de crianças com dificuldades de aprendizagem e/ou deficiência.
Nessa direção, preocupamo-nos em compreender os processos de ensino e de aprendizado dos
alunos com necessidades educacionais especiais, as mediações feitas pelos professores e os
recursos utilizados para ensinar aos alunos, os conhecimentos historicamente produzidos pela
humanidade.
Nos limites deste texto discutiremos a problemática do/no ensino da leitura e da escrita na
escola de educação básica a partir dos constructos teóricos da perspectiva de linguagem como
interação verbal.

130
Esse trabalho foi escrito em parceria com a professora Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto, doutora em Educação. Professora da
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte – DELART. E-mail:
cbometto@yahoo.com.br
131 Mestranda do PPGE-Unicamp. Pedagoga. Coordenadora da Educação Básica da Escola Premium Cenecista de Capivar/SP. E-mail:

monikamenezes@yahoo.com.br
132 Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Campus São Mateus. Departamento de Educação e

Ciências Humanas. E-mail: ricacri@uol.com.br/rita.cristofoleti@ufes.br

HETEROCIÊNCIA
555

Nas últimas décadas as escolas enfrentam sérios problemas relacionados a alfabetização de


nossas crianças e jovens. Muitas são as pesquisas que se preocupam com os problemas da
aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças, no entanto, vimemos tempos de uma pedagogia
pautada mais na individualidade dos sujeitos e menos nas relações entre quem ensina e quem
aprende; mais pautadas em uma concepção de linguagem como código e menos na interação verbal
que possibilita que os sujeitos signifiquem esses códigos; mais pautadas em uma concepção de sujeito
como dono de suas vontades e suas ações e menos em um sujeito que se constitui na e pela
alteridade.
Arendt (2000) ao analisar os acontecimentos históricos que, segundo ela, levaram a uma
crise na educação sinaliza que essa crise está pautada na perda de autoridade por parte do adulto em
relação à criança e no esfacelamento da tradição. Segundo ela, ao instaurar um mundo só de
crianças, onde a figura do adulto é banida das relações sociais estabelecidas entre as pessoas,
perde-se também a referência com relação ao mundo e com relação ao passado. Os adultos estão,
nesse caso, apenas para auxiliar as crianças, mas a autoridade (o saber sobre o mundo) pertence a
elas. O professor, agiria como um estimulador da aprendizagem cuja iniciativa principal do estudo,
caberia à própria criança.
Ao analisar a influência das teorias modernas no processo educativo, Arendt (2000, p. 231)
nos diz que “sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do pragmatismo, a Pedagogia
transformou-se em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria
a ser ensinada”. Assim, a crise na educação estaria pautada exatamente na perda de referência de
mundo da criança em relação ao adulto.
Uma outra vertente que podemos sinalizar como causa e/ou explicação do fracasso escolar
diz respeito ao fato da aprendizagem, sobretudo no Brasil, sempre acontecer de forma bastante
peculiar, não sendo pensada de forma igualitária para toda a população! Ao longo dos anos, a história
da pedagogia retratou de diversos modos a exclusão da diferença no ambiente escolar e, sobretudo,
na dinâmica da aprendizagem de vários grupos. Dentre esses grupos, podemos destacar as pessoas
com deficiência, os negros, as mulheres, o homossexual, aqueles que não aprendem, entre outros.
Atualmente essa segregação ganhou uma nova roupagem! Com a nomenclatura da inclusão e
do respeito às diferenças, muitas crianças são excluídas de dentro da própria sala de aula. São
crianças que por algum motivo não apreendem o conteúdo imposto pela escola/sociedade ou, como
diria Soares (1993), não trazem consigo o capital linguístico escolarmente rentável e, por isso mesmo,
estão sempre aquém do esperado. Analisando as questões do fracasso escolar, associado a relação
entre escola e linguagem, Soares (1993) sinaliza que:

A não posse desse capital (escolarmente rentável) é uma das principais causas da maior incidência do
fracasso escolar entre os alunos pertencentes às classes populares; por outro lado, é, em grande parte,
a posse dele que explica as maiores possibilidades de sucesso, na escola, dos alunos pertencentes às
classes dominantes. (SOARES, 1993, p.62).

HETEROCIÊNCIA
556

Nesse sentido, o “comportamento linguístico escolarmente rentável” que seria tarefa da


escola instaurar torna-se um pré-requisito na escola: a quem tem continua se dando o que já tem; a
quem não tem não se dá: aponta-se a falta. Nessa perspectiva, o fracasso se produz porque se espera
que os sujeitos tenham aquilo que é valorizado pela escola e que a escola deveria ensinar. Mas os
alunos que não têm, continuam sem aprender porque a escola não os ensina.

A escola exige de todos os alunos que chegam a ela [...] algo que ela mesma não se propõe a dar, e que
só as classes dominantes podem trazer – o domínio prático da língua “legítima”; pressupondo esse
domínio prático, oferece um ensino da língua “legítima” que, evidentemente, só pode levar a bons
resultados aqueles que já dispõem daquilo que ela não dá, mas de que depende o que ela dá. (SOARES,
1993, p. 62).

Quando discutimos nesse texto, as questões que analisam o fracasso escolar, não estamos
nos referindo às crianças com deficiência, mas àquelas que normalmente apresentam características
próprias, tais como timidez, agitação demasiada, dificuldades de concentração, esquecimento, entre
outros comportamentos que, de modo geral, não condizem com o padrão escolar esperado.
Em uma sociedade regida pelo capitalismo liberal na qual o individualismo impera, na tentativa
de justificar a não aprendizagem dessas crianças o corpo docente, via de regra, se eximiu de
responsabilidades, culpabilizando o próprio aluno, portanto, o problema está na criança que não
aprende e não na escola e nas relações que são naquele espaço estabelecidas!
Na tentativa de resolver essa não aprendizagem das crianças, outras áreas do conhecimento
se organizaram de modo bastante rápido e, assim, surgiram as especializações, nas quais o intuito
seria ajudar esses alunos, e, novamente, alicerçados em perspectivas de uma psicologia cognitiva,
consideraram que o aluno é o responsável pela sua não aprendizagem, elevando assim o problema
para o âmbito da medicalização e do preparo cognitivo para a aprendizagem. Hoje são inúmeras
crianças matriculadas nas escolas e rotuladas por diagnósticos médicos, costumeiramente
conhecidos como ‘laudos médicos’. Nesse contexto um problema específico de ensino foi criado: a
medicalização do ensino, como uma epidemia a ser erradicada. É nesse contexto que a alfabetização,
como entrada no mundo da leitura e da escrita, será por nós problematizada.

1. UMA PINCELADA HISTÓRICA ACERCA DO FRACASSO ESCOLAR

Em pesquisa realizada pela professora Maria do Rosário Longo Mortatti (2011), constatou-se
que, desde a proclamação da república, onde se iniciou o processo sistemático de escolarização das
práticas de leitura e escrita, há uma recorrência discursiva na necessidade de combater o que é
tradicional e antigo como a causa dos males do presente e de fundamentar um “novo” estudo. A ideia
foi buscar um método para ensinar a ler e a escrever que fosse mais coerente com a excelência do
regime republicano. Desde então, o que se observa é que a discussão sobre alfabetização é sempre
uma discussão de projetos para nação, em especial no Estado de São Paulo. A base política dessa

HETEROCIÊNCIA
557

discussão está na base da constituição do regime republicano, e os republicanos paulistas investiram


na reforma do ensino inicial da leitura e escrita... Na alfabetização!
Ainda segundo Mortatti (2011), se pensarmos que para qualquer ser humano (ser histórico) a
ruptura com o passado é impossível, concluímos que nós somos também o que fomos e o que
seremos. Portanto, a medida que o discurso se instaura em oposição ao antigo, propondo ruptura, o
que de fato há, é a incorporação de alguns aspectos e avanços em relação a outros aspectos – um
movimento dialético.
Hoje a alfabetização não é mais um problema estadual, mas sim um problema brasileiro.
Nesse percurso histórico da alfabetização, uma proposta torna-se hegemônica, a utilização de
métodos como questões técnicas do tipo: “como ensinar a ler e a escrever?” Mais uma vez não se
pode negar que a discussão dos métodos também envolve uma discussão política, assim, das tensões
entre o novo e o velho resultam na “fundação de novas tradições” como define Mortatti (2011).
A partir do início da década de 1980 essa tradição dos métodos passou a ser
sistematicamente questionada, em decorrência de novas urgências políticas e sociais. A fim de
combater o fracasso escolar na alfabetização introduziu-se no Brasil o pensamento construtivista
sobre o ensino da escrita e da leitura, resultante das pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita
desenvolvidas pela pesquisadora argentina Emilia Ferreiro, como nos mostra Mortatti (2006, p.10):

Deslocando o eixo das discussões dos métodos de ensino para o processo de aprendizagem da criança
(sujeito cognoscente), o construtivismo se apresenta, não como um método novo, mas como uma
“revolução conceitual”, demandando, dentre outros aspectos, abandonarem-se as teorias e práticas
tradicionais, desmetodizar-se o processo de alfabetização e se questionar a necessidade das cartilhas.
A partir de então, verifica-se, por parte de autoridades educacionais e de pesquisadores acadêmicos,
um esforço de convencimento dos alfabetizadores, mediante divulgação massiva de artigos, teses
acadêmicas, livros e vídeos, cartilhas, sugestões metodológicas, relatos de experiências bem sucedidas
e ações de formação continuada, visando a garantir a institucionalização, para a rede pública de ensino,
de certa apropriação do construtivismo.

A partir de então, torna-se hegemônico o discurso institucional sobre o construtivismo e as


propostas de concretização decorrentes de certas apropriações da teoria construtivista. Temos
ainda hoje um conjunto de normas em nível nacional do construtivismo em alfabetização. Como
exemplo, podemos citar os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
É importante mencionar que esse movimento político, voltado às questões escolares, que
passou pelo uso dos métodos até o pensamento construtivista, esteve, a todo o momento, sob a luz do
pensamento liberal disseminado no século XIX na crença natural da sociedade. O Liberalismo pregava
a evolução harmônica da sociedade que proporcionava tudo o que era necessário para o sucesso das
pessoas. Esse pensamento influenciou a educação, que por muito tempo delegou a escola a imagem
perfeita, redentora e acolhedora, nela era oferecida tudo o que era preciso para aprender, portanto, o
aluno que não aprendia como os demais, no mesmo tempo e da mesma forma, estava fadado ao
fracasso.

HETEROCIÊNCIA
558

Nessa concepção chegamos ao “hoje”. Marcados pelo Liberalismo, influenciados pelo


pensamento construtivista e ainda na busca de métodos milagrosos, atualmente temos uma educação
precária, ineficaz e ainda na busca por resolver a defasagem, sobretudo na alfabetização que nos
assombra.
Enfim, conhecer a história de como a alfabetização se deu no Brasil nos faz pensar em que a
história dos fracassos na educação se repete em um “ciclo vicioso”. Mudam-se os personagens, mas
a história novamente acontece na medida em que a escola nunca está no foco da não aprendizagem e
sim nos alunos, que sempre serão responsabilizados por não conseguir aprender em um sistema
educacional falho.
Essa constatação nos remete ao estudo da leitura e da escrita em uma outra perspectiva, a
saber, a perspectiva discursiva de alfabetização na qual, mais importante do que o sujeito que ensina
OU do sujeito que aprende, o foco está nas relações de ensino. Um e outro fazem parte desse
amálgama que muitas vezes é entendido de modo dicotômico ou unilateral, mas que não pode, ao
nosso ver, ser assim concebido. Não se trata de um OU de outro, mas de um E de outro.

2. AS OPÇÕES TEÓRICAS PARA O ESTUDO DOS ALUNOS QUE NÃO APRENDEM

Pensar no modo como o sujeito da linguagem se relaciona com sua língua remete-nos para a
problematização do aluno que não consegue aprender a ler e a escrever, um sujeito marcado pelo
sentimento de incapacidade individual, que, apesar de muito tentar, pouco produz do que dele é
esperado. De sua parte os sentidos produzidos acerca do que estuda – no nosso caso a língua escrita
– distanciam-se sobremaneira dos conceitos em estudo.
Com o passar do tempo, o discurso dessas crianças passa a ser carregado de vozes que
reafirmam, a todo o momento, o quanto ela é incapaz. É fundamental, nesse contexto, buscar a
compreensão acerca da construção do pensamento, como nos ensina Bakhtin (2003), pois o texto,
seja oral ou escrito, é a única fonte de construção do pensamento e resulta das vivências do indivíduo.

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primário de todas essas disciplinas, do pensamento filológico-
humanista no geral (inclusive do pensamento teológico e filosófico em sua fonte). O texto é a realidade
imediata (realidade do pensamento e das vivências), únicas da qual podem provir essas disciplinas e
esses pensamentos. Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento. (BAKHTIN, 2003, p.397).

Nesta perspectiva, as experiências vividas pelos sujeitos são constitutivas na construção do


pensamento e de suas singularidades. “Através dos outros constituímo-nos”, nos diz Vigotski (2000, p.
24), e “tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros”, nos diz Bakhtin (2000, p. 378).
Remetemo-nos, ainda, aos estudos de Chartier (2002) sobre a história cultural e sobre como
o espaço, o local e o tempo interferem diretamente na produção de sentido da leitura, sobre como a
representação de quem é o leitor, e como esse leitor está lendo o texto pode modificar o sentido
individual. Nessas condições as representações da sociedade são determinantes para a compreensão

HETEROCIÊNCIA
559

de qualquer texto. O leitor terá um olhar sempre intrínseco, voltado às suas próprias percepções,
construídas a partir dos ideais da sociedade em que está inserido.

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um


diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí,
para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os
utiliza. As percepções sociais não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e
práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas
menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas. (CHARTIER , 2002, p. 17).

Assim, a linguagem é construída e determinada pelas representações sociais e também pelo


direcionamento de cada indivíduo. É importante mencionar que em um texto, por exemplo, a
receptividade do leitor pode modificar todo o sentido, como as molduras sociais também passam a
ser historicamente mutáveis. Todas essas nuances modificam o olhar do leitor.
Tendo as representações do mundo social como suporte para a construção de sentido pelo
aluno, é possível compreender ainda que em cada caso, em cada momento ou situação apresentada os
reconhecimentos das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação
interferem na subjetividade do olhar humano, portanto, na interpretação pessoal, na produção de
sentido individual.
Compreendendo assim a linguagem associada sempre ao tempo, ao espaço e a sua posição
do mundo, observemos que ela se materializará em um momento histórico, sendo constituída e
constituindo o sujeito. Bakhtin (1998) apresenta ainda que a linguagem não está somente na língua,
mas em tudo o que compõe a linguagem. Podemos mencionar como exemplo os gestos, as roupas, o
corte do cabelo entre outros.
Bakhtin (1998) explicita que nenhuma linguagem é capaz de aparecer sem um signo. Um
suporte que possibilitará sua interação, é aí que entra o aspecto que gostaríamos de destacar como
objeto de trabalho e estudo do professor alfabetizador e seus alunos: os códigos da língua. Se eu
estou falando, por exemplo, eu tenho os signos verbais, da mesma forma, para a escrita eu tenho as
letras, para a pintura as cores e assim por diante. Lembremos ainda que a linguagem é dialógica pois
não se produz apenas por aquele que diz, uma vez que seu interlocutor se inscreve em seu enunciado.
As falas são sempre constituídas do EU e do OUTRO. Não é só o eu que se enuncia, mas quando se
enuncia já está carregado o outro! (BAKHTIN, 1998). A enunciação é, portanto, social mais do que
individual.
As implicações dessa teoria para pensarmos a alfabetização remetem ao conceito de
contrapalavra (BAKHTIN, 2000). Nesse sentido, faz-se necessário considerar que os sujeitos, mais do
que nossos alunos, são nossos interlocutores. Assim, passa a ser de fundamental importância entrar
no movimento dialógico para que nossos alunos em fase de alfabetização signifiquem a língua, caso
contrário estaremos trabalhando no caminho de uma “compreensão passiva [que] caracteriza-se
justamente por uma nítida percepção do componente normativo do signo linguístico, isto é, pela

HETEROCIÊNCIA
560

percepção do signo como objeto-sinal: correlativamente, o reconhecimento predomina sobre a


compreensão” (BAKHTIN, 2000, p.99).
Na direção de que o professor alfabetizador pense em um trabalho mais amplo com a
linguagem e nesse contexto contemple um trabalho sobre a linguagem Geraldi (2010) afirma que para
pensar e planejar ações pedagógicas de sala de aula há que se considerar os contextos sociais de
cada ser humano. O foco deve estar no direcionamento da aprendizagem, e a metodologia utilizada
está estreitamente relacionada às concepções dos professores.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 5.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp, 1998.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins fontes, 2003.
______. Estética da Criação Verbal. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difiel, 2002.
GERALDI, João Wanderley. Alfabetização e letramento: perguntas de um alfabetizado que lê. Texto apresentado em
sessão especial da Anped, 2010.
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Alfabetização no Brasil uma história de sua história. São Paulo: Cultura
Acadêmica, Marília, 2011.
______. História dos métodos de alfabetização no brasil. Portal MEC - Seminário Alfabetização e Letramento em
Debate.MEC/ Secretaria de Educação Básica. Brasília. 2006.
SOARES, Magda. Linguagem e Escola: Uma perspectiva social. 10.ed. São Paulo: Ática, 1993.
VIGOTSKI, Lev.Semyonovich. Manuscrito de 1.929. In: Educação e Sociedade. Ano XXI, n.º 71, julho, 2000.

HETEROCIÊNCIA
RESUMO
561
Para esse trabalho, propusemo-nos o debate
acerca das propostas metodológicas de dois

UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE importantes autores para os estudos nas ciências
humanas. No campo da linguagem Mikhail Bakhtin e
da psicologia Lev Vygotsky. Essa discussão tem

AS IMBRICAÇÕES ENTRE como objetivo explicitar as aproximações das


propostas teórico-metodológicas dos autores. Para
isso, recorremos à subseção “Problemas de

ALGUMAS NOÇÕES DA TEORIA método”, do livro “Formação social da mente”


(1989) de Lev Vygotsky e “Observações sobre a
epistemologia das ciências humanas”, do livro

BAKHTINIANA E A NOÇÃO DE “Estética da criação verbal” (2003) de Mikhail


Bakhtin. Esse estudo propiciou-nos explicitar os
diálogos entre as propostas metodológicas dos

LINGUÍSTICA APLICADA NA autores, embora saibamos que existem


especificidades nas duas propostas metodológicas
que não devem ser apagadas. Nossa intenção foi de

CONTEMPORANEIDADE contribuir com a discussão dos pressupostos


metodológicos de ambas teorias, destacando a
importância da compreensão dos fenômenos, por
meio do processo em que ocorrem, buscando o
modo como funcionam e se materializam na e pela
linguagem e não somente como se apresentam.

XAVIER, Manuelly Vitória de Souza Freire133 Palavras-Chave: Metodologia. Bakhtin. Vygotsky


LIMA, Clarice da Conceiçao Monteiro de134
NOVAES, Tatiani Daiana de135

INTRODUÇÃO

O
presente trabalho visa explicitar o entrecruzamento entre o conceito de Linguística Aplicada na
contemporaneidade e algumas concepções, especialmente as ligadas à teoria de Mikail Bakhtin,
filósofo russo que traz relevantes e imprescindíveis posicionamentos que fomentam a
discussão acerca da linguagem e do dialogismo.
Para tanto, partimos de uma concepção contemporânea de Linguística Aplicada – LA como
sendo uma área do campo do conhecimento situada no campo dos estudos linguísticos, cuja principal
característica é estar sempre em processo de reconfiguração, “uma das características da
Linguística Aplicada contemporânea é o envolvimento em uma reflexão contínua sobre si mesma: um
campo que se repensa insistentemente” (PENNYCOOK, 2001, p. 171), compreendendo também que esse
campo reúne frentes de atuação e reflexão sobre língua e linguagem em uso nas práticas sociais, nas
mais diversas esferas da atividade humana mediadas pelo uso da linguagem. É nessa abordagem que o

133
Mestranda em Linguística Aplicada no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. E-mail: vit.xavier@hotmail.com
134
Mestranda em Linguística Aplicada no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. E-mail: claricelima.mv@gmail.com
135
Doutoranda em Linguística Aplicada no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. E-mail: tatiani.novaes@ifpr.edu.br

HETEROCIÊNCIA
562

cerne desta pesquisa é tentar evidenciar, em linhas gerais, como essa área de estudo trabalha com a
linguagem.
Para tanto, faz-se necessária também uma breve sinalização acerca das noções conceituais
sobre língua e linguagem para a Linguística Descritiva e para a LA, algumas abordagens conceituais
sobre: linguagem, fala e enunciado, de acordo com a teoria bakhtiniana, percebendo a indispensável
relevância que há em entender esses conceitos para que o linguista possa dar tratamento adequado
ao seu objeto de estudo.
Tratando-se, inicialmente, dos estudos acerca do conceito de língua, deve-se ressaltar esse
conceito é estudado por diversas perspectivas teóricas. Começaremos pelos estudos voltados para a
linguística tradicional teórica e descritiva do linguista Ferdinand Saussure que, embora tenha deixado
contribuições sobre os estudos que abordam a definição de língua, linguagem e signo, limitou-se a
observar que os estudos da língua diziam respeito à língua e fala e deteve-se no estudo da língua
enquanto sistema de signos, ou seja, Saussure descartou a possibilidade de um conhecimento
científico para analisar a linguagem humana enquanto matéria discursiva e, em função disso,
determina que se estude apenas o seu aparato técnico quando diz:
Mas, o que é a língua? Para nós ela não se confunde com a linguagem, ela é apenas uma parte
dela, essencial, é verdade. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um
conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para possibilitar o exercício de tal
faculdade pelos indivíduos. Considerada em sua totalidade, a linguagem é multiforme e heteróclita;
cavalgando sobre diferentes domínios, ao mesmo tempo físico, fisiológico e psíquico, ela pertence
ainda ao domínio individual e ao domínio social; ela não se deixa classificar em nenhuma categoria dos
fatos humanos, e é por isso que não sabemos como determinar sua unidade.
A língua, ao contrário, é um todo em si mesmo e um princípio de classificação. Uma vez que
nos lhe atribuímos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num
conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação. (SAUSSURE, 1966, P. 25).

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Diferentemente de uma visão positivista, comum a diversas áreas do saber, a LA não se elege
como solução ou a detentora desta, mas como uma “problematizadora”. Se algo está cristalizado,
normatizado, passa a ser visto como natural, logo dispensaria solução. Dessa forma, a LA tem um
papel fundamental, pois ela abre um leque de possibilidades de pensamentos e complexidades
inesgotáveis, particularmente por seu caráter interdisciplinar. E como toda concepção de linguagem,
tem subjacente uma concepção de sujeito, a saber: “[...] a LA não tenta encaminhar soluções ou
resolver problemas com que se defronta ou constrói. Ao contrário, a LA procura problematizá-los ou
criar inteligibilidades sobre eles, de modo que alternativas para tais contextos de uso da linguagem
possam ser vislumbrados”( LOPES, 2006, p. 20).

HETEROCIÊNCIA
563

Indo ao encontro desse pensamento, estudar a língua na perspectiva não é uma negação da
cognição teórica formalista, ao contrário, reconhecesse-se a língua como um sistema linguístico, mas
isso não significa admiti-la como uma abstração, um conjunto de normas fixas. Para Bakhtin e seu
círculo, entender a língua de uma forma balizada e indissociada do mundo da vida real e concreta é
insuficiente, se o objetivo é conhecer o exercício efetivo da fala em sociedade, e esse é o ponto de
partida para o estudioso da linguagem.

A abordagem da linguística é, na concepção bakhtiniana, insuficiente pelo fato de enfocar o enunciado


exclusivamente como um fenômeno da língua, como algo puramente verbal, desvinculado do ato de sua
materialização, indiferente as suas dimensões axiológicas (FARACO, 2009, p. 25).

É nesse prisma de abordagem que Bakhtin e seu círculo lançam novos olhares sobre os
aspectos circundantes da língua e é isso que determina a contribuição deles para os estudos da
linguagem, dessarte, indagar-se sobre os conceitos na obra de Mikhail Bakhtin é sempre um desafio,
pois se sabe que aí está tudo em movimento permanente e não há terreno sólido para as construções
formais; mesmo porque, se há alguma coisa que caracterize o seu pensamento, essa alguma coisa é
uma adesão inconteste à filosofia do movimento. Nada é, em sua obra, definitivo, nada está
estabelecido permanentemente, tudo oscila com as alterações do quadro histórico em que as ações
humanas se desenrolam.

A evolução da língua obedece a uma dinâmica positivamente conotada, ao contrário do que afirma a
concepção saussuriana. A variação é inerente à língua e reflete variações sociais; se, efetivamente, a
evolução, por um lado, obedece a leis internas (reconstrução analógica, economia), ela é, sobretudo,
regida por leis externas, de natureza social (BAKHTIN, 2006, p. 8).

Bakhtin foi um teórico literário que entrou nos estudos da linguagem porque analisava como
os seres humanos se relacionavam e percebeu que só tinha acesso a essas realidades por meio do da
linguagem, e esta é, para sua concepção, um processo dialógico e movente.

Bakhtin coloca igualmente em evidência a inadequação de todos os procedimentos de análise linguística


(fonéticos, morfológicos e sintáticos) para dar conta da enunciação completa, seja ela uma palavra, uma
frase ou uma sequência de frases. A enunciação, compreendida como uma réplica do diálogo social, é a
unidade de base da língua, trata-se de discurso interior (diálogo consigo mesmo) ou exterior. Ela é de
natureza social, portanto ideológica. Ela não existe fora de um contexto social, já que cada locutor tem
um “horizonte social”. Há sempre um interlocutor, ao menos potencial. O locutor pensa e se exprime
para um auditório social bem definido(BAKHTIN, 2006, p. 17).

Além disso, o enunciado só se realiza e constitui-se na interação verbal e em conexão a


enunciados anteriores e posteriores – como elo na comunicação verbal, conferindo-lhe o caráter
dialógico do discurso (no seu movimento com o já dito e o devir).

HETEROCIÊNCIA
564

2. DISCUSSÕES E RESULTADOS

Uma vez que a língua em uso é o objeto dessas reflexões, este trabalho insere-se está no
campo da Linguística Aplicada (LA), mais especificamente, na discussão em torno dessas noções que
se materializam nas práticas discursivas e situadas, assim, de acordo com a teoria bakhtiniana, o
ambiente real do enunciado é um espaço onde as vozes sociais se intermisturam constantemente de
um modo multiforme. Daí a possibilidade da recriação de novas vozes, de modo a irem se construindo,
reconstruindo, ressignificando. É exatamente nesse movimento ininterrupto da língua, ou seja, no
discurso que residem tensões e conflitos. A esse respeito, em seu livro de filosofia da linguagem, ele
afirma que:

De fato, qualquer enunciado concreto, de um modo ou outro ou em um grau ou outro, faz uma
declaração em acordo ou desacordo com alguma coisa. Os contextos não estão apenas justapostos,
como se alheios uns aos outros, mas encontram-se num estado de tensão constante, ou de interação e
conflitos. (VOLOSHINOV, 2006, p. 80)

Diante dos fatos mencionados e a partir desses desdobramentos em torno das verbalizações
das nossas experiências é que surgem as infinitas possibilidades de ressignificações de conceitos,
posições axiológicas, refrações que também são valoradas. Nesse sentido, torna-se imprescindível
encetar as imbricações entre a relação constitutiva da linguagem com realidades sociais tão cheias
de contingências e vicissitudes.
Logo, ao se apropriar desses conceitos concluí-se esse trabalho situando-o no contexto de
uma LA ideológica, que precisa dialogar com teorias que têm levado a uma profunda reconsideração
dos modos de produzir conhecimento em ciências sociais (SIGNORINI, 1998), na tentativa de
compreender nosso tempo e abrir espaço para visões alternativas ou para ouvir vozes que possam
revigorar nossa vida social ou vê-las compreendidas por outras histórias.
De acordo com Moita Lopes (2006) é preciso reinventar as maneiras de teorizar e praticar a
LA, a fim de responder, ou pelo menos tentar, às questões contemporâneas políticas, históricas e
sociais, em espaços e vidas reais. Isso é possível com a interlocução com outros campos do saber e
com a coragem de realizar um trabalho de fronteira. Segundo o autor:

Atravessar fronteiras no campo do conhecimento, assim como na vida, é expor-se a riscos. Mas um
desafio que se deve encarar com humildade e com a alegria de quem quer entender o outro em sua
perspectiva. A posição na fronteira é sempre perigosa, já que quem está além da fronteira é aquele que
vai se apropriar de nosso conhecimento, vai falseá-lo ou usá-lo incorretamente. Mas ele pode ser
também aquele que vai nos fazer refletir, pensar de outra forma ou ver o mundo com um outro olhar.
Em sociedades que se constituem cada vez mais de forma mestiça, nômade e híbrida, não seriam as
epistemologias de fronteira essenciais para compreender tal mundo? Lembro aqui Mignolo (2000), que
nos exorta a pensar por meio de uma epistemologia de fronteira em um mundo de desígnios globais e
histórias locais (MOITA LOPES, 2011, p. 22).

HETEROCIÊNCIA
565

Para tanto, fez-se necessária a explicitação da compreensão de linguagem como prática


social, imbricada, crucialmente, em elementos contextuais, de forma que essa prática, sempre
movente, possa livrar-nos de conhecimentos hegemônicos, aprisionadores e essencializados sobre a
vida do sujeito, nas várias esferas sociais, e sobre linguagem. Compreendemos, assim, a visão do
discurso como constitutivo da vida social e de um sujeito heterogêneo e contraditório e não com base
em um sujeito homogêneo, imune à história e às práticas discursivas em que atua e que o constituem
em uma vida social que está sempre se redescrevendo, haja vista o entendimento de que a linguagem
é híbrida e o é, porque não é adâmica, e é nesse sentido que Bakhtin afirma:

Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limites para o contexto dialógico (ele se
estira para um passado ilimitado e para um futuro ilimitado) [...] nada está morto de maneira absoluta(
cf. Bakhtin, 209, p. 53). [...] porque a verbalização total é inalcançável e permanecerá sempre como algo
a ser atingido( FARACO, 2009, p. 26).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Então, qualquer tipo de relação que se trava entre os seres humanos faz parte da realidade,
realidade esta que, por sua vez, não é uma abstração, é uma situação dada na qual se realiza o
processo de interação verbal que é a linguagem funcionando dialogicamente.
Por isso, essa linguagem para o círculo de Bakhtin reflete e refrata a realidade, uma vez que,
para eles, é impossível refratar sem significar. Uma condição necessária do signo é a refração, haja
vista o fato de que essa relação é axiológica (valorada), ideológica e sob hipótese alguma esses
pressupostos podem ser abjetados.

as significações não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas em um sistema abstrato, único e
atemporal [...] mas são construídas na dinâmica histórica e estão marcadas pela diversidade de
experiências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições e confrontos de valores e
interesses sociais (FARACO, 2003, p. 50).

É sob esse ponto de vista de que o signo reflete e refrata o mundo que esse posicionamento
constrói interpretações da relação do ser humano com o outro, pois “Não se pode representar
adequadamente o universo ideológico do outro sem permitir que ele mesmo ressoe, sem revelar sua
própria palavra”(BAKHTIN, 2015, p. 127). Afinal, “Uma só voz nada determina e nada resolve. Duas vozes
são o mínimo de vida, o mínimo de existência” (BAKHTIN, 2010, p. 293).

REFERÊNCIAS

PENNYCOOK.A. Uma Linguística aplicada transgressiva. MOITA LOPES, L.P. (org.) Por uma Linguística Aplicada
Indisciplinar . São Paulo:parábola.2008.

HETEROCIÊNCIA
566

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma


abordagem do outro no discurso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
BAKHTIN, Mikail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: HUCITEC, 2006.
BAKHTIN, Mikail. Problemas da poética de Dostoievski. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BAKHTIN, Mikail. Teoria do romance I: A estilística. Tradução de Paulo Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2015.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. 1. ed. e 3. reimp. São Paulo:
Parábola, 2009.
LOPES, Luiz Paulo da Moita (Org.). Por uma Linguística Aplicada indisciplinar. 2. ed. São Paulo: Parábola, 2008.
MOITA LOPES, L. P. Da aplicação de Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: Regina C. Pereira; Pilar Roca.
Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2011,
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo:
Cultrix, 1995.

HETEROCIÊNCIA
narrativas
RESUMO
568
Este artigo apresenta dados parciais de pesquisa
desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação

EDUCAÇÃO NA CIDADE E em Ensino de Humanidades (PPGEH) e ao Grupo de


Estudos e Pesquisas Educação na Cidade e
Humanidades (GEPECH), do Instituto Federal do

HUMANIDADES: diálogos
Espírito Santo (IFES), Campus Vitória. Trata-se de
pesquisa de iniciação científica que visa realizar
levantamento bibliográfico em diferentes áreas de
conhecimento que investigam a cidade e seu
possíveis com Bakhtin potencial educativo. Nesse texto, privilegiamos
diálogos com pesquisas do campo da arquitetura e
urbanismo que discutem proposições sobre centros
históricos. Por meio de pesquisa bibliográfica em
bancos eletrônicos, selecionamos um conjunto de
trabalhos sobre restauro e revitalização de regiões
ADÃO, Alessandra Barbosa1 de centros históricos de diferentes cidades do
Espírito Santo. Tal levantamento tem por objetivo
CÔCO, Dilza2 identificar contribuições desses estudos para o
campo do ensino, a partir da noção de cidade
polifônica, proposta por Canevacci, com base em
postulados de Bakhtin. Os dados mostram que
várias cidades do Espírito Santo guardam
significativo potencial educativo a partir de seus
INTRODUÇÃO centros históricos. Tais regiões das cidades
materializam cultura, história e trabalho de
diferentes povos e podem ser entendidas como uma

A
s contribuições teóricas de Bakhtin oferecem subsídios para grande narrativa humana que expressa desafios e
possibilidades criativas registrada em diferentes
analisar diferentes temáticas de investigação no campo do camadas da cidade.
ensino e da educação. Essa potencialidade ampliada pode ser
observada nos escritos de Canevacci (2004), autor italiano que Palavras-Chave: Cidades. Ensino de Humanidades.
estabelece diálogo profícuo com Bakhtin, especialmente quando Bakhtin

desenvolve o conceito de cidade polifônica. Para esse autor italiano a


cidade pode ser pensada como um grande texto, que em seu tecido,
trama, organização, apresenta construções e elaborações humanas que evidenciam vida, trabalho,
tempo, fluxo, ritmo, domínio, história, lugares, costumes, dentre outros aspectos. Desse modo,
Canevacci (2004) nos indica que, por meio do conceito de polifonia, podemos compreender e
estabelecer conexões com diferentes vozes que constituem a cidade, sejam elas harmônicas ou
dissonantes. Nessa perspectiva o grupo de estudos e pesquisa Educação na cidade e Humanidades
(GEPECH), ligado ao Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH), do Instituto
Federal do Espírito Santo (IFES), tem desenvolvido ações que buscam compreender a cidade e seu
potencial educativo. Para isso, necessita dialogar com outros autores que privilegiam essa relação
entre cidade e educação em suas diferentes dimensões. Especificamente, nesse artigo vamos
empreender aproximações com produções da área da arquitetura e urbanismo com o intuito de
verificar contribuições desse campo de conhecimento que podem favorecer conexões entre educação
e cidade. Na obra Memórias do Subsolo (2000), de Dostoiévski, autor bastante estudado por Bakhtin,

1
Jornalista e graduanda em Letras no Instituto Federal do Espírito Santo, Campus Vitória. aleadao@outlook.com
2
Doutora em Educação e professora do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) E-mail: dilzacoco@gmail.com.

NARRATIVAS
569

inclusive para formular o conceito de polifonia, encontramos pontuações sobre a relação do homem e
a cidade, como no trecho a seguir:

[...] o homem é um animal criador por excelência, condenado a tender conscientemente para um
objetivo e a ocupar-se da arte da engenharia, isto é, abrir para si mesmo um caminho, eterna e
incessantemente, para onde quer que seja (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 46).

Com esse extrato é possível inferir a noção de cidade como uma produção humana e em
constante mudança, e que sua formação pode alterar-se conforme as necessidades de cada tempo.
Esse tipo de proposição reforça nossos encaminhamentos na direção de buscar dialogar com
pesquisas da arquitetura e urbanismo que visam investigar as mudanças da cidade e como estas
podem ser entendidas como formativas que podem colaborar com o enriquecimento da compreensão
humana. Antes de apresentar contribuições de um levantamento preliminar realizado junto a bancos
eletrônicos, vamos contextualizar o Gepech e suas diferentes iniciativas no campo dos estudos da
educação na cidade, na primeira seção. Na sequência, apresentamos a pesquisa de iniciação
científica3 a que está atrelado este artigo, e ainda dados parciais levantados junto ao Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, em nível de Mestrado, que está inserido dentro do
Centro de Artes na Universidade Federal do Espírito Santo, especificamente orientados pela Prof.ª
Dra. Renata Hermanny de Almeida4. Ao final desta seção, fazemos a relação dos conteúdos tratados na
área de arquitetura e urbanismo e suas contribuições para ampliação do conceito de cidade e
humanidades, estabelecendo conexões com a teoria Bakhtiniana.

3
As atividades de iniciação científica estão registradas no plano de trabalho intitulado Educação na cidade e Humanidades: um panorama das
produções acadêmicas de cursos de mestrados e doutorados da UFES na área de educação, literatura, história, artes, história, sociologia,
filosofia, geografia e do Educimat (IFES) com inicio em agosto de 2017 e término previsto para julho de 2018.
4
Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (1986), possui Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, na
área de concentração Conservação e Restauro, pela Universidade Federal da Bahia (1993), e Doutorado em Arquitetura e Urbanismo, na área
de concentração Teoria e Prática da Conservação e Restauro, pela Universidade Federal da Bahia (2005), tendo realizado Doutorado Sanduiche
no Exterior, junto à Universitat Politècnica de Catalunya (2002-2003). É Professor Associado da Universidade Federal do Espírito Santo,
atuando junto ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo (1992- ), e ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, em nível
de Mestrado (2007-); e como coordenadora do Laboratório Patrimônio & Desenvolvimento - Patri_Lab (2009 -). Tem experiência na área de
Arquitetura Urbanismo, com ênfase em Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo, Conservação e Restauro, Projeto de Arquitetura e
Urbanismo, Patrimônio, Gestão e Sustentabilidade, Intervenção urbano-arquitetônica, atuando principalmente nos seguintes temas: intervenção
em estruturas históricas e consolidadas, teoria e prática da conservação e do restauro, patrimônio e territorialidades sócio-espaço-
temporais, história da arquitetura e da cidade, teoria e história da arquitetura no Brasil, patrimônio cultural do Espírito Santo. Membro
pesquisadora do Núcleo de Estudos de Arquitetura e Urbanismo, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (1995-2008), onde participou,
complementarmente, como Coordenadora Geral (1998-2000 e 2007). Atualmente é integrante do Colegiado Acadêmico do Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo, em nível de Mestrado, área de concentração Cidade e impactos no território, do Centro de Artes, no
qual atuou, complementarmente como Coordenadora Adjunta (2007-2009); e coordena o Laboratório Patrimônio & Desenvolvimento -
Patri_Lab (2009-_) (Fonte: Plataforma Lattes)

NARRATIVAS
570

1. APRESENTAÇÃO DO GRUPO DE ESTUDOS SOBRE EDUCAÇÃO NA CIDADE E HUMANIDADES

Os estudos sobre a cidade apresentam-se como temática importante no campo da educação,


pois contribuem para a compreensão dos aspectos históricos, políticos, sociais, culturais, filosóficos
e econômicos referentes ao desenvolvimento urbano. A partir de consulta realizada em janeiro de
2016 ao Diretório de Grupos de Pesquisas cadastrados e certificados pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), constatamos que poucos são os grupos que
abarcam discussões sobre Cidade e Educação.
A possibilidade de contribuir com esse nicho de pesquisa favoreceu a constituição de um
grupo de estudos que integrasse alunos e professores do Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) para a discussão da cidade como espaço
potencial para ações educativas. Desse modo, o Grupo de Estudos sobre Educação na Cidade e
Humanidades (Gepech) iniciou suas atividades em março de 2016, compondo uma das linhas do Grupo
de Pesquisa “Artes Visuais, Literatura, Ciências e Matemática: diálogos possíveis” cadastrado no
CNPq.
Ao idealizarmos o Gepech, elencamos como os seus objetivos: 1) discutir relações entre a
cidade e a educação a partir de áreas do conhecimento ligadas as humanidades; 2) planejar, executar
e avaliar formações de professores da educação básica que contribuam com reflexões sobre os
espaços da cidade; bem como 3) sistematizar materiais educativos que discutam e apresentem
propostas relacionadas com a cidade.
As reuniões do grupo iniciaram juntamente com o recém implementado Mestrado Profissional
em Ensino de Humanidades e ocorreram semanalmente com duas horas de duração cada encontro.
Para a organização das atividades do Gepech, optamos por um referencial de abordagem crítica e
dialógica, conforme proposições de Bakhtin (2003). Essa perspectiva valoriza a interação discursiva,
em suas diferentes formas e manifestações, na promoção do conhecimento e na constituição dos
sujeitos. A partir desse alinhamento teórico, as reuniões semanais do grupo se configuraram como
eventos que promoveram encontros repletos de enunciados sobre/com a cidade. Encontros esses
que potencializaram diálogos entre os participantes e desses com textos de referência sobre a
cidade, com outros pesquisadores que elegem o tema cidade como foco principal de estudos, assim
como com exposições culturais que apresentam a cidade por meio de roteiros discursivos diversos.
Nessa dinâmica, várias vozes foram contempladas na configuração de novos textos e, por
consequência, promoveram a elaboração de outras compreensões pelos participantes, a respeito do
conceito cidade e, mais especificamente, sobre a cidade de Vitória no Espírito Santo, como já
pontuamos.
O grupo estabeleceu diálogo com textos teóricos de autores como Lefebvre (1991, 1999);
Harvey (2014); Silva (1979), Klug (2009) e outros. Essa sequência de autores não foi definida a priori,
mas sintetiza uma construção coletiva, pois foi acessada e integrada ao cronograma de estudos a
partir de diálogos entre os participantes e com as primeiras referências que abordavam a noção de

NARRATIVAS
571

educação e cidade. Assim, à medida que desenvolviam os primeiros estudos, professores e alunos
tomavam ciência de outras fontes consideradas relevantes para a exploração da temática privilegiada
pelo grupo.
Tal dinâmica de interação com os textos e a consequente produção e reelaboração do
cronograma indicam relações com a noção de inacabamento da palavra, pois conforme Bakhtin (2005,
p. 195), as palavras do outro comportam um limiar e, ao serem “[...] introduzidas em nossa fala, são
revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação”. Desse modo, a
leitura dos textos numa perspectiva dialógica pressupõe que um texto abre possibilidades para outros
textos, alimentando o fluxo da comunicação verbal (BAKHTIN, 2004) sobre a cidade. Assim, as leituras
das obras iniciais apontavam para novas fontes e, por meio de atitudes ativas e responsivas (BAKHTIN,
2004), os participantes contribuíram com a construção do roteiro de estudos e exploração do
conteúdo.
Essa dinâmica participativa e colaborativa presente na construção do cronograma das ações
do Gepech foi ampliada nos momentos de estudos e discussões coletivas. Ampliadas porque os
integrantes do grupo assumiam atitudes de protagonismo quando realizavam as leituras das obras e
sistematizavam roteiros de discussões para exploração de conceitos considerados importantes para
a produção das propostas de pesquisas e elaboração de materiais educativos, desenvolvidos pelo
Gepech, numa perspectiva crítica. Assim, esses encontros favoreceram a compreensão de conceitos-
chave, como o de cidade educativa amplamente divulgado pelos documentos formulados pela Unesco,
porém com muitas questões que guardam potencial de problematizações, conforme discutido por
Silva (1979) e Chisté e Sgarbi (2015).
Essas problematizações puderam ser pensadas de modo mais aprofundado com estudos de
outros autores como Lefebvre (1991, 1999), de base marxiana, que apresenta fundamentos
importantes para compreender os problemas da cidade e seu processo de urbanização. Nessa linha
de proposições e também a partir do materialismo histórico-dialético, Harvey (2014) foi outro autor
que contribuiu para que os participantes do Gepech entendessem questões sobre o direito à cidade
como direito humano. A partir de estudos oriundos da geografia urbana e de cunho marxiano, Harvey
(2014) evidencia que esse direito é prejudicado devido a relações capitalistas orientarem a vida na
cidade em uma perspectiva de predomínio do direito individual à propriedade em detrimento ao direito
coletivo. Essa noção de direito à cidade pode ser pensada a partir de uma chave de leitura
apresentada na obra Cidade polifônica de Canevacci (2004). Este autor indica que fazer a leitura da
cidade implica atentar para aspectos de natureza polifônica, ler os diferentes elementos que a
integram, estabelecendo interconexões. Mostra, a partir de pressupostos de Bakhtin, que é importante
conhecer as formas arquitetônicas da cidade, suas relações com a organização de poder, bem como a
comunicação com os demais elementos do entorno.
As proposições conceituais desenvolvidas por esses autores nos levaram a refinar nosso
olhar sobre a cidade de Vitória, capital do Espírito Santo, foco de nossas pesquisas. Nessa direção,
Klug (2009) nos apresenta análises do processo de desenvolvimento e ocupação da cidade de Vitória,

NARRATIVAS
572

fato que estimulou nos participantes do Gepech um novo olhar sobre o espaço urbano, com atenção
aos patrimônios naturais e históricos que ainda resistem ao processo de especulação imobiliária
ocorrido no centro histórico da capital. Além da dinâmica de estudos sobre a cidade a partir de fontes
bibliográficas, o Gepech também promoveu interlocução com pesquisadores por meio de palestras e
entrevistas e ainda propôs o início de atividades de iniciação científica, por meio do Programa
Institucional voluntário de Iniciação científica (PIVIC). Nesse programa, foram envolvidas duas
acadêmicas do curso de licenciatura em Letras do Ifes, Campus Vitória, que ficaram encarregadas de
organizar dados oriundos de entrevistas com pesquisadores de referência nacional, bem como de
levantamentos de pesquisas em centros de investigação que possuem relação com a cidade. Nesse
levantamento vamos buscar identificar pesquisas das áreas de arquitetura, artes, letras, educação,
geografia, história e possíveis outras áreas que se mostrarem importantes para esse cenário de
estudos. No item a seguir vamos situar algumas proposições dessa iniciação científica direcionada ao
levantamento bibliográfico e dados iniciais já produzidos.

2. EDUCAÇÃO NA CIDADES E HUMANIDADES: contribuições da área da arquitetura

Considerando que a produção desse artigo tem origem em um trabalho de iniciação científica
sobre Educação na cidade, cujo objetivo é levantar referências teóricas que contribuem para a
compreensão da cidade e seu potencial educativo, buscamos dialogar por meio de pesquisa
documental com estudos realizados no campo da arquitetura e urbanismo. Para este momento, o
artigo se baseia em dados parciais levantados na base do Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo, em nível de Mestrado, que está inserido dentro do Centro de Artes na
Universidade Federal do Espírito Santo.
Os dados aqui apresentados, privilegiam estudos desenvolvidos e orientados pela Prof.ª Dra.
Renata Hermanny de Almeida que integra a equipe dessa Pós-Graduação desde 2009. Foram
acessados por meio de consulta eletrônica ao banco virtual http://www.arquitetura.ufes.br/pt-
br/pos-graduacao/PPGAU/ onde foram visualizados quatorze trabalhos, porém apenas dez estavam
disponíveis para leitura ou para baixar o arquivo. Acredita-se que os demais ainda não estão
disponíveis porque podem estar na condição de trabalhos em andamento. Os dez trabalhos
catalogados abordam várias vertentes e cidades do Espírito Santo, como Vitória, Linhares e Santa
Leopoldina, assim como uma cidade mineira, Sabará-MG, conforme tabela 1.

Tabela 1. Catalogação de trabalhos acadêmicos /PPGAU


A
Autor Título
no
2 Tatiana Caniçali
Cidade-paisagem - novas perspectivas sobre a preservação da paisagem urbana no Brasil
010 Casado
2 Alexandre Ricardo A identidade socioespacial e a constituição territorial: o papel das dinâmicas econômicas na
010 Nicolau conservação do patrimônio
2 O planejamento como instrumento de conciliação entre a preservação e o desenvolvimento
Ramona Faitanin
012 urbano: o caso da Cidade de Vitória
Jaqueline
2 Pugnal da Silva Modelo de inserção de nova arquitetura em áreas urbanas diferenciadas - experimentação

NARRATIVAS
573

012 na cidade de Sabará/MG


2 Uso de ferramentas computacionais para análise de modificações na ambiência urbana de
Rodrigo Zotelli Queiroz
013 sítio histórico tombado: ensaio em Santa Leopoldina – ES
2 Educação patrimonial e desenvolvimento local: relação sociedade-patrimônio em Santa
Lorena de Andrade Castiglioni
013 Leopoldina
2 Metodologia de representação identitária do patrimônio territorial: a água como elemento de
Natália Oliveira Lira da Silva
014 identidade em Linhares/ES
Deborah
2 Augusta do Amaral e Instrumentos da política urbana e seus potenciais para preservação de sítios históricos:
014 Castro possibilidades para Santa Leopoldina, Espírito Santo
2 Representando o patrimônio territorial com tecnologia da geoinformação:
Bruno Amaral de Andrade
015 experimento em Santa Leopoldina / Espírito Santo
2 Conservação de tijolo cerâmico em alvenarias históricas: subsídios para restauração do sítio
Luciana da Silva Florenzano
016 histórico de Santa Leopoldina-ES
Fonte: PPGAU.

A partir desses dados (Tabela 1) percebemos que os estudos ampliam o olhar sob a cidade,
focando na preservação e manutenção do sítio histórico, memória local e/ou restauro do patrimônio
cultural e histórico. Os trabalhos envoltos nessa temática foram expandindo suas proposições,
partindo da cidade de Vitória como no trabalho de Faitanin (2012) que tinha como objetivo
compreender e categorizar mudanças no conceito de monumento, de seu entorno e, principalmente,
da relação entre eles. Em outros estudos notamos que o foco privilegiado foi a cidade de Santa
Leopoldina que aborda questões sobre preservação, conservação, educação patrimonial e aspectos
computacionais e de informática para manter o patrimônio histórico da cidade de Santa Leopoldina-
ES. Os trabalhos de Queiroz (2013), Castiglioni (2013), Amaral e Castro (2014), Andrade (2015) e
Florenzano (2016) expressam esse interesse e investem em outros estudos sobre o centro histórico
dessa cidade. É importante situar que a cidade de Santa Leopoldina fica localizada na região serrana
do Espírito Santo e foi ocupada por diferentes grupos europeus a partir de 1856, conforme podemos
ler em Castiglioni (2013). Nesse processo de colonização foi se constituindo um acervo histórico de
elementos da cidade que evidenciam contribuições de diferentes culturas, em especial, dos alemães. O
estudo de Castiglioni (2013) propõe ação de investigação sobre o patrimônio histórico da cidade junto
com uma escola da região, indicando assim relações com os interesses do Gepech.
Peculiar nestes trabalhos é a relação com a metodologia adotada e as conexões com
proposições do italiano Alberto Magnaghi. Esse autor está vinculado a proposta da Escola
Territorialista Italiana, que evidencia importância para as representações da cidade a partir de
diferentes atores sociais, em especial as crianças. Um dos pontos importantes desse método é a
participação, uma inter-relação que busca ouvir contribuições de diferentes sujeitos sobre a noção de
patrimônio histórico cultural. Tal perspectiva dialoga com a teoria Bakhtiniana que ganha forma a
partir das várias vozes, polifonia, alteridade na construção do conhecimento do território e
reconhecimento de valores advindo dos atores territoriais, no caso desses trabalhos a universidade,
a comunidade local e o poder público. Esse método fica evidente no trabalho de Andrade (2015) em que
menciona a aplicabilidade no contexto da cidade e a consideração das várias vozes, especialmente
porque trabalhou com crianças e professores de escolas da região. O pesquisador afirma que

NARRATIVAS
574

O método prova poder ser utilizado para identificação de valores patrimoniais no contexto brasileiro,
desde que seja observada a adaptação de conceitos à realidade local, como o patrimônio de longa data,
a participação cidadã, os recortes espaciais (âmbito, figuras e elementos), o entendimento do território
como organismo que possui camadas (ambiental, construída, socioeconômica), e a ser utilizada
(ANDRADE, 2015, p.146).

Esse tipo de metodologia adotada nos estudos que compõem nosso levantamento mostra uma
preocupação em considerar diferentes fontes de informação no processo de preservação de
construções históricas. Dessa forma, entendemos que as proposições de Andrade (2015), assim como
os demais pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFES
corroboram com o proposto pelo Gepech, que é de valorizar e dialogar com os diversos autores e
ainda privilegiar a relação entre cidade e educação em suas diferentes dimensões.
Sobre essa escuta atenta, Bakhtin nos diz que mesmo em uma palavra partindo do outro
percebemos a inter-relação dialógica repercutindo claramente, e que “[...] em todo enunciado,
contanto que o examinemos com apuro, levando em conta as condições concretas da comunicação
verbal, descobriremos as palavras do outro ocultas ou semiocultas, e com graus diferentes de
alteridade” (2003, p.319). Assim, os trabalhos que identificamos em nosso levantamento, nos apontam
que pensar a cidade e sua potencialidade educativa exige escuta, diálogo e interação com diferentes
sujeitos. Essas contribuições propiciam uma visão ampliada da cidade, e a construção de um trabalho
que valorize a preservação da cultura, do trabalho, do ser humano partindo de um reconhecimento do
passado como valor do presente e abertura para o futuro. Consideramos esses postulados como
importantes para o trabalho na área do ensino, especialmente os desenvolvidos pelo Gepech quando
realiza ações de formação de professores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse texto apresentamos resultados preliminares de levantamentos bibliográficos de


estudos que relacionam cidade e educação. Iniciamos o diálogo a partir de contribuições de pesquisas
da área de arquitetura e urbanismo que nos mostraram possibilidades metodológicas de intervenção
que valorizam a interação com diferentes sujeitos que pensam e vivem nas cidades. Desse modo, os
estudos analisados pontuam reflexões sobre a importância de garantir a escuta das crianças, de
professores, de pesquisadores, sobre o reconhecimento do patrimônio histórico cultural de regiões
da cidade de grande valor cultural, como os sítios históricos. Tais ponderações estabelecem conexões
com postulados da perspectiva discursiva de Bakhtin, assim como de Canevacci que também se
apropria de conceitos bakhtinianos para evidenciar que a cidade é viva, se transforma, imprime
marcas, ritmo, revela memórias, mostra cultura, trabalho, explicita desigualdades, como também está
aberta a possibilidades de revisões.
A cidade pensada nessa perspectiva aponta possibilidades educativas que podem promover o
enriquecimento humano e estabelecer uma nova qualidade em nossas compreensões a partir da

NARRATIVAS
575

noção da produção do espaço urbano e suas contradições. Desse modo, é importante valorizar
elementos da história humana e suas relações com a cidade. Entender os caminhos abertos para a
vida no espaço urbano, como sinalizado anteriormente por Dostoiévski, poderá oferecer subsídios
para repensar nossas atuações e relações com o espaço citadino.
Concluímos esse texto entendendo que os trabalhos que compõem nosso acervo bibliográfico
da pesquisa contribuem para alimentar novos diálogos no contexto das ações do Gepech,
especialmente no que diz respeito as ações de formação de professores da educação básica.
Pensamos que os dados produzidos pela área da arquitetura e urbanismo contribuem de modo
interessante para o ensino de Humanidades e podem assumir lugar importante no diálogo com os
professores.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, B.A. Representando o patrimônio territorial com tecnologia da geoinformação: experimento em Santa
Leopoldina / Espírito Santo. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Espirito Santo. p. 158. 2015.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_______. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio
Nobel, 2004.
CHISTÉ, Priscila de Souza; SGARBI, Antonio Donizetti. Cidade educativa: reflexões sobre educação, cidadania, escola
e formação humana. Revista Debates em Educação Científica e Tecnológica, Vitória, v. 6, n. 1, out. 2015.
DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Memórias do subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000.
HARVEY, David. Cidades Rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
KLUG, Letícia Beccalli. Vitória: sítio físico e paisagem. Vitória: EDUFES, 2009.
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.
SILVA, Jefferson Idelfonso da. Cidade Educativa: um modelo de renovação da educação. São Paulo: Cortêz &
Moraes, 1979.
UNIVERSIDADE Federal do Espírito Santo. Disponível em: <http://www.arquitetura.ufes.br/pt-br/pos-
graduacao/PPGAU/>. Acesso em: 5 set. 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
576
A ideia deste relato é oriunda de um trabalho
acadêmico intitulado “Análise do Gênero Textual
Canção com base na música “A Mulher Do Fim Do

RELATO DE EXPERIÊNCIA: Mundo”, que teve início no segundo semestre de


2016, na disciplina de Morfossintaxe do Instituto
Federal do Espírito Santo (IFES) - campus Vitória.
Elza Soares e Bakhtin no meio acadêmico Diferente deste, queremos no relato de experiência
apresentar a obra e vida de Elza Soares e a teoria
bakhtiniania, e ainda o olhar das autoras sobre os
desafios e expectativas na produção deste trabalho
acadêmico. Ao levar a história de Elza Soares e a
canção "A Mulher do Fim do Mundo" para o meio
acadêmico, tínhamos o intuito de qualificar nossa
ADÃO, Alessandra Barbosa5 práxis e oportunizar a história desta. Como
metodologia partimos de leituras das teorias de
SANTOS, Mariana Dionizio dos6 Bakhtin (2003) e Costa (2003) e a biografia da
cantora, para analisar a canção e, apontar as
especificidades desse gênero textual. A partir deste
relato, queremos de forma pessoal e singular,
apresentar quais os desafios e perspectivas as
autoras deste trabalho tiveram ao levar a voz de
INTRODUÇÃO uma mulher negra, em diálogo com pressupostos
dialógicos para o Instituto.

N
este relato tentamos aproximar ainda mais Elza Soares, sua Palavras-Chave: Elza Soares. Canção. Narrativas.
voz, sentidos e experiências do meio acadêmico, dos Bakhtin

pressupostos de Bakhtin e das vozes das autoras deste artigo.


A ideia de trabalhar Elza Soares e sua música “A Mulher do Fim do
Mundo” e ainda propor um diálogo do gênero canção e a sala de aula para alunos do Ensino Médio teve
início na articulação das disciplinas Morfossintaxe e Pesquisa e Prática do curso de Letras-Português
do Instituto Federal do Espírito Santo no segundo semestre de 2016.
Para tanto, iremos distribuir nosso relato em três seções. Na primeira seção, contaremos o
roteiro que seguimos para a produção do trabalho acadêmico dessas disciplinas durante o segundo
semestre de 2016, intitulado “Análise do Gênero Textual Canção com base na música “A Mulher Do Fim
Do Mundo”, além dos desafios e expectativas das autoras ao levar uma cantora pouco citada no meio
acadêmico e ainda mostrar nossa metodologia. Ainda nesta secao, apresentamos a autora base deste
relato - Elza Soares.

Já na segunda seção, mostramos a estruturação do trabalho apresentado , os pressupostos teóricos e


proposições para aplicação em sala de aula. A terceira seção, reservamos espaço para as análises do
diálogo do gênero canção e a música “A Mulher do Fim do Mundo” com as teorias de Costa e Bakhtin. A
partir deste relato, queremos de forma pessoal e singular, apresentar quais os desafios e perspectivas
as autoras deste trabalho tiveram ao levar a voz de uma mulher negra, em diálogo com pressupostos
dialógicos para o Instituto.

5
Jornalista e Graduanda do curso de Licenciatura em Letras – Português no Instituto Federal do Espírito Santo. E-mail: aleadao@outlook.com
6
Graduanda do curso de Licenciatura em Letras – Português no Instituto Federal do Espírito Santo. E-mail: dionizio.mariana@gmail.com

NARRATIVAS
577

1. O ROTEIRO DE TRABALHO: Elza Soares no meio acadêmico

Quando foi proposto a elaboração desse trabalho na disciplina de Morfossintaxe, já nos foi
passado um roteiro com músicas/cantores e autores pré-determinados. Deveríamos ter como
referencial teóricos Ramires e etc (2010); Manzoni e etc (2010); Dell´Isola (2009); Cobalchini e etc
(2007); Carvalho (2010) e Barbosa (2011), partindo da metodologia de revisão bibliográfica e leitura
biográfica, e seguir as seguintes orientações:
1. Caracterizar o gênero canção, por meio de suporte teórico específico;
2. Fazer uma breve contextualização da canção, como seu contexto de produção, artístico,
gênero musical, artistas envolvidos, etc.
3. Definir e apresentar uma estratégia de como a canção escolhida poderia ser
apresentada/trabalhada com alunos do 3º ano do ensino médio.
4. Criar/desenvolver atividades com sugestão de respostas que relacionem tanto o viés de
compreensão/interpretação textual, como o de estruturas gramaticais. No que toca à gramática,
procurem aplicar um olhar plural, que envolva norma-padrão, norma culta,normas populares e
diferentes níveis de registros.
Partindo do gênero canção tínhamos que realizar a apresentação de atividades que
explorassem o gênero como instrumento para o aprofundamento de alguns conteúdos específicos em
aulas de Língua Portuguesa. Logo de início tivemos dois entraves na elaboração do trabalho, o
primeiro a troca de música/cantores pré-determinados pelo professor e o segundo por levar
conteúdos ligados a área da linguagem como a teoria bakhtiniana. É importante ressaltar que durante
o curso, o contato com Bakhtin apenas ocorreu no 3º período na disciplina de Psicologia da Educação
e no 5º período na disciplina de Didática Geral, por não ser considerado teoria e não ter aplicação em
sala de aula, por parte de alguns professores da graduação.
Ainda assim, continuamos a pesquisa mesmo percebendo os olhares tortos do professor para
a música escolhida e a desconfiança se concluiríamos o trabalho ou não. A escolha da música “ A
Mulher do Fim do Mundo” interpretado por Elza Soares ocorreu devido a força na letra e melodia, e
por representar a fala do grupo. No próximo item, explicitamos quem é Elza Soares e mais motivos do
por que escolhemos sua música e história de vida para contar em nosso trabalho.

1.1 Quem é elza soares

A Elza é a própria “Mulher do Fim do Mundo” que transcende as barreiras sociais, culturais e políticas para
firmar-se na música brasileira. Preta, pobre, favelada, vinda do “planeta fome”, mãe de seis filhos, dos quais um
morreu de fome se vê obrigada a casar aos 12 anos. Viúva, na adolescência roubou comida para se alimentar, trabalhou
como empacotadora e precisou batalhar para cantar e cativar os críticos na década de 50.
Nesse período consegue participar do programa de calouros na Rádio Tupi, apresentado por Ary Barroso,
mostra seu potencial vocal mesmo desacreditada, quando o apresentador a trata com chacota e pergunta: “De qual

NARRATIVAS
578

planeta você veio?”. Ela responde: “Do planeta fome!”. Seria o início de sua consagração como nova estrela da música.
Sua carreira foi marcada por fama, agressões, exílio no período da ditadura, tragédias e o romance com o jogador de
futebol, Mané Garrincha, uma relação conturbada que durou 17 anos.
Elza foi julgada pela sociedade e a mídia, vista como bruxa por controlar o marido do vício do alcoolismo.
Agredida diversas vezes por Garrincha, em um desses momentos perde todos os dentes da frente. A mãe morreu em
um acidente automobilístico, em que o marido alcoolizado foi o culpado. Mesmo frente às barreiras, Elza foi eleita
cantora do milênio no ano 2000 pela BBC de Londres e atualmente é conhecida mundialmente como a Rainha do Samba,
e ainda como a mulher que se reinventa, aprende, renasce das cinzas, que tem sede do novo. Reafirmando que “My
name is now!” (Meu nome é agora), sendo a personificação da Mulher do Fim do Mundo.
A música escolhida para o trabalho faz parte do álbum homônimo lançado em 2015 e interpretada por Elza
Soares. Com uma carreira de meia década, esse é o primeiro álbum de músicas inéditas da cantora. Consagrado pela
crítica, recentemente foi premiado no 27º Prêmio da Música Brasileira de 2016 como o melhor na categoria Pop / Rock
/ Reggae / Hip Hop / Funk.
Além desse, foi premiada no Grammy Latino (Novembro/2016) como o melhor álbum de música popular
brasileira "A Mulher do Fim do Mundo”; foi considerado um dos melhores álbuns de 2016 pelo New York Times
(Dezembro); homenageada pelo Troféu Raça Negra, em Novembro/2016, que premia personalidades que lutam a favor
da comunidade negra (o evento é parte das comemorações do dia da consciência negra).
O álbum é composto por 11 faixas que circulam entre o samba rock, rap e eletrônico, que é autointitulado pela
cantora de “punk-samba”. Um disco atual que canta os problemas da sociedade contemporânea com teor crítico.
Apresenta canções que abordam o sexo, a violência contra a mulher e travestis, drogas, negritude e morte.

2. O TRABALHO ACADÊMICO: A canção, Elza Soareas e as expectativas

Durante a produção do trabalho “Análise do Gênero Textual Canção com base na Música “A
Mulher Do Fim Do Mundo” vimos o quão forte e determinada é Elza Soares, até por isso a escolhemos
como objeto de estudo. O trabalho foi estruturado em 4 capítulos, divididos em : Breve contexto do
gênero textual canção ; Contexto da música ; Estratégia de trabalho em sala de aula e Atividades, para
que possamos explorar o máximo da história da cantora, o gênero textual e suas pecualiaridades.
Além dos autores determinados, utilizamos como referencial - Bakhtin (2003), os PCNs e
COSTA (2003) para nos dar suporte oficial e a aplicação do gênero textual no cotidiano do aluno e da
sala de aula. Ainda assim, nos apoiamos na biografia da cantora e na letra da música “ A Mulher do Fim
do Mundo” para pensar nas estratégias para sala de aula e nas atividades. Exploramos questões que
envolviam a moforssintaxe, semântica, sintaxe e interpretação de texto para que o aluno pudesse ter
uma dimensão da riqueza do gênero textual canção, conforme transcrição abaixo.

A Mulher do Fim do Mundo (Romulo Fróes e Alice Coutinho)

Meu choro não é nada além de carnaval


É lágrima de samba na ponta dos pés

NARRATIVAS
579

A multidão avança como vendaval


Me joga na avenida que não sei qual é

Pirata e super homem cantam o calor


Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor

Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do

Resto
Dessa
Vida
Na avenida
Dura
Até
O fim

Mulher
Do fim
Do mundo
Eu sou
Eu vou
Até o fim
Cantar

Ao entregarmos o trabalho pronto e apresentarmos para a turma do 4º período de Letras-


Português do IFES – Campus Vitória, estavámos bem ansiosas, pois iríamos além de apresentar uma
cantora pouco citada em sala de aula, levaríamos a música pouco ouvida e ainda, teorias de Costa (
2003) e Bakhtin (2003) para basear nossa fala. A apresentação realizada por meio de slides, foi
organizado da seguinte maneira: explicitar o que os PCNs dizem sobre o gênero; abordar a canção –
gênero textual e discursivo – dentro da teoria de Bakhtin e Costa; apresentar a biografia de Elza
Soares e por fim, mostrar a proposta de trabalho.
Ao final, ficamos extasiadas, pois a turma ficou atenta como que admirando cada detalhe
falado e a própria música. O professor que inicialmente disparava olhares desconfiados, estava
atônito e boquiaberto ao final do trabalho, fazendo pouco ou nenhuma consideração. Inclusive, alguns
alunos vieram nos parabenizar e agradecer por ter apresentado Elza Soares para eles.

NARRATIVAS
580

3. DIÁLOGO ENTRE ELZA SOARES E BAKHTIN

A canção tem essa influência de envolver e contagiar, pois está presente no dia a dia das
pessoas, na academia, no trabalho, em momentos de lazer e também na escola. Por ser um gênero
multifacetado e literocanção, requer maior atenção quanto suas peculiaridades e características
capazes de auxiliar na aprendizagem dos alunos. Quanto a isso, Bakhtin (2003) nos da suporte com
sua dialogia no entendimento da alteridade no discurso cotidiano, e Costa (2003) nos dá base para as
questões formais do gênero e suas especificidades.
A música quando analisada permite-se ir além de melodia e texto, sendo pensada em vários
níveis que envolvem a materialidade formal, linguística e a enunciativa ou pragmática. Este gênero
tem um caráter híbrido “intersemiótico, pois é o resultado da conjugação de dois tipos de linguagens,
a verbal e a musical (ritmo e melodia)” (COSTA, 2003, p.18).
Em “A Mulher do Fim do Mundo”, canção analisada, podemos observar essa junção harmônica
entre texto e melodia, a partir do predomínio de palavras de uso cotidiano, maior liberdade quanto às
regras normativas da sintaxe; repetições sem intencionalidade outra que não a obediência às
exigências do curso melódico e rítmico; os sentidos que faltarem podem ser preenchidos pela melodia
e joga com os movimentos de prolongamento das vogais, oscilações da tessitura da melodia, repetição
de sequência melódicas (temas),etc.(COSTA,2003).
Na concepção de Bakhtin (2003) a canção faz parte do gênero discursivo, pois são os tipos
relativamente estáveis de enunciados que se elaboram no interior de cada esfera da atividade
humana. A respeito da temática, Carvalho pondera sob o proposto por Bakhtin

Os gêneros do discurso constituem-se, portanto, como repertórios de uso da linguagem, atualizados a


cada nova enunciação. Essa definição pressupõe a relação dialógica que Bakhtin propõe para a utilização
da língua e aponta para a historicidade dos gêneros, bem como para a flexibilidade de suas
características e fronteiras. Os enunciados constituem um gênero quando atingem certo grau de
estabilidade. Esta é definida através de três elementos: o conteúdo temático, o estilo e a estrutura
composicional. (CARVALHO,2009, p.2)

Essa relação dialógica proposta por Bakhtin nos faz atentar para a utilização do gênero
textual a serviço do “processo de interação entre sujeitos, uma vez que a palavra tem duas faces, isto
é, parte de alguém com destino a outro alguém” (PIRES, 2003, p.39). Nesta acepção, o “eu” e o “tu”
não existem individualmente, e há um “eu” inacabado, incompleto que necessita do outro para existir.
É um processo de alteridade onde o “eu” nunca é o mesmo e se mantém em constante mudança por
meio da interação e discurso com o outro, em relação solidária.
Bakhtin ainda nos diz que mesmo em uma palavra partindo do outro percebemos a inter-
relação dialógica repercutindo claramente, e que “[...] em todo enunciado, contanto que o examinemos
com apuro, levando em conta as condições concretas da comunicação verbal, descobriremos as
palavras do outro ocultas ou semiocultas, e com graus diferentes de alteridade”(2003,p.319).

NARRATIVAS
581

Entendendo a linguagem como forma de interação verbal e social, seguindo a concepção


Bakhtiniana, os enunciados linguísticos são a concretização dos fenômenos sociais, tanto orais quanto
escritos (BAKHTIN, 2003). Mesmo assim, é preciso considerar nesta análise a articulação entre
linguagem verbal e musical e ainda a existência de uma fronteira instável entre a oralidade e escrita,
já que a canção apresenta características em diferentes graus, correndo o risco de ser transformada
em poesia. (CARVALHO,2009).
Quanto a materialidade, consideraremos o trabalho de Costa (2003), que a partir dos PCNs
dividiu o gênero canção em três níveis: materialidade formal, materialidade linguística e a
materialidade enunciativa ou pragmática. Para Costa, a formal diz “respeito à materialidade mais
superficial, correlativa à dimensão significante, tal como Saussure (op.cit.) define. A linguística
concernirá ao código de linguagem; e a enunciativa ou pragmática, à realidade da interação entre os
usuários” (COSTA, 2003, p.25).
Ao utilizarmos a canção, queríamos possibilitar ao aluno além da interpretação do texto/letra,
a compreensão do que ocorre com a personagem e a dialogia nesse gênero discursivo, bem como
identificar a mulher negra na sociedade; suas aflições e anseios diante da situação em que se
encontra. A despeito disso, os PCNs nos dão suporte para explorar o texto, o gênero textual e todas as
imbricações para dar sentido no conteúdo transmitido ao aluno,

Toda linguagem carrega dentro de si uma visão de mundo, prenha de significados e significações que
vão além do seu aspecto formal. O estudo apenas do aspecto formal, desconsiderando a inter-relação
contextual, semântica e gramatical própria da natureza e função da linguagem, desvincula o aluno do
caráter intrasubjetivo, intersubjetivo e social da linguagem. (BRASIL, 2000, p.6-7)

Partindo das atividades propostas pretendíamos levar para sala de aula os usos sociais mais
frequentes dos textos, além de possibilitar que o aluno reflita, progrida e colabore para a
identificação daquilo que já é conhecido e internalizado, com vistas a formação de um ser crítico e
consciente. Pois ao trabalharmos o ensino-aprendizagem e a linguagem, tratamos de algo que é
inerente a capacidade humana e que pode ser explorada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse relato é fruto do resultado de uma análise anterior, para uma disciplina de formação do
estudante de Letras-Português que engloba prática e pesquisa na vida acadêmica e que possibilitou as
graduandas amplitude de conhecimento quanto as práxis voltadas a morfossintaxe, sintaxe e
semântica na sala de aula. Para além disso, com esse relato queríamos mostrar o outro lado, a
pesquisa, as autoras e suas vozes frente aos desafios de se pensar, estruturar e finalizar um trabalho
acadêmico mesmo com a desconfiança do professor e colegas.
Com a proposta do trabalho acadêmico, tínhamos o intuito de possibilitar a formação de um
aluno crítico e consciente frente aos conteúdos, podendo explorar e esgotar o gênero textual. Ao levar

NARRATIVAS
582

“A Mulher do Fim do Mundo” e a biografia da cantora para a sala de aula, desejavámos quebrar
paradigmas ao apresentar uma mulher preta, pobre e de origem periférica querendo cantar e ter voz
na sociedade. Ao associar Costa (2003) e Bakhtin (2003) a canção desafiamos o meio acadêmico, o
olhar do Mestre em sala de aula e ainda nos desafiamos ao apresentar um conteúdo e teoria
envolvente, que pode ser aplicada em qualquer contexto e meio.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins fontes, 2003.
BARRADAS, Fernando da Conceição. A historicidade da canção e sua aplicação pedagógica. Akrópolis, Umuarama, v.16,
n.2, p.79-94, abr/jun 2008.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. 106 p.
BRASIL. MEC. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio.
Brasília, 2000. 394p.
BRASIL. MEC. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. PCNs+ Ensino Médio: orientações educacionais
complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, 2002. 144 p.
CARVALHO, F. C.. O gênero canção: uma prática intersemiótica. In: II Simpósio Nacional de Estudos Filológicos e
Linguísticos, 2009, Rio de Janeiro-RJ. Almanaque CIFEFIL, 2009.
COSTA, Nelson Barros da. Canção popular e ensino da língua materna: o gênero canção nos Parâmetros Curriculares de
Língua Portuguesa. Linguagem em (Dis)curso (Online), UNISUL Tubarão Santa Catarina, v. 4, n.1, p. 5-18, 2003.
O Globo, Álbum de Elza Soares entra nos dez melhores do ano do ‘New York Times’. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/cultura/musica/album-de-elza-soares-entra-nos-dez-melhores-do-ano-do-new-york-
times-20611941> Acesso em: 11 de jun.2017.
Redbull, Elza Soares conquista o Grammy Latino. Disponível em: <https://www.redbull.com/br-pt/elza-soares-
conquista-grammy-latino> Acesso em: 11 de jun.2017.
Revista Capitolina, A cantora do milênio é mulher, negra, brasileira e feminista: ELZA SOARES. Disponível em:
<http://www.revistacapitolina.com.br/a-cantora-do-milenio-e-mulher-negra-brasileira-e-feminista-elza-soares/>.
Acesso em: 15 de julho de 2016.
Troféu Raça Negra, ELZA SOARES. Disponível em: <http://2016.trofeuracanegra.com.br/elza-soares/> Acesso em: 11
de

NARRATIVAS
RESUMO
583
Pesquisa com adolescentes no contexto da cultura
digital. No estudo são abordadas questões relativas

EM DIÁLOGO COM AS às tecnologias digitais em interface com o


desenvolvimento humano. As formulações teóricas
de pesquisa se articulam com autores que abordam

NOVAS GERAÇÕES:
as redes sociotécnicas na atualidade. Tendo como
referencial teórico-metodológico a abordagem
histórico-cultural, a investigação se fundamenta no
conceito de vivência (perejivanie), de Lev
adolescentes e suas vivências na Semionovitch Vigotski. Busca-se compreender de
que modo os adolescentes potencializam seu
cibercultura desenvolvimento na apropriação de instrumentos e
signos culturais, mediados pelos dispositivos
tecnológicos da cibercultura. Mediante entrevistas
semi-estruturadas em uma perspectiva dialógica,
são explorados “mapas vivenciais” com quatro
sujeitos com idades entre 12 e 16 anos. Subsidiada
ALMEIDA JÚNIOR, Sebastião Gomes de7 em considerações sobre as relações espaço-
temporais na constituição das vivências humanas,
concebendo a pesquisa que rompem com as
narrativas hegemônicas, a investigação se
referencia em apontamentos que se articulam com
os postulados qualitativos bakhtinianos,
fundamentando-se no conceito de cronotopia.
INTRODUÇÃO
Palavras-Chave: Adolescentes. Cibercultura.

V
Vivências
ivemos em um mundo de modificações no tempo e no espaço,
onde a comunicação se dá por meio de diversas formas de
conexão pelos dispositivos técnicos, em um cenário de
interação ubíqua sem precedentes. Compreender os jovens que se inserem nos ambientes digitais
exige que se aprofunde a pesquisa sobre os fenômenos comunicacionais contemporâneos. As novas
configurações culturais perpassadas pelas tecnologias caracterizam essas mudanças recentes pela
consolidação da sociedade em rede. Todo esse contexto de transformação envolvendo as forças
produtivas decorrentes da circulação de informação em um novo paradigma sociotécnico, abordado
por Castells (2004; 2007), Santaella (2003; 2005), Lévy (1999), Lemos (2008), Lévy e Lemos (2010),
desponta como desafio para aqueles que buscam a compreensão dos mais diversos fenômenos da
contemporaneidade. Juntam-se a esses autores, que discutem o ambiente comunicacional da
cibercultura, as formulações de Jenkins (2008), Johnson (2001; 2003), Shirky (2011), Recuero (2009;
2010), Murray (2001), que, nas suas abordagens específicas, tratam das formas de participação dos
usuários por meio das mídias digitais interativas. Para o entendimento desses fenômenos, esses
autores abordam as tecnologias e a emergência de novas formas de organização, envolvendo
processos de circulação, de consumo e de compartilhamento de conteúdos na cultura participativa,
potencializada pelos computadores em rede.
Ao levar em conta que a vivência social e a mediação dos instrumentos da cultura e da
linguagem estruturam o desenvolvimento humano, pode-se considerar que o referencial teórico

7Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação, na Linha de Pesquisa Linguagem, Conhecimento e Formação de Professores, da
Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGE-UFJF) . E-mail: tito-jnr@hotmail.com.

NARRATIVAS
584

histórico-cultural se articula com o presente tema de estudo sobre as novas gerações que se
apropriam dos dispositivos técnicos da cibercultura na sua comunicação.
Refletindo sobre as tecnologias digitais e o desenvolvimento humano, Freitas (2015) nos fala
do aspecto inovador da psicologia histórico-cultural que concebe a relação dialética entre as funções
elementares (naturais) e as superiores (culturais). Essas funções se articulam na unidade da pessoa.
Ressaltando o pensamento de Vigotski8, a autora afirma que “a natureza da cultura está relacionada
com o caráter duplamente instrumental, técnico e simbólico da atividade humana.” (FREITAS, 2015,
p.3). A cultura vem a ser, assim, a totalidade das realizações humanas. Dessa forma, sendo produto de
uma sociedade e de uma cultura, podemos compreender as tecnologias digitais como criação do
homem, no seu processo histórico de transformação do mundo.
Ao tratarem do desenvolvimento cultural humano, Vygotsky e Luria (1993) ressaltam a
importância dos instrumentos artificiais da cultura para a expansão dos sentidos, modificando-os no
processo de sua evolução. O homem inventou ferramentas e criou um ambiente industrial cultural.
Esse ambiente criado pelo homem causou alterações na sua maneira de pensar e agir, suscitando
formas culturais complexas de comportamento, que vieram a tomar o lugar das formas primitivas.
Na abordagem histórico-cultural, observa-se a estreita ligação entre as atividades produtiva
e cognitiva, num movimento dialético, no qual, “ao mesmo tempo que se opõem e se negam,
constituem-se mutuamente, pela mediação instrumental/semiótica” (Pino, 2001, p.40). Ocorre nesse
movimento dialético uma dupla transformação da natureza pelo homem, em que ele a constitui como
um objeto de conhecimento (produção cultural), tornando-se, ele, também sujeito de conhecimento.
Para a perspectiva histórico-cultural, nas funções psicológicas superiores, de natureza
cultural, ocorre a constituição do indivíduo enquanto sujeito conhecedor, na sua progressiva
participação em práticas cognitivas na sociedade. Assim, ele transforma em seus tanto os saberes,
objetos do conhecimento, produzidos historicamente pelos homens, como as formas de saber e
pensar.

1. NO CAMINHO DA ESCUTA DAS NOVAS GERAÇÕES EM SEUS ESPAÇOS-TEMPOS: buscando uma


articulação teórico-metodológica com o conceito de vivência

Em minhas aspirações enquanto pesquisador voltado para conhecer os adolescentes,


articulando as questões investigadas no campo com o referencial da teoria histórico-cultural, minha
trajetória, até o momento, fez-me compreender, nesse contexto das novas gerações inseridas no
ambiente comunicacional contemporâneo, o quanto esses sujeitos estão construindo, em seu tempo e

8 Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934) é o fundador da psicologia histórico-cultural. Sua teoria compreende que o desenvolvimento humano
ocorre no encontro com os signos e os instrumentos da cultura, estabelecendo que é na linguagem e na vivência social que se dão as
aquisições da criança e não como processos internos de maturação biológica. No decorrer do texto, dependendo da tradução, o nome do autor
é grafado de forma diferenciada, de acordo com referência bibliográfica, sendo que, excetuando as citações, adota-se a indicação de Prestes
(2012) para se referir ao autor.

NARRATIVAS
585

nos seus espaços, as suas vivências, mediados pelos signos da cibercultura, envolvendo diferentes
modos de se engajarem no seu meio social e cultural.
Para Jerebtsov (2014), o conceito de vivência (perejivanie) na teoria de Vigostski traduz, de
forma generalizada, muitos fenômenos psicológicos de forma a entender o desenvolvimento humano.
Em seu posicionamento, o autor esclarece que a teoria histórico-cultural propõe a superação de
posições de uma psicologia positivista, de ordem mecanicista ou de uma psicologia descritiva, de
abordagem fenomenológica, voltada para compreensões apartadas da historicidade e da cultura em
constante movimento.
Das concepções de Vigotski sobre o conceito de vivência, Jerebtsov (2014) destaca a unidade
entre o “interno” e o “externo” na situação social de desenvolvimento. Essa proposição teórica
também ressalta que as vivências constituem a unidade afeto-intelecto, relacionando sentimento e
razão, tendo a realidade e a experiência como mediadores, com o entrelaçamento de linhas de
desenvolvimento natural e cultural, envolvendo a necessidade, o afeto e a reflexão fundamentada em
conceitos. Além desses, outro ponto-chave é a compreensão da vivência como unidade integradora de
análise da consciência e do desenvolvimento da personalidade. Ocorre, assim, a regulação da
atividade da vida pelas funções psíquicas, que se manifestam por processos emocionais, perceptivos,
cognitivos, etc.
Trazendo o pensamento de Vigotski, que sintetiza a essência das vivências, Jerebtsov (p.19,
2014) propõe que “vivências são o processo de formação pela personalidade da sua relação com as
situações de vida, a existência em geral com base nas formas e valores simbólicos transformados
pela atividade interna, emprestados da cultura e devolvido a ela”.
Ainda esclarecendo sobre a ontogênese da personalidade, Jerebtsov (2014) afirma
que a cada idade há uma formação de um repertório de instrumentos, de espaço semântico e de
limites de vivências possíveis. O autor completa esse entendimento, ao dizer que as vivências se
modificam, ou seja, “passam a ser outras e para essas outras vivências nascem novas formas.
Vivência é a unidade do sentido e da forma de sua realização, modo de expressão.” (JEREBTSOV, p.23,
2014).
A partir daí, podemos compreender, na psicologia histórico-cultural de Vigotski, a
personalidade caracterizada por um sistema semântico dinâmico, para o outro e para si, ligado à zona
de desenvolvimento iminente, que estimula a possibilidade de construção de mundos novos e, por
conseguinte, a vivência de uma nova realidade.
Ao tecerem considerações sobre as relações espaço-temporais na constituição das vivências
humanas e concebendo a pesquisa que rompem com as narrativas hegemônicas, Lopes e Barenco
(2016) abordam possibilidades de refletir sobre as investigações que se articulam com os postulados
qualitativos bakhtinianos. Discutindo as relações do espaço e do tempo, nas suas aproximações,
fusões e distanciamentos, esses autores trazem o conceito de cronotopia9. Aprofundando em suas

9 Os autores fazem referência ao conceito, presente em muitos escritos de Mikhail Bakhtin, destacando como principal referência sobre o tema
a sua obra “Questões de Literatura e de Estética, a teoria do Romance”.

NARRATIVAS
586

considerações sobre esse conceito, os autores ressaltam “que o tempo é histórico e o espaço é
geográfico, amálgamas fundamentais que tecem o fazer humano, seus discursos, suas linguagens e
suas existências, não há essência humana fora dessas dimensões.” (LOPES e BARENCO, 2016, p. 262).
O conceito de cronotopia de Bakhtin propõe a ruptura com as narrativas hegemônicas que se
impuseram na modernidade. Lopes e Barenco (2016) esclarecem que esse movimento primou pela
cisão do espaço-tempo, prevalecendo o segundo. Assim, de acordo com os autores, as vozes na
história passaram a ser vistas e ouvidas sem simultaneidades e sem experiências de coetaneidade,
mas sim como uma sucessão de eventos. O tempo se torna linear. O espaço, da mesma forma, é
concebido nessa linearidade. Assim, a humanidade caminha em direção a um futuro redentor, o
passado desaparece e o presente deve ser superado.

2. TRAÇANDO A APROXIMAÇÃO COM O CAMPO DE PESQUISA

De acordo com Bogdan e Biklen (1994), a investigação qualitativa abrange a seleção de


questões específicas que emergem de seu contexto à medida que os dados são recolhidos. É no
aprofundamento do contato com os indivíduos, no registro sistemático, ouvindo e observando,
conquistando sua confiança, que o pesquisador se introduz no mundo daqueles que pretende estudar.
Ao estruturar um trabalho de pesquisa qualitativa com sujeitos que interagem em sua
realidade, o processo embasado numa perspectiva dialógica se torna uma alternativa para o
planejamento para as intervenções em campo. Essa abordagem teórico-metodológica se contrapõe
aos procedimentos monológicos de conhecimento das ciências naturais, que se colocam diante de um
objeto de estudo para falar dele. Dessa forma, parte-se do entendimento de que o objeto das ciências
humanas é um sujeito, que o pesquisador não contempla apenas, mas fala com ele. Ocorre assim um
encontro de sujeitos em uma forma dialógica de conhecimento. Essa perspectiva considera que “o
objeto de estudo das ciências humanas é o homem ser expressivo e falante. Não se pode considerá-lo
enquanto fenômeno natural ou coisa, mas sua ação deve ser compreendida como um ato sígnico.”
(Bakhtin citado por Freitas, 2003, p.29).
Com a intenção de me aproximar dos jovens, nessa etapa do desenvolvimento de meu estudo,
tornou-se necessário buscar um instrumento teórico-metodológico de pesquisa que potencializasse a
escuta dos sujeitos, trazendo mais de seu contexto. Desse modo, minha atual pesquisa, que se propõe
prosseguir em um caminho que eu já traçara no estudo anterior, busca um mergulho ainda mais
profundo na dimensão dos sujeitos na perspectiva da alteridade. Na qualidade de pesquisador que se
propõe a conhecer pela escuta na aproximação das práticas culturais das novas gerações, meu
aprofundamento teórico-metodológico deve ir ao encontro dos sujeitos, cujo desafio é menos “dizer
sobre”, assumindo um papel não de mero porta-voz de um conhecimento descritivo sobre
adolescentes, mas sim de criar situações metodológicas para um “pesquisar com”, de maneira que os
próprios pesquisados tenham papel mais ativo e que mostrem como pensam, sentem e constroem
suas relações na mediação tecnológica emergente.

NARRATIVAS
587

Nessa perspectiva, ao me propor trazer as falas vivas dos sujeitos para a pesquisa, me
amparo nas palavras de Bakhtin (1997, p. 290) sobre o enunciado nessa compreensão envolvendo os
interlocutores, que “é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa
atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra,
forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor”.
Com meu estudo, vislumbro trazer para o debate questões e opiniões formuladas pelos
próprios estudantes que emergem dessa mediação tecnológica e que, em sua perspectiva, enquanto
sujeitos, possam contribuir para aprofundarmos conhecimentos no campo de pesquisa com jovens e
sua inserção no mundo, envolvendo sua produção de sentido e suas ações, mediadas pelas
tecnologias.
Assim, procurei realizar entrevistas semi-estruturadas, contando com um recurso para
possibilitar maior aprofundamento investigativo. Pesquisas com “mapas vivenciais” em uma
perspectiva dialógica buscando centralização nas lógicas infantis, como o de Lopes, Costa e Amorim
(2016) e de Lopes, Mello e Bezerra (2015), contribuíram para minhas reflexões teórico-metodológicas.
O meu interesse por esse instrumento investigativo ocorreu devido à minha identificação com a
perspectiva desses pesquisadores, que é a de superação dos discursos racionais pelas cartografias
de mundo expressadas pelos sujeitos sem suas representações livres. Buscando superar as lógicas
do racionalismo, tais pesquisas dialogam com formas infantis de compreender o mundo. Nas suas
produções, que envolvem mapas, textos, discurso verbal, brincadeiras, desenhos, gestos e outras
formas, os pesquisados se revelam como sujeitos culturais em seus contextos sociais e históricos.
Segundo Lopes (no prelo), os “mapas vivenciais” se organizam por uma estrutura
metodológica sem rigidez, buscando, por meio de trilhas esboçadas, estabelecer relação com o
objetivo da pesquisa. Essa proposta também se referencia na afirmação de que as culturas criadas
pelas crianças se dão na unidade pessoa-meio e também na vida social dialogada com a formação
cultural. Utilizando esse procedimento metodológico, a proposta é de mapear as lógicas pessoais e
coletivas, e quais indícios ali se expressam, relacionados às temporalidades e espacialidades.
Construída a partir de “mapas vivenciais” com crianças entre 10 e 11 anos, a pesquisa de
observação participante de Queiroz (2015) tratou das mídias e as novas tecnologias em espaços de
escolarização. Fundamentado no conceito de vivência, o estudo trouxe a perspectiva das crianças
desvelarem espaços da escola sob sua ótica pessoal envolvendo a compreensão dos seus modos de
ser, de pensar, de estar e de agir naquele lugar.
Benedict (2016) ressalta, em sua pesquisa com crianças nas vivências com jogos eletrônicos,
o reconhecimento do espaço como um dado cultural, ao investigar saberes cartográficos dos sujeitos.
Esse estudo, ancorado na perspectiva da escuta, buscou dialogar com as formas que as crianças
desenvolvem seus modos de cartografar o mundo nos seus processos de significação.
Os “mapas vivenciais” como recurso possibilitam a escuta dos sujeitos por meio de sua
expressão gráfica relacionando seus tempos-espaços vividos. Especificamente, na minha pesquisa
voltada para adolescentes, as questões suscitadas estavam relacionadas com suas práticas

NARRATIVAS
588

cotidianas envolvendo as tecnologias e a cultura digital. Assim, amparado por esses subsídios iniciais
de fundamentação para elaborar o instrumento de interlocução com os possíveis sujeitos para um
desenvolvimento de uma pesquisa piloto com os “mapas vivenciais”, tratei de planejar uma abordagem
com alguns adolescentes que fossem voluntários para esse procedimento metodológico.
Busquei, assim, na estruturação teórico-metodológica da minha pesquisa, em uma abordagem
dialógica na construção do processo e da compreensão, a aproximação com sujeitos e sua realidade,
para que fossem suscitadas falas impregnadas de sentido.

3. PESQUISANDO COM “MAPAS VIVENCIAIS”: o que dizem as novas gerações sobre suas
vivências na cibercultura?

No intuito de desenvolver uma experiência com esse instrumento metodológico que se utiliza
dessa possibilidade de escuta, na perspectiva de cartografar os tempos-espaços de vivências
envolvendo as tecnologias, busquei me aproximar de alguns adolescentes, em um procedimento piloto
de pesquisa.
Nesse estudo inicial com “mapas vivenciais”, a sistematizaçãodesse instrumento com os
adolescentes se deu em encontros individuais contando com entrevistas semi-estruturadas propondo
o seu traçado durante o processo. A idade dos adolescentes variou entre 12 e 16 anos 10. Os encontros
duraram de 50 minutos a uma hora e meia, dependendo do entrevistado, e as conversas foram
registradas em áudio e vídeo. Para sua identificação no texto, utilizarei codinomes escolhidos,
respeitando o modo que foram grafados por eles mesmos: LouryG, whitetuxedoguy, Miau sikes e
Zoiaopr.
Na proposta, seguindo a metodologia dos autores referenciados, foram utilizados papéis de
mesma medida, sendo que os que se superpõem à base são transparentes. Como são necessários
traçados com o lápis sobre as demais superfícies, a orientação é de que se utilize papel vegetal,
suficientemente transparente e encorpado, adequado para traçados e desenhos em que se queira
enxergar o que está por baixo no registro em camadas.
Vale ressaltar que as etapas traçadas no mapa, relacionadas com os objetivos da pesquisa,
podem ser alteradas de acordo com a orientação que o pesquisador e, até mesmo, durante o
processo. Dependendo da situação dialógica no andamento da atividade, é necessária a flexibilidade
exigida em processos investigativos semi-estruturados. Assim, por exemplo, duas etapas, de uma
previsão inicial de quatro lâminas, podem se fundir em uma, reduzindo para três o número de
superfícies traçadas na obtenção dos dados de campo.
Na sequência, são transcritos pequenos recortes das falas significativas dos adolescentes
que expressam suas vivências na cultura digital. Nessas transcrições, optei por traçar alguns

10Ao todo, ocorreram quatro encontros individuais com igual número de adolescentes. As entrevistas semi-estruturadas com a utilização de
“mapas vivenciais” foram realizadas em diferentes locais, de acordo com a disponibilidade de horário de cada voluntário. Os encontros com
cada um dos participantes ocorreram em datas distintas: LouryG, em 13/05/16; Miau sykes, em 25/05/16; whytetuxedoguy, em 08/06/16;
Zoiaopr, em 08/07/16.

NARRATIVAS
589

destaques em negrito, evidenciando relações espaço-temporais e traços do desenvolvimento da


personalidade que constituem as vivências dos participantes da pesquisa. Ao fazer o destaque, a
intenção foi de trazer para reflexão alguns aspectos a serem abordados, suscitados por essas
expressões individuais que emergem no traçado dos “mapas vivenciais” no processo das entrevistas.

4 O AFETUOSO LOURYG E SEU “ESTÚDIO” DE CRIAÇÃO

No desenvolvimento do mapa vivencial que se seguiria logo às primeiras instruções, o jovem


de 16 anos ainda com rosto de menino, mas com um porte de homem adulto, esteve o tempo todo a
descrever aquilo que traçava sobre cada uma das superfícies do papel. Notadamente meticuloso em
seu traçado, o jovem LouryG tendia a desenhar e escrever ao lado de cada elemento, com objetivo de
explicar detalhadamente as partes de seu mapa. Com muitas explicações, o jovem foi traçando em
suas superfícies, com um cuidado especial para que as lâminas se superpusessem cuidadosamente,
de forma a organizar sua descrição das suas incursões diárias, afetivas, sociais e produtivas,
relacionadas às pessoas com as quais convive e aos lugares onde transita.
LouryG foi impecavelmente minucioso para apontar no seu mapa seus movimentos diários a
partir das suas relações de interesse. Esquemático e altamente preciso nas descrições, o jovem
dedicou boa parte do traçado para ir articulando as suas falas associadas a todo tempo ao desenho.

O lugar, assim, que eu geralmente eu passo mais tempo, é..., assim. O meu tempo livre,
naturalmente, ó o meu quarto e minha casa, né? Geralmente no meu quarto eu trabalho no
computador, fazendo edição, essas, coisas, né? Eu passo mais tempo dentro da minha casa, no meu
quarto, geralmente.

***
Eu vou ampliar um pouco aqui, a questão do meu quarto, aqui na minha casa onde aparece
mais no meu quarto, é aonde eu trabalho, não só para mim, mas para amigos, onde eu uso mais o
computador. (Referindo-se ao seu desenho no mapa) Vou botar uma mesa aqui para fazer a
representação dele. Onde uso a internet.

Na representação de LouryG foi perceptível a relação que estabelece nos seus movimentos
diários com as tecnologias digitais, sobretudo pelo tempo destinado ao espaço doméstico. No conforto
de seu quarto, o jovem tem o seu computador pessoal para fazer suas edições de áudio e vídeo,
criando e compartilhando arquivos.

NARRATIVAS
590

Figura 1. Mapa vivencial de LouryG com a superposição das lâminas das etapas do traçado em que adolescente faz um meticuloso registro dos
seus movimentos diários envolvendo as tecnologias

Fonte: dados da pesquisa

Paradoxalmente, ainda que isolado nesse espaço do seu quarto, considerando editar uma
tarefa lúdica, esse adolescente evidencia uma grande motivação de aprendizagem e criação de
vinhetas em software de animação para compartilhamento com os amigos e a importância de manter
esses contatos, que são alimentados pelos ambientes online os quais acessa.
Figura 2. Canal do YouTube criado por LouryG de edições de áudio e vídeo

Fonte: dados da pesquisa

NARRATIVAS
591

5. O DESTEMIDO “PIRATA” WHITETUXEDOGUY E SEUS EMPREENDIMENTOS ONLINE

O menino de 12 anos, magro e com os cabelos caindo na testa, não era de muita conversa.
Solícito e disposto a colaborar na minha pesquisa, whitetuxedoguy já foi se prontificando a traçar
sobre o papel, demonstrando habilidade e desinibição para desenhar. Durante o desenho de seu mapa,
o adolescente ficou em silêncio, absorto em seus largos traçados sobre a folha de papel. Apesar da
pouca idade, foi notável o domínio desse jovem para falar sobre games, demonstrando grande
interesse pela jogabilidade relacionada a esse meio, traçando comentários críticos, citando linguagem
de programação e possibilidades de construção de jogos, indo além do simples fato de jogar como
passatempo. Na imersão participativa de whitetuxedoguy percebe-se a vigorosa incursão na narrativa
dos jogos.

Figura 3. Whitetuxedoguy e seu barco pirata na Interface do game online Tradelands

Fonte: dados da pesquisa

whitetuxedoguy: Eu falei que desenho barcos às vezes. [...] Tinha um jogo que eu jogava no
meu computadorque era de barco, Tradelands [...]Eu comecei a gostar. [...] Tem coisas maneiras, tipo,
o jogo dos barcos. Tem um monte de coisas que eu gosto: avião, carros. [...] Ah, quando eu comecei a
jogar o jogo de barcos eu me interessei pelos barcos movidos a vapor, aíeu comecei a desenhar. [...]
Acho maneiro [...] é porque esse era um barco que tinha no jogo, que tinha dois canhões que virava
para o lado e que eram movidos a vapor.

***

whitetuxedoguy: Chamo pessoal lá, que o jogo é online. Aí eu entro num barco. Às vezes eu
entro num barco. No barco deles. Como somos do time dos piratas e a gente vai lá para destruir o

NARRATIVAS
592

pessoal. [...] Tem três opções: um reino, um outro reino e os piratas, eu prefiro os piratas. Aí eu
prefiro os piratas, primeiro, eu já estou no nível máximo, não mu... Tipo, se eu estou em uma facção, o
seu nível não passa. Só o nível de habilidade de cortar madeira, árvore essas coisas. Eu pego pirata
também porque eu gosto mais de pirata [...] Eu tô interessado muito pelos jogos que tem de barco,
jogo de 1700, por aí, dessa época. [...] Quase toda hora eu jogo esse jogo.

***

whitetuxedoguy: É bom você saber inglês, porque o de barco. [...] Aprendi Inglês usando um
jogo [...] Na verdade esse jogo de barco é tipo assim, uma “engine” [...] Roblox é um site que oferece. É
tipo uma “engine” de jogo. Inclusive do jogo de barco é deles. Os jogadores. [...] Roblox é um site que
tem tipo um construtor que você faz os jogos que você quer. [...] Aí tem Lua 11 que você pode
programar. [...] Linguagem de informática que você pode programar

Figura 4. Mapa vivencial de whitetuxedoguy revela a predominância dos jogos online em suas incursões diárias e barco que escolheu para se
representar

Fonte: dados da pesquisa

O concentrado whitetuxedoguy, ao começar o traçado do “mapa vivencial”, desenhou com


grande desenvoltura, ocupando um grande espaço na lâmina com um barco para se representar. Foi

11Lua é uma linguagem de programação para estender aplicações, que permite, entre outras possibilidades, o desenvolvimento de jogos em
funcionalidade e dados.

NARRATIVAS
593

possível perceber como esse game online, que conta com a imersão participativa de outros jogadores,
ocupa uma presença intensa nas vivências do adolescente. Mediado pela linguagem do game, fiel
adepto do time dos piratas, o adolescente demonstra uma mobilização de pensamento e ações
compartilhadas nesse ambiente imersivo dos jogos e para suas conquistas, em movimentos que
fomentam a jogabilidade dos usuários.

6. A DESEMBARAÇADA MIAU SYKES E SEUS PROJETOS DE VIDA PELA ARTE

A adolescente de ar sério, com certa altivez no olhar, aparentava mais do que seus 14 anos.
Miau sikes começou a traçar o seu mapa em silêncio, assim que recebeu as explicações sobre o
procedimento. O desenho consistia no traçado de uma jovem vestindo uma camiseta estampada da
banda AC/DC. Assim que concluiu essa etapa inicial, Miau sykes começou a se expressar com
desinibição e uma habilidosa articulação de palavras. Falou de forma muito decidida de seu interesse
por arte, e logo foi enfatizando a importância da educação e das relações afetivas nos seus processos
diários.

Figura 5. Miausykes destaca de seu smartphone seu interesse por música e teatro

Fonte: dados da pesquisa

Miau sykes: Então, desse lado, eu fiz... Eu fiz tipo um mapa... [...] Aí, desse lado (apontando na
folha) é a cidade de Paracatu. Aí, do outro lado (fazendo um movimento amplo com a mão) Juiz de
Fora [///].
Pesquisador: Bem oposto. Eu vi que estava bem oposto.
Miau sykes: É... No mapa de Minas Gerais, Paracatu fica mais em cima [...] Juiz de Fora fica na
Zona da Mata. Eu quis fazer uma coisa assim. Aí essas linhas, é tipo estradas, meios de passagem...
(indicando com gesto sobre o mapa) de lá prá cá! Só que assim, nesse meio todo, eu vou sentir

NARRATIVAS
594

saudade das pessoas de lá: meus amigos, minha família. Linhas eu fiz uma estrada. Nesse meio tudo.
Esses riscos são assim passa... é...meios de eu ir lá. Fica até chato indo lá toda hora! Lá também é
longe. E uma forma de tecnologia que eu encontrei foi o aplicativo Facebook, que é uma maneira de eu
comunicar com os outros, falar com os meus amigos.

Miau sykes, depois de se concentrar silenciosamente no traçado de uma das lâminas no mapa,
trouxe, a partir da minha indagação, uma explicação muito articulada das relações que estabelece por
meio das tecnologias, envolvendo sua necessidade de se comunicar e pesquisar assuntos de seu
interesse.

Figura 6. Sequência da segunda e terceira etapas do “mapa vivencial” de Miau sykes em superposição em que as redes sociais têm uma
dimensão importante nessa relação com amigos e entes queridos.

Fonte: dados da pesquisa

Interessada em artes, particularmente em música e teatro, Miau sykes escreveu pequenos


trechos de músicas em seu mapa, relacionando com suas opiniões, enquanto traçava os seus
movimentos cotidianos pelos espaços.
A adolescente expressou muito claramente, na divisão de pontos distantes de seu mapa, sua
necessidade da comunicação com as pessoas queridas, que estão longe, e o quanto essa sua prática
de utilização do SMS e do Facebook é frequente no seu cotidiano.
Miau sykes ressaltou a importância da conectividade nas suas interações, mantendo laços
fortes na rede. Afirmando estar ciente dos perigos do meio conectado, ela trouxe, de suas vivências,
uma consciência de mundo, envolvendo um posicionamento sobre aplicativos das redes sociais.

NARRATIVAS
595

7. O OBEDIENTE E DISCIPLINADO ZOIAOPR, DE OLHO NA TELA, QUER ANTECIPAR O FUTURO

O adolescente de 13 anos era um garoto franzino e de olhar inquieto e curioso. Após nossa
interlocução inicial, assim que Zoaiopr começou a traçar o mapa, marcou com um pequeno ponto o
seu “eu” no centro do papel. O jovem e comportado rapaz, que se representou com essa minúscula
marca, logo foi preenchendo o entorno com textos, formando uma rede em forma de círculo, incluindo
fartas indicações escritas sobre sua vida, deveres e obediência.
Durante a conversa e na medida em que concluía sua escrita que preenchia as camadas do
mapa, Zoaiopr ressaltou sua rotina diária de estudos e obrigações altamente cronometrada, incluindo
a tarefa diária de auxiliar o pai, todos os dias, que é motorista de van escolar de crianças pequenas.

Figura 7. Traçado do “mapa vivencial” em escrita por Zoiaopr em que as tecnologias digitais aparecem relacionadas com as camadas de
textos com os quais adolescente descreve suas rotinas

Fonte: dados da pesquisa

Zoiaopr destacou em sua fala a objetividade da escrita em oposição ao desenho e a arte. Fez
questão de enfatizar seu grande interesse por engenharia e os documentários que assiste no
YouTube, demonstrando sua predileção em desenvolver habilidades para tirar proveito dos recursos
disponíveis nessa mídia, ampliando conhecimentos.
Ainda que muitas programações estejam relacionadas aos canais televisivos, os fãs têm
possibilidades de escolhas na tendência que surge por conta das modificações tecnológicas
envolvendo fluxo de conteúdos por meio de múltiplos suportes midiáticos.

NARRATIVAS
596

Figura 8. Zoiaopr apresenta sua predileção pelos vídeos que tratam de vários temas de seu interesse, particularmente os de conteúdo
científico e de obras de engenharia, disponíveis online

Fonte: dados da pesquisa

Pesquisador: Você sempre usa o celular? Como é que é?


Zoiaopr: Eu sempre uso meu celular. Eu tenho meu notebook mas eu não tiro. Ele tá quase
empoeirando lá dentro armário (risos).
Pesquisador: Ah é? O celular então... O notebook você deixa mais de lado que o celular, para
você... Porque o celular, assim...?
Zoiaopr: Porque ele é mais prático. Além de ele ter uma conectividade melhor de WiFi (risos).
Pesquisador: Você usa muito o WiFi então?
Zoiaopr: Eu... não muito, porque eu passo a maior parte do meu dia fora de casa. Mas eu...
quando eu chego em casa de tarde, eu... à noite eu uso também. Além, de... para descontrair... Para
também... Aos finais de semana. Eu gosto muito, ao invés de ficar vendo vídeo de humor, ou jogos, ou
filme ou coisas do tipo, eu gosto muito de ver documentário, no final de semana. Eu vejo
“Megaconstruções”.
Pesquisador: Ah, é? Você assiste...
Zoiaopr: Pelo YouTube
Pesquisador: Pelo YouTube. Mas aí não é pelo seu computador?
Zoiaopr: Tudo pelo celular

Altamente focado em tarefas e planos para o futuro, esse adolescente optou por escrever
sobre as lâminas em muitas posições, se negando a desenhar. Zoiaopr explicou que, para ele, o celular
e a conexão wireless têm servido aos seus interesses sobre os mais diferentes conteúdos. Sua

NARRATIVAS
597

desenvoltura com as tecnologias indica a facilidade de uso e o aproveitamento de dispositivos e de


acessos e aprendizagem nos seus tempos-espaços no dia-a-dia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: as potencialidades investigativas com “mapas vivenciais”

Não é pretensão da pesquisa em curso, fundamentada na perspectiva histórico-cultural,


trazer apontamentos conclusivos relacionados às novas gerações e ao ambiente comunicacional
emergente. Como se trata de uma proposta investigativa em construção, a pesquisa com “mapas
vivenciais” traz pistas de como os adolescentes expressam suas vivências na cultura digital, tão
presente nos seus movimentos cotidianos. A intenção é possibilitar a riqueza de registros de traços e
falas que surgem no contato do pesquisador com essas vozes que expressam suas relações de
mundo. As falas dos pesquisados trazem muito das suas vivências, revelando as suas aquisições, as
suas interações com o meio social e cultural pela mediação tecnológica dos instrumentos e signos da
cibercultura.
Os “mapas vivenciais” se mostram como desencadeadores de narrativas impregnadas das
práticas e relações que os sujeitos constroem no seu dia-a-dia. Com esse instrumento, é possível
relacionar uma série de relações que os adolescentes estabelecem e, especificamente na minha
pesquisa, apontar de que forma os dispositivos tecnológicos digitais e a cibercultura estão presentes
nos espaços-tempos de adolescentes, envolvendo pensamento e afetividade.
As possibilidades de emergirem conhecimentos na pesquisa qualitativa de aproximação com o
sujeito e seu contexto, envolvendo o ambiente dialógico nas falas que se tecem no encontro de
pesquisador e pesquisado, fomentam buscar aprofundamento de estudo de novas metodologias. Sendo
assim, os “mapas vivenciais” podem ser uma rica e expressiva ferramenta de pesquisa.

REFERÊNCIAS

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NARRATIVAS
598

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______ e MELLO, M. B. “Tinha cebola desmaiada”: Bakhtin e a pesquisa com. Revista Aleph. Niterói, n. 25, P. 260-268,
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PRESTES, Z. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch no Brasil – Repercussões
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QUEIROZ, F. R. O. “Aquí não é lugar de entrar no facebook, aquí é a escola!”: crianças e as novas tecnologías no
contexto educativo. (Dissertação de Mestrado). 2015, p.127. Dissertação (mestrado em educação). Universidade Federal
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SHIRKY, C. A cultura da participação: criatividade e generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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VYGOTSKY, L. S; LURIA, A. R. Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1993.

NARRATIVAS
RESUMO
599
.

O MERGULHO EM Palavras-Chave:

BAKHTIN: uma experiência


epidérmica e científica no processo de
autoconsciência

ALMEIDA, Cleuma Maria Chaves de12

1. INTRODUÇÃO

B
akhtin (2015) fala da consciência de si, “no vivenciamento real de mim mesmo, que permanece à
margem da visão externa” (2015, p. 35). Por isso, enquanto pesquisadora em educação, não
posso fazer ciência sem esse vivenciamento de mim para entrar no processo de diálogo com o
outro, num mesmo cronotrópico. Daí a força da metáfora do mergulho 13 como um desafio da
revelação de si, de aproximação da auto-consciência na pesquisa e na construção de uma
epistemologia decolonial; de desestruturação dos estereótipos racistas que alienam nossa
consciência e nos impedem de encontrar, de conversar com o outro.
“Uma visão de mundo dentro de si”14, palavras que acrescentaram o sentido da metáfora do
mergulho, enquanto caminho metodológico compreensivo no processo de pesquisa para além de uma
experiência teórica, mas também epidérmica e axiológica. Refiro-me à ideia do mergulho como um
ponto excêntrico na vida e na pesquisa, pois, todas as vezes que mergulho, abro um ponto excêntrico
na minha vida, “uma vida dentro da vida”15. Trata-se de uma busca, um superar-se, um desvendar-se:
um estar com o outro e também um estar só. Talvez por isso tenha escolhido esse caminho de
pesquisa, pois, como aponta Geraldi (2010, p. 89) “Creio que um caminho a percorrer é precisamente
aquele que nos apontam relações atentas com a alteridade, porque elas nos permitem também, como
a arte, escutar o estranhamento.”

12
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro –UERJ, Integrante do Grupo de pesquisa ATOS - Grupo Bakhtiniano de
estudos e pesquisas – UFF. E-mail: cleuma.maria@gmail.com
13 (ALVES, 2008)

14 Grupo Atos UFF - Grupo Bakhtiniano de estudos e pesquisas- UFF

15 Grupo Atos UFF - Grupo Bakhtiniano de estudos e pesquisas- UFF

NARRATIVAS
600

2. O MERGULHO: processo de consciência de si

Mergulhar, para mim, é brincar com o rio, com os amigos. É dividir água com desconhecidos,
esbarrar em outros corpos. É um ato de resistência psicológica e física: exige fôlego e coragem para
enfrentar o frio, as correntezas e tudo que as águas livres podem nos oferecer. Os rios do interior do
Maranhão permeiam minha história de vida desde a primeira infância. Era para as águas correntes
dos rios que me dirigia desde que aprendi a caminhar. Foi nelas que aprendi a nadar, sem técnica,
imitando as crianças mais velhas e, por intuição, testando os limites do corpo. Os rios eram também
lugares onde contávamos e ouvíamos histórias, sobretudo as que diziam respeito a eles próprios e a
suas lendas. Agora, já adulta, volto a um desses rios de minha infância, este que eu enfrentava, com
quem eu teimava e do qual, muitas vezes, tive que recuar para não morrer. Estou aqui porque o
encontro, na ciência, com essa metáfora de Alves (2008, p.17) - “Um mergulho com todos os sentidos”
- me deslocou. Então, olho para as aguas vermelhas e turvas do rio de minha infância. São belas e
feias. São feias porque não são azuis como as águas do mar. Cores belas não podem ser escuras.
Águas belas são as azuis. As águas do rio tem cor de barro, cor de sujeira. Lembrei-me de Caetano: “O
antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Gaunabara: pareceu-lhe uma boca banguela”
(Gallo, Souza, 2004, p. 13) “Estrangeiros que somos nós para nós mesmos. Estrangeiros que somos
um de nós entre si.”
Sentada na velha tábua de banhar e lavar roupa eu contemplo o rio. Olho para o tempo e não
consigo me atirar de imediato em um mergulho intenso e profundo, como fazem as crianças mais
afoitas. Bem, não sou mais criança, tenho medos e precauções de adulto. E, como diz Caetano, me
sinto uma estranha carregando memórias igualmente estranhas. Vejo as águas turvas e sinto
preguiça. Minha pele arrepia com o frio provocado pelo vento que acaricia as águas ribeirinhas. E
estou sozinha: não há segurança em caso de afogamento ou mesmo do surgimento de algum homem
mal. Mil pensamentos procrastinam o encontro com as águas da minha infância e da minha juventude
no interior no Maranhão. O mergulho não me parece mais tão divertido como era há alguns anos.
Assemelha-se a uma cirurgia, um teste solitário e frio. Nada daqueles desafios entrelaçados com
brincadeiras, compartilhados por um “magote” de meninos, que se juntavam para fazer algazarra,
sem se importar se as águas eram escuras, claras, quentes ou frias.
As águas e o ato do mergulho me causam estranheza. Então por que o escolhi? Por que ele me
perturba? Talvez porque o rio seja o outro e eu mesma, no mesmo tempo/espaço. O diferente
enquanto diferente que eu não posso mudar. E o fato de ser tão forte ou mais forte que eu me causa
amor e ódio. Quero incorporá-lo, fazê-lo parte de mim, e assim me livrar dos sentimentos que ele me
causa. Afinal, como dizem Gallo e Souza (2004, p. 11), só vale lembrar que livrar-se do outro “[...] é
também me livrar de mim mesmo”.
Mergulhar, pois, é estar em camaradagem. É estar com o outro, protegendo-se,
compartilhando histórias e segredos. Porém, nem sempre é bom: há perdas. Por isso também
tememos o rio, menos pelos motivos reais e mais por razões imaginários. As crianças, sobretudo as

NARRATIVAS
601

ribeirinhas maranhenses, têm medo dos monstros lendários que vivem no rio. Sobre eles contam
diversas histórias quando estão se banhando, a fim de causar medo em alguma colega afoita. Das
inúmeras estórias, a do “Cabeça de Cuia” é uma das mais temidas. “O cabeça de cuia” é um negro
feio, grande e forte, que mora nas profundezas. Diz a lenda que ele procura virgens que tenham o
nome de Maria, mas não as achando, pega também as criancinhas, quebra o pescoço delas e as coloca
no fundo do rio, com a cabeça presa embaixo de uma pedra.
O cabeça de cuia 16era uma criança, mas foi castigado e transformado num monstro, pois
matou a mãe. Por ser aterrorizante, essa lenda acaba contribuindo para salvar muitas crianças da
morte em redemoinhos existentes no fundo dos rios. Estes são causados pelos buracos feitos pelas
dragas que exploram os recursos naturais do fundo dos rios para a construção civil. Os donos dessas
máquinas, porém, nada ou pouco se parecem com a figura lendária do cabeça de cuia.
Vou lembrando dessas lendas enquanto olho para o rio. Ainda não mergulhei. Estou lembrando
das estórias. Principalmente da estória do grande homem negro que se confunde com o rio. Que, às
vezes, se parece com o próprio rio, enfurecido com as crianças que lhe perturbam. Penso que ele
deve ser parecido com Othelo, o Mouro de Veneza (obra de William Shakespeare): grande, forte e
feroz. Mas lembro-me de outro fato: os sonhos das crianças e dos adultos com touros negros
enfurecidos. Segundo Fanon (2008), na verdade os touros eram policiais senegaleses, executando as
ordens do homem branco para torturar quem fizesse oposição à verdade branca.
De novo Fanon (2008) me leva a outro pensamento: afinal, eu também tinha muito medo do
cabeça de cuia, do rio, e projetava, na minha imaginação, um homem negro, alto, com olhos vermelhos
e sádicos. E era essa a imagem que tínhamos dos homens que espreitavam as mulheres que tomavam
banho no rio. Era essa a imagem do homem mal que rondava o rio, imagem que construí na infância e
que perdura na atualidade. Hoje, refletindo com Fanon (2008) sobre essa relação entre maldade e cor
da pele, lembro-me do meu avô - um homem preto, alto e forte na juventude, alguém fisicamente
muito parecido com a figura do cabeça de cuia. Porém nunca pensei em associá-lo antes de ser
provocada por Fanon (2008). Talvez porque aceitar que meu avô fosse fisicamente igual ao “Cabeça
de cuia” não era dizer que esta personagem poderia ter outra cor, mas afirmar que meu avô era um
homem que representava o mal. Seria uma ofensa se alguém ousasse fazer tal comparação física,
pois seria ela também axiológica. Fanon (2008) me diz: será que você amava seu avô como um
branco, o via como um branco, via apenas a sua alma branca e não a sua pele?
Como uma criança pode relacionar essas duas imagens: a do cabeça de cuia (o medo, a
angústia) com a pessoa amada (o aconchego, o colo quente e afetuoso)? Meu avô é um homem bom,
nunca poderia se parecer com um malvado como o cabeça de cuia. Possivelmente amava meu avô
como um branco, ou, como diz Fanon, como um “excessivamente moreno” (Fanon, 2008, p. 73). São
as associações colonizadoras e confusas que barram nossa afetividade e nossa criticidade para
entender e resgatar a memória de imagens e discursos outros sobre o ser negro.

16
A lenda do Cabeça disponível em: http://www.sohistoria.com.br/lendasemitos/cuia/ . Acesso 20 set 2017

NARRATIVAS
602

Por isso mergulho e, mergulhando, tento imaginar a figura lendária com outro aspecto físico,
outra cor, mas ainda não consigo. É como se tivesse que mudar a própria cor do rio, pois os dois são
um só. Daí que, primeiro, é preciso compreender o processo pelo qual o “Cabeça de cuia” tomou esse
aspecto de homem negro enquanto figura do mal. E como o valor axiológico da cor ultrapassa o
próprio indivíduo, com seu tamanho e força, no meu imaginário infantil, em que a cor negra,
organizada pelas estruturas culturais coloniais, simboliza a maldade, o estranho. O mal é simbolizado
pela cor preta, pelo escuro, pela noite, construindo sentimentos de repulsa e de medo em relação a
cor negra: como o tenebroso, o maléfico, o perigoso, o pecado, o bestial, o primitivo e o feio. G.
Durand (1997) chamou de “choque diante do negro” para diabolizar e animalizar o homem de cor
negra. Segundo o autor (2007, p. 91):
Esse choque diante do negro provoca experimentalmente uma “angustia em miniatura”. Esta
angustia seria psicologicamente baseada no medo infantil do negro, símbolo de um temor fundamental
do risco natural acompanhado de um sentimento de culpabilidade.
Articulamos e recriamos as imagens a partir das nossas referências culturais e ideológicas.
Em seguida, as materializamos e as operacionalizamos com essas representações em nossas
vivências. São imagens e sentimentos carregados de preconceitos, estigmas e estereótipos
materializados em uma série de ações e falas. Estereótipos que dificultam nosso encontro com o
outro, com a alteridade, com uma formação crítica, ética e consciente. As crianças ribeirinhas, que
têm como principal lazer o banho coletivo nos rios, talvez não tenham a dimensão do mal que os
empresários e suas dragas fazem aos rios e à população que vive em suas margens. Os buracos que
essas máquinas fazem constroem temíveis monstros sugadores de gente. Estes nada têm a ver com a
nossa cor e com a cor dos nossos antepassados. O monstro Cabeça de cuia é o nosso racismo que dá
cor ao mito. O nosso medo do “mal”. O mal conceituado e oficializado pela cultura e pela religião cristã
ocidental. Sim, pois, na religião dos pretos, os deuses são negros, fortes e ferozes. E são amados.
Carregam espadas e protegem os seus. E recebem oferendas nas cuias, artefatos que fazem parte da
nossa cultura africana no Brasil.

Nação Negra te exalta no Akamabu-mará


Legbá abomey, exu em Oxogô
Gera Vida, gera morte, guardião Keviosô
Imoral, prestativo, voraz e arrebatador
Na trilogia do fogo: Exu, Oya e Xangô
Exu mojibá! Ê Exu mobijá
Nação Negra te exalta no ilê do orixás
No toque do bravun oferece a elebó
Que dança no akomabu
Com a magia de Ogó
Bode, gato preto, azeite de dendê
Traz consigo a cabaça
(Akamabu, CCN)
(Noronha, Oliveira, Andrade, 2009, p. 46)

NARRATIVAS
603

Emaranhar-se nesse mergulho, encontrando o rio e tudo que ele representa - sua cor, sua
história –, sem mentiras, sem enfeites ocidentais que o suprima, pode ser um caminho para minar
essas formas latentes de racismo socialmente construídas, para manter uma sociedade
estruturalmente preconceituosa e classista. O racismo das crianças não é nato. Suas imagens
negativas nascem das relações internas entre a consciência e o contexto social em que vivem. Assim
como ocorre com os meninos e meninas, esse processo de alienação nos leva também a construir
narrativas com os mesmos estereótipos que a “acepção euro- ocidental” (Fanon, 2008p. 55) utilizou
para nos nomear. Fazemos isso tentando nos aproximar do comportamento ocidental e, ao mesmo
tempo, nos afastar de nós mesmos, apagar nossa história. Tornamo-nos um borrão, uma cópia. A
imagem da “pessoa civilizada” ajuda-nos a rir de nós mesmos, limitados que estamos ao campo de
visão estrangeiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola tradicional nos impõe esse caminho. Lá se busca construir um homem e uma mulher
de cultura dominante, com domínio do saber científico técnico-racional, que sabe se portar segundo
as conveniências sociais da classe burguesa, tentando importar o habitus 17da civilização ocidental
branca. Resta saber se esse encaixe nas categorias pré-estabelecidas funciona para nós,
descendentes de pretos e índios. Como diz Fanon (2008, p. 80), “A partir do momento que o preto
aceita a clivagem imposta pelo europeu, não tem mais sossego”. O rompimento com esse campo de
visão limitado, contrapondo-se a objetos concluídos e isolados, é um exercício de resistência.
Humanizar-se, portanto, exige sair dessa esfera, grande e acabada. Romper com o que, segundo Brait
(p. 202), é uma história “‘ordinária’ em que o velho luta com o novo”. Noutras palavras: preciso
vivenciar novos modos de resistência epistemológicas e epidérmicas. Novos mergulhos.

REFERÊNCIAS

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Barbosa de; ALVES, Nilda. (orgs.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas sobre redes de saberes. Rio de janeiro:
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BOURDIEU, Pierre. A distinção: uma crítica social da faculdade do juízo. Tradução de Pedro Elói de Duarte. Coimbra:
Edições 70, 2010.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
FANON, Frantz. PELE NEGRA, MÁSCARAS BRANCAS. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
GERALDI, João Wanderley. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro e João editores, 2010.

17 (BOURDIEU, 2010)

NARRATIVAS
604

NORONHA, Raquel; OLIVEIRA, Hamilton; ANDRADRE, Camila. A cultura afro-maranhense. São Luís: EDUFMA, 2009. (Série
Iconografias do Maranhão)
BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contez, 2009.

NARRATIVAS
RESUMO
605

Este artigo discute sobre a erotização de

SENSUALIDADE personagens no ambiente de fanfiction, a partir da


refração realizada pelo ficwriter (autor de
fanfiction). O corpus é constituído pela fanfic Bloody

VAMPIRESCA EM UMA
Lips, que faz parte do universo da Saga Crepúsculo.
Foca na erotização e sensualidade impressa no
texto pela ficwriter a fim de construir a
personagem Isabella Swan (Bella). Objetiva,

CIDADE CHAMADA FORKS: portanto, mostrar a construção erótica da


personagem Isabella Swan (Bella) na ficção de fã
Bloody Lips, postada no site Fanfiction.net e escrita
um olhar sobre a construção erótica da por Mia995. Para isso, tem como metodologia de
análise a qualitativa e utiliza como procedimento

personagem bella na fanfiction bloody lips18 metodológico o Paradigma Indiciário (GINZBURG,


1989). O arcabouço teórico é constituído por
Volóchinov, Bakhtin e o Círculo e Henry Jenkins
complementam a perspectiva teórico-metodológica
por nós utilizada na análise do corpus.

ANDRADE, Jandara Assis de Oliveira 19

Palavras-Chave: Erotização. Refração.


Personagem Isabella Swan. Ficwriter. Fanfic Bloody
Lips

INTRODUÇÃO

A
teoria pós-moderna vê as relações humanas como fluidas e líquidas que são capazes de
modificar consideravelmente, positiva ou negativamente, as ideias cristalizadas na sociedade e
as instituições que a constituem. Isso se deve, em parte, ao desenvolvimento tecnológico que
permitiu uma revolução cultural na forma como os consumidores e os produtores se relacionam
entre si e com os produtos (JENKINS, 2009). Além disso, essa revolução cultural, ou a cultura da
convergência, estreitou as divisas territoriais, pois, conforme aponta Kumaravadivelu,

a internet tornou-se uma fonte singular que imediatamente conecta milhões de indivíduos com outros,
com associações particulares e com instituições educacionais e agências governamentais, tornando as
interações à distância e em tempo real possíveis. (KUMARAVADIVELU, 2006, p. 130).

No entanto, é imperativo ter em mente que essas transformações se dão mediadas pela
linguagem, pois ela é constituinte e constitutiva de todas as interações humanas (VOLÓCHINOV, 2017).
É por meio da linguagem que o homem se constitui como um ser social, nesse sentido “nenhum texto é
inocente e todo texto reflete um fragmento do mundo em que vivemos” (KUMARAVADIVELU, 2006, p.
140), visto que o sujeito situa-se a partir de um posicionamento axiológico.

18 Trabalho orientado pela Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves, Professora Doutora em Comunicação e Semiótica. Professora Associada
da área de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e do Programa de Pós-Graduação
em Estudos da Linguagem. E-mail: penhalves@msn.com.
19 Graduanda do curso de Letras – Língua Portuguesa e Licenciaturas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista de Iniciação

Científica CNPq. E-mail: jandara.aassis@gmail.com.

NARRATIVAS
606

Outro aspecto que está mais marcado no contexto da sociedade pós-moderna, é o diálogo
existente entre os diversos textos dispostos na internet. Os enunciados em ambiente virtual entram
em uma cadeia dialógica, visto que há uma relação responsiva entre um enunciado dado (aquele que
dá origem a outros enunciados) e o que é criado (aquele que surge em resposta ao dado) a partir dele
(BAKHTIN, 2016).
Desse modo, as produções de fãs ganham destaque, espaço e “vez”, pois são compartilhados
em ambientes virtuais. Além disso, fazem parte ao mesmo tempo em que constituem suas próprias
cadeias dialógicas de enunciados que os liga aos textos matrizes e aos textos que são criados a partir
deles. As linhas de fã e ídolo também sofrem alterações, pois o fã, nesse ambiente e momento
histórico, tem a oportunidade de se tornar ídolo, por meio das redes sociais e sites (como ocorre com
o YouTube20).
É, nesse contexto, que o presente artigo se insere e, portanto, objetiva mostrar a construção
erótica da personagem Isabella Swan21 (Bella) na ficção de fã Bloody Lips22, escrita por Mia99523,
postada no site Fanfiction.net24. Para isso, utilizará como procedimento metodológico o Paradigma
Indiciário, visto que esse coloca o pesquisador na posição de detetive, ou um investigador que reunirá
indícios a fim de compreender o objeto que investiga (GINZBURG, 1989). O arcabouço teórico
constituído por Volóchinov, Bakhtin e o Círculo e Henry Jenkins complementará a metodologia por nós
utilizada na análise do corpus.

1. A PALAVRA REFRATADA: reflexos axiológicos no universo fanfictional

A partir da perspectiva de Bakhtin e o Círculo, palavra é “um elemento concreto de feitura


ideológica” (STELLA, 2016, p. 178) possui, portanto, uma relação com realidade, com a vida, pois é
parte constituinte das relações de interação entre os sujeitos (op. cit.). Através dela o indivíduo
transmite suas ideias, impressões e valores, ou seja, ela é uma expressão axiológica e, por isso, é um
produto ideológico (op. cit.).
Por assumir esse caráter ideológico a palavra torna-se um signo que carrega significações
impressas a ela pelos sujeitos, pois “representa e substitui algo encontrado fora dele” (VOLÓCHINOV,
2017, p. 91). Além disso, reflete e refrata a realidade podendo, ou não, criar outra realidade, o signo,
nesse contexto, como parte de uma realidade pode “distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto
de vista especifico e assim por diante” (op. cit., p. 93).
No ambiente virtual há uma grande propagação de signos que são, constantemente, refletidos
e refratos pelos sujeitos que estão inseridos nesse ambiente, a interação, desse modo, se concretiza

20 https://www.youtube.com.
21 Personagem central da Saga Crepúsculo, escrita por Stephen Meyer, publicada entre os anos 2005 e 2008.
22 https://www.fanfiction.net/s/5773876/1/.

23 https://www.fanfiction.net/u/1915012/.

24 https://www.fanfiction.net.

NARRATIVAS
607

em todas as relações estabelecidas no meio virtual. A interação nesse ambiente impacta em todas as
áreas da sociedade pós-moderna, conforme aponta por Moita Lopes, a

[...] tecnoinformação por meio de avanços tecnológicos [...] que possibilitou um mundo mais veloz, de
discursos que atravessam o globo em um piscar de olhos no chamado tempo real, que mudam a
economia na tecla do computador, que nos aproximam de forma surpreendente, que nos possibilitam
ser e ver outros virtualmente como também “conversar” com pessoas que nunca vamos ver, que nos
assustam como alteridades nunca imaginadas – provocando a construção de discursos
fundamentalistas, que podem abrir nossos olhos para outras formas políticas de viver tanto a vida
íntima e pública que, aliás, se confundem cada vez mais [...]. (MOITA LOPES, 2006, p. 91).

A partir da assertiva do autor pode-se perceber que as formas de consumo também são
afetadas por essa velocidade, mas também pela proximidade que estabelece entre o sujeito e o
produto consumido. O livro, por exemplo, está disposto no ambiente virtual, muitas vezes, de forma
gratuita, estabelecendo uma relação de proximidade entre o leitor e o texto. Além disso, adquire
outros formatos, como o audiobook (que o texto está em formato sonoro e o leitor pode ouvi-lo a
qualquer hora e em qualquer lugar), o epub, o pdf e o ebook (o texto pode ser lido em qualquer
aparelho tecnológico, podendo ser levado para qualquer lugar pelo leitor).
Outro aspecto, pertinente ao consumo dos textos escritos na sociedade pós-moderna, é a
possibilidade de o leitor interagir com o texto, com o autor dele, com outros leitores ou ainda de se
tornar autor e produtor de textos literários. O ambiente virtual é um campo em que o leitor, na
qualidade de caçador, pode explorar a sua vontade as histórias que nele se encontram, selecionando-
os, valorando-os e experimentando-os, desse modo, o texto torna-se a caça (CERTEAU, 2012).
O ambiente virtual, contudo, permite ao leitor a possibilidade de deixar de ser o caçador e
passar a ser a caça, pois pode tornar-se produtor/autor de novos textos. Esse processo ocorre,
principalmente, naqueles espaços em que os leitores se reúnem para discutir, debater ou
compartilhar suas leituras. Esses lugares são chamados de fandons, ou seja, comunidades de fãs, e as
práticas escriturísticas que os fãs/leitores realizam nelas são chamadas de fanfiction (fanfic, ou fic).
As fanfictions podem ser conceituadas como as práticas realizadas por fãs, dentro e fora do
ambiente virtual – tendo em vista a existência dos fanzines impressos –, os quais utilizam elementos
de um texto matriz (pode ser um livro, uma série de TV, um filme, um game, etc.) – seja as
personagens, o enredo ou o plano de fundo – que estabeleceram uma relação de afetividade (JENKINS,
2009; VARGAS, 2015). A motivação para a criação de fanfictions é o desejo de interagir, interferir,
refletir e refratar a forma como leem a história matriz ou o mundo que os cercam, ou ainda uma
união das duas situações, nesse sentido por ser resultante de laços emocionais, a produção de
fanfiction não se destina a ganhos financeiros ou a um desejo de quebrar os direitos autorais
(VARGAS, 2015). A grande atratividade na escrita de fic’s, provavelmente, é a possibilidade de brincar
com a palavra do outro, é o criar e recriar, é o se inserir em um mundo distinto do seu ou a
introdução de seu universo dentro de outro universo.

NARRATIVAS
608

O ambiente de produção de fanfiction é democrático ao ponto em que cada um pode escrever


sobre o que quiser. Desse modo, há a possibilidade de unir mais de um texto, como a série de filmes
Star Wars (da Lucas Films) e o livro O Hobbit (de J. R. R. Tolkien), ou adaptar uma narrativa de um
autor com as personagens de outra. Além disso, os ficwiters (autores de fanfiction) podem explorar
qualquer temática, podendo assim debater, ou até mesmo informar, temas polêmicos e tabus a
exaustão. Há, nesse contexto, fic’s que tratam sobre sexualidade, doenças, problemas sociais,
questões de gênero, diversidade cultural.
Desse modo, uma fanfiction pode refletir o universo da obra que se inseri mesmo que o
posicionamento axiológico do ficwriter seja transposto para dentro do que escreve, ou seja, quando o
ficwriter escreve para preencher alguma lacuna, ou dá continuidade ao texto sem modificar o
“caminho” sinalizado pelo autor, pois os enunciados não se mantêm totalmente neutros, sempre
refletirá a visão de mundo de quem o enuncia. Da mesma forma, irá refratar esse universo ao incutir
na obra sua visão axiológica dela e do mundo em que está inserido, assim suas impressões serão
transmitidas para seu texto, modificando o texto matriz. Isso ocorre na escrita de fanfic’s que trazem
personagens soro positivo, mendigos, ricos e pobres, a transformação de personagens bonzinhos em
maus e vice-versa.

2. VOYEURS LITERÁRIOS: ficwriters se apropriando dos textos

Na perspectiva do Círculo, no tocante ao texto literário, é necessário que se estabeleça uma


diferenciação entre o autor-pessoa e o autor-criador. O primeiro, é o ser que habita o mundo real,
fora do universo literário (FARACO, 2016). O segundo, por outro lado, é aquele que dá vida às
personagens e à trama dentro de uma narrativa, por tanto, é parte integrante de sua criação (op.
cit.).
Voltamos nossos olhos ao autor-criador, sujeito que dá vida a obra literária, aquele que
materializa através de sua visão axiológica as personagens, a trama e a todo o universo que constitui
a obra (op. cit.). O ficwriter é esse autor-criador, visto que é quem molda uma dada realidade (a da
obra matriz) em uma nova realidade (a da fanfiction) ao se apropriar do texto matriz e tratá-lo como
uma massinha de modelar (JENKINS, 2015) constituída pela linguagem e suas particularidades. Isso
significa que o ficwriter explora aspectos que são importantes a ele e que não foram desenvolvidos ou
não tiveram destaque no texto matriz.
Nesse tocante, Jenkins (op. cit.) aponta que há, pelo menos, 10 abordagens adotadas pelos
ficwriters para a produção de suas fanfictions, são elas:

recontextualização: o ficwriter dá explicação à situações que não foram bem explicadas ou ficaram em
aberta;
dilatar a linha temporal do seriado: o ficwriter se apropria de pequenos detalhes dado pelo autor e não
explorado para contar a história das personagens antes ou depois do texto matriz;
refocalização: o ficwriter foca em personagens que não as principais no texto matriz;

NARRATIVAS
609

realinhamento moral: o ficwriter transforma personagens “maus” em protagonistas, criando um


confronto com a moral estabelecida no texto matriz;
variação de gênero: o ficwriter utiliza gêneros diferente do que o texto matriz foi escrito;
cross overs: o ficwriter utiliza universos literários distintos para construir a sua narrativa;
deslocamento de personagem: o ficwriter nomeia e dá uma identidade alternativa a personagem;
personalização: o ficwriter transpõem para a personagem características suas, de modo que as linhas
que separam o autor-pessoa da personagem são, praticamente, apagadas;
reforço emocional: o ficwriter explora os momentos de maior “pressão” emocional das personagens;
erotização: o ficwriter enfatiza o caráter erótico das personagens, as relações sexuais ocorrem em
abundância, de modo que as fics que exploram esse aspecto são voltadas para o público maior de 18
anos.

A erotização é o aspecto que a fanfiction corpus desse artigo utiliza, portanto é a que nos
focaremos.
O erotismo possui um grande apelo para leitores e ficwriters, pois, conforme aponta Santos,

o público geral das fanfics são adolescentes e jovens, em plena fase sexual da vida, eles naturalmente
tematizam suas descobertas com o corpo e com os próprios desejos, de modo que é muito raro
encontrar uma fanfic que não tenha nenhuma cena que descreva atos sexuais. (SANTOS, 2016, p. 104).

Além disso, esse é um dos aspectos pouco explorado pelos textos matriz, como ocorre em
Harry Potter e, até mesmo, na Saga Crepúsculo, por isso, há um grande apelo para sua escrita, tendo
até sites voltados apenas para a publicação de fanfic’s para o público maior de 18 anos. Essas fic’s,
geralmente, tratam sobre questões sexuais, violência e outras temáticas.

3. SENSUALIDADE VAMPIRESCA: eroticidade na fanfiction Bloody Lips

Blood Lips (BL), escrita por Mia 995 e postada no site Fanfiction.net, é uma fanfiction que está
dentro do universo da Saga Crepúsculo (escrita por Stephen Meyer). A saga publicada entre os anos
2005 e 2008 ganhou grande visibilidade ao ser adaptada para os cinemas e, mesmo após quase dez
anos da publicação do último livro, é a segunda narrativa com maior número de publicação de fanfic’s
do site Fanfiction.net25. A fic faz uma inversão de gênero (JENKINS, 2015), visto que o texto matriz é
um romance de fantasia e a BL está inserida no gênero sobrenatural. O caráter sobrenatural da
história não se encontra apenas no fato de as personagens principais serem vampiras, está presente
em cada elemento que compõe a narrativa, seja o mistério ou a violência que constitui algumas cenas.
Entretanto, o erotismo molda a narrativa, não apenas no tocante ao relacionamento das
personagens principais. Uma vez que, as personagens secundárias são adultas e se relacionam entre
si, com parceiros fixos ou não. A narrativa conta a história de Edward e Bella, seguindo a direção do
texto matriz, no entanto, Bella já não é humana, é uma vampira. A apropriação e, posterior,

25 https://www.fanfiction.net.

NARRATIVAS
610

manipulação do texto matriz pelo ficwiter faz com que as personagens sejam alteradas
significativamente (op. cit.).
A exploração do aspecto erótico já é apresentada ao leitor na foto/capa da fanfiction, a qual
mostra a personagem Bella (a foto é da atriz Kristen Stewart que estrelou os filmes como a
personagem) em uma posição sensual com sangue saindo de seus lábios. O primeiro capítulo,
intitulado Blood Lips, é narrado pela personagem Edward que, ao contrário do texto matriz, não
apenas pensa sobre sexo, mas revela ter se envolvido sexualmente com diversas parceiras,
estabelecendo uma distinção com o texto matriz. Entretanto, o que atrai nosso olhar é a forma como
Bella surge na narrativa, como mostra o excerto abaixo.

A primeira coisa que eu vi foi os labios cheios de sangue, depois foi os dentes afiados. Então olhei para o
corpo no chão e depois para a mulher com mascará sentada ao lado do homem. Ela havia abrido ele a
dentadas, e agora comia e tomava o sangue do homem no chão.

Ela percebeu minha presença e olhou para mim, depois se levantou lentamente, me analisando ao
mesmo tempo. Então sorriu de lado e olhou para o homem morto passando a língua nos labios
ensanguentados. Era mais ou menos alta, pálida como eu, com o cabelo castanho completamente
descabelado e seu corpo era uma verdadeira tentação, ainda mais coberto de sangue, porém eu não
consegui ver seu rosto, pois estava com uma mascará preta que cobria metade dele. Apenas vi seus
olhos, eram completamente surreais era de um azul muito claro, quase branco.

Ela olhou para mim mais uma vez e sorriu enquanto torcia o nariz. Deu de ombros, deu um pulo, agarrou
uma escada que estava, há pelo menos quatro metros, acima da cabeça dela e começou a escalar
rapidamente. Quase tão rápido quanto um vampiro, quase. (MIA995, 2013, capítulo 1, grifos nosso).

Bella demonstra uma desenvoltura que diverge de sua caracterização no texto matriz, pois na
fanfiction a personagem aparenta ter consciência de sua sensualidade e a explora ao ser observada
por Edward, fato exposto no trecho grifado. Outra divergência entre a constituição das personagens é
que ambos se alimentam de sangue humano, ao contrário da Saga que têm alimentação à base de
sangue animal. O comportamento de Bella nessa cena sinaliza as distinções que há entre a construção
de sua personalidade na fic e na Saga.
No segundo capítulo podemos ver melhor a forma como a personagem vai sendo moldada pela
ficwriter, pois é narrado por ela. Nos trechos grifados (abaixo) é explicito a erotização da personagem
que declara abertamente adorar sexo.

Mas isso é a última coisa que eu quero pensar agora. O que gostaria de entender foi por que não ataquei
aquele cara lá no beco! Não era só por estar satisfeita. Eu não senti nenhuma vontade de atacá-lo. Ele
não me atraia, nem um pouco, no sentido de alimento, na verdade ele me despertava outro tipo de
desejo. OK! Não viaja Bella! Isso é impossível desde que a desgraçada da Irina te mordeu você só tem
desejo de comer e tomar sangue. O que é um pouco chato já que eu adorava sexo. (MIA995, 2013,
capítulo 2, grifos nosso).

NARRATIVAS
611

A erotização da personagem é uma refração da visão axiológica que a ficwriter possui com
relação ao comportamento feminino, fugindo dos discursos verboideológicos de contenção. Os quais
tentam conter o comportamento feminino, tanto relacionado à sexualidade, como à alimentação,
ambos os prazeres estão em um grau de igualdade dentro da sociedade, nesse tocante, percebe-se a
existência de reguladores sociais, impostos a mulheres para ambos os “apetites”, sendo esses
propagados pelas próprias mulheres (QUITSCHAL, 2014). A liberdade erótica com a qual a personagem
Bella é construída está presente tanto em seus pensamentos, como em seu discurso, conforme
mostra fragmento abaixo, no qual ela dá uma resposta direta e segue comentando sobre o assunto de
forma natural (trechos grifados).

-É um casal? – A mulher perguntou divertida, alguém passou da cota de álcool.


-Vocês são? – Retruquei.
-Acabamos de nos conhecer, então queríamos saber se alguns dos dois estão afim de sexo a três? – O
homem perguntou erguendo as sobrancelhas para mim.
-Não, obrigado. – Edward respondeu frio, enquanto os olhando de lado. Realmente, não quero nem
imaginar quais os pensamentos deles.
-E você moça? - O homem perguntou, ergui meu olhar para ele.
-Não estou com fome. – Respondi dando de ombros. Então o andar chegou.
-É o nosso andar – Edward falou me guiando para fora.
-O que ela quis dizer com não estar com fome? – O homem perguntou confuso.
-Não ta no clima pra transar, imbecil. Agora vem... – O resto da conversa foi cortado pelas portas do
elevador se
fechando.
-Você não controla seu desejo sexual e o de se alimentar? – Edward perguntou abrindo a porta.
-Eu tentei, acredite em mim, mas eu matei cada homem com quem tentei. – Respondi em tom
indiferente. A verdade era que eu podia estar qualquer coisa, menos indiferente. Eu amo sexo, ter que
abrir mão disso é muito, muito injusto.
A vida não é justa, fazer o que? O jeito é se arranjar com a mão. Bufei mentalmente. (MIA995, 2013,
capítulo 18, grifos nosso).

O excerto acima corrobora a comparação existente entre o apetite sexual e o alimentar, o


diálogo entre as personagens deixa esse aspecto evidente. Outro elemento relevante é a questão
sobre masturbação feminina, considerado por muitos como um tabu, entretanto para a personagem é
natural que diante da falta do sexo real, ela possa se satisfazer sozinha. Não há um estigma que a
proíba de alcançar seu próprio prazer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ficwriter na posição de autor-criador molda as personagens de sua narrativa de acordo


com a sua forma de enxergar o mundo, desse modo, ele transporta para seus textos problemáticas
polêmicas que, às vezes, são relegadas a segundo plano, ou a nenhum plano, dentro do texto matiz.
Assim, muitas vezes, a mocinha não possui autonomia, autoridade e suas ambições se restringem a

NARRATIVAS
612

encontrar o par ideal. Na escrita de fanfiction, no entanto, os ficwriters encontram espaço propício
para romper com essa plastificação da mocinha e mostrar o outro lado delas.
É bem verdade que em nossa sociedade a mulher tende a ser sua própria reguladora
(QUITSCHAL, 2014) ao propagar discursos misóginos, a fim de desmerecer outras mulheres por seus
comportamentos e atitudes que contrariam a ideologia reinante. A masturbação é altamente
estimulada para os homens, no entanto o mesmo não ocorre com as mulheres que devem, de acordo
com os discursos cristalizados, não conhecer seu corpo e seu prazer (QUITSCHAL, 2014), pois é algo
que apenas o parceiro masculino deve dar a ela. Contudo, na fanfiction em análise as personagens
tratam sobre o tema sem estigmatizá-lo.
A partir da análise realizada, é possível perceber que a ficwriter refrata suas impressões a
cerca do texto matriz modificando-o e adequando-o não apenas à realidade em que está inserida,
visto que em nossa sociedade ainda é tabu à questão da sexualidade feminina, mas à realidade que ela
percebe como a “correta”. Nessa realidade, interna à fanfiction, a mulher é consciente de sua
sexualidade e pode exercê-la da forma como lhe convir.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34,
2016.
______. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2011.
CERTEAU, M de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 19. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
MIA995. Bloody Lips (fanfiction). Site Fanfiction.net, 2013. (46 capítulos). Disponível em:
<https://www.fanfiction.net/s/5773876/1/>. Acesso em: 30 set. 2017.
FARACO, C. A. Autor e autoria. In: BRAITH. B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. 2. reimp.
Sao Paulo: Contexto, 2016.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história. Tradução Federico Carotti.
São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
JENKINS, Henry. Invasores do texto: fãs e cultura participativa. Tradução Érico Assis. Nova
Igraçu, RJ : Marsupial, 2015.
______. Cultura da Convergência. Tradução Susana L. de Alexandria. 2. ed. 5. reimp. São
Paulo: Aleph, 2009.
KUMARAVADIVELU, B. A linguística aplicada na era da globalização. In: MOITA-LOPES, L. P. (Org.).
Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Linguística Aplicada e Vida Contemporânea: problematização dos
construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA-LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada
indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

NARRATIVAS
613

QUITSCHAL, P. M. Os Diários de Vampira: a sexualidade livre e dominadora das vampiras e o


tratamento dado pela mídia. 2014. 165f. Dissertação (Mestrado) – Escola
de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
SANTOS, Gabrielle Leite dos. Relações dialógicas em fanfictions: carnavalização na reescrita
da saga Harry Potter na era da convergência. 2016. 197 f. Dissertação (Mestrado em Linguística
Aplicada) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.
STELLA, P. R. Palavra. In: BRAITH. B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. 2. reimp. Sao
Paulo: Contexto, 2016.
VARGAS, M. L. B. O Fenômeno Fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico.
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2015.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do
método sociológico na ciencia da linguagem. Tradução Sheila Grilo e Ekateina V. Américo. São Paulo:
Editora 34, 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
614
Este artigo traz uma discussão acerca do ato de
refração realizado pelo ficwriter (autor de

NEM SÓ DE LIVROS VIVE O fanfiction) para construir a personagem Hermione


Granger, Série Harry Potter, atribuindo a essa
construção aspectos de erotismo que não

CÉREBRO DO TRIO DE
constituem a personagem na trama matriz. Nesse
sentido, objetiva elucidar a forma como,
discursivamente, a autora da história corpus deste
trabalho, fanfiction Sangue Negro, escrita por

OURO: o florescer erótico de uma jovem Biiimiranda e postada no site Spirit Fanfics, refrata
a construção da personagem Hermione Granger
atribuindo a ela características que lhe permitem

bruxa na fanfiction sangue negro vivenciar situações e emoções ligadas ao florescer


erótico. A pesquisa é de caráter qualitativo e tem
como método de análise o Paradigma Indiciário
(GINZBURG), aliado com as concepções teóricas a
cerca da linguagem elencadas por Volóchinov,
Bakhtin e o Círculo, bem como as proposições sobre
o fã e a sua forma de interagir com o texto
Jandara Assis de Oliveira ANDRADE 26 realizadas por Jenkins. Por fim, foi possível
perceber que a ficwriter de forma axiológica
constitui sua narrativa imprimindo na personagem
analisada comportamentos, emoções e
pensamentos que a levam a uma descoberta
erótica.
INTRODUÇÃO
Palavras-Chave: Refração. Ficwriter. Hermione

J
Granger. Série Harry Potter. Florescer Erótico
enkins (2009) aponta que os fandons, ou comunidades de fãs,
são os que mais se beneficiam das ferramentas tecnológicas e
midiáticas. O cenário da convergência midiática, defendida pelo autor, não apenas ocorre entre
os equipamentos, mas também entre as pessoas e, desse modo, dá espaço para práticas realizadas
por fãs, por grupos de minorias, entre outros, que se apropriam das ferramentas dispostas nos
ambientes virtuais e as utilizam a fim de darem visibilidade aquilo que praticam ou defendem (op. cit.).
Nesse sentido, barreiras territoriais, linguísticas, culturais e sociais são quebradas, pois a internet
permite a aproximação das pessoas de diferentes nações e nos lugares mais longínquos.
É nesse contexto que os discursos verbo-ideológicos de centralização são postos a prova,
uma vez que afirmam que o consumidor27 é um sujeito sem criatividade e o que é visto por meio das
redes sociais, principalmente, são práticas que vão ao encontro dessa ideia. Já que o consumidor
debate, cria e critica sobre os produtos por ele consumido, assim como impõem suas ideias e opiniões
aos produtores. Além disso, o consumidor na era da convergência midiática torna-se, também, um
produtor. Exercitando, assim, sua criatividade, criticidade e alteridade, pois, conforme aponta Jenkins
(2009, p. 44) “a convergência envolve uma transformação tanto na forma de produzir quanto na
forma de consumir [...]”.

26 Graduanda do curso de Letras – Língua Portuguesa e Licenciaturas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista de Iniciação
Científica CNPq. E-mail: jandara.aassis@gmail.com.
27 Entendido por nós em um sentido amplo como aquele que consome produtos, serviços e conteúdos de toda e qualquer espécie, tais quais:

programas de TV, canais no YouTube, livros, revistas, novelas, filmes, quadrinhos, produtos de limpeza, produtos de maquiagem e beleza, etc.

NARRATIVAS
615

Ao voltarmos nosso olhar sobre a indústria literária percebemos que essa sofreu e sofre
grande impacto com a convergência midiática, uma vez que, como afirma Matos Núñez (2013, p. 51),
“nossa internet está para a literatura assim como esse Aleph borginiano, um telescópio imenso e
distorcido, que deve ajustar-se, porque ler é como graduar algumas lentes” e, dessa forma, o leitor
está mais próximo do livro, visto que esse

perdeu já sua posição excludente como objeto central do processo da leitura e, em troca, [...] ampliou-
se até conformar [...] um espaço hibrido, onde se cruzam, em feliz mestiçagem, o mesmo livro
(impresso e/ou digital), os textos eletrônicos, os multimídia, filmes, etc. (MATOS NÚÑEZ, 2013, p. 50).

A assertiva do autor baseia-se no fato dos textos literários tanto estarem dispersos em
ambientes virtuais, ao alcance dos leitores, como estarem ganhando novos formatos, não apenas em
forma da linguagem escrita, mas também da linguagem visual, sonora, verbo-visual-sonora. Visto que
os livros, cada vez mais produzidos em séries e sagas se tornam um conjunto no qual várias
linguagens se cruzam e produzem novas formas de contar a mesma história, por meio de jogos,
filmes, séries de TV, etc (op. cit.). As quais estão em uma rede dialógica de enunciados que, por sua
vez, são aproveitados pelos fãs para produzir suas próprias criações.
É nesse contexto de transformações midiáticas e de relacionamentos no qual esse artigo se
insere, pois investiga a prática de escrita e leitura realizada pelo fã. Práticas vistas como marginais,
mas que ganham cada vez mais adeptos ao estarem dispostas em ambiente virtual e serem
democráticas ao permitirem que todo e qualquer leitor ultrapasse os limites impostos a ele como
apenas leitor, ou seja, um "receptor" de conteúdo que não tem “direito” a questionar o que lhe está
sendo imposto. O leitor é, desse modo, um sujeito transgressivo que rompe barreiras a fim de impor
seus pensamentos e criatividade sobre aquilo que lê.
O presente artigo é de natureza introdutória, uma vez que a pesquisa encontra-se em fase
inicial. Desse modo, objetivamos elucidar a forma como, discursivamente, a autora da história corpus
deste trabalho, fanfiction Sangue Negro28, escrita por Biiimiranda29 e postada no site Spirit Fanfics30,
refrata a construção da personagem Hermione Granger atribuindo a ela características que a
permitem vivenciar situações e emoções ligadas ao florescer erótico.
A metodologia adotada para a construção do presente artigo é a qualitativa, uma vez que
permite ao pesquisador estabelecer uma relação de proximidade com o objeto pesquisado. Além
disso, o método de análise utilizado é o Paradigma Indiciário, pelo fato do pesquisador ter de entrar
em contato com o objeto pesquisado a fim de encontrar e observar as pistas, ou indícios, que o
direcionaram para alcançar uma compreensão holística do objeto pesquisado (GINZBURG, 1989). Além
disso, as teorias norteadoras são as erigidas por Volóchinov, Círculo de Bakhtin e por Henry Jenkins.

28 https://spiritfanfics.com/historia/sangue-negro-5906202.
29 https://spiritfanfics.com/perfil/biiimiranda.
30 https://spiritfanfics.com.

NARRATIVAS
616

1. CONTAR E RECONTAR: práticas que refratam a vida

Volóchinov (2017, p. 218-219) aponta que a linguagem é “[...] o acontecimento social da


interação discursiva que ocorre por meio de um ou mais enunciados”. Isso implica dizer que para se
ter manifestações de linguagem é preciso que haja interação. No entanto, é preciso afirmar que a
linguagem como interação não deve ser vista apenas no sentido restrito de ser concretizada entre
sujeitos, pois ela pode e é efetivada pelo próprio sujeito ao antecipar respostas aos seus enunciados,
etc.
Por ser fruto da interação sociodiscursiva dos sujeitos, a linguagem é ininterrupta (op. cit.) e
cria relações de diálogo entre os diversos enunciados, as quais ultrapassam os limites puramente
linguísticos. Nesse sentido, todo texto está em relação de diálogo com outro que foi emitido antes
dele. Para Bakhtin (2016, p. 92) essas relações estão inseridas no campo do sentido “entre toda
espécie de enunciados na comunicação discursiva” (op. cit., p. 92), no campo da literatura, assim
como na vida, é comum que enunciados estabeleçam relações dialógicas, as quais se dão de forma
intencional ou não.
Dentro dessa visão dialógica, é importante termos em mente que ao ser estabelecido um
diálogo, entre enunciados, o enunciado respondente o refletirá ou o refratará a partir de sua visão.
Desse modo, um sujeito pode realizar avaliações positivas ou negativas quanto ao que lhe foi posto,
distorcer ou compreender de forma fidedigna a informação, entre outras formas (VOLÓCHINOV, 2017).
Assim, cada sujeito que repassa uma informação pode fazê-lo de forma diferenciada. Refletir, no
entanto, implica não acrescentar ou modificar a significação da informação, desse modo, ele não deixa
sua marca naquilo que repassa (op. cit.). Em termos atuais, o sujeito recorta e cola a informação, ou
seja, ele dá “ctrl+z” e, em seguida, um “ctrl+v”. Refratar, contudo, exige que o sujeito imprima sua
visão, sua avaliação no enunciado, modificando-o consideravelmente em função do propósito que
possui ao utilizá-lo. É, portanto, um exercício de recortar, colar, acrescentar/modificar.
O nosso objeto de estudo se enquadra no exercício refração, pois a escrita de fã, fanfiction
(também conhecida como fanfic ou fic) é uma atividade na qual o fã envolve

os cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidas no original31, sem que exista nenhum
intuito de quebra de direitos autorais e de lucro envolvidos nessa prática. Os autores de fanfictions
dedicam-se a escrevê-las em virtude de terem desenvolvido laços afetivos tão fortes com o original,
que não lhes basta consumir o material que lhes é disponibilizado, passa a haver a necessidade de
interagir, interferir naquele universo ficcional, de deixar sua marca de autoria. (VARGAS, 2015, p. 21-22).

Para Jenkins (2009, p. 380) a fanfic é um “termo que se refere, originalmente, a qualquer
narração em prosa com historias e personagens extraídos dos conteúdos dos meios de comunicação
em massa”. Esse conceito não é propriamente exato quanto às profundidades que compõem a escrita
de fic, tão pouco o primeiro. Visto que ambos possuem limitações relacionadas à complexidade do

31 Utilizaremos o termo matriz o texto dado para nos referir ao texto que dá base a fanfiction.

NARRATIVAS
617

fenômeno, pois o ficwriter vai mais além daquilo que é posto a ele. O autor de fanfic irá refratar o
conteúdo por ele lido ou visto a partir de sua perspectiva, daquilo que esperava ver no texto matriz.
Ele leva para dentro do texto dado suas impressões sobre o mundo que o cerca, tratando de temas
que não fazem parte daquela história.
As histórias escritas por fãs, muitas vezes, modificam o final dado pelas autoras para a
história de forma geral, mas também a certas personagens que para os fãs “mereciam” um futuro
diferente. A Série Herry Potter (escrita por J. K. Rowling, lançada em 1997) e a Saga Crepúsculo
(escrita por Stephen Meyer, lançada em 2005) são as histórias com maior número de fanfic’s
publicadas no site Fanfiction.net 32, esse fato pode ser justificado, pois os fãs ao se encontrarem
frustrados com algum aspecto da narrativa

[...] tiram personagens e questões narrativas das margens; enfocam detalhes que são excessivos ou
periféricos às tramas principais, mas que ganham significado dentro das concepções que os fãs têm
[...]. [...] borram ainda mais o limite entre leitor e escritor; [...] rejeitam fatos especificados na narrativa
[...]. [A escrita de fanfic’s apoia-se] em preconcepções sobre o metatexto fã, reagem a desejos muito
expressados na comunidade de fã e ainda assim superam o status de crítica e interpretação; são
narrativas de satisfação, recebidas avidamente por um leitorado fã já disposto a aceitar e apreciar [...].
(JENKINS, 2015, p. 162, grifos nosso).

Além disso, ambas, a série e a saga, são histórias que quase não tocam nas questões de
sexualidade (seja entre o mesmo sexo ou o sexo oposto, nem mesmo as questões pertinentes à faixa
etária de seus protagonistas 33 ). Há, nessas narrativas, uma verdadeira higienização quanto às
problemáticas vivenciadas pelo público leitor. Desse modo, esse encontrou na escrita de fanfiction
uma forma de introduzir no universo temas que lhes são importantes serem debatidos e suas
impressões sobre eles. Portanto, há histórias voltadas para o público maior de 18 anos, as quais
tratam sobre o consumo de drogas, sexualidade, violência, dentre outros.
O autor de fanfiction, conforme apontado acima por Jenkins (partes grifadas), se apropriam
das narrativas e utilizam aspectos, muitas vezes, deixados à margem pelos autores do texto matriz
para produzirem suas histórias. Desse modo, as personagens femininas são, muitas vezes, o alvo das
mudanças realizadas pelos autores. Neste artigo Hermione Granger, da Série Harry Potter, é nosso
foco de investigação devido à desconstrução que a autora da fanfiction, Sangue Negro, Biiimiranda,
postada no site Spirit Fanfics, realiza na constituição da personagem no decorrer da narrativa.

32www.fanfiction.net.
33É bem verdade que na Saga Crepúsculo as personagens Edward e Bella namorem e cheguem a ter relações sexuais, no entanto essa só
ocorre após o casamento das personagens e no livro não há a descrição da cena. Quando a autora trata sobre a nudez não é de corpo inteiro
ou até mesmo de forma sexual, há uma certa inocência na visão que as personagens possuem um em relação ao outro.

NARRATIVAS
618

2. FICWRITER: o invasor-profanador

A partir da perspectiva bakhtiniana, no tocante ao autor, é necessário estabelecer uma


distinção entre o autor-pessoa e o autor-criador. O primeiro, é o sujeito que vive fora do mundo
ficcional, literário (BAKHTIN, 2011). O segundo, em contrapartida, é o indivíduo que cria um universo
ficcional com personagens e enredo, dentro da literatura, ele é, portanto, parte integrante de sua
obra, pois ele dará forma a todos os elementos que a constituem (op. cit.). Dentro dessa perspectiva o
autor-criador

é entendido fundamentalmente como uma posição estético-formal cuja característica básica está em
materializar uma certa relação axiológica com o herói e seu mundo: ele os olha com simpatia ou
antipatia, distancia ou proximidade, reverência ou crítica, gravidade ou deboche, aplauso ou sarcasmo,
alegria ou amargura, generosidade ou crueldade, júbilo ou melancolia, e assim por diante. (FARACO,
(2016, p. 38).

Devemos entender que o ficwriter, como um autor-criador, é quem determina ou dita como
determinada personagem será formada, ele atribuirá a ela as características que lhe darão forma, de
modo a construir sua personalidade dentro de sua narrativa. O ficwriter é a mão que guia a agulha da
costura literária, por isso, ele é parte de seu texto, haja vista sua escrita refrata e reflete o mundo
em que está inserido (FARACO, 2016), bem como sua visão sobre a história matriz e as personagens
que a compõem, desse modo, o autor-criador é “uma posição axiológica” (op. cit., p. 38).
Na escrita de fã, o autor-criador posiciona-se axiologicamente a fim de criar e recriar toda a
trama que compõem o texto matriz ou apenas uma parte dela. Na fanfiction Sangue Negro, foco de
nossa análise, a autora-criadora Biiimiranda recria toda a narrativa da Série Harry Potter, de uma
forma que, até certo momento, os acontecimentos escritos por J. K. Rowling poderiam acontecer
paralelamente aos contados na fic. Harry ainda perdeu seus pais e Voldemort34 é uma sombra que
paira sobre o mundo mágico, no entanto há uma menina que perdeu seus pais em um ataque a uma
vila bruxa, ela é resgata por um Professor Severo Snape e entregue para ser criada por uma família
trouxa pelo diretor de Hogwarts, a Escola de Magia e Bruxaria da Inglaterra, Alvo Dumbledore.
Em 47 capítulos, a ficwriter vai, progressivamente, desconstruindo vários acontecimentos
inerentes à história matriz e afastando sua narrativa dos rumos que aquela tomou. Nesse sentido,
Bakhtin aponta que

O autor não encontra de imediato para a personagem uma visão não aleatória, sua resposta não se
torna imediatamente produtiva e de princípio, e do tratamento axiológico único desenvolve-se o todo da
personagem: esta exibirá muitos trejeitos, máscaras aleatórias, gestos falsos e atos inesperados em
função das respostas volitivo-emocionais e dos caprichos de alma do autor; através do caos de tais

34Lord das Trevas, Lord Voldemort, aquele-que-não-deve-ser-nomeado, Você sabe quem ou Tom Riddle é o mago das trevas, inimigo número
um da luz e aquele que quer construir uma soberania de bruxos sangues-puros – sangues-puros são bruxos nascidos de pais bruxos que
possuem uma linha de sangue a qual não tem antepassados nascidos não mágicos.

NARRATIVAS
619

respostas, ela terá de inteirar-se amplamente da sua verdadeira diretriz axiológica, ate que sua feição
finalmente se constitua em um todo estável e necessário. Quantos véus necessitamos tirar da face do
ser mais próximo – que nela foram postos pelas nossas reações casuais e por nossas posições
fortuitas na vida –, que nos parecia familiar, para que possamos ver-lhe a feição verdadeira e integral.
(BAKHTIN, 2011, p. 4).

Nessa perspectiva, em Sangue Negro, temos personagens que possuem ambiguidades, as


quais são descortinadas no decorrer da narrativa. Além disso, muitas situações estão completamente
fora do universo canônico criado por J. K. Rowling. por exemplo, temos Snape e Hermione como o
casal central da trama, os quais se envolvem, não apenas romanticamente, mas intimamente, fato que
não ocorre no texto matriz, não apenas pelo emparelhamento, mas pelo fato de a Série não trazer
qualquer alusão a atividades sexuais entre seus personagens, mesmo que, a maioria, estejam na
adolescência, fase em que essas questões são muito presentes.

3. BIBLIOTECA DA VIDA: o erótico floresce da inocência

Como mostrado na seção 1, à escrita de fanfiction é, muitas vezes, motivada por uma afinidade
que o ficwriter (autor de fanfiction) desenvolve a partir de um texto matriz. A possibilidade de criar
uma "nova" narrativa com personagens que possuem, em algum grau, uma relação afetiva,
transformar esses personagens, dar a eles novas características ou explorar características que
recebe pouco foco na história matriz são algumas das razões que podem levar um ficwriter a
"brincar" com um texto.
Além disso, é bem verdade que, no universo literário jovem, muitos dos textos publicados até
meados dos anos 2000 tinham uma preocupação em não explorar o caráter erótico das personagens.
Fato comprovado ao nos voltarmos para os sucessos literários da Série Harry Potter e da Saga
Crepúsculo as quais apresentam em suas narrativas, no máximo, sugestões de relações sexuais e
beijos que beiram a inocência. Esse fato instiga a curiosidade dos leitores que sentem a necessidade
de ver o amadurecimento de suas queridas personagens.

A escrita de fã depende de práticas interpretativas da comunidade fã, tomando o metatexto coletivo


como base a partir da qual se gera uma ampla gama de contos relacionados à TV. Os fãs, como explicou
o Trekker35 de longa data, ‘tratam o programa como massinha de modelar’, prolongando seus limites
para incorporar seus interesses, remoldando as personagens para melhor adequarem-se a seus
desejos. (JENKINS, 2015, p. 163).

A assertiva de Jenkins corrobora a ideia de que o jovem encontra na fanfiction a oportunidade


de expressar sua opinião sobre o mundo que o cerca, não é mais apenas a questão de se sentir parte
do texto por ter uma afinidade com as personagens e suas histórias, é possibilidade de compartilhar
impressões e saberes. Por isso, a transformação de personagens acabadas. O autor de fanfiction

35 Nome dado aos fãs da série Star Trek.

NARRATIVAS
620

rompe com os discursos monologizantes de centralização e constrói em seu texto uma personagem
que não é mais a mocinha inocente, mas sim uma mocinha empoderada que tomará decisões sobre
sua vida de acordo com as suas vontades, que não tem medo ou vergonha de ter relações sexuais
grupais, que se envolve com vários homens e mulheres sem temer a sociedade que a cerca. Idade,
relações de poder se tornam apenas uma pedrinha que essa mocinha chuta para longe de seu
caminho e continua a sua jornada.
Em concordância com esse pensamento, podemos usar como exemplo a célebre personagem
Hermione Granger que deixa de ser apenas a amiga rata de biblioteca e nascida trouxa36 de Harry
Potter aquela que sempre lhe foi fiel e decisiva em suas aventuras, e passa, em muitas narrativas de
fãs, a ser a protagonista, vivendo situações que fazem parte do texto matriz ou em um universo
ampliado ou em uma história com o plano de fundo totalmente diferente daquele escrito por J. K.
Rowling.
A autora da fanfic Sangue Negro constrói uma Hermione Granger que parte do estereótipo
elaborado pela autora do texto dado – no qual ela é vista como uma garota inteligente, comportada,
estudiosa e confiável – e passa por uma verdadeira transformação de personalidade e
comportamento. Ela não é mais a inocente garota que namorou apenas Victor Krum 37 e teve um
relacionamento físico baseado em beijos que nunca foram descritos na narrativa. O lado Slytherin38 da
personagem é explorado, pois ao descobrir sua verdadeira filiação mantém essa verdade escondida
de seus fiéis amigos e companheiros do chamado “trio de ouro”. Os segredos multiplicam-se em torno
da personagem, que deixa de ser a inimiga número um dos sangues-puros e passa a integrar esse
seleto grupo do mundo mágico por ser na verdade filha de Lord Voldemort e da comensal da morte
Belatriz Lestrange.
As desconstruções das personagens se iniciam desde o primeiro capítulo da fic, cujo título é
“a menina-que-sobreviveu”, epítome dado ao Harry Potter e na narrativa é atribuído a Hermione. Todo
o capítulo de abertura é uma refração do primeiro capítulo da Série, narrado no livro “A pedra
filosofal”, de modo que Biiimiranda (ficwriter) faz uma descrição de um cenário de destruição pós-
ataque (excerto abaixo).

Meus pés mal tocaram o chão e eu já sentia um calor absurdo, o cheiro de fumaça e sangue, e ouvia
alguns uivos distantes. O pequeno vilarejo estava em chamas. As casas de alvenaria simples estavam
destruídas e o que restava delas parecia carvão em combustão.
Nem a neve que caia do céu e contrastava com o fogo, era capaz de aplacá-lo.
Era tarde demais.
– Venha – Alvo me tirou do meu transe e me guiou para perto de uma das casas

36 É a denominação dada por J. K. Rowling para os bruxos que os dois pais não possuem magia.
37 Personagem que participa do quarto livro da Série Harry Potter e o cálice de fogo, ele é um famoso jogador de quadribol (jogo criado pela
autora da Série e existente apenas nesse universo) e vem participar de um torneio que ocorre em Hogwarts. Durante o período em que Victor
permanece na escola, ele e Hermione tem um namoro e ele a leva a um baile na escola.
38 A Escola de Hogwarts dividi seus estudantes em 4 casas – Gryffindor, Slytherin, Ravenclaw e Hufflepuff – a divisão dos alunos é feita no

primeiro ano pelas características que possuem que os aproxima de cada uma das casas. Hermione é uma Gryffindor, a casa dos corajosos.
Slytherin é a casa que presa pela astucia, mas também é afirmado que só os feiticeiros maus fazem parte dela.

NARRATIVAS
621

deterioradas. – Vamos procurar por sobreviventes. Enviarei um patrono para o ministério para avisar
sobre o ataque e logo o ajudarei.
Assenti, mesmo com a certeza de que Greyback e seu bando não permitiriam
sobreviventes. Eles não conheciam a palavra misericórdia.
Atravessei o que deveria ser a antiga sala de estar do casebre desviando das chamas remanescentes.
Claro que apagava as maiores com feitiços, mas não era necessário por ali. Cheguei aos fundos com
poucos passos e avistei alguns poucos brinquedos jogados pelo gramado. Eles formavam uma pequena
fila em direção à floresta que margeava a vila.
Segui a trilha com passadas rápidas e adentrei a floresta. Logo a trilha parou e eu me concentrei para
tentar ouvir qualquer coisa que denunciasse uma presença. Poucos segundos de espera e ouvi um
farfalhar de folhas e um lamento baixo. Por estar acostumado com o breu, consegui caminhar sem
problemas até a origem do som, que ficava mais alto com a aproximação.
Avistei uma criança, pequena, encolhida contra um tronco de árvore, abraçando os próprios joelhos
enquanto chorava baixinho e pedia pela mãe. Ela parecia um pouco machucada, mas bem. (BIIIMIRANDA,
2016, capítulo 1).

O florescer erótico da personagem se dá à medida que percebe sua atração por seu
professor de poções, Severo Snape, e pelo ex-professor de defesa contra as artes das trevas, Remus
Lupin. Ambos são mais velhos que Hermione, entretanto, a autora explora a atração da jovem por eles
por meio da forma como ela pensa e reage a proximidade dos dois homens. Podemos observar, nos
trechos abaixo, a forma como a autora desenvolve a questão da erotização na personagem que, nesse
momento, é algo mais interno do que externo. Embora os dois professores sintam-se igualmente
atraídos por ela.

Senti, um segundo antes de ver, Snape atrás de mim. Minhas costas roçando em seu peitoral e a mão
dele estendida sobre a minha, quase me fizeram perder o fôlego. Ele pegou o livro que eu queria sem o
mínimo de dificuldade e o entregou.
[...]
Saí do banheiro e quase cai para trás ao ver Snape com o torço nu. Ele pareceu tão surpreso quanto eu
e vestiu a camisa do seu pijama, também preto, rapidamente.
– Desculpe, achei que a senhorita demoraria mais – murmurou com um leve rubor nas bochechas.
Se Snape estava envergonhado, eu deveria estar vermelha feito um tomate. Ele tinha um corpo definido
e, apesar das cicatrizes, era muito bonito. E eu não deveria estar pensando nisso... Pelo menos, não
agora, com ele olhando para a minha cara. (BIIIMIRANDA, 2016, capítulo 10).

Remo me puxou para fora da poltrona e me girou para que eu ficasse de frente para a lareira. Ficou
atrás do meu corpo e segurou na minha mão que estava com a varinha, posicionando-a da forma certa.
– Olhe o fogo, Hermione – sussurrou contra o meu ouvido, me fazendo engolir em seco. – Deseje
dominá-lo. Finja que ele é um objeto concreto. Você pode tocá-lo. Pode moldá-lo. Sinta ele. Seja ele. E
então, seja dona dele.
Eu tive que me concentrar muito no fogo para não levar em consideração a forma que a voz de Lupin
estava mexendo com o meu corpo. Era estranho.
Por fim, a sabe-tudo dentro de mim falou mais alto e eu foquei nas chamas à minha frente. E com um
leve aceno da varinha, o fogo deixou a lareira e subiu até o teto da sala, se espalhando como fogos de
artifício.

NARRATIVAS
622

Virei para Remo, feliz por ter conseguido, e só então me dei conta de como ele estava próximo. Ele me
abraçou, o que me deixou levemente desconfortável e constrangida. Mas ele não pareceu perceber.
[...] Eu senti novamente a sensação estranha percorrer meu corpo. Os cabelos da minha nuca se
arrepiaram e minhas pernas amoleceram.
O que diabos estava acontecendo comigo? (BIIIMIRANDA, 2016, capítulo 12).

Um aspecto interessante é que as atenções da personagem se voltam para dois homens bem
mais velhos que ela e que ocupam uma posição de poder em relação a ela. Tal fato é explicado por
Jenkins (2015) ao inferir que os fãs tendem a formar casais que são impossíveis de serem formados
no cânone da história dada. Esse é uma forma da autora trazer para o cerne de sua narrativa dois
temas tabus que não são discutidos na Série.
A construção discursiva das cenas (acima) mostram situações que são comuns aos jovens
quando estão descobrindo sua sexualidade. A qual ocorre por meio de impressões, de sensações e de
emoções emocionais e físicas. A confusão de Hermione quando sente o corpo de Lupin junto ao se é
normal, pois, em capítulo anterior, sentiu-se de forma semelhante diante a proximidade de Snape. Ao
mesmo tempo em que Hermione descobre sua atração por ambos os homens, ela vai descobrindo
como seu corpo reage a certas situações de cunho sexual. Na história matriz não há tais situações,
nem mesmo com Harry, personagem que narra a Série. Todas as interações entre as personagens,
até mesmo aquelas que poderiam gerar uma situação sexual, são extremamente higienizadas e
inocentes, não há tensão. Enquanto que na fanfic, embora as situações ainda possuam um grau de
inocência, há uma tensão sexual que indica a erotização da personagem Hermione e das outras
personagens, haja vista os professores também têm comportamentos que levam as situações
narradas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na sociedade, há vozes que valoram negativamente os textos que estão fora das coleções
canônicas, estabelecidas pela crítica literária. Essas vozes revozeiam discursos a fim de conter a
criatividade e o direito de escolha dos fãs, por eles considerados sem desconhecedores do que é boa
literatura. Contudo, conforme tentamos mostrar no decorrer do artigo, os leitores encontram
maneiras de burlar essas vozes e realizam leituras que estão à revelia das instituições reguladoras,
não apenas isso, mas os fãs investem em práticas de escrita. Esses fãs realizam o que Moita-Lopes
(2006, p. 86) chama de desafiar “a hegemonia [...] da globalização do pensamento único", uma vez que
desafiam os discursos que o excluem do processo de produção da literatura. Nesse sentido, o fã é um
verdadeiro profanador, pois se apropria de textos matrizes realizando alterações que vão desde
ampliar o universo da narrativa a partir de onde o autor parou, até modificá-la criando um novo
enredo.
De forma axiológica, a ficwriter constrói uma narrativa em que a personagem central vivencia
situações eróticas. Desse modo, ao mesmo em que há a desconstrução das características

NARRATIVAS
623

elementares da personagem Hermione Granger, há um maior acabamento e, porque não, uma


expansão de suas qualidades que passam a integrar uma personagem mais próxima da realidade dos
leitores, pois tem emoções condizentes com as sentidas por eles. O crescimento, ou amadurecimento
da personagem é construído capítulo a capítulo de forma a fazer com que o leitor acompanhe e
perceba a evolução sofrida por ela.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016.
______. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011
BIIIMIRANDA. Sangue Negro (fanfiction). Site Anime Spirit, 2016. (47 capítulos). Disponível em:
<https://spiritfanfics.com/historia/sangue-negro-5906202>. Acesso em: 20 maio 2017.
FARACO, C. A. Autor e autoria. In: BRAITH. B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. 2. reimp. Sao Paulo: Contexto, 2016.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história. Tradução Federico Carotti. São Paulo, Companhia das
Letras, 1989.
JENKINS, Henry. Invasores do texto: fãs e cultura participativa. Tradução Érico Assis. Nova Igraçu, RJ: Marsupial, 2015.
______. Cultura da Convergência. Tradução Susana L. de Alexandria. 2. ed. 5. reimp. São Paulo: Aleph, 2009.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Linguística Aplicada e Vida Contemporânea: problematização dos construtos que têm
orientado a pesquisa. In: MOITA-LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola
Editorial, 2006.
NÚÑEZ, Eloy Martos. Hipertexto, cultura midiática e literaturas populares: o auge das sagas fantásticas. In:
RETTENMAIER, Miguel; RÖSING, Tania M. K. (Org.). Questões de leitura no hipertexto. Passo Fundo: Ed. Universidade de
Passo Fundo, 2013. p. 50-63.
VARGAS, M. L. B. O Fenômeno Fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico. Passo Fundo: Ed.
Universidade de Passo Fundo, 2015.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciencia
da linguagem. Tradução Sheila Grilo e Ekateina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
624

O presente texto objetiva apresentar para diálogo

CONSTRUINDO DIÁLOGOS, alguns sentidos construídos sobre o direito à


Educação Infantil, tendo como base estudos e
pesquisas realizadas a partir da inserção no

COMPARTILHANDO
cotidiano escolar, bem como, da escuta aos
familiares de crianças das camadas populares.
Inserimos nossas reflexões em um cenário em que
a educação para a infância tem se apresentado com

SENTIDOS: uma experiência com grande complexidade sendo inserida, com cada vez
maior ênfase, nas políticas sociais como um todo.
Nesse contexto, problematizamos o tom monológico

familiares de crianças das camadas que tem configurado as relações família e escola
no cotidiano escolar, fazendo o exercício de buscar

populares possibilidades outras para compreender a


interlocução escolas-famílias, como caminhos
possíveis para fortalecer a luta por uma educação
mais dialógica e democrática.

ARAÚJO, Mairce da Silva39 Palavras-Chave: Relações família-escola. Direito à


Educação Infantil. Dialogismo
PESSANHA, Fabiana40

INICIANDO A CONVERSA

O
presente artigo tem como base a pesquisa 41 , defendida recentemente no Mestrado em
Educação: processos formativos e desigualdades sociais, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Faculdade de Formação de Professores (UERJ – FFP), cuja temática se debruçou sobre
a relação família e escola e o direito à Educação Infantil.
Como objetivo, buscamos evidenciar os diversos modos de participação política manifestados
por um grupo de familiares de crianças das camadas populares matriculadas na Educação Infantil, em
uma escola pública municipal, localizada no leste metropolitano do estado do Rio de Janeiro.
Assinalamos a multiplicidade de sentidos atribuídos ao direito à Educação Infantil por esses familiares
ao se expressarem em suas relações cotidianas com a escola e acreditamos que esses sentidos
devem ser reconhecidos, visando à ruptura com tradicionais modelos discursivos hegemônicos que,
normalmente, buscam invisibilizar as experiências vividas pelas famílias das camadas populares.
Durante a pesquisa, tivemos acesso a 12(doze) dos familiares, do total das 17(dezessete)
crianças matriculadas na turma de quatro anos. Nos diálogos construídos, foi possível nos
aproximarmos do perfil socioeconômico dos familiares, nos revelando uma comunidade escolar de

39 Procientista, Doutora em Educação pela UFRJ. Professora Associada da Faculdade de Formação de Professores e do Programa de Pós-
graduação: processos formativos e desigualdades sociais da UERJ. E-mail: mairce@hotmail.com
40 Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: pessanhafabi@gmail.com
41
Sentidos de cidadania a partir do direito à Educação Infantil:com a palavra, os familiares das crianças .2017. 133f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2017.

NARRATIVAS
625

baixa renda, originária dos estratos mais pobres da sociedade. No geral, os pais são trabalhadores
informais, alguns, desempregados. A maioria das mães é do lar. A renda familiar gira em torno de
1(um) a 2(dois) salários mínimos e a baixa escolaridade, majoritariamente, revelou o Ensino
Fundamental incompleto. Os pais e mães, em sua maioria, encontravam-se na faixa etária de 20 à 29
anos de idade.
Como referencial teórico-metodológico, a concepção da metodologia qualitativa de pesquisa
foi adotada, ancorada em uma reflexão teórico-crítica sobre os conhecimentos construídos em
articulação com os familiares das crianças. Especialmente, nos apoiamos na perspectiva dialógica da
linguagem, defendida por Bakhtin (2014), para quem as relações de linguagem estão inscritas nos
modos pelos quais os sujeitos se organizam em sociedade.
Ao longo da pesquisa, fizemos o exercício de buscar possibilidades outras para compreender
as interlocuções escolas-famílias no cotidiano escolar, procurando compreender tais relações tanto a
partir da lógica interna da escola, suas práticas e sua cultura, quanto a partir de uma escuta sensível
às falas das famílias.
Referenciadas em pesquisa realizada anteriormente por Araújo (2003), dentre outros
pesquisadores, nos propomos a refletir sobre as relações produzidas entre a família e a escola na
educação das crianças das camadas populares, entendendo tais relações a partir de uma escuta
compreensiva, o que nos possibilitou defender relações escola-família que não impusessem, a esta
última, "valores e formas de ser, fazer, pensar, dizer, que [silenciassem] e [apagassem] suas
próprias formas de ver e estar no mundo" (ARAÚJO, 2003, p. 54).
Em pesquisa referenciada nos estudos do cotidiano, Araújo (2003) contribui com reflexões
que nos ajudam a identificar possibilidades de diálogos família-escola que, potencializando novas
relações, favoreça a garantia do direito à Educação Infantil pensada em uma perspectiva dialógica
(BAKHTIN, 2014), a partir de uma escuta compreensiva às falas das famílias das crianças.
O exercício de uma escuta responsiva exigiu de nós entender que o contexto seria condição
para entendermos o que nos diziam os familiares das crianças. Daí que nossa tarefa como
pesquisadores em educação, quer seja a partir da inserção no cotidiano escolar, ou nos diálogos
diretos com as famílias das crianças, venha a requerer nossa percepção sobre como as famílias se
vêem para, depois, retornando ao nosso lugar exterior, exotópico, como Bakhtin denomina,
configurarmos o que podemos compreender a partir do que nos dizem.

CONSTRUINDO DIÁLOGOS, COMPARTILHANDO SENTIDOS

Ah, eu não sei te explicar porque, assim... representa muita coisa. Mas eu não sei, assim, a palavra pra
eu te dizer. Muita coisa! Ah, o futuro deles, né...? (Liliane Siqueira, 2016, 27 anos. Grifo nosso)

As palavras de Liliane, quando indagada sobre o que, para ela, representa a educação escolar
de seu filho de cinco anos, ao ter-lhe garantido a matrícula na pré-escola, muito nos revelam sobre
suas expectativas. Em princípio, pode nos causar estranheza uma fala que diz não saber, não

NARRATIVAS
626

encontrar a palavra "certa" para expressar suas aspirações. No entanto, quando solicitada a falar um
pouco mais, a enunciação da palavra futuro nos abre um horizonte carregado de sentidos.
Liliane nos fala sobre os desafios que enfrenta, cotidianamente, para garantir a educação
escolar de seus quatro filhos. Inicialmente, suas expectativas aparecem atreladas ao desejo de
superação das necessidades materiais mais imediatas que vivencia. A fala de Liliane vem marcada, em
grande parte, por suas queixas em relação às dificuldades econômicas para manter sua família,
composta por sete pessoas. Expressivamente, a superação das dificuldades econômicas é o pivô das
projeções de Liliane para a escolarização dos filhos.
Seus discurso, certamente, encontra-se marcado por suas experiências cotidianas, na medida
em que atribui valor à Educação Infantil, relacionando-a à formação para o futuro de seu filho mais
novo. Sua fala vai ao encontro de uma retórica oficial que atribui à escola o lugar, por excelência,
destinado à formação para a cidadania, acompanhada por seus condicionantes históricos e materiais.
Sua palavra nos traz algumas possibilidades de sentidos atribuídos ao direito à educação e
nos ajuda a tensionar os discursos educacionais oficiais que nos apresentam uma relação homogênea
entre escolarização e cidadania. Compartilhamos da crítica a um modelo arbitrário de linguagem que
padroniza alguns pressupostos ideológicos como hegemônicos, em detrimento de compreendê-los a
partir das experiências concretas dos sujeitos.
Para melhor compreensão das narrativas dos sujeitos parceiros desta pesquisa, recorremos
à Bakhtin (2014), quando o autor nos fala que é através da palavra que as ideologias são construídas e
reconstruídas nas relações cotidianas. O autor nos alerta quanto ao caráter da palavra de "[...]
fenômeno ideológico por excelência. [...] A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social"
(p. 36), portanto, deve ser colocada em primeiro plano no estudo das ideologias. Para o autor, "[...] o
material privilegiado de comunicação na vida cotidiana é a palavra." (BAKHTIN, 2014, p.37).
Prosseguindo com as palavras de Liliane ao nos falar: "Eu faço de tudo pra eles [os filhos] ser
alguém na vida. [...] pra poder eles ter alguma coisa pra eles, como é que se diz... ah, pra eles ter
como se manter", podemos ver que os sentidos que constrói para a educação de seus filhos estão
relacionados às suas condições materiais de vida. Entendemos que a palavra de Liliane reflete sua
história, marcada por determinantes históricos e concretos que nos ajudam a compreender os modos
pelos quais constrói sentidos para a escolaridade de seus filhos na Educação Infantil. Seguimos na
tentativa de desconstrução dos sentidos únicos consolidados nos discursos monologizados da
legislação educacional, trazendo os familiares das crianças como parceiros nesta pesquisa.
Para Bakhtin (2014, p. 35), "[...] a consciência individual é um fato socioideológico[...]",
portanto, não é um produto natural nem isolado e pode ser melhor compreendida a partir do
reconhecimento dos referenciais sociais de cada sujeito. Uma vez objetivada pela palavra, a
consciência torna-se uma força real.
Eis um dos motivos que justifica o valor atribuído à palavra dos familiares das crianças nas
reflexões que aqui propomos. Nossa provocação reflexiva reside nas diversidades de suas
expectativas e sentidos para a escolaridade dos filhos. Apostamos em uma postura dialógica que

NARRATIVAS
627

reconheça efetivamente os familiares das crianças como sujeitos de conhecimento, como sujeitos de
direitos e como parte integrante do contexto escolar. Nessa perspectiva de compreensão ativa,
escutar pressupõe calar e, num movimento contínuo, falar com. Nas palavras de Bakhtin,

Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo, deve conter já o germe de uma resposta. [...]
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar
adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de
compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais
numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão (2014, p. 136-137).

Propor uma reflexão sobre as relações escolas-família e o direito à Educação Infantil, na


perspectiva dos familiares das crianças, nos convida ao desafio de compreender a palavra desses
sujeitos como marco potente de busca por participação política. Para isso, compreender ativamente
suas palavras significa "[...] cotejar as inúmeras possibilidades de sentidos nelas existentes,
orientando-nos a partir de suas lógicas e experiências" (PESSANHA, 2017). Dessa forma, temos a
oportunidade de relativizar verdades, caminhando na contra-mão de ideologias padronizadas e
hegemonicamente instituídas.

[...] Tem que ser bom pra escola, tem que ser bom pras mãe(s), tem que ser bom pros alunos.
Entendeu? Tem que ser bom pra todo mundo. E, pra mim, tudo o que é feito pra escola, de bom, pra mim,
tá ótimo! (Terezinha Lúcia da Silva, 2016, 39 anos).

As palavras de Terezinha Lúcia nos ajudam a compreender suas expectativas de coletividade e


de alcance ao maior número de sujeitos possível, enquanto falava sobre a pesquisa que realizávamos
na escola de sua filha. Acreditamos estar diante de uma perspectiva dialógica não somente sobre a
pesquisa que construíamos mas também, sobre o trabalho educativo na escola de sua filha que
envolve as crianças, os familiares das crianças, os profissionais e todos os envolvidos no cotidiano
escolar.
Os encontros com os familiares, trazidos aqui através dos registros dos diálogos que
construímos, dão vida ao desejo de ampliar a visibilidade destes como sujeitos políticos, atuantes no
cotidiano escolar dos filhos. Desse modo, buscamos, além de outros aspectos, contribuir para
fortalecer a luta por uma educação mais democrática no dia a dia das escolas consolidando, no
exercício da democracia, a escuta aos familiares das crianças como sujeitos ativos no processo
educacional escolar.
Nesse exercício de construção de relações mais dialógicas entre família e escola, recordamos
Patto (1990), ao nos mostrar formas outras e múltiplas de participação dos pais e mães na
escolarização dos filhos. A autora nos diz que "Somente quando temos a possibilidade de
compreender o heterogêneo no aparentemente homogêneo, o plural onde se costuma falar no
singular é que adquirimos condições de realizar a ascensão do abstrato ao concreto" (PATTO, 1990, p.
4). Na busca por heterogeneidade dentro do que, habitualmente, pode nos parecer homogêneo, é que

NARRATIVAS
628

nos propomos a partilhar os diálogos com os familiares das crianças parceiros da pesquisa,
construída na procura por relações mais dialógicas entre família e escola.
Sobre o direito à Educação Infantil de seu filho, de cinco anos, Michelle, outra mãe com quem
dialogamos, faz algumas perguntas. Em seguida, ela mesma responde:

Como assim? De eu ter que deixar ele estudar, é isso? Deu me preocupar com a educação dele, essas
coisas? Ah, eu acho importante. É minha obrigação né, eu deixar ele ir pra escola! É o mínimo que eu
tenho que fazer. Como é importante pra ele é pra mim também (Michelle de Oliveira, 2016, 23 anos).

Podemos refletir sobre os sentidos enunciados por Michelle ao falar sobre suas
responsabilidades e obrigações, como mãe, em relação à educação escolar de seu filho. Ainda bem
jovem e com um histórico social no qual não recebeu um apoio adequado, quando criança, para seu
processo de escolarização, Michelle não abre mão de garantir o direito à Educação Infantil do filho.
Percebemos que em sua concepção, como mãe, está inserida uma relação entre direitos e deveres e
que, nessa relação, está uma de suas ações na educação de seus filhos. Em relação aos deveres,
deixa claro que os cumpre ao falar sobre sua obrigação em "deixar" seu filho ir para a escola, sendo
"o mínimo" que tem a fazer. Em relação aos direitos, consequentemente, faz valer a vaga de seu filho
na Educação Infantil.
Outro aspecto que mostra a participação efetiva dos familiares das camadas populares na
luta pelo direito à educação aos filhos é o valor que atribuem à instituição escolar,

Eu procurei a escola aqui [...] porque todo mundo me falava: "Meus filhos estudaram lá desde pequenos
e a escola é muito boa". Então eu fiz de tudo pra conseguir uma vaguinha aqui pros dois, porque eu sou
mãe de dois, ...". (Jessica Baessa, 2016, 24 anos, grifo nosso).
Eu acho esse colégio aqui legal. Todo mundo fala muito bem, entendeu? (Alexandra de Carvalho, 2016, 35
anos, grifo nosso)
A escola foi indicada pela menina que faz o transporte que falou: "Ah, a escola é boa e ensina muito bem!
Então eu senti desejo e vim pra cá com ela [com a filha]. Ai coloquei ela aqui e to gostando (Terezinha
Lúcia Vale, 2016, 39 anos, grifo nosso).

Os olhares das mães nos mostram que, para além do acesso, buscam também pela qualidade
da escola. As palavras de Jéssica, de Alexandra e de Terezinha expressam seus esforços para
garantir a Educação Infantil aos filhos, nos revelando um quadro de procura pela educação escolar
como um aspecto fundamental para compartilharem a educação de suas crianças.
Entretanto, relatos de outras mães expressam algumas lacunas ainda existentes nas
condições de funcionamento da escola em que realizamos a pesquisa e na qual seus filhos estão
matriculados. Esses relatos nos dizem um pouco sobre as atuais políticas para a infância, ainda
deficitárias, em especial, no que se refere à conquista da cidadania infantil, como nos estudos de
Sarmento (2007). O autor nos revela uma série de direitos da criança ainda por se consolidar como,
por exemplo, uma concepção mais contemporânea de infância que considera a criança como "sujeito

NARRATIVAS
629

sociológico", sendo reconhecidas como sujeitos infantis, produzidas na cultura e produtoras de


cultura.
Ressaltamos a consolidação do campo dos Estudos Sociais da Infância que aponta avanços
epistêmicos e políticos na compreensão da infância como categoria social. No entanto, é o próprio
autor quem sinaliza que não basta, embora seja estritamente positivo e necessário, que os
dispositivos oficiais reconheçam os direitos sociais e educacionais das crianças. Para o autor, os
direitos políticos, do ponto de vista da participação na vida coletiva são, ainda, um grande desafio.
Nessa direção, destacamos a fala de Luciana, que denuncia as condições estruturais da escola
ainda desfavoráveis para a consolidação de uma efetiva cultura de cidadania infantil. Embora seja
nítida a preocupação em reiterar seu apreço pela instituição na qual seus filhos estudam, Luciana,
manifesta alguns de seus descontentamentos,

Não to falando que esse colégio aqui é ruim. É Bom! Mas aqui tá faltando bastante coisa. Uma quadra ali
atrás pras criança. Tem que ter mais sala também. Teve um "moço" ai que falou que ia mudar a escola.
[...] que ia botar um refeitório. Aqui tá faltando também um refeitório pras criança[s] pros
pequenininho. Tá faltando muita coisa. Bastante coisa (Luciana de Souza, 2016, 32 anos).

Enfim, as narrativas dessas mães nos revelam a permanente necessidade de luta pelo direito
à Educação Infantil e a urgência por políticas públicas educacionais que atendam as crianças e suas
famílias, como sujeitos de direitos no exercício da cidadania.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente, destacamos o desejo dos familiares para falar sobre suas perspectivas e
proposições a respeito da educação de seus filhos, nos dando indícios de que desejam participar
politicamente, produzindo benefícios para toda a comunidade escolar, ou seja, todos os sujeitos
atuantes direta ou indiretamente no processo educativo da escola.
No entanto, ainda observamos um caráter hierárquico nos discursos oficiais em relação à
concepção de família e de como deve ser a participação desta no cotidiano escolar. Normalmente, o
discurso considerado legítimo, mais conservador, é o que dá o tom ao modo como a relação família e
escola deve ocorrer no cotidiano da escola sendo, quase sempre, de difícil rompimento.
Observamos a necessidade de novas construções no imaginário social dos sujeitos da escola,
abarcando a diversidade dos modelos de família presentes no cotidiano escolar, potencializando os
sujeitos concretos que compõem a maioria das famílias das escolas públicas.
Como destaque, reafirmamos os modos outros de participação política dos familiares das
crianças no processo educacional de seus filhos. Nos orientou saber quais e como se dão os modos
pelos quais se fazem presentes no cotidiano escolar de seus filhos e os sentidos que constroem para
e a partir do direito à educação dos mesmo.

NARRATIVAS
630

Dessa forma, buscamos viabilizar um princípio metodológico dialógico rumo a uma pesquisa
comprometida com a socialização de sentidos múltiplos, buscando dar visibilidade aos modos diversos
da participação de familiares das crianças na escola básica e na Educação Infantil. Ressaltamos a
visibilidade necessária à multiplicidade de sentidos atribuídos ao direito à Educação Infantil por esses
familiares, visando confrontar a esfera centralizadora dos discursos monologizados, a partir da
materialidade concreta da palavra dos familiares das crianças.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Mairce da Silva. O ambiente alfabetizador em questão: a luta pela qualidade de ensino nas escolas das
classes populares. 2003. Tese (Doutorado em Educação) -Faculdade de Educação,Universidade Federal do Rio de
Janeiro, (UFRJ), Rio de Janeiro, 2003.
BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 16.
ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990.
(Biblioteca de psicologia e psicanálise, v. 6)
PESSANHA, Fabiana Nery de Lima. Sentidos de cidadania a partir do direito à Educação Infantil:com a palavra, os
familiares das crianças.2017. 133f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Formação de Professores,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2017.
SARMENTO, M. J. Visibilidade Social e Estatuto da Infância. In:______.; VASCONCELLOS, V. M. R. de; (orgs.). Infância
(In)visível. Araraquara, SP: Junqueira&Marin, 2007.

NARRATIVAS
RESUMO
631

SALAS DE LEITURA: de como o Palavras-Chave:

professor se narra

BAPTISTA, Karen César 42

FADEL, Tatiana 43

INTRODUÇÃO

E
ste texto44 é fruto de um projeto de mestrado45 vinculado à linha de pesquisa “Linguagem e Arte
em Educação”, do Grupo Alfabetização, Leitura e Escrita-Trabalho Docente na Formação Inicial de
Professores – ALLE-AULA da Universidade Estadual de Campinas, cadastrado no Diretório dos
Grupos de Pesquisa do CNPq e, mais especificamente, a um projeto financiado pelo CNPq - Processo
nº 401404/2016-1 (Projeto-Mãe), que busca compreender aspectos relativos ao trabalho a favor da
formação de leitores na escola básica e às práticas de leitura possibilitadas pelos professores, em
salas de leitura da SEE/SP, aos alunos que frequentam o ensino fundamental - anos finais.
O que pretendemos fazer neste artigo é discutir aspectos relativos a formação dos
professores das salas de leitura da SEE/SP46 e, para tal, aproximaremos uma lupa de um tecido de
enunciados produzidos pelo Estado, por meio das resoluções que criaram as Salas de Leitura e
estabeleceram suas formas de funcionamento, e por professores readaptados que são responsáveis
por essas salas. Que narrativa esses professores constroem sobre si, sobre seu papel, sobre a
leitura? Que outras vozes, de outros personagens, se fazem ouvir na voz dos professores? Para tal,
recorreremos ao conceito bakhtiniano de polifonia.

Meu poema é
um tumulto:

42 Mestranda do PPGE-Unicamp. Graduada em Pedagogia. E-mail: karen_cb_@hotmail.com


43 Professora de Língua portuguesa. Graduada em Letras pelo Instituto de Estudo da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Aluna
do curso de Pedagogia na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas E-mail: tatianafadel@gmail.com
44
Esse trabalho foi escrito em parceria com a professora Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto, doutora em Educação. Professora da
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte – DELART. E-mail:
cbometto@yahoo.com.br
45
O projeto de mestrado conta com financiamento da Bolsa CAPES/PROEX do Programa de Pós-graduação, conforme estabelecido pela
Portaria conjunta Nº 01 CAPES/CNPq, de 12/12/2007.
46 O grupo de formação acontece em parceria entre a Diretoria de Ensino Região de Piracicaba e a professora coordenadora do Projeto-Mãe,

docente da Universidade Estadual de Campinas-Unicamp. Sobre o grupo explanaremos adiante.

NARRATIVAS
632

a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido
estamos todos nós
cheio de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz
se dizes pêra
acende-se um clarão
um rastilho
de tarde e açucares
ou
se azul disseres
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas
A água que ouviste
Num soneto de Rilke
Os ínfimos
Rumores no capim
O sabor
Do hortelã
Essa alegria
A boca fria
Da moça
O maruim na poça
A hemorragia da manhã
Tudo isso em ti
Se deposita
Se cala.
Até que de repente
Um susto
Ou uma ventania
(que o poema dispara)
Chama
Esses fosseis à fala.
Meu poema é um tumulto, um alarido:
Basta apurar o ouvido.

Muitas Vozes -Ferreira Gullar.

Polifonia: em música, uma tessitura sonora em que muitas vozes se desenvolvem, mantendo,
porém, uma melodia individual. Bakhtin, ao analisar a poética de Dostoievski, utiliza-se desse mesmo
termo para descrever o que ocorre nos romances: as vozes dos personagens têm certa autonomia
em relação à voz do autor, mantêm suas singularidades, suas distinções ideológicas, entram em
conflito, no entanto, formam, melodicamente, o tecido único da ficção. A metáfora musical, assim,

NARRATIVAS
633

pode ser ampliada e transformada em conceito que descreve a própria atividade linguística. Todo
enunciado é dialógico e polifônico. Todo enunciado responde a um outro e tem como horizonte a
resposta possível desse outro. Todo enunciado é também uma forma de ação: sobre si, sobre um
Outro. Assim, ainda que não intencionalmente, uma cadeia de enunciados constitui uma narrativa –
sequência de ações encadeadas no tempo. O sujeito que enuncia, assim, compõe uma narrativa, é
parte dela, como autor e como personagem.
Cada enunciador, tal qual um autor de ficção, organiza e produz enunciados nos quais se
entremeiam muitas vozes além da sua própria, ainda que ele não possa ou saiba reconhecer cada uma
delas. Como um tecido de trama fechada, que parece uno, indivisível, mas cujos fios se veem com um
olhar ampliado por uma lupa.

1. O CENÁRIO: as salas de leitura

Hoje, nas escolas públicas estaduais do estado de São Paulo, temos as salas de leitura como
espaços privilegiados para a formação do leitor. Segundo Ometto, Ramiro e Brancalion (2014), a sala
de leitura tem sido sinônimo de espaço de promoção e incentivo à leitura, responsável por mediar o
encontro dos sujeitos com a cultura produzida historicamente pela sociedade, pois tal ambiente é
considerado como um espaço de letramento, também literário.
As salas de leitura foram criadas a partir da Resolução SE nº 15, de 18/2/2009, que em sua
ementa dispõe sobre a criação e organização de Salas de Leitura nas escolas da rede estadual de
ensino do Estado de São Paulo. Segundo o documento, cabe à Secretaria de Estado da Educação a
criação de uma sala de leitura, que requer local e ambientes apropriados, em cada unidade escolar da
rede. Essa resolução, por sua vez, foi alterada pela Resolução SE nº 70, de 21/10/2011. Nela, explicita-
se que o responsável pelas salas de leitura serão os professores readaptados ou adidos, com
formação em qualquer campo de atuação, supostamente sem formação específica para o trabalho
com linguagem e leitura.
Nesse cenário, começa a delinear-se a trama dessa narrativa: o que pensa o Estado sobre
esse trabalho? O que ele enuncia em seus documentos oficiais, e como se apresentam, oficialmente,
as atribuições desse “responsável” pela sala? A primeira Legislação criada foi a Resolução SE - 15, de
18/2/2009:

A Secretária de Estado da Educação, considerando que: a formação escolar do educando não pode
prescindir do atendimento às exigências do mundo contemporâneo que demandam acesso cotidiano a
fontes de informação e cultura atualizadas e diversificadas; a escola se apresenta como um dos
espaços privilegiados de desenvolvimento das competências e habilidades de leitura e escrita; o
desenvolvimento dessas competências e habilidades requer local e ambientes apropriados, exigência
constante no padrão mínimo nacional de infra-estrutura previsto no Plano Nacional de Educação - Lei nº
10.172/2001, resolve: Art. 1º - Fica criada, em cada unidade escolar da rede pública estadual, uma sala de
leitura [...]. (São Paulo, 2009, p.17)

NARRATIVAS
634

Segundo essa resolução, o primeiro objetivo das salas de leitura consistia em

Art. 1º - [...] uma sala de leitura que objetiva oferecer aos alunos de todos os cursos e modalidades de
ensino:
I - oportunidade de acesso a livros, revistas, jornais, folhetos, catálogos, vídeos, DVDs, CDs e outros
recursos complementares, quando houver;

Como se vê a seguir na Resolução SE 16, de 05/02/2010 a qual fala sobre a atribuição de


aulas das Salas ou Ambientes de Leitura:

Artigo 2º - São requisitos à seleção de docente para atuar como responsável nas Salas ou Ambientes de
Leitura :
I - ser docente readaptado PEB I ou PEB II;
II - ser portador de diploma de licenciatura plena, preferencialmente em Letras; e
III - possuir, no mínimo, 2 (dois) anos de experiência docente no Quadro do Magistério da Secretaria de
Estado da Educação.

Essa Resolução altera a exigência da Resolução SE - 15, de 18/02/2009 em que o docente


deveria possuir no mínimo 3 (três) anos de experiência docente, não sendo retomada pelas
Resoluções posteriores. No que diz respeito à Formação Docente necessária, a Resolução SE 70, de
21/10/2011, revogando os artigos 3º ao 8º da Resolução anterior, passou a ser

Artigo 4º - São requisitos à seleção de docente para atuar nas salas ou ambientes de leitura:
I - ser portador de diploma de licenciatura plena;
II – possuir vínculo docente com a Secretaria de Estado da Educação em qualquer dos campos de
atuação, observada a seguinte ordem de prioridade por situação funcional [..].

Como requisitos à seleção de docente para atuar nas salas ou ambientes de leitura, somente
se estabelece a necessidade do vínculo docente com a Secretaria de Estado da Educação em qualquer
dos campos de atuação. Na mesma resolução de 2011, o artigo 3º diz , sobre as atribuições desse
professor, que:

As salas ou ambientes de leitura contarão com um professor responsável por seu funcionamento, a
quem caberá:
III – elaborar o projeto de trabalho;
IV – planejar e desenvolver com os alunos atividades vinculadas à proposta pedagógica da escola e à
programação curricular;
V – orientar os alunos nos procedimentos de estudos, consultas e pesquisas;
VI – selecionar e organizar o material documental existente;
VII – coordenar, executar e supervisionar o funcionamento regular da sala, cuidando:
a) da organização e do controle patrimonial do acervo e das instalações;
b) do desenvolvimento de atividades relativas aos sistemas informatizados;
VIII - elaborar relatórios com o objetivo de promover a análise e a discussão das informações pela
Equipe Pedagógica da escola;

NARRATIVAS
635

IX – organizar, na escola, ambientes de leitura alternativos;


X - incentivar a visitação participativa dos professores da escola à sala ou ao ambiente de leitura, para
utilização em atividades pedagógicas;
XI - promover e executar ações inovadoras, que incentivem a leitura e a construção de canais de acesso
a universos culturais mais amplos; (São Paulo, 2011, p.16).

Da aridez quase monolítica dessa linguagem oficial, emergem sentidos que se degladiam: do
enunciado inicial da lei, que reconhece a escola como “espaço privilegiado de desenvolvimento das
competências e habilidades de leitura e escrita” (não entraremos aqui nas implicações dos usos dos
termos “competências” e “habilidades”), passando pelo uso da expressão “responsável” para nomear
aquele professor que atuará nas salas de leitura, e chegando ao apagamento da necessidade de um
profissional com licenciatura plena “preferencialmente em Letras”, o que se vê nesse tecido
legislativo, pano de fundo da narrativa que os professores fazem sobre si e seu papel, é um
esgarçamento da trama, ou ainda um nó – os fios, que deveriam ser invisíveis, estão enovelados,
contradizem-se, como se verá.
Não restam dúvidas de que a escola deve possibilitar o acesso ao conhecimento
historicamente produzido pela humanidade e que esse acesso se dá através da cultura escrita, No
entanto, como Magnani (2001, p.40) nos ensina, “pelo consenso ‘supra-ideológico’, para formar
leitores não basta oferecer livros”, ou como está descrito na legislação, oferecer a “oportunidade de
acesso”; precisamos procurar respostas e caminhos para algumas questões que são assumida de
acordo com a concepção de sociedade, de educação, de linguagem, de leitura e de literatura pelas
quais assumimos.

Nesse sentido, a escolarização da leitura e da literatura desequilibra a relação “útil x agradável”,


enfatizando uma função conservadora e neutralizadora do “efeito estético” e propiciando a produção e o
consumo de uma literatura infanto-juvenil circunscrita por determinado tipo de “funcionamento
conforme” (do ponto de vista da produção, edição, circulação, seleção, utilização e recepção), de tal
modo que, ao alinhar (pseudo) democratização de ensino com adequação ao gosto das camadas
populares, busca-se em-formar o gosto de leitores/alunos de acordo com um projeto
desenvolvimentista (e dependente) de cultura e sociedade que serve aos interesses do capital, através
da mediação paternalista/autoritária do Estado. (MAGNANI,2001,p.3).

Por isso, não é suficiente oferecer o acesso, como se afirma na lei: é preciso buscar modos
para “incentivar” a leitura não por meio de um espaço, mas sim da mediação. Sobre isso,
encontramos em Petit que

O gosto pela leitura não pode surgir da simples proximidade material com os livros. Um conhecimento,
um patrimônio cultural, uma biblioteca, podem se tornar letra morta se ninguém lhes der vida. Se a
pessoa se sente pouco à vontade em aventurar-se na cultura letrada devido à sua origem social, ao seu
distanciamento dos lugares do saber, a dimensão do encontro com um mediador, das trocas, das
palavras "verdadeiras", é essencial.(2008, p. 154)

NARRATIVAS
636

Ao compactuarmos com a ideia da necessidade de mediações e figurações simbólicas para se


apresentar a leitura ao outro, a figura de um mediador pode ser entendida como um “papel de
iniciador ao livro”. João Wanderley Geraldi no texto O professor como mediador no ensino da leitura,
traça um caminho de práticas discursivas que o sujeito percorre para constituir-se como leitor - um
participante efetivo do processo de desvelamento de sentidos produzidos por um escritor. Ao
debruçar-se sobre o intrincado jogo dialógico da leitura, em especial aquela praticada dentro da
instituição escolar, Geraldi afirma que ao professor cabe o papel de mediador entre o aluno e os
textos. Para que essa mediação seja fértil, é necessário, antes de tudo, que o próprio professor seja
um leitor, alguém que apresente aos alunos os muitos textos que conversarão entre si, abrindo o
campo de possibilidades de compreensão. Além disso, conclui Geraldi, é fundamental que o professor
mediador leve em consideração o universo dos alunos - os leitores em formação - para que as
leituras propostas não sejam meramente burocráticas, convencionadas pela tradição. A liberdade de
escolha do que se lê também é importante para a construção de um leitor. Sem isso, diz Geraldi, “e
sem a mediação que permite cotejar textos com textos, os leitores que surgirem, surgirão apesar da
escola” (2016, online). Assim, é nesse duplo cenário – a leitura como um jogo de produção de sentidos
(que precisa ser percebido e trazido à luz) entre leitor e escritor, e a intertextualidade necessária ao
processo de constituição de um leitor, que se insere a prática da mediação feita pelo professor.
Percebemos, assim, que o trabalho de promoção da leitura e incentivo à formação de leitores
possui uma certa especificidade, que parece não ser considerada pelos documentos oficiais. As salas
de leitura, no texto, aparecem como espaços, parte de infraestrutura escolar, como se a existência
física e a disponibilização de materiais organizados funcionassem mecanicamente como
oportunidades de acesso à leitura. O professor não precisa mais ter formação específica em Letras, o
que certamente indicia que, para o Estado, os processos de formação de leitores demandam uma
presença, física também, um “responsável”, como se tais processos fossem de domínio geral, público,
de amplo conhecimento. Conclui-se então: ou o Estado é otimista em excesso, e idealiza cada
professor como um leitor capaz de mediar os processos de acesso ao mundo da leitura aos alunos
que frequentam as salas, ou – o que nos parece mais verossímil – o Estado se desdiz quanto à
importância da leitura como constituidora de sujeitos, já que desconsidera as especificidades do
processo de formação de leitores, e transforma a potencialidade da experiência das salas de leitura
em prática de serviços burocráticos, delimitação, organização, catalogação de elementos de ordem
material. As atribuições dos professores, enunciadas no artigo 3º, apenas tangenciam, e de forma
vaga, a questão da mediação e formação de leitores.
Esse artigo 3º, por outro lado, também pode ser lido como a afirmação estatal de que, se não
conta com profissionais especificamente formados para mediar a leitura, precisa conter e delimitar
as possibilidades de atuação desses professores: são os reponsáveis pela sala, não pela formação de
leitores; cuidam de patrimônio, não de alunos; farão relatórios mais que projetos (mencionados de
forma imprecisa, e subordinada a um projeto pedagógico que pode não existir). O professor, assim

NARRATIVAS
637

coisificado, burocratizado, não é mais um sujeito – é sujeitado a condições que lhe colocarão como
personagem dramático de uma distopia, ou de um não lugar, no qual apenas vagamente se reconhece.

2. OS PERSONAGENS E UM ENREDO DISTÓPICO

Este artigo retirou seus dados de um projeto de pesquisa cujo objetivo é analisar os
processos formativos dos professores das salas de leitura do Ensino Fundamental - anos finais - por
meio de um grupo de formação de professores responsáveis pelas 23 salas de leitura vinculadas à
Diretoria de Ensino Região de Piracicaba, em escolas da SEE/SP, tendo como pano de fundo o trabalho
coletivo a favor da formação de leitores na escola básica, e as práticas de leitura possibilitadas pelos
professores aos alunos do ensino fundamental - anos finais. Tal grupo foi formado como alternativa
frente à não adesão dessas escolas a um outro programa de formação financiado e planejado pelo
Instituto Ayrton Senna. Desde 2014 os encontros são realizados quinzenalmente nas dependências da
Diretoria de Ensino, tendo sido acordado que essa formação não seria instituída por obrigatoriedade,
a fim de garantir que apenas aqueles realmente interessados participassem.
Antes de mais nada, é preciso saber: que professores são esses que estão nas Salas de
Leituras? Quem pode lecionar, ou “ser responsável” pela Sala de Leitura? Quais professores podem
atuar na Sala de Leitura? Esses questionamentos revelaram o movimento de exclusão e de um não
lugar desses professores na Sala de Leitura, o que retratamos a seguir.
Os critérios de seleção de professores para atuarem nas salas de leitura observam a
seguinte ordem de prioridade, segundo a SE 70, de 19/12/ 2016:

I - docente readaptado;
II - docente titular de cargo, na situação de adido, cumprindo horas de permanência na composição da
jornada de trabalho;
III - docente ocupante de função-atividade, que esteja cumprindo horas de permanência correspondente
à carga horária mínima de 12 horas semanais.
§ 1º - O docente readaptado somente poderá ser incumbido do gerenciamento de sala ou ambiente de
leitura da unidade escolar de classificação, devendo, no caso de escola diversa, solicitar previamente a
mudança da sede de exercício, nos termos da legislação pertinente.
§ 2º - Excepcionalmente, o docente que se encontrar nas condições dos incisos deste artigo e tenha
atuado na sala ou ambiente de leitura em 2016, poderá ser reconduzido, em continuidade, mediante
resultados satisfatórios da avaliação de desempenho, realizada conjuntamente pela equipe gestora da
unidade escolar e pela Diretoria de Ensino."(NR)
II - o inciso V do artigo 6º:
"V - verificar, em caso de recondução, além do desempenho satisfatório, o atendimento às condições
estabelecidas nos incisos II e III do artigo 4º desta resolução;”. (São Paulo, 2016, p.26)

Readaptado: o que essa palavra deposita sobre o professor? A readaptação é o afastamento,


temporário ou não, de um professor de sua função de origem, por decisão médica. Sob esse termo,
portanto, escondem-se outros, do mesmo campo semântico, que reverberam nas falas dos
professores participantes do grupo: doente, enfermo, incapacitado, incapaz de trabalhar, deslocado

NARRATIVAS
638

de seu ofício. Como se veem, como falam de si, ou como são vistos, como se percebem através do
olhar dos outros professores, e do Estado que os coloca como “responsáveis” pelo espaço das salas
de leitura?
Os documentos parecem destituir o professor de uma função ativa, jogando-os no espaço de
exclusão de sua própria docência. O adoecimento, então, também assujeita, despe, isola, exclui – estar
enfermo em uma sociedade pautada por indicadores de produtividade é estar também em um não
lugar social, implícito nos documentos. Para, então, driblar a ideia da improdutividade, o Estado
enuncia as funções que terão os professores readaptados nas salas de leitura, atribuindo-lhes,
predominantemente, como já se viu, um trabalho organizacional, de vigilância e promoção do espaço,
mais do que um trabalho de mediadores de leitura, o que se reflete nas falas dos professores sobre si
mesmos e sobre o que fazem. No dia 22 de agosto de 2016, os professores narram suas atividades na
Sala de Leitura e qual seria a função do professor-responsável:

Vilma: Da organização docente?


Cristina: É, é, vocês acham importante?
Marilu: Ah, eu acho importante.
Silmara: Tem que ser organizado né [Falas ao mesmo tempo]
Cristina: Ficha de leitura né, isso é importante, é, eu ponho assim, eu coloco assim o livro [demonstrando], do lado os
dados cadastrais do livro e quem pegou esse livro, entendeu? Daí se a outra pessoa pegar, eu tiro essa ficha e ponho na pasta com
[?] pra dia 31 pra cobrar, 10 dias pra você ler.

Ao refletirem sobre os projetos que o professor-responsável pela sala de leitura deve


desenvolver, os professores consideram os projetos importantes para a sala de leitura, porém, no
final da fala, a organização dos espaços é retomada:

Marilu: [respondendo alguém]: Então, eu acho que quando a gente trabalha com projetos que envolvem a escola toda a
gente trabalha com a opinião do outro, é o projeto do outro professor, é o projeto de quem propõe, não é?! Você tá trabalhando com
o projeto alheio. Tem aquela professora que tá fazendo o mural da primeira e segunda guerra mundial, então é foto de canhão, foto
de avião antigo, é texto, ela faz exposições lá, contínuas, permanentes, e é o projeto dela, a escola recebe, a biblioteca recebe, a sala
de leitura recebe, entendeu?! É a proposta dela, nós estamos lá pra receber também, a gente não vai receber qualquer coisa, mas
quando a coisa é bacana, envolve pesquisa, não é?! Por que não?
Vilma: Não, isso é legal, é o espaço aberto, é a criança conversando com ela.
Adriana: Trabalhar com projetos que envolvam a escola como um todo, isso é importantíssimo gente. É como eu falei, lá na
nossa sala tem projeto de leitura de história, tem projeto da, do centro de ressocialização, tem projeto de leitura dramática com o
ensino básico, receber o projeto, se o projeto for interessante, que ótimo, entendeu, esse projeto de leitura dramática com os
pequenininhos está sendo um chuchuzinho, entendeu? Eles estão adorando. E depois organizar, o ambiente tem que ser organizado.

NARRATIVAS
639

Ao narrar o cotidiano da sala de leitura, a organização do acervo aparece novamente, na


discussão do dia 13 de Março de 2017:

Gilmara: É, eu acho importante a catalogação dos livros, que eu to catalogando de acordo com bibliotecária orientou, e
eu acho que teria que terminar essa catalogação, eu não posso deixar ela…
Cristina: Perdida.
Gilmara: É, perdida. Eu gostaria de terminar, certo? Mas tem pessoas que não dá tanto valor, mas eu acho legal.

Nas falas dos professores, percebemos o quanto o discurso oficial se faz presente na
explicitação daquilo que lhes cabe fazer: é como se, nesse momento, eles se assumissem como
organizadores, catalogadores, vigilantes do acervo, e se despissem das atribuições de professores –
a readaptação lhes toma a voz, e o que fala neles é o que preveem os documentos. Os projetos,
citados apenas vagamente como função desse professor, são dos “outros”. Professores são os
outros, mediadores são os outros. A eles não cabe docência, cabe a catalogação. Não são
professores, são “responsáveis”, aqueles a quem se atribui “responsabilidade”, ou seja, a capacidade
de resposta, não de pergunta, não de proposição. Por isso o professor “recebe o projeto” de outro, e
parece não se reconhecer como capaz de mediar a descoberta da leitura.
No mesmo dia 13 de março, os professores discutem os motivos de estarem no grupo de
formação

Francisca [professora que acaba de chegar na sala de leitura de uma escola e vem ao grupo]: mas sou aposentada e tô
conseguindo me adaptar agora. Porque era transição da escola e de “aí hoje não pode” e eu vi na escola se permitiria reunião e, e eu
gostaria de estar com vocês, todo o tempo, né?! O diretor que está lá agora, ele me liberou, está me liberando e eu espero
participar, e aprender, eu quero aprender bastante…
Pesquisadora: Vamos tentar todos aprender juntos, né?!
Bento: Eu tenho vinte anos na rede, sempre lecionando filosofia e sociologia no ensino médio e a partir desse ano lá na
minha escola a experiência com sala de leitura tem sido um baita desafio e nossa, misericórdia, só Jesus na causa!
Pesquisadora: Sua escola é em que bairro?
Bento: É, Evangelista, depois do Bosque… [bairro periférico paupérrimo e violento].
Bento: Então é um desafio social, pedagógico didático impressionante, mas é assim, são 290 crianças, fundamental II né,
sexta à nona série, das 7h30 às 15h45 por aí…
Pesquisadora: Então, no caso de vocês dois novos, é… vocês sabem qual é a proposta deste grupo? Por que vocês
vieram? Como é que vocês chegaram aqui?
Bento: Professora e coordenadora de área, e já que eu estou na área de humanas… Ela me deu o papel para que, né… E
falou “vá lá e participe, procure se ambientar, procure as novidades, veja o que é interessante para você trazer aqui para a sala de
leitura da escola.

NARRATIVAS
640

Nesse diálogo, alguns aspectos da narrativa sobre si feita pelos professores são notáveis.
Primeiramente, na primeira fala, da professora que chega ao grupo, a referência aos muros, às
barreiras que se colocam para a participação em um processo de formação, implícita no uso de
palavras que revelam um jogo burocrático de poder, em que a Instituição escolar, na figura do diretor,
reforça o apagamento de um professor que já se encontra em um lugar sem lugar (mais ainda, nesse
caso, por estar aposentada): “hoje não pode”, “vi na escola se permitiria reunião”, “ele me liberou,
está me liberando”. O professor que deve submeter-se á autoridade oficial, retirada sua autonomia,
precisa de permissão para formar-se. Se nos documentos oficiais não é exigido deles que tenham
formação em Letras, os professores reconhecem, no entanto, desconhecer práticas de linguagem que
favoreçam o processo de formação do leitor. Porém, o acesso a uma formação específica, que lhes
possibilite mais reflexão sobre as práticas de leitura que podem ser conduzidas nas salas pelas quais
sao responsáveis, atravessa meandros da instituição. Na fala de Bento, outro índice desse jogo de
poderes que apaga o professor como sujeito: “Ela me deu o papel para que, né… E falou ‘vá lá e
participe, procure se ambientar, procure as novidades, veja o que é interessante para você trazer
aqui para a sala de leitura da escola”. Bento, veja-se bem, é um professor que está lecionando
filosofia e sociologia há 20 anos na Rede. Porém, na frase em que explica o motivo de estar ali,
coloca-se como objeto, sintaticamente inclusive: O sujeito da oração é “ela”, a diretora; o objeto, “me”.
Convencionalmente, na gramática, objeto é definido como o alvo de uma ação, e não aquele que exerce
a ação. Parece significativo que a escolha sintática para a narrativa tenha sido esta. Em seguida, uma
sequência de verbos no imperativo: vá, participe, procure, veja. A diretora ordena a formação. O
professor a acata. Desloca-se, assim, de um não lugar, que ele reconhece como caótico por meio de
um bordão, “misericórdia, Só Jesus na causa”, para um espaço de formação.
Vemos, dessa forma, que os professores muitas vezes se questionam e sabem que não
obtiveram formação para o trabalho com linguagem e leitura em seus cursos de graduação, o que
lhes causa uma enorme angústia. Por isso buscam uma formação que preencha essa lacuna da
especificidades trabalho com leitura.

4. UM EPÍLOGO EM CONSTRUÇÃO

Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre

NARRATIVAS
641

portas, que puxa


válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas

(Manoel de Barros)

Há que se fazer, então, considerações sobre as possibilidades dos professores construírem


uma outra narrativa sobre si. Qual o diferencial desse grupo? O que traz de especifico à formação
desses professores das salas de leitura? A parceria colaborativa entre pesquisadores e professores,
unidos pelo interesse em refletir sobre o papel mediador e formador desse espaço privilegiado de
leitura. Com isso, os professores passam a compreender o seu lugar, que não é passivo, nem de
testemunho, mas a ocupar o seu lugar de fato como mediador, nesse sentido, fazendo valer a reflexão
de suas práticas através das discussões teóricas propostas: como, por que, para quem eu ensino
leitura? A partir de que concepções e referenciais de leitura eu compreendo o papel da mediação?
Em um encontro, 13 de março, após a leitura de um texto teórico 47, as falas sobre formação
docente são seguidas por um segundo agravante, relatado por uma das professoras a seguir:

Silmara: Mas a facilidade a princípio é o professor de português. Que é um professor engajado e “nãnãnã”... E a partir
disso faz um trabalho bacana e vai contaminando os outros. [Pesquisadora: Exatamente] Eu já pensei, por exemplo, eu faço um
trabalho na escola de formiguinha, eu to comendo pelas bordas…
Pesquisadora: É isso.
Silmara: Eu vou conversando, vou me apresentando para o professor… Porque eles ficam pensando assim, primeiro: você
é professora de matemática e você está readaptada na sala de leitura, você tá querendo colocar um projeto para eu fazer? Você
esbarra na vaidade, que é o primeiro ponto.
Pesquisadora: E na questão deles acharem assim também… O que eu posso contribuir?
Silmara: O que eu posso contribuir, exatamente, é isso que eu tenho feito na escola. Então eu já percebi que já começou a
abrir um pouquinho mais, as pessoas já estão deixando eu chegar mais perto… É diferente da Rosa, por exemplo, a professora de
português que trabalha brilhantemente literatura dentro da escola, e eu fiquei dentro da cabeça dela até conseguir…

Na fala de Silmara, outro muro se desenha, não mais na verticalidade hierárquica Direção –
professor, apontada anteriormente, mas na desconfiança horizontal dos colegas, que acaba por

47
O texto lido foi: Bartolomeu, Todorov “Estamos assassinando a leitura”.

NARRATIVAS
642

estabelecer um outro jogo que coloca, mais uma vez, o professor readaptado em um não lugar,
apartado do cotidiano escolar, e não parte central dele. Não à toa, Silmara usa uma palavra que indica
localização espacial para descrever seu caminho para constituir um novo lugar. Diz que as pessoas já
estão deixando-a “chegar mais perto”, o que sinaliza que, antes, estava longe. Porém, outro sinal
aparece, um ato dissonante: quando, em sua fala, cita o discurso alheio, “você é professora de
matemática e você está readaptada na sala de leitura, você tá querendo colocar um projeto para eu
fazer?”, coloca-se como uma autora a organizar o discurso de seu personagem – ela sabe o limite
entre a fala do outro e a própria, e se contrapõe a ela. Ao atribuir a alcunha de “vaidade” a essa fala
pejorativa, que a coloca em posição de incapacidade, ela marca um lugar de resistência, e narra a si
mesma como professora, não apenas como uma organizadora e controladora de espaço e acervo, ela
não se vê como mera “responsável”.
Tomemos como exemplo final, que amplia e ilumina o papel do grupo de formação, o encontro
do dia 03 de Abril. A partir da leitura do texto "A biblioteca não é depósito de livros", uma entrevista
com o professor graduado em Letras e biblioteconomista Edmir Perrotti (2012), possibilitou que os
professores deixassem de se sentir apenas gerenciadores de livros (como aparece em alguns trechos
na Resolução), a discussão posta é para que os professores se reconheçam como educadores,
"especialistas em processos de mediação", nas palavras do autor e em interlocução com o texto de
Michelle Petit “o Papel do Mediador”. Os professores retomam a discussão de se sentirem em
condição de readaptados como forma de exclusão:

Marilu: Eu acho que alguém que não gosta de ler numa sala de leitura é inviável. Olha, eu ouvi, ouça o que eu ouvi. Eu ouvi
uma pessoa da sala de leitura falar assim pra mim: Ah! Não perco tempo com leitura. Assim, eu estou lendo. Olha só o que ela tava
lendo, a pessoa: é, como, um livro de autoajuda, como transformar os filhos em não sei o que e não em herdeiro. Entendeu? Sabe,
uma coisa assim, sabe? Eu fiquei chocada.
Eleni: E assim, pessoa bem mais velha, não sei, acho que assim, que não tem esse conhecimento de como funciona, né?!
Por isso esse exercício que a gente ta fazendo aqui.
Marilu: Eu acho que não tem a ver com idade não, tem a ver com formação.
Eleni: Não, é que eu, é que ficava na sala de leitura, tanto que eles acham, os mais velhos acham que a gente é readaptado,
não tem conhecimento.
Vilma: Mas não é só eles que pensam isso, o diretor também.
Marilu: É isso o que nós queremos quebrar.

Na frase de Eleni, “Os mais velhos acham que gente é readaptado, não tem conhecimento”,
dois elementos se destacam: a opinião de um outro, caracterizada como a dos mais velhos, que julgam
os professores como incapazes, pessoas que não têm conhecimento” e a resistência a esse
julgamento. Duas vozes em enfrentamento – a voz corrente, legitimada institucionalmente na própria
escola, como se vê na resposta de Vilma (“mas não é só eles que pensam isso, o diretor também”), e a
voz que resiste: essa fala é do outro sobre mim, eles pensam isso, mas eu não sou isso. A resistência,

NARRATIVAS
643

tão essencial à construção de um deslocamento do não lugar do doente, do incapacitado e sem


conhecimentos para o lugar do mediador de leitura, é reforçada pela última fala de Marilu, que havia
já dito que falta formação a esse outro que destitui do professor readaptado a potência do
conhecimento: “É isso que nós queremos quebrar”. A escolha da palavra “quebrar” é uma metáfora
poderosa: quebra-se o que é duro, imóvel, fixo. Quebram-se muros, quebram-se pedras, quebram-se
ossos. Quebra-se enfim o que separa, o que aparta, o que exclui. Quando o professor desloca a
palavra para o campo dos julgamentos, das opiniões, dos conceitos, anuncia a impermeabilidade e
rigidez desse outro que o olha sem ver, que o fixa em sua posição de incapacidade, e afirma o desejo
de narrar-se como sujeito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apostamos, assim, na possibilidade da vivência da leitura no contexto de nosso grupo como


uma experiência constitutiva da subjetividade:

se o sentido de quem somos está construído narrativamente, em sua construção e em sua


transformação terão um papel muito importante as histórias que escutamos e lemos, assim como o
funcionamento dessas histórias no interior de práticas sociais mais ou menos institucionalizadas como,
por exemplo, as práticas pedagógicas. A autocompreensão narrativa não se produz em uma reflexão não
mediada sobre si mesma, senão nessa gigantesca fonte borbulhante de histórias que é a cultura em
relação à qual organizamos a nossa própria experiência (o sentido daquilo que nos passa) e nossa
própria identidade (o sentido de quem somos) (CUNHA; OMETTO, 2012, p.5 apud Larrosa in Veiga-Neto,
1996, p. 417).

Quando os professores tomam suas práticas como objeto de reflexão há a possibilidade de


que se constituam tanto em sua pessoalidade quanto em sua profissionalidade, pois têm a
oportunidade de se posicionarem.

Como autores de suas narrativas e não simplesmente como informantes. Do ponto de vista da formação,
o registro de memórias permite reflexões e novos olhares para os processos vividos, a realidade, o
mundo e a cultura, possibilitando que os professores compreendam como se apropriaram das
experiências formativas, dando sentido à sua trajetória e projetando suas expectativas. Na formação
continuada, em especial, o professor constrói a própria formação com base em um balanço de vida,
numa perspectiva de reflexividade crítica e de consciência atualizada. (CUNHA; OMETTO, 2012, p.50).

É com essas marcas que os professores entram na sala de Leitura, é com isso que o grupo de
formação tenta romper: recuperar a autoestima desses professores readaptados, invisibilizados e
objetificados pelas disposições legais, e pelos fios da hierarquia burocrática, para que eles consigam
narrar-se como sujeitos nesse processo de mediação, compreendendo e se apropriando de
discussões sobre concepções de linguagem e de leitura, e resistindo, da forma possível, a seu

NARRATIVAS
644

apagamento. “Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las... Que tristes os
caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas!” (QUINTANA apud Kramer, 2000, p.27).

REFERÊNCIAS

CUNHA, R. C . O . B; OMETTO, C . B . C. N. A leitura como experiência de formação nos memoriais de professores.


Calidoscópio, vol. 10, n. 1, p. 49-57, jan/abr 2012.
GERALDI, J. Wanderley. O professor como mediador no ensino da leitura . Disponível em: <
http://portos.in2web.com.br/passagens-blogdogeraldi/joao-wanderley-geraldi?limitstart=225> Acesso em: 18 out.
2016.
KRAMER, Sônia. Leitura e escrita como experiência: seu papel na formação de sujeitos sociais. Presença
pedagógica. Belo Horizonte, v. 6, n. 31, p. 17-27, jan./fev. 2000.
MAGNANI, M. R. Mortatti. Leitura, literatura e escola: sobre a formação do gosto. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: Editora 34,
2008.
SÃO PAULO. Resolução SE - 15, de 18-2-2009. Dispõe sobre a criação e organização de Salas de Leitura nas escolas
da rede estadual de ensino. Diário Oficial Estado de São Paulo, v. 118, n.34, p.39, 19 fev. 2009. Seção1.
SÃO PAULO. Resolução SE - 47, de 20-7-2009. Dispõe sobre a atribuição, em caráter excepcional, das Salas ou
Ambientes de Leitura, nos casos que especifica. Diário Oficial Estado de São Paulo, v. 119, n.34, p.17, 21 jul. 2009. Seção1.
SÃO PAULO. Resolução SE 16, de 5-2-2010. Dispõe sobre a atribuição de aulas das Salas ou Ambientes de Leitura e dá
providências correlatas. Diário Oficial Estado de São Paulo, v. 120, n.25, 6 fev. 2010. Seção1.
SÃO PAULO. Resolução SE 70, de 21-10-2011. Dispõe sobre a instalação de Salas e Ambientes de Leitura nas escolas
da rede pública estadual. Diário Oficial Estado de São Paulo, v. 121, n.201, p.16, 22 out. 2011. Seção1.
SÃO PAULO. Resolução SE 70, de 19-12-2016. Altera a Resolução SE 70, de 21-10-2011, que dispõe sobre a instalação de
Salas e Ambientes de Leitura nas escolas da rede pública estadual. Diário Oficial Estado de São Paulo, v. 126, n.237,
p.26, 20 dez. 2016. Seção1.

NARRATIVAS
RESUMO
645

Este artigo se propõe a compreender como é

MOANA, A NÃO-PRINCESA: possível identificar uma nova identidade cultural


para a princesa da Disney, por meio do filme Moana:
um mar de aventuras. O estudo parte da concepção
a nova identidade feminina na disney de linguagem do Círculo de Bakhtin e adentra aos
identitários, mais especificamente, os pressupostos
discutidos por Hall. A análise será construída pela
discussão das falas dos personagens e de marcas
extralinguísticas – entonação, imagem, gestos, etc.
–, por meio das quais se pode encontrar, também,
marcas que constroem uma determinada identidade
BARROS, Maria Amália Rocha Sátiro de48 para a personagem Moana.
FARIA, Marilia Varella Bezerra de49
Palavras-Chave: Linguagem. Princesa da Disney.
Identidade Cultural. Círculo de Bakhtin

1. INTRODUÇÃO

Q
uando paramos para pensar em personagens femininas da Disney, muitas vezes vem às nossas
memórias as tradicionais princesas – Branca de Neve, Cinderela, Aurora, Bela, Rapunzel, Ariel,
Jasmine. É bom relembrar que todas essas princesas são do século passado, literalmente. Com
a virada do século, a Disney passa a colocar em evidência, nos filmes infantis, princesas que
correspondessem com às vivências do mundo atual, deixando de lado aquelas mesmas histórias
tradicionais, de uma princesa em perigo precisando de um príncipe para salvá-la. A indústria
cinematográfica contemporânea partiu para a produção de princesas capazes de buscar seus sonhos
sozinhas, sem a necessidade de um príncipe para decidir por sua vida.
Dessa forma, vieram as princesas do século XXI, repletas de atitude e coragem. Primeiro
temos Tiana, do filme A princesa e o sapo, de 2009, a primeira princesa negra da Disney e que luta
pelo objetivo de abrir um restaurante. Depois veio a corajosa Merida, do filme Valente, de 2012, o qual
conta a história de uma jovem princesa que se recusa a casar e desafia as tradições de seu reino
sobre casamento. Temos também Frozen – uma aventura congelante, de 2014, filme que conta a
narrativa de duas irmãs: a destemida princesa Anna, que sai em uma aventura pelo reino para
conseguir encontrar sua irmã, a rainha Elsa, que é a única capaz de acabar com a magia responsável
pelo congelamento do seu reino.
Por último, temos Moana, do filme Moana: um mar de aventuras50, de 2017, filme que narra a
história da filha do chefe de uma ilha que sai em uma aventura pelo oceano para devolver o coração
de Te Fiti. E é com base nesta personagem que buscaremos compreender como está ocorrendo essa
transformação de identidade das princesas da Disney, pondo em questão a relação de Moana com as

48 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem/Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista CAPES. E-mail:
mariamalia01@gmail.com
49 Doutora em Linguística Aplicada. Prof. Associada do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem/Universidade Fed. do Rio Grande

do Norte. E-mail: mariliavbf@yahoo.com.br


50
Na seção 4 (uma história sem era uma vez) deste artigo é apresentada a sinopse do filme de forma mais detalhada.

NARRATIVAS
646

vivências atuais de nossa sociedade. Para isso, iremos analisar as falas das personagens, dando
atenção não apenas para o textual, mas também para a entonação, as expressões, os gestos,
considerado que, nos enunciados produzidos no mundo da cultura, e isso pode ser também as
imagens, há marcas axiológicas que se estreitam com o mundo da vida.
Nosso artigo encontra-se organizado da seguinte forma: inicialmente, apresentamos de
maneira breve, a concepção de enunciado, a partir dos pressupostos do Círculo de Bakhtin, além da
noção de identidade (Hall, 2015). Em seguida, expomos os procedimentos metodológicos usados neste
estudo, bem como a sinopse do filme em questão. Na seção seguinte, velejamos nos enunciados do
filme Moana, na construção de uma análise de possíveis identidades. Por fim, na seção A moral da
história tecemos nossas considerações finais.

2. ENUNCIADO E LINGUAGEM

Pretendemos, nesta seção, nos debruçar em uma concepção amplamente discutida nos
centros acadêmicos, a noção de enunciado. Seguiremos os pressupostos do Círculo de Bakhtin, que
desenvolveram grandes contribuições para a área da linguagem, levando os pesquisadores a pensar
fora da redoma de estudar apenas a língua como estrutura e, assim, mostrando a eles que é
importante se aprofundar na língua e no seu espaço extralinguístico. Dessa forma, será possível
encontrar contribuições para esse conceito em diversas obras, tanto de Bakhtin quanto de outros
membros do Círculo, como Volóchinov e Medviédev.
Esses estudos propõem ao pesquisador novos caminhos, com o propósito de ir além da
palavra dicionarizada, fazendo-o entender que a palavra não é neutra, ou seja, ela é marcada de
posicionamentos e valoração. O sujeito produtor de enunciados está situado em ambientes no seu
cotidiano, a linguagem se manifesta na vida, por isso nas teorias bakhtinianas o enunciado é nomeado
enunciado concreto. Partindo desse pressuposto, será necessário ao pesquisador o entendimento do
conceito de sujeito, pois vai ser este o moldador do discurso proclamado. Isto é, todo sujeito que
constrói um discurso, seja verbal, seja não-verbal, vai mostrar sua identidade internalizada no
discurso. Essa identidade vai ser construída por vários aspectos como: vivências, espaço, tempo,
situacionalidade, etc. e estará sempre passível a mudanças.
Assim, partimos da compreensão de que o sujeito é o arquiteto dos seus dizeres e de que a
linguagem apresenta-se mais ampla do que apenas a estrutura quando acrescenta ao enunciado a
noção de valor e ideologia, dando espaço ao pesquisador para recuperar o posicionamento do sujeito.
Conforme Bakhtin (2011, p. 289), o enunciado é “[...] um elo na cadeia da comunicação discursiva”.
Além disso, partimos da noção de que o enunciado é marcado por relações dialógicas, as quais vão
dar suporte para criação de enunciados repletos de traços axiológicos. Segundo Volóchinov (2017, p.
200),
De fato, o ato discursivo, ou mais precisamente o seu produto – o enunciado – de modo algum
pode ser reconhecido como um fenômeno individual no sentido exato dessa palavra, e tampouco pode

NARRATIVAS
647

ser explicado a partir das condições psicoindividuais e psíquicas ou psicofisiológicas do indivíduo


falante. O enunciado é de natureza social.
Reafirmando o já dito por Volóchinov, podemos entender que as práticas sociais vão criar,
reinventar ou apagar os discursos presentes no nosso cotidiano. Vai ser a interação a responsável
pela gênese dos enunciados, isto é, quando interagimos nossos discursos vão refletir e refratar
discursos anteriores, mas com isso irá gerar novos enunciados concretos, os quais são fundamentais
para entender as marcas axiológicas que circulam no meio da sociedade.

3. PROCESSOS IDENTITÁRIOS: as princesas em cena

A sociedade atual discute cada vez mais a temática da construção identitária. É comum
escutar termos como “crise de identidade” ou “identidade social”. Esse assunto vem entrando em
discussões não só acadêmicas, mas também em conversas informais e, muitas vezes, nem nos damos
conta que criamos identidades para certas coisas no nosso mundo material. Um exemplo disso são as
identidades das princesas51, uma vez que foi cristalizado um certo padrão para esses personagens.
Contudo, assim como nossa sociedade, os filmes de princesas, do século XXI, trouxeram um novo
perfil identitário para essas personagens.
Consideramos, assim, o fato de essas identidades estarem sempre em movimento, nunca
acabadas, promovendo a contínua construção dos sujeitos. Dessa forma, nos filmes de princesas,
existe uma mudança constante; isto é, conforme a sociedade vai mudando, a mídia também se adapta
para acompanhar os movimentos sociais. De acordo com Hall (2015, p. 24), “[...] a identidade é
realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato [...].
Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada’”.
Assim, é necessário compreender essa constante construção da identidade, seja dos sujeitos,
seja das princesas. Sempre que houver movimento em um haverá movimento no outro, pois a mídia ou
a produção fílmica, quase sempre, está preocupada em acompanhar as transformações sociais.
Portanto, no decorrer do artigo, será possível notar as movimentações, problematizando as
possibilidades de perceber isso por meio das falas dos personagens e das marcas extralinguísticas.

4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Em janeiro de 2017, chegou aos cinemas o filme Moana: um mar de aventuras , o qual
despertou interesse de ser analisado por ser repleto de marcas ideológicas que reafirmam o período
social no qual estamos inseridos; tempos em que o feminismo nos mostra todos os dias o poder e
força que as mulheres estão ganhando na sociedade. E o fato de as lutas estarem sempre em
processo, a incansável discussão sobre a falta de representatividade de diversas raças na mídia ou
no cinema internacional é latente. Considerando todas essas afirmações o filme pareceu um excelente

51
Nesse artigo estamos focando apenas nos personagens da Disney.

NARRATIVAS
648

material para entrar em discussão. Além disso, optamos em trabalhar com a película mais recente da
Disney, porque ela estaria mais conectada com as discussões atuais da sociedade.
Por sua vez, Moana chega para romper com muitos dogmas do século passado: o da
necessidade de homens que salvassem suas donzelas, de um padrão de beleza para as princesas
(sendo representadas como brancas, cabelos lisos e magras) e da questão de habilidades que
teoricamente só homens teriam. Essa desconstrução é feita na personagem, que não é alguém euro-
americana, mas de uma ilha na Polinésia, não é branca, mas tem a pele negra. Além disso, Moana ainda
se aventura navegar pelo mar, o que a faz ser representada não só como capitã de um barco, mas da
própria vida.
Então, o primeiro critério de escolha foi de o filme ser da Disney; depois, o de a personagem
ser feminina e, por fim, o da data de lançamento. Dessa maneira, a análise vai observar os enunciados
do filme, que foram construídos da versão dublada, pelo fato de estar inserido no nosso ambiente
brasileiro, pois podiam haver divergências na versão legendada (da fala matriz em inglês e a legenda),
e pelo fato da versão dublada ter alguns termos que são gírias utilizadas no Brasil.
Salientamos que este artigo baseia-se no paradigma qualitativo de natureza interpretativista.
Contar com a interpretação do sujeito-pesquisador significa apoiar a noção de que ele está inserido
em certo cronotopo, o que vai influenciar o formato da pesquisa. Isso a torna inédita e dependente da
interpretação e seleção do pesquisador. Para Oliveira (2012, p. 268),

[...] a dimensão axiológica [...] remete para relações com a ética, com os valores, faz-se presente na
investigação desde a escolha do problema de pesquisa, até o tratamento que é atribuído aos dados, no
processo de análise; a dimensão ontológica abriga [...] a natureza múltipla, construída socialmente e
discursivamente do objeto a ser conhecido; já com relação a questão epistemológica, pressupõe-se que
a relação entre pesquisador e objeto de pesquisa trata-se de uma relação intersujeitos; e, por último, a
dimensão propriamente metodológica.

Todas essas relações citadas pela autora permeiam a função do pesquisador, que está
presente desde a escolha dos dados até a interpretação deles. É importante salientar que todo esse
processo deve ser primordialmente tratado de maneira ética, mostrando a importância do seu objeto
de estudo para sociedade e por que é relevante nos inteirarmos de sua existência. Ademais, deixar
claro que o corpus terá sempre sua historicidade, sendo construída no decorrer do tempo de sua
existência.

5. UMA HISTÓRIA SEM “ERA UMA VEZ”

O filme conta a história de Moana, filha do chefe de uma ilha na Polinésia, que sai em uma
aventura para recuperar o coração de TeFiti – deusa que criou a vida e depois se transformou em ilha
– que foi roubado há um milênio pelo deus Maui, o qual desejava presentear os humanos com o poder
de TeFiti de criar a vida. Mas, ao deixar a ilha, Maui é surpreendido pelo monstro de lava Te Ka, que faz
com que o poderoso anzol de Maui e o coração fossem arremessados no mar e ficassem perdidos.

NARRATIVAS
649

Anos depois, com TeFiti sem seu coração, as ilhas começaram a morrer lentamente. Assim, Moana é
escolhida pelo oceano para devolver o coração de TeFiti, trazido até ela pelo mar. Mas Moana
precisava encontrar Maui, para que juntos eles pudessem devolve-lo.
Contra a vontade do pai, Moana sai para sua aventura e enfrenta muitos problemas em seu
caminho, desde ter que lidar com o ego inflamado do deus Maui, até mesmo ter que enfrentar
coquinhos malvados. Mas em sua trajetória durante o filme a personagem cresce muito – aprende a
velejar, a se localizar pela posição das constelações, a entender o mar e até mesmo a controlar um
pouco sua forte personalidade – e consegue chegar a TeFiti. Enfrenta o mostro Te Ka (que acaba
sendo a própria deusa TeFiti) e consegue restaurar o coração de TeFiti, assim, devolvendo a vida e
esperança as ilhas da Polinésia. Depois de toda essa aventura, Moana volta para sua casa, toma seu
lugar como chefe da aldeia e lidera grandes expedições pelo mar polinésio.

6. ANÁLISE

Partimos agora para a análise dos enunciados concretos, os quais são formados por trechos
de falas dos personagens e descrições de alguns aspectos extralinguísticos.
Primeiro, vamos explorar o lugar de fala da personagem Moana, mostrando alguns enunciados
nos quais é exaltado o fato de ela ser a futura líder da sua ilha e, por isso, ela não pode sair desse
lugar, de maneira nenhuma. É importante salientar que, na história, nenhum morador da ilha vai para
além dos recifes. Isto é, para o povo da ilha e para a família de Moana, o sonho dela de viajar pelo mar
parece algo fora de cogitação.

Figura 1. Falas do filme.

[Pai de Moana] Você será a grande chefe do nosso povo.


[Mãe de Moana] E fará maravilhas minha pequena.
[Pai de Moana] Ô, e como fará, mas primeiro, precisa aprender
onde é seu lugar.
Fonte: autoria própria.

Nas falas da Figura 1, Moana, ainda criança, se sente atraída a ver pelo mar, o que a permite
enxergar o coração de Te Fiti pela primeira vez. Mas seus pais não permitem que ela se aproxime e
tiram a garota de perto do mar dizendo que é arriscado ir para a água, o que deixa entender que ela
tem a obrigação de ficar na ilha. Podemos perceber, quando o pai fala “você precisa aprender onde é
seu lugar”, que Moana não pode lutar contra algo para o qual ela já nasceu destinada. Percebemos,
então, uma identidade muito forte de pertencimento. Ou seja, determinado sujeito nasce em uma
posição e, de certa forma, tudo caminha para a continuação da sua permanência nessa posição.
É possível identificar os traços dessa identidade de pertencer a ilha e ser destinada a
continuar nela também na fala: “será a grande chefe do nosso povo”, a qual deixa subentendido todas

NARRATIVAS
650

as responsabilidades de Moana, ao crescer, ter de assumir uma posição dada por nascimento.
Seguindo para o próximo fragmento, também encontramos essa ideia de pertencimento.

Figura 2. Fala do pai de Moana.

F
[Pai de Moana] Queria te mostrar isso desde o momento
em que você abriu os olhos. Este é um lugar sagrado, o lugar dos
chefes, vai chegar a hora em que vai colocar a sua pedra no topo,
aqui, bem nessa montanha. Como eu fiz, como meu pai fez, e o
pai dele, e todo chefe que já existiu. E nesse dia, quando você
fizer isso, toda a nossa ilha será elevada! Você é o futuro do
nosso povo, Moana, e ele não está lá [depois dos recifes], está
bem aqui. É o momento de ser o que eles precisam.

Fonte: autoria própria.

Nessa cena, o pai de Moana a leva para o topo de uma montanha e mostra um monumento
feito de pedras, onde cada chefe da ilha deixou uma pedra, representando seu período de liderança.
Podemos considerar a pedra uma marca simbólica, isto é, a pedra, nesse contexto do filme, não
representa apenas um objeto inanimado, uma vez que ganha significado quando é relacionada com
cada líder. Cada pedra é diferente, assim como cada líder é, e, no fim do filme, isso fica muito claro,
pois a “pedra” escolhida por Moana é uma concha do mar, que representa todas as aventuras, os
perigos e até mesmo a sua ligação com o oceano e curiosamente a concha é considerada símbolo do
feminino, pois mitologicamente foi de uma concha que Afrodite nasceu.
Ademais, quando o pai fala “você é o futuro do nosso povo, Moana, e ele não está lá, está bem
aqui” atentamos novamente para o fato da personagem pertencer a determinado local, e de acordo
com as ideologias do pai, ela deve acreditar que um bom líder deve continuar na ilha e não sair
viajando pelo mar. Dessa forma, essa identidade de pertencimento fica subentendida nos enunciados e
nos mostra essa ideia de um sujeito, algumas vezes, não conseguir se deslocar de um grupo para o
outro. No caso da Moana, ela não tem a permissão de velejar pelo mar e explorar novos locais; ela fica
pressa a sua posição de futura líder, de moradora da ilha e de filha do chefe.
No próximo fragmento a ser analisando, a cena se passa logo depois do encontro de Moana e
Maui, eles estão discutindo e Moana tenta convencer o herói que ela deve conduzir o barco, pois lhe foi
dada a responsabilidade de encontrar Maui e de devolver o coração de Te Fiti. Então eles têm o
seguinte diálogo:

NARRATIVAS
651

Figura 3. Diálogo entre Moana e Maui.

[Moana] Eu quero que me ensine! Minha função é levar o


Maui através do grande oceano. Eu devia navegar!
[Maui] Tem que ser aventureiro, princesa. Não se trata só de
navegar, você tem que ver para onde vai com a sua mente, saber
onde está, mas também por onde passou.
[Moana] Olha, um: eu não sou princesa, eu sou a filha do chefe.
[Maui] Mesma coisa!
[Moana] Nãaaao...
[Maui] Você tá de vestido, tem um bichinho de estimação... é uma
princesa. Não é uma aventureira, nunca será aventureira, e nunca
vai conseguir!
Fonte: autoria própria.

Nas falas é possível recuperar algumas marcas de discursos cristalizados nos filmes de
princesas da Disney. Quando Maui diz “você está de vestido, tem um bichinho de estimação... é uma
princesa!” ele traz diversas referências, pois busca relembrar ao espectador que de fato,
praticamente todas as princesas da Disney – as do século passado, pelo menos – vão ter um perfil
muito parecido, ou até mesmo igual. Se formos recuperar as princesas mais antigas em algum
momento elas estavam de vestidos luxuosos e tinham algum animalzinho de estimação, ou então
representações de objetos personificados (A Bela e a Fera) ou de anões como ajudantes (Branca de
Neve e os Sete Anões). Todos os filmes antigos da Disney foram contribuindo para a construção de
uma determinada identidade de princesa e, nesse trecho, a própria empresa cinematográfica faz uma
crítica a esse fato.
Nesse caso, o vestido e o bichinho de estimação funcionam com símbolos identitários, e que
no filme aparecem como determinantes para afirmar o fato de Moana ser uma princesa ou não. Além
disso, quando Maui faz a leitura desses símbolos ele supõem que por ser uma princesa, ela não tem a
capacidade de ser aventureira e, assim, não poderá guiá-lo durante a jornada deles no oceano. Porém,
Moana rebate, com a voz já raivosa, dizendo “eu não sou princesa, eu sou a filha do chefe”, podemos
compreender que ela não acha bom ser chamada de princesa, é como se fosse um título
desqualificador, já ser a filha do chefe a classifica como mais destemida ou aventureira. Dessa
maneira, podemos começar a observar em Moana uma identidade de não-princesa, pois ela se recusa
a ser comparada com princesas, já que, para ela, esse título carrega um perfil já cristalizado e de
certa forma negativo.
É importante realçar que Moana imageticamente também foge do perfil de princesa, pois ela
não tem cabelos lisos, não é extremamente magra, não anda calçada, não tem formas afiladas no

NARRATIVAS
652

rosto e está sempre muito bronzeada. Por ser a primeira da linha princesas 52 que é da polinésia os
produtores tentaram deixar Moana o máximo possível fiel as características das mulheres dessa
área. Com o passar do tempo diversificar as formas físicas das personagens da Disney está se
tornando uma prática comum, principalmente por causa de todas as discussões a respeito de
identificação ou de um discurso de época de dar visibilidade às diferentes identidades. Isto é, muitas
crianças não chegavam nem perto de se parecerem com alguma princesa, e isso gerava um certo
distanciamento de identidade, pois parecer com uma princesa era um objetivo praticamente
inalcançável.

Figura 4. Imagem da personagem Moana.

Fonte: https://vignette4.wikia.nocookie.net/parody/images/d/d2/Moana_disney_character.jpg/revision/latest/scale-to-width-
down/260?cb=20170318224338. Acesso em 20 de set. de 2017.

Por último, veremos o enunciado da cena onde Moana já tem aprendido a navegar e consegue
mostrar para Maui sua capacidade, que ao contrário da opinião do herói, era de conseguir atravessar
todo o oceano para chegar em Te Fiti.

52
A Disney tem uma linha de princesas que são usadas para fins comercias (venda de bonecas, roupas, cadernos, etc) e Moana está dentro
dessa linha, mesmo no filme ela não aparecendo como princesa.

NARRATIVAS
653

Figura 5. Diálogo entre Moana e Maui.

[Moana] Quê?
[Maui] Eu já entendi. O velho oceano adorava quando eu
puxava ilhas, porque os seus ancestrais cruzavam os mares para
encontrá-las. Tantas novas terras, novas vilas... Era a água que
conectava tudo, e se eu fosse o oceano, acho que eu procuraria
uma garota, não princesa, para reiniciar isso.
[Moana] Essa literalmente foi a coisa mais legal que já falou
pra mim. Podia ter guardado isso para Te Fiti.
[Maui] Guardei. Moana de Motonui, admito que você,
oficialmente, fez o Maui cruzar o grande oceano.
Fonte: Autoria própria.

Nessa cena, inferimos o fato de Maui estar convencido da capacidade de Moana, quando diz
“[...] se eu fosse o oceano, acho que eu procuraria uma garota, não princesa, para reiniciar isso”, ele
deixa claro sua opinião depois de viver tantas aventuras com Moana, ele percebe que ela foi capaz de
fazer muita coisa para salvar sua ilha, e ressalta o fato dela não ser uma princesa, como se por ter
provado sua capacidade ele ficasse convencido desse fato. É interessante porque a própria Disney
critica uma imagem que foi produzida por ela e por narrativas tradicionais, de princesas como
sujeitos frágeis e doces, e de Moana no final ter conseguido provar ser uma não-princesa, construindo
para ela essa identidade.

7. MORAL DA HISTÓRIA

Moana foge muito da imagem que temos cristalizada de princesa e ela vem, no ano de 2017,
para romper com essa imagem. Isso reforça o momento histórico que vivenciamos, tempos de tentar
igualar classes – de raças, de gêneros, de condição social e de diversas outras classes. A identidade
de não-princesa mostra a possibilidade de meninas/mulheres lutarem para estar onde elas querem
estar e de ser quem elas querem ser, independentemente de existir uma identidade já estabelecida.
Portanto, concluímos que existe, sim, a construção de uma nova identidade feminina no filme
Moana, e que ela vem acompanhada de várias outras identidades, como a de pertencimento,
confrontada pelas ações de “despertencimento”, a qual encontramos nos primeiros trechos. Em
tempos híbridos, nessa nova temporalidade, na qual tempo e espaço se comprimem, fica cada vez
mais evidente a multiplicidade de identidades em um só sujeito. O filme “Moana: um mar de aventuras”
é muito rico para análise e, seguramente, estudos mais aprofundados indicarão diversas outras
possibilidades de construções identitárias.

NARRATIVAS
654

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 12. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.
OLIVEIRA, M. B. F. Um olhar bakhtiniano sobre a pesquisa nos estudos do discurso. Filologia e Linguística portuguesa.
São Paulo, v. 14, n. 2, p. 265-284, 2012.
VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
655
As problematizações que originaram esta pesquisa
que se encontra ainda em estágio inicial, partem

O PROFESSOR E A das inquietações suscitadas através da aplicação


da Sequência Didática “Drenagem das Águas” em
uma escola estadual de São Paulo para alunos do 6º

PESQUISA: narrativas em busca de


ano do Ensino fundamental. Nossa proposta é
integrar conhecimentos interdisciplinares dos
campos da Linguagem, Mediação e Filosofia na
análise da complexidade dos significados envolvidos
fundamentos para a prática docente no ensino de Geografia a partir do recorte de
aprendizagem de novas palavras e atribuição de
significados. Nos parece que a acepção da palavra
em sua função generalizante do pensamento pode
perder espaço no contexto do domínio do caráter
monolítico do conhecimento científico na escola, em
BATISTA, Angélica de Jesus53 que imperam as reproduções cristalizadas de
definições dos conceitos próprios de cada ciência.
De outro modo, nossa proposta é reafirmar a
importância da figura de professor-pesquisador
como forma de valorizar a articulação de um
“plano-teoria-ação” com a possibilidade de refletir

O
sobre a prática docente e ressignificar a sua
presente artigo é um desdobramento das discussões teóricas profissionalidade também como cientista.
do grupo de estudos e pesquisa intitulado “Geografia e
Palavras-Chave: Geografia. Lnguagem. Mediação.
Ciências Humanas na era da conectividade e da informação”, Filosofia. Professor-Pesquisador.
coordenado pela Prof.ª Dra. Maria Eliza Miranda cuja base empírica
tem sido trabalhada através do planejamento, discussão e aplicação
de sequências didáticas para o ensino de Geografia em escolas
públicas da rede estadual e municipal de São Paulo, em escolas
públicas de outros munícipios e escolas privadas desde 2009.
Professores de Geografia participantes são mobilizados a superarem a função de meros
executores de tarefas pré-determinadas na pesquisa, para assumir o papel de professores
pesquisadores, ou seja, autores no processo de concepção e aplicação da sequência didática e na
análise de resultados alcançados por seus alunos.
O arcabouço teórico-metodológico que orienta esse processo é tratado como interdisciplinar,
uma vez que a aplicação de uma teoria fechada em uma área específica do conhecimento, como é o
caso do ensino de Geografia, se torna insuficiente para compreender a realidade multifacetada tanto
da escola como da sala de aula.
Destarte, a alteridade inerente das relações entre os sujeitos envolvidos na pesquisa
educacional (entre pesquisadores, professores e alunos) e a distância entre a escola e a universidade
revelam algumas nuances existentes no modus operandi do processo de pesquisa, que tendem a ser
ressignificadas pelo estudo das fronteiras teóricas.
Um exemplo pode ser encontrado em Zeichner (1998) que aponta haver uma ruptura entre as
pesquisas educacionais e a escola, pois as análises buscam destacar somente as fragilidades das

53
Aluna de Pós-Graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo sob a
orientação da Prof.ª Dra. Maria Eliza Miranda. Professora da Educação Básica desde 2003. E-mail: angelicageografia@hotmail.

NARRATIVAS
656

escolas, a precarização na formação do professor e os resultados das avaliações externas e pouco se


comprometem a propor mudanças:

Frequentemente, o conhecimento gerado por meio da pesquisa educacional acadêmica, é apresentado


de uma forma que não leva os professores a nela se engajarem intelectualmente. A pesquisa
educacional tem sido, estranhamente muito anti-educativa. Seus resultados são simplesmente
apresentados como certos e definitivos, ou usados como justificativa para impor algum programa
prescritivo a ser seguido pelos professores. (ZEICHNER, 1998 p. 218, grifo nosso).

Por outro lado, a partir dos estudos realizados no grupo supracitado, empenharam-se
esforços em uma nova vertente de pesquisa54, que considera os sujeitos da Educação como sujeitos
produtores de discursos, os quais serão incorporados ao processo e ao texto da pesquisa. Inserido
nesse contexto, nosso trabalho faz parte de um movimento de alteridade no qual os professores
foram chamados a exprimir suas vozes através de propostas aos entraves do ensino de geografia,
sendo assim considerados sujeitos capazes de planejar, modificar, avaliar e refletir sobre a própria
prática, desde que apoiados por um viés teórico.
As atividades para a concepção da sequência didática dividem-se em: Estudos das teorias e
oficinas didáticas (1), Planejamento e arguição da proposta (2), Aplicação da sequência (3), Avaliação
metacognitiva dos impactos da aprendizagem mediada nos alunos (4). Ainda há três últimas etapas em
processo de execução: Análise qualitativa e quantitativa dos dados (5); Discussão dos resultados (6) e
divulgação pública dos resultados da pesquisa (7). O detalhamento dessas etapas será descrito
posteriormente neste texto.
Pretendemos trabalhar com a Sequência didática “Drenagem das águas”, aplicada no primeiro
semestre de 2016 na E.E Dom Bernardo O’ Higgins, diretoria Leste 2 de São Paulo, com 72 alunos do 6º
ano do ensino fundamental. É importante destacar que no planejamento e arguição desta sequência, o
professor deveria explicitar seus objetivos de ensino, e como a temática geográfica escolhida se
articularia aos pressupostos da linguagem, da mediação e da filosofia.
Como meta de aprendizagem, esperamos que os alunos fossem capazes de comunicar
respostas com o vocabulário dos conceitos e palavras-chaves próprios da ciência geográfica. A
organização das atividades a serem realizadas visou superar a lógica reprodutivista e reducionista do
ensino do pensamento científico pela possibilidade de apropriação do significado do vocabulário e da
consciência desse processo pelo aluno.
Diante disso, a prática de ensino intencional e planejada à luz das teorias, permitiu observar
de modo ainda elementar a existência de articulações entre pensamento e palavra construídas pelos
alunos, o que descortina outras possibilidades interpretativas para a questão da aprendizagem dos
conceitos na escola a serem discutidas.

54
Exemplos de trabalhos produzidos sob um viés dialógico podem ser encontrados em PRADO (2014) e em OLIVEIRA (2016), que,
respectivamente, consideraram a voz de professores e alunos para conhecer a realidade da escola, do estado do conhecimento e da profissão
docente, entre outros temas.

NARRATIVAS
657

A FIGURA DO PROFESSOR PESQUISADOR55

A escola que conhecemos hoje é uma “invenção” da modernidade, preocupada em estabelecer


o predomínio da Razão como característica universal do Homem. Sobre isso, Alain Touraine (1994),
nos diz que os projetos modernos de liberação e organização da sociedade basearam-se na Razão, a
qual
[...] anima a ciência e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida social às
necessidades individuais ou coletivas; é ela, finalmente, que substitui a arbitrariedade e à violência pelo
Estado de direito e pelo mercado” (TOURAINE, 1994, p.9)

Por conseguinte, uma vertente da gênese da modernidade foi criar um projeto de instrução de
toda a sociedade, com a criação dos sistemas públicos de ensino, que na Europa se deram ainda no
século XVIII. (CUNHA, 1974). Como objetivo, a escola trataria de preparar os indivíduos para a busca da
felicidade em nível pessoal, para o exercício da cidadania política e, sobretudo, para a adaptação às
formas renovadas de trabalho coletivo que surgiam.
Passados três séculos desde o estabelecimento do paradigma da racionalidade, a
modernidade está em contestação, principalmente a partir da emergência de uma nova ordem
filosófica e artística chamada “pós-modernidade”, que também possui implicações sobre a moral e a
política. Não nos cabe aqui adentrar profundamente sobre o debate que opõe modernidade e pós-
modernidade, mas vale levantar duas visões do problema que nos ajudam a pensar sobre o papel da
Educação e da escola na contemporaneidade.
A primeira visão está em um trecho da obra do sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos, que aponta a pós-modernidade como uma ruptura da racionalidade essencial da modernidade,
focando na ciência e nas repercussões na vida do Homem. Contudo, ressalva que vivemos um período
transitório, que caminha para uma “superação” da razão como a conhecemos. Ilustra essa transição
o trecho a seguir, em que o autor discute os marcos e as finalidades do ato de conhecer próprio da
ciência:

A ciência pós-moderna, ao senso comunicar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia,
mas entende que, tal como o conhecimento deve se traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento
tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida56. É esta que assinala os marcos da prudência à
nossa aventura científica. A prudência é a insegurança assumida e controlada. Tal como Descartes, no
limiar da ciência moderna, exerceu a dúvida em vez de a sofrer, nós, no limiar da ciência pós-moderna,
devemos exercer a insegurança em vez de a sofrer. (SANTOS, 1998 p.70)

55
Em Questões de Estilística no Ensino da Língua, Bakhtin demonstra a articulação entre a profissão docente e a pesquisa e as contribuições
dessa relação para a aprendizagem do aluno.
56
Mais especificamente para o campo do ensino, Morin evidencia o mal estar da modernidade, apontando que “ensinar a viver necessita não só
dos conhecimentos, mas também da transformação, em seu próprio ser mental, do conhecimento adquirido em sapiência” (MORIN, 2003, p.47).
Torna-se claro que para esse autor que o conhecimento disciplinar e racionalizado é insuficiente para o ensino da condição humana, a qual
remete a questões de sapiência, ou seja, de valores e atitudes que auxiliam o homem na compreensão de seu mundo.

NARRATIVAS
658

Podemos perceber que a mudança anunciada por Boaventura de Sousa Santos representa a
quebra da hegemonia da razão como meio e fim da ciência. Agora, a racionalidade pode transcender o
campo do cognitivo e contribuir com a humanidade no reconhecimento de sua condição incerta,
provisória e descontínua57.
Já em Habermas, temos outro prisma, com mais ressalvas sobre o significado de uma nova
ordem social pós-moderna. Diz que

as expressões formadas com ‘pós’ não esgotam o espectro das atitudes em relação a um passado do
qual se quer distanciar. Apenas o pressuposto é sempre o mesmo: que sentimos uma descontinuidade, a
distância de uma forma de vida ou uma forma de consciência à qual antes estávamos familiarizados de
maneira ingênua ou irrefletida (HABERMAS, 2015 p. 40)

Por esse aspecto, opor “modernidade” e “pós-modernidade” pode perder o sentido de debate
sobre a ordem social se não enxergamos a descontinuidade transformadora que é inerente à história
humana, superando a sucessão como forma básica de pensar. Anthony Giddens complementa essa
ideia quando nos diz que as descontinuidades da modernidade são diversas, e que uma delas diz
respeito a “natureza intrínseca das instituições modernas” (GIDDENS,1991) principalmente na mudança
de significados das instituições através das formas sociais.
O autor, em seu livro As consequências da modernidade, considera como exemplo a cidade,
mas nós trazemos essa descontinuidade ao campo da escola. Sabemos que a escola sofreu variações
e transformações desde sua concepção, em razão dos espaços e das finalidades que a ocuparam
desde então. Acreditamos que um primeiro sinal das novas consciências do papel da escola na
sociedade pode ser visto nas críticas atuais feitas a ela, para depois pensarmos em que ponto essa
descontinuidade deve levar a uma reforma do escolar na modernidade atual.
A respeito da escola moderna, as contestações que destacamos acima são representadas por
acusações dos mais variados tipos, dentre as quais selecionamos duas, relacionadas entre si: a ideia
de que a escola está desatualizada e a ideia de que a escola está, cada vez mais, distante da realidade
do aluno. Os autores da obra Em defesa da escola destacam que, por uma suposta artificialidade de
objetivos, temas e consequências práticas (principalmente em relação às demandas de inclusão dos
jovens no mercado de trabalho) da escola, ela é considerada “incapaz de proporcionar aos jovens uma
ampla educação geral que os prepare para a vida como um adulto. O foco no currículo escolar não
permite, de modo algum, uma conexão real com o mundo, tal como este é experimentado pelos alunos”
(MASSCHELEIN e SIMONS, 2014, p.13).
Aqui adiantamos, como premissa de nosso trabalho, a recusa à ideia de desatualização
alienante da escola, porque ela ainda é, em nossa visão, a mais importante possibilidade de
introdução de toda a população no conhecimento científico que proporciona a construção de um
pensamento crítico e inteligente sobre o mundo, em todos os níveis da vida pessoal e social. Isso,
porém, não afasta a necessidade ou a potencialidade de reforma da escola, até mesmo como uma

57
Ver em Wolff em Nossa Humanidade: de Aristóteles às neurociências e Morin em Os setes saberes necessários para a educação do futuro.

NARRATIVAS
659

descontinuidade de sua existência real, ou caímos na forma ingênua de adaptação evidenciada por
Habermas em citação supracitada.
No cerne da urgente transformação da escola, atentamos para uma questão de máxima
importância: quem fará a reforma e as pesquisas que levarão a reforma? Muitos atores educacionais
e políticos desejam participar dessas mudanças, de modo voluntário ou imposto. São eles
pesquisadores acadêmicos, gestores públicos dos mais variados níveis administrativos, organizações
políticas, movimentos sociais e sindicais, diretores de escola, professores, pais e alunos.
Para nós, uma das possibilidades mais objetivas de reforma do pensamento na Educação é
conceber a figura de um professor pesquisador. Todavia, há autores do campo da pesquisa
educacional que veem essa alternativa com grandes ressalvas. Charlot (2009), por exemplo, aponta
que quando o professor reflete sobre sua prática, em geral usa de categorias do seu senso comum
para interpretá-la.
Por si mesma essa constatação reforça a necessidade do professor envolver-se na pesquisa
de sua prática, pois este se apropriaria de chaves de interpretação próprias do pensamento científico
nesta relação. Arbitrariamente, porém, Charlot ressalta a impossibilidade da existência simultânea
das figuras de professor e pesquisador, fato este que queremos contrapor.
Ludke (2009) examina a questão do professor pesquisador à luz de Beillerot (1991) e
diferencia o estar em pesquisa, fazer pesquisa e ser pesquisador. Reconhece, em sua pesquisa, que a
maioria dos professores se encontra no primeiro estágio, “estando” inseridos em projetos de
diversas escalas, nem sempre orientados pelo rito acadêmico formal. Isso confere avanços e
retrocessos a este modelo de pesquisa, mas a autora não deixa de dar importância a participação
autônoma do professor nas pesquisas mais avançadas, produzidas inclusive no seio da Academia.
Nesta perspectiva, se faz necessário superar a visão prescritiva da pesquisa e da reforma
educacional, que atinge o professor e o sujeita ao trabalho com uma ciência irreflexiva, pautada em
certezas pré-definidas e distantes da realidade complexa e mutante do Homem. Por outro lado, o
protagonismo na pesquisa desponta como a superação da posição de “objeto” em pesquisa para
“sujeito” de sua prática, discurso e pesquisa, por onde também pode encorajar e fortalecer a
formação das futuras gerações.
O leitor deste projeto pôde perceber que optamos por justificar a pesquisa pela premissa da
reforma da Educação e da pesquisa em Educação, e não pela igualmente urgente construção de
alternativas ao ensino tradicional de Geografia. Fizemos isso para contextualizar o movimento
descontínuo que faz emergir crises na escola (nas quais a disciplina de Geografia também se insere),
pensando também em como compreender e superar seu tom alarmante e aniquilador. Agora, nos
aprofundaremos na questão cognitiva e na tentativa de ensino de Geografia pela palavra.

NARRATIVAS
660

FUNDAMENTOS TEÓRICOS: Linguagem, Mediação e Filosofia

A opção em defender o ensino de Geografia pela palavra pode parecer, para alguns, algo
redundante e, para outros, audacioso. Mas nos pautamos principalmente na Filosofia da Linguagem
expressa nas obras do Círculo de Bakhtin em que “A palavra está presente em todo ato de
compreensão e em todo ato de interpretação” 58 e de Vigotski de que a palavra por si só é uma
generalização59.
Esses princípios refletem em três questões que permeiam este trabalho, a saber: 1) o modo
do professor de ensinar ciência; 2) o modo do aluno de se apropriar da ciência e de seus conceitos e
3) a relação entre professor e a pesquisa sobre sua prática. Destrinchamos melhor cada uma dessas
dimensões.
Iniciamos pelos dois primeiros aspectos citados acima, porque se relacionam intrinsicamente.
Parece-nos que o ensino da ciência atualmente desconsidera a acepção da palavra em sua função
cognitiva: sintetizar o pensamento sobre um dado ou objeto posto na realidade e exprimi-lo mediante
o uso inteligível e articulado da linguagem. Este fato é evidenciado quando os conteúdos são expressos
em definições prontas e acabadas, sem que haja possibilidade do aluno se inteirar do tema tratado de
modo autônomo, ou seja, também a partir de suas próprias referências para organizar um
vocabulário sobre o que estuda.
É preciso compreender que aprender é apropriar-se da palavra. Esta forte afirmação
encontra respaldo no pensamento vigotskiano, que defende a finalidade da escola de ensinar conceitos
científicos, que o autor60 afirma ser tanto ensinar ao aluno as palavras que não fazem parte de sua
vivência de vida pré-escolar, quanto ressignificar o saber cotidiano e espontâneo pela referência de
um conhecimento orientado e consciente61.
Na fase de planejamento do trabalho do professor, a proposta de uma perspectiva do ensino
pela palavra requer identificar quais vocabulários serão enfatizados durante uma sequência a ser
trabalhada em sala de aula, sendo que a primeira consequência disto é o estabelecimento de um
critério de seleção das palavras prioritariamente qualitativo, pautado pela expectativa de
desenvolvimento do aluno.
Na verdade, o que se procura ensinar ao aluno é o conceito científico expresso na palavra (em
nosso caso, o conceito de bacia hidrográfica), sendo que um método possível é a associação deste

58
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem - Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, uma das obras mais
conhecidas do Círculo de Bakhtin e polêmica no que tange à sua autoria, tratam da palavra enquanto signo ideológico e como expressão da
consciência. Nos aprofundaremos melhor nesses aspectos em outras discussões.
59
Vigotski, em seu livro A construção do pensamento e da linguagem, aponta para um inicial desenvolvimento interdependente do pensamento
e da fala na criança. O processo caminha para o cruzamento desses desenvolvimentos na unidade da palavra, uma vez que as formas e
conteúdos generalizantes da palavra permitem exprimir o pensamento (de modo organizado pela linguagem), e este se torna, ao mesmo passo,
internamente verbalizado. Pelo movimento da generalização, a apropriação do significado da palavra pelo sujeito organiza o pensamento e
orienta a prática da linguagem.
60
VIGOTSKI, Lev Semenovich; VIGOTSKI, L. S.; BEZERRA, P. Estudo do desenvolvimento dos conceitos científicos na infância. LS Vigotski. A
construção do pensamento e da linguagem, 2000 p. 263.
61
Id.,269.

NARRATIVAS
661

conceito com palavras-chave que auxiliam a sedimentar, no aluno, a construção de um significado


científico desta palavra, ou seja, quais objetos do estudo da ciência aquele determinado conceito
exprime. É importante ressaltar que o método da escolha de conceitos e palavras-chave é fruto das
discussões do grupo de pesquisa que estivemos envolvidos. A escolha dessas palavras-chave orienta
as atividades que serão propostas aos alunos, no sentido de decidir quais significados serão
ensinados em cada uma das atividades. Consideraremos melhor essa questão da atividade mais a
frente, quando tratarmos da temática da mediação em nosso trabalho.
Aqui nos apoiamos na ideia que Vigotski denomina de desenvolvimento da significação da
palavra, apontada por ele como a mais relevante descoberta de seu trabalho de pesquisa em A
construção do pensamento e da linguagem. Vigotski admite que o significado da palavra é dinâmico e
inconstante, e se aproxima da premissa fundamental da Filosofia da Linguagem de Mikhail Bakhtin, que
consiste no dialogismo como movimento interacional e relativo da formação dos significados (e
sentidos) da palavra62.
Observamos que o reflexo principal deste ponto fulcral da teoria vigotskiana está localizado
no constante aprimoramento do significado da palavra para o sujeito em desenvolvimento, uma vez
que “a associação que vincula a palavra ao significado pode ser reforçada ou debilitada, pode ser
enriquecida por uma série de vínculos com outros objetos da mesma espécie ou, ao contrário, pode
restringir esse círculo” (VIGOTSKI, 2009, p.399). Temos aqui um desdobramento fundamental para o
trabalho do professor: se trata, no ensino pela palavra, de enriquecer, ampla e objetivamente, os
vínculos de significados estabelecidos para o aluno, de modo a expandir as possibilidades de sentidos
e usos de cada conceito trabalhado em sala de aula.
Refletindo sobre a natureza dos conceitos, Vigotski diferencia-os entre espontâneos e
científicos, dada a sua complexidade na relação com o objeto que define. O conceito científico é
essencialmente abstrato, ou seja, pode ser referenciado somente por ideias ou por um sistema de
generalizações composto por outros conceitos. Já o conceito espontâneo é dotado de empiria e
interage com seu objeto em uma relação pautada na concretude. Torna-se lógico que o aluno, por não
haver passado por um processo de educação formalizado, ao entrar na escola traz consigo conceitos
carregados de espontaneidade, construídos em suas vivências pré-escolares.

62
A proximidade entre as teorias de Vigotski e Bakhtin que nos interessa neste trabalho está na questão da dinâmica existente na construção
de sentidos e significados das palavras. Essa distinção, embora fundamental, não exclui a perspectiva social da formação dos sentidos e
significados que é compartilhada pelos dois. Na Filosofia da Linguagem, entende-se que a palavra “é o produto da interação entre locutor e
ouvinte” (BAKHTIN, 2006, p.117), o que implica uma relação dialógica de constituição de um significado próprio, correspondente a um contexto
próprio de um determinado sentido socialmente construído. Entendida essa relação, podemos dizer que o campo de interesse de cada autor
diferenciou-se pela especificidade do objeto de seu estudo. Diz Paulo Bezerra que “Bakhtin preferia o sentido ao significado, vendo naquele um
campo bem mais vasto de vida e manifestação da palavra. Para Vigotski, entre o sentido e a palavra e há muito mais relações de independência
que entre o significado e a palavra. As palavras podem dissociar-se do sentido nelas expresso, podem mudar de sentido, assim como os
sentidos mudam as palavras. ” (BEZERRA, P. in: Prólogo do tradutor, VIGOTSKI, 2009, p. XIV.) Pode-se dizer que Bakhtin preocupou-se mais em
delimitar as interações sociais que interviam na comunicação e na linguagem, e que Vigotski, por sua vez, preferiu concentrar seu esforço na
relação interna e externa de desenvolvimento que permite a apropriação e o uso desta linguagem por meio do conhecimento das palavras e de
seus significados.

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Destarte, a tese que separa os conceitos científicos e espontâneos cunhada por Vigotski
influencia várias pesquisas educacionais em diversas áreas do conhecimento, mas acabam muitas
vezes sendo banalizadas, pois pormenorizam a palavra e ainda, hierarquizam os conceitos
espontâneos científicos por sua definição de conteúdo, e não pela característica referencial de sua
função sintetizadora, fato justamente criticado pelo autor.
Desse modo, a nossa proposta busca problematizar como o processo de aprendizagem do
conceito científico ocorre, delimitando suas etapas em função dos instrumentos propostos aos alunos,
e realizando a verificação do desenvolvimento do aluno em função do tipo, da qualidade e da
profundidade da síntese realizada por este e expressa em suas palavras, em uma organização textual.
Isso também nos permite observar a gradual tomada de consciência do significado do conceito pelo
aluno, pois que se dá em processo que pode ser mediado em suas várias fases, concordando com
Vigotski que considera este processo como essencial à aprendizagem de conceitos científicos na
escola. Para isso, usamos o aporte das teorias de Reuven Feuerstein, que tratam, primeiramente, das
características estruturantes da mediação em uma relação humana e da organização do trabalho do
mediador pelas funções cognitivas e operações mentais.
A mediação é a segunda fronteira teórica apontada para este estudo, pois, a construção de
conceitos é realizada na relação com o outro. Como referência, adotamos a Teoria da Experiência da
Aprendizagem Mediada desenvolvida por Feuerstein, que diferencia a aprendizagem a partir da
exposição direta ao objeto e a aprendizagem que ocorre com a presença do outro humano, neste caso
o professor, denominado mediador.
O mediador que se coloca entre o indivíduo e o ambiente tem papel fundamental para o
desenvolvimento cognitivo do mediado pelo fato, dessa mediação ser orientada pelos critérios
universais da mediação, quais sejam: intencionalidade63, significado64 e transcendência65.
Na Experiência da Aprendizagem Mediada, o mediador planeja, orienta, modifica e avalia o
processo de mediação através da escolha das funções cognitivas 66 que deseja desenvolver e

63
A mediação de intencionalidade e reciprocidade procura deixar claro para o mediado (aluno) os objetivos e expectativas almejadas pelo
mediador (professor). Pelo simples fato de compartilhar essas expectativas, cria-se um vínculo entre os dois, e o aluno pode empenhar seus
esforços no alcance do mesmo objetivo. Observamos que, em muitas atividades de ensino formal e no trabalho de pesquisas sobre o
conhecimento do aluno, o mesmo não é informado dos critérios de sua avaliação e da qualidade de seu desempenho. Nesse sentido, é relevante
que o aluno tenha clareza de todas as etapas produtivas e avaliativas de uma atividade.
64
Na mediação, o mediador deve expor seus significados para o mediado, ou seja, compartilhar sua visão de mundo, sem que haja a intenção
de repetição, mas, como uma possibilidade de o aluno criar seus próprios significados. Essa interação mediada visa a construção de
significados pelo próprio mediado, que apreende a forma de aplicar o que se conhece em um processo de aprendizagem para a sua formação
afetiva, ou seja, para definir a relevância das atividades que faz na formação de suas atitudes, valores e saberes. Sobre isso, Gomes (2002)
afirma que “significado deve ser o sentido que o indivíduo tira da vida”.
65
Por último, a mediação de transcendência consiste em projetar, para além dos aspectos do conteúdo e do vivido, o que se aprende como
sapiência e regulação para a vida. Significa estender, para além do presente, o conhecimento, alcançando outras dimensões da vida existentes
em outro tempo e outro espaço que não apenas o imediato do cerca o aluno. A aprendizagem de regras gerais para situações distintas é um
exemplo básico de uma mediação de transcendência.
66
Pode-se dizer que uma função cognitiva é um processo, ao mesmo tempo, correspondente e estruturante do funcionamento mental, uma vez
que toda a atividade mental necessária e orientada para o desenvolvimento de uma capacidade ou de um comportamento estruturado no
sujeito pode ser desenvolvida. Feuerstein, usando o critério do modo pelo qual a informação se processa internamente no sujeito, organizou as
funções em 3 níveis, a saber: entrada, que são as funções mais próximas aos estímulos da realidade e aos dados iniciais de uma atividade
mental interativa; elaboração, que diz respeito as funções que norteiam o agrupamento, a organização mental e o estabelecimento de relações

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modificar no aluno. Feuerstein divide as funções em três níveis, as de entrada, de elaboração e de


saída. A organização sequencial e a natureza das funções permite a combinação destas em operações
mentais67, como por exemplo, a classificação, a análise, a síntese, entre outras.
No planejamento da sequência didática, escolhemos a função cognitiva de entrada intitulada
Comportamento Exploratório Sistemático, a função de elaboração Planejamento da Conduta Cognitiva
e a de saída Domínio de Vocabulário Adequado para Comunicar Respostas . A definição destas funções
e de seus objetivos de aprendizagem pode ser melhor conhecida no livro Feuerstein e a Construção
Mediada do Conhecimento, publicado por Cristiano Mauro Assis Gomes, em 2002. É interessante
destacar que a escolha destas funções pretendeu adequar os pressupostos da teoria da significação e
dos conceitos contida em Vigotski ao método de aprendizagem mediada de Feuerstein.
Nesse sentido, a última função priorizada foi aquela em que o aluno é estimulado a organizar
sua resposta a partir do vocabulário adequado, ou seja, comunicando-se a partir de palavras que
expressam de modo mais apropriado os conceitos científicos mobilizados em uma atividade proposta.
Acreditamos que assim se constitui uma opção para o planejamento e para a prática docente que se
propõe ao ensino pela palavra.
Agora que elencamos pontos norteadores da teoria de conceitos de Vigotski e Feuerstein em
nosso trabalho, podemos analisar como se dá a estruturação de um ensino pela palavra usando os
conceitos do campo específico da Geografia, de seu ensino e da pesquisa de seu ensino.
Antes, porém é preciso trazer à tona os estudos de Francis Wolf, e suas aproximações com o
conhecimento científico. O autor, em sua filosofia, recoloca uma questão secular: “O que é o Homem?
” e nos leva, com isso, a refletir sobre os pontos cruciais e comuns que não nos definem somente
enquanto sujeitos, mas que também nos une em um todo comum: a humanidade. Sabemos que esta
indagação impulsiona a filosofia e a ciência desde o passado, e que resolvê-la se mostra um grande
desafio. Contudo, para Wolff, esta reflexão é essencial, ao passo que nos provoca: “diga-me, pois,
como define o homem, eu lhe direi o que você crê poder saber, o que julga dever fazer e o que pode
esperar. ” (WOLFF, 2012, p.9).
Para ilustrar sua tese sobre a humanidade Wolff recorre a quatro figuras de homem 68: o
Homem antigo (animal racional), o Homem Clássico (substância pensante), o Homem Estrutural
(sujeito sujeitado) e o Homem Neuronal (animal como os outros). Podemos incluir esta reflexão de
modo breve pelas limitações deste projeto, apontando que, para nós, o elemento mais relevante que

entre as informações analisadas; e as de saída, que são aquelas que concentram as funções com características operacionais e executivas, e
as que se aproximam da resposta aos estímulos mediados nas duas primeiras funções.
67
Como combinações de funções cognitivas, as operações mentais podem ser descritas, grosso modo, como a síntese dos processos
descritos nessas funções que levam a uma ação mental. Um exemplo, citado no livro de Cristiano Mauro Assis Gomes é o da análise, que é uma
operação mental que é “o resultado da combinação de uma série de funções cognitivas, tais como a percepção clara e pesquisa, o
comportamento exploratório sistemático, a capacidade para lidar com duas ou mais fontes de informação, etc.” (GOMES, 2002, p.111).
Atentamos para o fato de que a operação mental esclarece a característica funcional da mente humana, e sua relação com as funções dá-se
justamente aí, pois esta “depende” do uso adequado e sistematizado das funções para que a atividade mental seja plenamente realizada. Cabe
ao professor, neste modelo, selecionar e priorizar as operações que deseja aprimorar em seus alunos, descrevendo de modo detalhado como
alcançará este objetivo a partir das funções cognitivas.
68
Ver WOLFF, F. Nossa Humanidade: de Aristóteles às neurociências. Editora Unesp, 2012.

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se encontra nesta teoria é a condição trans-histórica das figuras, pois embora cada uma tenha um
período histórico e uma localização de origem, elas “constituem tipos sempre disponíveis para o
pensamento do homem” (idem, p. 17). O conjunto das figuras forma um sistema pelo qual se
relacionam, se identificam e se diferenciam, mas também se individualizam. Da mesma forma, as
figuras de Wolff não guardam pretensão hierárquica ou maniqueísta entre si.
Mas em que sentido esta reflexão é válida para o ensino de Geografia? Primeiramente, por um
problema de formação de professores. Miranda (2010) enfatiza a necessidade de uma formação
filosófica e humanista para os professores, como modo de compreender melhor a complexidade de
sua disciplina e seu objeto, como também para poder atribuir um significado mais amplo ao ato de
ensinar algo a alguém.
Da mesma forma, a implicação da contribuição filosófica de Wolff também nos remete a
natureza desta disciplina que Paul Claval em seu livro A terra dos homens ressalta o elemento
humano essencial da Geografia, no sentido de que a verdade científica “é resultante das experiências
renovadas e de procedimentos imaginados há muito tempo pelos homens para responder aos
imperativos de sua vida cotidiana, dar um sentido às suas existências e compreender o que acontece
para além dos horizontes que eles frequentam costumeiramente” (CLAVAL, 2010, p. 11). Há como,
então, associar os elementos das figuras humanas (WOLFF, 2012, p.09) que, juntas, configuram à
humanidade suas necessidades e curiosidades fundantes dos seus saberes sobre o mundo, como a
Geografia. Ensinar Geografia não pode desconsiderar essa questão.
Ao percebê-la de modo consciente, portanto, a Geografia que se ensina não pode ser aquela
que Morin diz como presa ás “cegueiras paradigmáticas”. É certo que as revoluções científicas muitas
vezes são construídas como contraditórias e sobrepostas, mas, por outro lado, não é possível mediar
a transcendência se nos distanciamos da noção de humanidade como totalidade, sem a qual também
não se pode saber o que é possível ensinar.
Edgar Morin se aprofunda sobre isso, ao analisar a condição humana como saber necessário.
Diz que “é impossível conceber a unidade do ser humano pelo pensamento disjuntivo” (MORIN, 2011, p.
43). Com esse termo, Morin sugere a fragmentação do saber científico e a critica, trazendo também o
problema para o domínio das ciências humanas. Como meio de superar esta crise, o autor francês
aponta para uma educação que contemple o todo, orientada pela religação dos saberes. Aqui nos
questionamos: como dar conta de um saber totalizante em seu sentido humanista pelo ensino de
Geografia?
A resposta nos servirá de mote para investigação, sendo que o método escolhido fora
descrito anteriormente: o ensino mediado cujo objeto é a palavra. Acreditamos que, tomando este
processo universal de significação e de apreensão do mundo, a Geografia que se pode ensinar é
também dotada de totalidade como fator estruturante. E, se se deve considerar a natureza das
relações humanas de formação contidas na mediação, há que se adotar caminhos múltiplos que
desenvolvam múltiplos conceitos de uma Geografia, uma para cada relação mediada, o que implica

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evitar o trabalho com definições massificadoras, senão pela premissa da autonomia, que produz
indícios e consciências próprias.
Resta-nos, por fim, citar como a proposta de um ensino pela palavra recai sobre a figura de
um professor que assume simultaneamente a figura de pesquisador de sua própria prática. Ora, a
própria presença do docente como mediador dos processos de significação que constitui, para o
mediado, um pensamento científico, já justifica a sua condição de (auto) avaliador desse processo.
O professor pode, assim, analisar as vias e estratégias que se utilizou para a construção dos
conceitos propostos na sequência das atividades, tanto observando como isso se deu para o aluno,
como para si, pois o processo de mediação invariavelmente modifica o próprio mediador, que traça
um olhar qualificado e metacognitivo de sua posição em sala de aula.
Contrariamente, as pesquisas educacionais preocupam-se em analisar, qualitativa ou
quantitativamente, a apropriação dos conceitos pelos alunos de modo estanque, em que aprender
significa dominar ou se aproximar da definição imposta pela ciência a um conceito. Enquanto
professor mediador e pesquisador, nossa proposta é a de dar visibilidade a trajetória de elaboração
do significado pelo aluno, a partir dos indícios que ele mesmo se utilizou para definir o conceito
proposto, tanto pela operação eficiente de uma conduta de pesquisa planejada, como pelas próprias
palavras que usou nas diversas fases desse processo. Explicaremos melhor os procedimentos desta
investigação.

PROCEDIMENTOS DE PESQUISA

Os procedimentos de investigação visam organizar as etapas do trabalho conforme a


fundamentação teórica adotada. Sendo assim, a primeira etapa consiste em analisar o plano da
sequência didática de geografia aplicada e que constitui um dos objetos desta pesquisa, com enfoque
no tema, assunto e conteúdo para o 6º ano do Ensino Fundamental II, de acordo com a proposta
curricular do Estado de São Paulo cuja a temática de ensino trata dos ciclos da natureza e a da
sociedade.
A abordagem desta sequência foi desenvolvida com o enfoque na aquisição de um vocabulário
e palavras-chave fundamentais para o domínio dos conceitos geográficos envolvidos na proposta
(tema, assunto e conteúdo) e necessários para a continuidade da aprendizagem de Geografia neste
nível de ensino.
Os objetivos da sequência foram estabelecidos em função de alcançar uma aprendizagem
reflexiva no ensino de geografia, ou seja, aquela que considera: a dimensão do próprio conhecimento
geográfico, a dimensão psicológica dos processos cognitivos envolvidos nesta aprendizagem e a
dimensão filosófica inerente à possibilidade humana de “pensar o mundo”.
Também foram elaborados os recursos necessários, aqui denominados instrumentos de
mediação da aprendizagem para garantir situações problematizadoras a serem estudadas pelos
alunos em que sejam articuladas as palavras-chave de modo a proporcionar a ampliação do sentido

NARRATIVAS
666

hermenêutico da palavra e do vocabulário do aluno. Ou seja, oportunizar que os significados das


palavras sejam construídos na associação contextualizada entre o grupo de palavras, as imagens e o
conteúdo a ser ensinado.
Com a intenção de assegurar a mediação como umas das matrizes norteadoras do processo
de ensino aprendizagem foi essencial explicitar no plano, as atividades a serem desenvolvidas pelos
alunos e pelo professor. As atividades dos alunos necessitam promover uma conexão entre as
informações e os vocabulários próprios da geografia além de pôr em movimento as operações
intelectuais de comparação, identificação, classificação, uso de vocabulário, leitura de imagens,
decodificação de instruções e a elaboração de inferências para resolver problemas.
Na perspectiva de alcançar uma Didática da Mediação do Conhecimento69, as atividades do
professor também circunscritas no plano pressupunham as quais serão as escolhas tomadas na
aplicação dos critérios de mediação com vistas à preparação dos alunos para realizarem a expressão
de sua aprendizagem, isto é, os conceitos e categorias que embasam a utilização da palavra com
precisão e clareza da compreensão do seu significado.
Considerada a prática desenvolvida e os resultados obtidos sujo os registros constituem
objeto nesta pesquisa, os eixos norteadores da análise das atividades produzidas pelos alunos,
consistem em explorar o caráter interdisciplinar das “Fronteiras Teóricas” para desvendar a
importância da palavra nos processos de ensino e aprendizagem de Geografia, que podem ser melhor
compreendidos articulando-se as linguagens próprias da Geografia com os campos de conhecimentos
aqui delimitados: Linguagem, Mediação e Filosofia. Os autores considerados para a estruturação dos
eixos de análise são: Feuerstein, Vigotski, Bakhtin, Morin e Wolff.
A metodologia aqui se fundamenta nas primeiras interfaces e aproximações entre os
diferentes sistemas teóricos envolvidos a partir destes autores, considerando a aproximação entre
Vigotski e Feuerstein quanto a categoria mediação; as interfaces da Linguagem podem ser
encontradas e aproximadas entre Vigotski e Bakhtin; e, por último, a categoria complexidade
possibilita, na perspectiva filosófica, outras interfaces e aproximações entre Morin e Wolff num
primeiro plano, e também entre estes e Feuerstein.
A interpretação dos resultados obtidos da pesquisa dar- se- à pela análise dos textos dos
alunos e inevitavelmente mobilizará a tríade plano- teoria- prática, que nos revelará em quais
aspectos os objetivos, as atividades planejadas (professor e aluno), os instrumentos de mediação
possibilitaram maior ou menor graus de generalização cognitiva.
Pela complexidade do contexto de pesquisa envolvidos é emergente superar a dicotomia entre
a análise qualitativa e quantitativa, desse modo, ambas as vertentes de procedimentos analíticos
serão consideradas. A vertente quantitativa traz a possibilidade de observar a ocorrência e a
intensidade dos fenômenos, principalmente, pelas variáveis expressas em gráficos e tabelas. Por
outro lado, o viés qualitativo da pesquisa é justificado pela proximidade entre os sujeitos (pesquisador
e pesquisado), a natureza das fontes materiais utilizadas (plano do professor, instrumentos de

69
Expressão cunhada pela Prof.ª Dra. Maria Eliza Miranda (2017)

NARRATIVAS
667

mediação e texto dos alunos) sendo que estas serão estudadas para além da metrificação de
resultados e sim no movimento de transição e mudança do conhecimento no aluno.
Finalmente, esperamos que a pesquisa contribua para compreender como os alunos
aprendem novas palavras, quais suportes cognitivos são acionados na atribuição de significados e que
impactos a sequência didática ocasionou nos sujeitos envolvidos. Almejamos ainda, que a dinâmica
investigativa adotada faça emergir novas perguntas e problematizações que neste estágio
propositivo, não estão previstas.

REFERÊNCIAS

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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Geografia / Coord. Maria Inês
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NARRATIVAS
668

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nas ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio
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Cartografias do trabalho docente. Campinas: Mercado de Letras, p. 121-148, 1998.
.

NARRATIVAS
RESUMO
669
O presente artigo foi construído a partir da
pesquisa intitulada O Filho é da Mãe?, desenvolvida
ao longo do curso de mestrado em educação. Tal

O FILHO É DA MÃE?: a estudo foi pensado com a intenção de suscitar


questionamentos que convidassem
problematização sobre como a estrutura machista
à

maternidade e os não-lugares da mulher de nossa sociedade atua sobre a vida da mulher,


usando a maternidade como ferramenta para
oprimí-la e cerceá-la. Assim sendo, a referida
pesquisa buscou dialogar com as experiências de
mulheres que são mães, considerando as formas
como vivenciam o cotidiano e como se dão as
relações de resistência dessas mulheres diante dos
BARBOSA, Priscilla BEZERRA70 cerceamentos advindos com a maternidade. A
proposta foi a de tecer o entrelaçamento entre
ROHEM, Clara71 suas atuações nos âmbitos privados e públicos de
suas vidas. O cruzamento proposto se deu mediante
a crença da relevância deste para que houvesse a
compreensão sobre o quanto a utilização da
maternidade pelo machismo estrutural forja a
forma como se delineará os processos de atuação
INTRODUÇÃO da mulher em seus múltiplos papeis sociais. Sob
uma visão que se quer feminista, propus uma

D
reflexão sobre como o dificultamento no acesso e
esde que me tornei mãe, venho passando por um processo de manutenção, quando não o alijamento, da mulher à
descobrimentos sem fim. São novas visões de mundo, novas esfera pública da sociedade está fortemente
atravessado por suas supostas responsabilizações
sensações, novos medos, supostas obrigações, novos prazeres vividas no cotidiano da vida privada e que encontra
e dificuldades, muitas dificuldades que, inicialmente, me pareciam um peso ainda mais acentuado se atravessado pela
maternidade.
inenarráveis pelo fato de se apresentavam falsamente como uma
questão particular e tão somente minha que não careciam ser Palavras-Chave: Dialogismo. Feminismo.
Maternidade
expostas ao mundo. Parecia serem as minhas dificuldades, as minhas
inquietações e a minha falta de resiliência diante do mundo maternal
pelo qual havia optado.
Nenhuma experiência vivida até hoje possibilitou a mim, compreender com tanta clareza o
sentido que o outro representa para o eu, que a vivência da maternidade. Da mesma forma, lançou-me
de súbito ao cerne do que a história nos permite chamar de opressão. Entendi ali o que Marx dizia ao
indicar que “a mulher é o proletariado do homem”. Sendo mais objetiva, há algum tempo venho
percebendo o quanto a maternidade pode se delinear como um espaço de exercício de poder. Refiro-
me ao poder enquanto possibilidade de força, possibilidade de submissão do outro, mais
especificamente, do homem sobre a mulher. Mas, percebi também, que, não somente para mim, mas
para muitas, a maternidade traz em si outra dimensão de “poder”, sendo esta no sentido mais amplo,
mais crítico, mais enriquecedor e mais político possível. Sim, político. Não consigo definir a
maternidade senão como, entre outras coisas, a constituição de uma possibilidade de experiência
política para as mulheres que, ao longo da história de organização da nossa sociedade, de orientação
judaico-cristã- ocidental, capitalista e patriarcal, ocuparam um lugar, muito bem esquematizado, de
subalternização.

70Doutoranda em Educação – UFRRJ. Bolsista Capes – Demanda Social. Email: priscillabbarbosa1984@hotmail.com


71Mestra em Educação pela UFRRJ; Professora de Educação Infantil do Município do Rio de Janeiro. clararohem@gmail.com

NARRATIVAS
670

A partir do ponto em que penso ser a maternidade um espaço possível para a prática política,
é possível dizer que, a partir dela, encontro uma possibilidade de problematização da vida. Desta
forma, vejo a experiência da maternidade como oportunidades que mais parecem uma convocação ao
estabelecimento de questionamentos e quebra de paradigmas há tanto naturalizados em nossa
sociedade. É neste âmbito que penso ser possível fazer a leitura da experiência materna sob duas
óticas: a otimista, quando eu digo que a perspectiva aqui proposta é enxergar a maternidade como
espaço de luta política, de reação, resistência e desconstrução das questões impostas ao feminino e à
mulher em nossa sociedade de base patriarcal e machista. A outra seria a pessimista quando enxergo
a maternidade de forma irreversivelmente cerceadora das possibilidades de ser e pertencer72 da
mulher, se configurando num espaço mais que eficiente para oprimi-la e onde ela enfrenta situações
diante das quais é treinada socialmente a se calar, soterrando-se pelo velho discurso do é assim
mesmo, o filho é da mãe entre outros, proferidos e corroborados na ausência de reflexão e empatia
mínima de uma sociedade que preza pela manutenção da dominação masculina.
Enquanto pessoa que sou, mulher, mãe e pesquisadora, percebo a mutualidade do positivo e
do negativo da experiência da maternidade e tudo que a partir dela sobrevém às mulheres. Optei pela
minha filha e não pelo soterramento do meu ser social, político e cultural e, muito menos, dos lugares
pelos quais desejo, utopicamente talvez, que todas as mulheres transitem livremente pelo mundo.

METODOLOGIA

O trabalho centralizou-se na teoria Bakhtiniana do dialogismo e as discussões oferecidas pela


mesma sobre a relação eu-outro. Bakthin é apresentado como minha base também nas questões que
envolvem a possibilidade de uma escrita outra, visto que apresento a dissertação no gênero
discursivo relatório, apresentando os diálogos construídos entre mim e minhas sujeitas. Através de
Bakthin, encontro na polifonia a possibilidade da conjectura de múltiplas vozes junto a minha, ao longo
da construção textual da dissertação, o que serviu para definir a forma estética escolhida para
apresentar os resultados da pesquisa, visando justificar um texto que transcenda o gênero
dissertativo, permitindo o seu alargamento a outro(s) gêneros discursivos.
Os diálogos estabelecidos me deram a base necessária para iniciar os questionamentos que
foram problematizados com base nos pensamentos de autoras e autores que apresentam um olhar
feminista sobre a condição da mulher em nossa sociedade. Para tal, trago ao diálogo, como
referencial desse olhar, a autora Simone Beauvoir.
A partir disso, trago um trabalho que buscou o estabelecimento de diálogos que pudessem
orientar, questionar e problematizar as condições de opressão historicamente forjadas com base

72As ideias de Ser e Pertencer apresentadas, construí no contato com Clarice Linspector em seus textos Personna e Pertencer que, nos
momentos em que li e reli, me pareceram bastante pertinentes às discussões que se querem problematizadoras sobre o que é ser mulher
numa sociedade organizada para o homem.

NARRATIVAS
671

na sociedade patriarcal e que cotidianamente, mesmo que em nuances de sutileza, pesa sobre nós
mulheres e interfere perversamente sobre nosso sentido de ser no espaço público.
O foco da discussão foi construído na vivência da maternidade e as narrativas ouvidas me
levaram ao seguinte questionamento: o que você já deixou de fazer ou teve a dificuldade acentuada
para fazer, pelo fato de ser mãe? A opção por tal recorte se deu a partir da percepção que tive da
maternidade como ferramenta, muito bem empunhada, da opressão machista da sociedade contra a
mulher e que faz deste lugar, com muita facilidade, um agravante para o dificultamento, quando não o
alijamento, da mulher para a atuação na esfera pública da vida social, cerceando-a de suas
possibilidades de ser e pertencer no sentido ofertado a nós por Clarice Linspector.
Para alcançar o proposto, busquei em mulheres, experiências suas, a partir da vivência da
maternidade e em espaços por esta atravessados, principalmente nos que concernem às
possibilidades de acesso à formação e à atuação profissional. Assim, optei por me apoiar em estudos
sobre a mulher e que se constituíram sob uma ótica feminista.
A matéria para o desenvolvimento da proposta se delineou através das enunciações que a
mim chegaram no despretensioso viver cotidiano de mulheres mães e às quais tive acesso em
situações as mais simples e comuns da vida. As ocasiões se deram, em maioria, de maneira aleatória
e inesperada, não calculada, em conversas mais várias. Os diálogos da vida se estabelecem quando
menos esperamos e quando o assunto é a maternidade, eles se dão em todas as partes, basta que
estejamos prontos a percebê-los, a oferecer uma escuta afetiva e alteritária.
Desta forma, os diálogos estabelecidos entre mim e o outro, compuseram o produto
necessário para dar início aos questionamentos problematizados ao longo do trabalho, sobre as
condições passíveis de serem vividas por muitas mulheres que são mães, em nossa sociedade. Assim,
diante de tais diálogos, me pus a refletir sobre uma resposta possível e responsável aos enunciados
apresentados e os sentidos que lhes atravessaram.
O trabalho, enquanto metodologia de pesquisa, como já dito, baseia-se na visão de Bakthin
ainda no que diz respeito ao trato das ciências humanas como uma pesquisa que se estabelece nas
relações e que estas se querem dialógicas entre os sujeitos nela envolvidos.
Por este viés, há um posicionamento meu, enquanto sujeita dialógica, falante e expressiva que
sou, em compreender os projetos discursivos apresentados por minhas sujeitas de pesquisa,
dialógicas, falantes e expressivas que são. Elas, assim como eu, se posicionam diante do mundo e suas
questões, apresentando seus posicionamentos e visões de mundo a partir de um projeto discursivo
que constitui suas enunciações.

DISCUSSÃO E RESULTADOS DA PESQUISA

O que intensifica as tensões entre mulheres mães e o machismo estruturado na sociedade em


que vivem, são ainda as escolhas destas sobre ocupar lugares outros no mundo. Há um
comportamento sutil e silencioso que nos afasta do mercado de trabalho, do investimento na

NARRATIVAS
672

formação profissional e/ou acadêmica, nos afasta da convivência social prazerosa a nós mesmas, nos
afasta das possibilidades de participação em lutas políticas, dos espaços de intelectualização e nos
afasta até mesmo do prazer a partir de nossos corpos, de nossa natureza.
Parece que nos é permitido ser tudo ou, ao menos, vislumbrar sê-lo, desde que não
assumamos o papel de mãe. A maternidade vem e nos impõe, automaticamente, um sistema de
exclusão, entramos no modo „OU‟: OU o mundo OU a maternidade. Como se combinações não fossem
possíveis e a responsabilidade pelos filhos fosse exclusivamente da mulher.
Fazendo uso de uma reflexão que a mim, muito forte pareceu, apresentada pela escritora
nigeriana Chimamanda Adchie, corroboro aqui o que tenho observado nos ambientes de formação
acadêmica por onde tenho transitado. Chimamanda diz que mulheres, devido ao treinamento social
que recebem, “fazem do fingimento uma arte”73. A escritora faz referência à atuação da sociedade
sobre a formação de indivíduos do sexo feminino, porém, enquadrando o pensamento ao qual faço
coro, com a questão que trazida neste trabalho, percebo o quanto somos praticantes da arte do
fingimento, principalmente se somos mães e desejamos/precisamos estar nos espaços de formação
e no mercado de trabalho.
Quando ousamos nos imbricar e manter na esfera pública da sociedade em que vivemos,
automaticamente, mesmo que nada nos seja dito, convidadas a atuar como se não fossemos mães.
Exigem de nós uma capacidade produtiva, em termos de dedicação exclusiva, como se não houvesse
outro ser no mundo que dependesse da minha presença. Quando não fingimos que não temos
responsabilidades com a formação de outro ser, o filho, simplesmente, fingimos que não vivemos
numa sociedade que imputa sobre mim, cem por cento das responsabilidades sobre a formação deste
filho. Então, muitas vezes, por necessidade, mulheres se mantém na esfera pública da vida, fingindo
dar conta das responsabilidades, quase nunca compartilhadas com terceiros, sobre seus filhos.
Quando são elas, aquelas que não aceitam este tal mecanismo de opção sem opções, logo são
imersas em dificuldades infindas, a começar por não encontrarem, muitas vezes, permissão para SER,
fora da maternidade. Por outro lado, caso aceitem tal mecanismo, também encontram dificuldades e
são apontadas como mulheres incapazes de administrar a maternidade e a vida pública. A mulher que
busca vida além da maternidade, acaba sendo de alguma forma mal vista e com muita facilidade
negativamente apontada, tanto quanto aquela que se aprisiona na maternidade. Parece-me que
nunca nos encontramos livres dos apontamentos desagradáveis sobre nossas condutas.
Ao longo da pesquisa, pude perceber sem muito esforço, que aquilo que a uma de nós
submete, se repete em várias outras vidas, fazendo-se compreensível que, ao contrário do que eu
imaginava, as questões que há algum tempo me esmagam e marginalizam com sutil perversidade, não
são questões particulares e simplistas, mas sim questões que ocorrem tão frequentemente que se
colocam a meu ver, como passível de denúncia da opressão machista que tem seu objetivo a
manutenção da mulher no espaço privado. Sendo assim, para além de uma denúncia, estabeleceu-se
uma convocação para uma discussão que se quer urgente e necessita se dar de maneira

73 SEJAMOS TODOS FEMINISTAS. Chimamanda Ngozi Adchie p, 36.

NARRATIVAS
673

minimamente empática, crítica e politizada sobre a maternidade como um agravante para a


imobilidade social da mulher.
Para consubstanciar tal discussão, convido a uma reflexão que nos permita enxergar que
aquilo que tanto naturalizam atributo invariável e inquestionável da experiência do ser mulher, nada
mais é que resultado de uma construção histórica e cultural estabelecida para atingir determinada
organização da nossa sociedade sob o poder do homem e sua masculinidade.
Precisamos observar ainda, que não é possível falarmos “da mulher” ou “da mãe”, visto que
estas não cabem em uma categoria universalizada. A perspectiva social das mulheres com as quais
dialoguei não foi algo que passou despercebido. Minhas interlocutoras são mulheres que têm idade
entre os 30 e 55 anos, moradoras da Baixada Fluminense e subúrbio do Rio de Janeiro. São todas
atuantes no mercado de trabalho, exceto uma que é aposentada. Estão divididas entre o mercado
formal e o informal e, em maioria, estudantes de graduação e pós-graduação em universidades
públicas. Seus filho têm idade atual que varia de 1 ano a 35 anos. Embora sejam todas elas mulheres
que se enquadram num perfil social periférico, todas, sem exceção estão em lugares de privilégio com
relação a muitas outras mulheres de seu entorno. São mulheres escolarizadas,
trabalhadoras/profissionais com renda própria, embora nem sempre seja a renda principal da família
e, em maioria, são mulheres que construíram, cada qual a sua medida, uma visão crítica da realidade
em que vivem.
Outra percepção que me veio através da pesquisa é a de que, claramente, as questões que
cruzam a vida privada de mulheres mães, têm interferência direta sobre aquelas que elas vivenciam
no âmbito da esfera pública. A título de ilustração, podemos averiguar os dados apresentados pela
pesquisa do IBGE em 201074, que traz um recorte pautado no gênero, e que aponta o abandono escolar
de mulheres jovens, impulsionado pela iniciação destas na maternidade.
O que digo, é que se historicamente a mulher vem lutando incansavelmente para ter
respeitada a sua atuação nas esferas públicas da sociedade, as vitórias já alcançadas não exercem
sobre aquelas que são mães, os mesmo resultados que para aquelas que não o são. A distância
existente entre mulheres sem filhos e mulheres com filhos, na construção de seus caminhos de
independência, que passam pela possibilidade de acesso à formação e dedicação à carreira,
principalmente, é ainda considerável. E, quando a distância não se apresenta de forma tão díspari, é
nas dificuldades encontradas neste trajeto que está o maior peso.
As questões que se constituíram a partir das conversas com as mulheres e que serviram
para filtrar os enunciados apresentados foram: que dificuldades são enfrentadas por mães para
acessar e se manter na esfera pública da sociedade? Por que razão tais dificuldades se impõem?
Como resposta, obtivemos histórias, experiências e memórias que mais me soaram como tentativas
de denúncia dessas mulheres sobre as sensações de esmagamento e luta constante impostas a elas a
partir da maternidade.

74 Link para download da publicação dos dados: http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca- catalogo?view=detalhes&id=288941

NARRATIVAS
674

Dentre as mulheres encontradas ao longo da pesquisa, houve aquela que se viu e vê presa a
um desejo e uma necessidade enormes de construir uma carreira a fim de alcançar algum conforto
material para si e para o filho. Esta, divorciada, mãe de uma criança atualmente com cinco anos, não
encontra possibilidade de tempo para investir na construção da almejada carreira. Trabalhadora
assalariada de uma empresa privada, passa o dia em sua ocupação enquanto o filho estuda em
horário integral. Seu trabalho exige de si, ainda, um dia do final de semana.
Já outra, para conseguir cursar o ensino superior, tendo sua filha pouco mais de um ano de
idade, precisou implorar chorando para que a diretora de uma escola aceitasse sua filha de tão pouca
idade entre os alunos. Tal situação se deu porque ela precisava, além de cursar a graduação, vender
tortas nas ruas e ainda estudar para ser aprovada num concurso público. Conseguiu matricular a filha
que bem se adaptou à escola. Durante o dia, administrava as tarefas de casa, preparava e vendia
tortas, estudava para concursos e, à noite, frequentava o curso de Pedagogia numa instituição pública
do RJ. Concursou-se. Possui hoje, duas matrículas no município do RJ e cursa o mestrado o na mesma
instituição em que fez a graduação. Sua filha, aos doze anos, passa parte do dia na escola e parte em
casa, sozinha. A mulher vive à beira do esgotamento, pois, divorciada, responsável única por sua filha,
se divide entre todas as suas obrigações de trabalho, a vida acadêmica e a manutenção de um vínculo
com a filha. Dificilmente consegue um contexto favorável à leitura e a produção textual. Com o horário
diurno do curso de mestrado, apesar de se equilibrar para dar conta de tudo, necessita da
compreensão e do apoio do seu orientador. Costuma dizer que é muito grata a ele, pois tem
consciência que, talvez, nenhum outro teria abraçado suas dificuldades com relação à disponibilidade
de horário como ele fez.
Em outra narrativa, mostrou-se aquela que para manter sozinha as três filhas, dedicou todo o
seu tempo somente ao trabalho, sem possibilidades de investir numa formação que beneficiasse sua
carreira. Professora. Acumulou dezenas de tempos de aula ao longo de toda a sua vida profissional.
Em meio a todas as dificuldades vividas para ser quem é e tornar as filhas quem são, não abriu mão
do sonho de dar continuidade à carreira. Aposentou-se e dedicou seu tempo a estudar para entrar na
academia. Lá está cursando o tão sonhado mestrado. Diz que tem sentindo um pesar enorme, por não
mais estar atuando em sala de aula. Pensa no quanto melhor poderia ter sido sua atuação se tivesse
recebido a oportunidade de formação. Declara-se feliz por estar ali, depois de toda a vida que até aqui
viveu, porém, sente que perdeu muitas possibilidades outras por não ter podido se dedicar anos antes,
à sua vida acadêmica.
Houve uma que é bem jovem, a mais jovem delas. Cursando sua segunda graduação. Sua
primeira formação se deu numa instituição privada da Baixada Fluminense, região onde mora. Esta
segunda graduação está ocorrendo numa universidade federal. Totalmente engajada nos grupos de
estudos sobre a mulher e nos grupos de estudos étnico- raciais. Casada. Engravidou do segundo filho
durante o curso. Foi até o final da gestação bastante ativa. Tudo programado para usufruir de sua
licença-maternidade dentro do curso, o que lhe respaldaria para a passagem ao semestre seguinte
sem transtornos, após o nascimento do filho. Mesmo com a licença prevista em lei e de seu total

NARRATIVAS
675

direito, conversou com cada professor sobre o afastamento que se daria, se dispondo a ser avaliada
da forma que eles achassem melhor para que ela fechasse o semestre. Com quase nove meses de
gestação, os técnicos da instituição entraram em greve. A greve se estendeu por meses. A criança
nasceu e a licença lhe foi negada, tendo como argumento a greve dos técnicos, assim, não havia
funcionário apto a dar entrada em sua licença. Perdeu o semestre. De todos os seus professores,
teve uma única que se recusou avaliá-la de forma diferenciada da turma. Ela fez contato com a
professora, um dia após o nascimento do filho. Se dispôs a fazer a avaliação, mas não houve
negociação. A professora acha que ela deveria ter esperado terminar o curso para ter filho, porque
ela própria, assim o fez. Retornou às aulas com trinta dias de nascimento do filho. Sentia dores nos
seios fartos de leite. Andava pelos corredores da instituição com sua roupa molhada de leite. Em casa,
seu filho ficava com sua sogra.
Houve ainda, aquela que mesmo dedicada à vida acadêmica, teve oportunidades negadas pelo
fato de ser mãe. Mantinha um fluxo bom de produção e publicações. Era a menina dos olhos de uma
professora da época da graduação que nela investia bastante para que seguisse na academia. Casou-
se. Engravidou. Seguiu suas atividades em grupos de pesquisa, sem maiores problemas. Aos poucos,
aquela que nela investia e tanto incentivava, foi se afastando. Sempre dava um jeito de ressaltar o
quanto era feliz por não ter sido mãe. Certo dia, tal mulher ligou para a pupila e lhe falou por longo
tempo sobre uma oportunidade de trabalho magnífica que surgiu numa renomada instituição de ensino
do país. A vaga de trabalho deveria ser preenchida por alguém de confiança da professora. O salário
era muito além do que sua pupila já havia vislumbrado para a realidade de vida que sempre teve. Disse
que era ela a ú nica em quem poderia confiar como uma filha. Por fim, após destrinchar
detalhadamente todas as benesses daquela oportunidade de trabalho, disse que só não daria a vaga
para sua pupila porque ela já havia feito a sua escolha de vida, a maternidade.
Teve ainda, aquela que conquistou aprovação para um curso de mestrado em outra região do
país e que é ainda hoje, o único no Brasil. Foi uma conquista árdua e que contou com muito estudo,
incentivo e apoio financeiro de professores seus. Ao ser aprovada, ouviu do companheiro, pais dos
filhos, que não teria como fazer o curso, pois, não havia quem pudesse cuidar de seus filhos. Pensou
em desistir. Foi cobrada pelos que lhe ofereceram apoio. Foi. Levou os filhos. Relatou ter passado um
dos mais doloridos períodos de sua maternidade. Seus filhos ali, choraram ao se deparar com o vazio
da humilde casa que conseguiu alugar para morar durante o período do curso. A casa contava com
um colchão de casal e um fogão, somente. Estavam em outra região do país, sem seus familiares e
amigos, numa nova escola e trancados naquela casa vazia e desconfortável durante o período em que
a mãe estava na universidade assistindo às aulas. Com o tempo, passou a levar os filhos consigo para
a universidade. Passavam o dia na biblioteca aguardando que a ela pudesse retornar para casa. Duas
crianças, totalmente alheias aquele mundo. Ela, uma mulher em sofrimento por não ter visto saída
outra.
Houve aquela que, divorciada, sozinha com a filha de três anos e sem ter com quem contar,
levava sua pequena para a universidade todas às vezes em que lá deveria estar. Rotina cansativa.

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Criança estressada e mal alimentada. Foi completamente acolhida com sua filha, pelo seu orientador.
Lá estavam juntas nas orientações, grupo de pesquisa e grupo de leitura. Ele, seu orientador, sempre
dizia que ser mulher e mãe é foda! Dizia ainda que se sentia num dever moral de acolhê-las. A criança
se sentia pertencente aquele espaço. Passava as horas se distraindo entre massas de modelar, folhas
de ofício, gizes de cera, frutas e biscoitos. Dividiam o prato do almoço no RU. Outros professores
olhavam com incômodo a presença da criança ali. Deixavam claro nas entrevistas durante o processo
seletivo que para ter sua orientação, a candidata não poderia ter filhos ou, se tivesse, deveriam agir
como se não os tivesse. Aquele espaço não era para quem não tivesse disponibilidade de tempo,
diziam eles. Ela dizia que tudo ali declarava veladamente que aquele espaço não era para ela, não era
para mulheres, muito menos para aquelas que decidiram pela maternidade. Da mesma forma, disse
sentir-se cerceada de ir a eventos acadêmicos, já que estes não tem, assim como as universidades,
estrutura para acolher mulheres que ainda hoje têm dificuldades para encontrar quem compartilhe
ou, ao menos, auxilie das responsabilidades com relação aos filhos.
Não poderia deixar de explicitar que entre as narrativas que me convocaram e convocam à
reflexão, deparei-me com aquelas concernentes à negação da maternidade por mulheres que, a partir
de argumentações várias, não a desejam. Entendo e respeito que uma mulher não deseje viver a
maternidade que, ao contrário do que dizem, tenho percebido, não é um paraíso. Entretanto, a partir
do que ouvi e ouço, tenho a impressão que tal escolha tem se dado muito mais pautada num receio
destas mulheres, no que se refere à grande probabilidade de marginalização e cerceamentos que lhes
será imputado sobre as possibilidades futuras de atuação nas diversas esferas sociais.
O que tenho visto é que aquilo que eu e tantas outras vivemos cotidianamente e sem pausa,
desde que nos tornamos mães e atinge diretamente, de maneira definidora, nossos outros lugares no
mundo, há muito vem sendo percebido por tantas outras mulheres mesmo que não estejam vivendo a
experiência da maternidade. Vejo um número grande de mulheres dotadas de uma sensibilidade que
as permite compreender o quanto a chegada dos filhos dificulta a liberdade do feminino num mundo
privilegiadamente masculino.
Ouço de muitos que a responsabilidade para tanto desajuste de nós mulheres à maternidade e
ao mundo, se dá por escolha nossa. Argumentam que não satisfeitas com a vida pacata no âmbito
privado, brigamos para ocupar os espaços públicos. Somos culpabilizadas pelo acúmulo de obrigações
que nos acometem quando nos tornamos mães. Poucos questionam a naturalização de tais discursos.
Primeiramente, me parece que não estão inclinados a compreender que a entrada da mulher no
mercado de trabalho não foi acompanhada por uma reorganização da estrutura social necessária ao
acolhimento desta75. Segundo, há neste contexto, a urgência na desconstrução do que se estabeleceu
ao longo do tempo, como tarefa da mulher e tarefa do homem, a resistente construção dicotômica
entre masculino e feminino. A sociedade reforça a cada dia a velha ideia de “quem pariu os seus que
os embale”, enfatizando seu significado com base no velho dito “o filho é da mãe”, sem perceber as
ideologias trazidas em tal forma de pensar e que determinaram ser o papel da mulher na sociedade.

75 Simone de Beauvoir. O Segundo Sexo, p, 880.

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O que posso pensar do lugar que ocupo e buscando apoio em palavras de Simone de
Beauvoir 76 sobre a maternidade, é que não nos tornamos um bando de mulheres cansadas,
resmungonas e mal sucedidas na maternidade e na vida, na verdade, nos tornam isto, a partir das
construções sobre o lugar da mulher, dentro de uma sociedade machista formada com base no
patriarcado. O que muitos não percebem ainda é que, na realidade da vida maternal, gritaram-me Mãe
da mesma forma que gritaram-me Negra77.
Será que a questão se resolve ao rotularmos a maternidade como um eterno e irreparável
padecer no paraíso? O que ganham as mulheres que são mães ao internalizarem e reproduzirem a
ideia que reforça ainda hoje que mãe é mãe e que o filho é dela? Fico a observar que diante de tantas
dificuldades que atropelam as mulheres ao adentrarem na maternidade, não as atropelam por si só. A
maternidade e a existência dos filhos não me parecem o fator que mais pesa sobre as mulheres. O
que torna o exercício da maternidade e a existência dos filhos um martírio é na verdade o que fazem a
elas através destes.
Ao conversar com mulheres que vivem a maternidade, percebi o quanto estamos vivendo num
momento em que se faz possível separar os filhos e o que se sente com relação a estes, do papel
social construído culturalmente do que é ser mãe. O que faz da maternidade uma possibilidade eficaz
de sofrimentos, dificuldades e cerceamentos para a mulher não se apresenta em um único pilar. Não
encontramos o foco da questão olhando apenas para a dicotomia estabelecida historicamente entre o
ser homem e o ser mulher, entre o feminino e o masculino, entre as construções do papel do pai e da
mãe.
Ao ouvir as mães que estão ao meu redor, no meu cotidiano, percebi que a bola de ferro que
pesa o caminhar daquelas que por situações várias se tornaram responsáveis únicas e diretas pelos
filhos, também aprisiona e pesa sobre o caminhar daquelas que se encontram socialmente
acompanhadas através de relações que as unem a um parceiro. Salvo as devidas proporções, o peso
que sobrecarrega uma também sobrecarrega a outra. Com a construção dos papeis definidos
historicamente como feminino e masculino, mesmo que em desmantelamento hoje, a maior
responsabilidade sobre o cuidado com as crianças é imputada à mulher. Para além disso, mesmo
quando observamos organizações familiares que se esforçam para o compartilhamento justo sobre as
responsabilidades da vida privada, ainda assim a mulher se encontra em desvantagem com relação ao
homem, pois, fora dali, fora os parceiros em questão, socialmente falando, é ela a cobrada pela
educação dos filhos.
Transcendendo o lar, para além do grito que permite às mulheres se posicionarem de forma a
convocar os homens, pais de seus filhos a um arranjo que seja justo no que concerne à administração
da vida privada, há ainda uma luta sendo travada para que consigam adentrar e se manter na esfera
pública da sociedade onde buscam possibilidades que as permitam ser e pertencer fora da

76 Beauvoir aponta que a mulher, desde a infância, é levada a crer que o exercício da maternidade é a finalidade de sua natureza e todas as
dificuldades às quais será submetida no interior da sociedade em que vive, estará sempre sendo justificado pela glória de ter um filho, pelo
privilégio de poder tornar-se mãe. O SEGUNDO SEXO, p, 654.
77 Referência ao poema Gritaram-me Negra, de Vitoria Santa Cruz.

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domesticidade do lar. Ficou declarado o quanto cansativo é para uma mulher se afirmar no mundo e
se é mãe, a dificuldade é elevada ao quadrado, pois além de lutar pelo seu direito de ser e pertencer,
não deve desconsiderar a existência de um outro que por muitos anos acaba sendo apontado como
seu grande dependente dos quesitos mais básicos como alimentação, higiene e sobrevivência aos
mais complexos como educação, formação para viver em sociedade e caráter. Passando por este
ponto, observei que é ideal que seja estabelecida uma discussão sobre o cuidar das crianças como
responsabilidade compartilhada não somente entre aqueles por elas primeiramente responsáveis,
mas ainda com uma noção ampliada e mais crítica sobre tal.
Para partirmos a uma reflexão, trago o provérbio africano que diz “é preciso uma aldeia para
educar uma criança”. O provérbio pode parecer simples, mas requer um exercício reflexivo extenso.
Primeiramente, o que dificulta pensarmos por este viés como me parece o sugerido pelo dito é que
aqui em nossa sociedade construída com suas bases no sistema capitalista que exalta o indivíduo e
estimula a individualidade, o egocentrismo e a ideologia do mérito, extinguimos a noção de
comunidade, de comunitário e de comunhão. Assim, nos habituamos ao isolamento total possível e
somos levados a crer sermos os únicos responsáveis pelo nosso destino, como se aquilo que é
exteriormente formulado não me coagisse a determinados lugares sociais e comportamentos. Daí,
esclarecemos as possibilidades de atuação para cada qual: a vida privada para a mulher e a vida
pública para o homem. A maternidade facilita a possibilidade de ser a mulher mantida no lugar a ela
destinado.
Para que seja eficiente a ideia acima apresentada, construções várias e unilaterais são feitas
com relação aos cuidados com os filhos e tais construções produzem discursos que projetam na
sociedade aquilo que ela espera de uma mãe: que ela seja a grande detentora da capacidade de gerar,
educar e formar seres humanos para o mundo. O filho é da mãe! Mãe é mãe. Pai é outra história.
Percebendo tal ação sobre si, uma das mulheres com quem dialoguei, declarou ser a
maternidade o ato social mais solitário que ela conhece. Alega que por mais que lute pela libertação
da mulher de tantas amarras, incluindo a da maternidade, acredita que se sente vivendo num funil,
cada vez mais se sente pressionada, sendo conduzida a um estreitamento que foge do seu controle.
Percebe que as construções acerca da maternidade são dificílimas de serem desestruturadas ou, ao
menos, contornadas, pois ao pensá-las enxerga um paradoxo de liberdade e prisão. Prisão porque
cerceia. Quando não cerceia, dificulta de tal forma que torna o trajeto da vida extremamente
cansativo e, assim, o torna algo de qualidade duvidosa. Por vezes, tal dificultamento é tamanho que
torna uma desistência de si a escolha mais confortável para o corpo, mas nem sempre para a alma.
De repente, quando o caminho parece claro, as encruzilhadas se apresentam. A vida dos filhos que
ainda são dependentes de seus pais, requer decisões, abdicações e negociações. Neste momento,
aquela prisão é colocada para a mulher como um mundo de plena liberdade, onde é ela a única com o
poder de tomar as decisões pertinentes, como se fosse isso, um privilégio.

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Concordo com o que disse esta mulher e sinto que é nessa cruel liberdade imputada a nós, de
escolher sobre a vida dos filhos, que se delineia a solidão da maternidade. É aí que fica estabelecido
que o filho é da mãe. Junto a esta imposição recebemos de brinde o pacote da culpabilização.
A culpa maternal é um processo que advém de dois pontos, o externo e o interno. O
estabelecimento da culpa vem da sociedade que reproduz às construções machistas acerca da
maternidade e da criação dos filhos. Ela vem também de dentro, do interior da própria mulher.
Uma se sente culpada por todas as vezes que se exalta com a filha.
Outra se sente culpada porque sua cria estuda numa escola que está longe do que concebe
como uma prática educacional libertadora. Culpa-se ainda, por todas as noites que precisa sair de
casa para atender suas clientes e deixar seus filhos dormindo.
Algumas se culpam pelo excesso de trabalho, os que lhes ocupa muito tempo fora de casa.
Aquela, certa da decisão que tomara, se culpou quando decidiu não abdicar do seu mestrado em outra
região do país e, assim, não tendo o que fazer, levou consigo os seus filhos, lá chegando os viu chorar
pela precariedade das condições da casa em que morariam durante o tempo do curso. Passou todo
um semestre se culpando porque seus filhos ficavam trancados em casa o tempo todo enquanto ela
estudava, pois tomava a prisão como a medida de segurança mais acertada naquele momento para
eles. Sucumbiu. Passou a levar os filhos para a universidade e lá eles passavam o dia. Culpou-se por
isso também. Desistiu de mantê-los consigo. Entre um semestre e outro resolveu retornar com eles
para casa e os deixou sob os cuidados de sua mãe e irmãos. Voltou ao mestrado sem os filhos, em
outra região do país. Certa de que fez a melhor escolha para eles, mas ainda assim se culpou pela
saudade que se estabeleceu.
Tem a mãe que se culpa por ter trabalhado toda a vida e ainda assim não ter construído
patrimônio material para os filhos. Por alguma razão ela considera isso mais importante que o tempo
que deixou de viver com eles.
As mais jovens, se culpam por retornar ao trabalho e deixar o filho de meses sem o seu seio.
Entendem que sua renda é determinante para a família e, por esta razão, passam toda a sua licença
maternidade cogitando possibilidades de não precisar retornar, mas também não precisar abster a si
e sua família da sua renda. Voltam. Sofrem. Sofreriam ainda que não tivessem retornado.
Ao longo do processo de pesquisa, a proposta nesta delineada me pareceu uma discussão de
extrema importância. Primeiro, para o questionamento sobre as formas de opressão que são forjadas
a partir de uma ideia de gênero já ultrapassada. Segundo, para que haja o real reconhecimento,
respeito e valorização da mulher, em seus múltiplos papeis sociais, na/pela sociedade e suas
instituições.
Faz-se necessário indagarmos não somente sobre a participação do homem no espaço
privado, no que diz respeito à administração do lar, suas tarefas e os cuidados com filhos. Precisamos
sair desse lugar comum e ir além. Conseguir o compartilhamento adequado da vida privada entre
homens e mulheres é de extrema relevância para uma reorganização das formas dos indivíduos se
relacionarem em nossa sociedade. Entretanto, se é claro que há uma estruturação do machismo em

NARRATIVAS
680

nossa sociedade e que é algo que supera as relações pessoais, as narrativas apresentadas e tantas
outras facilmente observadas no cotidiano nos levam a perceber que a sociedade e suas instituições,
assim como os indivíduos, precisam urgentemente ser problematizadas e convocadas a mudanças que
possibilitem o acolhimento das mulheres e sua maternidade.
As gerações de mulheres que aí estão, não mais se encerram no recato do lar. Elas estão na
rua, no mercado de trabalho, nas instituições de ensino, nos movimentos sociais e espaços de
politização da vida. Parte dessas mulheres está inserida na maternidade por opção. Outras não.
Precisam ter formas de lá se manterem. Precisam ter tais espaços adaptados a elas e sua condição
de maternidade que não mais se sustenta somente na esfera privada da vida. Precisamos trabalhar
em cima de um conceito de justiça e não de igualdade. A justiça precisa respeitar e, principalmente, se
respaldar nas diferenças. Então, assim sendo, convido a enxergarmos a maternidade como espaço
que possibilita a empatia, a valorização do diverso e a luta política a fim de que mulheres possam
ocupar espaços na sociedade sem que para tal, seja necessária uma dicotomia entre o “ser” e o “não
ser mãe”. A maternidade não deve ser uma escolha entre ser ou não massacrada e alijada na sua
condição de mulher, profissional, acadêmica e o que mais ela quiser ser. E, mesmo quando a
maternidade não se torna encarceradora, tal resultado se dá com base em escolhas que por vezes
apontam rupturas e abstenções difíceis de adotar. Assim sendo, esta pesquisa nos mostra a
necessidade de uma discussão atenta sobre o peso das escolhas e das vivências desta mulher que é
mãe, para ultrapassar os espaços e ideais de comportamentos a ela permitidos.
O que é ser mãe? O que é ser mãe e insistir em ser você mesma, fora da existência dos
filhos? Digo, não desconsiderando-os, mas dando a si o mesmo lugar de importância que a eles.
Considerando-os sem se desconsiderar.
Houve quem dissesse que a maternidade é essa loucura mesmo. Que é um lugar de
tentativas, erros e acertos. É uma oportunidade de evolução, mas não de uma perspectiva ideal e sim
de uma perspectiva de vida que se quer espiritualizada. Maternidade como lugar de aprendizado e
expiação, como possibilidade de construção, desconstrução e reconstrução de si a partir do outro. É
experiência que permite os olhos sorriem fartos de cansaço. É um lugar que solicita pausa, mas nem
sempre há essa possibilidade.
Uma delas disse, sem pestanejar, que a maternidade lhe proporcionou a medida exata do
amor. Foi com o nascimento do seu primeiro filho que percebeu o quanto nada entendia sobre o que
era amar. Esclareceu com veemência: “amo meus filhos, mas aprendi a amar com o tempo. Esse
negócio de amor inato é uma balela”. Explicou que a primeira construção acerca da maternidade com
a qual se deparou quando tomou seu primogênito nos braços foi a noção de responsabilidade. Não
pensava naquela coisa bonita de ter a responsabilidade de educar um grande homem, mas sim, se
desesperava levemente em pensar que tinha a responsabilidade de manter aquele organismo vivo. A
responsabilidade que furtou dela algumas semanas de sono, estava embasada em sua crença de que
era a única a ter o dever de manter aquela criança alimentada, limpa e respirando. Não teve tempo
para amar, confessou. Percebeu que amava seu filho quando se viu certa de ter a capacidade de

NARRATIVAS
681

cumprir aquilo que associava a ideia primeira de responsabilidade. Não sabe quando exatamente, mas
em dado momento, quando a pânico se esvaiu, se percebeu amando.
Outra delas foi mãe bem jovem e disse que, talvez por isso, nunca tenha pensado sobre o que
é a maternidade em sua vida. A maternidade apenas “é”. Seus filhos são parte da sua vida, do seu
cotidiano e da sua felicidade. Se sente completa com eles. Pensa em quantas boas oportunidades de
vida poderão ter, bem diferente dela que sempre encontrou suas oportunidades em meio a muitas
dificuldades. Toca a vida. Abre suas estradas. Constrói os seus caminhos e terá seus filhos em
companhia até onde e quando eles quiserem. Busca uma relação de amizade. Olhando de longe, me
pareceram três irmãos. Acha graça quando seu caçula pede atenção e a acusa de só querer ler.
Algumas delas dizem que olham ao redor e percebem o quanto a maternidade submete a
mulher sim, mas se sentem tão felizes com seus filhos que esta questão ganha uma conotação
exclusivamente política em sua vida. São daquelas que se esforçam para não perder a paciência com
os filhos, mas não deixam de se posicionar percebedora das construções que tomam a maternidade
como uma poderosa ferramenta de opressão contra as mulheres.
Algumas são donas de uma calma que contagia, mas são incapazes de proferir julgamento
sobre aquelas que, como eu, por vezes, não mantêm o total equilíbrio perante a maternidade e as
situações por ela forjadas.

CONCLUSÕES

Através da pesquisa, dos diálogos e trocas através dela constituídos, percebi que, justamente,
por ser a maternidade algo que me impulsiona a caminhar, logo é também, algo que me permite
compreender o quanto de dificuldades se estabelece nesse passo-a-passo da vida de uma mulher que
é mãe e insiste em atuar no mundo. Daí a necessidade de discutir, refletir e problematizar tais
dificuldades.
A maternidade me levou a olhar com mais atenção para a condição das mulheres ao meu
redor. Vi que compartilhávamos muitas dificuldades. Vi que os cerceamentos se impõem a todas.
Constatei por hora que a maternidade tem sido sim um espaço eficiente de opressão da mulher pelo
homem. Mas como dizem, não há luz sem escuridão. Se não fosse a maternidade uma forma bastante
poderosa de opressão contra a mulher, logo não se estabeleceria como um rico espaço politico.
Quando converso com mulheres sobre a maternidade que exerce, percebo o quanto todas,
cada qual ao seu modo, estão se posicionando política e eticamente diante do mundo e suas questões.
Elas se movimentam ou, simplesmente resistem, às construções machistas e a rígida dicotomia dos
papeis de gênero constituídos com base no patriarcado, muito frequentemente sem ter consciência de
que fazem. Consciência menos ainda tem de que tais posicionamentos são políticos.
Pude observar que a maternidade é sim cerceadora, encarceradora, porém, ela tem sido
exercida por mulheres que não mais permitem docilmente que desta forma ela atue sobre suas vidas.

NARRATIVAS
682

As mulheres que encontro, as que são mães e também aquelas que não são e/ou não serão,
parecem a princípio estarem em crise com a maternidade, mas olhando e dialogando mais
atentamente e ouvindo o que elas têm a dizer, é possível compreender que a crise não é com a
maternidade diretamente. A crise que tem se estabelecido é com a estruturação do machismo em
nossa sociedade. Tal estruturação faz da maternidade uma eficiente ferramenta de opressão e
cerceamento das mulheres.
Tenho ouvido cada vez mais, discursos de negação da maternidade que me parecem muito
coerentes e merecedores de apoio, que se constituem a partir daquilo que não se quer sofrer, daquilo
do qual as mulheres não desejam abrir mão. Temos aí uma geração que, cada vez mais, tem
consciência das impossibilidades que lhes serão imputadas caso se torne mãe. Tem me parecido
muito mais uma escolha pelo não ser ainda mais marginalizada do que uma indisposição para lidar
com a formação de outro ser humano.
Para finalizar a discussão desta pesquisa, após os diálogos estabelecidos, me dispus a
observar os dados do IBGE na pesquisa feita sob o recorte de gênero. A pesquisa aponta que em
matéria de escolarização, de modo geral, as mulheres vão aos níveis mais altos. Os homens
engrossam os números no quesito abandono escolar, principalmente, por conta da necessidade de ir
ao mercado de trabalho. Entre as mulheres mais jovens, verifica-se que mais da metade que está fora
do processo de escolarização tem esse afastamento diretamente ligado à maternidade.
Penso que, mais que motivados pela necessidade econômica, os homens mais jovens, aqueles
que abandonam o ensino médio para ingressar no mercado de trabalho, o fazem também influenciados
por uma construção de gênero que ainda hoje coloca o homem como o provedor material, assim
como, coloca as mulheres como as responsáveis pelo lar e pelos filhos. Logo, estas abandonam a
escola para se encerrarem no lar. Não somente a partir desse quadro, observo que, mesmo havendo
a intenção em se manter no processo de escolarização, as mulheres quando são mães, de alguma
forma, se não de muitas, são empurradas a se retirar do mesmo, pois as instituições de ensino, seja
qual for o nível de escolarização, não estão estruturadas a receber e acolher mulheres que atuam na
maternidade.
Por tudo que foi e ainda tem sido pensado por mim, através das discussões iniciadas pela
minha pesquisa de mestrado, estou certa sobre a continuidade deste trabalho no curso de doutorado,
onde proporei o enfoque em torno de questões que revelem o que é ser mulher, mãe e acadêmica na
realidade do campus da UFRRJ onde atuo, e da região em que ele se localiza. Em tal contexto,
contamos com uma maioria de mulheres que são mães solo, trabalhadoras e negras. A ideia é discutir
a estruturação de um machismo que se quer acadêmico e que dificulta, constrange, penaliza e quando
não, cerceia a atuação dessas mulheres num espaço que se constituiu historicamente como
masculino, branco e de classe média a alta.

NARRATIVAS
683

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo, Companhia das Letras, 2014.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_____. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo – volume único. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2009.
MIGUEL, L. F. Feminismo e Política: uma introdução / Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2014.
LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Ed. Rocco, RJ, 1999.

NARRATIVAS
RESUMO
684

O presente texto busca o cotejo entre a filosofia

POESIA COMO ATO bakhtiniana e o filme Paterson (2016), de Jim


Jarmusch, para discutir a emergência da poesia
como ato responsável do homem que ama.

RESPONSÁVEL DO HOMEM
Aproxima arte e vida a partir de três enfoques: o
banal e o poético no cotidiano; a percepção poética
como ato de compreensão; e a imagem em
presença.

QUE AMA: diálogos com o filme


Paterson, de Jim Jarmusch Palavras-Chave: Poesia. Cotidiano.
Ato Responsável

BORDE, Patrícia do Amaral 78

SCHADE, Robert 79

INTRODUÇÃO

Após penetração profunda e escuta amorosa do filme Paterson (2016), nos sentimos
mobilizados a tecer conversação a respeito de um tema que emerge no filme e que consideramos ser
de extrema importância para a teoria bakhtiniana: a conexão entre arte e vida na unidade da
responsabilidade.
O filme, dirigido por Jim Jarmusch, apresenta uma narrativa poética que recorta uma semana
no cotidiano de Paterson, um motorista de ônibus que é também poeta, e que vive com sua esposa
Laura e o cão Marvin. A história se passa na pacata cidade de Paterson, localizada em Nova Jersey,
EUA, onde também viveu o escritor, inspiração do motorista, William Carlos Williams, autor de uma
obra também intitulada Paterson.
Um olhar aligeirado sobre o filme poderia fazer supor que se trata de uma narrativa lenta,
repetitiva, e banal sobre o dia-a-dia de um casal apaixonado. O que não é de todo equivocado. Contudo,
um olhar e uma escuta mais diretivos e cuidadosos nos fazem notar detalhes imprescindíveis à
compreensão do filme como uma obra de arte responsiva, que integra o diálogo ininterrupto entre os
sentidos no pequeno e no grande tempos da cultura humana.
Gostaríamos de propor três entradas teórico-metodológicas para conversar com o filme. São elas: (1)
o banal e o poético no cotidiano; (2) a percepção poética como ato de compreensão; e (3) a imagem
em presença. Não queremos, de modo algum, incitar a um fechamento dos sentidos da obra. Pelo
contrário, nossa busca é o diálogo e o alargamento dos sentidos. As três chaves de conversa se

78
Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do Grupo Atos/UFF. E-mail: borde756@gmail.com
79 Doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Potsdam. Professor do CEFET-RJ. Pesquisador do Grupo Atos/UFF. E-mail:
rrschade@gmail.com

NARRATIVAS
685

interpenetram e convergem para um tema que consideramos primordial e que integra a arquitetônica
da obra bakhtiniana: o ato responsável.

1. O BANAL E O POÉTICO NO COTIDIANO

Fonte: imdb.com80

Paterson e Laura acordam juntos todos os dias. Paterson olha o relógio. No criado-mudo há
sempre um livro. Laura conta seu sonho. Eles tomam café da manhã, ele lê um poema de William
Carlos Williams. Paterson sai para trabalho. Caminha carregando sua maleta com a comida preparada
por Laura. Paterson vê gêmeos. Já sentado no ônibus, à espera da partida, Paterson escreve. O fiscal
da companhia de ônibus interrompe a escritura. Paterson inicia sua jornada laboral no ônibus de
número 23. Laura pinta estampas circulares. As horas passam, Paterson dirige o ônibus, enquanto
observa as cenas da cidade e escuta as conversas dos passageiros. No intervalo do almoço, Paterson
passeia pelas ruas, contempla as paisagens e as cenas cotidianas, escreve. Paterson vê gêmeos.
Paterson contempla as quedas dágua e a ponte sobre o Rio Passaic. Paterson escreve em seu
caderno secreto, investe todas as horas vagas na escritura de poemas de amor. Paterson vê gêmeos.
Laura trabalha em casa, criando estampas em branco e preto, sobre móveis e tecidos. Laura sonha
com a promissora carreira de cantora country. Laura cozinha e inventa obras de arte em cupcakes.
Marvin a observa. Finda a carga horária de trabalho, Paterson volta para casa, ajeita a desobediente
caixa de correio. Paterson finalmente reencontra sua amada. Já noite, Paterson sai para caminhar
com Marvin, faz uma pausa no bar e toma uma cerveja. Contempla, observa, dialoga com o dono do
bar e seus habituais clientes.
A descrição acima pode parecer desnecessária e cansativa. E, certamente, não dá conta do
rico universo de imagens que compõem o filme. No entanto, nossa intenção foi mesmo a de descrever
monotonamente, propositalmente selecionamos alguns dos eventos mais repetitivos, porque o próprio
filme apresenta a repetição. Todos os dias acontece tudo sempre igual. O amanhecer em um ninho de
amor, o relógio, o sonho, o café da manhã, o cão, o ônibus, a cidade, os passageiros, os gêmeos, a

80
Todas as imagens utilizadas neste trabalho são cenas do filme Paterson (2016).

NARRATIVAS
686

caixa de correio, o passeio, o bar, o caderno secreto, a poesia, entre outras tantas imagens. Mas
ainda que pareça ser tudo sempre igual, também e ao mesmo tempo, não é tudo sempre igual. A
repetição na narrativa é incômoda e nos impele a reparar nos detalhes, a ler as entrelinhas.
Jim Jarmusch nos ajuda a olhar. Arriscamo-nos em dizer que ele opera no filme Paterson a
conexão, a inseparabilidade entre arte e vida, que Bakhtin já defendia em seu primeiro texto, Arte e
Responsabilidade81 (1919):

O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem
da vida saiba que sua falta de exigência e falta seriedade das suas questões vitais respondem pela
esterilidade da arte. (Bakhtin, 2011, p. XXXIII)

A narrativa em Paterson é construída por uma aparente sequência de repetições, de onde


emergem inúmeras diferenças. O trabalho mecânico e repetitivo de um motorista de ônibus se
singulariza e se alarga no movimento de sua consciência, de seu olhar poético que desnaturaliza o
banal da vivência cotidiana. A composição das cenas em cada dia da semana encerra uma
peculiaridade que torna um dia distinto do outro. Em todos os dias dessa rotina aparentemente
monótona ocorre um evento inusitado, como o encontro com a menina-poeta leitora de Emily
Dickinson, e o incidente técnico com o ônibus que leva ao atraso da viagem. Contudo, tanto os eventos
inesperados quanto as quase invisíveis alterações da rotina emergem como potencializadores do
encontro, da relação amorosamente interessada que se pode estabelecer com as pessoas e com os
objetos.
Vislumbramos os mais pequenos detalhes a partir da focalização do olhar do poeta nas coisas
triviais. Pelos enquadamentos da câmera vemos o que Paterson vê. A cada detalhe que a câmera foca,
temos a perspectiva do poeta. São nessas aproximações das miudezas que percebemos as mudanças,
as diferenças, as coisas presentificadas e vivas na relação com o humano.
Um olhar apurado nos leva a compreender que nada é um excesso, ou uma arbitrariedade na
narrativa proposta no filme. Do modo como o casal se abraça enquanto dorme, da imagem da cortina
vista por um ângulo inusitado, da disposição sempre outra dos livros sobre a mesa de cabeceira, do
relógio que marca o despertar com poucos minutos de diferença de um dia para o outro, ao
movimento das águas que se mesclam às paisagens e cenas rotineiras, tudo tem um propósito de ali
estar, porque todas as coisas se vivificam e são importantes para o poeta. É do cotidiano, do
movimento das coisas, do fluxo da vida, que ele faz sua poesia. Paterson é o poeta responsável pela
prosa trivial da vida. A poesia é seu ato responsável no mundo.

81
Texto publicado em Estética da Criação Verbal (2011)

NARRATIVAS
687

2. PERCEPÇÃO POÉTICA COMO ATO DE COMPREENSÃO

Fonte: imdb.com

Temos muitos fósforos em casa


Sempre estamos com eles em mãos
No momento, nossa marca favorita
É a Ohio Blue Tip
Nós costumávamos preferir a Diamond
Mas isso foi antes de descobrirmos
Os fósforos da Ohio Blue Tip
Eles são muito bem empacotados
Em caixinhas pequenas e resistentes
Com tons de azul claro e escuro e letras brancas
Com palavras escritas
No formato de um megafone
Como se gritassem ainda mais alto ao mundo:
Aqui está o mais belo fósforo do mundo
É um delicado palito de pinho de uma polegada e meia
Com uma cabeça roxa-escura granulada
Tão sóbria, furiosa e teimosamente pronta
Para entrar em chamas
Acendendo, talvez, o cigarro da mulher que você ama
Pela primeira vez
E nunca mais foi o mesmo depois disso
Tudo isso que te dou
É o que você me deu
Eu me torno o cigarro e você o fósforo
Ou eu o fósforo e você, o cigarro
Ardendo em beijos que se esvaem para o céu82

O mais belo fósforo do mundo é aquele que acende o cigarro da pessoa amada. Ohio Blue Tip é
a marca de palitos de fósforo que Paterson e Laura preferem utilizar. Esta singular caixinha de

82
Poema de Amor, no original, Love Poem, é um dos poemas escritos pelo poeta norte-americano Ron Padgett, exclusivamente para compor o
filme Paterson. Tradução dos autores.

NARRATIVAS
688

fósforos é viva na relação entre o casal enamorado, é por isso matéria para o poema de amor que
Paterson dedica a Laura.
Neste poema, como em outros que vão tecendo o filme, é evidente o foco nas coisas menos
importantes. Paterson nos ensina um outro modo de olhar para as coisas. Aí é que a profissão de
motorista de ônibus parece se integrar perfeitamente ao ato de criação da poesia. A sua rotina é
sempre em movimento, em trânsito, como sua consciência que flui, escoa pelas ruas da cidade, como
a imagem das águas do Rio Passaic vão se sobrepondo às cenas vivas do cotidiano. A percepção
poética em Paterson se transmuta em ato de compreensão da vida. O poeta vê como a criança, com
um sentimento de encanto por todas as coisas do mundo.
Paterson encarna a imagem do artista que se encontra na tangente, na linha tênue fronteiriça
entre arte e vida, no limiar, posição extralocalizada, que provoca o olhar oblíquo para realidade. O
poeta realiza na sua poesia a conexão entre arte e vida, criando um feixe de luz que nos ilumina, nos
ensina um outro modo de se relacionar, um outro modo de olhar. Ele nos informa que tudo pode ser
poético, mesmo as desimportâncias, porque o que torna as coisas importantes é modo como nos
relacionamos com elas.
No encontro com os palitos da Ohio Blue Tip, Paterson se torna outro, Laura se torna outra,
assim como aquele fósforo nunca mais será o mesmo. Bakhtin nos diz que essa é a força da atenção
amorosamente interessada, que age segundo o princípio do “não o amo porque é bonito, mas é bonito
porque o amo” (2010, p. 128). Nessa relação, todas as coisas estão vivas, o poeta as ama e é
responsável por elas. Ele abraça tudo o que existe, mantendo “a diversidade concreta do existir, sem
empobrecê-lo e sem esquematizá-lo” (2010, p. 128)

3. A IMAGEM EM PRESENÇA

Quando você é criança você aprende que existem três dimensões


Altura, largura e profundidade
Como uma caixa de sapatos
Mas depois você escuta dizer que existe uma quarta dimensão
Tempo
Hmmm
Depois outros dizem que podem ser cinco, seis, sete...

Eu saio do trabalho
Tomo uma cerveja no bar
Olho o copo e me sinto feliz83

Também nos Apontamentos do anos 1940, Bakhtin (2004) nos convoca a tecer uma outra
relação com as coisas do mundo, tomando como princípio o amor. Essa relação, como já salientamos
anteriormente, é responsiva, e toma o “objeto” em sua singularidade, a partir de uma relação não-

83
Mais um, do original Another one, poema de Ron Padgett para o filme Paterson. Tradução dos autores.

NARRATIVAS
689

instrumental com ele. A poesia de Paterson assim como a relação que ele estabelece com o mundo a
sua volta, com a cidade mesma, não é utilitária. Tanto na vida como na poesia, Paterson não usa as
coisas, ele dialoga com elas. Nessa ação responsiva, nesse modo amoroso de olhar, tudo se
presentifica. As coisas falam com ele, a cidade fala.
O poeta transita, como podemos notar no poema Another one, do universal ao singular, do
grande ao pequeno tempo, da abstração à concretude do ato. Através da escrita poética, ele reflete
sobre as dimensões do espaço, e compreende a caixa de sapatos. Ele percebe o tempo como uma
possível quarta dimensão do espaço, e deixa em aberto a possibilidade de uma quinta, uma sexta, uma
sétima... E retorna para a vida. Vida de um homem mortal, que trabalha, que se diverte no bar tomando
uma cerveja, que se sente feliz. Uma vida que não existe fora de um tempo-espaço valorado.
Bakhtin faz uma crítica severa em seus Apontamentos (2004), à palavra-violência que,
segundo ele, “pressupõe um objeto ausente e mudo, que não escuta e não responde, não se dirige a
ele, nem exige o seu consenso; é uma palavra em ausência.”84 Esse é o ato mecânico das relações
instrumentais, que cria uma conexão superficial e externa entre as partes de um todo, e não penetra
a unidade interna do sentido. (Bakhtin, 2011, p. XXXIII). Aí arte e vida não se interpenetram, e vivemos a
criar álibis.
Ousamos dizer que Bakhtin veria no poeta Paterson a imagem do humano que encarna arte e
vida na unidade de sua responsabilidade, porque tanto na vida cotidiana como na poesia, Paterson
dialoga com as coisas em presença. E de seu ato responsivo, o tempo emerge como intensidade,
porque de sua consciência participante, o que entendemos por tempo linear, rotina e ações
mecânicas, tudo isso é implodido. Porque não existe álibi para a existência.
Todas as coisas ganham novos e potentes sentidos vivos na relação. Paterson ama, e sua
atenção a todas as coisas do mundo torna cada coisa singular e especial, viva. Os olhos de Bakhtin e
os olhos de Paterson se encontram, e o poeta se emociona ao ouvir o que Bakhtin lhe conta:

Somente o amor pode enxergar e representar a liberdade interna do objeto. [...] Somente para o amor
se revela a absoluta inconsumibilidade do objeto. [...] O amor acaricia e afaga as fronteiras, que
assumem um novo significado. O amor não fala do objeto na sua ausência, mas fala dele com ele mesmo.
(Bakhtin, 2004, p. 4)

84
Tradução a partir da edição italiana, feita pelo Grupo Atos-UFF.

NARRATIVAS
690

CONSIDERAÇÕES PARA ALARGAR O DIÁLOGO

Fonte: imdb.com

Por que escrevemos este texto? O estudo da obra de Bakhtin nos impele a sair da obra de
Bakhtin. Sua voz chama outras vozes, e nos provoca a cotejar os sentidos daqui com os de lá. Depois
que penetramos profundamente na arquitetônica de sua filosofia, torna-se impossível não olhar para a
vida, para a cultura, para a ciência, sem revestir os óculos com a lente bakhtiniana.
O encontro com o Paterson de Jarmusch foi avassalador, foi um encontro de amor. E não só,
foi para nós uma assunção da poesia como ato responsável do homem mortal que ama. Arte e vida na
unidade da responsabilidade. “É necessária uma nova surpresa filosófica em relação a tudo, tudo
poderia ser outro.” (Bakhtin, 2004, p. 9).
Em Paterson tudo é outro. Essa é a potência da poesia. O poeta encontra o mundo, ama. Qual o
olhar da criança, o olhar do poeta abre os sentidos do mundo, alarga as possibilidades do viver, torna
visível o que não se via, vivo o que estava morto. Renova a cadeia ilimitada de sentidos da cultura
humana que habitam o grande tempo. Ensina a amar.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Dagli appunti degli anni Quaranta. Trad. do russo de Augusto Ponzio. Corposcritto, n. 5. Bari :
Edizioni dal Sud, 2004.
_________. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_________ Para uma Filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

NARRATIVAS
RESUMO
691
Este texto aponta um olhar entre as relações
interpessoais, especificamente de diálogo no

BEBÊ FAZ ISSO !? contexto da Educação Infantil e o modo de


linguagem não verbal entre a criança e o professor,
pautados nas pesquisas de Bakhtin como forma de
reflexão sobre as relações existentes no cotidiano
escolar.

Palavras-Chave: Diálogo. Linguagem Não Verbal,


CAMPANA, Simone Ap. Ferreira 85
Educação Infantil. Relações Interpessoais.

INTRODUÇÃO

E
sta narrativa parte da justificativa da importância de fazer uma relação entre o cotidiano escolar
e as relações interpessoais dentro do contexto da educação infantil. Descrevo neste o relato de
uma experiência de linguagem verbal porém não oralizada entre uma criança de um ano e dez
meses e a professora, onde a criança expõe sua percepção sobre o meio que a cerca, dialogando
com a profesora através de gestos e sinais corporais.
E para contemplar este ato responsável busco aliar as discussões, leituras e pesquisas
realizadas no grupo de estudos de Bakhtin com o cotidiano escolar em busca de novas perspectivas
sobre as relações existentes.
Sou professora de educação infantil, trabalho neste ano de 2017 com crianças na faixa etária
de um a dois anos.
Certa manhã fomos ao refeitório para bebermos água, as crianças sentaram-se à mesa
frente a mim e fizemos a nossa rotina para o momento da água. Após terminarmos, como de costume
continuamos sentados e cantamos algumas cantigas de roda, que envolviam gestos.
Iniciei então uma canção que falava do trajeto e de movimentos que o ônibus e os passageiros
fazem ao utilizarem esse meio de transporte, estava na parte onde dizia que o passageiro sobe e
desce, sobe e desce pela cidade... Como estávamos sentados, o esperado seria apenas
movimentarmos o tronco para baixo e para cima.
Neste momento então Maria levantou-se para fazer os movimentos sugeridos pela canção.
Sofhia ao perceber que Maria ficou em pé no banco, logo adotou uma postura estática e me olhando
dizia:
- Mona! (Mona é a maneira que ela consegue pronunciar meu nome, Simone).
- Mona! E ao mesmo tempo movia somente os olhos para Maria. Olhava para mim e dizia:

85 Pedagoga formada pela Unicamp –Universidade Estadual de Campinas – Pós Graduada em Especialização em Educação Infantil pela
Faculdade São Luiz – Pós Graduada em Literatura e Contação de Históia pela FACIBRA –Pós Graduanda em Psicopedagogia e Arte Educação pelo
IBFE Campinas - Professora de Educação Infantil da rede Municipal de Paulínia. Participa do grupo GRUBAKH, subgrupo do GEPEC\FE\UNICAMP
- E-mail: simonecampana75@hotmail.com

NARRATIVAS
692

- Mona! E movimentava os olhos para Maria. Percebendo que ela me chamava continuei a
cantar e a observei com mais atenção e ela repetia os gestos, foi então que Sofhia percebeu que eu
não estava entendendo aquele sinal com os olhos e acrescentou algo mais na comunicação: colocou as
mãozinhas em cima da mesa e disfarçadamente apontou o dedo indicador para Maria fazendo com as
mãos, com os olhos e pronúncia um sinal para eu perceber que Maria estava em pé no banco!
Sofhia estava com muito cuidado me mostrando o que a amiga fazia sem esta amiga perceber
que a Sofhia a entregava para mim, acrescento também que não houve em algum momento uma
linguagem verbal da situação, somente o uso do corpo como forma de expressão a não ser o uso da
palavra Mona.
Levando em conta que Sofhia possuía na época um ano e dez meses eu fiquei admirada com
essa atitude, pois já havia visto tal comportamento em adultos ou crianças bem maiores.
Baseando-me nas aprendizagens, vivências, nos diálogos, trocas e leituras dentro do grupo de
estudos de Bakhtin e profundamente tocada por esses encontros, ouso aqui interpretar minhas
vivências e experiências a partir dos mesmos.
Observo nesta ação da Sofhia uma intencionalidade, um subjetivismo individualista partindo de
uma ideologia apresentado aqui pelo enunciado concreto, onde ela propôs uma situação construindo
uma cultura produzida no seu ato, para além da gramática. Enunciando, conseguindo me atingir com
uma forma de linguagem não oral e evidenciando a mesma de tal forma até que ela sentisse que se
fazia compreendida por mim e eu ao mesmo modo demonstrei-me compreendida por ela.
Criaram-se atos e perspectivas, uma relação de aproximação, possibilidades de
conhecimentos múltiplos, um crescer as culturas tão logo que cada um no caso possui a sua, houve
um confiar no outro, planejar uma ação para uma busca de resposta dentro deste tempo e espaço. Um
ato ético que envolve a ação e o pensar nos colocando como autores coletivamente nesta relação vida
e grupos reunidos onde cada indivíduo vai se constituindo.
Nesta relação grupo de crianças, Sofhia, eu, eu para o outro, o outro para mim, nesta situação
vivida naquele exato instante houve um movimento onde os sujeitos estavam em um tornar-se, em um
reconhecer-se, criando e produzindo identidade, pois este não era um momento que já havia sido
criado.
Sofhia criou esta linguagem em casa, segundo a mãe ela entrega os irmãos desta forma e
trouxe para a escola transmitiu a mim e vez ou outra sinaliza deste modo citado acima alguma
situação que ela entende como arbitrária ao momento!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de um olhar diferenciado sobre as relações interpessoais dentro do contexto escolar,


observando e narrando uma experiência na educação infantil sob a luz das pesquisas e encontros
realizados no grupo de estudos Bakhtin considero que este diálogo entre prática escolar,
conhecimento científico e narrativas dos mesmos podem talvez vir a ser modificadores positivos

NARRATIVAS
693

nestas relações partindo do ato ético e alteridade entre os seres, visando uma melhoria contínua e
reflexiva.

REFERÊNCIAS

VOlÓCHINOV, Valentin.Marxisimo e filosofia da linguagem.Problemas fundamentais do método sociológico na ciência


da linguagem.Trad. Sheila Grilo e Ekaterina Américo.São Paulo.Ed 34,2017 (1 ed. )376p.
PRADO. Guilherme Do Val Toledo, PROENÇA. Heloísa Helena Martins. SERODIO. Liana Arraias. FILHO.Ruy Braz da
Silva.[Orgs.] Pipocas Pedagógicas IV: narrativas outras da escola.São Carlos: Pedro &João Editores, 2017. 163p.
PRADO. Guilherme Do Val Toledo, PROENÇA. Heloísa Helena Martins. SERODIO. Liana Arraias. RODRIGUES. Nara Caetano.
Metodologia Narrativa de Pesquisa em Educação:Uma perspectiva Bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João
Editores,2015.213p.

NARRATIVAS
RESUMO
694
Este texto propõe-se a estudar a narratividade
como mediação dialógica de enunciações ao
articular a narrativa da modernidade industrial com

HISTÓRIA, NARRATIVA, a narrativa da crônica “O Punhal de Martinha” do


escritor Machado de Assis. Assim fazendo, o que se
procura defender é a força dialógica da memória,

MEMÓRIA: a enunciação da
enquanto realização da tensão da lembrança com o
esquecimento, uma vez que sob a determinação da
modernidade os produtos culturais são
atravessados pelo signo da lembrança (cicatriz) e
enunciação como prática dialógica de do esquecimento (rastro), o que viabiliza a adoção
da metodologia do rastro enquanto força operatória
resistência de rememoração do resto. Nessa prática de
rememoração, uma enunciação se articula à outras
enunciações e o que se conta, no ato de narrar, é
sempre a tensão entre o discurso citante e o
discurso citado, pois o narrador diz e não diz o que
o outro diz, constituindo o discurso indireto livre e,
CAMPOS, Edson Nascimento86 aí, a realização da paródia como produção geradora
do riso desmascarador da prática de desvelamento
TIMÓTEO, Herbert de Oliveira87 da violência com que se afirma a lembrança,
negando a força produtiva do esquecimento. Nesse
DINIZ FILHO, Mariano Alves88 sentido, o diálogo enunciativo, que constitui a
narração, viabiliza a prática da resistência ao
discurso da modernidade capitalista, quando a
historiografia da comemoração, como discurso
oficial da história, passa a ser contestada pela
narrativa da rememoração, quando o esquecido,
enquanto resto, é salvo pela força operatória da
INTRODUÇÃO metodologia do rastro.

O cisco
Palavras-Chave: Narrativa. Dialogismo. Memória.
Rastro. Resitência.
(Tem vez que a natureza ataca o cisco para o bem.)
Principais elementos do cisco são: gravetos, areia,
cabelos, pregos, trapos, ramos secos, asas de mosca,
grampos, cuspe de aves, etc.
Há outros componentes do cisco, porém de menos
importância.
Depois de completo, o cisco se ajunta, com certa
humildade, em beiras de ralos, em raiz de parede,
Ou, depois das enxurradas, em alguma depressão de
terreno.
Mesmo bem rejuntado o cisco produz volumes quase
sempre modestos.
O cisco é infenso a fulgurâncias.
Depois de assentado em lugar próprio, o cisco
produz material de construção para ninhos de
passarinhos.

86
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor de ensino superior da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana (FASEH) –
Vespasiano – MG. E-mail: edncampos@gmail.com
87
Mestre em Educação pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Professor da educação básica – Rede Municipal de Educação de Belo
Horizonte – MG. E-mail: herbert.timoteo@gmail.com
88
Mestre em Educação pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Professor da educação básica – Rede Municipal de Educação de Belo
Horizonte – MG. E-mail: marianodiniz@gmail.com

NARRATIVAS
695

Ali os pássaros vão buscar raminhos secos, trapos,


asas de mosca
Para feitura de seus ninhos.
O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala
a restos.
Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação
dos poetas.
Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de
contemplação dos restos.
E Barthes completava: Contemplar os restos é
narcisismo.
Ai de nós!
Porque Narciso é a pátria dos poetas.
Um dia pode ser que o lírio nascido nos monturos
empreste qualidade de beleza ao cisco.
Tudo pode ser.
Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do
que a seres humanos.
(BARROS, 2010, p. 400-401)

E
ste texto dispõe-se a operar com uma narrativa que dialoga com outra narrativa, ou seja, a
narrativa benjaminiana da modernidade, enquanto construção cultural de resistência à economia
capitalista, em operação dialógica de articulação enunciativa com a narrativa da crônica, “O
Punhal de Martinha”, de Machado de Assis89. Nesse diálogo de narrativas, este texto dispõe-se ainda, a
articular a construção metodológica do rastro, enquanto orientação que atuaria no trabalho de
desvelamento da memória da modernidade, na sua face de esquecimento.
Por isso, a crônica acontece, aqui, neste texto, como material privilegiado para análise, com a
qual se propõe a constituição de uma linguagem crítica da modernidade cultural, quando se articularia
o projeto silencioso, nas entrelinhas do texto machadiano, do tratamento da memória, enquanto
esquecimento, em tensão dialógica com a lembrança. Tal posição se orienta por assumirmos a
modernidade crítica do texto de Machado de Assis como estratégia para se trabalhar as relações
constitutivas da enunciação da linguagem como discurso que orientaria, dialogicamente, o exercício
profissional da memória do historiador.
A motivação que sustenta este trabalho reside, pois, no esforço teórico-metodológico de se
caracterizar uma perspectiva de linguagem para a narrativa da História, enquanto espaço constitutivo
de lembrança e esquecimento, de forma a orientar tal narrativa como objeto constituinte da disciplina,
tendo em vista a mediação enunciativa das interações em sala de aula.
E, no sentido de orientar o olhar da crônica como objeto empírico, a abordagem geral da
modernidade é privilegiada como construção cultural do sistema econômico da ordem capitalista.
Nesse sentido, o moderno é caracterizado, econômica e culturalmente, como sistema de produção,

89
O punhal de Martinha, do periódico A Semana, publicada no dia 5 de agosto de 1894, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, e publicada,
ainda, na Obra Completa de Machado de Assis, pela Editora José Aguilar, no Rio de Janeiro, em 1973, às páginas 615 e 616 de seu Volume III.

NARRATIVAS
696

circulação e recepção de mercadorias, que, no intuito de promover a atração econômica do novo,


produz, simultânea e paradoxalmente, de modo programático, a obsolescência, caducidade ou morte
dos objetos produzidos.
Em outras palavras, os objetos econômicos e culturais em tal ordem são sempre marcados
pelos sinais da morte, ou do esquecimento, presentes nos rastros, ou restos, na qualidade de
produtos abandonados pela história oficial do capitalismo. Nesse quadro, a linguagem que,
semioticamente, daria conta da especificidade viva da história precisaria assumir a posição marginal
que faz do historiador, do poeta, ou do arqueólogo, a construção operatória de um agente que salvaria
o passado, reconstruindo-o através da posição de quem resiste à morte, ou seja, ao apagamento dos
rastros, com o trabalho de quem recolhe os restos. Nisso, o funcionamento da linguagem precisa dar
conta da memória enquanto rastro, esquecimento, em mediação metodológica, dialógica, que o
transformasse em material de rememoração, passível de ser tomado como lembrança viva, ou
cicatriz do passado.
Tomando, então, o empírico como rastro, a crônica, “O punhal de Martinha”, assume, neste
trabalho, o perfil mnêmico de resto da Primeira República, o que poderia servir de sustentação para
uma rememoração crítica do período republicano no Brasil, o que obriga esse trabalho a considerar
essa crônica como material relativamente esquecido, enterrado, que na condição de cacos, como nos
lembra Carlos Drummond de Andrade (1988), acaba por adquirir a possibilidade de material a partir
do qual se faz emergir a criação de um novo sentido para o tempo histórico:

Coleção de Cacos

Já não coleciono selos. O mundo me inquizila.


Tem países demais, geografias demais.
Desisto.
Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr. Grisolia,
orgulho da cidade.
E toda gente coleciona
os mesmos pedacinhos de papel.
Agora coleciono cacos de louça
quebrada há muito tempo.

Cacos novos não servem.


Brancos também não.
Têm de ser coloridos e vetustos,
desenterrados – faço questão – da horta.
Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas,
restos de flores não conhecidas.
Tão pouco: só o roxo não delineado,
o carmesim absoluto,
o verde não sabendo
a que xícara serviu.
Mas eu refaço a flor por sua cor,

NARRATIVAS
697

e é só minha tal flor, se a cor é minha


no caco de tigela.

O caco vem da terra como fruto


a me aguardar, segredo
que morta cozinheira ali depôs
para que um dia eu o desvendasse.
Lavrar, lavrar com mãos impacientes
um ouro desprezado
por todos da família. Bichos pequeninos
fogem de revolvido lar subterrâneo.
Vidros agressivos
ferem os dedos, preço
de descobrimento:
a coleção e seu sinal de sangue;
a coleção e seu risco de tétano;
a coleção que nenhum outro imita.
Escondo-a de José, por que não ria
nem jogue fora esse museu de sonho
(ANDRADE, 1988, p. 533-534).

1. A EXPERIÊNCIA ECONÔMICA E CULTURAL DA MODERNIDADE

Historicamente, a modernidade capitalista, em sua essência lucrocêntrica, gerou uma


experiência que, para Walter Benjamin, nas palavras de Witte (1992) e Rouanet (1992), está sob o signo
de um novo cujo nascimento se processa para garantir a reprodução do sistema, por meio da
multiplicação do consumo: a criação desse novo, o nascimento das coisas, atende às demandas de
compra e venda e, portanto, esse novo nasce com a sua substituição planejada.
Nesse âmbito descrito, a modernidade capitalista é o espaço dialético do convívio do novo com
o velho e, tal novo, tal novidade, não passa por um envelhecimento por processos naturais, mas por
um envelhecimento planejado e, consequentemente, artificial, pois o que determina o movimento do
nascer e envelhecer é a dinâmica do sistema, é a dinâmica do processo de industrialização: “As coisas
não têm mais tempo suficiente para envelhecer, mas são produzidas de tal modo que são velhas desde
o início e devem ser substituídas por coisas novas” (WITTE, 1992, p.107).
Witte nos diz também que essa mesma dinâmica, em que as coisas nascem com a sua
caducidade planejada, alcança o campo da cultura. O autor afirma que “as obras caem fora do seu
contexto funcional no momento de sua produção, elas ganham condições de admitir significação
enquanto signos” (WITTE, 1992, p. 108). Ou seja, o arcabouço, o delineamento da modernidade
capitalista, traz em si um caráter funcional, utilitarista, um caráter de praticidade que se assenhora
do material e do imaterial, constituindo o modelo burguês de sociedade.

A produção da mente ou do espírito, a produção cultural, poder-se-ia dizer, tem como meta a efetividade
e, com isso, a durabilidade. Mas efetividade e durabilidade são impossibilitadas pelo princípio da

NARRATIVAS
698

modernidade. Pois o que acaba de ser criado é imediatamente algo envelhecido e é vítima do desprezo e
do esquecimento (WITTE, 1992, p. 105).

Rouanet, também se sustentando nos diálogos com Benjamin, nos diz que “Por um lado, o
mundo moderno está sob o signo do novo. É o novo a serviço do volume de vendas, o novo da
mercadoria, da moda, cuja única função é multiplicar o consumo” (ROUANET, 1992, p. 111). O capitalismo
imergiu o homem de forma tão contundente que, para enfrentar a modernidade o que nos resta é
viver o consumo do novo, o consumo que se apresenta como nosso caminho, como nosso destino.
Em exercício de pensar as constantes e rápidas mudanças na modernidade e em entender
porque o novo de ontem se transforma tão depressa no antiquado de hoje, Rouanet busca em
Benjamin uma possível resposta:

Benjamin responderia à primeira pergunta dizendo que é da essência da modernidade capitalista a


eterna produção do novo e portanto a geração incessante do velho. O “novo” é um afrodisíaco para
estimular as vendas, e cada vez que esse elixir é aplicado o novo de ontem envelhece, transformando-se
em sucata temporal. Ao mesmo tempo, nesse mundo em que tudo se altera, tudo permanece idêntico,
porque não muda a lógica do sistema: o novo está a serviço do mesmo (ROUANET, 1992, p. 116).

Em síntese, a experiência vivida assume uma trajetória mercadológica e as suas narrativas


ganham características estáveis e as possíveis reconstruções dessa narrativa se apresentam como
desnecessárias diante de um mundo dado.
Nesse sentido, o conceito de modernidade capitalista passa pelo entendimento de seus
paradoxos: entender a modernidade, portanto, é concebê-la constituída da criação e da morte
simultâneas de elementos econômicos e culturais. Em tal modernidade, a vida, e seu vigor, subsistem
da necessidade de que tudo seja novo constantemente e, para a efetivação desse novo, os movimentos
do homem e os fenômenos da vida social caminham na direção do envelhecimento ou da caducidade
pré-programada. Em outras palavras, na experiência do mundo moderno, há um caminho preenchido
por uma certa espontaneidade do nascer, mas também uma certa artificialidade, pois o nascer surge
com a sua morte programada: o envelhecimento é a matriz da continuidade do nascimento porque, em
sua essência, as forças do mercado determinam a sua temporalidade.

2. RASTRO E CONCEITO

Se está claro o paradoxo como elemento constitutivo da modernidade capitalista, não


podemos deixar de perceber a apresentação de tal paradoxo nas narrativas dessa mesma
modernidade. As narrativas, objeto do presente estudo, se comportam, por um lado, como parte
daquilo que nasce com sua caducidade programada, mas por outro lado, como parte da resistência
humana contra o esquecimento, contra a caducidade, contra o apagamento. As narrativas, se trazem
em sua natureza a memória como força hegemônica daquilo que deve ser lembrado, trazem também o
seu elemento inseparável, o seu par, o esquecido, nas suas faces daquilo que foi e daquilo que não foi

NARRATIVAS
699

escolhido para ser lembrado. A memória, sob o capitalismo, é dividida, é contraditória, é paradoxal: é
lembrança, mas é esquecimento. Ela carrega consigo, semioticamente, um certo acabamento, uma
certa completude, mas carrega também consigo um certo inacabamento, uma certa incompletude.
Nesses termos, a preocupação com a memória, com a lembrança e o esquecimento, faz parte
do movimento das narrativas compondo uma metodologia intencional de contar uma história, a partir
de forças centrípetas em que predomina uma voz, pretensamente uníssona, que incorpora um
acabamento, uma verdade, ou de contar uma história em que as forças centrífugas acolhem vozes e
direções múltiplas, matizando a ideia de verdade e assumindo uma narrativa que apenas possui um
certo acabamento, sem pretensão de ser única e verdadeira.
As narrativas desse último grupo contam com a metodologia do rastro, não do rastro que
pretende encapsular o passado como algo grandiosamente salvo para gerações presentes e futuras,
mas do rastro que permite a reelaboração constante do passado por meio da dúvida, de novas
compreensões e esclarecimentos. Não do rastro confundido com a escrita como rastro privilegiado,
duradouro, por exemplo, como observa Gagnebin (2009), mas como um rastro caracterizado como
resto, como uma construção conceitual fundada no paradoxo da presença de uma ausência ou de um
conhecido e de um desconhecido.
De acordo com Gagnebin (2009)

Rastro que é fruto do acaso, da negligência, às vezes da violência; deixado por um animal que corre ou
por um ladrão em fuga, ele denuncia uma presença ausente – sem, no entanto, prejulgar sua
legibilidade. Como quem deixa rastros não o faz com intenção de transmissão ou de significação, o
decifrar dos rastros também é marcado por essa não-intencionalidade (GAGNEBIN, 2009, p. 113)

O rastro é a presença de uma ausência. É a narrativa de uma ausência e pressupõe o


movimento da presença em busca da ausência. Um movimento da presença que se ausenta. O rastro
dá conta desse movimento, do que se ausenta. O rastro dá conta do esquecimento.
O rastro está sempre ameaçado de ser apagado ou de não ser mais reconhecido como signo
do que assinala. Toma-se aqui o rastro como um tipo bem específico de signo: um signo particular,
não intencional e que excede a vontade consciente do sujeito. Um signo que mesmo apagado, mesmo
quando ocultado, deixa as marcas do sujeito que o construiu e o apagou. Um signo que deixa detritos e
restos das intenções explícitas dos sujeitos (GAGNEBIN, 2012).
O rastro, como signo particular, nos remete à discussão sobre lembrança e esquecimento e,
segundo Gagnebin (2012), encontramos, nessa discussão, em Benjamim a desconfiança em relação às
interpretações históricas globalizantes. O rastro, nesse sentido, representa a sucata, os restos,
aquilo que de maneira aleatória rompe com o controle da versão histórica dominante.

3. RASTRO, MEMÓRIA E HISTÓRIA

NARRATIVAS
700

Associando a atividade de escrever a história com a atividade da memória, nas faces


constitutivas do lembrar e do esquecer, articula-se, dessa forma, a força da memória como atividade
que funda a prática da escrita da história.
A escrita tem a propriedade de ser uma atividade que dura e perdura. Nesse sentido, os
signos verbais integram a durabilidade da lembrança, simbolizada com a imagem metafórica da
cicatriz. Por outro lado, a escrita tem, ainda, e simultaneamente, a propriedade de algo que não dura e
perdura. Por isso, em face de tal condição, a fragilidade, ou a fugacidade, e caducidade são atributos
dos signos verbais associados à não durabilidade e se constituem, pois, como esquecimento,
metaforicizado com a imagem do signo, sinal, do rastro (GAGNEBIN, 2009).
Se o rastro, imagem conceitual, se reveste do caráter de signo (sinal), dotado do poder da
não durabilidade, o que lhe confere o atributo de inconsciente como realização mnêmica do
esquecimento, a cicatriz, por outro lado, como imagem conceitual, apresenta o poder da durabilidade
e tal dimensão confere a essa imagem o atributo de consciente como realização mnêmica da
lembrança. Por isso, os signos verbais, aqui, ganham a especificidade da intencionalidade, ou da não
aleatoriedade, como cicatriz, associada à prática de produzir significação, o que viabiliza,
linguisticamente, a constituição da mensagem, quando, então, tornam-se explícitas, ou conscientes, as
manifestações dos valores, das crenças, das convicções, das compreensões, das interpretações.
A cicatriz, imagem da lembrança, é uma construção mnêmica do sujeito que produz, de forma
consciente, uma significação. Essa lembrança, no entanto, não é uma realização absoluta de uma
consciência que produz o sentido que o singulariza como realização consciente acabada. O relativo
acabamento, ou completude, de tal construção mnêmica convive, dialogicamente, com a face do
esquecimento como expressão da relatividade de seu inacabamento ou incompletude. Desse modo,
não é possível separar formalmente a lembrança do esquecimento ou a cicatriz do rastro já que
ambas, lembrança e cicatriz, convivem dialogicamente com o esquecimento e o rastro.
A historiografia oficial é a narrativa da comemoração. Seu discurso linear e reto atua na
perspectiva das lembranças e, nesse sentido, tem a marca da cicatriz, lembrança concreta daquilo
que deve ser registrado e reproduzido como força de dominação e de modo repetitivo, num desenho
que vai do passado ao presente, buscando no passado as explicações causais dos fenômenos do
presente, deixando assim, programaticamente, o registro da história sob a determinação da violência
do esquecimento.
Por outro lado, a historiografia materialista e crítica se faz com a narrativa da rememoração.
Tem a marca do rastro, daquilo que não é lembrado nem considerado no texto oficial e que se mostra
como resto, fragmento e detrito. O seu desenho metodológico de pesquisa é um traço sinuoso que, no
presente, abre-se aos buracos e esquecimentos do passado e vai até esse passado, retorna ao
presente e do presente vai ao futuro passando pelo passado. Essa, em vez de repetir o que se lembra,
“abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações,
solavanco, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras”
(Gagnebin, 2009, p. 55).

NARRATIVAS
701

Ora, diante desse quadro epistemológico, a pesquisa da escrita que objetiva a investigação
semiótica do sinal que constitui os rastros, toma esse objeto como material verbal e não verbal
esquecido, abandonado, silenciado: são os restos, os vestígios, as ruínas. E se aí mora o
esquecimento, cabe ao pesquisador a salvação do passado aí materializado. E nessa salvação, não se
tem, vale dizer, como material de pesquisa uma bela figura, encontrada como realização da
experiência vivida. O que se tem, no presente, como registro que resta do passado é a figura
metafórica de um corpo desmembrado. E é, a partir desse corpo, no presente, que se torna possível a
sua constituição como figura possível de ser reconstruída, ou esculpida, como uma imagem de futuro
(GAGNEBIN, 2012).
Em face disso, o historiador que investiga e pesquisa os rastros, opera com os restos
abandonados pela história oficial, com aquilo que acontece à revelia da historiografia em vigor:
articula ele possibilidades alternativas de interpretação das imagens consagradas pela tradição, ou
seja, não se atém aos traços dominantes de uma época e, pelo contrário, interroga tal tradição e
abriga, com a sua interrogação, os traços pouco visíveis, os detalhes que parecem ser aleatórios,
insignificantes e que, à primeira vista, poderiam ser lançados fora como refugos (GAGNEBIN, 2009,
2012).

4. RASTRO E MEDIAÇÃO

Para se articular a construção metodológica do conceito de rastro como presença de uma


ausência, é necessário que se pense tal relação como teoria e prática enunciativa de interação e,
nisso, avulta a necessidade de articulação do conceito de mediação.
O conceito de mediação pode ser entendido pela metáfora bakhtiniana da ponte (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2009a). E aí se constitui a seguinte significação: a ponte só se realiza porque existe a
construção de uma extremidade que se articula com a construção de outra extremidade. Nisso, a
posição de UM só pode ocorrer porque existe a posição de O OUTRO, o que empresta ao conceito de
mediação a figura da determinação recíproca de posições ou lugares de interação. Com tais termos, a
enunciação, como espaço de linguagem em que se encontram o locutor e o alocutário, só pode
acontecer porque existe a ponte, ou seja, a mediação como determinação recíproca dos
interlocutores quando, então, se diz que a interação abriga as posições de UM e de O OUTRO.
Disso decorre o seguinte: o rastro, conceitualmente, como presença que se articula com uma
ausência, ocorreria por mediação, como lembrança que ocorreria em interação, ou em determinação
recíproca, com o esquecimento.
Por isso, quando, na enunciação, o locutor constrói uma cena enunciativa em que diz o que o
alocutário diz, até certo ponto constrói-se uma interação que se pauta com a lembrança daquilo que o
locutor diz como sendo o que é dito pelo alocutário. Tem-se, assim, uma primeira enunciação, naquilo
que se repete, ou se reproduz, e se institui, metaforicamente, como cicatriz. Por outro lado, o locutor
diz ainda o que alocutário não diz: aqui a interação se orienta pela força produtiva do esquecimento,

NARRATIVAS
702

quando, entre os espaços da lembrança, o locutor registra os restos, como força sistemática de uma
ausência: a figura metafórica do signo, ou sinal, identificado como rastro. Tem-se, assim, uma
segunda enunciação: o que se repete com a lembrança é transformado pelo desvelar da força
mnêmica do esquecimento.
Enfim, o rastro se constitui como mediação, ou seja, como determinação recíproca das
posições enunciativas do locutor e do alocutário, quando a segunda enunciação, naquilo que o locutor
registra, como esquecimento, se articula com aquilo que ele registra da lembrança do alocutário
como espaço de construção de linguagem da primeira enunciação. Ou seja, o rastro acontece,
metodologicamente, como articulação dialógica de enunciações, como enunciação de uma enunciação,
quando o locutor diz, em mediação, o que alocutário lembra, mas diz, ainda, o que esse alocutário
esquece, constituindo a trama da sintaxe das enunciações. (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2009b).

5. RASTRO E NARRATIVA: enunciação e resistência

Se uma narrativa se constitui como mediação, em que uma enunciação se articula a outra
enunciação, tal articulação enunciativa traz, como exigência de produção de sentido, a lembrança
daquilo que um locutor diz do que o alocutário diz, mas diz, ainda, aquilo que esse locutor diz como
realização daquilo que o locutor, ou o alocutário, não diz como esquecimento. E assim se configura o
rastro, como produção aleatória do esquecimento, ou do resto, como força produtiva da enunciação
enquanto realização narrativa da tensão dialógica da memória. E, nessa tensão, a revelação, ou o
desvelamento, do esquecimento atuaria como estratégia de resistência à celebração da lembrança
como força operatória que produz a violência com que se controlaria, produtivamente, o silêncio do
esquecimento. Isso, até certo ponto, faz brotar o riso como realização humorística do efeito do
desmascaramento da prática de produzir a violência do esquecimento como resto.
Vejamos um pouco do que se afirma na narrativa do conto, “Quem conta um conto...” do
escritor Machado de Assis (1990).
Na qualidade de autor-criador, o escritor constrói uma narrativa em que a figura enunciativa
do narrador, ao escrever a história, dramatiza na escrita, uma experiência de oralidade em que as
personagens, os alocutários do locutor-narrador, se alternam na experiência de contar e recontar
uma notícia que circula de boca em boca, de ouvido em ouvido na relação dos interlocutores. Desse
modo operando, a narrativa, como experiência de quem conta uma história, se constitui como
mediação que vai articulando, em movimento, as diversas enunciações em que a palavra própria do
locutor, como afirma Ponzio (2011), se articula com a palavras outra dos alocutário e, assim, passam a
determinar os sentidos da notícia que vai sendo narrada ou contada.
Numa enunciação, em que o discurso citante do narrador de Machado de Assis, como locutor
que deteria o controle do discurso citado das personagens, traz para circulação interlocutiva, o
discurso citado de Luís da Costa, considerado exímio locutor, hábil na arte de dar notícias. Ao dizer, ou
falar, o seu discurso de novidades para um conjunto de ouvintes, ou presenças interessadas no

NARRATIVAS
703

sentido do que se noticiaria, Luís, com o seu discurso citante, revela sentidos comprometedores que
arranhariam a honra ou a dignidade de uma certa jovem, sobrinha de um certo militar, o Major
Gouveia. Aliás, o Major, que estava entre os interlocutores de Luís, não era pessoa de conhecimento
desse especialista em fazer disseminar novidades e, prontamente, manifestou a disposição de resistir
à pretensa veracidade do que Luís dissera sobre sua sobrinha, afirmando que haveria, na sua
memória, a lembrança de uma verdade que contrairia a verdade de Luís. Disposto a promover a prova
da verdade dos sentidos noticiados por Luís, o Major o indaga sobre a fonte que teria dado
informações sobre os fatos constituintes da notícia. Luís, constrangidamente, sob a prática de coação
do Major, diz que o que falara, com o seu discurso citante, faria parte do que ouvira do Pires. Nesse
caso, o discurso citante de Luís tem, em parte, pelo menos, o discurso citado desse novo interlocutor:
o Pires. Diante dessa revelação, o Major, com a sua verdade, parte com Luís para o encontro com
esse novo interlocutor. E, aí, o Pires, envolvido pela situação constrangedora a que está submetido,
informa que o discurso citado de Luís, ao falar a notícia, é, até certo ponto, uma repetição do que ele
dissera, mas há, em tal fala, algo diferente que escapa ao sentido do que ele falara, o que desagrada
ao Major uma vez que a verdade que ele traz da notícia continua sendo contrariada. Isso, então, exige
que o Major, coagindo os interlocutores, dispense o Luís, mas mantenha, sob seu controle, esse novo
locutor, o Pires, a fim de se descobrir o locutor, ou interlocutor, que teria sido a fonte que teria traído
a lembrança da verdade, estabelecida por um tio devotado em manter a estabilidade da dignidade da
sobrinha, arranhada com a traição do esquecimento de certos fatos estabelecidos. Diante disso, o
Pires indica o interlocutor de quem ouvira a verdade da notícia: o que se falou partiu de um
empregado do tesouro, o Bacharel Plácido. De novo, a cena se repete: Plácido informa ao Major que o
que ele dissera é, até certo ponto, o que Pires havia dito. Mas, no que esse locutor, ou interlocutor, diz
há informações que escapam ao controle do que ele próprio dissera. E, assim, a história da notícia vai
se constituindo no confronto do disse que me disse dos interlocutores quando se efetiva a reprodução
e a transformação do que cada locutor, ou interlocutor, informa e, nisso, o que se pode observar é
que a estabilidade da lembrança da verdade do Major Gouveia vai, de fato, sendo contrariada pelo
esquecimento relativo de tal verdade, o que introduz na narrativa a tensão dialógica da lembrança e
do esquecimento da notícia, o que faz de sua realização semiótica a constituição de sentidos
atravessados pela estabilidade e instabilidade do que se informa e, aí, a narrativa se constitui com a
provisoriedade do acabamento do que se conta. E, nessa provisoriedade, ampliando o disse que me
disse dos interlocutores, surgem, ainda, na cena de verificação da prova da verdade da notícia,
estabelecida por Gouveia, as figuras do Capitão de Artilharia Soares e do Desembargador Lucas. E é
com o Desembargador Lucas, o último na sequência do que se fala e se ouve como prova da verdade,
que acontece o imprevisto: ele afirma, na presença do Capitão e do Major Gouveia, que a história do
caso da sobrinha do Major, naquilo que ele fala teria sido fornecida pelo próprio tio da jovem em
questão. Isso, então, desmascara a ação de Gouveia, alimentada pelo pressuposto de que os outros
adulteram a verdade com o esquecimento da lembrança estabelecida. E ai tal lembrança que é
passível de ter sido traída por todos os locutores e interlocutores, é traída, também, por aquele que

NARRATIVAS
704

mais deseja a sua estabilidade: aquele que mais deseja a estabilidade dos sentidos a serem repetidos
é o que, também, contribui com a sua instabilidade, traindo a sua cultivada lembrança da verdade da
notícia.
Ora, diante desse quadro sucinto, em que se procura desenhar, ligeiramente, a trama
enunciativa da rede de enunciações em cadeia, o que se pode constatar é a força do discurso indireto
livre (BAKHTIN, VOLONOCHÍNOV, 2009b, 2011), pois cada locutor, incluindo-se, aí, o narrador de
Machado de Assis, com o seu discurso citante, diz o que diz o outro, discurso citado, mas diz, ainda, o
que esse outro não diz, o que torna impossível a estabilidade do sentido das enunciações (CAMPOS,
2014). Nisso, na narrativa acontece a figura semiótica da paródia quando se verifica justo a
reprodução e a transformação do que se produz como sentido: naquilo que se repete, ocorre a
convivência com o que se inova. E aí brota o riso humorístico como efeito do desmascaramento da
fonte da verdade estabelecida, ou em vias de ser estabelecida: diante daquilo que se procura
autoritariamente lembrar, com a sua reprodução e com a violência da prática de silenciamento do
esquecimento, surge a inevitabilidade do esquecimento como rastro, ou resto, que torna imperiosa a
constituição da memória da narrativa como realização dialógica da lembrança e do esquecimento. Por
isso, uma narrativa é sempre, constitutivamente, um espaço de abertura a outras narrativas e, nisso,
a narratividade não se esgota na prática industrial da notícia de reduzi-la ao fechamento autoritário
de uma certa completude, contra a prática dos velhos narradores da tradição artesanal, quando as
verdades que circulam pelo falar e pelo ouvir, pelo escrever e pelo ler constituem, entre vários
atributos, a especificidade da prática utilitária de disseminar conselhos. Aliás, não é este o grande
conselho de Machado de Assis (1990) com o conto “Quem conta um conto...”: na narrativa sempre
acontece o rastro, o resto, ingrediente que constitui o espaço do esquecido, do morto, do
abandonado? Caberia, então, ao tratamento dialógico da memória, como lugar de tensão, o tratamento
que possibilitaria à narratividade o exercício da prática mnemônica da resistência. E assim o discurso
da história teria a força do poder generativo do dialogismo da narratividade, quando o resto, então,
seria o registro do que ainda precisa ser contado.

Restos

O sono de um homem
deixa vestígios
na mansidão do travesseiro.

Cinzas sobre a fronha


denunciam
aquilo que ele não pôde sonhar. (GONTIJO, 2011, p. 19)

NARRATIVAS
705

6. A NARRATIVA E O NARRADOR: o narrador na perspectiva benjaminiana

A narração, segundo Benjamin (2012), está em vias de extinção porque as experiências não
são mais compartilhadas. O mundo moderno, com sua rapidez de consumo dos produtos materiais e
culturais, faz com que indivíduos não compartilhem experiências. O envelhecimento programático das
coisas e, também, das pessoas, no que concerne aos aspectos culturais, faz com que haja a
necessidade premente do novo, sucateando o velho. Narrar, nesse sentido, já não é mais um saber do
nosso tempo, tempo da modernidade industrial, pois a narração vincula-se à experiência. Se os
indivíduos não partilham vivências, uma vez que a velocidade das mudanças na modernidade os isola e
faz com que a própria experiência caduque, então a narração perde sentido, pois não há uma memória
e uma palavra comuns.
A narração, de acordo com Benjamin, depende de três condições. A primeira, já citada, é o
compartilhamento das experiências entre narrador e ouvinte. A segunda tem a ver com a organização
do trabalho. Na era pré-capitalista, o ritmo lento e orgânico do artesanato, em oposição à rapidez do
processo industrial, permite “uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra
unificadora” (GAGNEBIN, 2010, p.11). Esse fazer artesanal da história, contada num tempo onde se tinha
tempo para contar, contrasta com o ritmo frenético da produção capitalista. A terceira condição tem
a ver com o saber transmitido por aquele que conta, uma sabedoria na forma de uma moral ou de um
conselho. O conselho aparece em Benjamin não no formato que o concebemos, como uma intervenção
exterior na vida de alguém. Segundo o autor:

Aconselhar é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma
história que está se desenrolando. Para obter essa sugestão, seria necessário primeiro saber narrar a
história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua
situação). O conselho tecido na substância da vida vivida tem um nome: sabedoria. (BENJAMIN, 2012, p.
216-217).

Comparando a narração a outras formas de contar, Benjamin contrapõe a narrativa artesanal


dos velhos narradores – representada nas figuras do camponês sedentário, do marinheiro
comerciante e do artesão – à narrativa do mundo industrial capitalista, identificada na informação
trazida pelos meios de comunicação. Nessa, o que é contado precisa ser explicado, numa tentativa de
fechamento da informação num círculo de plausibilidade. A narrativa dos velhos narradores, por sua
vez, é aberta. Nada é explicado. Cada história enseja uma nova história, desencadeando um infinito de
histórias e cada nova história pode ser interpretada de uma maneira diferente. Com essa abertura, a
narrativa dos velhos narradores coloca limites à narrativa industrial, que no seu esforço de totalidade
e de fechamento, controlando o que vai ser dito, opera com a lembrança, mas sobretudo com o
esquecimento. A narração artesanal, nessa perspectiva de história aberta, constitui-se como uma
peça de resistência à violência do esquecimento praticada pela história totalizante, ao permitir um
trabalho com a captura dos restos ou dos “esquecidos” pela informação.

NARRATIVAS
706

7. LUCRÉCIA E MARTINHA NA CRÔNICA “O PUNHAL DE MARTINHA”

Machado de Assis (1973) conta a história de Martinha a partir da notícia de um jornal de


Cachoeira, cidade do recôncavo baiano, onde a jovem, no intuito de defender a sua honra das
promessas invasivas de João da Limeira, tenta contê-lo, mas a despeito de sua iniciativa nessa
direção, o jovem não desiste de suas intenções e ela, assim, utiliza de um punhal, ferindo-o de morte.
Mas, com essa narrativa de Martinha, Machado assume uma certa exterioridade (BAKHTIN, 2010) em
relação a ela e produz um ponto de vista ao compará-la com a narrativa do punhal de Lucrécia. Aqui, a
dama da sociedade romana no relato do historiador Tito Lívio, apropriado por Machado, fere a si de
morte utilizando um punhal em resposta à agressão de sua honra por Sexto Tarquínio. Ao comparar
as duas figuras femininas, pelo uso do punhal utilizado por ambas, Machado revela a diferença
constitutiva das duas personagens, acentuando a independência, ou assertividade de Martinha em
contraste com a dependência – Lucrécia dependia de seu pai e marido para se vingar do agressor – e
passividade de Lucrécia.
Assim fazendo, o escritor articula, com a singularidade de sua voz, as duas narrativas,
constituindo, um espaço de narratividade que não se reduz à explicação jornalística própria da
narrativa industrial moderna. Ou seja, a crônica passa a ser o lugar da textualidade que reflete sobre
os sentidos da história, abrindo-os para a consideração utilitária do conselho, quando a independência
da mulher é pensada como salvaguarda de sua própria vida. Em outros termos, Machado, como
narrador, diz não só o que o jornal de Cachoeira diz e aquilo que Tito Lívio também diz, mas diz algo
que vai além do que é dito por tais narrativas. Essa posição, que faz da narratividade um espaço de
tensão, se constitui com a força do discurso indireto livre, pois, a voz do narrador até certo ponto
repete o que é dito pelos outros, mas, por outro lado, acrescenta o sentido de sua voz ao que os
outros dizem. Tem-se, com isso, o espaço típico da ação de paródia: quem conta uma história faz mais
do que reproduzir o que é dito, transforma a narrativa no espaço aberto à produção semiótica da
narratividade (CAMPOS; TIMÓTEO; DINIZ FILHO, 2014). Com isso, o sentido assume a particularidade de
uma realização semiótica aberta ao inacabamento, o que possibilita a entrada de outras vozes a
recontar a história de boca em boca, de ouvido em ouvido, a partir do disse que me disse, típico da
construção artesanal dos velhos narradores.
Se uma narrativa se articula com outra narrativa, é isso o que faz Robert Schwarz (2009)
com o seu texto, “Martinha vs. Lucrécia”. Assumindo uma certa exterioridade e um certo excedente de
visão (BAKHTIN, 2010), ao tomar a narrativa de Machado em consideração, o autor utiliza das
categorias do universal e do local para exatamente repensar a possibilidade do que é relativo na
constituição dos sentidos presentes na narratividade da história humana. Em face disso, é possível
articular essa ideia com o ponto de vista da impossibilidade da construção ideológica, hegemônica,
das elites como sendo a posição que dá sentido à leitura do mundo. Assim, não há mais como defender
a lembrança do punhal de Lucrécia como a verdade universalizada. Existe, também, correndo o risco
de ser corroído pela ferrugem do esquecimento, o punhal de Martinha como expressão ideológica do

NARRATIVAS
707

ponto de vista contra-hegemônico das camadas populares. Nesses termos, o que Schwarz faz é o que
pensamos: faz da memória, enquanto espaço de tensão, o lugar de ação de um Machado historiador
que pensa a história como um jogo articulatório de enunciações, ou seja, nenhuma narrativa se faz
sem a tensão dialógica com outras narrativas (CAMPOS, 2014).
Vale lembrar que Schwarz, contando uma narrativa a partir de outra narrativa, recupera a
enunciação da crítica internacional ao postular o pensamento de que a leitura de Machado de Assis
dispensaria a leitura da história do Brasil. Ora, assumindo uma exterioridade e um excedente de visão
a tal pensamento, ele se lembra do que a crítica diz, mas se lembra também do que ela esquece. O que
Schwarz faz é articular um resto, ou seja, o esquecimento de que esse posicionamento da crítica
estaria levantando, como rastro, a lembrança de que a leitura de Machado de Assis não exclui a leitura
da história do Brasil, uma vez que a história, respondendo à exigência do gênero das narrativas,
aparece tramada no corpo daquilo que se conta. O que se efetiva aí é o pensamento da memória como
um espaço de ação do rastro. Há, naquilo que se lembra, algo que se esquece. Ao praticar esse
exercício de memória, Schwarz não estaria efetuando a mesma estratégia enunciativa de Machado ao
se lembrar do punhal de Lucrécia nos termos da história romana e do esquecimento que aí reside? E
não estaria Machado acenando para a lembrança do punhal de Martinha em face da inevitabilidade do
esquecimento que aí viria residir? Por isso, a resposta afirmativa a tais questões traz à tona o
pensamento de que aquilo que se esquece faz parte daquilo que se conta como história, pois a
presença do que está ausente integra o material constitutivo da rememoração da história. Nesse
sentido, não há como comemorar os fatos da história romana, há que se rememorar a constituição
dessa história, valendo-se de material esquecido a ser tratado pela metodologia do rastro. Tal posição
coloca limites na prática de contar a história como comemoração do que deve ser lembrado, uma vez
que aí a estabilidade gerada pela afirmação do esquecimento articula a reprodução do sentido para a
manutenção da ordem social dominante. O Machado historiador, defendido e articulado neste texto,
estaria praticando um exercício de rememoração histórica, na medida em que coloca a memória
como um espaço de tensão dialógica: Martinha representaria a lembrança a ser esquecida na história
comemorativa que só faz lembrar o punhal de Lucrécia da história romana. Se a história romana pode
ser rememorada, a história do Brasil também terá seus signos de rememoração.
A narrativa da sociedade industrial moderna carrega, como um de seus atributos fundantes,
expressão da ordem capitalista, a programação sistemática da morte dos produtos econômicos e
culturais, lançando-os na violência do esquecimento. Simultaneamente, essa narrativa celebra a
lembrança em benefício da reprodução da ordem, o que constituiria a história como comemoração.
Machado de Assis, como escritor situado na sociedade industrial moderna nascente, assume uma
exterioridade em relação à ordem capitalista, projetando como excedente de visão uma narrativa que
se vale da manipulação dos restos (dos esquecidos, dos mortos, dos resíduos, material com o qual se
constitui a presença da ausência na metodologia do rastro), instituindo uma escrita que se organiza
na tensão da memória, o que seria um atributo constitutivo da narrativa de rememoração da história:

NARRATIVAS
708

ao lado do que hegemonicamente se celebra como lembrança, institui-se a tensão contra-hegemônica


daquilo que se rememora com a lembrança do que se esquece.
Articulando a enunciação da modernidade industrial capitalista com a enunciação de “O punhal
de Martinha”, e articulando tais enunciações com a enunciação de Machado em “Quem conta um
conto...”, o que se pode constatar é que nessa narrativa a figura da lembrança é constitutiva da
relação com o esquecimento. Ou seja, aquele que conta um conto lembra do que o outro diz, mas ao
dizer o que é lembrado introduz nessa lembrança o esquecimento como figura constitutiva da
narratividade. Uma de suas personagens, nesse conto, o major Gouveia, é ilustrativa da posição de
que aquele que conta a história precisa se valer da lembrança dos fatos a serem reproduzidos
mnemonicamente, deixando para o esquecimento o lugar dos fatos a serem excluídos da história. Tal
personagem representaria, metaforicamente, a narrativa da comemoração dos fatos a serem
lembrados, a serem incluídos como material de uma história oficial, pretensamente acabada e
comprometida com a verdade. Mas, por outro lado, tal personagem representaria, ainda
metaforicamente, as forças a serem contestadas por se valerem da negação do esquecimento como
fator gerador da história enquanto rememoração.
Enfim, esse jogo enunciativo estaria, de certa forma, sendo articulado para demonstrar que o
Machado historiador oficializa, com a sua escrita narrativa, a prática de contar a história pelo jogo
dialógico da tensão do que se lembra com o que se esquece. Nesse sentido, contar a história é sempre
uma construção aberta: é articular uma prática de conselho, cuja utilidade residiria no encontro de
narrativas, quando uma narrativa se abre, dialogicamente, para a enunciação de outras, o que nos faz
lembrar da figura dos velhos narradores a contarem e a recontarem histórias e aí a narrativa seria o
espaço generativo dos sentidos construídos historicamente (ESTÉS, 1993).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este é um texto que aborda a narratividade como espaço dialógico de uma narrativa que se
abre a outra narrativa. Isto é, trata-se de considerar a prática da linguagem com a articulação de
uma enunciação que dialoga com outra enunciação. E aí os interlocutores, mobilizados pela
reciprocidade da interação em movimento, produzem cenas interlocutivas atravessadas pela
exterioridade e pelo excedente de visão que fazem da linguagem a experiência de constituição do
acabamento provisório do sentido.
Nesses termos, a narrativa aparece como ação do narrador que ao contar a história mobiliza
o que as personagens dizem com o que lembram e, simultaneamente, com o que esquecem, o que abre
possibilidade para entendermos a ação do narrador como operação de memória enquanto construção
dialógica das faces da lembrança e do esquecimento.
Por outro lado, com a narrativa da cultura oficial capitalista, na modernidade industrial, a
memória assume a feição de um empreendimento programático de promoção da lembrança, com a
ação simultânea da violência do esquecimento. Em resistência a essa narratividade da ordem

NARRATIVAS
709

capitalista, reativa-se a força da lembrança que jaz abandonada no corpo do esquecimento com o uso
de uma metodologia específica que traz a presença da ausência na condição de rastro.
Machado de Assis, em O punhal de Martinha, como historiador que rememora os fatos
históricos, relativizando a hegemonia da lembrança celebrada pela história oficial, traz para a
narrativa a introdução da particularidade como operação metodológica que coloca limites na
universalidade da lembrança, possibilitando pensar no tratamento dialógico da memória, viva na
dinâmica do rastro, o que abre perspectivas, como desdobramento, para o estudo sistemático da
relação de categorias como história, narratividade, dialogia, memória, rastro, resistência, educação.
Com isso, a narratividade de Machado de Assis apresenta, no corpo do texto, o jogo dialógico
da trama da lembrança e do esquecimento. Isso faz do escritor um historiador que tece imagens de
texto, rememorando a sociedade brasileira da Primeira República, colocando limites críticos na
linearidade da celebração dos fatos históricos, o que é feito pela reconsideração crítica do esquecido
– o resto, o morto, o destruído, o abandonado – quando se torna ativa a operação metodológica do
rastro.
É, aliás, a operação metodológica que, também, pratica Drummond ao resistir à violência do
esquecimento programático da modernidade industrial dos anos 20 em Belo Horizonte, quando
considera a vida e a morte do Cine Odeon.

O fim das coisas

Fechado o Cinema Odeon, na Rua da Bahia.


Fechado para sempre.
Não é possível, minha mocidade
fecha com ele um pouco.
Não amadureci ainda bastante
para aceitar a morte das coisas
que minhas coisas são, sendo de outrem,
e até aplaudi-la, quando for o caso.
(Amadurecerei um dia?)
Não aceito, por enquanto, o Cinema Glória,
maior, mais americano, mais isso-e-aquilo.
Quero é o derrotado Cinema Odeon,
o miúdo , fora-de-moda Cinema Odeon.
A espera na sala de espera. A matinê
com Buck Jones, tombos, tiros, tramas.
A primeira sessão e a segunda sessão da noite.
A divina orquestra, mesmo não divina,
costumeira. O jornal da Fox. William S. Hart.
As meninas-de-família na plateia.
A impossível (sonhada) bolinação,
pobre sátiro em potencial.
Exijo em nome da lei ou fora da lei
que se reabram as portas e volte o passado
musical, waldemarpisilândico, sublime agora

NARRATIVAS
710

que para sempre submerge em funeral de sombras


neste primeiro lutulento de janeiro
de 1928
(ANDRADE, 1988, p. 701-702)

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Coleção de cacos. In: Notícias do clã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 734-735
(Nova Reunião: 19 livros de poesia).
ANDRADE, Carlos Drummond. O fim das coisas. In: Boitempo. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar, 1988. p. 701-702.
(Poesia e Prosa. Volume Único.)
ASSIS, Machado de. O punhal de Martinha. Rio de Janeiro: Editora José Aguillar, 1973, p. 615.616. (Obra completa –
Volume III)
ASSIS, Machado de. Quem conta um conto... In: RAMOS, Ricardo (Org.). A palavra é... humor. 3 ed. São Paulo: Scipione,
1990, p. 8-28.
BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, Valentin N. A interação verbal. In: Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi. 13. ed.; São
Paulo: HUCITEC, 2009a. p.110-127.
BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, Valentin N. Para uma história das formas da enunciação nas construções sintáticas;
tentativa de aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos. In: Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi. 13.
ed.; São Paulo: HUCITEC, 2009b. p.139-196.
BAKHTIN, Mikhail. A forma espacial da personagem. In: Estética da criação verbal. Prefácio à edição francesa Tzvetan
Todorov; introdução e tradução Paulo Bezerra. 5 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p.21-126.
BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, Valentin N. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2011. p. 59-181.
BARROS, Manoel de. O cisco. In: Tratado geral das grandezas do ínfimo. São Paulo: Leya, 2010. p.400-401. (Poesia
completa).
BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de NiKolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne
Marie Gagnebin. 8 ed, São Paulo: Brasiliense, 2012. 271 p. (Obras Escolhidas: 1)
CAMPOS, Edson Nascimento. A mediação dialógica do conto: o estilo sintático do discurso citante no discurso citado.
Maringá: 3º Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários/Programa de Pós-Graduação em Letras,
Uiniversidade Estadual de Maringá, 2014.
CAMPOS, Edson Nascimento; TIMÓTEO, Herbert de Oliveira. DINIZ FILHO, Mariano Alves. A identidade polifônica do
jovem na praça pública: a construção enunciativa dos sentidos. São Carlos: Rodas de Conversa Bakhtiniana, 2014
ESTÉS, Clarissa Pinkola. O dom da história; uma fábula sobre o que é suficiente. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio
de Janeiro: Rocco, 1993.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. 2 ed. São Paulo: Ed. 34, 2009 224 p.

NARRATIVAS
711

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 8 ed,
São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas: I). p. 7-19.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apagar os rastros, recolher os restos. In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Orgs).
Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2012. p. 27-38.
GONTIJO, Elizabeth. Restos. In: A beleza dos restos. Belo Horizonte: J&M, 2011. p. 19.
PONZIO, Augusto. Problemas de sintaxe para uma linguística da escuta. In: BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, Valentin N. M.
Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011. p. 7-57.
SCHWARZ, Roberto. Martinha vs Lucrécia. In: ANTUNES, Benedito; MOTTA, Sérgio Vicente (Org.). Machado de Assis e a
crítica internacional. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p.17-32.
WITTE, Bernd; ROUANET, Sérgio Paulo. Por que o moderno envelhece tão rápido? Concepção da modernidade em Walter
Benjamin. São Paulo Revista USP n. 15, Setembro/Outubro/Novembro, 1992. p.102-117.

NARRATIVAS
RESUMO
712

A POLIFONIA O artigo em tela busca colocar em diálogo o


conceito bakhtiniano de polifonia e algumas letras
de músicas do compositor Francisco Buarque de

BAKHTINIANA NA
Holanda, por meio de uma pesquisa bibliográfica
acerca da matriz teórica referenciada e uma
análise crítica das produções musicais
buarqueanas, cuja constituição acentue registros

CRÔNICA MUSICAL DE cotidianos em suas temáticas e edificação.


Acredita-se que tal perspectiva de análise
potencializará novas possibilidades de trabalho com

CHICO BUARQUE: ressonâncias


o gênero “crônica” no contexto do Ensino
Fundamental, a partir da leitura crítica e do
reconhecimento das diversas vozes sociais que se
entrecruzam nos textos de Chico Buarque.
na leitura literária

Palavras-Chave: Chico Buarque. Crônica. Ensino.


Leitura. Polifonia.
CARVALHO, Letícia Queiroz de90
PITTA, Rodrigo Gonçalves Dias91

INTRODUÇÃO

No meio acadêmico, assim como nos demais meios considerados elitizados, temos o
reconhecimento da relevância da obra de Francisco Buarque de Holanda para a nossa cultura em
função de seu alto teor crítico e de sua qualidade estética. Seja como compositor, dramaturgo ou
romancista, o artista tornou-se há muito tempo unanimidade em termos de potencial criativo em
gêneros discursivos distintos, os quais apresentam uma elaboração estética singular aliada ao
engajamento político-social, constituindo, assim, um conjunto da obra de caráter ímpar, dificilmente
atingido por outros artistas.
Sua particularidade consiste no diálogo constante com o seu tempo e o contexto da sociedade
brasileira, para que, a partir deste, dialogue com os elementos universais da cultura humana.
A cotidianidade presente em muitas de suas canções, se bem observada, alcança temáticas
comuns à espécie humana em eras distintas: dor, separação, repressão, ternura, submissão, saudade,
amor, entre outras. Essa percepção do universal é desenvolvida em diversos ensaios e produções
acadêmicas que buscam demonstrar que a forma, por meios de recursos musicais e poéticos, tais
como rimas e aliterações, permitiu que os textos passassem do caráter particular para o universal,

90
Doutora em Educação. Professora titular do Mestrado Profissional em Letras – Profletras e do Mestrado Profissional em Ensino de
Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo – Campus Vitória. E-mail: leticia.carvalho@ifes.edu.br -
91
Mestrando do Profletras – Mestrado Profissional em Letras – Ifes - Campus Vitória. . Docente da Rede Municipal de Ensino de Vila Velha – ES.
E-mail: rodrigogpitta@hotmail.com.

NARRATIVAS
713

de modo que pudesse ser assimilada a situação de perda pelo receptor em função da eficácia estética
dos textos.
Justamente esse potencial estético de Chico Buarque permite que suas canções ultrapassem
os limites de uma forma e dialoguem com outro gênero textual, nesse caso, a crônica. O autor
consegue trazer a cotidianidade em suas canções empregando narrações próprias do universo da
crônica narrativa. As personagens de suas crônicas musicais são elementos comuns de nossa
sociedade: a mulher, o pedreiro, o marido, a mãe, o pivete, a prostituta. Isso possibilita a aproximação
do leitor e o diálogo com o passado e o presente, o local e o universal.
Tais premissas nos permitem pensar nas aproximações entre o compositor e as práticas
sociais de leitura no contexto do Ensino Fundamental, por meio da ótica discursiva da linguagem e da
leitura crítica e responsiva potencializada pelo contato com as letras buarqueanas. Desse modo,
propõe-se neste artigo uma interlocução entre o conceito bakhtiniano de polifonia e algumas letras de
músicas do compositor Francisco Buarque de Holanda, por meio de uma pesquisa bibliográfica acerca
da matriz teórica referenciada e uma análise crítica das produções musicais desse autor, cuja
constituição acentue registros cotidianos em suas temáticas e edificação.
O texto em tela foi organizado em três seções, quais sejam: “Chico Buarque: um cronista do
cotidiano universal”, em que um breve panorama do compositor e do seu contexto de produção em
diálogo com o seu percurso biográfico será apresentado. A segunda seção, “A polifonia bakhtiniana:
ressonâncias na crônica musical de Chico Buarque”, versará sobre os ecos do conceito bakhtiniano
de polifonia na tessitura das crônicas musicais buarqueanas.
Enfim, na terceira e última seção do texto, “Considerações Finais”, serão explicitadas
possíveis relações entre a leitura da crônica no contexto escolar e a leitura das letras musicais do
compositor, marcadas pelo tom cotidiano e pela temática, presentes em situações sociais que
dialogam com o mundo da vida dos alunos.
Assim, iniciaremos a nossa análise crítica a partir de um breve panorama do compositor em
voga e as convergências presentes no caminho histórico-social em que foram edificadas as letras
buarqueanas.

1. CHICO BUARQUE: um cronista do cotidiano universal

A trajetória desse artista é marcada pelo reconhecimento da crítica e do público desde a sua
juventude. Nascido no Rio de Janeiro em 1944, Chico Buarque pôde acompanhar importantes
acontecimentos da história de nosso país: a ascensão de JK, a renúncia de Jânio Quadros, a queda de
João Goulart e o estabelecimento do regime militar em 1964. No âmbito cultural, acompanhou com
entusiasmo a Bossa Nova, que o influenciara para que seguisse na música. Teve a experiência de
morar por dois anos na Itália, em função do trabalho de seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, que fora
lecionar na Universidade de Roma em 1953. Lá estudou em uma escola americana, onde aprendeu
inglês; na rua, aprendeu italiano. De volta ao Brasil, mais especificamente São Paulo, foi estudar no

NARRATIVAS
714

colégio Santa Cruz, onde manifestou sua veia literária publicando contos e crônicas para o jornal da
escola.
Em 1963, Chico ingressou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São
Paulo embora já tivesse forte interesse pela música. Em 1964 ocorreu o golpe militar, gerando um
arrefecimento das questões políticas na universidade; ele então começou a intensificar sua
participação no meio musical. Participou de rodas de música em barzinhos, as quais apelidou de
“sambafos”, e, como havia muitos shows de música em São Paulo com nomes consagrados e novatos,
participou de vários. Mas logo houve o início dos Atos Institucionais, que cessaram os direitos
políticos de parlamentares e estabeleceram a censura nos meios de comunicação, no cinema, na
indústria musical entre outros.
Em 1965, gravou pela primeira vez um compacto, cantando “Pedro pedreiro” e “Sonho de um
carnaval”. Esse trabalho marca o início de sua “ruptura” com as influências da Bossa Nova e sua
identidade como artista. Segundo Homem (2009), na primeira canção, o então leitor de Guimarães
Rosa emprega o neologismo “penseiro” a fim de mostrar as angústias e as expectativas do cotidiano
de um homem comum: o aumento que não vem, o trem, o filho, o carnaval, o bilhete da loteria federal,
a volta ao Norte e a morte, e o conformismo de não sonhar demais, contentar-se em esperar o trem e
nada mais. Segundo Sônia Maria van Dijck Lima, no ensaio “Atualidade de Pedro Pedreiro”
(FERNANDES, 2013), o elemento carnaval, citado nessa crônica musical, refere-se a um evento coletivo
em que é possível subverter a ordem, em que o pobre pode travestir-se de rico, uma mudança
provisória possível para qualquer cidadão comum. Já o bilhete de loteria representa a transformação
definitiva da condição social almejada pela coletividade; é o desejo de milhões de brasileiros, inúmeros
Pedros que disputam um prêmio único, e cotidianamente, esperam um futuro sem preocupações
financeiras.
A partir disso, Chico Buarque traçou seu caminho no meio musical, abandonado o curso de
arquitetura e se estabelecendo na música. “Pedro pedreiro” repercutiu e lhe rendeu o convite de
musicar o poema “Morte e Vida Severina” (1967), de João Cabral de Melo Neto, e a peça obteve êxito
de crítica e de público.
Em contato constante com o seu tempo, em 1965 teve a primeira música censurada. Conforme
exposto por Homem (2009), a letra de “Tamandaré” criticava, em tom de deboche, a desvalorização
da moeda fazendo alusão ao marquês de Tamandaré, patrono da Marinha que fora homenageado na
nota de um cruzeiro.
O eu-lírico/ narrador na voz feminina das crônicas musicais de Chico Buarque surge em 1966,
na letra de “Com açúcar, com afeto”, em que a mulher aguarda o retorno do marido e descreve o que
ele estaria fazendo fora de casa. Situações cotidianas como a conversa de bar, o encontro com
amigos, o trabalho, a bebedeira, a espera e a volta para casa são retratados pelo ponto de vista
feminino. Nesse contexto, é o que se esperava do papel feminino na sociedade: cuidar do lar, subjugar-
se ao marido. E essa característica da sociedade da época demonstra o autoritarismo então vigente,
contudo, o texto trata de uma relação conjugal e seus conflitos, tema que é comum a todos nós em

NARRATIVAS
715

qualquer época, por isso mesmo, ainda mantém proximidade com o nosso tempo. Deve-se mencionar
que a música foi gravada por Nara Leão.
Sabemos que Chico Buarque apresentou-se em inúmeros programas de TV, participou de
festivais, sendo premiado com a canção “A banda” ainda em 1966. Na ocasião, de acordo com Homem
( p. 42), a vantagem era de Chico em relação à canção “Disparada”, contudo ele se recusava a
receber o prêmio sozinho, sugerindo o empate, e foi o que aconteceu. “A Banda” agradou ao público
com sua melodia e letra. Esse texto possui os elementos típicos de uma crônica narrativa: a
observação do narrador acerca de um fato cotidiano e das personagens a ele relacionadas, sempre
de forma breve. O homem que contava dinheiro, a moça feia, a garotada assanhada, a namorada, o
velho fraco, etc. participam de um mesmo acontecimento tão efêmero que, ao final, não lhes oferece
outra alternativa, a não ser cada um retornar ao seu canto com sua dor.
É fato que as letras as quais contestavam a ordem estabelecida lhe renderam o exílio. Por um
bom tempo, os teóricos as definiram como “canções de protesto” em função do seu teor político-
social. No entanto, elas vão muito além, ultrapassando o reducionismo espaço-tempo. Sua crônica
Musical Construção (1971) narra o último dia de vida de um operário da construção civil. Mais uma vez
temos situações próprias de uma crônica narrativa, tais como a despedida familiar, a ida ao serviço, a
execução do trabalho, a pausa do almoço, mas com um desfecho trágico e possível nesse tipo de
atividade. Obviamente a sonoridade é marcante, e, de acordo com o próprio compositor em uma
entrevista (HOMEM, 2009), a ideia da narrativa veio quando a música estava quase pronta. Mas a
situação narrada possui um tom de atualidade, dialogando com o contexto do trabalhador brasileiro,
cuja condição social não difere daquela do operário da música.
Seguindo essa lógica, percebemos, numa perspectiva dialógica da linguagem, o duplo sentido
da composição “Apesar de você” (1970), associada a uma resposta aos atos de censura do governo
militar, à repressão e à tortura. Mas o teor relaciona-se também a qualquer forma de relação
dominadora, do particular para o coletivo. O “apesar de você” pode inclusive dialogar com a atual
situação de nosso país e ao cenário de intolerância que grupos conservadores pretendem instaurar.
A narrativa musical “Minha história” (1970), adaptação de Gesù Bambino, de Lucio Dalla e
Paola Pallottino, originalmente se referia às crianças nascidas de mães solteiras italianas com
soldados estrangeiros durante a Segunda Guerra Mundial. O título em português, “Menino Jesus”, foi
censurado por simples moralismo do sistema vigente, por essa razão, teve que ser alterado. Nessa
crônica, temos a apresentação de personagens à margem da sociedade, os desvalidos, a prostituta de
cabaré, o bêbado, personagens constantes em outras composições de Chico Buarque. A peça A ópera
do malandro (1978) abarca esse grupo de excluídos ao longo de suas dezessete canções. A voz
feminina de “Folhetim” entra nesse contexto, ecoando ainda hoje como uma voz atual e universal,
tratando-se do tema amoroso.
O potencial narrativo de Chico Buarque naturalmente convergiu para a produção em prosa.
Embora não seja o foco de nossa pesquisa, esse gênero deve ser mencionado uma vez que é dotado do
mesmo teor crítico presente em suas canções. Afinal, como já foi apresentado, ele escrevera em sua

NARRATIVAS
716

adolescência contos e crônicas. Portanto, os espaços formais da literatura sempre foram de seu
interesse.
Dessa forma, em 1974, publicou a novela Fazenda Modelo, por ele mesmo denominada como
uma “novela pecuária”. Essa obra, publicada pela Editora Civilização Brasileira, era uma alegoria do
país administrado pelo governo militar, cujos protagonistas são bois e vacas. A fazenda modelo era
um projeto que cerceava a liberdade dos animais da fazenda em função de um bem maior, o que
dialoga de forma clara com o tempo em que o romance fora escrito. Produto de imensa pesquisa,
apresenta inclusive notas de cientificismo acerca dos procedimentos adotados a fim de extrair
material do reprodutor, o boi Abá, metáfora do jovem brasileiro cuja vitalidade é suprimida pelo poder
do Estado.
Somente em 1991, ele novamente apresenta sua face de romancista com o livro Estorvo,
publicado pela Companhia das Letras, sendo, inclusive, vencedor do Prêmio Jabuti. Nesse romance,
agora num país democratizado, o autor desenvolve a trama num cenário urbano e de atmosfera
turbulenta.
Pela mesma editora, publicou em 1995 o romance Benjamim, cuja relação da personagem com
os anos 70 é evidente, um ex-modelo fotográfico que não consegue superar o passado, numa
imobilidade em que não há resistência do sujeito. O texto desenvolve a atmosfera criada no romance
anterior. Em 2003, lançou o romance Budapeste, obra bem recebida pelo público e pela crítica,
rendendo-lhe novamente o Prêmio Jabuti. Em 2009, a história do Brasil é contada pela voz de um
homem doente no romance Leite Derramado. As obras citadas nos permitem perceber o modo como
as narrativas permeiam o conjunto da obra desse artista sempre em diálogo com o seu tempo, mas
atingindo uma condição universal.
Enfim, a biografia do artista Chico Buarque ainda está sendo construída, uma vez que continua
a se apresentar no cenário musical brasileiro. Hoje, um compositor cada vez mais elitizado à sua
revelia, uma vez que a indústria musical brasileira de massa direciona ao público apenas o que é
efêmero, mas lucrativo. Isso resulta na exclusão das massas no que se refere ao acesso a uma obra
tão vasta e de indubitável qualidade estética. É necessário levar aos nossos alunos as vozes presentes
nas crônicas musicais desse autor a fim de que percebam a necessidade de ler, relacionar, e assim
fazer leituras diversas do mundo, ou dos mundos, que os cercam.

2. A POLIFONIA BAKHTINIANA: ressonâncias na crônica musical de Chico Buarque

Ainda que a polifonia musical não seja o foco desse artigo, deve ser mencionada uma vez que
exerceu influência no desenvolvimento da polifonia bakhtiniana. No século VI, umas das formas de
expressão de poder da Igreja consistia na forma monódica de canto então estabelecida: trata-se do
canto gregoriano, termo empregado em homenagem ao papa Gregório I. Em seu papado, difundiu-se
essa forma homofônica de canto, no qual as vozes executam o mesmo movimento melódico, em
uníssono. As letras em latim eram cantadas “a capella” e extraídas de textos bíblicos, geralmente os

NARRATIVAS
717

salmos. Em outras formas monódicas, pode haver a sobreposição de uma voz a qual pode ser
acompanhada de outras, porém seguindo a mesma linha melódica (ROMAN, 1992-93).
A partir do século XII, temos a simultaneidade de vozes ou melodias sobrepostas em uma
composição musical, ou seja, as vozes passam a ser diferenciadas numa mesma composição musical,
criando, dessa forma, a polifonia. O contraponto, punctus contra punctum, ou nota contra nota, que, na
música, combina duas ou mais linhas melódicas simultâneas, é um termo para a forma polifônica
desenvolvida a partir do século XVIII. É notada, sobretudo, na obra de J. S. Bach.
Partindo dessas concepções, Bakhtin desenvolveu o termo polifonia como uma metáfora
aplicada em seu estudo acerca da obra de Dostoiéviski:

Mas as matérias da música e do romance são diferentes demais para que se possa falar de algo
superior à analogia figurada, à simples metáfora. Mas é essa metáfora que transformamos no romance
polifônico, pois não encontramos designação mais adequada. O que não se deve esquecer é a origem
metafórica de nosso termo (BAKHTIN, 2013, p. 24).

Desse modo, fica claro o emprego do termo polifonia como recurso metafórico a fim
de tratar do processo de narração nos textos do romancista russo. Entretanto, considerando-se as
relações dialógicas constituintes da linguagem e própria relativa estabilidade dos gêneros
discursivos, a aplicação do termo referente à teoria musical ao campo literário é plenamente dotada
de coerência.
Não podemos ignorar o fato de Bakhtin ter estruturado sua teoria concernente à polifonia
com base na análise da obra de Dostoiéviski; ele não criou conceitos teóricos abstratos a serem
aplicados a qualquer texto, e sim construiu seus pressupostos teóricos no decorrer da leitura dos
contos, novelas e romances do escritor russo. Em seu Problemas da Poética de Dostoiéviski (1929), o
termo romance polifônico é estabelecido a partir da noção de vozes ideológicas independentes da
estrutura da obra. Elas são contraditórias e coexistem no mesmo nível do narrador, além de não
serem subordinadas umas às outras, e muito menos à consciência do autor, enfim, são equipolentes.
Referente a essa questão, Bakhtin encontrou na novela de Dostoiéviski, Memórias do subsolo
(1864), os elementos basilares do romance polifônico. A narrativa é conduzida pela consciência da
personagem, “o homem do subsolo”, o qual está sempre questionando os argumentos que ele mesmo
expõe na expectativa da palavra do outro. Frequente e voluntariamente ele se contradiz, dialogando
com a voz dos interlocutores ausentes, argumentando e propondo a réplica às vozes previstas dos
outros, ainda que em sua mente. As particularidades dessa estratégia de construção da personagem
foram observadas por Brait e Machado:

As especificidades do “homem do subsolo”, sua maneira de relacionar-se com o outro e o fato de que
ele se constrói a partir da palavra, ou seja, de sua palavra sobre si mesmo e sobre o seu mundo, ajudam
a compreender o caminho desenvolvido por Bakhtin para explicitar nuances da polifonia constitutiva das
narrativas dostoievskianas e do herói ideólogo do qual o protagonista de Memórias do subsolo é
considerado o primeiro representante (BRAIT, MACHADO, 2011, p.28).

NARRATIVAS
718

A maneira como é conduzida a narrativa, o discurso em primeira pessoa, apresenta um tom


confessional no diálogo interior sempre na expectativa da palavra antecipada do outro, contudo
sempre apresenta uma mudança no tom, por meio de evasivas irônicas as quais geram as polêmicas
com o suposto interlocutor:

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não
entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. [...] Já faz tempo que vivo
assim: uns vinte anos. Tenho quarenta agora. Já estive empregado, atualmente não. Fui funcionário
maldoso, grosseiro e encontrava prazer nisso (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.15).

Mas sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal de minha raiva? O caso todo, a maior
ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso
rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo
enraivecida; que apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com isso. Minha boca espumava,
mas, se alguém me trouxesse alguma bonequinha, me desse chazinho com açúcar, é possível que me
acalmasse. Ficaria até comovido do fundo da alma, embora, certamente, depois rangesse os dentes para
mim mesmo e, de vergonha, sofresse de insônia por alguns meses. É hábito meu ser assim
(DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 16).

Os fragmentos expõem um tom de escárnio acerca de si mesmo. O homem do subsolo é


evasivo e, por isso, ambíguo. Isso acaba se tornando uma estratégia na elaboração da obra. O
protagonista busca manter o diálogo constante com seu interlocutor, recorrendo à previsão do
discurso do outro e à sua tréplica, num movimento em que várias consciências se fazem presentes
nas polêmicas provocadas pelo homem do subsolo:

— Há,há,há! Mas essa vontade nem sequer existe, se quereis saber! Interrompeis-me com uma
gargalhada. — A ciência já sabemos que a vontade e o chamado livre-arbítrio nadamais são do que...
— Um momento, senhores, foi justamente assim que eu quis começar. Cheguei até a me assustar,
confesso. Ainda agora, quis gritar que a vontade diabo sabe do que, e que talvez se deva dar graças a
Deus por isso, mas lembrei-me da ciência e... me detive. E nesse instante começaste a falar
(DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 39).

Em sua análise, Bakhtin aponta essa peculiaridade de apresentar discursos em oposição, com
vozes distintas, mas equipolentes, num processo em que o discurso é sempre inconclusivo, inacabado.
A ideia concernente ao homem estava em suas palavras, sempre no processo de interação entre as
consciências, vozes diferentes cantando o mesmo tema.
Conforme já mencionado, os gêneros discursivos são enunciados relativamente estáveis, e
essa relativa estabilidade permite a criação do hibridismo intergenérico em determinados textos.
Como exemplo de aplicação da teoria bakhtiniana acerca da polifonia em um gênero distinto do
romance, podemos citar, no âmbito das crônicas musicais de Chico Buarque, as diversas vozes as
quais constituem o conjunto de sua obra: a mulher do lar, o malandro, a prostituta, entre outras

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719

vozes. Entre todas essas manifestações, podemos citar a crônica musical “Samba do grande amor”,
quinta faixa do LP Chico Buarque (1984):

Samba do Grande Amor


Tinha cá pra mim
Que agora sim
Eu vivia enfim o grande amor
Mentira
Me atirei assim
De trampolim
Fui até o fim um amador
Passava um verão
A água e pão
Dava o meu quinhão pro grande amor
Mentira
Eu botava a mão
No fogo então
Com meu coração de fiador
Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira [...]
Fui muito fiel
Comprei anel
Botei no papel o grande amor
Mentira
Reservei hotel
Sarapatel
E lua-de-mel em Salvador
Fui rezar na Sé
Pra São José
Que eu levava fé no grande amor
Mentira
Fiz promessa até
Pra Oxumaré
De subir a pé o Redentor

Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito


Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira

NARRATIVAS
720

Podemos perceber, nesse fragmento, as marcas próprias da crônica, tais como a narrativa
curta de uma desventura amorosa, tema cotidiano, o vocabulário simples e a utilização de marcas da
linguagem informal no uso de diversas expressões, tais como: “tinha cá pra mim”, “me atirei assim”,
“dava o meu quinhão”, etc. Podemos também observar que o narrador é o protagonista dessa
desventura amorosa, apresentando, num primeiro momento, todos os seus esforços direcionados à
manutenção de seu relacionamento afetivo no passado. Entretanto, ele próprio se contradiz ao
empregar o substantivo ‘‘mentira’’ ao final de cada sequência de ações. Em suma, ele recorre ao
discurso evasivo tal qual o “homem do subsolo”, criando certa expectativa e ironizando a não-
concretização de sua intenção inicial.
Em seguida, na estrofe introduzida pelo termo circunstancial “hoje”, temos uma suposta ideia
de oposição em relação à voz enunciativa do passado, a qual alega estar imune aos efeitos do
sentimento amoroso. Todavia, novamente emprega o termo “mentira”, antecipando-se ao interlocutor
num movimento ruptura com as alegações do momento passado, demonstrando a complexidade do
sentimento humano. Podemos fazer uma analogia ao contraponto musical em função dessa passagem
entre dois planos, do momento passado para o presente, ambos opostos e com suas oposições
internas, suas próprias contraposições dialógicas em cada movimento. Devemos considerar também
o fato de a crônica musical ser um enunciado de curta extensão, por essa razão, naturalmente,
explora os conceitos de polifonia dentro das possibilidades desse gênero.
Desse modo, podemos entender que o conceito bakhtiniano de polifonia acerca da obra de
Dostoiéviski ecoa nas vozes de nossa contemporaneidade em manifestações artísticas distintas.
Somos constituídos pelas interações dialógicas, e os discursos alheios também são nossos à medida
que com eles interagimos, e sempre agimos e pensamos a partir daquilo que esperamos do outro.
Nossa voz tende a ecoar em consonância com as vozes dos outros, pois a cada enunciado que
proferimos, nos preparamos para o embate com diversas ideologias presentes num discurso.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A breve análise da perspectiva polifônica nas letras musicais de Chico Buarque aponta
possíveis convergências entre o texto buarqueano e a leitura de crônicas literárias no contexto
escolar, ao considerarmos algumas especificidades do gênero e as possibilidades temáticas nelas
presentes em diálogo com as questões sociais que permeiam muitas dessas narrativas.
A leitura sob a ótica bakhtiniana pressupõe que a mediação do professor é fundamental para
que os envolvidos no processo reconheçam o plurilinguismo presente no texto literário que se
reinventa em cada contexto no qual é lido e significado, devendo, pois, ser lido de forma ativa, para
além das convenções linguísticas. Portanto, um bom texto resiste ao tempo e está sempre convidando
o leitor para revitalizá-lo e agir sobre ele (BAKHTIN, 1993).
O diálogo com o texto das músicas de Chico Buarque subsidia uma possibilidade de trabalho
que pode ser bastante fecunda se buscarmos algumas articulações entre a concepção do filósofo

NARRATIVAS
721

russo Mikhail Bakhtin sobre a linguagem, a equipolência de vozes constituintes da tessitura narrativa e
as nossas atividades pedagógicas presentes nas aulas de Literatura, porque

Sob a ótica bakhtiniana, é no fluxo da interação verbal que a palavra se concretiza como signo
ideológico, que se transforma e ganha diferentes significados, de acordo com o contexto em que ela
surge. Dessa forma, constituído pelo fenômeno da interação social, o diálogo revela-se como a tessitura
da vida pela linguagem (KRAEMER, 2006, p.4).

No âmbito das crônicas musicais de Chico Buarque, as diversas vozes as quais constituem o
conjunto de sua obra: a mulher do lar, o malandro, a prostituta, o operário, entre tantas outras,
metaforizam tipos sociais que protagonizam cenas da vida cotidiana, repleta de uma pluralidade de
mundos possíveis para serem visitados, refletidos, reconhecidos e questionados.
A leitura como ato de constituição do sentido faz parte de um permanente conflito de vozes
entre o texto, o autor, o leitor, as outras vozes sociais e o próprio mundo histórico-social que
circunda todos os envolvidos no processo. Logo, a leitura constrói-se justamente no ‘diálogo’, na
fronteira entre essas diversas vozes que circundam o texto, afinal

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das
mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido
amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda
comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (BAKHTIN, 2006, p.117).

A crônica, seja no contexto literário, seja no cenário musical, apresenta-se como importante
elemento cultural que integra as relações e atividades humanas, para além da escolarização das suas
produções, de modo que a palavra permita que nos definamos em relação ao outro e à coletividade,
afinal, por comportar duas faces, essa palavra se determina tanto por proceder de alguém como pelo
fato de se dirigir para alguém, sendo, pois, o produto da interação entre o locutor e o ouvinte, ou seja,
o seu território comum (BAKHTIN, 2006).
Responsivo e com uma postura agentiva diante do texto, o leitor nesse contexto poderá
perceber que: a) seus valores, concepções sobre o mundo, crenças e vivências constituem elementos
fundamentais para a recepção do texto, motivando, assim, maior participação nos atos de leitura; b) o
diálogo entre o mundo da cultura e o mundo da vida torna-se essencial para agregar novos sentidos
ao texto que lê; c) a dinâmica social e histórica constituinte dos contextos de produção textual
também deve ser integrada nas práticas de leitura; d) a materialidade textual é parte integrante das
relações entre texto e contexto; e) o texto literário é uma produção cultural componente de um
cenário social amplo e não apenas uma produção com finalidades pedagógico-moralizantes; f) enfim,
que as produções ficcionais são um direito inalienável em sua formação.
A literatura como experiência, portanto, configura-se como elemento nuclear na formação
leitora na escola. Narrar, compartilhar experiências e fazer do contato com os livros, as letras

NARRATIVAS
722

musicais e os textos ficcionais espaço de dialogicidade na sala de aula são práticas em que o leitor se
reconhece em um espaço coletivo na relação direta entre a experiência e o ato narrativo.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Bárbara Del Rio. O procedimento irônico como estratégia da forma polifônica em Memórias do Subsolo, de
FiódorDostoiéviski. In: Entrepalavras, Fortaleza- ano 3, v.3, n. 2, p. 139-150, Ago/Dez 2013.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiéviski. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
_____. Questões de literatura e de estética - A teoria do romance. São Paulo: UNESP-HUCITEC, 1993. P.71-210.
BAKHTIN, M. M. / VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 2006.
BRAIT, Beth, Machado, Irene. O encontro privilegiado entre Bakhtin e Dostoiéviski num subsolo. In: Bakhtiniana, São
Paulo, 6 (1): 24-43, Ago/Dez 2011.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000.
FERNANDES, Rinaldo. Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos. São Paulo: Leya, 2013.
KRAEMER, Márcia Adriana Dias. Ensino gramatical de língua materna: uma arena de conflitos. Revista Letra Magna.
Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura - Ano 03- n.04 -1º Semestre
de 2006,
ROMAN, Artur Roberto. O conceito de polifonia em Bakhtin- o trajeto polifônico de uma metáfora. In: Letras,
Curitiba, n. 41, p. 207- 220, 1992-93. Editora da UFPR.

NARRATIVAS
RESUMO
723
É meu ato responsável narrar o encontro que tive
com a palavra mandingue, entendendo que estar

MOYOYÁ diante de uma cultura outra e escutá-la é


possibilidade de conhecer melhor a mim mesma. À
medida que cotejo a minha vida à vida na cultura
mandingue, quando cotejo minhas práticas
pedagógicas com a visão de transmissão dos
mandincas, vou percebendo-me encharcada de
preconceitos, de práticas narrativas mortificantes
do outro, levando na bolsa arrogâncias, racismo.
CARVALHO, Miza92 Busco então este encontro na tentativa de
mudança, na tentativa de aprender a escuta do
outro, aprender os elementos necessários para
narrar um encontro na e com a alteridade. Ao final,
considero-me tosca, texto tosco, mas com abertura
para conhecer as outras pessoas de mim no
INTRODUÇÃO encontro com o outro.

C
omo portar-se diante da alteridade radical? Como outras Palavras-Chave: Alteridade. Encontro. Palavra
Mandingue.
culturas resolvem tal problemática? Vou tentar narrar aqui o
encontro com estas perguntas, o encontro com a palavra
mandingue. Na forma escolhida para tecer esta escritura (escolha
do léxico, tons variados), tento revelar as dificuldades de trazer para a folha em branco o outro de
forma que ele possa ser ouvido em sua inteireza, as dificuldades que é ouvir o outro e não interpretar,
não dar acabamento a quem é por princípio incompleto.
Este texto ganha intensidade quando escuto na língua bamanã, a palavra que indica a noção de
pessoa para aquela cultura: moyoyá. Aqui escrevo a partir do movimento do eu-para-mim, eu-para-o-
outro e do outro-para-mim proposto por Bakhtin. Encontreineste vai e vem, uma luta contínua comigo
mesma, com as equivocadas concepções que carrego. O texto revela esses movimentos que minha
consciência foi fazendo ao conhecer a forma tão singular que a cultura mandingue ensina acerca do
encontro humano.

1. ENCONTRO

Este texto nasce do encontro com a palavra mandingue.


Conheci o djeli e griot Toumani num curso intitulado ‘Djéliya: a arte prática da transmissão na
tradição oral mandingue’. A partir daí fiquei querendo conhecer melhor a cultura onde a palavra do
djeli se enraíza. Foi então que eu trouxe a proposta para a Universidade Federal Fluminense de
pesquisar esta palavra outra no curso de mestrado da linha de pesquisa ‘Linguagem, Cultura e
Processos Formativos’.
Diante do momento atual que estamos enfrentando politicamente, onde cresce o medo do
outro, cresce o medo deste que não sou eu e intensifica-se a ideia, portanto, de exterminar o mal, ou
seja, exterminar o outro, provoca-me mais ainda estudar a palavra de uma outra cultura. Preciso

92Mestranda em Educação da Universidade Federal Fluminense. E-mail: miza.carvalho.rj@gmail.com

NARRATIVAS
724

aprender a escutar o outro, preciso aprender a reconhecer a diferença e reinventar-me para


conseguir ver a diversidade nas formas de produzir conhecimento no mundo. Vou então ao encontro
de um djeli africano.
Devem estar se perguntando o que é um djeli, o que é um griot. Esta também foi uma das
perguntas que fizeram para Toumani no curso, e ele nos contava que a sociedade tradicional africana
da qual ele faz parte, há muito e muito tempo, tinha organizado um reino, diferente de como
entendemos os reinos hoje em dia. Era o reino do Mandê, e era reconhecido como o reino mais
democrático, porque o reino era estruturado de uma maneira que colocava todos numa igualdade,
numa relação de respeito. Este é o reino Mandê do século VII. A sociedade era dividida em três castas:
a dos nobres, a dos escravos, e, entre estas duas, os nyàmakálá, esta era constituída pelos djeliw
(plural de djeli), ferreiros, tecelões, trabalhadores de couro e os artesãos de madeira. O rei não tinha
o direito de falar diretamente com o seu povo, então ele tinha um mediador, um djeli que era escolhido
por um pacto entre duas famílias; de pai para filho eles se tornam rei e homem de confiança. Por isso
este pacto se constitui num segredo de sangue, um pacto de sangue, e assim eles se autodenominam
djeliw, que significa ‘sangue’ em bamanã, estes membros da ‘casta da palavra’ que circulam por toda
sociedade, homens e mulheres que têm a palavra como material de trabalho. Toumani dizia então que
o rei ficava no seu trono e no trono do lado ficava o djeli. E, curiosamente, na família dos djeliw eles
são grandes filósofos, pensadores, psicólogos, bons conselheiros, são também juízes; eles são
mestres da palavra, pois tudo que eles dizem tentam fazer de uma maneira que todos compreendam
sem problema.
Foi então que soube de um evento organizado por um grupo de pesquisa na UNIRIO para
divulgar um material com as transcrições de entrevistas cedidas pelo griot Sotigui Kouyaté, tio de
Toumani, portanto, também representante da palavra mandingue.
O evento aconteceu num pequeno auditório da UNIRIO, e lá, Ana Achar exibiu um curta
chamado ‘Errance’ onde Sotigui aparece como personagem principal. Foi para mim surpreendente. Em
seguida foi feita uma roda de conversa onde o mais importante foi ouvir os relatos de pessoas que
tinham convivido com aquele griot e inclusive ido à África com ele. Pela boca daquelas pessoas
parecíamos ouvir Sotigui falar, como se a palavra dele fosse ali ganhando corpo. Ao final houve a
distribuição do Caderno de Textos: A palavra do griot Sotigui Kouyaté.

2. O CADERNO

Chegando à casa, fui correndo folheá-lo, e encontro lá escrito:


Certa vez nós nos dirigimos aos velhos porque, bom, eles foram os que viveram mais, que
viram muito mais coisas, então nós os chamamos de sábios – nós os reunimos e perguntamos qual
seria a pior coisa para o ser humano. Eles disseram que primeiramente seria a doença.
Veio imediatamente à minha lembrança terríveis doenças. Pernas inchadas com gangrenas,
cálculos gigantescos nos rins causando dores triunfais, nenhum fio na cabeça em decorrência de

NARRATIVAS
725

doses cavalares de quimioterápicos, degenerações de nervos medulares causando perdas de


movimentos corriqueiros como escovar os dentes, escorbuto. Também todas aquelas doenças que
cantaram os Titãs em O Pulso ainda pulsa:
Peste bubônica, câncer, pneumonia/ Raiva, rubéola, tuberculose, anemia / Rancor,
cisticercose, caxumba, difteria / Encefalite, faringite, gripe, leucemia. Hepatite, escarlatina, estupidez,
paralisia /Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia/ Úlcera, trombose, coqueluche, hipocondria/ Sífilis,
ciúmes, asma, cleptomania / Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia/ Hérnia, pediculose, tétano,
hipocrisia, /Brucelose, febre tifóide, arteriosclerose, miopia/ Catapora, culpa, cárie, câimbra, lepra,
afasia.
Bati na madeira para me livrar dessas terríveis doenças. Depois veio uma música do Chico
Buarque, e esta foi como um sopro no arranhão: Procurando bem/Todo mundo tem pereba/Marca de
bexiga ou vacina/E tem piriri, tem lombriga, tem ameba/Só a bailarina que não tem/E não tem
coceira/Berruga nem frieira/Nem falta de maneira/Ela não tem. Futucando bem/Todo mundo tem
piolho/Ou tem cheiro de creolina/Todo mundo tem/um irmão meio zarolho/Só a bailarina que não
tem/Nem unha encardida/Nem dente com comida/Nem casca de ferida/Ela não tem. Não livra
ninguém/Todo mundo tem remela/Quando acorda às seis da matina/Teve escarlatina/Ou tem febre
amarela/Só a bailarina que não tem.
Eu já estava rodando que nem bailarina pela sala, quando olhei para minha perna cheia de
fungos! Corri atrás da pomada e voltei àquela fatídica reunião de velhos africanos.
Eles disseram que primeiramente seria a doença. “Não”, eles disseram depois.
Se estas doenças não eram a pior coisa do mundo, era melhor eu me preparar para o que
vinha pela frente.
“Não é a doença, é a morte”.
Não era a doença a pior coisa para os homens e sim a morte? Este é um assunto que ninguém
quer falar. É tabu na sociedade. Quanta tristeza se vive quando morre alguém próximo. Não posso nem
começar a lembrar dos diversos tipos de morte. Suicídio é para mim o pior deles. E a morte lenta
daqueles que fumam 10 carteiras de cigarros por dia? E as mortes que aconteceram nos genocídios
na África e na América Latina? Ouvi dizer que na África eles degolavam cabeças e exibiam tal
violência. Não, não vou entrar nas torturas que levaram à morte uma centena de militantes nos
diversos países que sofreram com as ditaduras. Não vou entrar aqui nas diversas mortes diárias que
acontecem nas favelas do Rio de Janeiro, nas mortes causadas pelas secas, pelos desastres
ambientais. Paro, compenetrada, na imagem dos cemitérios dos anjinhos: a morte de crianças
pequenas faz parte do cotidiano do nordestino. Morte pelos abortos, morte entre membros da família.
Morte pela luta de terras nos latifúndios do Brasil, morte de lideranças indígenas que a televisão não
anuncia. Mortes causadas pela derrubada de imóveis com pessoas dentro em pleno século XXI em São
Paulo. Morte de manifestante pacífico pela ação inútil de uma polícia quase fascista. Já ouvi um
delegado contar ter encontrado mães agradecendo a morte do filho que vivia envolvido com drogas.

NARRATIVAS
726

Era preferível a morte a viver uma vida decadente. Preferi não chamar estes casos de morte, prefiro
chamar de violência. Aqueles velhos devem estar se referindo às mortes naturais.
Minha mãe sempre repete esse ditado: a gente dá jeito para tudo, só não se dá jeito para
morte. Realmente chegar numa situação onde não há mais para onde ir, onde não se pode fazer mais
nada, isso é terrível. Mas parece que diante da morte, melhor aceitar sua chegada. Imaginem se a
morte desistisse de chegar aos homens? Hospitais lotados sem leitos, destroços de acidentes
misturados em sangue e, ao invés de resgatarem corpos que morreriam no caminho até o hospital,
pedaços de carne sem previsão de óbito, crises nas agências funerárias, campanhas de oração para
que a morte voltasse a exercer sua função, todas e mais imagens como estas que Saramago nos
conta93, de uma cidade onde a morte deixou de chegar. Para muitos a morte ainda é das piores coisas
da vida, mas se a coisa mais certa da vida é a morte, como diz o ditado, por que tanto terror? Não
dizem também por aí que morremos um pouco a cada dia?
Leio Bakhtin e ele diz que a morte é o que dá acabamento à vida. Eu quando penso na minha
morte busco logo tratar de ter uma boa vida. Vozes de poetas me vêm na cabeça, poemas onde a
morte é herói, ditirambos que realçam o quanto a vida é bela só pelo fato de imaginar a presença da
morte. Posso pensar na morte como um abraçar mais forte a vida. Chega aqui em tom lírico o trecho
de um poema da Hilda Hilst em sua Da morte. Odes Mínimas, ela aqui “revertendo a carne em verbo”:
Demora-te sobre minha hora. /Antes de me tomar demora. /Que tu me percorras cuidadosamente
etérea/Que eu te conheça lícita, terrena. Duas fortes mulheres/Na sua dura hora. Que me tornes sem
pena/Mas voluptuosa, eterna/Como as fêmeas da Terra. E mais este: Cavalo, búfalo, cavalinha/Te
amo amiga, morte minha,/Se te aproximas, salto/Como quem quer e não quer/Ver a colina, o prado, o
outeiro/Do outro lado como quem quer/Tocar teu pelo, o ouro. O coruscante vermelho do teu
couro/Como quem não quer.
Leio e quase me apaixono pela Morte, essa dona de tom erótico. Estou louca? Que é isso,
Hilda? Fazendo-me apaixonar por esta força etérea? É isto hipnose? Esses poetas e poetisas com
seus tons embriagantes me levam à morte.
Mas de fato, como diz o ditado: tanto se morre em Pequim, como em Quixeramobim, a morte
chega para todos. Corro a Câmara Cascudo para escutar alguns nomes pelos quais os brasileiros
expressam a morte: abotoou o paletó de madeira, bateu a bota, descansou, esticou a canela, foi
estrumar feijão, foi pros bichos, está na terra do Nunca Mais, passou dessa para Melhor, viajou,
perdeu a fala. Ele cita também gêneros da Morte: morrer como um passarinho, aquela morte rápida;
morte macaca, esta designa uma agonia cruel, contorções, com trejeitos, caretas e estrebuchões;
morte matada, como chamam os assassinatos; morte de desgraça, para dizer das mortes em luta,
acidente provocado, suicídio; morte de sucesso: desastres; morte de mau sucesso: morrer de parto;
morrer apressado para dizer passamento sem agonia; morte de repente, que diziam que nem todos

93
Entrar num livro de Saramago é muitas vezes uma aventura com a linguagem. Normalmente me surpreendo com a rica imaginação deste
autor na criação de suas obras. Trouxe do livro As intermitências da morte algumas de suas imagens para ajudar a pensar se a morte é ou
não a pior coisa da vida.

NARRATIVAS
727

estariam “preparados” para recebê-la; morte em pecado mortal, a considerada morte eterna. E as
pragas? Que não tenhas uma vela antes de morrer! Que te falte terra para o enterro! Que sejas
enterrado no mato, entre os bichos brutos! Que morras em pecado mortal! Espero que quando
chegar minha hora, eu tenha uma boa morte. Mas não quero mais falar disso.
Agora deixo o livro de Cascudo e volto ao Caderno.
Os velhos na reunião ainda disseram: Não é a doença nem a morte... Eles procuraram muito e
encontraram um acordo de que seria a ignorância.
Aquele grupo de velhos sábios africanos está colocando a ignorância em estado pior do que
doença e a morte?
Fui até a lembrança de um dia, quando fiquei ouvindo a conversa entre dois conhecidos. Um
disse ao outro: você é ignorante! E a resposta foi: eu sou ignorante sim, eu admito, eu não sei tudo.
Mas, se ele admitiu que não sabe, ele ao menos sabe que não sabe, então não posso chamá-lo de
ignorante. Talvez ele esteja dentro do rol da “sábia ignorância”, daquelas que Sócrates fez escola
enunciando: sei que nada sei.
No curta exibido na UNIRIO, chamado ‘Errance’, Sotigui no papel de um griot que encontra e
conversa com um grupo de crianças e lá ele dizia haver quatro tipos de pessoas no mundo: o que sabe
que sabe, eles chamam de sábio, e este podemos segui-lo; o que não sabe que sabe é considerado
dorminhoco, é preciso sacudi-lo para acordá-lo; o que sabe que não sabe é o pesquisador, este
precisa ser guiado; e o que não sabe que não sabe, este é um perigo público, deste, melhor sair
correndo.
Aquela reunião era composta de velhos que sabem. Eles sabem que sabem. Estou seguindo
suas palavras. Quero ainda saber qual a pior coisa do mundo para os mandincas. Sigo com o Caderno.
Agora era preciso encontrar quem seria o mais ignorante de todos. E eles disseram que era
aquela pessoa que nunca ultrapassara a porta de sua casa para ir em direção ao outro.
Buscaram o pior dos ignorantes e o que encontraram foi aquela pessoa que nunca
ultrapassara a porta de sua casa para ir em direção ao outro. Fiquei por dias inquieta com esta
questão e puxava esse assunto com um e com outro. Quando conversei com Patrícia e Liliane -
colegas do Grupo Atos - elas ainda observaram que na doença havia encontro com vírus, bactérias,
que passam de uma pessoa à outra. Ainda que de maneira prejudicial, há encontro! E se pensarmos na
morte, este é um momento para o outro. Aprendo isto com Bakhtin, quando ele diz que a morte é um
fato objetivo para as outras consciências, já que a consciência de si desconhece e não possui a última
palavra. Este autor vai pensar a morte olhando para a obra de Tolstói e de Dostoiévski. Para o
primeiro, a morte de dentro (para o próprio moribundo) e a morte de fora (para o outro) se
aproximam; para o segundo a morte nada conclui, porque ela não afeta o principal nesse mundo: a
consciência para si.
E o que será que acontece quando nunca ultrapasso a porta da minha casa em direção ao
outro? Nunca é em tempo algum. Lembro-me da terra do nunca jamais, a ilha fictícia de Peter Pan,
onde este se recusa a crescer. Se recusar a ultrapassar a porta de sua casa? Não se vai mais adiante

NARRATIVAS
728

da própria porta. Não ultrapassar a sua própria casa é não sair do seu próprio lugar, é este o lugar da
identidade individual? E não ultrapassar a sua própria casa e não ir em direção do outro? E este
verbo ‘ir’? Se não ultrapassam a porta não há movimento. Não há ação. Se não tem movimento em
direção ao outro, não tem outro, não tem ninguém, só há uma pessoa, parada, estática, sem encontro.

3 Noção de pessoa

Estou realmente espantada, e novamente lendo o Caderno de Textos encontro um trecho onde
Sotigui sai do tom narrativo e declara: na minha língua, para indicar uma pessoa a gente fala ‘moyo’.
Mas depois de ‘moyo’, tem ‘moyoyá’, a pessoa da pessoa. Isto quer dizer que a pessoa tem muitas
pessoas dentro dela, e que a evolução e a progressão da vida para o ser humano, para ir no sentido
do melhor dele mesmo, é ir todo dia ao encontro dessas pessoas que nós temos dentro de nós
mesmos e que se encontram nos outros. Daí a necessidade de um indispensável encontro (2014, p.7).
Ao mesmo tempo em que escuto estas palavras de Sotigui, também escuto discursos vindos
da Europa, de dirigentes querendo fechar suas fronteiras. Posso entender que o gesto de abrir as
fronteiras é um gesto de ir ao encontro do outro na alteridade. Mas ao contrário disso, estamos
passando por um momento de crise no mundo onde o nacionalismo está se exacerbando e onde a
justificativa é: quem tem causado todo o mal é justamente o outro, precisa-se fechar a fronteira para
que esse mundo em crise não chegue por aqui. No meio da crise é preciso apontar um culpado.
Quando escuto as posições atuais de fechamento de fronteiras para imigrantes, posso ver a cultura
do eu direcionando políticas, criando individualismos, distâncias, medo e terror. O que cresce é o
medo do outro, medo do diferente. Medo da alteridade radical, como nos alerta o professor Ponzio.
Esta é uma questão última, como diria Bakhtin. Vejo sociedades atualmente assustadas com o
fantasma do terrorismo. Alguns diriam que terrorismo é fechar fronteiras. A coisa está séria. Neste
cenário, os álibis proliferam e os atos responsáveis estão em baixa no mercado de valores (será que
os europeus tementes não sabem que não sabem?).
Ponzio nos lembra que a formação do indivíduo circunscrito e isolado do resto do social, que
conhecemos como identidade individual, é uma abstração relativamente recente (PONZIO, p. 207). Tem
sido importante descobrir, pelos olhos de Bakhtin e Ponzio, que antes dessa cultura do individualismo
a sociedade convivia melhor com o indissolúvel nexo de união entre identidade e alteridade (2015, p.
207).
Escuto os Kouyatés chamando para que nos coloquemos uns diante dos outros sem medo, e
justo o que parece um terror, pode ser a riqueza. Isto me parece atual e urgente. Continuo à escuta
de Sotigui:
Os outros seres que temos dentro de nós mesmos, que nós não conhecemos ainda, são a
nossa fonte de enriquecimento. É preciso nos movimentarmos para encontrá-los. São nessas pessoas
que a gente encontra nosso complemento. Nós dizemos que quando encontramos alguém, ao invés de

NARRATIVAS
729

ter medo, você deve olhar com calma nos olhos dele, e você vai acabar por se ver nos olhos dele, e
entender que aquilo que os aproxima é muito mais forte do que aquilo que os afasta (2014, p. 19).
Escuto estas palavras tão simples... mas envergonho-me de ver quantas vezes ainda reajo
com medo diante do outro. Sinto transformar-me ao ouvir estas palavras. Escuto como um eco:aquilo
que me aproxima do outro é muito mais forte do que aquilo que me afasta dele. Repito, repito para ver
se consigo fazer diferente, pois sempre fui o centro de minha atenção e o outro sempre foi cheio de
defeitos. Caí na armadilha. Mas agora que reconheço a armadilha, posso nomeá-la. Da próxima vez que
eu me aproximar da armadilha, usarei da engenharia reversa para aprender como ela se construiu,
como ela funciona, e assim poder desativá-la.
Quero desativá-la com o riso, com a compreensão que posso escrever em gêneros mais
dialógicos, onde o colocar-se em outro ponto de vista é a força para ouvir e de conviver de fato com o
outro. Ouço Ponzio e Bakhtin falando-nos das condições sociais nas quais foram soterrados os
gêneros “sério-cômicos”, justo estes que contrapunham a palavra indireta com o riso. Deixaram-nos
em contato somente com estes gêneros da palavra “séria”. Sinto-me convidada a conhecer os signos
do corpo grotesco e da cultura carnavalesca para que os sentidos de ambivalência, da subversão, do
livre contato familiar entre os homens, da abolição das distinções e das ordens hierárquicas (2015, p.
207) possam emergir com toda força e potencialidade nas suas manifestações de alteridade. Assim
enfrento a palavra direta, objetiva, fechada em si mesma; enfrento a palavra absoluta, enfrento o
paradigma da identidade.
Vou e volto à Bakhtin para me fortalecer neste embate. Este autor reconheceu uma
arquitetônica na vida humana, onde se tornam necessários no mínimo dois centros de valor, o meu e o
do outro, que se interpenetram, onde nenhum dos centros ganha prevalência sobre o outro. Estamos
ainda hoje buscando compreender o encontro humano como essa arquitetônica. Num momento em
que o mundo mostra-se querendo pender somente para um centro de valor e a disputa acontece na
tentativa de destruir o outro, a pergunta retorna: é possível que o embate seja somente para alargar
visões e não para destruir posições? Meu ato hoje é ir em direção ao outro, para incluí-lo na cena, na
trama, um embate dialógico. Neste jogo não há vencedor. Ouço Sotigui repetir: o que nos aproxima é
mais forte do que o que nos afasta.
Ponzio me faz pensar a concepção bakhtiniana do ato como dar um passo94. Ele busca na
palavra ‘postupok’ a sua raiz ‘stup’ (que significa passo) para entender que o ato responsável
proposto por Bakhtin é uma tomada de posição. Postupok é um ato.

94
A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo é o título de um texto de Ponzio que integra a introdução do livro Para uma filosofia do
ato responsável, da edição organizada pela Pedro & João. Nesta introdução o professor Ponzio indo à raiz stup, da palavra postupok, para
aprofundar a idéia do ato, e nos faz entender que postupok é ‘dar um passo’. Trago neste texto esta palavra para cotejar com a palavra
moyoyá.

NARRATIVAS
730

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Moyoyá também é um ato. Uma ação arriscada de dar um passo para encontrar o outro,
colocar-se diante dele. Ponzio vai adentrando no conceito de postupok e o relaciona com o conceito de
‘extralocalização’, de ‘exotopia’, que significa colocar-se fora de maneira única; diz também que
‘transgrediência’ significa dar um passo, um passo fora de qualquer alinhamento, semelhança,
identificação. No moyoyá o convite é dar um passo em direção ao outro, um ato que convida a estar
fora da identificação consigo mesmo para olhar no olho do outro, pois somente assim é possível
conhecer um outro de si. Se não damos este passo, mantemo-nos na pobreza do eu-único. Moyoyá
anuncia o eu-múltiplo, as pessoas dentro da pessoa. Estamos diante de uma filosofia moral africana,
onde é possível ver uma cultura em que a imagem do homem é plural e dialogal. Ao trazer a palavra
moyoyá na língua bamanã, Sotigui está trazendo de forma singular sua concepção de homem que se
constitui na alteridade. Moyoyá é a verdade pravda95 de Sotigui, é seu ato singular de enunciar que o
homem é um ser plural.
Se me pergunto por que busquei um africano da cultura mandinca para dialogar, posso
responder de muitas formas esta pergunta. De fato, fui em sua direção pois queria conhecer uma
outra cultura, acreditando que a partir da diferença alargaria minha visão de educação. Esta outra de
mim que vem nascendo desses encontros com os Kouyatés, está aprendendo a responder questões
acerca do humano plural, da vida no coletivo, da escuta. O mundo se alarga quando nasce dentro de
mim uma pessoa que começa a compreender melhor como os mandincas organizam seus gêneros
orais, suas condições de fala, o contexto que cada gênero é falado, suas características. Sim, estou
compreendendo que para conhecer os gêneros orais é preciso conhecer as situações onde cada
palavra é dita, a visão de mundo onde essa palavra é criada, o entendimento da relação que o homem
tem com a palavra dita. Quero colocar-me à escuta e conhecer um pouco desta cultura singular.
Quero dar um passo na direção dessa outra visão de mundo dita pelos Kouyatés. Como ir ao encontro
do outro, como colocar-se diante dele. Olho no olho.
Quero poder com eles colocar novas questões para pensar uma escola outra como esse lugar
do encontro interessado de um humano com outro humano.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail M. Para uma Filosofia do Ato Responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto
Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
CASCUDO, Luis da Câmara. Tradição, Ciência do povo.Editora Perspectiva, São Paulo, 1971.

95
Foi lendo o livro Para uma Filosofia do Ato Responsável que tive contato com a discussão sobre verdade istina e verdade pravda. Lendo a
introdução de Ponzio, fiquei pensando nesta idéia de que a verdade pravda é a entonação do ato (p 17). Aqui entendi que moyoyá era a
entonação africana, dita em bamanã, para enunciar que o ser humano é plural. Alarga-me pensar que há uma cultura que nomeia esta
pluralidade no humano.

NARRATIVAS
731

HILST, Hilda. Da morte. Odes mínimas. De la Mort. Odes minimes. Tradução Álvaro Faleiros. São Paulo: Nankin
Editorial; Montrèal: Le Noroit. 1998.
PONZIO, Augusto. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João, 2010.
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia da Letras , 2005.
SOTIGUI, Kouyaté. Caderno de textos sobre a palavra do griot Sotigui Kouyaté . Entrevistas. Org. e revisão Ana
Achar, Revisão Ana Achar, Duanny Dantas e Juliana Brisson. Rio de janeiro. UNIRIO/Núcleo do Ator. Investigação e
Documentação Teatral, 2014.

Músicas
BUARQUE, Chico; LOBO, Edu. Ciranda da Bailarina. Album: O grande circo místico. 1983.
TITÃS. O pulso. Álbum: Õ BlesqBlom. 1989

DOCUMENTÁRIOS, FILMES, EMISSÕES RADIOFÔNICAS, ESPETÁCULO EM VÍDEO E DVD


BOURID, Nouri. Errance. (Curta, drama, 13’)Protagonizado por Sotigui Kouyaté. Argélia, 2009.

NARRATIVAS
RESUMO
732
Para uma abordagem sistematizada do discurso,
problematizo a natureza dos diálogos das
personagens de Mulher no Espelho, romance de

DISCURSO E LINGUAGEM Helena Parente Cunha, considerada como obra


transgressora para os padrões literários vigentes.
Questões relativas ao enunciado visam dar conta do

EM MULHER NO ESPELHO
estranhamento produzido pela linguagem utilizada
pela autora, que se converte no ponto relevante da
pesquisa. O discurso será apresentado como
ideologia e formação de poder, enquanto que a
enunciação será tratada como a arquitetura textual
que lhe dá sustentabilidade. Nesse sentido, serão
utilizados aportes teóricos de Michel Foucault e
Mikhail Bakhtin para justificar fenômenos de
CHAMPLONI, Hiolene de Jesus M. O. 96 linguagem observados nos distintos âmbitos da
narrativa.

Palavras-Chave: Dialogismo. Discurso. Linguagem.


Mulher no Espelho.

INTRODUÇÃO

P
arente Cunha, em tom confessional, constrói o seu texto com duas personagens e uma
narradora, as quais darão à narrativa um quê de pós-modernidade e quebra de paradigmas
próprio da contemporaneidade. Assim, verificam-se duas narrativas que se entrecruzam,
desvelando duas faces de uma mesma mulher que se duplicam e revelam, por meio do espelho, os
anseios da alma feminina. A obra se constitui dessa personagem principal não nomeada, que ao longo
da narrativa descobre-se que é casada e mãe de três filhos. Essa mulher é proveniente de um lar,
cujo pai, em seu autoritarismo, busca garantir o futuro da filha casando-a convenientemente e de uma
mãe desprovida de qualquer autonomia para interferir na educação dos filhos. O leitor se depara com
uma mulher em fuga, alguém que precisa se duplicar para suprir a sua necessidade de liberdade e
suposta felicidade. Assim, o espelho projeta imagens contraditórias: de um lado, uma mulher
reprimida e, do outro, uma mulher liberal. Essa última só existe na imaginação da primeira,
representando tudo aquilo que ela gostaria de ser e de fazer. É dessa forma que uma linguagem forte
e sem pudores, constrói os diálogos entre a “mulher do espelho” e a “mulher que escreve”,
provocando estranhamento naquela sociedade patriarcal que regia o universo feminino retratado no
texto. Nos diálogos abaixo, verifica-se a diferença de postura das duas mulheres que travam um duelo
sutil e revelador das posições distintas em que elas se encontram:

Quando meu marido chega do trabalho, sempre me encontra arrumada, banho tomado, roupa limpa,
cabelo penteado, um pouco de pintura no rosto. O jantar pronto, ainda que a cozinheira tenha falhado.
Quando ele chega, me quer junto dele. Para lhe dar o chinelo, preparar o aperitivo, conversar sobre
problemas do escritório.

Quando seu marido chega, invariavelmente tarde e fora de hora, nem presta atenção se você está
arrumada ou não. Só interessa a ele ver você bem preparada se há visitas, sobretudo as tais que ele

96Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília. E-
mail: hiolene2@hotmail.com

NARRATIVAS
733

gosta de impressionar, através da imagem de um lar bem constituído, esposa dócil e bonita. Ele quer
você junto dele apenas para servi-lo, abrir a janela ou fechar, ligar ou desligar o ar-condicionado, a
massagem nos pés carregados de chulé, o remédio da alergia, o nariz escorrendo. Conversar sobre
problemas do escritório? (CUNHA, 2003, p. 26-27).

É possível observar nesse diálogo, a contradição entre o pensamento e a ação das duas
mulheres que duelam entre si, em cujo embate se sobrepõe a força do discurso, que pode ser tão
convincente, quanto o poder de argumentação de quem tem o domínio da linguagem ou é conhecedor
das estratégias discursivas. Foucault chama a atenção para o condicionamento do discurso, da
seguinte forma:

As condições para que apareça um objeto de discurso, as condições históricas para que dele se possa
“dizer alguma coisa” e que dele várias pessoas possam dizer coisas diferentes, as condições para que
ele se inscreva em um domínio de parentesco com outros objetos, para que possa estabelecer com eles
relações de semelhança, de vizinhança, de afastamento, de diferença, de transformação - essas
condições, como se vê, são numerosas e importantes. Isso significa que não se pode falar de qualquer
coisa em qualquer época: não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção,
ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua
primeira claridade (FOUCAULT, 2014, p.54).

DESENVOLVIMENTO

Ao se buscar uma aproximação com os pressupostos acima, pode-se inferir que o discurso
será individualizado se pudermos identificar as diferentes estratégias que se derivam de um mesmo
jogo de relações. Na narrativa de Parente Cunha, esse jogo traz à baila um sistema de formação
discursiva que não se constitui em uma finalização dos discursos, se por esse termo pudermos
entender as falas de suas personagens tais como se apresentam: com seu vocabulário, sua sintaxe,
sua estrutura lógica e organização retórica. No sistema discursivo da mulher do espelho, a
enunciação ocorre dentro dos padrões da regularidade social vigente no tempo e no espaço da
narrativa, enquanto que a mulher que escreve transgride essas normas ferindo esse sistema. Ainda
de acordo com Foucault (2013, p.41), é preciso reconhecer as grandes fendas que se encontram na
apropriação social dos discursos. Nesse contexto a educação, embora atue como uma ferramenta de
acesso a qualquer tipo de discurso por meio da instrução do indivíduo, com suas linhas demarcatórias
segue promovendo permissão ou impedimento entre as distâncias, oposições e lutas sociais,
corroborando para com a proposição foucaultiana de que todo sistema de educação é uma maneira
política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que
eles trazem consigo (FOUCAULT, 2013, p.40-42).
Bakhtin se constitui em suporte teórico para as questões abordadas, a partir de suas
reflexões em Marxismo e filosofia da linguagem, nas quais à luz do pensamento filosófico propõe uma
teoria e análise dialógica para o discurso, sob a perspectiva de enunciação, em que questões
relacionadas à construção de sentido e de seus efeitos são adequadas aos conceitos de tema e de

NARRATIVAS
734

significação na linguagem, sem os quais não se pode entender o significado de gênero discursivo. Um
aspecto igualmente importante para Bakhtin é o da alteridade, em que discute a presença do outro na
linguagem e no discurso, em que este se constitui em mediador e condutor. Para ele, a pluralidade
dos gêneros dos discursos se torna infinita, à medida que as atividades humanas se redescobrem e
não se findam devido ao também infindável repertório discursivo inerente a cada categoria ou extrato
social. É, portanto, nessa delicada relação que proponho situar os diálogos das mulheres no espelho
de Parente Cunha, na condição de objeto de uma análise “que mobilize conceitos que representem um
desvio ou uma nova modalidade discursiva do eu que tende a anular o eu-para-mim para se definir
como o outro dos outros”( BAKTIN, 2005, p.109).
Com estas palavras o filósofo russo focaliza a autoconsciência, como uma das maneiras como
o sujeito organiza a relação que estabelece consigo mesmo. É essa relação que possibilita a
adequação dos diálogos em Mulher no espelho em que considerações a cerca de gêneros do discurso
e enunciação esclarecem o posicionamento do outro da personagem, convencionalmente chamada de
a mulher que escreve. Ao tratar dos gêneros do discurso Bakhtin (2016, p.20) esclarece que, de
acordo com época em que se dá a evolução da linguagem literária ocorre um tipo de gênero de
discurso, cujo tom é dado não somente pelos gêneros secundários tais como os científicos, literários
ou publicísticos, mas, também, pelos gêneros primários, como podem ser classificados alguns tipos de
diálogo oral, por exemplo, as conversas íntimas, de salão, de círculo social, familiar-cotidiano etc.
Desse modo, tanto os estilos individuais quanto os da língua satisfazem os gêneros do discurso.
Falar de enunciação é fazer também, uma pequena incursão pelo terreno da psicologia do
corpo social, tema explorado por Bakhtin (2010, p. 43), segundo o qual esta psicologia se constitui em
uma espécie de elo entre a estrutura sociopolítica e a ideologia, materializada sob a forma de
interação verbal. Fora do processo real de comunicação, a psicologia do corpo social se transforma
em um conceito metafísico. Ela não está situada em nenhum lugar interno, mas exteriorizada na
palavra, no gesto ou no ato. Dessa forma, ela se concretiza, principalmente, nas manifestações
verbais. Conforme Bakhtin, a psicologia do corpo social é o meio ambiente mais adequado para a
concepção dos atos de fala. É nesse elemento que subjazem todas as formas e aspectos da criação
ideológica, tais como nas conversas de corredor, nas reuniões sociais, no teatro, assim como nas
mais diversas manifestações enunciativas. Para o filósofo russo,

Estas formas de interação verbal acham-se muito estreitamente vinculadas às condições de uma
situação social dada e reagem de maneira sensível a todas as flutuações da atmosfera social. Assim é
que no seio desta psicologia do corpo social materializada na palavra acumulam-se mudanças e
deslocamentos quase imperceptíveis que, mais tarde, encontram sua expressão nas produções
ideológicas acabadas (BAKHTIN, 2010, p. 43).

Diante do exposto, corroboro que o conceito bakhtiniano de enunciação se aplica às condições


dos diálogos em Mulher no espelho, principalmente se levarmos em conta o tempo e o espaço em que
a narrativa se desenvolve. Em um ambiente hostil às manifestações femininas, ao mesmo tempo em

NARRATIVAS
735

que a mulher em combustão, está ao ponto de explodir sob qualquer pretexto, a linguagem do
romance denuncia a necessidade de ruptura e de escuta dessa voz abafada pelos padrões sociais
vigentes de sua época. A esse respeito Bakhtin (2010, p. 44), faz uma dedução de tudo que foi dito até
o momento a cerca da psicologia do corpo social: que a referida psicologia deve ser estudada sob dois
pontos de vista, sendo o primeiro o conteúdo dos temas e o segundo, do ponto de vista dos tipos e
formas de discursos, cujos temas são experimentados, realizados, pensados e atualizados.
Certamente que a forma de discurso de Mulher no espelho é capaz de leva-lo a uma posição
mais marginal. Bakhtin (2010, p.67), esclarece que em cada ato de fala, o trabalho mental se dissolve
mediante a objetividade da enunciação realizada. Por outro lado, a palavra enunciada se torna
subjetiva na descodificação que cedo ou tarde deve provocar outra codificação em forma de réplica.
Sendo assim, cada palavra pode se transformar em uma pequena arena na qual os valores sociais se
entrecruzam em uma luta de orientações que se contradizem.
Para Michel Foucault (2014, p. 148), a exterioridade é um traço característico na análise dos
enunciados. Entretanto, como um conjunto das coisas ditas, as relações, as regularidades e as
transformações que podem ser observadas, sobretudo o domínio exercido por certas figuras e certos
entrecruzamentos, indicam o lugar singular de um sujeito falante e podem receber o nome de um
autor. “Não importa quem fala, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado,
necessariamente, no jogo de uma exterioridade” (FOUCAULT, 2014, p.150).
Para Foucault, deve-se descrever um conjunto de enunciados não em referência à
interioridade de uma intenção, de um pensamento ou de um sujeito, mas segundo a dispersão de uma
exterioridade. Nesse sentido, o filósofo esclarece que a análise de um discurso é sempre atravessada
pela oposição interior versus exterior, comandada pela necessidade de retornar dessa exterioridade
em direção ao núcleo central da interioridade. Em outras palavras, seria definir o tipo de positividade
de um discurso. Segundo o filósofo francês, (2014, p.153), “ser positivista é substituir a busca das
totalidades pela análise da raridade, pela descrição das relações de exterioridade”. Raridade, no caso
dos enunciados, seriam as coisas que se transmitem e se conservam porque têm valor e das quais
procuramos nos apropriar, repetindo, reproduzindo e transformando para depois recolhê-los em suas
totalidades promovendo, assim, sua multiplicidade de sentidos. Foucault enfatiza que a análise é a
maneira de reagir contra a pobreza enunciativa compensando-a com os múltiplos sentidos. “É falar
dela, apesar dela”, ao mesmo tempo em que adverte que, “analisar uma formação discursiva é
procurar a lei de sua pobreza, é medi-la e determinar-lhe a forma específica” (FOUCAULT, 2014, p.
147).
Reproduzo abaixo, mais um dos conjuntos de enunciados que formam os diálogos de Mulher no
espelho, muito emblemático para a compreensão dos posicionamentos filosóficos abordados. Elas se
comunicam da seguinte forma:

Ah, a mulher que me escreve é uma puta. Recusa-se a falar, deixa-me sentir até às últimas reentrâncias
o desespero da solidão dela. De nada adianta a sua vida livre e imoral. Imoral sim. Seu corpo cedido a

NARRATIVAS
736

tantos homens, sua sede de amor também frustrada em todas as experiências. De homem em homem
ela partiu em busca do impossível (CUNHA, 2003, p.48).

Você põe malícia no que é simples e natural. Para você o sexo sempre foi tabu. Você não goza com o seu
marido, não porque ele é obeso e fede, não porque ele é pesado e mole, mas antes de tudo porque você
vê no ato sexual um despudor, uma devassidão. Se você não goza com seu marido, é porque você é dura
e seca e não porque ele sua e amolece (CUNHA, 2003, p.50-51).

Diante do exposto, torna-se imperioso tratar o discurso como aspecto relevante da obra, cuja
autora ao se utilizar de um vocabulário inusual faz cair por terra os falsos pudores da mulher que se
olha no espelho, que até então envergara uma postura de esposa e mãe perfeita. Em sentido amplo,
pode-se chamar de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiam na mesma
formação discursiva e são constituídos de certo número de enunciados, para os quais é possível
definir as condições de existência. Michel Foucault (2014, p. 152), acerca da produção do discurso,
afirma que esse é regulado, selecionado, organizado e redistribuído dentro da sociedade, para que se
tenha consciência de que não se tem o direito de dizer o que se pensa, que não se pode falar de tudo
em qualquer circunstância, quem quer que seja; finalmente, não se pode falar do que quer que seja.
Para a sistematização dessas normas é que estão colocados à disposição diferentes tipos de
interdições como meios eficazes de regulações discursivas.
Entretanto, para chegar a essa conclusão o filósofo francês percorre um vasto caminho na
análise discursiva em que, as unidades que formam os jogos das relações nos enunciados serão
cuidadosamente analisadas. Uma questão relevante é a que coloca em cheque as regras utilizadas
para se construir um enunciado e, sobretudo, quais outros enunciados semelhantes poderiam ser
construídos segundo essas mesmas regras. Conforme Foucault (2014, p. 47), costuma-se considerar
que os discursos e sua ordenação sistemática são o resultado de uma elaboração, em que estão em
jogo elementos tais como: língua, pensamento, experiência empírica, categorias e, finalmente, a
contingência dos acontecimentos e o jogo das coerções formais. Desse modo, o leitor desavisado,
com algum conhecimento dos movimentos feministas que ocorreram nos anos 70 do século passado,
principalmente na escrita de mulheres, é capaz de enquadrar os enunciados de Mulher no espelho,
como um manifesto em favor desse movimento.
Bakhtin (2016, p.54), reitera que em cada época, em cada círculo social seja de amigos,
familiar, profissional e em todos os ambientes em que o homem nasce, cresce e se desenvolve,
sempre existirão enunciados investidos de autoridade que vão dar o tom. Tomemos por exemplo, as
obras de arte, o jornalismo político, as pesquisas científicas, em que as pessoas se baseiam, seguem,
citam ou imitam. Da mesma forma, acontece com o campo das atividades e as formas de vida em que
determinadas tradições são expressas e conservadas em obras, sentenças e enunciados. Dessa
maneira é que a experiência discursiva individual de qualquer pessoa acontece por meio da interação
contínua com os enunciados individuais dos outros. Pelo exposto acima, deduzo não ser fácil à análise
discursiva um julgamento fechado e acabado das manifestações de fala, necessitando, portanto, de
uma abordagem psicossocial, haja vista que o homem pode ser moldado pelo discurso produzido pela

NARRATIVAS
737

sociedade que o circunda. Sendo assim, o sujeito poderá ter voz ativa sobre suas ações, o que não
significa que terá total liberdade sobre seus modos de agir e pensar.
Segundo Foucault (2013, p. 9), existem procedimentos de exclusão dentro da produção do
discurso, tais como interdição, separação ou rejeição. No caso da interdição, o discurso é eliminado
por três fatores: tabu do objeto, ritual de circunstância e direito privilegiado. É possível ilustrar esse
tipo de determinação do discurso nos campos da política e da sexualidade, nos quais o discurso é
controlado. Ao se fazer uma releitura dos diálogos em destaque observa-se a problemática instaurada
no campo semântico e estilístico da produção textual. A esse respeito Foucault em diferentes
instâncias adverte que, a sociedade se disciplina através da linguagem das ideias que se proliferam e
caracterizam a sociedade do discurso. Deduz-se, portanto, ser esta uma das bases em que se
instaura o poder do discurso que muitas vezes mascarado não se deixa identificar e localizar.
Os indivíduos, de acordo com Foucault (2013, p.42), absorvem ideias e valores institucionais
ditados pela família e pelas instituições escolares. Esses discursos pretendem apontar qual o papel
que homens e mulheres necessitam desempenhar nesse contexto em que, a instituição escolar
desempenha o papel de modelador e adestrador desses indivíduos, ao fazê-los entender quais as
ideias e discursos apropriados, de acordo com o poder detentor dessas normas. Dessa forma, família
e escola exercem uma espécie de coerção sobre os indivíduos, forçando-os sutilmente a se moldarem
ao pensamento dominante na célula social em que vivem. Entretanto, haverá sempre o indivíduo capaz
de identificar o jogo de ideologias ao seu redor questionando as verdades veiculadas pelas
instituições. Certamente que essa consciência está presente na mulher que escreve transgressora
em sua forma de conceber a vida. Essa mulher mostra-se como o reverso da Mulher no espelho, tão
pudica e tão infeliz em suas amarras, seus preconceitos e sua forma de viver, imbuída que está de
culpas e, sobretudo, dos valores que lhe foram impostos e aceitos sem contestação, haja vista a total
conivência com os dispositivos sociais nos quais se encontra inserida.
Questões dialógicas elucidadas por Mikhail Bakhtin são pertinentes ao texto de Parente Cunha,
onde os diálogos ocorrem livremente. Bakhtin (2005, p. 112), ao mesmo tempo em que define o lugar
do sujeito no mundo, estabelece uma relação de complementariedade com o outro que lhe serve de
espelho e, é exatamente essa relação que permite um processo de identificação imaginária, a partir
do sujeito concreto individual. Adentrando o terreno da representação pode-se evocar esse mesmo
sujeito da enunciação como autor e espectador do acontecimento de linguagem. Esse fenômeno de
linguagem seria a divisão estrutural do sujeito na sua relação com um exterior que o determina.
Algumas destas relações podem ser observadas nos diálogos de Mulher no espelho em que o leitor é
envolvido pelo drama psicológico com final trágico e presumível dessa personagem e seu duplo.
Ainda com respeito ao dialogismo, o pensador russo (2005, p. 218), afirma que a língua, em
sua concretude vital, em sua oralidade, tem a particularidade de ser dialógica, ou seja, o dialogismo
constitui a linguagem e condiciona o sentido do discurso. Além de insistir no fato de não poder ser
individual, haja vista necessitar de pelo menos dois interlocutores, o discurso, para Bakhtin, mantém
relação com outros discursos. Essas relações não se circunscrevem à estreiteza do tête-à-tête, pelo

NARRATIVAS
738

contrário, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro.
Em outras palavras, pode-se dizer que o enunciador, para constituir um discurso, considera o
discurso de outrem que está no seu próprio discurso.
O dialogismo pressupõe a alteridade. Por esse motivo, não podemos conceber o dialogismo
em termos de relações lógicas ou semânticas, pois aquilo que se constitui diálogo no discurso são
posições de sujeitos sociais, são pontos de vista da realidade. Para Bakhtin, (2011, p.262), esse
dialogismo mostra-se na bivocalidade, na polifonia, no discurso direto, indireto e indireto livre
praticado em todos os níveis do intelecto. Embora tenha mostrado com clareza que as relações
dialógicas estão sempre presentes na linguagem, o teórico se ocupou muito mais da análise do
discurso em que elas são visíveis, do que naqueles em que essas relações se encontram
escamoteadas e não se manifestam em suas marcas linguísticas. Foi assim que, em dado momento de
sua obra, chamou o romance de polifônico, estudando mais o discurso carnavalesco do que o oficial, a
partir do qual era constituído.
Para prosseguir, é preciso retomar as reflexões foucaultianos do discurso, um dos eixos
deste trabalho, considerando a sua contribuição indispensável no sentido de elucubrar os sentidos
que os discursos encerram. Em aula inaugural no Collège de France, pronunciada em dois de
dezembro de 1970, Michel Foucault (2013, p. 5-10), traça um perfil da palavra para chegar ao discurso
de forma sub-reptícia, conforme ele mesmo diz. É dessa maneira que vai traçando um panorama
discursivo desde os poetas gregos do século VI até o século XX, o qual ele designa de “sistemas de
exclusão” que regem o discurso.
Em tópicos anteriores fez-se uma abordagem da palavra proibida, uma das componentes
desse sistema, em que Mulher no espelho se encontra em consonância com a ideia da interdição
desse discurso pelas regras vigentes. A palavra proibida evoca questões a cerca da loucura, sobre a
qual Foucault (2013, p.10) faz considerações relevantes, no sentido de que a palavra do louco, que
desde a Idade Média era considerada nula, em contrapartida poderia ser uma verdade escondida, um
presságio, alguma coisa que os outros não conseguiam enxergar. Algo inusitado ocorre na Europa
com relação a esse fenômeno: ou o louco não era ouvido ou então era tido como visionário, como
arauto de uma verdade. Apenas o teatro permitia uma representação desse louco onde a sua palavra,
em forma de verdade mascarada, não se constituía em perigo iminente. Somente no final do século
XVIII a comunidade médica despertou o interesse em saber o significado desse discurso
plurissignificativo. A esse respeito, Foucault nos brinda com a seguinte reflexão:

Dir-se-á que, hoje, tudo isso acabou ou está em vias de desaparecer; que a palavra do louco não está
mais do outro lado da separação; que ela não é mais nula e não aceita; que, ao contrário, ela nos leva à
espreita; que nós aí buscamos um sentido ou um esboço ou as ruínas de uma obra; e que chegamos a
surpreendê-la, essa palavra do louco, naquilo que nós mesmos articulamos, no distúrbio minúsculo por
onde aquilo que dizemos nos escapa (FOUCAULT, 2013, p.12).

NARRATIVAS
739

Sem dissociar esse pensamento da forma em que as personagens de Mulher no espelho são
constituídas me é dada a oportunidade de indagar se acaso essas mulheres podem ser classificadas
fora dos parâmetros da normalidade? Se acaso elas podem ser consideradas loucas em seus
comportamentos? De um lado aquela mulher reprimida, castigada na infância pelo pai autoritário,
casada de acordo com a conveniência familiar, e de outro lado, a projeção da verdadeira mulher
escondida sob o manto da subserviência que, ao se descobrir revela a verdadeira face de alguém que
tem desejos, vontades e coragem para romper com o sistema regulador de sua vida. É bem verdade
que não logrou sucesso e nem poderia diante de um conjunto de dispositivos desfavoráveis a qualquer
tentativa de ruptura. Entretanto, sua atitude demonstra uma “vontade de verdade”, no sentido de
desnudar o que se esconde sob falsas verdades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, recorro ao pensamento teórico de Foucault (2013, p.17), no qual trata da
“vontade de verdade”, também, como regulamento de exclusão. Para ele, essa vontade de verdade
está sempre apoiada sobre um suporte institucional e, ao mesmo tempo em que é reforçada e
reconduzida por um esquema de práticas, é reconduzida, também, pelo modo como o saber é aplicado
em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e, de certo modo, atribuído. Tal fenômeno
ocorre sempre sob a ocultação do desejo e do poder que as palavras, se bem articuladas, podem
despertar nos interlocutores, quando se tem em mente o porquê das causas em que se acredita.
Como pude observar, os aspectos psicossociais que envolvem a fala e os atos de fala são tão
complexos, ao ponto de se tornar impossível o fechamento de qualquer que seja o discurso proferido,
haja vista as cadeias e as tramas em que é concebido. O discurso pressupõe poder, apesar de
aparente inocência o sujeito que fala nunca fala por falar, há sempre uma intenção em tudo o que diz,
há o desejo de convencimento e, consequentemente, o desejo de poder. É fazendo uma última
apropriação do pensamento foucaultiano que, por ora, encerro este diálogo que não tem prazo para
acabar. “A construção, a formação discursiva está em toda parte, em todos os meios de comunicação,
havendo ou não suportes ou métodos a serem empregados”.
A respeito de Mulher no espelho e o estranhamento causado por sua escrita vale ressaltar
que, as polêmicas em torno do fato chamaram a atenção para a autora que, com essa obra se
inscreve e demarca território no terreno da literatura brasileira contemporânea.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso; organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. – São Paulo:
Editora 34, 2016 (1ª edição).
_____. Estética da criação verbal; prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo
Bezerra. – 6ª ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

NARRATIVAS
740

_____. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. – 14ª ed. –
São Paulo: Hucitec, 2010.
_____. Problemas da poética de Dostoiévski; tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. - 5ª ed.-
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
BRAIT, Brait. Bakhtin: dialogismo e construção do sentido; organização:– 2ª ed. rev.- Campinas SP: Editora da UNICAMP,
2005.
CUNHA, Helena Parente. Mulher no espelho; 9ª ed.- Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 2003.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber; tradução Luiz Felipe Baeta Neves. - 8ª ed.-Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014.
_____. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970; tradução
Laura Fraga de Almeida Sampaio. – 23ª ed.- São Paulo: Edições Loyola, 2013.

NARRATIVAS
RESUMO
741
A presente conversa de texto pretende tecer fios de
possibilidades para o encontro entre a narrativa

NARRATIVA E tecida nos Cadernos Refúgios de uma professora da


Educação Infantil e a metanarrativa tecida na
análise dessas narrativas, dentro do texto de sua

METANARRATIVA: no fio da
dissertação de mestrado. Para a professora-
narradora-pesquisadora, um horizonte de
possibilidades. Uma produção de conhecimento
sobre o que a constitui quando narra e quando
conversa, um horizonte de possibilidades constrói/tece em diálogo com os fios narrados,
denominando esse movimento de ‘metanarrativa’.
Para essa conversa, três narrativas de seu
Caderno Refúgio de 2014 são trazidas, bem como a
metanarrativa tecida em sua dissertação. Nesse
tear, uma breve conversa sobre a produção de
CHAUTZ, Grace Caroline Chaves Buldrin 97 conhecimento/horizonte de possibilidades vividos
ao longo da pesquisa, bem como um vislumbrar de
conhecimento/prática para a constituição docente
de professores e professoras, imersos em uma
situação economico-política atual, que vem tolhendo
horizontes, sugerindo retrocessos, a ponto de
objetivar calar os direitos conquistados ao longo da
INTRODUÇÃO história. Assim, ao narrar e metanarrar, uma
possibilidade de resistência as narrativas

T
hegemônicas.
rago para essa conversa de texto, no eixo Narrativas, o diálogo
sobre algumas narrativas tecidas em meu caderno no ano de
Palavras-Chave: Narrativa. Metanarrativa.
2014, e que compõem minha dissertação de mestrado 98 . Em Produção de conhecimento.
2014 começo, junto com o Grubakh (Grupo de Estudos Bakhtinianos)
do GEPEC/UNICAMP a estabelecer uma conversa de texto sobre/com
a narrativa escrita no caderno, ao que denominamos, eu e os/as participantes do grupo, de
‘metanarrativas’.
Em minha dissertação, estabeleço o exercício narrativo como sendo o objeto da pesquisa,
desejosa por refletir sobre “Qual a importância do exercício narrativo na produção de conhecimento
construído ao longo da minha carreira docente?”. A materialidade da pesquisa se deu através das
análises das narrativas tecidas em meus cadernos ao longo dos anos de docência na Educação Infantil
e Anos Inciais do ensino fundamental, ao qual denomino na pesquisa, de ‘Cadernos Refúgio’. A
metodologia utilizada fora a Pesquisa Narrativa.
Com o IV EEBA, retomo alguns desses fragmentos e procuro compartilhar com os/as colegas
leitores como a metanarrativa surge no entremeio desse diálogo com a narrativa, à luz dos estudos
de Bakhtin, trazendo à tona alguns de seus conceitos e possibilidades engendradas no ato responsivo
de quem narra o acontecimento e quando narra, se vê em um lugar exotópico, possibilitando um
horizonte de possibilidades.

97Mestra em Educação pela Unicamp. Orientadora Pedagógica na Rede Municipal de Campinas. E-mail: gbuldrin@gmail.com
98http://eds.a.ebscohost.com/eds/detail/detail?vid=1&sid=fd2904fe-c228-4586-8e5a-
6bff7f42c5e2%40sessionmgr4009&bdata=Jmxhbmc9cHQtYnImc2l0ZT1lZHMtbGl2ZSZzY29wZT1zaXRl#AN=unicamp.000984383&db=cat04198a

NARRATIVAS
742

Dessa forma, trarei para essa conversa de texto, três narrativas que compõem algumas das
narrativas escritas em meu Caderno Refúgio de 2014 e a metanarrativa tecida em minha dissertação
de mestrado, como uma análise das narrativas à luz de Bakhtin. Esse conjunto entrelaçará uma
conversa com alguns conceitos bakhtinianos de alteridade e ato responsável, que nos contará o
quanto produzimos conhecimento ao narrar e metanarrar.
Contudo, os fios dessa conversa não terá um arremate, mas no entrelaçamento de novos fios,
um horizonte de possibilidades.

1. DO CONTROVERSO, O ENCANTAMENTO: narrando e metanarrando

Ao narrar, me sinto empoderada. É como se a minha pequenez professoral se esvaísse, uma


vez que posso ser ouvida e degustada, como um ser que é, que faz, que existe e que pretende,
despretensiosamente. É quando produzo uma ação que gera o encontro com o outro de mim, quando
compreendo a minha finitude enquanto professora que tem como responsabilidade promover o
encontro da criança com o conhecimento, ao mesmo tempo em que esse conhecimento é a vida. Me
sinto artesã e me coloco na brecha da busca pelo conhecimento que engendra os saberes narrados
no terreno chamado escola.
A seguir, compartilho com o/a leitor/a, um conjunto de três narrativas escritas em meu
Caderno Refúgio de 2014. As narrativas se referem as experiências vividas com uma criança de 4
anos, que promove em minha constituição docente, um rompante de palavras transformadas em
conhecimento sobre minha presença enquanto professora e aprendiz, na/em relação professora-
aluno.
A semana toda foi assim: quedas, birras, socos e mordidas. A relação com o M.(4 anos) tem sido
desafiadora e muito cansativa. A turma fica desanimada quando o vê chegando na escola. Se estamos
em roda, lá está o M. rolando no chão. Se estamos nos cantinhos, lá está o M. puxando a folha que o
amigo está desenhando, tirando o pincel da mão de quem está pintando, destruindo a escultura de quem
está esculpindo. E o ano está apenas começando. (Caderno Refúgio, 2014, folha 56)

Elas são tão pequenas em seus corpos frágeis, e tão fortes ao me desafiar, me provocando a desvendá-las. Ainda
não são todos os dias, mas hoje o M.(4 anos) me escuta, ele olha em meus olhos. Ele sente que estou ali para ele.
Hoje ele compreende que suas atitudes não são as mais legais. Ele me observa, me testa e aguça todos os tipos
de sentimentos em mim, até os mais perversos. Acho que hoje eu o amo e quero estar lá quando chegar o fim do
ano. Eu quero estar lá e olhar em seus olhos. Eu quero estar lá e sentir saudades. Mas, peraí, é isso mesmo que
escrevi? O que ele fez hoje? Enterrou os seus sapatos na areia, solicitei que os procurasse e quando não
conseguiu encontra-los, chutou a canela do amigo que estava o ajudando, demonstrando toda sua raiva. A bronca
dizia:
- Que coisa feia M., o seu amigo te ajudando e você faz isso. Eu estou muito triste com você. Queria poder ver a
minha expressão naquele momento. Estava com muita raiva. E ele? O tempo todo de cara fechada olhando para
mim. Ao final da bronca, olha para mim e me abraça. (Caderno Refúgio, 2014, folha 87)

Não tem jeito, onde o M.(4 anos) está é confusão na certa. Em qualquer canto, em qualquer atividade, sua palavra
de ordem é a desordem. No canto dos blocos lógicos ele joga a peça na cabeça do amigo. Seu egocentrismo é
latente demais. No canto da massinha, se recusa a dividir. É prô, prô a todo momento. Sim, as vezes desejo que
ele falte. Hoje, lá estava ele na fila. Meu coração gela, porque nunca sei o que pode acontecer. Ele não presta

NARRATIVAS
743

atenção em nada, não participa, rola no chão, transgride o tempo todo e parece que nunca está ali. Eu não consigo
decifrá-lo. Sua escolha de hoje foi o canto do desenho. Eu logo me preparei para o que viria. No mínimo um braço
furado de algum colega, vítima do M. pela ponta do lápis. Estava olhando os cadernos quando o M. me puxa pela
blusa e insiste dizendo:
- Ô ô, olha meu desenho? E eu respondi sem olhar:
- Tá, tá M., tá lindo! Tinha certeza que eram garatujas por toda a folha. Ao sair ele encontra um colega e diz:
- Olha minha forma geométrica? Resolvi erguer a cabeça e pensei:
- Forma geométrica? Será que o M. estava lá o tempo todo. Ele nunca faltava.
Então, levantei, dirigi-me até ele e peguei a folha nas mãos.
Como assim? Até ontem era garatuja? E eu sem hesitar lhe pergunto:
- Que lindo M.!!! Foi você mesmo que fez? E ele:
- Ó Ó a forma geométrica.
O ano todo estávamos envolvidos com a descoberta das formas geométricas e o M. me ensinou a
potência do descontrole do saber e da força da arrogância do poder do professor.
(Caderno Refúgio, 2014, folha 140 e 141)

Figura 1. Formas Geométricas

Fonte: Caderno Refúgio, 2014

Ao narrar, me coloco na busca por aprender com esses meninos e meninas, a magnitude de
professorar em tempos nebulosos, onde retrocessos são estabelecidos, na tentativa de contar ao
professor/a, através de uma narrativa que privilegia o discurso fatalista e imobilizante, como diz
Paulo Freire (1997), que a Educação pública está fracassada.
Olhar para essas narrativas, me conta sobre a possibilidade de me colocar aprendiz do/no
processo, na relação professora-aluno. Nasce então, a metanarrativa, como possibilidade de
produzir/sistematizar o conhecimento a partir do vivido/narrado.
Ao metanarrar, me desloco no tempo-espaço, estabelecendo um olhar de ângulos diferentes.
O sujeito que narrou é diferente do que narra, mesmo sendo a mesma pessoa. Me lanço a refletir
sobre a constituição eu-outro-outro, me movendo do lugar de apenas expectadora/ouvinte, para um
lugar de construção de teorias sobre o meu conhecimento na relação com a minha prática.
Analiso-interpreto:

NARRATIVAS
744

a relação do professor que narra / com a narrativa que narrou;


a relação do professor que lê a narrativa que escreveu / com os sentidos que essas leituras
provocaram nele;
a relação do atravessamento que a escrita e a leitura da narrativa provocaram / com o que
nascerá após esse movimento.

Me lanço para dentro e para fora:


E o que esse movimento me traz?
A atitude ética e estética de ser/ver o/no mundo.
Ao narrar e metanarrar é como se eu conseguisse ver todo o processo, tendo condições de
marchar rumo a compreensão da minha constituição docente. Com Rancière busco responder a
tríplice questão: o que vês? O que pensas disso? O que fazes com isso? E, assim, até o infinito.
(JACQUES RANCIÈRE, 2005)
O que vejo?
Quem sou eu no processo de narrar.
O que penso?
Quem sou eu quando me ponho a ler o que narro.
O que faço com o que vejo e com o que penso?
Aprendo sobre como acontece esses processos no meu cotidiano, ao analisar as narrativas
tecidas, sistematizando-as através da escrita da metanarrativa.
A seguir, compartilho com o/a leitor/a a metanarrativa tecida como análise/produto do
conhecimento das narrativas do Caderno Refúgio de 2014, compartilhadas acima.

A metanarrativa das narrativas tecidas no Caderno Refúgio

Que vozes são essas que ouço no acontecimento. Que conhecimentos emergem dessa narrativa que conta sobre
um fragmento de momento vivido no chão da escola.Vejo um encontro de eus que em contato fervilham. O todo do
outro me conta e me provoca.
M. (4 anos) gera em mim o que já existe em mim e não sabia. Sentimentos perversos. Ao olhar para ele o vejo da
minha posição exterior, existe um privilégio nisso, mas, saber que ele também pode me ver. Talvez esteja aí a
minha condição, afinal, ele me desafia. Eu vejo dele o que ele projeta de mim. Ele me contou que me vê ao me
mostrar seus desenhos. Gostei disso. Existe sentido nessa arquitetônica do conhecimento.
O encontro dos sujeitos, que acontece na existencia relacional desses seres, e como diz Bakhtin (2011) “sua
expressividade externa é o caminho através do qual eu penetro em seu interior e daí quase me fundo com ele.”
Penso que há vozes por trás da narrativa, e as distâncias existentes na relação professora-aluno, são superadas
através da escuta dessas vozes. Há dialogicidade nisso. Estamos falando de vida, de cultura.
Não assumo álibis, me permitindo enxergar M. (4 anos) que conta sobre mim, que conta sobre minha prática. Me
assumo ouvinte e falante de um diálogo que transcende o tempo. Essa criança me liberta das cadeias
curriculares, me contando que não está em minhas mãos o controle pelo ato de conhecer do outro.
Aprendo que assumir uma posição volitivo-emocional, seja um dos componentes emergentes desse desvelar do
conhecimento. Eu aprendi, M. aprendeu. Eu continuo aprendendo e M., com certeza continua por aí, ensinando.
(Metanarrativa – Caderno Refúgio, 2014, folhas 33; 56; 87; 140 e 141)

NARRATIVAS
745

Assim, a narrativa promove reflexão no ato de narrar e metanarrar, estando a potência da


escrita narrativa, no ato de escrever, ler e ser em tempos e espaços diferentes. Ao narrar e
metanarrar, reflito e passo a enxergar o outro de uma maneira responsável, no sentido que não existe
uma verdade e/ou uma saída, mas sim uma construção de saberes alteritária. O aluno/a aprende,
mas enquanto professora, me lanço como aprendiz desse ato responsável.

2. A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO COMO HORIZONTE DE POSSIBILIDADES NA TECITURA DO


TEXTO

“[...] podemos entender a metanarrativa como um ato ético responsável, na medida em que possibilita
um exercício de autoria e um excedente de visão sobre o vivido, a partir da refração propiciada pelas
leituras e reflexões feitas no Grubakh”. (PRADO E SERODIO, 2015, P.149)

Trago timidamente para esse momento do texto, algumas reflexões sobre ato responsável,
alteridade e a aprendizagem colada a esses conceitos, na tentativa de compartilhar com o leitor, o
entremeio dessa conversa entre a narrativa e a metanarrativa, uma vez que com o exercício de
metanarrar, torno-me sujeito cognoscente do sujeito que escreveu as narrativas dos Cadernos
Refúgio em outro tempo, eu mesma, e assim, como me ensina Bakhtin, vou construindo um horizonte
de possibilidades.
Ao metanarrar, quando penetro no eu-mesmo-para-mim e assumo meu ato responsável,
estabeleço limites diante do outro-para-mim e do eu para o outro. A distância supõe uma passagem,
quando a consciência precisa ser alargada para receber outra consciência, que se funde no
acontecimento. Um encontro de dois textos, do texto pronto e do texto a ser criado (BAKHTIN, 2011).

Exprimir a si mesmo significa fazer de si mesmo objeto para o outro e para si mesmo (a “realidade da
consciência”). Este é o primeiro grau de objetivação. Mas também é possível exprimir minha relação
comigo enquanto objeto (o segundo estágio da objetivação). Neste caso, minha própria palavra se torna
objetificada e recebe a segunda voz – minha própria. Mas essa segunda voz já não lança (de si mesma)
sombra, porquanto exprime uma relação pura, e toda carne objetivadora, materializadora da palavra foi
cedida à primeira voz. (BAKHTIN, 2011, p.315)

Ao narrar e metanarrar, o texto é o ponto de partida quando pesquisamos/produzimos


conhecimento e por trás desse texto existe uma linguagem que se expressa em intencionalidade, pois
existe a consciência de dois sujeitos que dialogam em compreensão ao metanarrar.
Além disso, Miotello (2013, p.220) me ajuda a compreender que ao narrar e metanarrar, “eu
me completo, enquanto me monologizo e a completude é o fim, o limite, a morte. Somente a
incompletude me mantém na vida. Assim, o outro me traz a incompletude, me abre novos caminhos e
me devolve a vivência”.
Surge aqui com Miotello uma reflexão sobre a alteridade, onde a identidade é destronada a
medida em que compreendo que só prossigo aprendendo quando me abro ao outro, que me

NARRATIVAS
746

incompleta, num encontro eminentemente dialógico. Para Bakhtin (2011), o diálogo polifônico, onde o
“eu” escuta e ao escutar se abre ao outro e nessa relação, aprende e se liberta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O encontro com o outro ao narrar gera a produção de conhecimento. (CHAUTZ, 2017)

O exercício de narrar e metanarrar em minha prática docente, torna-se um acabamento


provisório do futuro que denotam um compromisso com o futuro, que ao desentranhar o passado
revela o novo, me inspirando a percorrer a utopia por uma educação de qualidade, meu ato
responsável.
Ao olhar para isso, vejo quão potente tem sido para minha constituição docente, construir
instrumentos que me possibilitam formar em exercício. O meu exercício, que prevê a possibilidade de
vislumbrar a transformação no espaço da Educação.
Algumas lições são refletidas com esse exercício. Lições que me conduzem a olhar para tudo
o que tenho escrito e me constituído, na relação de acabamento e inacabamento, compreendendo que
ao narrar eu penso/reflito, em um movimento dialógico.
Nessa tentativa de arremate, nas narrativas tecidas, vejo um conhecimento que nasce do
livre, que busca a emancipação das crianças. Na relação com o outro eu deixo de impor minha voz.
Apresento minha voz para deixar a voz do outro se empostar em descobertas. A presença ativa do
outro no acontecimento, com uma responsabilidade ética, que se revela no exercício narrativo. Um
intenso movimento de resistência diante do desmonte proposto pelas narrativas hegemônicas.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do Ato Responsável. [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto
Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. 155p.
_____. Estética da criação verbal. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo
Bezerra. – 6ª ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
CHAUTZ, G. C. C. B. Abrindo os cadernos da professora que pesquisa a própria prática: escrita narrativa e
produção de conhecimento. – Campinas, SP: [s.n.], 2017.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 4a ed. Paz e Terra. São Paulo, 1996.
MIOTELLO, Valdemir; MOURA, Maria Isabel de. A alteridade como lugar da incompletude. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2014. 338p.
PRADO, G. V. T.; SERODIO, L. A.; PROENÇA, H. H. D. M.; RODRIGUES, N. C. Metodologia narrativa de pesquisa em
educação: uma perspectiva bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2015.
RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. tradução de Lilian do Valle – 2 ed.
– 1a reimp. – Belo Horizonte: Autentica, 2005.

NARRATIVAS
RESUMO
747
O objetivo deste artigo é apresentar dados parciais
da pesquisa de iniciação científica, iniciada em

O GÊNERO ENTREVISTA agosto de 2017, intitulada “Educação na Cidade e


Humanidades: o que dizem os pesquisadores da
área nas entrevistas realizadas pelas

COMO ESTRATÉGIA DE
coordenadoras do Gepech (Grupo de Estudos sobre
Educação na Cidade e Humanidades)”. A
investigação desenvolve-se no Instituto Federal do
Espírito Santo (Ifes) - campus Vitória e está

ESTUDO SOBRE A CIDADE vinculada ao referido grupo de pesquisa. Pretende


contribuir com as transcrições e análises de
entrevistas realizadas com pesquisadores da

E SUAS RELAÇÕES COM A


cidade. Para elaboração deste texto, que é um
recorte da pesquisa de iniciação científica, utiliza-
se como metodologia a pesquisa bibliográfica e a
análise de dados produzidos por meio de entrevista.

EDUCAÇÃO O artigo baseia-se em Bakhtin (1997, 2004, 2005,


2010) para entender este gênero textual, em
especial, para transcrever e analisar a conversa
feita com a estudiosa da cidade, professora Ermínia
Maricato. Pretende compreender as referências
teóricas da entrevistada observando as várias
vozes que compõe o seu discurso e a
responsividade que o envolve tendo em vista os
CÔCO, Dilza99 posicionamentos e o lugar de fala de Maricato. Além
disso, o texto pretende apresentar as contribuições
SANTOS, Mariana Dionizio dos100 desta entrevista para os estudos sobre a cidade e
LEITE, Priscila de Souza Chisté101 suas relações com a educação.

Palavras-Chave: Cidade. Educação. Entrevista

INTRODUÇÃO

A
pesquisa de iniciação científica iniciada em agosto de 2017 e intitulada “Educação na Cidade e
Humanidades: o que dizem os pesquisadores da área nas entrevistas realizadas pelas
coordenadoras do Gepech”, insere-se no Grupo de Estudos sobre Educação na Cidade e
Humanidades (Gepech) do Instituto Federal do Espírito Santo – campus Vitória. Seu objetivo é
transcrever entrevistas realizadas pelas coordenadoras do grupo de estudos, com autores de
referências, que apresentam produções que tematizam a cidade como fonte de conhecimento na área
de Humanidades. Como modo de apresentar resultados parciais deste estudo, objetivamos neste
artigo, por meio de pesquisa bibliográfica e análise de dados produzidos por meio de entrevista,
analisar como o discurso proferido pela entrevistada, professora Ermínia Maricato, estabelece diálogo
com outras vozes e apresenta posicionamentos e o seu lugar de fala. Para tanto, recorremos ao
referencial teórico bakhtiniano como modo de analisar o gênero entrevista, observando aspectos
polifônicos e responsivos no discurso proferido pela entrevistada. O texto pretende também

99
Doutora em Educação. Professora do Instituto Federal do Espírito Santo, campus Vitória. E-mail: dilzacoco@gmail.com
100
Graduanda em Letras Português pelo Instituto Federal do Espírito Santo, campus Vitória. E-mail: dionizio.mariana@gmail.com
101
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora do Instituto Federal do Espírito Santo, campus Vitória. E-mail:
priscilachiste.ufes@gmail.com

NARRATIVAS
748

apresentar as contribuições desta entrevista para os estudos sobre a cidade e suas relações com a
educação.
Como modo de sistematizar essa discussão, na primeira seção apresentamos a proposta do
grupo de estudos. Na segunda, discorremos sobre o gênero textual entrevista, a partir de Bakhtin e,
na sequência, expomos e analisamos parte da entrevista realizada com a professora Ermínia Maricato.
Destinamos este texto a pessoas que, como nós, possuem interesse nos estudos da cidade e suas
relações com o campo educacional.

1. APRESENTAÇÃO DO GRUPO DE ESTUDOS SOBRE EDUCAÇÃO NA CIDADE E HUMANIDADES


(GEPECH)

Conforme pontuamos na introdução deste texto nesta seção iremos apresentar o grupo de
estudos em que se insere a pesquisa de iniciação científica que estamos realizando. Consideramos
que as investigações sobre a cidade apresentam-se como temática importante no campo da
educação, pois contribuem para a compreensão dos aspectos históricos, políticos, sociais, culturais,
filosóficos e econômicos referentes ao desenvolvimento urbano. A partir de consulta realizada ao
Diretório de Grupos de Pesquisas cadastrados e certificados pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na ocasião da implementação do Gepech, janeiro de
2016, constatamos que poucos eram os grupos que abarcavam discussões sobre Cidade e Educação.
A possibilidade de contribuir com esse nicho de pesquisa favoreceu a constituição de um
grupo de estudos que integrasse alunos e professores do Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) para a discussão da cidade como espaço
potencial para ações educativas. Desse modo, o Gepech iniciou suas atividades em março de 2016,
compondo uma das linhas do Grupo de Pesquisa “Artes Visuais, Literatura, Ciências e Matemática:
diálogos possíveis” cadastrado no CNPq.
Ao idealizarmos o Gepech, elencamos como os seus objetivos: 1) discutir relações entre a
cidade e a educação a partir de áreas do conhecimento ligadas as humanidades; 2) planejar, executar
e avaliar formações de professores da educação básica que contribuam com reflexões sobre os
espaços da cidade; bem como 3) sistematizar materiais educativos que discutam e apresentem
propostas relacionadas com a cidade.
As reuniões do grupo iniciaram juntamente com o recém implementado Mestrado Profissional
em Ensino de Humanidades e ocorreram semanalmente com duas horas de duração cada encontro.
Para a organização das atividades do Gepech, optamos por um referencial de abordagem crítica e
dialógica, conforme proposições de Bakhtin (2003). Essa perspectiva valoriza a interação discursiva,
em suas diferentes formas e manifestações, na promoção do conhecimento e na constituição dos
sujeitos. A partir desse alinhamento teórico, as reuniões semanais do grupo se configuraram como
eventos que promoveram encontros repletos de enunciados sobre/com a cidade. Encontros esses
que potencializaram diálogos entre os participantes e desses com textos de referência sobre a

NARRATIVAS
749

cidade, com outros pesquisadores que elegem o tema cidade como foco principal de estudos, assim
como com exposições culturais que apresentam a cidade por meio de roteiros discursivos diversos.
Nessa dinâmica, várias vozes foram contempladas na configuração de novos textos e, por
consequência, promoveram a elaboração de outras compreensões pelos participantes, a respeito do
conceito cidade e, mais especificamente, sobre a cidade de Vitória no Espírito Santo.
Tal dinâmica de interação com os textos e a consequente produção e reelaboração do
cronograma indicam relações com a noção de inacabamento da palavra, pois conforme Bakhtin (2005,
p. 195), as palavras do outro comportam um limiar e, ao serem “[...] introduzidas em nossa fala, são
revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação”. Desse modo, a
leitura dos textos numa perspectiva dialógica pressupõe que um texto abre possibilidades para outros
textos, alimentando o fluxo da comunicação verbal (BAKHTIN, 2004) sobre a cidade. Assim, as leituras
das obras iniciais apontavam para novas fontes e, por meio de atitudes ativas e responsivas (BAKHTIN,
2004), os participantes contribuíram com a construção do roteiro de estudos e exploração do
conteúdo.
Essa dinâmica participativa e colaborativa presente na construção do cronograma das ações
do Gepech foi ampliada nos momentos de estudos e discussões coletivas. Ampliada porque os
integrantes do grupo assumiam atitudes de protagonismo quando realizavam as leituras das obras e
sistematizavam roteiros de discussões para exploração de conceitos considerados importantes para
a produção das propostas de pesquisas e elaboração de materiais educativos, desenvolvidos pelo
Gepech, numa perspectiva crítica.
As proposições conceituais desenvolvidas pelos autores estudados como aporte teórico, tais
como Lefebvre (1991), Canevacci (2004) e Harvey (2014) nos ajudaram a refinar nosso olhar sobre a
cidade de Vitória, capital do Espírito Santo, foco de nossas pesquisas. Além da dinâmica de estudos
sobre a cidade a partir de fontes bibliográficas, o Gepech também promoveu interlocução com
pesquisadores por meio de palestras e entrevistas.
Essas entrevistas foram realizadas em 2016 e 2017, registradas por meio de videogravação e
exibidas durante os encontros de estudos, com o objetivo de adensar compreensões sobre aspectos
inerentes aos estudos da cidade. As conversas com as professoras Fraya Frehse da Faculdade de
Sociologia (USP); Ermínia Maricato, Joana Mello e Ana Castro, da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo (USP) ressaltaram o valor de aspectos históricos e sociais para entender as mudanças
que ocorreram na cidade de São Paulo e suas implicações para a vida coletiva. Ao entrarmos em
contato com essas pesquisadoras pudemos realizar transposições teóricas e, de certo modo,
exotópicas pois ao interagirmos com as investigações dessas pesquisadoras, nos identificamos com
cada uma delas e passamos a ver cada proposta de estudo por meio do sistema de valores de cada
pesquisadora. Vimos a realidade a partir do que elas viram; ou seja, colocamo-nos, a cada entrevista,
no lugar das pesquisadoras para depois voltarmos ao nosso lugar e completarmos os nossos
horizontes com tudo o que descobrimos do lugar que ocupamos fora de nossos supostos limites.
Conforme nos alerta Bakhtin (2004, p. 35-36) “[...] na vida agimos assim, julgando-nos do ponto de

NARRATIVAS
750

vista dos outros, tentando compreender, levar em conta o que é transcendente à nossa própria
consciência: assim levamos em conta o valor conferido ao nosso aspecto em função da impressão que
ele pode causar em outrem”. Nesse sentido, consideramos que a além da exotopia, a alteridade
apresentou-se como conceito filosófico fundamental, pois nos levou a inferir que conhecer outras
pesquisas para além da que desenvolvemos é imprescindível para a nossa constituição como
investigadoras da cidade e de suas relações com o campo educacional.
Além das entrevistas, o Gepech ainda realizou visitas a exposições que exploravam temas com
e sobre a cidade. Adentrar a esses espaços possibilitou experiências dos membros do Gepech
aproximando-os de conhecimentos históricos, políticos, econômicos, sociais, materializados na
estrutura física das construções visitadas.
A sistematização e as repercussões das várias ações (estudos bibliográficos, palestras,
entrevistas e visitas a exposições) que integraram a metodologia de estudos do Gepech, nos permitem
visualizar um caminho percorrido que contribuiu para aprendizagens e para reelaborações de
conceitos. Entendemos esse percurso como primeiras ações de estudos que precisam ser
intensificadas e aprofundadas, especialmente com atividades de pesquisas. Como modo de contribuir
e compartilhar os conhecimentos sistematizados por esse processo de estudos, o grupo ofertou em
maio de 2017 curso de formação de professores para a divulgação de materiais educativos que
contemplam vários aspectos da cidade de Vitória em meio aos acontecimentos econômicos, políticos,
ecológicos e sociais que colaboraram com a compreensão desse espaço citadino e de sua pretensa
transformação.
Para compor este artigo vamos nos basear nos dados da entrevista da professora Ermínia
Maricato102, por ser uma das referências acadêmicas que podem ampliar os nossos conhecimentos
sobre os estudos da cidade. Por isso, na próxima seção discorreremos sobre esse gênero textual a
partir de estudos bakhtinianos.

2. O GÊNERO ENTREVISTA

Conforme a condução de nossas pesquisas, que também tem como base realizar entrevistas
com pesquisadores de referência nacional, vamos contextualizar o gênero entrevista a partir da
teoria bakhtiniana sobre gênero discursivo. Consideramos que gêneros discursivos são enunciados
relativamente estáveis que se constituem como lugar de emergência dos sentidos históricos das

102
Professora universitária, pesquisadora acadêmica, ativista política, ocupou cargos públicos na Prefeitura da Cidade de São Paulo, onde foi
Secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano (1989-1992) e no Governo Federal, onde foi Secretária Executiva do Ministério das Cidades
(2003- 2005) cuja proposta de criação se deu sob sua coordenação. É professora aposentada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo onde defendeu mestrado, doutorado, livre docência e aprovada em concurso para professora titular. Fundadora do
LABHAB- Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP (1997); coordenadora do Curso de Pós Graduação da FAUUSP (1998-
2002), e integrante do Conselho de Pesquisa da USP (2007). Professora visitante do Human Settlements Centre da University of British
Columbia, Canadá (2002) e da School of Architecture and Urban Planning of Witwatersrand – Johannesburg/South Africa (2006). Como
ativista política foi escolhida para defender a proposta de Reforma Urbana de iniciativa popular junto à Assembleia Constituinte do Brasil
(1988). Atualmente é professora visitante do Instituto de Economia da Unicamp e professora colaboradora do Curso de Pós Graduação da
FAUUSP além de participar de corpos editoriais.

NARRATIVAS
751

comunicações existentes em determinados contextos e com determinadas significações, e mantém


vivas significações já socialmente consolidadas. Desse modo, os gêneros discursivos incluem todo o
tipo de diálogos cotidianos bem como enunciações da vida pública, institucional, artística, científica e
filosófica. Bakhtin (1997) posiciona os gêneros como primários e secundários. Os gêneros primários
se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata, já os secundários surgem nas
condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente mais desenvolvido e organizado.
Ambos os tipos se relacionam entre si, em uma troca infinita de sentidos que renovam continuamente
os gêneros. Por meio dessa instabilidade os gêneros vão se atualizando instaurando novos tipos e
formas de enunciados que tentam se adequar a diversidade e as diferentes esferas da atividade
comunicacional em contextos culturais específicos. Por meio deste autor podemos compreender a
variedade de gêneros do discurso, pois segundo ele:

A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade
humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso
que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais
complexa. Cumpre salientar de um modo especial a heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e
escritos), que incluem indiferentemente: a curta réplica do diálogo cotidiano (com a diversidade que
este pode apresentar conforme os temas, as situações e a composição de seus protagonistas), o relato
familiar, a carta (com suas variadas formas), a ordem militar padronizada, em sua forma lacônica e em
sua forma de ordem circunstanciada, o repertório bastante diversificado dos documentos oficiais (em
sua maioria padronizados), o universo das declarações públicas (num sentido amplo, as sociais, as
políticas) (BAKHTIN, 1997, p. 279).

Dentre os diferentes tipos de gênero do discurso podemos elencar a entrevista, caracterizada


pela oralidade, a mescla da linguagem formal com a informal, produzida pela interação do
entrevistado com o entrevistador, a partir de perguntas e respostas. Entendemos que o gênero
entrevista se constitui como importante meio de se compreender interações que se configuram a
partir do diálogo, da palavra de outro. Nas palavras de Bakhtin (1997, p. 290),

[...] o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota


simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total
ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em
elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso,
às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. A compreensão de uma fala viva, de um
enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa
atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra,
forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor (BAKHTIN, 1997, p. 290).

Nesse sentido, a inter-ação do diálogo, nos suscita reflexões e, neste processo do ouvinte se
tornar locutor, nos constituímos como aquele que ouve e se pronuncia, tal como estamos agora
durante a produção deste artigo, sendo locutoras do que ouvimos, filmamos e transcrevemos.

NARRATIVAS
752

3. DADOS DA ENTREVISTA

A conversa com a professora Ermínia Maricato, foi realizada no dia 12 de maio de 2017, na
casa da entrevistada, situada no bairro da Vila Madalena, na cidade de São Paulo. Para a entrevista
foram elaboradas três perguntas iniciais que visaram a condução do diálogo, porém durante toda a
duração da conversa outras perguntas foram feitas, além das citadas neste texto, fato que reafirma o
diálogo estabelecido na ocasião. Como modo de sistematizar esta seção, apresentaremos em
sequência as perguntas e a supostas respostas que elencamos ao transcrever a entrevista como um
todo. Como dissemos são supostas respostas pois nós é que inferimos essa possibilidade de réplica,
tendo em vista que a entrevista não respondeu separadamente cada questão.
Quanto a pergunta “Quais são as tendências sobre os estudos da cidade que a senhora
consegue observar na realidade?” observamos que Maricato defende a ideia de que estamos
marcados por um analfabetismo urbano, pois nos falta condições para compreendermos a cidade de
modo amplo. Em muitos casos nos reduzimos a entender a cidade apenas como objeto de consumo,
pela interação das pessoas com a cidade. Segundo Maricato, a cidade deve ser compreendida pela sua
produção, entendendo assim também sua representação, simbologia, alienação, pois o espaço citadino
é produzido por determinadas relações sociais, que são fundamentais para definir e dar sentido a qual
lugar a pessoa vai morar na cidade, qual consciência que se vai produzir a partir do espaço urbano. A
cidade é produzida em meio as demandas do sistema capitalista e, nessa relação, se produz também
consciência sobre ela. A cidade é um produto, não é apenas um suporte das relações sociais, ela é um
produto de relações, do processo de acumulação capitalista. Ela é o grande negócio. Nas palavras de
Maricato:

Aonde você mora diz muito sobre a sua relação com a cidade, e aonde você mora depende da sua
condição, de comprar a localização, a localização tem um preço, a localização tem um preço por que?
Você tem certos atributos em determinados metros quadrados da cidade de infraestrutura, de
equipamentos, de todo um investimento privado, que faz toda a diferença. Aqui é uma periferia
autoconstruída, e quase que autogerida, se não fosse o tráfico fazendo a gestão de grande parte de
nossas periferias, então, é uma ausência de Estado e mercado na periferia. É uma produção doméstica
pré moderna do espaço e da moradia, ao passo que você tem do outro lado um mercado imobiliário
extremamente especulativo, uma máquina do crescimento muito fortemente articulada, que eu chamo as
grandes empreiteiras, as empresas de construção de edificações, os incorporadores imobiliários, o
capital financeiro imobiliário, os proprietários de terra que compõem a máquina do crescimento, tudo
isso relacionado com o financiamento de campanhas eleitorais, então, tudo isso relacionado com as
decisões de localização de investimento, com as decisões sobre legislação, por isso que eu digo, nós
precisamos olhar para a forma como essa cidade é produzida para entender, a relação das pessoas
com essa cidade, elas estão naquele espaço pré moderno sem Estado e sem mercado, existe um
mercado na periferia, mas não é o mercado capitalista stricto sensu. (informação verbal) (MARICATO,
2017) .

Ao proferir esse enunciado Maricato apresenta o seu posicionamento ideológico. Ela reafirma
seu lugar de fala, como militante engajada que busca o desvelamento das contradições reforçadas

NARRATIVAS
753

pelo sistema vigente. Esse posicionamento nos aproxima de Bakhtin (2010) quando aponta que somos
responsáveis pelo que fazemos e dizemos, e que essas ações são respostas a uma série de elementos
presentes na nossa vida.
Dando continuidade ao que consideramos como resposta a primeira pergunta da entrevista,
Maricato lembra que após o impeachment do mandato da presidenta Dilma em 2016, estamos vivendo
no Brasil um ataque neoliberal, com a terceirização da mão de obra, com a flexibilização da legislação
trabalhista, criando um exército de reserva, um abismo social, o aumento da violência e das pessoas
em situação de rua. Olhamos a cidade como uma representação fragmentada em que uma parte pode
representar o todo, como se pudéssemos recortar somente o lado positivo dela. Contudo, Maricato
nos faz perceber que a cidade possui vários aspectos contraditórios.

[...] a gente olha uma parte da cidade como se fosse o todo... não é? A gente fala, quando se trata da
periferia, fala, a avenida Aricanduva que fica na zona leste, então, não faz parte da cidade, fica na zona
leste, não é? Aí quando a gente fala da avenida Higienópolis que fica num quadrante de brancos
endinheirados, aí é avenida higienópolis, não é uma avenida da zona leste, oeste, norte, ela fica na cidade
não é? Então, essa é a cidade linda, ela fica entre os rios aqui em São Paulo, cada cidade - eu tenho os
mapas agora, que a prefeitura fez, quando elaborou o plano diretor de dois anos atrás, dois três anos
atrás, que eles são geniais, porque eles mostram assim, o que que é a senzala urbana, que é um anel
periférico de negros e pardos, baseados em dados do IBGE. O que é o mercado imobiliário pelo metro
quadrado. Então você tem uma completa oposição, aquilo que não é valorizado pelo mercado sobra para
os pobres não é? E os pobres não têm acesso aos terrenos valorizados pelo mercado, então, a renda
imobiliária é ela que define a nossa relação com a cidade, quem vai se apropriar da renda imobiliária?
Se você olhar, mapear os investimentos públicos na cidade do Rio de Janeiro nos últimos anos e mapear
o deslocamento da população pobre, você vai ver uma perfeita lógica e a localização dos investimentos
ela muda o preço da terra e a proximidade de pobres, diminuí o preço da terra, os pobres têm esse
efeito de contaminar o preço da terra, então, eles precisam ser transferidos, que foi o que aconteceu no
Rio de Janeiro durante as olimpíadas (MARICATO, 2017).

Diante desse enunciado consideramos que Maricato, opta por apresentar sua proposta de
leitura da cidade. Entendemos que ao fazer isso ela se distancia de outras abordagens possíveis e
demarca seu posicionamento crítico reafirmando que a cidade está marcada e direcionada pelo
capital. Ela não pode ser compreendida a partir de estudos de fragmentos, mas precisa ser analisada
como campo contraditório que se estabelece em meio a luta de classes.
Passemos agora a analisar sua possível resposta para a questão seguinte: “Como essas
tendências se articulam ou podem articular com a educação a partir da sua ideia?” Segundo a
pesquisadora, a produção da cidade, aonde os indivíduos moram, como se locomovem, aonde
trabalham, se trabalham, segregados pela ausência de Estado e mercado em sua condição periférica,
que tem banheiros precários, mas possui smartphones, “telas de cinemas” nas “salinhas”, casas
insalubres e construídas sem suportes técnicos de engenharia e arquitetura, a fraude fundiária,
invasões de mananciais, praias, reservas, entre outros fatores apresentados pela entrevistada, são
pedagógicos e ricos para a compreensão da cidade articulada com a educação.

NARRATIVAS
754

[...] como é que seria, um curso sobre alfabetização urbana sobre as cidades? Vamos conhecer as
cidades? Não chamaria alfabetização. Vocês seriam melhores do que eu pra definir aí um nome pra essa
coisa. Vamos conhecer a cidade? E porque que a gente é tão ignorante sobre as cidades? A gente que eu
tô falando aí, é geral mesmo, que eu acho inclusive a universidade, trabalha muito com representação,
porque eu acho que é funcional essa ignorância? Ela é necessária pra manter uma desigualdade abissal,
desumana, que lembra senzala e casa grande, assim, eu não tô falando de conceito, eu tô falando de
espaço de realidade, tô falando de concretude (MARICATO, 2017).

Esse fragmento de fala nos remete a pensar que Maricato considera importante o papel da
educação para ajudar a compreensão da cidade. A educação pode favorecer o que ela chama de
alfabetização urbana. Contudo, a pesquisadora nos devolve a pergunta quando diz que nós, por
atuarmos no campo da educação, poderíamos pensar também sobre o assunto. Nesse sentido,
Maricato nos devolve a palavra colocando-nos em movimento para que responsivamente também nos
situemos como enunciadores de discursos sobre o tema. Desse modo, sob a luz de Bakhtin (1997)
entendemos que o enunciado sempre carece de uma resposta. Nas palavras desse autor toda
compreensão é ativamente responsiva, é uma fase inicial preparatória da resposta pois o falante está
determinado a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva,
aguarda por uma resposta, uma concordância, uma participação ou uma objeção.
Quanto a terceira e última pergunta feita durante a entrevista, “Quais referências que a
senhora considera que são imprescindíveis para estudar a cidade nessa perspectiva da relação dela
com a educação?” também inferimos possibilidades de resposta quando Maricato critica as
preferências que se dão a referenciais teóricos estrangeiros, sendo que temos estudiosos fantásticos
que nos ensinam sobre a nossa realidade, que dizem muito sobre a sociedade brasileira, e são pouco
considerados, por exemplo: Florestan Fernandes, Celso Furtado, Caio Prado, José de Souza Martins.
Consideramos que os autores elencados por Maricato aproximam-se de suas concepções ideológicas,
fazem parte de um círculo de teóricos que comungam de um repertório de base marxista. Assim,
observamos que Maricato estabelece diálogo com pesquisadores que formam um uníssono quanto a
compreensão da realidade a partir do materialismo histórico-dialético.
Cabe pontuar que durante as transcrições e as análises da entrevista pudemos modificar e
ampliar nossa concepção sobre a cidade. Reafirmamos a importância dos estudos da cidade estarem
em consonância com a educação, baseados em abordagens contra-hegemônicas, militantes e
mediados por aportes teóricos que reafirmem a necessidade de uma abordagem crítica e ampla
sobre o assunto.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos o gênero entrevista, adotado no contexto das ações do Gepech, como um


importante instrumento de interação e de ampliação de diálogos. Diálogos esses que conforme
Bakhtin (2010) podem ser entendidos como atos responsáveis, ou seja, atos discursivos em que
sujeitos assumem um lugar de expressão, se posicionam em relação a uma realidade, em relação aos

NARRATIVAS
755

outros e sobre si mesmo. Expressam suas compreensões com enunciados plenos, carregados de vida.
Desse modo, no conjunto de enunciados proferidos pela professora Maricato, podemos entrever um
todo de sentido que pontua reflexões críticas sobre o processo de produção da cidade e coloca em
conexão elementos de desigualdades. Nos apresenta a noção de cidade a partir de um tecido/texto
estruturado por muitas vozes, como a dos agentes públicos, do mercado imobiliário, das classes
populares e outros. Algumas dessas vozes se tornam hegemônicas e conformam modos de viver e ver
a cidade de formas desiguais, as vezes conflituosas. Ela nos convida a ocupar um lugar exotópico no
discurso e compreender a cidade numa perspectiva da suspensão, observando especialmente pistas a
partir da ocupação do território urbano por diferentes grupos sociais.
Seus enunciados também nos indicam que certas vozes assumem um lugar importante em seu
discurso, lugar de valor, como os autores sugeridos para subsidiar estudos da cidade. Assim, a
entrevista realizada com Maricato reforça nossa escolha por esse modo de interação por viabilizar
outros modos de dialogar, ouvir e compreender proposições de estudiosos da cidade. Concluímos que
essa estratégia colabora para ampliar as condições de estudos do Gepech e possibilita estabelecer
novas relações teóricas para ancorar nossas proposições de pensar as ações formativas de
educação na cidade na área de ensino de Humanidades

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da


linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.
_______. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
_______. Estética da criação verbal. [tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira
revisão da tradução Marina Appenzellerl. — 2’ cd. —São Paulo Martins Fontes, 1997.— (Coleção Ensino Superior).
_______. Para uma filosofia do ato responsável. [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto
Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio
Nobel, 2004.
HARVEY, David. Cidades Rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.
MARICATO, Ermínia. Entrevista sobre estudos da cidade e educação [12 de maio de 2017]. Entrevistadores: Dilza
Côco e Priscila de Souza Chisté Leite. São Paulo, 2017. 5 arquivos em vídeo (90 min). Entrevista concedida ao Grupo de
Estudos e Pesquisa sobre Educação na Cidade e Humanidades.

NARRATIVAS
RESUMO
756

A POSSIBILIDADE DA Palavras-Chave:

EMERGÊNCIA DA
ALTERIDADE NA
ADOLESCÊNCIA

FERES, Luiza Grieco103

INTRODUÇÃO

Não nascemos senão como potenciais membros dessa comunidade a qual denominamos
humanidade. Valores como bondade e alteridade não são herdados geneticamente, e por esta razão
dependem fortemente das nossas interações e vivências. O mesmo ocorre com a consciência que
temos de nós mesmos e do lugar que ocupamos no mundo, a qual possui estreita relação com a
alteridade, pois dá condições para que esta emerja, na medida em que

O excedente de minha visão em relação ao outro indivíduo condiciona certa esfera do meu ativismo
exclusivo, isto é, um conjunto daquelas ações internas ou externas que só eu posso praticar em relação
ao outro, a quem elas são inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim; tais ações completam o
outro justamente naqueles elementos em que ele não pode completar-se. (BAKHTIN, 2011, p.23)

Ao mesmo tempo, é a partir do momento em que eu reconheço o outro, diferente de mim e


igualmente único no mundo, que eu tomo consciência de mim e da minha própria singularidade.

Nesse sentido, pode-se dizer que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, do seu
ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de criar para ele uma personalidade
externamente acabada; [...]. (ibid, p. 33)

103 Graduanda do curso de Geografia da Universidade de São Paulo. E-mail: luizagferes@gmail.com.

NARRATIVAS
757

Percebemos, assim, que há uma relação de imbricação e interdependência entre a alteridade


e a autoconsciência. Mas, de que maneira se dá a emergência destes dois aspectos essencialmente
humanos, e como podemos identificar essa relação?

ENUNCIADOS

Para tentar compreender estas questões, propusemos a alunos de 9º ano do Ensino


Fundamental104 – portanto, na fase crítica, segundo Vigotski, do desenvolvimento da razão, em que a
imaginação passa por uma transição entre a subjetividade e a objetividade (VIGOTSKI, 2009, p. 48) –,
após responderem questões acerca de sua vida e sua rotina, que respondessem à seguinte questão:
“Em qual profissão você acredita que seria feliz? Por quê?”.
Buscamos, através desta pergunta, verificar como os adolescentes participantes da pesquisa
estão se projetando para o futuro, e de que maneira estão construindo uma narrativa sobre si
próprios. Procuramos, a partir disto, identificar elementos que indicassem alteridade no enunciado
dos alunos – mais em relação às justificativas para a escolha do que à profissão em si.
Dos 166 alunos, 112 (67,5%) justificaram a sua escolha pela própria natureza da profissão ou
das atividades que viria a realizar; 12 (7,2%) responderam através do motivo financeiro da profissão;
42 (25,3%) disseram não saber ou não responderam; e 40 (24,1%) 105 apresentaram indícios de
alteridade na justificativa para a escolha da profissão e na projeção do que envolve ser feliz, a maioria
como “vontade de ajudar as pessoas”. Os exemplos que se destacam são os que seguem:

“Eu quero ser fonoaudióloga, porque eu gosto de falar, e ensinar alguém a desenvolver a fala seria bem
gratificante”

“Médica, é uma profissão na qual eu admiro muito pelo fato de poder ajudar as pessoas e ser uma
pessoa com uma profissão importante no mundo”

“Psicóloga porque eu quero entender a mente das pessoas (ainda mais a minha)”

Os três enunciados que destacamos explicitam a estreita relação entre autoconsciência e


alteridade. Entretanto, muitos outros enunciados que analisamos demonstram, direta ou
indiretamente, que suas projeções contêm de certa forma o outro, no movimento de imaginar e
projetar uma ação no mundo, aparecendo muitas vezes como um processo contraditório – pois ainda
predomina o pensamento ‘autocêntrico’ no sentido de o adolescente não se perceber ainda fora da

104 Constituindo uma amostra de 166 alunos, de três escolas (sendo uma escola pública municipal de São Paulo, uma escola particular de
Santana de Parnaíba e uma escola pública municipal de São José dos Campos) participantes da pesquisa “A contribuição das ' figuras de Wolff'
e das concepções de 'mediação' para repensar o ensino e a aprendizagem de Geografia no contexto contemporâneo de conectividade e
informação” – realizada em 2016, constituindo um universo de 657 alunos –, coordenada pela Profª Drª Maria Eliza Miranda, docente e
pesquisadora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo.
105 As porcentagens das categorias que criamos, somadas, não totalizam 100%, pois o mesmo enunciado pode corresponder a mais de uma

categoria.

NARRATIVAS
758

centralidade que há em si mesmo – que parece próprio desta fase de transição caracterizada por
Vigotski como a “transgressão do equilíbrio do organismo infantil e do equilíbrio ainda não encontrado
do organismo maduro” (ibid, p. 48).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante disto, quais seriam os efeitos de aproveitarmos este período contraditório e de


constante mutação de adolescentes – que, por uma série de fatores, começam a se projetar e a ter
uma percepção de si em relação ao mundo, isto é, começam a construir uma narrativa sobre si
próprios – para promovermos os processos de ensino e aprendizagem dialógicos e responsivos na
escola? Pensamos que a escola teria um papel central para potencializar a emergência da alteridade
na adolescência, na medida em que, ao tratar de conhecimentos acumulados historicamente – como
geografia, ciências, literatura –, apoia a complexa relação de transição entre subjetividade e
objetividade.
Pois, o que deveríamos fazer na escola, senão tornar o adolescente “um indivíduo
responsável, [fazê-lo] entrar na comunidade humana, em suma, [nele] produzir humanidade?” (WOLFF,
2012, p. 288).

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6ª ed., trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico - livro para professores. Trad. Zoia Prestes. São
Paulo: Ática, 2009.
WOLFF, F. Nossa Humanidade: de Aristóteles às neurociências. Trad. Roberto L. Ferreira. São Paulo: Editora Unesp,
2012.

NARRATIVAS
RESUMO
759
Coloca-se a formação docente como tema de
debate em diferentes perspectivas educacionais.
Diante da constatação da escassez de produções

RODAS DE CONVERSA destinadas à necessária discussão acerca dos


saberes sensíveis, construídos a partir da
percepção estética do trabalho pedagógico,

COM PROFESSORES: a escuta


proponho olhar para as rodas de conversa como
uma estratégia possível para o desenvolvimento da
capacidade de escuta e da empatia por parte do
professores. Articulando os pressupostos da teoria
de si e do outro Histórico-Cultural com contribuições do campo da
estética para produzir novas análises e sinalizar
possibilidades outras de compreensão da educação
sensível do professor, aponto para a construção de
práticas de formação continuada que valorizem os
saberes docentes e levem em consideração a
FERREIRA, Luciana Haddad106 percepção estética do cotidiano escolar. Como
resultados da investigação, dimensões da educação
estética que se articulam com a formação docente
são percebidas nas atividades narradas, por serem
elementos que permitem ao professor perceber
sua potencialidade de atuação cotidiana.

P
roponho, no presente trabalho, uma importante reflexão sobre Palavras-Chave: Educação Estética. Formação de
os espaços cultivados para diálogo no contexto da formação Professores. Percepção. Experiência Estética.
Formação Continuada
docente continuada. Apoiada no material empírico produzido ao
longo da experiência de pesquisa de Doutorado, apresentada em final
de 2014, apresento a roda de conversa, estratégia tão habitualmente
utilizada como forma de organização da rotina em Educação Infantil, como possibilidade ampla e
potente de desenvolvimento da capacidade de escuta, acolhimento e expressão dos professores.
Para tanto, tomo como base conceitual as contribuições da teoria Histórico-Cultural, tendo
Vigotski como principal interlocutor. Ao arcabouço teórico que sustenta a investigação realizada,
somam-se olhares de outros interlocutores, de outrora e de agora, que auxiliam na compreensão da
educação do professor como processo de formação estético e ético: Paulo Freire, MikailBakthin,
Walter Benjamin, DonaldSchön, etc.
Tendo como eixo reflexivo uma pesquisa desenvolvida com um grupo colaborativo (ESPINOSA,
2003) de professores na região de Campinas (SP), o grupo formado no espaço e em parceria com a
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), consolidou-se a partir do
interesse comum de 37 profissionais da educação, que desejavam partilhar experiências e conhecer
mais sobre educação estética. Nos oito encontros realizados presencialmente, bem como na
interação e produção de registros que acontecia entre estes momentos, buscávamos construir um
espaço de formação continuada que prezasse pela estética como princípio de trabalho e que tomasse
a própria ação educativa como fonte do conhecimento. Neste espaço, discutíamos e vivíamos uma
formação docente pautada na educação estética e, a partir desta relação, produzíamos novos saberes
profissionais.

106
Doutora em Educação. Pesquisadora colaboradora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Continuada – GEPEC / FE / Unicamp.
Coordenadora do curso de Arte-Educação do Instituto Brasileiro de Formação de Educadores - IBFE. E-mail: haddad.nana@gmail.com

NARRATIVAS
760

O grupo colaborativo foi formado ao mesmo tempo em que se desenvolvia a pesquisa e desde
o início do trabalho tínhamos como propósito olhar para o que acontecia nos encontros com as lentes
da investigação. Esta não era a preocupação que direcionava nossas ações nos momentos de
formação, mas era a intencionalidade que nos permitia propor questionamentos e oferecer subsídios
para os encontros.
A investigação foi desenvolvida em diferentes etapas entre 2011 e 2014, contemplando o
planejamento, desenvolvimento e análise daquilo que foi vivido pelos professores envolvidos. Em
pesquisas que trabalham com grupos colaborativos, como é o caso aqui abordado, as características
qualitativas mostram-se ainda mais ressaltadas e nítidas, por tornar potentes os traços individuais e
ao mesmo tempo revelar as relações estabelecidas a partir da convivência social e do
entrecruzamento de culturas.
Dentre os recursos propostos para produção de material empírico, foram utilizados
diferentes procedimentos metodológicos, que ofereciam múltiplas imagens dos saberes e das
experiências dos docentes, permitindo uma compreensão processual, flexível e sensível do trabalho
desenvolvido. A combinação entre procedimentos coletivos - audiogravações, fotografias e nosso
próprio diário de pesquisa – que tornavam possível a análise da constituição do grupo, das falas não
planejadas e das reações primeiras e procedimentos individuais - sínteses poéticas dos encontros
(MATTAR, 2010), portfólios reflexivos (SÁ-CHAVES, 2005) e narrativas pedagógicas (CUNHA e PRADO,
2007) – que acolhiam a reflexões mais íntimas, associações particulares e processos criativos mais
ensaiados – permitiu a construção de um amplo panorama a ser estudado.
O coletivo de professores se revelou portador de inúmeras histórias, suas narrativas
particulares contribuíram para a construção de uma identidade de grupo e nos ofereceram elementos
importantes para a compreensão do tema proposto. Assim, a investigação compreende de maneira
aprofundada o modo como professores se aproximam dos saberes e vivenciam suas experiências sob
o olhar estético para a educação. É uma análise reflexiva e propositiva, que trouxe contribuições para
o campo da docência e da educação estética. De tudo o que foi vivido, experienciado e registrado pelo
meu olhar de pesquisadora, apresento a seguir um recorte, fragmento que permite reflexão e diálogo
sobre os processos de formação profissional docente num contexto de educação estética.

1. FALAR DE SI, CONVERSAR COM O OUTRO

Escutar e ouvir são coisas diferentes. Às vezes a gente ouve um som, e não escuta o que ele nos diz.
Escutar a voz dos alunos é fundamental, e também muito delicado. Porque é uma escuta que se faz com
o corpo inteiro, sobre o aluno inteiro (depoimento de Letícia apud FERREIRA, 2014).

Carregamos as marcas do outro em nós: somos concebidos a partir da união de outras


pessoas, nascemos do outro. O umbigo é cicatriz que nos mostra que estivemos fisicamente atados a
alguém para poder viver. Nosso nome, primeira marca social de nossa existência, é dado por outra
pessoa. É sinal das projeções, expectativas e desejos dos que aguardaram por nós. Aqui, colocamos

NARRATIVAS
761

em evidência o exercício de escutar e acolher o que o outro, sujeito com o qual nos relacionamos, tem
a dizer: os alunos, os colegas, as famílias, outros integrantes da comunidade. Escuta ativa de uma
realidade que não nos pertence, mas da qual comungamos ao abrirmo-nos sensivelmente para
receber o diferente.
Abordando o conceito de excedente de visão, de Bakhtin (2000), é possível afirmar que o
outro nos compreende em perspectivas que não temos. Por isso, a visão do outro sobre nós é também
fundamental para o entendimento de quem somos, pois soma às nossas experiências uma forma de
compreensão que nunca teremos sozinhos.

O excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que
eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me com o outro e ver o
mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de
volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele;
devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu
saber, de meu desejo e de meu sentimento (Bakhtin, 2000, p.45).

A escuta do outro, por sua vez, pressupõe que o professor considere, além de seu próprio
entendimento das situações vividas, outras perspectivas trazidas por pessoas que podem entender a
realidade dada através de outro ângulo. A narrativa de Rosana aponta para a maneira como a
“escuta” de uma professora a torna consciente de dimensões de seu trabalho, até então não
percebidas:

Eu sempre procuro inovar, modificar o repertório de leituras e o modo de contar histórias na roda,
porque acho que fica mais atrativo e fascinante para as crianças (do 3o ano). Um dia uso fantoches, no
outro, fantasias, e assim vai... mas, ontem, quando eu cheguei na classe, os alunos estavam reunidos me
esperando. Disseram: "Rô, a gente precisa te falar uma coisa: nós queremos ouvir história 'normal'.
Desculpa, seu jeito é legal, mas às vezes a gente fica com vontade de ouvir as palavras iguaizinhas do
livro, você pode contar? Ficamos cansados das suas palhaçadas, de vez em quando". Respondi, com
cara de poucos amigos, que também sabia contar histórias "normais", e que podíamos experimentar
deste jeito também. Naquele dia, ao invés de uma história para preparar, levei para casa a captura de
um olhar sobre mim que até então desconhecia... (Depoimento de Rosana apud FERREIRA, 2014).

Assim como esta professora, em diversos momentos da rotina escolar são dadas pistas de
como o outro nos vê e entende nossa ação. Ser capaz de escutar o que é dito e de reconhecer-se na
voz do outro é exercício reflexivo que exige do professor atitude de escuta, isto é, abertura e
disposição para reorganizar seus conceitos diante do que é ouvido. Neste sentido Schön (2000)
aponta, estabelecendo um paralelo com a imagem de uma sala de espelhos, que através da reflexão
também somos capazes de nos enxergar em outras perspectivas, possibilitando “sair de si”, de nossa
condição natural, para ver-se de outra maneira. Não será nunca a visão do outro, mas é uma visão
alterada de si mesmo.

NARRATIVAS
762

2. A RODA, A CONVERSA, AS NARRATIVAS

As conversas em roda carregam marcas fortes de concepçõesdirecionadoras de uma


proposta de Educação Estética e, por isso, aconteciam diariamente no grupo de formação em questão.
Todos os dias nos reuníamos em um círculo para narrar o que foi experimentado e trocar percepções
diversas. A escolha do círculo como formação não era despropositada, pois assim como afirma
Ostetto (2009), no espaço circular todos podem dizer e fazer seu discurso:

São propriedades simbólicas do círculo a perfeição e a ausência de distinção ou divisão. Sua imagem
evoca equilíbrio, totalidade, integração de diferenças, interdependência. Roda, círculo, mandala: não é
uma bela imagem para a prática educativa? O círculo dançante: não seria uma oportunidade para o
aprendizado da circularidade na Educação? (OSTETTO, 2009 p. 215)

Este formato favorece a interlocução entre o grupo, coloca todos em posição de igualdade,
permite que as participantes se olhem diretamente nos olhos e remete a uma formação simbólica que
culturalmente está associada a momentos de confraternização e introspecção. A roda de conversa
era um momento regularmente instituído na rotina do grupo em que a coletividade se reafirmava. “Era
um ritual de encontro, troca, afirmação de pertencimento e identidade de um grupo [...]. Exercício de
alteridade na aventura de estar com o outro” (OSTETTO, 2009 p. 217).
As conversas da roda fomentavam a troca de experiências e vivências entre as profissionais
do grupo, especialmente na socialização de trechos narrativos de suas práticas, a partir dos quais
todas poderiam discutir e pontuar suas percepções. Nestes momentos, a alternância de vezes e vozes
ensinava que não é preciso dar um comando para que a conversa se inicie. Sem um tema específico a
ser tratado, todos se sentavam e vivenciavam a circularidade que transcendia a forma física em que
se dispunham: estavam em círculo e também circular era a expressão e o pensamento que se
construía coletivamente neste tempo e espaço.

Ver o círculo na sua essencialidade, como símbolo prenhe de significados para uma prática integradora.
Ou seja, mais do que fazer a roda e chamar para o encontro, por si só já uma ação carregada de
simbolismo, entra em jogo o exercício de uma atitude e um pensamento circulares. Pensar
circularmente significaria não pensar em linha reta, na afirmação da verdade, da única voz, do
conhecimento absoluto. Significaria abrir-se ao diálogo, ao acolhimento da dúvida e da diversidade, à
construção de múltiplos enredos afirmados no encontro das singularidades de crianças e adultos, de
alunos e professoras. Não uma técnica, procedimento metodológico, mas um modo de agir, de ser, de
acolher (OSTETTO, 2009 p. 220).

Em alguns encontros a conversa da roda servia para compartilhar as reflexões a respeito das
produções do dia e, em outros momentos, era o espaço de refletir sobre as implicações e percepções
das discussões tecidas no grupo em relação ao vivido na sala de aula. Não havia roteiro. Existia a
convicção de que o diálogo e a experiência do coletivo se configurariam em novas e marcantes

NARRATIVAS
763

experiências. Uma característica importante das rodas de conversa deste grupo é referente ao modo
como as professoras se colocavam e as relações que estabeleciam.
A circularidade das falas remetia sempre às narrativas pessoais e reafirmava a potência
deste modo de expressão como elaboração de saberes. As professoras narravam, nas rodas de
conversa, suas vivências em outros contextos e as relacionavam com temas discutidos recentemente
ou percepções experimentadas no encontro. Exemplificavam, sensibilizavam e traziam episódios,
especialmente da sala de aula em que atuavam, pra dentro da nossa sala. Animadamente chamados
pelas participantes de causos, as professoras esperavam ansiosas o momento de compartilhar suas
experiências de docência com os demais, pois sabiam que elas seriam acolhidas e ressignificadas ao
virar causo do grupo:

Eu fiquei pensando muito naquilo de acolher os alunos, de fazer com que eles se encantem por nossas
aulas, pela escola. E bem nesta semana o João estava terrível, eu já tinha dito a ele que se me
provocasse de novo, seria caso de diretoria. Mas a verdade é que nem a diretora suporta ele. Então
pensei que eu precisava fazer com que ele tivesse gosto pelo que faz, porque uma criança que se porta
assim, não está percebendo o valor daquilo que tem nas mãos, e ele não vê mesmo o valor, não nas
mesmas coisas que eu. Então decidi: preciso deixar ele me mostrar o que tem valor pra ele, e tentar
abrir um espacinho dentro dele para caber algo que também tenha valor para mim: o aprendizado.
(Depoimento de Maitê apud FERREIRA, 2014)

Depoimentos como o de Maitê faziam com que as professoras desejassem acompanhar os


próximos desdobramentos da ação narrada. Nas semanas que se seguiam, sempre havia o interesse
em saber notícias do João, se ele estava respondendo positivamente às investidas da professora, por
exemplo. Para o grupo, o compartilhamento das narrativas era experiência única de lidar com os
acontecimentos da sala de aula com sensibilidade: ouvir as lições tiradas de episódios vividos,
solidarizar-se com a dificuldade do outro, e perceber que todos passam por momentos difíceis,
contribuir com outros relatos que possivelmente possam apontar soluções para determinada
situação, rememorar experiências a partir do relato alheio, emocionar-se com as conquistas dos
colegas e perceber seu próprio deslocamento, dar-se conta dos saberes que foram produzidos neste
círculo de ideias e histórias.
As narrativas também mobilizavam o diálogo com as teorias que sustentam a prática
cotidiana. Exercício de difícil compreensão, muitas professoras não manifestavam ter ciência, ao
início de nossas atividades, que todas as nossas ações estão fundamentadas em algum sistema
teórico. Para que tal ideia se tornasse mais clara, adotei a estratégia de justificar, a cada atitude que
eu tomava com o grupo, o motivo se minha escolha, situando como ela dialogava com meus
pressupostos teóricos. Este movimento não fazia da roda de conversa momento de explanação
teorizante desvinculada da realidade. Ao contrário, mostrava às professoras que eu via os saberes e
as ações como constitutivas e interdependentes e as convidava a fazer o mesmo. Sem sinalizar os
traços e articulações possíveis nas experiências relatadas, eu fazia questão de falar apenas do que eu
vivia e das relações que eu mesma estabelecia, mostrando que este é um movimento reflexivo

NARRATIVAS
764

singular que não pode ser feito de fora para dentro. Meu papel, nos momentos de conversa, era de
problematizar, incentivar associações e fazer outras perguntas.
Ao propor que fizéssemos uma roda para conversar, por exemplo, eu dizia primeiramente da
minha escolha por falarmos em círculos, mostrando como eu percebia maior afinidade nesta prática
em relação às minhas concepções. Assim, também explicava o motivo de querer que todos falassem /
mostrassem suas produções e / ou socializassem seus pensamentos caso estivessem à vontade para
isso, explicando que Educação é proposta, depende de acolhimento e sedução, sendo pouco provável
que alguém tenha um deslocamento significativo em sua aprendizagem quando se vê forçado ou
obrigado a fazer algo que não está confortável a realizar. Assim, mais do que com palavras
desconexas, fui tentando mostrar às professoras como todas as ações estão embotadas de teorias, e
de como é fundamental olharmos para nossas práticas problematizando a razão das coisas serem
como são.
Por conta da constante retomada desta articulação nas rodas de conversa, ao longo dos
encontros foi possível observar um movimento bastante enfático de (re) aproximação das
professoras com as teorias. Havia ampla ressignificação da prática. As participantes buscavam
interlocução com outros autores, seja do campo das artes, da Educação, poetas, filósofos, etc. Houve
dois modos de aproximação com as teorias, promovidos pela dinâmica dos encontros e percebidos
nos instrumentos analisados:
a) As participantes traziam para a conversa, por meio de seus registros escritos ou de
suas falas, citações diretas ou indiretas de autores que já conheciam. Convidavam para entrar na
roda artistas, pesquisadores, cineastas, pensadores gregos e quem mais pudesse contribuir para a
reflexão iniciada em grupo. Este diálogo marca, além do movimento de conscientização da
constitutividade entre teoria e prática, a necessidade de diálogo para a construção de novas ideias:
partiam dos indícios conhecidos para construir novas possibilidades, reorganizar concepções e gerar
outros saberes.

̶ Parafraseando Clarice Lispector: sou como você me vê, posso ser leve como uma brisa, ou forte como
uma ventania, depende de quando, e como você me vê passar.
̶ Como Cora Coralina: "Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina".
̶ Percebi como os objetos são repletos de significado, como nos lembra Pasolini (1990), em seus
apontamentos sobre a pedagogia das coisas e como elas nos educam.
̶ Posso afirmar que os encontros tocaram minha sensibilidade e meu olhar para aquilo que muitas vezes
nem chamaria de estética. Percebi que ela muitas vezes constitui-se em pequenos fragmentos, e não
necessariamente na obra final. Como nos lembra Benjamin, quando diz sobre a existência da aura numa
obra de arte, vejo a aura ao olhar para a Nana, a síntese poética do que um dia gostaria de ser!
(Trechos retirados dos portfólios de professoras, referentes ao dialogo que faziam com autores
diversos).

b) Sem citar diretamente algum pesquisador, as professoras traziam para a roda


termos que evocavam a discussão teórica, marcando o desejo de aproximar-se das concepções
recentemente discutidos na conversa, numa tentativa de melhor fundamentar suas ações na sala de

NARRATIVAS
765

aula e estabelecer relações com os textos lidos e outras referências que se articulam com os temas
apresentados nos encontros.

̶ O todo é formado pelos pedaços / partes / fragmentos. Cada pedacinho possui sua singularidade, sua
identidade, sua experiência e seu significado estético. Nesse conjunto de partes, o homem forma-se
pelos enlaces / encaixes dos quais, em algum momento, são também disformes, vista a imperfeição
humana.
̶ Não olhar para as decisões do cotidiano buscando polaridades. Nas situações que a gente precisa
decidir é preciso considerar as ambivalências, as continuidades, pois há diferentes formas de pensar.
̶ Pensar é uma continuidade do sentir que é uma continuidade do fazer. O conhecimento pode advir da
prática. O professor, ao inventar novos modos de fazer, constrói.
(Trechos retirados dos portfólios de professoras, referentes ao dialogo que faziam com as teorias que
discutíamos coletivamente).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao pressuposto de que é necessário considerar as concepções e verdades do outro soma-se


a afirmação de que é imprescindível, ao professor, ouvir a própria voz e preservar suas
particularidades, sua trajetória de vida. Para ser capaz de refletir sobre sua ação e também enquanto
atua, deve ter clareza de seus princípios éticos, de sua sensibilidade estética, de suas convicções
políticas e pedagógicas. Numa trama onde o espaço, os outros e si mesmo emaranham-se, é
fundamental ser, ainda assim, capaz de ouvir sua própria voz.
Mostrar-se-ia ingênua esta percepção de si, se considerasse o indivíduo e suas vontades
como algo apartado de seu contexto histórico e cultural. Ao defender que os processos reflexivos são
desencadeados também pela escuta de si mesmo, falamos da escuta de todas as experiências
práticas ou estéticas que o indivíduo acumula ao longo de sua existência, experiências das quais
lançará mão ao ver-se em atuação. É uma escuta de algo íntimo que não faz, necessariamente, parte
do contexto vivido naquele momento, mas diz da relação daquele sujeito-professor, daquele sujeito-
profissional, com ele mesmo, da sua relação com o mundo real e de seu compromisso com a
sociedade. “A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente
inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca” (FREIRE: 1997,
p. 45).
Falo de perceber o que e como nos sentimos frente às adversidades da vida. Ser capaz de
dizer o que acontece consigo mesmo, mesmo que na esfera descritiva, é gesto reflexivo que
possibilita a abertura do indivíduo para novas compreensões sobre o mundo e sobre si mesmo.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
CUNHA, Renata C. O. Barrichelo e PRADO, Guilherme do Val Toledo. Percursos de Autoria: exercícios de pesquisa.
Campinas: Alínea, 2007.

NARRATIVAS
766

FERREIRA, L. H. Experiência estética e prática docente: exercício de sensibilidade e formação. 2014. Tese (Doutorado
em Educação) – Fac. de Educação, Unicamp, São Paulo.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
MATTAR, Sumaya. Sobre Arte e Educação: Entre a Oficina Artesanal e a Sala de Aula. Campinas: Papirus, 2010.
OSTETTO, Luciana Esmeralda. Na dança e na Educação: o círculo como princípio. Revista Educação e Pesquisa.
[online]. 2009, vol.35, n.1, pp. 177-193.
SÁ-CHAVES, Idália. (org.) Os portfólios reflexivos (também) trazem gente dentro. Lisboa: Porto Editora, 2005a. p.
121-131.
SCHÖN, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto
Alegre: Artes Médicas Sul, 2000 (publicação original em 1987).

NARRATIVAS
RESUMO

767
Neste trabalho, proponho um ensaio sobre o

ENSAIO SOBRE O
cotidiano escolar a partir da minha narrativa como
educador. Pensando no conceito bakhtiniano de ato
responsável, proponho a reflexão sobre a vivência
escolar e a relação educador-educando. Este

COTIDIANO ESCOLAR E A trabalho representa, então, um esforço inicial de


pensar a crise do ato no cotidiano escolar e suas
possíveis respostas.

CRISE DO ATO NO FAZER


DO EDUCADOR Palavras-Chave: Ato Responsável. Cotidiano
Escolar. Enunciação

FERREIRA, Sandro de Santana107

I
sto, caro leitor, é um ensaio. Não chega a ser um trabalho completo, mas uma tentativa. Como
educador falo habitualmente uma coisa: “Aquele que quer aprender tem que se dar o direito de
errar”. Obviamente, essa afirmação implica uma torrente de problemas, nos quais não vou entrar
aqui. Apenas apresentarei o papel desta frase ao longo da minha vivência escolar. Apesar de todas
perigosas implicações filosóficas e/ou pedagógicas que ela possa ter, vou me deter ao ato de faze-la
somente. Aqui não a trago como um axioma que é o ponto de partida do texto, mas sim como uma
resposta a partir da relação que vivo como educador-educando, a qual também não se fecha ou tem
importância apenas pelo seu conteúdo-sentido puro.
A gênese desses índices de valor que uso como ferramenta no meu fazer professor é tão
ampla que talvez fique difícil determinar suas origens. Dessa forma, humildemente, peço confiança,
leitor. Não quero traduzir o mundo em princípios teóricos. Se tudo der certo nesse texto, creio eu que
as coisas irão parecer claras. Não apresentarei um exercício de princípios morais ou éticos, pois de
princípio tento ter aqui apenas a vida. O que posso adiantar é que esta afirmativa “nasce texto” a
partir da vivência com diferentes pessoas no ambiente escolar, e que seu propósito não é fundar uma
diretriz que funda um dever, mas sim algo que responde ao dever na vida.

Não há sentido em falar de algum dever teórico especial, do tipo: posto que penso, devo pensar
verdadeiramente [istinno]; a veracidade [istinnost’] é o dever do pensamento. Mas, será mesmo o caso
que o dever é momento inerente da verdade mesma? De fato, o dever se revela apenas na correlação da
verdade (valida em si mesma) com a ação cognitiva real de cada um de nós, e tal momento de
correlação real de cada um de nós, e tal momento de correlação é historicamente um momento único, é
sempre um ato individual, que não afeta em nada a validade teórica objetiva do juízo – é um ato que é
avaliável e imputável no contexto único da vida real única de um sujeito. (Bakhtin, 2010, p. 46)

107Mestre em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professor na Rede Estadual do Rio de Janeiro e na Rede Municipal
de Magé/RJ. Pesquisador do Grupo Atos/Uff. E-mail: sandrodsantana@hotmail.com.

NARRATIVAS
768

Nessas palavras oriundas da Rússia tento justificar a falta de peso da minha afirmativa pelo
seu conteúdo apenas. O que aqui quero dividir com você é mais que o peso dela como elemento
abstrato. Nunca escreveria... ou melhor, dificilmente escreveria algum tratado para defendê-la.
Também não realizaria uma análise empírica de dados obtidos a partir das atividades escolares, as
quais poderiam facilmente concluir o que disse.
Sim, não estou trabalhando com uma hipótese.
Não quero demonstrá-las como uma verdade estrutural, muito menos um ponto de vista
relativo do acontecimento, mas sim como algo que é um texto sobre um contexto. Se esse texto fala
dessa afirmativa é apenas no intuito de revelar seu contexto.
Quando pego emprestado o texto de Bakhtin, pretendo sinalizar uma crise: o problema do ato.
Este me impele a pensar nesta afirmativa de um modo para além do seu conteúdo passível de análise.

A crise contemporânea é fundamentalmente, crise do ato contemporâneo. Criou-se um abismo entre o


motivo do ato e o seu produto. E, em consequência disso, também o produto, arrancado de suas raízes
ontológicas, se deteriorou. O dinheiro pode se tornar o motivo de um ato que constrói um sistema
moral. Em relação ao momento atual o materialismo econômico tem razão, mas não porque os motivos
hajam penetrado no interior do produto, mas antes, ao contrário, porque o produto, na sua validade, é
separado do ato na sua motivação real. (Bakhtin, 2010, p. 115)

Uma coisa que percebo é que esse problema é ainda mais visível quando assumimos o lugar
de educador. Como o ato se esvazia, parece que muitas vezes pode se dar aula apesar do aluno.
Digo isso pelo último conselho de promoção do qual participei...
Se caso esse evento que comento não lhe seja familiar, leitor, eu vou lhe explicar. Afinal, não
sei exatamente quem é você. Imagino que possa ser um professor, mas se não for, acho conveniente
explicar essa prática. Afinal, quem lê o que escrevo é uma pessoa concreta, real e singular.
No processo de escrita gero uma imagem, onde projeto em cada palavra o potencial de leitura
que você pode ter. Imaginando seus contornos, ideias, etc. Você pode ser qualquer pessoa, poderia
ser todas pessoas, mas não é. Você, leitor, é uma pessoa.
Você já se viu escrevendo para uma plateia? É engraçado que a leitura, geralmente, é um ato
individual, assim como escrever. Nisto te pergunto, ou melhor, me pergunto, se escreve para quem?
Até porque, na escrita, a pergunta só pode ser retórica. Você não pode me responder enquanto
escrevo. A pergunta seria uma provocação, uma brincadeira sem graça de quem “chega a fingir que é
dor/ a dor que por deveras sente” (Pessoa, p. 9).
Posso dizer que respondo à academia e à escola com esse texto, não de uma forma direta, tal
qual uma carta. Até porque se fosse uma carta, não se escreve pra instituições ou prédios, mas para
pessoas. Se tem alguém lendo, mesmo se for uma leitura pública, sei lá, é uma pessoa. O texto tem
que ser para alguém. Como não sei quem é, imagino que, no mínimo, tem interesse por educação,
algum nível de educação formal, possivelmente um educador-pesquisador, o qual muito provavelmente
sabe o que é um conselho de promoção...

NARRATIVAS
769

Ou talvez não.
Dessa forma, resumo esse evento (conselho de promoção) como: uma reunião de professores
e a equipe gestora-pedagógica da unidade escolar, onde se decide sobre a aprovação ou reprovação
de alunos ao final do ano letivo. Nesse momento professores deveriam refletir sobre o que foi feito e
tentar pensar para além dos índices matemáticos atribuídos ao longo do ano letivo.
Isso seria uma apresentação geral, mas não o momento vivo em si. Claro que ele já passou,
mas como “os que lêem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem, /Não as duas que ele teve,/ Mas só
a que eles não têm.” (Pessoa, p. 9). Posso trazer com mais cor o que ocorreu, que gostaria de
comentar.
No caso vou rememorar o último que participei, no ano de 2016.
Certamente não ouvi a primeira vez o que ouvi, mas nessa vez aquilo me causou um
estranhamento fora do comum. Me lembro dos professores sentados em círculo no auditório – que é
apenas uma sala ampla com cadeiras, todavia o Datashow geralmente fica nela e, por isso, o nome.
Neste dia, o qual deveria ser algum dia de dezembro, estávamos debatendo turma a turma. Como de
costume, começamos pelas primeiras séries, no caso o sétimo ano.
O desenvolvimento destas turmas foi sem muitas polêmicas; entretanto, ficamos empacados
num aluno em particular que aqui vou chamar de R.
R era mais velho que os demais, provavelmente era de uma origem bem humilde. De fato, não
sabíamos ao certo sobre isso, mas não era difícil de imaginar. Claro que poderíamos nos surpreender,
mas, no caso, não tivemos a oportunidade de entrar nos elementos particulares de sua vida. A única
coisa que marcava cada professor e educando naquela sala era o comportamento de R.
Realmente, R não era uma pessoa muita ordeira. Talvez tenha mudado, mas pelo que vivemos
juntos, ele tinha um temperamento difícil, além de ser profundamente implicante. Ele não era de faltar,
mas também não vinha em todas as aulas. Me lembro que algumas vezes me segurava para não rir
das coisas que dizia, podia ser facilmente interpretado como um problema institucional, mas
certamente era esperto e engraçado. Provavelmente, engraçado demais para o seu próprio bem.
Gostava de conversar com ele, apesar de quando via ele passar pela porta respirava fundo.
Via nele uma imagem sorridente e cansada. Apesar de não ser alto, era o aluno mais velho da sala.
Certa vez me disse: “Vou largar a escola. Aqui eu tô sempre errado”. Gelei um pouco por isso. Me senti
culpado, terrivelmente angustiado. Quando ouvi aquilo pensei comigo: “Vou aprovar R. Esse menino
não pode repetir mais um ano”.
Nesse espírito, fui participar do conselho. Percebi que meu apelo não era solitário. Metade dos
profissionais que trabalharam com a turma defenderam uma posição similar a minha, assim como a
equipe gestora-pedagógica.
Em meio ao longo debate que se fez sobre o destino de R, o professor F, de matemática, fala:
“Eu dei a minha aula. Ele não participou porque não quis”. Já tinha ouvido esse argumento antes,
geralmente para defender reprovações em massa dentro de uma turma. Naquela hora respondi, não o
que respondo agora, mas o que podia responder. R foi aprovado.

NARRATIVAS
770

Entretanto apesar do que ocorreu com R, penso no que F disse: “Eu dei a minha aula. Ele não
participou porque não quis”. Aqui temos o maior de todos os álibis de um professor diante do fracasso
escolar.
Não estou dizendo que F é um professor ruim. Também não estou o defendendo. Nós
respondemos ao mundo pelos gêneros que aprendemos.
Aqui quero falar que cada aula é um texto. Ao preparar uma aula, escolhemos nossa didática
da mesma forma que um escritor escolhe um gênero. Toda aula é recortada por vários textos, os
quais também tem diversos gêneros, mas escrever no quadro, passar um filme, ler um texto, explicar
um tema, etc., tornam o conteúdo e forma de natureza completamente distinta.
No caso queria esticar um pouco a realidade de F.
Não sei exatamente o que F leu ao longo da vida e os gêneros de aula que ele mesmo
experimentou e/ou praticou ao longo da vida. F me parece um homem pautado na ordem. Vinha
sempre trabalhar de blusa social, sapato e calça jeans. Silencioso, dificilmente via sua voz se levantar
como protesto ou mesmo raiva.
Ele me lembrava muito uma professora de espanhol, J. Ela me disse certa vez: “Não vejo
problema na educação tradicional. Eu aprendi o que sei por ela”. Essa fala de J, mesmo sendo tão
distinta da que F disse, parecem fruto de um mesmo modo de ver a atividade docente. Um modo de ver
o mundo como tabula rasa. “Se eu fiz, o outro faz” é obviamente ignorar a singularidade do outro. Os
dois constroem a narrativa da arquitetônica que os envolve em torno de uma relação unicamente
entre eu-para-mim.

estes mundos concretos-individuais irrepetíveis[...] tem alguns componentes comuns: não no sentido de
conceitos ou de leis gerais, mas no sentido de momentos comuns das suas arquitetônicas concretas. É
esta arquitetônica do mundo real [...] como o plano concreto do mundo do ato unitário e singular, os
momentos concretos fundamentais da sua construção e da sua disposição reciproca. Estes momentos
fundamentais são: eu-para-mim, o outro-para-mim e eu-para-o-outro; todos os valores da vida real e da
cultura se dispõem ao redor destes pontos arquitetônicos fundamentais do mundo real do ato...”
(Bakhtin, 2010, p. 114)

Eu sou uma concessão do outro. Até porque a existência objetiva é a partir da ação dos
outros. Foram eles que me deram nome, que me alimentaram, que transaram possibilitando que eu
pudesse existir. A mim mesmo não há nada de meu.
De modos diferentes, F e J resumem o mundo por si mesmos. Da mesma forma que não seria
um absurdo pensar que no individualismo pensamos cada indivíduo como a mesma unidade repetível.
O que a mim serve, a todos servem. Talvez variemos em tamanho ou cor, mas todos usaram o mesmo
uniforme, visto que este serve a mim, logo a todos.
O indivíduo é um axioma teórico. Um valor construído na arquitetônica concreta do mundo.
Dar aula indiferente de quem ouve é um ato auto-centrado e adialógico. O educador que faz tábula
rasa coloca o educando a serviço de sua aula, quando a aula deveria estar a serviço do educando.

NARRATIVAS
771

Nisso não condeno também meus colegas de trabalho. Muito menos digo que meu trabalho é
melhor que o deles. Até porque, ao falar o que fala, pelo tom que enuncio, existo uma sinuosa
arrogância. Francamente, não faço muito melhor que eles. Talvez eu tente mais e até estude mais.
Assumo ser educador como uma militância, para a qual, francamente, não quero converter ninguém.
Os professores “dão aula”, porque é o trabalho deles. Ao mesmo tempo que, apesar de todo pesar,
não posso dizer que não existem educandos que a partir da vivência com estes profissionais não
encontram possibilidades de alargarem suas consciências.
Ao conversar com os alunos, percebo que tanto F como J são queridos e competentes no que
fazem. Todavia, existe uma diferença política no que entendo como mundo. Isto que aponto está para
além dos muros da escola. “A crise contemporânea é fundamentalmente, crise do ato contemporâneo”
(Bakhtin, 2010, p 115).
R não largou a escola, até onde sei, mudou de escola no ano seguinte. Todavia, R teve sorte. No
mês passado um educando, W, tão parecido com R, veio a falecer. Foi executado pelas forças policiais
do estado do Rio de Janeiro na cidade de Magé. Quatro tiros, dezessete anos.
Nisso, eu digo: “Nenhuma pessoa a menos”. Ninguém, absolutamente ninguém, deveria ser
tratado como descartável. Inventa-se uma retórica da liberdade e do mérito, para justificar o
injustificável.
Sobre a educação tradicional apenas cito Freire:

Quanto mais analisamos as relações educador-educando, na escola [...], parece que [...] estas relações
um caráter especial e marcante – o de serem relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras.
Narração de conteúdo que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer algo quase morto[...]
Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado, quando não falar
ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos[...] A palavra,
nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que deveria ter ou se transforma em palavra
oca... (Freire, 2011, pp. 79-80)

Agora, queria dar uma guinada no que escrevo. Retomando o ponto de onde comecei: Aquele
que quer aprender tem que se dar o direito de errar. Assim como o conselho, queria retomar a última
vez que reproduzi esse mesmo texto. Até porque comecei a repeti-lo não sei muito bem porque, mas
cada vez que repito parece que é a primeira vez que eu falo essa frase.
No caso foi trabalhando com uma turma de sexto ano. O tema da aula era o início da
civilização. Sendo que, ao falar disso, também vejo os limites do meu diálogo como educador. É um
conteúdo pré-programado, escolhido pelas políticas nacionais, sobre as quais não tenho nenhuma
participação direta. De um modo simplista, cada secretaria de educação onde trabalhei parte da
mesma prerrogativa: “Estou te pagando para fazer o que já decidi”.
Claro que não é simplesmente assim. Existem canais de diálogo e negociação. Poucos, mas
seria uma inverdade negá-los. Além disso, por minha incapacidade conduzo esses conteúdos de um
modo um tanto indiferente. Quando vou planejar em casa, olho o currículo mínimo e decido por mim
mesmo o que vou lecionar.

NARRATIVAS
772

Eu poderia entrar em sala. Abrir o currículo e debater com os alunos por onde começar, o que
cortar, como fazer, etc. Nada me impede de debater com eles meu planejamento. Todavia, por um
limite físico e mental, decido sozinho e faço tábula rasa das turmas que são do mesmo ano. Todo sexto
ano é o mesmo assunto, a mesma aula, com pequenas variáveis, apesar de cada turma terem alunos
totalmente distintos.
O máximo que faço é abrir para a escolha das avaliações e seu formato.
O primeiro ano em que entrei numa escola pública escolhi planejar em separado para cada
turma. Tinha um caderno para cada uma, mas fazendo mestrado e assumindo a segunda matrícula,
ficou impraticável.
Entretanto, algo que sempre fiz foi acompanhar de perto a produção dos alunos. Observar seu
movimento de escrita e ler o que eles escrevem para eles. Fazer comentários na hora e pedir
reescritas conforme ia apontando possíveis melhoras nas suas produções. Gosto muito de ler o que
eles escrevem. Gosto de sentar junto com eles e ouvir o que dizem e sugerir caminhos para suas
atividades. Nem tudo fica aprazível, mas de um modo geral funciona.
Na última vez que usei “Aquele que quer aprender tem que se dar o direito de errar”, estava
diante de uma aluna, a P. A atividade era a seguinte: tentar escrever sobre a relação entre economia,
trabalho e tecnologia. Era uma atividade em grupo e queria que escrevessem a melhor explicação que
poderiam fazer sobre a relação das três palavras.
P veio até minha mesa e falou: “Professor, não sei fazer”. Expliquei para ela mais uma vez e
ouvi de volta: “Professor, porque você não dá logo a resposta? É mais fácil”. Nisso começamos a
conversar. Em determinado momento soltei a frase: “Aquele que quer aprender tem que se dar o
direito de errar”. Não posso dizer que a ideia da frase resolveu o que aconteceu. Sei que houve um
silêncio após eu falar, e então P respondeu: “Tá bom”. Pegou seu caderno, se sentou com o grupo e
começou a escrever.
Nessa situação, acredito que uma pequena luz acendeu. A mesma frase que já tinha dito tantas
vezes, parecia renascer ali. Ela fez sentido para mim e para P. Ela me entregou o trabalho, fiz umas
correções e ela o reescreveu mais duas vezes.
Digo uma luz, porque isso foi um momento de sorte. É claro que a sorte chega para quem está
procurando, mas de um modo geral não acho que posso me definir por isso. Erro com muita
frequência como educador, erro não pela simples contradição, mas muitas vezes, quando entro no
automatismo do cotidiano. Existem contradições que assumo, mas tem outras que são um verdadeiro
macaco escondido como o rabo de fora.
Do mesmo modo que não vou definir F e J pela ocasião que narrei. Essas duas pessoas são
muito mais do que esse momento. Existem diferenças, que implicam em coisas objetivas.
Principalmente assumir o peso político do trabalho do educador.
Sendo assim, entre muitos erros e ocasionais acertos, quero aqui apenas sinalizar certos
momentos onde a crise do ato esvazia a relevância da vida e que, apesar de todo pesar, é possível
agir de modo dialógico e amoroso.

NARRATIVAS
773

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. 2ª Edição.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
PESSOA, Fernando. Autopsicografia. In: PESSOA, Fernando. Cancioneiro. Disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000006.pdf

NARRATIVAS
RESUMO
774

Este artigo objetiva apresentar reflexões acerca

UMA BRINCADEIRA das brincadeiras dialógicas a partir da questão


central: qual as concepções e as características
das brincadeiras na obra “As Aventuras de Alice no

DIALÓGICA EM AS
País das Maravilhas” Que relações são
estabelecidas na história –de diálogo ou de
monologo? O estudo está fundamentado em Bakhtin
(2004, 2016) e Vygotsky (2009, 2010). Para a

AVENTURAS DE ALICE NO análise dialógica utilizou-se como materialidade a


narrativa ficcional “As Aventuras de Alice no País
das Maravilhas”, de Lewis Carroll (2009),

PAÍS DAS MARAVILHAS,


especificamente o capítulo “O campo de croque da
Rainha”. A metodologia consiste na divisão do
referido capítulo para fins de análise, na qual se
pretende evidenciar a perspectiva dialógica nas

DE LEWIS CARROLL relações que se estabelecem na interação entre os


atuantes na narrativa. Como resultados da análise
tem-se que por meio da brincadeira os objetos do
mundo são redefinidos, as regras que elas
estabelecem organizam a relação entre o Eu e o
Outro, bem como, a brincadeira pode ser a réplica
FERREIRA, Vania Maria Batista108 de alguma atividade adulta.

LOUREIRO, Simone de Jesus da Fonseca109 Palavras-Chave: Dialogismo. Imaginação. Interação


Social. Brincadeira
BENTES, José Anchieta de Oliveira110

INICIANDO A BRINCADEIRA

E
ste trabalho se propõe analisar a obra de “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas” com um
enfoque no interacionismo sócio-histórico e no dialogismo. Para tanto, o estudo toma algumas
contribuições de Vigotski111 (2009) quanto à “Imaginação e criação na infância” e o “Dialogismo”
e um dos conceitos postos na obra “Diálogo I: a questão do discurso dialógico” de Bakhtin (2016). O
entrelaçamento desses dois autores é importante porque permite analisar a capacidade imaginária da
criança e a sua inserção por meio da linguagem para se relacionar com o mundo dos adultos à medida
que se estabelece, por meio de enunciados, na prática do dialogismo e na interação.
O mundo fantástico de Alice nos mobiliza a pensar na criança, afinal, quem é esse ser que
corre em vez de andar; que parece que o dia não tem fim em função de tanta energia que possui para
extravasar; que consegue brincar com as nuvens e criar seres estranhos, em que a lua e as estrelas,
árvores ou qualquer outro material ganham vida e se transformam em objeto de suas brincadeiras?
Parece oportuno revelar que Alice, personagem do capítulo “O campo de croqué da Rainha”, é uma

108
Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará. E-
mail:vmbgrupobase@gmail.com
109
Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará. E-mail:monny@gmail.com
1
Doutor em Educação Especial. Professor da Universidade do Estado do Pará. Coordenador do Grupo de Estudos em Linguagens e Práticas
Educacionais da Amazônia (GELPEA). E-mail: anchieta2005@yahoo.com.br
111
A diferença da escrita do nome do autor L.S. Vygotsky está relacionada a tradução de suas obras. Em Russo a grafia de seu nome é Vigostki e
em outras traduções aparecem Vygostky e Vigotsky.

NARRATIVAS
775

autêntica criança que se utiliza da linguagem e do diálogo com animais e outros seres para marcar
posicionamento e defender o seu ponto de vista.
Consideramos, de acordo com Vygotsky (2009), que o desenvolvimento da criação literária
infantil é importante para criança desde que haja um investimento por parte do adulto em propor à
leitura e a escrita de textos literários de seu interesse para que a mesma expresse com palavras o
seu mundo interior, dando-lhe condições de avançar progressivamente para até formar sua própria
forma de ser e de agir no mundo.
A percepção de autonomia na leitura garante que as crianças acessem informações
específicas de textos, a fim de apreenderem o seu sentido global. Assim, podem depreender o sentido
e ressignificar a linguagem por meio de sua experiência de vida. Ainda no sentido de acessibilidade, a
narrativa escolhida para esta análise faz parte da literatura universal e já foi adaptada para o cinema
diversas vezes, o que garante certa familiaridade.
Tomaremos como estudo a pesquisa teórica para apoiar na análise dialógica discursiva da
narrativa, fazendo o recorte de um capítulo intitulado “O campo de croqué da Rainha”, destacando
alguns episódios – trechos relevantes na discussão dos enunciados no que tange a imaginação,
criação e dialogismo que se permeia na literatura.
Para fins de organização, o presente artigo foi dividido em três seções. A primeira discute a
brincadeiras, tendo como elemento central a capacidade de criação e de imaginação da criança a
partir da interação que ela estabelece com o mundo exterior. A segunda trata do discurso dialógico
presente na interlocução do Eu com o Outro, e vice-versa, no discurso enunciativo de muitas vozes, a
exemplo de textos literários. E a terceira analisa a obra “As Aventuras de Alice no País das
Maravilhas” como objeto de análise permeadas de dialogismo de uma narrativa ficcional que mexe
com o imaginário da criança, que adquire outras experiências: é a magia que presentifica a literatura
na vida das crianças. Vygotsky (1896-1934) foi um intelectual do seu tempo. Dedicou-se aos estudos
sobre a interação, brincadeira, pensamento e linguagem partindo de uma matriz histórico-social, em
que a relação do ser humano é mediada pelo outro, ou ainda pela cultura.
Brincadeiras de crianças: concepções e perspectivas
A criança para Vygotsky se desenvolve a partir da mediação que estabelece com o adulto. Tal
desenvolvimento não se trata de um processo natural, é, sobretudo, um trabalho de construção de
sujeitos que se ajudam mutualmente.
Vigotski (2010), na obra Psicologia e Pedagogia, aborda questões relacionadas a fatores
biológicos e sociais do comportamento. Dentre essas questões, apresenta seu conceito de brincadeira
para além de uma abordagem popular, que a considera a como sinônimo de desocupação, de
passatempo, um ato extremamente ocioso. Para Vigotski (2010, p. 119), “entretanto, há muito tempo se
descobriu que a brincadeira não é algo fortuito, pois surge invariavelmente em todas as fases da vida
cultural dos povos mais diferentes e constitui uma peculiaridade natural e insuperável da natureza
humana”. O que significa dizer que a brincadeira é atitude vital, única, inigualável na vida de qualquer
pessoa, e da criança em especial, ou seja, o ser criança tem um papel ativo no desenvolvimento

NARRATIVAS
776

humano. Papel este que lhe possibilita, a partir das brincadeiras, apreender formas significativas de
descobrir o mundo, de fantasiar, de explorar o mundo fictícios e imaginários tão reais na sua vida.
Será que nos tempos atuais as crianças, imersas em um mundo tecnológico, as crianças só
brincam no celular? Será que deixaram de cultivar a magia e o encantamento de viver o seu mundo de
fantasias, de imaginações? Será que as narrativas ficcionais, a exemplo da obra “As Aventuras de
Alice no País das Maravilhas”, permitem que as crianças obtenham experiências imaginária e
ficcional?
Defendemos a tese de que apesar de essa geração de crianças do século XXI nascer imersa
no mundo da tecnologia e de manipularem esses meios de comunicação com maior facilidade, o ato de
brincar, seja ele individual ou coletivo, não deixou de existir na vida da criança. As crianças continuam
se utilizando da brincadeira para viver o seu mundo, interagir, experimentar, fantasiar, criar e
imaginar cenas, acontecimentos que lhes possibilitem estar e viver neste mundo, o mundo dos
humanos. Para a análise ora apresentada neste trabalho, consideraremos as narrativas infantis como
uma das formas de incentivar a imaginação e a fantasia infantis. “A essa atividade criadora baseada
na capacidade de combinação do nosso cérebro chama-se de imaginação ou fantasia” (VIGOTSKI,
2009, p. 14).
A criança no seu dizer e no seu agir tende com muita facilidade imaginar algo que não está no
campo do real, vivendo como se o fosse, agindo de forma muito natural e perfeita, deslocando-se para
outros mundos, o mundo da criação, que lhe possibilita viver intensamente o presente, trazer fatos e
acontecimentos da vida que parecem impossíveis de serem materializados, mas são expostos com
sutileza e veracidade na imaginação de crianças que são imersas na cultura da brincadeira, de trazer
à tona situações vividas no real mas traduzidas pela linguagem de crianças felizes e ancorada no seu
tempo. O tempo da brincadeira, da representação, da teatralização, do cantar, do falar em público, do
gesticular, ou seja, do viver a brincadeira do faz-de-conta. Aqui, destacamos também ouvir as
narrativas, que influenciam de tal modo a ponto de fazer a criança presentificar a história por meio da
teatralização, por exemplo, quando imita gestos, maneira de vestir, de se comportar de seus
personagens preferidos.
Vale pontuar que “tudo que nos cerca e foi feito pelas mãos de homem, todo mundo da cultura,
tudo isto é produto da imaginação e da criação humana que nela se baseia” (Vygotsky, 2009, p. 14). A
criança é fruto sublime de um sujeito que a todo instante se inscreve na capacidade de imaginação e
criação. Exemplo interessante é a criança que coloca dois fios numa lata e diz que é a perna de pau, a
menina que brinca de boneca e imagina-se mãe; o cabo de vassoura que se transforma em um cavalo
ou em uma bruxa; a criança que brinca com suas bonecas e dá nomes fictícios para planejar uma
situação de sala de aula, sendo ela a professora e os bonecos os alunos. Enfim, são muitas as
situações que acontecem na brincadeira, que embora reproduzam situações que as crianças vivem,
de fato, são na verdade criação. Nesse sentido, “a atividade criadora da imaginação depende
diretamente da riqueza e da diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa experiência
constitui o material com que criam as construções da fantasia” (Vygotsky, 2009, p. 22).

NARRATIVAS
777

É por isso que a brincadeira possibilita à criança interagir não somente com o mundo dos
humanos, mas também com o mundo da imaginação. São essas combinações que possibilitam o
desenvolvimento dos seus processos psíquicos, assim como os instrumentos de conhecer o mundo
físico e social e aprender diferentes modos de comportamentos humano, ou seja, a percepção da
criança e suas ações sobre os objetos vão se transformando pela mediação de e com outros signos,
por meio da apropriação da forma verbal de linguagem. É na brincadeira que a criança dá asas à sua
imaginação e se torna sujeito de criação.
Alves (2012) reconhece que a brincadeira de faz-de-conta recai entre o real e o imaginário, e
isso ocorre em um movimento dialético. Nela se instaura um toque de criatividade entre o que se
supõe ser; daí se cria uma imagem, um quadro e se reorganiza o real, logo, a imaginação não exclui
fatos da vida cotidiana e sim partilha as experiências.
Nesse sentido, no geral, é possível deduzir que a criança estabelece uma relação dialógica
com o mundo criado a partir da brincadeira, e, de acordo com a perspectiva desta análise, as
narrativas infantis são meios relevantes de interação entre a criança leitora e o contexto da obra
literária. Daí, podemos afirmar que há interação entendida pela relação do Eu com o Outro. E sobre
isso trataremos no tópico seguinte.
A concepção de Bakhtin sobre o dialogismo
Bakhtin foi um notável teórico da linguagem. Não foi simplesmente um linguista e nem um
sociolinguista. Criou sua própria ciência. A ciência do outro, denominada Heterociência. Esta se
assenta no estudo do cotidiano – da prosaica –, que é o discurso ancorado na enunciação entre duas
ou mais pessoas, dois textos e entre duas materialidades.
Para Bakhtin, todo enunciado é dialógico, o que pressupõe uma resposta, posto que é
direcionado a um interlocutor específico – a uma plateia, ao público em geral, a um leitor específico. O
enunciado deve ocorrer entre o locutor e o interlocutor, ou seja, na interação entre os sujeitos, do Eu-
para-o-Outro e do Outro –para –mim.
No dialogismo, há vários pressupostos em cena. Para que o ciclo dialógico se constitua como
tal é preciso haver materialidade, situacionalidade, historicidade, singularidade e responsibilidade.
Isto significa dizer que deve acontecer em um contexto situacional da fala, do discurso, entre falantes
que se relacionam dialogicamente, trocam ideias, se posicionam diante da situação ou dos fatos de
modo único e irrepetível. Para Bakhtin (2016) existem três formas de entender o dialogismo.
A primeira forma é a aquela em que toda a enunciação pressupõe uma resposta, assim, “a
compreensão sempre é prenhe de resposta. Na palavra do falante há sempre um apelo ao ouvinte,
uma diretriz voltada para a sua resposta. Isto se manifesta com maior clareza no discurso dialógico”
(BAKHTIN, 2016, p. 113).
A segunda forma: o dialogismo é prenhe de materialidade. Precisa acontecer na
“incorporação pelo enunciador da(s) voz(es) de outros(s) no enunciado” (FIORIN, 2016, p.37). Nesse
sentido, o texto de diversas formas, produzido na sua materialidade por meio dos chamados de
discursos direto e indireto, que são formas expressivas de um relação dialógica. Como diz Bakhtin, “o

NARRATIVAS
778

discurso é a língua in actu” (2016, p. 117). O texto em si é língua e se transforma em discurso quando é
lido, ganha materialidade.
Na terceira forma dialógica, percebemos a oposição desta categoria dialógica com o
monologismo. Esta oposição é real, pois acontece no processo de interação, principalmente na
relação de um leitor com o texto. Enquanto realidade/materialidade literária, o texto é monológico,
mas a partir do momento em que o leitor significa a leitura, passa a existir a categoria dialógica na
leitura.
Como Bakhtin estuda as relações interpessoais, ele se instaura no discurso do cotidiano, por
isso o seu

apelo da literatura ao discurso falado ou popular não é apenas ao léxico, à sintaxe (mais simples); é
antes de tudo, um apelo ao diálogo, às potencialidades da conversação como tal à sensação imediata de
ter um ouvinte, à intensificação do elemento da comunicação, da comunicabilidade. É o enfraquecimento
do elemento monológico do discurso e do reforço do dialógico (BAKHTIN, 2016, p. 114).

Para este estudo, interessa destacar as categorias dialógicas que entendem a enunciação na
materialidade do texto, como ato, presentificado na narrativa ficcional e significado pela criança na
leitura, portanto, a
Uma brincadeira dialógica em “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll”

Lewis Carroll (1832-1898), foi um escritor inglês com formação em Matemática. Dedicou-se a
desenhar e fotografar crianças das famílias MacDonald e Liddell e costumava escrever belas
histórias. O escritor, durante um passeio de barco com as meninas Alice, Edite e Lorina, da família
Liddell, criou a história As Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Considerada uma das obras-
primas da literatura universal, a história de Alice de fato encanta, diverte e cria muitas expectativas
no leitor, haja vista que seus personagens brincam com o imaginário independente da faixa etária.
A história gira em torno de um acontecimento: Alice segue um coelho, que usa um colete e
segura um relógio. Quando entra em uma toca, cai em um buraco que parece não ter fim. Até que
chega a um lugar onde conhece criaturas com características humanas e fantásticas que lhe
apresentam enigmas, como o Gato risonho, o Chapeleiro Maluco, a Rainha, entre outros.
Considerando-se a perspectiva apontada para este estudo, optou-se pelo recorte de um dos
capítulos da obra, intitulado “O campo de croqué da Rainha” (CARROLL, 2009, p. 92-103). É quando a
menina se depara com a seguinte situação: os jardineiros se posicionaram de bruços para esperar o
cortejo do Rei e da Rainha. Isso causou um estranhamento na menina Alice, afinal, no “mundo real”, é
praxe reverenciar a realeza apenas com uma inclinação. Alice foi alertada para um comportamento
peculiar da Rainha: por qualquer motivo, mandava cortar a cabeça dos que lhe contrariavam. Durante
a cena, Alice chamou a atenção da Rainha, que a convidou para jogar croqué com ela. Acostumada a
brincar com jogos onde as regras são estabelecidas, a menina questionou o modo como a Rainha

NARRATIVAS
779

organizou a dinâmica das brincadeiras. E esta enfurecida deseja, ao final do evento, cortar a cabeça
de todos os envolvidos na brincadeira.
O capítulo O campo de croqué da Rainha, na obra de “Aventuras de Alice no País das
maravilhas”, foi escolhido por ser marcadamente dialógico, quando apresenta sujeitos interagindo e
produzindo significados a partir da relação dialógica entre os personagens – Rei, Rainha, Alice, Gato
de Chashire, os jardineiros Dois, Cinco e Sete, Valete de Copas, Duquesa e Coelho Branco.
Esta história representa uma situação que no contexto da ficção permite que autor insira
elementos fantásticos, próprios desse mundo, onde as personagens vivem num tempo e espaço,
desempenham suas funções, apresentam relações de poder. E essa composição só se torna incrível a
partir da interação entre Eu e o Outro, neste caso, entre o leitor e o texto, bem como entre os
personagens também. Nessa interação, Bakhtin ressalta que os “falantes compreendedores jamais
permanecem cada um em seu próprio mundo; ao contrário, encontram-se num novo, num terceiro
mundo, no mundo dos contatos; dirigem-se um ao outro, entram em ativas relações dialógicas”
(BAKHTIN, 2016, p. 113), ou seja, o capítulo em destaque tem essa funcionalidade, pois ambos – leitor e
texto – irão interagir e se relacionar dialogicamente, o que resulta viver a história intensamente pelas
marcas dos conflitos que nela estão presentes e, por conseguinte, surge o mundo dos contrários. Aí
se instaura o dialogismo.
Há no decorrer da história trechos que marcam alguns episódios interessantes e conflituosos
que denominamos para esta análise de:
Flor vermelha: “as flores eram brancas mas três jardineiros estão pintando de vermelhas.”
Curiosidade de Alice: “Poderiam me dizer, perguntou Alice, um pouco tímida porque estão
pintando essas rosas de vermelhas?”
Justificativa para o ato: “O Dois comentou, falando baixo: Ora, o fato, Senhora, é que aqui devia
ter sido plantada uma roseira de rosas vermelhas, e plantamos uma de rosas brancas por engano, se
a Rainha descobrir todos nós teremos nossas cabeças cortadas.”
No episódio acima – “Flor vermelha”, “Curiosidade de Alice” e “Justificativa para o ato” –
evidenciam-se enunciados de submissão e de interpelação de Alice para o ato responsivo, há uma
arquitetônica, há um conflito entre os jardineiros e a Rainha, entre rosas brancas e rosas vermelhas.
A partir deste conflito podemos verificar a fala da Rainha como impositiva, ou seja, sem diálogo. A fala
da Alice com os jardineiros, dialógica, no momento em que ela questiona o motivo de pintarem as
rosas brancas de vermelhas.
Cortejo da Rainha: “Alice teve muita dúvida quanto à conveniência de ser deitar de bruços
como os três jardineiros, mas não conseguiu se lembrar de jamais ter ouvido falar de uma regra
dessas em cortejos; aliás, de que serviria um cortejo, pensou se todos tivessem que ficar de bruços,
sem poder vê-lo? Assim continuou como estava, e esperou.”
Apresentação de Alice: “Meu nome é Alice, para servir a Vossa Majestade”; “Ora! Não passam
de um baralho. Não preciso ter medo deles!”

NARRATIVAS
780

Cadê os jardineiros: “Como eu poderia saber? Disse Alice, surpresa com a própria coragem.
Isso não é da minha conta.”
No episódio “Cortejo da Rainha”, “Apresentação de Alice” e “Cadê os jardineiros”, os
enunciados estão prenhe de resposta, significando que há uma réplica do diálogo. Uma réplica cheia
de conflitos, de posicionamentos, de se rebelar contra as posturas do Outro diante de Vossa
Majestade. E quem exerce este papel no decorrer da história é Alice, personagem de personalidade
forte, marcada pela interpelação.
Indignação da Rainha: “Cortem-lhe a cabeça! Cortem...”
Clemência do Rei: “Pense bem, minha cara; é apenas uma criança.”
Acerto de contas dos jardineiros: “O que andaram fazendo aqui?”; “Estávamos tentando...”;
“Cortem-lhes a cabeça!”
O episódio “Indignação da Rainha” e “Acerto de contas dos jardineiros” são enunciados em
que percebemos a exclusão da relação dialógica do Outro no momento do discurso, ou seja, o
posicionamento da Rainha em toda história é demasiadamente banhada pelo monologismo. O
enunciado começa e encerra na Rainha porque a relação que ela estabelece com soldados,
jardineiros, etc. é de poder, extremamente monológica, sendo a terceira forma do dialogismo de
Bakhtin. Muito embora algumas vezes a Rainha se permita ouvir a voz de um Outro de seu mesmo
patamar de poder, como verifica-se no episódio Clemência do Rei.
Alice salva os jardineiros: “Vocês não serão decapitados!”; “e os enfiou num grande vaso de
flores que estava ali perto.”
Convite a jogar: “gritou a Rainha. Sabe jogar croqué? Alice”; “Sei! Gritou Alice.”
Jogo sem regra: “Os jogadores jogavam todos ao mesmo tempo, sem esperar pela sua vez,
discutindo sem parar e disputando os ouriços [...] e todos brigam tão horrivelmente que não consegue
ouvir a própria voz... parecem não ter nenhuma regra em particular; pelos menos, se têm, ninguém as
segue [...] a Rainha logo ficou enfurecida, indo de um lado para o outro batendo o pé e gritando”;
“Cortem a cabeça dele!”; “ou Cortem a cabeça dela!”
No episódio “Alice salva os jardineiros ”, Alice assume uma atitude de apaziguar o conflito
porque sua memória discursiva – aquela que busca pelas experiências anteriores para discernir
atitudes valorativas do que possa ser politicamente correto – lhe permite agir em favor dos
jardineiros, para assim salvá-los da perversidade da rainha, o que caracteriza uma atitude nobre, por
certo, a “consciência individual [de Alice] é um fato sócio-ideológico”, como ressalta Bakhtin” (2004,
p. 32).
Jogo sem regra é o ponto ápice desse contexto dialógico. São muitas vozes que se
interpelam, não se entendem, agem de modo aleatório. Alice parece não entender tanta confusão e
estranha o modo como acontece a brincadeira, porque mais uma vez sua memória discursiva retoma
a forma como brincava com seus amigos que se diferencia desse episódio. As brincadeiras de Alice
pressupõem o estabelecimento de regras a fim de que garanta o controle da interação entre os
participantes no “jogo de croqué”, sem o mecanismos de regras predefinidas entre os brincantes

NARRATIVAS
781

gera o que Alice descreve neste episódio, uma verdadeira confusão e bem pouca brincadeira. Vigostki
(2016) salienta a necessidade da regra em função de potencializar as relações, o prazer em jogar e a
possibilidade da imaginação criativa.
A brincadeira com regras colabora para fruição de muitas vozes em que se espere a vez do
Outro, deixar o Outro jogar, definir marcadores de limites, o que eu posso e o que eu não posso, quem
ganha e quem perde nesta jogada. Mexe com o entusiasmo porque são desafiados a serem alcançados
para ao final da brincadeira revelar quem vence a partida. Mas sem regra Alice não percebe que o
jogo evolua, não tem direcionamento, causa desanimo, não se ouve a voz dos interlocutores, todos se
movem e falam sem saberem o que estão fazendo. “É preciso que a palavra se dirija a um
interlocutor”, como ressalta Bakhtin (2004, p. 112). Locutores reais, que impõem uma necessidade de
se viver a regra do jogo.
Esse é um conhecimento que a criança adquire com o jogo: lidar com as limitações. Além de
este repertoriar as crianças com excelente narrativa ficcional, rica na ficção e no imaginário, permite
a criança não só viver este mundo, mas criar vários outros. Isso porque,

A criação infantil está para a criação dos adultos assim como a brincadeira para a vida. A brincadeira é
necessária para a criança do mesmo modo que a criação literária infantil [...] A criação é também
necessária ao ambiente infantil em que nasce e ao qual se destina” (VIGOSTKI, 2009, p. 91).

São proposições que se apresentam e que servem para o desenvolvimento e a aprendizagem


das crianças.
A partir das análises dos episódios podemos destacar alguns resultados:
A brincadeira por meio dela, os objetos do mundo são redefinidos, tornam-se humanos,
tornam-se o Outro na relação Eu-coisa. A exemplo das cartas de baralho, tornam-se gente.
A brincadeira atribui novos sentidos aos objetos do mundo real, por meio da investigação, da
criatividade. A exemplo do sentido da expressão: “cortem-lhe a cabeça”.
A brincadeira tem regras e tem a função de organizar as relações entre o Eu e o Outro. Por
meio das regras tem-se: o que se pode fazer no jogo, como começar, tem-se que esperar o outro a
jogar, quem ganha e quem perde. A exemplo do jogo sem regras questionado por Alice.
A brincadeira pode ser a réplica de alguma atividade adulta. No caso do jogo de croqué,
reproduz as relações de poder entre a rainha e seus súbitos.
Considerações finais das brincadeiras dialógicas
Com a abordagem desse estudo, esperamos ter contribuído com a discussão acerca da
capacitada criadora, imaginária e dialógica do leitor/escritor a partir da obra “As Aventuras de Alice
no País das Maravilhas” em um enfoque bakhtiniano e vygotskyiniano, dada as condições
presentificadas nos clássicos da literatura infantil, quando o autor brinca com a caracterização e os
nomes dos personagens, bem como os acontecimentos marcados por este mundo ficcional e
imaginário.

NARRATIVAS
782

Outro ponto muito interessante foi perceber que o encantamento e a capacidade criadora e
imaginária da criança vêm à tona quando a mesma tem a oportunidade de viver experiências diversas
que brincam com o seu imaginário e lhe permitem lidar com mundos não tão reais, mas com situações
inusitadas em que a fantasia ganha espaço nas brincadeiras vividas plenamente, muito embora as
experiência anteriores de criança lhe sirvam de base para enveredar por outros mundos presentes
em atos dialógicos.
De fato, evidenciou-se o dialogismo no capítulo “O campo de croqué da Rainha” uma vez que
os diálogos eram prenhes de resposta. A voz do locutor e interlocutor (personagens) eram
marcadamente dialógicos, existia materialidade literária – embora exista no texto o monologismo –,
mas ao mesmo tempo o dialógico vem à tona mediante a significação do leitor. São obras literárias
dessa natureza que ajudam intensamente a criança tanto no repertório imagético, ficcional rico pela
linguagem e que permite à criança criar asas para a imaginação, recriando suas próprias histórias
infantis.
Acreditamos que a principal contribuição desse trabalho seja suscitar reflexões e pesquisas
em obra de clássicos literários, entre as brincadeiras e o modo como as crianças interagem em
tempo e locais diversos, evidenciando sua própria maneiras de ser e de viver e principalmente de
estabelecer relação com muitas vozes, muitos sujeitos que se relacionam pela linguagem.

REFERÊNCIAS

ALVES, Laura Maria Silva Araújo. As culturas infantis e os processos de desenvolvimento e aprendizagem. Belém:
Edufpa, 2012.
BAKHTIN, Mikhail. Diálogo I: a questão do discurso dialógico. In: BAKHTIN, Mikhail. Os Gêneros do discurso. Organização,
tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Ed. 34, 2016. p. 113-124.
BAKHTIN, M.; VOLÓSHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na Ciência da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 11a. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. p.111.
_____. A interação verbal. In: BAKHTIN, M.; VOLÓSHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na Ciência da Linguagem, 2004. p.110-127.
CARROLL, Lewis. As aventuras de Alice no País das Maravilhas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016.
VIGOTSKI, Lev S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. São Paulo: Ática, 2009.
_____. Psicologia pedagógica. 3.ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.

NARRATIVAS
RESUMO
783
Objetiva-se, neste trabalho, analisar,
verbivocovisualmente, os discursos que subjazem

IDENTIDADES PLURAIS: os enunciados produzidos no primeiro (1) episódio –


Plano B – do seriado “Master of None”. Mais
especificamente, a atenção recai sobre os diálogos
tensões em Master of None 112
que implicam a construção de uma representação
da identidade/papel social de mãe ou de pai. As
análises buscam compreender, fundamentadas na
concepção de linguagem bakhtiniana, quais os
sentidos atribuídos pelos personagens a essas
identidades a partir das relações dialógicas em
nível de alteridade.
FRANÇA, Arthur Barros de113
Palavras-Chave: Alteridade. Conflitos identitários.
Relações dialógicas

INTRODUÇÃO

A
identidade foi pensada durante significativo tempo como uma essência, uma característica
intrínseca do indivíduo. Aos poucos, contudo, através de novos olhares para o mundo e os
sujeitos que o povoam, ela passa a ser enxergada enquanto constructo social, isto é, algo
cultural.
No exercício da hibridez identitária, está implícita a alteridade. Ambas as formulações
teóricas têm a ver com o ser plural, o qual deve ser teorizado sempre com uma responsabilidade
especial de não o desvincular de sua responsabilidade moral – conforme destaca Bakhtin (2010).
Este texto ancora-se na pesquisa de mestrado em desenvolvimento “Master of None: embates
identitários na contemporaneidade”. Para tal, usam-se aqui enunciados que não foram, em virtude do
recorte, utilizados na análise da dissertação. Objetiva-se investigar – verbivocovisualmente (PAULA,
2014) – a cosmovisão da identidade ou papel social da paternidade/maternidade no primeiro (1)
episódio (Plano B) da primeira (1) temporada do seriado “Master of None”, produzido e distribuído pela
Netflix. As análises buscam compreender, fundamentadas na concepção de linguagem bakhtiniana,
quais os sentidos atribuídos pelos personagens a essas identidades.
As páginas seguintes, poucas, descrevem o que se entende por identidade cultural e
alteridade, de maneira geral. Para a primeira seção, baseou-se em quatro obras fundamentais na
compreensão de tal concepção: “A identidade cultural na pós-modernidade” (HALL, 2006),
“Identidade” (BAUMAN, 2005), “Identidade e diferença” (SILVA, 2009) e “O poder da identidade”
(CASTELLS, 1999). Para a segunda, o solo no qual se apoiou foi em “Para uma filosofia do Ato
Responsável” (2010), como também em alguns comentadores. Na terceira seção, parte-se para a
análise. Na última, apresentam-se as considerações finais.

112 Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves – Professora Associada do Departamento de Letras e do Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL/UFRN).
113 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Estudo da Linguagem (PPgEL) e estudante de Filosofia (UFRN).

NARRATIVAS
784

1. IDENTIDADE CULTURAL

A identidade, de acordo com Hall (2006), foi caracterizada por três concepções: sujeito
iluminista, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. A última ascendeu após o que ele chamou
“descentramento do sujeito”. O autor atribui a mudança114 de perspectiva a cinco fatores: tradições
do pensamento marxista, descoberta do inconsciente por Freud, linguística estrutural sausurreana,
trabalhos de Michel Foucault e o feminismo. A “crise de identidade”, como ele denomina, é a vitória do
construtivismo sobre o essencialismo. Quer dizer, é a superação, principalmente, da tradição
cartesiana no mundo da cultura.
Bauman (2005), por sua vez, afirma que a identidade está para o pertencer. Exemplo disso
foram as várias identidades nacionais formadas nos Estados Modernos. De qualquer forma, do mesmo
modo em que se formam, as identidades podem se desfazer, uma vez que são líquidas. A metáfora dá
conta também dum período de instabilidade e trânsito cada vez mais recorrentes e rápidos, a
globalização na contemporaneidade. Nesse contexto, o modelo de identidade rígido já não se ajusta a
este tempo. A identidade, portanto, é transformada continuamente pelo deslocamento fortuito e
imprevisível das atividades humanas.
A identidade é relacional, diz Woodward (2000). Para a autora, “diferenciar-se de” significa
construir a característica do eu, sempre coletivo. É por intermédio da diferença que grupos étnicos e
mulheres, por exemplo, afirmam-se. Essas características, aliás, são admitidas simbólica e
materialmente, significando que usar determinadas palavras ou roupas pode ser critério de distinção.
A identidade, nessa compreensão, é marcada por sistemas classificatórios diferenciadores, os quais
fabricam sistemas simbólicos. Assim, ela nunca está dada – tampouco acabada.
Já para Castells (2000), a identidade é a fonte de significado de um povo, estando dividida em
três tipos: legitimadora, de resistência e de projeto. Para ele, a representação por trás do eu é
resultado, atualmente, da relação entre essas três instâncias na complexa dinâmica da Rede. Riqueza,
tecnologia e poder, nessa visão, condicionam as identidades, num fluxo de influência que afeta pessoas
e, portanto, também as suas representações.
A paternidade/maternidade, na perspectiva das identidades culturais, não podem ser vistas
enquanto um par homogêneo, embora a vinculação (mãe/pai) aqui feita dê conta dessa relação no
seriado. Integram tal identidade sexo, gênero e classe social, as quais não devem se dissociadas115.

2. ALTERIDADE

A tensão é elemento constituidor do diálogo. Para que exista, é preciso dois centros de força:
o eu e o outro. De acordo com Bakhtin (2010), a alteridade parte do emotivo-volitivo, ou seja, da

114
A mudança – ainda que ela possa ser potencializada – está para a maneira de se pensar o sujeito social, e não o sujeito em si, afinal, a
pluralidade de identidades parece ser uma verdade histórica dos indivíduos.
115
A proposta deste trabalho, no entanto, não dá conta de analisar todos esses fatores.

NARRATIVAS
785

axiologia inserida no campo do sinal, do sentido atribuído às coisas já valoradas, do tom que se exerce
em cada enunciado/palavra.
Só se é efetivamente porque se atua no mundo da vida, porque é imprescindível assinar a
existência, porque não há como ser de outra forma. Não se pode escolher ser um outro ser (cavalo,
peixe ou barata). A partir do momento em que se nasce, ao sujeito já são compartilhadas lentes
específicas, com as quais ele vai enxergar as coisas. É claro que essas mesmas lentes podem ser
trocadas e consertadas – só é impossível não as ter.
Em Crime e Castigo (2020), de Dostoiévski, o personagem Raskólnikov tem as relações
dialógicas muito marcadas pela necessidade de superar a sua condição de estudante humilde, vindo
de uma família de mesma ordem, órfão de pai. Os seus colóquios internos e externos expressam a
todo momento o caos alteritário da vida de todo e qualquer homem, na arte e na vida. Isso se repete
em diversas outras obras e personagens do autor russo, motivo pelo qual Bakhtin o escolheu,
metonimicamente falando, para ser corpus e exemplo maior do romance polifônico.
O movimento de alteridade tem como característica um nexo de dependência, isto é, assim
como a contrapalavra precisa, claramente, da prévia-palavra para sê-la, o ser existente reivindica o
que não é eu para, então, indefinir-se cada vez mais:

Deve-se pensar a alteridade como um processo que modifica o sujeito, que o desloca de si, colocando-o
em movimento. Uma vez que o movimento é parte do processo de encontro entre o Eu e o Outro, esse
movimento pode ser lido como um trauma. É esse trauma o sinal de que não existe a estabilização
imediata do sujeito e do Outro. Ele mesmo que denuncia a força da alteridade, a de alterar o sujeito
(DURAN, 2014, p. 151).

A filosofia, desde o seu surgimento na Grécia Clássica, procura pela totalidade. Assim foi com
os filósofos da natureza, e assim permanece até os dias atuais. Difere, todavia, como se interpreta o
conceito de “totalidade”. Para os pré-socráticos, por exemplo, importava o elemento primordial, a
essência última da qual todas as coisas derivam. No Círculo, por seu lado, como afirma Stosiek (2016),
a coesão esperada da “totalidade” decorre da dialogia, da interação no mundo, da alteridade:

Eu tendo a pensar que o universo inteiro se dá por sujeitos vivos, os seus atos de vida/trabalho
vividos/gastados em interações e diálogos que juntos constituem (constituímos) a universalidade do
cosmo que por sua vez só acontece e é real nos sujeitos únicos e os seus atos, os quais por suas vezes
são reais só nas interações e diálogos. Tal “universalidade” podemos denominar de “Deus”, ou de
“matéria”, ou de “alteridade” (STOSIEK, 2016, p. 60).

O inacabamento é a real natureza da alteridade, percebe-se. A essa incompletude, repleta de


interações ininterruptas, pensa-se e se é pensado (MIOTELLO; MOURA, 2014). É nessa relação, com
toques de desarmonia necessariamente (afinal, o eu não quer coincidir com o outro, como também o
lugar cômodo de ambas as partes é deslocado pelas forças moventes do poder), que se é obrigado a
ser. Desse modo, a alteridade – sustentada no “princípio arquitetônico supremo do mundo real do ato”

NARRATIVAS
786

(BAKHTIN, 2010, p. 142), isto é, no eu e no outro – é fundamento da identidade, de maneira que esta não
se sustenta sem aquela.

3. ANÁLISE

3.1 Episódio 1: Plano B

Este episódio centra-se no dilema “ter ou não filhos?” e, consequentemente – uma vez que,
de início, essa ligação, no episódio, é quase determinante –, “ser ou não solteiro?”. Dev tem uma
transa casual com Rachel, uma garota que conhece na noite. Após a camisinha estourar, eles
debatem, mesmo ele não tendo ejaculado ainda, se há chances de ela engravidar. Pesquisam, então, na
internet, e resolvem ir a uma farmácia comprar uma pílula anticoncepcional. Chamam um Uber, em
seguida, e todo o futuro indesejado probabilístico é acabado no plano b. Após isso, os amigos Dev,
Arnold e Denise discutem o ocorrido. A visão dos dois primeiros indica claramente o que entendem
por Plano A e Plano B:

Dev – E daí a camisinha estourou.


Denise – Tava tomando pílula, né?
Dev – Não, mas, por sorte, a gente comprou um daqueles lances de Plano B, então, agora, duas pessoas
que mal se conhecem não vão criar uma criancinha juntas. Ótimo! Um viva ao Plano B.
Arnold – Por que chamam de “Plano B”? O “Plano A” é ter uma criança? Esse plano é horroroso!

A preocupação de Denise fica explícita no marcador discursivo “né”, o qual, sendo a redução
de “não é”, pode exprimir internacionalmente uma expectativa de confirmação. Por trás dessa mesma
expectativa, está, para ela, o sentido de que ter um filho, naquelas circunstâncias, não parece ser algo
bom. Arnold, por sua vez, é mais objetivo na sua posição. Quer dizer, ter filhos definitivamente não é
um bom caminho para ele.
Eles continuam conversando até que Dev responde à pergunta “Dev, você quer filho?”:

Uma parte minha diz “é, pode ser uma experiência humana incrível”. Mas, daí, outra parte minha fica “tá
legal, hoje, mais tarde, eu quero comer uma massa”. Se eu tiver um filho, eu não posso ir. Tenho que
lutar para encontrar uma babá e tal. E, se eu não achar uma babá, hein?! E aí?! O quê? Eu não vou comer
massa?! Isso é horrível!

Na resposta de Dev, a indecisão sobre esse assunto se mistura à conotação, que perpassa
todo o episódio, de que ser pai ou mãe implica abrir mão de determinadas coisas de que se gosta.
Para esse personagem, nesse caso, é perder a massa, isto é, situações de lazer e prazer. À

NARRATIVAS
787

cosmovisão dele inclui-se também a sua realidade financeira, uma vez que contratar uma babá não é
algo para qualquer cidadão estadunidense116.
Após isso, ele dá o exemplo de um amigo que, depois de ter um filho, diminuiu as saídas, e
passou a se dedicar exclusivamente à paternidade. Em outras palavras, “sossegou”. Para Dev, esse
amigo parece estar mais feliz, ao que Arnold responde:

Não. Cara, o Caio tá acabado. Ele não está dormindo nada. O garoto tá cagando a casa toda. Ele não tá
vendo os amigos, e não fode a esposa a mais de um ano. Ele já era.

Arnold resume toda a situação de Caio a “ele já era”, dando à identidade de pai um sentido
ruim na medida em que se perdem os prazeres da vida (dormir, ver os amigos, transar com a
esposa). A concepção de felicidade aqui e durante boa parte do episódio assemelha-se à ética
utilitarista, a qual tem como princípio a “utilidade” ou “maior felicidade”. As consequências de um ato
indicam se o que ocorre é bom ou ruim (moral ou imoral), isto é, se maximiza o prazer e minimiza a
dor (felicidade) ou se minimiza o prazer e maximiza a dor (infelicidade), respectivamente.
Posteriormente, Dev e Arnold, tendo sido convidados a ir ao aniversário do filho de Caio, um
velho amigo, vão a uma loja de brinquedos comprar o presente do aniversariante. Lá, Dev encontra
Álex, uma ex-paquera, a qual está na loja comprando brinquedos para o filho. Esse encontro, o
primeiro por enquanto, marca o início de contatos com pessoas que lhe são próximas a terem filhos.
Em seguida, Dev e Arnold vão ao aniversário do filho de Caio. Na festa, Dev conversa com o pai
do anfitrião, e lhe pergunta como é a paternidade. Eis o diálogo abaixo:

Dev – Cara, agora você é pai. Que loucura! Como é a paternidade?


Caio – É ótimo. Eu sinto como se eu fizesse parte de uma coisa maior. Eu, agora, tenho um sentido maior
da vida.
Dev – Mas deve ser um trabalhão, num é não?! Pô, você não sente falta de sair e tudo mais?
Caio – É...então, uma noite o Zach começou a chorar, às 4h da manhã. Eu cansadaço, puto. Aí eu me
levanto, vou lá, ligo a luz, pego ele e, num momento, ele vai e olha pra mim, e simplesmente sorri e
começa a gargalhar pra mim. Aí nós dois começamos a gargalhar. Tô eu ali gargalhando com essa
pessoa que eu criei. Entende? Com o meu filho. Essa pessoa que eu vou ver crescer e fazer grandes
coisas um dia, espero. Sei lá, eu não consigo pensar numa noite festejando ou bebendo que me tenha
feito sentir um milionésimo disso.
Dev – Porra! O ponto alto do meu ano foi entrar de penetra na festa de Halloween do Zachary Quinto.

116 Embora no Brasil a profissão de babá (babysitter ou nanny) esteja em baixa, nos Estados Unidos ela se mantém em alta. Numa entrevista a
algumas mães feita por Carol Mendes (http://descobriaamerica.com/2016/06/quanto-custa-uma-baba-nos-eua/), residente em Richmond,
no estado da Virginia, ela constatou que os valores são altos. Evidentemente, entram nessa pesquisa o lugar em que se mora além de outros
fatores. De qualquer forma, o sentido que Dev dá à babá é de que alguém que vai estar constantemente com a criança, o que fortalece a ideia
do dispêndio de um alto custo financeiro.

NARRATIVAS
788

Figura 1.Cena de “Master of None”)

No excerto, Caio dá à paternidade um caráter transcendental, na medida em que o retira de


uma existência não compartilhada, em que o sentido da vida parece ser menor. Ser pai, para ele, é
“fazer parte de algo maior”. Passar a carga genética, ver um pouco de você no outro e formá-lo
(cuidar) sintetiza talvez essa noção. A ela, são colocadas também expectativas de si. Quer dizer,
“fazer grandes coisas” está entonativamente ligado ao que Caio entende por “grande”, evidentemente.
Ademais, a felicidade é baseada novamente na concepção utilitarista. Dessa vez, mais
especificamente no utilitarismo de Stuart Mill. Nele, existem prazeres superiores e prazeres
inferiores, os quais podem ter consequências de maximização maior ou menor da felicidade. Para
Caio, nessa ocasião, ser pai (e ter momentos como o que ele descreveu) é um prazer superior em
relação a festejar e beber.
A esse entendimento da paternidade, Dev, em sua imaginação, projeta-se enquanto pai:

Figura 2. Cena de “Master of None”

Figura 3. Cena de “Master of None”

NARRATIVAS
789

Figura 4. Cena de “Master of None”

As projeções, denotadas pelo enquadramento da cena e pelas cores do ambiente, exprimem de


igual modo o que disse Caio ao olhar o filho nos olhos, contemplação e sentimento de pertencimento a
algo maior. A música suave e amorosa complementa sincreticamente o sentido do enunciado, dando-
lhe caráter positivo. A primeira imagem foca na imersão, no silêncio e na troca de olhares; a segunda
no movimento da felicidade – a família sorrindo enquanto giram e se abraçam alegremente; a terceira
no ensinamento de pai para filhos, no legado deixado para o futuro deles.
Ainda na festa, Dev reencontra Amanda, outra amiga. Ela traz consigo os dois filhos, Lila e
Grant. Dev diz a Amanda que Grant já está um “homenzinho”, e ela retruca:

É, está sim. Mas ele ainda é um babaca às vezes [...] se te visse o tempo inteiro, iria cagar no seu sapato
[...] É, Grant cagou no meu sapato semana passada. É a novidade dele. Ele chama de “sapato-cocô”.

Figura 5. Cena de “Master of None”

A expressão facial de cansaço de Amanda, na imagem 5, junta-se aos vários momentos,


inclusive o da passagem, nos quais ela alerta para a dificuldade de lidar com o comportamento dos
filhos, ensejando, metonimicamente, também a dificuldade de ser mãe.
Precisando ir a um encontro de trabalho, mas não tendo com quem deixar os filhos, Amanda
confia-os a Dev, que se oferece para ficar com eles. A experiência, todavia, não foi boa: as crianças
lhe trazem vários momentos constrangedores e problemáticos. Dev, posteriormente, voltando à festa
do filho de Caio, desabafa:

Dev – Ah, eu cuidei desses dois só uma horinha, e estou destruído. Você está com o filho de um ano:
como consegue? Qual é o segredo?
Caio – O segredo é que eu vou me divorciar.

NARRATIVAS
790

Dev – O quê? Está falando sério?


Caio – É, a gente está tendo uns problemas. Tentamos resolver, mas eu acho que não vai dar certo.
Dev – Achei que estava indo tudo bem. E aquelas coisas que você me disse mais cedo?
Caio – Qual é?! Bobagens que se diz em festas. Você quer que eu diga o quê? Que eu não durmo e não
fodo há um ano?! Que eu não vejo os meus amigos e que eu odeio a minha mulher?!

Figura 6. Cena de “Master of None”

Figura 7. Cena de “Master of None”

Esse parece ser o diálogo mais impactante do episódio. As consequências da paternidade para
Caio mostram um pouco como é ser pai e mãe 117 . A visão romantizada dita anteriormente é
atravessada por essa outra perspectiva. Àquela é concedida a categoria de “bobagens que se diz em
festas”. Na imagem 6, Dev retorna à casa de Caio, e vê tudo revirado. A princípio, parece ser só a
aparência de um final de festa, mas, em realidade, explica também a situação conturbada pela qual
passa Caio, seu amigo.
A imagem 7, confirma a desordem da cena anterior. Caio está sentado, com a mão apoiando o
queixo, que aparenta querer cair. O enfado apodera-se da face de Caio. O copo à mão e o litro do que
afigura ser uísque à mesa dão ao personagem, de cabelos bagunçados, um semblante ainda pior. Os

117 O episódio não demonstra a realidade comparativa da maternidade e da paternidade. Ele os iguala. Historicamente, sabe-se – por questões
de poder ligadas à identidade de gênero, bem como das inúmeras pesquisas que mostram a desigualdade entre homens e mulheres – que a
mãe carrega, na prática, um peso muito maior do que o pai, no Brasil e no mundo. À mulher, além dos árduos nove (9) meses de gestação, são
atribuídas culturalmente funções domésticas e de cuidado filial muito mais do que aos homens. A esse respeito, contudo, cabe um outro
trabalho.

NARRATIVAS
791

seus olhos, a propósito, focam o nada. É um olhar vazio, o qual vislumbra talvez que algo poderia ter
sido diferente.
Depois do diálogo que Dev tem com seu amigo, o nova-iorquino indiano imagina-se na mesma
situação enquanto pai:
Figura 8. Cena de “Master of None”

Figura 9. Cena de “Master of None”

Nas imagens 8 e 9, a projeção de um futuro catastrófico como pai se apresenta. No primeiro


momento, após chegar do trabalho, seus prováveis filhos estão sujando toda a casa – livros, chão, a si
próprios e um ferro de passar roupa. Adiante, no carro, eles fazem barulho e algazarras no banco de
trás, deixando Dev em estado de total desânimo. A música frenética (Como to daddy – Aphex Twin),
como pano de fundo, acrescenta ao enunciado o desespero do personagem.
Imaginação à parte, já na casa de Amanda, indo deixar os filhos dela, Dev conversa com Natan
– amigo de ambos:

Dev – Eu cuidei do Grant e da Lila por algumas horas. Ah, nossa foi tão louco! Eles ficaram correndo e
gritando e berrando, causando tumulto. Natan – É duro, cara! Por isso que eu gosto de ser o tio, sabe?
Você aparece, abraça, beija eles, brinca, faz bagunça e aí, quando começam a ficar nojentos e estúpidos,
você pensa “vou dar o fora daqui”.

Dev reafirma, já pela segunda vez, o quão ruim foi a pratica de cuidar de Grant e Lila, ainda
que por pouco tempo. Natan, por seu turno, corrobora com esse ponto de vista, e afirma preferir “ser
o tio”, uma vez que, assim, aproveitam-se as benesses e rejeitam-se os prejuízos da convivência com
as crianças. Às identidades ou papéis sociais, portanto, são conferidos sentidos diferentes.

NARRATIVAS
792

Ao término do episódio, a canção “Cool it now” (1984), da banda New Edition, compõe o campo
de sentidos, dando à narrativa o fechamento argumentativo ao dilema pela qual Dev passou. A música
– incluindo os elementos do videoclipe original 118 – apresenta uma letra que inclui também uma
tomada de decisão: entregar-se à paixão ou continuar se divertindo com os amigos?

And my friends keep telling me to


Cool it now
You got to cool it now
Ooh watch out
You’re gonna loose control
Cool it now
You got to slow it down
Slow it down
You’re gonna fall in love
Figura 10. Cena de “Master of None”

Na imagem, veem-se as duas possibilidades do personagem: paixão pelo ser amado ou


basquete com os amigos 119 . Tanto no primeiro episódio do seriado “Master of None” quanto no
videoclipe da canção “Cool it now” esse conflito implica uma relação maniqueísta: ou isso ou aquilo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, problematizaram-se os discursos que, de uma forma ou de outra, chamam as


identidades para o conflito. A análise indicou que o argumento da narrativa dividiu dois centros de
perspectiva ao dilema de Dev. Ao fazê-lo, foi investido mais tempo na desconstrução da narrativa

118 No videoclipe dessa canção, quatro (4) amigos jogam basquete quando uma garota começa a assistir. Um dos rapazes logo se
desconcentra, e, ao perder o êxtase do jogo, acaba levando uma bolada, atrapalhando a partida. Os amigos tentam dissuadi-lo a “voltar ao
jogo”, a ter atenção e cuidado com essa distração, mas parece já ser tarde. Ao fim do videoclipe, a bola é jogada a esmo, representando a
escolha da paixão em detrimento da diversão com os amigos, enquanto o rapaz segue a garota.
119 Nesse caso, a garota – ao centro – está mais próxima do personagem principal, o rapaz de vermelho, o que pode significar a quem ele está

mais tencionado a escolher. As cores das roupas de ambos, inclusive, assemelham-se: são tonalidades (vermelho e rosa) que se aproximam do
sentido dado à paixão, por exemplo.

NARRATIVAS
793

romantizada em torno da maternidade/paternidade do que na confirmação de tal olhar. As relações


dialógicas indicaram tensões das mais diversas na materialidade verbivocovisual. Com essa
investigação, pôde-se constatar o quanto a voz pode contribuir aos outros elementos, o verbal e o
visual, na composição do sentido. Outrossim, coloca-se em voga a importância de se trabalhar com
gêneros muitas vezes esquecidos pela tradição científica, como é o caso do seriado televisivo.
As identidades/papeis sociais de homens e mulheres enquanto pais ou mãe precisam ser
cada vez mais debatidos para, constantemente, se desmistificar preconceitos e estereótipos, por
exemplo. Ser mãe e pai tem suas vantagens – e isso a maioria dos enunciados propaga e replica com
muito mais vigor –, porém também tem suas desvantagens. A isto o episódio se dedica, entende-se.
Para acentuar essa visão, são exagerados alguns elementos e dado menos tempo a outros, que
contradiriam o argumento principal.
Sabendo que as vozes sociais presentes no seriado, sendo arte, não se afastam da vida, a
análise aqui do conteúdo temático também o é da realidade construída e refratada pelos homens e
mulheres deste mundo.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DURAN, G. Identidade e alteridade refletidas no espelho. In: A alteridade como lugar de incompletude. São Carlos:
Pedro e João Editores, 2014
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

NARRATIVAS
RESUMO
794
Este pequeno ensaio faz um breve exercício sobre o
pensamento bakhtiniano, ponto em evidência uma

LUGARES DE INFÂNCIAS realidade empírica a qual vou chamar, em primeira


mão e ao esplendor das concepções de Bakhtin, de
“uma geografia primeira” da infância na Baixada

BAIXADEIRAS NA
Maranhense. Para tanto se utilizou de dois
construtos filosóficos bakhtinianos: a cronotopia
para traduzir a menção da representação,
indicialidade e afiguração infantil mediante sua

CRONOTOPIA DE arena de vivência representada e a exotopia da


objetivação auferida como observador do evento,
aqui colocada como próxima diante de prévias

DESENHOS E PINTURAS:
aproximações já experimentadas com o lugar. A
aplicabilidade da concepção backtiniana trouxe
peculiaridades para os novos rumos que serão
trilhados nos campos da geografia da infância
ensaios de uma exotopia próxima e uma mediante o prosseguimento dos estudos vindouros,
assim como a técnica de análise de desenhos de
geografia primeira crianças se mostrou reveladora ao apontar
indicadores promissores que supõem a
multiplicidade de olhares sobre as especificidades
das infâncias a serem investigadas.

Palavras-Chave: Infâncias da Baixada Maranhense.


FRANCO, José Raimundo Campelo 120
Cronotopia. Exotopia

INTRODUÇÃO

A
s preocupações que orientaram e fundamentaram a tragetória da geografia da infância
galgaram por linhas de pensamento que se potencializaram a luz dos conclames da geografia
humanistica pelo transcorrer da década de 70 do século passado. A compreensão da
periodicidade que desenharam e redesenharam as várias concepções de infância ao longo da história
e também os principios que saltaram de avanços do pioneirismo da ciência sociológica foram
imprescindíveis para o fartalecimento das bases geográficas que se incidiam em gerar seu mais novo
tentáculo de analise prismado nas crianças.
A ênfase que a geografia da infância tem levado em conta se desdobra no enrredo
interpretativo dos varios tipos de infância que se reproduzem sob os espaços, quebrando assim,
alguns dos velhos débitos deixados pelos jargões da história que não consideraram em suas escritas,
a criança no bojo de uma etnografia mais densa. Esta luta tenta repor os devidos protagonismos
infantis onde se estreitem as bases das suas próprias falas, os atos de suas vivências, os ensejos
emanados dos seus papéis de construtores, e ao mesmo tempo, o reconhecimento destes humanos
enquanto forças participantes da sociedade e dos tempos de agora.

120Pos-graduando do curso de Doutorado em Educação da Universidade Federal Fluminense (Dinter UFMA-UFF, turma 2015), bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão - FAPEMA . E-mail: frankogeo@yahoo.com.br

NARRATIVAS
795

È nessa esteira do campo intencional da grografia da infância que nos deparamos com a
coadjuvancia teórica residente nos discursos cosntruidos do Círculo de Bakhtin que nos oferece uma
gama de categorias conceituais que ajudam a decifrar algumas destas cosntruções discursivas, que
neste caso do loco epigrafado, o pensamento do lugar habitado pelas crianças.

1. A CRONOTOPIA BAKHTINIANA E O CONTEXTO DA PESQUISA

Percebe-se que a “cronotopo e exotopia são dois conceitos de Bakhtin que falam da relação
espaço-tempo. O primeiro foi concebido no âmbito estrito do texto literário; o segundo refere-se à
atividade criadora em geral” (Amorim, 2006, p. 92), referida analogia aqui se faz com a cronotopia
infantil percebida a partir das leituras de seus ideários que consolidam simbologias instantâneas de
seus espaços vivenciais, enquanto que a exotopia inicial se fez com um levantamento ainda pouco
arrojado, sob a perspectiva de se vislumbrar panoramas futuros idealizados a partir de análises mais
criteriosas para a fixação mais densa e reflexiva ao cerne cultural da alteridade.
Algumas destas aproximações estão relacionadas com singelos levantamentos científicos
sobre o lugar, outras vivenciadas de um cotidiano buscado de rememorações, ainda que desdobradas
de espaços menores e descontínuos aos que se buscam hoje, mas o uso destes pequenos resíduos
subjacentes ao presente servirá apenas como referência (reminiscências de infâncias na
microrregião da Baixada Maranhense), ou seja, um observador ou retratista já participado de um
cronótopo distante de espaço-tempo e não participando do cronótopo atual protagonizado pelo olhar
infantil ou do retratado.
“Na rememoração, levamos em conta os acontecimentos que se sucederam (dentro dos
limites do passado), ou seja, percebemos e compreendemos o que é rememorado no contexto de um
passado inacabado” (BAKHTIN, 1997, p. 402), ocasião do presente em que nos desdobramentos
oportunos, essas heranças de pensamento serão postas a um esforço de se atingir o rigor do
“encontrar-se fora, a exotopia, a extralocalização” (PONZIO, 2013, p. 21) para uma objetivação final em
que poderia “ver-me como o outro” (BAKHTIN, 1997, p. 51), com excedente de visão postulado na
infância do hoje que se faz inquilina e vivente do referido espaço habitado.
“A concepção de tempo traz consigo uma concepção de homem e, assim, a cada nova
temporalidade, corresponde um novo homem” (AMORIM, 2006, p. 103), enquanto que, em alusão a
cronotopia literária, é pertinente a ênfase de que a mesma se faz: “[...] uma categoria da forma e do
conteúdo que realiza a fusão dos índices espaciais e temporais em um todo inteligível e concreto. Os
índices do tempo descobrem-se no espaço e este é percebido e medido de acordo com o tempo”
(idem, 2006, p. 99).
Utilizando-se do olhar foucaltiano, Ponzio (2017, p. 56) considera que a ordem do discurso se
atém a “uma ordem de representação, que concerne à língua, à cultura, ao pensamento. A tendência
do texto, seja qual gênero for, é terminar sendo apenas uma representação da vida, uma encenação”.
Ainda em Ponzio (2017, p. 64) “como texto de escritura, que constrói a própria visão distanciando-se

NARRATIVAS
796

da cena da representação, o texto pictórico, como cada texto artístico, assume um caráter de
pesquisa”. Sob a perspectiva de retratista e retratados aqui evidenciados, pode se aferir que:

O retratado é aquele que vive cada instante de sua vida como inacabado, como devir incessante. Seu
olhar está voltado para um horizonte sem fim. O sentido da vida para aquele que vive é o próprio viver. O
retratista tenta entender o ponto de vista do retratado, mas não se funde com ele. De seu lugar
exterior, situa o retratado num dado ambiente, que é aquilo que cerca o retratado, e em relação ao qual
é situado pelo artista. O ambiente é uma delimitação dada pelo artista, uma espécie de moldura que
enquadra o retratado (AMORIM, 2006, p. 96).

Tendo em vista, ao grosso modo, que a estética bakhtiniana prevê o acabamento do agir do
sujeito (GEGE, 2013, p. 38) a cronotopia posta nesta discussão remonta o caráter dos primórdios da
escrita literária buscada em Rabelais e Goethe, tal qual se mostra neste segundo:

[...] marca a visão de uma região, de uma paisagem que, sob os olhos de Goethe, se impregnam de um
tempo histórico criador, produtivo. Como já observamos, o ponto de vista do homem construtor
determina a contemplação e a percepção da paisagem por Goethe que, longe de soltar as rédeas de sua
imaginação criativa, antes a submete à necessidade do local, à lógica inexorável de sua existência
histórico-geográfica (BAKHTIN, 1997, p. 257).

O excedente de visão, ou seja, “a possibilidade que o sujeito tem de ver mais de outro sujeito
do que o próprio vê de si mesmo, devido à posição exterior (exotópica)” (GEGE, 2013, p. 44) que se
busca abstrair do processo interativo entre a criança baixadeira em seu jogo cronotópico, enseja
através da concepção estética, um processo de análise que busca:

[...] representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica do sujeito (lugar de fora, ainda que um
fora relativo, pois uma posição de fronteira, lugar móvel, sem delimitação predeterminada, de onde o
sujeito vê o mundo com certa distância, a fim de transfigurá-lo na construção de seu discurso estético),
fundada no social e no histórico. A posição exotópica é a posição a partir da qual é possível o trabalho
estético, a ação de construir o objeto estético (GEGE, 2013, p. 38).

A geografia da infância que pulsa sob o olhar exotópico de todo o protagonismo infantil para a
construção de todo invólucro que compõe a interatividade dos fenômenos, entrará no embate com as
contradições existentes entre o simulacro sobreposto das verdades universais nas contrapartidas
com a vida cotidiana das vivências, aqui retratadas no âmago da relação da criança com seu espaço.

É um triste equívoco, herança do racionalismo imaginar que a verdade [ pravda] só pode ser a verdade
universal [istina] feita de momentos gerais, e que por consequência, a verdade [ pravda] de uma
situação consiste exatamente no que esta tem de reprodutível e constante, acreditando, além disto, que
o que é universal e idêntico (logicamente idêntico) é verdadeiro por princípio, enquanto a verdade
individual é artística e irresponsável , isto é, isola uma determinada individualidade (BAKHTIN, 2010, p.
92).

NARRATIVAS
797

2. OBJETO EMPÍRICO DO ENSAIO: atividade de artes com desenhos e pinturas de crianças

As ferramentas de obtenção dos desenhos e pinturas foram compostas por atividades de


sondagens levando-se em conta o tino artistico (ou não-artístico) que incitaram a inspiração, a
retratação, a memória, ensejos imediatos ou imaginários residentes no pensamento do aluno através
de traços e cores que formaram um rico acervo de imagens. “O discurso de Bakhtin pode ser
estendido também aos textos artisticos não verbais, e ele mesmo, frequentemente, para explicar
exatamente o funcionamento do texto verbal, refere-se às artes figurativas, sobretudo à pintura”
(PONZIO, 2017, p. 39).
As atividades foram experimentalmente aplicadas em quatro versões articuladas conforme a
sequência de enunciados abaixo direcionados às crianças:
1 – “Faça um desenho ou pintura de sua livre preferência, você pode escolher o que quiser” –
sondagem que verifica o amplo leque que compõe o pensamento de relançe ou imediatos dos alunos;
2 – “Faça um desenho ou pintura sobre a natureza” - nesta segunda análise busca-se
entender olhares e visões que tem o aluno sobre a sua natureza ou outras contrapartidas de
naturezas distantes como as do mundo virtual;
3 – “Faça um desenho ou pintura sobre a natureza do lugar onde você mora” – prevê
chamadas conclusivas, que busca averiguar sinais e simbolos mais direcionados e circunscritos
sobre seu modelo local de natureza, assim como supostas sintonias do objeto idealizado e os objetos
imaginados nos pleitos anteriores;
4 – “Faça um desenho ou pintura sobre como as pessoas do seu lugar vivem” – com o mesmo
conjunto de intenções da chamada anterior, mudou-se apenas o direcionamento do olhar para a
sociedade em que o aluno está incluso.
As primeiras análises (ainda não aprofundadas) apontaram alguns fundamentos elementares
para o engajamento e aprimoramento de chaves de pesquisas futuras (mesmo aquelas imagens que
não mostraram aproximações com a realidade), assim como detectaram a necessidade de outros
momentos para desvendamento de enunciações ainda no obscuro (aqueles que menos apresentaram
o domínio tático nas artes figurativas). Nestas considerações iniciais a “geografia primeira” tal qual
se acomoda a filosofia primeira postulada por Aristóteles “prote philosophia” (BAKHTIN, 1993, p. 98) e
amplamente confidenciada por Bakhtin (Idem, p. 49):

[...] tenta descrever o Ser-evento como ele é conhecido pelo ato ou ação responsável, tenta descrever
não o mundo produzido por esse ato, mas o mundo no qual esse ato se torna responsavelmente
consciente de si e é realmente desempenhado - que uma filosofia primeira de tal tipo não pode seguir
construindo conceitos, proposições e leis universais sobre o mundo do ato responsavelmente realizado
(a pureza teórica, abstrata, do ato), mas pode apenas ser uma descrição, uma fenomenologia desse
mundo. Um evento pode ser descrito apenas participativamente.

Em uma verificação inicial das atividades de sondagens aplicadas em 11 salas de aula do 3º ao


6º ano do ensino fundamental, em escolas das redes municipais e particulares de três municipios da

NARRATIVAS
798

Baixada Maranhense foi possivel constatar uma multiplicidade de ideias e formas de olhares da vida
cotidiana. Criou-se um clima de aceitação e cordialidade com as crianças informando-lhes que os
objetivos do trabalho estavam nos mesmos mostrarem através de desenhos e pinturas como
percebiam ou o que achavam do lugar que estes conviviam.
Os critérios de seleção das imagens que compuseram os painéis temáticos (Anexo 01) não se
basearam no belo, no traço fino, na combinação ou no espojado das cores, mas sim na captação de
um pensamento exotopicamente traduzido que repassaram uma mensagem imediata (não
descartando, claro, a hipótese de outras subjacentes a mim e intencionais ao ato do retratado serem
buscadas em outros momentos), a marca de vivências, a atividade cronotópica do adulto ou do infanto
que revelam traços histórcos daquele substrato social.

3. DISCUSSÕES DA CRONOTOPIA DOS PAINÉIS TEMÁTICOS DAS PINTURAS E DESENHOS

Na presente discussão foram considerados cinco aspectos marcantes revelados dos textos
figurativos das crianças, sob os quais foram construídos paineis temáticos de acordo com as
informações em comum afinidade:

3.1 Painel 1: Construções suspensas em áreas de inundação

O padrão de construção de moradias suspensas em giraus em campos inundáveis são formas


de assentamentos humanos que circunscrevem uma referência bastante peculiar da Baixada
Maranhense e lembrada pelas crianças, principalmente aquelas moradoras dos vilarejos ou franjas
urbanas que se limitam às chamadas beiras do campo, as quais se ergueram historicamente sob as
planicies fluviais e ainda hoje resistem ao ímpeto das mudanças sociais que conclamam os padões de
moradias modernos com o uso de sofisticados materiais a base de alvenaria.
Retratos históricos de estudos da arqueologia nos mostram que os ancentrais indigenas
também foram precussores desses tipos de habitações na microrregião da Baixada Maranhense,
ficando claro a transmissão destas heranças históricas, o que fez Bakhtin metabolizar de suas raízes
teóricas em Goethe e Spinoza: “as coisas estavam no tempo e em poder do tempo, e ele [o retratado]
não as via [...] o poder desse tempo é todavia um poder produtivo e criador [...] São marcadas com a
chancela do tempo, são impregnadas de um tempo que lhes dá forma e sentido” (BAKTIN, 1997, p. 262-
263).
Neste primeiro painel configura-se na sequência numerica: 1 - Um bar flutuante, tipo de
construção de pontos balneários que vem movimentando o turismo local; 2 - As chopanas, são tipos
de abrigos mais rústicos (sol e chuva) e improvisados que funcionam como para as atividades de
pesca e beneficiamento do pescado; 3 - Comunidades vivendo em casas suspensas de estilo palafitas,
e, por ultimo: 4 - Moradia ribeirinha construída no interior do rio Pericumã, popularmente denominada
como ilha.

NARRATIVAS
799

3.2 Painel 2: As formas de trabalhos específicas das atividades primárias

As fortes relações do homem baixadeiro com a natureza se expressam por um conjunto de


vivências centenárias no tempo anteriormente já frizadas, e ainda hoje, bem coadunadas nos atos
enunciados dos desenhos das crianças partidos do cotidiano. Tais percepções são mais irradiantes
onde a natureza se apresenta de forma mais robusta e influente, como algumas comunidades rurais
ou cidades pequenas, cujos municípios ainda apresentam suas populações eminentemente rurais, sob
um urbano ainda pouco expansivo. A dialogia desta busca mostrou que: “Para o falante nativo, a
palavra não se apresenta como um item de dicionário, mas como parte das mais diversas
enunciações dos locutores A, B ou C de sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria
prática lingüística” (BAKHTIN, 2006, p. 96).
O painel faz alusão: 1 - A coleta da fruta nativa bacuri que se faz uma prática econômica
comum em lugarejos onde as florestas ombrófilas ainda são remanescentes; 2 - A caça, que também
acontece, tanto para manter o sustento familiar como para o tráfico do comércio ilegal; 3 e 4 - O
extrativismo animal (pesca em águas doces) é a principal atividade de subsistência das comunidades
ribeirinhas (nos posters, a pesca de caniço e de linhavão).

3.3 Painel 3: As vivências comunitárias dos campos e das cidades

Formas urbanas e rurais, estilos de vida, estrutura e arquitetura das moradias, opções e
culturas do lazer foram práticas sociais passíveis de demonstrações, cujas inspirações partiram de
“vislumbres de horizontes” (Ponzio, 2017, p. 31) próprios que engendram o binômio espaço-tempo com
a vida comunitária em discurso aquitetônico estável. Algumas projeções levaram em conta as formas
do micro-relevo das planícies, vias de acesso intra ou inter municipal e recursos hídricos.
A paisagem verbal, a descrição do ambiente de vida, isto é, a natureza, a cidade, o cotidiano,
etc., tudo isso não figura na obra como modalidades do acontecimento aberto da existência, como
elementos incluídos no horizonte do herói e perceptíveis à sua consciência (em seu procedimento
ético e cognitivo) (BAKHTIN, 1997, p. 112).
Na pintura nº 1 – Vista aérea da estrutura viária de um povoado focada nos caminhos ou
trilhas entre as moradias, talvez configurado em áreas pantanosas; 2 – Outro povoado representado
no estilo de construção moderno (com pavimento), vivências em família e lazer, rodovias como fontes
de referências geográficas; 3 – Uma residência simples de estilo rural configurada em uma margem
de rodovia; 4 – Fachada da cidade de Cajari, destacada pela recorrente referência geográfica do cais,
arena portuária que margeia o rio Maracu; 5 – Aspecto do urbano mais avançado na microrregião,
cruzamento de avenidas ladeadas por vivências em ritmo comunitário e o lazer mundialmente popular
do futebol; 6 - Os oiteiros (outeiros ou colinas) são elevações topográficas comuns na geomorfologia
suave ondulada que predomina nas porções de terras firmes do local.

NARRATIVAS
800

3.4 Painel 4: O surrealismo invadido da era tecnotrônica

O mundo virtual também esta presente no imaginário infantil. As fantasmagorias lembradas


das mídias eletrônicas atravessam o pensamento real, navegam na magia e passam a ter expressão
no dia-a-dia dos enunciados grupais, por estarem enraigados na prática do brincar pós-moderno. Os
mecanismos de acesso a estes meios são os sites de internet, programas de informática, jogos
eletrônicos de videogame e celulares ou os globalizados programas de tv. Em uma previsibilidade tão
surpreendente e impressionante, logo nos tempos de sua literatura embrionária Bakhtin em sua
escrita K Filosofii Postupka de 1920-24 advertitu alguns riscos de ameaça à saúde mental de crianças
(tão atual na nossa realidade, como assola hoje o trágico jogo eletrônico da baleia azul):

[...] ocorre no mundo da tecnologia [...] a que se submete seu impetuoso e irrestrito desenvolvimento
[...] acabe contribuindo para piorar notavelmente as coisas em vez de melhorá-las [...] aperfeiçoam-se
intrumentos que, como resultado, se tranformam, de meio de defesa racional em uma força terrificante,
letal e destrutiva. É aterrorizante tudo que é tecnológico [...] ele pode repentinamente irromper nesta
unidade singular da vida de cada um como força irresponsável, deletéria e devastante (BAKHTIN, 2010, p.
49-50).

Neste primeiro registro, (nº 1) - Tem-se nos traços do desenho um adolescente em um fundo
de arquitetura urbana exótica, apresentando semelhanças do personagem de desenho animado
japonês Naruto; 2 – Uma cena noturna e tenebrosa, também exótica e marcada por uma fantasiosa
criatura voadora com uma parte do corpo morcego, outra serpente, cujo registro escrito visível
“Dragon” deixa ainda no obscuro a desejada descodificação; 3 – Simbologia de uma linguagem
desconhecida, verbalizada de um coração em chamas encravado com quatro lâminas (talvez espadas
ou punhais); 4 – Impressão fúnebre e sinistra formada por uma caveira humana cruzada com ossos.

3.5 Painel 5: Os enunciados curiosos e ainda passíveis de busca de significados

Esta sondagem inicial fez emergir a necessidade de novos diálogos junto a alteridade buscada
na geografia da infância para aprofundamento da análise interpretativa de algumas expressões
indicadas das escrituras pictóricas infantis, talvez a necessidade de “uma ‘descrição participante’,
uma fenomenologia não viciada por teoreticismo” (PONZIO, 2013, p. 16).
Mesmo aquelas ações de pensamento que, de imediato, mostram clareza de sinais ou signos
ao espectador, as descodificações de alguns cenários e relações trazem encenações de mensagens
ainda incógnitas. Neste ultimo painel, tratou-se de por em destaque algumas impressões mal
esclarecidas no jogo cronotópico, mas tendenciosas pelo despertar da curiosidade de signos e
indícios.
O processo de descodificação (compreensão) não deve, em nenhum caso, ser confundido com
o processo de identificação. Trata-se de dois processos profundamente distintos. O signo é
descodificado; só o sinal é identificado. O sinal é uma entidade de conteúdo imutável; ele não pode

NARRATIVAS
801

substituir, nem refletir, nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico para designar
este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este ou aquele acontecimento (igualmente preciso e
imutável). (BAKHTIN, 2006, p. 94).
Na ordem disposta, o nº 1 - Deixa a ideia de indecifrado fenômeno global passivel de medição
ou verificação com por meio instrumental e tecnológico; 2 - Uma sequência de atos curiosos (por
sinal responsável à alteridade) derivados de uma ação central ou de várias pessoas relacionadas a
mesma ação inicial enunciada; 3 – Um recurso hídrico tipicamente local, prismado sob uma
intervenção humana (algo semelhante a um lago ou pântano interceptado por uma cerca, aparentando
um tipo de extrativismo comum e predatório chamado pesca de tapagem; 4 - Neste último, uma cena
triste, talvez atribulada pela estiagem anual, fenômeno climático bem rigoroso no lugar. O curioso é
que foram colocados pássaros, com sinais marcantes dos urubus, animais assíduos de quase comum
convívio no meio urbano local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possivel constatar que a leitura de textos figurativos sobre a alteridade de crianças pode
se fazer uma técnica válida para as prospecções inicias junto ao pensamento infantil e busca de
chaves de pesquisas, sem deixar de frizar que a ação deve ser conjunta a um cabedal metodógico
denso e devidamente acurado à complexidade do objeto investigativo. Por outro lado, o olhar
bakhtiniano na busca cronotópica do tecido cultural mostrou celeridade como ferramenta teórica de
interpretação, no que foi possivel a abertura de várias fronteiras de ampliação dialógica e um novo
leque de enfoques a serem experimentados como rumos procedimentais da pesquisa em andamento.

REFERÊNCIAS

AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal (tradução do francês de Maria Ermantina Galvão G. Pereira / revisão da
tradução Marina Appenzellerl). 2 cd. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Coleção Ensino Superior).
_________. Marxismo e filosofia da linguagem. 12 ed. (tradução francesa de Michel. Lahud e Yara Frateschi Vieira).
São Paulo: Hucitec, 2006.
_________. Para uma filosofia do ato (tradução da edição americana de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza).
1993.
_________. Para uma filosofia do ato responsável. (Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto
Faraco). São Carlos: Pedro & João Editores, 2010, 160p.
GEGE. Palavras e contrapalavras: glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2013. (Caderno de Estudos I para Iniciantes).

NARRATIVAS
802

PONZIO, A. O cronótopo na obra de Bakhtin In: Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGE. Palavras e
contrapalavras: circulando pensares do Círculo de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. (Caderno de
Estudos V para Iniciantes).
________. Visões do texto. (Tradução de Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti e Giorgia Brazzarola). São Carlos: Pedro &
João Editores, 2017.

ANEXO 01: PAINÉIS TEMÁTICOS DAS PINTURAS E DESENHOS

Painel 1: Construções suspensas em áreas de inundação

NARRATIVAS
803

Painel 2: As formas de trabalhos específicas das atividades primárias

Painel 3: As vivências comunitárias dos campos e das cidades

NARRATIVAS
804

Painel 4: O surrealismo invadido da era tecnotrônica

NARRATIVAS
805

Painel 5: Os enunciados curiosos e ainda passíveis de busca de significados

NARRATIVAS
RESUMO
806

O presente trabalho discorre sobre algumas

REPRESENTAÇÃO reflexões sobre a relação entre ser professora do


ensino fundamental de escola pública, ser
pesquisadora de Bakhtin, ser cidadã ítala-brasileira

DISSIMULADA,
e ser humana. Trata, portanto, da relação entre o
posto de trabalho que ocupo e as forças a que é
submetido, a representação (forçosamente
dissimulada por vezes) dos atos decorrentes deste

SINGULARIDADE E EU, trabalho como se fosse ato ritual e Eu e a minha


singularidade. É uma narrativa que, antes de tudo,
proponho a escrever como forma de analisar a

PROFESSORA
relação entre responsabilidade e os meus atos
enquanto profissional representante de um sistema
público de educação na relação direta como
formadora de meus alunos, em conflito com o
sistema educacional. Como consequência, entendo
que os limites próprios e circunscritos a esta
situação devem ser debatidos em sala de aula, já
que dizem respeito à nossas vidas – dos meus
Maria Irma Chahine GALLO 121
alunos e a minha.

Palavras-Chave: Representação. Singularidade.


Formação

INTRODUÇÃO

There is nothing more fragile than the word [...]


In The Dialogic Imagination – four essays

S
ou parte do contingente de profissionais da educação que constantemente procuram se
capacitar, e tenho uma especial predileção pela palavra, seu significado, seu poder de nomear.
Ao mesmo tempo, incomoda-me perceber o quão difícil é organizar um sistema de
educação alinhado ao projeto de país, construído consensualmente, visando uma determinada
soberania nacional. O que percebo são os interesses de algumas minorias, o pouco caso de outros
grupos sociais, enfim, uma sociedade fragmentada. E que não se respeita.
Seria cômodo para mim não levantar questionamentos, distanciar-me de conflitos,
simplesmente realizar ações educativas, tal como as que poderia reproduzir, recebidas em cursos de
capacitações que já me referi, pensadas por outros. Segundo Bakhtin (apud Amorim, 2012, p.38) “[...] É
tentando compreender toda nossa vida como representação dissimulada, e cada um de nossos atos
como ato ritual, que nos tornamos impostores”.
Vivendo dessa forma passiva, renunciaria à minha singularidade imperativa; fosse assim,
seria um impostor cujos atos seriam justificados pela representação do cargo que ocupo (BAKHTIN

121Especialista em Ética, Valores e Cidadania na Escola, USP, São Paulo, SP; Professora PEB II - anos iniciais - da SME da Prefeitura Municipal
de Campinas-SP. E-mail: mimichahine@gmail.com

NARRATIVAS
807

apud AMORIM, 2012), isto é, professora, formadora de uma nova geração de brasileiros. Fosse assim,
me assemelharia a tantos trabalhadores os quais critico.
No entanto, sinto que tenho o dever de pensar. E por várias razões, principalmente porque
acredito que há um sentido para a existência da coletividade humana. Do contrário, sentir-me-ia
angustiada e aterrorizada: poderia discutir mais profundamente este ponto, mas não é o propósito
deste texto. E porque reconheço a potencialidade do ser humano.
Portanto, em minha singularidade, sou professora que sente o dever de pensar um
pensamento ético, o qual apresento e divido com meu aluno, na interação que procuro estabelecer
pelo diálogo, em que alteridades produzem conflitos que são manejados por mim em um círculo, penso
eu, virtuoso, pensando na formação desse aluno.

Já o ato de pensar um pensamento é necessário não por ser um necessidade lógica, mas por uma
necessidade ética, que Bakhtin designa por um termo específico: nuditel’nost’.[...] termo inusitado no
russo moderno que significa constrangimento ou obrigação proveniente de uma convicção interior (e
não de um constrangimento forçado) e que tem uma dimensão dinâmica de operatividade. (AMORIM,
2012, p.23)

Espelhando-me em Bakhtin, busco alinhar a questão moral com a linguagem no diálogo, já que
assumo ser meu dever por ser professora, e intento que o meu pensamento seja ético. Tomo a
palavra no diálogo como material exploratório da minha lida diária no ambiente escolar, e que
permite realizar a minha singularidade neste lugar.

Bakhtin trabalha na espessura semântica das palavras. Ele torna presentes a etimologia, a composição
das palavras, sua conotação. [...] Bakhtin reatribui um sentido literal – o mais próximo possível de sua
composição – a palavras russas existentes, reutiliza antigos termos [...] etc. Aqui, mais do que em
outros textos filosóficos, o raciocínio esposa os dados da língua. (AMORIM, 2012, p.21)

Tal comportamento leva colegas, pares, pais a me interpretarem como possuidora de uma
prática tradicional (entenda-se ultrapassada), e nada atraente para os estudantes. A meu favor tenho
os resultados relativos ao desenvolvimento da aprendizagem de minha turma de alfabetização. Penso
que a escola está repleta de ações educativas, mas não de atos educativos. Atos enquanto produto do
pensamento ético, válido e inserido no contexto (Amorim, 2012). Entendo que a nossa sociedade já
chegou ao limite do suportável quando valoriza “celebridades” por simplesmente agirem de forma
ritual, isto é, representando na vida real os mais diversos ícones de um mundo virtual, cujas virtudes
se encontram acima da moral.

[...] Bakhtin distingui ato de ação. A ação é um comportamento qualquer que pode ser até mecânico ou
impensado. O ato é responsável e assinado: o sujeito que pensa um pensamento assume que assim
pensa face ao outro, o que quer dizer que ele responde por isso. Uma ação pode ser uma impostura: não
me responsabilizo por ela e não a assino. Ao contrário, escondo-me nela. (AMORIM, 2012, p. 22)

NARRATIVAS
808

Em muitos espaços escolares, tal postura não é bem vista, ora sendo considerada
pedantismo, ora incomodando porque o esperado é oferecer aos alunos aulas essencialmente ludicas.
O que considero uma distorção da teoria que subjaz a tal proposta. Nesse sentido, penso ser cabível a
criação de escolas para pais, porque percebo um descompromisso de ordem intelectual deles perante
seus dependentes e a fragilidade em que se encontram os profissionais da educação para
enfrentarem este embate. Fragilidade é uma palavra a ser pensada, já que há muitas intenções por
trás disso.
Não poderia deixar de dizer isso aqui, porque há, na escola, um certo codice de conduta a fim
de se evitar conflitos com as famílias, quando na verdade, deveríamos ter espaços formativos para
famílias que necessitam dessa formação, no caso, aprenderem a ser pais, cuidadores, responsáveis
pelo desenvolvimento intelectual de seus dependentes. Como também governantes compromissados
com um projeto de país, em lugar de favoritismos políticos.
Considero ser necessário esta discussão no Brasil nos dias atuais, em que os sistemas de
ensino há algum tempo vêm sofrendo certos ajustes, ocasionando menos benefícios para a sociedade
do que o necessário. Ou quiçá isto.
Com tantas turbulências políticas, inseridas em um contexto permeado por palavras com
intenções das mais variadas, entonações oblíquas, difícil se torna compreender as “verdades” que se
afirmam. A mídia veicula tantas “falas” e “discursos pré-formatados”, que é possível perceber que
alguns atores políticos entoam afirmações que agiram como agiram porque se fundamentaram em
“istina”, outros legitimam suas ações pela “pravda”. Se é que posso ousar em criar tais metáforas.
Ao longo desses anos venho me constituindo como professora, procurando realizar práticas
reflexivas buscando no diálogo a escuta, procurando ouvir o “eco” das leituras e pesquisas feitas, das
vivências realizadas em cursos e capacitações. O que me é muito difícil, porque penso que “viver” a
alteridade pressupõe dominar conhecimentos relativos ao meu papel social que, ao ampliar minha
consciência, faz com que eu seja responsiva, eticamente. Esta ideia leva-me a refletir sobre o cargo
que ocupo, o modo como devo representa-lo, enfim.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nessa pequena, mas variada trajetória de vida e de formação, posso observar a grandeza
própria do trabalho que realizo, o que me permite enxergar o quanto ainda necessito compreender
sobre a criança em relação ao seu desenvolvimento, aprendizado e processo formativo, sobre as
possibilidades de articulação entre teoria e prática, sobre pensamento e linguagem, sobre
responsividade ética.
Bem como o sistema educacional brasileiro.
Considerando este “excedente de visão”, com o qual produzo estas linhas, minha intenção é
convencer meu leitor sobre a dimensão da educação na vida de um sujeito, e mais especificamente, a
necessidade do ativismo no exercício profissional de um(a) professor(a) alfabetizador(a), já que

NARRATIVAS
809

trabalho com os anos iniciais da educação escolar brasileira. E que pressupõe o conhecimento sobre
a relação entre pensamento e linguagem em contexto de mediação socializado, no caso, a escola.
Entendo que o significado das palavras, em última instância, advém da unidade do pensamento verbal.
A palavra, ao generalizar a realidade a qual reflete, promove a circulação de significados no
interior dos processos de comunicação e intercâmbio social. A educação escolar, por exemplo, tem
por pressuposto fazer uso de um sistema mediador, no qual se insere um profissional habilitado, para
a transmissão racional e intencional de experiências e pensamentos durante o trabalho com o
educando. Enfim, como está escrito na epígrafe acima, não há nada mais frágil do que a palavra. Se,
para um dos extremos pode-se afirmar que os políticos bem o sabem, no outro pode-se afirmar que
os estudantes se “perdem” ao se verem obrigados a usá-la. Compreendo meus próprios limites, e me
esforço para distanciá-los o mais que posso. E continuo a pensar como posso contribuir para com a
educação dos alunos em processo de alfabetização, a fim de que tenham êxito na construção de um
pensamento orientado, que influencie, eticamente, a realidade brasileira.

REFERÊNCIAS

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Paulo/SP. Editora Contexto, 2012.
ANDRE, M. Pesquisa em Educação: Buscando Rigor e Qualidade. Cadernos de Pesquisa,n.113,p.51-64,julho/2001.
Disponível em www.scielo.br/pdf/cp/n113/a03n113.pdf Acesso em 26 jul. 2011.
BAKHTIN, M. M. The Dialogic Imagination: four essays. Austin: University of Texas Press, Box 7819, 1981.
_____. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª edição. São Paulo/SP. HUCITEC Editora, 2006.
_____. Para uma filosofia do ato responsável. 2ª edição. São Carlos/Sp. Pedro & João Editores, 2010.
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FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, SP. Editora Paz e Terra, 2010.
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PRADO, G.V.T; CUNHA, R. C. B (Orgs.).Percursos de Autoria: exercícios de pesquisa. Universidade Estadual de Campinas
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PRADO, G.V. T. (Org) et. al. Metodologia narrativa de pesquisa em educação: uma perspectiva bakhtiniana. São
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RIBAS, C. C. C. FONSECA, R. C. V. Manual de Metodologia Opet. Curitiba, PR. Opet Editora 2008.
SAUSURRE, F. Curso de Linguística Geral. 34ª edição. São Paulo, SP. Editora Cultrix, 2012.
SMOLKA, A. L. B.. NOGUEIRA, A. L. H. (Orgs) Emoção, Memória e Imaginação – a constituição do desenvolvimento
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NARRATIVAS
810

SMOLKA, A. L. B. GOÉS, M. C. R. de (Orgs). A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a construção do


conhecimento. 12ª edição. Campinas, SP. Editora Papirus, 2013. SMOLKA, A.L.B. SILVA, E.T. (Et.al). Leitura e
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social da mente. São Paulo, SP. Editora Martins Fontes, 1998.

NARRATIVAS
RESUMO
811

Este artigo traz elementos de uma pesquisa

A DEFINIÇÃO DE teórico-prática interdisciplinar realizada em salas


de aula do 6º ano do Fundamental II no ensino
público do Estado de São Paulo, que considera o

FOTOGRAFIA NO
aluno um sujeito discursivo ativo e dialógico no
processo de aprendizagem, cujo discurso merece
atenção e análise do professor que pretende ser
um mediador do desenvolvimento da inteligência

DISCURSO DE ALUNOS DO das gerações em idade escolar. A análise de


discurso em questão faz parte de uma sequência
didática mais ampla estruturada por gênero de

ENSINO BÁSICO: elementos de


discurso textual, ancorada nas disciplinas escolares
Leitura e Produção de Texto, Geografia e uma
articulação com a Fotografia, mas o escopo do
artigo se restringe ao primeiro registro escrito
uma pesquisa interdisciplinar em sala de feito pelos alunos, em que respondem a seguinte
pergunta diagnóstica: defina o que é fotografia e
aula identifique dois elementos que mostrem sua
importância na sociedade em que vivemos.

Palavras-Chave: Fotografia. Análise de Discurso.


GÂMBERA, José Leonardo Homem de Mello 122
Geografia. Interdisciplinaridade

A IMPORTÂNCIA DA FOTOGRAFIA PARA A CIÊNCIA GEOGRÁFICA

A
ciência geográfica sempre envolveu a descrição, a análise e a espacialização do embasamento e
dos desdobramentos socioculturais das sociedades humanas, preocupando-se com a
representação gráfica ou imagética destes processos, seja em mapas, cartogramas, gráficos,
desenhos ou fotografias.
A partir do século XIX, com o nascimento e avanço da técnica fotográfica e suas derivantes
tecnológicas como o cinema e o vídeo, a imagem técnica ganhou importância como representação e
evidência das diversas paisagens constituídas pelo homem a partir dos recursos naturais. Obras de
Paul Vidal de La Blache, Carlos Miguel Delgado de Carvalho e Pierre Monbeig, entre outros autores da
primeira metade do século XX já continham ilustrações a partir de documentos fotográficos ou
reproduções diretas de fotografias, em um olhar que buscava desvendar e demonstrar elementos da
paisagem estudada. Em uma obra sobre metodologia do ensino geográfico desta época, já constava o
papel da fotografia no ensino e inclusive recomendações específicas:

A fotografia, quando significativa e bem escolhida, é evidentemente o melhor auxiliar do atlas e do texto.
A infinidade de coisas que ela pode reproduzir é por si só uma lição: a questão é fazê-la 'falar'. A
fotografia quando incluída no compêndio deve ser incluída no texto com o qual tem relações. […] Cabe

122Mestre em Geografia Humana pelo Departamento de Geografia da FFLCH-USP. Produtor Audiovisual e Professor de Geografia no Ensino
Fundamental II na rede particular de ensino. E-mail: leogambera@gmail.com

NARRATIVAS
812

ao professor não deixar escapar as ilustrações do assunto em estudo. A vista submetida à observação e
ao estudo do aluno deve obedecer aos seguintes princípios: a) Ser uma reprodução da verdade e não de
uma circunstância excepcional apresentada como usual. […] b) Ser sempre acompanhada de um amplo
comentário. […] c) Ser, o mais possível, uma reprodução artística, bem feita, bem apanhada. […] Quando
entregue ao exame do aluno, o professor, além dos 'dizeres' escritos ou orais, deverá provocar
comentários sobre tudo quanto reproduz a fotografia. Há vistas documentadas que valem uma aula
inteira. […] Todas as vistas são acompanhadas das indispensáveis explicações salientando os pontos de
interesse. […] A experiência prova que várias vistas do mesmo assunto, quando não são fases de um
fenômeno, tornam imprecisa e enfraquecem a imagem. (DELGADO DE CARVALHO, 1925, p. 141-143)

Apesar de não citar nada que inclua o aluno como autor da fotografia, Delgado de Carvalho
(1925) já dava grande valor à utilização da mesma, destacando a importância de um uso responsável
em livros ou em sala de aula, com uma seleção bem feita e uma problematização constante por parte
do professor, detectava que utilizada sem um sentido didático planejado e direcionado, perdia valor no
ensino. Para ele, fazer a imagem ‘falar’ ao aluno implicava em vários aspectos condicionantes: a
qualidade da fotografia, o tipo de fenômeno retratado, a articulação com mapas etc.
Na década de 90 do século XX, as linguagens e códigos seriam incorporadas sucessivamente
na legislação de educação tanto em nível nacional como em nível estadual, abrangendo além das
linguagens audiovisuais, as tecnologias da informação e comunicação que ganharam importância com
o despontar da internet e da disseminação do computador. Segue abaixo um trecho do Artigo 36º da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que explicita o que indicamos acima:

§ 1º - Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao


final do ensino médio o educando demonstre: I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que
presidem a produção moderna; II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem. (BRASIL,
1996)

Outros exemplos seriam a Portaria MEC Nº 438 (28/05/1998), a Resolução CNE/CEB Nº 3


(26/06/1998), e o Decreto Nº 3.276 (06/12/1999), todos incluindo as novas linguagens e tecnologias
como uma das diretrizes curriculares na formação de professores, nos processos de ensino e
aprendizagem, ou nas avaliações discentes de âmbito nacional.
Mais recentemente, pesquisadores europeus produziram a Declaração de Braga, que nos
indica rumos da educação no século XXI, que consideramos relevante destacar:

Os códigos e linguagens característicos do mundo emergente apelam a um conceito de literacia que


tenha por base não apenas a leitura, a escrita e o cálculo, mas também as imagens, os sons, a
informação e as redes e, mais amplamente, as formas de comunicação digital e interactiva.
(CONGRESSO NACIONAL SOBRE LITERACIA, MEDIA E CIDADANIA, 2011, p. 1)

Esta declaração reflete, a nosso ver, a tendência que passou a prevalecer no mundo sobre o
papel que os códigos e linguagens desenvolvidos historicamente pela humanidade passaram a ter na
articulação do currículo escolar como um todo.

NARRATIVAS
813

SONDAGEM INICIAL COM PROFESSORES

Durante nossa pesquisa de dissertação de mestrado, realizamos no início deste estudo uma
sondagem junto a algumas escolas para prospectar como a tendência apontada se manifestava no
ensino público.
Na verdade, procurávamos entender como os professores de Geografia e de outras
disciplinas lidavam com a questão dos códigos e linguagens, enfocando particularmente a linguagem
audiovisual. Queríamos saber como era a utilização dos recursos audiovisuais na escola
contemporânea, o posicionamento do professor perante os efeitos da utilização destes recursos em
sala de aula e ainda realizarmos uma prospecção de escola em que pudéssemos verificar aquilo que a
Declaração de Braga aponta sobre a literacia e suas implicações nos processos de aprendizagem das
gerações atuais na escola.
Tivemos acesso a professores de Geografia e de outras disciplinas do currículo escolar do
ensino básico público e particular de vários modos, como o contato com ex-colegas de graduação, de
pós-graduação, ou mesmo indicação de outros professores que foram se interessando pelo assunto. A
sondagem foi realizada via questionário entregue pessoalmente ou via email, com 6 perguntas, para
uma amostra de 34 professores, dentre os quais 24 mulheres e 10 homens, por intermédio da qual
obtivemos dados para uma análise inicial de caráter qualitativo da situação em relação a utilização de
recursos, comumente denominados, audiovisuais na Educação Básica.
Dentre o rol de perguntas deste questionário, que serviu como “[…] um instrumento de coleta
de dados, constituído por uma série ordenada de perguntas […] respondidas por escrito e sem a
presença do entrevistador.” (MARCONI & LAKATOS, 2010, p. 184) uma pergunta era de múltipla escolha
e as outras cinco perguntas abertas.
Sem a pretensão de fazer uma ampla amostragem quantitativa, julgamos suficiente a amostra
assim caracterizada: professores atuantes em 14 escolas, sendo 12 com formação acadêmica variada,
lecionando em diferentes eixos curriculares, atuando profissionalmente em 4 municípios da Região
Metropolitana de São Paulo, 2 do interior do Estado de São Paulo e 1 da Região Metropolitana do Rio de
Janeiro.
Adotamos a concepção de pesquisa qualitativa que admite:

[…] uma participação mais próxima e direta do cientista com o sujeito de estudo. Parte-se do
pressuposto de que o conhecimento detalhado de uma pequena amostra revele processos gerais do
todo que a circunda. Assim, perde-se na quantidade da amostra, mas se ganha no detalhamento dentro
da amostra, sem a preocupação com a validade externa dos resultados para toda a população. (VOLPATO
et al, 2013, p. 146-147)

A sondagem inicial feita junto aos professores nos revelou que apesar de vivermos em um
contexto sociocultural cada vez mais midiatizado e imagético, a educação básica ainda não trata as
linguagens audiovisuais de forma técnica e científica, incorporadas em uma metodologia de ensino
voltada ao desenvolvimento cognitivo e cultural dos alunos.

NARRATIVAS
814

Esta sondagem foi uma das primeiras atividades de pesquisa que empreendemos e que foi
importante para verificarmos aspectos da concepção que circula no ambiente escolar acerca dos
recursos audiovisuais e da prática de ensino apoiada neles. As principais informações obtidas com
esta sondagem qualitativa foram que o professor, em sua maioria: vê os recursos audiovisuais apenas
como apoio ao conteúdo, e não como linguagem a ser explorada em forma de processo; e alegam
dificuldades de infraestrutura, acesso e tempo para planejar atividades que os envolvam.
Esta avaliação qualitativa nos permitiu ver que a questão da linguagem audiovisual também se
insere em uma ampla problematização sobre formação de professores, que não é o foco imediato
desta dissertação, mas que iremos ponderar alguns breves aspectos.
Se o professor não se vê como um sujeito discursivo perante as linguagens audiovisuais, que
vá além do consumo de imagens, mas também as leia criticamente e seja capaz de criá-las por si
mesmo de forma metódica e consciente, será muito difícil que ele possa estimular o seu aluno a
desempenhar este papel, muito menos assimilar o processo de formação de conceitos científicos
através dessas linguagens. Nas tendências identificadas pelo Ministério da Educação (MEC) nos
"Referenciais para Formação de Professores" (BRASIL, 2002) aparecem aspectos das novas
demandas perante a escola:

[…] as transformações científicas e tecnológicas que ocorrem de forma acelerada exigem das pessoas
novas aprendizagens. Esse contexto coloca enormes desafios para a sociedade e, como não poderia
deixar de ser, também para a educação escolar. Assim, algumas novas tarefas passam a se colocar à
escola, não porque seja a única instância responsável pela educação, mas por ser a instituição que
desenvolve uma prática educativa planejada e sistemática durante um período contínuo e extenso de
tempo na vida das pessoas. (BRASIL, 2002, p. 23)

Dentre as ‘novas tarefas’ apontadas, nos parece imprescindível que a escola integre de forma
mais frequente as linguagens audiovisuais e as tecnologias da informação nos processos de trabalho
dos professores e também nos processos de ensino aprendizagem dos alunos, propiciando de forma
mediada e dialógica a contextualização, reflexão, expressão e compreensão com e através destes
meios de comunicação. Mas, para isto, é necessário que esta integração seja articulada também aos
processos de formação de professores em nível superior, o que nem sempre se verifica.
Ainda sem o surgimento da internet, que expandiu de forma avassaladora as linguagens
audiovisuais e muitos outros tipos de informação cultural, alguns autores já enxergavam na década de
70 do século XX as mudanças em curso e as novas demandas por vir:

Sem uma compreensão da gramática dos meios de comunicação, é impossível ter esperança de se
atingir uma consciência contemporânea do mundo em que vivemos. […] A quantidade pura e simples de
informações transmitidas pela imprensa, revistas, filmes, rádio e televisão excede, de longe, a
quantidade de informações transmitidas pela instrução e textos escolares. Esse desafio destruiu o
monopólio do livro como auxiliar de ensino e abriu brechas nas próprias paredes da aula, tão súbito que
ficamos confusos, desconcertados. Nessa situação social violentamente perturbadora, muitos
professores encaram, naturalmente, os oferecimentos dos novos meios de comunicação mais como um

NARRATIVAS
815

passatempo, uma diversão, do que como educação. Mas isso não é uma atitude convincente para o
estudante. (CARPENTER, E. S. & MCLUHAN, H. M., 1971, p. 16-18)

Compreender estas diversas “gramáticas” comunicacionais é um desafio que exige um


esforço prático e reflexivo das várias áreas acadêmicas e científicas, no sentido de apoiar a
transformação da escola frente às dinâmicas que ocorrem no meio técnico científico informacional
comunicacional que caracteriza o contexto em que vive a sociedade atualmente. Consideramos que
este é um dos pontos fundamentais para a ressignificação da escola que deve propiciar as condições
necessárias para que as crianças e adolescentes nativos digitais do século XXI, possam assimilar de
maneira crítica os novos códigos e linguagens que permeiam os processos de aprendizagem no
mundo contemporâneo.

A PESQUISA NA ESCOLA: uma sequência didática estruturada por gênero textual

No processo da sondagem inicial conseguimos entrar em contato com o professor Ms.


Marcello Bulgarelli, que aceitou compartilhar suas aulas em duas turmas nas quais ministrava a
disciplina Leitura e Produção de Texto no Ensino Fundamental II, incorporando a questão da linguagem
audiovisual articulada ao ensino de Geografia em suas aulas. O referido professor nos possibilitou
assim uma prática que incluiu a observação participante e a co-docência, ao longo do segundo
semestre, no qual pudemos colaborar no trabalho de leitura que o professor vinha realizando,
aportando elementos para a aprendizagem da linguagem fotográfica com conceitos geográficos e
ambientais num projeto pedagógico de sequência didática.
A metodologia de sequências didáticas foi estruturada inicialmente a partir do ensino do
francês como língua materna, porém se adequa a qualquer trabalho renovador em sala de aula que
lide com situações de aprendizagem e com foco no desenvolvimento das capacidades de linguagem e
competências discursivas dos alunos. Segue uma definição abaixo:
Uma 'sequência didática' é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um
gênero textual oral ou escrito. […] Uma sequência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um
gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação. O
trabalho escolar será realizado, evidentemente, sobre gêneros que o aluno não domina ou o faz de maneira insuficiente; sobre
aqueles dificilmente acessíveis, espontaneamente, pela maioria dos alunos; e sobre gêneros públicos e não privados. As
sequências didáticas servem, portanto, para dar acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis.
(DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97)
A estrutura básica de uma sequência didática compreende a apresentação da situação de
aprendizagem, a produção textual inicial, os módulos de desenvolvimento e a produção textual final,
conforme o esquema da Figura 1.

NARRATIVAS
816

Figura 1 – Esquema da Sequência Didática

Fonte: DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004

Na apresentação da situação, os alunos recebem a descrição da tarefa de expressão oral ou


escrita que irão realizar e o gênero selecionado, de forma que fique claro e explícito o significado
daquela aprendizagem e as capacidades de linguagem a serem aprendidas para domínio daquele
gênero textual. O primeiro texto que elaboram dentro do gênero proposto é a produção inicial,
importante elemento diagnóstico do estágio cognitivo dos alunos, sua capacidade de expressão e
dificuldades apresentadas, e que permite ao professor ajustar o andamento da sequência “[…] às
possibilidades e dificuldades reais de uma turma" (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 98).
Nesta etapa temos uma produção inicial que é feita de acordo com o gênero proposto, mas
sem a imposição de algum modelo ou exemplo prévio a título de conteúdo, que invalidaria o
diagnóstico e a consideração do discurso livre do aluno.
Os módulos se constituem de atividades ou exercícios que dão aos alunos o instrumental
necessário para dominar o gênero de texto em questão. E na produção final o aluno põe em prática os
conhecimentos adquiridos.
Esta concepção de sequência didática pressupõe a escola como um: “autêntico lugar de
comunicação, e as situações escolares, como ocasiões de produção/recepção de textos.” (DOLZ &
SCHNEUWLY, 2004, p. 66). Isto implica em não “naturalizar” os gêneros como objeto fixo e foco
central do processo de aprendizagem, mas utilizá-los como instrumento para o desenvolvimento da
criança, como um sujeito discursivo que aprende certas capacidades de linguagem e as correlaciona
com outras possibilidades fora do gênero especificamente estudado, em uma situação de
comunicação pertinente e o mais próxima possível de verdadeiras situações de comunicação (DOLZ &
SCHNEUWLY, 2004, p. 67).
Outra referência teórica e metodológica considerada na sequência didática que
desenvolvemos neste trabalho para que a aprendizagem fosse significativa foi a resolução de
problemas e a capacidade de argumentar associada à busca desta solução. Propusemo-nos ir além da
mera resolução de tarefas ou exercícios no qual a ênfase é dada em técnicas “sobreaprendidas”, que
são aquelas que se tornam rotinas automáticas de uma prática contínua (ECHEVERRÍA & POZO, 1998, p.
16), para tratarmos de um problema de complexidade variada que motivasse os alunos ao longo do
semestre e abarcasse os vários exercícios e tarefas propostas, conforme é apontado:

NARRATIVAS
817

Ensinar a resolver problemas não consiste somente em dotar os alunos de habilidades e estratégias
eficazes, mas também em criar neles o hábito e a atitude de enfrentar a aprendizagem como um
problema para o qual deve ser encontrada uma resposta. Não é uma questão de somente ensinar a
resolver problemas, mas também de ensinar a propor problemas para si mesmo, a transformar a
realidade em um problema que mereça ser questionado e estudado. Assim […] a aprendizagem da
solução de problemas somente se transformará em autônoma e espontânea se transportada para o
âmbito do cotidiano, se for gerada no aluno a atitude de procurar respostas para suas próprias
perguntas/problemas, se ele se habituar a questionar-se ao invés de receber somente respostas já
elaboradas por outros, seja pelo livro-texto, pelo professor ou pela televisão. O verdadeiro objetivo final
da aprendizagem da solução de problemas é fazer com que o aluno adquira o hábito de propor-se
problemas e de resolvê-los como forma de aprender. (ECHEVERRÍA & POZO, 1998, p. 14-15)

Como ponto de partida da sequência didática, os alunos foram levados a considerar uma
pergunta-problema de forma argumentativa focando um público-alvo em uma mensagem de gênero
textual manifesto, expressando-se tanto verbalmente e por escrito quanto não verbalmente e por
imagem.
Tanto a resolução de problemas quanto a capacidade de argumentação são aspectos
importantes da cultura científica e fazem parte de seus procedimentos básicos, seja no campo das
ciências naturais ou humanas. A escola, vista como o local de transmissão e reprodução dos valores
culturais humanos e científicos assume um papel diferente, pois:

[…] se a educação científica pretende ajudar os jovens com as asserções produzidas pela ciência-em-
processo, a educação científica deve dar acesso para estas formas de argumentação através da
promoção de atividades escolares apropriadas e suas práticas discursivas associadas. Estas práticas, e
somente estas práticas, são a forma de introduzir socialmente os jovens nas normas da argumentação
científica através da qual eles irão ganhar confiança em seu uso e um conhecimento mais profundo de
sua função e valor. (DRIVER, NEWTON & OSBORNE, 2000, p. 288 – tradução nossa)

A sequência didática de nosso estudo aplicado considerou todos estes aspectos, além de
incorporar princípios metodológicos de aprendizagem mediada de Reuven Feuerstein e dialogicidade a
partir das reflexões filosófico - linguísticas de Mikhail Bakhtin (2011).
Na Tabela 1 apresentamos uma síntese e estrutura geral da sequência didática trabalhada em
nosso estudo.

Tabela 1 – Descrição da Sequência Didática trabalhada em sala de aula


Manifesto aos professores do Brasil
Título da Sequência
em prol das futuras gerações
Problema a ser estudado nesta Que mensagem você daria aos professores
sequência didática (proposto a do Brasil para que a sociedade brasileira
partir dos conceitos contidos na atual garanta a Terra para todas as futuras
disciplina envolvida) gerações de Homens?
Gênero de Discurso + Gênero acadêmico argumentativo

NARRATIVAS
818

Capacidade de Linguagem a
serem trabalhados
Gêneros textuais a serem
trabalhados Manifesto e Fotografia
Escreva um Manifesto aos professores do
Instrução para elaboração Brasil, para que a sociedade brasileira atual
inicial garanta a Terra para todas as futuras
gerações de Homens
Fonte: GÂMBERA, 2013

O problema criado para esta sequência envolve um esforço direcionado para: mobilizar o
aluno a ter voz no processo educativo em diálogo com o professor, fazer com que ele expresse seu
sentimento sobre o que ele vive em sala de aula, projetar o que ele espera para o futuro da Terra e
das novas gerações, e, mobilizar o aluno como sujeito discursivo para assimilar com mais facilidade
conteúdos de língua portuguesa, geografia e fotografia.
O gênero de discurso acadêmico e a capacidade de linguagem argumentativa foram
selecionados por serem classificados como gêneros acadêmicos apesar de se desenvolverem na
esfera escolar e que mobilizam de maneira direta altas funções intelectuais que, como encontramos
em Vigotski (2009), dão sustentação à aprendizagem do pensamento científico que é fundamental
para a tomada de consciência nos processos de desenvolvimento da infância e da adolescência.
A articulação do gênero textual verbal Manifesto e do gênero não verbal Fotografia foi feita
neste estudo, pois ambos são desconhecidos dos alunos e cuja aprendizagem possibilitaria que
observássemos o processo de aquisição de novos conhecimentos, numa metodologia de aplicação das
referências teóricas do modelo de sequência didática adotado.
A oportunidade de realizar a pesquisa no espaço escolar, em tempo real de funcionamento
regular, verificando junto a duas turmas de alunos como ocorre a aprendizagem de diversas
linguagens simultaneamente no Ensino Fundamental II, enriqueceu o projeto de nosso estudo e
agregou novas possibilidades de análise muito mais complexas do que inicialmente consideramos.
A etapa do trabalho de aplicação em sala de aula realizou-se ao longo de um semestre,
computando 21 dias alternados, totalizando 44 horas-aula. Esta carga horária incluiu o
acompanhamento de 3 reuniões de Conselho de Classe e 4 saídas de trabalho de campo com os
alunos. É preciso esclarecer que foram realizadas inúmeras atividades ao longo da sequência didática,
totalizando 17 atividades com registros de diversos tipos.
Dada a complexidade da abordagem interdisciplinar envolvida, para o interesse de nossa
análise no escopo deste breve artigo, iremos tratar apenas do primeiro registro textual escrito
coletado dos alunos.

NARRATIVAS
819

PRIMEIROS RESULTADOS: como os alunos definem o que é a Fotografia

Antes das atividades em aula de exposição direta, leitura e manuseio de fotografia pelos
alunos, fizemos uma sondagem sobre o que é fotografia para eles e sua importância na sociedade. O
objetivo era verificarmos como os alunos pensavam no início da sequência didática sobre o assunto.
Já nesta sondagem iniciamos a interdisciplinaridade no sentido de também verificar o desempenho
linguístico, pois a atividade envolveu a escrita mediante perguntas. Na Figura 2 temos um exemplo da
atividade, as questões propostas e as respostas de um aluno.

Figura 2 – Definição de Fotografia do Aluno 25 da 6ªB

Fonte: GÂMBERA, 2013

Os registros desta atividade contêm o desempenho geral dos alunos que possibilitaram a
identificação de três categorizações para a análise inicial:
- fluência verbal-escrita adequada e suficiente – 33%: aqueles alunos que entenderam as
duas perguntas e as responderam, tendo utilizado 26 palavras e 125 caracteres, em média
- fluência verbal-escrita parcial – 57%: aqueles alunos que responderam parcialmente as
duas perguntas, isto é, nem sempre as articulando, tendo utilizado 20 palavras e 94 caracteres, em
média.
- fluência verbal-escrita insuficiente – 10%: aqueles alunos que não responderam as duas
perguntas, tendo utilizado 15 palavras e 65 caracteres, em média.
Estes dados numéricos nos indicam um nível da correlação entre o significado das palavras e
o nível de domínio do aluno em expressá-la por escrito. Aqui, procuramos compreender a relação
entre conceituação pela palavra e elaboração de significados pela leitura e escrita. Vale lembrar que
estamos trabalhando com a concepção que considera que o conceito pela palavra requer o domínio
desta na fala. E em se tratando de fotografia, já sabemos que este processo pode se dar também pela
imagem desde que o aluno tenha o desenvolvimento verbal escrito, supondo ainda que a fotografia tem
sido considerada um elemento banal da realidade sociocultural, porém complexo em sua constituição
histórica, expressiva e comunicativa.
Vigotski (2009) em suas reflexões traz que:

[...] a verdadeira comunicação humana pressupõe uma atitude generalizante, que constitui um estágio
avançado do desenvolvimento da palavra. As formas mais elevadas da comunicação humana somente

NARRATIVAS
820

são possíveis porque o pensamento do homem reflete uma realidade conceitualizada. [...] Uma vez que o
conceito esteja amadurecido, haverá quase sempre uma palavra disponível. (VIGOSTKI, 2009, p. 7-8)
O processo da generalização está ligado ao amadurecimento psicológico da criança, e ocorre
pela mediação sociocultural, com a linguagem e pela linguagem.

Figura 3 – Nuvem de palavras feita com a transcrição do texto dos alunos a partir do site www.tagcrowd.com.

Fonte: GÂMBERA, 2013

Na Figura 3 temos uma visualização em nuvem de palavras (word clouds ou tag clouds),
destacando as palavras mais frequentes e excluindo as que aparecem apenas uma vez. Este tipo de
visualização, utilizada pela primeira vez no romance de Douglas Copland chamado Microserfs e
posteriormente popularizado pelo site Flickr, lançado em 2004 (KASER & LEMIRE, 2007), é típica das
hipermídias atuais, que adiciona metadados interativos para os tópicos de informação, no caso as
palavras. Esta visualização não supre totalmente as análises que faremos dos textos dos alunos, mas
servem para nos indicar as palavras mais frequentes do seu universo vocabular, as quais já estão
presentes ou não em seus enunciados e para associações que faremos mais à frente.
Avançando em nossa análise, para a primeira parte do questionário, que tratava do conceito
de fotografia, detectamos que os alunos expressaram preponderantemente conceitos que
distinguimos em quatro categorias: Ação, Memória, Imagem e Informação. Os resultados estão
demonstrados na Tabela 2.

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821

Tabela 2 – Categorias de Definição da Fotografia a partir das respostas dos alunos


Nome da Quantidade de
Porcentagem
Categoria/Conceito Vezes Detectada
Memória 27 30%
Ação 21 23%
Imagem 20 22%
Informação 15 16%
Sem Conceito 03 3%
Arte 02 2%
Exposição 02 2%
Visão 02 2%
Fonte: GÂMBERA, 2013

São categorizações flexíveis porque interagem entre si, o que significa que não as estamos
utilizando em nossa análise como absolutas e rígidas, mas como uma aproximação que reflete um
nível do conhecimento espontâneo elaborado pela vivência no meio sociocultural.
No esquema gráfico ilustrado na Figura 4, temos a disposição dos conceitos de acordo com a
quantidade de vezes presentes nos textos dos alunos e as inter-relações extraídas dos mesmos. O
tamanho das elipses e a proximidade delas da criança refletem a frequência. As elipses unidas por
traços refletem as que são citadas simultaneamente no mesmo texto. A categoria mais presente é a
que tem maior quantidade de relações e citação simultâneas: a fotografia como
memória/recordação/lembrança. Esta categoria foi citada 23 vezes pelos alunos simultaneamente ao
conceito de imagem ou informação ou ação.

Figura 4 – Esquema gráfico das categorias de definição de Fotografia extraídas das respostas dos alunos.

Fonte: GÂMBERA, 2013

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822

A FOTOGRAFIA COMO ATO DE FOTOGRAFAR

Iniciamos nossa análise não com a categoria predominante, mas com a mais ingênua e pueril
delas, e provavelmente oriunda das respostas mais impulsivas. Os alunos que se mostraram com
menos recursos verbais escritos para se expressar conceitualmente, consideraram em sua resposta
que a fotografia é em si o próprio ato de produzi-la, a ação de produzir fotografia. Se por um lado
estas respostas nos revelam que eles respondem com conceitos espontâneos, também não atingem
um nível de abstração que separa a ação em si e o resultado desta ação. Por outro lado revela que
este ato de fotografar é algo que de alguma forma já faz parte do cotidiano e do meio sociocultural
destas crianças. Ou seja, a imagem fica submetida ao ato de produzi-la.
A seguir temos uma pequena amostra do texto destes alunos que dão destaque ao ato de
fotografar: “A fotografia é quando você tira foto de alguém ou de si mesmo […]” (Aluno 17 da 6ªA);
“Fotografia é tirar uma foto.” (Aluno 11 da 6ªB).
Considerando a observação de Luria (2006), feita a partir de experiências com crianças em
processo de alfabetização e aquisição da escrita, temos que: "não é a compreensão que gera o ato,
mas é muito mais o ato que produz a compreensão - na verdade, o ato frequentemente precede a
compreensão." (LURIA, 2006, pag. 188) Assim, considerando o universo de 60 alunos, 20% deles
explicam o que é fotografia como o ato ou a ação de fotografar. À luz da observação de Luria,
podemos concluir que estes alunos estão em processo de desenvolvimento e ainda se encontram em
processo de alfabetização, apesar de já estarem na 6ª série do Ensino Fundamental, portanto numa
etapa avançada da aquisição da escrita. Mas, suas respostas indicam que é como se estivessem no
processo inicial de alfabetização cuja compreensão do que é fotografia está relacionada a apenas a
ação de fotografar, faltando-lhes ainda a compreensão do resultado desta ação e os seus múltiplos
desdobramentos.
É interessante observar que do universo pesquisado, outra parte, aproximadamente 15% deles
explicam o que é fotografia como ação ou ato de fotografar, mas já relacionam com outras
categorias, tais como memória, visão e exposição. Estes alunos parecem estar em etapa mais
avançada do processo de alfabetização que o primeiro grupo considerado, mas não plenamente.
Assim, somando-se estes dois grupos, temos que 35% do universo pesquisado não apresentam ainda
as condições intelectuais de compreender o ato ou a ação de fotografar realizando uma abstração
maior que é necessária para definir o que é fotografia, relacionando o ato de fotografar com a
produção de uma imagem que é fotografia também. Em nossa análise consideramos que é possível
que, neste nível da escolaridade, o processo de alfabetização desses alunos não possibilite ainda a
compreensão do que é fotografia.
O fato do contexto sociocultural em que vivem as crianças atualmente conter a exposição
intensa de imagens fotográficas e também de apresentar a utilização frequente de tecnologias que
possibilitem a ação de fotografar, não garante que a aprendizagem pela fotografia seja efetivada. Este

NARRATIVAS
823

é um dado importante que nossa pesquisa prospectou logo no início, pois no caso do ensino de
Geografia em que a fotografia é muito utilizada e incorporada aos processos de aprendizagem e aos
materiais didáticos, verificou-se que 35% dos alunos de 6ª série não realizam até aquele momento,
nível de abstração suficiente para elaborar a definição do que é fotografia. Este grupo de alunos
apresenta em suas respostas uma tendência de predominância do conceito espontâneo (aqui
considerado no sentido proposto por Vigostki, 2009, p. 517) ainda não totalmente relacionado ao
processo de aquisição da escrita que se articula com as funções intelectuais da leitura, não
apresentando em suas respostas domínio dos processos de codificação e decodificação que não se
relacionam apenas aos códigos da escrita, mas ao conjunto de códigos de todo tipo que se encontram
no sistema cultural contemporâneo.
Cabe esclarecer que quando nos referimos à predominância do conceito espontâneo ou
cotidiano, estamos considerando que as gerações escolares atuais já nasceram e vivem no meio
técnico científico informacional onde circulam artefatos digitais (câmeras fotográficas digitais,
telefones celulares com câmera embutida) que fazem parte de suas vivências cotidianas em que a
imaterialidade da fotografia é gerada pela utilização destes artefatos que circulam pela internet,
correios eletrônicos ou ficam armazenadas nos computadores, deixando de ser aquela permanência
formal emoldurada na parede ou em belos álbuns de família com capa de couro.
A fotografia, para crianças e adolescentes das gerações atuais, vai fazendo parte do seu
cotidiano no meio técnico científico informacional não sem consequência no processo de aquisição da
escrita, tornando-se cada vez mais comum e menos solene, mais banal e menos formal, tornando-se
fugaz e volátil na multidimensionalidade das tecnologias e meios de comunicação do século XXI.
Encarando a fotografia pelo aspecto do ato em si, ele traz a armadilha da isenção por trás da
câmera, na qual o sujeito procura apenas registrar.
Susan Sontag (2011) dialoga com este aspecto da fotografia, o que a nosso ver exige que
também lidemos com ela pelo aspecto da comunicação a ser feita pelo sujeito, além desta isenção
fictícia, que se esconde atrás do artefato:
Fotografar é, em essência, um ato de não-intervenção. […] A pessoa que interfere não pode
registrar; a pessoa que registra não pode interferir. […] Mesmo que incompatível com a intervenção,
num sentido físico, usar uma câmera é ainda uma forma de participação. Embora a câmera seja um
posto de observação, o ato de fotografar é mais do que uma observação passiva. […] Tirar uma foto é
ter um interesse pelas coisas como elas são, pela permanência […] é estar em cumplicidade com o
que quer que torne um tema interessante e digno de se fotografar[…] (SONTAG, 2011, p. 22-23)
A isenção do fotografo é momentânea apenas no ato de fotografar, mas ao selecionar certo
momento e atribuindo-o como importante para ser fotografado ele interage com a realidade de forma
diferente, além de propiciar que seus espectadores interajam com sua leitura emoldurada deste
pedaço de realidade tornado fotografia.
Dentro do nosso universo de pesquisa, os 15% de alunos que também definiram a fotografia
como o próprio ato, incluíram aspectos apontados por Sontag (2011) demonstrando que estão em uma

NARRATIVAS
824

transição também na compreensão do que é a fotografia como algo mais amplo e complexo do que
apenas o próprio ato de fazer ou tirar fotografias, conforme os exemplos a seguir: "Fotografia não é
tirar uma foto qualquer é tirar para colocar em livros, para que a pessoa do futuro continue onde nós
paramos e que elas possam fazer a mesma coisa que a gente fez e elas podem ser famosos por causa
de uma foto." (Aluno 12 da 6ªB); "É em uma máquina fotográfica você visualiza e tira a foto da pessoa."
(Aluno 36 da 6ªB).

A FOTOGRAFIA COMO MEMÓRIA

A relação entre fotografia e memória na primeira elaboração é a mais frequente no conjunto


de respostas elaboradas pelos alunos, sendo que 30% dos alunos associam fotografia à memória, à
lembrança, à recordação do passado, a algum tipo de registro que retêm o passado. Este grupo se
refere às consequências da ação ou ato de fotografar, isto é, especificamente ao “congelamento do
passado em imagem” e sua permanência. Aqui nesta categoria, a ênfase dada pelos alunos está na
escala temporal que a fotografia possibilita transcender.
Neste grupo destaca-se uma parcela de 7% de alunos que tratam a relação fotografia e
memória de modo preponderante, mas ainda a memória como categoria isolada, como se pode
observar nos exemplos que seguem: "Fotografia é uma forma do que expressamos e queremos
guardar em memória e em algum tipo de pesquisa ou jornalismo." (Aluno 9 da 6ªA); "A fotografia para
mim é o momento em que relembramos do passado e também como nós éramos quando crianças e só
isso que a fotografia é para mim." (Aluno 22 da 6ªA).
Os alunos citam com frequência a recordação da própria trajetória de vida e o âmbito
familiar, provavelmente porque há em suas famílias a presença de fotografias antigas, ou de alguma
forma a prática de registrar em fotografias momentos familiares considerados importantes. Se
considerarmos que as crianças deste universo têm em média 12 anos e teriam nascido provavelmente
no ano de 1999, seus pais foram criados no contexto da fotografia analógica registrada em película 35
mm, e trazem um hábito de conservar o passado em fotografias, o qual possui forte expressão na
transmissão cultural familiar destes alunos.
Na própria história da técnica fotográfica a permanência da infância sempre esteve presente,
desde os seus primórdios. As Figuras 5, 6 e 7 mostram uma sequência de três fotografias, que são
marcos mais recentes da evolução digital desta tecnologia.

NARRATIVAS
825

Figura 5 – Primeira imagem digitalizada, realizada em 1957 por Russell Kirsch, a partir da fotografia analógica de seu filho Walden aos 3 meses
de idade, escaneada e armazenada em computador.

Fonte: http://www.dptips-central.com/image-files/nbsfirstscanimage.jpg

Figura 6 – Fotografia feita pela primeira câmera fotográfica digital, realizada por Steve Sasson em 1976 com o protótipo desenvolvido por ele
nos laboratórios da Kodak.

Fonte: http://blog.iso50.com/wp-content/uploads/2010/08/3_PrototypeDigitalCameraPlayback_of_image_R.jpg

Figura 7 – Primeira fotografia digital feita e transmitida por um telefone celular, realizada nos EUA por Philippe Kahn em 1997, com o intuito de
mostrar a filha recém nascida Sophie para sua família na França.

Fonte: http://petapixel.com/2011/09/27/the-first-camera-phone-photograph-was-taken-in-1997/

NARRATIVAS
826

Nas Figuras 5 e 7 temos crianças que constam como estímulo ou próprio motivo da inovação
realizada pelo inventor, e na Figura 6 o apelo comercial para que as pessoas possam registrar sua
família e seus momentos felizes em fotografias.
A evolução tecnológica se dá de forma cada vez mais acelerada, porém a necessidade humana
de conservar memórias é a mesma desde os primórdios. Pequenos fragmentos da realidade, uma
fotografia "é uma verdadeira fatia de espaço-tempo." (DUBOIS, 2009, p. 103).
No texto de 38% dos alunos (23 alunos), percebemos que esta categoria também está
frequentemente entremeada de outros conceitos, como ação, imagem e informação: "Fotografia nos
ajuda muito, pois dá para registrar o momento feliz de nossas vidas e nos dar evidências sobre algo."
(Aluno 31 da 6ªA); "Fotografia é uma imagem que a gente guarda em um momento muito especial.
Fotografia também nós guarda para representar o momento do passado." (Aluno 29 da 6ªB).
São falas que a nosso ver, reforçam a importância da fotografia no cotidiano da vida dessas
crianças, e o processo de transmissão cultural realizado na esfera familiar, muitas vezes já tornado
hábito pelo próprio contexto sociocultural. O desempenho linguístico apresentado por estes alunos
demonstram ainda um maior nível de abstração que é possibilitado tanto pela aquisição da escrita
como pela mediação sociocultural.

A FOTOGRAFIA COMO IMAGEM

Os alunos que consideram a fotografia predominantemente como imagem, utilizam também os


termos foto e quadro digital em sua resposta. Na amostra abaixo, representado 8% do universo (05
alunos) a primeira aluna associa a fotografia ao seu interesse imediato, que parece ser o mundo da
moda e da publicidade, enquanto a segunda aluna a vê com maior distanciamento, sem dar muita
importância ao mundo imagético ao seu redor: "Fotografia é um quadro digital, os modelos sempre
precisam de fotos e as propagandas também." (Aluno 20 da 6ªA); "Fotografia é uma imagem ou uma
foto que as pessoas tiram para alguma coisa." (Aluno 32 da 6ªB).
Os outros alunos que tratam da fotografia como imagem, 25% deles, (15 alunos) também a
associam à informação e memória, conforme estes exemplos: “É tipo uma imagem e serve para
mostrar pro mundo o que acontece no mundo.” (Aluno 24 da 6ªA); “Fotografia é uma imagem, 1º para
mostrar como era o passado, como é o presente e como será o futuro para você ver a diferença.”
(Aluno 13 da 6ªB).
Em um mundo permeado por imagens, as duas crianças demonstram posições extremas, mas
comuns: uma é participativa e relata seu interesse pelo fascínio dentro de um tipo de imagem, e a
outra, mesmo inserida em contexto similar, se mostra anestesiada, alheia à profusão de imagens que
invade seu campo sensorial. Temos à disposição de todos o excesso visual, a poluição mental através
de imagens, o importante é ter consciência disso e conseguir autonomia cognitiva e expressiva, sem
reduzir a capacidade da experiência de nos gerar conhecimento, não apenas sufocados por imagens,
conforme Sontag (2011) nos alerta:

NARRATIVAS
827

As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens; é a mais


irresistível forma de poluição mental. […] Não seria errado falar de pessoas que têm uma compulsão
de fotografar: transformar a experiência em si num modo de ver. (SONTAG, 2011, p. 34-35)
Compreender o mundo através de imagens e pensar nossa própria posição no mundo através
delas é uma das grandes dificuldades que se apresenta à humanidade, caso não saibamos utilizá-la
como uma linguagem complementar à linguagem verbal-escrita e às generalizações individuais do
pensamento propiciados por esta.

A FOTOGRAFIA COMO INFORMAÇÃO

Na seleção de fotografias ilustradas na Figura 8, temos o cuidadoso trabalho de fotógrafos,


feito com um critério específico, em nome de uma informação visual de famílias ao redor do mundo.
Os fotógrafos procuraram ilustrar a moradia e os pertences de famílias de classe média em 30
países. Publicadas em 1995 na obra ‘Material World: A Global Family Portrait’, de Peter Menzel, Charles
Mann e Paul Kennedy.
Figura 8 – Fotografias de famílias ao redor do mundo: EUA, Japão, Mali e Índia.

Fonte: http://realnormal.blogspot.com.br/2010/12/material-world.html

As fotografias sempre trazem algum tipo de informação, mas precisamos contar com dados
trazidos pelo autor da imagem, sem isso elas não têm o mesmo poder de informação. O ensaio
fotográfico acima pressupõe um esforço informacional estatístico que dá forma às imagens, e
também inclui diversos espaços diferentes ao redor do mundo, aglutinado por famílias. Um exemplo no

NARRATIVAS
828

qual há um conceito bem claro e definido antes de se fazer imagens, de certa forma uma visão
científica preponderando perante o subjetivo do discurso visual resultante, e um bom material para
reflexões geográficas.
Uma parcela de 3% dos alunos, (02 alunos) inserida no contexto sociocultural imagético,
considera a fotografia como portadora de informação como podemos ver nos seguintes fragmentos:
“[...] a importância é que mostram a nossa identidade.” (Aluno 14 da 6ªA); "Com a fotografia nós
podemos ver como nossa sociedade em que vivemos está e mostrar nosso planeta como está bom."
(Aluno 29 da 6ªA).
O primeiro aluno citado acima refere-se à identidade provavelmente tratando do documento
de identificação do cidadão, informação básica visual de comprovação da existência de alguém e
oficialmente adotada pelo caráter de registro factual que permite a fotografia. O segundo aluno trata
de que podemos ver, obter informações da sociedade e do mundo em que vivemos através das
imagens.
A outra parcela de alunos que trata da fotografia como fonte de informação, 22% (13 alunos)
a associam simultaneamente à imagem e memória: "Fotografia são imagens que são registradas de
várias formas: pode ser por quadros, panos, papéis, etc. A importância das fotografias são que elas
podem ficar registradas a vida toda servindo como informação." (Aluno 6 da 6ªB); "Fotografia é uma
imagem que a gente guarda em um momento muito especial. Fotografia também nós guarda para
representar o momento do passado." (Aluno 29 da 6ªB).
O primeiro aluno procura ilustrar a variedade complexa de suportes para a fotografia e
destaca-a como registro de informação de longo prazo, e a segunda aluna interage também com o
conceito de memória de vida, do passado que é representado pela fotografia.
Crianças nativas da época da Internet, e provavelmente usuários de sites portadores de uma
quantidade infinita de imagens, como Google, YouTube ou Facebook, estão familiarizados com a
presença delas no mundo da informação, cada vez mais instantânea, e sem mediação, sem reflexão.
Sontag (2011) nos alerta para a ambiguidade constante da fotografia:
As fotos são, é claro, artefatos. Mas seu apelo reside em também parecerem, num mundo
atulhado de relíquias fotográficas, ter o status de objetos encontrados - lascas fortuitas do mundo.
Assim, tiram partido simultaneamente do prestígio da arte e da magia do real. São nuvens de fantasia
e pílulas de informação. (SONTAG, 2011, p. 84)
As fotografias, por serem fruto de uma interação de fatores como a seleção arbitrária e
subjetiva do olhar do fotógrafo, o contexto sociocultural e as contingências que permitem ou o
estimulam a gerar uma imagem, conferem este valor de ‘nuvens de fantasia e pílulas de informação’,
conforme afirma Sontag (2011). As fotografias contêm o referente, aquilo que foi fotografado, em um
momento real e objetivo que exigem um olhar treinado e perspicaz para entendê-la em toda sua
complexidade e ambiguidade.

NARRATIVAS
829

OUTROS CONCEITOS

Além das categorias mais constantes citadas acima, um pequeno grupo de alunos tratou
também de definir a fotografia como arte, visão ou exposição. Uma parcela de 3% (02 alunos) dos
alunos a define exclusivamente como arte, sem relacionar com outro conceito. E os que a definem
através da visão ou exposição, uma parcela de 7% (04 alunos), a tratam entremeada com o conceito
de ação. Segue alguns exemplos: "É a arte de fotografar as coisas." (Aluno 30 da 6ªB); "Fotografia é
quando tiramos uma quantidade de foto e nós a vemos." (Aluno 27 da 6ªA); "Fotografia é você bater a
foto e por exposto por no museu [...]" (Aluno 33 da 6ªA).
A fotografia levou um certo tempo para ser considerada como arte, pois em seus primórdios
chegou a ser vista como uma oposição à pintura e uma técnica espelho do real, gerando registros
mecânicos e objetivos, miméticos e perfeitos (DUBOIS, 2009, p. 26-27). Somente após sua
industrialização é que alçou esta condição de arte e de rito social de massa, que inclusive alterou a
visão sobre as outras formas de arte.
Como uma forma de ver e também como uma forma de dar a ver, ou seja, de realizar e
materializar um olhar, e em seguida compartilhá-lo a outros, a fotografia é um dos atributos
essenciais de expressão no texto dos alunos.
Tivemos uma parcela de 5% (03 alunos) sem conceito, que não a definiram e consideramos
estes os que não trazem consigo nenhum conceito sobre a fotografia, provavelmente porque seu
contexto de vida não os possibilitou ter fluência verbal-escrita adequada e suficiente ou vivências com
a fotografia, conforme estes exemplos: “Nós temos que cuidar do mundo que vivemos porque se não
vai se destruir.” (Aluno 13 da 6ª A); “E uma sociedade que for uma coisa que podemos viver o na sua
cidade de uma coisas de identifique doi (sic) mostram.” (Aluno 35 da 6ª A).

O SUJEITO QUE REALIZA OU INTERAGE COM A FOTOGRAFIA

Procuramos detectar nas falas dos alunos qual é o sujeito explícito ou implícito em suas
respostas, como uma nuance importante de seus textos, e nos deparamos com o apresentado na
Tabela 3.

Tabela 3 – O Sujeito que realiza ou interage com a Fotografia a partir das respostas dos alunos
Tipo de Sujeito Quantidade Percentual
Nós 27 45%
Indefinido 20 33,343%
Você 08 13,34%
Pessoas 03 5%
Eu 01 1,66%
Fotógrafo 01 1,66%
Fonte: GÂMBERA, 2013

NARRATIVAS
830

Se consideramos estes dados, e aglutinarmos os sujeitos Nós, Você e Eu, ficamos com o
indício de que a grande maioria (60%) tem familiaridade com a fotografia em sua prática social, tanto
quando a definem, ou quando justificam sua importância, confirmando aspectos percebidos nas
análises anteriores. O Quadro 6 mostra alguns exemplos das categorias de sujeitos mais presentes.

Tabela 4 – Exemplos de sujeitos explícitos ou implícitos na resposta dos alunos


Tipo de Sujeito Exemplo de resposta
Nós "A fotografia é quando nós marcamos um
momento em que vivemos ou outras pessoas
viveram. 2 elementos principais, é que
podemos registrar um momento para depois
lembrar ou para servir de evidência." (Aluno
8 da 6ªA)
Definido "Fotografia é imagem de pessoas, paisagens,
etc. Usam para fotografar pessoas."
(Aluno 11 da 6ªA)
"Fotografia é quando você tira uma foto para
Você quando você estiver mais velho e se
lembrar." (Aluno 19 da 6ªB)
Fonte: GÂMBERA, 2013

A fotografia é sempre empreendida por um sujeito social, mesmo que indiretamente por
câmeras automáticas, e implica uma determinação cultural deste olhar seletivo. Por isso
consideramos importante detectar no texto do aluno que sujeito ele exprime neste ato, ainda mais se
queremos considerar no contexto escolar o aluno como um sujeito que também pode criar enunciados
visuais em seu processo de aprendizagem.

IDENTIFICANDO A IMPORTÂNCIA DA FOTOGRAFIA NA SOCIEDADE

Na segunda parte da pergunta, na qual pedimos aos alunos para justificar a importância da
fotografia na sociedade, a maioria entendeu e respondeu de acordo com a pergunta (39 alunos -
65%), e o restante dos alunos ou encarou a pergunta como se direcionada diretamente a eles como
sujeitos, e não à fotografia como instrumento histórico cultural da sociedade (13 alunos - 22%), ou
ignoraram a pergunta (08 alunos - 13%) provavelmente sem entendê-la. Percebemos que são três
fases de compreensão do texto verbal escrito no formulário: os que leram e entenderam do que se
tratava, respondendo de alguma forma o que foi solicitado; os que leram e entenderam parcialmente,
mas foram influenciados pela discussão mais ampla que ocorria em sala de aula ligada aos textos
manifesto trazidos pelo professor de língua portuguesa, e, os que leram sem entender o que foi

NARRATIVAS
831

solicitado, gerando respostas desfocadas do assunto e mais subjetivas e, às vezes, sob influência da
discussão em sala de aula.
Provavelmente poderíamos ter obtido outros resultados tornando o texto do enunciado mais
claro e explícito, o que consideramos que pode ter ocorrido devido à natureza e abordagem que
adotamos na pesquisa sobre o assunto. A Tabela 5 traz exemplos das respostas vistas por este tipo de
recorte analítico:

Tabela 5 – Tipos de resposta de acordo com o entendimento do enunciado


Tipo de resposta Exemplo
"Fotografia para mim é uma foto, que
tiramos para se lembrar da pessoa ou de um
Considerando a importância da dia. A importância da fotografia na sociedade
fotografia em que vivemos é para um catálogo ou até
para uma foto na internet." (Aluno 2 da 6ªA)
Considerando a importância de "Fotografia é quando você tira uma foto. A
si mesmo importância minha é cuidar do planeta e
respeitar." (Aluno 1 da 6ªB)
Resposta de afirmação da "Eu gosto de fotografia desde pequeno. Eu amo tirar
subjetividade foto." (Aluno 12 da 6ªA)
Fonte: GÂMBERA, 2013

Quando focamos apenas no aspecto da importância da fotografia na sociedade, os alunos


responderam de forma bastante variada, nas quais podemos identificar como pontos marcantes:
mostrar a realidade, rever o passado, guardar momentos, gerar lembranças, identificar informações
e manter dados para o futuro. São respostas da segunda parte da pergunta, mas que de certa forma
são intrínsecas à definição anterior que os alunos deram e que em nossa análise articulamos com as
categorias anteriores. A Tabela 6 mostra de forma ilustrativa as respostas completas para tais
perguntas, segundo as categorias destacadas ao longo deste artigo.

Tabela 6 – A importância da fotografia na sociedade – exemplos de respostas dos alunos


Categoria Exemplo
"Fotografia é tirar fotos de algo. Ela é
importante por que nós devemos lembrar do
Ação e Memória (8,33%, 5 nosso passado, e também para se ver nas
alunos) fotos." (Aluno 33 da 6ªB)
Imagem e Informação (8,33%, 5 "Fotografia é uma forma de revelar uma
alunos) imagem, uma obra uma coisa. Registrar a
sociedade que vivemos para outras pessoas
ver." (Aluno 5 da 6ªA)

NARRATIVAS
832

Imagem e Memória (16,66%, 10 "Fotografia é uma imagem que a gente


alunos) guarda em momentos bons. O primeiro
elemento é que nós podemos guardar
momentos bons e que podemos lembrar dos
outros." (Aluno 5 da 6ªB)
Memória e Informação (13,33%, "Fotografia é um modo de lembranças, é um modo de
8 alunos) registrar momentos importantes de nossa vida, etc. É
importante para a nossa sociedade, porque tirando foto
podemos ver como as coisas eram, como elas são e
como ficará." (Aluno 3 da 6ªB)
Fonte: GÂMBERA, 2013

Para encerrar este artigo, podemos dizer que as crianças deste universo de pesquisa
demonstraram que no início da aplicação da sequência didática já haviam desenvolvido o conceito
espontâneo de fotografia, mesmo que não tenham um excelente desempenho linguístico ou a
compreensão da pergunta, ou não consigam defini-la e refletir sobre ela, e em sua maioria incluem a
si mesmos como sujeitos deste contexto e trazem conceitos da fotografia num nível alto de abstração
de complexidade, tais como a fotografia compreendida como Ato, Imagem, Memória, Informação,
Visão, Exposição e Arte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É muito importante que a escola apoie o aluno a se apropriar da técnica e linguagem


fotográfica, contribuindo para sua formação crítica e evitando que esta interação homem-imagem
aconteça sem uma mediação adequada para isto. Algumas décadas atrás, esta apropriação e
desmistificação seria muito mais difícil devido ao custo das tecnologias audiovisuais, mas hoje com a
expansão de mercado e barateamento destes custos, vivemos um momento muito propício para este
fazer com as próprias mãos.
O gesto de fazer o click na câmera é simples e não exige reflexão, porém empreender o ato do
fotografar, com uma elaboração conceitual própria, planejando o que se quer registrar e expressar,
em interação com a realidade ao seu redor, dominando técnicas básicas de enquadramento e
luminosidade, e com isso expressar um discurso próprio através da fotografia, é algo muito mais
complexo e que deveria fazer parte do desenvolvimento cognitivo e intelectual das crianças e
adolescentes de hoje.
As crianças e adolescentes de hoje em dia são nativos digitais e consumidores das mídias
audiovisuais (e de fotografia), entretanto não dominam os processos de produção com esta técnica
em toda sua potencialidade, principalmente se voltada para um aprendizado mais efetivo na escola,
para o desenvolvimento de suas funções intelectuais e para a ampliação de sua visão de mundo. Em
última instância, podemos dizer que a cultura imagética, reproduzida de forma ampliada sem

NARRATIVAS
833

mediação humana, não tem contribuído para o desenvolvimento intelectual de crianças e


adolescentes.
A técnica e a linguagem fotográfica para serem de fato desmistificadas pelos alunos e
professores necessitam ser praticadas efetivamente pelos mesmos. Nessa visão, para que possam
ser espectadores críticos das mídias audiovisuais, eles podem aprender e incorporar o processo de
produção das mesmas no ambiente escolar, chegando-se a criar produtos audiovisuais como sujeitos
discursivos com uma intencionalidade autoral própria.
Os resultados obtidos em nosso estudo apontam que a falta de domínio do gênero textual não
verbal imagético representa uma deficiência comprometedora tanto quanto a falta de domínio do
gênero textual verbal oral e escrito. A utilização responsável de fotografia no ensino em geral, e,
particularmente, no ensino de Geografia pode apoiar a superação dos efeitos de banalização
predominante dos conteúdos assimilados por imagens, que se estiver associado ao desenvolvimento
da leitura e da escrita também pode ampliar a capacidade de linguagem da argumentação, uma vez
que ela permite a estruturação multirrelacionada, sistematizada e hierarquizada dos conceitos
científicos apoiados nos conceitos espontâneos, possibilitando o desenvolvimento de funções
intelectuais, conforme considera Vigotski (2009, p. 169).
A fotografia, como uma das principais linguagens imagéticas contemporâneas, se caracteriza
por um sofisticado domínio tecnológico desenvolvido a partir da metade do século XIX, e, por sua
avassaladora disseminação sociocultural, exige ser incorporada aos processos educativos para
enriquecer a formação crítica dos indivíduos no mundo contemporâneo, como sujeitos autônomos no
sistema sociocultural cada vez mais permeado tecnicamente e reelaborado por imagens.
A partir do domínio da leitura e da escrita é possível expandir este mesmo domínio para a
linguagem imagética, sendo o oposto impossível, pois a imagem não substitui o conceito que é
abstrato e materializado na palavra. Assim, entendemos que ser capaz de argumentar por intermédio
de uma fotografia criada com clareza conceitual, intenção definida e composição criativa seria o
momento culminante desta apropriação da linguagem imagética como leitor e autor crítico, que exige
um longo processo de aprendizagem.

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NARRATIVAS
RESUMO
836
Este artigo é parte de um estudo das obras da
antropóloga francesa Michèle Petit que buscou

A NARRATIVA COMO identificar as funções e contribuições da leitura na


constituição dos sujeitos e, em especial, relacionar
as experiências de leitura ao desenvolvimento

PRECURSORA DA
pessoal e profissional de professores, extraindo
lições para mediação das/nas práticas de leitura
na formação de docentes e discentes. Nos limites
deste texto discutiremos a narrativa como

LITERATURA E O PAPEL precursora da literatura e o papel da mediação na


constituição pessoal e profissional do sujeito por
considerar que: 1. a leitura – e em especial a leitura

DA MEDIAÇÃO NA
da literatura – se constitui como base para a
formação humana e para a construção de uma
sociedade mais justa; 2. embora a formação do
sujeito leitor seja em grande parte questão de

CONSTITUIÇÃO PESSOAL família, o mediador é com frequência um professor,


um bibliotecário. Para realizar essa discussão
pautamo-nos em referências teóricas que se

E PROFISSIONAL DO
situam no campo da linguagem, uma vez que a
linguagem nasce da necessidade de comunicação
entre os homens para a realização do trabalho
(BAKHTIN, 2002, 2003), entendido como ação social

SUJEITO
de transformação da natureza e do próprio homem.
O estudo nos permite afirmar que a prática da
narrativa nos possibilita (re)significar o vivido e
que a literatura é capaz de transformar o
inenarrável em narrável modificando o homem.

GARCIA, Ana Carolina Porto123 Palavras-Chave: Literatura. Mediação. Constituição


Pessoal e Profissional.
OMETTO, Cláudia B. de Castro Nascimento124

INTRODUÇÃO

E
ste texto é fruto de um projeto vinculado à linha de pesquisa “Linguagem e Arte em Educação”, do
Grupo Alfabetização, Leitura e Escrita-Trabalho Docente na Formação Inicial de Professores –
ALLE-AULA, cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq e, mais especificamente, a
um projeto financiado pelo CNPq - Processo nº 401404/2016-1 (Projeto-Mãe), que busca compreender
aspectos relativos ao trabalho a favor da formação de leitores na escola básica e às práticas de
leitura possibilitadas pelos professores, em salas de leitura da SEE/SP, aos alunos que frequentam o
ensino fundamental - anos finais.
Pensar a formação de professores e de alunos é antes de tudo pensar nas relações de ensino
mediatizadas pela linguagem e na escola como espaço cotidiano de trabalho e de formação - também
de pesquisa - e, por isso mesmo, de circulação do conhecimento e de constituição de subjetividades
de professores e de alunos (OMETTO; CRISTOFOLETI, 2011). "O primeiro aspecto, o mais conhecido, é o

123
Graduanda de Pedagogia na Universidade Estadual de Campinas. E-mail: anacarolgarcia.11@gmail.com
124
Professora Doutora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: cbometto@yahoo.com.br

NARRATIVAS
837

de que a leitura é um meio para se ter acesso ao saber, aos conhecimentos formais e, sendo assim,
pode modificar as linhas de nosso destino escolar, profissional e social" (PETIT, 2008, p. 61).
No recorte para este texto 125 discutiremos a narrativa como precursora da literatura e o
papel da mediação na constituição pessoal e profissional do sujeito. Para tal, inicialmente
explicitaremos nossa compreensão acerca da constituição pessoal e profissional do sujeito.

1. ACERCA DA CONSTITUIÇÃO PESSOAL E PROFISSIONAL DO SUJEITO

Partimos do pressuposto que a constituição da pessoalidade e da profissionalidade dos


sujeitos não acontece de forma dissociada, uma vez que a formação de professores não acontece
apenas em espaços e instâncias formais, mas sim pela mediação de práticas relacionais e
experienciais, as quais mobilizam conhecimentos teóricos e se constituem como possibilidade de
desenvolvimento profissional e pessoal (CUNHA, 2006).
Segundo Cruz (2013, p. 42) "a profissionalidade refere-se à ação docente que consiste num
conjunto de comportamentos, conhecimentos, diretrizes, atitudes e valores que constituem a
especificidade de ser professor". De acordo com a autora, ensinar, orientar, ajudar os alunos e
regular suas ações, organizar espaços e atividades, dentre outros, são manifestações da
profissionalidade dos sujeitos.
Esse processo de formação profissional, que também é pessoal, constitui-se na
intersubjetividade (VIGOTSKI, 1989), ou seja, pessoalidade e profissionalidade são produções
históricas que se singularizam ao longo da vida, de forma coerente com um paradigma de
inacabamento e como um ser em devir, uma vez que a profissionalidade do professor constitui-se em
um processo marcado pela própria experiência do processo de constituição da pessoalidade.
Assumimos, portanto, que formação pessoal e profissional são processos de
produção de sentidos, instaurados, materializados, constituídos e mediados pela linguagem. Posto
isto, nossos estudos acerca dos processos de formação e dos sentidos neles produzidos estão
pautados em referências teóricas que se situam no campo da linguagem, uma vez que a linguagem
nasce da necessidade de comunicação entre os homens para a realização do trabalho, entendido
como ação social de transformação da natureza e do próprio homem. Tanto para Vigotski (1989)
quanto para Bakthin (2002) a mediação do outro e a linguagem são constitutivas da condição humana,
tornando os sujeitos capazes de tomar seus modos de ser, de agir e de dizer como objeto de
pensamento e de reflexão.
Pensar na constituição do sujeito e na condição humana nos remete à Petit e às práticas de
leitura. A autora ressalta o poder da leitura para garantir as forças da vida. Segundo ela "crianças,
adolescentes e adultos poderiam redescobrir o papel [da atividade de leitura] na reconstrução de si

125
Este texto foi gestado a partir do Relatório Final de um trabalho de Iniciação Científica financiada pelo Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e
à Extensão - Processo nº 1124/2015 e PIBIC UNICAMP – SAE, vinculado ao Projeto-Mãe da professora orientadora, já apresentado neste texto.

NARRATIVAS
838

mesmos e, além disso, a contribuição única da literatura e da arte para a atividade psíquica. Para a
vida, em suma" (PETIT, 2009, p. 22).
No contexto da leitura há um enfoque especial para a leitura literária, uma vez que esse
gênero proporciona o acesso à literatura, produto social e humanizador, que permite o contato com
as diferentes situações humanas que permeiam a vida e a obra literária. Nos mais diferentes textos, a
palavra, conforme destaque feito por Bakhtin (BAKHTIN, 2002), preenche distintas funções ideológicas.

Na literatura ela [a palavra] materializa efeitos estéticos, que revelam nuances em termos de posições
e valores e possibilitam elaborações de dimensões distintas da relação do leitor com o texto. A palavra,
na sua plasticidade, permite ao leitor experimentar paixões, emoções, posicionar-se com juízos de valor,
elaborar relações lógicas, em face de experiências pessoais, familiares, cotidianas, inusitadas,
estranhas, repulsivas, das quais a palavra o aproxima. A palavra tanto emociona como convoca à
racionalidade, dispersa os sentidos, como os reúne dentro de sistemas lógicos, internamente coerentes
(OMETTO, CRISTOFOLETI, 2012, p. 1844).

Esse potencial formativo da leitura é referência na obra de Michèle Petit, para quem “a leitura
não é uma atividade isolada: ela encontra - ou deixa de encontrar - o seu lugar em um conjunto de
atividades dotadas de sentido” (PETIT, 2008, p. 104). Destaca, ainda, que

a leitura é uma arte que se transmite, mais do que se ensina, é o que demonstram vários estudos [...] Na
maioria das vezes, tornamo-nos leitores porque vimos nossa mãe ou nosso pai mergulhados nos livros
quando éramos pequenos, porque os ouvimos ler histórias ou porque as obras que tínhamos em casa
eram tema de conversa (PETIT, 2009, p. 22).

Para tanto, esta autora refere-se à importância de sujeitos que possibilitam a aproximação do
leitor com os textos, “contagiando” os outros sujeitos com o gosto pela leitura. Petit (2008) considera
que o mediador do livro pode ser um professor, um bibliotecário, um livreiro, um animador voluntário
de associação, um militante sindical, um amigo, enfim, alguém com quem cruzamos, alguém cujo foco
não esteja apenas nos livros, mas principalmente nas pessoas, alguém que tenha a preocupação, a
todo instante, de construir pontes entre leitor e textos.
Em oposição à ideia de que a leitura deva ser um movimento totalmente autônomo, livre de
interferências, Petit (2008) expõe que, muitas vezes, é preciso incentivar a escolha de livros e ajudar
determinados leitores a superar dificuldades, como por exemplo, passar de uma seção para outra,
para outras estantes, para outros tipos de leitura, para outras bibliotecas. No que se refere à escolha
e à indicação de obras, a autora valoriza a leitura de obras clássicas e não somente àquelas de desejo
dos jovens, pois os clássicos permitiriam ampliar seus horizontes.
Neste sentido, o mediador “deveria poder dar, a cada leitor, uma oportunidade de encontros
singulares com textos que possam lhe dizer algo em particular” (PETIT, 2008, p. 184), e não ficar
preso a pequenas listas de leitura. A autora acrescenta ainda que um professor ou um bibliotecário
podem não conseguir reparar o mundo das desigualdades ou da violência, mas poderão contribuir,
“algumas vezes, para que crianças, adolescentes e adultos, encaminhem-se no sentido mais do

NARRATIVAS
839

pensamento do que da violência. Em certas condições, a leitura permite abrir um campo de


possibilidades, inclusive onde parecia não existir nenhuma margem de manobra” (p. 13).
Segundo Petit tudo começa em situações intersubjetivas, em encontros personalizados,
recepções e hospitalidade. "A partir daí, as leituras abrem para um novo horizonte e tempos de
devaneio que permitem a construção de um mundo interior, um espaço psíquico, além de sustentar
um processo de autonomização, a construção de uma posição do sujeito" (PETIT, 2009, p. 32).
Posto isto, consideramos com Petit (2008) que: 1. a leitura – e em especial a leitura da
literatura - se constitui como base para a formação humana e para a construção de uma sociedade
mais justa; 2. embora a formação do sujeito leitor seja em grande parte questão de família, o
mediador é com frequência um professor, um bibliotecário.

2. A EXPERIÊNCIA DA NARRATIVA COMO PRECURSORA DA LITERATURA

Em um mundo rodeado de leituras rápidas, dinâmicas e transbordando de informações,


pensar a leitura, como recorda Tonin (2016, p.17) a partir da proposta feita por Drummond como uma
"leitura, simples e quase despida de rótulos e legitimações, em tempos tão complexos, 'tempos de
homens partidos', [...] é redescobrir um pouco de traços humanos". Atualmente, a informação está
explícita a cada frase de jornal ou revista, sem deixar sobra de tempo, ou rastros, para que o leitor
continue a história. Tudo já está devidamente e minuciosamente explicado, retirando o espaço antes
ocupado pela reflexão e interpretação de quem a escuta, firmado pela narrativa.
Considerada a primeira forma de transmissão de conhecimento, a narrativa cria ramos para
a possibilidade de reflexão, de relato, com o sentido produzido pelo narrador porém também
incorporando as experiências de seus ouvintes. Ao escrever sobre o grande narrador Nikolai Leskov
(1831-1895), Walter Benjamin (1994, p. 198) afirma que a arte de narrar está em vias de extinção, pois
cada vez menos pessoas são capazes de fazê-lo, e se caso extinta, a capacidade de trocar
experiências pode desaparecer também. Benjamin explica:

O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar
um bom conselho, quando ele era difícil de obter, e oferecer sua ajuda, em caso de emergência. [...] O
conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o
mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância. (BENJAMIN, 1994, p.
215).

"Dar conselhos" configura-se como outra característica da narrativa, uma dimensão utilitária
de ensinamento moral, dica, um conselho útil para seu interlocutor (BENJAMIN, 1994, p. 200).
Entretanto "dar conselhos", assim como a sua vertente narrativa, está caindo em desuso, sendo
substituído pelo romance. Para o crítico literário, o romance apresenta um caminho a seguir,
colocando uma saída, da qual o leitor pode transferir a si, não há dúvidas sobre o fim a que teve a
história pois este já foi escrito. Fanny, 21 anos, entrevistada por Petit, relata esse sentimento que

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840

alguns romances a fazem sentir: “Gosto quando existe liberdade para o leitor. Os romances que não
tomam os leitores por imbecis, que não lhes explicam tudo, que nos deixam um pouco fazer nosso
próprio caminho” (PETIT, 2008, p. 30).
A grande essência da narrativa é manter-se aberta, sem a pretensão da informação exata
como as notícias veiculadas na mídia. Ela está aberta para que o narrador a transporte à sua vida e
assim transportar-se na vida o que a escuta, ou seja, para Benjamin, ao incorporar a narrativa, o
narrador também coloca elementos de si na obra quando a narra, e assim quem escuta também
incorpora e passa adiante (BENJAMIN, 1994, p. 205). Para atingir tal status o narrador precisa ter
passado por, no mínimo, um destes dois caminhos: o de viajante que tem muito para contar, ou ser um
homem honesto com credibilidade que conhece a história e as tradições de sua região. Benjamin
(1994, p. 19) exemplifica as duas posições sociais como "um marinheiro comerciante e um camponês
sedentário". Ambos possuem muito a contar, não diferenciando a história oral da história escrita, e
dessa mesma forma o leitor que experiência, no sentido de socialização da leitura, se posiciona diante
dos livros: ele incorpora em si para depois contar ao outro. Diante da abertura ao pensamento e
conhecimento através da narrativa, Petit afirma:

O saber acumulado pode ainda ser uma maneira de iniciar uma conversação, ou até mesmo seduzir:
“Aprendemos coisas e assim temos mais assuntos para conversar”, diz Frédéric. E Sophie: “Te dá ideias
para conversar. Quando falamos de leitura, de livros… na última vez comecei a namorar alguém assim!”.
(PETIT, 2008, p.65).

A arte da narrativa possibilita ir além do narrador, ao dar margem à interpretação de nossas


vidas e experiências (FREITAS; FIORENTINI, 2007, p. 64), sendo mediada pela linguagem, com seus
signos e significados (VIGOTSKI, 1991). Se antes a tradição era mantida oralmente pelo narrador, hoje,
com a evolução dos meios da imprensa a tradição está nos livros.

3. O PAPEL DO MEDIADOR

A leitura tem o potencial de ser uma, duas, ou até mais portas que se abrem e levam ao leitor
a outro lugar, mas para que esta aconteça é preciso um encontro, esse encontro pode ser com
alguém da família, com um(a) professor (a), um(a) bibliotecário(a), alguém de uma instituição
religiosa ou de uma instituição sem fins lucrativos, mas há um encontro com o livro pela mediação de
um outro, alguém que já possui intimidade com o livro e está disposto a ajudar outra pessoa a sentir o
mesmo. Sobre o mediador de leitura, Petit reflete:

Talvez toda pessoa que trabalha com a leitura deveria pensar em seu próprio percurso como leitor. Mas
por favor, não façamos disto um exercício obrigatório. Que cada um, se assim lhe aprouver, encontre
para si próprio ou para o destinatário que lhe escolher, os caminhos pelos quais a leitura o conduza do
espaço da intimidade para o espaço público. (PETIT, 2013, p.17).

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Todos nós podemos ser mediadores diretos do círculo social dos jovens. Os mediadores mais
próximos, que realizam mediações assistemáticas, seriam aqueles que estão fora da escola e
frequentam o círculo social mais próximo dos jovens. Há, ainda, os mediadores formais, aqueles que
estão dentro de instituições e realizam mediações planejadas, diferentemente dos mais próximos.
Petit, em “A arte de ler ou como resistir à adversidade” (2009), aponta:

Não importa o meio em que vivemos e a cultura que nos viu nascer, precisamos de mediações,
de representações, de figurações simbólicas para sair do caos, seja ela exterior ou interior. O que
está em nós precisa primeiro procurar uma expressão exterior, e por vias indiretas, para que
possamos nos instalar em nós mesmos. (p.115).

4. OS MEDIADORES MAIS PRÓXIMOS, FORA DA ESCOLA

Um dos signos desenvolvidos pelo homem para o processo de interação entre sujeitos foi a
linguagem, composta por palavras com a função com a função específica de comunicação e troca de
informações. Para Luria “a fala é baseada na palavra, mas também na frase, que é a unidade básica da
expressão narrativa em que ocorre uma combinação de palavras em conformidade com as normas da
língua” (LURIA, apud MARTINS, 2012, p.132). O primeiro lugar de fala da criança é na família, sendo
assim seu primeiro contato social, cultural e histórico, provindo da família, constitui-se num
gigantesco constituidor do ser e, por sua vez, também do sujeito leitor.
Em “Os Jovens e a Leitura”, Petit discorre sobre diversos efeitos e valores que as famílias
atribuem à leitura, desde famílias que a valorizavam e famílias que a proibiam.

No campo, quando os pais não eram leitores ou não encorajavam seus filhos a ler, outras pessoas
cumpriram esse papel de “iniciadores” ao livro, seja na infância ou mais tarde: algumas vezes um outro
membro da família, uma irmã ou irmão mais velho, os avós, os filhos. E também professores que
“empurravam” a criança a partir do momento em que perceberam sua vontade de ler. Porque, ainda que
alguns professores desencorajem as crianças a abrir um livro, há outros que, ao contrário, apoiam com
afinco seu desejo de aventurar na leitura. (PETIT, 2008, p.144).

O interesse, e até o desinteresse, que o adulto expressa pelos livros atrai a atenção da
criança que ainda não conhece a leitura, designando, e até refletindo, o valor do adulto. O adulto não
precisa ser da família para ser mediador, precisa ser respeitado e visto como alguém importante.
Petit (2008, p. 35) exemplifica tal questão em seu livro, com a história do importante escritor Patrick
Chaimoseau, vejamos:

Chaimoseau relata, em particular, a história de uma prisão onde trabalhou como educador e de um
jovem detento martinicano para quem levava livros em segredo. Uma vez mais, a inversão vai se
produzir graças a leitura. E não qualquer leitura; tratava-se de grandes escritores. Pouco a pouco, o
Caribe, as colônias da América vão ocupando a cela, e o jovem entra no jogo. Cito: ‘’Ele lia. Ele escrevia.
Lia. Escrevia. Minha amizade recente com o chefe da segurança lhe rendeu uma máquina de escrever.

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Passava seus dias, suas noites sobre ela. [...] Ao vê-lo escrever, tive consciência do potencial da leitura-
escrita em uma situação extrema. Meu novo amigo havia recriado para si uma densidade que anulava a
repressão do cárcere. Não tinha mais rancores, mas sim desejos. Projetava-se com confiança. Irradiava
energia.

A escrita, por sua vez, é um sistema complexo recheado de significados, descrito pela
pesquisadora na área de psicologia Lígia Márcia Martins como:

Dependente, em alto grau, do desenvolvimento das funções psíquicas superiores do comportamento


infantil. Nesse sentido, tanto Vygotski (1995, 1997, 2006) quanto Luria (1981, 2001) consideraram que a
aprendizagem da escrita principia muito antes do momento em que se coloca um lápis na mão da
criança. (MARTINS, 2012, p.146)

A escrita e a leitura iniciam-se muito antes da entrada na escola, visto que a sociedade
letrada está, a todo tempo, colocando letras e números que precisam e são interpretados pelas
crianças nas primeiras interações que são mediadas por familiares e pessoas próximas à criança, ao
exprimirem significado e diferentes valores de acordo com o valor associado ao sujeito mediador e a
mediação. Bakhtin expõe que o “centro de toda expressão está situado no meio social que envolve o
indivíduo” (BAKHTIN, 2002, p.121 apud OMETTO, 2005, p.13), sendo então sempre formado no decorrer
de interações.
Para que ocorra uma interação é preciso de duas ou mais pessoas, saindo ambas modificadas
após a experiência de leitura, tal como já explanamos anteriormente. Um dos depoimentos do livro de
Petit (2008, p. 199) é o de Zohra, jovem de origem argelina, que narra:

Meu pai, muitas vezes, lia o jornal, no dia do tiercé [uma espécie de loteria popular baseada em corridas
de cavalos]. Parecia que estava lendo. Ele até usa óculos hoje em dia; e ele continua, lê o jornal a partir
dos números. Conhece perfeitamente seu jornal [...] chega a codificar, encontrar pontos de referência”.
Assim, neste casal tão hostil à leitura, o pai é analfabeto… mas é, a seu modo, um ‘leitor”. Quanto à mãe:
“Muitas vezes minha mãe me dizia: ‘Você deveria escrever um livro’. Ela tinha vontade de contar sua
história! Porque muitas vezes nos contava histórias de família terríveis, e eu pensava em como seria
bom se eu pudesse escrever tudo aquilo, porque vou esquecer tudo o que ela me contava…”. Assim,
quase poderíamos nos perguntar se, ao se apropriar da cultura escrita e mais tarde tornar-se
bibliotecária, Zohra não deu voz a uma parte secreta de seus pais, se não realizou um desejo não
expresso por esta cultura letrada tão criticada. Ou também podemos pensar que a apropriação dos
livros por parte de Zohra e de suas irmãs revelou em seus pais um desejo desse tipo.

Neste caso, mesmo sem saber interpretar o que estava escrito no jornal, o pai de Zohra
entendia e sentia a importância da leitura, e sua que mãe exprimia a sede por histórias que pode ser
saciada com os livros. É possível, portanto, afirmar que com esses valores a filha foi se constituindo e
hoje exerce a profissão de bibliotecária.

5. OS MEDIADORES FORMAIS, EM AMBIENTES INSTITUCIONALIZADOS

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A escola é institucionalmente um lugar no qual professores e alunos compartilham e


buscam mais conhecimento, um lugar de possibilidades de ensino e aprendizagem, com mediação
intencional, e, por isso mesmo, a interação mediada acontece o tempo todo. O professor está todos os
dias com as crianças, ele sabe o conteúdo que deve ser explorado e orienta suas ações de forma a
alcançar tal objetivo. Para as professoras Roseli Fontana e Nazaré Cruz, nas situações
compartilhadas com o professor:

[...] a criança aprende significados, modos de agir e de pensar, e começa a elaborá-los. Ela também re-
significa e reestrutura significados, modos de agir e de pensar, e começa a se dar conta das atividades
mentais que realiza e do conhecimento que está elaborando. (FONTANA; CRUZ, 1997, p.66).

A mediação escolar é necessária para alcançar os objetivos da instituição, mas muito além de
conteúdos, a escola também perpetua escolhas, gostos, e comportamentos ao incitar o pensar e
refletir. Para Vigotski o professor deve fornecer pistas, instruir e dar assistência de forma a
interferir no desenvolvimento de seus alunos para propiciar elaborações que não ocorreriam
espontaneamente (FONTANA, 2005, p.66).
Buscando discorrer sobre as mediações da professora e o desenvolvimento da reflexividade
nas crianças, Ometto explicita seu entendimento acerca do papel do professor, mais especificamente,
no caso da escrita de textos: “de leitor que, expondo-se aos efeitos de sentidos suscitados pelos
textos de seus alunos, busca, com eles, outras formas de enunciá-los” (OMETTO, 2005, p. 166),
mediando novas formas de considerar seus interlocutores. Nesse sentido, os conceitos que serão
apropriados pelas crianças dependem das possibilidades que experienciam em suas interações. Sobre
isso, Fontana afirma:

A palavra alheia é incorporada pela criança como um dizer institucional e seu sentido é estabilizado [...].
A palavra alheia é reconhecida e re-elaborada pela criança, entrelaçando-se dinamicamente a suas
palavras interiores. Ela é re-significada, recortada, diluída, analisada, assumida parcialmente pela
criança, fundida a suas palavras interiores (formando com elas “híbridos orgânicos”). Nesse processo a
palavra do outro evoca, provoca, convoca outra palavras, organiza ou reorganiza as palavras interiores,
induz a novas generalizações… Mas ela é também questionada, colocada à prova pela criança que
busca/aponta novas possibilidades com/a partir dela. (FONTANA, 2005, p.160)

Os conteúdos e os gostos são reconhecidos e re-elaborados pela criança, podendo ou não, ser
interiorizados. Em “Os Jovens e a Leitura” (2008), Petit entrevista Nicolas, que detestava o sistema
escolar, mas que através de um professor desenvolveu o gosto pela leitura. Nicolas conta que o
professor os deixava escolher os livros que seriam lidos na escola, e que aos poucos toda a turma
acabou por se envolver.
Para muitos sociólogos e educadores a educação tem o poder de agir como ferramenta para
uma ascensão social, uma vez que essa pode através do ensino de conteúdos dar acesso ao

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844

reconhecimento de direitos e informações, ela pode lutar contra as desigualdades ao oportunizar o


conhecimento já historicamente apropriado. Contudo, não é possível afirmar que todos na escola a
utilizam como uma ferramenta de ascensão:

Se a escola fornece aos jovens os meios para libertá-los dos determinismos sociais, se alguns
professores fazem de tudo para “empurrar” as crianças, para ajudá-las a evitar o que é
preestabelecido, outros, infelizmente, contribuem para que a escola funcione como uma máquina de
reprodução da ordem social, uma máquina de exclusão. (PETIT, 2008, p.123)

Em concordância com essa afirmação de Petit, encontramos em Martins:

É claro que a referida elevação não é tarefa exclusiva da instituição escolar. Porém, para sua
efetivação, a escola desempenha papel insubstituível. É a finalidade emancipatória da educação que não
se pode perder de vista, posto que ela representa o desenvolvimento da verdadeira consciência por
meio das apropriações dos conhecimentos, dos conceitos, das habilidades, dos métodos e técnicas etc.,
de forma a poderem os homens intervir na realidade e tomar parte nela enquanto sujeitos do
desenvolvimento genérico da humanidade. (MARTINS, 2009, p.139).

Essas afirmações das autoras evidenciam a importância da reflexão do professor sobre seu
trabalho, em suas escolhas e sua formação profissional. É exigido deles que perpetuem
conhecimentos e também consigam transmitir às crianças gostos e preferências, mas para isso,
antes, estes mesmos precisam refletir sobre si, reconhecer gostos em si, modos de falar e perpetuar
o que eles mesmos utilizam para que assim alcancem seus alunos.
Outro potente mediador da leitura nos espaços escolares é o bibliotecário. Sobre o espaço da
biblioteca Petit (2008 p. 98), estende-se a explicar que a biblioteca não é um espaço democrático, e
sim um espaço que atende a “elite cultural”, já que muitos não se sentem confortáveis com sua
própria língua. Em sua pesquisa com jovens do meio rural e de bairros marginalizados, Petit (2013 p.
95), entrevistou muitos bibliotecários que relataram um certo medo que sentiam e sentem nos jovens
em relação à biblioteca, jovens que muitas vezes vivem em meios em que ler não é permitido e que
não tem acesso a uma diversidade ampla de bens culturais.
Anteriormente utilizada como um armazém de livros que poderiam ser consultados, a
biblioteca não consegue se manter ativa e organizada sem um bibliotecário ou sem que alguém esteja
disponível em dedicar-se a zelar por ela. O bibliotecário deve estar atento às curiosidades dos
frequentadores a fim de orientar os sujeitos em suas buscas, proporcionar aos leitores materiais
diversos e serviços adequados para o desenvolvimento individual e coletivo, tendo sempre em mente
seu papel na biblioteca: oferecer oportunidades, materiais e atividades específicas (GOMES, p.3).
Cumprindo seu papel, o bibliotecário é capaz de despertar o interesse da comunidade pela biblioteca e
empenhar-se em desenvolver o gosto destes pela leitura, como demonstrado por Abdallah, um jovem
entrevistado por Petit, (2013, p.108) “quando se recorda um livro de imagens que uma bibliotecária lhe

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845

havia recomendado: Isso me apaixonava, me motivava porque tinha um mundo próprio na escola. Isso
me motivava para ir à escola”.
A relação daquele que “zela” pelos livros na biblioteca com seus leitores é fundamental para
desenvolver o gosto em estar no ambiente, em encontrar novos mundos e gostar mais ainda de ler, o
bibliotecário pode ser a pessoa ideal para proporcionar a abertura do outro à leitura através de
atividades no espaço da biblioteca. Interações, narrações de histórias para as crianças menores e até
partilhar gostos e curiosidades com os jovens são algumas práticas que podem ser adotadas pelos
bibliotecários. Segundo Petit (2013, p.25), o bibliotecário deve criar um encontro capaz de mudar a
relação do sujeito com os livros, seu papel

[...] é dar às crianças e aos adolescentes a ideia de que, entre todas essas obras, certamente haverá
alguma que saberá lhes dizer algo em particular. É multiplicar as ocasiões de encontros, de
descobertas. É também criar espaços de liberdade onde os leitores possam traçar caminhos
desconhecidos e onde terão disponibilidade para discutir com eles sobre essas leituras, se assim o
desejarem, sem que ocorram intromissões caso esses leitores queiram guardar suas descobertas para
si. (PETIT, 2013, p.37).

Assim como Abdallah, muitos sujeitos mudam sua relação com a leitura em um encontro com
um livro ou com uma pessoa que lhe apresenta a leitura como algo divertido, desafiador e até
assustador, despertando seu interesse e vontade de alcançar o novo sem sair de sua cadeira. Todos
podem desempenhar tal papel de iniciador à leitura, entretanto o bibliotecário está todos os dias
dentro da biblioteca, e é seu trabalho promover que toda escrita que nela repousa seja aberta e
consumida por um leitor, por dois e para todos aqueles que se interessarem pela prática de leitura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa, como explicada por Benjamin (1994), possibilita a reflexão ao se penetrar pelo
meio da voz do narrador à vida de cada ouvinte, estendendo a nossas vidas e experiências passadas
(FREITAS; FIORENTINI, 2007, p.64) para (re)significar o futuro. A literatura, assim como experienciada
pelos jovens entrevistados por Petit, mostra seu potencial formativo ao causar a também
ressignificação do sentido atribuído por quem compreende e interpreta o texto, capaz até de avançar
barreiras sociais pois "ela [a literatura] pode, por um mecanismo parecido, nos tornar mais aptos a
enunciar nossas próprias palavras, nosso próprio texto, e a ser mais autores de nossas vidas" (PETIT,
2008, p.37) ao atribuirmos significados que voltam a nós e nos constituem dando certo acabamento
(BAKHTIN, 2003).
Como característica humana, a imaginação é o caminho utilizado pela narrativa para se
chegar à experiência simbólica e para transbordar a visão do homem (BAKHTIN, 2003), agindo de
modo novo como se se encontrasse em uma situação real (LARROSA, 2002). Ao lermos damos feições
aos personagens, cores aos cenários e voz a todas as palavras que tomam forma e significados de
acordo com a interpretação de cada um, dessa forma conseguindo exprimir a humanidade de cada

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sujeito, exprimindo autonomia suficiente para traçarem um destino diferente do conhecido. A


antropóloga francesa afirma:

Os escritores nos ajudam a nomear os estados pelos quais passamos, a distingui-los, a


acalmá-los, a conhecê-los melhor, a compartilhá-los. Graças a suas histórias, escrevemos a nossa,
por entre as linhas. E porque tocam o mais profundo da experiência humana - a perda, o amor, o
desespero da separação, a busca de sentido - não há razão para que os escritores não toquem cada
um de nós. E é exatamente nesse ponto que jovens leitores vindos de meios desfavorecidos podem,
muitas vezes, se encontrar com eles. Com frequência esses jovens relatam como certos textos,
nobres ou humildes - mas também filmes ou canções - lhes ajudaram a viver, a pensar em si mesmos,
a mudar um pouco seu destino. (PETIT, 2008, p.39)
Simplesmente "alargar o conhecimento da própria cultura e o interesse pela cultura alheia
pode ser um bom motivo para ler e para estudar literatura" (ABREU, 2006, p.112).
Especificamente sobre a leitura da literatura, essa discussão nos possibilita afirmar que seu
valor é atribuído por quem interpreta, compreende e se articula ao texto, dele apropriando-se. Ler,
nesse sentido, é uma atividade constitutiva do sujeito pois leva-o para além de si mesmo e o retorna a
seu lugar, contudo, quem retorna, já não se configura da mesma forma, tendo expandido seu
horizonte, suas possibilidades, sem sequer sair do lugar em que se encontra fisicamente.
Petit (2013, p.21) nos lembra que “promover a leitura” é uma ideia de pouco tempo atrás,
quando o livro deixou de significar apenas perigo à ordem da sociedade. Entretanto para que o leitor
se estabeleça é necessário um mediador de leitura entre sujeito e textos, alguém capaz de criar uma
relação familiar com o livro, Petit anuncia:

O que podem fazer os mediadores de livros é, certamente, levar as crianças - e os adultos - a uma
maior familiaridade, uma maior naturalidade na abordagem dos textos escritos. Transmitir suas paixões,
suas curiosidades, e questionar sua profissão, e sua própria relação com os livros, sem ignorar seus
medos. (PETIT, 2013, p.29).

O mediador pode ser qualquer um ao redor do jovem que tenha essa familiaridade com o
mundo da leitura, e que consiga atrair o sujeito para esse mesmo mundo. O papel do mediador “é dar
às crianças e aos adolescentes a ideia de que, entre todas essas obras, certamente haverá alguma
que saberá lhes dizer algo em particular. É multiplicar as ocasiões de encontros, de descobertas”
(PETIT, 2013, p.37).
Muitos são os que podem disseminar o gosto pela leitura, mas determinadas posições sociais
e determinados espaços são profícuos para que que isso aconteça, como o caso do professor na sala
de aula e do bibliotecário na biblioteca.
Quanto ao professor, este pode ser alguém muito próximo ao jovem e incentivá-lo a ler
utilizando seus próprios gostos, revelando seu apreço pelo livro e colocando os alunos em contato
com diversos materiais de leitura, contudo, o professor também pode ser aquele que massifica a

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leitura ao exigir atividades desconexas apenas para verificar a leitura, ao fragmentar demais os
textos e repreender diferentes tipos de texto. A biblioteca, por sua vez, pode espantar os jovens
curiosos de seu interior ao se mostrarem inacessíveis ou hostis, todavia, também pode ser espaço de
refúgio para muitos jovens que se encontrarem em proximidade à leitura. Rosalie, uma jovem
entrevistada por Petit, nos conta que “a biblioteca, os livros, eram a maior felicidade, a descoberta de
que havia outro lugar, um mundo, mais longe, onde eu poderia viver. [...] Sem a biblioteca eu teria
ficado louca, com meu pai gritando, fazendo minha mãe sofrer. A biblioteca me permitia respirar;
salvou-me a vida” (PETIT, 2013, p.13).
Para finalizar, destacamos o que afirma Petit (2009, p.113) “a literatura é capaz de
transformar o inenarrável em narrável modificando o homem”.

REFERÊNCIAS

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OMETTO, Cláudia Beatriz de Castro Nascimento; CRISTOFOLETI, Rita de Cássia. As relações de ensino produzidas na sala
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PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: 34, 2008.
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VIGOTSKI, Lev Semenovitch. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
VIGOTSKI, Lev Semenovitch. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

NARRATIVAS
RESUMO
849
Chegar à velhice é uma realidade populacional
mesmo nos países mais pobres. Ainda que a
melhora substancial dos parâmetros de saúde das

ESTRATÉGIAS DE populações observada no século XX esteja longe de


se distribuir de forma equitativa nos diferentes
países e contextos socioeconômicos, envelhecer

COMUNICAÇÃO USADAS
não é mais privilégio de poucos. Uma das
importantes mudanças biológicas que acomete os
idosos é a perda auditiva ou presbiacusia, e como
consequência podem ocorrer uma série de

POR IDOSOS NAS dificuldades na comunicação oral e na interação


social e familiar. Este trabalho busca investigar as
estratégias de comunicação usadas pelos idosos

INTERAÇÕES SÓCIO
durante as interações sócio verbais. Para tanto foi
realizada uma entrevista semiestruturada com
idosos participantes de uma Oficina da linguagem
que ocorreu em uma Universidade localizada no Sul

VERBAIS do Brasil durante o ano de 2016. Os resultados


foram analisados a partir da análise dialógica do
discurso que demonstrou que as atividades
dialógicas têm efeitos positivos no processo de
interação sócio-verbal, impactando na maneira
como os idosos participam dessas interações. A
partir da análise dos enunciados pode-se concluir
que todos os idosos participantes da oficina da
GOLINELLI, Rayssa Thayana126 Linguagem fazem uso de estratégias para ouvir
melhor quando o ambiente em que eles estão
GUARINELLO, Ana Cristina127 inseridos lhes proporciona acolhimento e
valorização.
PAISCA, Adriele Barbosa128
Palavras-Chave: Idoso. Audição. Fonoaudiologia.

INTRODUÇÃO

C
hegar à velhice é uma realidade populacional mesmo nos países mais pobres. Ainda que a
melhora substancial dos parâmetros de saúde das populações observada no século XX esteja
longe de se distribuir de forma equitativa nos diferentes países e contextos socioeconômicos,
envelhecer não é mais privilégio de poucos. A partir disso, é preciso que as ações destinadas aos
idosos considerem a capacidade funcional, a necessidade de autonomia, de participação, de cuidado e
de auto-satisfação dessa parcela da população (DEBERT et al, 2009).
Com relação à capacidade funcional dos idosos, cabe ressaltar que o envelhecer provoca
mudanças biológicas, psicológicas e sociais; Uma das impostantes mudanças biológicas que acomete
os idosos é a perda auditiva ou presbiacusia. No Brasil, a presbiacusia vem sendo citada como a causa
mais frequente da deficiência auditiva em idosos, podendo resultar como consequência em uma série
de dificuldades na comunicação oral e na interação social e familiar (PAIVA et al, 2014)

126 Graduanda em Fonoaudiologia. Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: rtgolinelli@hotmail.com


127 Doutora em Linguística. Docente da Graduação em Fonoaudiologia e do Programa de Pós Graduação em Distúrbios da Comunicação da
Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: Ana.guarinello@utp.br
128 Graduanda em Fonoaudiologia. Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: dri.paisca@outlook.com

NARRATIVAS
850

Estudos demonstram o impacto significativo que a presbiacusia exerce na qualidade de vida e


no bem-estar do indivíduo idoso, relacionando a perda auditiva à depressão e ao isolamento. Do ponto
de vista emocional, além da depressão, as perdas auditivas podem acarretar em uma série de
sentimentos negativos, como frustração, embaraçamento ou culpa pela incapacidade de se comunicar
de maneira eficaz (FERREIRA et al, 2015). Além disso, a baixa auto-estima, os sentimentos de exclusão
e o isolamento social do indivíduo idoso são relacionados às dificuldades para ouvir durante as
interações interpessoais e com o meio social em que vive (RAMOS et al, 2012).
Observa-se que muitos estudos publicados na área da Fonoaudiologia, relacionam as perdas
auditivas apenas a aspectos orgânicos que ocorrem no envelhecimento e aos efeitos negativos destas
perdas na qualidade de vida desta população e também referindo-se especificamente a aspectos que
levam em conta o uso eficiente dos aparelhos auditivos. Cabe, porém esclarecer que apesar das
perdas ocasionadas pela velhice, esse período da vida não deve ser caracterizado apenas por perdas
e limitações, mas sim pelo entendimento dessa fase da vida como um período para elaboração de
novas produções discursivas, melhores condições de progresso e desenvolvimento para os cidadãos
que envelhecem (LOURENÇO et al, 2014).
A partir dessa visão, outros estudos da Fonoaudiologia propõem atividades com essa parcela
da população que levem em conta aspectos que além dos orgânicos, ou seja, que considerem a
participação social, a autonomia e o envelhecimento ativo. Um exemplo disso é o trabalho realizado
em oficinas da linguagem com pessoas idosas, nas quais ocorrem efetivas interações dialógicas que
discutem temáticas como: envelhecimento, linguagem, letramento, saúde, educação, entre outros.
Ressalte-se, que esse tipo de trabalho constituído na diversidade, torna possível a formação de uma
rede de relações, onde cada participante pode expor sua ideias e estas se tornarem temas de
discussões. Entende-se assim que o trabalho com idosos em oficinas da linguagem pode ocasionar
transformações em seus participantes.
Deste modo, estabeleceu-se como objetivo desse estudo investigar as estratégias de
comunicação usadas por idosos com e sem perda auditiva participantes de uma oficina da linguagem
durante suas interações sócio verbais.

METODOLOGIA

Este estudo, de caráter pesquisa intervenção vincula-se ao Curso de Fonoaudiologia e aos


Programas de Mestrado e Doutorado de uma Universidade situada no sul do Brasil. Especificamente
no ano de 2016, participaram desta Oficina oferecida pelo curso de Fonoaudiologia, alunos da
graduação deste curso, duas fonoaudiólogas coordenadoras e sete idosos participantes desta
pesquisa.
Para o desenvolvimento das atividades foram realizados 25 encontros, semanalmente, no
período de fevereiro a dezembro de 2016, sendo que cada encontro foi norteado por um tema
diferente. As atividades dialógicas foram mediadas por práticas orais, de leitura e de escrita

NARRATIVAS
851

relacionadas a histórias de vida dos participantes. Assim durante as oficinas foram realizadas
discussões e diálogos entre os participantes a partir de leituras de textos e diálogos coletivos. Depois
disso, as atividades voltavam-se a produção de narrativas orais e escritas acerca de momentos
significativos da vida dos idosos, ou seja, de fatos marcantes de suas histórias.
A coleta de dados realizou-se por meio de uma entrevista individual composta por um roteiro
de perguntas que propicia certo manejo ao entrevistador em realizar ajustes durante o momento de
sua realização. Esta continha 15 questões norteadoras, que tratavam da auto- percepção da audição e
da escuta, e da investigação de estratégias de comunicação usadas pelos idosos para facilitar sua
audição quando estão interagindo. Neste trabalho serão levadas em conta apenas as perguntas
referentes às estratégias auditivas utilizadas pelos idosos nos momentos de interação.
As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, e a análise e interpretação dos
dados foi realizada a partir da perspectiva bakhtiniana de linguagem.
O pressuposto de pesquisa-intervenção adotado nesse estudo delineado pelos fundamentos
bakhtinianos considera que há vantagens na construção de um espaço de ressignificação de ideias,
além de seu caráter ativo e transformador da realidade (BARROS et al, 2015).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nos enunciados abaixo estão explicitados alguns exemplos das estratégias auditivas usadas
pelos idosos durante os momentos de interação, os quais serão posteriormente analisados:

S1 “Acho que presto mais atenção. Escutar e não prestar atenção não adianta.”
S2 -“Eu tenho a mania de buscar o silenciamento. Costumo chegar aqui e limpar a mente para conseguir
ouvir o que está acontecendo aqui, porque gosto de focar no que faço [...]”.
S3- “Eu acho que com o aparelho eu escuto bem [...] Sinto dificuldade quando sento com alguém no
ônibus e ela fala comigo do lado em que não uso aparelho...Eu acabo pedindo pra ela sentar do lado em
que uso aparelho [...] No telefone também... às vezes eu tenho mais dificuldade para ouvir...Em festas eu
acabo ficando mais na minha pela dificuldade em entender quando muita gente fala ao mesmo tempo..
Não gosto de ficar pedindo para repetir o que disse quando não conheço a pessoa direito ... quando dá
eu tento me aproximar dela para escutar mais.”

No enunciado 1, nota-se que a estratégia citada pelo sujeito, o qual descobriu ter perda
auditiva no período em que frequentava a oficina, foi prestar mais atenção, ou seja, estar mais atento
a situação e ao contexto interativo. É preciso explicar que essa estratégia é realizada durante todas
as interações verbais por quem tem perda e também por quem não tem. Para compreender o outro é
preciso estar atento ao outro ter uma compreensão responsiva. Um exemplo disso, pode ser
visualizado no enunciado 2, de um sujeito com audição normal, ele explica que para compreender o
que está acontecendo no grupo precisa silenciar, ou seja, focar no que está acontecendo.
Esse conceito bakhtiniano de compreensão responsiva acontece pela resposta no diálogo ou
pela resposta silenciosa. Essa compreensão só acontece porque os falantes dividem conhecimentos

NARRATIVAS
852

de contexto ideológicos e sócio históricos. No entanto, entende-se que a resposta pode não vir logo
depois da pronúncia do enunciado, porque a compreensão responsiva pode ser realizada da seguinte
maneira: imediatamente na ação (cumprimento de ordem, comando entendidos e outros); como por
meio da compreensão responsiva silenciosa, denominada também de compreensão responsiva
retardada, na qual o que foi dito é ouvido ativamente só será respondido nos discursos seguintes,
utilizando- se, até mesmo, de um comportamento como resposta (PONZIO, 2010).
Já o Enunciado 3 de outro sujeito entrevistado mostra que dependendo da situação, do
contexto em que as interações verbais estejam acontecendo, há um movimento maior de escuta por
parte dessa participante, assim ora ele pede para repetir, ora senta do lado do ouvido melhor, etc. Tal
enunciado corrobora com um estudo o qual explicita que para ouvir os outros precisamos ter
compartilhamentos, idéias acerca do mundo e das relações dialógicas em comum (FARACO,2009).
Durante as interações dialógicas, dependendo de com quem se fala, o que se fala e em que situação
temos uma compreensão mais ativa, independente de ter perda auditiva ou não.
A escuta da oficina da linguagem aqui proposta, parte do escutar a palavra de cada um, por
meio de uma escuta única, não redutível ao desejo de ouvir a língua, mas sim ouvir o outro. Escutar
como compreensão do sentido da enunciação, entendendo que o destinatário da palavra é ativo e
parte sempre de uma posição responsiva, por meio do encontro de palavras. Entende-se, portanto que
“cada enunciação viva, mesmo aquela de quem começa a falar, tem um caráter de resposta ativa e
cada compreensão é, por sua vez, uma resposta, antes mesmo que o ouvinte “tome a
palavra”(PONZIO, 2010).
A partir dos enunciados dos idosos que participaram desta oficina, percebeu-se que as
mesmas podem ser consideradas um espaço para realizar práticas discursivas que oportunizam
tanto uma libertação do passado quanto a abertura de um porvir. Desse modo, nesses local torna-se
crucial a participação dos idosos, sendo permitido a eles falarem e fazer uso da palavra oral e/ou
escrita, pois se entende que o processo de transformação subjetiva e social acontece através do
discurso. Essas atividades não podem ser entendidas por meio de noções simplistas que tomam os
enunciados isolados do seu contexto de produção. Os enunciados são entendidos em função da sua
complexidade e heterogeneidade, pois se entende que para haver enunciação há necessidade da
existência de dois interlocutores situados no tempo e no espaço, os quais participam do diálogo
responsivamente de forma singular, sendo constituídos a partir das relações sociais que estabelecem
(ALVAREZ et al, 2015).
Assim, tal proposta interventiva busca um conhecimento que faça sentido para a vida do
sujeito. Ao conhecer a realidade concreta dos idosos, o pesquisador passa a trilhar um caminho ativo
e responsivo em relação às práticas discursivas, onde os eventos acontecem, se formam e se
transformam por meio da palavra. Deste modo, a criação de um espaço para dialogar, valorizar as
vozes e envolver os participantes é fundamental para a reaproximação com o uso da língua escrita e
falada e a ressignificação da história de vida de cada sujeito (TORQUATO et al, 2011).

NARRATIVAS
853

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo demonstrou que as atividades dialógicas têm efeitos positivos no processo
de interação sócio-verbal, impactando na maneira como os idosos participam dessas interações.
A partir da análise dos enunciados pode-se concluir que todos os idosos participantes da
oficina da Linguagem fazem uso de estratégias para ouvir melhor quando o ambiente em que eles
estão inseridos lhes proporciona acolhimento e valorização.

REFERÊNCIAS

ALVAREZ, D. França, M.B.; Figueiredo, M. Exercício analítico sobre o método: aspectos linguageiros na atividade dialógica
com trabalhadores de exploração e produção no setor petrolífero. Revista Laboreal, 2015.
BARROS, J.P.P.; Colaço, V.F.R. Drogas na escola: análise de vozes sociais em jogo. Revista educação e realidade, 2015
CAMARGOS, M.C.S.; Gonzaga, M.R. Viver mais e melhor? Estimativas de expectativa de vida saudável para a
população brasileira. Cad. Saúde Pública, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
311X2015000701460&script=sci_abstract&tlng=pt >Acesso em: 27 Set.2017.
DEBERT, G.G. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. 1° Ed. São Paulo:
EDUSP, 2009.
FARACO, C.A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editora, 2009
FERREIRA, C.K.; Massi, G.A.A.; Guarinello, A.C.; Mendes, J. Encontros intergercionais mediado pela linguagem na visão de
jovens e de idosos. Revista Distúrbios da comunicação, 2015.
LOURENÇO, R.C.; Massi, G.; Lima, R.R. Trabalho com a linguagem e envelhecimento: uma busca por ressignificação de
histórias de vida. Revista CEFAC, 2014.
PAIVA, S.; Paiva, A.D. Patologia Otorrinolaringológica e Envelhecimento. Geriatria - Saber e Praticar. Lidel, Edi.
Coimbra; 2014.
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
RAMOS, P.Z. Estudo da Etiologia da Perda Auditiva em Amostra de Indivíduos Brasileiros: diretrizes para
protocolo de conduta clínica. [Dissertação]. Mestrado acadêmico em Genética e biologia molecular. São Paulo:
UNICAMP; 2012.
TORQUATO, R.; Massi, G.; Santana, A.P. Envelhecimento e letramento: a leitura e a escrita na perspectiva de
pessoas com mais de 60 anos de idade. Psicol. Reflex. Crit, 2011. Disponível em: <
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722011000100011> Acessado em: 27 Set, 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
854

CONFESSO QUE VIVI: uma Palavras-Chave:

análise bakhtiniana dos discursos


autobiográficos de Pablo Neruda

GOMES, Camilla129
CORRÊA, Renata130
Tudo está na palavra... Uma idéia inteira muda porque uma
palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma
rainha dentro de uma frase que não a esperava e que obedeceu a
ela...
(NERUDA, 2010, p. 64)

INTRODUÇÃO

E
ste ensaio se propõe a ser uma breve análise dialógica das narrativas autobiográficas de Pablo
Neruda em seu livro Confesso que Vivi. Não nos ocupamos aqui da busca pela veracidade dos
fatos ou em tecer uma cronologia de sua trajetória de vida, tendo em vista que não nos
pretendemos biografistas. Investigando o diálogo entre autor e personagem, entre o eu-memorialista
e o eu-poeta de Neruda, bem como seus enunciados em prosa e poesia, interessa-nos os discursos
produzidos por ele ao costurar sua própria colcha de memórias, os sentidos que atribuiu às suas
palavras e à sua existência.
Tampouco mergulharemos em todas as pontas da arquitetônica bakhtiniana, tecido por demais
vasto e complexo para as limitações deste trabalho, atendo-nos a uma análise dialógica do discurso a
partir das teses de Bakhtin a respeito de autobiografias, da relação autor e personagem e dos
gêneros discursivos prosa e poesia.

ENTRE O AUTOR E O PERSONAGEM, ENTRE O MEMORIALISTA E O POETA

Neruda apresentou como principais características ao longo de sua trajetória enquanto poeta
o amor, o engajamento político e a reverência à sua terra em suas obras.

129
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. E-mail: camillaestevamgomes@gmail.com
130
Especialista em Educação de Jovens e Adultos na Diversidade e Inclusão Social. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal Fluminense. E-mail: renatacorreauff@gmail.com

NARRATIVAS
855

Para contextualizarmos o autor realizaremos um breve recorte biográfico a partir da infância


do poeta, esforço com que o próprio Neruda nos brinda em sua obra Confesso que vivi. Nas primeiras
páginas do livro, por meio de sua prosa poética, o autor nos apresenta o Chile de sua infância e nos
permite sentir um pouco de sua vida, do lugar onde se constituiu enquanto sujeito.
Nascido em Parral131, em 12 de julho de 1904, filho de Rosa Basoalto de Reyes, que faleceu um
mês após seu nascimento, e José del Carmen Reyes Morales, que, inicialmente, trabalhou como
operário dos diques do porto de Talcahuano, terminando, como ferroviário em Temuco. Esta origem de
classe, por certo, foi um dos eixos fundantes do olhar de Neruda sobre a sociedade e de seu papel
nela.
Ao longo de Infância e Poesia, texto localizado no caderno o Jovem Provinciano, Neruda
ambienta suas memórias a partir da história de sua família, das belezas do Chile do início do século
XX. Através do compartilhar do seu espaço-tempo vivido, nos possibilita compreender um pouco os
caminhos percorridos pelo seu eu memorialista da sua própria vida e da vida do poeta.
O poeta já era por si só o personagem de sua própria autoria, nascido Nefatli Ricardo Reys
Basoalto, a partir dá década de 1920, adotou o pseudônimo Pablo Neruda até que este passou a ser
seu nome reconhecido em registro civil. Segundo ele, o uso do pseudônimo deu-se em função de
divergências com o pai e relata:

Quando eu tinha quatorze anos de idade, meu pai perseguia denodadamente minha atividade literária.
Não concordava em ter um filho poeta. Para encobrir a publicação de meus primeiros versos busquei
um sobrenome que o despistasse totalmente (NERUDA, 2010, p. 189).

Um dos aspectos importantes em destaque, tanto em suas poesias, quanto nas narrativas
autobiográficas é seu amor versado em intensidade por Matilde Urrutia. O autor possui uma trajetória
de vida trançada por três casamentos e muitas paixões que serviram de alimento para a construção
de seus enunciados poéticos de amor. Contudo, foi em Matilde que encontrou sua grande companheira
com quem passou o resto de seus dias em Isla Negra.
A vida pública de Pablo é marcada por sua ação militante como membro do Partido Comunista
chileno e inúmeros papéis que figuraram em sua biografia, entre a vida diplomática e a parlamentar,
passando pela candidatura à presidência da república e renúncia em favor de Salvador Allende.
Neruda morre pouco tempo depois de instalada a ditadura no Chile.
A vida e a obra de Neruda são compostas por uma mistura de poesia, lirismo e engajamento,
arte e política, conforme nos apontam Junior Ivan Bourscheid e José Renato Ferraz da Silveira (2012-
2013) em texto dedicado à trajetória política do poeta. De acordo com os autores, a partir de sua
literatura é possível percebermos e, talvez, acompanharmos seu pensamento e ação política. O
percurso afetivo e militante de Neruda é, extremamente, relevante para compreendermos sua obra.
Contudo, interessa-nos, neste ensaio, apreendermos os possíveis cenários em que nasceram suas

131 Comuna da província de Linares, Parral encontra-se localizada na Região de Maule, no Chile.

NARRATIVAS
856

enunciações e uma provável cama onde se deitaram as diversas situações discursivas tanto do autor,
quanto do personagem.
Confesso que Vivi já nos mobiliza o olhar numa perspectiva bakhtiniana de análise logo na
página em que anuncia uma espécie de convite ao leitor. Lá Neruda esclarece:

Estas memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é
exatamente assim. A intermitência do sonho nos permite suportar os dias de trabalho. Muitas de minhas
lembranças se toldaram ao evocá-las, viraram pó como um cristal irremediavelmente ferido. As
memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele viveu talvez menos, porém fotografou
muito mais e nos diverte com a perfeição dos detalhes; este nos entrega uma galeria de fantasmas
sacudidos pelo fogo e a sombra de sua época. Talvez não vivi em mim mesmo, talvez vivi a vida dos
outros [...] Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta (NERUDA, 2010).

Aqui ficam evidentes as marcas entre autor e personagem nos enunciados autobiográficos de
Neruda. Primeiramente, destacamos que a ação de recordar e reconstruir o passado já vem
carregada de memória criativa em função da passagem do tempo e de ressignificação. Esta
reconstituição do tempo vivido e dos fatos traz interferências do nosso eu presente e das projeções
do porvir.
Segundo Bakhtin (2010)

A maneira de recordação tranquila do nosso passado que ficou distante de nós é estetizada e
formalmente próxima da narração (as lembranças à luz do futuro do sentido são lembranças
pertinentes). Qualquer memória do passado é um pouco estetizada, a memória do futuro é sempre
moral (BAKHTIN, 2010, p. 140).

O convite de Neruda nos leva a refletir sobre efemeridade da memória ao apontar, tanto a
falta de cronologia e linearidade de sua autobiografia, quanto sua intermitência. Do mesmo modo, ele
enuncia interferências do passado no presente e vice-versa, onde as lembranças do seu eu-
memorialista apresentam relativizações e seletividades quanto às experiências e tempo vivido por ele
a partir de referenciais do seu estar no mundo presente. Denotamos aí a atividade criadora do tempo
onde o passado, ao recuperar-se, apresenta-se como uma potência criativa de ressignificação do
presente e projeção do futuro.
Mas em que sentido a autobiografia de Neruda se aproximaria das teses de Bakhtin?
Primeiramente, se considerarmos que “biografia ou autobiografia (descrição de uma vida) [é
uma] forma transgrediente imediata em que posso objetivar artisticamente a mim mesmo e minha
vida” (BAKHTIN, 2010, p. 139), inferimos que é necessário um olhar de fora, uma contemplação da vida.
Neruda aponta exatamente isso ao descrever seu processo autobiográfico a partir de uma aparente
dualidade entre o memorialista e o poeta, como se o primeiro – o autor, contemplasse o segundo – o
personagem. De um lado o sujeito que traz o passado em forma de “fantasmas” (autor, eu-
memorialista), do outro o poeta, o que “viveu menos e divertiu mais” (personagem de si).

NARRATIVAS
857

Bakhtin (2010) descreve a exterioridade do processo de produção de um autorretrato, como


sendo uma depuração da “expressão do rosto refletido, o que só é possível com o artista ocupando
posição firme fora de si mesmo [...]”(BAKHTIN, 2010, p. 31). O discurso de Neruda, do mesmo modo,
apresenta esta ideia do eu-memorialista, como este artista com olhar de fora, criando e recriando-se
no eu-poeta, no seu autorretrato. Este “autorretrato” carrega aspectos ilusórios e não “produz uma
imagem completa da própria imagem externa na personagem autobiográfica [...]” (Ibdem, p. 32).
Esta estetização do passado, confirma-se, também, na multiplicidade de “vidas” a que ele se
refere, todas vinculadas às suas experiências acumuladas, social (na relação com o outro) e
historicamente, ao longo de sua existência, narradas em determinadas situações discursivas.
Chama-nos a atenção a quase dicotomização entre o autor e o personagem no decorrer do
convite, como se não fossem ambos imbricados e coincidentes em sua relação, como se a existência
de um eu não exigisse a existência de um outro, onde ambos estão no mundo construindo-se em
coletividade. Esta proposição contradiz as teses de Bakhtin ao afirmar que

[...] a personagem e o narrador podem facilmente intercambiar posições: seja eu a começar narrando
sobre o outro, que me é íntimo, com quem vivo uma só vida axiológica na família, na nação, na sociedade
humana, no mundo, ou o outro a narrar a meu respeito, de qualquer forma eu me entrelaço com a
narração nos mesmos tons, na mesma configuração formal que ele (Ibdem, p. 141).

E, ainda, discorre sobre a transformação do narrador em personagem

Ao narrar sobre minha vida cujas personagens são os outros para mim, passo a passo eu me entrelaço
em sua estrutura formal da vida (não sou o herói da minha vida mas tomo parte nela), coloco-me na
condição de personagem, abranjo a mim mesmo com minha narração; as formas de percepção
axiológica dos outros se transferem para mim onde sou solidário com eles (Ibdem, p. 141).

Sendo assim, ao passo que Neruda parece negar a coexistência entre autor e personagem,
este entrelaçamento na mesma vida vivida, caminha ao final do enunciado para uma espécie de
rendição ao assumir-se como uma constelação de vidas constituída de si e da “vida dos outros”, “das
vidas do poeta”. Aqui há a expressão do encontro entre o seu eu-memorialista e seu eu-poeta.

OS GÊNEROS LITERÁRIOS DO MEMORIALISTA-POETA OU DO POETA-MEMORIALISTA

Primeiramente, as memórias de Neruda situam o leitor em seu passado vivido, em seus


diferentes papéis, nas suas muitas vidas, em sua infância, em seu engajamento político, em seus
amores.
Apesar de, inicialmente, provocar o leitor com a aparente “ruptura” entre ele mesmo e seu
outro, o entrelaçamento entre o memorialista e o poeta fica explícito em Confesso que Vivi. Só um
poeta poderia recuperar o passado com tamanho lirismo como o marcado em sua prosa.

NARRATIVAS
858

Entre a dialogicidade da prosa do memorialista e monologicidade da poesia de seu


personagem, não há um abismo que os separa e, sim, gêneros discursivos embebidos de seus
respectivos contextos e imbuídos de intencionalidade.
Neruda dirigiu sua poesia a um horizonte social do discurso, desejando que sua representação
poética da sociedade fosse direcionada, prioritariamente, ao proletariado com quem, por meio deste
gênero discursivo, se colocava num lugar de encontro com ele. Seu enunciado reafirmava seu
engajamento político e residia ali a intencionalidade de seus versos. Conforme o poeta

O caminho da poesia vai para fora, pelas ruas e fábricas, escuta todas as portas dos explorados, corre e
adverte, sussurra e congrega, ameaça com a voz pesada todo o futuro, está em todos os lugares das
lutas humanas, em todos os combates, em todas as campanhas que anunciam o mundo que nasce,
porque com força, com esperança, com ternura e com dureza faremos com que ele nasça. Nós, os
poetas? Sim, nós, os povos! (NERUDA, 2002, p. 40-41).

Reivindicava uma poesia que falasse para além das fronteiras do círculo elitista, um discurso
poético que se tornasse experiência para o leitor na medida em que o afetasse. Contudo, havia esta
plateia específica com quem Neruda intentava estabelecer vínculo identitário, com quem queria por
meio de sua poesia falar com. Segundo ele

Mas a publicação de poesia para poeta não me tenta, não me provoca, não me incita senão a me
emboscar na natureza diante de um rochedo ou de uma onda, longe dos editoriais, do papel impresso... A
poesia perdeu seu vínculo com o distante leitor. É preciso recobrá-lo... É preciso caminhar na escuridão
e se encontrar com o coração do homem, com os olhos da mulher, com os desconhecidos das ruas, dos
que a certa hora crepuscular ou em plena noite estrelada precisam nem que sejam de um único verso...
(NERUDA, 2010, p. 303)

Um exemplo de seu engajamento político traduzido em poesia, com intenção de afetar os


homens e mulheres proletárias, encontra-se no poema A vitória, dedicado à vitória eleitoral de
Salvador Allende quando eleito a presidência da República do Chile.

E assim cheguei com Allende à arena,


ao enigma de uma ordem insurgente,
à legal revolução chilena

que é uma rubra rosa pluralista.

E foi com meu Partido Comunista


(belo como um desfile proletariado)
quando no mundo um dia sobreveio

este caminho revolucionário

A todos os povos ergo nosso vinho


com a taça à altura do destino. (NERUDA, 1980, p. 94)

NARRATIVAS
859

O eu-político de Neruda manifestou-se, também em sua prosa autobiográfica, sobre o mesmo


tema. Percebemos ali uma ausência do autor efusivo diante da vitória de Allende tal qual se mostra na
poesia acima. Em suas memórias, ele apresenta um discurso mais descritivo e formal, distante da
enunciação do poeta e mais próximo do enunciado do memorialista, mesmo compreendendo a
imbricação entre ambos.
Esta fala evidencia-se neste trecho do Caderno 12, de Confesso que vivi, quando diz “Mais
tarde, já presidente de fato e de direito do Chile, sua implacável eficiência causou quatro ou cinco
enfartes entre seus colaboradores” (NERUDA, 2010, p. 387). Fica para nós algumas interrogações, se
“cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2010, p.
262), a distância entre a prosa e a poética de Neruda residiria nos horizontes sociais distintos de
seus enunciados? Seria, então, um sinal de que de fato, conforme sua intenção, sua poesia destinava-
se a uma ação política junto ao proletariado, enquanto, sua prosa, neste caso, autobiográfica, voltava-
se para uma platéia composta por seus pares? Acrescentamos que além das intencionalidades
distintas entre os enunciados destacados, estes, também, se situam em contextos discursivos
datados em espaços-tempo distantes entre si.
As poesias dedicadas à Matilde Urrutia – companheira de Neruda – em comparação com o
trecho que narra a relação com ela em sua autobiografia é outro exemplo de que reside nos gêneros
do discurso a intenção e finalidade quanto à escolha dos conteúdos e dos recursos lexicais adequados
a cada situação comunicativa.
No Soneto II, de Cem Sonetos de Amor, Neruda retrata sua Matilde da seguinte forma

Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,


que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em Taltal não amanhece ainda a primavera.

Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,


juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono, de água, de quadris,
até ser só tu, só eu juntos.

Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,


a desembocadura da água de Boroa,
pensar que separados por trens e nações

tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos,


com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa os cravos. (NERUDA, 2006, p. 8)

Aqui, Neruda retrata o tempo gestado até o encontro com Matilde que para ele era sua
companhia para viver o mundo, seu grande amor. Os versos do poeta trazem toda a potência da

NARRATIVAS
860

história que eles viveram, formatada na estrutura rígida da poesia. Não cabe descrição literal, cabe
representação e simbologia do afeto.
Cotejando com a prosa autobiográfica, Neruda a descreve

Matilde canta com voz poderosa as minhas canções.


Dedico-lhe tudo o que escrevo e tudo o que tenho. Não é muito, mas ela está contente. [...]
Da terra, com pés e mãos e olhos e voz, trouxe para mim todas as raízes, todas as flores, todos os
frutos fragrantes da felicidade. (NERUDA, 2010, p. 318-319)

Este excerto leva-nos à reflexão do porquê Neruda, mesmo em prosa, não se limita, como no
exemplo do Allende, a apenas descrever formalmente sua vida com Matilde. Seu enunciado carrega as
marcas do romance, dos sentidos que a mulher tem para ele. Há aqui representações de sua
companheira repletas de traços poéticos, metáforas e simbologias. Suas palavras são dirigidas com
intencionalidade e vozes, mesmo sendo a poesia um gênero monológico.
A palavra de Neruda, tanto quando destinada para Matilde, quanto para outros interlocutores,
não possui neutralidade, tem sentido e direção. Encontramos em Cereja (2010) ao tratar das teses de
Bakhtin, uma concepção de palavra que contempla esta análise quando afirma que

Para o ponto de vista dialético e dialógico de Bakhtin, a palavra não é uma unidade “neutra”, uma forma
abstrata de língua à espera de um falante que individualmente atualize seu sentido e a faça renascer
para o fluxo contínuo da linguagem. [...], a palavra é sempre interindividual e reúne em si as vozes de
todos aqueles que a utilizam ou a têm utilizado historicamente. (CEREJA, 2010, p. 203)

Todavia, no que se refere ao Soneto II, parece-nos que tais características de seu discurso
evidenciam o sujeito primeiro de sua fala. Não seria aqui o proletariado, tampouco seus pares poetas.
O horizonte social prioritário de sua enunciação era a própria Matilde, tanto na poesia, quanto nesta
prosa autobiográfica. Neruda respondera esta questão ao dizer que dedicava a ela cada palavra sua,
por certo, impregnada das palavras de Matilde que, também, habitavam nele.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não queremos cair em uma lógica formal e reducionista frente à rica e vasta obra de Neruda,
desta forma, o presente ensaio dedicou-se a uma breve comparação entre dois de seus gêneros do
discurso: narrativas autobiográficas e poesia. Mais que conclusões estanque, vislumbramos
interpretar, pontualmente, sob a perspectiva da arquitetura de Bakhtin, as escolhas feitas pelo autor
em seus enunciados.
Considerando prosa como um gênero discursivo dialógico que agrega diferentes falas e
múltiplas linguagens, onde ecoam distintas vozes, nós, também, como plateia da enunciação de
Neruda, trouxemos nossas vozes. Tomamos acento na relação dialógica com sua prosa autobiográfica,
imputando sentidos a partir do diálogo entre as nossas palavras e as palavras do eu-memorialista.

NARRATIVAS
861

A poesia é um gênero discursivo monológico que se orienta e persegue uma estrutura de


forma rígida, de modo que haja um limite demarcado entre a voz do poeta e outras vozes. Apesar de
monológica, a poesia não se propõe monolítica, tendo em vista que, também, nela não existe uma única
voz falando, junto com o poeta habitam outras vozes em silêncio.
Tomando estes exercícios de análise, ainda iniciais, dos enunciados de Neruda, aqui
destacados, confirmamos a relatividade da interpretação por parte dos sujeitos que trazem suas
vozes no encontro discursivo polifônico com o autor, balizados por finalidade, intencionalidade,
horizonte social do discurso, escolhas lexicais, forma, conteúdo e realidade social.
Por fim, em base às considerações de Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski (2015),
não há relação dialógica com o texto se este não estiver relacionado com a realidade social, arena
onde se dão os embates entre suas múltiplas vozes.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
______. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
BOURSCHEID, Junior Ivan; SILVEIRA, José Renata Ferraz. A trajetória política de Pablo Neruda. Aurora: Revista da
arte, mídia e política, São Paulo, v.5, n.15, pp. 9-32, out. 2012-jan. 2013. Disponível em
<https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/download/12131/9254>. Acesso em 27 ago. 2017.
CEREJA, William. Significação e tem. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 203-
220.
NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. São Paulo: Bertrand Brasil, 2010.
______. Intoxicação do Nixonicídio da Revolução Chilena. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980.
______. Cem sonetos de amor. Porto Alegre: L&PM, 2006.

NARRATIVAS
RESUMO
862
O presente trabalho tem como objetivo descrever a
aplicação da sequência didática Diários de leituras
no Ensino Fundamental. Para isso, nos ativemos a

VOZES EM CONFLITOS : teoria discursiva de Bakhtin (2006 ;2010) e seu


Círculo, centrando nossa análise nos conceitos de
enunciado e gêneros do discurso, assim como
diários de leituras no Ensino Fundamental demos devido destaque a dialogia e responsividade.
Partindo desse ponto de vista, este trabalho
pretende mobilizar conceitos expressos por Mikhail
Bakhtin para a análise de Diários de Leituras
produzidos por alunos do Ensino Fundamental.
Definindo os Diários como enunciados concretos,
advindos de sujeitos únicos e individuais, traremos
GOMES, Emanuele Mônica Neris132 a análise de trechos de Diários a fim de verificar de
que forma as vozes sociais silenciadas se deixam
mostrar, ajuizando as categorias de silenciamento e
respostas a polêmicas. Para embasar a análise,
traremos ainda as definições de leitura e escrita na
escola, a partir de Geraldi (2006) e Solé (1997),
INTRODUÇÃO refletindo em como a escola alija os direitos dos
sujeitos em se expressar, negando possibilidades

R
de palavras e contra palavras, instaurando um
ecorro às palavras de Bohn (2005), quando defino que no lugar regime de silenciamento e negativas de direitos.

de recorrer ao amplamente pacificado, ao que já foi definido Palavras-Chave: Diários de Leituras. Enunciado
como prática acertada, prefiro “a textualização inquisitiva, que Polêmico. Prática de Escrita

se movimentam nas trilhas não palmilhadas, nos meandros da


incerteza, nas culturalidades diferentes, minoritárias, às vezes
exóticas, muitas vezes, transgressoras, revolucionárias. ” (Bohn, 2005, p. 20). Transgressora quando
dá voz ao aluno que pouco domina os padrões discursivos impostos pela escola, mas que tem muito a
dizer, afinal, é um sujeito histórico, plenamente capaz de posicionar-se ante aos acontecimentos do
mundo. Sujeito esse que traz ponderações ante ao mundo que só ele pode revelar, que tem avaliações
e julgamentos ante práticas de leituras e escrita impostas sem ao menos indaga-lo sobre a
necessidade desse ou daquele procedimento.
Dessa forma, de que maneira as práticas de leitura e escrita são desenvolvidas na escola,
atualmente? Encontramos alguns autores que problematizam a questão, Antunes (2009), Geraldi
(2010), afirmando que as práticas desenvolvidas na escola, apesar de apresentarem postulações
sobre desenvolvimento de leitura e escrita, ainda se concentram no aspecto de análise gramatical.
Além disso, nos índices das provas nacionais, como Saeb e Pisa, que os alunos saem do Ensino
Fundamental sem conseguir compreender os sentidos dos textos, sem atribuir significado as próprias
leituras.
Cada ano, avaliações de diferentes portes dão conta de que, no Brasil, a escola vem falhando na sua
função de formar leitores. De fato, ensinar a decifrar os sinais gráficos é apenas uma das condições
para que se possa, gradativamente, inserir o aluno no mundo dos livros, das informações escritas.
(ANTUNES, 2009, p. 185)

Ao investigar essas práticas, pudemos perceber que as histórias de leituras dos alunos 133,
reproduzem fatos muito semelhantes: ler o que o professor sugere, a fim de encontrar sempre as

132 Professora da rede pública do Estado do Rio Grande do Norte. Mestre em Letras pela UFRN. manugiovana@gmail.com

NARRATIVAS
863

mesmas respostas. Falas não autorizadas ou que destoem do conjunto, são descartadas. E que
respostas esses alunos dão a essas leituras? Existe de fato, um espaço para interlocução em sala de
aula? E se não existe, de que forma um juste no trabalho docente pode corrigir um histórico
problema?
Verificamos, na escrita do gênero discursivo Diários de Leituras (doravante DL), a abertura de
possibilidades de os alunos se perceberem como sujeitos, dotados de julgamentos, opiniões, leituras
várias. Além disso, ao escrever em DL, os alunos se percebem como pessoas que podem ter uma
opinião distinta do professor, e que essa opinião será ouvida, levada em consideração. Em leituras de
Machado (1998) e Abreu- Tardelli (2010), percebemos que o principal mérito da prática de escrita de
Diários de Leituras é desenvolver nos alunos um trabalho crítico e reflexivo no qual eles tenham como
prática de ler textos diversos e se posicionar criticamente diante deles, concordando, discordando,
negando as informações apresentadas.

DIÁRIOS DE LEITURAS

Machado (1998) define o diário como instrumento que “permite ao aluno a conscientização,
reflexão sobre seus próprios processos, tanto de leitura e de produção, como de aprendizagem em
geral, além de permitir que o professor detecte o estado real de cada aluno em relação a esses
processos” (grifo nosso, MACHADO, p. 31, 1998). O diário, portanto, oferece a possibilidade de o
professor perceber de as competências e habilidades do aluno em relação ao que é proposto na aula
de Língua Materna.
Uma questão antecipada por nós, é de que maneira esse gênero discursivo, e não outra
prática de escrita já desenvolvida historicamente na escola - composição, redação e produção
textual- nomes distintos para práticas que pouco fazem avançar a capacidade de escrita dos alunos-,
pode funcionar como um novo gênero discursivo na escola.
Outra característica constitutiva do Diário é, pelo contrato firmado entre autor/ aluno e
professor/ leitor. Nesse contrato, , feito no início da atividade com os DL, os alunos são informados de
que todos os posicionamentos, opiniões, julgamentos serão lidos somente pelo professor134. Essa
possibilidade dá mais segurança aos alunos, uma vez que o temor da avaliação é retomado por
diversos alunos. A prática de DL deverá ser percebida como um contraponto a essas produções
“apenas para dar nota”, uma vez que o objetivo fim da atividade é ampliar competências e
capacidades discursivas.

133
Essa investigação foi feita na captação de dados para a escrita da dissertação de mestrado da autora.
134
Os DL utilizados na dissertação já mencionada, tiveram as identidades dos alunos protegidas por códigos, mantendo o acordado , ninguém
além da professora saberia quem era o autor do texto.

NARRATIVAS
864

Desse modo, os Diários foram produzidos por uma turma de nono ano, num período de seis
meses da aplicação de uma Sequência Didática135. Os alunos apresentaram alguma resistência ao
produzir os enunciados, revelando certo desconforto em participar de produções que contrariavam o
que eles acreditavam natural nas aulas de Língua Materna: atividades no livro e “fazer textos”136.
Textos que muitas vezes, não tem nome, destinatário, situação que a emoldure. Eram produzidos
porque assim determinava o professor, e valia nota.

CONCEPÇÃO DE ENUNCIADO E GÊNEROS DO DISCURSO

Assumimos nesse excerto a definição de Bakhtin e seu círculo, afirmando que a linguagem se
manifesta por meio de gêneros e esses, em enunciados concretos, únicos e irrepetíveis, nascidos de
sujeitos históricos, com projetos de dizer definidos e determinados. Acrescenta ainda que toda
compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase preparatória da resposta.
Assim, ao compreender qualquer enunciado, o interlocutor se prepara para concordar, discordar ou
agir diante daquele enunciado.
Todo falante está determinado por essa compreensão ativamente responsiva, ele não espera
uma compreensão passiva, mas sim uma resposta, uma concordância, uma participação. Bakhtin
ainda acrescenta que todo falante é um respondente em maior ou menor grau, afinal ele não é o
primeiro falante, ele se utilizará de alguns enunciados que o antecedem. Cada enunciado é um elo na
corrente dos outros enunciados.

O desconhecimento da natureza do enunciado e a relação diferente com as peculiaridades linguísticas


das diversidades de gênero do discurso em qualquer campo da investigação linguística redundam em
formalismo e em uma abstração exagerada, deformam a historicidade da investigação, debilitam as
relações da língua com a vida. (Bakhtin, 2010, p. 262)

Dessa forma, nossa compreensão de enunciado amarra a ideia de que os textos são
enunciados concretos, com um projeto de dizer definido, e que buscam sempre alguma ação
responsiva do interlocutor: concordância, discordância, adesão, repulsa. E que serão essas as
atitudes que deverão ser externadas nos DL.
Os alunos, nas aulas de Língua Portuguesa, na compreensão de qualquer texto, são instados a
terem uma postura passiva, excluindo qualquer réplica ativa, uma vez que não é permitido/ autorizado
nenhuma leitura que seja divergente daquela proposta pelo professor. Professor esse que tem E
segundo Bakhtin/ Voloshinov (2006) “Veremos mais adiante que esse tipo de compreensão, que exclui
de antemão qualquer resposta, nada tem a ver com a compreensão da linguagem” (p. 100) Esse tipo

135
O texto – seja como material concreto sobre o qual se exerce o conjunto dos domínios de aprendizagem, sobretudo leitura e produção de
textos, seja como objeto de ensino propriamente dito- deve ser a base do ensino aprendizagem de língua portuguesa. (Rojo, in Dolz e
Schneuwly, 2013, p 35)
136
Não ter aula de gramática foi uma das situações mais referidas nos questionários da aplicação da pesquisa.

NARRATIVAS
865

de compreensão, que apenas repete, sem interferir ou responder, nada tem a ver com a linguagem.
Ou pelo menos, nada tem a ver com a linguagem como marca definidora de uma humanidade que
responde aos atos que se desenrolam.
A vontade do falante marca o projeto do dizer, e é essa vontade, impelida pela responsividade
de qualquer enunciado, manifesta-se m forma de gênero. Esse gênero discursivo trará marcas que
permitem recuperar a intencionalidade do falante, uma vez que” A intenção discursiva do falante, com
toda a sua individualidade e subjetividade, é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido,
constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero”. (p. 282) A partir disso,
compreendemos que a individualidade do falante, impelida pela coerção do gênero, fará escolhas a fim
de manifestar-se adequadamente sobre algum aspecto comunicacional.
As formas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso,
chegam à nossa experiência e à nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas. (p. 283)
Não podendo perceber uma sem a outra, uma vez que estão implicadas e imbricadas. As formas da
língua, as atuações linguísticas chegam ao falante em formas típicas de enunciados, marcando,
delimitando o projeto de dizer, revelando as intenções daquela determinada interação. Aprender a
falar significa aprender a construir enunciados (p. 283), uma vez que não se fala por palavras soltas
ou desconexas, sem que se possa recuperar a origem daquelas enunciações.

ANÁLISE DE UM DIÁRIO DE LEITURAS (PRIMEIRA PRODUÇÃO)

Redes sociais: Exposição ou intromissão


Existem milhões de pessoas em todo o mundo ligadas ás chamadas redes sociais virtuais. Sendo um espaço virtual
em que por definição, o contato físico não existe e tratando-se de um lugar onde é fácil cada um inventar uma personagem ou
uma personalidade.

Esse fragmento foi selecionado se tratar de plágio total da internet. O aluno apenas copiou o
primeiro texto que apareceu na ferramenta de busca137. Ele não seguiu nenhum dado referente à
definição de Diários de Leituras138, ou tentou de alguma forma se posicionar no comentário produzido.
Essa atitude pode ser interpretada apenas como tentativa de burlar uma atividade, fazendo-a do jeito
mais simples. No entanto, prefiro analisar o artigo de opinião reproduzido como testemunha do
silêncio escolhido pelo aluno-autor. Isso é bastante revelador do que o aluno imagina ser a produção
de texto e a aula de Língua Portuguesa, produzir algo que agrade a professora, e é possível agradar

137
Fizemos a experiência de digitar a temática do texto numa ferramenta de buscas, e esse foi o primeiro texto que apareceu.
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1365417&seccao=Paulo%20Almeida&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco acesso
em 23/12/2014. O título do artigo de opinião copiado é “O perigo das redes sociais”, de Paulo Pereira de Almeida.
138
Orientações para a produção dos Diários: Manifestar nossa compreensão sobre o que o autor diz, sintetizando ou fazendo paráfrases
para confirmar nossa compreensão; expressar as dificuldades de compreensão que estivermos tendo na leitura e indicar quais são as suas
causas; pedir esclarecimentos, fazer perguntas sobre o que não entendemos, ou que achamos ter pouca explicação; pedir justificativas para
afirmações do autor;

NARRATIVAS
866

mais expondo o texto de outra pessoa, que mesmo sem ter participado da discussão, tem mais
domínio do assunto e cuja opinião será melhor recebida pela professora.
Utilizo o pensamento encontrado em Alves ( apud Rodrigues, Alves e Campos, 2014, p. 14)

A linguagem como interação social pressupões a interlocução, a relação intersubjetiva que considera os
níveis dessa interação, os projetos de dizer, os posicionamentos sociais, as ideologias, os valores, como
também o contexto maior no qual essa interação acontece e que abarca necessariamente, os sujeitos,
as histórias e os lugares.

Mesmo uma cópia comunica algo. Mesmo um texto reproduzido fielmente de terceiros revela
um enunciado concreto, produzido por um sujeito concreto, pois o que revela essa atitude. Teria esse
aluno algum projeto de dizer? É importante refletir que escolher reproduzir a voz de um outro faz com
que esse aluno afirme: “nesses anos de escola, não me sinto preparado para opinar sobre tema
algum, mesmo que seja um tema do meu cotidiano”. A que silêncios esse aluno foi submetido, ao
ponto de ele acreditar que a voz do especialista era a que deveria ser ouvida pela professora. Ele se
sentia incapaz de opinar sobre o assunto, a tal ponto de usar a internet para burlar uma atividade de
aula? Ironicamente, ele se utiliza do estratagema “Ctrl+ C, Ctrl+ V”, ferramenta tão combatida nos
meios acadêmicos, a fim de reproduzir a fala de um interlocutor, que no seu ponto de vista teria mais
condições de falar sobre o assunto. Ele teve o trabalho de copista de reproduzir manualmente o texto,
com alguns desvios ortográficos, para conferir mais confiabilidade a seu trabalho. Assim, a linguagem
para ele não é meio de comunicação, revelador de intenções e sentidos. É mecanismo de engodo, de
humilhação, de não-pertencimento, cuja possibilidade de posicionar-se foi alijada pelos anos de
escola. Para que falar, se ninguém me escuta, apenas me corrige, me faz copiar, refazer.
Dessa maneira, Amorim reitera que é algo “impossível restituir, no texto, o sentido originário
do que foi dito em campo, pois o texto se constitui sempre como um novo contexto”. Dessa forma,
mesmo a repetição sempre trará algo novo, uma vez que se muda o contexto, muda-se a intenção do
dizer, muda-se o momento histórico da enunciação. Acrescenta ainda que, do ponto de vista
bakhtiniano, o sentido original não existe, pois tudo que é dito é dito a alguém e deste alguém
dependem a forma e o conteúdo do que é dito. Além disso, alguém irá relatar esse diálogo e isto vai
ser feito em uma outra enunciação, dirigindo-se a um outro alguém e assim sucessivamente.
A voz do destinatário, que em Bakhtin é visto como instância interior ao enunciado, um co-
autor, uma vez que é nele em que se organiza a estrutura do dito, é para ele que o enunciado se
orienta, princípio maior do dialogismo;
Do ponto de vista bakhtiniano, o sentido original não existe, pois tudo que é dito é dito a
alguém e deste alguém dependem a forma e o conteúdo do que é dito. (Amorim, 2002, sem pag.) Desse
modo, qualquer relato desse dito será sempre em outra enunciação, que dá origem a outros
enunciados.
A autora ainda explicita que em relação a destinação, devem ser levados em conta duas
outras vozes que falam no interior do enunciado: o destinatário suposto, posterior a escrita, que

NARRATIVAS
867

participa necessariamente da construção de sentido, uma vez que o trabalho de interpretação


constitui um segundo texto em relação ao primeiro.

Instância posterior à escrita, mas que participa necessariamente da construção do sentido, pois o
trabalho de interpretação constitui-se um segundo texto em relação ao qual o primeiro poderá fazer
sentido. E uma vez que todo texto demanda que alguém o leia e que alguém dele se ocupe, e que a vida
de um texto reside exatamente na sua circulação, pode-se dizer que o destinatário suposto é uma
instância posterior, mas igualmente interior ao enunciado. (Amorim, 2002)

ANÁLISE DE UMA SEGUNDA PRODUÇÃO

Analisando a segunda produção do aluno, pudemos notar que ele deixa de lado a cópia e passa
a responder ao texto lido, se posicionando, fazendo paráfrases do texto.

Eu gostei do texto porque fala da lei e da privacidade do consentimento do usuário e da defesa do codigo do
consumidor. A lei do menor de idade penal e bem parecida a retirada de conteúdo ofensivo de sites, blogs ou facebok afinal
(redes sociais) e tao perigosas quanto um passeio pelo parque em tempo de ser assaltado a qual quer hora então o texto fala
sobre a privacidade que temos nas redes sociais.

O mesmo aluno, do primeiro texto plagiado, passa a ter outro comportamento, pois passa já
na segunda produção, a se posicionar ante o texto o lido, sendo responsivo, fazendo comparações
sobre situações de seu cotidiano. Sabemos que se fosse ser analisado como uma produção textual
tradicional, esse texto, revelador do um início de uma “prática de liberdade” (remetendo a Freire),
seria crivado de correções139, pontos de interrogação que preencheriam as margens da folha de
caderno, possivelmente sendo esse o motivo de na primeira produção, ele ter preferido plagiar o
pensamento de alguém, em vez de se revelar em comentários.
Assim, percebemos que o aluno já desenvolve um Diário de Leitura, de acordo com que foi
recomendado nas instruções. Expondo sua compreensão sobre o fato, tendo mais liberdade em
posicionar-se diante do que foi lido em sala.

Mesmo a estabilidade relativa do gênero é insuficiente para garantir ou oferecer um caminho de


produção: há que se associarem o querer dizer do locutor, que sempre remete à relação com seus
interlocutores e o estilo próprio do sujeito que fala e a quem fala, isto é, suas escolhas dentre as
estratégias de dizer disponíveis ou suas elaborações de estratégias novas resultantes da articulação
que realiza entre o disponível e o novo . (GERALDI,2012, sem paginação)

139
É necessário deixar claro que nenhum momento defendemos que “vale tudo” na produção de texto, deixando o professor desobrigado a
corrigir desvios ortográficos ou problemas relativos a concordância. No entanto, não é objetivo de nosso trabalho concentrar o olhar para os
possíveis desvios ortográficos que porventura apareceram nos textos. No entanto, nossa crítica está na prática de somente corrigir o texto,
levando em conta apenas critérios ortográficos, sem nenhuma outra resposta ao aluno.

NARRATIVAS
868

A lei do menor de idade penal e bem parecida a retirada de conteúdo ofensivo de sites, blogs ou facebok afinal
(redes sociais) e tão perigosas quanto um passeio pelo parque em tempo de ser assaltado a qual quer hora então o
texto fala sobre a privacidade que temos nas redes sociais.

O trecho destacado é revelador não do medo somente do medo a ser encontrado das redes
sociais, mas o temor diante da violência que impera no cotidiano desses alunos. É importante
rememorar que Parnamirim, município onde fica localizada a escola, é o segundo município do Estado
em tamanho e em números de casos de violência, principalmente de jovens de 16 a 25 anos. Dessa
forma, o temor de um passeio no parque, é de ser assaltado, violado no seu direito de possuir algum
bem.
Por isso é o texto o melhor lugar de expressão da dialética entre a estabilidade e instabilidade da língua.
É por isso, também, que no texto se encontram os rastros da subjetividade, das posições ideológicas e
das vontades políticas em constantes atritos. (GERALDI, s.d, documento on line)

Nesse sentido, é no texto, no enunciado concreto que serão percebidos os verdadeiros dizeres
dos alunos. Dizeres que não aparecem, pois é melhor repetir o dito do professor, o dito de alguma
autoridade, do que revelar o que se pensa.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Defender um ensino de Língua Materna que possibilite senão a ruptura com o círculo de
reprodução de fracasso escolar, ao menos oferecer a oportunidade de dizer o que pensa, sem
necessariamente se adequar a voz do professor. Esquecer que produzir um texto na escola deve-se
pautar pelo número de linhas, e nunca pelo conteúdo que o aluno deseje expressar. É isso que se
espera ao desenvolver práticas de produção de Diário de leituras no Ensino Fundamental.
De fato, na leitura do corpus aqui apresentado, pudemos perceber que o enunciador já se vê
numa posição distinta da tradicional, em que só é autorizado a falar àquilo que é legitimado. Sendo
estimulados a expressar julgamentos e asserções, os alunos são alçados à posição de sujeitos, que
através da interlocução ativa (e não mais compreensão passiva dos textos) constroem um lugar no
mundo.
Leituras que permitam fazer aparecer dizeres silenciados. Dizeres que estão submersos.
Trazer à tona, utilizando a metáfora da inundação. Trazer à tona palavras que não são ditas. E quando
ditas, não são ouvidas, e quando ouvidas, não recebem valor algum. Inundação de regras e
silenciamento, que não permitem, após anos de escolarização, que alunos expressem asserções e
apreciações diante dos fatos, conceitos, informações apresentadas na escola. Em que momento dessa
escolarização se perde a mão e se esvaem curiosidades e indagações, sendo substituído por apatia na
presença das novas ideias, conhecimentos a serem apreendidos. Em que momento esses alunos
perderam a voz? Deixaram de dizer, opinar, debater. Não é possível (empiricamente) afirmar que o

NARRATIVAS
869

faziam antes. Mas é patente que não o fazem hoje. Aprender significa abrir o livro e esperar a ordem
do professor e começar a copiar. Preencher as linhas do caderno com qualquer informação, “afinal
vale visto”. Falar sobre a língua, discutir o conteúdo de um texto, o ponto de vista de um autor é não
dar “aula de português”.
Permitir que sejam ouvidos, que suas apreciações juvenis diante do mundo sejam lidas e
valoradas. São adolescentes em formação, mas devem ter formação sólida o suficiente que o
permitam ser classificados como cidadãos do mundo. Mundo que exige respostas, cada vez mais
rápidas e menos pensadas. Qual a escola poderá responder a essa demanda? Vem a nossa memória
certa ensaio intitulado A escola que queremos. Não se faz necessário citar o conteúdo do ensaio, mas
ele remonta a crise da escola atual e apresenta modelos de desenvolvimento para se chegar à escola
ideal. Em comparação com a situação das escolas de hoje, acreditamos que a escola que queremos
não é o modelo da escola e temos hoje. A escola que queremos (nós, a sociedade) é uma escola que
permite, e não nega. Permite que os jovens que ali estão caminhem para e através do conhecimento.
Espaço em que a expressão cidadãos do mundo não seja apenas uma figura retórica a fim de conferir
poder ao dito. Mas como, indagamos, chegaremos a essa vastidão de territórios, se os alunos deixam
de frequentar a escola? Os que permanecem mal leem, pouco escrevem e menos ainda
compreendem?

REFERÊNCIAS

AMORIM, Marília. Vozes e Silêncio no texto de pesquisa em Ciências Humanas. Cad. Pesqui. n.116 São Paulo jul. 2002
ANTUNES, Irandé. Aula de Português- encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal . 5.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
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BOHN, Hilário I. As exigências da pós-modernidade sobre a pesquisa em linguística aplicada no Brasil. in , FREIRE,
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GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. São Paulo: Editora Ática, 2005,.
MACHADO, Ana Rachel. O diário de Leituras. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

NARRATIVAS
RESUMO
870

Este estudo tem como base a História do cerco de

HISTÓRIA DO CERCO DE Lisboa (2011), romance de José Saramago que de


um revisor de textos, Raimundo Silva. A obra trata
das idiossincrasias da rotina de um revisor, da

LISBOA: as voluptuosidades de um
relação revisor x autor, do manual ético (mesmo
não escrito) que envolve esse trabalho. Esta
pesquisa traça um paralelo entre o que o revisor
aborda sobre erros e a situação atual do país.
revisor Como resultado, mostra a perplexidade diante dos
problemas enfrentados de violência e a
voluptuosidade que envolve o agir de cada cidadão.

Palavras-Chave: Revisor. Erros. Voluptuosidade

GONÇALVES, Fabíola Barreto140

“[...] revisor de vocação é fenómeno desconhecido, no entanto, o


que parece demonstrado é que, no mais secreto das nossas
almas secretas, nós, revisores, somos voluptuosos”
(SARAMAGO, 2011, p. 8).

1. INTRODUÇÃO

A
História do cerco de Lisboa é obra do escritor português José Saramago (1922-2010), publicada
em 1989, que trata da “rebeldia” de um revisor, que, advertidamente, inseriu no texto de um
autor a palavra não e isso mudou o curso de uma história, principalmente porque o livro
revisado era de história. Com isso, Raimundo deixou de ser revisor e passou a ser autor/historiador.
As relações sociais são permeadas de diferenças. Hoje, por exemplo, estamos sofrendo de
direitismos, do politicamente correto, questiona-se o que é arte, cancelam-se exposições por
atentando “à moral e aos bons costumes”. Têm intenção de voto aquele que defende a hegemonia
branca, rica, heterossexual, embora a maioria da população seja parda, pobre e apresente
diversidade de gêneros.
No mundo de Raimundo, existiam os polos revisor e autor. Para ele, os autores são seres que
“vivem nas alturas, não gastam o precioso saber com despiciências e insignificâncias, letras feridas,
trocadas, invertidas [...]” (SARAMAGO, 2011, p. 7). Esse é o trabalho do revisor. Nesse sentido, lembro
de uma palestra proferida pelo professor e autor Sírio Possenti, no Fórum de Revisores, realizado em
São Carlos, em 2017, em que ele afirmava não saber a diferença entre “este” e “esse”, era sempre o
revisor de seu texto quem corrigia. Para ele, era “esse” e pronto. Rubem Alves, em artigo publicado
sobre o trabalho de revisão corrobora essa inquietação quando afirma: “Revisores são pessoas que
sofrem. Deve ser terrível viver o tempo todo sob a tirania das leis dos gramáticos”.

140
Mestre em Linguística Aplicada, Revisora de Textos da Secretaria de Educação a Distância da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
E-mail: fabiola@sedis.ufrn.br

NARRATIVAS
871

Sobre a rotina do revisor, Raimundo ressalta a tragédia de estar fadado a ler um livro várias
vezes, mesmo que não merecessem nem a primeira leitura. Apesar de tantas leituras, ainda havia o
perigo de escapar problemas de revisão, não observar, por exemplo, termos repetidos. O revisor,
depois de idas e vindas, não poderia errar, não poderia deixar uma vírgula escapar. Acerca dos tipos
de erros, trataremos mais adiante.

2. AUTODIDATISMO

O capítulo inicial do livro de Saramago mostra uma discussão entre autor e revisor, em que o
autor diz que o revisor poderia, por suas palavras, buscar ser filósofo, mesmo que autodidata. Ao que
ele redargui que já tem uma identidade, ser homem modesto, com uma profissão das mais mal pagas,
das menos reconhecidas. O autor o acusa de ser amargo e cético, ao que Raimundo responde que a
sociedade já foi outra, já teve orgulho de que estudava, quem era autodidata, hoje, “os que escrevem
versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser e a continuar a ser autodidactas”
(SARAMAGO, 2011, p. 11).
Sobre a sociedade atual, o que se destaca não é o autodidata, nem o que ganha prêmio nobel.
A celebridade de hoje é o palhaço que por sua arte se elege como o mais votado, mesmo
semialfabetizado, porque resolveram fazer voto de “protesto”; é o blogueiro que traz entretenimento
na internet e acaba virando formador de opinião; é o político que vai bater no homossexual para ele
criar vergonha na cara; é o juiz que quer ser chamado de doutor, mesmo sem ter doutorado.

3 ONDE FOI QUE ERRAMOS?

Raimundo, em suas lucubrações, remete aos estudos de Bacon sobre os erros, dividindo-os
em quatro categorias, a saber (SARAMAGO, 2011, p. 23):

3.1 Idola tribos, ou erros da natureza humana

De acordo com Raimundo, os erros da natureza humana dizem respeito aos nossos
preconceitos, a julgar sem o saber, a falar por ouvir dizer, à imperfeição dos sentidos, à busca por
fazer mais analogias do que a coisa realmente tem, às inferências indevidas.
No Brasil, temos presenciado políticos vociferarem sobre a cura gay, canais televisivos
doutrinarem o espectador; as pessoas acusarem uma performance artística que envolvia um homem
nu e uma criança como sendo apologia à pedofilia, enquanto outra criança, que realmente estava
sendo vítima, tendo de gravar seu próprio estupro para que as pessoas acreditassem no que ela dizia.
Nos casos apresentados, o corpo físico de um homem nu, embora com ações diferentes, acabaram
tendo um mesmo significado, virando um produto ideológico que serviu a determinada causa. De

NARRATIVAS
872

acordo com Bakhtin/Volochínov (2014), “um corpo físico vale por si próprio”, entretanto, tudo tem um
significado, uma vez que todo signo é ideológico.

3. 2 Idola specus, ou erros individuais

Na concepção do personagem, os erros individuais têm a ver com as nossas predileções por
tal ciência, por exemplo, “o que nos inclina a tudo querer reduzir a elas”.
Nesse caso, temos as brigas acadêmicas hercúleas por essas ou por aquela teoria, como se
ela desse resposta para tudo e tudo o que não estivesse dentro daquele quadrado não existisse, não
fosse considerado. Como exemplo, Moita Lopes (2006) e Kleiman (2013) discutem em seus respectivos
artigos, acerca do papel da Linguística Aplicada atualmente, que buscou tanta teoria para justificar
não ser uma parte menor da Linguística, que deixou à margem, bem na periferia, discussões
importantes sobre identidade a partir de movimentos como feminismo, questões étnico/raciais, LGBT,
sem-terra, entre outros.
Não podemos negar o caráter epistêmico dessa problemática. Bakhtin/Volochínov (2014, p.
33) mostra que “Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a
realidade e refrata a realidade à sua própria maneira”.

3.3 Idola fori, ou erros de linguagem:

Raimundo, a esse respeito, explica que “o mal está em que muitas vezes as palavras não têm
qualquer sentido, ou têm-no indeterminado, ou podem ser tomadas em acepções diversas”
(SARAMAGO, 2011, p. 23).
Nesse sentido, Bakhtin/Volochínov (2014) mostra que a palavra, como signo, não é neutra,
vem sempre carregada de valoração. Ela é neutra em relação a qualquer função específica, mas pode
ser valorada ganhando caráter de ciência, religião, moral etc. Para ele, a palavra “é o fenômeno
ideológico por excelência”, o próprio texto bíblico se inicia dizendo “no princípio, era o verbo”. É a
palavra, portanto, o veículo da ideologia. É por meio do dizer que o indivíduo é ideologicamente
marcado, uma vez que as práticas discursivas são demarcadoras de identidade.

3.4 Idola theatri, ou erros dos sistemas:

Nesse caso, Raimundo limita-se a dizer que eles são tantos que ele não vai comentar, pois
eles não acabariam nunca. Trazendo para o nosso contexto, vemos na Catalunha pessoas sendo
agredidas por participarem de um plebiscito que busca saber a opinião da população sobre a
separação da Espanha. Na Europa, são inúmeros os casos de ataques terroristas. Já nos Eua, temos
inúmeros casos de americanos atiradores. O último, em Las Vegas, foi orquestrado por um americano,
branco, que tinha uma coleção de armas particulares.

NARRATIVAS
873

No Brasil, um país que não admite que seus cidadãos andem armados, a população sofre do
mesmo modo com a violência, favelas, como a da Rocinha, no Rio de Janeiro, são cercadas pela polícia
em confronto com traficantes. Como se não bastasse a violência física, um futuro candidato à
presidência é aplaudido em evento judaico por afirmar, entre outros absurdos, que os quilombolas são
preguiçosos, medindo-os em arrobas; além disso, assume que as reservas indígenas são
desnecessárias, uma vez que há muita riqueza naquele solo a ser explorado, demonstrando as ações a
ser tomadas em caso de assumir o cargo presidencial.

4. AS VOLUPTUOSIDADES DE MR. HYDE

Na obra de Saramago (2011), no terceiro capítulo, temos Raimundo Silva estático, como que
fascinado, lendo um trecho de um livro de história que está revisando, lendo e relendo várias vezes o
trecho que diz “os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa”. Dessa afirmativa, dá-se início
à voluptuosidade do revisor, que, de acordo com Raimundo,

[...] o revisor é pessoa séria no seu trabalho, não joga, não é prestidigitador, respeita o que está
estabelecido em gramáticas e prontuários, guia-se pelas regras e não as modifica, obedece a um código
deontológico não escrito mas imperioso, é um conservador obrigado pelas conveniências a esconder as
suas voluptuosidades, dúvidas, se alguma vez as tem, guarda-as para si, muito menos porá um não onde
o autor escreveu sim, este revisor não o fará (SARAMAGO, 2011, p. 42).

Após essa reflexão, fica dentro dele uma luta como entre Dr. Jekill e Mr. Hyde. Pode ele ir
contra seu código de ética? Nessa luta, entre o médico e o monstro, o revisor propositalmente
reescreveu o texto, que agora diz: “os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa”
(SARAMAGO, 2011, p. 42). Com isso, foi-se-lhe o sossego, pois espera, a cada momento, vir alguém
bater a sua porta reclamando o erro, e não somente isso, a conduta, pois nunca havia infringido o
código ético (não escrito) de não se envolver com as ideias e opiniões dos autores.
Diante da conjuntura atual que enfrenta o país, também estamos perplexos, em meio à
situação política que nos assusta por tantos casos de corrupção; golpes políticos; malas de dinheiro
encontradas; helicóptero de cocaína; juízes claramente partidários; população que aplaude políticos
homofóbicos, de extrema direita; reitor que se mata por ser refém de justiceiros. Resta-nos
acrescentar um não a essa história e esperar, como Raimundo, que batam à nossa porta e/ou que
possamos mudar o curso dessa história. Como em Lisboa, estamos cercados, de discursos, de
ideologias, de partidarismos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

História do cerco de Lisboa mostra as agruras e voluptuosidades de um revisor de textos,


profissão valorizada intelectualmente, mas das mais mal pagas naquela época. Raimundo, o revisor,
hesita entre atender ao código de ética que envolve o seu trabalho e a voluptuosidade de um ato de

NARRATIVAS
874

rebeldia, de forma a revidar todo um contexto social. Com isso, deixa o papel de revisor e assume o de
historiador, pois, para ele, os livros de história, na verdade, não passavam de literatura. A partir
disso, o revisor-autor muda a história antiga com um não e muda sua história atual com seu ato de
rebeldia.
Para Bakhtin/Volochínov (2014), “Todo signo [...] resulta de um consenso entre indivíduos
socialmente organizados no decorrer de um processo de interação”. É preciso então que combatamos
com a palavra. Como diz o poeta Thiago de Mello (2017): “faz escuro mas eu canto”. Que as
voluptuosidades do revisor sejam voluptuosidades nossas, que possamos também dizer não e mudar o
curso da nossa história nos tempos atuais.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
KLEIMAN, A. B. Agenda de pesquisa e ação em Linguística Aplicada: problematizações. In: MOITA-LOPES, L. P. (Org.).
Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola, 2013.
MELLO, Thiago de. Faz escuro mas eu canto. 24. ed. São Paulo: Global, 2017.
MOITA LOPES, Luís Paulo da. Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006.
SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

NARRATIVAS
RESUMO
875
O presente trabalho objetiva analisar o embate
entre valorações ideológicas na construção da
narrativa do episódio White Bear, do seriado Black

O CONTROLE EM WHITE
Mirror. A partir de uma análise das dimensões
verbivocovisuais das linguagens presentes no
episódio, este texto propõe pensar como o episódio
se constrói a partir do embate entre valorações

BEAR: análise do embate nas dimensões sobre a personagem Victória em meio a


mecanismos de controle. Propõe-se, a partir da
perspectiva bakhtiniana de linguagem, a análise das
verbivocovisuais da narrativa do episódio no forças centralizadoras e dispersantes, pensadas
por essa perspectiva como forças centrípetas e
seriado de Black Mirror centrífugas, que ora revelam e ora camuflam a
existência de mecanismos de poder controladores
das atitudes da personagem principal e do meio em
que ela se insere. Analisa-se como o próprio
telespectador do episódio é controlado e
manipulado por estratégias de linguagem. Frente a
isso, propõe-se como fundamentação teórica, as
GONÇALVES, Jessica de Castro141 discussões desenvolvidas pelo Cìrculo de Bakhtin,
Medvedev, Volochinov, acerca da linguagem,
SERNI, Nicole Mioni Serni142 ideologia, signo ideológico e forças centrípetas e
centrífugas. Metodologicamente, as discussões se
constroem a partir do método dialético-dialógico.

Palavras-Chave: Verbivocovisual. Círculo de


Bakhtin. Seriado Black Mirror
INTRODUÇÃO

E
ntre as construções atuais de séries, a Netflix têm investido em
produções originais. Uma dessas, Black Mirror (2011 à atualmente), é uma série britânica
comprada pela Netflix com algumas das temporadas encomendadas pela mesma. Desde que foi
lançada até o momento atual, a série possui três temporadas (a quarta está em processo de
gravação). O tema central dessa produção televisiva é o uso da tecnologia e os possíveis resultados
de seu mau uso pelo homem.
O enunciado-foco deste trabalho é o episódio de número dois, da segunda temporada,
denominado de White Bear (Urso Branco). Sua história retrata a punição de Vitória, protagonista, por
meio da construção de um parque da justiça, cujo objetivo é fazê-la sofrer devido a sua
cooparticipação no sequestro e assassinato de uma criança. Este, assim como todos os outros que
constituem as temporadas da série, tem a crítica ao uso da tecnologia, colocando-a como um espelho
preto (nome da série) que revela o pior do ser humano, a qual se encontra como uma tônica em seus
episódios, ainda que aparentemente independentes entre si. Existem índices de intertextualidade entre
os episódios, todavia o que os une mesmo é o fio temático condutor entre eles. Tanto em White Bear
quanto na arquitetônica da série por inteiro, a utilização da tecnologia, que inicialmente se diz como
informativa e fornecedora de entretenimento, aparece como arena cruel de desumanização. Ainda que

141
Doutoranda no Programa de Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP Campus de Araraquara. E-mail:
jedecg@gmail.com
142
Doutoranda no Programa de Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP Campus de Araraquara. E-mail:
nicole_brass2@yahoo.com.br

NARRATIVAS
876

a cada episódio se encontre uma narrativa diferente esta é a corrente temática que liga todos entre
si.
O conteúdo arquitetado tanto na narrativa de White Bear como nas dos outros episódios de
Black Mirror, causa horror na medida em que se espelha na vida. A relação entre os sujeitos e a
tecnologia está presente no interior destes enunciados, e não é possível deixar de fazer uma relação
entre vida e arte. Volochinov afirma que:

A vida, portanto, não afeta um enunciado de fora; ela penetra e exerce influência num enunciado de
dentro, enquanto unidade e comunhão da existência que circunda os falantes e unidade e comunhão de
julgamentos de valor essencialmente sociais, nascendo deste todo sem o qual nenhum enunciado
inteligível é possível. (s/d, p. 14)

Vida e arte estão intrinsecamente ligadas, e estas relações podem ser encontradas no
enunciado aqui escolhido como objeto de análise, em suas dimensões verbivocovisuais. No episódio
White Bear, ao se observar a espetacularização da punição da personagem Victória, é possível
estabelecer diversos diálogos com acontecimentos usuais nas diversas esferas da vida. A narrativa
se constrói nesse embate entre arte e vida. O compartilhamento de vídeos cujo conteúdo está
relacionado ao ato de punir pode ser observado frequentemente nas redes sociais. A necessidade em
se filmar, mostrar e compartilhar a punição de algum sujeito, considerado culpado, é constante. A
partir disso, surgem curtidas, comentários, publicações extremamente ligados a discursos de justiça
e a recorrência da seguinte frase: “foi mais que merecido”.
Pela recorrência e relevância desse acontecimento nas várias esferas da vida, propõe-se,
nesse texto, a discussão da construção da narrativa desse episódio White Bear. Nele, assim como em
todo e qualquer enunciado constituído de linguagem, segundo a perspectiva bakhtiniana, há embates
ideológicos. Toda ideologia, a qual se constitui e se materializa na linguagem, está em formação em
meio a forças que a estabilizam e a forças que as desestabilizam. Todo enunciado, segundo a
perspectiva bakhtiniana de linguagem, é sempre uma arena em que discursos e valorações
estabelecem embates.
O presente trabalho propõe pensar como a narrativa do episódio se constrói em meio a
atuação dessas forças estabilizadoras e desestabilizadoras de ideologias. Propõe-se analisar como a
os mecanismos de controle e punição sobre a personagem Victória se revelam e se ocultam ao longo
da narrativa pela atuação de forças que centralizam e que dispersam esse poder do parque da justiça
sobre a personagem. Ainda assim, será analisado como esse poder se vela e se revela e envolve o
próprio telespectador do episódio nesse jogo ideológico de poder sobre a personagem que também é
sobre o leitor do episódio.
Para isso, como fundamentação teórica, usaremos as discussões sobre linguagem, ideologia e
forças centrípetas e centrífugas desenvolvidas pelo conhecido no Brasil como Círculo de Bakhtin,
Medvedev, Volochínov. Ao pensar que tudo se dá por meio da linguagem e que todo posicionamento
ideológico se dá e existe na linguagem, acredita-se que todo enunciado possui embates ideológicos e

NARRATIVAS
877

valorações. Com o objetivo de analisar a presença das forças de poder e controle sobre o sujeito
Vitória, bem como sobre o próprio olhar do telespectador, atentando para o mostrar e o esconder
dessas forças, usaremos as discussões sobre a atuação de forças estabilizadoras e
desestabilizadores, desenvolvidas pelo Cìrculo, denominadas forças centrípetas e centrífugas.
Este trabalho ainda almeja discutir como essas forças centralizadoras e dispersantes do
poder controlador sobre Vitória se materializam nas dimensões verbivocovisuais da linguagem.
Defende-se, a partir dos estudos bakhtinianos sobre linguagem, que esta é composta por dimensões
verbivocovisuais, as quais estão presentes em todo e qualquer tipo de enunciado.
A relevância desse artigo se dá, como já dito, pela recorrência desse tipo de
espetacularização do punir em nosso dia a dia.

1. A PERSPECTIVA BAKHTINIANA DE LINGUAGEM: OS EMBATES E FORÇAS NA CONSTITUIÇÃO DE


IDEOLOGIAS

A linguagem, na perspectiva bakhtiniana, é pensada como aquela pela qual toda relação entre
sujeitos se constitui. A linguagem está viva nas relações em sociedade. Ela está em constante
movimento e é nela e por ela que o sujeito, as ideologias, os enunciados as relações em geral se
constroem.
A linguagem é inerentemente dialógica. Por nascer de e constituir todo tipo de interação,
estabelecem-se em todo enunciado, o qual se constitui sempre de linguagem, relações dialógicas.

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação


natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções o
discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma
interação viva intensa. (BAKHTIN, 1998, p. 87)

Ao olhar para qualquer enunciado, como por exemplo para o episódio White Bear, observa-se
nele não apenas uma voz, mas variadas vozes que estão em diálogo. Cada uma dessas vozes traz
consigo concepções ideológicas, e estas, em cada uma dos enunciados estabelecem embates.

O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico,
não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica
em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social.
Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele
se aproxima. (BAKHTIN, 1998, 86)

Assim, ao olhar para White Bear, toda a sua construção se dá a partir de diálogos
estabelecidos com a vida. Observa-se que todo o episódio se materializa a partir de existências de
discursos sobre penalização, sobre discursos do uso da tecnologia. São variadas as vozes sobre o uso

NARRATIVAS
878

da tecnologia pelo homem, o ato de se penalizar e assistir essa penalização presentes nesse
enunciado.

Figura 1 – Cena em que a tela se torna a câmera de um smartphone

Fonte: Episódio White Bear (BLACK MIRROR, 2012)

Observa-se, pelas linguagens presentes na cena acima, a relação arte e vida a partir do
diálogo com discursos sobre o uso da tecnologia para espetacularização de atos de punição. A tela,
transformada em tela de celular, filma a condenação de vitória, sua prisão e sua exposição como
culpada, para punição em plena rua pública. O diálogo entre concepções dialógicas sobre tecnologia,
sobre ato de punir, sobre o ato de filmar qualquer acontecimento, se mostra nesse momento.
Cada voz social presente em cada enunciado traz consigo posicionamentos ideológicos.
Volochínov (2012), a partir de uma proposta filosófica da linguagem, propõe o olhar para a palavra
como uma arena de vozes, de posicionamentos ideológicos. Segundo o autor, a ideologia se constitui
na linguagem e pela linguagem, nas interações sociais, e não pode ser pensada fora dessa. Linguagem
e ideologia caminham juntas.
A partir disso, o autor propõe o repensar sobre o signo linguístico proposto por Ferdinand de
Saussure e seus discípulos. Conforme Volochínvov (2012), o signo além do significado, o conceito, e do
significante, a imagem acústica, como proposto por Saussure, também seria composto do ideológico.
Assim qualquer enunciado, constituído de qualquer tipo de linguagem, não é só essa linguagem em
material de significante e significado mas traz consigo valorações.
A palavra, é segundo Volochínov, uma arena:

Cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores
sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto
da interação viva das forças sociais. (2012, p.66)

Se a ideologia só se constitui na linguagem, todo enunciado é uma arena de forças ideológicas


em embate. Toda voz traz consigo ideologias em embate. Esse embate entre posicionamentos
ideológicos se dá em meio a forças estabilizadoras e desestabilizadoras.

NARRATIVAS
879

Toda ideologia está em constante mudança e constante formação. Assim como a língua e os
gêneros estão num movimento entre certa estabilidade e certa transformação, instabilidade, segundo
Bakhtin (1993), as ideologias que se constituem por meio dessa linguagem nesses enunciados
materializados em gênero também estão sujeitos a atuação dessas forças:

a estratificação e o plurilinguismo ampliam-se e aprofundam-se na medida em que a língua está viva e


desenvolvendo-se; ao lado das forças centrípetas caminha o trabalho contínuo das forças centrífugas
da língua, ao lado da centralização verbo-ideológica e da união caminham ininterruptos os processos de
descentralização e desunificação. (Bakhtin, 1993, p. 80)

A força centrípeta é aquela que regula, que estabiliza, já a força centrífuga é aquela que
desestabiliza, dissipa, dispersa. Ao pensar na análise proposta nesse enunciado, é possível pensar, ao
longo da narrativa, forças centralizadoras e dissipantes dessa ideologia dominante e desse poder
sobre a personagem Vitória e sobre o olhar do telespectador.
Analisar esse embate entre forças ideológicas é olhar para a materialiadade verbivocovisual
da linguagem que compõem o enunciado a ser analisado. A verbovocovisualidade vem da poesia
concreta, e é pensado sob a ótica dos estudos Bakhtinianos a partir de Paula (2014). O enunciado
possui dimensões verbais, musicais e visuais, as três ao mesmo tempo, daí se pensa a
verbovocivisualidade. Refletir sobre as diferentes dimensões do objeto White Bear não busca aqui
simplesmente separá-las, mas observá-las de forma a explorar o todo por meio de suas diversas
partes.
A autora Haynes defende em sua obra que Bakhtin “brings us back to the aesthetics of the
creative process itself, back to the activity of the artist or author who creates 143.” (2008, p.4), a
preocupação se encontra, deste modo, nas produções estéticas de obras de arte, sejam enunciados
verbais ou não. As materialidades verbo-voco-visuais, ainda que não tenham sido parte da corpora
analisada pelo Círculo integra o conjunto da cultura oral, a qual não se encontra apartada da escrita,
A parte sonora possui valor igual à escrita, pois sob a ótica escolhida a cultura oral também pode ser
objeto de estudo.

2. WHITE BEAR: o poder velado e revelado

Pensar a constituição de forças de poder dentro do episódio de White Bear, é pensar a


constituição da narrativa e como essas forças aparecem nas materialidades verbivocovisuais
presente nas linguagens do episódio.
O episódio analisado, como já dito anteriormente, pertence à série Black Mirror comprada e
produzida, atualmente, pela Netflix. Do mesmo criador da série, Charlie Brooker, experiente em temas
sombrios e humorísticos, o episódio retrata o percurso de Vitória, que inicialmente não tem seu nome

143
nos traz de volta para a estética do próprio processo criativo, de volta para a atividade do artista ou autor que cria. (tradução nossa)

NARRATIVAS
880

revelado, acordando em um quarto sozinha, cercada por comprimidos e com uma aparência que não
se mostra sã/saudável. Aos poucos ela vai explorando a casa, vê tudo com olhos confusos e não
demonstra saber nem quem ela é e nem onde está. Ao sair da casa para a rua a personagem
permanece com o semblante assustado ao se deparar com pessoas que a observam, de dentro das
casas, com câmeras nas mãos, e nada fazem para se comunicar.
Figura 2 – A personagem Victória sai da casa confusa em busca de ajuda

Fonte: Episódio White Bear (BLACK MIRROR, 2012)

Logo surge um carro e dele desce um homem mascarado com um arma apontada para Vitória.
A personagem corre para se salvar, até que encontra uma mulher aparentemente na sua mesma
situação de fugitiva em perigo. Victoria passa a confiar nessa mulher e a partir deste encontro a
narrativa mostra as duas juntas tentando sobreviver, fugindo de caçadores que querem matá-las
enquanto pessoas apenas observam e não se movem para ajudar.
Quando a fuga das duas chega até um local que daria “fim” às perseguições o cenário de
repente se modifica, as paredes se abrem e nos é revelado que o local não é real, mas sim um palco.

Figura 3 – A narrativa se revela como um “teatro” que termina em um palco

Fonte: Episódio White Bear (BLACK MIRROR, 2012)

Desta cena em diante é revelado que o local se trata de um parque, o parque White Bear, em
que Victória é condenada a viver para pagar por seus crimes. A personagem é mostrada a partir

NARRATIVAS
881

deste ponto como uma assassina, que junto com seu noivo teria matado uma jovem criança. Ao
cometer tal ato, Victoria filmara a menina durante a morte, o que provoca, segundo a “justiça” do
parque, que a penalização da personagem se dê pelos mesmo meios: ela sofre no parque diariamente
enquanto é observada pelos visitantes, que nada fazem para socorrê-la. Ao final do episódio torna-se
claro que o sofrimento de Victoria faz parte do entretenimento daqueles que visitam o parque.
Divertir-se com a experiência de observar a punição de Vitória está entre as instruções que o
visitantes recebem antes de participar da “sessão de tortura”.

3. UMA ANÁLISE DE WHITE BEAR - particularidades do gênero

Ao se analisar um enunciado em suas dimensões verbivocovisuais também é levado em


consideração, neste trabalho, a concepção de gênero discursivo para Bakhtin. O episódio White Bear é
aqui observado não apenas em suas diversas dimensões, mas também como uma construção de um
gênero discursivo, com suas características estáveis e instáveis.
Para o gênero seriado é recorrente que os episódios possuam uma continuação da narrativa
entre si, já em Black Mirror, como foi comentado anteriormente, essa sequência necessariamente
ligada à narrativa não existe, uma vez que cada episódio traz um conteúdo novo. No entanto, uma
mesma temática se estende por todos os episódios, e esse fio condutor é característico da
arquitetônica da série como um todo. Tendo a tecnologia como ferramenta, a tônica da série é a
demonstração dos desfechos horríveis que o uso dos recursos tecnológicos podem resultar. Aquilo
que é desumano e cruel aparece na série como diversão e entretenimento.
Esta temática da série, que aparece em White Bear, está presente nas diversas dimensões do
enunciado em questão. Desde as escolhas de enquadramento das cenas, cores da fotografia, até os
efeitos de sons e ruídos possuem parte na construção do conteúdo temático. Quanto à parte
sonora/musical pode-se perceber a ambientação gerada a partir da trilha sonora durante o episódio.
A trilha sonora cria um ambiente de tensão, que conforme cresce se torna mais alto e mais agudo, o
que contribui com a construção da narrativa, que mostra a situação desesperadora da personagem
Victória. Ao longo do episódio, também surgem momentos de contraponto entre pausa e som, entre
silêncio e ruído. O ruído que lembra uma espécie de “pane”, em especial, pode referir-se às conexões
que a personagem tenta fazer, como sinapses, são flashes de memória. Enquanto ao final da narrativa
o grito, o aplauso e o xingamento da platéia, são vistos como positivos.
Aquilo que a câmera mostra também contribui para a construção do sentido, e deste modo as
particularidades da forma do enunciado podem ser observadas em cenas como a figura que fora
mostrada da tela do seriado que se torna a tela de um celular. Nesta cena, o espectador é inserido na
narrativa como estando no mesmo lugar em que aqueles que assistem ao “espetáculo” do castigo de
Victoria. Ao transformar a tela em uma câmera de um smartphone quem vê também está flagrando o
ato de dentro, do interior do enunciado.

NARRATIVAS
882

Figura 4 – Cena em que a câmera surge como quem observa por trás da árvore

Fonte: Episódio White Bear (BLACK MIRROR, 2012)

Esta construção também aparece em outros momentos do episódio como na cena acima, ao
mostrar uma câmera que surge por trás de uma árvore, que observa como quem está no meio dos
acontecimentos, uma testemunha do que ali ocorre. Mais uma vez os recursos do posicionamento da
câmera contribuem para a construção do sentido, pois desta forma o espectador se torna parte da
ação que ocorre em cena.

4. AS FORÇAS CENTRALIZADORAS E DISPERSANTES DE PODER NO SERIADO

Toda a narrativa se constrói na tensão sobre quem é Vitória, como ela foi parar naquele lugar,
quem são as pessoas que a perseguem, quem é a moça que a ajuda. Ninguém tem nome, até mesmo
Vitória só tem o seu revelado mais adiante na história. Todavia, neste texto, defende-se que ao longo
da narrativa, pela atuação de forças centrífugas e centrípetas, que revelam e que velam a presença
dessa dominação do parque da justiça sobre a personagem, é possível perceber que elementos ora
considerados normais e ocasionais, são na verdade indícios do controle sob o qual a personagem está
submetida.
Nesta seção, analisaremos como esses mecanismos de poder aparecem nem sempre
expostos e estão num movimento de concentração e dispersão, e como o telespectador, assim como
a protagonista, é envolto nessas artimanhas da narrativa.
Inicialmente, Vitória aparece situada como num universo pós-apocalíptico. A predominância do
silêncio, da paisagem acinzentada, das ruas vazias, sugere a ocorrência de algum acontecimento que
deixou Vitória ali, sozinha. Dentro da própria casa em que ela se encontra, há indícios de que algo
aconteceu, de que outras pessoas estavam ali, de ser ela a única sobrevivente a algum fenômeno
ocorrido. Todavia, apesar de, inicialmente, nesses elementos, se dispersar qualquer ideologia de
controle, no final do episódio observa-se que o embate entre estar ocasionalmente e estar
proposicionalmente fica claro.

NARRATIVAS
883

Figura 5 – Sequência de fotogramas que mostram o momento em que Victória usa o copo e o momento em que o copo é posicionado para ela

Fonte: Episódio White Bear (BLACK MIRROR, 2012)

Figura 6 – Sequência de fotogramas que mostram o momento em que Victória encontra o tênis para usar e o momento em que o par é
colocado no local exato para ser localizado por ela

Fonte: Episódio White Bear (BLACK MIRROR, 2012)

Nos fotogramas acima, observa-se a existência de um copo em que a personagem toma água,
um sapato como se ali estivesse deixado cujo ela calça. No entanto, no final do episódio revela-se que
todos elementos já eram mecanismos de dominação e controle da atitude da personagem. Há um
embate que se estabelece entre a casualidade e manipulação desses elementos na casa. Ao mesmo
tempo em que isto encontra-se como que ocasionalmente, há certa disposição e arquitetônica que
tensionam a possibilidade de isso ser implementado.
Observemos as duas cenas abaixo:

Figura 7 – O olhar de Victória ao acordar com os pulsos enfaixados e tendo remédios jogados aos seus pés

Fonte: Episódio White Bear (BLACK MIRROR, 2012)

Ao acordar, Vitória avista comprimidos jogados ao chão e seus punhos enfaixados.


Novamente a oposição entre causalidade se estabelece com a presença de uma força de controle. Os

NARRATIVAS
884

comprimidos e a faixa constroem a impressão da tentativa de suicídio, todavia também fica latente a
presença de uma manipulação desse elementos, o que mais uma vez é revelado no final do episódio
como manipulação por parte do parque da justiça.
A faixa no punho ao mesmo tempo que representa essa alusão ao suicídio, colocando Vitória
na condição de insana ou até mesmo de alguém que não suportou aquele contexto, deixa latente a
questão do aprisionamento desse sujeito que tem suas mãos enfaixadas, como algemas. Concentram-
se nesse momento valores ideológicos de que Vitória tentou se suicidar, a voz presente é a de um
suicídio como libertação daquele contexto pós-apocalíptico. No entanto, isso na verdade se dá pela
presença de forças centrífugas que dispersam os mecanismos de controle do parque sobre ela. A
faixa que aparenta suicídio e libertação, é na verdade algema e aprisionamento.
No decorrer da narrativa, mais esse embate entre a presença de uma dominação e de uma
causalidade se estabelece. Vários são os elementos que surgem

Figura 8 – Sequência de cenas em que aparecem marcas de controle

Fonte: Episódio White Bear (BLACK MIRROR, 2012)

A tensão entre a presença de um controle ou não pode muito bem observada nesses
fotogramas acima. Através do diálogo, é possível perceber alguns elementos de controle
característicos do universo militar. Observa-se na primeira imagem a arma de choque utilizada
frequentemente na vida para conter algum comportamento considerado por certo posicionamento
ideológico inadequado. Na segunda imagem, temos a personagem, juntamente com os coadjuvantes, o
qual se saberá no final serem parte dessa ideologia de poder, dominante, sendo obrigada a marchar,

NARRATIVAS
885

andar conforme um padrão, também imposto por esse controle. Na terceira figura observa-se, ainda
que os responsáveis por conduzir VIctória até o lugar da platéia estavam vestidos com roupas que
dialogam com a vestimenta militar, de controle. O verde militar é recorrente, inclusive nocarro
utilizado por eles.
Mesmo que velado, é possível observar esse jogo entre Vitória ser controlada ou não por um
poder dominante. Observa-se que mesmo o telespectador é também preso nesse embate entre forças
que velam e revelam o poder.
Todas essas pistas da presença de uma dominação se dá nas várias dimensões da linguagem.
A cor da roupa, os movimentos, a posição. O verbivocovisual é arquitetado de modo a significar todo o
episódio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio do enunciado aqui analisado torna-se possível concluir que as dimensões
verbovocovisuais (com suas características particulares e como partes de um todo) contribuem para
a construção da espetacularização, que é o grande tema do episódio e da série como um todo, bem
como revelam a tensão entre forças que velam e revelam a dominação do parque sobre Victória.
Assim, num diálogo arte e vida, também, os telespectadores são manipulados e conduzidos por essa
ideologia controladora por toda a tortura e penalização por que passa a personagem.
Esta análise não busca finalizar uma discussão sobre o enunciado em questão, mas sim
demonstrar como as forças de dispersão e concentração se mostram ao longo da narrativa de White
Bear, quando visualizado sob a ótica dos estudos do Círculo, considerando-o em sua
verbovocovisualidade. O enunciado é um processo e as relações entre vida e arte anteriormente
comentadas permanecem a tecer ligações entre o que se é produzido, na arte, e o que se encontra no
social, na vida.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012
BAKHTIN, M.M (VOLOCHINOV). Discurso na Vida e Discurso na Arte. s/d.
___. (1975). Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP, 1993.
Netflix. Black Mirror. 2012
HAYNES, D. J. Bakhtin and the visual arts. Nova Iorque: Cambridge, 2008
PAULA, L. de (Org.). Semiose Verbivocovisual. São Carlos: Pedro & João, 2014.

NARRATIVAS
RESUMO
886
.

A COMUNICAÇÃO Palavras-Chave:

SUPLEMENTAR E/OU
ALTERNATIVA: a visão de
professores acerca das interações
estabelecidas com seus alunos com
oralidade restrita

KRÜGER, Simone I.144


BERBERIAN, Ana Paula145

INTRODUÇÃO

P
artindo de uma perspectiva sócio-histórica, tendo por base formulações de Mikhail Bakhtin e de
estudiosos alinhados a tais formulações, defendemos a tese de que a Comunicação Suplementar
e Alternativa (CSA) é composta por signos linguísticos não-verbais que mediam as interações
dialógicas, favorecendo a apropriação da linguagem e, portanto, a constituição do sujeito com
restrições de fala.
Partimos da hipótese de que a CSA pode promover relações dialógicas significativas,
contribuindo para que tais sujeitos sejam reconhecidos e se reconheçam como “falantes” e autores
de seus discursos, condição para que possam ocupar ativa e responsivamente o lugar de quem quer e
têm o que dizer.
Tendo como base formulações de Bakhtin, a linguagem é vista aqui como sendo de natureza
dialógica e constitutiva do sujeito. A palavra, a enunciação, parte de alguém e se dirige a outra pessoa;
é pela linguagem que os sentidos se constroem, dialogam, negociam e disputam espaços. Os

144
Fonoaudióloga, Doutora em Distúrbios da Comunicação e no momento esta realizando o Estágio de Pós-doutoramento com bolsa da CAPES –
Programa de estrado e Doutorado em Distúrbios da Comunicação –Universidade Tuiuti do Paraná.
145
Professora Doutora do Departamento de Fonoauudiologia e do Programa de Mestardo e Doutorado em Distúrbios da
comunicação.

NARRATIVAS
887

processos interacionais são, portanto, pontos de partida para a construção da linguagem e do


conhecimento de mundo.
Essa concepção nos oferece elementos para analisar como dificuldades no estabelecimento
de interações entre professor e alunos podem gerar impactos decisivos na constituição de crianças
com oralidade restrita em várias dimensões - linguística, emocional, cognitiva.
As questões abordadas e analisadas neste estudo foram formuladas a partir de nossa prática
clínica fonoaudiológica, voltada à linguagem e à área denominada Comunicação Suplementar e/ou
Alternativa (CSA), junto a crianças com limitações de fala significativas.
Com o intuito de estabelecer uma rede de cuidados no atendimento dessas crianças,
buscamos manter uma interlocução com a instituição escolar, sendo então, constantemente
solicitadas pelos professores a orientá-los sobre o uso da CSA. No geral, eles solicitam orientações
sobre o modo de lidar com alunos que têm limitações de fala, visando à aprendizagem e avaliação
escolar por meio das “figuras” e “desenhos”, sem, contudo, abordar questões que envolvem a
apropriação da linguagem e a interação.
Diante dessa experiência, pudemos constatar que os vários impedimentos para que ocorra
uma interação efetiva em sala de aula têm origem em uma problemática mais ampla, ou seja, as
restritas condições de acesso e participação efetiva das crianças com dificuldades nos processos de
apropriação da linguagem e do conhecimento. E isso ocorre mesmo considerando que as políticas
públicas voltadas ao sistema educacional brasileiro estão assentadas no paradigma da inclusão
escolar, o qual pressupõe que a educação de qualidade é um direito de todos. Quando se trata,
especificamente, do aluno com restrições severas de fala, fica também evidente a limitada formação
docente, quanto ao processo de apropriação da linguagem e das diversas estratégias de interação
que podem viabilizar esse processo.
De fato, em âmbito nacional, quando se trata do processo de apropriação do conhecimento de
alunos com comprometimentos significativos da oralidade, vários autores salientam a necessidade de
reconhecimento e incentivo do uso de meios alternativos de mediação. Do contrário, o processo
torna-se limitado ou inviável, pois restringe o estabelecimento das interações dialógicas entre o
professor e esses alunos.
Importante destacar que se trata de um estudo cuja contribuição é enfatizar a importância da
perspectiva dialógica da linguagem e da CSA para a promoção da apropriação da linguagem e do
conhecimento junto a alunos com limitações de oralidade, destacando-se, ainda, a necessidade de se
criar espaços de interação mais profícuos no contexto escolar.
Esta pesquisa pretende fornecer elementos teóricos e implicações práticas que contribuam
com os processos de inclusão escolar de alunos com restrições de fala no contexto educacional
brasileiro, especialmente, no que se refere ao uso da CSA nas interações estabelecidas entre tais
alunos e seus professores, uma vez que estas são determinantes nas mediações.
Diante da afirmação de que não há apropriação da linguagem e do conhecimento sem
interação e sem atividade interpretativa, fica evidente a urgência em repensar as práticas

NARRATIVAS
888

educacionais, ultrapassando o conceito de linguagem reduzida a um veículo de comunicação e


centrado na estrutura da língua, na significação restrita e restritiva e na técnica. Pretendemos
evidenciar que a CSA oferece oportunidades para que o aluno se manifeste e se coloque como autor
de suas escolhas, de seus desejos, sendo o querer dizer dele reconhecido na e pela atividade
interpretativa do interlocutor.
Para tanto o objetivo geral desta pesquisa é analisar que visões os professores tem acerca
das interações estabelecidas entre os mesmos, de modo a se pensar em outras possibilidades de
interação no contexto escolar, a partir da perspectiva dialógica da linguagem.

METODOLOGIA

A presente pesquisa é qualitativa, exploratória e está apoiada na análise dialógica do discurso,


que se fundamenta em preceitos e categorias sistematizadas por Mikhail Bakhtin e seu círculo. De
modo a destacar as contribuições de tal perspectiva para as ciências humanas e, particularmente,
para a presente pesquisa, abordamos brevemente pressupostos formulados por Bakhtin (2009, 2011),
bem como por pesquisadores nacionais e contemporâneos que concebem a linguagem como atividade
dialógica e constitutiva dos sujeitos e das relações sociais. Dentre eles, destacamos Freitas (2002,
2003), Jobim e Souza (1995, 2006) e Kramer (1998b).
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Sociedade Evangélica
Beneficente de Curitiba, de acordo com as atribuições definidas na Resolução CNS/466/12, sob
parecer de número 498.215/2013. O projeto foi protocolado e aprovado pelo departamento
responsável por projetos e pesquisas da Prefeitura de um município da Região Metropolitana de
Curitiba, sob Processo de número 24316/2012. Segundo os dados do IBGE, Diretoria de Pesquisas,
Coordenação de População e Indicadores Sociais, tal município compreende uma população
aproximada de 125.80053 habitantes. Foram escolhidas nove escolas municipais de ensino
fundamental, três centros municipais de educação infantil, uma escola municipal de ensino especial e
um Centro Municipal de atendimento educacional especializado em deficiências sensoriais (CADS). A
escolha dessas instituições se deu em virtude da busca dos professores que atuavam junto a alunos
com limitações severas de fala, matriculados em diversas escolas municipais da cidade.
A seleção dos participantes foram professores das unidades de ensino municipais que
estavam atuando junto a alunos com comprometimentos significativos de oralidade –, foi realizada
uma reunião com o Secretário de
Educação do município selecionado e com a coordenadora do Departamento de Educação
Especial. A partir desse encontro, a coordenadora disponibilizou uma relação com nomes de
professores do município que poderiam ser incluídos no critério predeterminado e seus respectivos
alunos com restrições de fala, bem como das escolas em que estavam inseridos. A lista inicial
continha 26 professores, sendo seis que atuam nos Atendimentos Educacionais Especializados (AEE) 12
de uma escola de ensino especial, três professores regentes e cinco de educação infantil. Dentre os

NARRATIVAS
889

professores de escola especial, apenas um não participou da pesquisa, pois não tinha aluno naquele
período com restrições de fala. Dentre os professores regentes, também apenas um não participou
da pesquisa porque o aluno com restrições de fala havia mudado de turma. Foram incluídos pelo
pesquisador como sujeitos da pesquisa dois estagiários, por atuarem diretamente com dois alunos
com limitações de fala, e um professor que atuava como professor de apoio à comunicação
alternativa (PACA) junto a um aluno em sala regular. Uma segunda lista foi enviada para o endereço
eletrônico da pesquisadora contendo os telefones das escolas e os nomes das diretoras. Por telefone,
foram agendadas reuniões com as diretoras das respectivas escolas para apresentar o projeto de
pesquisa e obter a permissão e a aceitação da participação dos professores de sala regular,
professores dos Educação Infantil, dos AEEs e da escola de ensino especial. A partir de tal
autorização, a pesquisa de campo foi realizada no período de março a setembro de 2013.
Foi adotado como recurso linguístico-discursivo para a realização da pesquisa de campo a
entrevista individual do tipo semiestruturada. Os discursos produzidos no encontro do pesquisador
com o pesquisado, por meio das entrevistas, são objeto de nossa análise. Segundo Freitas (2002),
como recurso metodológico, a entrevista possibilita o estabelecimento de uma relação de sentido
entre os discursos produzidos por pesquisador e pesquisado; portanto, os enunciados que emergem
nessa interação dependem da situação concreta daquele momento e da relação estabelecida entre os
interlocutores.
Rocha, Daher e Sant’Anna (2004) destacam a importância de caracterizar a entrevista
enquanto dispositivo enunciativo, rejeitando a definição que a considera como ferramenta que permite
ao entrevistador o acesso a informações ditas “verdadeiras”, desejadas.
Todas as entrevistas foram realizadas de forma individual, nas salas de reuniões dos
professores de cada escola e nas salas de recursos multifuncionais, gravadas em áudio, utilizando um
gravador digital.

ANÁLISE DO CORPUS

Para dar tratamento analítico-qualitativo ao corpus da pesquisa, pautamo-nos na análise


dialógica do discurso, de cunho bakhtiniano, assumindo, portanto, que a significação se produz na
dinâmica das interações. Além de considerar o diálogo e as relações dialógicas que emergem no
discurso, a ideia de que o sujeito é composto a partir e por meio do “outro” pertence à concepção
teórica e analítica da ADD. O pesquisador deve conhecer o ser humano que está sendo pesquisada,
sua atividade, sua condição de sujeito múltiplo e sua inserção na história, no social e no cultural por
meio da linguagem. (ROCHA, DAHER, SANT’ANNA, 2004).
Deste modo, nesta pesquisa, quando os professores participantes falam de si e dos alunos
com os quais se relacionam, o fazem com base em conhecimentos, concepções e posições
construídas e reconstruídas num coletivo, em um tempo e espaço mais amplos, bem como na
interação estabelecida entre eles e seus alunos.

NARRATIVAS
890

As concepções tecidas pelos professores acerca de suas interações com alunos que
apresentam significativas limitações de fala evidenciam como se colocam nessas interações, assim
como o lugar que atribuem ao outro/aluno.
Para realizarmos a análise dos enunciados produzidos pelos participantes, optamos por
organizar e abordar o corpus a partir de um eixo temático apoiando-nos em um roteiro pré-
estabelecido: conceituações com vistas em mapear a visão dos modos de interação estabelecidos
entre os professores e alunos com restrições de fala.
Para análise dos enunciados produzidos pelos professores acerca dos modos de interação
estabelecidos com seus alunos com significativas restrições de oralidade, evidenciamos dois
aspectos, emergidos a partir das regularidades discursivas que são: posições assumidas pelos
professores e atribuídas aos referidos alunos nas interações estabelecidas entre os mesmos e o
impacto que as limitações de oralidade apresentadas pelos referidos alunos exercem nas interações
estabelecidas entre os mesmos. Apenas um aspecto será abordado neste artigo.
Descrevemos abaixo enunciados produzidos pelos professores/participantes observado como
regularidade, a posição assumida de um dos interlocutores como a de quem fala, e ao outro a posição
a de quem responde, desfavorecendo o lugar do outro como interlocutor.

P1: Ela aponta e ela compreende o que eu digo para ela. Por exemplo, eu falo assim: joga esse papel lá no
lixo para mim e ela vai lá no lixo e joga. Então ela compreende. Vamos guardar os brinquedos? Ela
guarda. Ela tem uma compreensão boa com ordens simples. 1 de cada vez. Se disser 1 ou 2 ou 3 ordens
daí ela não consegue.
P4: Interajo agora com ele através dos cartões pelo método do pecs. Antes ele só puxava a minha
mão, mas no atendimento, não adianta ele puxar, tem que pegar o cartão ai ele me dá e ai eu sei o que
ele quer.
P5: Olha o L ainda é muito pequenininho. Eu dou muito carinho e quando ele está irritado, eu paro
pergunto, olho nos olhos dele e tento sempre entender o que ele quer. Tento entender os gritos, os
sorrisos, mas é claro que quando ele sorri sei que ele está bem e que está gostando da atividade.
P7: Através da fala, falando e ele responde normalmente. Por exemplo, se eu peço para ele pegar
alguma coisa. – Pega aquele lápis que está lá naquela mesa ele vai lá e pega aquele lápis. Ele
compreende.
P8: Ele não fala, mas entende, ele compreende, ele ouve e ele algumas vezes atende o que é
solicitado. Atende os horários de refeições.
P11: Eu pergunto, por exemplo, quer água? Eu mostro a canequinha, daí fala que não com a cabeça,
pergunto, vamos fazer desenho ai ele me mostra.
P12: ...só que é assim, quando eu o chamo, ele não te olha ai você vai lá,pega ele pelo braço e quando
ele quer alguma coisa ele usa a tua mão como meio, né? para pegar um copo d’agua ele leva a tua mão
para poder pegar, mas você não pode falar frases com ele, por exemplo: L. você não pode fazer isso.
Você tem que tirara mão dele e só falar não. Tenho que usar frases curtas com ele.
P13: Se eu não puxar conversa com ela, ela não vem e fica na dela. Para ela conversar só se algum
colega agride ai ela vem contar, se não ela fica no canto dela sozinha sem conversar. Na entrada ela
vem perto de mim, do jeito dela, mas ela cumprimenta.
P14: Eu falo e pergunto né? E eles me dão algum tipo, se é sim, se é não. [...] O R. compreende e
sinaliza com a cabeça e com a mão. Tudo que eu peço ele faz. Com a M. eu falo: M vai ao banheiro e ela
vai, então ela compreende. Fala com ela e ela simplesmente levanta e faz. Ela obedece só ordens

NARRATIVAS
891

P15: Então o que eu peço elas fazem, mas quando a V. quer ir ao banheiro, ela gesticula com a mão e
vai ao banheiro. Então a comunicação da gente se da muito bem. Eu não tenho dificuldade de entender o
que elas querem e nem elas a minha pessoa. Você viu aquele dia. V faça isso. M faça aquilo e elas fazem.
P16: A interação é no corpo a corpo. É no toque, começa por ai e você vai conversando com a
criança, vai tocando e vai sentindo. A criança que chora alguma coisa ela não está gostando, então tem
que fazer alguma coisa para que ela queira estar ali e participar, daquilo ali. Você vê se quer comer ou
não pela face pelo jeitinho deles.
P18: Havendo uma interação, havendo um conhecimento prévio da criança, eu acho que essa
dificuldade de comunicação ela é transposta. Você consegue se comunicar. Meus alunos ali, o R. por
exemplo ele não fala, mas ele tem assim uma compreensão boa.
P19: Através do gesto, afeto e brincar com eles, pedi para eles apontarem o que está certo e errado,
nesse sentido, eu não o desprezo, estou junto, procurando entender através de um sorriso, de um olhar,
uma demonstração de carinho.
P20: Os que não falam demonstram de alguma maneira pelo gesto, pelo corpo, que estão entendendo
o que você está falando. Tem alguns que não, que nada fazem, mas com a maioria que eu já trabalhei
eles demonstram assim ter um entendimento. Eles fazem o que eu estou pedindo, então eu não tenho
dificuldade com esse aluno que tem um entendimento bom.
P22: Como eu trabalho aqui à 20 anos, eles me conhecem e eu conheço eles e é diferente do regular
que tem mais rotatividade de alunos, então eles conhecem a gente, já conhece a família, o cachorrinho,
então a interação é muito boa. Você dia assim para eles, vamos para a sala, vamos ao banheiro e eles
sabem bem onde é, porque eles já estão aqui a muito tempo.

A partir desses enunciados pudemos notar que os professores ao discorrer acerca das
interações estabelecidas entre eles e os referidos alunos consideram que as diferentes formas de
manifestações corporais de seus alunos (gestos, expressões faciais), participam do estabelecimento
das mesmas. Contudo, cabe indagarmos como concebem tais interações, bem como, se o
reconhecimento das manifestações corporais, por eles apontadas, garante aos alunos com restrições
de fala um lugar de interlocutor/autor. Podemos notar que alguns professores (P7, P8, P11, P14, P15,
P20 P22) referem tais manifestações como indicativos de que seus alunos compreendem o que eles
dizem e o que lhes é solicitado. Se responder positivamente à fala do professor pode ser considerada
uma forma de verificar o entendimento e a compreensão de tais alunos, há de se indagar que tipo de
interação é estabelecida quando a um dos interlocutores é definida a posição de quem fala e ao outro
de quem responde.
As interações relatadas pelos professores (P7, P8, P11, P14, P15, P16, P18, P19, P20, P22)
parecem estar restritas a uma dinâmica em que os professores solicitam coisas e os alunos
respondem positivamente a tais solicitações. Tal noção contraria a concepção por nós defendida a
partir da qual a interação é entendida como resultante de uma relação dialógica em que os
interlocutores alternam as posições ora introduzindo enunciados, ora respondendo a enunciados.
(Bakhtin, 2009).
Fica evidente nas falas de P15, “então o que eu peço elas fazem... [...] então a comunicação da
gente se da muito bem [...]”, bem como de P 14, “Tudo que eu peço ele faz. [...]. Fala com ela e ela
simplesmente levanta e faz.

NARRATIVAS
892

Ela obedece só ordens.” que as interações estabelecidas entre professores e alunos são
concebidas a partir da seguinte lógica: os professores transmitem mensagens, as quais se referem a
solicitações e ordens e tais alunos, por compreenderem as mesmas, respondem positivamente às
mesmas, a partir de manifestações corporais ou por ações.
Podemos considerar, então, a partir dos enunciados acima, que a interação é concebida como
uma via de mão única, ou seja, não se configura como um processo dialógico, o qual pressupõe
alternância de posições e a construção de significados e sentidos entre os interlocutores (BRAIT
2007). Os significados e sentidos parecem estar aprisionados/restritos nas e à fala dos professores.
O querer dizer e o dizer de seus alunos não se colocam como questão nos enunciados produzidos
acima descritos, o que nos leva a duas indagações: Os referidos professores conferem a tais alunos
um lugar de autoria e, portanto, de sujeitos que tem o que dizer para além das respostas às suas
solicitações? Tais professores assumem uma posição responsiva diante dos dizeres produzidos pelos
alunos?
Diante dessa posição podemos considerar que, se por um lado seus alunos com limitações de
fala não são reconhecidos como autores de seus discursos, por outro, tais professores não assumem
uma posição de sujeito responsivo. Deste modo o impossibilita de posicionar-se exotópicamente, ou
seja, sair do lugar dele, enxergar o outro no lugar do outro, e ter uma experiência a respeito dele que
apenas eu posso ter. Segundo Geraldi (2003a) tal posição exotópica nos permite um excedente de
visão, pelo qual também nos orientamos, pois a palavra é orientada para o outro. Esse outro é o
interlocutor. A partir da perspectiva teórica por nós assumida, as interações ocorrem pela atividade
dialógico-discursiva, que envolve locutores e interlocutores, cujos papéis se alternam nestas
posições. Bakhtin (2011) refere-se ao diálogo face a face a forma que representa com excepcional
evidência a alternância dos sujeitos do discurso, determinante dos limites do enunciado (BAKHTIN,
2011).
E para haver alternância a de haver o outro. “Os outros, para os quais meu pensamento se
torna, pela primeira vez, um pensamento real (e com isso, real para mim), não são ouvintes passivos,
mas participantes ativos da comunicação verbal” (BAKHTIN, 2011, p.323). Deste modo, o outro não é
simplesmente um ouvinte, mas um interlocutor, com suas reações-respostas.
Contudo podemos observar nos enunciados produzidos pelos professores que a falta dessa
dinâmica discursiva nas interações estabelecidas com os referidos alunos compromete a construção
de sentidos, bem como, o desenvolvimento da linguagem e, portanto, da apropriação do conhecimento
acadêmico por parte dos alunos. É preciso enfatizar que essa dinâmica provinda da alternância
discursiva ela é construída pelo discurso do outro, ainda que seja uma palavra, um som, um gesto, um
movimento (BAKHTIN, 2011).
É possível notar nos enunciados produzidos pelos professores uma perspectiva instrumental
tanto da linguagem, quanto das relações pertinentes ao processo de ensino-aprendizagem. Tal
perspectiva pode ser apreendida uma vez que, os enunciados por eles produzidos são constituídos a
partir das noções de que a comunicação se estabelece a partir da transmissão de uma mensagem que

NARRATIVAS
893

carrega um único significado a ser compreendido e de que a relação professor-aluno está


adequadamente estabelecida quando tal dinâmica acontece.
Os enunciados apresentados acima, também, comportam a ideia de que a única voz de
valor/autoridade, especificamente, no contexto de ensino junto a crianças com limitações de fala, é a
do professor. Diante de tal ideia podemos indagar se o espaço escolar e as relações dialógicas,
estabelecidas a partir de tal lógica, permitem que os referidos alunos assumam posição de
interlocutores de seus professores e, deste modo, participem ativamente das interações e dos
processos de ensino-aprendizagem.
Ressaltamos que o não reconhecimento/acolhimento do aluno como interlocutor ativo pode
resultar numa ausência de relações dialógicas entre o professor e o aluno com restrição de fala,
fundamentais para a constituição do sujeito e da linguagem. Como salienta Buber (2010) toda e
qualquer forma de enunciado só existe para o outro e é orientada para o outro, sem o outro o eu é
inexistente.
Para encaminhamento de tal análise, recorremos a Bakhtin (2009), para quem o lugar de
locutor/sujeito da enunciação não é de mero falante/transmissor, usuário de sistemas linguísticos
verbais e não-verbais, mas sim de um sujeito ativo e responsivo na relação com a sua e com a palavra
do outro. Sujeito que dialoga, interpreta, responde, questiona e ressignifica enunciados.
Quanto à noção de sujeito implicada nessa forma de conceber as interações, consideramos
importante resgatar, conforme explicitado no capítulo três, princípios formulados por Bakhtin (2009,
2011) acerca do que denominou como sujeito da enunciação. Para o autor, a enunciação é fruto das
interações sociais realizadas por meio do diálogo e, portanto, não é um produto individual.
A presença do outro, ou seja, de um interlocutor tem um papel ativo em todo o processo da
produção do enunciado. Isso porque a relação com o outro, determinada social e historicamente,
ocorre num tempo e num espaço que delimita quem fala, com que finalidade fala, para quem fala.
Dessa forma, é a partir das condições de produção do enunciado, determinada pela relação eu outro,
que se constitui o sujeito autor de seus enunciados. (BAKTHIN 2009, 2011).
Constituídos pela alteridade, significada na figura do outro, as manifestações de linguagem,
independentemente de sua forma ou tipo, orientam-se sempre para o outro, destinam-se para o
outro. Reiteramos que ao atribuírem significados e sentidos aos enunciados apenas por uma via, e ao
esperarem do outro/aluno que apenas cumpra um pedido ou uma ordem, professores não conferem
aos alunos com limitações de fala o lugar de sujeitos da enunciação, enfim, de sujeitos autores.
A partir dos enunciados acima descritos, também, é possível apreender que tais professores
acreditam estabelecer uma interação apenas apoiados na leitura das manifestações corporais de
seus alunos sem a utilização dos símbolos/imagens pictográficas. Tais professores parecem
considerar que bastam as manifestações corporais produzidas pelos alunos para que as interações
ocorram e que, portanto, não há necessidade de incorporar outras manifestações pertinentes a CSA
(as que ofereçam a possibilidade de materialização dos enunciados) para o estabelecimento das
mesmas.

NARRATIVAS
894

Cabe destacar que interpretações formuladas pelos professores a partir apenas das
manifestações corporais produzidas pelos alunos podem ser limitadas. A limitação de recursos que
possibilitem uma materialidade sígnica dos “dizeres” dos alunos pode conduzir os mesmos a
assumirem uma posição de serem falados pelos seus professores, limitando, assim, suas
possibilidades de ocuparem um lugar de “falante” e de interlocutores. Como discutimos no capítulo
três os símbolos pictográficos podem posicionar-se como signos, pois não há linguagem sem signos.
Se, interações estabelecidas entre professores e alunos com limitações de linguagem oral a
partir de manifestações corporais podem favorecer o reconhecimento de tais alunos como sujeitos da
enunciação e interlocutores, consideramos que a construção e incorporação de materialidades
sígnicas nessas interações são fundamentais para que ocupem efetivamente o lugar de autoria de
seus discursos esse lugar. Isso por que concebemos os recursos pertinentes a CSA, particularmente,
os símbolos pictográficos como possibilidades de materialização/corporização dos enunciados não-
verbais como signo, processo esse pode resultar numa maior participação dos alunos nas interações
vivenciadas no contexto educacional e, portanto,, nos processos de ensino-aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para tecermos as considerações finais desse trabalho, reiteramos que as discussões, as posições e
os sentidos aqui veiculados, foram determinados pelas situações experimentadas dialogicamente
entre o pesquisador e os participantes da pesquisa envolvendo diálogos estabelecidos entre diversas
vozes e horizontes.
Relações dialógicas foram estabelecidas com sujeitos cujas experiências profissionais são
vivenciadas em contextos e em torno de problemáticas comuns. As interações estabelecidas, durante
a realização desse trabalho, com discursos escritos por pesquisadores envolvidos com as questões
que nos instigam, bem como, com os discursos produzidos oralmente pelos
professores/participantes, permitiram uma leitura crítica, ainda que limitada, dos acontecimentos e
das realidades com os quais estamos comprometidos.
Partimos do pressuposto de que tal leitura é limitada, inacabada, incompleta uma vez que,
parte de um horizonte determinado temporal e espacialmente. Contudo, respeitando os modos de
produção do conhecimento acadêmico, pretendemos ao longo desse trabalho incorporar e articular
perspectivas teóricas e metodológicas adotadas por diversos autores, assumir uma posição
valorativa diante das mesmas e, em diálogo com as palavras dos outros, desenvolver uma posição de
autoria.
A partir do objetivo proposto, pudemos apreender que a visão dos modos de interação do
professor com seus alunos com comprometimentos da oralidade, remetem a uma concepção da CSA e
da linguagem como instrumento, pois muitos assumem uma posição que não envolve tal aluno como
falante. Não há alternância dos sujeitos no processo discursivo, levando deste modo a uma limitação
na produção discursiva.

NARRATIVAS
895

Mas é importante salientar que, apesar da predominância de uma orientação instrumental da


CSA e da linguagem, constatamos há presença de professores, ainda que de forma incipiente, que dão
relevância ao processo discursivo e as relações interacionais, por meio do uso dos símbolos
pictográficos da CSA.
Ainda que sejam poucos, conceituam a CSA como recurso favorecedor ao estabelecimento das
interações dialógicas, imprescindíveis para a apropriação dos conhecimentos, inclusão social e a
constituição de futuros cidadãos.
Professores que têm uma visão diferenciada da orientação instrumental e que buscam pela
CSA a materialização de uma fala, seja pelo gesto, sejam pelos movimentos corporais, seja pelos
símbolos pictográficos. É importante novamente enfatizarmos que estamos distanciados de aportes
teórico-metodológicos que concebem a CSA e a linguagem a partir de uma visão instrumental.
Defendemos o pressuposto de que o uso de recursos relacionados à CSA, junto a alunos com
limitações de oralidade, pode contribuir para apropriação da linguagem e do conhecimento uma vez
que pode favorecer o estabelecimento de interações nas quais professores e alunos assumam o lugar
de autoria.
A partir de uma perspectiva constitutiva e dialógica da linguagem, defendemos a ideia de que
o uso da CSA, enquanto atividade semiótica composta por signos verbais e não-verbais, pode
favorecer a participação de alunos com restrição de fala nos processos de apropriação da linguagem
e do conhecimento.
Enfim, chegamos ao final deste trabalho com um texto. Desejamos que esse texto entrelace e
alterne-se de forma dialógica com outros e mais outros textos, pois segundo Bakhtin, “um texto só
tem vida contatando com outro texto” (BAKHTIN, 2011, p.375).

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 13 ed. São Paulo: Hucitec.2009.


BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011
BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro Editora, 2010.
FREITAS, M.T.A. A Abordagem sócio-histórica como orientação da pesquisa qualitativa. Cadernos de Pesquisa, n.116, p.
20-39, 2002.
FREITAS, M.T.A. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. In: FREITAS, M.T.A;
JOBIM, S.S.; KRAMER, S. (orgs). Ciências Humanas e Pesquisa. Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, p. 26-38.
2003a.
GERALDI, J.W. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética. In:
FREITAS, M. T; JOBIM, S. e 193 KRAMER, S. Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de M. Bakhtin. São Paulo:Cortez
Editora, 2003a. p. 39-56.
JOBIM E SOUZA, S. Linguagem, consciência e ideologia: conversas com Bakhtin e Vygotsky. A criança e seu
desenvolvimento: perspectivas para se discutir a educação infantil. São Paulo: Cortez Editora, p. 11-30, 1995.

NARRATIVAS
896

JOBIN e SOUZA, S. Mikhail Bakhtin e as Ciências Humanas: sobre o ato de pesquisar. In: FREITAS, M.T.A. Escola,
Tecnologias Digitais e Cinema. Juiz de Fora: Editora UFJF, p.35-44, 2006.
KRAMER, S. Cultura, modernidade e linguagem: leitura e escrita de professores em suas histórias de vida e
formação. Relatórios parciais I e II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1998a.
ROCHA, D; DAHER, M.C; SANT’ANA, V. A Entrevista em situação de pesquisaacadêmica: Reflexões numa perspectiva
discursiva. Revista polifonia v.8, p.161-180, 2004

NARRATIVAS
RESUMO
897

A série 13 Reasons Why desestabilizou parte da

13 REASONS WHY E A sociedade após a veiculação de sua primeira


temporada que aborda, sem tabus, a temática do
suicídio. A cena do suicídio de Hannah Baker gerou

REPRESENTAÇÃO DO
polêmicas nas mais diferentes áreas do
conhecimento, mas, principalmente, entre as
esferas artística, na qual a mídia produz, e da
saúde. Com o objetivo de refletir sobre o diálogo

SUICÍDIO: diálogos entre o discurso entre essas diferentes vozes acerca do suicídio,
entendendo o seriado em questão como um ato
ético, propomos uma reflexão, embasada na
da saúde e o artístico perspectiva teórico-metodológica do Círculo do
Bakhtin, motivada pela cena do suicídio de Hannah
Baker, com o objetivo de verificar o diálogo entre os
discursos da área da saúde e da arte acerca da
temática como atos éticos.

LARA, Marina Totina de Almeida146


Palavras-Chave: 13 Reasons Why. Suicídio. Círculo
CONTI, Marina Calsolari147 de Bakhtin.

INTRODUÇÃO

13
Reasons Why é uma série estadunidense baseada no livro Thirteen Reasons Why, de Jay
Asher, adaptada para a plataforma de filmes Netflix por Brian Yorkey. A primeira temporada
da série é composta por 13 episódios, todos disponibilizados na plataforma no dia 31 de março
de 2017. O impacto social de 13 Reasons Why em sua recepção gerou polêmicas e respostas
polarizadas acerca dos temas que são abordados no enunciado, como, principalmente, o bullying e o
suicídio. O cenário de aumento do número de suicídios 148 em todas as faixas etárias, mas,
especialmente entre os jovens, além do alerta sobre o jogo suicida Blue Whale 149, dentre outros
motivos que abordamos neste texto, geraram, na sociedade, um desconforto em relação à temática do
suicídio e sua representação na série.
Nesse sentido, a motivação deste texto foram as polêmicas que repercutiram sobre a série, e
as críticas acerca da não obediência do seriado às orientações para prevenção e representação do
suicídio da OMS (Organização Mundial de Saúde) para enunciados midiáticos (OMS, 2000). Dessa
forma, nosso objeto motivador das discussões deste texto é a cena do suicídio de Hannah Baker,
protagonista do seriado, no 13° episódio da temporada, visando retomar os elos na cadeia de

146
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. E-mail: m.almeidalara@hotmail.com.
147
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. E-mail: marina_calco@hotmail.com
148
Fonte: http://www.who.int/mental_health/media/counsellors_portuguese.pdf. Acesso em 21 abr. 2017.
149
Fonte: http://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2017/04/baleia-azul-o-jogo-suicida-que-preocupa-o-brasil-e-o-mundo.html. Acesso
em 21 abr. 2017.

NARRATIVAS
898

enunciados, a fim de verificar o diálogo entre a representação artística, pela mídia, do suicídio, e o
discurso da saúde acerca deste, podendo, ainda, visualizar o diálogo entre esferas de atividade
humana 150 produzindo seus atos éticos.
A perspectiva teórico-metodológica para análise do enunciado é a de Bakhtin e seu Círculo,
que propõe uma análise dialógica dos enunciados concretos. Os principais conceitos da teoria
bakhtiniana mobilizados neste texto são enunciado concreto, diálogo, vozes sociais, esferas de
atividade humana, ato ético e sígnos ideológicos.
O texto foi organizado em, além da seção introdutória, na qual apresentamos o tema e
abordamos, de maneira breve, os principais conceitos do Círculo que são mobilizados no texto, mais
duas outras partes, sendo elas: 2) A série e sua recepção: diálogos entre o discurso da saúde e o
midiático, cujo foco é apresentar 13 Reasons Why e sua história de maneira mais detalhada para os
leitores, para depois colocar em diálogo as vozes oficiais da OMS sobre representação do suicídio e
as vozes da esfera artística representando na série a morte de Hannah Baker e 3) O suicídio de
Hannah, em que apresentamos a cena do suicídio da protagonista e propomos reflexões.
Neste momento, abordamos, portanto, de maneira breve, os conceitos do Círculo de que são
lançados mão nesse texto. O conceito de diálogo norteia todo nosso olhar para os enunciados, numa
perspectiva bakhtiniana, pois nos coloca em relação com outros diferentes enunciados e vozes ao
analisarmos nosso objeto. Estar em diálogo com um enunciado é “estar na escuta”, olhar para um
enunciado, e, nele, identificar marcas de outros já ditos ou não ditos sobre seu tema, é situá-lo sócio-
historicamente e entendê-lo como um acontecimento discursivo único, é posicionar-se diante dele e a
ele responder, dando continuidade à cadeia enunciativa.
Os estudos bakhtinianos tomam o enunciado concreto como um ato/evento que não se
dissocia da ética. Bakhtin reflete sobe o ato ético em Para uma filosofia do ato respostável (2010),
escrito em 1920. Neste texto, o estudioso afirma que as ações humanas (que envolvem a linguagem)
não podem ser apagadas e possuem consequências, o que evidencia a responsabilidade do sujeito com
o outro. A responsabilidade confere singularidade ao enunciado, entendido como ato, que só pode ser
assumido por um sujeito. Assim, entender o enunciado como ato responsável, nossa perspectiva
também neste texto, envolve relações entre sujeitos e a alteridade.
Ainda, a partir do Círculo, entendemos que os enunciados são sempre proferidos pelos
sujeitos do seio de uma esfera de atividade humana (BAKHTIN, 2000) – espaços ideologicamente
concebidos, de características comuns – e que se diferenciam de acordo com a esfera da qual têm
origem, pois há certos temas, valores e maneiras de se enunciar mais adequados em cada esfera. Por
isso, enunciar sobre suicídio da esfera da saúde ou da artística confere responsabilidade de dizer
diferentes, que geram respostas também diferentes no embate de vozes, assunto sobre o qual versa
este texto.
Quando falamos em vozes sociais estamos entendedo-as a partir dos estudos do Círculo e de
comentadores, como Melo (2017), para quem a voz social constitui-se como uma concepção de mundo

150
Neste texto, usamos esferas de atividade humana, campos de atividade e campos de criatividade ideológica como sinônimos.

NARRATIVAS
899

produzida pelas diferentes sociedades. Ainda, para o autor, “essas vozes não estão soltas, mas se
interceptam, olham umas para as outras e conversam, debatem, polemizam, interagem.” (MELO, 2017,
p.106) e é no seio da ocorrência do diálogo entre vozes que se dá a polêmica motivadora deste texto.
O conceito de signo ideológico, por sua vez, sobre o qual Bakhtin/Volochínov abordam
principalmente na primeira parte de Marxismo e Filosofia da Linguagem (2014), faz-se importante
neste texto, pois, na análise do enunciado, lidamos diretamente com materialidades que refletem e
refratam realidades e que, portanto, são signos ideológicos. Como exemplo, temos, no texto dos
autores (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014), a reflexão sobre o martelo e a foice que, enquanto
materialidade, são instrumentos de trabalho, mas que podem (e foram) convertidos em signo
ideológico como emblema da União Soviética e aí assumem significações específicas, repletas de
valores. Cada esfera de atividade, por ser ideologicamente concebida, como afirmado anteriormente,
reflete e refrata a realidade à sua maneira, revestindo as materialidades de signos. Assim, para
Bakhtin/Volochínov (2014, p. 37) “o signo, então, é criado por uma função ideológica precisa e
permanece inseparável dela”.
Esperamos contribuir, com este texto, para o campo dos estudos bakhtinianos, com um estudo
sobre enunciados artísticos, compostos por materialidade verbo-voco-visuais, sobre ato ético e sobre
o diálogo entre esferas e vozes sociais.

A SÉRIE E SUA RECEPÇÃO: diálogos entre o discurso da saúde e o artístivo

Adaptada por Brian Yorkey e tendo como uma de suas diretoras a ícone teen Selena Gomez, a
série 13 Reason Why (em português: Os Trezes Porquês), lançada em 2017 e baseada no best-seller
homônimo escrito por Jay Asher, tornou-se um fenômeno mundial a partir de seu lançamento na
plataforma de filmes digital Netflix.
Sendo a série mais comentada de 2017 na plataforma digital Twitter 151 , 13 Reasons Why
acompanha os passos de Clay Jensen (Dylan Minnette), um estudante de 17 anos que recebe uma caixa
contendo treze fitas cassetes gravadas por sua amiga e antiga paixão, Hannah Baker (Katherine
Langford), que havia se suicidado duas semanas antes. Nesses cassetes, Hannah aponta treze pessoas
que teriam contribuído para que ela tomasse a decisão de tirar a própria vida. Com a ajuda de um
suposto amigo, Tony (Christian Navarro), Clay, então, passa a escutar cada uma das fitas e, por meio
deste processo, pode-se reviver flashbacks da história de Hannah, nos quais é possível identificar não
somente o papel de cada uma das treze pessoas para o aumento de melancolia da menina, a qual
culminou no suicídio, mas também o ambiente tóxico que uma escola de Ensino Médio pode apresentar.
A partir desta narrativa, arquitetada para um outro possivelmente jovem, a série desenvolve
temas como assédio, estupro, bullying, depressão e suicídio de maneira explícita. Em consequência
disso, pensando a partir da teoria bakhtiniana, que propõe que todo enunciado é responsável e

151
Fonte: http://variety.com/2017/tv/news/netflix-13-reasons-why-twitter-most-popular-show-2017-1202392460/. Acesso em 22 maio 2017.

NARRATIVAS
900

responsivo, vários discursos outros foram gerados em resposta ao seriado, principalmente nas
mídias sociais.
A maioria das respostas geradas em diálogo com o enunciado aborda especialmente a forma
como o suicídio foi arquitetado e tratado na série (passando uma imagem de “romantizado”). O
psiquiatra Luís Fernando Tofoli, professor-doutor do Departamento de Psicologia e Psiquiatria da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), chegou a listar 13
alertas sobre a série152, enquanto o crítico cinematográfico Pablo Villaça publicou na seção “Cinema
em Cena” 153, do periódico Carta Capital, um texto pontuando as principais falhas técnicas do seriado,
embora ainda recorra com frequência à questão da abordagem do suicídio.
Retomando os pontos elencados por Tófoli, e também por outros psicólogos e estudiosos que
se colocaram dialogicamente contra a abordagem que a série realiza, alguns itens sobressaem-se. O
primeiro deles foca no fato de a série não abordar o suicídio como decorrência de doenças mentais
(como a depressão), como corroborado pelo artigo “13 Reasons Why e o Suicídio Adolescente – Uma
resposta científica” 154, no qual se diz que, segundo estudos, apenas 0,5% dos casos de suicídio são
causados por bullying. Assim, a série estaria representando uma situação anômala ao invés de trazer
uma abordagem real acerca da questão, o que poderia causar consequências para aqueles que a
assistem.
Ademais, outro discurso que veiculado em algumas mídias foi a ideia de “culpabilização” do
suicídio. Não se pode esquecer que a narrativa toda da série desenvolve-se a partir de fitas que
Hannah Baker grava, cada uma acerca de uma pessoa que teria contribuído para o seu ato. Nas
palavras de Luis Tófoli:

[...] Grande parte da tensão da série gira em torno de quem é a “culpa” pelo suicídio de Hannah: ela,
seus amigos, a escola (que é processada pelos pais da menina), a sociedade. Os especialistas entendem
que a busca por culpados é dolorosa e improdutiva. O suicídio é, na sua imensa maioria das vezes, um
ato complexo, desesperado e ambíguo, e achar que ele possa ter responsabilidade atribuível é equivaler
sua narrativa à de um crime. Embora isso seja compreensível em uma peça de ficção, isso é muito
deletério na discussão do tema no mundo real, onde de fato os suicídios acontecem. (PSIQUIATRA... 2017)

Desta forma, divulgou-se que a série, que em seu princípio, almejava uma discussão acerca do
suicídio, trouxe, em si, uma ideia de vingança, a partir da culpabilização. Apontou-se também que a
série ignorou a possibilidade de um Efeito Werther, conceito desenvolvido por David Phillips que se
relaciona com a tendência de imitação do suicídio e que corrobora a ideia desenvolvida por Volochínov
(1926, s/p) em Discurso na vida, discurso na arte de que arte e vida se inter-relacionam, pois “[...] [o]
discurso é diretamente vinculado à vida em si e não pode ser divorciado dela sem perder sua
significação”. Assim,

152
Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2017/04/10/internas_viver,698536/psiquiatra-faz-13-alertas-sobre-a-
serie-13-reasons-why-da-netflix.shtml. Acesso em 22 maio 2017.
153
Fonte: http://cinemaemcena.cartacapital.com.br/critica/filme/8367/os-13-porqu%C3%AAs. Acesso em 22 maio 2017.
154
Fonte: http://www.universoracionalista.org/13-reasons-why-suicidio-adolescente-resposta-cientifica/. Acesso em 22 maio 2017

NARRATIVAS
901

Quando um caso de suicídio é amplamente divulgado, há o risco de aumento na incidência desse evento,
cometido por outras pessoas utilizando o mesmo método. As pessoas podem se identificar com a
personagem ou com o suicida célebre. (13 REASONS E A BALEIA AZUL...2017)

Finalmente, a maior parte das discussões tangeu a possibilidade de a série ter ignorado as
recomendações propostas pela OMS em relação à representação do suicídio, sendo considerada,
assim, como uma série irresponsável. Esse fato foi um dos motivadores da análise apresentada no
presente texto, pois revela vozes sociais diferentes em diálogo, refletindo-se, refratando-se e
reverberando-se.
Antes de se discutir o discurso advindo da OMS e, então, como a série dialoga favoravelmente
(ou não) com essa voz social (de autoridade), deve-se estabelecer um paralelo entre as vozes sociais
que circularam na mídia, advindas da esfera da saúde, e os objetivos da mídia no que tange à
arquitetura de seus enunciados.
Tanto o discurso artístico/midiático responde diferentemente ao fato social, descolando-se
das vozes oficiais da esfera da saúde, que muitos partilharam da opinião de que o foco da série não
era o suicídio em si, mas sim o alerta acerca de como pessoas podem prejudicar umas às outras
quando disseminam agressões verbais e psicológicas: “a série é um recado para as pessoas vivas e o
que elas podem fazer quando alguém sofre. Qualquer assunto tabu deve ser trazido para a luz. O
silêncio e o mistério podem ser muito mais nocivos” (13 REASONS WHY VIRA...2017).
Agora, deve-se encaminhar a discussão para as orientações que a OMS dá acerca da
representação do suicídio na mídia, para que se possa, a partir disso, analisar o diálogo entre as
vozes oficiais da saúde e o discurso midiático.
A organização supracitada foi responsável por elaborar uma cartilha intitulada: “Prevenção do
Suicídio: um Manual para Profissionais da Mídia” 155 . Nela, encontram-se diretrizes para a
representação e notificação do suicídio pela mídia. A primeira informação a ser destacada é a posição
da OMS acerca da repercussão do que é exposto na mídia:

Um dos muitos fatores que pode levar um indivíduo vulnerável a efetivamente tirar sua vida pode ser a
publicidade sobre os suicídios. A maneira como os meios de comunicação tratam casos públicos de
suicídio pode influenciar a ocorrência de outros suicídios (OMS, 2000, s/p).

Vê-se, então, que a OMS parte do pressuposto de que a esfera artística e a esfera da saúde
pública são miscíveis e mutuamente influenciáveis, o que corrobora a noção bakhtiniana de que as
esferas de atividade humana não são estáveis, nem estanques (BAKHTIN, 2000). Abaixo, outra
orientação da OMS:

155
Fonte: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/67604/7/WHO_MNH_MBD_00.2_por.pdf

NARRATIVAS
902

Devem ser evitadas descrições detalhadas do método usado e de como ele foi obtido. As pesquisas
mostraram que a cobertura dos suicídios pelos meios de comunicação tem impacto maior nos métodos
de suicídio usados do que na frequência de suicídios (OMS, 2000, s/p).

Uma das maiores discussões que foi evidente na mídia, sobre o seriado, foi uma possível
representação simplista acerca dos motivos que induziram a protagonista, Hannah Baker, ao suicídio.
Mostrou-se que, de fato, alguns fatores influenciaram para que ela tomasse essa atitude, mas o
principal deles, os possíveis transtornos psicológicos, não foi priorizado, demandando do espectador
uma possível leitura dos não-ditos acerca das condições da personagem. Essa situação acaba por
chocar-se com uma segunda recomendação: “O suicídio não deve ser mostrado como um método de
lidar com problemas pessoais como falência financeira, reprovação em algum exame ou concurso ou
abuso sexual” (OMS, 2000, s/p).
Neste caso, 13 Reasons Why constitui-se como uma voz dissonante à voz oficial da saúde, já que
a trama da série constitui-se em um acompanhamento de 13 pessoas que, em algum momento, falharam
com a personagem principal (abarcando desde bullying até o ato, final e mais grave, do estupro),
levando-a ao suicídio. Este diálogo dissonante com as diretrizes da OMS está evidente inclusive no título,
uma vez que este remete aos 13 motivos que levaram Hannah Baker a tirar a própria vida.
Finalmente, uma última recomendação deve ser evidenciada: “A glorificação de vítimas de
suicídio como mártires e objetos de adoração pública pode sugerir às pessoas suscetíveis que a
sociedade honra o comportamento suicida. Ao contrário, a ênfase deve ser dada ao luto pela pessoa
falecida” (OMS, 2000, s/p). Mais uma vez, o seriado traz uma voz dissonante à oficial, pois a história
dedica-se a apontar culpados para o suicídio da personagem principal e também a mostrar como ela
foi uma vítima que não teve outra opção a não ser tirar a própria vida.
Com a Figura 1, retirada do Jornal do Campus, da USP, procuramos sintetizar os discursos em
resposta à série que circularam socialmente. Na continuidade, seguimos para a seção na qual
fazemos considerações sobre o enunciado midiático em questão, colocando-o dialogicamente em
relação às vozes sociais oficiais da saúde.
Figura 1 – Síntese dos “acertos e erros” da série que circularam socialmente

Fonte: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2017/04/serie-13-reasons-why-foge-a-cartilha-da-oms

NARRATIVAS
903

O SUICÍDIO DE HANNAH

Como visto na Figura 1, 13 Reasons Why estabelece diálogo com o discurso oficial da
Organização Mundial da Saúde, entretanto este diálogo não é somente constituído por relações de
concordância, afinal, os enunciados respondem entre si estabelecendo relações de concordância,
discordância, refutação, etc. Segundo Bakhtin, “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de
natureza ativamente responsiva [...]” (BAKHTIN, 2011, p.271) e “[...] ao perceber e compreender o
significado (linguístico) do discurso, [os sujeitos] ocupa[m] simultaneamente em relação a ele uma
ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o,
prepara-se para usá-lo, etc” (BAKHTIN, 2011, p.271, grifos nossos), ou seja, opõe ao enunciado
contrapalavras, outros signos, inevitavelmente.
Sendo assim, já podemos afirmar, de antemão, que 13 Reasons Why é, dentre outras, uma
resposta a uma leitura das orientações da OMS em relação ao suicídio. Essa leitura, que é feita a
partir de um lugar social específico – o da esfera artística – confere a este enunciado valores sociais
que penetram esse enunciado “por dentro” e que fazem com que esta esfera reflita e refrate
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014) o suicídio de maneira específica, pois “cada campo de criatividade
ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria
maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social” (VOLOCHÍNOV/BAKHTIN,
2014, p. 33).
Uma das primeiras considerações a serem entendidas acerca de 13 Reasons Why é que este
seriado é uma produção estética e, por isso, trata-se de uma forma de arte. Faraco (2011), a partir da
obra do Círculo, entende que o estético, sem desconsiderar suas propriedades formais, está
enraizado na história e na cultura, tira delas seus sentidos e valores e incorpora-as, transpassando-
as para outra axiologia por meio da função estético-formal do autor-criador. É o posicionamento
valorativo do autor-criador, situado sócio-históricamente em um campo de atividade, que constitui o
princípio regente para a produção estética.
Além disso, segundo Volochínov (1926), a arte responde a vida em seus enunciados, de
maneira específica, e ocupa um lugar importante no sistema global de determinação sociológica. Isto
posto, vemos, novamente, a relação entre o discurso oficial da OMS em relação ao suicídio (que o
valora a partir de sua realização na vida) e o discurso artístico, da mídia, acerca deste (que o valora
enquanto produção estética, entretanto também a partir da vida). Nas palavras do autor:

A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico afetando de fora a arte, encontra
resposta direta e intrínseca dentro dela. Não se trata de um elemento estranho afetando outro, mas de
uma formação social, o estético, tal como o jurídico ou o cognitivo, é apenas uma variedade do social. A
teoria da arte, consequentemente, só pode ser uma sociologia da arte (VOLOCHÍNOV, 1926, s/p).

Sendo a arte também social, e sendo todo enunciado arquitetado numa relação eu – outro, é
preciso um olhar abrangente para as formas de realização dos enunciados dessa esfera, a partir de

NARRATIVAS
904

uma perspectiva sociológica (MEDVIEDÉV, 2012), que não só considera forma e material, mas que os
situa sócio-historicamente e, com essa união de elementos intra e extralinguísticos, revela uma forma
de olhar os fatos sociais direcionada a determinados destinatários. Segundo Volochínov (1926, s/p):
Os métodos que ignoram a essência social da arte e tentam encontrar sua natureza e
distinguir características apenas na organização do artefato, são obrigados realmente a projetar a
interrelação social do criador e do contemplador em vários aspectos do material e em vários
procedimentos para estruturar o material. Exatamente do mesmo modo, a estética psicológica projeta
as mesmas relações sociais na psique individual do contemplador. Esta projeção distorce a
integridade dessas interrelações e dá um falso quadro tanto do material quanto da psique.
Corroborando Volochínov (1926), o autor-criador, sob mediação da forma artística, ocupa uma
posição responsiva ativa em relação ao conteúdo, neste caso, ao suicídio. Para tanto, ainda segundo o
autor, a forma não necessita ser agradável, em um sentido comum, o que precisa é ser uma
“avaliação convincente do conteúdo” (VOLOCHÍNOV, 1926). Nessas condições de produção do
enunciado, também há um outro participante fundamental – o ouvinte – que influencia diretamente a
produção estética.
Ainda é necessária uma ressalva de que a arte é uma forma de comunicação comum que não
se realiza isoladamente: “ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base econômica
comum, e ela se envolve em interação e troca com outras formas de comunicação” (VOLOCHÍNOV,
1926, s/p). Sendo assim, a partir de seu lugar social, a arte valora e representa os fatos de maneira
específica, respondendo a outros discursos, como, neste caso, ao da OMS, e abrange quesitos,
inclusive econômicos, que influenciam toda a produção estética. Para o Círculo a obra de arte e sua
contemplação ligam-se aos sujeitos éticos nas relações sociais, sobre os quais a forma artística se
orienta axiologicamente e dá acabamento, responsivamente e de maneira única. Para Sobral (2016,
p.31): “A decisão ética depende [...] da posição, do caráter situado do sujeito, em vez de impor-se a
partir de fora e de modo abstrato a um sujeito transcendental, desengajado, sem interesses
específicos”.
Na continuidade do texto, trazemos alguns recortes de cenas do suicídio de Hannah Baker, em
13 Reasons Why, a fim de dar continuidade às reflexões sobre ética, ato, responsabilidade, ação,
avaliação, além de apresentar ao leitor a cena em discussão.
Reiteramos que a cena selecionada para motivar as discussões propostas no presente texto é
a que retrata o suicídio da personagem principal do seriado, e que, de acordo com os estudos do
Círculo, o conteúdo não pode ser destacado da obra como algo puro, já que se trata de uma junção de
conteúdo e forma, na qual a forma estética unifica o ético e o cognitivo.
Todo episódio no qual as cenas do suicídio estão presentes é trabalhado em cores de tons
pastéis e luminosidade baixa (propiciada apenas por uma luz natural de uma janela – Figura 7) que,
simbolicamente, já remetem ao outro (destinatário) uma sensação de ausência de vida, de tristeza e
apatia. A trilha sonora também contribui para estas sensações. O trabalho com a câmera é todo
focado na protagonista (especialmente em seu rosto) e em suas reações, como olhares e suspiros. A

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905

Figura 2 corresponde ao momento em que Hannah, após olhar a lâmina (que, a saber, foi roubada da
farmácia de seus pais) e sem ter ainda se observado, olha-se no espelho e seu olhar parece ser no
sentido de reconhecimento da derrota ou de não reconhecimento de si própria. Sua posição – ombros
baixos – e sua expressão de apatia já representam uma forma de morte social, ainda que –
biologicamente – esteja com vida.

Figura 2

Após uma sequência de movimentos, a cena da Figura 3 é mostrada, com Hannah já dentro de
uma banheira, com braços postos nas laterais desta. Este também é o primeiro olhar da personagem
para seus pulsos, o que, somado à lâmina, já confere ao destinatário uma ideia de como o ato se
consolidará.
Além disso, na Figura 3, o esmalte azul da personagem é a única cor “viva”, que se destaca, e
tem uma significação importante no desenvolvimento do seriado, afinal, foi este mesmo esmalte que
Hannah Baker usou em seu último dia de vida e foi com ele também que ela numerou as diferentes
fitas cassetes por Hannah gravadas e deixadas para aqueles que supostamente teriam causado sua
morte.
O foco da câmera na Figura 3 faz daquele que assiste à parte da cena, espectador do ato, pois
conhece todos os motivos que a levaram a esta decisão e, aprovando ou não o ato, compartilha com
ela o momento, estando, até mesmo, na mesma “altura” que a personagem, frente a frente.
Outros elementos de importante significação da cena são a banheira e a água que a enche. O
ato de colocar-se dentro de algo (da banheira), que inclusive dificulta uma saída, já sugere uma
posição de entrega. Já a água, que não faz parte do suicídio em si (no sentido de ser causadora da
morte), pode representar o fato de que Hannah já estava inundada em suas angústias, imersa nas
situações que a desagradaram e tomada por todos os lados, sem saída.

NARRATIVAS
906

Figura 3

Na Figura 4 temos o ato do corte do pulso, com a lâmina. No episódio, a personagem corta os
dois pulsos e os deixa abertos até falecer. Esta cena em específico é bastante comentada pelos
críticos, já que detalha o ato, contrariamente às recomendações da OMS. Na imagem, pela feição da
personagem, a dor é evidente, o que não glorifica o suicídio, mas o revela como algo maléfico. Nesta
cena também o sangue da personagem começa a se misturar com a água. Pensando na significação
ideológica destes elementos – água e sangue – é o próprio interior de Hannah (sangue) que se
derrama sobre a água (que representa tudo aquilo em que ela estava submersa) e domina tudo aquilo
que a fazia mal.
Figura 4

As figuras que se seguem (Figuras 5 e 6) são cenas após o corte dos dois pulsos, nas quais a
personagem se coloca em situação de entrega, com olhos voltados para o alto, com olhar de
sofrimento e em conformidade com o que havia sido executado naquele momento. Na Figura 5 já é

NARRATIVAS
907

possível ver a banheira repleta de sangue, os “problemas” de Hannah, representados pela água,
tinham sidos resolvidos com sua própria vida, representada ideologicamente pelo sangue.

Figura 5

Figura 6

Na Figura 7 temos a primeira imagem da protagonista já morta. Nesta cena é possível


visualizar todo o local do ato.

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908

Figura 77

Após a cena da Figura 7, a água, repleta de sangue, começa a se espalhar pelo banheiro,
chegando próximo à porta. A cena seguinte (Figura 8) já consiste na entrada da mãe de Hannah – que
desconhecia motivações para tal acontecimento – no banheiro. Rapidamente a mãe de Hannah pega-a
nos braços, chama seu marido e a cena do suicídio da protagonista se encerra, dando espaço para os
acontecimentos subsequentes.

Figura 8

O que pode ser visto a partir das Figuras de 2 a 8 é que o autor-criador deste enunciado
midiático, inserido na esfera artística, assume a responsabilidade do dizer e procura, por meio de um
enunciado que, assim como Volochínov (1926) postula, não é agradável em sua totalidade, representar
o suicídio de maneira diferente daquela orientada pela OMS, a fim de atingir seu destinatário de
maneira específica. Não podemos desconsiderar, ainda, que a mídia possui interesses econômicos na
produção de enunciados.

NARRATIVAS
909

Apresentar os métodos de arquitetura do ato e a imagem da personagem já sem vida é uma


opção artística e midiática que pode gerar respostas diferentes em cada sujeito que toma
conhecimento do enunciado, e o autor-criador, na produção do ato ético, já assume a
responsabilidade deste dizer. Estas respostas podem ser, inclusive, de repulsa, de desencorajamento,
de reflexão sobre atitudes que fazem mal a si ou ao outros, etc. Os enunciados são únicos e assumem
significações diferentes de acordo com aquele com quem tem contato, pois cada indivíduo carrega
consigo uma história e, situado socialmente, atribui sentidos e responde ao enunciado de maneira
única. Este mesmo sujeito, por sua vez, pode responder de maneira diferente a um mesmo enunciado
em diferentes momentos de sua vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Gostaríamos de ressaltar que nosso objetivo não é o de posicionarmos perante aos discursos
abordados, mas de propor um olhar para os fatos sociais que entende que os enunciados como atos
éticos, únicos e repletos de valoração, que nos permite identificar a esfera da qual são originados.
O que fica evidente, a partir da análise das vozes sociais acerca do suicídio e da polêmica
criada acerca da cena do seriado (e de sua temática) é a diversidade de discursos que são oriundos
de esferas de atividade diferentes, o que corrobora os postulados bakhtinianos. Estes discursos – da
saúde ou o artístico –, proferidos de lugares sociais díspares, têm funcionamentos diferentes, valores
diferentes, estilos diferentes e, portanto, respostas diferentes aos fatos sociais. Isso fica visível
também quando se vê que a repercussão midiática no meio do público jovem foi extremamente
positiva (diferentemente do que ocorreu no campo da saúde), como já apontado anteriormente.
Gostaríamos de ressaltar que entendemos que o discurso artístico e midiático não deixa de
ter seu compromisso e responsabilidade social por produzir um enunciado como 13 Reasons Why,
pois, de onde enuncia, exerce esse compromisso e essa responsabilidade de maneira diferente, pois
valora o acontecimento de maneira diferente e possui interesses (inclusive econômicos) diferentes,
assim como defende o criador da série quando questionado acerca da cena explícita de suicídio:

Muitas pessoas nos perguntaram por que nós mostramos Hannah se matando da forma como fizemos.
Trabalhamos duro para que (a cena) não fosse gratuita. Queríamos que fosse difícil de ver, para ficar
claro que não há nada que valha a pena (no suicídio)”, diz o showrunner Brian Yorkey. (13 REASONS WHY
VIRA...2017)

Por fim, ressaltamos a importância dos signos ideológicos na construção dos enunciados, pois
eles trazem significações específicas às materialidades, como vimos no momento de apresentação
dos recortes das cenas do suicídio de Hannah, no qual as posições físicas, luzes, cores e artefatos
revelam significados além das materialidades, corroborando Bakhtin/Volochínov (2014).

NARRATIVAS
910

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
_____. Para uma filosofia do ato responsável Trad. de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010,
_____. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
_____. VOLOCHÍNOV, V.Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São
Paulo: Huitec, 2014.
FARACO, C. A. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Revista Letras de Hoje. Porto Alegre, v.46,
n.1, jan/mar.2011.
MEDVIÉDEV, P. N.; O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de
Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.
MELO, R. B. de. Vozes sociais em construção: dialogismo, bivocalidade polêmica e autoria no diálogo entre Diário
do hospício, O cemitério dos vivos, de Lima Barreto, outros enunciados e outras vozes sociais. 455f. Tese de
Doutorado. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Araraquara- SP,2017.
OMS – Organização Mundial da Saúde. Prevenção do Suicídio: um Manual para Profissionais da Mídia. Genebra;
2000. Disponível em http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/67604/7/WHO_MNH_MBD_00.2_por.pdf. Acesso em
20 abr. 2017.
PSIQUIATRA faz 13 alertas sobre a série 13 Reasons Why, da Netflix . Disponível em
<http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2017/04/10/internas_viver,698536/psiquiatra-faz-13-
alertas-sobre-a-serie-13-reasons-why-da-netflix.shtml>. Acesso em 22 maio 2017.
SOBRAL, A. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, B. (org.), Bakhtin: conceitos-chave. 5ª ed. 3ª reimpressão. São Paulo:
Contexto, 2016.
VOLOCHÍNOV, V. Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica. Tradução de C. A. Faraco; C. Tezza.
Circulação restrita. [1926].
13 REASONS WHY E A BALEIA AZUL: O perigo do Efeito Werther. Disponível em
http://www.huffpostbrasil.com/alexandre-a-loch/13-reasons-why-e-baleia-azul-o-perigo-do-efeito-
werther_a_22058340/ . Acesso em 22 mai. 2017
13 REASONS WHY VIRA alvo de polêmica e levanta a questão: como abordar o suicídio?
<https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/13-reasons-why-vira-alvo-de-polemica-levanta-questao-como-
ficcao-deve-abordar-suicidio-21189561#ixzz4hqwcyFaq >. Acesso em 22 mai. 2017

NARRATIVAS
RESUMO
911
O presente texto é fruto de reflexões apontadas a
partir da dissertação de mestrado em andamento
sob o título Interações na Educação Infantil – o que

O TEMPO, O ESPAÇO, A revelam as crianças quando brincam?. Conforme


aponta Bakhtin, não existe texto fora do contexto,
vamos inicalmente contextualizar nossa proposta

CRIANÇA: o cronotopo da brincadeira


de discussão. A pesquisa a qual deu origem a este
texto surgiu a partir dos questionamentos e
observações da pesquisadora enquanto professora
de Educação Infantil, da rede pública de um
município da baixada Fluminesne, no Rio de Janeiro.
Tem como objetivo analisar as interações entre os
alunos em brincadeiras livres e dirigidas. Com as
observações de campo, algumas categorias
Elaine de Souza LIMA NETO 156 surgiram como possibilidades de análise, dentre
elas a questão espaço-tempo do brincar,
propulsora deste texto. Nele objetivamos discutir o
conceito de cronotopo de M. Bakhtin, considerando
o tempo e espaço em momentos de brincadeiras.
Neste sentido, buscamos a dialogar com alguns
autores, como Philippe Gutton, Gilles Brougère e
INTRODUÇÃO Tizuko Kishimoto para discutir o ato de brincar e
Mikhail Bakhtin e seu círculo para trabalhar o
QUANDO AS CRIANÇAS BRINCAM conceito de cronotopo. A partir dos estudos,
podemos compreender a escola como um
Quando as crianças brincam cronotopo complexo, constituído por vários outros
E eu as ouço brincar, cronotopos, que envolvem tanto aspectos temporais
Qualquer coisa em minha alma como espaciais. O cronotopo da escola configura-se
Começa a se alegrar. com um espaço-tempo de formação humana, de
E toda aquela infância aprendizagem e de construção do sujeito.
Que não tive me vem,
Palavras-Chave: Cronotopo. Tempo. Espaço.
Numa onda de alegria Brincar
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.
Fernando Pessoa

A
epígrafe em questão nos remete ao assunto que pretendemos discorrer neste texto, fruto de
reflexões apontadas a partir da dissertação de mestrado em andamento sob o título Interações
na Educação Infantil – o que revelam as crianças quando brincam? Nele pretendemos discutir o
conceito de cronotopo de M. Bakhtin, considerando o tempo e espaço em momentos de brincadeiras.
Neste sentido, buscamos a dialogar com alguns autores, como Philippe Gutton, Gilles Brougère e
Tizuko Kishimoto para discutir o ato de brincar e Mikhail Bakhtin e seu círculo para trabalhar o
conceito de cronotopo.

156 Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares
(PPGEduc/UFRRJ) e Professora da Rede Municipal de Duque de Caxias/RJ. Área de Pesquisa: Discurso e Linguagem E-mail:
eslimaneto@gmail.com

NARRATIVAS
912

Conforme aponta Bakhtin, não existe texto fora do contexto, vamos inicalmente contextualizar
nossa proposta de discussão. A pesquisa a qual deu origem a este texto surgiu a partir dos
questionamentos e observações da pesquisadora enquanto professora de Educação Infantil, da rede
pública de um município da baixada Fluminesne, no Rio de Janeiro. Tem como objetivo analisar as
interações entre os alunos em brincadeiras livres e dirigidas. Com as observações de campo, algumas
categorias surgiram como possibilidades de análise, dentre elas a questão espaço-tempo do brincar,
propulsora deste texto.
A relação entre o brincar e a criança é intrínseca. Difícil pensarmos na criança que não
brinca. E como afirma Philippe Gutton “o brincar é o modo privilegiado da expressão infantil” (2013,
p.15). No entanto, o ato de brincar é uma construção social e necessita de aprendizado. A criança
pequena aprende a brincar com a mãe e com o aprendizado da brincadeira, a reproduz, cria, modifica,
brinca, sendo também uma construção cultural, dependendo do espaço e tempo em que está inserido.
Sobre o lugar do brincar, Gutton afirma ainda que o “brinquedo, instrumento para brincar, está no
espaço enquanto a brincadeira se desenvolve no tempo” (2013, p.249). No entanto, Bakhtin nos diz que
tempo e espaço caminham juntos, logo a ação de brincar desenvolvida pela criança ocorre num
espaço e tempo próprios e únicos. Esta relação cronotópica do brincar das crianças é pilar da nossa
discussão neste texto.
Mas antes de iniciarmos uma reflexão acerca da dimensão cronotópica do brincar
propriamente dita, julgamos necessário situar filosoficamente a infância e a criança, sujeitos da nossa
pesquisa. Neste sentido, buscamos na filosofia uma compreensão de infância que ultrapassa as
barreiras cronológicas. Agabem (2005) afirma que a infância é antes de uma etapa, uma condição da
experiência humana, logo, ultrapassando a questão cronológica. Atentamos, neste sentido, que é
preciso ampliar os horizontes da temporalidade. Embora, por muitos anos, a concepção de infância
estivesse atrelada a uma temporalidade evolutiva e biológica, não podemos deconsiderar os
elementos sócio-culturais que produzem esta ou aquela “infância”. Assim, a concepção de infância é
inerente à sua época e contexto cultural, o que equivale dizer que a infância concebida no passado não
é a mesma que a infância dos dias atuais.
A despeito da conceituação do tempo, os gregos contribuem com três palavras para desgnar
o tempo: chrónos, aión e kairós. Chrónos é considerado como a soma do passado, presente e futuro,
configurando-se como uma continuidade de um tempos sucessivo. Aión designa a intensidade da vida
humana, não sendo numerável. E Kairós que significa medida, proporção, que em relação a tempo,
signfica temporada. Sobre isto, Kohan (2004) nos diz:

O intrigante fragmento 52 de Heráclito conecta esta palavra temporal ao poder e à infância. Ele diz que
"aión é uma criança que brinca (literalmente, "criançando"), seu reino é o de uma criança". Há uma
dupla relação afirmada: tempo- infância (aión - paîs) e poder-infância (basileíe - paîs). Este fragmento
parece indicar, entre outras coisas, que o tempo da vida não é apenas questão de movimento numerado
e que esse outro modo de ser de temporal parece com o que uma criança faz. Se uma lógica temporal
segue os números, outra brinca com os números.

NARRATIVAS
913

A rotina escolar encontra-se demarcada pela tensão entre o tempo aión e chronos. Aión
compreendido como o tempo platônico, designa a intensidade do tempo na vida humana, um destino,
uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva. E chronos, concebido como
tempo cronológico, marcado pela numeração. Uma rotina demarcada pelo tempo cronológico, com a
hora do recreio, da contação de histórias, de brincar no pátio etc. e o tempo aión, buscando a
compreensão de uma infância enquanto categoria de intensidade humana.
Partindo desta compreensão de infância entendida como condição da experiência humana
(Agamben, 2005), seguimos para uma reflexão acerca dos conceitos de cronotopo de Bakhtin.

1 O CRONOTOPO DA BRINCADEIRA

Buscando compreender melhor esta relação espaço-tempo, tomamos os conceitos de Bakhtin


sobre cronotopo. Bakhtin define o cronotopo como “conexão intrínseca das relações temporais e
espaciais” (BEMONG, BORGHART, 2015, p.17) Para Bakhtin tempo e espaço são indissociáveis. O autor
ao trazer o texto “O tempo e o espaço nas obras de Goethe” faz uma análise a respeito do tempo
orgânico e tempo cotidiano, tempo histórico. Goethe, conforme destaca Bakhtin, atribuía à palavra
toda visibilidade, onde por trás de toda diversidade estática, enxergava-se a diversidade de tempos. O
tempo histórico está refletido nas ações e atividades humanas, para além do tempo orgânico,
cronológico.

Cronotopos é a materialização do tempo no espaço: há um lugar em que a história se desenrola, onde o


tempo passa, se vive e se mede em função das características desse lugar (AMORIM, 2001, p. 222-223)

Conforme afirma Bemong e Borghart (2015, p.19) ao analisar a Teoria Bakhtiniana no Cronotpo
Literário, “a cronologia não pode ser separada dos acontecimentos e vice-versa”. Assim, o presente
visível não apenas suscita lembranças do passado, mas é um passado vivo e vivido no presente. As
experiências, as marcas do passado se fazem presente no hoje, nas práticas pedagógicas, nas
concepções de infância, na rotina. Operar com esse conceito, advindo das abordagens do texto
literário construídas por Bakhtin ao longo de sua obra, implica, necessariamente, pensar as relações
tempo-espaço como constitutivas das interações e como construções de linguagem. Pensado dessa
forma, o cronotopo, enquanto potencialmente histórico, não pode ser retirado das relações dialógicas
e do axiológico sob o risco de se tornar apenas e tão-somente uma referência a um determinado
espaço e a um tempo específico.
Embora o tempo escolar seja marcado pelo tempo cronológico, as brincadeiras se dão no
curso da história, num tempo não marcado por hora, dia, mês e ano. Para a criança, toda hora é hora
de brincar. E no brincar constatamos alguns indícios de transformações decorrentes que se
descortinam no discurso que vai (re)constituindo os sujeitos nas situações de interação, na sua
relação com o outro, na e pela linguagem.

NARRATIVAS
914

A escola é um cronotopo complexo, constituído por uma multiplicidade de cronotopos que de


um lado envolvem o aspecto temporal (hora da roda de conversa, hora das “atividades”, hora do
recreio..). Por outro lado, sob a dimensão espacial, a é um todo que, se olhado de fora, não possibilita
a visão dos pequenos cronotopos que coexistem nela (sala de aula, refeitório, pátio...). Para se
analisar cada um deles é preciso se aproximar sem perder de vista o cronotopo maior, que é a escola
enquanto instituição.
Desta forma, consideramos que o evento escola, como todos os eventos da vida social, não
ocorre no vácuo de tempo-espaço, mas em situação concreta situada e datada historicamente.
Bakhtin e seu Círculo empregam metáforas da estrada, do encontro, da soleira, do castelo, como
arenas do discurso, organizadoras do homem histórico, entrelaçado de tempo e espaço. O autor
atribui ao cronotopo um significado temático: “Eles são os centros organizadores dos principais
acontecimentos temáticos do romance. É no cronotopo que os nós do enredo são feitos e desfeitos.
Pode-se dizer francamente que a eles pertence o significado principal gerador do enredo” (BAKHTIN,
2014, p. 355).
Para o autor o mais importante elemento constituinte do enredo no romance, é o cronotopo
do encontro, podendo servir para observar várias esferas da vida cultural, como afirma:

O motivo do encontro é um dos mais universais não só na literatura (é difícil deparar com uma obra
onde esse motivo absolutamente não exista), mas em outros campos da cultura, e também em
diferentes esferas da vida e dos costumes da sociedade. No campo científico e técnico, onde impera o
pensamento puramente conceitual, não se encontram os motivos como tais, mas sim o conceito de
contato, que é seu equivalente (até certo ponto) (BAKHTIN, 1998, p. 223).

Para Bakhtin, o cronotopo do encontro predomina a matiz temporal , possui forte grau de
intensiade emocional. O autor analisa a partir de romances gregos alguns elementos constituintes do
cronotopo do encontro: “o ponto de partida do da ação do enredo é o primeiro encontro do herói com
a heroína [...] e o ponto de chegada da ação do enredo é a feliz união dos dois em matrimônio” (p.215).
Nestes romances quaisquer vestígios de época ou tempo histórico são ausentes. A definição temporal
aparece através de determinantes como “acaso”, “de repente”, “repentinamente”.

O cronotopo real do encontro tem constantemente lugar nas organizações da vida social e nacional [...].
Enfim, é cnoncebível por todos a importância dos encontros (que às vezes determinam diretamente todo
o destino de um indivídui) na vida e na rotina cotidiana de cada pessoa (BAKHTIN, 2014, p. 223-224)

O cronotopo do encontro, conforme Bakhtin, está intrinsecamente ligado ao cronotopo da


estrada, lugar onde se realizam os acontecimentos. O cronotopo da estrada possui um menor valor
emocional, é por onde passam os caminhos da vida. Nele observamos as marcas e indícios de uma
época. É na estrada onde ocorre os encontros das mais diferentes pessoas e onde se marca o
transcurso do tempo.

NARRATIVAS
915

Além do cronotopo da estrada, Bakhtin sinaliza o cronotopo do castelo como ponto de


intersecção das matizes espaço-temporais. Assim como a estrada, o castelo é o lugar onde o enredo
acontece. Mas diferentemente da estrada, o castelo está repleto de tempo histórico, do passado
histórico, presente no mobliário, nas relações e status sociais dos personagens, etc.
No castelo, ocorre a fusão orgânica do ambiente dos aspectos-indícios espaciais e temporais, e a
intensidade histórica desse cronotopo determina sua produtividade representativa nas diferentes
etapas da evolução do romance histórico.(Bakhtin, 2014, p 352)

Há ainda o crontopo da soleira, o qual se associa ao cronotopo do encontro, porém com maior
intensidade, sendo o cronotopo da crise e da mudança de vida. É sempre metafórico e simbólico,
“neste cronotopo o tempo é, em suma, um instante que parece não ter duração e sai do curso normal
do tempo biográfico” (p.354).
Bakhtin afirma ainda que os cronotopos assumem carater dialógico e que este diálogo
ingressa no mundo do autor, do leitor e dos ouvintes.
Transpondo o conceito de cronotopo para a esfera educacional, relacionando-o com as
interações em situações de brincadeiras, temos o cronotopo do encontro. Todos os conhecimentos
construídos na escola, e fora dela são construídos no encontro, na interação com o outro.
Lopes e Vasconcellos (2006, p. 118) nos dizem que a “constituição de espaço destinado a um
determinado grupo social nos aproxima da dimensão de território”. Assim, a creche configura-se com
o território destinado às crianças, demarcado pelo tempo e espaço do cuidar, do aprender e do
brincar. Os autores acima citados, acrescentam ainda que “ existe, portanto, uma estreita ligação
entre a vivência da infância e o local onde ela será vivida” (p.112). Daí uma necessidade em criar
oportunidades, tempos e espaços, nas creches e escolas, onde o brincar seja considerado para o
desenvolvimento integral da criança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Infelizmente, o nosso sistema educacional pautado no pilar da escolarização, tem valorizado


pouco os espaços e tempos do brincar. O tempo Chrónos tem ocupado e regulado o tempo da escola,
com a demarcação de horários definidos e estáticos, onde a oportunidade de brincar se reduz ao
(pouco) horário do recreio, promovendo uma desvalorização do tempo da brincadeira. Neste sentido,
prevalece-se a lógica produtivista versus a lógica experiencial.
Brincar é uma linguagem; é um propulsor de conhecimento. Expressa a possibilidade de estar
no mundo. No brincar a criança se constrói.
A partir dos estudos, podemos compreender a escola como um cronotopo complexo,
constituído por vários outros cronotopos, que envolvem tanto aspectos temporais como espaciais. O
cronotopo da escola configura-se com um espaço-tempo de formação humana, de aprendizagem e de
construção do sujeito.

NARRATIVAS
916

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história – destruição da experiencia e origem da história. Belo Horizonte: ed. UFMG,
2008
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_______. Questões de literatura e estética – a teoria do Romance. 5 ed. SP: Hucitec, 2002
AMORIM, Marilia. Cronotopo e Exotopia. In: Brait, Beth (org). Bakhtin: Outros conceitos-chaves. São Paulo: Contexto,
2012.
BROUGÈRE, Gilles. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, T.M (org) O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira,
p.19-32
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 13 ed. São Paulo: Edições Loyola. 128 2004.
KOHAN, Walter Omar (org.) Lugares da infância: filosofia. DP&A, 2004.
LOPES, Jader Janer Moreira, VASCONCELLOS, Tânia de. Geografia da Infância: territorialidades infantis. Currículo
sem fronteiras, v6, n1, pp103-127 – Jan/jun, 2006

NARRATIVAS
RESUMO
917
Este texto narra um encontro. Um encontro na
condição cronotópica, em que o tempo não se

“O ESPELHO ”: narrando 157


configura em sua perspectiva linear e o espaço em
sua dimensão de superfície. São composições
formadas em historicidades e geograficidades
Machado De Assis com escuta de Bakhtin narrativas da existência humana. A partir do conto
“O Espelho: Esboço de uma nova teoria da alma
humana” , de Machado de Assis, dialogamos com os
pressupostos de Bakhtin e outros membros de seu
ciclo.

Palavras-Chave: Narrativas. Consciência. Outro.


LOPES, Ana Lúcia Adriana Costa e158 Artefatos
LOPES, Jader Janer Moreira159

“A
casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-
se misteriosamente com o luar que vinha de fora.” O Morro de Santa Teresa localiza-se na
região central da cidade do Rio de Janeiro, no estado de idêntico nome, aqui no Brasil
mesmo. Como expresso em sua toponímia, é uma área com relativa altitude, que proporciona uma
visão ampla da cidade, naquele momento ofuscada pela luz da lua e também pela noite que já se
adentrava. Até hoje é assim. Quem por ali passa, ainda encontra os casarões que parecem até então
guardar as mesmas rodas de conversas. Essa casa, pouco descrita, não conhecemos ao certo o seu
tamanho, mas sabemos que estavam, na pequena sala, algumas pessoas. Eram “quatro ou cinco
cavalheiros [que] debatiam, [...], várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos
votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras,
e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os
nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais
árduos problemas do universo. [...] Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que
falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja
espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação”. [...] Poderia estar cansado
por ter subido as íngremes ladeiras que dão acesso às várias partes do morro; além disso, os
pedregulhos estafam demasiadamente os pés. Hoje o bonde ameniza a subida, mas quem sabe,
naquela época, no momento desse encontro, talvez o bonde nem existisse; talvez o bonde existisse,

157
Tivemos contato com esse conto de Machado de Assis no ano de 1996, em diferentes contextos, lendo Vigotski e Lacan. Hoje decidimos voltar
a ele e criar um novo diálogo, uma nova conversa na pequena sala dessa casa no Morro de Santa Teresa no Rio de Janeiro. Mas não vamos
ficar nela; apropriando do conceito de cronotopia de Bakhtin (2014), deixamos as narrativas fluírem por diferentes espaços e tempos. Como o
texto foi escrito para o evento EEBa 2017 -RESISTÊNCIAS À ESCATOLOGIA POLÍTICA: narrativas, corpos e risos enunciando uma ciência outra
(CAMPINAS | UNICAMP | De 16 a 18/11/2017) - e como forma de manter o compromisso ético e acadêmico das autorias, fizemos a escolha de
colocar entre aspas as citações que são do próprio Machado de Assis e em Itálico aparecem as citações de outros autores, todos
referenciados ao final do texto. As demais palavras e argumentos pertencem a nós.
158- Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal Fluminense. Integrante do Grupo ATOS/UFF. Professora
da Educação Básica da Rede Municipal de Juiz de Fora. alaclopes@gmail.com
159- Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação – UFJF/UFF – Coordenador do Grupo de Pesquisa e estudos em Geografia da
Infância- GRUPEGI.jjanergeo@gmail.com

NARRATIVAS
918

mas estava quebrado ou foi apenas uma escolha desse senhor e que agora se revelava em um
cansaço e cochilos. “Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta
anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico.
Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma
polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os
serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna.” Mal
sabia ele que ali mesmo, naquele bairro, em tempos recentes, tempos de quem hoje lê este e escuta
esta história, uma escadaria de azulejos diferenciados seria um grande exemplo de sua posição. Os
elementos das paisagens nos contam muitas coisas. A escada existia, mas foi um homem não nascido
ali que resolveu colocar mais vozes em seus degraus. Se ele soubesse ou tivesse vindo conhecer essa
escada, poderia ter usado como exemplo para afirmar sua colocação. Mas como foi desafiado por um
dos presentes e como não sabia daquela escada que estava por vir, acabou pegando a palavra e
falando um bom tempo. A palavra não apenas nasce das coisas do mundo, mas as cria também. Para
quem não o conhece, esse casmurro chamava-se Jacobina. E foi ele que tomou a palavra. “A conversa,
em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos.
Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão
impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez,
pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma
conjetura, ao menos. - Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a
dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes
um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se
trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...”. Não é que ele resolveu falar da alma
humana? Se soubesse da escada, a proza poderia ter caminhado em outra direção. As escadas
sempre levam a algum lugar, assim como as palavras, traçam caminhos. Mas tem histórias que são
tão velhas quanto as casas e casarões que paralisaram o tempo no espaço desse morro. Só quem
viveu e ainda anda por eles pode sentir isso. Está tudo bem fincado naquelas colinas. Mas ali, na
pequena sala, os vocábulos ganhavam outra escala. A escala das palavras nunca são medidas em suas
letras, silabas ou extensões. Isso porque não se mede algo que está entre as pessoas. Estas podem
parecer dois pontos no espaço, mas não existem retas entre elas, existe vida, emoções, sentimentos,
racionalidades, desejos, esperanças, medos e muitas curvas, muitas coisas que interferem na
grandeza de uma palavra narrada. Assim surgem os signos. Eles emergem sempre em um território
interindividual160. Bem distante daquele morro, em uma outra cidade para além do oceano, cheia de
cúpula pontudas e douradas, outras pessoas que gostavam de círculos e das fumaças de charutos e
cigarros também sabiam disso. Não sabemos se essas duas rodas de conversas se encontraram
algum dia, ou encontrariam. O planeta gira em elipse, é quase redondo, em sua forma de geoide,
promove encontros. Mas acreditamos que Jacobina nunca foi por esses territórios, talvez por não
gostar do frio dessa região. Essas pessoas parecem nunca ter vindo à cidade do Rio de Janeiro, talvez

160
Volóchinov, 2017, p. 96

NARRATIVAS
919

por não gostarem do calor do local, mas todos sabiam que as palavras ditas naquela sala jamais
ficariam confinadas e aferrolhadas naquelas paredes. Jacobina deveria saber que nenhuma palavra
solta segue tão livre. Nasce num lugar e renasce sempre em outros, sempre encontrando pessoas e
suas histórias. Por isso, falar da alma humana deveria ser algo importante para ele. Não há alma sem
palavras. As palavras criam a alma do outro. A consciência individual é um fato social e ideológico161,
diria um dos homens das terras frias e de longas histórias. Mas as palavras podem também acabar
com ela. Sempre as modificam. E foi assim que Jacobina continuou com a história das duas almas. E
se você, leitor, não quiser ouvir mais, aconselhamos parar por aqui e levar essa dúvida com você; há
muitas teorias sobre o humano por aí. Há muita coisa para ler e acreditar. Para ouvir e desconfiar.
Mas se escolher ficar conosco na sala, vai ter que ouvir Jacobina, que voltou a afirmar: “Nada menos
de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro...” Essa afirmação voltou a atravessar o grande mar e foi bater
direto naquela outra roda, pois lá também se discutia sobre as duas almas, mas o tom era de
questionamento, o que Jacobina chamava de alma, lá era consciência. Jacobina pensava se haveria
uma alma de dentro para fora ou ela seria de fora para dentro. A outra roda questionava se havia uma
consciência que era de dentro para fora ou ela seria de fora para dentro. Estavam questionando todos
os ditos até o momento. Pelo menos os ditos conhecidos. Palavras como objetividade e subjetividade,
filosofia idealista e muitas outras rodavam naquele inverno frio, com muitos graus abaixo de zero.
Eles lentamente chegavam à fronteira. Sim! A alma está na fronteira do outro com a vida, mas não
qualquer vida; a vida que tem está na história, a vida que está na geografia. Não em tempos e espaços
soltos e perambulantes. Pois uma consciência só passa a existir como tal na medida em que é
preenchida pelo conteúdo ideológico, isto é, pelos signos, portanto apenas no processo de interação
social162. Enquanto isso, Jacobina continuava: “Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta,
dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir.” Jacobina
sempre foi assim, escolher morar naquela ponta da serra da cidade do Rio de Janeiro não era à toa.
Na verdade, aquela não era a sua casa. Estava ali reunido para o charuto e as conversas. Mas vivia
também naquele local. Gostava de olhar a paisagem que se repetia a cada manhã e não se replicava. A
distância do olhar deixava as pessoas longes. Sem réplicas. Os outros do círculo distante teriam dito
dessa posição assumida por Jacobina: o que ele queria mesmo era trazer sua palavra, mas não
escutar uma contrapalavra! Como se isso fosse possível! As palavras sempre são respostas, mesmo
que argumentadas no silêncio do pensamento. E foi nesse silêncio que ele continuou: “A alma exterior
pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por
exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a
polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro
que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem,
que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente

161
Idem, p. 97
162
Idem, pg. 95

NARRATIVAS
920

metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência
inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los
equivalia a morrer. ‘Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no
coração.’ Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é
preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...” Essas afirmações colocaram todos a
pensar, Jacobina não quis citar mais exemplos; para ele ficava claro que tudo pode ser um signo e
tudo pode virar alma. Os objetos do mundo humano nunca são apenas objetos, mas artefatos da
cultura. Artefatos compostos por todas as histórias e geografias que o trabalho humano forja. O signo
não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade, sendo por
isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista especifico [...]163. Se
Jacobina tivesse lido Gogol e Dostoievski poderia ter feito diversos outros comentários; ou talvez
tenha lido, mas primou-se pelo não dito, o fato é que ele voltou para as mudanças da alma exterior:
“[...] muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual
disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas
enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por
exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde
uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade,
gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a
ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino,
a rua do Ouvidor, Petrópolis...” Participando da conversa, mas sem poder fazer réplicas resta a nós e
aos demais cavalheiros apenas a pensar como a alma humana é mutável no decorrer da vida. Desde
que nascemos não só os objetos e artefatos do mundo vão nos completando, mas também os locais
por onde caminhamos e passamos. Deixar rastros na paisagem é também ser marcado por ela. Todos
devemos lembrar ou já experimentamos algo parecido. Os objetos estão nas pessoas e as pessoas
nos objetos. Tudo é linguagem e, como nossa consciência, se forma na linguagem; não temos como
escolha, as almas aparecem. Mas são só pensamentos! Continuamos ouvindo Jacobina: “Eu mesmo
tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que
lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos... Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o
caso prometido, esqueceram a controvérsia. [...] A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é
agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo
as memórias.” “Eis aqui como ele começou a narração: - Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e
acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em
nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi
tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de
dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que
esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da
simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de

163
Idem, p. 93

NARRATIVAS
921

revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a
nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos[...] Vai então uma das minhas
tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e
solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um
pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha
mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também
o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que
tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia
outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a
toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando
que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não
me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos
escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o
primeiro servido.” A palavra é o fenômeno ideológico por excellence164, teriam dito as pessoas do
outro círculo, das planícies do leste. Lá também existem grandes montanhas separando pedaços do
mundo. Mas os dois círculos estavam distantes demais, nem subindo no Monte Elbrus seria possível
ver as luzes de Santa Tereza. Mas os ecos existem e são eles que varam o tempo da história e se
enraízam em lugares diferenciados de suas origens. Palavras como alferes, associadas ao
fardamento, e ainda a o que estava por vir, tornam as coisas igualadas. Onde há signo há também
ideologia. Tudo que é ideológico possui significação sígnica165. Sim, leitor e demais pessoas presentes
nessa pequena sala, ainda há mais coisas por vir. Só agora, como se não bastasse todo o já dito, é que
entra o espelho nessa narrativa. Mas quem tem que contar isso é o próprio Jacobina. Voltemos a ele.
Porém, voltamos a afirmar: tudo isso são apenas pensamentos. Melhor ouvi-lo: “Não imaginam. Se lhes
disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande
espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples[...]
Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das
fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a
tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte
pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e
outros caprichos do artista. [...]. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na
sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia
que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o ‘senhor alferes’ merecia
muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma
transformação, [...] O alferes eliminou o homem.” Mesmo sem poder fazer a réplica, não há como não
pensar no ocorrido. As palavras, a farda, as patentes e o espelho. O espelho, talvez tenha completado
o ato final. O espelho converge tudo e traz para as nossas pupilas todas as fronteiras de nossos

164
Idem, pg. 98
165
Idem, pg.93

NARRATIVAS
922

mundos. Cria e materializa esse olhar do outro. Não é dentro, nem é fora que as almas se colam, mas
nas fronteiras. É na metamorfose. Transformação do humano em humano. “Durante alguns dias as
duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte
mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os
olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me
falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi
aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.[...] - Custa-
me até entender, respondeu um dos ouvintes. - Vai entender. Os fatos explicarão melhor os
sentimentos: os fatos são tudo.” Aqui, Jacobina poderia ter lembrado dos colegas do hemisfério Norte,
a consciência e a alma humana não cessam nunca de mudar, trocam-se sempre, pois a vida é sempre
um continuum e um inacabamento. Os encontros entre pessoas forjam as pessoas. Ninguém passa
ileso a um contato social. Mas há encontros e encontros. Não temos álibi, diria um dos velhos
narradores dos círculos das grandes praças. Por isso, a atitude humana, seja ela qual for, é sempre
uma atitude responsiva. Um grande ato de responsabilidade. Mas Jacobina quis falar dos fatos, vamos
ouvir o que ele tem para nos dizer: “A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada;
e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos
ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e
intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma
compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era
exclusivamente alferes.” É assim que o alferes entra no homem e o homem entra no alferes, se
fundem e se unificam. Mas... um dia... um dia “[...] recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de
suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus,
sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse
com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário;
deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa.
Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de
quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se
reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais.” O que Jacobina queria dizer com isso? São
palavras que passam pela cabeça de quem escuta essa frase. Sempre nos disseram que as pessoas
têm identidades sólidas e bem formadas. Estabilidades! Mas se esquecem de lembrar que quando a
vida se faz na fronteira, se a fronteira muda, muda a vida. A vida é sempre alteridade. Encontra-se no
entreato da existência, onde as almas se fundem. Ainda não crê nisso? Voltemos aos fatos: “O alferes
continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os
escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a
afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles
redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito
bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um
concerto de louvores e profecias, que me deixou extático.” O homem em Jacobina se tornou o alferes

NARRATIVAS
923

nomeado pelos diversos grupos que o rodeava, alferes se tornou alteridade, um perigo que Jacobina
não calculou, ainda mais se soubesse o que estava por vir: “Ah! pérfidos! mal podia eu suspeitar a
intenção secreta dos malvados. [...] Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por
outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me
só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada.
Nenhum fôlego humano. [...]. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter
morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que
não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina;
fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou
ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a
minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum;
finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído
havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a
sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da
ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela
semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol
abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho
relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da
eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este
famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me
daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever! -
For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então
de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a
sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. [...] Era como um defunto
andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não
pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse
fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos
sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que
me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de
capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a
consciência do meu ser novo e único - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava
dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava.” Jacobina não era o alferes sem o
grupo social para nomeá-lo! Apenas um eco circulou entre os membros que ouviam a história. “Tudo
silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac,
tic-tac... - Na verdade, era de enlouquecer.” O tempo para Jacobina se assemelhava ao estudo do
romance que o outro grupo buscava compreender – um tempo que se estirava, se esguarçava , que
era muito maior do que realmente era. Triste Jacobina e “Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que,
desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho.” Não precisava se olhar, pois não tinha o

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olhar do outro. “Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um
receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é
verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de
olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois.” Pois ao ser humano impossível viver
sozinho, mesmo que o outro seja apenas uma imagem de si. “Olhei e recuei. O próprio vidro parecia
conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada,
difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me
textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha
sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais
tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e
ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado,
mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com
estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava
furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de
contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem
cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia. [...] Lembrou-me vestir a
farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos,
e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum
contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior”. Antes o espelho
mostrava apenas o homem inacabado, vestido, Jacobina se e viu como era visto pelo outro. “Essa
alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho.
Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa
a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe
que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do
sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e
o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada
dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando,
meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais
seis dias de solidão sem os sentir...” Jacobina vestia-se de acabamento, suas linhas delineadas pelo
uniforme, não o homem que era, mas o homem que havia sido forjado pelo uniforme, ou melhor
dizendo, pelo grupo que achava que ele era pelo significado do uniforme. A narrativa se impregna e
materializa-se nos objetos, como as escadas de Santa Tereza, antes mudas, agora narram; assim
também são as coisas e os artefatos humanos, passam a ter voz, a ter histórias e geografias, podem
confortar, podem alegrar, trazer tristezas. São sempre vivências. O problema é que nunca o evento se
encontra com a sua narração. Isso é a grande impossibilidade da existência humana, todo evento dito,
contado argumentado já é um átimo de passado. Nunca é sua existência em essência, é sempre a
narração do ocorrido, e narrar o ocorrido significa criar algo que nunca existiu, mas que pareceu que
existiu. É sempre narrar o novo! Jamais saberemos como de fato aconteceu esse sucedido, mas ao

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ser contado por Jacobina, ele se cria e se torna real. Talvez se encontre aí a grande tragédia humana,
pois a vida, além de se fazer na fronteira com o outro, só pode ser vivida para além de nós mesmos. A
alteridade nunca é somente com o outro, a alteridade é também conosco. Jacobina sabia disso. As
pessoas do outro círculo viveram e morreram para nos anunciar isso. O ser humano só se torna
humano na alteridade com o outro e consigo mesmo! Não temos outra escolha. Se não temos álibi, ele
também é para com a minha própria existência. Essa é a essência da humanidade. A noite se
adentrava e todos ficamos pasmos com a história pretérita de Jacobina. E não é que “Quando os
outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.” Não as escadas dos azulejos, tão
conhecidos hoje! Mas eram também escadas. Afinal ali não era sua casa e foi-se para o ponto mais
alto fitar o horizonte sem réplicas. Para quem passa pelo Morro de Santa Tereza hoje, pode tentar
olhar as pessoas ao longe, todas vivendo, trocando e perdendo as suas duas almas. E se olhar bem
mais longe, com sentidos diversos, poderá encontrar murmúrios sérios e densos de um grupo de
cavalheiros, fumando, rindo e confabulando, a alguns quilômetros dos Montes Urais.
FIM...
Ou melhor,
pausa
para
apreciar
as escadarias
de Selarón.
Jacobina pode estar lá!

Fonte: https://goo.gl/images/uEkgLc

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926

REFERÊNCIAS

- Todas as frases de Machado de Assis foram retiradas do conto “O espelho - Esboço de uma nova teoria da alma
humana” presente em ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II. O texto pode ser
acessado em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000240.pdf
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo: Paulo Bezerra; prefácio à edição
francesa Tzvetan Todorov – 4ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência
da linguagem. São Paulo: Editora 34. 2017.

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RESUMO
927
.

“EU TINHA A OBRIGAÇÃO Palavras-Chave:

DE FAZER POESIA
ENGAJADA”: o desejo de resistir
por meio da literatura

MACEDO, Helton Rubiano de 166

1. INTRODUÇÃO

E
sta comunicação é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, intitulada Vozes da
criação: relações dialógicas no discurso de construção literária, que tem o objetivo de analisar
discursos de autores potiguares, em que tratam da sua atividade literária, tomando como marco
teórico a concepção dialógica de linguagem. Para tanto, leva-se em conta a hipótese de queescritores,
como sujeitos sócio-históricos, conformam seu fazer literário a partir de uma relação concreta com o
mundo da vida.
Especialmente aqui, tenho o objetivo de expor uma análise pontual de uma narrativa da poeta
potiguar Diva Cunha (1947-), no momento em que discorre sobre a sua atividade literária167. O recorte
realizado nesse discurso compreende o enunciado em que tratou de uma dimensão política do seu
fazer artístico, mais precisamente sobre os desejos de realizar uma literatura engajada, a qual
pudesse alterar uma realidade permeada pela desigualdade social.
Antes dessa discussão, apresento aspectos da vida da artista, uma vez que considero a
premissa de que o discurso é realizado por um sujeito sócio-historicamente situado, e que os
elementos extraverbais relacionados a ela não são apenas a moldura, mas sim constituintes do
enunciado.

166 DoutorandonoProgramadePós-graduaçãoemEstudosdaLinguagem,daUFRN,sobaorientaçãodaProfa.Dra.MariadaPenhaCasadoAlves.E-
mail:heltonrubiano@gmail.com
167 OdiscursodapoetaDivaCunhafoitomadodentrodoprojetoVozecriação:escritorespotiguareseseusprocessoscriativos ,realizadonaUFRN,entreosa

nos2014-2015,ecujoobjetivofoiodelevarapúblicoosprocessosdeconstruçãodetextosdeescritoresnorte-rio-
grandensesdevariadosgênerosliterários.Cadaediçãodoprojeto,nototaldesete,foidedicadaaumescritordistinto.

NARRATIVAS
928

2. A POETA DIVA CUNHA

Diva Cunha nasceu em 10 de dezembro de 1947, numa “cidadezinha provinciana e periférica do


Brasil”: Natal, Rio Grande do Norte (CUNHA, 2013, p, 1). Foi a primeira de cinco irmãos. Como próprio
da época, havia uma distinção entre gêneros. Os seus irmãos, homens, tinham liberdades que ela,
mulher, não tinha. Ela e sua mãe, por exemplo, só podiam sair acompanhadas, enquanto os meninos,
mesmo mais novos, saíam sozinhos. Essa condição lhe gerou incômodos e reflexões que vieram
marcar toda a sua trajetória (CUNHA, 2013).
Diva construiu uma carreira profissional ao lado da literatura. Estudou no Colégio Imaculada
Conceição, um colégio de freiras, “onde as mais elevadas leituras eram os livros devotos e Poliana
Menina e Moça 168 ” (CUNHA, 2013, p. 2). Ainda assim, mais tarde, com o gosto pelas palavras,
provocado pelos resquícios da biblioteca do avô, formou-se em Letras pela UFRN, cursando o
mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Com isso, habilitou-se para o cargo de
professora de Literatura Portuguesa na UFRN, função que ocupou até se aposentar. Ministrou
também, na Universidade Potiguar, as disciplinas de História da Literatura do Rio Grande do Norte e
Cultura Brasileira. Em sua carreira acadêmica, tocada pela questão de gênero que refletiu ainda
menina, dedicou-se a estudar literatura feminina e a questão da mulher de forma geral. Desse modo,
acredita que descobriu para si um novo mundo, do qual faz parte enquanto mulher. Considera,
contudo, que foi uma mulher de sorte, visto que pôde ir à universidade. Lamenta que uma geração
antes dela não teve a mesma oportunidade.
Sobre a carreira de escritora, Diva se percebe admiradora de poesia desde a infância. Afirma
que lia muito, principalmente o que chama de “poesia antiga”, que era o que existia na sua casa. Lá, os
livros antigos do avô incluíam poesia romântica e poesia simbolista. Esses eram os poemas que lia.
Relembra que eram poemas muito musicais e que, sem querer, acabava contando as sílabas dos
versos. Por conta disso, até hoje faz rimas. Quando inicia o curso de Letras, na UFRN, já carregava
consigo um conjunto de poemas em um caderno grande em que registrava versos à mão. Hoje, avalia
que esses poemas não estavam lapidados, pois naquele momento não tinha ideia do trabalho
necessário à construção literária. Na UFRN, entretanto, ampliou seus horizontes nas letras. A primeira
publicação, porém, só acontece aos 38 anos, com o Canto de página. Ela acredita que levou muito
tempo para enfrentar o desafio da publicação. Hoje, pensa que se deve começar cedo, uma vez que os
jovens possuem o ímpeto de enfrentamento. Os mais velhos são mais receosos, o que pode ser um
obstáculo. Todavia, após anos de labor poético, publicou outras obras: A palavra estampada (1993),
Coração de lata (1996), Armadilha de vidro (2004) e Resina (2009). Mesmo reconhecida no meio
literário local por meio das suas produções, Diva afirma não se ver enquadrada em nenhum
movimento da literatura, uma vez que, acredita, a poesia é um gênero de difícil classificação. Nesse

Poliana, personagem da escritora americana Eleanor Hodgman Porter (1968-1920), é uma menina que buscava extrair o lado positivo até
168

dos acontecimentos ruins.

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sentido, recorda-se de uma palestra proferida por Afonso Romano Santana, na UFRN, na década de
1980, em que dizia: “Cada poeta vai criando o seu próprio caminho”. Essa frase a fez concluir que não
havia a necessidade de rótulos.
Devido à sua atuação no meio cultural, foi membro do Conselho Municipal de Cultura de Natal e
do Conselho Editorial da UFRN. Atualmente, é membro do Conselho Estadual de Cultura do RN e da
Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANRL). Em matéria do jornal Tribuna do Norte, que noticiava
a sua entrada na ANRL, Diva declarou: “Vejo a academia como uma chance de prestar mais serviços à
cultura do potiguar” (DIVA..., 2011). Diante do reconhecimento dos serviços já prestados à cultura do
estado, Diva foi convidada a me conceder uma entrevista. Para isso, houve a intermediação do
jornalista Gustavo Sobral, amigo em comum, que levou a proposta à autora, aceita prontamente.
Em 24 de julho de 2014, Diva Cunha foi a entrevistada do projeto Voz e Criação: escritores
potiguares e seus processos criativos , que chegava à sua terceira edição. O evento foi programado
inicialmente às 19h, no Auditório da Biblioteca Central Zila Mamede (BCZM), na UFRN. Contudo, quando
cheguei ao local, fui informado de que o responsável pela abertura do auditório havia ido embora com
as chaves. Depois de conversas com outros servidores da BCZM, transferimos a entrevista para um
miniauditório, com menos lugares, mas que me pareceu também adequado. Já passava das 19h30
quando começamos as falas. Após um pedido constrangido de desculpas, a escritora convidada
pareceu não se afetar com a demora e demonstrou-se aberta às questões. Carregava alguns livros
que foram consultados ao longo da entrevista. Gustavo Sobral (Foto 2, ao centro) foi convidado para,
junto comigo, conduzir a entrevista. A plateia (Foto 2) permaneceu atenta às falas da escritora e lhe
fez diversas questões, quando aberta a participação do público.

Figura 1 – Plateia do projeto Voz e Criação, edição com Diva Cunha. Figura 2 – Diva Cunha em entrevista ao projeto Voz e Criação.

Crédito: Joíres Silva. Crédito: Joíres Silva.

Durante a entrevista, Diva tocou em temas que percorreram desde o início da sua produção
poética até os seus próximos projetos. Para este momento, dirijo-me a um tema que parece
repercutir na escrita literária de Diva, materializando o vínculo arte-vida, pois “sai” da realidade
concreta para forjar a poética, qual seja: Diva Cunha e o desejo de produzir uma escrita engajada em
um país de injustiças.

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3. DIVA CUNHA E A ESCRITA ENGAJADA

Ao longo da entrevista, Diva se mostrou uma escritora que não se abstém de posicionar-se
claramente diante das questões que lhe são postas, problematizando ainda assuntos por ela mesma
atraídos. Nesse sentido, a autora é questionada sobre a recorrência de temas em sua poesia. Sobre
isso, confirma que há, sim, um conjunto de assuntos abordados frequentemente em seus trabalhos.
Nisso, acrescenta uma informação que nos permite uma exploração dialógica: “Eu creio que os temas
voltam, sim. Que sempre a gente dá preferência por alguns temas. Uma coisa que eu acho muito
importante dizer é que eu vivi 68” (CUNHA, 2014, grifo nosso). Nesse ponto, nos chama atenção a
ancoragem do seu posicionamento a partir de uma data específica. O ano de 1968 surge como
justificativa para que a sua abordagem, enquanto poeta, se balize em um lugar histórico capaz de
refletir-se sobre a sua escrita. Desse modo, para compreender a relação dialógica que o discurso de
Diva estabelece com o extraverbal, nesse caso um contexto sócio-histórico determinado, buscarei
desenhar os contornos desse período (1968), a fim de firmar algumas relações com o enunciado
concreto da poeta.
Segundo Japa e Osava (2011, p. 54-56), 1968 é um ano símbolo, mas não implica um ano
síntese. Ampliar o espectro para toda a década de 1960 contribui para a compreensão do seu
significado para a história. Nesse período, anos mais, anos menos, afirmam, vários acontecimentos
marcaram uma geração de jovens no mundo inteiro. O movimento antimanicomial surgia na Itália; a
luta dos negros por direitos civis nos Estados Unidos chegava ao seu auge; o movimento homossexual
começava; o ambientalismo dava os seus primeiros passos; o feminismo se sofisticava; a pílula
anticoncepcional chegava ao mercado; nascia a contracultura, que teve seu ponto máximo no Festival
de Woodstock, em 1969; na América Latina, a revolução cubana, liderada por Che Guevara, promovia
uma agitação política na região; grupos guerrilheiros se tornavam comuns até mesmo na Europa.
Conforme Piacentini (2008), o mês de maio de 1968, particularmente, representou o auge de
um momento histórico de fortes transformações políticas, culturais e comportamentais, as quais
marcaram profundamente a segunda metade do século XX. Nesse momento, a partir de manifestações
de estudantes nas universidades francesas de Naterre e Sorbonne, precipitaram-se diversos
movimentos de protestos em universidades da Europa e das Américas, que se ampliaram com a
eclosão de revoltas em defesa da classe trabalhadora. Para Japa e Osava (2011, p. 55), “a fúria de
rejeição a tudo foi o grito de liberdade de uma juventude emergente que já não podia suportar as
camisas-de-força herdadas”. De acordo com a cientista política Maria Celina D’Araujo, nesse período,
“o movimento estudantil celebrizou-se como protesto dos jovens contra a política tradicional, mas
principalmente como demanda por novas liberdades” (D’ARAUJO, 2016).
No Brasil, estávamos sob o comando de uma ditadura militar, emergida a partir do golpe de
1964. Em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi baixado o Ato
Institucional nº 5, AI-5, que “definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos

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governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados”
(D’ARAUJO, 2016).
Como no resto do mundo, os jovens brasileiros assumiram o protagonismo das crescentes
revoltas contra o regime. O jornalista Zuenir Ventura, em 1968: o ano que não acabou, caracteriza
essa geração, revelando parte de sua cultura musical e fílmica, além de suas frustrações e desejos.

Os nossos “heróis” são os jovens que cresceram deixando o cabelo e a imaginação crescerem. Eles
amavam os Beatles e os Rolling Stones, protestavam ao som de Caetano, Chico ou Vandré, viam Glauber
e Godard, andavam com a alma incendiada de paixão revolucionária e não perdoavam seus pais reais e
ideológicos por não terem evitado o golpe militar de 1964. Era uma juventude que se acreditava política
e achava que tudo devia se submeter ao político: o amor, o sexo, a cultura, o comportamento (VENTURA,
2006, p. 20).

Já no Rio Grande do Norte, segundo Capistrano (2010), a década de 1960 foi caracterizada por
uma ebulição política e cultural. Aluízio Alves foi eleito governador e Djalma Maranhão, prefeito de
Natal. Ambas as candidaturas tiveram o apoio de forças progressistas, com a participação de
trabalhadores, intelectuais e estudantes. De acordo com Capistrano (2010), a capital do estado estava
sob uma das administrações mais democráticas de sua história. Contudo, após a efetivação do golpe
militar de 1964, as forças políticas e as organizações sociais contrárias ao regime no estado foram
vítimas da repressão política, sofrendo um desmonte gradativo. O prefeito de Natal, Djalma Maranhão,
constou na relação dos presos políticos. O governador Aluízio Alves, por sua vez, foi um dos primeiros
a apoiar o novo governo brasileiro, realizando uma gestão intransigente, marcada pelo confronto com
diversos segmentos da sociedade (CAPISTRANO, 2010).
Em 1964, uma jovem Diva Cunha, então com 17 anos, já percebia o inquieto contexto político da
sua época e assumiu posicionamentos. Ao analisar esse cenário – considera-se até hoje
verdadeiramente preocupada com questões sociais –, Diva passou a acreditar que seria seu encargo
fazer um tipo específico de poesia, classificada comumente como poesia engajada, como contribuição
à dinâmica política em curso.

Eu subi em cadeiras, eu fiz discurso, eu corri da polícia, eu achava aquilo maravilhoso, eu era de
esquerda doente! Comunista até morrer. E então, eu tinha a obrigação de fazer poesia engajada. Eu me
sentia na obrigação de fazer poesia engajada. E essa musa dificilmente chegou pra mim. (CUNHA, 2014).

Daí surge o que chamaremos de conflito artístico: Diva Cunha, de início, diz considerar esse
tipo de literatura muito difícil de fazer, uma vez que o poeta assume uma outra postura, mais política,
menos literária, fato que a incomoda. Reflete, em seguida, que talvez a poesia engajada não exista,
pois quando ela assume essa posição, se torna, na verdade, uma poesia panfletária, e já não seria uma
“boa poesia”, visto que assume o tom de manifesto.
Entretanto, se vendo em um país com tantas contradições, Diva declara que sempre se cobrou
a publicação de poemas que falassem da marginalização de uma grande parcela da população

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brasileira, o que a preocupava sensivelmente. Revela que tentou escrever sobre o tema, mas não
gostava do que produzia.
Ainda no período da década de 1960, Diva percebeu-se dividida por um outro fator. De um lado,
afirma, havia sua cobrança pessoal em fazer poesia engajada. Do outro lado, o movimento do poema-
processo169, muito distinto do que ela realizava, que se expandia em Natal. Sobre as expressões desse
movimento, afirma que não as entendia, e nem mesmo eram alvo do seu interesse. Assim, por essas
expressões não a terem tocado, se calou, e não acompanhou os conterrâneos adeptos desse
movimento. Recorda-se dos amigos Moacy Cirne 170 e Dailor Varela 171 queimando livros enquanto
declaravam o fim da poesia verbal. O fato decorria da ascensão do poema-processo em Natal. A partir
de imagens como essa e da repercussão que o movimento tinha nos jornais, a autora passou a
questionar-se sobre o sentido do que vinha produzindo à época.
O conflito artístico de Diva diante da poesia engajada se intensifica quando começa a lecionar
a disciplina de Literatura Portuguesa, na UFRN, e passa a estudar e admirar os autores portugueses.
Além disso, conta, começou a ler “coisas boas”, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira
e Cecília Meireles. Essas leituras e reflexões a fizeram pensar que deveria “começar do zero”. A partir
desse momento, quando lhe ocorria uma “ideia boa”, dava continuidade à sua produção, cujos textos
eram guardados depois de finalizados. Esses poemas foram reunidos para que pudesse, aos 38 anos,
publicar o seu primeiro livro: Canto de página. Contudo, a vontade de publicar a dita poesia engajada
perdurou durante toda a sua carreira.
Esse desejo revelado no enunciado da autora vem reproduzir uma voz social há muito tempo
debatida: a da imprescindibilidade da escrita engajada. Ela se coaduna com vozes refletidas
historicamente, vistas, por exemplo, em discursos de escritores como o do filósofo francês Jean-Paul
Sartre e do escritor brasileiro Lima Barreto. Ambos os escritores serão explorados aqui, a fim de
demonstrar o diálogo que Diva estabelece, mesmo que não explicitamente, com essas ideias.
Em Que é a literatura?, Sartre (1993) posiciona-se claramente a favor do engajamento do
escritor. Segundo o dicionário Houaiss (2009), no existencialismo, vertente filosófica do século XX da
qual Sartre é seu maior expoente, o engajamento, especialmente na visão desse teórico, diz respeito
ao empenho ético e político nas escolhas absolutamente livres e impreteríveis, por meio das quais o
ser humano inventa a si próprio e o seu mundo. Nesse sentido, para o campo literário, Sartre propõe
três questões para autorreflexão dirigidas a escritores. Acredito que elas fomentavam o conflito
artístico de Diva, tal como definimos a “crise” instaurada pela vontade de criar uma poesia engajada.

169Movimento da poesia de vanguarda brasileira. Seu srepresentantes pretendiam-se inovadores ao propor uma desarticulação nas formas
estabelecidas de criação de umpoema. Aderiram ao grupo poetas de todo o país, porém publicou-se mais expressivamente no Rio de Janeiro e
no Rio Grande do Norte (CAMARA,2009). EmNatal ,contou com representantes como Moacy Cirne, Dailor Varela e Ney Leandro de Castro
(CUNHA,2013).
170Moacy Cirne fo ipesquisador de histórias em quadrinhos, poeta, artista visual e um dos fundadores, em 1967,do movimento de vanguar da

poema-processo. Nasceu em São José do Seridó (RN), em 1943 e faleceu em Natal ,em 2014. (MORRE...,2014).
171Apesar d epertencer a uma tradicional família potiguar, Dailor Varela nasceu em Anápolis (GO), em 1945. Em Natal, em fins da década de

1960,participou do movimento do poema-processo, em que buscava manifestar repúdio às “fórmulas gastas” da literatura
(DUARTE;MACEDO,2001).

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A primeira questão era: “Você tem alguma coisa a dizer?” (SARTRE, 1993, p. 20). Sartre
defendia que o escritor deveria se ocupar de algo que valesse a pena ser comunicado. O “valer a
pena”, nesse caso, ele diz, seria compreendido apenas por meio de um sistema de valores
“transcendente”. Compreendo a transcendência referida como ir além dos valores postos pelos
grupos hegemônicos dotados de mecanismos de controle e permanência do status quo. Os valores
transcendentes se inspiram, desse modo, no ímpeto de mudanças de uma sociedade injusta e desigual.
A segunda questão se propunha a descobrir “que aspecto do mundo você quer desvendar, que
mudanças quer trazer ao mundo por esse desvendamento?” (SARTRE, 1993, p. 20). Nesse ponto,
Sartre acredita que o escritor “engajado” se apercebe que a palavra é ação, sendo ela responsável
por um desvendamento, ou, mais ainda, por uma mudança, a qual apenas ocorre quando se tem o
desejo de mudar. Além disso, Sartre propõe que o escritor deixou de acreditar que poderia
representar, de modo imparcial, a sociedade e a condição humana.
A terceira questão, por fim, provocava: “Por que você falou disso e não daquilo, e já que você
fala para mudar, por que deseja mudar isso e não aquilo?” (SARTRE, 1993, p. 22). Diante das mil faces
da problemática de ser sujeito no mundo, o escritor deveria eleger aquela sobre qual abordar. Nesse
caso, trata-se de escolha subjetiva, em que o autor recorre às suas motivações íntimas. Poderíamos
perguntar: que tema o sensibiliza? Por quê? As respostas são várias. Seria o escritor observador
dessas questões em outros sujeitos, como os quais se solidariza, ou mesmo ser alvo direto delas,
incomodando-se ao ponto de discuti-las por meio da atividade artística.
Por certo, essas questões também inquietavam Diva Cunha, desejosa de criar uma poesia
engajada que desse conta dos problemas sociais do seu tempo. Porém, como dito, a poeta acreditava
que essa categoria poderia soar panfletária, isto é, doutrinadora, com apoio radical a uma ideia, a um
movimento, a uma utopia etc., e que, desse modo, distanciava-se de uma literatura que lhe agradava.
Algumas décadas antes das ideias de Sartre, o escritor brasileiro Lima Barreto, em
conferência publicada em 1921, também formulou questões, então dirigidas ao público, o qual se
colocasse diante de um jornal ou uma revista, um soneto ou um artigo.

[...] para que serve “isto”? Por que se honram os homens que fazem essas coisas, quando, as mais das
vezes, se as suas vidas não são cheias de torpes episódios, são, entretanto, as de verdadeiros
vagabundos? Como é que todos lhes guardam os nomes e muitos se honram com a sua amizade? Como
é que nós os cercamos de honrarias, de estátuas, de bustos, e nos esquecemos do inventor da utilíssima
máquina de costura? (BARRETO, 1922).

Como se percebe, o tom crítico de Barreto recaía sobre a (ir)relevância dos escritos da sua
época. Referiu-se à vaidade dos literatos de vida medíocre, que se gabavam das suas banais
publicações, e da importância lhes conferida pelo público em homenagens despropositadas. Ao
comparar esses autores ao inventor da “utilíssima máquina de costura” denota a imprescindível
serventia desta em detrimento da infecundidade dos textos daqueles.

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Adiante, expôs talvez a mais importante das indagações: “[...] em que pode a Literatura, ou a
Arte, contribuir para a felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade, enfim?”. Todas elas,
sintetiza o autor, são o “resumo do problema da importância e do destino da Literatura que se contém
no da Arte em geral”. Barreto buscava refletir sobre a função do texto literário. Para tanto, apesar de
concordar que o debate sobre o tema não estava encerrado, acreditava que este apenas pudesse
avançar se os expertos convergissem para o entendimento de que o “fenômeno artístico é um
fenômeno social e o da Arte é social, para não dizer sociológico” (BARRETO, 1921). Desse modo, sua
função e importância deveriam estar associadas a necessidades coletivas e não restrita à fruição
individual do belo. Conforme Barreto (1921), a importância da obra literária que se pretende de fato
bela “deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que
fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda
às questões de nossa conduta na vida”. Assim, compreende-se a literatura como transcendente, isto
é, prática que repercute valores morais e sociais, para além da apreciação de forma e de estilo. Esses
sentidos devem se dirigir ao íntimo do humano e provocar reflexões sobre o seu estar e agir no
mundo.
Vejo que, de certo modo, as ideias de Sartre estão alinhadas às de Barreto. Ainda que
percebamos, no primeiro, a defesa do engajamento com vista à participação política e, no segundo, a
defesa da arte como meio de aperfeiçoamento moral da sociedade, ambos apregoam, igualmente, uma
intervenção sobre uma coletividade a partir do texto literário. Nele se concentrariam os esforços
para tornar mais forte um grupo social no enfrentamento de problemas que lhe acometem enquanto
conjunto. É exatamente essa voz que identifico no discurso de Diva Cunha sobre a construção da sua
poesia. Diante do incômodo com a realidade da sua geração, a autora desejava utilizar sua arte como
instrumento possível para reverter injustiças.
Mesmo que não tenha apresentado publicamente sua face engajada durante sua trajetória
como escritora, Diva parece resolver seu conflito artístico em sua fase madura. Ela conta que apenas
nesse momento tem coragem de expor textos de cunho explicitamente político.

Eu vou publicar. Eu criei coragem. A essa altura do campeonato, não tenho mais nada a perder! Então, só
a ganhar. Eu vou publicar meus poemas engajados! Paulo de Tarso [Correia de Melo] botou a mão na
cabeça e disse: “Você tem coragem?” Eu disse: “Tenho, tenho, tenho que fazer!” É uma cobrança que eu
sempre me fiz.

Após essa entrevista, um conjunto de 20 poemas de Diva foram publicados na revista da


Academia Norte-rio-grandense de Letras, número 40 (jul-set, 2014). Aquele intitulado “Acidente” diz:
“O olho do menino, / me atropela na esquina / Olho pidão / de faca na mão”. Ainda que o foco não seja
a análise das obras dos autores estudados, aqui se percebe a materialização da voz evocada em seu
discurso sobre a escrita. O desejo se fez palavra.

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EPÍLOGO

Pelo exposto, compreendo que a análise realizada aponta para o entendimento de que o
exercício literário se alicerça na experiência do sujeito escritor no mundo concreto, nas relações que
estabelece axiologicamente com/na vida em toda a sua complexidade, servindo-lhe de substrato para
a sua prática literária.

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2003.
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NARRATIVAS
936

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VENTURA, Zuenir. 1968, o ano que não terminou. Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006 [1988].

NARRATIVAS
RESUMO
937
.

OCUPAÇÕES DE ESCOLAS Palavras-Chave:

NO RIO DE JANEIRO: um
movimento de luta e resistência política em
tempos escatológicos

MACHADO, Rejane Dias Corrêa172

V
ivemos um momento político nacional fortemente representado por disputas ideológicas que
visam produzir o silenciamento de vozes em detrimento à soberania de proposições da
hegemonia política.
A proposta desse encontro nos instigou a pensar e dialogar sobre a resistência às
escatologias políticas. Propomo-nos arecortar uma pesquisa em andamento para abordar a
relevância de atos responsáveis (BAKHTIN, 2010) de luta.
No ímpeto de problematizar a importância da resistência, visando combater a incredibilidade
na política, principalmente a política governamental, compartilhamos olhares e vozes formuladas ao
observamos como se deu o movimento de ocupação de escolas da rede estadual de ensino no Rio de
Janeiro em 2016.
Em um movimento contra hegemônico, pretendemos narrar a relevante experiência
vivenciada nas ocupações buscando fiar as lutas fomentadas pelos secundaristas em prol da
manutenção da oferta gratuita à Educação Pública.
Delinear a pesquisa é delinear uma estratégia de enfrentamento e disputa ideológica. Em
tempos de descrença política, desmonte da oferta dos serviços públicos, retrocessos em políticas
sociais, desconstrução de ideias e ideais progressistas, fortalecimento do pensamento e das
ideologias conservadoras, compreendemos a necessidade de estudar o movimento estudantil de
ocupações de escolas ocorrido no ano de 2016, no estado do Rio de Janeiro.
Para nós, discutir as ocupações estudantis, é a construção de um caminho dialógico que
possibilita analisarmos variados temas que atravessam a educação em tempos de neoliberalismo e
conservadorismo crescentes. Para tanto, o diálogo com ideias de Mikhail Bakhtin nos instigou a
buscarmos um excedente de visão (BAKHTIN, 2003) sobre uma ação que chegou a contar com a
participação de 70 escolas em todo o estado do Rio, durante os quase 05 meses de sua (re)existência.

172
Mestranda em Educação – FFP/UERJ, Professora da Rede Municipal de Niterói, email:prof.rejane.machado@gmail.com

NARRATIVAS
938

É pensando as ocupações, de forma dialógica, que buscamos enfrentar e confrontar a


escatologia política que nos assombra. Acreditamos na importância da palavra como oportunidade de
enfrentamento das adversidades. Bakhtin (2011) nos convida a refletir sobre a palavra própria e a
palavra outra. Considerando a influência da palavra nas inter-relações.
A fim de compreendermos a importância e as disputas que se dão pela nomeação, torna-se
necessário pensar a língua como prática social viva, produzida em contextos reais de enunciação.
Entendendo, assim, que a palavra está sempre “carregada de um conteúdo ou de um sentido
ideológico ou vivencial”, pois “não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou
mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc” (BAKHTIN,
1992, p.95).
Desde a escolha das palavras utilizadas pelos atores do movimento às ações produzidas ao
longo da sua trajetória, a disputa política e ideológica acontece. Em uma análise da construção de
ações políticas pelos secundaristas, observamos que essa disputa se inicia nas passeatas pelas ruas
culminando nas ocupações de fato.
Os sonoros gritos de inquietação desses jovens estudantes ecoavam nas ruas em formas de
protesto e manifestação. Palavras próprias constituídas de sentidos outros: ocupar, resistir e lutar.
“Ocupar, resistir, lutar para garantir” tornou-se mais que um grito de luta, transformou-se no lema
político e ideológico do movimento.
Das passeatas às ocupações, os estudantes construíram ações políticas de enfrentamento a
essa onda de conservadorismo que toma nossa sociedade.
Eu acredito é na rapaziada como cantou o mestre Gonzaguinha. Uma rapaziada Que segue em
frente e segura o rojão. Atrelando, assim, a luta estudantil ao enfrentamento com forças políticas e
governamentais. Sem esquecer do fronte com as forças policiais que tentaram desmontar as
ocupações. Enfrentamento a políticas públicas educacionais que, de acordo as pautas de
reivindicações estudantis, não correspondem ao projeto de escolas que esses estudantes ansiavam.
É preciso debater a participação desses jovens. É fundamental esmiuçar as condições as
quais as ocupações aconteceram. Não era unanimidade entre os estudantes o reconhecimento
legítimo deste movimento, entendendo que alguns estudantes sentiram-se privados do direito de
estudar. No entanto, o que os estudantes-ocupantes compreendiam a ocupação das unidades
escolares como direito e como luta e resistência política ao não investimento na escola pública.
A precarização da estrutura das escolas agrava de forma acelerada. Faltava nas escolas da
rede estadual porteiros para garantir a segurança à toda comunidade escolar. A redução na oferta da
merenda escolar atingia o dia a dia nas escolas, compreendendo as mais diversas realidades
socioeconômicas das escolas. A dificuldade diária no uso do cartão de passagem (RioCard) fomentou
a discussão sobre a necessidade do passe-livre estudantil. Esse debate oportunizou a discussão sobre
o acesso aos mais variados espaços de produção do conhecimento vislumbrando a aquisição dos
saberes e o processo educativo para além dos espaços escolares.

NARRATIVAS
939

Gonzaguinha acreditava na moçada que Segue em frente, enfrenta o leão, remetendo-nos às


ações políticas da rapaziada fluminense. Meninas e meninos, jovens estudantes da rede estadual de
ensino do Rio de Janeiro que ocuparam suas escolas em um movimento de luta e resistência pela
Educação Pública.
As políticas educacionais estabelecidas ao longo do ano de 2016 trazem questionamentos a
serem debatidos. A implementação de leis que atingem diretamente a vida desses estudantes nos
permite compreender a luta política, ideológica e social pela gratuidade da oferta de Educação, uma
vez que, como direito, precisa ser garantida.
Bakhtin nos convida a refletir que “O ato na sua integridade é mais racional – é
responsável”(2010,81). Compreendemos, desta maneira, que as ações políticas estão carregadas de
significados em si. Ocupar as escolas foi um ato responsável em direção à garantia de direitos.Bem
como, consideramos que as ações dos governos são atos responsáveis de retirada de direitos, dentre
eles o direito à educação.
Destacamos a proposta de emenda constitucional (PEC) 241 ou 55(de acordo com a casa
legislada). Tal emendapropunha o congelamento dos investimentos em educação por 20 anos. Vamos
aqui, abordar primeiro a disputa ideológica das palavras: enquanto estudantes compreende as verbas
para a Educação como investimentos, governantes compreendem o uso das verbas como gastos.
Dessa disputa ideológica compreende-se o que se caracteriza, para cada grupo, o uso das verbas
públicas.
A emenda foi aprovada e incorporada à constituição sendo uma das ações mais prejudiciais à
oferta da educação pública, gratuita e de qualidade. Compreendendo, no viés estudantil, a Educação
como investimento.
Neste sentido, esta emenda apresenta-se como retrocesso no investimento financeiro à
educação. Em um percurso contrário ao das reivindicações estudantil, a medida inviabiliza,
economicamente, melhorias na infraestrutura dos estabelecimentos públicos de ensino.
A construção de projetos de leis como atos responsáveis (Bakhtin,2010) apontam a concepção
de sociedade defendida pela maioria dos governantes. São essas escolhas e os arranjos de nossos
governantes que desconstroem a esperança e a confiança na política.

Somente o ato responsável supera toda hipótese, porque ele é – de um jeito inevitável, irremediável e
irrevogável – a realização de uma decisão; o ato é resultado final, uma consumada conclusão definitivo;
concentrada, correlacionada e resolve em um contexto único e singular e já final o sentido e o fato, o
universal e o individual, o real e o ideal, porque tudo entra na composição de sua motivação responsável;
o ato constitui o desabrochar da mera possibilidade na singularidade da escolha uma vez por todas.
(BAKHTIN, 2010,81)

O ato responsável são sempre escolhas. É uma decisão, um resultado final como afirma
Bakhtin. Um ato em detrimento de outros atos responsáveis. Por isso, apresentar as ocupações
produz uma análise das ações dos mais variados atores, dos estudantes, dos governantes, de pais e

NARRATIVAS
940

responsáveis, de professores, representantes do governo, representantes dos órgãos públicos como


o Ministério Público, Defensoria Pública, Conselho Tutelar.
Na perspectiva de compartilhar os motivos que levaram os estudantes às ocupações,
pensamos a importância de debater a ação como ato responsável que pretendiam dialogar e
possibilitar o pensamento críticono ímpeto de desconstruir e reconstruir nossas crenças na
participação dos processos democráticos que garantem nossos direitos.
Não pretendemos concluir. As disputas políticas não possuem conclusão, mas sim uma
continuidade infindável. As lutas não terminam, apenas se modificam ao longo dos tempos e à medida
que conquistamos direitos. Neste sentindo, esse texto torna-se um estopim para o diálogo, a
enunciação dos atos, para a reflexão das ações que pretendem romper com a escatologia política.
Abordar o movimento de ocupação escolar faz-se um ato dialógico que pretende emergir a política
como arena de disputa e não como espaço vazio de vozes. É preciso ter fé na moçada para que
possamos construir a manhã desejada. E vamos à luta.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
__________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
__________. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.
__________. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
JUNIOR, Luiz Gonzaga do Nascimento. E Vamos à Luta. De Volta ao Começa.EMI-Odeon,1980

NARRATIVAS
RESUMO
941
Este trabalho discute de maneira breve algumas
questões sobre envelhecimento a partir de dois

CONVERSA A DOIS: narrativas diálogos. Analisamos como o discurso sobre o idoso


perpassa e se apresenta no discurso do idoso com
base, fundamentalmente, nos trabalhos do Círculo
silenciadas e disputas de sentido no de Bakhtin e de seus estudiosos. Buscamos pensar
nas disputas de sentido sobre envelhecimento e
envelhecer como isso se articula com o jogo de
estabilidade/instabilidade de narrativas sobre
envelhecimento.

Palavras-Chave: Envelhecimento. Linguística.


Narrativas
MAZUCHELLI, Larissa Picinato 173

“As pessoas falam para serem ‘ouvidas’, às vezes para serem respeitadas
e também para exercer uma influência no ambiente em que realizam os atos
linguísticos. O poder da palavra é o poder de mobilizar a autoridade
acumulada pelo falante e concentrá-la num ato linguístico.”
(MAURIZIO GNERRE, 1988)

“[...] E isso é geral, porque quando lancei o Rútilo nada, que foi premiado e não tem nada a vercom a
série dita pornô, houve um boicote geral em São Paulo. Apenas no Rio saiu uma críticalinda. Acho que é
porque estou ficando velha. Mas me considero uma velha muito interessante.E continuo brilhante. Não
estou mais com meus 10 milhões de neurônios – eubebo bastante e jádevo ter perdido 1 milhão. Mas
ainda tenho 9 milhões. ”
(HILDA HILST em entrevista à revista Interview, 1994)

“TR: Essa é a menina que vem conversar com a senhora, dona ZR”
ZR: Mas só vem conversar? [...] Mas me diz, por que tão novinha vem perder
tempo com nós, um bando de velhos?”
(Diálogo entre a cuidadora TR e ZR, residente da casa para idosos, 2017)

INTRODUÇÃO

O
passar dos anos, marcado nos versos finais do poema Envelhecer, de Albert Camus,com o
paradoxo: “é bom vivê-los, mas não tê-los”, também presente na afirmação de Vitor Hugo: “itis
very nice being an aged individual; however, it is very bad being an old one”, revelam um
poucoda complexidade desse fenômeno, tantas vezes descrito como o “destino a que estamos
todosfadados”. As inúmeras mudanças biológicas, culturais e sociais pelas quais os indivíduos
passammarcam o que na verdade configura um processo – cujo início não é
marcadocronologicamente174 – e que altera e define os papéis dos sujeitos na sociedade, no trabalho,
nafamília e para si mesmo.

173 Doutoranda em Linguística no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: lpmazuchelli@gmail.com
174Tanto a Psicologia Life-Span (BALTES, LINDERBERGER, & STAUDINGER, 2006; BALTES, REESE, & LIPSITT, 1980), quanto a Sociologia (ELDER,
1975; SETTERSTEN & MAYER, 1997) já demonstraram que o significado da idade não pode ser reduzido à idade cronológica.

NARRATIVAS
942

A esse respeito, Staudinger (2015, p. 187) afirma175 que:

A idade cronológica é apenas um, e não o indicador mais preciso, do envelhecimento humano. Várias
perspectivas externas (isto é, objetivas) e internas (ou seja, subjetivas) sobre o envelhecimento
precisam ser consideradas para fazer justiça à multidimensionalidade do desenvolvimento humano e do
envelhecimento. As perspectivas externas são, por exemplo, as idades biológicas, sociais e psicológicas.
Uma idade cronológica de 75 anos, por exemplo, pode estar ligada a uma idade biológica e cognitiva
diferente. O desenvolvimento humano e o envelhecimento não são apenas um processo biológico, mas
são de natureza interativa. Como resultado, caracteriza-se por uma plasticidade impressionante que
implica a relatividade do significado da idade cronológica. As perspectivas externas estão intimamente
ligadas às perspectivas internas sobre o envelhecimento, tais como estereótipos sociais, as imagens
sobre a própria velhice e os metaestereótipos, ou seja, o que pensamos que os outros pensam sobre a
velhice. Estas perspectivas internas, embora "invisíveis", são muito poderosas e exercem efeitos sobre
as idades biológicas, sociais e psicológicas, e são afetadas por elas. (Tradução e grifo meus)

Essa interação entre fatores externos e internos tem sido, cada vez mais, objeto de estudo
das mais diversas áreas da ciência que se interessam por questões do envelhecimento.É grande o
interesse por melhor compreender como condições externas ao sujeito interferem (de maneira
positiva ou negativa)no funcionamento linguístico-cognitivo desses sujeitos, por exemplo. Um dos
caminhos para tal investigação é o estudo da relação linguagem/envelhecimento. Dessa forma, o
objetivo deste breve texto é refletir sobre como o discurso sobre o idoso perpassa (e se apresenta)no
discurso do idoso176. Para tanto, nos baseamos, fundamentalmente, nas obras do Círculo de Bakhtin e
de seus estudiosos para a análise de dois “diálogos da vida cotidiana”, por concordarmos com
Bakhtin, como aponta Miotello (2005, p. 171): “que esse tipo de comunicação tem vínculo direto tanto
com os processos de produção material da vida, no lugar da infra-estrutura, quanto com as esferas
das diversas ideologias especializadas e formalizadas, na super-estrutura, entendida como sistema de
referência que troca sentido com toda a sociedade”.

Linguagem, interação e envelhecimento


São muitos os momentos em que temos a possibilidade de interagirmos com sujeitos em
processo de envelhecimento: no banco, na fila do supermercado, no ambiente familiar ou de trabalho.
Nesses contextos, contúdo, não são raras as vezes em que esses sujeitos nos forçam a ouvi-los.
Instituem uma interação; chamam-nos para o diálogo, para um conversa. Essa característica parece

175 Eminglês, no original: “Chronological age is but one, and not the most accurate, indicator of human aging. Multiple outside (i.e., objective) and
inside (i.e., subjective) perspectives on aging need to be considered to do justice to the multidimensionality of human development and aging.
Outside perspectives are, for example, biological, social, and psychological ages. A chronological age of 75 years, for instance, may be linked
with a different biological as well as cognitive age. Human development and aging is not only a biological process but is interactive in nature. As
a result, it is characterized by impressive plasticity which entails the relativity of the meaning of chronological age. Outside perspectives are
closely linked with inside perspectives on aging such as societal stereotypes, images about one’s own old age and metastereotypes, that is,
what we think others might think about old age. These inside perspectives, even though “invisible,” are very powerful and exert effects on
biological, social, and psychological ages alike and are affected by them”.
176
É nesse quadro que desenvolvo a tese do doutorado, intitulada: “A linguagem nos processos de envelhecimento normal e patológico na
perspectiva da Neurolinguística”, no Insitituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, e que está ligada aos estudos do Grupo de Estudos da
Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias (GELEP/Plataforma Lattes-CNPq). FAPESP: 2015/15515-1 CEP Unicamp: 51794415.7.0000.5404

NARRATIVAS
943

ser tão frequente que passou a ser vista como uma das características do próprio processo de
envelhecimento. Não é raro ouvirmos, por exemplo, que “idosos falam o tempo todo” ou que “quando
começam a falar não param mais”. Também não é raro, por outro lado, depararmo-nos com idosos se
desculpando quando querem dizer algo, ou com idosos que se calam e até duvidam do interesse da
pessoa que conversa com eles, como podemos observar na epígrafe acima retirada de uma das
entrevistas que estamos realizando com idosos.
O quemuitos pesquisadores buscam determinar, contudo, é qual dessas duas imagens seria a
mais frequente ou a mais emblemática do processo de envelhecimento.Para Hamilton (2015), não é
essa a pergunta que deve ser feita, já que essa parcela da população caracteriza-se por uma
“extrema heterogeneidade”: “Pode-se esperar que pessoas idosas [...] difiram muito entre si em
termos de memória, cognição, atitudes em relação a si próprio e a outras pessoas, saúde física e
necessidades comunicativas” (HAMILTON, 2015, p. 570) 177 . Para a autora, devemos buscar
compreender a intricada relação entre envelhecimento e os diversos outros fatores que, de maneira
mais ou menos direta, interferem e influenciam como os sujeitos experienciam e vivem seu próprio
envelhecimento, o que significa investigar como aspectos biológicos, sociais, culturais e políticos
constróem as formas possíveis de envelhecer.
Não é o que observamos, contudo. Tanto em uma parcela da produção científica, quanto nas
esferas cotidianas, ainda constatamos o fato de a população idosa ser marginalizada e sofrer
preconceitos, não pelo número de indivíduos 178 , mas pelo “valor” que têm seus falantes para a
sociedade (Preti, 1991). Sua heterogeneidade é simplificada e invisibilizada, sua complexa subjetividade
é frequentemente resumida a uma única categoria, velho(a)/idoso(a). É o que notamos, por exemplo,
em um noticiário sobre uma mulher que limpa as ruas de Berlim das pichações xenofóbicas e pró-
nazistas. Sua atividade, que realiza há 30 anos, é focalizada a partir do fato de ser idosa; a partir de
sua idade cronológica - Diz a notícia: “a polícia acusou a ativista de71 anos anosde dano contra
propriedade privada”, “a idosa remove frequentemente adesivos nazistas de lugares públicos” 179.
Durante a entrevista que concede ao jornal alemão, em nenhum momento aparece em sua fala o fato
de ter ou não 71 anos. O que a move é uma resistência, ainda que pequena, alguns poderiam dizer,
contra forças nazistas na Alemanha. A admiração que temos temos não advém de seu ato de
(in)(re)sistência contra essas forças, mas do fato de fazer isso apesar de ser velha, “mesmo com
essa idade”, como se diz. A admiração aparece por não pensarmos que idosos(as) sejam
atorespolíticos, como outros segmentos da população.

177 No original, eminglês: “Elderly people can be expected […] to differ greatly from each other in terms of memory, cognition, attitudes toward
self and others, physical health, and communicative needs”.
178
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, existem 600 milhões de idosos em todo o mundo, número que pode duplicar nos próximos
40 anos. No Brasil, as projeções estatísticas do IBGE evidenciam que o país quadruplicará esse número até 2060. A população com mais de 65
anos deve passar de 14,9 milhões (7,4% do total), em 2013, para 58,4 milhões (26,7% do total), em 2060. Dados referentes às projeções feitas
pelo IBGE baseadas no Censo de 2010. Análise retirada de:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/08/130829_demografia_ibge_populacao_brasil_lgb.shtml
179
http://www.dw.com/pt-br/em-berlim-idosa-limpa-as-ruas-de-cartazes-e-adesivos-de-extrema-direita/av-39064586

NARRATIVAS
944

Figura 1. Irmela Mensah-Schramm retira adesivos nazista de poste em Berlim. Fonte: G1

Associação de um fenômeno, mesmo que recorrente, a uma categorização de um grupo de


pessoas180 (ou seja, considerar que “velhos sejam dessa ou daquela maneira”, subtraindo-os de sua
heterogeneidade, de sua singularidade e unicidade) são a base da criação de estereótipos que
sustentam não somente nossas interações comidosos, mas a possibilidade de interagirmos com eles.
O esteriótipo, assim, nada mais é que “uma imagem coletiva, simplificada e cristalizada de algo
(pessoa, grupo, assunto), que resulta – a partir de um processo que recorta ou categoriza o real – de
expectativas, hábitos de julgamento ou generalizações recorrentes na sociedade”, provocando uma
“visão esquemática e deturpada do real, gerando falsas evidências” (CARMELINO E POSSENTI, 2015, p.
419), ainda que possam contribuir com a identificação de grupos e indivíduos.
Essa “imagem incompleta que implica ou provém de uma qualificação ou julgamento”
(CARMELINO E POSSENTI, 2015, p. 419) perpassa as interações dos/com idosos, suas produções
linguísticas e sua metanarrativa, levando-os, muitas vezes,ase preservarem, por exemplo, uma vez
que sentem medo de “cometer erros que infrinjamquaisquer modelos aceitos pelos mais jovens” e a
adotarem “uma atitude deautodesvalorização, subestimando-se, o que constitui um dos estereótipos
mais marcantes da própria velhice” (PRETI, 1991, p. 28). Quando percebemos, em ações como as da
alemã, que idosos nem sempre se calam, ficamos surpresos, como em uma retomada de consciência
de quem se lembra que o outro é mais complexo do que suas rugas poderiam sugerir.
Essa disputa de sentidos na caracterização do processo de envelhecimento mostra “de um
lado, a ideologia oficial, como estrutura ou conteúdo, relativamente estável; de outro, a ideologia do
cotidiano, como acontecimento, relativamente instável; e ambas formando o contexto ideológico
completo e único, em relação recíproca” (MIOTELLO, 2005, p.169). Ela materializa-se (triplamente,
como afirma Bakhtin, na medida em que a materialização é físico-material, sócio-histórica e
valorativa, pois representa a realidade a partir de um determinado lugar), por exemplo, no jogo
“idoso” x “velho” em que muitos sujeitos não aceitam a palavra “idoso”por a verem carregada de

180Afinal, no limite, categorizamos diversos grupos, pessoas, situações.. A discussão, aqui, é como um processo, um fenômeno (e não outro),
passa a ser característica de um grupo. A resposta não está nem no interior (ou seja, não são as processos biológicos, como a coloração dos
cabelos, que determinam a caracterização de um grupo), nem no exterior (ou seja, não, são apenas processos sociais ou culturais), mas,
talvez, na interação deses elementos externos e internos, como sugere Staudinger (2015).

NARRATIVAS
945

outras palavras que tiram deles, de certa forma, a força agentiva-volutiva 181 , enquanto outros
preferem não serem nem identificados como idosos/velhos.
Além de materialiar-se nos signos, essa disputa também mobiliza a língua como lugar para a
constituição de uma barreiraà comunicação, ou um caminho a uma desvalorização e consequente
exclusão do sujeito do processo de interlocução (COUDRY, 1988), seja pelo conteúdo (com o uso de um
léxico não compartilhado, por exemplo) ou pela conceituação do falante enquanto
codificador/decodificador e não como sujeito que trabalha na/com a linguagem no processo de
enunciação.
A partir dessas questões, passemos, agora, à análise de dois diálogos com/sobre idosos.

CONVERSAS SILENCIADAS: a recusa da partilha do tempo

A primeira narrativa que trago para esta reflexão remete a um diálogoque ocorre durante
uma viagem de ônibus intermunicipal entre uma senhora idosa e uma jovem adulta.
Temos conhecimento desse encontro através da jovem quepublica um pequeno texto sobre o
acontecimento em sua página do Facebook. Nessanarrativa,a jovemafirma não ter escondido sua
antipatia e seu esforço sistemático em ignorar aquilo que sua companheira de viagem buscava dizer.
A idosa, obstinada ou distraída, sem aparentemente se mostrar abalada pelo desprezo de quem a
acompanhava na viagem, primeiro manifesta seu desejo de se alimentar para, em seguida, brincar
sobre a possibilidade da polícia encontrá-la com uma faca, que usaria para descascar sua fruta, nas
mãos. A narrativa é concluída com a jovem afirmando não saber se seria melhor morrer de faca ou de
tédio.
Aqui, o que nos chama atenção é a escolha de um dos participantes do evento-discurso de não
se colocarà disposição para o outro. A narrativa evoca, fundamentalmente, a escolha e o
posicionamento do sujeito que justifica querer silêncio e seu “momento de paz respeitados” -
justificativa dada nos comentários de sua publicação. A esse respeito, Bakhtin afirma: "cada réplica,
por mais breve e fragmentária que seja, possui um acabamento específico, que expressa a posição do
locutor, sendo possivel responder, sendo possível tomar, com relação à essa réplica, uma posição
responsiva" (BAKHTIN, 2000, p. 293).
A jovem não disponibiliza seu tempo-presente (tão caro!) à sua companheira de viagem, mas
utiliza um tempo-futuro para narrar o encontro em sua página na rede social. O que se negou,
portanto, fora o tempo ao outro, à escuta do outro no momento da interação. Não se reconhece que a
alteridade, que a presença do outro não

se encontra no interior do sujeito, do eu, que é o mesmo diálogo, relação eu-outro. Não existe nenhum
privilégio ontológico da consciência do eu, dado que a consciência é inseparável da linguagem, e a

181A discussão sobre as diferenças entre “velho(as)/idoso(as)” é vasta e merece ser investigada em outro momento. Eliane Brum escreveu,
em 2012, um artigo interessante sobre o assunto em que pede para ser chamada de “velha”: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-
brum/noticia/2012/02/me-chamem-de-velha.html

NARRATIVAS
946

linguagem é de outros antes que se converta em “própria”, antes que se identifique com a própria
consciência e expresse as próprias intenções, o próprio ponto de vista.

Para Bakhtin, o posicionamento com relação ao outro é fundamental e é explicado por


Bubnova (2013, p. 12) da seguinte maneira:

O núcleo da definição do ato ético é a responsabilidade, baseada nesse dever ser categórico que não
pode ser deduzida teoricamente. Na filosofia do ato ético, a responsabilidade não é um termo jurídico,
nem uma obrigação normativa e abstrata relacionada a algum código de conduta, mas uma espécie de
impulso que, mediante cada ato concreto, vincula o homem ao mundo, e, acima de tudo, em sua relação
com o outro. A responsabilidade é, por sua vez, ontológica e concreta: condiciona o ser-para-outro em
cada situação particular, dá medida ao eu-para-mim enquanto dependo do outro, e o outro de mim. Por
isso, “não há álibi para a existência” (Balktin, 1986, p.22); ser no mundo compromete; viver é uma
empreitada perigosa que não exime ninguém dos percalços inerentes à interação com o outro. (Grifo
meu)

Podemos observar, a partir desse encontro, aspectos de uma relação que vai sendo
constituída com o outro que é velho. Ainda que sua participação esteja resumida à presença em uma
narrativa (um gênero de segunda ordem), ela está presente, mas é uma presença outra, uma
presença-ausência, que reforça uma certa imagem sobre envelhecer: idoso é aquele que não é capaz
de entender nem a antipatia (nada forçada), nem o direito ao silêncio de sua companheira de viagem.
É aquele que insiste nas palavras, em falar, importunadamente; que age e que brinca sobre sua
circunstância. Essa pequena narrativa mostra como a narrativa do envelhecer, essa mais
relativamente estável, vai sendo (re)forçada. A respeito da constituição da narrativa, concordamos
com Miotello (1996, p. 132 apud CAZAROTI-PACHECO, 2012, p. 24) quando afirma que:

É nesse estar defronte, interlocutando, trocando visões de mundo, distribuindo graciosamente pingos de
sabedoria, misturando moral aos fatos corriqueiros, avalizando cotidianeidades com experiências
passadas, apontando escatologias a partir dos eventos imemoriáveis [...] que a narrativa vai sendo
composta, não pelo narrador apenas, mas por ele em relação de troca, dialética, com seu
interlocutor.(Grifo meu)

CONVERSA A DOIS: a partilha do tempo

A segunda narrativa acontece em outro tempo-espaço. Na Feira Literária Internacional de


Paraty de 2017. Diferentemente da narrativa anterior, esta ganhou repercusão nacional. Nela, uma
professora, tocada pela fala do ator Lázaro Ramos sobre a obra que discutia com outros convidados,
reconta sua história de vida, chamando atenção para como sobreviveu ao racismo durante sua
infância, em especial, e ao longo de toda a sua vida. Seu depoimento é longo, inesperado pela platéia,
aplaudido inúmeras vezes. Ela conta como suportou, com a ajuda da mãe, o racismo no interior e na
capital do Paraná. Pedindo desculpas por estar emocionada e por se estender, esclarece que
precisava falar porque esta era “a oportunidade da minha vida que os dois e a palestra de ontem me

NARRATIVAS
947

deu pra eu poder falar”182.Nessa “espécie de impulso que vincula um homem ao mundo e a outro
homem”, como coloca Bubnova (2013), cria-se um momento único, irrepetível de encontro. Ela se
desculpa pelo tanto que quer dizer, o que mostra a presença dessa narrativa mais estável que não
legitimiza, muitas vezes,o direito de fala dos idosos, mas isso não a impede de buscar atingir seu
intuito discursivo, de ser ouvida. Ela continua. De maneira semelhante, Hilda Hilst na entrevista
concedida à revista Interview em 1994, instabiliza ao brincar com essa narrativa mais estável da
incapacidade:“E contino brilhante. Não estou mais com meus 10 milhões de neurônios – eu bebo
bastante e jádevo ter perdido 1 milhão. Mas ainda tenho 9 milhões”.
Figura 2. Diva Guimarães em seu diálogo, na FLIP, com o ator Lázaro Ramos

Fonte: O Globo

Do outro lado do diálogo, oprincipal entrevistado da mesa, Lázaro Ramos, se emociona com a
história da professora, equanto a platéia, atenta, confere diferentes acabamentos a seu enunciado:
aplausos, acenos e gestos de apoio nos momentos em que sua voz estremece. Ao fim de sua fala,
Lázaro agradece sua coragem e completa: “a senhora falou uma coisa muito importante que eu quero
falar juntocom a senhora:a gente precisa fazer um pacto de investir na educação pública e de
qualidade”. O acabamento e a réplica de Lázaro à fala da professora é um reconhecimento das
palavras do outro: “quero falar junto”, ao contrário de “falar por você”, de “falar sem você”. Esses
movimentos, tanto da professora, como de Lázaro, ainda que possam parecer pequenos, para muitos,
instabilizamas narrativasmais estáveis que silenciam idosos ao não reconhecê-los como sujeitos que
trabalham com e na linguagem. Além disso, mostram o reconhecimento da importância do outro para
nossa constituição. Como afima Geraldi (2006, p. 135):

Assumindo que a relação com a singularidae é da natureza do processo constitutivo dos sujeitos, com a
precariedade própria da temporalidade que o específico do momento implica, a instabilidade dos
sujeitos – e da história – não é um problema a ser afastado, mas ao contrário é inspiração para
recompreender a vida, assumindo a irreversibilidade de seus processos. Como temos distintas histórias
de relações com os outros – cujos “excedentes de visão” (Bakhtin) buscamos em nossos processos de
constituição – vamos construindo nossas consciências com diferentes palavras que internalizamos e
que funcionam como contrapalavras na construção dos sentidos do que vivemos, vimos, ouvimos, lemos.

182A entrevista está disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=HjuH1NJMjTg

NARRATIVAS
948

São estas histórias que nos fazem únicos e “irrepetíveis”. Unicidade incerta, pois se compreendemos
com palavras que antes de serem nossas, foram e são também dos outros, nunca teremos certeza se
estamos falando ou se algo fala por nós. (Grifo meu)

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS: a construção de uma narrativa outra

Pudemos acompanhar duas breves narrativas que, de uma maneira ou de outra, apresentam
histórias com/sobre envelhecer. Há uma diferença fundamental entre os dois diálogos: o
reconhecimento da importância da relação com o outro. Ambas idosas são insistentes em seu direito
de poder falar, querem atingir seu intuito discursivo. A uma é dado o tempo à escuta, enquanto a outra
é dado o silêncio e a indiferença. Na segunda narrativa, todos saem modificados deste encontro. Como
afirma Geraldi (2008, p. 155): “[...] uma relação com o outro não se constrói sem sua participação,
sem sua presença, sem que ambos saiam desta relação modificados.” Nas palavras de Miotello (2005,
p. 172):

É nessa relação, portanto, que Bakhtin/Voloshinov defende que as menores, mais ínfimas e mais
efêmeras mudanças sociais repercutem imediatamente na língua; os sujeitos inter-agentes inscrevem
nas palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, na escla dos índices de valores, nos
comportamentos ético-sociais, as mudanças sociais. As palavras, nesse sentido, funcionam como
agente e memória social, pois uma mesma palavra figura em contextos diversamente orientados. (Grifo
meu).

A importância das relações sociais, desses encontros significativos com o outro, são
fundamentais para o entendimento do funcionamento da linguagem e sua relacão com o
envelhecimento. Isso é uma busca constante nos trabalhos da Neurolinguística de orientação
enunciativo-discursiva 183 que tem mostrado, por exemplo, o impacto dessas relações, na
(re)organização linguistico-cognitiva de indivíduos com AVC. Esses sujeitos,constituiem-se como
sujeitos de linguagem por ainda estarem imersos em situações dialógicas, em interações sociais, nas
quais a significação é construída conjuntamente, numaação solidária entre “parceiros da
comunicação” (BAKHTIN, 2000). Citamos o exemplo de caso de AJ que apesar detodos os episódios
neurológicos dos quais foi vítima, mostra a presença do sujeito na doença. Como afirma Canoas-
Andrade (2009, p. 121): “O fato de continuar sendo sujeito, apesar dos impactos e das lesões em sua
vida, nos mostra a força das interações sociais e dialógicas”.
O que acontece, inúmeras vezes, é que os sujeitos em processo de envehecimento não
encontram mais parceiros de comunicação. As palavras ditas por idosos parecem ser, em geral,

183 De maneira breve, a posição da Neurolinguística desenvolvida no IEL/UNICAMP coloca no centro da teoria e prática terapêuticas o sujeito
enquanto atuante com e sobre a linguagem, ao contrário de muitas teorias tradicionalmente aceitas nos campos da saúde. A linguagem não é
dada, fixa e pronta, mas um fenômeno sócio-histórico, uma atividade humana tomada como lugar de interação e interlocução de sujeitos,
indeterminada, incompleta e passível de (re) interpretação, em que tanto o sujeito quanto ela própria se constituem em um movimento
dinâmico (FRANCHI, 1977; COUDRY, 1988, GERALDI,1990). Para conhecer a importância dos conceitos Bakhtinianos para a área, sugerimos a
leitura de Novaes-Pinto (1999) e os demais trabalhados do GELEP.

NARRATIVAS
949

congeladas, como convertidas em documentos, esbarrando na impossibilidade de escuta porque o


outro não as vêem como palavras de um ser vivente. A criação de outras narrativas sobre o
envelhecimento passa, portanto, também pela compreensão de que para compreender a velhice é
necessário:

identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo
colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, competar seu horizonte com tudo o que se
descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante
o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento (BAKHTIN, 2000, p. 45).

Dessa maneira, acreditamos que seja possível uma vivência outra, como nos mostra,
belissimamente, Geraldi (2006, p. 134):

Por fim, mas não com menor força, estamos condenados a sermos cada um herói de sua própria vida:
valores morais como autenticidade, a sinceridade e a dequação consigo próprio exigem
comportamentos, ditam modos de ser e exigem que respondamos pelo lugar que ocupamos. Glorificar a
própria existência pela coerência consigo próprio, mesmo diante de tarefas impossíveis com que nos
confrontamos permanentemente. É necessário apontar para os não-equilíbrios sociais para explorar as
novas possibilidaes de nos darmos regulamentações outras, em que o paradoxo da liberdade individual
se completemente pela responsabilidade da co-existência. Experimentar novos caminhos, sem exigir que
já estejam prontos antes de serem percorridos é aceitar toda ação como uma aposta ética.

REFERÊNCIAS

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CARMELINO, A. C. & POSSENTI, S. O que dizem do Brasil as piadas? In: Linguagem em (Dis)curso, v. 15, n. 3, p. 415-430
CAZAROTTI-PACHECO, M. O discurso narrativo nas afasias. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
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NARRATIVAS
950

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STAUDINGER, U. M. Images of Aging: outside and inside perspectives. In: Annual Review of Gerontology and
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NARRATIVAS
RESUMO
951
O incentivo à leitura dos textos literários no
ambiente escolar revela uma predisposta acolhida,

O QUE HÁ NO FIM DO por parte dessa comunidade, à recorrente ideia de


que o ato de ler pode convidar ao ato de escrever.
Não obstante, determinados “movimentos de corpos

ARCO-ÍRIS: a identidade dos novos


consumidores de histórias” ainda parecem não
corresponder às expectativas das práticas usuais e
diversificadas (utilizadas para o convencimento de
futuros leitores) e se estabelecem em comunidades
leitores em comunidades que rediscutem as quase invisíveis a olho nu, constituindo-se em
identidade, supostamente, não institucionalizada,
fronteiras literárias não oficial, não escolar de leitores. Perceber esse
burburinho fantasmagórico instalado em “quartos
fechados” nas redes sociais, blogs, fanfictions ou
saletas de livrarias possibilita enxergar um pouco
mais de perto esses grupos os quais devotam horas
à conquista de páginas às centenas de sagas
MELO, Rosângela França de184 literárias como Jogos Vorazes, Os instrumentos
Mortais e Percy Jackson. Nesta discussão primeira,
tenta-se investigar possíveis identidades culturais,
tomando como base a linguagem e aspectos
comportamentais adquiridos a partir das
experiências de leituras das quais se apropriaram
esses sujeitos.O presente trabalho visa expor essa
INTRODUÇÃO discussão, à luz das teorias de Bakhtin (1998, 2003)
que considerou a linguagem como um constante

O
processo de interação mediado pelo diálogo. À
presente artigo, cujo objeto de estudo constitui-se da percepção do enunciado bakhtiniano, concreto,
construção identitária de leitores de literatura seriada marcado por vozes, reuniu-se o conceito, de Hall
(2005), das identidades modernas “descentradas,
(sagas), considerando, inicialmente, a condição de serem ou fragmentadas”, “constituídas historicamente,
membros de comunidades as quais se comportam como grupo de não biologicamente”. Tais orientações teórico-
metodológicas possibilitam entender as
leitura, ou agrupamento recreativo para admiradores, tem como comunidades de leitores como espaços construídos,
foco os constituintes característicos dessa identidade leitora a qual conforme desejos/saberes/experiências de seus
participantes.
imprime-se na pele das referidas comunidades contemporâneas,
outorgando-lhes moderna roupagem, que vão além das Palavras-Chave: Comunidade de Leitores. Sagas.
Literatura Canônica. Identidade. Linguagem.
particularidades estabelecidas em décadas anteriores.
Vale salientar, por exemplo, que as três últimas décadas do
Palavras-Chave: Metodologia. Bakhtin. Vygotsky
Século XX conheceram comportadas comunidades que se revelavam
em clubes do livro, ou pequenos grupos escolares idealizadores de fanzines, enquanto o novo milênio
acompanhou o processo evolutivo que viu nascer verdadeiras corporações em torno do culto aos
novos escritores e suas rentáveis obras. A comparação poderia parecer injusta, se levássemos em
conta somente o conjunto tecnológico que sustenta as redes sociais, por meio das quais os grupos
contemporâneos de leitura organizam seus encontros. Entretanto, o que aqui se ressalta é a postura
desses novos sujeitos leitores que, não contentes em, exclusivamente, partilhar suas impressões a
respeito das obras, arvoram seus sentimentos em encontros coordenados por equipes motivadoras

Mestra em Linguística Aplicada. Prof. Nas redes estadual e municipal de educação, em Natal, no Rio Grande do Norte. E-mail:
184

rosadefranca19973@gmail.com
Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

NARRATIVAS
952

de tarefas que misturam as tradicionais sabatinas aos casamentos não oficiais, embora significativos
para os membros, ainda que seja por um dia.
Conhecer traços que possam revelar o desenho, ainda que por pouco tempo emoldurado, do
que pode ser chamado de IDENTIDADE é fundamental para iniciar um processo de entendimento das
ações determinadas por essa, ou das reações ao que lhes é apresentado ao redor. Esse
entendimento ajuda a desconstruir falsas máximas que expõem uma geração inteira como analfabetos
funcionais literários. Esse mesmo entendimento pode vir a assegurar que novos paradigmas sirvam à
inclusão de não tão novas assim, embora, revestidas do frescor de criativas ideias de interação, que
são as práticas de leitura coletiva em grupos, associações e comunidades de leitores. É a evidência
dos devoradores de livros: crias letradas e definidoras das novas tendências, tanto quanto peças na
competente engrenagem editorial; personas incógnitas nos corredores escolares, tanto quanto
membros ativos nas comunidades que as acolhem, para ilustrar um pouco mais a relevância dessa
busca científica proposta..
Os corredores escolares e suas portas! Consigo vê-las cumprindo funções distintas, em
relação aos que as percebem neste mundo. (Porque as portas podem ser, ironicamente,
imperceptíveis.) Quando aceitas como parte de uma estrutura segura, aparentemente não importa
para onde apontem; fechadas, não oferecem risco. Embora existam ‘os’ que passem por essas portas
e não vejam, imediatamente, os dois lados, prefiro pensar que ‘os’ sensíveis ao duplo espaço,
antagônico, contrastante, bifurcado espaço são os incomodados, bem como os que incomodam. De
qualquer forma, ambos são agentes.
Ainda assim, não perceber para onde apontam as passagens, tantas vezes implica em não
assinar por suas ações e, na escola, especialmente por ser o lugar dos sujeitos que serão abordados
neste ensaio, não considerar entradas e saídas pode resvalar em consequências que ampliem o
estado no qual os alunos fiquem calmos, sentados, enfileirados, cumpridores escrupulosamente do
que lhes é ordenado, “de modo que depois não pensem mesmo que têm de pôr em prática as suas
ideias”, já nos “assustava” Kant, ainda no Século XVIII.E assim, nossas escolas instituem passagens
funcionais as quais, querem sempre nos fazer crer, inevitáveis. Quando encaixadas em endurecidas
paredes: fechadas, sinalizam possibilidades, protegem os de fora; abertas, são convites ao ato.

TRANSCRIÇÃO FEBRIL

Jano era o porteiro do céu... com duas cabeças, pois todas as portas se voltam para dois lados.
(Thomas Bulfinch)185

[...] se Natal precisa de incentivo à cultura eu não teria conselho melhor que conhecer a comunidade
pois somos uma família... estamos de portas abertas para todos, e todas as ideias são bem-vindas [...]
(Kassio Lins, membro da Comunidade de Leitores na Escola Estadual Professor Francisco Ivo Cavalcanti)

185
Bulfinch, 2001, p. 16.

NARRATIVAS
953

Na Antiguidade, em Roma, os templos dedicados ao Deus Jano mantinham suas portas


principais abertas, durante as guerras; em tempos mínimos de paz, fechadas 186 . As portas do
sanctuarium, na Idade Média, obrigatoriamente eram abertas aos criminosos e devedores, se
solicitassem guarida, e esses não seriam aprisionados. Resguardados os suplicantes, a passagem
santa era lacrada mais uma vez. É neste espaço de laboração desta escrita que descerramos nova
passagem para discorrermos a respeito do ‘olhar norteador alheio’ 187 ─ tão próximo das ideias
desenvolvidas neste trabalho de pesquisa ─, o qual se apresenta: hora, como teoria que embasa a
procura dos contornos dos “desenhos de uma identidade”; hora, como fundamento que se mostra
como claridade sobre caminhos de difícil percepção, os quais, aos poucos, definem-se, redefinem-se...
Que sirva de convite, então, a abertura deste capítulo, ao distinto leitor deste dialógico tatear,
descobridor do outro.
Sigamos!
Longe de se compor como santuário ou templo, ainda assim, esta dissertação acolhe quem se
permite ultrapassar seus umbrais. Segue, comportando-se como arena discursiva, por meio da qual,
vozes múltiplas funcionam como verdadeiros portais para que os contornos de seus “donos-falantes”
sejam lidos, interpretados e descritos. Percebam! São portas que dão acesso a outras portas. E, não
diferentes, todos os princípios teóricos também funcionam, sobre os caminhos há pouco citados,
definindo-se, redefinindo-se... Reescrevendo-se: inicialmente, à luz das teorias de Mikhail Bakhtin,que
considerou a linguagem como “um constante processo de interação mediado pelo diálogo, concepção
de linguagem que tem como princípio constitutivo o dialogismo, modo de funcionamento real dessa”
(Brait, 2014, p.167), com a qual sedimentamos a ideia de que o discurso construído nesta escrita “está
envolvido e penetrado por opiniões comuns, pontos de vista, avaliações alheias, acentos” (Bakhtin,
2015, p.48), tornando-se ‘enunciado vivo’...

[...] que surgiu de modo consciente num determinado momento histórico em um meio social
determinado, não pode deixar de tocar milhares de linhas dialógicas vivas envoltas pela consciência
socioideológica no entorno de um dado objeto da enunciação, não pode deixar de ser participante ativo
do diálogo social. [...] (Bakhtin, 2015, p. 49)

Nesse sentido, entendemos que, ao tratarmos da identidade dos membros de comunidades de


leitores, tivemos acesso à ‘consciência socioideológica’ norteadora das ‘linhas ideológicas vivas ’
desses grupos. Essa consciência regente, ajuda a compor padrões definidores do comportamento
desses leitores, desde a escolha da literatura, passando por orientação do vestuário, da linguagem, ou
mesmo da coloração dos cabelos; redefinem objetivos, paradigmas e deixam evidente uma visão de

186
Bulfinch, 2001, p. 16.
187
Teoria utilizada como princípio básico desta pesquisa, a qual dialoga com as necessidades discursivo-científicas surgentes, podendo
ressignificá-las tanto quanto alimentá-las em sua origem, com o intuito de firmá-las. Jamais a fim de devorá-las; antes, sim, correr ao
encontro das enunciações desse objeto. Esse, que “ é o ponto de concentração de vozes heterodiscursivas, entre as quais deve ecoar também
sua própria voz [...]” (Bakhtin, 2015, p. 51)

NARRATIVAS
954

mundo. E o que parecia ser, algumas vezes, de difícil compreensão para nosso olhar pesquisador,
tornou-se mais legível, quando nos valemos da já referida concepção de linguagem bakhtiniana, a qual
nos ajudou a entender esses grupos de leitores como ‘objetos da enunciação’, ‘participantes ativos do
diálogo social’, do qual não podem se desprender por serem elementos constitutivos desse diálogo
tanto quanto causas determinantes dos elementos enunciativos. Como objetos enunciativos, agregam
a multiplicidade de gêneros, tendências comportamentais, ideologias... Então, podem ser ditas, essas
comunidades, como “residências” (de certa forma) confortáveis, onde seus “moradores” afinam os
discursos em torno do que lhes é comum, igual, que lhes identifica. Além disso, por evidenciarem o
que os agrega (unifica como grupo), conseguimos enxergar real e significativa produção ideológico-
social, a qual reflete cor e traço próprios, basicamente, porque “[...] o objeto é o ponto de
concentração de vozes heterodiscursivas, entre as quais deve ecoar também sua própria voz [...]”
(Bakhtin, 2015, p. 51).

E ASSIM O É!

No contexto no qual se encontram, embora não sejam “titulares” (pais de um conceito), e


observados elementos como idade, escolaridade, hábitos de leitura, experiências relacionadas a esses
hábitos188, ousamos dizer que esses conjuntos humanos comportam-se como esse ‘objeto’189 crescido
e cheio de formas bem definidas, outras em redefinição constante e concentram vozes
heterodiscursivas, as quais ressoam infinitamente, cada vez que são experimentadas em
ressignificações cíclicas, circulares, senhoras de conceitos e significados que abastecem os diálogos,
até que as próximas partilhas dialógicas aconteçam. Evidenciando o que Volochínov nomeou por
‘psicologia do corpo social’, cuja materialização se dá na forma de interação verbal.
A psicologia do corpo social não se situa em nenhum lugar “interior” (na “alma” dos indivíduos
em situação de comunicação); ela é, pelo contrário, inteiramente exteriorizada: na palavra, no gesto,
no ato. Nada há nela de inexprimível, de interiorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo
está no material, principalmente no material verbal. (Volochínov, 2006, p. 41)
A psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dos atos de fala de toda
espécie, e é neste elemento que se acham submersas todas as formas e aspectos da criação
ideológica ininterrupta: as conversas de corredor, as trocas de opinião no teatro e no concerto, nas
diferentes reuniões sociais, as trocas puramente fortuitas, o modo de reação verbal face às
realidades da vida e aos acontecimentos do dia-a-dia, o discurso interior e a consciência
autorreferente, a regulamentação social, etc. (Volochínov, 2006, p. 41)

188
O conjunto midiático construído em torno do “culto” às sagas corresponde a uma profusão de gêneros os quais passam a ser “consumidos”
pelos fãs de forma sistemática. Portanto e, muitas vezes, o leitor das histórias do bruxo Harry Potter, por exemplo, também é expectador do
filme, jogador nas arenas digitais e virtuais, colecionador, avaliador, membro de conselhos e comunidades espalhadas pelo país, os quais
mobilizam esses “protagonistas” em encontros periódicos, estruturados em programas os quais garantem essas múltiplas experiências.
189
Bakhtin, 2015, p. 51.

NARRATIVAS
955

A exteriorização da psicologia do corpo social licencia nosso olhar para as práticas de


convivência em comunidade. É quando o movimento de ideias, por meio das expressões, ganha força e,
o que pareceria um simples cumprimento, significa bem mais. A exemplo: um beijo de saudação pode
conquistar a atenção de um desavisado visitante, durante os encontros em determina comunidades,
ou reuniões juvenis em torno do “culto” às Sagas. Mais especificamente, porque, uma ideia comum
nesses contextos é a de que, objetivamente: rapazes e moças podem trocar beijos, independente do
sexo do parceiro. Na verdade, prevalecem a necessidade e a permissão do outro. Declarações
calorosas, vinculadas a juras de amor eterno, “cerimônias de casamento” foram, por nosso olhar
pesquisador, vez ou outra, atestadas tão fictícias quanto as histórias lidas por esses jovens, embora,
para eles, estivessem impregnadas dos valores e verdades deste tempo, ainda que carregadas das
marcas de outros espaços e tempos tão distantes quanto a História pudesse contar.
Esses grupos devoradores das novas coleções literárias, as mesmas tratadas por Canclini
(2006) quando discorre a respeito do não agrupamento das culturas em grupo fixo...
A agonia das coleções é o sintoma mais claro de como se desvanecem as classificações que
distinguiam o culto do popular e ambos do massivo [...] portanto desaparece a possibilidade de ser
culto conhecendo o repertório das “grandes obras”, ou ser popular porque se domina o sentido dos
objetos em mensagens produzidos por uma comunidade mais ou menos fechada (uma etnia, um
bairro, uma classe). [...] (p. 304)

comunicam ideologicamente ao mundo, por meio dessa psicologia do corpo social e respondem à
necessidade de reorganização dos que os compõem, diante de um macro sistema social que não os
legitima 190 , a ponto de, o que leem, não ser considerado literatura, quando comparado ao cânon
referenciado em livros didáticos e listas da já instituída “leitura obrigatória” escolar. O que nos permite
voltar ao conceito de ‘enunciado vivo’, o qual assenta a ideia de que, cada comunidade, ou grupo, em
especial, acende as luzes do contexto histórico que os viu nascer, sem, no entanto, deixar de tocar
situações históricas outras, micro lâmpadas em ‘linhas dialógicas vivas envoltas pela consciência
socioideológica’191, convidando-nos a perceber que “[...] É disto que ele surge, desse diálogo, como sua
continuidade, como uma réplica e não como se com ele relacionasse à parte.” (Bakhtin, 2015, p. 49).

Assim, comportam-se como nascedouros quando se trata da ressignificação da palavra


“comunidade”, por exemplo. Nessa, revigoram novos aspectos da ‘criação ideológica ininterrupta’;
acrescem-se em número e chegam a reunir centenas de jovens em algumas edições de determinados
encontros. Transbordam em energia e força a escolha por essas novas coleções como leitura, a ponto
de travarem lutas com espadas de madeira, protegidas com espuma suficiente, para também
garantirem a proteção dos “cavaleiros”. “Comunidade” passa, então, a ter outros nomes e, cada um
deles, representativo do referencial literário, cinematográfico, quadrinístico... capaz de se fazer notar

190
Como macro sistemas, referimo-nos à reunião dos microssistemas que os cercam: familiar, escorar, profissional... Principalmente na
escola, o que os participantes das comunidades de leitores elegem como literatura predileta não corresponde ao cânon preestabelecido. A
distância entre a literatura listada como essencial e a eleita como predileta deixa claro o quanto não se reconhece a importância dada a esta
por esses membros.
191
Bakhtin, 2015, p. 49.

NARRATIVAS
956

por aqueles que o identificam em práticas contínuas nessas “terras-paralelas”. Que fique claro: a
ressignificação do agrupamento como comunidade jamais fará de seus membros, adâmicos seres,
portadores de suas originais ideologias 192 . Antes sim, melhor que sejam percebidos como
reorganizadores de ideias prontas a responder a outras ideias... Portas que abrem outras portas!

SEGUIMOS TRANSCREVENDO FEBRILMENTE...

Retomemos, caríssimo leitor, a lembrança da concepção dialógica já citada para ressaltar que
prossegue o olhar norteador, alheio, teórico, que subsidia interpretações nesta pesquisa.Descerrada
a passagem, pensemos em ‘porta’ como palavra. E, no domínio da ‘ideologia do cotidiano’ dos que
buscavam aqueles templos religiosos, a referida palavra anunciava o posicionamento comum tanto
quanto denunciava convenientes intenções: assim, ‘portas abertas’ servia para lembrá-los da
reconfortante ideia de dependência da divindade que servia à “proteção” dos que eram acolhidos, ou
mesmo da incômoda lembrança da causa do que os havia levado a solicitar abrigo e tantas outras
significações, a expressão, viesse a comportar. Encontramos no Círculo 193 afirmações as quais
reforçam a ideia da importância ideológica da palavra.

[...] A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que
ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica nova e acabada. A palavra é capaz
de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais. [...] (Volochínov,
2006, p. 40)

De certo, se imaginarmos esses espaços físico-sociais onde os humanos, jovens leitores


reúnem-se, como perceptíveis cômodos de um aconchegante lar, principalmente, representativo
deste tempo; continuarmos imaginando os outros lugares dessa residência como quartos similares,
também representativos de tempos outros, podemos “enxergar” o trafegar ininterrupto da memória
dos significados de palavras que palavras as quais abriram e fecharam passagens entre esses
espaços, renascendo plurais tanto quanto singulares. É assim que ‘cultura’ e ‘família’ (para elencar
somente duas) reescrevem-se de maneira a abranger as noções vivenciadas e aprendidas pelo autor
da citação expressa no início deste capítulo. No mínimo, para ele, cultura dá conta de literaturas não
canônicas e a noção de família, decididamente, não se constitui somente por laços consanguíneos:
tantas e tantas vezes, passa pelos grupos familiares descritos nos livros.
A experiência do aluno, membro da Comunidade de Leitores194, revela portas constantemente
abertas. O que, de certa forma, não inibe a utilidade dessas? Para que serviriam, então? Ao menos,

192
[...] Só o Adão mítico, que chegou com sua palavra primeira ao mundo virginal ainda não precondicionado, o Adão solitário conseguiu evitar
efetivamente até o fim essa orientação dialógica mútua coma palavra do outro no objeto.[...] (Bakhtin, 2015, p. 51)
193
Círculo de intelectuais e de artistas russos do qual participavam, entre outros, M. M. Bakhtin, V. N. Volochínov, P. N. Medviédiev. Ficou
conhecido como “Cículo de Bakhtin” e pensou ideias no campo das artes e das ciências humanas.
194
Passamos a nomear assim os grupos que socializam em torno, ou a partir de referenciais literários com ramificações em outras artes, tais
como o cinema e os quadrinhos. Esses mantêm práticas de conjunto por meio das quais cultuam seus reverenciados objetos literários. Nesta

NARRATIVAS
957

naquele templo romano, prestavam-se aos dois lados; abri-las, ou fechá-las revelavam o
compromisso com uma “segura” função social. O que significaria, então, um estado tão singularmente
imutável? Dizemos isso, porque o falante, é ciente do quanto de todo um ‘sistema ideológico’, como
nos apresenta Bakhtin, é lido no ajuntamento da palavra ‘portas’ à palavra ‘abertas’. Ele sabe o que
pretende e torna signo (essa expressão) carregado de sua necessidade de dizer que, naquele
ambiente, naquela escola, ao lado dos seus pares, quem se sente excluído (por suas díspares ideias), é
acolhido na comunidade, como em um santuário.
Certamente, nesta pesquisa, essa “consciência” passou a nos interessar, por se tratar de um
elemento gerador do diálogo que se firma entre esses membros e reforça contornos identitários.
Cabe ressaltar a compreensão da palavra “diálogo”, “[...] num sentido amplo, isto é, não apenas como
a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de
qualquer tipo que seja.”. (Volochínov, 2006, p. 125). Dessa forma, as ‘portas abertas’ ganham corpo em
situações que vão, desde um encontro para a leitura do texto escolhido pela maioria, até a encenação
de um clássico drama; na predileção por arte sequencial195, ou na descoberta de sua familiaridade
com o cinema; nas conversas sobre animes e mangás, ou no reconhecimento da total falta de
informação a respeito. Bakhtin observa que esses movimentos, essas atividades alimentam a
‘atividade mentaldo nós’. Essa atividade, segundo o autor, podemos enxergar como um grau de
consciência o qual apresenta-se “[...] diretamente proporcional à firmeza e à estabilidade da
orientação social.” 196 Compreende-se, então, que um grupo e sua organização coletiva contribuem
para a distinção e complexidade do mundo interior dos indivíduos constituintes dessa coletividade.
Percebe-se, em outras palavras, que essa mesma ‘atividade mental do nós’, amparada em contínuos
diálogos, gera uma ‘ideologia do cotidiano’, para a qual a palavra não manifesta um conceito único: não
pode ser dita, experimentada, escrita como se não refratasse em interlocutores ressoares quase
ininterruptos tanto quanto esses o sejam. Antes, sim, caminha, convicta de seus passos firmes, entre
membros de uma mesma comunidade, cuja passagem, já aberta, redesenha-a.

[...] A ideologia do cotidiano constitui o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada
num sistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados de
consciência. [...]

Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião


cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma
forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia. [...] (Volochínov, 2006, p.121)

pesquisa, representados pelas comunidades CampHalfBlood (CHB) e Comunidade de Leitores da Escola Estadual Professor Francisco Ivo
Cavalcanti (CLFIC).
195
‘Arte sequencial’, como são nomeadas as histórias em quadros, por Paulo Ramos, estudioso desse gênero, que discorre em sua obra A
Leitura dos Quadrinhos, entre outras temáticas referentes, a respeito da diferença entre literatura e quadrinhos: “Quadrinhos são
quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos. Há
muitos pontos comuns com a literatura, evidentemente. Assim como há também com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens.” (Ramos,
2010, p. 17)
196
Volochínov, 2006, p. 117.

NARRATIVAS
958

Eis que o significado de ‘portas abertas’ passa a remeter “a algo situado fora de si mesmo”197,
reeditado tantas vezes quanto esse aluno tenha experimentado a desqualificação, por parte de outros,
os quais avaliavam seu apreço também por uma literatura não prestigiada em listas do cânon oficial,
e traduziam em máximas semelhantes a: “Não sabe o que é literatura de verdade”, ou “É um exemplo
do empobrecimento cultural no cotidiano”. Trata-se, portanto, para esse falante, nesse lugar, de
amparar-se na abertura irrestrita “[...] a todas as ideias [...]” 198 , de forma a falar em nome de
numerosos grupos, os quais elegeram as novas sagas, os quadrinhos, as fanpages, entre outros
gêneros e suportes, como oficiais dentro de seu “seguro” universo comum: as Comunidades de
Leitores. E como tem peso esse novo signo! E como parece garantido, confiável, dono de uma lealdade
possivelmente indiscutível, ao menos para os que, dela, fazem parte.
Firmamo-nos na busca pela descrição da identidade dos falantes constituintes desses grupos,
a partir do estudo desses signos verbais, inicialmente. Compreender as comunidades, a partir das
ideologias que as cercam tanto quanto estão centradas em seu miolo, é encontrar-se com esses
signos e reconhecê-los.
Mas esse espaço semiótico e esse papel contínuo da comunicação social como condicionante
não aparecem em nenhum lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem. A palavra é o
fenômeno ideológico por natureza... A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. A
realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. Não comporta nada que não esteja
ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro de
relação socal. (Volochínov, 2006, p. 34)
Nesse sentido, o ‘espaço semiótico’ fala e sua projeção por meio da linguagem torna a visão
de si evidente. Nada mais ideológico do que assegurar que o sentido de palavras e expressões
ganhem o tom e a cor do grupo que, por meio dessas, se expressa e cujos “movimentos tribais”
chegam a outros com os quais se identificam. Nesse sentido, “viver em comunidade” passa a ter o
sabor das coisas que lhes são comuns e com as quais se identificam.

[...] Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra.
Ele pode distorcer essa realidade, ser fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo
signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto,
justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente
correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico
possui um valor semântico. (Volochínov, 2006, p.30)

Dessa forma, “portas abertas” repercutem, tais quais ondas que se ampliam, mapeando os
que estão em volta e falando àqueles “que desconhecem a verdadeira literatura e empobrecem

197
Volochínov, 2006, p.29.
198
[...] estamos de portas abertas para todos, e todas as ideias são bem-vindas [...] (Kassio Lins, membro da Comunidade de Leitores na
Escola Estadual Professor Francisco Ivo Cavalcanti)

NARRATIVAS
959

culturalmente”, leitura após leitura. Esses, por sua vez, respondem, a partir da ideologia que lhes é
comum, no que Bakhtin nomeia por ‘ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida’, despertadas
em nós por “verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis”199. Em outros termos, “tudo o que é ideológico é um signo. Sem signos não existe
ideologia”200.

PLANTE ESTAS SEMENTES. VOCÊ SABERÁ ONDE...


Rosângela França de Melo

“O pântano sussurra dentro de mim. Ele sabe que estou aqui. Acordando... Ele adentra minha mente
como uma traça; percebe minha similitude e se alegra... Estamos juntos num novo mundo. Não tenho
palavras para descrever... O verde, diz ele. Ele chama de verde. Sinto-o lendo os rastros que outras
vidas deixaram em minhas espirais celulares. E, no reflexo do espelho verde, vejo-o a examinar antigas
memórias... emprestadas e há muito abandonadas...”
(Orquídea Negra - Neil Gaiman, Dave McKean)

Do universo em grafite e aquarela o qual constitui os quadrinhos criados por Gaiman e


McKean 201 , “ouve-se” a voz da Orquídea Negra, personagem híbrida, humano-orquidácea que, ao
brotar, percebe que não se reconhece, ou mesmo sabe o que é, ou mesmo consegue definir parte de
sua identidade. Ao encontrar ‘o verde’, na figura da personagem Pântano, começa a inquietante
jornada pelo caminho de seu próprio mapeamento identitário. O que seria um percurso naturalmente
humano, por meio do qual recolhem-se peças de encaixe, na tentativa de se perceber mais completo,
passa a ser o jogo da flor humanoide: uma flor-mulher entre fragilíssimas memórias humanadas e o
novo mundo, berçário verde onde ela renascera.
Essa história fabular, publicada em 1988, apresenta singular origem para a heroína que fora
criada por Sheldon Mayer 202 e Tony DeZuniga, em 1973, com força sobre-humana e que teria
pouquíssimo destaque até então. Quase esquecida, ela retorna moldada em “estranha beleza”, como
escreve Gaiman, o qual ainda ressalta que, ao lermos a história, embarcamos numa “jornada do
concreto urbano a uma clareira no coração da selva ameaçada”.
O fato de ser super-heroína, ter seu corpo alvejado e consumido por chamas, para, então,
renascer planta, ainda que ligada às ramificações de sua outra vida, faz, desse reconto, matéria de
teor literário, estruturada na colorida arte sequencial (quadrinhos), a partir da qual pode-se versar
muito bem a respeito de conceitos de identidade, ou da busca incessante por reconhecê-la, como
atestamos em Orquídea Negra. Ligar os pontos que surgiam em lembranças da humana que fora aos
que germinavam no ambiente onde se encontrava, uma floresta pantanosa, define o argumento dessa

199
Volochínov, 2006, p.96.
200
Volochínov, 2006, p.29.
201
Autores da GraphicMovel, Orquídea Negra, originalmente, minissérie lançada em três partes, pela DC.
202
Criadores da personagem de quadrinhos, Orquídea Negra que teve algumas histórias publicadas na revista Adventure Comics, da DC, mas
sempre foi coadjuvante; participou, sem muita expressão, da Crise nas Infinitas Terras.

NARRATIVAS
960

narrativa. Na HQ de sucesso, publicada no final da década de 80, percorre-se “uma jornada em


busca de respostas” (Gaiman, 1988).
Os pontos atados na história de Gaiman e McKean podem muito bem ser concebidos como um
rizoma203. Esse conceito filosófico, que tem como base a Biologia, permite-nos ler a sucessão de
elementos que perpassam linguagem, sociedade e cultura, entre outros, como os constituintes do
universo que alimentam a identidade da personagem principal. No livro “Mil Platôs”, Gilles Deleuze e
Felix Guattari204 expõem esse conceito a partir de seis princípios. Interessa-nos, especialmente, os de
conexão e heterogeneidade205, os quais explicam que, no desenho da conectividade do rizoma, somente
há espaço para se enxergar o todo como uma grande aliança. Dessa forma, pensar a identidade da
Orquídea como pontos a serem desvendados e atados para, então, ler o que se apresenta ajuda-nos a
compreender que não se trata de uma flor, ou de uma mulher, mas de novo organismo vivo, pronto
para ocupar seu espaço e construir história.
E, a partir dessa jornada da Orquídea de sabor humano, que fora Susan e que é planta,
podemos abrir picadas que nos levem às buscas identitárias dos leitores dessa e de outras inúmeras
narrativas de quadrinhos, ou de textos literários, romances seriados sobre os quais elementos
fabulares, da fantasia e das mitologias, entre tantos outros múltiplos, são erigidos. Esses novos
leitores, igual e comumente à personagem da narrativa fantástica em questão, tentam reunir pistas
que os auto definam. Perceberem-se é, antes de tudo, certificarem-se de que fizeram as conexões
entre os pontos. Dessa forma, reconhecem-se identitariamente múltiplos, “assumindo identidades
diferentes em diferentes momentos; identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”
(Hall, 2005).
Assumir essas identidades concorre para que, muitas vezes, os indivíduos se agrupem, como
fazem os membros de uma comunidade de Leitores denominada CampHalfBlood. Uma vez por mês,
jovens cuja identificação comum passa pela leitura da saga Pearce Jackson reúnem-se em um parque
da cidade, para redescobrirem-se “donos” de conhecimentos semelhantes tanto quanto advindos de
“sistemas de significação e representação cultural multiplicados”, diante dos quais “são confrontados
por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis” (Hall, 2005). Observá-
los e tentar o registro das características que compõem esses novos “corpos devoradores de textos
literários” são a demanda de nossa pesquisa no campo da Linguística Aplicada. Tantos e tamanhos
pontos a serem relacionados, nascidos nas diversas manifestações sociais por meio da linguagem e
demais elementos culturais que pudessem deixar vestígios nesses indivíduos cabem na perspectiva de
além-fronteiras da LA.

203
Na Biologia, estrutura encontrada em determinadas plantas, cujos brotos podem ramificar-se e transformar-se, ainda, em bulbo ou
tubérculo, funcionando, também, como raiz, talo ou ramo. Ou seja, diferente da árvore, não apresenta um ponto central, de origem; inexistência
de uma área que sirva de pivô.
204
Filósofos franceses, criadores do conceito de rizoma, desenvolvido em seis princípios, entre os quais o da conexão e heterogeneidade,
observado neste ensaio.
205
“Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.”

NARRATIVAS
961

Não há como investir em descobertas junto aos membros desse grupo de leitores, dotando-
nos, por exemplo, de impedimentos conceituais. Tratar a literatura acolhida, nessa comunidade, como
‘de massa’, ou ‘de consumo’, distanciada do elenco canônico, eleito ‘indispensável’, não nos
proporcionaria a experiência transgressora do alimento novo. Além disso, valemo-nos de teorias
outras que perpassam a filosofia, a exemplo desse ultrapassar fronteiriço, para visualizar com mais
clareza tanto os construtos quanto os desenhos identitários dos membros da referida comunidade.
É, também, como a estrutura de um rizoma, que a linguagem assegura a aglomeração desses
indivíduos do CHB206, por não se distanciar dessa capacidade de ligar pontos, de se transformar: em
brotos sociais, históricos, comportamentais os mais diversos. E, linguisticamente, ela se projeta,
lançando seus falantes para além das fronteiras, redimensionando os espaços por eles ocupados.
Então, suas múltiplas identidades, as que se adaptam, adequam aos desenhos surgidos da ligação dos
pontos veem-se em práticas discursivas e “tais práticas envolvem identidades em contínua
construção, sempre se fazendo e se refazendo” (Moita Lopes).
Por sua diversidade, a comunidade agrega “tribos” que cultuam, por exemplo, o cinema, os
mangás, a literatura dita ‘de massa’ e a literatura eleita como clássica, e é a linguagem que os
representa, bem como suas vontades, seus interesses... A cada encontro, uma sucessão de atividades
que os põe à prova quanto às habilidades e conhecimentos a respeito dos saberes comuns aos
membros. Jogos, danças, simulação de arenas, declarações amorosas, partilhas literárias, práticas
que revelam as origens e construtos os quais constituíram desde a experiência inicial como
“consumidores” do mundo que os cerca, passando pelas apropriações vocabulares, formação como
leitores. Há de se entender que tantas composições definem esses indivíduos híbridos, “um termo que
tem sido utilizado para caracterizar as culturas cada vez mais mistas” (Hall, 2006); leitores,
membros de comunidade, em “um processo de tradução cultural que não se completa” (Hall, 2006),
que negocia com a “diferença do outro” (Bhabha, 1997, in Hall, 2006) e os torna visíveis numa
sociedade plural que não costuma aceitar-se tão diversa.

TENDAS MÁGICAS DOS MENINOS LIVRES

Acampamento Meio-Sangue / CHB RN (CampHalf-Blood)

Olhe, eu não queria ser um meio-sangue.


Se você está lendo isto porque acha que pode ser um, meu conselho é o seguinte: feche este livro agora
mesmo. Acredite em qualquer mentira que sua mãe ou seu pai lhe contou sobre seu nascimento, e tente
levar uma vida normal. (Riordan, 2008)207

O CHB primeiramente é sinônimo de Família para mim, nos encontros conversamos, brincávamos,
discutíamos e muitas outras coisas. Além disso, me ensino a respeitas as outras opções sexuais, e de

206
CampHalfBlood, comunidade de leitores da saga Pearce Jackson; reúnem-se em Natal, no Rio Grande do Norte.
207
Percy Jackson e os Olimpianos, Livro 1, O Ladrão de Raios, obra de Rick Riordan.

NARRATIVAS
962

que todos somos iguais de baixo da pele, somos de osso e carne independente da nossa escolha. (Atyson
Jaime De Sousa Martins, membro do CampHalf-blood - CHB RN)

Figura 10 - (À esquerda) Símbolo oficial do “Acampamento”; (À direita) Integrantes do CHB 208

Sermos “de osso e carne, independente da nossa escolha” é muito mais do que habitar um
corpo, muito mais do que representar um protótipo de humano ser. O que essa carne que cobre a
ossatura, esse osso que rompe a carne desejam é um nome de significado único, por sua identidade
uma; um nome que se permita a coletividade de uma moradia cheia de outros, tão iguais quanto
irreconhecíveis a olho nu. Penso que me faço entender, amigo leitor, quando o que espero é mais do
que isso de Vossa Senhoria. Tu te lembras das lentes? Decerto, estás munido dessas. Elas não
compõem o único artefato necessário para que continues junto a mim (junto a nós), nesta viagem, que,
agora chega a uma rua de duas casas. Quero seu espírito caseiro e as experiências vivenciadas entre
seus amigos, aqueles que receberam o título de família; espero também os seus laços familiares,
reconhecidos pelo calor da amizade que lhe devota. Entretanto, paciente companheiro, não me venha
sem as faltas, suas e de todos eles. Pois são como matéria-prima para a compreensão de nossas
virtudes, também das suas, também as deles.

02 de maio de 2015 – Cortes Romanas

O cenário ainda era o Parque das Dunas, local que, até o presente momento do encerramento
desta escritura, ainda abriga o CHB; cujas reuniões eram, anteriormente, mensais, agora, semestrais.
E o convite era acompanhado pelo pôster de cores intensas (ver figuras 16 e 17). O panteão romano
das histórias de Rick Riordan conquistavam, página à página, seus fidelíssimos leitores e, em maio de
2015, todas as cortes foram convocadas, para mais um encontro, no qual um dos testes seria a luta

208
Formação registrada no encontro da Casa de Hades, em 2013. Cabe ressaltar que algumas fotos estão propositalmente desfocadas, para
garantir o respeito à opção de parte dos membros em não terem suas respectivas imagens divulgadas, senão dessa forma.

NARRATIVAS
963

com espadas. Acontece que os chalés ainda resistiam. Nascia um encontro híbrido em essência, com
personas, no acampamento, defendendo o nobre nome de Zeus, ou de Atena, enquanto se ouviam os
mesmos participantes gritarem pela primeira corte.
A organização em grupos e o “afastamento territorial”, ainda que todos sob o mesmo teto,
determinavam o tom do encontro (ver figura 18). Pintava-se de agressividade, embora controlada, as
faces e os maneirismos quase quixotescos dos heróis, naquela tarde de domingo. As disputadas
tarefas compunham-se desde um ‘quiz’ a respeito da saga, ou dos deuses, até uma luta com espadas.
Mobilizar os participantes era função dos conselheiros, que agora podiam ser noaeados por
Centuriões. Entretanto, o estímulo maior crescia, mesmo, junto à ideia de competição entre os grupos.
Era comum ver casas representativas de deuses adversários, segundo a mitologia, como Zeus
e Hares, travarem embates homéricos. Sendo assim, no encontro das cortes, a rivalidade prosseguiu.
Parecia até que a Casa de Ares festejava aquele domingo; não se pode negar que um combate entre
espadachins lhe é até peculiar. Não ajudou muito a divisão dos chalés que orientara Atenas e Ares,
numa mesma corte, junto à Afrodite que deve ter se perguntado onde fora “estacionar seu carro
dourado, puxado por cisnes”.
O CHB voltaria a se reunir muito tempo depois. No ano de 2016, somente os chalés
mantiveram os encontros, os quais são restritos aos participantes. No início do ano de 2017, depois
de muito discutirem a respeito natimeline do grupo, decidiram voltar. E foi com muito prazer que
registrei o retorno desses apreciadores da literatura, jovens que estudam, trabalham, namoram,
alimentam-se, dormem, como outros quaisquer. Singular, o fato de se agruparem para tratar de
literatura, à maneira deles, evidente! Afinal, uma caça às bandeiras, uma luta com espadas, jogos
amorosos, pedidos de casamento a cada encontro, jogos, sorteios, danças, teatro, bombons e a fila
para receber as contas do dia, decididamente exige a graça e o vigor da juventude.
Durante dois anos, viria a conhecer a estrutura do que parte dos quinze entrevistados desse
grupo de leitores, selecionados para comporem o corpo de sujeitos desta pesquisa disseram ser: “um
lar”, sintetizado nas palavras de Atyson Martins, um dos administradores do grupo (que eram em
torno de sete), “O CHB primeiramente e sinônimo de Família”. Convido-o, corajoso leitor a conhecer
esses quinze entrevistados, membros do CampHalf-blood RN, que me ajudaram a entender como se
processa essa construção identitária sem fronteiras.

Labor de jardineiro em dia de chuva

Como você enxerga a leitura no Brasil de hoje? Acredita que os brasileiros estão lendo mais, como se
tem afirmado?
Não vejo isso. Talvez eu esteja equivocada, espero estar. O que vejo é um empobrecimento intelectual no
cotidiano, na compreensão dos fenômenos humanos, na dificuldade de se exprimir. Há uma carência
léxica muito grande. Mas sinto também, por outro lado, que há uma curiosidade intensa. E que talvez nós
estejamos numa fase de formação que deveríamos ter tido muito antes... A educação no Brasil é de
extraordinária precariedade, portanto eu fico impressionada quando dizem que aumentou o índice de
leitura.

NARRATIVAS
964

(Nélida Piñon em entrevista ao escritor Luis Eduardo Matta)209

Seres inter-relacionados, é do que a Comunidade de Leitores é formada. Ser uma pessoa que adora ler
e gosta de debater sobre o que lê torna-se difícil em meio a uma sociedade na qual a minoria tem a
leitura como lazer; sentir-se deslocada é o mínimo que pode acontecer. Encontrar um grupo de pessoas
onde você se encaixa é a saída, mas isso não quer dizer que é fácil... Mas na nossa escola encontramos
algo assim "de mão beijada”: recebemos o convite para participar ao invés de correr atrás como
desesperados por água no deserto.
(Mayra, 17 anos, membro da Comunidade de Leitores
na Escola Estadual Professor Francisco Ivo Cavalcanti)

Neste espaço, de “solo pedroso”, por meio do qual discorreremos a respeito de como nossa
experiência se deu (a partir de quais indagações, quais regras, quais procedimentos), nasceram
flores tão intensamente coloridas, que toda adversidade encontrada por nosso fazer científico, vez ou
outra, era obrigada a encarar a beleza da descoberta. Antes, porém, permitam-nos contar uma breve
história, na voz de Chartier, como ele mesmo observa “[...] para terminar, um outro conto: a novela de
Pirandello intitulada Mundo de Papel[...]”

[...] Nela, um leitor, o professor Balicci, fica cego de tanto ler. Ele fica desesperado porque a
voz interior dos livros, que passava por sua visão se calou. Imagina então um primeiro subterfúgio,
pedir a uma leitora para lhe ler em voz alta, mas o procedimento revela-se um desastre. A moça lê à
sua maneira e Balicci não ouve mais a voz de seus livros. Ele houve uma voz, que choca sua audição e
sua memória. Ele pede então a sua leitora que fique quieta e leia em seu lugar. El deve ler, para ela
mesma, em silêncio, a fim de dar nova vida a este mundo que, desabitado, corre o risco de se tornar
inerte. Lendo em lugar de Balicci, a leitora evitará que seus livro morram, abandonados, ignorados. Mas
o drama se precipita quando um dia, lendo uma descrição da catedral e do cemitério de Trondheim, na
Noruega, a leitora exclama: Eu estive lá e não é de modo algum como está no livro!”. O professor Balicci,
então, tomado de terrível cólera, despede a leitora gritando: “Pouco me importa que você tenha estado
lá, do modo como está escrito, é assim que deve ser” [...] (Chartier, 2009 [1998], pp. 154 e 155)

O universo do professor Balicci estava contido em páginas. No conto, ainda se diz que ele
continuara folheando os livros, eternamente cego, na esperança de retomar a memória do que
conhecera naquelas linhas. Quando pensamos em Mayra, membro da comunidade de leitores210, que
encontrou, em sua escola, “algo assim ‘de mão beijada’”, “água no deserto”, que a sacia, abrindo
espaço para os leitores e suas predileções (independente de, essas, listarem o cânon, ou a literatura
seriada da vez), poderíamos até encorpar o grupo dos tantos que, tal qual a escritora Nélida Piñon,
impressionam-se por constatarem que “A educação no Brasil é de extraordinária precariedade”, mas,
ainda assim, “aumentou o índice de leitura”. Poderíamos, não soubéssemos, principalmente depois do
tatear dialógico dessa pesquisa, que muito poderia ser dito a respeito do que é considerado leitura e

209
http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=751)
210
Passamos a nomear assim os grupos que socializam em torno, ou a partir de referenciais literários com ramificações em outras artes, tais
como o cinema e os quadrinhos. Esses mantêm práticas de conjunto por meio das quais cultuam seus reverenciados objetos literários. Nesta
pesquisa, representados pelas comunidades CampHalfBlood (CHB) e Comunidade de Leitores da Escola Estadual Professor Francisco Ivo
Cavalcanti (CLFIC).

NARRATIVAS
965

do quanto, ler quadrinhos por exemplo, não é considerado da mesma forma. Nesses primeiros passos,
perguntamo-nos quanto do professor Balicci, cujo “sofrimento” primeiro se dá pela cegueira e
prossegue na “voz, que choca sua audição e sua memória”, está presente nessas incrédulas
afirmações a respeito do hábito de ler dos brasileiros? E quanto dessas frustrações tornar-se-iam
preocupações mais sóbrias, caso essas questões relacionadas ao ato de ler fossem ao menos
discutidas, enxergando de verdade os leitores, ainda que fôssemos encontrá-los em guetos
canhestros, como são vistos movimentos, comunidades, grupos e sociedades que ajuntam jovens em
torno de determinada literatura juvenil.
Dessa forma, e para esmiuçar a respeito de como se deu esta pesquisa, precisamos deixar
clara a ideia de que não acreditamos em uma pátria juvenil não leitora. Por isso, não nos incomoda a
“A moça que lê à sua maneira...”. O modo que está escrito pode até ser o que se vê, mas não o que se
lê. Não temos controle sobre a enunciação alheia. Além do mais, “O ser, refletido no signo, não apenas
nele se reflete, mas também se refrata”211 e, nessa refração, constata-se o confronto de interesses. A
tentativa de cercear a liberdade que há em refletir ou refratar é insana. Ainda Volochínov atenta para
uma questão, especialmente axiológica:
[...] Em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a
ideologia cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-se da seiva nova secretada. [...]
Rompido esse vínculo, ela cessa de existir, pois deixa de ser apreendida como ideologicamente
significante. (Volochínov, 2006, p. 121)

Só assim a obra sobrevive nesta época. Portanto, entendemos que não importa ao professor
Balicci que a moça tenha estado lá, bem como sabemos da reação legítima da leitora diante do que
leu. É assim também que os censores sociais comportam-se junto aos jovens das comunidades de
leitores. Não os veem, não os legitimam, ou suas preferências literárias, talvez por isso alguns se
refugiem em grupos específicos, nos quais sabem que não serão tratados como não leitores.
Retomemos, caríssimo leitor, ao caminho citado há pouco, onde descobertas são como flores,
para abrir picadas que nos levem às buscas identitárias dos leitores de textos literários ou
narrativas em quadrinhos, dos romances seriados sobre os quais elementos fabulares, da fantasia e
das mitologias, entre tantas outras ramas, ou mesmo os clássicos romances de nossa história
literária, são saboreados. Esses novos leitores, igual e comumente aos que fazem esta pesquisa,
tentam reunir pistas que os auto definam. Perceberem-se é, antes de tudo, certificarem-se de que
fizeram as conexões entre os pontos. Dessa forma, reconhecem-se múltiplos, “assumindo identidades
diferentes em diferentes momentos; identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”
(Hall, 2005).
Assumir essas identidades concorre para que, muitas vezes, os indivíduos se agrupem, como
fazem os membros de uma comunidade de Leitores denominada CampHalfBlood (CHB), ou
“Acampamento Meio-sangue”, como foi traduzido para o português o nome do local para onde são

211
Volochínov, 2006, p. 45.

NARRATIVAS
966

enviados os semideuses nascidos em nosso tempo, segundo nos conta a Saga ‘Pearce Jackson’. Uma
vez por mês, jovens, cuja identificação comum passa pela leitura dessa saga, reúnem-se em um
parque da cidade, para redescobrirem-se “donos” de conhecimentos semelhantes tanto quanto
advindos de “sistemas de significação e representação cultural multiplicados”, diante dos quais “são
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis” (Hall,
2005). Observá-los e tentar o registro das características que compõem esses novos “corpos
devoradores de textos literários” são a demanda de nossa pesquisa no campo da Linguística Aplicada.
“Identidades performadas em vez de pré-formadas”212 , que não evocam uma identidade anterior, que
se constituem em atos repetidos e não fogem ao enquadramento regulador, ainda que seja do próprio
grupo, numa “[...]série contínua de performances sociais e culturais[...]” (Butler (1990: 25), in Moita
Lopes, p. 80).Tantos e tamanhos pontos a serem relacionados, nascidos nas diversas manifestações
sociais por meio da linguagem e demais elementos culturais que pudessem deixar vestígios nesses
indivíduos cabem na perspectiva de além-fronteiras da LA.

[...] Uma LA que explode a relação entre teoria e prática, porque é inadequado construir teorias sem
considerar as vozes daqueles que vivem as práticas sociais que queremos estudar; mesmo porque no
mundo de contingências e de mudanças velozes em que vivemos a prática está adiante da teoria [...]
(MOITA LOPES, 2006, p. 31)

Não há como investir em descobertas junto aos membros desse grupo de leitores, dotando-
nos, por exemplo, de impedimentos conceituais. Tratar a literatura acolhida, nessa comunidade, como
‘de massa’, ou ‘de consumo’, distanciada do elenco canônico, eleito ‘indispensável’, não nos
proporcionaria a experiência transgressora do alimento novo. Além disso, valemo-nos de teorias
outras que perpassam a filosofia, a exemplo desse ultrapassar fronteiriço, para visualizar com mais
clareza tanto os construtos quanto os desenhos identitários dos membros da referida comunidade.
Dessa forma, tateamos os aspectos, relativos aos entrevistados, que compõem: sua rotina, como
leitor e membro de uma comunidade (contemporânea) de leitores. Prosseguimos, buscando o aparato
social, observado como determinante na construção dessa identidade apreciadora da arte literária e,
mais especificamente, do gosto pela literatura seriada. E nos questionamos, entre outros importantes
pontos, se, utilizando-se dos espaços geográficos e virtuais que acolhem as comunidades de leitores
de sagas, na contemporaneidade, pode-se atribuir a esses grupos contribuição significativa para o
letramento literário dos seus membros.
E, já que mencionamos as descobertas como flores coloridas intensamente, em solo
pedregoso, também, como a estrutura de um rizoma, a linguagem assegura a aglomeração desses
indivíduos do CHB213, por não se distanciar dessa capacidade de ligar pontos, de se transformar: em
brotos sociais, históricos, comportamentais os mais diversos. E, linguisticamente, ela se projeta,
lançando seus falantes para além das fronteiras, redimensionando os espaços por eles ocupados.

212
Pennycook(2004b), in Moita Lopes, 2006, p. 80.
213
CampHalfBlood, comunidade de leitores da saga Pearce Jackson; reúnem-se em Natal, no Rio Grande do Norte.

NARRATIVAS
967

Então, suas múltiplas identidades, as que se adaptam, adequam aos desenhos surgidos da ligação dos
pontos veem-se em práticas discursivas e “tais práticas envolvem identidades em contínua
construção, sempre se fazendo e se refazendo” (Moita Lopes).
Por sua diversidade, a comunidade agrega “tribos” que cultuam, por exemplo, o cinema, os
mangás, a literatura dita ‘de massa’ e a literatura eleita como clássica, e é a linguagem que os
representa, bem como suas vontades, seus interesses... A cada encontro, uma sucessão de atividades
que põem à prova habilidades e conhecimentos a respeito dos saberes comuns aos membros. Jogos,
danças, simulação de arenas, declarações amorosas, partilhas literárias, práticas que revelam as
origens e construtos os quais constituíram desde a experiência inicial como “consumidores” do
mundo que os cerca, passando pelas apropriações vocabulares, formação como leitores. Há de se
entender que tantas composições definem esses indivíduos híbridos, “um termo que tem sido utilizado
para caracterizar as culturas cada vez mais mistas” (Hall, 2006); leitores, membros de comunidade,
em “um processo de tradução cultural que não se completa” (Hall, 2006), que negocia com a
“diferença do outro” (Bhabha, 1997, in Hall, 2006) e os torna visíveis numa sociedade plural que não
costuma aceitar-se tão diversa.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do Romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. 1. ed. São
Paulo: Editora 34, 2015.
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia: (a idade da fábula): histórias de Deuses e heróis. Tradução de David
Jardim Júnior. 13. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Heloísa
PezzaCintrão, Ana Regina Lessa. 4. ed. e 1. reimp. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. (Ensaios
Latino-americanos, 1).
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo;
Editora UNESP, 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes
Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende et al. Belo
Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. (Lingua[gem]; 19).
RIORDAN, Rick. O ladrão de raios. Tradução de Ricardo Gouveia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008. (Percy Jackson e os
olimpianos; v. 1). Disponível em: <https://clubdelivros.files.wordpress.com/2013/09/percy-jackson-e-os-olimpianos_-
o-ladrao-de-raios-vol-1-rick-riordan.pdf>. Acesso em: 5 jul. 2017.
VOLÓCHINOV, Valentin N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da
linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

NARRATIVAS
RESUMO
968

UMA CONSTRUÇÃO Palavras-Chave:

ESTÉTICA COMO ACESSO


A UM EXCEDENTE DE
INTERPRETAÇÃO DA
REALIDADE

MENDES, Gabriela Araujo214

INTRODUÇÃO

C
ada um tem um jeito de contar aquilo que vivencia. O ato de revisitar o significado que uma
lembrança teve para uma pessoa já é por si só uma nova construção reflexiva de conhecimento.
Reflexiva, pois, ao narrar uma história, atribui-se a ela novos sentidos que me fazem refletir
sobre essas experiências já vividas. É através do contato com o outro que vejo o que sou. Mas como
pode, então, a narrativa me proporcionar isso da mesma maneira? É que o texto também pode ser
considerado esse outro.
O relato que se segue, por sua vez, vai elaborar diferentes efeitos em cada leitor. Para mim,
ele é a conexão entre as memórias de um tempo passado com a minha visão e consciência de um
tempo presente. O próprio ato de escrevê-lo é a conversão entre dois mundos: um mundo prático que
inevitavelmente resulta em ações e um mundo teórico que é construído a partir desse cotidiano e que
pode se relacionar com ele das mais diversas formas possíveis. É uma forma de se expressar que
contribui para a transformação da minha vivência em outra. A história me mostra outros aspectos de
quem eu sou, vide seu caráter metamórfico, e amplia o horizonte de significados daquilo vivido.
Quando me encontrei na situação de lidar com alunas empolgadas e em polvorosa quanto a
minha idade, passei por momentos de insegurança, dúvidas e nervosismo. Porém, ao escrever a minha

214Estudante de Graduação na Universidade de São Paulo - USP. Bacharelado em Letras; Habilitação em Português e Espanhol. Professora de
Dança.

NARRATIVAS
969

narrativa, fui capaz de enxergar a beleza e a poesia em tudo que havia ocorrido; algo que não seria
possível anteriormente.
Assim, a arte está ligada à vida cotidiana e ela se mostra muito mais eficaz e responsável
quando estabelece uma ligação efetiva com a vivência de cada um. É responsabilidade do artista criar
um mundo imaginário que interaja com o mundo real. Nossas ações e experiências não são decisivas,
pois viver está completamente ligado ao ato de criar. A construção estética é, portanto, essencial
para o acesso a um excedente de interpretação da realidade.

O DIA EM QUE VIREI UM PEPINO

Quando eu tinha quinze anos comecei a dar aulas de sapateado em um projeto na minha
cidade. O projeto era bem interessante, com oferecimento de aulas de canto, teatro e dança, e suas
turmas eram grandes, cada uma com quase trinta alunos. Ter de enfrentar uma turma desse número
já não está entre as tarefas mais fáceis. Agora acrescente plaquinhas de metais nos pés de cada uma
das crianças com energia inexplicavelmente infinita. Esse era o desafio que o meu eu adolescente
precisava encarar.
Assim, em uma tarde de aula, procurando descobrir mais sobre a professora, uma das alunas
me perguntou quantos anos eu tinha. Acontece que, por ter algumas alunas que eram mais velhas que
eu, foi pedido que eu não revelasse a minha idade para elas. Isso desencadeou uma curiosidade em
massa sobre o assunto: quanto mais eu escondia a resposta e me desviava da situação, mais elas
queriam saber.
Então é claro que as mais bizarras adivinhações começaram a surgir e a circunstância se
tornou uma grande brincadeira durante as aulas e mesmo fora delas. As pequenas me perguntavam
de tudo um pouco. Se eu já tinha feito faculdade, se fazia tempo que eu dava aula… Só para conseguir
algum tipo de pista.
Em um desses momentos de descontração, as menores começaram a chutar quantos anos eu
poderia ter: "17, 21(…) 28, 32!". Parecia um bingo. Foi aí que uma delas chegou bem perto e me disse
com muita convicção: "Ah, prof., se você tiver com 32 anos, você tá muito bem conservada!". Dei
muita risada, agradeci pelo comentário e pensei na fofura de pessoa para qual estava ensinando. Por
um lado, fiquei aliviada de saber que pelo menos alguém pensava dessa maneira, mas não pude deixar
de imaginar: "E eu lá sou pepino pra estar em conserva!".

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato responsável. Organizado por Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos
Gêneros do Discurso - GEGE/UFSCar. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João
Editores, [1920-1924] 2010.
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.

NARRATIVAS
RESUMO
970

O presente texto se propõe a tecer considerações

PENSANDO AS CRIANÇAS para contribuir no debate que se coloca em torno


da questão ética no trabalho de pesquisa que tem
as crianças e seus contextos na centralidade de

NOS CONTEXTOS DA
suas investigações. A questão fundamental, neste
estudo, é pensar o lugar da escuta à criança e à
infância, da produção de sentidos e das vozes
desses pequenos sujeitos como o lugar da autoria e

PESQUISA: o ato ético infantil como da autorização. A proposta é produzir uma


narrativa que possibilite tecer considerações sobre
o pensar as crianças e a infância no contexto da
possibilidade para a palavra das crianças pesquisa como um ato ético e responsável. Como
interlocutores teóricos neste estudo, estaremos em

em presença diálogo com Mikhail Bakhtin (1993, 2015), Ribes


Pereira (2012, 2016), entre outros com quem
dialoguei no caminho da pesquisa.

MENEZES, Flávia Maria de215 Palavras-Chave: Pesquisa com/sobre crianças,


R.esponsividade. Ética.
O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa
trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta
de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais
respondem pela esterilidade da arte.
M. Bakhtin, 2015, p. XXXIV

INTRODUÇÃO

A
proposta para o debate aqui colocado é tratar da ética quando os contextos de produção de
pesquisas envolvem as crianças em seus enredos. Assim, optei por começar o diálogo trazendo
as problematizações e indagações que as crianças e a infância nos proporcionam. Para
alimentar o debate aqui proposto, trago em diálogo meu estudo de mestrado (Menezes, 2015), que
investigou as relações de alteridade, exotopia e responsividade entre pesquisadores/as e crianças,
presentes ou não na produção de conhecimento elaborada na e pela relação universidade e infância,
nas atividades de ensino, pesquisa e extensão, que se desenvolveram nas creches universitárias
paulistanas, em especial a Creche Carochinha, no período de 1989 – 2012.
Compartilho com Ribes Pereira (2015) a premissa de que “parece urgente consolidar
politicamente o ponto de vista que o campo interdisciplinar dos estudos da infância ocupa no
horizonte da ciência” (p. 52), uma vez que os diversos pontos de vista que se tecem nas muitas
perspectivas de pensamento sobre crianças e infância nos contextos contemporâneos, produzidos em
redes interdisciplinares de conhecimento, permitem expandir os horizontes desses pensamentos,
expandindo assim, suas possibilidades de responder eticamente às questões, desvios e indagações
que nos inquietam no percurso da pesquisa.

215
Texto produzido como conclusão dos estudos realizados na disciplina Infância e Juventude II, ministrada pelas professoras Doutoras Maria
Luiza Oswald e Miriam Leite, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro PROPED/UERJ, no
semestre 2016-1.

NARRATIVAS
971

Portanto, não se trata de um texto que apresente soluções para enfrentar o desafio que o
posicionamento ético coloca para pesquisadores/as da infância nas trajetórias de suas pesquisas, até
porque desafios nos colocam muito mais problematizações do que possibilidades de se estabelecer
soluções para uma questão que precisa se colocar “sempre aberta e incompleta em que o
conhecimento da realidade se acompanha das transformações em que todos estão aí envolvidos”,
como bem colocou Castro ao debater as implicações que se colocam para pesquisadores/as da
infância e da juventude (Castro, 2008, p. 21).
Em diálogo com Ribes Pereira (2012), tomo a atividade de pesquisa como um acontecimento,
um sentido traduzido em Bakhtin (2015) que expressa esta atividade na pulsação das experiências que
a constituem, ou seja, os encontros, os sujeitos, os pensamentos são prenhes uma vez que exalam o
sentido das experiências concretas da vida desses sujeitos: pesquisadores/as, pesquisados/as e
tantos outros interlocutores/as. Nesta perspectiva, ao encontrar a criança pequena encontramos
com suas experiências, com suas culturas e não só adentramos em seus territórios como também, na
e pela pesquisa, criamos um lugar de escuta, de produção de sentidos, de vozes.
Ainda que as crianças não tenham sido minhas interlocutoras diretas nas atividades de
pesquisa que trilhei até o momento, compartilho com Ribes Pereira que “toda a pesquisa dedicada aos
estudos da infância, de forma mais ou menos imediata, em última instância, estabelece um diálogo
com crianças concretas” (2012, p.3). Assim sendo, minha questão fundamental neste estudo é pensar
este lugar da escuta à criança e à infância, da produção de sentidos e das vozes desses pequenos
sujeitos como o lugar da autoria e da autorização.
Ao relacionarmos o lugar da escuta ao lugar da autoria e da autorização nos lançamos em
uma tarefa onde o risco é inevitável, pois é no mesmo lugar em que as vozes, as experiências e os
sentidos das crianças circulam, e que devemos captá-los de forma sensível e responsiva, que
ancoramos nossas vozes, sentidos, pensamentos, devaneios e experiências de pesquisador/a. Os
lugares de autoria, tanto das crianças quanto do/a pesquisador/a precisam coexistir, sem que um se
sobreponha ao outro; sem que um anule o outro, ainda que o lugar da tradução seja, na escrita,
exclusivo do/a pesquisador/a, embora compartilhado com seus pares, com os/as pensadores/as
com os quais se atravessa em leituras e ideias, tanto ele/ela quanto seus sujeitos (as crianças, seus
textos e contextos) precisam viver intensamente os acontecimentos éticos e estéticos da pesquisa.
Portanto, a autoria e a autorização encontram-se nas experiências da pesquisa no ato ético
do/a pesquisador/a, com o qual precisa responsabilizar-se. Além disso, e não menos relevante
temperam o ato ético as traduções, impressões, emoções, perspectivas críticas, estilos de discurso,
olhares atravessados em outros pensamentos, sem os quais o/a pesquisador/a não poderia assinar
sua escrita. Neste sentido, é no ato ético do/a pesquisador/a onde circularão vozes, experiências,
encontros e desencontros; onde os sujeitos se fazem presentes nos textos da pesquisa; se tornam
autores desta.

Um ato deve adquirir um plano unitário e singular para ser capaz de refletir-se em ambas as direções –
em seu sentido e significado e em seu ser; ele deve adquirir a unidade de dupla responsabilidade – tanto

NARRATIVAS
972

pelo seu conteúdo (responsabilidade especial) como pelo seu Ser (responsabilidade moral) (Bakhtin,
1993, p. 20)

Bakhtin (1993) nos presenteia com a analogia do Jano Bifronte, a antiga divindade romana que
olha simultaneamente o passado e o futuro, ao dizer que “um ato de nossa atividade, de nossa real
experiência” vislumbra, ao mesmo tempo, a cultura, na sua constituição histórica, e “a unicidade
irrepetível da vida realmente vivida e experimentada” (p. 20). As faces do Jano vislumbram em
direções opostas, portanto não se fundem em um único plano de visão; entretanto, na analogia do
pensador ambos os horizontes ganham unicidade no evento único do Ser, no seu ato/pensamento
(idem).
Neste sentido, o ato ético responsivo não vai produzir um tratado ético, uma norma, mas um
tecido ético pelo qual as tramas da pesquisa podem ganhar legitimidade.

QUANDO O ATO ÉTICO DO/A PESQUISADOR/A ENCONTRA O ATO ÉTICO INFANTIL: tecendo
considerações

Ao tomarmos as crianças e a infância nesta perspectiva, como autores partícipes em nossas


atividades de pesquisa, devemos tomar como princípio do ato responsivo a forma peculiar como as
crianças vivenciam o ato ético, ou melhor dizendo, o que é infantil no ato ético, entendendo que a
infância inaugura a linguagem e, neste sentido, inaugura o pensamento em ato, portanto, inaugura o
ato ético.
Olarieta (2015) propõe, ao discutir a relação e a presença das crianças nas pesquisas, a
“pesquisa infantil” como aquela que se permite modificar qualitativamente seu caráter com a infância.
Pesquisamos sobre, com, entre, para crianças e infância, e podemos até mesmo pesquisar contra as
crianças e a infância quando nossos atos se traduzem em narrativas construídas pela palavra em
ausência, falando pelo outro; ou falando de um outro universal, genérico, uniformizado, deixando de
fora dos textos da pesquisa e, portanto, do conhecimento produzido, a criança concreta com a qual
nos encontramos ao longo de todas as experiências (p. 28-29). Olarieta sugere que pesquisar com
crianças é a forma mais amável de nos colocarmos, como pesquisadores/a, mais próximos/as das
crianças e não tomá-las como objeto em nossos atos de pesquisa (idem). Entretanto, a autora salienta
que a “pesquisa infantil” não se traduz somente pelo uso da preposição com, pois é possível escutar
as crianças, registrar sua participação de diversas formas, registrar suas palavras no texto da
pesquisa sem com isso partilhar do ato ético infantil.
Olarieta se arrisca a suspeitar que nenhuma forma de vínculo com as crianças no trabalho de
pesquisa garante a entrada do/a pesquisador/a na infância, e que o desejo por essa “intimidade” com
a infância e a suturação desta separação entre mundo adulto e mundo infantil vem a ser um dos
maiores desafios de toda a pesquisa que se debruça na infância procurando encontrar as crianças em
sua concretude, partilhando com elas o ato ético infantil:

NARRATIVAS
973

Inevitavelmente em uma pesquisa sobre, com, entre ou para a infância, ela é colocada do lado de fora do
pesquisador, e o pesquisador é posto do lado de fora da infância buscando o melhor modo de chegar a
ela, a melhor maneira de encurtar essa distância para poder acessar uma particular compreensão do
mundo: a compreensão própria da infância (2015, p. 29)

No estudo realizado no mestrado, me dediquei a investigar a relação criança/pesquisador/a


na produção de conhecimento que se dá a partir do tripé ensino, pesquisa e extensão, no período de
1989 a 2012, em uma creche universitária do estado de São Paulo (MENEZES, 2015). O material
empírico produzido se constituiu em um campo rico de saberes e fazeres que colocam em especial
relevância a importância desta produção para o cenário da pesquisa com a infância.
Para temperar o debate aqui proposto, optei por trazer traduções que produzi a partir da
análise de trabalhos que foram fruto da relação ensino, pesquisa e extensão entre o Centro de
Investigação sobre o Desenvolvimento e Educação Infantil – CINDEDI, da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto – FFCLRP/USP/SP e a Creche Carochinha, uma das creches
universitárias da USP. Tais traduções me parecem pertinentes, pois mostraram maneiras bem
interessantes como pesquisadores/as captaram o ato ético infantil em suas atividades de pesquisa
(Id, ibid).
A relação entre sujeitos pesquisados (as crianças) e seus/suas pesquisadores/as foi
traduzida como encontros com as crianças, encontros esses que se constituíram em meu objeto de
investigação (MENEZES, 2015, p. 22-23). Portanto, os encontros com os meus outros (as crianças e a
infância nas pesquisas) se deram através de outros olhares (dos/as pesquisadores/as da/na
Carochinha) que busquei captar nas leituras que fiz do material empírico produzido, o que fez com que
os autores dos trabalhos analisados também se tornassem meus outros com quem me encontrei no
percurso da pesquisa, assumindo um compromisso ético no ato da tradução.
Os tesouros da Carochinha, como me referi ao material empírico da pesquisa, trouxeram
revelações importantes para minhas traduções. Boa parte dos textos investigados foi produzida
através de um trabalho diferente e muito interessante, no que diz respeito à relação
pesquisador(a)/sujeito no processo de pesquisa. Parafraseando Amorim, os/as pesquisadores/as
da/na Carochinha entraram “no país do outro” (2004, p. 26) em ato e não em corpo como sugeriam
os títulos e as palavras-chave dos trabalhos analisados por mim, pois grande parte das pesquisas se
deu a partir de investigações feitas com dados empíricos de outras pesquisas. Uma forma diferente
de busca e captura, mas que possibilitou que as crianças pudessem falar e serem capturadas pela
sua singularidade. O olhar microgenético 216 representou, na minha perspectiva, a diferença no
excedente de visão desses/as pesquisadores/as; uma forma instigante de exercitar o olhar criando
outras tonalidades no pensamento bakhtiniano (2015, p. 182).

216
Metodologia de pesquisa utilizada pelos/as pesquisadores/as do CINDEDI , na captura de informações e conhecimentos sobre as crianças
através de imagens produzidas em gravações em vídeo e fotografias. Pelos pesquisadores/as da/na Carochinha, esta metodologia foi
denominada de análise microgenética. Entretanto, em paráfrase com o pensamento bakhtiniano sobre exotopia e excedente de visão, Menezes
optou em denominar tal metodologia como olhar microgenético.

NARRATIVAS
974

As crianças falaram pela sua incompletude motora217 e falaram, também, através dos campos
interativos 218 que criaram com seus pares. Nesse sentido, é possível perceber que o olhar
microgenético como metodologia de pesquisa utilizada por este grupo de pesquisadores/as permitiu
que captassem o que chamamos neste estudo de “ato ético infantil”. Em várias situações aquilo que
muitos adultos poderiam compreender como ruídos, movimentos atrapalhados, instáveis e imaturos
ou manifestações sem sentido das crianças investigadas, expressaram na verdade as vozes das
crianças, suas formas peculiares de estar no mundo, de manifestar sentidos a partir das experiências
que vivem e pelas quais são afetadas. A escuta sensível e ética desses/as pesquisadores/as permitiu
desvios e desconstruções em suas ideias sobre o desenvolvimento infantil, sobre a educação de bebês
em ambientes coletivos (idem).
Sobre o ato ético infantil, o que se narrou a partir do olhar microgenético revela que nas
interações transparece o tecido ético que as crianças vão produzindo em seus atos (manifestações,
ruídos, movimentos e perturbações) desde muito pequenas:

A análise microgenética ou olhar microgenético como prefiro me referir, conferiu uma exotopia muito
singular no olhar desses pesquisadores sobre as crianças/sujeitos em suas traduções. Embora a
captura não tenha ocorrido no aqui-agora do acontecimento, o olhar microgenético produzido nas
repetidas vezes em que Elmôr (2009) assistiu o mesmo episódio protagonizado pelo bebê (Iríades), lhe
possibilitou perceber o que Iríades comunicava ao estender o braço, olhar na direção de Linda e se
voltar para Mirtes, o que poderia ter escapado se sua tradução ocorresse apenas no aqui-agora do
acontecimento. De repente, no momento em que se deu o acontecimento investigado, Elmôr (2009)
poderia perceber o braço estendido e interpretá-lo como um aviso para a chegada da outra criança,
talvez até interpretar esse aviso como um sentimento de satisfação de Iríades pela chegada de Linda,
mas talvez não conseguisse, no mesmo instante, perceber que o “seu discurso” se dirigia à Mirtes, a
educadora, pois era a ela que Iríades queria comunicar a chegada de Linda à creche. Assim, o olhar
microgenético ampliou sua visão possibilitando voz à criança. Uma forma de exotopia que lhe permitiu ir
além do discurso universalizante, principalmente quando referido às crianças pequenas. Uma tradução
alteritária, pois permitiu à Iríades falar em seu texto (MENEZES, 2015, p. 174).

As crianças, então, falaram por si e falaram em pares, em interação. Suas falas não só foram
capturadas como se tornaram um ingrediente fundamental na produção do conhecimento desses/as
pesquisadores/as. E se a pretensão do/a pesquisador/a é responder com sua produção às demandas
sociais, e nesse caso às demandas que a infância nos coloca, podemos considerar que esses/as
pesquisadores/as responderam de forma responsiva, já que produziram suas respostas em
compromisso com aquilo que de fato as crianças demandavam sobre si, sobre suas interações e
sobre seu desenvolvimento.

217
Conceito criado pelos/as pesquisadores/as do CINDEDI tratar o desenvolvimento infantil, que para Menezes foram traduzidos como as vozes
das crianças investigadas.
218
A forma como os pesquisadores o CINDEDI traduziram o cenário e o espaço-tempo em que as atividades das crianças investigadas eram
captadas.

NARRATIVAS
975

E é desse lugar único que o sujeito ocupa que ele – com sua existência – se posiciona na
dinâmica social. É na sua existência que se funda a indissociabilidade entre responder e
responsabilizar-se por essa resposta. Respondendo às demandas sociais desse lugar único que
ocupa, ele confere acabamento e assinatura às suas ações e é essa assinatura que se abre à
possibilidade de resposta (PEREIRA, 2015, p. 56).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É pela unicidade do Ser, sobre a qual me referi no início de nossa conversa, que entendo a
possibilidade da produção de uma pesquisa com a infância, ou pesquisa infantil em diálogo com
Olarieta, que seja ética e responsiva. Somente os bebês investigados, do lugar único que ocuparam no
cenário de investigação criado pelos/as pesquisadores/as, puderam viver as experiências de
interação que foram capturadas e traduzidas de uma forma, também única, pelos/as
pesquisadores/as. Cada pessoa inteiramente autora de seus atos únicos e irrepetíveis; autoras no
fazer/pensar e autoras ao assinarem sua voz nos textos que foram criados a partir dos encontros da
pesquisa.
Talvez, responder a uma norma ética universal e generalizante possa impor limites que
impeçam a captura pelos autores do Ser em sua unicidade. Normas éticas construídas por adultos
geralmente colocam limites para dialogarmos com o ato ético infantil e, portanto, com as vozes
concretas das crianças na pulsação de suas experiências. Portanto, não tomo a ética como uma
entidade materializada em normas e leis produzidas por um grupo seleto de pessoas, adultas, para
tratar as crianças e a infância nas pesquisas em Ciências Humanas.
A ética no meu pensamento está no agir e no quanto nosso agir se compromete, seja no
encontro com as crianças no ato da pesquisa, seja no ato da escrita do texto. Se para Bakhtin a ética
está na vida e a pesquisa é um acontecimento da vida, a ética faz parte da pesquisa como um agir
do/a pesquisador/a nesse acontecimento singular. O que precisamos nos indagar, então, é por que
pensamos de determinada forma? Por que queremos pensar as crianças/infância? Qual o sentido do
agir quando tomamos as crianças e a infância como questão em nossos pensamentos? Quais são
nossos horizontes sobre a infância? Por que escolhemos determinados diálogos? E essas e outras
indagações precisam ser o ingrediente fundamental dos pensamentos que produzimos nas narrativas
da pesquisa. Dessa forma, podemos produzir um tratado ético, único e irrepetível em cada
pesquisador/a, porém responsível e potente no sentido de legitimar as pesquisas com a infância no
universo das Ciências Humanas.
Pereira (2010) nos convida a pensar essa questão com Walter Benjamin, e é com este
pensamento que concluo o texto, convidando os/as leitores/as para a reflexão:

Tecendo severa crítica aos modos como, em sua época, as ciências sistemáticas primavam pela
construção de um saber pautado nas premissas da objetividade e da generalização, o autor propõe uma
forma outra de lidar com as categorias de singularidade e universalidade na produção do conhecimento

NARRATIVAS
976

que envolve os fenômenos sociais. Benjamin (1984) afirma que os fenômenos se apresentam em sua
condição singular; entretanto, permanecem em intermitente relação com a dinâmica social e cultural
mais ampla à qual estão ligados. Nessa linha de pensamento, a pretensão da validade universal
supostamente garantida pela recorrência dos fenômenos e pela generalização das análises pode não
fazer justiça aos fenômenos naquilo que eles têm de singular, de irrepetível e de inusitado (p. 41).

Referências Bibliográficas

AMORIM, Marília. O pesquisador e seu Outro. Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004.
CASTRO, Lúcia Rabello de. Conhecer, transformar(-se) e aprender: pesquisando com crianças e jovens. In: CASTRO, L. R.
& BESSET, V. L. (orgs). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: Nau/FAPERJ, 2008, p. 21-42.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
_____. Por uma Filosofia do Ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Texto completo da edição
americana Toward a Philosophy of the Act, traduzido e comentado por Vadim Liapunov. University of Texas Press, 1993.
Disponível em: http://copyfight.me/Acervo/livros/BakhtinParaumafilosofiadoato.pdf.
MENEZES, Flávia Maria de. Onde estão as crianças da Carochinha? Uma investigação na relação
pesquisador/criança na produção de conhecimento de uma creche universitária . 2015, 194 p. Dissertação
(Mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Rio de Janeiro, 2015, pdf.
OLARIETA, Fabiana Beatriz. O que torna “infantil” uma pesquisa? In PEREIRA, Rita Marisa Ribes; SANTOS, Nubia de
Oliveira; LOPES, Ana Elisabete Rodrigues de Carvalho. Infância, Juventude e Educação. Práticas e pesquisa em
diálogo. Rio de Janeiro: Nau, 2015.
PEREIRA, Rita Marisa Ribes. O menino, os barcos, o mundo: considerações sobre a construção do conhecimento.
Currículo sem Fronteiras, v.10, n.2, Jul/Dez 2010.
_____. Pesquisa com crianças. In PEREIRA, Rita Marisa Ribes; MACEDO, Nélia Mara Rezende (orgs.). Infância em
Pesquisa. Rio de Janeiro: Nau, 2012.
_____. Por uma ética da responsividade: exposição de princípios para a pesquisa com crianças. Currículo sem
fronteiras, v. 15, n. 1, p. 50-64, jan./abr. 2015. Disponível em:
<http://www.curriculosemfronteiras.org/vol15iss1articles/pereira.pdf>. Acesso em: 10 de outubro de 2016.

NARRATIVAS
RESUMO
977
Este artigo revela questões que emergem de uma
pesquisa de doutoramento em curso inicial, que
situa-se no campo dos Estudos da Infância, cujo

CRIANÇAS QUE CHEGAM: olhar se lança especificamente sobre crianças em


situação de refúgio. Observandoinfâncias busca-se
verificar e tornar visíveis as formas com
um estudo sobre refugiados quealgumas crianças
relaçõesespaçotemporais,
vivem
refazendo
suas
suas
territorialidades. Apoiado numa perspectiva
dialógica bakhtiniana, este textoapresenta um
exercício de preparação da pesquisa e seu
processo deconstrução metodológica,que pretende
realizarencontros com crianças em ambientes
MILANEZ, Fernanda de Azevedo219 extraescolares, preferencialmente em locais
públicos como praças ou feiras, nos seus cotidianos
com familiares e amigos constituindo-senum
trabalho onde haja participação e agencia destas
crianças como interlocutoras, primando por uma
horizontalidade na condução de um processo de
CHEGANDO AO TEMA: refugiados e as crianças refugiadas pesquisa com crianças (MACEDO e PEREIRA,
2012),em consonância com os atuais debates deste
campo de estudos. Entretanto, algumas questões
Não é novidade o assunto sobre pessoas em situação de se colocam como desafios iniciais: como construir
aproximação e relação de alteridade sem
refúgio no mundo contemporâneo. Os noticiários, as redes sociais e compartilhar a mesma língua que os
outras mídias tem relatado recorrentemente o assunto sobre a crise interlocutores? Que estratégias e formas de
interação podem ser desenvolvidas para que uma
migratória com ênfase particularmente na entrada destes comunicação se consolide? Como identificar
solicitantes na Europa, apesar do conhecimento mundial deque este sentidos e modos de estar no mundo sem linguagem
verbal em comum? Para responder estas reflexões
fenômeno afeta,há tempos,todos os continentes, uns de forma mais iniciais, há de se construir um pensamento ético
intensa do que outros. que vai se delineando desde os momentos que
precedem os encontros, quando vai se dando a
São espaçotempos atingidos pelos deslocamentos que aproximação com o tema e nos momentos
afetam a população mundial desde que a humanidade passou a seguintes, levando em conta que a presença dos
sujeitos redesenha as estratégias elaboradas
circular pelos territórios vizinhos em desbravamentos e disputas, (QUEIRÓZ, C.T. E MILANEZ, F., 2016). Este recorte da
como nas Cruzadas, conhecidas também como as Guerras Santas; pesquisa inaugura seu campo com sujeitos em
situação de refúgio recém-instalados no Brasil,
asexpedições de exploração do oriente, passando pelas rotas das mais precisamente no Município do Rio de Janeiro.
grandes navegações em que países da Europa se lançaram nos
Palavras-Chave: Crianças Refugiadas. Pesquisa.
oceanos Pacífico, Índico e Atlântico nestas rotas marítimas, que Território. Alteridade. Ética
tinham como principal interesse o comércio, passando a
intercambiar alimentos, animais, plantas e posteriormente o
processo de colonização, dando início a um longo período de
escravidão.
As Grandes Guerras Mundiais e mais recentemente, os atuais conflitos no oriente médio,
impuseramimportantes deslocamentos forçadose são os mais recentes exemplos de conflitos que
levam populações inteiras para campos de refugiados ou situações de clandestinidade. Essas pessoas

219Doutoranda em Educação peloProPEd – Programa de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participante do GPICC – Grupo
de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea, coordenado pela ProfªDrª Rita Marisa Ribes Pereira, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ milanez21@gmail.com

NARRATIVAS
978

são reconhecidas pelas Nações Unidas como refugiados, vítimas dedeslocamentos forçados,
deslocados internos ou solicitantes de refúgio220.
É na atualidadeque a mídia amplifica a divulgação deuma pequena parte da rota se dirigindo
para o hemisfério norte “desenvolvido” para onde caminham os movimentos de massa em busca de
abrigo, trabalho e segurança, saindo de territórios sem Estados legitimados, muitos com regimes
ditatoriais afundados em guerras e assassinatos coletivos de longos prazos. Mundialmente, essa
demanda que “invade” a Europa tem sido apontada como o “problema da migração”, em que as
pessoas em situação de refúgio são confundidas com terroristas, gerando graves hostilidades sociais,
estigmatizando pessoas que deveriam ser protegidas pelos estatutos de direitos internacionais
(BAUMAN, 2017).
Entretanto, de acordo com o relatório “Tendências Globais” de 2017 divulgado pela ACNUR –
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, também conhecido como Agência da ONU para
Refugiados, os maiores quantitativos de refugiados (84%) encontram-se abrigados não na Europa,
mas em países de renda média e baixa, como descrito no último relatório, que afirma também:

No final de 2016 havia 65 milhões de pessoas forçadas a deixar seus locais de origem por diferentes
tipos de conflitos, mais de 300 mil emrelação ao ano anterior. Este número se refere a mais alta marca
de todos os tempos.Deste quantitativo total, 12 milhões são sírios, 7,7 milhões são colombianos; 4,7
milhões são afegãos; 4,2 milhões são iraquianos;3milhões são sul-sudaneses. Aproximadamente 10
milhões são considerados apátridas. (Relatório ACNUR 2017)

Os demais refugiados estão espalhados em outros países, mas importa ressaltar que
aproximadamente 40 milhões de pessoas deslocam-se internamente dentro de seus próprios países,
por não terem possibilidades (principalmente financeiras) de sair.Os principais países acolhedores de
refugiados são a Turquia, o Paquistão, o Líbano, o Irã, a Etiópia e a Jordânia, contrariando as
mensagens que alardeiam no mundo sobre estrangeiros refugiados chegando à Europa. A maioria de
fato não está no continente europeu, mas deslocando-se de um campo de refugiados a outro, em
grupos, em caravanas, com familiares ou desconhecidos, em busca de segurança.
Como estão presentesna sociedade e na cultura, as crianças fazem parte do contexto das
pessoas refugiadas. Acompanhadas ou sozinhas,algumas organizações como a ONU, afirmam que elas
representam a metade do contingente de refugiados de todo mundo. São meninos e meninas que tem
seus direitos violados de acordo com suas especificidades: em muitos casos meninos são recrutados
para servir às forças aliadas ou contrárias às suas crenças e meninas para servir como escravas
sexuais. Muitas vezes as crianças são negociadas para salvaguardar a vida de outros membros da

220 De acordo com a publicação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ACNUR (1007,2000), as categorias para os
refugiados em geral, significam: Refugiados: estão fora de seu país natal devido a temores de perseguição relacionados a conflitos armados,
questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a determinado grupo social ou opinião política; Solicitante de refúgio: alguém que
solicita as autoridades ser reconhecido como refugiado, mas está aguardando avaliação para esta proteção; Deslocados internos: pessoas
deslocadas dentro de seu próprio país, como os refugiados, mas não atravessaram fronteiras internacionais para buscar proteção.

NARRATIVAS
979

família. Em outras circunstâncias, são as únicas enviadas para tentar a sorte em longas travessias
custeadas com as economias da família que deixa para trás.
Quando estão acolhidas, crianças refugiadas continuam em situação de desvantagem, de
acordo com o relatório - “Deixados para trás221”(LeftBehind: RefugeeEducation in Crisis) - lançado
recentemente também pela ACNUR. O documentoinforma que apenas 1% dos 6,4 milhões de refugiados
em idade escolar concluirão os estudos até o ensino superior. Isso quer dizer que uma criança
refugiada hoje tem cinco vezes menos chances de estudar do que uma criança fora de uma situação
de refúgio. A Educação neste caso, diz o relator do texto, não é um item de luxo, mas um fator de
extrema necessidade, por favorecer um desenvolvimento pacífico, um ambiente estável e de proteção,
onde tudo em volta é caótico.
No Brasil, são aproximadamente 9.000 (nove mil) pessoas em situação de refúgio, oriundas de
80 (oitenta) países diferentes. As maiores comunidades originárias são: Palestina, República
Democrática do Congo, Colômbia, Angola e Síria. Nos últimos dez anos este número aumentou 800%,
de acordo com o Comitê Nacional de Refugiados222 (Conare), órgão do Ministério da Justiça. De acordo
com a Organização não governamental IKMR 223, no Brasil, são aproximadamente 600 (seiscentas)
crianças entre zero e doze anos, representando apenas 14% dos refugiados no país. Podem estar
entre as categorias de solicitantes de refúgio, reassentadas, desacompanhadas ou repatriadas,
quando retornam voluntariamente ao país de origem. Estes números estão longe de retratar a
realidade, uma vez que se observa divergências nas informações fornecidas pelos os órgãos públicos
competentes, as organizações sociais e a sociedade civil.
Ainda como movimento inicial da pesquisa, o mapeamento de produções diversas e estudos
sobre a temática está em franco desenvolvimento. Alguns sites e plataformas foram mais acessados
como produção acadêmica, com destaque para: Google Acadêmico, Portal Scielo, Portal de Periódicos
da Capes. Para esta pesquisa, algumas palavras chaves têm sido destacadas, com algumas
combinações e variações, como: crianças refugiadas; refugiados; infância refugiada; deslocamentos
forçados. Além destes, busquei canais de produções extra acadêmicas, que igualmente trazem
profundas reflexões e aproximam a ciência com asensibilidade da vida. Entre estas produções,
destaco os filmes224 e livros infantis225.

221
http://www.acnur.org/portugues/noticias/noticia/mais-de-35-milhoes-de-criancas-refugiadas-estao-fora-da-escola/
222 Órgão responsável pela análise dos pedidos e declarações de reconhecimento da condição de refugiado. http://www.itamaraty.gov.br/pt-
BR/politica-externa/paz-e-seguranca-internacionais/153-refugiados-e-o-conare
223 http://www.ikmr.org.br/quem-somos/ - ONG que dedica-se exclusivamente às crianças refugiadas,sendo regida pelas

disposições contidas na Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Convenção de Genebra
de 1951 e seu Protocolo de 1967, na Declaração de Cartagena, bem como a Declaração e o Plano do México, a Lei 9474/97 e as resoluções
do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE).
224 Êxodos: de onde eu vim não existe mais (2016) ;A boa mentira (2014); Samba (2014); 14 km (2007); Terra firme (2013); Estou com a noiva;

Neste Mundo (2002);Deephan o refúgio (2014).


225 A cruzada das crianças (Bertolt Brecht); Um outro país para Azzi (Sarah Garland); Para onde vamos? (Jairo Buitrago); O barco das crianças

(Mario Vargas Lhosa).

NARRATIVAS
980

PESQUISA COM CRIANÇAS: questões éticas, políticas e metodológicas

Ainda não há,neste momento da pesquisa, crianças em situação de refúgio propriamente


presentes, se estivermos falando no sentido concreto da palavra, como presença física, uma vez que
os encontros ainda não se realizaram. Entretanto, elas estão aqui presentes nas reflexões primeiras
que surgem,particularmente quando penso na(s) criança(s)/infância(s) enquanto experiência(s) de
vida e não apenas como singularidade ou cronologia, atentando às questões de proteção e segurança
que parecem emergir com intensidade nos apontamentos das agências de acolhimento aos refugiados
que foram as primeiras fontes de consulta e que constam dos relatos acima.
Este cenário fortalece a noção de infância enquanto fragilidade, devir, inacabamento, que vai
na direção contrária a uma ideia infância como potência, cujos sujeitos são produtores de sua cultura,
pessoas que vivem e convivem com adultos, compartilhando suas experiências e cotidianos.
Neste sentido, vejo o campo das ciências humanas e das pesquisas que emergem
atravessando às questões da vida, as emergências do cotidiano no compromisso ético com aquilo que
urge ser problematizado, tornado visível e questionado. Como avançar sobre as barreiras do
protecionismo e das normas dos Comitês de ética de modo a tornar sensível a relação pesquisador e
pesquisado, num equilíbrio entre o que Bakhtin aponta como conceito de responsividade?

REFERÊNCIAS

AMORIM, Marilia. O pesquisador e seu Outro. Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_____. Para uma filosofia do ato. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
BAUMAN Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2017.
MACEDO, Nélia Mara R. e PEREIRA, Rita Ribes. Infância em pesquisa. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2012.
QUEIROZ, C. T., MILANEZ, F. Os cronotopos como balizadores éticos de uma pesquisa com crianças. In: V GRUPECI -
Seminário de Grupos de Pesquisa sobre Crianças e Infâncias, 2016, Florianópolis. Resumos das Comunicações Orais,
2016. p. 12-12.
VARGAS LHOSA, Mario. O barco das crianças. Tradução Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

NARRATIVAS
RESUMO
981
Este texto é fruto dos nossos estudos iniciais
acerca do pensamento bakhtiniano. Apresentamos
A CONSTRUÇÃO DO ATO inicialmente um breve paralelo entre presente e
passado da Instituição a qual fazemos referência,

RESPONSIVO NA RELAÇÃO no intuito de situar o leitor historicamente sobre o


papel desta Instituição e as concepções acerca da
pessoa com deficiência visual. Explanamos sobre
PROFESSOR ALUNO NO CONTEXTO nossas experiências a partir do momento de
chegada neste espaço e a construção das nossas

DE UMA ESCOLA ESPECIALIZADA: a impressões a respeito desse novo universo posto


para nós. Nossas reflexões partem da
complexidade do ato responsável de duas
enunciação como elemento central para a professoras videntes frente aos desafios impostos
pelas especificidades de alunos cegos e com baixa
alteridade visão no contexto de uma escola especializada. Para
isso utilizamos conceitos em Bakhtin a respeito da
enunciação, da relação da alteridade entre
professor e aluno e aluno e professor, além da
arquitetônica deste ato.

MONTEIRO, Angélica Ferreira Bêta 226


Palavras-Chave: Deficiência Visual. Ato
ARRUDA, Luciana Maria Santos de 227 Responsável. Docência
INTRODUÇÃO

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende
ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo
dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles
sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em
qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos
esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso,
tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada
absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo. (GERALDI,
2013, p. 07)

A
o pensarmos na escrita deste trabalho, nos questionamos: Por onde começar? E a resposta foi
imediata, devemos começar por aquilo que mais tem nos interessado nas pesquisas atualmente,
a reflexão sobre o papel do professor frente às subjetividades dos meninos e meninas com
deficiência visual que estão em nossas salas de aula diariamente.
Enquanto professoras do Instituto Benjamin Constant (IBC), um Instituto nacional, quase
bicentenário, referência para as questões da deficiência visual, a palavra deficiência tem feito parte
das nossas experiências e vivências enquanto educadoras, tratando-se para nós, de uma arena de
sentidos bem particulares.
Com o objetivo de pensar sobre o tema, propositadamente, resgatamos duas fotos deste
Instituto na intenção de contextualizá-lo em um tempo e espaço. Uma das fotos (figura 1) rememora o

226 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Ensino de Biociências e Saúde, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz/RJ.
Professora do Departartamento de Educação do Instituto Benjamin Constant/ RJ. E-mail: afbm2007@yahoo.com.br.
227 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Professora do

Departartamento de Educação do Instituto Benjamin Constant/ RJ. E-mail: luciana.maria.arruda@gmail.com.

NARRATIVAS
982

Instituto Benjamin Constant ainda no final do século XIX. Nela observamos que este já se apresentava
como uma construção imponente, grandiosa, localizada na Praia da Saudade, atual bairro da Urca, no
Rio de Janeiro.

Figura 1 - Instituto Benjamin Constant no final do século XIX

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Instituto_benjamin_constant_urca.jpg

Sua posição geográfica, hoje considerada uma das mais valorizadas do Estado, demarca as
concepções da época acerca dos conceitos de normalidade e deficiência. É preciso mencionar que na
época, a Urca era um lugar estratégico para manter os deficientes afastados do centro urbano
cultural e comercial da então Capital do país, um exemplo disso, é o fato de que também neste local
situava-se o Hospício Pedro II, atualmente a Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.
A intenção de manter a pessoa cega distante da grande urbe, refletia o pensamento de que o
sujeito com deficiência era incapaz de produzir, de exercer uma função social, essa concepção
sobrepujava uma ideia de emancipação e dava um caráter assistencialista às instituições que
atendiam a esses indivíduos. Essas então, limitavam-se em recolher os deficientes para dentro de
seus muros e isolá-las do contato com o mundo, impedindo-os de construir uma identidade própria,
capaz de superar os estigmas que apontavam-lhes incapacidade e inferioridade social.
Uma outra marca desse contexto histórico, é o fato de que no início de sua fundação, o
mencionado Instituto destinava-se ao ensino primário e alguns anos do secundário, ensino da
educação moral e religiosa, de música, ofícios fabris e trabalhos manuais, confirmando a crença na
incapacidade desses sujeitos assumirem papeis de destaque na sociedade. Só posteriormente é que
foram inseridos em seu regulamento o ensino literário, disciplinas cientificas e práticas profissionais
(JANNUZZI, 2012),

NARRATIVAS
983

1. NOSSA CHEGADA NO INSTITUTO BENJAMIN CONSTANT DE HOJE

Figura 2 - Instituto Benjamin Constant no século XXI

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Instituto_benjamin_constant_urca.jpg

Observando uma foto recente do mesmo Instituto (Figura 2), passados mais de um século, nos
deparamos não apenas com as modificações ao seu redor, mas também e principalmente com as
mudanças que se referem às subjetividades da pessoa com deficiência e mais especificamente, à
subjetividade da pessoa cega, que através de um discurso polifônico, vem se refazendo como sujeito
ativo, participante da sociedade. Neste momento, rememoramos nossa chegada nesta instituição, que
embora cada uma com mais de dez anos de trabalho na educação, ambas estavam totalmente alheias
às questões que envolvem o processo de ensinar e aprender da pessoa cega, mas ali estava, diante de
nós, uma nova realidade e precisávamos nos ressignificar enquanto docentes, edificando o ato
responsivo que envolvia o nosso papel a partir daquele momento.
Embora conhecessemos, dada nossa formação, os princípios gerais e legislações acerca da
educação especial e inclusiva, estar ali, em uma escola especializada, no ato vivido, contribuiu para
desconstruirmos algumas concepções meramente conteudísticas que nos apropriamos ao longo da
nossa atuação profissional.
As teorias que discutiam aspectos relacionados à deficiência visual contribuíram bastante
para as nossas novas experiências, mas foi principalmente a escuta das narrativas surgidas neste
contexto, que nos auxiliaram e vem auxiliando até hoje no sentido de marcar o nosso lugar de
pertencimento altero e responsável frente às questões que perpassam a educação dos meninos e
meninas cegas.

2. A CONSTRUÇÃO DA ALTERIDADE DOS SUJEITOS NESTE CONTEXTO

Enquanto professoras, precisamos considerar que não há como produzir vida para o outro em
nossas experiências, no entanto, precisamos do outro para nos constituir de forma altera e embora
nossas experiências sejam únicas e irrepetíveis, elas só se corporificam em um compromisso
coletivo, “em uma unicidade, em uma singularidade aberta a uma relação de alteridade consigo
própria e com os outros, numa singularidade em ligação com a vida do universo inteiro” (PONZIO,
2010, p. 14).

NARRATIVAS
984

Neste sentido, concordamos que mais do que ensinar, aprendemos cotidianamente com estes
sujeitos. E embora, nós, educadoras, tenhamos entrado em um mundo dado, já posto (em permanente
construção), vamos nos construindo através das narrativas, das palavras vivas, enunciadas
diariamente por estes alunos.
E quem são estes sujeitos? Estes sujeitos são meninos e meninas cegas e com baixa visão e
alguns com múltiplas deficiências ou deficiências associadas à cegueira, cujos responsáveis buscam a
instituição como meio para obtenção de aparato educacional para a construção de uma melhor
qualidade de vida à seus filhos. Apesar dos diferentes contextos, sejam eles social, cultural,
econômico e regional, observamos que suas histórias se convergem a um mesmo ponto, que é
descoberta da necessidade do enfrentamento de uma nova realidade que a cegueira impõe, no
entanto, apesar dessa convergência, ainda assim, cada um desses sentimentos será singular a cada
um dos sujeitos envolvidos, essa dor, frustração, rejeição e medo serão únicos e irrepetíveis a cada
um deles, ninguém pode ocupar esse lugar que é próprio de cada um.
E é neste emaranhado de narrativas e histórias singulares que se cruzam e entrelaçam que
nosso ato responsável no exercício da docência se desenvolve, vai tomando vida, em conformidade ao
que aponta Bakhtin, “o ato em sua integridade é mais que racional - é responsável” (BAKHTIN, 2010, p.
81,). Assim, embora o universo da cegueira nos seja um universo intangível, partimos do princípio que
nós, educadoras videntes228, precisamos conscientemente constituir nosso papel responsivo dentro
do contexto de uma escola especializada, desta forma, corroboramos a ideia de uma escola viva, onde
todos possam (des)silenciar sem medo de seus enunciados, e que esses sejam valorizados para o
amalgamento dialético de uma identidade coletiva, pautada num dialogismo polifônico.

3. O ATO RESPONSÁVEL DOCENTE

Faz tempo que é do nosso conhecimento que as Leis dão garantias de educação para todos, o
que inclui também a pessoa com deficiência, no entanto a arquitetônica do ato responsável docente
vai para além do que determina a legislação. Muitas vezes o que é prescrito em documentos oficiais
não se efetiva na escola e por que isso acontece? Entendemos que falta a não-indiferença em relação
ao outro, ou seja, é necessário que se tenha empatia, é necessário sair da minha individualidade e
compreender o outro em sua integridade, me refazendo nessa relação de alteridade entre professor e
aluno. É preciso que eu não exista apenas para mim, mas também para o outro e nessa relação, o
outro será importante para mim.

Viver a partir de si mesmo, de seu próprio lugar singular, assevera Bakhtin, não significa viver para si,
por conta própria; antes, é somente de seu próprio lugar único que é possível o reconhecimento da
impossibilidade da não-indiferença pelo outro [...] Eu não posso fazer como se eu não estivesse aí; não
posso agir, pensar, desejar, sentir como se eu não fosse eu, e cada identificação de si mesmo falha em
sua pretenção de identificação com o outro (PONZIO, 2010, p. 22).

228
Pessoas que não apresentam nenhum comprometimento visual.

NARRATIVAS
985

Nosso ato responsivo se realiza cronotopicamente na relação entre professor e aluno num
determinado tempo e espaço irrepetíveis. Em um Instituto, que conforme mencionamos é grandioso,
formado por espaços que vão além da sala de aula, essa relação entre docente e discente ocorre
reciprocamente, onde o professor age no aluno e o aluno no professor, considerando que onde tem o
eu, tem o outro.

As coordenadas tempo-espaço servem para embasar o que é efetivamente a filosofia primeira: elas são
constituintes fundamentais da compreensão, e portanto fornecem os índices para medir outros
aspectos da existência humana, antes de tudo, a identidade do eu (HOLQUIST, 2015, p. 45,)

Agindo assim, vamos sair da concepção de uma escola acrítica, tradicional, que silencia as
diversas vozes que nela resistem e propor uma educação que não seja simplesmente pautada nos
aspectos cognitivos, com práticas reprodutivistas, onde ensino e aprendizagem ocorrem de forma
unilateral. Contrário a isso, nosso ato responsivo neste contexto, pressupõe a transformação do aluno
em um sujeito ativo, autônomo, responsável e ético.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tecendo algumas considerações, novamente nos remetemos à imagem atual no nosso


Instituto (Figura 2) e percebemos o quanto ainda será (e sempre será) necessário refletir para uma
tomada de posição frente às ações que o nosso papel naquele espaço exige. É preciso colaborar para
que os diversos sujeitos ali representados não silenciem suas vozes diante dos enfrentamentos que o
hoje e o porvir reservam.
Neste sentido, a valorização e o empoderamento das narrativas dos personagens deste
contexto, precisam continuamente serem fomentados enquanto estratégia para resistências e
emancipação dos sujeitos, e no nosso caso, especificamente com nossos alunos, com os quais
precisamos manter nosso ato responsável.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Org. por Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos Gêneros do
Discurso – CEGE/UFsCar. Trad. Por Valdemir Miotello; Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
HOLQUIST, M. A fuga do cronotopo. In: BEMONG, N; BORGHART P. et al. Bakhtin e o Cronotopo: reflexões, aplicações,
perspectivas. Tradução: Oziris Borges Filho, et al - 1ª. Ed - São Paulo: Parabóla Editorial, 2015.
JANNUZZI, G. S. de M. A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI. Campinas: Autores
Associados, 2012.
PONZIO, A. A concepção do ato como dar um passo. In: BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2012. p.9-38.
GERALDI, J. W. O mundo não nos é dado, mas construído. In: VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros
ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

NARRATIVAS
RESUMO
986

Para este resumo não se deve ultrapassar 250

POR ENTRE NARRATIVAS, palavras sintetizando o tema em questão, objetivo


do estudo, a metodologia e as considerações finais
a que se chegou. Deve-se evitar frases longas e não

MEMÓRIAS E CONVERSAS:
se recorre a citações ou uso de qualquer tipo de
ilustração (gráfico, tabela, fórmulas).

o que ensinam crianças na educação infantil Palavras-Chave: Artigo Científico. Metodologia.


Normas

MORAIS, Jacqueline de Fatima dos Santos 229

FLORES, Roberta de Lima Manceira 230

INTRODUÇÃO

Este texto, escrito a quatro mãos, resulta da “reação de uma palavra a uma outra palavra”
(BAKHTIN, 2011, p.71). Resulta de um incômodo. Ou ainda de um desejo de pessoas que se deixam
atravessar por perguntas que a experiência com a infância nos provoca.
Nosso trabalho, portanto, é forjado por inquietações comuns, por perguntas que ressoam de
quando em vez, em momentos de encontro e desencontro nos quais o tempo Kairós vence Cronos. A
vitória de Kairós representa a oportunidade de suspender a contagem dos minutos imposta pelo
relógio para seguirmos o momento oportuno, no qual podemos nos perguntar: o que é infância?
A coragem de nos indagar sobre uma questão que não possui resposta única, abre-nos a
outras. Nos leva também a buscar responder: o que pode uma pergunta? Qual a força de uma
interrogação? Ora, a palavra está sempre “carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou
vivencial”, pois “não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras,
coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc” (BAKHTIN, 1992, p.95).
A língua é prática social viva, produzida em contextos reais de enunciação. Desta forma, perguntar e
responder implica disputas que se dão pela linguagem. Perguntamos menos para responder e mais
para nos permitir pensar.
Outras perguntas se alinham a primeira: O que se vive na infãncia? Quem dela fala? Com que
palavras? A que sentidos convergem? Com quem dialogamos ao falar de infância? Com as crianças ou
apenas com os adultos? Essas interrogações nos levam a pensar também nos limites de nossas

229 Doutora em Educação. Profª. Adjunto do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Pprofessores da UERJ. E-mail:
jacquelinemorais@hotmail.com
230
Profª da Educação Infantil da UFF. Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação – Processos Formativos e
Desigualdades Sociais- da Faculdade de Formação de Pprofessores da UERJ.

NARRATIVAS
987

questões: com que radicalidade desejamos perguntar sobre infância? Inquirimos sobre a infância ou
com a infância? De qual infância falamos quando pensamos em infância?
Em geral, ao discutirmos infância, nos circuscrevemos a escola. Fazemo isso, em geral,
porque educar a infância parece ser uma tarefa que a geração mais madura impõe a quem chega
mais tardiamente a cultura. Educar parece ser uma atividade que garantiria “o futuro da sociedade”
pois “as crianças são os adultos de amanhã”. Educar a infância se confunde, portanto, com
escolarizar a infância. Por que naturalizamos tais concepções e caminhos de ação? – mais pergutas
que nos atravessam, cortando o silêncio de nossas bocas.
A fim de discutirmos a questão que mobilizou a escrita deste texto, e que vem se impondo em
nossos diálogos de fim de tarde/noite - o que é infância? – buscamos mirar algumas lembranças de
docentes de uma das autoras, Roberta Flores, materializadas em narrativas escritas. Estas narrativas
foram registradas por quem se encontra com crianças e com elas aprende. São narrativas que não
deixam de dizer algo a cada vez que a elas retornamos o olhar.
Este texto é o encontro de sujeitos com outros sujeitos, de mundos com outros mundos, de
vozes com outras vozes. Partimos de um contexto enunciativo no qual a investigação é atravesada,
amalgamada, transmutada em formação. É necessário dizer que a vida na escola é composta por
contrapalavras. O silêncio, mesmo desejoso em tempos de neoconservadorismo, não se enraiza
completamente. As brechas, os becos e as vias dão sinal de abertura e resistência.

1. AS NARRATIVAS DA DOCÊNCIA

Em tempos de aridez e sombras, de criminalização da escola e de suas professoras, em


tempos nos quais as infâncias viram mercadoria e comércio, é fundamental anunciar, não apenas
denunciar, formas alternativas de luta e de vida. Necessitávamos, para tal, compartilhar experiências
com a infância. Para isso, trazermos narrativas docentes escritas em contexto de uma pesquisa de
mestrado em andamento.
Não pretendemos, com nosso trabalho, universalizar sentidos construídos a partir da leitura
das narrativas de uma professora da educação infantil. Ao contrário. Desejamos mergulhar em
sentidos múltiplos. Nosso trabalho não pretende ser a palavra única nem última daquilo que nosso
olhar pesquisador resolveu mirar com mais cuidado. Ao contrário: nossa intenção é compartilhar os
sentidos que construímos a partir da palavra que gerou em nós muitas perguntas e contrapalavras.
Para tanto, a obra de Bakhtin tem sido fundamental no enfrentamento de um tema de pesquisa
que não é composto pelo silêncio dos objetos sem vida mas pelas muitas palavras que os sujeitos
dizem. Afinal, nosso tema de investigação é constituído de atos de enunciação.

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das
mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido
amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda
comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. (BAKHTIN, 2012, p. 117)

NARRATIVAS
988

Neste sentido, o diálogo com ideias de Mikhail Bakhtin nos instigou a buscarmos um excedente
de visão (BAKHTIN, 2003) sobre a infância.

2. NARRATIVAS: encontros com a infância

Janela

A Rocinha estava sob fogo cruzado há semanas. A guerra do tráfico de drogas impedia o ir e vir dos
moradores da favela.
A escola ficava num bairro próximo e cerca de metade das crianças matriculadas era moradora da
maior favela da América Latina.
Nossa turma estava desfalcada e a ausência das crianças que não podiam sair de suas casas, causava
um impacto na nossa rotina. Nossa roda estava pequenina.
Uma trégua da disputa por territórios e os ônibus que transportavam as crianças até a escola chegam
lotados e nos enchem de alegria!
Depois de abraços apertados e muita euforia, sentamos na nossa roda, grande e cheia como deve ser.
As crianças dizem que estavam com saudades dos amigos, que a roda ficou pequena, que o parque
estava vazio.
Eu digo que estava preocupada com eles, pois vi na televisão que a Rocinha estava cheia de policiais com
muitas armas.
Armando confirma minha fala dizendo:
- É verdade! A Rocinha estava cheia de policiais com muitas armas. Eu vi. Mas não vi na televisão não, vi
da janela da minha casa.

Aprendizado

No final do ano letivo as crianças fariam seis anos e iriam para a escola de ensino fundamental. Após
três anos com esse grupo de crianças, quase não acreditava em quanto haviam crescido naquele
espaço de tempo, e já sentia tristeza pela despedida.
Decidi levar fotos de quando haviam chegado na turma. A Roda de Conversa daquele dia foi emocionante!
Todos empolgados manuseando as fotos e destacando as grandes mudanças físicas pelas quais
passaram: todos estão mais cabeludos e maiores!
- Nós éramos fofinhos! Exclama uma criança.
Guardo as fotos e pego minha prancheta de anotações. Pergunto se acham que aprenderam muitas
coisas na escola naqueles anos que estiveram na Sala Amarela e peço para que cada um pense uma
coisa que não sabia fazer antes de entrar na escola, mas aprendeu e agora já sabe.
As falas são diversas e esperadas: desenhar, amarrar os sapatos, escrever o nome, brincar com muitas
crianças, e chega a vez de Kevin que diz:
- Quando cheguei aqui na escola eu não sabia que as crianças podiam se limpar sozinhas depois de irem
ao banheiro. Eu pensava que só os adultos podiam se limpar, pois na minha casa é assim, os adultos de
limpam e as crianças não. Mas aqui na escola eu vi que todo mundo ia no banheiro e se limpava, então
eu quis aprender a me limpar também!

Enchente

Enquanto lavava os potes sujos de tinta após o uso do cavalete, as crianças brincavam pela sala e
Nicole, com sua fala marcada pela recente chegada da região nordeste, me avisa:

NARRATIVAS
989

- Vixi Maria, Roberta! Você não vai acreditar! A casinha está toda molhada! Molhou panela, berço,
roupinha... tudo! Está tudo molhado!
Fiquei estupefada! Como assim a casinha está toda molhada? As crianças não poderiam ter feito isso,
todos amam e cuida da casinha! Será que choveu no final de semana e a água da chuva entrou pela
janela? Ou um cano do banheiro está com vazamento?
Rapidamente adentrei no espaço organizado como casinha e comecei a tatear os objetos para constatar
o desastre. Para minha surpresa, tudo estava seco e perguntei a Nicole:
- Aonde, Nicole? O que está molhado?
E ela responde:
- Oxente! Tú cresceu e não sabe brincar mais não, é? Nós estamos brincando de enchente! Quer brincar
também?

Funil

Estávamos lendo o livro Alice no País das Maravilhas, um pedacinho por dia. Leitura lenta, cautelosa e
desafiadora para as crianças e para a professora.
A cada palavra nova que causava estranhamento ao grupo, uma pausa. O que significava aquela palavra?
Se o texto não nos era suficiente para adivinharmos, recorríamos ao dicionário, definido pelas crianças
como “livro que guarda todas as palavras que existem no mundo”.
De repente, tropeçamos na palavra “funil”. Perguntei se alguém sabia o que era um funil, e Amanda me
responde:
- Funil eu não sei não. Mas fuzil eu sei o que é, deve ser parecido.

São muitos os modos de viver e pensar a infância como pudemor sentir nas narrativas
anteriores.
Manoel de Barros possui um livro de nome: “Memórias inventadas. A infância” (2003). Neste
livro, encontramos reminiscências de uma infância que o poeta inventa. Isto parece um contra-senso
já a memória seria algo que se recupera e não algo que se cria. Se algo é inventado, quer dizer que
não poderia emergir da memória..
As narrativas trazem histórias e memórias da professora, revelando que a escola é um “lugar
de memória” (NORA, 1993) onde se cruzam memórias individuais e coletivas.

a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem
pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno
social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
[1929] 2006, p. 124)

Temos investido há algum tempo na possibilidade das professoras com as quais trabalhamos
nos diferentes espaços de formação inicial e continuada, incorporem como parte importante dos
processo de (auto)formação, a escrita de narrativas que, ao narrarem sobre si, tragam também o
trabalho vivido na escola, com seus alunos e alunas. Sabemos que:

por trás de cada texto está o sistema da linguagem. A esse sistema corresponde no texto tudo o que é
repetido e reproduzido e tudo o que pode ser repetido e reproduzido, tudo o que pode ser dado fora de

NARRATIVAS
990

tal texto (o dado). Concomitantemente, porém cada texto (como enunciado) é algo individual, único e
singular, e nisso reside todo o seu sentido [...] (BAKHTIN, [1959-1961]2010, p. 309-10)

Nesse sentido, temos proposto tanto nos encontros de formação continuada que vivemos em
diferentes espaços e tempos de formação, quanto solicitamos aos nossos orientandos e orientandas
do mestrado e do curso de pedagogia, em sua totalidade doentes em atuação ou/e em formação, a
produção destes escritos.
Neste aspecto Benjamin nos ajuda a compreender a importância da narrativa na proteção e
conservação das experiências vividas, individuais e coletivas, em especial num tempo onde, como
alerta o autor "a arte de narrar está em vias de extinção" (1994, p. 197). Assim, a defesa que fazemos
da escrita docente de si e de seu fazer docente, representa tanto uma luta conta o esquecimento
quanto uma defesa pelo direito à palavra e ao dizer, aspectos que merecem atenção nestes tempos
modernos. Benjamin nos alerta sobre a necessidade de desenvolvermos sobre as experiências vividas
uma atenção sensível, já que elas se perdem quando as histórias não são mais conservadas. (1994:
205). Portanto, é preciso narrar. E uma forma de conservar a narrativa é escrevendo-a e essas
escritas.
As histórias docentes, os textos autobiográficos, os memoriais de formação, as escritas de si,
são alguns dos dispositivos que temos lançado mão nos processos de formação junto aos/as
docentes já que estes permitem que compartilhemos, não meras informações, mas verdadeiras
experiências, já que a narrativa:

não está interessada em transmitir o puro em-si da coisa narrada como uma informação ou um
relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na
narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994, p. 205)

Desta forma, a escrita docente, em nossa experiência, tem sido vivida como o registro de uma
travessia de vida imbricada a um percurso profissional, muitas vezes contada de forma não linear. A
memória é tecida pelo tempo e, como diz Saramago, “o tempo não é uma corda que se possa medir
nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e
aproximar”, Saramago (2003, p.56). Assim, buscamos em nossas ações formativas, que as escritas
docentes possam fazer mover as histórias acomodadas nos porões da memória, pondo em movimento
através da palavra escrita, aquilo que se viveu: na vida fora e dentro da escola.
A escrita de si, tal como a propomos, tem implicado na produção de relatos da trajetória
pessoal e profissional, na aposta de que escrever sobre si permite rever e ressignificar as
experiências vividas. Quanto ao sentido de experiência, nos apoiamos em Larrosa quando afirma que
“é experiência aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao passar-nos nos forma
e nos transforma" (2002, p. 25-26). Desta forma, temos estimulado professores e professoras a
rememorarem situações que considerem significativas a fim de que a escrita possa se configurar

NARRATIVAS
991

como uma experiência e, assim, possibilitar viver o que o personagem de Machado de Assis nos
confidencia:

Qual! não posso interromper o memorial; aqui me tenho outra vez com a pena na mão. Em verdade, dá
certo gosto deitar ao papel coisas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão.
(Machado de Assis, 1985: 106)

Reviver o gosto de escrever ou, como em alguns casos, descobrir o prazer de deixar no papel
as marcas de sua vida. Aprender, ao escrever sobre sua vida e trajetória docente, que é fundamental
escrever, que ao fazer sentido, a escrita não quer nos abandonar pois...

escrever é iniciar uma aventura que não se sabe onde nos vai levar; ou melhor, que, depois de algum
tempo, se saiba não ser mais possível abandonar. Enquanto não chegarmos a isso de não conseguir
mais deixar de escrever, não estamos ainda escrevendo para valer. (Marques, 2003, p. 91)

Através da escrita da narrativa o sujeito reinventa-se, relaciona, no presente, acontecimentos


passados e vontades futuras.

A intenção política de desenvolver a oferta da educação “ao longo da vida” convida-nos a repensar as
dinâmicas da construção biográfica. Hoje a vida adulta é feita de tensões entre referências díspares.
[…] Nesse contexto, a “história de vida” tende a perder sua substância. Diante da explosão dos pontos
de referência, mas também dessa errância de percursos entregues à aventura individual, toda a busca
de sentido da existência requer o exercício prévio de um trabalho biográfico. (Christine-Momberger,
2008: 21).

Como salienta Christine Josso (2002), as histórias de vida permitem às pessoas fazer um
balanço retrospectivo das suas vidas, considerar nesse balanço os recursos, os projetos e os desejos
que são portadores de futuro. Possibilita a interioridade dos sujeitos, o seu mundo interior através
das representações, ideias, sentimentos, emoções, do imaginário, dos valores, dos projetos e das
buscas que o constituem e o animam. O registro das histórias de vida e percursos docentes permite
ainda dar sentido a escrita, longe dos exercícios escolares tradicionais, marcados pela palavra
esvaziada de sentidos, que muita vezes marca a lógica do ensino da escrita nas escolas. Afinal, como
lembra Rancière "antes de ser o exercício de uma competência, o ato de escrever é uma maneira de
ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação." (1995, p. 7)
A escrita na escola é vivida, para algumas de nós, como atividade que alimenta e ordena o
cumprimento de certa burocracia didática. Para outras, a escrita é produzida no cotidiano escolar
apenas para o registro de atividades de cunho escolar: planos de aula, cadernos de chamada, bilhetes
e avisos para responsáveis, exposição com fins à cópia dos alunos de tarefas de casa e de aula.
Podemos assim, nos perguntar: de que maneira escritas como esta podem dar sentido a nossa
ocupação no espaço escolar? Quais seriam as possibilidades, dentro deste contexto, de certa

NARRATIVAS
992

produção de textos docentes mais autorais? Que outros textos são, diariamente, e na contramão dos
anteriores, comunicados, escritos, ditos, murmurados, gritados, no pátios, corredores, nas salas dos
professores, nas paginas finais dos cadernos e livros didáticos, nos murais, nas entrelinhas dos
textos oficiais presentes nas salas de aula? Possibilidade de ouvir, ou melhor, ler essas vozes
docentes, está na produção de textos autorais. Nossas ações investigativo-formativas com
professoras/es mostram que cada docente tem muito que narrar, ainda que esta ação não seja tarefa
fácil. A escrita docente, portanto, é possível, necessária e acontece. Mas é preciso dar respeito,
lembrando mais uma vez Manoel de Barros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho ainda está em construção. São muitas as palavras sem fios, abertas. As reações
às palavras da professora e das crianças continuam. Bakhtin continua a nos dizer que um incômodo é
a possibilidade de diálgos emergirem. Nosso trabalho, portanto, é um pretexto para seguirmos em
interação e conversa com Bakhtin, em outros tempos e espaços pois a pergunta continua econando: o
que é infância?

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_____. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
_____. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: As infâncias de Manoel de Barros. São Paulo, Editora Planeta, 2010.
KOHAN, Walter Omar. Visões de filosofia: infância. Alea : Estudos Neolatinos. vol.17 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2015.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
106X2015000200216&lng=en&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em: 09 out.2017.

NARRATIVAS
RESUMO
993

SOBRE CIDADANIA E Palavras-Chave:

HOSPITALIDADE: alguns
fragmentos

MOURA, Reginaldo Lima de231

Nenhum cidadão tem o direito de ser um amador em matéria de


treinamento físico. Que desgraça é para o homem envelhecer
sem nunca ver a beleza e a força do que seu corpo é capaz.
Sócrates.

Niterói, maio de 2017

A
o pensar sobre cidadania e hospitalidade me recorreu que nunca tinha estudado este assunto na
escola, tampouco foi pauta das conversas de domingo em família.Ocorre, que falar de cidadania
envolve pensar uma construção política de sujeitos que não temos acesso na educação primeira
no Brasil. É claro que existem movimentos neste sentido em algumas instituições de ensino no Brasil;
contudo o acesso é restrito, e muitas vezes pontual. Acreditei que deveria seguir esta pista de leitura;
pensando a questão da cidade, da hospitalidade e da cidadania, desta forma penso que encontrei um
lugar discursivo para iniciar a produção textual.
Às vezes, nosso lugar de fala está tão engessado que não conseguimos vislumbrar questões
novas, não conseguimos ver, ficamos cegos mesmo. O temática da hospitalidade tem sido minha
questão de estudo e de reflexão desde a graduação, penso que uma questão até anterior, uma
problemática de vida. Não entendo até agora como pensei em muitas outras reflexões,desta palavra,
fora do cotejo com a cidade, a cidadania, os sujeitos nessas relações.
Provocado pelo título do livro supracitado fui a 1944 lembrei da obra “Retirantes” de Portinari.
Fazer este deslocamento espaço-tempo me vez pensar que essa questão já tinha sido objeto de
provocação de Portinari. Toda leitura de mundo é cronotrópica, está relacionada a espaços e tempos
concomitantes e Bakhtin nos ajuda a pensar a questão do cronotopo.

231
Doutorando em Educação da Universidade Federal Fluminense. Professor do curso de Turismo da Faculdade Gama e Souza. E-mail:
reginaldolima@id.uff.br

NARRATIVAS
994

Ele ressalta que o cronotopo “determina a unidade artística de uma obra literária” (2014, pág.
349). Ele está diretamente relacionado ao espaço-tempo. O cronotopo é aquele ponto central no qual
o encontro acontece. Nesse ponto único é que se encontram culturas, religiões, idades,
nacionalidades, classes sociais etc. O cronotopo é um dos temas centrais da obra de Bakhtin. Não
iremos neste momento nos aprofundar nesta questão, o cronotopo aqui nos auxiliara a desenvolver a
metodologia de escrita. Desta forma faremos o movimento espaço-tempo com o recurso da data e
lugar que dará início aos tópicos abordados revisitando alguns lugares em que já estivemos. O
cronotopo é como uma unidade, cada palavra enunciada é impregnada de tempo e espaço.
Esqueci de contar. Conheci Portinari nas aulas de História da Arte no curso de Turismo.
Apesar disto meu primeiro contato, presencial, com o autor foi muito tempo depois, numa viagem para
São Paulo.
[...] os três pontos encontrados no decorrer do texto também foram pensados. São ideias
primeiras inacabadas, provocadas pela proposta inicial de produzir fragmentos de texto que
pudessem dialogar com as questão apresentadas. Entretanto durante a escrita sentimos falta de
deixar o diálogo aberto, trazendo mais questão que encaminhamentos de resposta. Neste sentido de
qualquer ponto que você leitor possa entrar encontrará um problema para pensar e refletir em
conversa. Sempre em conversa.

São Paulo, julho de 2016.

“Algumacoisaacontece no meucoração
QuesóquandocruzoaIpiranga e Av. São João
É quequandoeuchegueiporaquieu nada entendi”.
Caetano Veloso

É inverno,na cidade de São Paulo faz muito frio. Estava hospedado num hotel próximo a Av.
Paulista. Acordei por volta das 09h, naquela manhã de sábado tinha programado ir ao Masp. Estava
com grupo Atos-UFF no fim de uma viagem que fizemos para São Carlos (fomos ter uma daquelas
conversas gostosas com Miotello na UFSCar).Depois de tomar café voltei ao quarto do hotel. Já tinha
percebido que a temperatura tinha diminuído, estava muito frio. Parecia um prenúncio.
Tomei banho e coloquei uma roupa confortável e “quentinha”. Caminhamos pela Paulista até o
Masp - fazia muito frio uns 12 graus -. Para quem conhece os cariocas sabe que para nós, essa
temperatura é muito baixa. No frio da cidade da garoa me defrontei pela segunda vez com o Masp, das
primeiras sempre foi por foto ou pela internet; imponente - parece ser sustentado pelo vento,
condensando toda sua massa sobre o ar. Compramos os ingressos, olhei pela última vez suas
estruturas flutuantes que não tardam iriam me proporcionar um caminhar histórico sobre um tempo
e pedaço do mundo. Entrei no museu. Já tinha programado a visita, as galerias que iria visitar. Fomos
naquela ocasião ver uma exposição sobre a infância; depois certamente iria tomar um café, ler sobre
a exposição temporária e comprar alguns souvenirscomo de costumes nas minhas viagens.

NARRATIVAS
995

Caminhando pelas galerias do Masp, comecei a sentir uns arrepios, parecia que o frio dentro
do museu tinha aumentado,pensei: Por que será que aqui dentro está tão frio? Sabia que a
temperatura dentro do museu, em muitos casos, tinha função de conservação das obras de arte.
Lembrei de ter lido isso nos livros sobre conservação do patrimônio artístico, nas aulas de história da
arte. Mas ali, especificamente, naquela galeria estava bastante desconfortável de tão frio.

Niterói, Julho De 2017

As inquietações daquela manhã de inverno de 2012 me mostraram uma pista para continuar a
pensar num projeto de dizer. Também não preciso aqui afastar o que não conheço, muito pelo
contrário! Quero aproximar, cotejar. Já deixei o texto aberto para o diálogo, (comigo e com tantos
outros, pensei!) - Posso olhar para a obra de arte, para pensar e compreender as questões da
hospitalidade, da cidade nos processos migratórios e do processo de construção da cidadania dos
sujeitos.
Mas especificamente a obra Retirantes provocou-me algumas críticas primeiras que não
foram problematizadas no momento da visita. Sim, é muito importante cotejar, os sentidos da obra,
com outros textos. Penso que o entendimento de um texto só pode ser feito com outro texto. É como
se um texto iluminasse o outro.
Figura 1. Retirantes232

Fonte: Masp, arquivo virtual do museu.

A obra de arte tem por finalidade primeira esse movimento de deslocamento. Incomoda
mesmo. Isso, de certo, é um traço no movimento modernista que posteriormente será maximizado no

232De CândidoPortinariRetirantes da serieRetirantes é umaimportanteobra do movimentoModernista. Aobraestá noMASP em São Paulo, Brasil.
Datada do ano de 1944 o quadro é pintadocom a técnicaóleosobretela com tamanho original de 190cm x 180cm.

NARRATIVAS
996

movimento contemporâneo. A obra apresenta um retrato fiel da miséria, opressão das relações
sociais, a questão do retrato da cidadania e de outros problemas do Brasil.
Alguns críticos iram apontar que a obra apresenta a força da natureza sobre um homem
(sociedade) completamente vulnerável. Temos no obra uma cena de tela semiárida, construída com
ossos, urubus – talvez pela proximidade da morte, as aves não são outras- um espaço e tempo hostil.
A obra também mostra movimento dos sujeitos carregando suas últimas mazelas; também não sabe
de onde vieram e para onde irão.
A debilidade física dos sujeitos pode ser percebida em toda obra. A semelhança com caveiras
e empoeiramento do tom de pele dos sujeitos demonstra a falta de contato com banho e alimentos.
Todas as posses acumuladas cabem em duas trouxas carregadas pela figura central da obra. O tempo
e espaço são hostis, castigam e expulsão os sujeitos para outro lugar.
Não há garantias de nada. A relação de cidade e cidadania não é apresentada para esses
sujeitos. A leitura do senso comum que são nordestinos expulsos pela seca e miséria é muitas das
vezes limitada e preconceituosa. Trata-se de um problema contemporâneo das grandes cidades.
Impressões atuais da obra.
… Niterói, julho de 2017

Diante, novamente, da obra da série Retirantes pensei em como era utópica minha
perspectiva sobre o conceito de hospitalidade; minha ideia da cidade como um direito de todos, tal
como minha ideia de construção de cidadania era ingênua e limitada. Minha noção primeira de
hospitalidade era da abertura para o outro, de uma abertura incondicional. Pensava que a cidade era
esse espaço de encontro e relação com o outro.
Algumas definições de hospitalidade assumem um papel fundado nas relações sociais,
devendo ser compreendida na singularidade dos sujeitos. Seria a tríade – dar, receber, retribuir –
apontada pelos principais teóricos o lugar epistemológico central do conceito de hospitalidade? Até
que ponto essa relação baseada nas trocas dá conta de um conceito tão complexo?
Boff (2006) traz a hospitalidade como uma dádiva das relações humanas. Para compor sua
narrativa sobre o tema, ele escreve o texto: “O mito da hospitalidade” para narrar sua perspectiva
sobre a questão, e dessa forma, explica o conceito de hospitalidade nas sociedades modernas, faz um
panorama destacando a falta de hospitalidade na história da humanidade, até chegar ao contexto da
globalização e apontar as atitudes e comportamentos da hospitalidade. Esse conceito é um
contraponto à questão da tríade.
Para Mauss (1974), a hospitalidade surge como um contrato social. Ele define a sociedade
como um “fato social total”. O autor compreende a vida como um sistema de prestação e
contraprestação, que atinge todos os sujeitos da sociedade. Ele defende a dádiva da tripla obrigação
do dar – receber – retribuir, como um jogo de interesses. Camargo debruça-se sobre essas leituras e
aponta algumas diretrizes para o ato da hospitalidade. Depois, cria um quadro teórico para tentar dar
conta das possibilidades do ritual do dar – receber – retribuir. Ele atribui a esse quadro as categorias

NARRATIVAS
997

de tempos e espaços da hospitalidade. Mas como pensar os tempos de espaços da hospitalidade em


categorias?
...
Petrópolis, julho de 2017

É importante regressar. São nesses movimentos de vindas e idas que vamos nos aproximando
de outros sentidos das palavras. Vamos iniciar um cotejo com a obra Retirantes de Portinari, para
dialogar fomos em: Derrida, Grinover, Bakthin e tantos outros. Feita uma leitura primeira da imagem,
vamos cotejar com os autores outros sentidos.
Então como pensar a construção dos processos de cidadania? Que aspecto da hospitalidade
podemos compreender na obra de arte? Por que os sujeitos migram? Quais elementos da cidade nos
inquietam?
Na conversa primeira feita em julho de 2017 provocado pela lembrança da visita no museu,
meu olhar para a imagem estava impregnada apenas da questão relacionada a composição artística
da obra, tais como: forma, conteúdo, textura e outros elementos estudados na aula de História da Arte
do curso de turismo. Agora, vou abrir um diálogo da obra com outras leituras.
No Brasil a noção de cidadania foi construída através de muita luta e negociação. Quem
poderia ou não ser considerado cidadão? Não temos por pretensão historicizar como se deu esse
processo no Brasil, nos interessa pensar como esse direito e dever é usufruído por um cidadão e por
outros não. Alves (2008, 148), nos ajuda a compreender a noção de cidadania explicitando que a
mesma “exigiu esforços particulares para se moldarem valores e sensibilidade”. Foi neste sentido
dentro de um campo de disputa que o conceito se formou. A cidadania também pode ser
compreendida como “a qualidade, condição ou estado de um cidadão; o indivíduo no gozo dos direitos
civis ou políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este” (BONAVIDES,
2014).
A noção de cidadania apresentada por Alves (2010) nos contempla para essa composição
textual quando a autora afirma que a noção de cidadania aponta para o pertencimento do sujeito a um
grande corpo. Entendemos também a cidade como esse grande corpo, complexo e por isso podendo
ser estudado e refletido por diversos olhares.
Duarte (2010, p.76), “ressalta que a cidadania é um conceito passível de muitas definições,
nem sempre compatíveis entre si”. O autor afirma ainda que “o tema da cidadania guarda interseções
com o tema da moral”. Embora concordemos com Duarte é importante pensar e refletir sobre a essa
afirmação supracitada. Ainda que a sociedade capitalista seja oposta ao desenvolvimento moral dos
sujeitos, isto não impede que esse processo de construção da cidadania seja tensionado e criticado.
Pelo contrário, não podemos achar que nenhum conceito foi dado passivelmente, que está solidificado,
e por isso não é passível de questionamento.

NARRATIVAS
998

A imagem artística de Portinari, apresenta uma denúncia no processo da construção cidadã e


política no Brasil, apontando que nem todos os sujeitos tinham direito a esse lugar historicamente
construído chamado de cidadania, neste sentido não poderiam ser considerados cidadãos.
O quadro parece “sangrar” nossas mazelas e problemas sociais, ele é uma denúncia aos
problemas sociais mascarados. A ideia de cidadania apresentada por Alves (2010) de que a mesma
“exigiu esforços particulares para se moldarem valores e sensibilidade”, não explicita de forma clara
de quem foram esses esforços. Quem se beneficiou com isso? Não teriam os sujeitos de Portinari
feitos esforços para se tornarem cidadãos? De quais valores morais estamos falando quando
tentamos cotejar a obra de arte com outros olhares?
Depois da minha primeira conversa com Derrida, percebi que ele argumenta que todo
encontro é por princípio hostil, e defende a ideia de nada de hospitalidade. Bakhtin ressalta que “uma
relação indiferente ou hostil é sempre uma reação que empobrece e desintegra o objeto: passa longe
do objeto em toda a sua diversidade, o ignora e o supera” (BAKHTIN, 2012, p.128).
Podemos pensar então que a hospitalidade seria uma concessão do outro? Derrida em
constante diálogo com Platão por meio da figura de Sócrates se demora sobre a leitura da obra O
Político para cotejar na relação com essas outras obras a ideia de hospitalidade. Ele não aceita como
dado o conceito simétrico pautado na antropologia utilitarista como uma hospitalidade presente nas
correntes dominantes da economia.
...
Petrópolis, agosto de 2017.

Outra ideia de hospitalidade que fizemos um breve mergulho foi numa conversa com Grinover.
O autor trata dos aspectos referentes a hospitalidade na cidade; pois para ele trata-se de uma
relação de disputa de poder. Neste sentido a cidade hospitaleira de Grinover apresenta uma noção de
cidadania onde:

A relação que os indivíduos mantém com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos de
uso, nas condições mais banais e acidentais da vida cotidiana.A cidade pode ser entendida como um
espaço concebido, vivido e percebido. Ana Carlos nos lembra que o bairro, a praça, a rua, o pequeno
comércio, aproximam os moradores. Tais lugares podem ser mais do que pontos de troca de
mercadorias. Eles possibilitam o encontro, reformam a sociabilidade. (GRINOVER,2103, p.34)

Então como pensar na cidade como um lugar de hospitalidade no encontro com o outro?
Embora a obra Retirantes seja datada, e tenha uma intencionalidade política e de denúncia, ela foi
elaborada a partir de percepções de uma cidade que não acolhe todos os seus sujeitos. Uma relação
de hospitalidade é uma relação de alteridade, de movimento. Bakhtin nos ajuda a pensar nessa
relação.
Nosso primeiro movimento de compreender a relação entre os sujeitos, a cidade, a
hospitalidade e a cidadania nos faz chegar na palavra encontro. Tudo se dá nessa relação. Todo
encontro é um acontecimento. O acontecimento é da ordem do intratável é imprevisível, fronteiriço,

NARRATIVAS
999

limiar. O cronotopo do encontro é um espaço de acontecimento, o “acontecimento é aquele lugar


aberto pela brecha que separa o efeito das causas” (ZIZEK, 2017, p.9).
É nesse espaço que a vida acontece, ali que a vida se dá.

A vida conhece dois centos de valores, diferentes por princípio, mas correlatos entre si: o eu e o outro,
e em torno deste centros se distribuem e dispõem todos os momentos concretos do existir. Um mesmo
objeto, idêntico por conteúdo, é um momento do existir que apresenta um aspecto valorativo diferente,
quando correlacionado comigo ou com o outro, é permeado de um tom emotivo-volitivo diferente, é
dotado, no seu sentido mais vivo e mais essencial, de uma validade diferente sobre o plano de valor. Isto
não compromete a unidade de sentido do mundo, mas a eleva ao grau de unicidade própria do evento.
(BAKHTIN, 2010, p.142).

O encontro com o outro é sempre um encontro de palavras, de cultura, de processos, é como


se duas palavras estivessem frente a frente, dois diferentes mundos, brigando pelo sentido,
defendendo seu ponto de vista suas verdades epistêmicas. Sobre a palavra, Barenco (2014, pág. 53)
afirma que “a palavra na vida se relaciona com a situação extra-verbal” em que horizonte
compartilhado, conhecimento; compreensão e valorações garantem acesso ao enunciado. As palavras
são impregnadas do sentido de outros. Meu encontro de palavras foi com Bakhtin, nas nossas
conversas dialógicas. Na sua teoria, o outro é imprescindível na construção do eu e é em uma
concepção dialógica que podemos pensar na linguagem.

Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de
alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do
locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão de um em relação ao outro. Através da palavra,
defino-me em relação ao outro, isto é, em últimaanálise, em relação à coletividade. /.../ A palavra é o
território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN, 1981, p. 113).

Essa é uma relação dialógica. Ele explicita que “de minha parte, em todas as coisas, ouço as
vozes e sua relaçãodialógica” (Bakhtin, 2000, p. 413). Sendo assim; a cidade, seus sujeitos, a cidadania
e a hospitalidade só podem ser pensadas na relação com os sujeitos, nos encontros.
...
Petrópolis, setembro de 2017.
“Porque (é primavera)
Te amo (é primavera)
Te amo, meu amor”. Tim Maia

Ouvi outro dia a palavra “escovar” onde a autora usava no sentido de se demorar na palavra.
Escovar, escovação, escovando a palavra. Nosso objetivo aqui foi buscar sentidos outros, olhando
para vários lugares do mundo e contexto onde essa palavra foi empregada. Assim, penso que devemos
escrever, escrever, escrever, até que seja dita uma palavra sua, com sentido único. Enunciada pela
primeira vez, por você. Voltei a conversar com Bakhtin.
Ele diz:

NARRATIVAS
1000

...”Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande
tempo”. (Bakhtin, p. 410, 2011).

Assim Bakhtin abre nossa possibilidade de buscar sentidos outros para as palavras, para
nossas questões, nossas práticas.Voltei perseguindo as palavras compartilhadas aqui, ainda pensando
a questão da cidade, da hospitalidade e da cidadania. Não pude me demorar sobre elas. Continuo
nelas, lendo e aprofundando o entendimento as compreensões pensando na construção, emconversa,
de outraspravdas, disputandosentidos outros e criandooutrasistinas.
Manhã primaveril. O encontro de palavras com a Marisol sempre é um encontro de
alargamento - que evidentemente não cabe aqui - nestas palavras últimas ou primeiras? de um novo
texto - de possibilidades outras - para pensar a vida, na vida. A primavera já aquece um pouco os
nossos corações, ainda extasiados do inverno, traz junto com seu tempo, um tempo de esperança de
renovação e é atrás desse tempo que nós todos estamos. Em alguma medida somos todos retirantes
de nós mesmos, dessas perspectivas colonizadoras e empobrecidas que nos limitam a tempos e
espaços outros distantes das nossas práticas. Estamos, equivocadamente, buscando no grande
tempo, lugares identitários impossíveis de encontrar. Porque somos, no fim, sempre somos um pouco
do outro também. Cada palavra dita, em conversa, é como se fosse um presente dos deuses.

- Sabes isto, se tens um amigo em quem confias e se queres obter um bom resultado, convém misturar
tua alma à dele e trocar presentes e visitá-lo com frequência.
Estrofe do Havamál.

REFERÊNCIAS

ALVES, C. M. C..Problemas da relaçãoeducação-cidadanianahistóriabrasileira. In: Margarida LouroFelgueiras e


Carlos Eduardo Vieira. (Org.). Cultura escolar, migrações e cidadania. 1ed.Porto: Sociedade Portuguesa de Ciências da
Educação, 2010, v. 1, p. 145-162.
BENEVIDES, Maria Victoria. Cidadania e direitoshumanos.Revista de estudosavançados do Instituto de
EstudosAvançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2004. Disponívelem:
<http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/benevidescidadaniaedireitoshumanos.pdf/at_ download/file>. Acessoem:
18 jun. 2017.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal.Tradução: Paulo Bezerra 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BARENCO, Marisol. Pelomenostrês: o coral de apoioe as condições de escuta das palavrasenunciadas. In:
Palavras e contrapalavras: Constituindo o sujeitoem alter- ação. São Carlos: Pedro &JoãoEditores, 2014.
BOFF, Leonardo.Virtudespara um Outro MundoPossível: Hospitalidade: Direito&Dever de Todos.Petrópolis: Vozes,
2006. 1 v.
DUFOURMANTELLE, Anne. Anne Dufourmantelleconvida Jacques Derrida a falar da hospitalidade.Tradução de
Antonio Romane: revisãotécnica de Paulo Otton. São Paulo: Escuta, 2003.

NARRATIVAS
1001

GRINOVER, Lucio. Hospitalidade, qualidade de vida, cidadania, urbanidade: novas e velhas categorias para a
compreensão da hospitalidade urbana. Revista Iberoamericana de Turismo – RITUR, Penedo, vol. 3, n.1, p. 16-24, 2013.
Disponível em: http://www.seer.ufal.br/index.php/ritur . Acesso em: 10 juh. 2017.
GRINOVER, Lucio. A cidade à procura da hospitalidade. São Paulo: Aleph, 2016.
MAUSS, Marcel. Ensaiosobre a dádiva.Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU, 1974.
ZIZEK, Slavoj. Acontecimento: uma história filosófica através de um conceito. Tradução Carlos Alberto Medeiros. 1 ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
1002

E QUANDO ELES NÃO Palavras-Chave:

FALAM?

MUNHOZ, Lucianna Magri de Melo233

S
ou professora de crianças há 18 anos. Posso dizer que na
escola já trabalhei com todas as faixas etárias da Educação
Básica, isso mesmo, já trabalhei com crianças de 0 a 10 anos.
“Como assim 0 anos?” Alguém poderia me perguntar.
Atualmente sou professora na rede municipal de Campinas,
numa sala de berçário com mais outras 6 educadoras, também
conhecidas como monitoras ou agentes de Educação Infantil. Todos
os dias temos sob nossa responsabilidade 30 bebês, de 6 meses a 1
ano e meio.
Entre tantas histórias vividas, gostaria de narrar uma que aconteceu semana passada.
Apesar de não falarem verbalmente os bebês se comunicam o tempo todo, pelos gestos,
olhares, choros, risos, enrijecimento e relaxamento do corpo, estamos sempre os lendo e na medida
do possível entendendo o que desejam.
Conforme vamos recebendo os bebês na porta da sala às 7h da manhã, vamos os colocando
sentados ou deitados num grande tapete com brinquedos que fica no centro da sala.
Gi, é uma bebezinha miúda de 7 meses, olhos atentos a tudo e a todos.
Desde o começo do ano notamos que muitas vezes Gi entra na sala chorando ou então chora
quando a colocamos no tapete. Em sinal claro de protesto enrijece o corpo como se
dissessequenãoera isso que queria.
Nesses momentos ouço todos os tipos de especulação por parte das monitoras:
“ É birra!”, “Não pega no colo que acostuma”,“Ela está ficando mal acostumada” ,”Nossa,
como é brava”, “ Pequenininha e mandona, coitada do namorado dela”... E por aí vai.
Um dos meus objetivos no berçário tem sido de tornar claro que o quanto essas falas
contribuem para a construção da imagem e autoimagem que cada bebê faz de si.

233 Mestre em Educação. Profa. de Educação Infantil da Rede Municipal de Campinas. E-mail: luciannamagri@hotmail.com

NARRATIVAS
1003

Enfim, não é exatamente sobre isso que pretendo discutir aqui, pretendo aqui contar para
vocês um fato não muito elaborado, nem tanto filosófico, mas algo quediz respeito às necessidades
vitais de sobrevivência dos seres humanos, a fome. Isso mesmo, um dia depois de muito espernear
uma monitora olhou para a Gi e disse:
“Será que ela não está com fome?”
E outra respondeu:
“- Não, ela mamou antes de vir pra cá!”
“- E mesmo porque o café da manhã será servido às 7h40.”
“ - É birra! Ela pode espera.”’
“- Mas na dúvida vamos tentar.”
Quando Gi viu a mamadeira seus olhinhos brilharam de alegria. Como um bezerrinho agarrou
na mamadeira e se pudesse bebia tudo num gole só.
Juro que tive vontade de chorar, o constrangimento foi geral. A quantos meses ela está
querendo nos dizer que sentia fome de manhã, que a família não a alimentava porque acreditava que
ela poderia esperar o café da manhã na creche...
Já havia até recebido um apelido, a meu contragosto, de Dona Onça,pela braveza, pelos
protestos. Apelido que foi reforçado por um macacãozinho de estampa de onça que ela sempre usa.
Nós não a soubermos ler...
A narrativa oral produz sentidos em quem narra, assim como, em quem ouve o narrado, mas
ao escrevermos a narrativa temos a possibilidade de nos locomovermos no tempo e nos vermos em
outra perspectiva, o que Bakhtin conceitua como exotopia, “ o autor-criador deve tornar-se outro em
relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos do outro”.(BAKHTIN, p.13, 1994) o caso da
escrita docente o professor tem por meio da escrita a oportunidade de se ver por dentro, por fora e
de fora,a essa capacidade de deslocamento Bakhtin define como excedente de visão.
Quando releio a narrativa do vivido porGi e por nós educadoras, coloco-me a pensar nas
formas como os seres humanos do ocidente,que vivem nos grandes centros urbanos, estão se
organizando de uma outra maneira para criarem seus filhos em espaços coletivos. Quando Benjamin
(1994),no início do século passado, questiona o modo de produção capitalista,ele está questionando a
impessoalidade nas relações humanas, a massificação dos meios de produção, o tempo roubado dos
pais longe dos filhos, a solidão na multidão urbana. Tais circunstancias colocam em risco a narrativa,
colocam em risco a nossa humanidade que se perpetua pela capacidade de narrar. Benjamin destaca
a presença do conselhos presentes nas narrativas:
Um conselho fiado no tecido da existência vivida, é sabedoria. A arte de narrar aproxima-se do
seu fim por extinguir-se o lado épico da verdade, a sabedoria. (BENJAMIN, 1975, p. 65).
A narrativa docente é uma forma de trazer à tona a sabedoria do oficio docente, que não está
alheio as pressões da modernidade.

NARRATIVAS
1004

Se uma criança entra numa instituição pública aos 4 meses de vida e lá permanece 5 dias da
semana por 12 horas, quem vai narrar para esta criança sua história de vida? Quem irá narrar as
histórias de sua família? De sua comunidade?
Outro ponto que pensei foi que cuidar de bebês ainda é um fazer muito doméstico, muito
caseiro, o que pode levar alguns educadores a acharem que podem falar das crianças e de suas
famílias como se estivessem na sala de casa, que aquele ambiente não é um ambiente profissional que
exige uma conduta ética de respeito aos cidadãos que são atendidos por nós. Ainda é um fazer muito
doméstico que precisa de reflexões mais elaboradas por aqueles que o fazem nas instituições.
Se fossem adolescentes ou adultos elas fariam tantos julgamentos sobre a criança ou sobre a
família da criança, como se ela não estivesse presente?
Outro ponto diz respeito ao não lugar do bebê em nossa sociedade que só o considera sujeito
quando começam a falar. Para Bakhtin a vida é uma sequência de significações, e quando isso
começa? As enunciações em relação ao bebê começam muito antes do nascimento, na relação do
casal com a vinda de um filho, na relação que a mãe estabelece com a possibilidade de gerar outro
ser, na descoberta do sexo, na escolha do nome, no desejo dos adultos pela vida daquela criança.
Acredito que não, pois adolescentes e adultos e olhando pelo ponto de vista mais primitivo e arcaico
eles são grandes suficientes para responderem a uma agressão verbal com uma agressão física.
Como narrei estava sempre falando do respeito que devemos ter às crianças e aos familiares,
mas agora me questiono, qual a efetividade destas falas?
Numa reflexão de formação coletiva predomina um senso comum do politicamente correto. As
pessoas na maioria das vezes conseguem se policiar e falarem o que se espera que um educador bem
capacitado diga, mas no mundo da vida os julgamentos de valores continuam como se não houvesse
relação entre o mundo da vida e o mundo da cultura, segundo Bakhtin.
Não seria então a creche um espaço propício de resistência das narrativas para a
perpetuação da nossa humanidade? O que se vê hoje buscando brechas para continuar re-existindo?
Mais uma questão que suscitou minha reflexão foi o fato de não nos colocarmos no lugar do
outro, não imaginarmos que as famílias se organizam de formas diferentes das nossas, pois não
passou pelas nossas cabeças que alguma criança não fosse alimentada ao acordar. No caso desta
criança, não era por falta de condições financeiras, mas pela inexperiência de mãe muito jovem em
imaginar que a criança poderia esperar 2 horas para ser alimentada na creche, ou seja, nós não nos
colocamos na posição da família e muito menos da criança.
Por fim, vale lembrar que são problematizações levantadas por mim, certamente outros
colegas fariam outras. A narrativa da história vivida também faz pensar nos apelidos depreciativos
ligado ao gênero feminino, como se as mulheres não pudessem ser exigentes, discordarem e
protestarem. Qual o comportamento que se esperam das mulheres, por menores que sejam? De que
maneira esta expectativa afeta o vir a ser das meninas?
Quantas questões presentes nesta simples historinha de bebê...

NARRATIVAS
1005

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ºed.
Vol. 1. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

NARRATIVAS
RESUMO
1006
Este trabalho vincula-se ao Programa de Educação
Tutorial Conexões de Saberes, Projeto: Educação

ENUNCIADOS DISCENTES (PETEDU),que tem como escopo a formação de


professores na Educação Infantil (EI). O grupo,
integrado por graduandos oriundos de classe

EM UM PROJETO DE
popular dos cursos de Artes Visuais, de Educação
Física e de Pedagogia, desenvolve atividades
articuladas ao tripé acadêmico de ensino, de
pesquisa e de extensão, ancoradas no referencial

EXTENSÃO teórico metodológico bakhtiniano. Como parte do


eixo de extensão, realiza as atividades extensionista
em parceria com um Centro Municipal de Educação
Infantil (CMEI), com o objetivo de ambientar as
integrantes ao cotidiano da EI e fomentar a
formação docente. Para essa produção, elencamos
enunciados que narram as primeiras vivências no
CMEI de oito novas componentes do grupo,
NASCIMENTO, Karoline Guimarães 234 ingressantes no começo do ano de 2017. Dialogamos
com as narrativas vivenciadas objetivando,
DIAS, Cássia Redovalho 235
considerando os processos formativos, mediados
VIEIRA, Maria Nilceia Andrade 236 pela dialogia estabelecida entre as graduandas, as
docentes e as crianças.

Palavras-Chave: Educação Infantil. Enunciados.


Formação de professores

INTRODUÇÃO

E
ste trabalho vincula-se ao Programa de Educação Tutorial Conexões de Saberes: Projeto
Educação (PETEDU), que tem como escopo temático a formação de professores na Educação
Infantil. O grupo possui um caráter conexista, integrando estudantes oriundos de classe popular,
vinculados as licenciaturas de Artes Visuais, de Educação Física e de Pedagogia. As atividades
desenvolvidas buscar articular o tripé acadêmico de ensino, de pesquisa e de extensão, com
ancoragem no referencial teórico-metodológico bakhtiniano.
No eixo de ensino, dentre as atividades desenvolvidas, destacamos a promoção de grupos de
estudos, o estabelecimento de diálogos com os cursos de origemo e a parceria com a pós-graduação
em educação, permitindo ampliar as vivências formativas do grupo.
No eixo de pesquisa, o grupo desenvolve um primeiro estudo acompanhando a trajetória de
escolarização dos seus integrantes e um segundo estudo focalizando a formação para atuação na

234Graduanda do curso de Pedagogia. Integrante do grupo PET Conexões de Saberes: Projeto Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo. E-mail: guimaraeskarol.n@hotmail.com
² Graduanda do curso de Pedagogia. Integrante do grupo PET Conexões de Saberes: Projeto Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo. E-mail: cassiaredovalho@gmail.com
³ Doutoranda em Educação pela UFES, integrante do Grupo de Pesquisa Formação e Atuação de Educadores ( GRUFAE), professora no curso de
Pedagogia da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha, Pedagoga na Rede Municipal de Vitoria - ES, atuando na Gerência de Planejamento e
Avaliação Educacional (GEPLAN). E-mail: nilceia_vilavelha@hotmail.com

NARRATIVAS
1007

Educação Infantil no curso de Pedagogia, com atenção aos enunciados discentes sobre os processos
formativos vinculados a esse campo de trabalho.
No eixo de extensão, foco deste texto, o PETEDU realiza atividades extensionistas em parceria
com um centro municipal de Educação Infantil localizado em um bairro da Grande Vitória. Participando
de duas jornadas semanais, após integrarem o cotidiano educativo da instituição, os graduando
produzem relatórios narrando seu processo formativo que são compartilhados ao coletivo do grupo,
visando ampliar os processos dialógicos. Cabe ressaltar que as relações estabelecidas na extensão
promovem um movimento interativo entre a universidade e a comunidade, circunscrevendo um
processo formativo entre os profissionais da instituição (formação continuada) e os graduandos
(formação inicial), as crianças e suas famílias.
Nesse contexto, este trabalho tem como objetivoexplorar o período de ambientação das
integrantes do PETEDU no campo extensionista, focalizando os enunciados dos graduandossobre as
relações estabelecidas durante o período de ambientação, ou seja, o período inicial de inserção na
comunidade extensionista. Nesse propósito, entendemos que “[...] cada enunciado é um elo na
corrente complexamente organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 272), permitindo
considerar o diálogo numa rede alargada de interlocutores. Assim, buscamos dialogar com os
enunciados das petianas,237narrados a partir das vivências no campo extensionista, no horizonte da
observação dos movimentos formativos que se estabelecem no encontro com distintos sujeitos que
integram o cotidiano da instituição de Educação Infantil.
Esta produção ancora-se no referencial teórico-metodológico bakhtiniano, numa perspectiva
de pesquisa qualitativa exploratória (MOREIRA; CALEFFE, 2008). Utilizamos como corpus de dados
Relatórios Extensionistas (R), produzidos entre os meses de julho e agosto por oito novas integrantes,
que narraram suas primeiras vivências naEducação Infantil. Elencamos três principais eixos de
análise: aproximação com as crianças; aproximação com as docentes; e o papel da extensão nos
processos formativos. Desse modo, passamos a explorar os enunciados discentes, conforme os eixos
estabelecidos.

1. ENUNCIADOS DISCENTES

Conforme assinalado, com o escopo temático da formação de professores na EI, o PETEDU é


formado por estudantes das licenciaturas de Artes Visuais, Educação Física e Pedagogia. Para a
maioria dos graduandos, é por meio do ingresso no Programa que ocorre o primeiro contato com uma
instituição de Educação Infantil. Os dados informam que o momento inicial do ingresso vem carreado
de expectativas e, muito especialmente, de inseguranças, como destaca o enunciado abaixo:

Por ser um grupo composto por onze mulheres participantes do PET, doravante o termo petiana será utilizado como forma de identificar as
237

participantes do Programa.

NARRATIVAS
1008

É meu primeiro contato em uma escola de educação infantil. Ao chegar fiquei um pouco apreensiva pois
não sabia muito bem o que fazer e como fazer. Me senti muito insegura (e ainda estou) sem as petianas
[ colegas] [...] para me aconselhar. (R1)

Se essa insegurança toma destaque nos momento mais inicial, aos poucos, com os processos
interativos se estabelecendo, vai se desconstruindo os medos. Emerge um processo de
(re)conhecimento e de acolhimento, situado no propósito de contribuir no desenvolvimento das ações
educativas com as crianças e, simultaneamente, investir nos processos formativos.
Considerando os eixos de análise, destacamos que as narrativas informam que a aproximação
com as crianças ocorre de maneira quase que instantânea, a curiosidade infantil movimenta uma
dialogia em direção às petianas. Por serem diferentes, chegando à instituição, as integrantes do
grupo, no primeiro momento de contato foram, de maneira geral, calorosamente recebidas, ganhando
gestos de carinho e de atenção. Todavia, importante considerar as singularidades, visto que também,
ainda que com menores indicadores, temos narrativas de olhares de curiosidade sem grandes
proximidades e de apreensividade pelo o conhecimento do novo, conforme enunciado a seguir:

Ainda na sala, prestei muita atenção nas paredes, brinquedos, mesinhas e nas crianças... eu estava
encantada. Que maravilhoso chegar logo em dia de festa! Me senti muito feliz naquele dia. As crianças
iam chegando aos poucos, já animadas e logo iam ensaiando suas coreografias. Muitas me olhavam meio
torto, deveriam estar perguntando quem era aquela menina estranha, invadindo a sala deles. Eu sorria.
Uma hora ou outra interagia bem com eles, mas ainda estava tímida. (R36)

Dessa maneira, o contato com as crianças indica um processo de aproximação implicado


pelas reciprocidades, mas de maneira geral, os dados informam que as crianças vem na direção das
petianas, buscando tecer possibilidades de conversa. De
todo modo, esse contato se efetiva mediado pelas relação com as professoras e auxiliares de
classe. Nesse quadro, os dados informam que, ainda que seja marcante o acolhimento, ocontato com
as profissionais docentes ocorre de modo mais gradativo, implicando aproximações processuais. No
evento a seguir, retratamos uma narrativa de acolhimento:

Chegando na sala, estavam a professora e a auxiliar, simpáticas me chamaram para entrar e me


aconchegar, logo fomos nos apresentamos e eu falando que estava nervosa, pois era a minha primeira
vez ali, mas elas falaram para ficar tranquila que tudo sairia bem, e muitas experiências terei ao longo
das minhas vivências. (R6)

Enfim, numa síntese,são muitos os movimentos que se estabelecem. Nesses movimentos,


gradativamente, as aproximações vão sendo construídas, movendo parcerias. Nessas parcerias,
muitas são as formas de compreender as ações em curso.
Com o referencial bakhtiniano assinalamos que “Toda compreensão da fala viva, do enunciado
vivo é de natureza ativamente responsiva [...] toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou
naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante” (BAKHTIN, 2011 p. 271). Com isso,

NARRATIVAS
1009

assinalamos os muitos diálogos que vão se estabelecendo, permitindo considerar um movimento vivo
de responsividade, integrando distintos dizeres e várias formas de falar/silenciar, que retratam
concordâncias e também dissonâncias. De todo modo, fortalecem os processos formativos,
possibilitando que as petianas construírem seus horizontes avaliando as perspectivas de atuar na
Educação Infantil.
Então, podemos notar que as vivências no dia a dia culminam no processo de ambientação das
petianas ao local, fortalecendo as parcerias com as profissionais e a aproximação com as crianças.
Os encontros cotidianos, não sem tensões e estranhamentos, são geradores de proximidades,
permitindo apostar nos processos formativos compartilhados e na possibilidade de gerar
pertencimentos ao campo da Educação Infantil.
Na experiências das petianas, por vivenciarem seus primeiros contatos com a docência, essas
relações se mostram como grandes desafios a serem superados. Conquistando o auxílio da
professora e da auxiliar, as relações vão sendo alteradas. Nos dados destaca se que o apoio das
trabalhadoras docentes da instituição se mostra bastante preciso nesse processo. Movendo atos
formativos em direção às iniciantes, as relações vão se fortalecendoaos poucos, possibilitando que
novas dinâmicas aconteçam, ampliando a participação das petianas no dia a dia do trabalho educativo
com as crianças. Nesse movimento, as trocas informam também o apoio das petianas a comunidade
extensionista, compondo atos responsivos às demandas emergentes, como podemos observar neste
enunciado:

No final da festa, ajudamos a retirar a decoração que estava linda espalhada pelo CMEI, e entramos para
a sala aonde havia algumas professoras e auxiliares conversando, [...] falando que seríamos um grande
apoio a elas e que muitas coisas legais estariam para a acontecer ao longo da nossa carreira, nos
dando apoio e nos falando para não desistir da Educação Infantil, pois grandes são as barreiras, mas
também há muitas vitórias a serem conquistadas. (R6)

Assinalamos um quadro que permite considerar os pertencimentos que são gerados,


pertencimento não só a instituição, mas ao campo de trabalho. Ao ingressarem no campo
extensionista, as petianas começam a movernovas reflexões, instadas pela observação e
acompanhamento do cotidiano da Educação Infantil. Ampliam seus olhares e, simultaneamente,
contribuem com seus excedentes de visão aocotidiano do trabalho educativo, interagindo com as
intencionalidades ali movimentadas. Nessa perspectiva, chamamos Bakhtin para observar que, “[...]
em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim,
sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver [...]” (BAKHTIN,
2011, p.21). Então, toma realce os processos de troca, de modo que a articulação com a instituição se
mostra de suma importância para formação das integrantes. O papel da extensão vai sendo
potencializado a partir de cada ida, o contato com o campo vai fomentando a formação permitindo
compor reflexões, como informao evento a seguir:

NARRATIVAS
1010

Fiquei observando que a professora não ajuda as crianças com as bolsas. Quando elas pedem algo a
professora diz o que deve ser feito para que elas façam. Isso reforça a independência da criança, uma
vez que o adulto não precisa fazer aquilo que a criança já sabe fazer [...]. (R28)

Como síntese dos três eixos de análise relativos a aproximação às crianças e às professores
e os processos formativos estabelecidos, realçamos o papel da extensão na mobilização de encontros.
O PETEDU, como um grupo bakhtiniano, valoriza o encontro, por considerar que “[...] sempre que o
outro me encontra, sempre que o outro se dirige à mim, sempre que ele me invade, ele me
incompleta” (MIOTELLO; MOURA, 2014, p. 10). Dessa maneira, o diálogo que ocorre com as crianças e
com as professoras, afetam diretamente os processos formativos, potencializando as relações e
fortalecendo os laços. Aos poucos, os vínculos com a instituição vão sendo construídos de forma a
abarcar as relações com as pessoas e com o ambiente da instituição, reconhecendo lugares e
materiais. Move-se um viver junto, contextualizado, que faz dialogar sobre a Educação Infantil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com os dados assinalamos que os processos formativos das petianas foram se alargando
com o avançar da dialogia no campo extensionista. A partir do primeiro encontro com o centro
municipal de Educação Infantil, os olhares sobre o campo começam a ser modificados, tocados pelos
novos encontros. As relações com as docentes e auxiliares, na alteridade constitutiva da vida, movem
diálogos que, não sem tensões, produzem novas formas de ver e situar-se nesse encontro.Dessa
forma, temos que em meio a tempos turbulentos em nosso país, o grupo PETEDU tenta de alguma
maneira contribuir com a comunidade para de alguma forma ir contra as intolerânciasvividas no atual
momento. Com o intuito de aprender junto com o próximo, por meio dos diálogos e vivências,
marcamos a possibilidade de fazer encontrar sujeitos em diferentes etapas do processo formativo.
Nas diferenças, mover redes de apoio e aprendizados recíprocos. Os enunciados discentes sugerem
que o periodo de ambientação vai se compondo, não sem tensões, reunindo excedentes de visão,
geradores de aproximações. Mediados especialmente pelo acolhimento das crianças, as relações vão
se estreitando, tornando a comunicação mais ativa responsiva e, com isso, fomentadora da aposta na
formação.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal / Mikhail Bakhtin: 6ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2011.
MIOTELLO, V.; MOURA, M.I.de. A alteridade como lugar da incompletude. São Carlos: Pedro &amp; João Editores, 2014.
MOREIRA, H.; CALEFFE, L. G. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina,
2008.

NARRATIVAS
RESUMO
1011

O texto apresenta parte do estudo realizado para o

O ENCONTRO COM A desenvolvimento do delineamento metodológico de


uma pesquisa de mestrado em curso, no campo da
formação continuada, que se desenvolve no

PESQUISA NARRATIVA: a
contexto da educação infantil. Com referencial
bakhtiniano (1997, 2006, 2010), numa perspectiva
da alteridade como marca insubstituível da
constituição a humana, busca-se, nos enunciados de
singularidade de um modo dialógico de uma ciência outra, de um modo não linear e não
estruturado de pesquisar, compartilhar parte da
produção de conhecimento trajetória de produzir uma pesquisa narrativa no
campo da formação continuada na educação
infantil.

Palavras-Chave: Educação Infantil. Formação


NOVAIS, Ruslane Marcelino de Mello Campos 238
continuada. Narrativas

CÔCO, Valdete 239

INTRODUÇÃO

R
esistir à naturalização da sensação de repugnância política, que tem se disseminado no contexto
brasileiro, na atualidade,se apresenta como um importante desafio a ser enfrentado. E a
proposição de que seu enfrentamento se dê também,pela via das narrativas, veio ao encontro
dos dilemas que temos vivenciado na construção de um caminho para a produção de uma pesquisa
narrativa no campo da formação continuada.
Nesse texto, abordamos parte do estudo que realizamos para o desenvolvimento do
delineamento metodológico de uma pesquisa de mestrado em curso, no campo da formação
continuada, que se desenvolve no contexto da educação infantil. Em nossa pesquisa, buscamos as
narrativas de professores formadores que participaram de um projeto de formação continuada
institucional desenvolvido em âmbito municipal.
Com base no referencial bakhtiniano (1997, 2006, 2010), na perspectiva de que a alteridade
constitui uma marca da humanidade, assinalamos a necessidade do outro na constituição dos sentidos
da vida. Assim, na busca dos enunciados de uma ciência outra, de um modo não linear e não
estruturado de pesquisar, nos limites desse texto, intecionamos compartilhar parte da trajetória de
produzir uma pesquisa narrativa no campo da formação continuada na educação infantil.
Nesse propósito, iniciamos apresentando uma reflexão sobre as escolhase responsabilidades,
na busca de situar a concepção bakhtiniana de responsabilidade nos contextos de cultura e de

238 Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE/Ufes); integrante do
Grupo de Pesquisa Formação e Atuação de Educadores (Grufae). E-mail: ruslanemello@hotmail.com.
239
Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora no Departamento de Linguagens Cultura e Educação (DLCE) e
no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); coordenadora
do Grupo de Pesquisa Formação e Atuação de Educadores; tutora do Programa de Educação Tutorial Conexões de Saberes: Projeto Educação
(PET EDU). E-mail: valdetecoco@hotmail.com.

NARRATIVAS
1012

sociedade contemporâneos. No segundo tópico, abordamos os caminhos epistemológicos trilhados


para compreender e fundamentar a base metodológica de nossa pesquisa. Seguimos, no terceiro
tópico, discutindo a impossibilidade da neutralidade na pesquisa narrativa, reiterando as marcas de
uma ciência outra. No tópico seguinte, apresentamos uma reflexão sobre a relação dos sujeitos com o
tempo e a memória, numaaproximação com a pesquisa que estamos desenvolvendo, na especificidade
das narrativas de vivências rememoradas e ressignificadas em meio aos dilemas do presente.
Com essa arquitetônica, passamos ao primeiro tópico, iniciando nossas reflexões acerca da
responsabilidade na contemporaneidade.

1. ENTRE ESCOLHAS E RESPONSABILIDADES

A todo tempo, somos instados a escolher, no entanto, na maioria das vezes, alguém já
escolheu por nós. Somos inundados com informações acerca decomo devemos nos vestir, que tipo de
comida devemos comer, como devemos viver nossas vidas. Padrões de beleza e valores morais são
socialmente estabelecidos e, na maioriadas vezes, são seguidos, ainda que a maior parte dos sujeitos
não se vejam representadospor esses padrões ou perfis. São processos homegeneizadores que
geram nos sujeitos um movimento constante de tentar se encaixar nos padrões pré-estabelecidos.
Com isso, no mundo contemporâneo, as escolhas passam a depender da informação. Há uma
necessidade constante por obter sempre cada vez mais informações: saber o que se está usando
ultimamente, que tipo de casa está sendo construída, qual a dieta da moda...Nessa perspectiva, é
possível afirmar que quanto mais informações o sujeito recebe,menores são suas possibilidades
deefetuar de fato suas próprias escolhas.Na discussão dessa afirmativa recorremos a Bauman (2010,
p. 33), que na abordagem da produção de cultura pela sociedade contemporâneaafirma que

[...] a cultura é feita na medida da liberdade de escolha individual (voluntária ou imposta como
obrigação). É destinada a servir às exigências desta liberdade. A garantir que a escolha continue a ser
inevitável: uma necessidade de vida e um dever. A assegurar que a responsabilidade, companheira
inseparável da livre escolha, permaneça lá onde a condição líquido-moderna a colocou: a cargo do
indivíduo, apontado hoje como único administrador da "política da vida".

Assim, na mesma medida em temos a “liberdade” de escolher, somos responsabilizados e


cobrados por essas “escolhas” e seus resultados em nossas vidas. Nessa perspectiva, estamos
enredados em um movimento constante de uma cultura que agora se constitui por ofertas, pela
sedução, pela criação de necessidades, desejos e exigências de consumo, estimulada pelas mesmas
forças que promovem a emancipação do mercado das demais instituições de controle sociais
(BAUMAM, 2010).
Esse conjunto de sensações culturalmente criadas perpassa todos os âmbitos da vida social e
é fortemente reconhecido na educação, impactandoa formação de professores, cujo mercado tem se
apresentado voraz nos últimos tempos. Acerca dessa temática, Nóvoa (2009, p. 23) assinala que:

NARRATIVAS
1013

Muito programas de formação contínua tem-se revelado inúteis, servindo apenas para complicar um
quotidiano docente já de si fortemente exigente. É necessário recusar o consumismo de cursos,
seminários e ações que caracteriza o atual “mercado da formação” sempre alimentado por um
sentimento de “desatualização” dos professores.

Esse sentimento de desatualização se justifica pelo investimento de uma economiacentrada no


consumidor, baseada no excesso de ofertas, no envelhecimento cada vez mais veloz do que se
oferece,que gera a rápida dissipação do desejo (BAUMAN, 2010, p. 35).
No campo da formação continuada, apostamos nas narrativas como uma das formas de
resistir ao sentimento de desatualização que enfraquece e fragmenta o professor, uma vez que elas
podem possibilitar a produção de uma “narrativa de si”. As narrativas “de” formação continuada ou
“na” formação continuada, consideramo sujeito na vida, articulando vida, trabalho e formação.
Acreditamos na potência das narrativascomo forma de possibilitar, no movimento de narrar a própria
vivência formativa, a tomada de consciência não apenas do que falta, mas também do que está. Olhar
para si e para as próprias experiências na possibilidade de, na “narrativa de si”,resistir ao
consumismo proposto pelo mercado que desconsidera o outro no processo formativo e, fazer
escolhas próprias, numa tomada de consciência de sua formação.
Com isso, na busca de compreender, no referencial bakhtiniano, a relação entre escolha e
responsabilidade, situada nos contextos de cultura e de sociedade contemporâneos, trazemos a
assertiva de que

Cada um dos meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos
atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto, porque a vida inteira na sua
totalidade pode ser considerada como uma espécie de ato complexo: eu ajo com toda a minha vida, e
cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu viver-agir (BAKHTIN, 2010, p. 44).

Com aperspectiva bakhtiniana indagamos uma perspectiva de que escolha e responsabilidade


são exclusivamente socialmente impostas por padrões previamente estabelecidos fora dos sujeitos,
chamando a atenção para a atuação dos sujeitos. Cada pensamento já se constitui num ato singular,
componente da vida, sobre o qual o sujeito tem inteira responsabilidade. A potência das narrativas
consiste na proposição de que, na retomada do curso da atuação docente, da formação e da vida, os
professores tenham a possibilidades de pensarem sobre sua atuação, tomando consciência de sua
própria formação, indagando ossentidos às experiências vividas.
Nesse contexto, as narrativas se apresentam como fonte e como meio de produção de
conhecimento, na medida em que “cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na
comunicação sócio-ideológica” (BAKHTIN, 2006, p. 42). Assim, as narrativas de umgrupo (no nosso
caso, de professores da educação infantil) são marcadas por seu tempo e espaço.
Narrar a participação em uma experiência de formação continuada me insta pensar sobre o
vivido, não apenas em uma perspectiva memorialista mas, especialmente acerca dos sentidos
atribuídos ao vivido. Nesse sentido, recorreremos a Bakhtin, para considerar que:

NARRATIVAS
1014

[...] Esta participação assumida como minha inaugura um dever concreto: realizar a singularidade
inteira como singularidade absolutamente não substituível do existir, em relação a cada momento deste
existir. E isso significa que esta participação tranforma cada manifestação minha - sentimentos,
desejos, estados de ânimo, pensamentos – em um ato meu ativamente responsável (BAKHTIN, 2010, p.
118).

Assim, no processo de delineamento da pesquisa, na busca dos sentidos atribuídos pelos


sujeitos a suas vivências de formação, as narrativas se apresentam como um caminho, talvez o único
possível nesse contexto, para possibilitar a produção e a expressão dos sentidos dos professores
acerca do vivido. Narrativas produzidas nas relações que estabelecemos com o outro sobre a
formação, num movimento compartilhado de resgate de memórias do passado, significadas pelos
sentidos do presente, movendo perspectivas de futuro.
Com isso, marcamos a escolha da metodologia narrativa de pesquisa como um ato consciente
e responsável e passamos ao próximo tópico, onde abordaremos os caminhos epistemológicos
percorridos para a compreensão da metodologia narrativa e o encontro das especificidades que se
articulam ao estudo que estamos desenvolvendo.

2. CIRCUNSCREVENDO A METODOLOGIA NARRATIVA: os caminhos para encontrar o nosso


caminho

A escolha da terminologia que circunscreve esse tipo de abordagem é algo complexo, uma vez
que, como afirma Pineau (2006, p. 41), “a flutuação terminológica em torno das histórias e relatos de
vida, biografias e autobiografias é indicativa da flutuação do sentido atribuído a essas tentativas de
expressão da temporalidade vivida pessoalmente”. Nesse mesmo mote, Souza (2007) afirma que a
variedade de terminologias utilizadas nesse tipo de pesquisa está relacionada ao interesse do
pesquisador e sinaliza para uma maior ou menor demarcação da autonomia do entrevistado em sua
produção discursiva. O autor ainda assinala como escolha terminológica o fato de as experiências dos
sujeitos serem utilizadas em recortes temáticos ou em sua totalidade. Assim

Autobiografia, biografia, relato oral, depoimento oral, história de vida, história oral de vida, história oral
temática, relato oral de vida e as narrativas de formação são modalidades tipificadas da expressão
polissêmica da história oral. Nas pesquisas na área de educação adota-se a história de vida, mais
especificamente o método autobiográfico e as narrativas de formação, como movimento de
investigação-formação, seja na formação inicial ou continuada de professores/professoras (SOUZA,
2007, p. 67).

Ainda para o autor, pesquisar as memórias, as narrativas dos sujeitos e suas histórias de
vida, compreendendo-as como possibilidade de produção de conhecimento, é um movimento que tem
crescido e que se apresenta também como uma negativa ao modelo positivista de “coleta” de dados,

NARRATIVAS
1015

na busca de similaridades generalizantes. “É, portanto, da contestação do positivismo, que emergem


as possibilidades de um novo paradigma compreensivo” (SOUZA, 2007, p. 62).
Na mesma direção, para Nóvoa (1992), a utilização de abordagens (auto)biográficas se deve a
uma insatisfação das ciências sociais com o tipo de conhecimento até então produzido e a uma
necessária renovação do conhecimento científico. No Brasil, o movimento biográfico ou autobiográfico
se vincula às pesquisas na área da educação, quando estas tomam as narrativas dos sujeitos como
perspectiva de pesquisa e de formação (SOUZA, SOUSA, CATANI, 2007 apud SOUZA, 2007).
Num delineamento mais específico desse tipo de abordagem, Queiroz (1981) distingue as
narrativas como depoimento das narrativas de histórias de vida. Nas narrativas de histórias de vida, a
escolha do que será narrado sobre sua vida é do próprio narrador. Já nas narrativas como
depoimento, o pesquisador tem a possibilidade de orientar o informante diante do objeto e das
questões estudadas.
Nesse universo de possibilidades, a proposição de que os professores narrem sua vivência
formativa circunscrita à especificidade temática da formação continuada na educação infantil, sem
desconsiderar os atravessamentos próprios da vida de cada sujeito, se enuncia como possibilidade de
produção de conhecimento numa ciência outra, no reconhecimento da força das relações entre língua
e vida (BAKHTIN, 1997).
A complexidade de definir terminológicamente a metodologia que se utiliza das narrativas
para a produção de dados e de conhecimento, pode ser melhor compreendida com o pensamento de
Bakhtin sobre a definição da unidade real da comunicação verbal:

A indeterminação e a confusão terminológicas acerca de um ponto metodológico tão central no


pensamento lingüístico resultam de um menosprezo total pelo que é a unidade real da comunicação
verbal: o enunciado. A fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo: do
sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um
sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. Quaisquer que sejam o volume, o conteúdo, a
composição, os enunciados sempre possuem, como unidades da comunicação verbal, características
estruturais que lhes são comuns, e, acima de tudo, fronteiras claramente delimitadas (BAKHTIN, 1997, p.
293).

Nessa perspectiva, as narrativas de formação são os enunciados dos sujeitos da pesquisa,


enunciados produzidos em situações comunicativas reais acerca de vivências formativas. Cabe
observar que conformar os enunciados da pesquisam em um determidado gênero metodológico, dada
a variedades de possibilidades que a produção de narrativas permite, constitui-se em um grande
desafio. Acerca dessa dificuldade, Serodio e Prado (2015, p. 100) afirmam que

A metodologia narrativa de pesquisa parte das relações reais para produzir a concretude de seus
enunciados. Porém, como só no gênero é possívelfalar qualquer coisa a qualquer pessoa, e como se
confundem essas unidades de comunicação com estruturas que se querem fixas e não relativas aos
contextos sociais, pesquisadores são levados a considerar o gênero como uma camisa de força e

NARRATIVAS
1016

investem tempo precioso nesse conflito, quando sentem que precisam dizer de outro modo ou então a
aceitar e a se submeter, distanciando-se até mesmo de seus interesses com a própria pesquisa.

São resquícios de um modo positivista de fazer ciência que ainda tensionam no interior da
proposição de se constituir como uma ciência outra. Uma ciência humana que ainda vacila,
demonstrando a necessidade de se afirmar como ciência pela suposição de uma neutralidade do
pesquisador, relacionando rigor metodológico à controle de produção de dados.
Na compreensão de que humanidade e neutralidade são palavras cujos sentidos são de difícil
articulação, passamos ao tópico seguinte onde abordaremos mais especificamente a questão da
neutralidade na pesquisa narrativa.

3. DA IMPOSSIBILIDADE DA NEUTRALIDADE

As narrativas fazem parte da história da humanidade. Damos acabamento aos acontecimentos


da vida com nossas narrativas. Narramos fatos, experiências, sonhos e sentimentos. "Não há
experiência humana que não possa ser expressa na forma de uma narrativa" (BAUER; JOVCHELOVITCH,
2002). Assim, na pesquisa por meio das narrativas de formação, compreendemos que

Narrar é enunciar uma experiência particular refletida sobre a qual construímos um sentido e damos
um significado. Garimpamos em nossa memória, consciente ou inconscientemente, aquilo que deve ser
dito e o que deve ser calado (SOUZA, 2007, p. 66).

Entendemos a narrativa como uma das principais formas de comunicação humana, e cada narrativa se
constitui num enunciado único e singular. Ela não é a realidade, mas uma representação do sujeito
acerca do vivido e que, portanto, guarda os sentidos singulares de um ponto de vista. Para Bakhtin
(1997, p. 317, grifos do autor):

As tonalidades dialógicas preenchem um enunciado e devemos levá-las em conta se


quisermos compreender até o fim o estilo do enunciado. Pois nosso próprio pensamento — nos
âmbitos da filosofia, das ciências, das artes — nasce e forma-se em interação e em luta com o
pensamento alheio, o que não pode deixar de refletir nas formas de expressão verbal do nosso
pensamento.
Nessa abordagem, buscamos a palavra do outro e, por meio dela, nos aproximamos dos
diferentes sentidos que podem ser atribuídos aos encontros vivenciados no processo de formação
continuada. É na totalidade dialógica do enunciado do outro, expresso por meio de suas narrativas,
orais ou escritas, que buscaremos esses sentidos, visando construir nossa compreensão, num
processo de interação - e, por que não de luta? - com o pensamento alheio.
O envolvimento dos professores na produção dos dados, na completude de seus enunciados,
se apresenta como caminho a ser trilhadoem nossa pesquisa, considerando que, nesse processo “[...]
os professores são, ao mesmo tempo objeto e sujeitos da formação. É no trabalho individual e coletivo

NARRATIVAS
1017

de reflexão que eles encontrarão os meios necessários ao desenvolvimento profissional” (NÓVOA,


2002, p. 22).
Com essa premissa, nos encaminhamos ao encontro com o outro na perspectiva que desse
encontro nenhum de nós saia “ileso”, ou seja, é interesse que os sujeitos envolvidos (professores,
formadores e pesquisador) se alterem mutuamente e que desse encontro saiamos maiores, mais
fortes. Acreditamos que, no processo de produção de dados na pesquisa narrativa, os sujeitos se
potencializam tanto no encontro consigo mesmos, quanto na possibilidade de que seus enunciados
cheguem a muitos outros.

[...] Quando as narrativas em sua forma de enunciado oral típico da educação básica saem dos muros da
escola e passam e ser vistas como enunciados escritos úteis para compor os dados de pesquisa do
campo educacional, acontece uma valorização desse gênero e de seus produtores (SERODIO, PRADO,
2015, p. 91).

Na perspectiva de valorização dos saberes docentes e no reconhecimento de que é impossível


separar o eu profissional do eu pessoal (NÓVOA, 1992), optamos por uma metodologia que privilegie os
dizeres docentes sobre o que viveram no processo de formação continuada e também em outros
processos que considerem constitutivos de sua formação. Rememorar, no intuito de narrar suas
vivências formativas, implica no exercício de organizar, articular e significar o vivido. Segundo Josso
(2007, p. 419)

A história de vida é, assim, uma mediação do conhecimento de si em sua existencialidade, que oferece à
reflexão de seu autor oportunidades de tomada de consciência sobre diferentes registros de expressão
e de representações de si, assim como sobre as dinâmicas que orientam sua formação.

É com essas memórias únicas, individuais, mas também constituídas na coletividade, que
pretendemos conversar. São memórias que compartilhamos na ordem do vivido, enquanto
formadores e professores em projetosformação continuada, mas que podem assumir tonalidades
muito distintas na ordem dos sentidos, uma vez que os processos formativos vivenciados por cada um
são concebidos de modo singular. Assim, a escolha da metodologia narrativa é uma escolha implicada
nas vivências do próprio pesquisador. Nas palavras de Serodio e Prado (2015, p. 100):

A pesquisa narrativa, para ser o que entendemos como metodologia narrativa de pesquisa em Educação,
exige que o pesquisador se coloque como participante da pesquisa, de maneira subjetiva, implicada e
nada neutra, com seus atos responsivos ao que vier, inclusive conflitos.

Nessa perspectiva de negativa da neutralidade, nos posicionamos de modo responsável e


responsivo no encontro com o outro e com seus sentidos, no desafio de buscar sempre uma posição
exotópica, a fim de considerar o pensamento do outro em dialogia com nosso próprio pensamento.
Desse modo, compreendemos que a

NARRATIVAS
1018

[...] pretensão de objetividade, racionalidade e neutralidade do pesquisador, desejável pela visão


cartesiana de ciência que impera ainda sobre nossas produções têm uma direção diversa do percurso
narrativo, que baseia-se em nossa subjetividade, sensibilidade, parcialidade na tomada de decisões
(SERODIO, PRADO, 2015, p.93).

Com esse conceitual, marcamos uma compreensão da formação continuada como espaço
potencialmente dialógico e polifônico e vinculamos essa compreensão ao modo como pensamos a
pesquisa sobre essa temática. Assim, no reconhecimento da impossibilidade da neutralidade na
pesquisa narrativa, avançamos para o tópico seguinte onde discutimos a relação com os sujeitos, o
tempo e a memória.

4. A RELAÇÃO COM OS SUJEITOS, O TEMPO E A MEMÓRIA

O conhecimento do contexto de produção das narrativas e de um perfil dos sujeitos é


importante na medida em que podem auxiliar na análise dos enunciados, uma vez que

O princípio da interlocução refere-se à ideia de que tudo aquilo que é dito é dito a alguém. Se quero
analisar a palavra do outro enquanto enunciado e não enquanto frase, é preciso levar em conta quem é
o interlocutor (AMORIM, 2004, p. 259).

Considerar “quem” está narrando e “para quem” o faz, é fundamental no movimento de


compreensão e análise dos sentidos daquela narrativa, num reconhecimento da singularidade dos
sujeitos e dos diferentes papéis que cada um pode ocupar.
Assim, reconhecemos a importância de considerar os grupos e os sujeitos em suas
singularidades, assumimos também que […] nas ciências humanas, seu objeto de estudo é o homem,
“ser expressivo e falante”. Diante dele, o pesquisador não pode se limitar ao ato contemplativo, pois
encontra-se perante um sujeito que tem voz, e não pode apenas contemplá-lo, mas tem de falar com
ele, estabelecer um diálogo com ele (FREITAS, 2002, p. 24, grifos da autora).
Compreender o enunciado do outro não é possível do exterior, uma vez que a natureza da
compreensão é dialógica, assim, é preciso entrar em dialogia com os enunciados para compreender
(BAKHTIN, 1997, p. 355), é preciso entrar em dialogia com os sujeitos.
No reconhecimento de que “[...] a lembrança é uma imagem construída pelos materiais que
estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual”
(BOSI, 2009, p. 55)registros do passado, construídos no curso dos acontecimentos, podem colaborar
com o processo de rememoração e produção das narrativas. Também atuam como auxiliares na
análise dos dados produzidos em função de serem marcados pelos sentidos de um outro presente.
Na recordação que temos habitualmente de nosso passado, esse outro é muito ativo e marca
o tom dos valores em que se efetua a evocação de si mesmo (nas recordações da infância, é a mãe
incorporada a nós mesmos). O modo tranqüilo em que se efetua a rememoração de meu passado

NARRATIVAS
1019

remoto é de natureza estética e a evocação se aproxima formalmente da narrativa (as recordações


aclaradas pelo futuro do sentido são recordações penitentes). A memória do passado é submetida a
um processo estético, a memória do futuro é sempre de ordem moral (BAKHTIN, 1997, p. 167).
Nessa compreensão, o tempo presente medeia as memórias de passado e de futuro, dando ao
passado um acabamento, conformando-o num processo estético de traduzí-lo numa narrativa. Com o
olhar do presente,implicado nas vivências que sucederam o acontecimento, é possível acessar as
lembranças do passado e a elas atribuir um sentido talvez novo e distinto do atribuído à vivência no
passado, um sentido afetado pelo presente e pela memória de futuro que esse presente permite
produzir.
Assim, as narrativas podem ser buscadas pelo pesquisador em dois tipos de materiais: os
primários, que são as narrativas produzidas no contato direto com os sujeitos, e os secundários:
documentos oficiais, correspondências, enfim, materiais de diferentes espécies que contenham
informações sobre o objeto estudado. Cabe observar que, uma vez que partimos das memórias de
vivências de formação e, como já assinalamos, as memórias são representações particulares,
reconstruções, acerca do vivido, acreditamos que o encontro com esses materiais pode ser potente
na medida em que possibilitar o preenchimento de lacunas deixadas pela memória.
Nessa conformidade, reiteramos que, além de ampliar as informações, esses documentos
podem se constituir em fontes importantes para nos auxiliar nas análises, na medida em que nos
auxiliam a articular as vivências narradas pelos sujeitos num determinado contexto histórico. Nesse
mote, Souza (2007, p. 63) afirma que

Quando invocamos a memória, sabemos que ela é algo que não se fixa apenas no campo subjetivo, já que
toda vivência, ainda que singular e auto-referente, situa-se também num contexto histórico e cultural. A
memória é uma experiência histórica indissociável das experiências peculiares de cada indivíduo e de
cada cultura.

A pesquisa narrativa se constitui numa perspectiva de alteridade, no reconhecimento de


excedente de visão como fundamental no processo de busca dos sentidos do outro e de produção de
nossos próprios sentidos sobre a formação continuada na educação infantil.

Trabalhar com narrativas não é simplesmente recolher objetos ou condutas diferentes, em contextos
narrativos diversos, mas, sim, participar na elaboração de uma memória que quer transmitir-se a partir
da demanda de um investigador. Por isso, o estudo autobiográfico é uma construção da qual participa o
próprio investigador [...] (ABRAÃO, 2003, p. 85).

Com nosso referencial, compreendemos a impossibilidade de, no encontro real com o outro,
permanecermos imparciais. A responsabilidade consiste em tomar parte, participar, ouvir o
enunciado do outro e a ele responder, como ato responsável e também responsivo. Assim, assumimos
em nossa pesquisa uma posição exotópica, com a possibilidade de compartilhar o mundo com o outro,

NARRATIVAS
1020

mas sem perder o nosso lugar singular e a nossa visão única, reconhecendo que ao outro também é
resguardado seu lugar único e singular. Nas palavras de Bakhtin (1997, p. 43, grifos do autor):
Esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é condicionado
pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de
dadas circunstâncias — todos os outros se situam fora de mim.

Assim, a produção de dados se dá no encontro “com” e “entre”os sujeitos e seus enunciados,


na compreensão da singularidade do olhar e da vivência de cada um. Esses sujeitos, na relação
dialógica formativa com a pesquisadora, contribuem com a produção dos dados do estudo, por meio
de suas narrativas e seu excedente de visão, num movimento de intercâmbio de memórias, de
sentidos e de saberes, uma vez que “[...] ensinamos aquilo que somos e que, naquilo que somos, se
encontra muito daquilo que ensinamos” (NÓVOA, 2009, p. 38).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escolha da metodologia narrativa para a realização da pesquisa já fala de um compromisso


com os sujeitos, uma escolha implicada, responsável e responsiva, que parte da premissa de que a
produção de conhecimento se dá de modo dialógico. No encontro com o outro e com seu modo
singular de narrar o vivido na formação continuada no contexto da educação infantil, é que os
sentidos se articularão na possibilidade de confirmar, refutar ou criar uma outra forma de
compreender a formação continuada.
Assim, na apresentação dos caminhos percorridos para encontrar nosso caminho, nosso
modo de pesquisar com as narrativas, evidenciamos o encontro com alguns dos referenciais do
campo que nos auxiliaram no entendimento da variedade de possibilidades e no fortalecimento do
investimento numa abordagem em que sujeito e pesquisador, numa relação dialógica, compartilhem,
com seu excedente de visão, a incumbência de narrar e significar suas vivências formativas.
Nessa compreensão, reiteramos a crença na potência das narrativas “na” e “da” formação
continuada pela possibilidade de assunção de um lugar exotópico, que permita a observação de si, e a
produção de um acabamento estético, ainda que provisório, das vivências formativas.
Apostamos na reunião dos sentidos dos distintos sujeitos sobre a vivência compartilhada
como modo de mover pensamentos sobre o campo, no intuito de melhor compreender a potência do
espaço formativo pela via do olhar alheio, reconhecendo a multipliciplicidade dos processos de
produção de sentidos, reunindo diferentes pontos de vista.

REFERÊNCIAS

ABRAÃO, M. H. M. B. História da Educação. ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 14. p. 79-95, set. 2003. Disponível em:
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AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004.

NARRATIVAS
1021

BAUMAN, Z. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Zahar: Rio de Janeiro, 2010.
BAKHTIN, M. M.Para uma filosofia do ato responsável. 2. ed. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
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Elizeu Clementino de Souza. In NASCIMENTO, A. D; HETKOWSKI, T. M. (orgs.)Memória e formação de
professores[online].Salvador: EDUFBA, 2007. p. 58 – 74.Disponível em <http://books.scielo.org>. Acesso em: 19 mai.
2017.

NARRATIVAS
RESUMO
1022
Uma das franquias de filmes de ficção cientifica
mais famosas e assistidas pelo mundo, Star Wars
mostra o mundo, em sua primeira trilogia chamada

UM ESTUDO SOBRE popularmente de trilogia clássica, a figura do Darth


Vader, com todo ser poder e força, como um
ditador, fascinado por mais poder, em uma

DISTOPIA NO CINEMA: Star


sociedade que começou a decair com a corrupção
social e política, é a personagem mais marcante.
Isso não está muito distante da realidade, do mundo
atual, em que populações estão perdendo seu
Wars é distopia ou não? espaço para elites tiranas, o que leva à reflexão de
que essa trilogia pode ter características do gênero
literário distopia, por se tratar de uma realidade
social futurística. Com isso, pensando no conceito
de poder de Michael Foucault e na concepção de
linguagem de Mikhail Bahktin, este trabalho tem
OLIVEIRA, Mikaela Silva de 240
como objetivo problematizar, por meio da análise da
trilogia clássica de Star Wars, como as distopias
CASADO ALVES, Maria da Penha241 estão ganhando forma nos filmes, ainda que, em
casos como este, não esteja consolidado como uma
distopia, mas que possui características desse
gênero, e como é importante que tais
características sejam mostradas em filmes como
INTRODUÇÃO estes. A pesquisa se insere na área da Linguística
Aplicada e se orienta por uma perspectiva
interpretativista para a análise dos filmes.
notável o quanto Star Wars atingiu e atinge tantas pessoas

É desde 1977, com o lançamento do primeiro filme – inicialmente


chamado somente de Guerra nas Estrelas – Episódio IV - Uma
nova esperança, filme este que deu o pontapé para o lançamento de
Palavras-Chave: Distopia. Star Wars. Gêneros do
discurso. Filme

muitos outros episódios, episódios que estão sendo desenvolvidos até hoje. Porém, neste trabalho, não
teremos um foco nesse sucesso e, sim, no desenvolvimento das histórias desses filmes,
principalmente, do primeiro lançamento, que tem diversos elementos que atraem, não só do gênero
ficção científica no qual ele se insere, mas também do gênero distopia. Esse é o objetivo deste artigo:
encontrar traços de distopia em pelo menos um dos filmes de Star Wars, e o escolhido foi o episódio
IV, justamente por ser o primeiro.
Para tanto, este trabalho segue a concepção de linguagem e gênero discursivo de Mikhail
Bahktin. Para esse pensador, os gêneros discursivos como “todos os enunciados têm formas
relativamente estáveis e típicas de construção de conjunto.”(BAHKTIN, 2016, p. 38), isto é, gêneros do
discurso são mutáveis de acordo com a evolução do tempo e da língua, nem sempre permanecendo os
mesmos, pois acompanham a sociedade, a história e as interações nas diferentes esferas de
circulação. Para discutir a presença de elementos distópicos no filme de Star Wars, será focada
também a presença da figura do Darth Vader como principal aspecto para a inserção de distopia
neste filme, tomando como base o conceito de poder estabelecido por Michel Foucault, que afirma:

240 Bolsista de iniciação científica PROPESQ (IC), graduanda do curso de letras – língua portuguesa e literaturas, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Email: mikaella_hsm@hotmail.com.
241
Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves. Professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atua como pesquisadora em Linguistica Aplicada, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem e no ProfLetras, tendo como referência os pressupostos de Bakhtin e o Círculo. Email: penhalves@msn.com

NARRATIVAS
1023

[…] não o próprio mecanismo da relação entre poder, direito e verdade, mas a intensidade da relação e
sua constância, digamos isto: somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e
que necessita dela para funcionar, temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a
confessar a verdade ou encontrá-la. [...], somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a
verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos me parte, decide; ele veicula, ele próprio
impulsa efeitos de poder. (FOUCAULT, 2010, p. 22)

Assim, tomando como base a visão de que o poder e a verdade estão interligados para a
pessoa que exerce esse possa conquistar o que deseja, sendo esta verdade aquela que chamamos de
norma, a verdade absoluta proposta pelos regimes totalitários, como será visto ao falar de distopia
aqui neste texto.
A partir dessas leituras e da análise interpretativista do filme escolhido, buscamos esclarecer
o gênero distopia, como ele se organiza em outros meios, além de livros, e se ele se encaixa ou não
totalmente como constituinte dos filmes da franquia Star Wars. Para isso, primeiramente
apresentaremos informações sobre o filme em foco.

1. SOBRE STAR WARS

Em um mundo considerado futurista, Star Wars se encaixa no que chamam de aventuras


intergalacticas, em que as personagens de planetas diferentes, galáxias diferentes vivem histórias,
batalhas, romances, no espaço. É uma ficção científica que retrata, em cerca de 9 filmes, um deles
ainda com data para lançar, a história de luta entre os Jedi, considerados os bons e que estão do lado
“branco” da força, e os Sith, os maus, que estão do lado negro da força. As histórias são divididas em
episódios e 6 deles de dividem nas duas trilogias mais conhecidas da franquia: trilogia clássica, que se
inclui o episódio IV, V e VI, focado na história do personagem Luke Skywalker, um jovem que está
descobrindo seus poderes de Jedi em uma época em que reina o totalitarismo do temeroso Darth
Vader, este liderado pelo imperador Darth Sidious; e a trilogia prelúdio, dos episódios I, II e III, que
contam a trajetória do Anakin Skywalker até ele se tornar o Darth Vader, na mesma época em que
existe os Separatistas com quem a chamada República Galáctica está guerreando.
Falar de todo o universo que engloba as histórias de Star Wars é bastante complexo, pois o
criador desta franquia criou um mundo novo, um universo tão grandioso e fascinante que não daria
em um só livro, por exemplo. E é nessa complexidade que se percebe que esses filmes não ficam
somente como divertimento, eles mostram, por meio da ficção, diversos traços da realidade, ainda
que seja mostrado visivelmente uma realidade futurista e inventada.
São essas características que aproximam o espectador da realidade na qual se inclui
o gênero distopia. Mas, ao defini-la, será que poderá se afirmar que Star Wars realmente se encaixa
neste gênero?

NARRATIVAS
1024

2. O QUE É DISTOPIA

Segundo Bahktin (2013, p. 106), o gênero é um representante da memória criativa no processo


de desenvolvimento literário. Precisamente por isso, o gênero é capaz de garantir a unidade e a
ininterrupta continuidade de seu desenvolvimento, ou seja, um gênero está em um ciclo de mudanças
constantes. Tratando da distopia, as obras do século passado representativas desse gênero já não
são mais as mesmas comparadas as deste século, tamanha a criatividade que se vê nas novas
tramas. Comparando-se, por exemplo, os livros Fahrenheit 451 e Jogos Vorazes, os elementos que
cercam os livros se moldaram de acordo com a criatividade e a época, o que faz da distopia um bom
exemplo de gênero do discurso. Mas que elementos são esses?
Ao falar de distopia, fala-se do gênero que retrata o futuro sombrio, o futuro mais próximo da
realidade. Esse gênero "oferece mais do que apenas um conto de advertência sobre um futuro que
deve ser evitado "[..], mas sim uma versão do que já está acontecendo com o mundo” (STREHL, 2015,
p. 4), ele mostra, através dos traços futurísticos e nada risíveis o que acontece hoje e o que pode ser
pior no futuro, futuro este que não está distante. Ele trata desse futuro apresentando um governo
totalitário, um governo utópico, que pensa ser o melhor para a população, mas está sendo melhor
somente para si mesmo. Por isso se aproxima tanto do que se vive na atualidade.
Assim como o gênero literário ficção científica, a distopia, não a ideologia e sim o gênero,
trata de histórias em mundos futuristas, mas nunca tão distantes do tempo atual, como por exemplo,
se a história está sendo escrita em 1990, provavelmente, a história será no século seguinte, não se
distancia tanto quanto as histórias de ficção científica.
Diversas distopias atuais apresentam mais elementos futurísticos do que as distopias do
século anterior, introduzindo em suas histórias divisões em distritos, facções, limitando a sociedade
cada vez mais para diminui-la, estratégias que os governos de tais histórias veem para, assim,
exercerem seu poder. "Cada regime cria sua própria verdade e organiza os meios pelos quais sua
aceitação é imposta aos membros da sociedade" (FOUCAULT, 1981, p.12).

Figura 1. Esquema de como a distopia funciona nas obras

Fonte: Autoria própria.

NARRATIVAS
1025

Resumindo, o que caracteriza a distopia, a partir da percepção de que isso ocorre em


diversas obras que a utilizam, é a presença principal de um problema constante, que aparentemente
não tem solução, e que, por um lado têm-se os ditadores para tentar resolver esse problema com o
exercício do poder sobre a sociedade ligada a essa questão e, por outro lado, os revolucionários que
tentam resolver o problema também, mas não diretamente ele e sim a ditadura, focando suas ações
em quebrá-la, pois para eles essa é a solução para o problema. Em algumas situações, o problema é
causado pela ditadura, ela que começa toda a problemática, porém, ainda assim, com a queda dela a
questão não se resolve por completo, pois na queda de um líder nem sempre o outro que virá será
uma boa escolha e se não for, o problema retorna.

3. O QUE É DISTOPIA EM STAR WARS

A principal característica que nos leva a problematizar se Star Wars possa ser uma distopia é a
presença de um líder totalitário, de um governo opressor exercido pelas figuras do Darth Vader e do
imperador Darth Sidious, em busca do poder total sobre as galáxias, através da opressão, do medo, de
assassinatos constantes. Essas figuras podem facilmente se aproximar de alguns líderes na sociedade
atual, pois esses buscam, através da ditadura, o poder, vivendo uma luta constante pelo poder.
Vemos também como algo que relaciona os filmes ao gênero distopia é, particularmente na
trilogia clássica, a ambientação das histórias. Na trilogia prelúdio, antes de Anakin se tornar Darth
Vader, os planetas, a sociedade, estão em um momento próspero, feliz, mas com a presença marcante
do Sith, as cidades tornam-se mais escassas, planetas são cruelmente destruídos, deixando bem clara
a posição de poder que os líderes querem exercer: onde eles estiverem a convivência em sociedade
será melhor.
Há uma resistência do lado branco da força para acabar com esse governo totalitário, mas,
ao acompanhar os filmes, mesmo tendo derrotado a principal arma deles, a estrela da morte, eles não
resolveram por completo o problema principal. Isso aproxima o filme também daquilo que caracteriza
a distopia: a não resolução do problema, representado na figura 1. Apesar de o problema maior ser o
próprio líder, mas também é o que ele causou a sociedade, e tudo não irá ser corrigido com o seu fim.
Figura 2. Cena do Episódio IV, Star Wars, representando a descoberta do ponto fraco da estrela da morte

Fonte: Printscreen do filme disponibilizado na Netflix.

NARRATIVAS
1026

4. O QUE NÃO É

Um dos principais elementos que exclui Star Wars da categoria de distopia são os elementos
que o levam para o lado da comédia. Um desses elementos é o que Bahktin apresenta como um dos
traços do romance humorístico.

Introduz-se uma variedade de “linguagens” e horizontes verboideológicos – de gêneros, profissões,


grupos/castas (a linguagem do nobre, do granjeiro, do comerciante, do camponês), as tendências do
ambiente (a linguagem do mexerico, da tagalerice de salão, as linguagens dos criados), etc. (BAHKTIN,
2015, p. 95)

Uma das principais características desses filmes é justamente as criaturas inusitadas da


história e que proporcionam um ar humorístico, principalmente, em se tratando do icônico
personagem Chewbacca, personagem este que só se comunica através de sons e poucos personagens
reconhecem o que ele fala, se tornando, assim, algo engraçado para os filmes.

Figura 3. Personagem de Star Wars, Chewbacca, na trilogia clássica.

Fonte: Star Wars BR <http://br.starwars.com/banco-de-dados/chewbacca>. Acesso em: 27 de setembro de 2017.

Porém, na medida em que a leitura avança, as sutilezas destas obras são reveladas, os autores
mostram que, embora se aproximem da ciência, não fazem ficção científica e que as ações em suas
obras obedecem a uma ambição maior: desvelar a própria humanidade por meio de seus personagens e
dos sistemas políticos apresentados. (FIGUEIREDO, 2008, p. 49).

O episódio IV da saga traz, não mais que os outros filmes, viagens pelo espaço, tecnologias,
sabres de luz, elementos típicos da ficção científica, que nem sempre vão aparecer em histórias
distópicas, pois as histórias não focam nisso, não visam dar ênfase ao tecnológico, pelo contrário,
elas destroem o estereótipo de futuro tecnológico, mostrando um futuro “feio”, um futuro no qual a
terra está destruída, acabada, com poucos recursos e somente os mais ricos poderiam usufruir
deles.

NARRATIVAS
1027

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vê-se que o gênero distopia é algo muito complexo de se definir, por ter-se noção de que
gêneros do discurso são relativamente estáveis, ele pode se redefinir a qualquer instante, sem, é
claro, mudar sua base, que é, como foi posto aqui, a presença de uma história no futuro ligada ao
presente, como uma crítica, em que um governo totalitário reina pela obtenção de poder e que busca
esse poder sem ao menos pensar na sociedade mais pobre, buscando somente quem tem mais poder
e/ou mais riquezas.
É notável agora que os filmes de Star Wars tem todo um aparato para ser chamado então de
distopia, mas que esse aparato ainda não alcança o que tem de caracterizar esses filmes como sendo
de ficção científica. Portanto, mesmo sendo muito confundido com ficção científica, distopia tem suas
características específicas, que podem sim aparecer em livros, filmes e séries de ficção científica. No
entanto, para que seja mesmo desse gênero determinados traços, como foi exposto ao longo do texto:
que se afaste do risível, pois a distopia não busca algo para fazer um público rir, e sim se questionar;
apresente traços o mais próximo possível da realidade; e apresente governos, ainda que
representados de formas diferentes, de um regime totalitário.

REFERÊNCIAS

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FIGUEIREDO, Carolina Dantas. Livros, Indústria Cultural e Distopias.Comunicologia. v. 1, n. 1, pg. 41-63, 2008.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.
______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. 2ª. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
LUCAS, George. KURTZ, Gary. Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança. [Filme-vídeo]. Produção de Gary Kurtz,
direção de George Lucas. Estados Unidos, Lucasfilm, 1977. Disponível em: <https://www.netflix.com/title/60010932>.
Acesso em: 27 de setembro de 2017.
STREHL, Jerônimo Teixeira. Ressignificações por trás da obra:Analisando jogos vorazes pela intermidialidade.
Disponível em:< http://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2015/01/Jeronimo-Strehl.UNIP_.pdf >

NARRATIVAS
RESUMO
1028

PARA UMA RESISTÊNCIA À Palavras-Chave:

ESCATOLOGIA: um olhar
bakhtiniano

OLIVEIRA, Rafael Junior de 242

LIMA, Caroline Aparecida de 243

INTRODUÇÃO

E
ste trabalho se insere em um cronotopo específico, Brasil 2014-2017, em um cenário político
escatológico, nos quais políticos de alto escalão são investigados por suspeitas de corrupção,
constituindo assim uma desesperança frente a essa esfera de atividade. Tal cenário apresenta
questionamentos e proposições desafiadoras, pois em um contexto de fim de mundo judaico-cristão,
busca-se um salvador, responsável por corrigir e exorcizar todo os males da sociedade, neste caso
específico, o lugar ocupadopor políticos corruptos. Apesar da operação Lava-Jato se iniciar em 2009,
esta só tomou proporções internacionais a partirde 2014, após as delações premiadas de Alberto
Youssef, que repercutiram nos veículos de comunicação dentro e fora do Brasil. Busca-se assim
analisar uma entrevista divulgada pela revista Veja, no dia 2 de agosto de 2017, na qual o doleiro, como
nomeado pela revista, discute e explica algumas afirmações feitas no ano de sua prisão em
2014.Tendo em vista esse cenário de fim dos tempos, esse trabalho visa refletir sobre formas de
resistência para esse cenário escatológico. Deste modo, objetiva-se a partir da entrevista de Alberto
Youssef identificar, comparar, mapear e analisar as posições ocupadas pelos sujeitosentrevistador-
entrevistado na relação com o referido contexto. Além disso, tem-se como foco os diversos
posicionamentos e representações construídas durante a entrevista. Para tanto, utiliza-se do
referencial bakhtiniano Bakhtin (1997, 2010, 2011) o conceito arquitetônicae ato-responsável: 1)O
sujeito é pensado em uma relação eu-para mim, eu-para o outro e outro-para mim; 2) O sujeito, ao se
constituir a partir de um lugar-outro, estabelece um compromisso com seus atos frente à esta
posição no mundo. Metodologicamente, recortam-se da entrevista, dada por Youssef,cinco perguntas
e suas respectivas respostas nas quais se pode perceber um distanciamento entre os sujeitos. Por

242 Graduando em Letras Inglês/Português – Universidade Federal de Lavras (UFLA) – membro do Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo
de Bakhtin (GEDISC). E-mail: rafaeljuniorlavras@yahoo.com.br
243
Graduanda em Letras Inglês/Português – Universidade Federal de Lavras (UFLA) – membro do Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo
de Bakhtin (GEDISC). Bolsista PIBIC-FAPEMIG. E-mail: clima9010@gmail.com

NARRATIVAS
1029

fim, ressalta-se que este trabalho se dispõe a fornecer uma outra forma de se analisar o cenário
político atual a partir das reflexões do Círculo de Bakhtin.

1. ESCATOLOGIA E BAKHTIN

Na dogmática costuma-se denominar o discurso da consumação de “escatologia”. Na maioria das vezes


esse termo é traduzido por doutrina das “coisas derradeiras” (do gregoτὰ ἔσχατα- ta eschata). Com
isso se quer dizer: doutrina do fim do mundo, da morte, ressurreição, juízo, céu, inferno. Esse discurso,
porém, leva facilmente a pensar que se trata de acontecimentos coisificados que, em um futuro
indefinido, simplesmente sobreviveriam ao mundo e à humanidade de fora. Em contraposição a isso a
teologia mais recente acentua: não se trata de quaisquer coisas, e, sim, do futuro da criação, não de
algo que irrompe sobre o homem e mundo vindo de fora, e, sim, de consumação de vida que já começou,
não de algo puramente futuro, e, sim, também do presente, na medida em que ele está determinado pelo
direcionamento ao futuro. De acordo com o exposto, poderíamos formular :escatologia reflete a
esperança de consumação. (HILBERATH et al., 2002, p. 340)

Em consonância com essa perspectiva, Moltmann (2002, p.239) postula que: "a primeira
tarefa da escatologia apocalíptica autêntica deve ser o desmascaramento do uso mistificador da
linguagem apocalíptica no presente". Uso este, que também pode ser entendido como fuga da
responsabilidade ou ausência de esperança.
Nesse sentido, utiliza-se o conceito de ato responsável de Mikhail Bakhtin para investigar
como se constrói a relação entre esses sujeitos em um cenário escatológico. De acordo com Bakhtin:

Cada um dos meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos
atos de que se compõe minha vida singular inteira como agir ininterrupto, porque a vida inteira na sua
totalidade pode ser considerada como uma espécie de ato complexo: eu ajo com toda a minha vida, e
cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu viver-agir. (BAKHTIN, 2010, p.44)

O sujeito, nessa perspectiva, apresenta-se sempre como singular, no que tange à sua posição
ocupada no cronotopo e responsávelna medida em que ao ocupa um lugar no mundo, se assumindo
necessariamente em uma relação eu-outro-mundo. Para Bakhtin, ser sujeito é fazer parte no e do
existir-evento, pois visto a concepção dialógica da linguagem se encontra sempre em relação à algo
que veio antes, à algo que está acontecendo e à algo que ainda vai acontecer.
Nesse sentido, ser sujeito é estabelecer relação entre passado-presente-futuro, o que, de
certa forma, implica em resistir a uma visão escatológica, que parece finalizar ou consumar o sujeito
em seu acabamento.
Ao aprofundar a discussão sobre o sujeito no mundo e para o mundo, pode-se utilizar assim o
conceito bakhtiniano daarquitetônicado mundocomo evento. Ressalta-se aqui que não se trata do
conceito kantiano, mas de uma visão de sujeitos, um sempre em relação ao outro:

Minha imagem de mim mesmo. Qual é a índole da concepção de mim mesmo, do meu eu em seu todo? Em
que ele se distingue essencialmente da minha concepção do outro? A imagem do eu ou o conceito, ou

NARRATIVAS
1030

vivenciamento, a sensação, etc. A espécie de ser dessa imagem. Qual é a composição dessa imagem
(como a integram, por exemplo, as concepções sobre o meu corpo, a minha aparência, meu passado,
etc.). O quecompreendo por eu quando falo e vivencio: “eu vivo”, “eu morro”, etc. (“eu sou”, “eu não
existirei”, “eu não existi”). Eu-para-mim e eu-para-o-outro, o outro-para-mim. O que em mim é dado
imediatamente e o que é dado apenas através do outro. (BAKHTIN, 2011, p.382)

Os dois conceitos, arquitetônica e ato responsável, apresentam-se como indissociáveis nesse


trabalho, pois para se pensar nos compromissos assumidos por cada sujeito na sua relação com o
outro, faz-se necessário uma análise das representações feitas por estes sujeitos, em um processo
de linguagem que os constituem enquanto sujeito e os singularizam.
Sendo assim, busca-se no prosseguimento do texto analisar quem são esses sujeitos que
dizem algo, que representações fazem de si, do outro e que representação eles supõem que o outro
faz deles.

2. O SUJEITO E SEUS DESLOCAMENTOS

Primeiramente, é necessária uma contextualização do corpus afim de se observar como este


se coloca em relação a outros textos e acontecimentos.
A operação Lava-Jato, iniciada em 2009, modificou e continua a modificar o cenário político
brasileiro, visto que, condenou um ex-presidente e váriosoutros membros em altos cargos no
governo. Dentre os vários sujeitos que tiveram seus nomes investigados, um se destaca e se torna
sujeito de análise desse trabalho, Alberto Youssef. Com declarações polêmicas e com muita
informação, Youssef era o responsável pelo repasse de dinheiro ilícito para terceiros, como apurado
pela operação em 2014. Nesse mesmo ano, o empresário firmou um acordo de colaboração com a
polícia federal, no qual se dispunha a delatar informações de outras pessoas envolvidas no mesmo
sistema de corrupção.
A partir das delações de Alberto, nomes de alto escalão do governo se viram investigados pela
Polícia Federal do Brasil. Além disso, o sistema funcionou em cascata, visto que, a cada nome
investigado se descobriam outrosque, muitas vezes, estavam em altos cargos no sistema político
brasileiro. Seria uma afirmação simplista dizer que Youssef mostrou a face de muitos políticos
brasileiros, mas certamente, pode-se dizer que revelou um sistema de corrupção que atingiu em larga
escala o sistema político do país.
Feito essa contextualização, cabe-se analisar a entrevista concedida por Alberto à revista
Veja,publicada em 1° de agosto 2016, sob supervisão do jornalista Robson Bonin. Durante a entrevista
notam-se pronunciamentos distintos, que chegam a ser contraditórios, mas que sob à luz de Bakhtin
indicam os lugares nos quais os sujeitos se constituem e constroem seus enunciados. Coloca-se ainda
que serão analisados neste trabalho as posições ocupadas por Youssef e Bonin, ou seja, este como
sujeito-entrevistador e aquele como sujeito-entrevistado.

NARRATIVAS
1031

Antes de iniciarmos a análise, cabe ressaltar que o título do corpus a ser analisado é: Eu disse
que derrubaria a república e derrubei. Além do explícito jogo escatológico de queda e fim dos tempos,
nota-se que existe um eu na sentença que assume um compromisso e o cumpre. Esse compromisso
será analisado mais à frente.
Ao iniciar a entrevista, o entrevistador questiona o entrevistado sob a duração de sua pena:

Sujeito-entrevistador:Três anos não é pouco tempo de prisão para quem se envolveu num escândalo
dessa proporção?
Sujeito-entrevistado: Vocês não sabem o que é ficar preso no meio de um tiroteio desse tamanho. Vocês
nem sonham. Uma semana só já é uma eternidade. Tem uma série de coisas que só sabe quem está
preso. Mas o importante é que entrei pela porta da frente, saí pela porta da frente. Colaborei com a
Justiça. Saí de cabeça erguida. (VEJA, 2017, p.50)

Primeiramente, de um ponto de vista bakhtiniano, realizar uma pergunta de uma determinada


maneira, dentro do gênero discursivo entrevista, que instaura necessariamente um ou mais sujeitos-
entrevistadores e um ou mais sujeitos-entrevistados, implica necessariamente um
comprometimentopor parte dos sujeitos que interagem naquele acontecimento, querendo eles ou não.
Desta forma, o ato de realizar uma pergunta assim como o de responder à essa pergunta,
concretizam-se como atos responsáveis/responsivosde um sujeito frente ao outro, pois indica o lugar
de onde se diz, para quem se diz, e além de tudo, as representações que os sujeitos constroem de si,
do outro e do acontecimento para eles.
Olhando para a materialidade linguística, pode-se dizer também que a escolha de um advérbio
de negação, neste caso o “não”, e a omissão do pronome tu/você instaura sentidos tanto entre
entrevistador e entrevistado, como também entre entrevista e leitor. Sob uma perspectiva
bakhtiniana, o conceito de arquitetônica lança luz sobre as relações que estão sendo estabelecidas
entre esses dois sujeitos.
Trata-se de um conceito que concebe o sujeito sempre em interação comoutro sujeito e em
um acontecimento. Além disso, esses sujeitos constroem os sentidos sempre na relação entre eles, ou
seja, não há um sujeito sem o outro ou a pré-existência de um em relação ao outro.
Nesse sentido, pode-se observar a representação que o sujeito-entrevistador faz de si para
si, de si para outro e do outro (Youssef) para si, como apresentado no esquema abaixo:

Figura 1 - Esquema

NARRATIVAS
1032

O esquema acima apresenta o jogo de representação entre entrevistador e entrevistado.


Tomando-se A como sujeito-entrevistador, B como sujeito-entrevistado e Ra/Rb como as
representações que esses sujeitos fazem de si para si, de si para outro e do outro para si. A partir
desse esquema pode-se observar uma zona de específica, o que pode-se chamar de zona de refração.
Essa zona representa a diferença essencial e inescapável no momento de constituição do sujeito a
partir do lugar do outro. Ao se constituir a partir de um lugar-outro, o sujeito representa o mundo
desse a partir desselugar, porém essa representação será sempre única, ou seja, não há como A
pressupor uma visão enquanto no lugar de B que coincida exatamente com a visão que B, de fato, tem
com relação a A. Entretanto, esse é o movimento que se observa na arquitetônica bakhtiniana e que
na verdade singulariza o sujeito enquanto existir-evento único, singular.
Retomando a pergunta “Três anos não é pouco tempo de prisão para quem se envolveu num
escândalo dessa proporção”, o sujeito-entrevistadoremite ainda um parecer com relação à gravidade
do incidente ao escolher um sintagma específicodessa proporção e não outro.
Com relação à réplica“Vocês não sabem o que é ficar preso no meio de um tiroteio desse
tamanho...”, pode-se notar um processo de construção de discurso diferente entre sujeito-
entrevistadoe sujeito-entrevistador, visto que, se no primeiro enunciado há uma supressão ou uma
ausência do pronome, neste segundo momento percebe-se o movimento inverso. O sujeito-
entrevistado inicia seu discurso com o pronome “vocês”, que indica não só o estabelecimento de um
compromisso com o(s) sujeito(s) que o ouve/lê, seu(s) interlocutor(es), mas também a ideia de que
se trata de mais de um sujeito. Dito de outro modo, utilizando-se novamente da arquitetônica
bakhtiniana, é possível estabelecer que a representação que o sujeito-entrevistadortem de si não é a
mesma que osujeito-entrevistado tem dele.
Primeiro motivo,o fato de que o entrevistado constrói seu discurso tendo em vista que está
dizendo para mais de um sujeito implica em uma representação diferente daquela feita pelo sujeito-
entrevistador. Segundo motivo, por apresentar visões diferentes do acontecimento (delação)que, por
um lado apresenta-se como um álibi contra os crimes cometidos, por outro como uma colaboração
com a justiça e o exercimento de seu papel enquanto cidadão.
Por conseguinte, tem-se dois aspectos importante a serem elucidados: 1) O sujeito-
entrevistador não se compromete da mesma forma que o sujeito-entrevistado, pois a utilização do
pronome (você) demarca, na materialidade linguística, o lugar do qual o sujeito se constitui; 2) A
refração entre as representações que um faz do outro implica no deslocamento destes sujeitos e
consequentemente no deslocamento dos sentidos.
Deste modo, pode-se, já em um primeiro momento, identificar o lugar a partir do qual se
constitui o sujeito-entrevistador, seus compromissos/responsabilidades com o seu dizer dentro
daquele gênero discursivo, frente àquele entrevistado. Além disso, a forma como ambos os sujeitos
estruturam materialmente o seu discurso pode ser pensada na relação eu-pra-mim, eu-para-outro,
outro-para-mim; e suas respectivas consequências.

NARRATIVAS
1033

Mais à frente na entrevista, a segunda pergunta feita ao entrevistado, que na verdade trata-se
de uma afirmação, busca comentar a delação de nomes de ex-governantes do Brasil, como colocado
abaixo:

Sujeito-entrevistador:O senhor foi o primeiro a dizer que Lula e Dilma sabiam do esquema de corrupção
na Petrobras:
Sujeito-entrevistado:E eu menti? Eu não menti. Se tem uma coisa em que você não vai pegar é na
mentira. Eu tive a coragem de falar. Era evidente que eles sabiam de tudo. O Lula já está condenado. Eu
disse que derrubaria a república. E derrubei.(VEJA, 2017, p.50)

Como salientado anteriormente, é notável, de um ponto de vista discursivo, que a


estrutura afirmativa no enunciado do entrevistador parece buscar um comentário acerca do
enunciado que o precedeu.
Nessa etapa da entrevista, nota-se,em um primeiro nível, a repetição do pronome
pessoal eu. Como analisar essa construção a partir de um ponto de vista bakhtinano?
Ora, o sujeito ao se constituir na e pela linguagem se compromete com aquilo que diz, pois diz
para alguém, em um determinado tempo, em um determinado espaço etc. Deste modo, a repetição
desse pronome pode ser vista como uma reafirmação daquilo que se diz, em outras palavras, uma
ênfase no compromisso estabelecido entre o sujeito que diz e seu interlocutor.
De acordo com Bakhtin (2011) linguagem é o processo de interação entre sujeitos, ou seja, os
sujeitos se constituem enquanto sujeitos na e pela linguagem. Essa concepção pressupõe,
necessariamente, que o sentido não está na palavra, isto é, mesmo que se use uma mesma forma
linguística duas vezes, o sentido será diferente.
Em um segundo nível, e levando-se em conta o reestabelecimento do compromisso com o seu
dizer, o sujeito-entrevistado diz:eu disse que derrubaria a república e derrubei. Esse enunciado que
suscita mais questionamentos do que afirmações, por exemplo: Qual é a representação que esse
sujeito tem de república? Qual é o compromisso dele com relação à república? Que representação ele
faz de si ao se observar de um lugar-outro dizendo esse enunciado?
Esses questionamentos parecem indicar a constituição de um sujeito que se compromete com
o seu país, ou seja, com seu dever cívico, ético-responsável. Porém, acaba por definir as noções de
república de ambos os sujeitos. Tem-se nessa caso a percepção de república como um sistema
político dirigido por sujeitos filiados a um determinado partido. Isso permite que estes sujeitos
dialoguem e se constituam mutuamente, firmando um compromisso um com o outro com relação ao
discurso produzido. Por outro lado, essa concepção também evidencia que ambos os sujeitos já se
deslocaram, isto é, não ocupam a mesma posição social-histórico-ideológica que ocupavam na
primeira parte da entrevista.
Para Bakhtin (2010), ser responsável é colocar-se no lugar do outro e aceitar as
consequências de seus atos nessa relação, isto é, seu dever ético, moral, estético para com o outro e
para como o mundo. Deste modo, ocupar uma posição é ter consciência de que aquela posição é sua,

NARRATIVAS
1034

única, singular, representando em si um ato-responsável, visto que, o processo de construção da


consciência só pode ser exercido na relação eu-para-mim, eu-para-outro e outro-para-mim.
Sendo assim, esse deslocamento implica em sujeitos que não estão estanques no
tempo/espaço e que se modificam a cada momento em que participam do processo dialógico de
constituição do sujeito.
Além disso, a afirmação do entrevistado parece também criar um cenário escatológico, no
qual todos são culpados e que cabe à ele (Youssef) delatar o que sabe, realizando assim uma
purificação, ou seja, uma limpeza, que se dá neste caso, não por meio de um dilúvio 244, mas por meio
da palavra, pois em uma tradição judaico-cristão a palavra estava no início e estará no fim.
Vale dizer que, nesse contexto religioso, o fim dos tempo é marcado não apenas pela queda
das estruturas concebidas como necessárias para o funcionamento da sociedade, mas também pela
aparição de um ser responsável por resolver todos os problemas, um Messias.
Logo em seguida, o entrevistador ao perceber o caráter messiânico que seu entrevistado
atribui a si, realiza uma pergunta capciosa, que apesar simples, desvenda e explicita o lugar e nesse
caso o deslocamento do sujeito-entrevistado durante a entrevista.

Sujeito-entrevistador: Alguém foi preso injustamente?


Sujeito-entrevistado:Não é porque sou amigo do Pedro Corrêa, mas para que prender o Pedro? Ele ficou
preso três anos. Ele tem diabetes, insuficiência renal, tudo que é doença que você possa imaginar... Ele
toma 45 remédios por dia. Você tem de estar cuidando dele 24 horas. Tem outro cara, gente boa, o
Flávio, que não merece estar ali. Ele se ferrou porque era chegado ao José Dirceu. Dizem que ele é
laranja do cara. (VEJA, 2017, p.51)

Assim como a questão anterior, esta também levanta questionamentos que mais tarde serão
mapeados e comparados, pois o padrão ético do sujeito-entrevistado parece variar de pergunta para
pergunta. Por exemplo: Qual é a concepção de cadeia para esse sujeito? Qual é a concepção de “gente
boa”? Que representação ele faz de si frente à ação da Lava-Jato?
Pode-se analisar que para o sujeito-entrevistado cadeia não é para sujeitos que sofrem de
diabetes, insuficiência renal, entre outros, pois a prisão não deve ser aplicada a estes sujeitos. Por
conseguinte, um sujeito “gente boa” não deveria ser preso por ser laranja de alguém, pois crime
nenhum foi cometido de acordo com essa perspectiva.
Os enunciados, juntos, parecem apontar para um distanciamento frente ao entrevistado da
segunda pergunta, visto que, o sujeito que derruba a república, que estabelece um compromisso
responsável com o seu país, não deveria, em tese, defender nem o menor dos tipos de corrupção.
A partir de Bakhtin, pode-se analisar que se tratam de sujeitos diferentes, pois o sujeito que
derruba a república, messiânico em certo sentido, não é o mesmo que convive diariamente com
outros presidiários. Logo, eles não possuem a mesma visão ético- responsável do mundo, sendo que,
não se constituem no mesmo lugar e até por que seria impossível. Cada sujeito é singular no mundo
244
Na perspectiva judaico-cristã, o diluvio foi uma inundação que atingiu toda a Terra, purificando e limpando os pecados da humanidade para
que tudo se iniciasse novamente.

NARRATIVAS
1035

devido ao cronotopo em que vive, que influencia nas suas relações com os outros, com a linguagem e
com o mundo. Sendo assim, é de caráter fundamental em uma análise nessa perspectiva, bakhtiniana,
um mapeamento e uma identificação do(s) lugar(es) que o(s) sujeito(s) constroem seus discursos,
pois permite compreender os efeitos de sentido em jogo naquela interação.
Esse distanciamento torna-se ainda mais evidente na questão seguinte feita a Youssef,
principalmente, analisando sob uma perspectiva da arquitetônica bakhtiniana.

Sujeito-entrevistador: Incluindo os petistas flagrados no esquema? O Vaccari (João Vaccari), ex-


tesoureiro do PT) já ando pensando...
Sujeito-entrevistado: O Vaccari é um cara que não tem um centavo para puxar para ele. Um cara
correto. Eu digo sempre que tem dois caras que não roubaram ali. Um sou eu. O outro é o Vaccari. No
esquema da Petrobras eu, como operador, tirei a minha comissão e mandei o dinheiro roubado para
quem devia. O Vaccari fez a mesma coisa. O dinheiro roubado entrava e ele mandava para o PT. Não
ficou com um centavo para ele. (VEJA, 2017, p.52)

No prosseguimento da entrevista, como apresentado acima, o sujeito-entrevistado novamente


se distancia do sujeito-entrevistado da primeira e da segunda pergunta, pois é possível notar uma
constituição ético-responsável divergente ou até mesma contrária com relação à noção de roubo.
O que parece estar em jogo nessa parte da entrevista é a noção de crime, de corrupção e de
comportamento moral de uma forma geral, visto que, apresenta-se uma forma de julgar diferente,
isto é, o sujeito se constitui em um lugar diferente, singular, único, mas que não deixa nunca de ser
responsável. Como dito anteriormente, o fato de se ter dois sujeitos, um que convive com outros
políticos na penitenciária e outro que vive fora da cadeia, provoca deslocamentos na forma como
esses sujeitos representam a si, o outro e o mundo na construção de seus discursos.
A noção de roubo para o sujeito-entrevistado expõe uma visão de mundo, ou seja, um lugar no
mundo por meio do qual o sujeito se constitui e constitui os outros. Nessa posição, o sujeito se
compromete com o seu discurso em vários aspectos, seja pela representação de que a entrevista
será vista por vários outros sujeitos, seja pela utilização de pronomes que o identificam na
materialidade linguística de seu discurso, por exemplo: “eu, como operador, tirei a minha comissão e
mandei o dinheiro roubado para quem devia. O Vaccari fez a mesma coisa. O dinheiro roubado entrava
e ele mandava para o PT. Não ficou com um centavo para ele” (VEJA, 2017 p.50). Afim de sistematizar
a reflexão sobre esse trecho, podem-se analisar três pontos nesse enunciado: 1) O sujeito-
entrevistado não cometeu crime; 2) Ele se representa como sujeito honesto;
Primeiramente, cabe analisar se essa representação que o sujeito-entrevistado faz de si e de
Vaccari é a mesma que o sujeito-entrevistador faz, o que veremos que não é. Segundamente, esse
postura ético-responsável parece buscar um álibi para seus crimes e de seus companheiros, o que
em uma perspectiva bakhtiniana é inviável, pois o sujeito ao se constituir enquanto sujeito ocupa
necessariamente uma posição singular e responsável no mundo, ou seja, torna-se responsável por
suas ações frente ao outro.

NARRATIVAS
1036

Para Bakhtin, a narrativa constitui o sujeito em um plano no qual este se insere como
personagem, mesmo quando há a utilização do pronomes eu, tu, ele.

O escalonamento dos planos em que se situam as personagens do devaneio aparece com especial
clareza no caso do devaneio erótico: a heroína, objeto do desejo, atinge nele um grau supremo de nitidez
externa, o herói — a personagem do devaneador —, tomado em seu desejo e em seu amor, vive a si
mesmo por dentro, sem a menor expressividade externa. Encontramos a mesma multiplicidade no sonho
(onírico). Ora, se começo a contar meu devaneio ou meu sonho a alguém, sou levado a transpor a
personagem principal para o plano em que se situam as outras personagens (mesmo quando a narrativa
é feita na primeira pessoa), ou, pelo menos, preciso levar em conta o fato de que todas as personagens
da minha narrativa, inclusive eu, serão percebidas num mesmo plano plástico-pictural pelo ouvinte, para
quem todas as personagens são o outro.(BAKHTIN, 1997, p.49. GRIFO NOSSO)

Nesse sentido, o ato de dizer eu não roubei deve ser visto dentro de seu contexto: uma
narrativa inserida em um gênero entrevista com um sujeito condenado por corrupção. É somente a
partir desse ponto de vista que se pode analisar o sujeito sem, por vezes, deixar transparecer um
julgamento de certo e errado. Todavia, o ato de analisar esse corpus constitui-se também como um
ato responsável, nesse caso de resistência à visão escatológica da político no contexto atual.
Feito essa reflexão, observa-se que a utilização do pronomeeu implica em um compromisso do
sujeito com aquilo que diz, mas não implica necessariamente que o seu interlocutor entre nesse jogo.
Nota-se no último recorte, que é na verdade a continuação da pergunta anterior, um distanciamento
entre o sujeito acha que o outro vê e o que de fato o outro vê.

Sujeito-entrevistador: Mas vocês dois estavam envolvidos em um esquema de corrupção, não?


Sujeito-entrevistado: Mas não roubamos. Éramos prestadores de serviço. O dinheiro era dos outros.
(VEJA, 2017,p.52)

Por fim, a última questão comprova a análise feita acima, pois cabem os questionamentos a
seguir: Esses sujeitos compartilham de uma mesma ideologia? Que efeitos são produzidos quando
essas visões se contrapõem? Ora, nota-se que não compartilham, tanto na materialidade linguística
quanto no diálogo entre os enunciados. A utilização do mas, contrapõe, nesse caso, a afirmação feita
pelo sujeito-entrevistadode que existem duas pessoas na cadeia que não roubaram nada, ele e o
sujeito Vaccari. Essa contraposição indicia que se tratam de lugares sociais distintos, isto é, de
construções e representação acerca de si e do outro, que levam ver o mundo em perspectivas
diferentes.
Novamente, o ato de roubar para um sujeito não é o mesmo para o outro.Estranho mas não
infundável, a declaração de Youssef se assemelha as declaração de Adolf Eichmann, que se iniciou em
11 de abril de 1961, em Israel. Nesse julgamento, o oficial nazista foi julgado por uma corte internacional
por seus crimes durante a 2° Guerra Mundial. Esperava-se encontrar um seguidor do Füher, devoto,
fiel, mas o que se observou nas declarações de Eichmann foi a incansável afirmação de que ele não
havia cometido nenhum crime, que estava apenas seguindo ordens. Tal acontecimento inquietou

NARRATIVAS
1037

pensadores e filósofos do séc.XX, visto que, a utilização de suposto álibi poderia vir a encobrir os atos
daquele homem. Claramente, a declaração de Eichmann se insere em um tempo-espaço diferente da
declaração de Youssef, porém, salvo as proporções, o argumento parece ser similar.
Ao analisar sob o ponto de vista da arquitetônica, tal álibi não existe, trata-se de
representações diferentes, sim, mas que eximem a responsabilidade do sujeitos frente ao outro.
Pode-se notar que na categoria eu-para mim, o sujeito-entrevistado se vê inocente, mas que sob a
categoria eu-para o outroocorre uma refração, como apresentado na Figura1. Esse desencontro
acontece devido as posições sócio-histórico-culturais, neste caso ético-morais, serem diferentes,
acarretando um diálogo no qual um sujeito tenta convencer o outro de que sua posição no mundo é
verídica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho buscou identificar, comparar e mapear as representações e os lugares no quais


os sujeitos entrevistador-entrevistadose constituem afim de se compreender como se constrói o
cenário escatológico durante a entrevista.
Identificou-se que as posições ocupadas por esses sujeitos na construção de seus dizeres se
marcaram tanto na materialidade linguística quanto nas representações feitas por esses sujeitos.
Seja na repetição do pronome eu, seja utilização do tu/você, percebeu-se que pode ser encontrada na
materialidade linguística sustentação para identificação das posições nas quais os sujeitos se
constituem.
Comparou-se ainda que essas representações ora se aproximavam, ora se afastavam,
explicitando a relação complexa de constituição do sujeito. Por exemplo, ao perceber que ambos os
sujeitos concordavam com a concepção de república, colocada pelo sujeito-entrevistado, notou-se que
os sujeitos já não ocupavam as mesmas posições, ou seja, já haviam se deslocado, tanto enquanto
forma de ver o mundo como também em representação de si e do outro.
Além disso, notou-se a partir de Bakhtin que a escatologia, como concebida por Moltmann
(2002), não está nem só nas palavras, nem só no sujeito. O fim dos tempos se constrói nos dizeres
dos sujeitos e nas representações desses dizeres feitas pelo sujeito-entrevistador e pelo sujeito-
entrevistado, isto é, o cenário escatológico e o papel messiânico que o sujeito-entrevistado atribui a si
não coincide com a visão de seu entrevistador.
Deste modo, mapeou-se um movimento no processo de representação de ambos os sujeitos,
principalmente, do sujeito-entrevistado, que ora atribui um papel messiânico a si, combatente da
corrupção, ora se constitui no mesmo lugar daqueles que busca combater. Cabe relembrar, que esse
movimento é percebido somente a partir do ponto de vista entre sujeito-entrevistador e sujeito-
entrevistado devido à zona de refração. Sendo assim, esse movimento pôde ser percebido no diálogo
entre pergunta-pergunta e pergunta-resposta, pois cabe lembrar a consciência se dá a partir de um
modelo arquitetônico do eu-para-mim, eu-para-outro e outro-para-mim.

NARRATIVAS
1038

Concluiu-se que analisar esse corpus, mesmo de maneira preliminar, sob uma perspectiva
bakhtiniana, ou seja, a partir dos conceitos de ato responsável e arquitetônicado mundo,constitui-se
também como um ato responsável, um ato político de resistência ao cenário escatológico que, como
nesse caso, não se sustenta diante da complexidade da linguagem e dos processos por ela envolvidos.
Nesse sentido, essas ferramentas bakhtinianas podem contribuir para se pensar em uma resistência
à escatologia política na narrativa que cercam essa esfera de atividade.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M.Estética da Criação Verbal. Tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. M.Estética da Criação Verbal. [Tradução feita a partir do francês Maria Ermantina Galvão G. Pereira].
2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
_____. Para uma filosofia do Ato Responsável. [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco].
São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. 155p.
YOUSSEF, A. Eu disse que derrubaria a república. E derrubei. [2 ago. 2017]. São Paulo: Revista Veja. Entrevista
concedida à Robson B.
HILBERATH et al. Manual de Dogmática [Tradutores: Ilson Kayser, Luís Marcos Sander, Walter Schlupp. 5 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
MOLTMANN, Jürgen. A Vinda de Deus: Escatologia Cristã. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002.

NARRATIVAS
RESUMO
1039
A presente pesquisa tem por objetivo analisar os
efeitos de um trabalho fonoaudiológico, pautado no
dialogismo, no processo de envelhecimento ativo.

EFEITOS DE ATIVIDADES Trata-se de uma pesquisa qualitativa, cujos dados


coletados constituem-se por enunciados produzidos
por oito idosos participantes de atividades

DIALOGICAS NO PROCESSO DE dialógicas estabelecidas em encontros grupais, que


ocorreram durante todo o ano de 2016. Os
encontros, que eram semanais, foram organizados

ENVELHECIMENTO ATIVO em função da leitura de textos de diferentes


gêneros, da escrita de textos autobiográficos e de
discussões orais em torno da juventude, da velhice
e do desejo dos participantes sobre a concretização
de projetos futuros. Os dados da pesquisa permitem
afirmar que a participação dos idosos em
atividades dialógicas promove efeitos positivos no
PAISCA, Adriele Barbosa245 processo de envelhecimento. Pois, partir de tal
participação, os idosos afirmam que passaram a
MASSI, Giselle Aparecida de Athayde246 sentir-se mais aceitos, valorizados e escutados;
mais seguros para tomar decisões; com maior
GOLINELLI, Rayssa Thayana247 motivação para viver, envolvendo-se em projetos
futuros; com maior disponibilidade para trocar
experiências e aceitar o outro.Dessa forma, esta
pesquisa amplia a possibilidade de discussões
sobre a relevância que grupos interacionais
pautados no dialogismo podem assumir no processo
1. INTRODUÇÃO de envelhecimento ativo e na melhoria da qualidade
de vida dos sujeitos idosos.

É
fato já aceito e amplamente divulgado que o envelhecimento Palavras-Chave: Autonomia Pessoal.
Envelhecimento. Linguagem
demográfico está ocorrendo de forma rápida e contínua em
vários países do mundo. No Brasil, inclusive, a camada
populacional que mais cresce é aquela atrelada a uma faixa etária
que se vincula às pessoas com mais de 60 anos.Os avanços da medicina, no combate às
enfermidades, e a diminuição dos índices de mortalidade precoce são fatores que vêm contribuindo
para o aumento da longevidade humana(SILVA & DAL’ PRÁ, 2014). De acordo com o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), em 2015, já foram registrados 23 milhões de idosos no território
nacional e estimativas apontam que, em 2050, o país contará com uma população que alcançará
aproximadamente 30% de pessoas mais velhas.
Com o envelhecimento populacional crescente, o Estado brasileiro, acompanhando uma
tendência mundial, vem trabalhando na elaboração e no aprimoramento de leis capazes de garantir a
qualidade de vida de pessoas com mais de 60 anos de idade. De acordo com Estatuto do Idoso (2003),
o Estado deve proteger a vida e a saúde da pessoa idosa, mediante a efetivação de políticas sociais
públicas envolvidas com a promoção de um envelhecimento saudável e digno. Nesse sentido, tal
Estatuto indica que as pessoas mais velhas precisam permanecer inseridas ativamente nas
comunidades em que vivem, mantendo sua autonomia pelo maior tempo possível.

245
Graduanda em Fonoaudiologia adjunto da Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: dri.paisca@outlook.com
246
Professora Adjunta do Programa de Mestrado e Doutorado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná.
247
Graduanda em Fonoaudiologia adjunto da Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: rtgolinelli@hotmail.com

NARRATIVAS
1040

A Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (Portaria MS/GM n° 2528, de 20 de outubro de


2006), em consonância com o paradigma da promoção de saúde, foi desenvolvida com a finalidade de
promover, manter ou recuperar a autonomia e a independência do idoso. Essa política esclarece que
a saúde da população idosa não deve ser vista em função de noções simplistas, as quais restringem-
na ao controle e à prevenção de agravos de doenças. Em direção oposta, propõe que a saúde da
pessoa idosa deve ser considerada a partir de fatores que integram a saúde física e mental, a
capacidade funcional e o suporte social, em conformidade com os princípios estabelecidos na Política
Nacional de Promoção da Saúde (2006), os quais centram-se nas potencialidades de pessoas de
todas as idades, ressaltando sua autonomia e seu empoderamento, para que possam tornar-se
protagonista de sua própria história.
A autonomia volta-se à liberdade que os sujeitos devem ter para fazer escolhas e tomar
decisões acerca da própria vida e da comunidade em que vivem (CUNHA & OLIVEIRA, 2012). E o
empoderamento refere-se ao fortalecimento das potencialidades dos sujeitos que, ao conhecerem
suas competências, podem refletir criticamente e agir com autonomia, melhorando suas condições de
vida, bem como participando, de forma responsiva, da sociedade(TEXEIRA, 2002).
Dessa forma, cabe destacar a importância de a saúde do idoso ser entendida em função da
integração de aspectos que envolvem sua participação social. Pesquisas indicam que atividades
sócioverbais voltadas ao sujeito que envelhece podem empoderá-lo, promovendo sua autonomia, na
medida em que, na interação com o outro, ele consegue ampliar suas possibilidades para fazer
escolhas e tomar decisões acerca de situações relacionadas à sua própria vida, bem como da
comunidade em que está inserido (MASSI et al, 2016). Considerando que as pessoas, durante todo o
curso de vida, constituem-se por meio da linguagem, ou seja, por meio da interação que estabelecem
com o meio social, as atividades dialógicas que elas desenvolvem são fundamentais para elaborarem,
organizarem e ressignificarem entendimentos acerca da realidade em que vivem (SOUZAL et al, 2015).
Assim, tendo em vista que o dialogismo é o modo de funcionamento da linguagem, na medida
em que assume que todo enunciado constitui-se a partir de outros enunciados, determinando os
próximos que o sucederão, é possível entender o papel que atividades dialógicas têm no processo de
envelhecimento. Pois, tais atividades são capazes de promover relações interpessoais, as quais
constituem os sujeitos, durante toda a sua existência (FIORIN, 2010).
A partir desse entendimento, a presente pesquisa tem por objetivo analisar os efeitos de um
trabalho fonoaudiológico, pautado no dialogismo, no processo de envelhecimento ativo.

2. MATERIAL E MÉTODO

A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Tuiuti do
Paraná, sob protocolo de número 102/08. Dessa forma, atendendo aos critérios de tal comitê, todos
os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e tiveram

NARRATIVAS
1041

respeitados seus direitos de anonimato, livre participação, desistência em qualquer momento da


pesquisa, sem necessidade de justificativas.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, fundamentada na análise dialógica do discurso(FIORIN,
2010). Nessa análise dialógica, é necessário compreender que os papéis do pesquisador e do sujeito
pesquisado assumem a mesma importância, tendo em vista que ambos influenciam-se mutuamente
durante o desenvolvimento do estudo, pois a própria pesquisa se dá em função de uma relação
dialógica, incluindo as produções discursivas do pesquisador e dos sujeitos pesquisados, bem como as
histórias de cada um e os contextos sociais em que estão envolvidos. Assim, a análise dialógica do
discurso não isola os sujeitos pesquisados do pesquisador (ALVAREZ et al, 2015). Ao contrário, ocupa-
seda relação estabelecida entre eles, a qual instiga reflexões, embates, contrariedades, que
interferem em suas possibilidades de compreender fenômenos próprios da realidade em que vivem
(BARROS & COLAÇO, 2015).
Tendo em vista que a análise dialógica considera ações sócioverbais conjuntamente
produzidas em situações discursivas, convém esclarecer que a presente pesquisa focou-se em um
trabalho fonoaudiológico que visa promover práticas dialógicas junto a pessoas idosas,em uma
atividade de extensão de uma Universidade situada no sul do Brasil. Desde o seu início, em 2006, essa
atividade extensionista, que recebe o título de Oficina da Linguagem, desenvolve atividades dialógicas
ligadas à oralidade, à leitura e à escrita de sujeitos idosos, buscando trabalhar a autoria dos seus
integrantes.
A Oficina realiza-se,semanalmente, tendo duração aproximada de uma hora e meia.
Especificamente no ano de 2016, os encontros semanais tiveram a participação de oito pessoas com
mais de 60 anos de idade, de oito estagiários do quinto e sexto períodos da graduação em
Fonoaudiologiada referida Universidade, além de duas professoras fonoaudiólogas. Durante o primeiro
semestre, todos os envolvidos leram textos de diferentes gêneros discursivos – músicas, poesias,
textos jornalísticos, entre outros -, e discutiram oralmente sobre a juventude, a velhice e o que
desejavam concretizar no futuro. Durante essas leituras e discussões, foi possível ressignificar
concepções negativas da velhice e refletir sobre a relevância de as pessoas mais velhas manterem-se
ativas na comunidade em que vivem.
No segundo semestre, os participantes idosos foram convidados a escrever sobre a própria
velhice e seus projetos futuros. À medida que produziam seus textos, cada idoso lia para o grupo, que
questionava, buscava esclarecer pontos obscuros e sugeria reformulações textuais. Ao final desse
trabalho, as suas produções escritas foram compiladas, organizadas em forma de e-book e
publicadas em um sítio específico da internet universitária sob o título: Dê trela para a velhice.
Durante os dois semestres de 2016, todos os encontros semanais foram gravados em
aparelho LG K10. Essas gravações, que registraram as atividades dialógicas dos participantes idosos
com os estudantes de fonoaudiologia e com as pesquisadoras, configuram-se como os dados do
presente estudo. Tais dados foram transcritos, mantendo a integridade dos diálogos estabelecidos

NARRATIVAS
1042

entre os idosos, os estagiários e a professoras responsáveis pela presente pesquisa. Todos os


participantes receberam nomes fictícios de flores, para terem suas identidades preservadas.

3. RESULTADOS

Os resultados apresentados estão organizados em função de dois critérios, o primeiro deles


volta-se ao perfil dos idosos participantes e o segundo ressalta os diálogos que mostram aspectos
relacionados aos efeitos de um trabalho fonoaudiológico, orientado pelo dialogismo, no processo de
envelhecimento ativo de pessoas idosas.
Com relação ao perfil dos idosos, os quais estão reconhecidos em função de nomes fictícios,
seguem algumas de suas características societárias:
Cravo:Homem com 66 anos; atualmente é aposentado e reside com a esposa e uma filha;
concluiu o ensino médio.
Anêmona: Mulher com 65 anos,viúva. No momento está aposentada e reside com um filho. Ela
concluiu o quarto ano do ensino fundamental e, atualmente, está frequentando o EJA (Educação para
Jovens e Adultos).
Centáurea: Mulher com 85 anos, pensionista do INSS, solteira e reside com uma filha e duas
netas; nunca frequentou a escola.
Acácia: Mulher com 68 anos,divorciada, aposentada e mora sozinha; concluiu o ensino
superior.
Glinícia: Mulher com 65 anos, viúva, mora sozinha e recebe auxílio financeiro dos filhos;
concluiu o quarto ano do ensino fundamental.
Camélia: Mulher com 84 anos,viúva, vive com sua aposentadoria e reside sozinha; concluiu o
ensino superior.
Alecrim: Mulher com 61 anos, casada e reside com marido e com o filho; concluiu o ensino
médio.
Begónia: Mulher com 67 anos, mora com o marido e vive da aposentadoria; concluiu o ensino
médio.
Com relação aos efeitos de um trabalho fonoaudiológico, orientado pelo dialogismo, no
processo de envelhecimento ativo de pessoas idosas, seguem relatos dos idosos, os quais foram
produzidos em situações enunciativas organizadas na Oficina da Linguagem.

Data: 30/03/2016 - 4º ENCONTRO

Diálogo estabelecido entre os participantes da Oficina da Linguagem a respeito de uma vida


saudável na velhice.

NARRATIVAS
1043

Interlocutor Transcrição
Pesquisadora Qual desafio estamos nos colocando na vida, no cotidiano?

Anêmona “Eu acho impressionante a quantidade de adultos que querem um final feliz”...Como será o fim da
nossa vida?
Não quero ficar que nem minha irmã...Com problemas!
[...]
Se minha irmã estivesse vindo aqui, talvez não estaria assim.

Pesquisadora Que legal, você tem problema e está se movimentando, tem gente que se acomoda.

Anêmona Estou me preparando para enfrentar a velhice, e viver a velhice bem saudável.

Data:06/04/2016 - 5º ENCONTRO

Diálogo estabelecido após idosos participantes serem questionados sobre o que eles
desejavam produzir durante o ano, para que, ao final, pudessem expor àcomunidade.

Interlocutor Transcrição

Pesquisadora Podemos pensar em fazer alguma coisa partir de coisas tecnológicas... então
teríamos que chamar alguém que saiba disso porque eu também não sei, o que
mais Centáurea?

Centáurea Aqui eu converso bastante falo bastante me escutam.

Data: 13/04/2016 - 6º ENCONTRO

Nesse encontro, os participantes da Oficina da Linguagem discutiam a respeito dos desejos


que sevinculam ao envelhecer.

Interlocutor Transcrição
Pesquisadora O que podemos fazer para envelhecer com vontade de viver? Qual o desejo que os movem?

Glicínia É a curiosidade, pra mim é muito importante. Eu gosto de aprender com o grupo toda quarta-feira,
acaba me ajudando bastante.

Alecrim Eu desejo estar de olhos bem abertos com as novidades do mundo. Eu preciso manter minha vida

NARRATIVAS
1044

ativa.

Glicínia Eu sempre fui muito cobrada, minha vida inteira. Aqui não tem cobrança, eu venho do jeito que eu
sou.

Alecrim Ontem eu fui à hidroginástica pela primeira vez na vida, eu não suporto água, tenho medo de praia e
tudo. Talvez, se eu não tivesse nesse grupo eu não tivesse ido.Na minha cabeça estava assim... não
eu não gosto.Mas, eu não sei se não gosto, não tinha experimentado.

Data: 20/04/2016 - 7º ENCONTRO

Nesse diálogo, os participantes estavam falando sobre a importância de cada sujeito manter-
se aberto para o novo.

Interlocutor Transcrição
Alecrim Essa participação do grupo[...] ajuda abrir novos horizontes, conhecer realmente os jovens,
porque os nossos filhos a gente não conhece, a gente vai conhecer os do vizinho, então eu acho
que isso dá oportunidade pra gente nos conhecer.

Cravo Nós viemos buscar aqui sabedoria, não ser o melhor, mas fazer melhor.

Data: 20/04/2016 - 7º ENCONTRO

Nesse mesmo encontro, os participantes voltam a discorrer sobre seus desejos futuros.

Interlocutor Transcrição
Pesquisadora Eu quero fazer uma pergunta para todos vocês... o que vocês desejam fazer no ano que vem?

Alecrim Eu desejo é continuar tendo vontade.

Anêmona Eu quero estar melhor, porque agora eu saí da toca, quando eu vim aqui... eu fui querer estudar,
meu desejo é permanecer fora da toca.

Camélia Eu quero ser uma velha, afastando os chinelos, mas uma velha feliz que a faça o outro feliz.

Glicínia Continuar a ter força pra vir aqui. Eu quero ter força.

NARRATIVAS
1045

Centáurea Eu desejo ser eu mesma.

Data: 27/04/2016 - 8º ENCONTRO

Foi solicitado que cada um dos participantes trouxesse imagens que remetessem a juventude,
velhice e desejo.Cada um comentou sobre seus motivos de trazer determinada imagem.

Interlocutor Transcrição
Pesquisadora Ao que essa figura te remete?

Anêmona À velhice.

Pesquisadora Bacana. E o que você escreveu do lado?

Anêmona Tirei tudo isso da minha cabeça. E saí colocando. Quando eu comecei esse curso
aqui eu não tinha capacidade, eu vivia meio perdida .... agora eu estou prestando mais atenção,
parece que depois desse curso eu revivi, eu renasci. Não sei explicar, assim, mas eu estou feliz
aqui.

Glicínia O grupo aqui me faz muito bem. Porque eu posso conversar, aqui eu sinto vocês,
tudo vocês aqui como uma família, porque eu falo e escutam. Eu acho o grupo aqui parecido
com a família e me faz muito bem, me dá força.

Data: 01/06/2016 - 13º ENCONTRO

Nesse dia, os participantes estavam lendo e discutindo o texto intitulado “Blogueira sueca faz
sucesso aos 103 anos e avisa: ‘Idosos não são estúpidos”, de Claudia Wallin. O diálogo iniciou-se
durante a leitura do texto, quando Acácia para de ler e faz seu comentário.

Interlocutor Transcrição
Acácia Maravilhoso, nós temos que mostrar como é bom viver, olha aqui eu com a
corda toda, cada dia que passa eu acho que fico melhor, eu conheço mais coisas, aprendo
mais coisas, vejo mais coisas, envelhecer é ótimo, não quero voltar aos meus 20 anos,
nem que me paguem”.

Pesquisadora Alecrim veio na festa a fantasia do grupo passado, mas não achava adequado
festar numa quarta feira.

NARRATIVAS
1046

Alecrim Foi o trabalho do grupo que me deu essa liberdade.

Pesquisadora É bem que o Cravo falou que o diálogo tira gente de um lugar, colocando a
gente em questão.

Alecrim O dialogo solta os nós

Camélia No grupo encontrei aceitação. E sou aceita do jeito que sou, e vejo também
como a Glicínia floresceu aqui.

Anêmona Eu queria falar que, em casa, eu tenho que saber o que falo. Se não... me
cobram dizendo pra eu ver o que vou falar. E aqui me sinto a vontade, me sinto bem.

Data: 03/08/2016- 15º ENCONTRO

Nesse encontro, o grupo estava desenvolvendo uma discussão a partir de fotos, que foram
tiradas pelos idosos em um passeio com todos os participantes da Oficina da Linguagem.

Interlocutor Transcrição
Pesquisadora E você Camélia o que quer dizer sobre essa foto?

Camélia Essa foto é livre, leve e solta, é como me sinto hoje, feliz da vida e querendo fazer
todo mundo feliz, antigamente jamais faria essa foto,mas a linguagem me libertou, levantou
meu astral.

Data: 26/10/2016- 23º ENCONTRO


O diálogo se dá a partir da idosa tentar dar um título à foto escolhida por ela.

Interlocutor Transcrição
Pesquisadora Alecrim pode nos dizer que título daria a essa foto sua?

Alecrim Eu vejo nessa foto, eu sou aquela que o grupo ensinou... ou... eu sou aquela que o
grupo fez sorrir...ou talvez renascendo no grupo... Eu escolho o título como Renascendo no
grupo.

Tendo em vista os enunciados produzidos pelos idosos participantes da pesquisa, em situação


de interação, é possível acompanhar que ações fonoaudiológicas pautadas em uma perspectiva

NARRATIVAS
1047

dialógica fortalecem o processo de envelhecimento ativo, na medida em que eles afirmam que
sentem-se aceitos, escutados e valorizados. Comentam que estão mais seguros para tomar decisões;
que têm mais motivação para viver, envolvendo-se em projetos futuros;reconhecem a importância de
dialogar, trocar experiências e aceitar o outro.

4 DISCUSSÃO

Quanto ao perfil dos participantes do presente estudo, dentre as características societárias


dos mesmos, verificou-se que há uma predominância de pessoas do gênero feminino. Tais dados
podem relacionar-se com o fato de que, segundo o IBGE (2009), as mulheres têm maior sobrevida do
que os homens. Estudos mostram que as mulheres vivem mais pelo fato de procurarem, com mais
frequência, os atendimentos médicos e de se exporem menos a fatores de riscos, tais como o
tabagismo, álcool e aos riscos próprios de diversos ambientes de trabalho insalubres (PILGER, 2011). O
homem torna-se mais suscetível a essas exposições, até mesmo pela tentativa de responder aos
padrões sociais que defendem que eles são menos vulneráveis, negando, muitas vezes, diferentes
níveis de atenção à saúde (MASSI et al, 2016).
Além disso, vale ressaltar que a maior participação feminina em grupos de convivência está
atrelada a questões culturais, pois, na nossa sociedade, ambientes grupais fazem parte do repertório
social feminino (ARAÚJO et al, 2005). Com relação à escolarização, houve uma predominância de
participantes com níveis restritos de acesso à escola, sendo que apenas dois dos idosos chegaram a
concluir o ensino superior. Essa circunstância permite refletir sobre dados que mostram que, durante
a infância e a juventude desses idosos, a escola era voltada para uma elite econômica, sendo que
parcela expressiva da população obrigava-se a deixar os bancos escolares para auxiliar no sustento
financeiro de suas famílias (PEREIRA, 2012).
A respeito do contexto familiar, é possível perceber que a família é um dos elementos
fundamentais para o bem estar desses idosos, sendo que a grande maioria dos participantes mora
com seus familiares. De qualquer forma, os idosos que vivem sozinhos também relatam um
envelhecimento com qualidade de vida. Segundo os enunciados que produziram na Oficina da
Linguagem, encontram suporte social e emocional em outras relações, com amigos e grupos de
convivência que fazem parte da comunidade em que estão inseridos. Portanto, essas diferentes redes
de apoio, auxiliam os idosos no processo de envelhecimento, podendo proporcionar maior autonomia,
independência, bem-estar e saúde. Assim, além do contexto familiar, os idosos podem e devem
encontrar outras formas de relações capazes de ampliar suas interações sociais (ARAÚJO et al, 2012)
Nos relatos dos participantes, foi possível compreender que o envolvimento em atividades
dialógicas grupais, facilitou a aceitação do diferente. Assim, eles se abriram para escutar como
consecutivamente foram escutados, valorizando-se a si e ao outro a partir de trocas de experiências.
Nesse sentido, um estudo realizado com idosos inseridos em grupos de convivências, apontou que
atividades grupais exercem, na vida dos membros, uma melhora em sua aceitação diante da

NARRATIVAS
1048

sociedade. Pois, nesses espaços, discutem sobre como podem colaborar para o bem comum,
adotando uma postura mais ativa e exercendo com mais consciência sua cidadania (RIZZOLI & SURDI,
2010).
Convém destacar, também, que atividades interacionais promovem o desencadear de desejos
reprimidos e o surgimento de novas demandas, fazendo com que os idosos se movimentem na busca
de tais realizações, desejando viver com qualidade de vida e ressignificando sua própria história.
Ademais, estudo aponta que grupos interacionais reacendem antigos desejos, reconstruindo novos
sentidos e aspirações, os quais contribuem para melhor qualidade de vida e envelhecimento ativo e
saudável (TAVARES et al, 2012).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível concluir, a partir dos enunciados produzidospelos participantes, que atividades


dialógicas exercem influência positiva no processo de envelhecimento ativo. Dessa forma, a presente
pesquisa amplia a possibilidade de discussões sobre a relevância que grupos interacionais pautados
no dialogismo podem assumir no processo de envelhecimento ativo e na melhoriada qualidade de vida
dos sujeitos idosos,atendendo aos princípios da Política Nacional de Promoção da Saúde, que entende
a saúde como um processo de capacitação pessoal e coletiva, deslocando a atenção do adoecimento
para a escuta de histórias de vida.

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NARRATIVAS
RESUMO
1050
.

FEIRA E BAKHTIN: relações de Palavras-Chave:

vozes, de alimentos e de disputa

PAULETTI, Jéssica248
“É dia de feira
Quarta-feira, Sexta-feira
Não importa a feira
É dia de feira
Quem quiser pode chegar
Vem maluco, vem madame
Vem Maurício, vem atriz
Pra comprar comigo249”.

V
ai dona Terezinha, toda terça e sábado para a feira. Não é simplesmente um ir e vir ou só
sacolas cheias de alimento, trata-se de um ambiente que tem variados desdobramentos.
Convidei Bakhtin para dialogar com a personagem principal da história que pretende contar um
pouco sobre um pedaço de mundo que ganha vida toda semana em pleno centro de Chapecó/Santa
Catarina.
Dona Terezinha criou seus 5 filhos no campo, com leite fresquinho, tirado bem cedo da vaca
Mococa; no meio dia, o almoço continha uma infinidade de hortaliças, mandioca e suco de laranja,
todos os ingredientes oriundos da sua horta. Lá ela passava os fins de tarde e quando diziam:
- Dona Tereza, deixa estar, vai descansar.
Ela, sem titubear respondia:
- Até que Deus me der forças eu vou continuar.
Baixava a cabeça, seu chapéu de aba larga escondia seu rosto do sol e, se colocava a capinar,
adubar, plantar e replantar; “a terra é o princípio de absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo
tempo, de nascimento e ressurreição (o seio materno) (BAKHTIN, 1897, p.18).
Por meio da terra sua família tinha o que comer e as crianças viraram adultos, vieram as
noras e genros, netas e netos, a alegria tomava conta daquela nona, ao mesmo tempo que a tristeza
lhe perseguia, pois dia a dia seus filhos deixavam o lar, ganhavam o mundo de formas diferentes,
alguns se formaram na faculdade outros continuavam na lida do campo.

248
Acadêmica do Mestrado em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul. E-mail: paulettijessica@gmail.com
249
Música na íntegra, disponível em:< https://www.letras.mus.br/o-rappa/52/>. Acesso em 08 set. 2017.

NARRATIVAS
1051

E para reunir a família toda ficava cada vez mais complicado, dia certo era nos domingos, que
ela tinha os que mais amava por perto. Contudo, suas condições de saúde não a deixarem continuar no
campo e ela precisou mudar-se para Chapecó para viver com uma das filhas que tinha se estabelecido
na referida cidade.
Os primeiros tempos foram difíceis para dona Terezinha, afinal as paredes daquele
apartamento não eram as mesmas da casa de madeira azul que ela deixou para trás, não haviam
vacas em seu entorno, galinhas e sua horta. No lugar disso tudo havia prédios, carros e muitas
pessoas freneticamente se movimentando de um lado para o outro. Ela observava tudo da sacada do
edifício, enquanto tomava seu chimarrão, as lembranças dos velhos tempos a tomavam e lágrimas
silenciosas caiam de seus olhos.
Os momentos de alegria também faziam parte dessa nova vida, principalmente de noite,
quando seus netos estavam em casa e ela ganhava toda a atenção, mas com sua idade avançada, a
canseira logo batia e ela partia aos seus aposentos. Assim, se passavam as horas e os dias. Contudo,
essa rotina mudou a partir do momento em que escutou uma frase que vinha de algum lugar, a
palavra feira chamou sua atenção.
Deixou a vassoura de lado, varrer era uma das atividades diárias que ainda a mantinha em
sanidade, se deslocou foi até a sacada e esperou por alguns minutos, até que a palavra soou
novamente em seus ouvidos e agora ela podia escutar com nitidez “ É dia de feira/ Quarta-feira,
Sexta-feira/ Não importa a feira/ É dia de feira.” Após esse trecho que tinha uma melodia envolvente,
aparecia a voz de um moço, dona Terezinha se referia a todos os homens mais novos com esse termo,
e a voz a convidava para prestigiar uma feira que acontecia todas às terças e sábados pela manhã,
com funcionamento das 7 até às 12 horas, na rua Benjamin Constant esquina com a rua Porto Alegre.
Aquelas palavras ficaram gravadas na sua memória e a noite quando a família estava à mesa,
dona Terezinha perguntou se alguém já tinha ouvido aquela propaganda, pois ela tinha achado de uma
extrema criatividade e gostaria de saber onde ficava. Mas, para sua surpresa ninguém sabia, creio
que até desconfiaram da sanidade da senhora. Uma neta quebrou o silêncio e renovou a esperança.
Podemos procurar o local e informações na internet nona, depois te ensino como chegar até
lá.
Naquela noite o sono não veio logo, ela queria saber o local, pois já era quinta-feira, e se
existisse mesmo, deveria se preparar em dois dias. A família pouco entendia a alegria dela, mas
ajudaram a encontrar o local, o qual ficava perto da residência dela, e a caminhada matinal de sábado
teria um novo endereço: Feira de Produtos Coloniais e Agroecológicos do Centro de Chapecó.
Uma das funcionárias da casa se ofereceu para fazer companhia à dona Terezinha, mas ela
não aceitou, precisava descobrir o local e desfrutá-lo por si só, aquilo era algo tão singular, que
explicar não faria sentido naquele momento. Então ela acordou cedo no sábado, como fazia nos demais
dias, ninguém estava acordado, saiu de casa e seguiu um papel feito pela neta com ruas e pontos de
referência. Não tardou, encontrou o local que estava movimentado, viu uma placa e seus olhos
brilharam.

NARRATIVAS
1052

Figura 01: Placa indicando a entrada da Feira.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Não sabia direito em que banca chegar primeiro, estas ficam dispostas em um formato
retangular, sendo que o espaço era dividido por diferentes feirantes. O que logo chamou sua atenção
é que somente três bancas possuíam o nome da família registrado em um banner e com destaque a
palavra “agroecológico”. Dona Terezinha entendeu mais a respeito do assunto quando buscou
informações que serão ainda apresentadas nesta narrativa. Ainda sobre a arquitetura, a estética e as
singularidades do ambiente, os carros estacionam muito próximo das vendas, pessoas circulam de um
lado para o outro, o cheiro é diferente ali, o colorido é visível e a diversidade de produtos é
inigualável. Desperta sentidos e sentimentos únicos e irrepetíveis.
Ao passo que tentava entender a logística, dona Terezinha pegou um pé de alface, beterrabas,
cenoura, batata-doce, um abacaxi, um mamão, bananas, repolho, couve, uma bandeja de bolacha e, aos
poucos, sua sacola ficou cheia. Não podia carregar muito peso, então ficou a observar o que existia ali
e a variedade a surpreendeu: diversidade de frutas, verduras, hortaliças, queijo, açúcar-de-cana,
carnes, massas, doces, sucos, plantas medicinais e de floricultura.

Figura 02: Organização dos produtos nas bancadas.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

NARRATIVAS
1053

Ela queria saber mais daquele local, mas sua timidez não deixou, voltou para casa com muitas
sacolas e indagações, voltaria na terça-feira, para comprar mais alimentos e quem sabe a vontade de
conversar não superasse a timidez. De meio dia durante o almoço de sábado, em que todos estavam
reunidos, contou empolgada para sua família sobre aquele passeio, estava encantada, pois fazia
lembrar da sua horta, da sua vida no campo. E questionou seus entes sobre coisas que ela gostaria de
saber da feira, mas eles não souberam responder.

questões como o que será vendido/comprado, os processos de troca, a linguagem específica utilizada,
as estratégias próprias de realizar abstrações matemáticas, e fazer negócios, e até mesmo as
motivações para ir às feiras – o que lá fazer, onde, como, com quem, até quando e porquê – deverão ser
analisadas em razão das especificidades educacionais, culturais, sociais e históricas dessas feiras
(ALMEIDA, 2009, p.27).

Por perceberem que dona Terezinha estava visivelmente feliz, a família apoiou que ela
continuasse visitando o local e que conversasse com os donos das bancas para então ter as
respostas que queria, bem como iriam procurar materiais sobre o assunto para que ela pudesse ler,
essa atividade de explorar livros e histórias era recente para dona Terezinha, que não teve contato
direto com a leitura ao longo da vida. E assim seguiram-se os dias, entre leituras e visitas na feira,
cada vez que buscava os alimentos, buscava um sujeito para dialogar e aprender a respeito daquele
local.
Ela descobriu em suas pesquisas que as Feiras livres aconteciam na Idade Média e se faziam
presentes no Brasil desde a colonização. Tanto a feira como o carnaval aconteciam na praça pública -
se faziam naquele local e em dias específicos o comércio livre e familiar, sem a pomposidade dos
palácios e instituições, dos nobres, da igreja (BAKHTIN, 1987). Atualmente, as Feiras estão distribuídas
em diferentes locais do nosso país e apresentam singularidades na oferta de produtos, na dimensão
do contexto em que estão inseridas, seus objetivos e, “embora as feiras livres estejam perpassadas
por um processo de mudança de sua representatividade, ainda se evidencia como lugar dos
encontros, das tradições, das compras, vendas e trocas, que permanecem nas vidas das pessoas”
(ALMEIDA, 2009, p.31).
A intenção de dona Terezinha era conhecer a respeito da Feira de Produtos Coloniais e
Agroecológicos do Centro de Chapecó que comercializa alimentos, então sua leitura ficou restrita a
esse tipo de feira. Assim, uma das primeiras afirmações é que as Feiras livres de alimentos orgânicos
simbolizam a resistência em tempos da modernidade dos super e hipermercados. “O estudo torna-se
interrogação e troca, ou seja, diálogo. Não interrogamos a natureza e ela não nos responde.
Interrogamos a nós mesmos, e nós, de certa maneira, organizamos nossa observação ou nossas
experiências a fim de obtermos uma resposta” (BAKHTIN, 2003, p.241). A Feira possui uma
heterogeneidade de produtos e conflitos. Isso se afirma com base nos diálogos entre dona Terezinha
com as (os) feirantes e os fregueses.
Dentre outras informações reveladas por dona Terezinha estão: a prefeitura auxilia com o
pagamento do aluguel e os próprios feirantes se organizam internamente, com reuniões semanais,

NARRATIVAS
1054

decisões no coletivo, mas que não significam uma homogeneização das ideias. E aí está um primeiro
embate, as primeiras famílias que iniciaram as atividades não pretendem sair para dar oportunidade
a outras, não são obrigadas a sair, mas outras querem entrar e como faz para mediar isso? A
intenção é que as próprias famílias entendessem a necessidade de sair depois de um tempo, pois um
dos argumentos é que algumas famílias que estão na Feira também atendem em mercados e, desse
modo, a Feira deveria ser deixada às famílias que estão começando, que possuem pouca terra, que
estão com mais dificuldades em casa. Esse embate tomou dimensões judiciais e no momento está em
avaliação o que será feito em relação a essa questão da ocupação do espaço na Feira.
Nesse processo está em disputa o espaço e da alteridade. Bakhtin (2003) destaca a
necessidade de uma compreensão das condições em que o outro vive, sua dor, suas angústias, para a
possibilidade de um crescimento coletivo. Uma das possibilidades talvez seria a ampliação do espaço
de comercialização dos produtos ou um acerto entre as famílias; ou ainda que a Feira acontecesse
fosse na praça pública de Chapecó, em que não existisse um número fechado em termos de
quantidade dos feirantes. Dona Terezinha pensa ser complicado a justiça interferir nesses processos
de autonomia que deveria ser dos próprios feirantes.
Dona Terezinha conversou com as (os) feirantes, descobriu que alguns são moradores do
campo no município de Chapecó e outros são oriundos de localidades próximas como Seara e
Cordilheira Alta. Na maioria das banca estão mulheres, pois há uma divisão de trabalho nas famílias,
sendo que as vendas ficam por conta do gênero feminino, ainda é comum que as vendedoras tragam
as crianças junto, provavelmente para amamentar.

Figura 03: Mulher comercializando verduras, ao fundo tem uma criança pequena no bebê conforto.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Dona Terezinha perguntou a respeito dos produtos, em termos de procedência e qualidade.


Aqueles que responderam disseram que gostariam que seus produtos fossem orgânicos, mas

NARRATIVAS
1055

infelizmente não são, pois isso interfere na aparência do produto, tempo de cultivo, quantidade a ser
colhido. Para os que já estão produzindo de maneira orgânica, aqueles donos das três bancas que ela
avistou no primeiro dia, entendem que é possível, é preciso dedicação, investimento, pensar e agir
diferente do padrão. Para tanto devem estar integrados em uma associação que lhes dê suporte e
conquistar o selo, o que os certifica como produtores orgânicos.
Ao conhecer as (os) feirantes dona Terezinha sentiu que precisava conversar com os
compradores, para ver o que os fazia se deslocarem até aquele local semanalmente, com chuva ou
sol. As compras na Feira se justificam pela qualidade dos produtos, os fregueses acreditam que os
alimentos não possuem agrotóxicos e, se possível em menor quantidade; buscam por produtos
frescos e de menor preço, pois no mercado muitas vezes estão murchos e ainda conseguem auxiliar
os colonos - com a compra direta.
Considerando as vozes presentes nos diálogos entre dona Terezinha e os sujeitos - feirantes e
fregueses, bem como a placa na entrada da Feira, existe uma diferença do que está no discurso e no
que está sendo ofertado, um discurso que ecoa para fora da feira, em que há um jogo entre
agricultura familiar orgânica, que pode estar baseada na agroecologia e a agricultura convencional -
que utiliza agrotóxicos e adubos químicos. As (os) feirantes assumem que não há um controle da
quantidade de agrotóxico utilizado nas plantações, eles sempre buscam usar o menos possível, mas
isso depende muito das condições em que os alimentos se encontram.
Pertencer a um dos grupos está relacionado ao tipo de alimento produzido, mas implica em
outras questões, pois há modos diferentes de construir um mundo, de entender as relações, de
pensar que o alimento é a base da saúde dos corpos. A prática agroecológica está relacionada com a
conservação e resgate de variedade crioulas, com o aprendizado que passa de geração para geração,
com manejo harmônico dos recursos naturais, pensamento e ações no coletivo. Tudo isso é uma
resposta a agricultura convencional que utiliza agrotóxicos e adubos químicos desde a semente até a
colheita, somado a isso houve uma crescente mecanização da agricultura, monoculturas,
concentração de terras nas mãos de pouca pessoas e aumento da desigualdade no campo (MOURA,
2017).
Altieri (2012)expõe as características e problemas oriundos da agricultura industrial baseada
na monocultura, que promove a homogeneização genética e a vulnerabilidade das culturas a pragas e
doenças, aumentando o uso de agrotóxicos para controle, sem eficiência. O autor argumenta que
essa escolha não é ao acaso, segue a lógica do capitalismo, da política e da economia global que
promoveu ao longo dos anos a mecanização das propriedades, o incentivo à engenharia genética e ao
consumo de agroquímicos para o controle de pragas ou reposição de nutrientes ao solo. Não existe a
possibilidade da coexistência alimentar, ou seja, integrar os modos de produção com transgênicos,
convencionais e crioulas, pois há muitas características próprias e não é possível controlar os
impactos entre elas. O que existe é a resistência dos pequenos agricultores em continuar protegendo
suas sementes, conhecimentos e experiências para que possam ser o ponto de partida da soberania
alimentar dos países, para que esses não fiquem mais dependentes de multinacionais.

NARRATIVAS
1056

Para incorporar essa prática,Altieri(2012) sugere a ampliação do debate desse tema com os
movimentos sociais e intelectuais dessa área na organização e luta pela formulação de políticas
públicas em torno do tema. Em termos brasileiros são recentes as manifestações do Estado perante
essa questão, mas felizmente já existem e podem ser uma possibilidade de construir aos poucos
práticas diferentes, Moura (2007) aponta como exemplos relevantes a criação da Lei n. 10.831/2003
que regulamenta as condições de “produção e comercialização de produtos da agricultura orgânica”
(p.35), a formulação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e reavaliação do Programa
Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Somado a isso, foram crescentes os trabalhos na última
década, resultando na instituição da A Política Nacional de Agroecologia de Produção Orgânica (Pnapo)
em 2012, por meio do Decreto no 7.794, que visa integrar as diferentes frentes em âmbito federal, na
intenção de fomentar a produção orgânica aliada ao desenvolvimento rural e cuidados com o meio
ambiente e valorização das comunidades camponesas tradicionais.
Além dessa discussão em termos dos alimentos serem ou não orgânicos, dona Terezinha
conquistou algumas senhoras e foi conquistada por elas. Jamais pensou que depois que saiu do campo
poderia fazer novas amizades e estava enganada, entre um aperto de mão e abraços ela percebeu que
a Feira além de fornecer alimentos, permite a existência de dimensões sociais e culturais. As (os)
feirantes enfatizam que a Feira proporciona uma renda fixa, mas talvez esse seria apenas um dos
aspectos entre tantos outros. O momento da Feira proporciona diversão, quebra a rotina de ficar
somente em casa fazendo os mesmos serviços, é um aprendizado constante, um remédio, uma família,
oportunidade de rever amigos e conhecidos para dialogar sobre “como anda a vida”.
Os enunciados descritos demonstram aqui no texto e para dona Terezinha que existe uma
linguagem que constitui a singularidade da Feira e que permite que exista uma comunicação entre os
sujeitos feirantes e os fregueses.

Trata-se de uma manifestação elementar e comum da bivocalidade da linguagem falada usada na


comunicação verbal cotidiana, nos debates científicos, ideológicos, e outros. É uma bivocalidade
rudimentar, sem caráter generalizante, às vezes diretamente personalizada: reproduzem-se, com uma
inflexão modificada, as palavras do interlocutor. É a forma que apresentam certos tipos de estilização
paródica. A voz do outro é limitada, passiva, e a inter-relação das vozes se exerce sem profundidade
nem produtividade (artística, enriquecedora) (BAKHTIN, 2003, p.338).

Aos fregueses essa relação direta permite a confiança em comprar produtos com uma
qualidade melhor, possibilita continuar ou criar novas amizades e o local é agradável. Todos esses
enunciados permitem que a Feira se torne “uma rede de sociabilidades e territórios tecidos por
feirantes e fregueses que trocam produtos, saberes, fazeres, estratégias de comprar e vender por
melhor preço, risos, jocosidades, enfim realizam a feira e constroem ao mesmo tempo sua história”
(ALMEIDA, 2009, p. 15).
A Feira está diretamente relacionada com a linguagem da praça, não há preocupação dos
feirantes com a classe social, não se segue uma ordem hierárquica para adquirir os produtos, não é
relevante o tipo de carro ou se está a pé, suas vestimentas, afinal Quem quiser pode chegar/Vem

NARRATIVAS
1057

maluco, vem madame/Vem Maurício, vem atriz/Pra comprar comigo, há um realismo grotesco - que
supera a monologia dos discursos e permite signos verbais organizados pelo povo (BAKHTIN, 1987).
Somado a isso, a Feira é uma psicologia do corpo social que se materializa na interação verbal, nos
gestos, nos atos da fala, sob a forma de diferentes discursos, que influenciam na organização de
mudanças sociais e nas produções ideológicas (BAKHTIN, 2014).
Aqueles que participam somente da etapa final não imaginam a disputa que há desde a escolha
da semente que será plantada, o modo de ser cultivada, os investimento e políticas públicas em torno
da área alimentícia, a garantia de espaço para vender o que se produziu, os conflitos de discurso e de
ações. Hoje dona Terezinha compreende um pouco mais sobre a dinâmica de uma Feira dessa
natureza, ela é uma parte dessa teia de relações que estão sendo construídas nesse ambiente, nesse
canto de Santa Catarina, nesse pedaço de Chapecó, que possui relação e refração dos
acontecimentos, uma vez que “feirantes e fregueses atuam nesse processo a partir de arranjos
sociais, culturais, econômicos e políticos locais, interagindo de forma articulada e interdependente
pois, estão atentos às dinâmicas locais, nacionais e globais” (ALMEIDA, 2009, p. 37).
A cada aprendizado, dona Terezinha relatava a sua família na hora das refeições que a faziam
refletir ainda mais sobre o que estava comendo e oferecendo a seus familiares. Aos poucos ela queria
que eles entendessem que o prato tem muito além que feijão arroz, batata, salada e cenoura, ali tem
vida de pessoas que se dedicam a plantar e cultivar alimentos, tradições e um desejo de outra
sociedade, que consuma alimentos, água e solos livres de agrotóxicos. Dona Terezinha continua indo
na feira, mas ela tem outras vontades agora, deseja conhecer de onde vem esses produtos, já esta
combinando as visitas e o chimarrão, para continuar aprendendo e de certo modo não se distanciando
do campo. Sua saúde está melhor, os dias não são tão agonizantes, deixou a vassoura de lado, acorda
mais tarde, lê mais e passou a observar o mundo com menos ingenuidade, pelo menos o mundo das
Feiras.

NOTA

Esta narrativa foi uma singela homenagem in memoriam à Terezinha Tressi Biazus, nona da autora
deste trabalho, que dentre as tantas coisas que ensinou, destaca-se a gratidão pela terra e alimentos,
bem como a amorosidade pela vida.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, S.P.N.C. Fazendo a feira: estudo das artes de dizer, nutrir e fazer etnomatemático de
feirantes e fregueses da Feira Livre do Bairro Major Prates. Dissertação de Mestrado. Mestrado em
Desenvolvimento Social. Universidade Estadual de Montes Claros/MG. 2009. Disponível em:
<http://www2.fe.usp.br/~etnomat/teses/fazendo-a-feira.pdf>. Acesso em 25 set. 2017.

NARRATIVAS
1058

ALTIERI, M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. 3.ed. São Paulo, SP:
Expressão Popular, 2012.
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo: Hucitec; [Brasília]: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
BAKHTIN/VOLOSHINOV. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico da linguagem. 16 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. [1929]
MOURA, I.F. Antecedentes e aspectos fundantes da agroecologia e da produção orgânica na
agenda das políticas públicas no Brasil. In_______. A Política Nacional de Agroecologia e Produção
Orgânica no Brasil. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30805&Itemid=424.
Acesso em 25 set. 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
1059

Este artigo aborda algumas questões encontradas

DIALOGANDO COM AS do campode pesquisas com bebês, numa


perspectiva de oferta de atividade cênica para
crianças até três anos. As narrativas de

PALAVRAS OUTRAS:
campoforam realizadas com base na metodologia
aplicada no espaço e o tempo da educação infantil
numa escola particular em Niterói-RJ e apoiadas
nas escolhas teóricas que abraçam a pesquisa: os
cronotopo e extralocalizão, no contexto da estudos bakhtinianos, a teoria histórico e cultural e
os estudos sobre infâncias e crianças.
descentralidade do eu 250

Palavras-Chave: Pesquisas com Bebês. Estudos


Bakhtinianos. Teoria Histórico e Cultural.

PEREIRA, Luiz Miguel251

E tudo em mim – cada movimento,cada gesto,


cada experiência vivida, cada pensamento,
cada sentimento - deve ser um ato responsável;
é somente sob esta condição que eu realmente vivo,
não me separo das raízes ontológicasdo existir real.
Eu existo num mundo darealidade inelutável,
não naquele da possibilidade fortuita.

(BAKHTIN, 2010)

A
s relações constituídas no espaço escolar da educação infantil, entre as crianças com idade de
aproximadamente dezoito meses até três anos completos e os adultos cuidadores - professores,
mediadores e auxiliares - numa perspectiva de pesquisa,apresentam algumas enunciações que
abordarei neste texto a partir de algumas observações de campo, assumindo por recorte teórico
algumas contribuições conceituais dosestudos bakhtinianos.
Os meus encontros com o grupo de cinco crianças desta turma, produziram dois sentimentos.
O primeiro,de uma intensa alegria, ofertando uma atividade de teatro com bebês, neste contato, sou a
presença do outro para eles, que mediante as minhas aparições, vou constituindo relaçõesde
cumplicidade a partir dos nossos olhares, sorrisos, escutas e falas, vamos juntos nos conhecendo,
nos ambientando em cumplicidades.
O segundo sentimento me remeteu as complexidades do espaço escolar,sobretudo do
repertório pedagógico dos envolvidos nos processos educativos, que por vezes, quiçá pela rotina,
insistem na manutenção de determinados movimentos que tendem a priorizar o cuidado; ou seja: a

250Pesquisa financiada pela CAPES.


251Doutorando pelo programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. E-mail: E-mail: luizmiguelp@gmail.com

NARRATIVAS
1060

condição de indissociabilidade entre o educar e o cuidarcontinua na pauta de estudos no cotidiano da


educação infantil.
Conceitualmente, o olhar que vem do adulto tende a exaltar a identidade das crianças,
diminuindo o quantitativo das relações. É recorrente a presença da identidade, nos relatórios, nas
entrevistas com os cuidadores, na caixinha de pertences, na facilidade ou dificuldade de lidar com
cada criança, enfim, as crianças estão subalternizadas a partir de uma condição pautada no cuidado e
inseridas em parte de sua rotina numa relação monológica.
A produção de sentidosnesta prática nos remete a algumas reflexões sobre os eixos de
valores entre aquilo que o sujeito professa culturalmente e issoinclui a ausência de exercício do
reconhecimento das enunciações que vem o outro. Sendo o outro uma porta de entrada para a vida,
portanto, para o movimento,o que motivaficar no lugar da permanência, na prisão da identidade?
O mesmo e o diferente estão no mesmo lugar, portanto, essa arquitetônica, que para os
estudos bakhtinianos pode ser considerada “a construção ou estruturação do discurso - sempre
relativamente estável -, que une e integra o material, a forma e o conteúdo” (GEGe, 2013, p. 15), nos
possibilitao choque do outro (da vida), olhar no olho do outro para me ver e, por conseguinte, me
permitir o deslocamento do eu, promoverempatia,sair de mim,mexer comigo e voltarpara o meu lugar
na vida.
Quando determinada criança do grupo enuncia suas preferências e geralmente ocorre
justamente por aquilo está fora do planejamento, causa certo desconforto a professora; a
singularidade desta relação possivelmente esteja condicionada a um engessamento de atividades e no
desejo da uniformidade de padrões de aprendizagem. E ao me encontrar com a essa lógicaem
determinado espaço da educação infantil, respeitando as devidas ressalvas, observei a importância do
exercício da amorosidade e de uma reflexão num humanismo da alteridade.
Algumas crianças exploram a vida ao seu redor de forma intensa e este redor vai ficando
pequeno à medida que elas vão se apropriando, a partir das suas percepções, de seus primeiros
entendimentos e das permissões espaciais e temporais ofertadas. Nesta situação podemos fazer
reflexões sobre o excedente de visão, “que é a possibilidade que o sujeito tem de ver mais de outro
sujeito do que o próprio vê de si mesmo, devido à posição exterior (exotópica) do outro para a
constituição de um todo do individuo” (GEGe, 2013), essa ideianos remeteao conceito
deextralocalização, que nos possibilita nos estudos bakhtinianos afirmar:

Diante do outro, estou fora dele. Não posso viver a vida dele. Da mesma forma que ele não pode viver a
minha vida. Mesmo para compreender o outro, vou até ele, mas volto ao meu lugar. Apenas do meu
lugar, único, singular, ocupado apenas por mim, é que posso compreender o outro e estabelecer com ele
uma inter-ação. (IDEM)

Foi nesse cenário que iniciei minha pesquisa, considero importante fazer alguns apontamentos
sobre esse encontro no contexto da educação infantil.

NARRATIVAS
1061

A atenção com o cuidado na educação infantil é um tema muito convidativo para análises, no
entanto, não discutireiaqui essa herança cultural e sua historiografia, nem tão pouco me deterei em
questões de planejamento e repertório pedagógico que objetive a relação nesse espaço e tempo das
professoras com as crianças;acolhimento, roda, atividades, lanche, parquinho e despedidas. Dentro
dessa rotinapodemos acrescentar ainda: troca de fraldas com cocô ou xixi, resolver situações com
quedas, arranhões, puxões de cabelos, mordidas, choros, gritos,mediar disputas por brinquedos, por
espaços, entre outros.
As complexidades no processo de ensino e aprendizagem na relação da professora e acriança
nesta idade perpassam por várias possibilidades de atuação, no entanto, torna-se fecundo militar
numa concepção de educação que objetive alargar percepções e práticas pedagógicas e que não
apague a relação com o outro, ouvir o que outro que tem que dizer, no sentido de suas enunciações,
algumas crianças estão começando a sonorizar as primeiras sílabas, palavras e sons, para eu me
permitir ver/ouvir o outro e este me ver/ouvir.
Foi nesse espaço e com essas pessoas que realizei o campo de minha pesquisa, embora não
tenha adotado metodologicamente a etnografia como base, (CORSÁRIO, 2005) tornou-se uma
referência para os primeiros e contínuos contatos com os bebês no espaço do seu cotidiano no
ambiente escolar.
Consideramos bebês, as crianças com idade entre seis etrinta e seis meses completos. Essa
idade é adotada pelos pesquisadores do campo do teatro para bebês,econsideram, portanto,a
primeira infância (PEREIRA, 2014).
Na narrativa que irei desenvolver sobre o meu primeiro encontro de atividade na pesquisacom
as crianças, apresentei-lhesenquanto teatro com bebês,no entanto, estou ainda dissertando se posso
considerar teatro ou se uma junção de predicados quenomeei
de:inserção/intervenção/movimento/ofertório/vivência/brincadeira, sem descartar a possibilidade
de fazer teatro com eles, para FO e RAME (2011)“A primeira regra no teatro, é que não existem
regras”.
Senti todos os sintomas de uma estreia, fuivisitado pelo desespero,insegurança, os receios de
produzir equívocos e finalmente apesar de toda profusão de sentidos,abria porta da sala para que
eles entrassem no espaço pensado, produzido para ambientar o nosso encontro. Eles entraram
acompanhados de uma professora auxiliar, que está presenteem seu cotidiano, e essa atitude
propiciou a confiança deles na presença do novo.
Aqui faço um intervalo para promover uma reflexão conceitual sobreaquilo que chamei acima,
sobre os meus encontros de pesquisa com as crianças no espaço escolar de
‘inserção/intervenção/movimento/ofertório/vivência/brincadeira’ e que denominoessa categoria
enquantoteatro com bebês.
Foi a partir da pesquisaque realizei nomestrado “Teatro para bebês, vivências estéticas”
(PEREIRA, 2014) quesurgiu apossibilidade de pesquisar teatro com bebês,um conceito com poucaou
quase nenhuma referência bibliográfica.

NARRATIVAS
1062

A pesquisa do teatro para bebês éum movimento que surgiu deste os anos 80 do século
passado e, portantoainda incipiente, com significativos e constantes desenvolvimentos de produções,
sobretudo nas principais cidades da Europa e em algumas das principais cidades dos continentes
Americano, Oceania, e Ásia.
Para realizar a pesquisa com bebês, nosvinculamoscom o campo de pesquisas com bebês, que
adota o protagonismo infantil, enquanto possibilidade de desenvolvimento, tendo por base teórica os
estudos bakhtinianos e ateoria histórico cultural.
No campo das teorias teatrais, o teatro para bebês pode fazer as aproximações de escolhas
estéticas que simpatize. “... o teatro não precisa respeitar as regras deste palco frontal, elevado,
italiano, que tem formas de você se deslocar, não precisa ser isso, o teatro pode ser muitas
coisas”.(CHERUBINI, nota de palestra252).
As singularidades encontradas na fala em CHERUBINI (Idem), eas aproximações com teatro
pós-dramático(LEHMANN (2007), que sinaliza para o teatro contemporâneo com outras
particularidades de criação,nos forneceu possibilidades de fazermos uma aproximação com o teatro
com bebês no contexto da ‘inserção/intervenção/movimento/ofertório/vivência/brincadeira’.

O teatro nomeado pós-dramático tem raiz em um tipo de teatro cuja dramaturgia apresenta uma frágil
fronteira entre teatro, dança, poesia, literatura e a arte da contação de histórias. Trata-se de um modo
de pensar o teatro, de escrever para o teatro e de atuar em teatro muito diferente do teatro tradicional,
o teatro dramático. Hoje a cena contemporânea não faz distinção entre teatro e dança, entre
encenações teatrais e contações de histórias e leituras dramáticas, entre teatro e performance. O que
é essencialmente pós-dramático é a relação da encenação com o tempo e com o espaço: esse modo de
fazer teatro não necessita de um texto dramatúrgico pronto, fechado, com começo, meio e fim –
radicalizando, prescinde até mesmo do texto – o que nos leva a um tipo de trabalho que apresenta uma
bagunça, por assim dizer, entre começo, meio e fim; e nessa bagunça presenciamos rupturas,
repetições, nonsense; não há lógica formal, diversas lógicas convivem, e isso implica em um tipo de
recepção, por parte de quem assiste: o espectador encontra-se mais livre para interpretar, a seu modo,
tudo que vive durante um ato performático. Portanto essa propositiva nos oferece uma transgressão
dos gêneros, abrindo portas e janelas para outros modos de fazer teatro e de usufruir teatro – são as
linguagens híbridas. (MACHADO, 2010)

Ainda que possamoscompreender essas aproximações, a recepção estéticase vincula ao


conceito de teatro grego e, portanto, no teatro com bebês, suas enunciações seriam o que?
Aorecorrer à origem da palavra teatro, emgrego theatron.

Revela uma propriedade esquecida, porém fundamental, desta arte: é o local onde o público olha uma
ação que lhe é apresentada num outro lugar. O teatro é mesmo, na verdade, um ponto de vista sobre um
acontecimento, [...] tão somente pelo deslocamento da relação entre olhar e objeto olhado é que ocorre
a construção onde tem lugar à representação. (PAVIS, 2005)

Podemos então perguntar se o teatro com bebês não estariamcontempladosneste conceito.

252Luiz André Cherubini – Grupo Sobrevento-SP - Recorte de campo da pesquisa “teatro para bebês, vivências estéticas” (PEREIRA, 2014).

NARRATIVAS
1063

Perseguindo as análises sobre o teatro para bebês, no eventoConversas poéticas entre arte e
bebês, mostra realizada no CCSP de 12 a 2108 de 2011, a palestra da Profa. Dra. Marina Machado,
apresentouo conceito de arte para bebêse sobre o teatro para bebês faz sua crítica.“O grande risco
de se propor a ida ao teatro para crianças muito pequenas seria incorrer no que eu hoje nomeio, a
partir da leitura de Merleau-Ponty, a “intelectualização da experiência” (MACHADO, 2011)”,e continua:

Nesse sentido seria importante que “teatro para bebês” fosse o mais próximo possível da performance,
dohappenning, dos environments! Acontecimento situacional, que inclusive não necessita acontecer
entre as paredes da sala do teatro. Coisas interessantes acontecendo: tocáveis, tangíveis, audíveis,
palatáveis… cheias de teatralidade, de criação de tempos e de espaços. (IDEM,2011)

Sobre a relação teatro e bebês, sinaliza para outras possibilidades que se aproximam da
pesquisa que estou realizando e que por hora nomeio enquanto
‘inserção/intervenção/movimento/ofertório/vivência/brincadeira’ com bebês.

Meu caminho para pensar a relação entre teatro e bebês, é hoje a trilha antropológica, traçada pelas
relações adulto-criança e criança-cultura, e está demarcada pela observação cuidadosa dessas
relações. Proponho, em meu pensamento atual, a não necessidade da “ida ao teatro” como experiência
vivida e dado observacional na tenra infância; antes, proponho, em sintonia fina com a arte
contemporânea, uma vida repleta de atos performativos e teatralidades. Entenda-se como exemplos de
atos performativos de um bebê: Gritar – Rir – Chorar – Puxar – Cuspir - Babar - Jogar-se - Jogar
coisas - Dormir - Abraçar - Fazer careta ou beicinho - Apontar - Dar tchau - Assoprar a vela do
primeiro aniversário - Bater palmas - Beliscar o outro! Comer uma bolacha recheada no metrô! Qual o
mote para que as ações aconteçam de modo performativo? Do que se precisaria para que um ato
cotidiano fosse vivido como um acontecimento, happenning ou evento/ coisa environmental, como
querem os anglo-saxões? (Ibidem, 2011)

Considerando as contribuições teóricas de Machado (2011) e do protagonismo infantil nos


estudos sobre infâncias e crianças, assumo o conceito de environmental, equivalente ao meio
(produção cultural humana), na teoria histórico cultural e happening,enquanto acontecimento, ou seja,
promovervivências - interpretação do meio ofertado pelo outro-(VIGOTSKI, 2010),vinculadas ao campo
das artes.
Ao compartilhar uma vivência estética, ambientado cenicamente, pensado para o encontro
com as crianças de até três anos observo, não apenas na ação da atividade, mas também nos
registros filmados, seus atos performativose assim teremos realizado teatro com bebês ou estaria
fazendo uma‘inserção/intervenção/movimento/ofertório/vivência/brincadeira’?
Os estudos da infância sinalizam para as pesquisas sobre o protagonismo das crianças - na
vida -, e para corroborar com essa perspectiva, utilizamos metodologicamente na análise de dados,
uma abordagem que revela através da atividade oferecida suas enunciações. Compreendemos
enunciação na perspectiva dos estudos bakhtinianos. “A enunciação concreta é a realização exterior
da atividade mental orientada por uma orientação social mais ampla, uma mais imediata e, também, a

NARRATIVAS
1064

interação com interlocutores concretos” (GEGe, 2013);entendendo que as crianças até três anos
estãono processo de aprendizagem da fala, portanto a enunciação assume outros significados.

Qualquer situação da vida em que se organize uma enunciação, não obstante,pressupõe inevitavelmente
protagonistas, os falantes. Chamaremos de auditório da enunciação à presença dos participantes da
situação. Cada enunciação da vida cotidiana compreende, além da parte verbal expressa, também uma
parte extra verbal não expressa, mas subentendida – situação de auditório – sem cuja compreensão
não é possível entender a própria enunciação.(VOLOCHÍNOV, 2013)

Portanto, a atividade desenvolvida com os bebês foi esteticamente pensadapara possibilitar


encontros com suas enunciações. Aqui, farei outra aproximação com a teoria histórico
cultural,sinalizando tanto o conceito de vivência, citado no inicio do texto, quanto o conceito de
situação social do desenvolvimento.

A situação social do desenvolvimento é o ponto e o ponto de partida para todas as mudanças dinâmicas
que se produzem no desenvolvimento durante o período de cada idade. Determina plenamente e por
todas as formas e a trajetória que permitem a criançaadquirir novas propriedades da personalidade já
que a realidade social é a verdadeira fonte de desenvolvimento, a possibilidade que o social se torne
individual. (VIGOTSKI, 2006) Tradução livre do autor.

A produção e oferta do novo para o outro – os bebês –podem promover possibilidade de


desenvolvimento e ao mesmo tempo alargar o campo de pesquisas com bebês.
Ao fazer essas aproximações conceituais nesta pesquisa, percebi no contextodo campo, a
contínua autorização e desautorização do outro,e o meuexercício constantededeslocamentodo lugar
de permanência,da possibilidade autorizada e transitei na conexão semântica do outro, assim, tornou-
se urgente a necessidade de alargar a minha compreensão na produção e ofertado novo e as relações
que daí se constituíram. Os encontros foramse tornandocada vez mais desafiadores e instigantes e
certa vez ouvi de uma professora um comentário sobre uma fala minha. ‘não precisa ficar nervoso,
são crianças’ e eu respondi: mas é justamente por elas serem crianças que fico nervoso antes de
iniciar a atividade.
Para enfatizar a questão da pesquisa com bebês no cotidiano da escola e com base nos
teóricos já citados, torna-se fundante falarmos que as crianças de até três anos, estão vivendo um
momento de grande desenvolvimento, tanto do ponto de vista biológico quanto cultural. Independente
das concepções assumidas pela instituição quanto ao cuidar/educar e suas contradições, as
crianças,em sua maioria, estão interessadas naquilo que lhe é oferecido. As brincadeiras mais
distintas, os encontros com o teatro, às idas ao parquinho, a alimentação, enfim, elas são receptivas,
brincantes, curiosase estão em pleno processo de desenvolvimento cultural e biológico;portanto, é um
momento que a unidade tempo eespaço precisam estar na pauta do cotidiano da educação infantil,
para, sobretudo,promoverem de maneira responsável essa relação come das crianças, com e no
mundo.

NARRATIVAS
1065

Esta pesquisa está em processo, neste pequeno texto abordei algumas questões paraas
reflexões teóricasque darão suporte para sua conclusão. Parte das minhas vivências no campo e
algumas reflexões teóricas aqui apresentadas são resultadosde diálogo com as palavras outras.
E dentre todos os presente que recebei dos bebês nos nossos encontros, destaco
que,algumas desuasenunciaçõesnaquele momento me descentralizava, o fator surpresa no encontro
com os objetos e na forma de se relacionar com os coleguinhas promovia em mimperplexidades e
exigia mudanças, sobretudo, naquilo que eu carregava de permanente, naquele momento embora
estivesse ensaiado o olhar poético, em vários momentos, suas enunciações me surpreendiame a
cadaolhar sobre esses atoseu já não era mais o mesmo, era eu e o outro, entrelaçados em
cumplicidades estéticas muito além de uma relação de recepção, era uma possiblidade referenciada
pela extralocalização.
Os bebês, suas poéticas, vivências e enunciações são aprendizes e professores, assim como
os pesquisadores, cuidadores e professores também o são; portanto as pesquisas com bebês
começam a revelar aquilo que embora seja óbvio, que “os bebêssão capazes, eles interagem
ativamente com os outros e são pessoas com o senso de si.” (MOURA, 2017) Aqui pontuo esta
discussão,com intenção de contribuir para alargar o entendimento do desenvolvimento das crianças
até três anos.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Mikhailovich. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BERTHOLD, M. História mundial do teatro. Trad. Maria Paula V. Zurawski, J.
Guinsburg, Sergio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2010.
FO, Dario. RAME, Franca. Manual Mínimo do Ator. 5ª Ed. SENAC. São Paulo, 2011.
GRUPO de estudos dos gêneros do Discursos-GEGe. Palavras e Contrapalavras: Glossariando conceitos,
categorias e noções de Bakhtin. 2ª edição. São Carlos: Pedro e João Editora. 2013.
CORSARIO.William A. Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos
estudos etnográficos com crianças pequenas. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 443-464, Maio/Ago. 2005.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Cosac Naify. São Paulo, 2007.
MACHADO. M. Marcondes. Teatralidades na Tenra Infância, ou Bolacha recheada na cena contemporânea.
Lamparina: Revista de Ensino do Teatro, v. 01, p. 59-67, 2011.
__________. A Criança é Performer. Educação e Realidade, v. 35, p. 115-137, 2010. MOURA. Maria Lucia Seidl de. O bebê:
de que ele é capaz? In: Bebês na creche, contribuições da psicologia do desenvolvimento. Org. Cesar A. Piccinnini,
Karla Seabra, Vera M.R. Vasconcelos. Curitiba: Juruá, 2017.
PAVIS, P. Dicionário de Teatro. Trad. de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2005.
PEREIRA, Luiz Miguel. Teatro para bebês, estreia de olhares. (Dissertação de mestrado em Educação) Faculdade de
Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ. 2014.

NARRATIVAS
1066

VIGOTSKI, L. S.Quarta aula: a questão do meio na pedologia . Tradução de Márcia


Pileggi Vinha.São Paulo: Psicologia USP, 2010.
__________. Obras Escogidas. Tomo IV: Psicología Infantil. Madri: Machado Libros, 2006.
VOLOCHÍNOV. V. Nikolaievich. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: João & Pedro Editores, 2013.

NARRATIVAS
RESUMO
1067
.

EXPERIÊNCIAS DOCENTES: Palavras-Chave:

por que (nos) escrevemos?

PIERINI, Adriana Stella253


PREZOTTO, Marissol254

Escrevo sem pensar, tudo o que o meu inconsciente grita.


Penso depois: não só para corrigir, mas para justificar o que
escrevi.
Mário de Andrade

É
objetivo deste texto partilhar experiências de escrita e na escrita, vivenciadas por duas
professoras que, ao olharem para palavras outras, (re)conhecem a si mesmas no e pelo
movimento de desvelar teorias que sustentam suas ações cotidianas na atuação com os
estudantes, quer seja das séries iniciais do ensino fundamental, quer seja dos cursos de pós-
graduação.
É com esse olhar para o cotidiano da sala de aula e da escola que buscamos defender a
potência dos fragmentos, dos pequenos cacos, dos indícios. Acreditamos que o que pode parecer ser
banal, como um simples registro ou comentário feito pelo aluno ou por outro professor, ou mesmo um
pensamento que nos toma em determinada ocasião, pode se constituir em material para analisar,
observar, inquietar-se e refletir em busca de outras possibilidades de trabalho.
Tomaremos, portanto, as narrativas tecidas, especialmente, nestes espaços de conversa,
sejam eles no cotidiano da escola de educação básica ou de pós-graduação, compreendendo-os como
encontros onde são partilhados alguns propósitos comuns, “encontros estes que acontecem com
alguma regularidade, que são intencionalmente planejados e coordenados a partir de alguns
princípios: o estabelecimento do diálogo (a expressão das ideias, a escuta atenta), a autoria sobre o
próprio trabalho (a afirmação, o acolhimento e a problematização das práticas), o exercício da
autonomia e a indissociação entre a pessoalidade e a profissionalidade” (PIERINI, 2014).

253
Doutora em Educação. Atuação na área de formação de educadores. Pesquisadora colaboradora do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Continuada (GEPEC) da Faculdade de Educação (UNICAMP). Docente do curso de pós graduação em Alfabetização e Letramento do
Instituto Brasileiro de Formação de Educadores (IBFE). E-mail: adstpier@gmail.com
254
Doutora em Educação. Professora das séries iniciais e de pós-graduação. Coordenadora do curso de pós-graduação Alfabetização e
Letramento do Instituto Brasileiro de Formação de Educadores (IBFE). E-mail: marissol.prezotto@gmail.com

NARRATIVAS
1068

Acreditamos que, buscando conhecer cada um dos estudantes e suas singularidades,


reconhecemos a nós mesmas. Isso porque, em seus atos, eles nos respondem e nos constituem como
pessoa e profissional que somos.
Por essas e outras é que pulsa, em nós, uma busca incessante para produzir pesquisa
do/no/com o cotidiano escolar, entendendo que o que acontece pode nos levar a um terreno instável,
já que o caminho da pesquisa está sendo traçado ali, naquele momento, com todos os desafios e
possibilidades (FERRAÇO, 2008). É importante ressaltar, entretanto que, mesmo diante dos riscos, há
um cuidado muito grande quando se opta por quais caminhos teóricos e metodológicos trilhar, pois há
uma necessidade de encontrar pistas que ampliem nosso olhar sobre a realidade vivida na sala de
aula e, consequentemente, na escola.
Como possibilidade de ampliar as discussões sobre a potência da escrita docente para o
processo de reflexão sobre nosso fazer, tomaremos das narrativas produzidas por nós, nesse lugar
docente em diálogo no/com o Grupo de Estudos Bakhtinianos (GRUBAKH)255, exercitando possíveis
compreensões sobre como, ao enxergar os outros em nossos escritos, visibilizamos outros de nós.

COM A PALAVRA, MARISSOL.

Como professora das séries iniciais venho percorrendo um caminho onde as narrativas
escritas, audiogravadas e fotográficas estão presentes a cada instante no cotidiano da sala de aula e
da escola e vêm compondo um diálogo para a minha formação docente que não está desvinculada do
ser pessoal e profissional, uma vez que somos todos juntos e misturados.
Você deve estar se perguntando se sempre foi assim. Professora desde a época do Magistério
com uso do registro por obrigação, as palavras foram organizando e potencializando as reflexões
desde que entrei no curso de Pedagogia. Ao voltar-me para minhas memórias, relembro que a
literatura sempre esteve presente e foi disparadora das escritas, ora feitas por mim, em meus
registros pessoais ou compartilhados com os alunos, ora feitas pelos próprios alunos.
Como professora vou me apropriando dessas narrativas para, a partir delas e com elas,
apre(e)nder a ler o mundo na medida em que vivo com os alunos na escola e fora dela. Pelas palavras,
fui abrindo horizontes que antes não percebia ou não dava valor. Não tem como não retomar uma
narrativa produzida por mim em diálogo com a narrativa de uma aluna de 10 anos, de uma escola da
rede particular de ensino de uma cidade do interior de São Paulo, para olhar para o meu jeito de ser
professora.

Lá estou fazendo a segunda reunião do ano com a L256. e sua família.

255
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP).

256
Neste texto, as estudantes serão indicadas pela inicial do primeiro nome.

NARRATIVAS
1069

Iniciamos com L fazendo a leitura da autoavaliação produzida alguns dias antes. Vale lembrar que essas
palavras não têm formato pré-definido. Cada um elenca o que deseja falar e só tomo contato com essa
produção neste exato momento de partilha.
Lá estou atenta ouvindo as palavras da aluna quando escuto um “você....”
“Acho que você está meio nervosa ultimamente, mas está fazendo um trabalho excelente com a turma.
Minha proposta é de você fazer mais grupos para trabalhos. Isso eu amo, mas se não puder, tudo bem.”
(L.B.M.C., 01 set 2017)
Que delícia foi ouvir isso. Eu pedi a L.. que me desse um toque quando isso acontecesse porque como ela
já sabia, estava passando por um momento difícil com meu pai. Ela deu um sorriso enorme e relembrou
que faria isso porque eu mesma já tinha dado alguns toques para que tivesse mais confiança em si
mesma.
A reunião transcorreu super bem. L. não teve os olhos marejados como anteriormente porque estava
transbordando confiança. Eu estava radiante porque L. havia me dito algo que nem eu mesma tinha
percebido. Sabia da tensão do momento vivido e que era partilhada com os alunos, mas não um
nervosismo.
Aprendo a cada dia com meus alunos que revelam em suas palavras as escolhas que tenho feito: diálogo,
trabalho compartilhado e compromisso com o que sente.
(Mari 04-09-2017)

Ao retomar as minhas palavras e as de L. percebo uma relação de confiança estabelecida.


Nessa relação há um clima de respeito e um cuidado presente que extrapola a relação professor-
aluno. Ao sentir confiança, L. expõe suas ideias, desejos e valores sabendo que será respeitada.
Olho e vejo que para que esta confiança se estabeleça foi importante que houvesse uma
confiança em si mesmo, pois sem ela não há como vivenciar um trabalho com.par.t(r)ilhado como L.
propõe, mesmo sabendo que já experiencia o trabalho em grupo.
O trabalho com.pa(r),trilhado é uma expressão que se relaciona melhor com o tempo
necessário de partilha, de comunhão dos momentos vividos. É o termo que define as experiências
docentes e de formação. Estar trabalhando com os alunos é um desses momentos que nos revela que
o conhecimento não é estanque, é dinâmico e mutável. Ao colocar seus saberes à disposição, em
interação com o coletivo, tanto o professor quanto o aluno vislumbram outras interpretações de sua
produção ampliando saberes e alargando olhares. (PREZOTTO, 2015)
Ao viver a amizade, eu e L. nos tornamos cúmplices e experienciamos o espaço político da
escola com mais amorosidade e o tornamos mais ameno diante da dominação presente, pois, ao nos
apoiarmos um no Outro, podemos dar outros sentidos ao que está sendo imposto e reinventar a
situação e a nós mesmos.
A afetividade faz com que o Eu vivencie a minha singularidade e a multiplicidade de mim
mesma já que estou experimentando, vivenciando outras possibilidades de ações e pensamentos,
saindo da minha zona de conforto para que, de fato, meu processo de formação seja
constituído/permeado de mais vozes, mais vínculos entre as pessoas com as quais estou convivendo
diretamente e, assim, perceber que o Outro se faz presente no meu trabalho individual, podendo se
tornar um trabalho coletivo.

NARRATIVAS
1070

Esse processo formativo não nega a existência do Outro ou de outras visões presentes, mas
fortalece cada um dos sujeitos que respeita as diferenças.
É nesta partilha que abro meu olhar para o mundo e me desvelo de mim mesma para que a
reflexão ocorra de maneira efetiva sobre mim mesma e o trabalho que desenvolvo na sala de aula e
na escola/sociedade em que atuo.
São nas palavras de L. que exerço a escuta sensível com uma parada no tempo presente.
Neste exercício, me disponho a conhecer sensivelmente o que o Outro está expressando e nas
entrelinhas do que não está sendo colocado, percebendo que junto aos gestos, olhares, emoções, vai
se constituindo este ato de ouvir sem julgamentos e com delicadeza aquele momento. Além disso, vejo
que estabelecemos e vivemos um ato social que acompanha o enunciado que não pode ser analisado
fora do contexto apresentado.
O enunciado de L. reverbera em mim uma resposta que revela o meu jeito de ser. Dialogar é
importante para desvelar o ato que mostra a confiança entre nós apresentando que somos
conscientes perante o que se vive.
É nessa comunicação discursiva que se explica a relação ali estabelecida que constitui a mim
e a L. nos atos produzidos por cada uma de nós, mas que só é possível de se perceber quando
exercitamos o excedente de visão.

Excedente de visão é a possibilidade que o sujeito tem de ver mais do Outro sujeito do que o próprio vê
de si mesmo, devido à posição exterior do Outro para a constituição de um indivíduo. Bakhtin (2000, p.
44) afirma que o excedente de minha visão, com relação ao Outro, instaura uma esfera particular da
minha atividade, isto é, um conjunto de atos internos ou externos que só eu posso pré-formar a respeito
desse Outro e que o completam justamente onde ele não pode completar-se. Enfim, o sujeito olha o
Outro de um lugar, de um tempo e com valores diferentes; vê nele mais do que o próprio consegue ver.
Quando alguém atribui a Outro seu excedente de visão, permite-lhe completar-se como sujeito naquilo
que sua individualidade não conseguiria sozinha. (PREZOTTO, 2015, p.156)

COM A PALAVRA, ADRIANA

Iniciei, recentemente, a participação no GRUBAKH, pois, tenho cá comigo, já há algum tempo,


fortes suspeitas de que estudos sobre Bakhtin me auxiliarão a ampliar minha compreensão sobre os
deslocamentos que nos possibilita o ato de escrever.
Nos encontros, entre metáforas e memórias, afirmações em diálogo me lançaram a um
delicioso e intrigante movimento de reflexão:

“A escola não pertence ao mundo”- alguém afirmou.


E o mundo... pertence à escola? -eu pensava.
“A escola é um aquário” -outra voz ressoou.
Que brechas? Que visões? Que mergulhos possíveis?-pensava eu...
Fragmentos dialógicos me arremessavam a um diálogo outro.

NARRATIVAS
1071

Era novamente a orientadora pedagógica - ainda que atualmente afastada por aposentadoria -
a se perguntar o porquê a sala de aula ainda é o lugar mais confortável para que as relações se
estabeleçam para as professoras.
De onde viria o desconforto na lida com os meus outros diferentes que comigo trabalham fora
da sala de aula? Quem somos nós no grupo de profissionais ao qual pertencemos? Pertencemos? Que
atos éticos/responsáveis/responsivos construímos para além dos limites do grupo classe? Quais
escutas? Quais sensibilidades?
Não raras vezes vem a vontade de lá estar... no aquário. Desejo de lá fazer eco nas e das
palavras que pelo grupo circulam
“A arte fala por si.” -alguém afirmou.
A arte me escuta? - penso eu.
Cacos outros num mosaico de pensamentos.
Entre conceitos, o que me inquieta insistentemente: a escrita docente.
E ensaio:
Se a arte fala por si, se a arte me escuta, analisar esteticamente não é dizer dela, a arte. É
dizer de mim na relação com ela. Então... analisar esteticamente pressupõe a ex-posição…

Por meio das narrativas sobre si e a partir de si, no grupo, o sujeito atribui, às palavras, suas marcas e
por elas é marcado como se fosse extensão um do outro e de si, pois palavra-pensamento-escrita
constitui um amálgama que o caracteriza, tornando-o singularmente especial para a experiência do
grupo. Portanto, o ato de concretizar, em espaços de conversa, a palavra-pensamento na palavra-
escrita pode possibilitar o movimento de ex-posição para que aconteça, de fato, uma experiência. Nesta
experiência evidencia-se a composição das escritas próprias e alheias. Há, portanto, nesse movimento
de pensar sobre o que o outro escreveu, de analisar a palavra-pensamento-escrita do outro, o
reconhecimento que, de fato, existe um ‘outro’ presente e atuante em diálogo (PIERINI, 2014, p.288).

Ensaiava-se assim a professora pesquisadora.

Ainda me ressinto pelo meu não lugar na escola.


Desde meu afastamento por aposentadoria, não mais os tons, não mais os cheiros, não mais os sons.
Não mais as lidas do cotidiano pulsante.
Pois bem, ainda assim, de tempos em tempos, redescubro a escola que reside em mim nas memórias e
falas das alunas do curso de pós-graduação em Alfabetização e Letramento, com as quais tenho tido o
privilégio de atuar.
Ontem não foi diferente.
Era nosso segundo encontro.
E se inicia a aula.
E engatam-se as propostas.
E se tecem, os diálogos.
Pronto! Estava ali no chão de uma escola outra e de escolas tantas nas falas das alunas professoras que
desvelavam suas crenças, revelavam seus saberes, afirmavam seus dizeres.
Eu me encantava nas e por suas palavras ditas, escritas. Palavras narradas.
Final da aula. Exaustão prazerosa.

NARRATIVAS
1072

Enquanto organizava minhas tralhas de ofício para o merecido descanso aproximam-se duas alunas - P.
e R. - e pedem uma palavrinha. Conceder escuta àquela altura chegava a soar como uma agressão a
uma jovem senhora. Ainda assim... palavra “dada”. Escuta concedida.
Particularmente nos olhos de R. havia um misto de súplica e dor. Em sofrimento, confessa:
- Professora, tô fazendo tudo errado com as minhas crianças! Vou chegar agora em casa e mudar o que
planejei para os próximos quinze dias... Mudar tudo!
Senti o des-conforto, o des-alento, o des-espero de R.
Senti a des-coberta.
E eu, que do alto do meu lugar de professora/formadora trazia nos bolsos e na voz, vaidosa e
imponente, a expectativa de desestabilizar aquelas mulheres convocando-as a pensar sobre sua
responsabilidade no lugar de professora alfabetizadora, saí dali levando comigo, silenciosamente
potencializadas e renovadas, as minhas responsabilidades próprias, impondo-me outras novas
indagações para diálogos futuros.

Adriana Stella Pierini


21/03/2017

Foi nesse contexto das questões que emergiam nos encontros do GRUBAKH que, ao aceitar o
convite para escrever uma narrativa, produzi a aqui apresentada.
Olhando para as palavras narradas, percebo que as vozes de P. e R. me arremessam para o
interior de escolas outras e constato que uma outra conversa anterior se delineia: a conversa de
cada uma de nós, professoras-autoras, com a própria escrita a tecer dizeres, pensares, fazeres.
Observo, também, que R. começa a se questionar sobre sua prática, traz para a reflexão seus
alunos e suas escolhas curriculares, suas opções metodológicas. Assim como ela, outras alunas-
professoras, na e pela experiência de narrar, não estariam, também imersas em questões referentes
a elas próprias e suas práticas?
Percebo-me na e com a responsabilidade de, no lugar de professora das alunas-professoras,
de alguma maneira acolher as falas de P. e R. nas aulas subsequentes.

“Responsabilidade” requer explicação [...]. O objetivo é designar por meio de uma só palavra tanto o
aspecto responsivo como o da assunção da responsabilidade do agente pelo seu ato, um responder
responsável que envolve necessariamente um compromisso ético do agente (SOBRAL, 2010, pg. 20).

Entretanto, foi quando narrei o fragmento do vivido é que me foi possível enxergar nas alunas,
as professoras, as suas questões,e o meu lugar nesse contexto. Revela-se assim, o ato de narrar
como um compromisso ético, meu, enquanto agente.
Então, a responsabilidade também é minha, quando proponho a escrita narrativa para alunas-
professoras como P.e R.
Desloco-me para o lugar de professora-aluna.

NARRATIVAS
1073

MARISSOL E ADRIANA, COM AS PALAVRAS

Ao retomarmos as narrativas e reflexões que daí emergiram, novas indagações e possíveis


compreensões, se despontam:
O que tem a narrativa que dá vida, que potencializa em nós, narrativas outras? Onde cabem as
pessoas nas palavras? Quantas vozes? Quais?

O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam
do processo dialógico. Mas esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou
recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro “eu para si” infinito
e inacabável. Trata-se de uma mudança radical da posição do autor em relação às pessoas
representadas, que de pessoas coisificadas se transformam em individualidades (BEZERRA, 2010, p.194).

Ao narrarmos, do lugar de professoras, podemos observar a multiplicidade de vozes, das


alunas L., P. e R., mas também de outras tantas crianças e alunas- professoras.
A nossa confissão, no lugar de professoras autoras, desestabilizadas pelas próprias palavras
narradas, elucida o ato responsável e responsivo, ou seja, não somente somos responsáveis pelos
nossos atos, como também com eles, respondemos às nossas alunas.
Podemos afirmar que seria essa uma tentativa de fazer com que as vozes fossem ouvidas,
como uma possibilidade lógica, ética, estética?
No entrecruzamento de nós com os nossos pares e com nós mesmas quando nos fazemos
outras de nós, é que ocorre o movimento revelado por Bakhtin:

Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do
outro e com o auxílio do outro. Os atos mais importantes, que constituem a autoconsciência, são
determinados pela relação com outra consciência (com o tu). A separação, o desligamento, o
ensimesmamento como causa central da perda de si mesmo. Não se trata do que ocorre dentro mas na
fronteira entre a minha consciência e a consciência do outro, no limiar. Todo o interior não se basta a si
mesmo, está voltado para fora, dialogado, cada vivência interior está na fronteira, encontra-se com
outra, e nesse encontro tenso está toda a sua essência. (BAKHTIN, 2003, p. 341)

Não é somente nos revelando aos outros que tomamos consciência de nós, mas também
quando nos fazemos outras de nós mesmas (eu-para-mim). Na narrativa podemos nos compreender
por meio de uma outra dimensão, uma vez que, ao retomar as palavras já narradas, desvendamos
outras de nós, desconhecidas ou ignoradas até então.
É na busca da essência de quem somos e do que pensamos que nos distanciamos e nos
debruçamos nas narrativas como uma das maneiras de nos estranharmos e nos conhecermos mais,
porque, como diz Bakhtin, é a partir da relação com o outro que enunciamos. O outro que nos nomeia,
o outro nos diz. A enunciação se constitui por meio da permanente alternância de vozes entre os
sujeitos (PREZOTTO, 2003).

NARRATIVAS
1074

O nosso compromisso é a consonância do ato de pensar e de agir que revela o lugar - pessoal
e profissional - que ocupamos neste mundo, pois é dele que conseguimos dizer o que dizemos, uma
vez que

A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma
série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais
profunda e real é a nossa compreensão (BAKHTIN, 1999, p.132)

Reiteramos o princípio de que precisamos pensar e dizer do lugar que ocupamos, uma vez que
ninguém mais poderá ver o mundo como apenas nós vemos.
Somos sujeitos responsáveis por todos os momentos constituintes da nossa vida, porque
nossos atos são éticos e porque vivemos uma vida singular, repleta de ousadias e medos, que são
marcadas pela responsabilidade e responsividade do ponto de vista de cada uma e de nós mesmas,
quando partilhamos a vida vivida no cotidiano de ser docente.
Assim, nas minúcias do cotidiano, no discurso do outro, nas relações entre muitos outros, é
que vamos nos fazendo professoras.

REFERÊNCIAS

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https://www.pensador.com/frases_sobre_escrever/. Acesso em: 01 out. 2017.
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BAKHTIN,Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
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BEZERRA, Paulo. Polifonia. in BRAIT, B. Bakhtin: conceitos- chave. São Paulo: Contexto, 2010.
FERRAÇO, Carlos Eduardo. A pesquisa em educação no/do/com o cotidiano das escolas. in PEREZ, C.L.V., e
OLIVEIRA, I.B.. Aprendizagens cotidianas com a pesquisa. Petrópolis, 2008.
PIERINI, Adriana Stella. Os espaços de conversa: a orientadora pedagógica e a formação com o cotidiano – com
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Pires, Vera Lúcia; Tamanini-Adames, Fátima Andréia. Desenvolvimento do conceito bakhtiniano de polifonia. Estudos
Semióticos. [on-line] Disponível em: (http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es). Editores Responsáveis: Francisco E. S.
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PREZOTTO, Marissol. A professora e os usos de si: entre o trabalho prescrito e o trabalho real na sala de aula.
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PREZOTTO, Marissol. O trabalho docente com.par.t(r)ilhado: focalizando a parceria. Tese (Doutorado). Campinas,
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SOBRAL, Adail.Ato/atividade e evento in BRAIT, B. Bakhtin: conceitos- chave. São Paulo: Contexto, 2010.

NARRATIVAS
RESUMO
1075
Palavras-Chave:

VOZES E DISCURSOS DOS


PROFESSORES DE
GEOGRAFIA: um diálogo bakhtiniano

PRADO, Simone M.257

INTRODUÇÃO

P
esquisas desenvolvidas na área de Formação de Professores possuem o desafio de abordar as
diversas dimensões estruturantes do ser professor na esfera de ação educacional. Isto significa
que a ação desse profissional não está imersa numa lógica linear em que os eventos se repetem
de maneira previsível e prescritiva. A elaboração de uma pesquisa que posiciona o professor como
sujeito estático de uma realidade dinâmica a ser analisado e interpretado, não apreende o movimento
muitas vezes tenso, ambivalente e inacabado do ser professor que ocorre diariamente no seu fazer
profissional.
No esforço de não cairmos nessa perspectiva de investigação científica, orientamos o nosso
trabalho 258 considerando a voz do professor de Geografia na perspectiva dialógica bakhtiniana.
Buscamos em nosso trabalho a voz do professor atuante na rede pública de ensino, portanto
analisamos as suas elaborações discursivas, sendo essas constituídas de enunciações não lineares,
ambivalentes e contraditórias, que ora se aproximam dos discursos produzidos na esfera acadêmica
de produção e circulação do conhecimento, ora se relacionam com os discursos recorrentes na
esfera cotidiana, em um movimento que alimenta uma elaboração discursiva fragmentada e confusa
referente às diversas realidades vivenciadas na educação básica.
Entretanto, como considerar a voz do professor numa pesquisa realizada no contexto de um
Programa de Pós-Graduação de Geografia Humana que recobre diversos estudos sobre o ensino de
Geografia, mas que não tem tradição de estudar os discursos da esfera de ação de professores de
Geografia?

257Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo-USP. E-mail: simonemprado@uol.com.br


258PRADO, Simone M. Formação do Professor de Geografia: vozes e discursos da Escola e da Universidade. 2014. Dissertação de
Mestrado. Programa de Geografia Humana – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo: 2014.

NARRATIVAS
1076

CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM BAKHTINIANA

Consideramos o professor um sujeito expressivo, falante e enunciador de discursos. Para


Bakhtin, “... O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e
únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana...” 259, portanto, a
real unidade da comunicação discursiva é o enunciado e somente ele parece se relacionar de modo
imediato com a realidade e com o sujeito que fala, pois

O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico,
não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica
em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social.
Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele
se aproxima desse objeto. (BAKHTIN, 2010: 86).

Se o enunciado emitido por um sujeito se relaciona com outros enunciados no âmbito de uma
esfera de ação, temos a constituição do diálogo que, segundo Bakhtin, é inerente à comunicação
humana e pressupõe um “ouvinte”, que se tornará um “falante” no uso e emprego da língua viva, isto
é, da linguagem. Consequentemente, tanto o falante quanto o ouvinte possuem uma ativa posição
responsiva no movimento da comunicação dialógica discursiva.
Ainda, o enunciado proferido por um sujeito está imbricado em um contexto dialógico que se
constitui mediante uma teia de enunciados elaborados ao longo da história da cultura humana.
Portanto, constituem-se relações dialógicas discursivas baseadas em enunciados criados por sujeitos
discursivos que colocam a sua “intenção” no movimento do diálogo presente na comunicação
humana260.
O enunciado proferido pelo professor passa a ser considerado como aquilo que é produzido
por um sujeito cultural e histórico, que o elaborou em um determinado contexto dialógico com outros
enunciados, distantes ou próximos de seu tempo e espaço, os quais apresentam como vozes em seus
discursos em um movimento interno de dialogicidade.
Para Bakhtin, o enunciado não é apenas um reflexo de algo que já foi dito, já que ele pertence
a uma relação dialógica, pois é o seu autor que lhe dá o tom, altera o sentido e lhe atribui um aspecto
valorativo, criando, assim, algo novo.

Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos
outro, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de
relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que
assimilamos, reelaboramos e reacentuamos. (BAKHTIN, 2010:294-295).

259 BAKHTIN, M. “ Os gêneros de discurso”. In: Estética da criação verbal, prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução
Paulo Bezerra. – 5ªed. São Paulu: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p.262.
260 BAKHTIN, 2010:410.

NARRATIVAS
1077

Assim, comunicamo-nos para alguém e esse alguém se comunica para nós; nesse movimento
transitivo, temos a constituição da formação discursiva em que as vozes se cruzam e se afastam ou
se justapõem em um movimento dialógico infinito.
Mostraremos a seguir um trecho de uma fala de uma professora que exemplifica o exposto
até o momento. Podemos perceber de maneira objetiva como o seu discurso é formado a partir de
seus enunciados e dos enunciados dos outros, em um movimento dialógico na constituição de sua
comunicação discursiva.

Eu sou a [...]. Como entrei no magistério o ano passado, são só dois anos. Senti sim que eu caí de
paraquedas também. Porque na Universidade a educação é passada como um mundo cor de rosa, então
a gente saí achando que vai encontrar a sala de aula como um paraíso. Quando eu era novinha na escola,
sou a professora mais nova lá, eu sinto por parte dos professores muita acomodação. E eu vivo com
alunos que são copistas, então para eles se você não enche a lousa, você não está dando aula. Então, se
você tenta fazer a aula mais dialogada, com mais debate em cima de um texto ‘Você não vai dá aula hoje
professora?’ porque você não encheu a lousa. [...] Encher a lousa é muito fácil, o aluno copiar e ter o
caderno super lotado também muito fácil [...] Realmente somos professores, não somos meros, que seja
vou usar uma palavra, passadores de informação. A gente não tá lá para passar qualquer coisa para o
aluno. A gente tá lá para ensinar, somos sim educadores.

A fala da professora foi feita em um determinado contexto261, pertencente a um determinado


tempo histórico e que dialoga intensamente com diversos autores de enunciados e discursos,
construindo, dessa forma, os seus próprios enunciados e o seu próprio discurso sobre o seu trabalho
de professora de Geografia.
O contexto de atuação profissional da professora é a atual rede estadual de ensino de São
Paulo, com dois anos de experiência na estrutura educacional contemporânea. Sem a pretensão de
esgotar a análise, podemos citar alguns ‘outros’ com quem ela mantém relações dialógicas
discursivas: com a sua formação profissional e outros professores que não se sentem preparados
para entrar em uma sala de aula; ao que é produzido na Universidade e suas considerações sobre a
educação e a escola; com seus pares de profissão; os alunos; e ela mesma no fortalecimento do seu
papel do como ser professora.
Talvez, para nós, o que é mais difícil na análise das elaborações discursivas dos professores,
tomando como fundamentação teórica a Filosofia da Linguagem de Bakhtin, é compreender o
movimento dialógico entre as vozes que aparecem intensamente nos enunciados constituintes do
discurso, constituindo o que Marília Amorim denominou de pluralidade de vozes262.
A análise das comunicações discursivas do professor de Geografia é indispensável em nosso
trabalho porque acreditamos que ela revela aspectos de sua formação acadêmico-científica que nos
faz refletir e repensar o paradigma que a fundamenta. Além disso, estamos convencidos que as

261
Todas as falas de professores de Geografia apresentadas em nosso trabalhoforam capturadas no Curso de Extensão intitulado Programa de
Desenvolvimento do Ensino e da Aprendizagem Mediada de Geografia na Educação Básica , oferecido sempre nos primeiros semestres dos anos
2010, 2011 e 2012 pelo Programa de Extensão do Departamento de Geografia, FFLCH/USP campus Butantã.
262
AMORIM, Marília. O pesquisador e sei outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. 1ª edição. São Paulo: Musa Editora, 2004, p. 94.

NARRATIVAS
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pesquisas na área do ensino de Geografia que não dão voz aos professores ficam circunscritas a uma
análise que eclipsa o sujeito discursivo pela ênfase nos estudos que relacionam a prática do professor
com a crítica sobre a realidade encontrada na escola, no trabalho do docente e na formação desse
profissional.
Diante disso, como se constituem as elaborações discursivas dos professores de Geografia
formados profissionalmente em um contexto em que os discursos relacionados à sua formação
profissional baseiam-se no entrecruzamento dos enunciados neoliberais e tecnicistas sustentadores
de sua formação atualmente? Ou, e talvez o mais importante, quais são as consequências para a
formação de professor no momento contemporâneo em que prevalecem os enunciados neoliberais e
tecnicistas nas políticas públicas dirigidas à formação desses profissionais?
Mal-estar do Professor de Geografia com a sua formação

No meu caso eu procurei mais assim... porque o meu curso foi um pouco fraco, né... Então eu procuro
com esse curso preencher algumas lacunas... Porque quando eu entrei na sala de aula eu percebi que eu
não sabia fazer nada... Eu não tinha ideia... O que eu vou fazer? Aí comecei a inventar algumas besteiras,
que no final eu achava que era tudo enganação. (Professor: 2010).

Ao afirmar “... Quando eu entrei na sala de aula eu percebi que não sabia fazer nada...” , o
professor revela fragilidades significativas em sua formação ao apontar que mesmo licenciado para
exercer a profissão, ao iniciá-la vê-se desprovido de conhecimentos para desempenhá-la. Ainda, essa
espécie de confissão anuncia que, quando é dada e considerada a voz do professor em diferentes
esferas, ele aponta aspectos e elementos expressivos para reflexões e discussões sobre sua
formação, pois, além de ser um sujeito discursivo, é também um sujeito social.
Compreender como ele próprio, o professor, pensa sua formação, contribui para a ampliação
do debate sobre alternativas possíveis para a superação dos complexos problemas que emanam de
sua formação, já que seu enunciado revela aspectos estruturantes das políticas de formação de
professores em nosso país, desvendados por uso de palavras carregadas de sentidos e significados
compondo o signo ideológico263.
As falas dos professores de Geografia revelam uma tendência a necessidade de buscar
aperfeiçoamento, atualizações, ajuda e reciprocidade quanto ao desenvolvimento de suas práticas
profissionais. Os professores expressam uma qualificação negativa sobre a sua formação científico-
acadêmica remetendo-se a várias dimensões do seu processo de formação, destacam-se: o
alargamento de oferta de cursos de licenciaturas de qualidade questionável em universidades-
empresas. E a consequente precarização da formação integral do professor, sendo o conhecimento
teórico uma parcela mínima presente na formação acadêmica e científica desse profissional, visto
que atualmente percebe-se a disseminação da ideia de que é no seu fazer profissional que o docente

263VOLOCHINOV, V. & BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico. 14ª ed. São Paulo:
HUCITEC, 2010: 99).

NARRATIVAS
1079

adquire os conhecimentos advindos da prática, portanto, sua formação baseia-se em técnicas de


como ensinar, assim expresso na seguinte fala de um professor de Geografia

Eu perguntei pra ela, já que ela [a diretora da escola] era uma pessoa muito boa para conversar [...] e
ela falou assim ‘Olha a Universidade qualquer uma porque na verdade o que você vai aprender é lá
dentro da sala de aula. Vai te dar uma base pra você realmente saber se quer se professor, mas essa
aqui é a realidade, professor não tem voz, não tem vez, é uma categoria desunida, você vai ter que
enfrentar todo dia um leão. Então, assim, independentemente da universidade que você fizer, você vai
aprender isso na sala de aula’. E de fato é mesmo (Professor: 2012).

Essa fragilidade na formação integral do professor de Geografia se revela também no


conhecimento científico específico da ciência geográfica e do seu conhecimento didático-pedagógico,
filosófico e ético na formação de seus alunos.

Formar o aluno que eu quero. É isso o que eu quero saber: que aluno eu quero formar? [...] Se é para o
mercado de trabalho que a gente deve formar esse aluno? Então, diante de todas as informações que a
gente passa em sala de aula, se a gente tem que focar a contextualização, o conteudismo, o que é mais
importante para essa formação desse aluno? É isso que eu queria saber? (Professora: 2010).

As perguntas que a professora de Geografia faz em sua fala tem uma centralidade nas
diferentes reflexões e debates que circulam na esfera acadêmica e predominam na sociedade sobre a
Educação. Entretanto, esses mesmos enunciados revelam uma necessidade teórica e política que sua
formação acadêmica talvez não tenha sido suficiente, já que a profissional demanda por discussões
mais ampla e profunda do papel que a educação escolar tem no processo de formação e
desenvolvimento dos alunos. A fala da professora revela, portanto, a fragilidade de uma compreensão
política do ser e fazer profissional necessário sobre o trabalho docente.

APONTAMENTOS FINAIS

As falas dos professores demonstram que, embora esses profissionais sejam formados com
severas fragilidades em seu conhecimento teórico, eles são conscientes de suas vulnerabilidades
acadêmico-científica e didático-pedagógica, o que significa a possibilidade de buscas alternativas para
superar essa defasagem.
No sentido de aprofundar o problema da fragilização da formação de professor na sociedade
contemporânea que insiste na política de massificação da educação acentuada no Brasil a partir da
década de 70, apontamos como uma camada mais profunda para essa discussão, a emergência de um
pensamento que contribui para a destruição de professores como sujeitos, devido à desvalorização
acentuada da profissão professor. Se o professor é formado e não dá conta do seu trabalho, a
estrutura educacional pública se vê ameaçada, sendo possível a instalação de medidas para a
manutenção da propriedade sistêmica dos princípios paradigmáticos presentes atualmente
constituindo um círculo vicioso: o professor com fragilidades severas em sua formação tornam-se

NARRATIVAS
1080

dependentes da formação continuada (diversos cursos destinados à atualização de professores) que,


no fim das contas, pouco contribui para o salto qualitativo na profissão.
Assim, O professor de Geografia formado nos preceitos tecnicistas e neoliberais é conduzido
a reproduzir uma prática que não ultrapassa o discurso de representação social do seu papel e da
instituição escolar pública propagada atualmente.
Se, por um lado, a formação do professor de Geografia baseada no modelo neoliberal e
tecnicista forma um profissional ceifado de autonomia intelectual, tornando-o um “executor de
tarefas” ou um “técnico do ensino”, contribuindo, em certa medida, para a manutenção das bases
políticas estruturais da educação brasileira difundida a partir da década de 1970. Por outro, em um
processo contraditório, mas que é possível perceber em uma pesquisa dialógica que considera o
enunciado do professor, percebe-se que o professor possui ciência de sua situação abrindo
possibilidades de mudanças de suas práticas diante da realidade encontrada, conforme podemos
observas nas seguintes falas

O que me trouxe aqui é a minha inquietude. Eu sou inquieta, eu vivo buscando, eu quero o melhor, eu
quero ser uma professora melhor, eu quero ensinar, ensinar de verdade. E como depois de 22 anos eu
percebi o quanto é difícil, eu passei a buscar tudo o que tinha pela frente (Professora: 2010).
Estou saindo de cada encontro com a certeza de que realmente eu tenho que permanecer na sala de
aula, lá eu me sinto segura apesar de todas as dificuldades, lá eu também encontro afeto

Considerar o professor de Geografia um sujeito discursivo e compreender os seus enunciados


em uma metodologia dialógica de pesquisa na área das Ciências Humanas, só ilustra como esse
profissional vem sendo formado com uma incompletude significativa que se expressa e, de certa
forma, se materializa em sua voz, ação, concepção e sentido do que significa ser professor de
Geografia no contexto contemporâneo da escola pública, fundamentado pelo paradigma
racionalizador, tecnicista e neoliberal amplamente difundido à prática do professor, que fomenta
severas fragilidades de conhecimentos necessários à prática do professor, tornando-o um indivíduo
reprodutivista e não em um sujeito do conhecimento capaz de exercer seu trabalho de cunho
intelectual, cujo objetivo é o de potencializar o desenvolvimento cognitivo, emotivo, afetivo e cultural
do aluno.
No processo de elaboração e desenvolvimento de nosso trabalho, tomamos consciência de
que há a necessidade permanente de muitas pesquisas sobre o que acontece com o professor
atualmente, dando-lhe voz, mas, e principalmente, considerando o que é dito pelo professor em um
intenso movimento dialógico, político e filosófico do ser professor.

REFERÊNCIAS

AMORIM, M. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. Cadernos de pesquisa. São Paulo, nº 116, p. 7-
19, julho de 2002.
____________. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. 1ª ed. São Paulo: Musa Editora, 2004.

NARRATIVAS
1081

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
_____. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. 6ª ed. São Paulo: HUCITEC Editora, 2010.
_____. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 5ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010.
BAKHTIN, M.; DUVAKIN, V. Mikhail Bakhtin – Conversas de 1973 com Viktor Duvakin. São Carlos, SP: Pedro & João
Editores, 2008.
TOURAINE, A. Crítica da modernidade. s/ed. Lisboa – Portugal: Instituto Piaget, 1992.
_____. A busca de si: diálogo sobre o sujeito. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
_____. Um novo paradigma. Para compreender o mundo de hoje. s/ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.
_____. Pensar de outro modo. s/ed. Lisboa – Portugal: Instituto Piaget, 2007.

NARRATIVAS
RESUMO
1082

Palavras-Chave:

RESISTÊNCIA EM SALA DE
AULA: a prática de uma professora

PUCCI, Renata H. P.264

A COMPREENSÃO DE SUJEITO

O
sujeito compreendido na perspectiva de Bakhtin e seu Círculo é social, tendo sua consciência
constituída através da apropriação dos signos compartilhados em sociedade, porém é
igualmente singular, uma vez que a apropriação dos signos ideológicos nunca é mecânica, há
uma interação viva entre os sujeitos e as vozes sociais que os constituem. Faraco (2009, p. 86-87)
nos elucida acerca do social e do singular que formam o indivíduo:

O que sustenta esta alternativa teórica é a percepção de que o universo socioideológico e o mundo
interior não remetem a estruturas pesadamente monolíticas e centrípetas (como se houvesse um único
verboaxiológico), mas a realidades infinitamente múltiplas e centrífugas, e confrontando-se em uma
intrincada rede de incontáveis entrechoques que vão ocorrendo numa dinâmica inesgotável.

Constituindo-se nas relações sociais, em interação constante com as palavras alheias, o


sujeito é social, singular e discursivo, ou seja, os discursos dos outros: as posições sociais, as
opiniões, os valores ideológicos, etc., os constituem.
Assim compreendido, o sujeito é constantemente afetado pelo enunciado dos outros, dentro
das relações sociais, considerando o contexto imediato e o mais amplo em que está inserido. Nesse
escopo teórico, qualquer ideia ou expressão do sujeito surge e se forma no processo constante de
interação e luta com o pensamento dos outros, por sua orientação dialógica “em todos os seus
caminhos até o objeto, em todas as direções o discurso se encontra com o discurso de outrem e não
pode deixar de participar com ele de uma interação viva e tensa” (BAKHTIN, 2010, p. 88).
E não há, na enunciação viva, qualquer palavra que seja destituída de seu valor apreciativo. A
palavra em uso, dentro de sua integridade, não reconhece o objeto como neutro, uma vez que a
palavra foi proferida na direção do objeto já se mostra interessada, não indiferente a ele. A palavra
mostra, por meio da entonação, a atitude valorativa do sujeito em relação ao objeto (BAKHTIN, 2010).

264Doutora em Educação (UNIMEP). E-mail: renata_pucci@hotmail.com

NARRATIVAS
1083

No espaço de elaboração de sentidos, situado na realidade social na qual vivem e atuam os


sujeitos, esses encontram-se envolvidos por discursos construídos no âmbito social, aos quais
respondem - com eles dialogam, os confrontam, os aceitam ou os rejeitam, mas nunca os ignoram
completamente.O sentido sempre responde a algo, segundo Bakhtin (2006), pois uma vez
compreendido o enunciado, nos contextos concretos, os sujeitos se posicionam em relação a este,
elaboram sentidos em resposta aos enunciados que não lhes são indiferentes, respondem a eles com
suas contrapalavras.
Esse sujeito é, portanto, social, singular, discursivo e respondente.
Com essa compreensão de sujeito, volto meu olharpara uma professora de português e inglês
que atua em uma escola pública estadual de uma cidade do interior de São Paulo, Ártemis 265. Como
professora nesse contexto, podemos conjecturar que Ártemis vai se constituindo no diálogo com
muitas vozes que se relacionam à sua atividade. Vozes vindas de diferentes instâncias, do contexto
imediato e do contexto social mais amplo, como: os decretos que imputam como obrigatórias ou
optativas as disciplinas da grade escolar, a qualquer tempo, e ainda avalizam em sala de aulao ensino
por “profissionais com notório saber” (como a recente Lei 13.415, de 16 de fev. 2017) eos documentos
prescritivos que normatizam a prática docente (como o Currículo do Estado de São Paulo, implantado
em 2010) que pouco, ou nada, consideram em sua concepção as condições concretas da prática nas
escolas públicas estaduais (carga horária insuficiente para ensinar a disciplina, excesso de alunos em
sala de aula, indisciplina, ausência de materiais e equipamentos para realização de atividades nas
aulas, apenas para ilustrar alguns dos entraves).
Nessa conjuntura, seguem os professores realizando seu trabalho, de maneiras possíveis, de
maneiras diversas, se organizando dentro das possibilidades de seu contexto de trabalho, na relação
única que estabelecem com seus pares e alunos no espaço escolar. Relato, a seguir, alguns momentos
da prática docente da professora Ártemis.

A “IMPERTINENTE” PROFESSORA ÁRTEMIS

A escola era como a maioria das outras do estado, apresentava uma estrutura física definida:
salas de aula com carteiras dispostas em fileiras e mesa do professor a frente, lousa, alguns cartazes
realizados pelos alunos nas paredes, uma biblioteca e uma sala de informática fechadas a chaves, um
pátio para as refeições e uma quadra de esportes. Havia os documentos que a regulava, o PPP
(Projeto Político Pedagógico), o Plano de Ensino com base nos PCNs (Parâmetros Curriculares
Nacionais) e os materiais “sugeridos”para o trabalho em sala de aula (como o Caderno do Aluno e do
Professor, distribuídos pelo governo do estado de São Paulo para alunos de 5 o. ano do ensino
fundamental a 3a. série do ensino médio, que abrangem todas as matérias). Acolhia as reuniões de
planejamento, as reuniões pedagógicas e os ATPCs (Aula de trabalho pedagógico coletivo) e também

265
Convivi um semestre com a professora Ártemis (nome fictício) por ocasião do estágio curricular supervisionado, realizado durante a minha
segunda graduação em Letras português/inglês, no ano de 2012.

NARRATIVAS
1084

as avaliações externas, como o SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de


São Paulo), que objetiva realizar uma avaliação da qualidade do ensino, por meio do rendimento dos
alunos, mas não só dos alunos, pois dependendo do Idesp da escola – indicador de qualidade que
combina desempenho dos estudantes no SARESP com dados de aprovação, reprovação ou abandono -
o professor recebe um bônus, que pode chegar a quase três salários extras.
A escola contava com os alunos de periferia, desinteressados e alienados (dentre outros
adjetivos que os professores e coordenadores declamavam sobre eles), contava com uma
coordenadora linha dura, que dizia aos alunos que lhes faltava vergonha na cara, pois frequentavam a
escola para tudo, menos para estudar, contava com os horários cravados das aulas, com o sinal
sonoro que as separava, com a tentativa dos inspetores de manter os alunos dentro da sala quando o
sinal soava. O que a escola não contava era com a insubordinação da professora Ártemis. Era
destemida.
A professora Ártemis tinha uma rotina rigorosa para iniciar suas aulas. Chegava na porta,
esperava os alunos se sentarem, sempre nos mesmos lugares, pois havia um mapa de sala de aula, e
uma vez decorado pelos professores, a movimentação sorrateira dos alunos ficava difícil. Ela entrava
na sala de aula de cara fechada e uma vez explicou-me a postura rígida: “é preciso, senão os alunos
montam”, escrevia na lousa a data, a matéria e o assunto da aula, sentava-se e realizava a chamada.
Após esse ritual, vez por outra, a mágica acontecia: livros de poesia entravam, música e violão, alunos
em círculo, alunos no chão.
Em um semestre, no qual a acompanhei algumas vezes por semana, a professora de
português trabalhou figuras de linguagem com os livros de poesia (trancafiados) da biblioteca, e
também gêneros textuais, utilizando para ensinar um deles as antigas enciclopédias Barsa (não havia
computador para todos os alunos na sala de informática para que se trabalhasse com algo mais
atual), trouxe um músico que tocou ao violão “Caçador de mim”,de Milton Nascimento, quando abriu
espaço para que cada um dos alunos falasse ou escrevesse sobre si, reuniu os quatro 9 os.anos da
escola, por volta de 150 alunos no pátio, sob olhares aflitos da coordenadora e da diretora, para uma
aula intitulada “A vida é como uma onda”, com música e dança para que os alunos refletissem sobre a
vida, a vida...a vida de cada um, a vida cotidiana.
Ártemis também tinha a mania de se surpreender com as histórias dos alunos, algumas bem
tristes, que apareciam vez em quando, em um comentário ou em uma tarefa, como quando pediu que
os alunos escrevessem um texto do gênero relato de experiência, sobre “o primeiro brinquedo”.
Depois de algum tempo em sua sala de aula, Ártemis já me confidenciava coisas: “Eu adoro
essa turma!”, falava baixinho, para que os alunos não a ouvissem, queria manter sua reputação. A
questão era manter o respeito e não a distância dos alunos, uma vez comentou com um aluno que
dormia durante sua aula: “Eu vi que você postou ontem no Facebook, às nove horas, que era hora de
dormir, pois tinha aula no outro dia, e então, não cumpriu com o que você mesmo falou?”

NARRATIVAS
1085

Os alunos, em retribuição a sua disposição, maneiravam em sua aula, não deixavam de


conversar sobre todos os assuntos, menos o da aula, ou de visitar um colega distante no outro lado da
sala para buscar um apontador, mas maneiravam, pareciam intuir a hora de parar.
Na ocasião em que reuniu os 150 alunos no pátio, um dia antes da atividade, combinava com
uma inspetora (que não parecia muito animada, mas estava solícita com o empreendimento da
professora) a distribuição das cadeiras no local, e confidenciou-me: “vai dar trabalho, mas eu preciso
fazer isso...”e com essas reticências entrou para a aula. Vivenciando inúmeras situações em sala de
aula de outros professores que se apressavam em cobrir o conteúdo dos livros e do Caderno do
Aluno, e também fora dela, até o final de meu estágio, eu ainda me pergunto o que move a professora
Ártemis, que compromisso é esse? Por que ela insiste em subverter a ordem do lugar, um lugar de
conformação (ora essa!): Os alunos não se interessam, estão ali para bagunçar e não pensam no
próprio futuro! O que você acha que vai ser de você? Um lugar de avaliação: A nota dos alunos dos
9os anos é composta pela nota do professor, pela nota do SARESP e pelo número de faltas, o 9o. ano
REPROVA e não há mais vagas na escola para alunos que reprovarem o 9o. ano. Terão que procurar
uma outra escola!266

PARA REFLEXÃO...

No âmbito escolar, lugar marcado por rituais próprios, historicamente construídos, por
discursos prescritivos e envolto pelos “já-ditos” que o (des)valorizam, a prática docente pode
configurar-se como espaço para conformação e também insurgência.Significar o espaço escolar para
além do habitual, como lócus de construção do conhecimento que se dá de diferentes maneirasnão é
um movimento tranquilo, implica mudar alunos de lugar, deslocá-los, trazer músicapara a aula, o que
pode facilmente desestabilizar a harmonia, já bem delicada,geralmente estabelecida à base de
ameaças, em um local com um grande número de adolescentes.
A resistência no trabalho do professor que atua na escola pública é rotineira, afinal adentram
em um espaço socialonde hoje há violência, os salários são precários, as condições de trabalho são
adversas e as demandas são das mais variadas, envolvemo cumprimento dos objetivos impostos pelo
currículo e as necessidades dos alunos, sujeitos igualmente sociais, singulares, discursivos e
respondentes.Pontuo que a resistência se manifestanas práticas docentes, em toda forma de atuação,
seja na tentativa de cumprir um objetivo prescrito ou na realização de atividades desenvolvidas de
modo singular. Reconheço que nesse texto ao olhar mais cuidadosamente para a prática de um
sujeito, outros foram ignorados na complexa trama de relações que compõe o cotidiano escolar.
No entanto, aprerrogativa de compartilhar esse relato é lançar luz ao entendimento de que os
sujeitos, no meio tenso da vida cotidiana, nas relações de dominação e de resistência, se constituem,
produzem e interferem na realidade social. Além de evidenciar uma compreensão de escola como

266Essas são palavras da coordenadora da escola que entrava nas salas de aula quando achava necessário ter uma conversa séria com os
alunos.

NARRATIVAS
1086

“lugar de controle estatal e de apropriação desse controle pelos destinatários, como lugar de
dominação e de rebeldia, de reflexão e de criação, levados a efeito por sujeitos individuais que tecem
ativamente a vida na escola”(Patto, 1993, p. 120).

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Hucitec, 2010.


______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
PATTO, M.H.S. O conceito de cotidianidade em Agnes Heller e a pesquisa em educação. Perspectivas: Revista de
Ciências Sociais. São Paulo, v. 16, p. 119-141, 1993.

NARRATIVAS
RESUMO
1087

Palavras-Chave:

TRÊS GATOS, UM
CACHORRO E UM PARDAL:
quando a escrita encontra liberdade

ROHEM, Clara 267


BEZERRA BARBOSA, Priscilla268

E
mais algumas outras coisas – que a vida nunca é somente o
que se anuncia. Por exemplo:
Dos três gatos, dois, bem dizer, são gatas e o que são
três, na verdade, são as patas do único gato que é macho; o
cachorro na verdade é uma cadela linda, vira-lata e amarela; o
pardal já nem é mais: adentrou pela janela da cozinha e deu de cara com a gatinha que decidiu
protege-lo – pardalzinho de sorte, rapaz! Abriguei-o durante um tempinho numa caixa, mas depois fui
procurar o ninho de onde havia caído e o devolvi à sua casa – Ah, é. Ia esquecendo de dizer que o
pardalzinho era filhote: mal voava. E ainda há uma outra verdade que também não mencionei: eu que
inventei que o pardal era pardal: nada entendo de pássaros. Pode, portanto, que a avezinha fosse uma
rolinha, um tuiuiú ou um bico-coisa.
Perdoem as ignorâncias e as palavras inventivas, mas é que as únicas memórias que trago
sobre pássaros, datam de minha infância, que aliás, passei na mesma casa donde agora me apareceu
a avezinha que me acostumei a pensar ser um pardalzinho. A casa é a mesma, mas o passarinho é
mais marrom e mais pequenico do que os que via na infância – que tem mais: os espaços e as coisas
que vemos na meninice são grandes para sempre dentro de nós.
Por exemplo:
Semana passada estive na escola em que cursei a primeira etapa do Ensino Fundamental: a
Tasso da Silveira. A escola está totalmente reformada e dizem até que houve ampliação do espaço: eu
duvido! Quando fiz meu primeiro ano naquela escola, lembro com toda certeza que faltavam pernas
para correr toda a quadra! Nunca dava tempo de correr tudo e posso garantir: não era o tempo de
recreio que era pouco. Era a quadra que era imensa! Nela habitava tanto mistério... tinha tanto

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Mestra em Educação; Professora de Educação Infantil do Município do Rio de Janeiro. clararohem@gmail.com
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Mestra em Educação. Doutoranda em Educação – UFRRJ bolsista Capes – Demandas Sociais. Email: priscillabbarbosa1984@hotmail.com

NARRATIVAS
1088

tesouro pra esconder e enterrar que, certamente, se eu pudesse pedir pra que algo extraordinário
acontecesse seria que as pernas esticaaaaaaaaaaaaassem de modo que eu pudesse ser tão grande
quanto a quadra da escola. Já pensou? Medir não só a quadra toda, mas também toda a escola numa
passada só? Ah, eu pensava. E como pensava.
Pensava tanto que comecei a escrever as coisas que pensava com vergonha de dizê-las.
Porque eu dizia coisas que as pessoas não queriam (ou não gostavam) ouvir. Não sei bem explicar o
que acontecia, mas era mais ou menos isso que estou falando, sabe? Eu pensava coisas estranhas; eu
pensava em criar coisas, tipo: um esticador de pernas, um dedo com olho e um sapato propulsor. O
esticador de pernas eu queria por motivos já explicitados anteriormente; o dedo eu queria com olhos
para não ter que ouvir ao mexer em algo: tira a mão daí porque dedo não tem olho; e o sapato
propulsor era pra apostar corrida com foguete.
Minhas amigas diziam que eu era bocó. Sempre fui franzininha quando criança: canela seca,
cabelinho ralo, chorona tipo manteiga derretida, como diziam: chorava à toa – mas não era tão à toa
assim. Até hoje não é: as coisas me emocionam, me coisam inteira; tem dias que um nascer do sol me
enche os olhos d’agua e por isso sou grata e de gratidão me brotam lágrimas. Mas na infância era
mais difícil. Aliás: é muito difícil ser criança. Pelo menos pra mim não foi fácil. Arrisco dizer que pra
bacuri nenhum é. Mas, gostaria de deixar claro que do ponto de vista que olho, dificuldade nada tem a
ver com ser ruim ou bom: é só um estado das coisas com as quais temos de lidar e fazer o melhor
possível com tudo, só que com menos autonomia e credibilidade. Ou não é a isso que reduzimos a
infância? Um estado de tutela permanente até para as coisas que não precisam ser tuteladas?
Quem nunca disse (ou ouviu alguém dizer) pra uma criança: não precisa chorar por causa
disso; ou: para com essa birra à toa! Ou: você não tem problema nenhum! Aproveita enquanto é
criança! Quem nunca? Réu confessa: eu já! E não me faltou contato com a teoria (que existem várias
delas por aí). Em minha caminhada na educação, trabalhando desde os quatorze com a primeira
infância – primeiro como ajudante em escolas, depois como estagiária, depois como professora de
educação infantil e agora como diretora adjunta – andei lendo ao longo desses anos algumas coisas
que fazem sentido. Mas o problema talvez seja que a vida muitas vezes é sem sentido e não nos
esqueçamos que, incrivelmente, a infância é parte da vida e tem um sujeito real que a vive. Pasmem:
esse sujeito é a criança.
E foi criança que aprendi com a escrita a falar sobre todas as coisas. Foi com a escrita, ainda
na infância, que aprendi o que é ser livre. Quer dizer: quase.
Na escola as avaliações sobre mim e o que escrevia variavam entre: depressiva e prodigiosa;
alguns professores me queriam no psicólogo ou na igreja; outros me queriam em projetos literários;
alguns diziam que eu era inadequada à faixa etária; outros me acusavam de plágio – sério:
Eu devia ter uns nove anos quando deveria, a pedido da professora, escrever um pequeno
texto em resposta a uma pergunta simples: Se você pudesse ser outra pessoa, quem você seria?
Respondi com uma espécie de haicai mais ou menos assim:

NARRATIVAS
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Seria
Eu
Mesma:

DETESTO DESPERDÍCIOS

De acordo com as avaliações, numa tacada só, eu fui debochada, irônica, atrevida e
desonesta: eu não pensei aquilo. Em algum lugar eu teria lido e copiado – ainda que
inconscientemente. Meu pai só não foi chamado à escola, porque, em total desespero e aos prantos de
manteiga derretida, confessei um plágio que, até onde sei, nunca aconteceu. Desde então, jogo no time
de Alceu Valença, que disse numa entrevista que ouvia por acaso numa rádio: morro de medo dos
plágios inconscientes. Eu acrescentaria: morro de medo das cismas alheias. (Ah, e tem mais uma
coisa: deixei os haicais só para o Leminski. Deus é mais!)
Mas acredito que nada na vida é só isso ou aquilo. Então nada é puramente dor. Essa
experiência, somada a algumas outras neste mesmo sentido, foram me mostrando que existia alguma
coisa relacionada à escrita. Existia (e existe) alguma potência nessa forma de dizer. Ou mais: de
alguma forma fui percebendo, meio intuitivamente (e até mesmo sem saber que eu percebia), que
existia alguma potência na forma como eu escrevia que a maioria das pessoas não partilhava. Eu não
sabia o que era. Até hoje não sei. E também não sei mais se a potencia ainda existe, mas agora já não
importa: acostumei a dizer assim.
Eu era – o que se podia dizer – uma menina cheia de coisas inúteis. As inutilidades tomavam-
me cada célula do corpo: vivia com a cabeça nas nuvens, pensando em balões, passarinhos, aviões,
leões falantes, guerreiros covardes, princesas carecas, árvores com troncos-colo, joaninhas sem
pinta, joelho ralado, pipa avoada, pipoca, quindim, picolé e paçoca.
Tinha (sempre) os dedos indicadores roxos de tanto futucar a terra pra achar minhoca, de
tanto meter nos bolos de aniversário, de tanto apontar as estrelas do céu; tinha as palmas das mãos
fundas de tanto aparar vento, de tanto passar-anel, de muito afofar areia pra fazer castelinho e de
tanto brincar de bafo-bafo com os moleques da rua.
Eu tinha também as pernas compridas (mas não tanto quanto gostaria) de tanto pular sobre
as Pirâmides do Egito, de tanto apostar corrida, de muito pular elástico e de tanto envolver o mundo;
tinhas uns pés gigantes de tanto correr descalça nos cumes dos montes, de tanto comer pé-de-
moleque e de tanto plantar bananeira por aí.
Minhas orelhas viviam inchadas de tanto gostar de ouvir cigarra cantar no mês de novembro,
de muito escutar a vitrola do vizinho, de muito ouvir o mar através das conchas e de tanto puxão de
orelha que levava por minhas inutilidades sem fim; meu pescoço esticou como o da girafa de tanto
olhar para ontem, de tanto procurar estrelas cadentes, de tanto tentar ver o que faziam os adultos e
de tanto olhar por baixo das pernas só para enxergar tudo diferente; meus olhos esbugalharam de

NARRATIVAS
1090

tanto procurar formiguinha em chão preto, de tanto olhar para as nuvens em dia de chuva, de tanto
procurar a lua em dias de sol... fui desengonçando... desengonçando...
De tudo um pouco, armazenava no estômago: um tanto de sorvete, um pouco de limão; um
pouco de alegria, um pouco de tristeza, um pouco de carinho e um tanto de ansiedade. E eu, por inteiro
já desengonçada, fui ficando com o estômago cheio de coisas inúteis. Desde essa época, ainda criança,
tenho a sensação que as palavras moram no estômago. Foi com essa descoberta que me alfabetizei:
De tanto levar susto com bronca de adulto para “tomar modos de gente”, um dia soltei um
grande arroto – adoro contar essa história para as crianças na escola! Elas amam perceber que de
vez em quando adultos falam coisas com algum sentido. Depois sai por aí arrotando as ideias que
tinha na cabeça, mas com as palavras que tinha no estômago. Então aprendi a falar.
E veja a ironia: de tanto ouvir sermão para parar de arrotar e de tanto arrotar pelas broncas
que levava, comecei prestar atenção em nos arrotos: percebeu as letras, juntei palavras. Aprendi a
ler.
E de tanto levar sacolejo de adulto pra “ter mais educação” e parar de arrotar por aí, um dia
sentei. Encolhi as pernas um pouco compridas, mexi as pontas dos pés e plantei-os no chão. Com a
palma da mão funda de tanto aparar vento, afofei a terra. Inclinei o grande pescoço para baixo, senti
meu estômago embrulhar, abri a boca e mais uma vez, arrotei baixinho. Abri ainda mais os olhos:
observei letra por letra e com as ponta do dedo indicador rabisquei na terra: de-sen-gon-ça-da.
Aprendi a escrever.
E foi de tanto encolher as pernas, de tanto ajeitar areia, de tanto sentir o estômago
embrulhar, de tanto arrotar inutilidades, de tanto observar o que arrotava, de tanto rabiscar meus
arrotos, que fiquei um pouco poeta. Acho que ser poeta é um pouco isso: escrever o que vai no
estômago, quando as palavras que lá estão tomam conta de tudo que a gente pensa.

QUER VER UMA COISA?

Dia desses li uma matéria não sei onde na internet que perguntava às pessoas: Como você
pensa? Alguns respondiam que pensam com imagens; outros com cenas; outros com as palavras.
Alguns disseram que não sabiam analisar como acontecia esse processo. Eu sei como acontece
comigo: eu penso escrevendo. Várias vezes interrompo meu pensamento, como quem apaga as
palavras na tela do computador! Eu sei, cara! Isso não deve ser muito normal! Mas é assim que é.
Quando eu tinha doze anos meu pai ficou desempregado e decidiu sair do Rio de Janeiro e ir
pra Arraial do Cabo. Logo que cheguei à escola (Escola Municipal de Monte Alto), na primeira semana,
apareceu um doido varrido querendo montar uma banda marcial. Ele disse que só podia quem tinha
mais de quatorze, mas eu infernizei tanto a vida do pobre coitado que ele me deixou fazer um teste.
Toquei tarol. O cara me deu uma chance. E foi incrível: fiz amigos pra caramba.
Sou péssima cantora, mas fui boa taronista. Cheguei a mudar de banda depois (saí da Banda
Marcial Monte Alto-Figueira, para a Tubarões do Cabo, a mais linda de todas as bandas!) e a vida foi

NARRATIVAS
1091

seguindo. Quando eu tinha uns quatorze, a mãe do maestro (o tal doido varrido) morreu (e o mais
chato é que agora tento me lembrar o nome dele e não consigo de jeito nenhum... lembro do rosto dele
e de como ele batia com as baquetas na nossa canela pra gente marchar direito... como era o nome?
Não lembro. Devo estar ficando velha mesmo). Mas na ocasião da morte de sua mãe, ficamos todos
muito entristecidos. Escrevi pra ele umas coisas que já nem lembro mais. Com o passar dos dias e
com seu reestabelecimento, ao fim de um ensaio, ele veio conversar comigo e disse uma coisa que
não esqueço. Ele disse: sua voz escrita é um soprano suave, daqueles que se gosta de ouvir. Cada um
canta de um jeito, não deixe de cantar.

NÃO DEIXO NÃO.

A adolescência no Cabo foi bacana. Eu me dividia entre a banda (até os quinze. Depois as
coisas foram ficando estranhas... fui me desinteressando da banda e descobrindo outras coisas, como
surfar, por exemplo). Eu me dividia entre ajudar meu pai com as vendas de iogurte (iogurte Mamá.
Nem me obrigue a contar como eles eram ruins! Mas nos sustentaram alguns anos, graças a Deus!).
Também ajudava o pai com o bar e depósito de bebidas, e, com o tempo que sobrava eu ia à escola.
Comecei a cursar o Normal no Colégio Estadual 20 de Julho. O Colégio tinha uma péssima
fama e sinceramente não sei o porquê: fui imensamente feliz naquele lugar! A escola ficava no bairro
Industrial da Álcalis, uma vila pequenina e elegante, toda arborizada com ventos cantantes demais.
Sinceramente eu poderia listar coisas incríveis que aprendi naquela escola em termos de teoria
educacional. É verdade! Foi ali que comecei a ler e a me familiarizar com grandes autores . De cara já
comecei ouvindo que Paulo Freire deveria ser para sempre um norte. Mas já que não vou falar dessas
coisas quero ao menos registrar nomes de pessoas incríveis: Grace, Bilsa, Maria da Consolação,
Veronica, Lúcia Aguiar, Patrícia, Vera, Marilza, Eraldo Ravasco, Alex Côrtes, Anita Mureb, Zairinho,
Bete, Monaliza, Maysa, Lyvia, Maria Elízia, Roberta, Cirlene, Simone... ah, que saudade! Todos mestres e
amigos que tenho presentes na vida até hoje.
O 20 de Julho me deu de presente as memórias mais bonitas e mais doidas que tenho. Tudo ali
era vivo e intenso; tudo tinha tesão, alegria, vontade, sabe? Mas também, o que esperar de uma escola
que tinha um portão dos fundos voltado para a Praia do Pontal? O caminho de praia mais bonito que
você já viu? E o que dizer de uma diretora que aconselhava: gente, tem armários nos vestiários...
venham para a praia e tragam o uniforme na mochila! O que esperar de uma escola em que a diretora
convidava os alunos a irem à praia e “dar uma passada” na escola depois? Era de se esperar que
fosse o que era: uma festa bonita! Íamos pra lá aos domingos, inclusive. A escola era nossa. A gente
participava de tudo por lá. A gente se sentia responsável por ela. Tínhamos grêmio, grupo de teatro,
grupo de projetos, saraus, luais, festas, obrigações... tínhamos uma vida inteira pela frente. E aquele
mar imenso. E aquela areia finiiiiiinha, fininha. E as tartarugas em época de desova. E os pinguins que
se perdiam nas correntes geladas. E baleias que encalhavam e nos pedia ajuda. E as casuarinas
machucando nosso pé e servindo de munição para estilingue.

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1092

Confesso que depois da formatura entrei em depressão. Foi terrível não ter mais pra onde
voltar. Me senti perdida, sozinha, angustiada. Assim que me formei recebi algumas propostas de
emprego, já que já estagiava desde o primeiro ano de curso. Até tentei trabalhar em uma escola
particular, mas estava por demais acostumada a liberdade e não consegui levar adiante. Além disso,
logo assim que me formei, já casada (oh, sim... casei bem cedo. Mas isso é outra coisa) descobri que
estava gravidíssima. Na época era casada com um militar que fora transferido para o Rio de Janeiro.
Resolvi acompanha-lo e voltei à Cidade Maravilhosa.

A MATERNIDADE VEIO.

Com ela comecei a perceber que, apesar de ter aprendido com a escrita a falar sobre quase
tudo, um assunto continuava silenciado dentro de mim. Era (e é) um assunto banal na vida de quase
todo ser humano. Mas pra mim não foi. Nunca. Não aprendi a falar sobre a maternidade do lugar de
filha. E isso fez um estrago que ninguém pode supor. Fiz anos de análise e nenhuma palavra, nem para
terapeuta, nem para mim mesma. E até isso me corrói: por-que-não-escrevo? (Pausa dramática).
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************************************************** por vergonha. O mais provável é que
seja por isso. Vergonha de sentir falta dela; vergonha por ter que declarar que a falta dela foi
devastadora; vergonha por ter que confessar que nos piores dias a odiei com todas minhas forças e
depois chorei por tê-la odiado; vergonha por ter seguido em frente e ver que minha avó não mais
seguiu; vergonha por nunca ter conseguido as palavras certas e dizer ao mundo: ei! Tudo bem, gente!
A gente pode chorar um pouco porque alguma coisa aconteceu e os planos mudaram no meio do
caminho; vergonha porque todas as tentativas que eu tinha de falar sobre ela acabavam em tentativas
desesperadas de mudar o foco do assunto para que eu não sofresse. Aliás: mania que a gente tem às
vezes de determinar o que o outro não aguenta, o que faz ou não sofrer! Mania de comparação! Quer
ver uma coisa? Até hoje quando converso com algum amigo próximo que já perdeu sua mãe, se ele
reclama de como vai a vida sem ela e eu faço um simples comentário do tipo: ‘sei como é’,
rapidamente ele me diz: ‘ah, não sabe. Você nem conheceu sua mãe’. Estou fadada a não saber.
Analisando toda minha trajetória e todas as violências que sofri, certamente o silenciamento
foi a pior tortura. Ter de matar dentro de si palavra por palavra... talvez muitos nunca entendam o que
significa; talvez somente aqueles que possuem essa relação com a palavra saiba do que estou falando.
Talvez estes até chorem comigo, porque saibam que a palavra tem urgência. Palavra quer mundo,

NARRATIVAS
1093

quer encontro, quer sair por aí. E se sair pra chorar? Por que não? A palavra chora quando precisa e
faz rir quando encontra contentamento. Mas, na contramão disso, minha família resolveu se fechar em
torno de uma única narrativa:
Sua mãe descobriu um câncer raro, aos vinte e seis anos, logo depois que descobriu a
gravidez. Ou abortava ou fazia o tratamento. Decidiu pela gravidez. No sétimo mês foi feita uma
cesárea para que ela pudesse fazer algum tratamento. Ela resistiu por mais um ano.
Essa narrativa justificava todos os motivos pelos quais eu deveria me envergonhar: eu não
tinha motivos para sentir falta, afinal nem convivi com ela; eu não posso me entristecer: eu sou a
única criatura no mundo que estou viva graças a infinita bondade de minha mãe e seu sacrifício de
amor; eu deveria me envergonhar por querer saber coisas idiotas do tipo: ela gostava mais de chuva
ou de sol? Ouvia música em volume alto? Falava palavrão? Admirava as girafas assim como eu
admiro? Usava saia? Que lugares ela conheceu? Quais queria conhecer? Quando topava o dedinho do
pé na cama o que ela falava? O que ela gostava de cozinhar? Cozinhava?
Tenho fixação pela cozinha materna. Eu achava (e ainda acho) lindo os amigos que diziam:
minha mãe faz um purê de batata que ninguém faz igual! Ou: minha mãe fez um suco ontem que estava
uma delícia! Eu sei que existe toda uma narrativa que tenta romantizar a maternidade... eu sei, eu sei.
Mas confesso: adoro ser a mãe que cozinha pra minha filha. Adoro quando ela me pede pra fazer este
ou aquele prato. Adoro quando ela come com toda alegria o feijão fresquinho que preparei para ela e
juro: mesmo esta satisfação relaciono com as palavras. Explico.
Como mãe eu sou do tipo doida. Desesperada. Do tipo que acorda em sobressalto se a
criatura vem ao quarto depois de eu ter me deitado para qualquer coisa. Então, desde que ela era
muito bebê, eu queria que ela falasse: quanto antes melhor! Eu superestimulava a criança (hoje ela
tem treze anos e se eu pudesse tirava um pouco a pilha pra ela ficar sem falar por dez minutos, já
seria o suficiente). Mas eu queria que ela pudesse me perguntar qualquer coisa sobre mim, sobre o
mundo, sobre a vida. (Eu sei que isso é meio mórbido, mas vá lá e me dê um desconto: quando se
começa a vida tão sozinha a gente considera que tudo pode ser...). Então pra mim funciona assim:
criar lembranças é o mesmo que criar palavras e o contrário também pode ser.
Quando minha filha completou um ano e meio, mais ou menos, prestei concurso para
professor de educação Infantil do Município de Mesquita e lá, numa creche da Chatuba, lugar de
intensos conflitos e de muita miséria, foi a minha primeira atuação como professora de Educação
Infantil. As condições eram péssimas (e pelo o pouco que acompanho de amigos que ainda estão por
lá, ainda é). Mas existia um trabalho lindo, lindo, unicamente por se preocupar com a felicidade das
pessoas que ali estavam. Ali fui professora e coordenadora pedagógica; fui atriz e militante; fui amiga,
conselheira e também aconselhada. Ali aprendi o que disse lá no começo deste memorial: a vida nem
sempre é o que se anuncia. Foi assim por oito anos.
Com o tempo passando, minha filha crescendo, com a separação e com todas as outras
coisinhas da vida, resolvi que era tempo de voltar a fazer o que gosto: estudar (meu pai nunca
entendeu esse gosto. Tudo bem: nem eu entendo). Prestei vestibular para pedagogia na UFRRJ e

NARRATIVAS
1094

comemorei a conquista: tuuuuudo novo de novo. De cara fiz amigos – que é o melhor de toda
caminhada. Foi uma enxurrada de informações e possibilidades e quando menos esperei, apesar de
todo o peso cotidiano (trabalho, filha pequena, nenhum suporte familiar inclusive para os cuidados
com minha moleca) estava desejosa.
O desejo de tonar-me pesquisadora surgiu na graduação quando, encantada, ouvia relatos dos
professores (em sua grande maioria doutores) sobre suas pesquisas e suas descobertas em campo.
Naquele período o mundo da pesquisa apresentava-se magnífico: debruçar-me sobre alguma questão,
discuti-la com os pares, ler (algo que realmente fazia parte de mim), conhecer pessoas; falar com
elas; dialogar com o que lia... Sim. Era algo que queria fazer. Mais que isso: era possível ingressar
naquela realidade. O caminho estava posto. Assim: como quem coloca um banquete e te convida a
cear. Venha! Sirva-se a vontade! Inúmeros grupos de pesquisa apareciam a minha frente. Os
professores doutores eram quase todos bastantes receptivos a chegada de novos membros em seus
grupos de pesquisa. Eu só precisava escolher.
Então eu acordava às quatro e meia da manhã. Agasalhava minha filha porque embora o
inverno no Rio de Janeiro não seja tão rigoroso, era prudente enrola-la bem numa manta quentinha
para que não sentisse por demais o impacto de ser tirada da cama antes do dia clarear. Ela já não era
um bebê: tinha quatro anos e costumava até ser muito compreensiva, mas sabe como é coração de
mãe: não pretende impor sofrimentos a sua criança em tempo algum. Pegava-a cuidadosamente no
colo e a levava para casa de sua bisavó (Minha querida Dona Maria, nordestina “arretada”, de quem,
tenho certeza, herdei o gosto pelas histórias). Dava-lhe um beijo e partia. Meia hora de caminhada
depois estava eu na estação de trem de Realengo, junto a outras centenas de pessoas, companheiras
de histórias e sonhos, rumando cada qual para seu trabalho ou destino. Enquanto o trem deslizava e
entre uma parada e outra nas estações eu pensava nos convites dos professores. Eu só precisava
escolher.
Estação de Deodoro. Precisava descer e “baldear” para pegar o trem de Nova Iguaçu. Agora
já passava das seis. Não podia perder o próximo trem, senão o atraso seria certo. Graças a Deus o
trem apontava na estação. Já podia pensar novamente na minha escolha. O trem seguia lotado mas
pelo menos pela manhã, era mais silencioso. Dava pra ler o texto da aula da noite.
Havia visitado há algum tempo a redação de um jornal de grande circulação na cidade. O guia
da visita explicou que, pensando nos trabalhadores, criaram um jornal num formato menor para que
esta categoria (na qual me encaixava e ainda me encaixo) pudesse ler as notícias no trem, em pé,
enquanto seguravam-se durante os solavancos que a composição dá entre uma estação e outra. Eles
entendiam de publicidade! Realmente era o que acontecia. E todos os dias aparecia pelo menos uma
vendedora de jornais com o bolso cheio deles. Todos pequeninos e fáceis de segurar. Num bolso
grande os jornais. No bolso menor, dinheiro miúdo pra facilitar o troco.
Muitos de meus companheiros de trem compravam o jornal. Eu, no entanto, preferia ler os
textos para a aula da noite. Por vezes me perguntava se os professores também visitaram a sede do
jornal. E no fim achava bom que os textos fossem disponibilizados como cópia: era realmente mais

NARRATIVAS
1095

fácil para ler no trem. Com o tempo acostumei e mesmo quando dispunha do livro (raras vezes)
preferia fazer a cópia do mesmo, assim podia ler com certa tranquilidade enquanto rumava para o
trabalho.
A viagem de trem, depois de Deodoro, durava em geral meia hora. Era um tempo considerável
para a leitura – ao menos para aquelas que não exigiam leituras complementares. E então, quando o
maquinista (ou aquela voz feminina suave e feliz) anunciava a estação de Edson Passos, colocava o
texto dentro da bolsa e preparava-me para saltar. Agora era necessário descer, sem no entanto,
distanciar-me dos pensamentos que engendrava acerca da escolha de pesquisa. Neste ponto o
esforço era inútil. Na Kombi que enfim me levaria ao ponto final (a creche em que trabalhava na
Chatuba) sempre tinha papo com os passageiros e com o motorista. A gente falava sobre todo tipo de
coisa e eu sempre esquecia que tinha uma escolha a fazer.
Escolhi fazer o melhor possível. Participei de um grupo de pesquisa semi-presencial;
aproveitei cada amizade que fiz para discutir assuntos de interesse comum, para dividir livros,
sugestões de leitura, de filmes, de sonhos. Quando a graduação chegou ao fim, foi bem menos
traumático do que quando terminei o curso Normal. É claro que a maturidade emocional tem grande
participação nisso, mas o mérito maior é da vida mesmo.
Quando terminei a graduação eu já havia conquistado uma segunda matrícula na SME do Rio
de Janeiro e já estava me despedindo de Mesquita: havia acabado de prestar concurso novamente
para a SME do Rio e ficaria, portanto, com as duas matrículas no mesmo município.
Foi aí que soube do processo seletivo de Mestrado da UFRRJ para o ano de 2015. Lá fui eu de
novo: me lancei por inteiro em mais uma etapa. E o tempo passou voando:
Nos dois anos de curso equilibrei as disciplinas, a escrita, o estudo, as escolas, a maternidade,
o relacionamento com o novo companheiro, as amizades e os bichos. Que as coisas não são
separadas: tem presentes que a vida nos dá que é pra gente seguir em frente; tem situações que ela
nos traz para sinalizar que, por mais apertado e confuso que as coisas estejam, é importante
continuar. Sou do tipo que continua. Sou do tipo que acredita que é possível fazer sempre o melhor
com o que se tem e isso não quer dizer que eu aceite com passividade a massificação da vida. Quer
dizer apenas que acredito na resignação e na potência de poder dizer.

A POTÊNCIA ESTÁ EM ARRUMAR MEIOS DE DIZER

Todos os dias eu digo que estou pronta. A cada etapa: estou pronta. A cada joelho ralado, a
cada cansaço extremo, a cada luta, a cada novo processo seletivo: estou pronta. Pronta a ouvir, a
fazer o melhor, a ficar sem dormir, a gargalhar, a chorar, a viver. Bem que seu estava tentando
terminar estes escritos com palavras somente minhas. Mas a gente tem que saber reconhecer a
genialidade de outros que já disseram o que você desejava ter dito. Guimarães Rosa disse por mim:
O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,

NARRATIVAS
1096

sossega e depois desinquieta.


O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais,
no meio da alegria,
e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza!
A vida inventa!
A gente principia as coisas,
no não saber por que,
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada.
O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas.
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.

(Fragmentos do livro Grande sertão Veredas)

Sabe o que é mais difícil na vida? Começar e terminar. A gente quer começar bonito e quer
que termine bem. Mas a gente esquece que o meio é que determina quase tudo. É no meio que as
coisas acontecem. Quando eu comecei a escrever estas memórias, éramos um cachorro, três gatos e
um pardal. O pardal já foi embora. Dos três gatos apenas um é macho; o cachorro é uma vira-latas
amarela, e eu? Já nem sou mais.

NARRATIVAS
RESUMO

1097de cartazes de
Este texto apresenta uma análise
manifestação que tematizam um evento discursivo-
político-ideológico específico, a saber, a ocupação

CARTAZES DE MANIFESTAÇÃO: das escolas públicas de São Paulo (Brasil) pelos


estudantes secundaristas, ocorrida em 2015. Os
cartazes foram postados em um perfil da rede
narrativas de resistência no espaço escolar social Facebook, intitulado: “Não fechem minha
escola”, criado para apoiar e divulgar notícias do
sob um olhar bakhtiniano movimento de ocupações. Buscou-se observar os
modos como esses enunciados,com tonalidade de
protesto e resistência,produzem sentidos e
constroem novas narrativas sobre o que é ser
estudante secundarista da escola pública brasileira
hoje.Para tanto, a análise ancorou-se teórica e
metodologicamente nos estudos do Círculo de
ROHLING Nívea 269
Bakhtin,sobretudo a partir de conceitos centrais
REMENCHE, Maria de Lourdes Rossi 270 como discurso, enunciado, cronotopo e horizonte
apreciativoque foram balizas para análise
BORTOLOTTO, Nelita271 apresentada. Os resultados mostram que, nesse
evento particular, os enunciados marcam
valorativamente pelo tom de resistência e
empoderamento, construindo narrativas outras no
espaço escolar.

Palavras-Chave: Cartazes de Manifestação. Mídias


Sociais Digitais. Discurso. Narrativas

INTRODUÇÃO

O
impacto social das ocupações de escolas públicas no Estado de São Paulo, ocorridas em
novembrode 2015 e que se estendeu para demais estados do Brasil em 2016, ficou
evidenciado,em grande escala, como movimento estudantil de vivenciamentoda crítica
pelaatitude da ocupação de um espaço social e democrático, objetivando apublicizaçãode vozes
contrárias ao discurso oficialdo governo vigente. Essa abertura, porém, não se circunscreveu àquele
ambiente. Agregada a essa ação, as vozes foram expandidas em diversos perfis criados em redes
sociais a fim de dilatar a escuta da “não aceitação” por parte dos estudantes e da comunidade
implicada, quanto às medidas de reorganização do sistema escolar no Estado de São Paulo.
As ocupações foram uma resposta ao projeto de reorganização das escolas públicas
estaduais, proposto pelo Governo do Estado de São Paulo, e anunciado em setembro de 2015, que
pretendia fechar cerca de 155 escolas, bem como agrupá-las por níveis de ensino. O anúncio de tais
medidas gerou, por conseguinte, uma série de manifestações por parte da comunidade escolar, cujo
ponto culminante foram as ocupações de escolas por estudantes, como forma de protesto em relação

269Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Linguagens do Departamento Acadêmico de Linguagem e Comunicação da Universidade Tecnológica Federal do Paraná/Campus Curitiba. E-
mail:nivear@utfpr.edu.br
270Doutora em Linguística pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo (2009). Docente da Universidade Tecnológica

Federal do Paraná (UTFPR-Curitiba) e Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Linguística Aplicada (GRUPLA). E-mail: mremenche@utfpr.edu.br
271 Docente da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Pós-doutorado na Universidade Estadual de

Campinas - UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: nelita.bortolotto@ufsc.br

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ao referido projeto de reorganização. O movimento trouxe à tona a insatisfação dos estudantes em


relação às políticas públicas relacionadas à educação e evidenciou a necessidade de publicização de
vozes contrárias ao discurso oficial. É nesse contexto que cartazes de protestos circularam de modo
recorrente nas redes sociais digitais. Um contexto discursivo tenso e conflituoso que produziu ações
protagonistas não só nos espaços públicos como a escola ou as ruas, mas também, como mencionado,
na criação de perfis em diferentes redes sociais digitais, como “Não fechem minha escola”, por
exemplo, possibilitando a interação com diferentes discursos e a materialização de projetos de dizer
que foram constituindo narrativas sobre diferentes objetos de discursos: os significados de ser
estudante, da luta em foco, sobre a escola pública, para citar poucos exemplos.
As redes sociais digitais, em sua configuração particular,explicitaram a emergência de
produção e de circulaçãode enunciados de protesto (contrapalavra), portanto, situações de
enfrentamento, lutas políticas e ideológicas. Evidenciou-se, assim, o potencial dessas redes sociais de
se constituírem como espaços contemporâneos para publicizar a produção dos próprios sujeitos
envolvidos no evento como alternativa a outras mídias como, por exemplo, jornais e revistas,
pertencentes às grandes empresas de comunicaçãoque, por vezes, corroboramos interesses de uma
classe hegemônica representante do discurso oficial.
Esse domínio discursivo mostra-seprodutivo e instigante para os estudos da linguagem, em
que se evidenciam outras formas de perceber os espaços públicos e as ações protagonistas dos
sujeitos, sobretudo, como é o caso aqui,na escola pública brasileira.
Dessa forma, neste texto272,a partir da análise de enunciados veiculadosnas redes sociais
buscou-seproblematizar os modos como as redes sociaisdigitais contribuem para a ressignificação
das práticas de linguagem e vêm se configurandocomo um importante espaço públicode embate de
vozes, bem como lócus de construção de narrativas figuradas pelos alunos de escola pública. Ainda
mais, considerando que na contemporaneidade, as mídias sociais digitais vêm ampliando contornos,
mas também, por vezes, borrando algumas fronteiras, como ocorre, por exemplo, naexplicitação de
acontecimentos no espaço escolar.
Para tanto, foramselecionados cartazes de manifestação, postados na rede social Facebook,
que materializamprojetos de dizer,constituindonarrativas sobre o espaço escolar esobre o que
significa ser estudante da escola pública brasileira na contemporaneidade.Certamente, tais narrativas
não decorrem de percepção momentânea e impulsiva como indivíduo (estudante) ou como coletivo
(comunidade estudantil), mas advém da constituição de uma percepção histórica, social e cultural –
não indiferente –, presente, acumulada e aprofundada no tempo histórico real de cada sujeito-
estudante e como coletividade (pelas vivências socioculturais partilhadas). As narrativas fixadas em
enunciados publicizados em cartazes apresentam uma voz-outra, a da contrapalavraexposta no todo
ou em parte particular, uma “voz-livre”, uma “voz-protesto”, uma voz-que-grita pela escuta. Mas, que
movimento foi/é esse que impulsiona/impulsionou o protesto? Que encoraja um “outro-dizer”, o dizer
da contrapalavra diante do poder do Estado?

272 Este texto é resultado das ações de pesquisa do Grupo de Pesquisa em Linguística Aplicada (GRUPLA), da UTFPR/Curitiba.

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1099

A narrativa particular da experiência das ocupações em cartazes em redes sociais se lança


como elemento fecundo para a compreensão da presentidade e do passado histórico, pois por ela é
possível pensar as relações dialógicas como potênciaque pode/poderia levar a muitas direções.
Conceitos da teoria do dialogismo de Bakhtin e Círculo (BAKHTIN, 1998 [1975], 2003 [1979], 2015;
VOLOCHÍNOV, 2013) como de linguagem, discurso e enunciado, cronotopia,273 orientam a análise ao
distanciar-se de compreensões as quais endossam o entendimentodo tempo presente como provindo
do que antes sucedeu (do passado ao futuro).Bakhtin defende a tese da noção do tempo como
simultaneidade (coexistência e interação/ tempo histórico real e percepção do devir). Machado
(1998)interpretando Bakhtin, expõe:

Para Bakhtin, tanto na vida como na literatura, o tempo se organiza mediante convenções que não se
restringem a definir o movimento e o arranjo das situações; pelo contrário, firmam posicionamentos e
revelam diferentes formas de ver o mundo. Em seus estudos sobre o tempo existe a busca do
dimensionamento entre ética e estética na criação. A narrativa torna-se um campo fértil de
investigação pois nela se constituem os discursos sobre o mundo a partir dos quais é possível pensar
as relações dialógicas. (MACHADO, 1998, p. 34).

Outro caminho teórico que se encadeiaà análise das narrativas estudantis em cartazes, diz
respeito a estudos sobre mídias, mídias sociais e redes sociais (SILVERSTONE, 2005; STAM,
2010;ARAÚJO, 2016)a fim de corroborar na análise proposta.
Nesse cenário, apresenta-se, a seguir breve percurso de perspectivas conceituais de autores
que se ocupam de estudos linguagem, mídia e cultura acerca dessa particularidade que é a produção
de sentidos nos encontros sociais voltados a instâncias públicas da comunicação humana. Na
sequência, aborda-se as manifestações estudantis na ocupação de escolas públicas, analisando a
produção de discursos desse público em redes sociais, os quais se inscrevem no espaço midiático
como forma de luta e resistência política por direitos à educação. Na última parte, são apresentadas
as regularidades observadas no processo de análise dos dados e o que desta análise se evidencia
como voz que postula um futuro não absoluto e demarcado, mas como acontecimento,onde vivências e
sonhos outros se insinuam como possíveis.

1. MÍDIA, TECNOLOGIA E IDEOLOGIA

As mídias se apresentam como mediadoras das relações sociais e vêm assumido um papel
significativo na configuração da cultura pós-moderna 274 . Sobre esse tema, Silverstone (2005)

273Neste texto, não inserimos uma exposição detalhada sobre esses conceitos do âmbito da elaboração teórica bakhtiniana, tendo em vista os
diversos trabalhos de comentadores da teoria já publicados na área de estudos da linguagem.
274 Pós-modernidade aqui entendida tal qual Hall, como o período da segunda metade do século XX, em que se destacam várias mudanças

socioculturais, que vem fragmentando as noções de gênero, raça, identidade, dentre elas o processo de globalização (HALL, 2006). Na visão de
Hall, as sociedades pós-modernas caracterizam-se pela diferença: “são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que
produzem uma variedade de diferentes ‘posições de sujeito’.”(HALL, 2006, p.14).

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1100

posiciona-se criticamente ao afirmar que a mídiatem sido propagada como extensão do homem, tal
como propõe a visão de Marshall McLuhan: “[...] como próteses, que aumentam o poder e a influência,
mas que talvez nos incapacitam como nos capacitam, enquanto nós, objetos e sujeitos da mídia, nos
enredamos mais e mais no profilaticamente social.” (SILVERSTONE, 2005, p. 16). Essa visão de mídia
como extensão do corpo tende, de acordo com Silverstone (2005), a tornar tênue a fronteira entre o
humano e o técnico, entre o corpo e a máquina. Isso implica uma perspectiva de completo domínio da
mídia sobre o homem e leva-nos a pensar que vivemos em espaços totalmente simbólicos,
autorreferenciais que proporcionam apenas a reprodução e nunca o original. Assim, a mídia se torna
a medida de todas as coisas no espaço onde vivemos e transitamos.
Em contraposição a essa visão, digamos, determinista sobre mídia, Silverstone (2005, p. 26)
também afirma que é possível estabelecer um distanciamento de reflexão entre as experiências na
mídia e fora dela: “Podemos distinguir, e de fato distinguimos, fantasia de realidade, podemos
preservar, e de fato preservamos, alguma distância crítica entre nós e a mídia [...]”. Essa proposição
do autor aproxima-se da noção bakhtiniana de sujeito responsivo e responsável e que apresenta
resistência, uma vez que, na perspectiva bakhtiniana, o sujeito não tem álibi para sua existência,não
tem álibi para não ocupar o seu lugar único e irrepetível; nesse lugar, o sujeito responde ativamente.
Ao problematizar as relações entre conteúdo vivido e conteúdo abstrato, Bakhtin propõe que o
ato é gesto ético no qual o sujeito se revela, arrisca-se e também se responsabiliza pelo pensamento
(BAKHTIN, 2010[1986]). Essa concepção trata do não-álibi do existir, pois o lugar que ocupo não pode
ser ocupado por outro e desse lugar que é ocupado por mim, devo agir responsavelmente. Afinal o que
precisa ser feito por um sujeito não pode ser feito por mais ninguém.Com essa tese, Bakhtin enfatiza
a posição ética a ser ocupada pelo sujeito no mundo, que se constitui nas relações de alteridade.
A cultura humana – a ciência, a arte e a vida – sustenta o autor, “só adquirem unidade no
indivíduo que os incorpora à sua própria unidade.” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. XXXIII). Na linha dessa
sua tese, Bakhtin indaga e observa, mas

o que garante o nexo interno entre os elementos do indivíduo? Só a unidade da responsabilidade. Pelo
que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com minha vida para que todo o vivenciado e
compreendido nela não permaneçam inativos. (BAKHTIN, 2003 [1979], p. XXXIII-XXXIV).

Stam (2010) ao propor uma abordagem crítica da mídia, afirma que as concepções sobre a
mídia oscilaram entre a melancolia pessimista e a euforia exagerada. Para os pessimistas, a mídia foi
concebida como um instrumento de reificação capitalista, um aparato opressivo, uma máquina de
influenciar que prova pouca resistência. Contrariamente, há os que a olham de forma entusiasta,
saúdam o impacto revolucionário das técnicas modernas de reprodução ou a subversão midiática dos
tradicionais privilégios da elite literária.
Nessa relação polarizada e pouco produtiva de esboçar uma crítica midiática, conforme Stam
(2010), ainda que nos escritos do Círculo de Bakhtin nãose tenha discutido diretamente as políticas
culturais dos meios de comunicação de massa, a teorização do Círculo podeser considerada

NARRATIVAS
1101

producente para tal discussão. Para Stam, a mídia de massa pode ser conceituada, numa perspectiva
bakhtiniana, como

uma rede complexa de signos ideológicos, situada no interior de ambientes múltiplos – o ambiente
gerador dos meios de comunicação, o ambiente gerador ideológico mais amplo, e o ambiente
socioeconômico – cada um com as próprias especificidades. (STAM, 2010, p. 333).

Apresentar os estudos bakhtinianos como crítica produtiva para abordar a mídia na cultura
humana, demanda pensar na contribuição de dois outros conceitos abarcados pela teoria bakhtiniana,
o de forças centrípetas e centrífugas. Demanda pensar no jogo dessas duas forças, as centrípetas e
as forças centrífugas, tendendo a resultados para um ou para o outro lado. Na visão deStam (2010),
pode-se dizer que, na mídia de massa, existem padrões de supremacia, tendências ideológicas, mas a
dominação nunca é completa275:

[...] não existe nenhum texto unitário, nenhum produtor unitário, e nenhum espectador unitário; em vez
disso, existe uma heteroglossia conflituosa que permeia o produtor, o texto, o contexto, e o leitor-
observador. Cada categoria é atravessada pelo centrípeto e pelo centrífugo, o hegemônico e o
antagônico. (STAM, 2010, p. 334).

Nos embates entre as forças centrípetas e as forças centrífugas, a mídia atua na construção
de representações que os sujeitos criam do mundo. Nesse sentido, é preciso que a reflexão sobre a
mídia se estenda para além de seu caráter de simples artefato tecnológico que possibilita reflexos
consensuais da cultura, uma vez que é um elemento importante na constituição de discursos e nas
representações socialmente construídas. Isso porque as mídias agem intrinsecamente nas novas
possibilidades de interagir e, por conseguinte, na produção e circulação de discursos, no surgimento
de novos gêneros discursivos, sobretudo os gêneros produzidos nos espaços digitais, enfim em outras
possibilidades de uso da linguagem que nascem nessas novas interações midiáticas. Bakhtin, em um
contexto histórico diferente do nosso276, já salientava o papel relevante da criação da imprensa, uma
mídia, para a constituição do romance como gênero. Tal perspectivaaponta para arelação imbricada
entre as atividades humanas e a produção de discurso, evidenciando que são as variadas atividades
humanas que propiciam a constituição e circulação de discursos.
Geraldi (2010)277, no que tange à discussão sobre linguagem e tecnologia, de forma geral,
aponta como produtivo o fato de as tecnologiasdigitais trazerem consigo o direito de expressão a
qualquer um, ou seja, o direito de dizer. As tecnologias possibilitam que a palavra em rede possa

275Nessa passagem do texto de Stamhá uma intrínseca relação com a concepção de ideologia do Círculo de Bakhtin. A ideologia oficial não
domina irrestritamente, ela se constitui na relação com as ideologias do cotidiano e nos embates entre forças centrípetas e forças
centrífugas.
276 As elaborações teóricas do Círculo se deram no período de 1919 a 1929, em meio a um conturbado contexto político-social russo, em que

ainda se tinha como centro a mídia impressa.


277 Palestra proferida pelo pesquisador no “Círculo - Rodas de Conversa Bakhtiniana”, em novembro de 2010 na UFSCar, cujo título é “Onde o

ético e o estético se encontram hoje”.

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alcançar interlocutores diversos. Esse estado de coisas, segundo o pesquisador, instaura uma nova
ética da responsividade nas relações virtuais, o que implica novas relações no campo da ética.
Assim é que as mídias, sobretudo as mídias sociais digitais são artefatos que compõem
sistemas de significados na produção de identidades e subjetividades, sendo, pois, um espaço fluido de
entrelaçamentos e possibilidades de representações.

2. PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE CARTAZES DE MANIFESTAÇÕES DA OCUPAÇÃO DE ESCOLAS


PÚBLICAS

Como unidade representativa dos dados analisado, foi selecionado 01 (um) enunciado278 do
gênero cartaz de manifestações que, ao mesmo passo que ocupa, de modo físico, o espaço escolar e
as ruas no entorno da escola, foi postado em perfis de redes sociais e teve uma ampla visualização.
Segundo Magalhães e Queijo (2015) 279 , os cartazes capturam metonicamente os discursos
estruturantes dos eventos.
Primeiramente, é preciso considerar a situação de produção e circulação desse enunciado em
tela. Como já mencionado neste trabalho, os cartazes foram produzidos em um evento discursivo
concebido como atos da ocupação das escolas públicas de São Paulo (Brasil) no ano de 2015.
O espaço específico da postagem foi o perfil da rede Facebook, intitulado: “Não fechem minha
escola” .Essa escolha se deu em virtude da representatividade em termos de participantes e porque
280

os objetos discursivos tematizados, neste grupo, referem-se ao evento em foco na discussão – o


movimento das ocupações nas escolas de São Paulo. A rede social em que o grupo está inserido,
Facebook, permite que seus interlocutores, por intermédio de seus perfis pessoais, participem das
discussões que acontecem por meio de postagens e comentários, potencializando uma relação
interlocutiva semelhante à de fóruns de discussão online.
O grupo é público, o que significa dizer que qualquer pessoa, mesmo não sendo da comunidade escolar, pode
ler as postagens e interagir nesse espaço multissemiótico. Embora possibilite uma ampla participação e publicização
de seus conteúdos, a descrição do grupo afirma que se trata de um site educacional e aponta para uma certa linha
temática ao propor que o tema é “Contra a absurda “reestruturação” das escolas, todo apoio às
ocupações!#respeiteminhaescola”. Nesse apontamento temático já se mostra saliente a entonação de luta e de
protesto materializada na seleção lexical de adjetivos como Contra, absurda, ou, ainda no uso do imperativo na hastag
–“#respeiteminhaescola”.

278
Foram analisados um conjunto de 10 (dez) cartazes de manifestação, postados na página “Não fechem minha escola” no período das
ocupações das escolas em São Paulo. No entanto, em virtude da necessidade de delimitação deste capítulo, selecionamos somente 01 para
exemplificação da análise desenvolvida.
279 Os autores analisam cartazes das manifestações populares ocorridas no Brasil em 2013 o que, segundo os autores, desencadeia um tipo de

ativismo não convencional.


280 Disponível em: <https://www.facebook.com/naofechemminhaescola/?fref=ts>.Acesso em: 06 abr. 2016.

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1103

É relevante destacar que essa página também se revela como uma resposta-ativa (reação-
resposta)ao ser criadapara divulgar o movimento de ocupações da escola, constituindo um espaço de
informação e debate dos eventos que compõem o movimento.
Do ponto de vista de uma análisedialógica, é possível considerar a totalidade dessas
ocupações como uma arena discursiva e, nessa condição, “as manifestações guardam um caráter de
tensão entre o discurso oficial e o não oficial, que permite identificar aspectos de carnavalização no
modo como se articula.”(MAGALHÃES;QUEIJO, 2015, p. 169).“Isso requer pensar em como a circulação
em rede – aparato técnico – altera os dizeres – dimensão narrativa cotidiana de enunciados
concretos – com ares carnavalescos – dimensão metanarrativa, que se dá no grande tempo.”
(MAGALHÃES; QUEIJO, 2015, p. 175). Magalhães e Queijo (2015, p. 169) questionam “como a circulação
em páginas da internet segmenta e altera a potencialidade semântica desses enunciados?”, referindo-
se aos cartazes de manifestação que são publicizados na rede.
Assim, esses textos saem da escola, seu lugar de produção e circulação mais imediato, e
ganham o espaço midiático. Com a circulação do discurso nesse outro espaço comunicativo, certos
problemas metodológicos, caso seja mobilizada a noção bakhtiniana de cronotopo, se faz evidente.
Então, algumas perguntas surgem: depois de publicizados nas redes sociais digitais e compartilhados
em perfis pessoais, esses enunciados deixam de pertencer ao espaço institucional escolar? Ou, o fato
de serem publicizados nesse espaço midiático constitui uma espécie de extensão da esfera escolar?
Seria uma relação de hibridismo281 de cronotopo?
Certamente, é possível afiançar o entendimento das redes sociais digitais como um espaço
em quediscursos produzidos por diferentes esferasde atividades humanas se encontram e coabitam
em uma existência hibrida.Por oportuno, vale apontar a posição de Araújo (2016, p. 52) que considera
aWeb282“um ambiente plural de profundo poder de absorção que transmuta para si diversas esferas
de atividade humana [...]”. O autor não concebe as redes sociais digitaisou a própria Webcomo uma
instância discursiva, mas sim como ambientes que abrigam os discursos e gêneros, provocando neles
alterações decorrentes das diferentes apropriações sociais da tecnologia pelos indivíduos (ARAÚJO,
2016).
Podemos dizer, por certo, que ao serem publicizadosnas redes sociais digitais,os cartazes
ampliam seu espaço de circulação e empoderam o movimento, pois sujeitos assumem o lugar de
atores sociais nesse tempo-espaço de resistência, assumindo a atividade crítica, como ativismo, isto
é, como “atividade enérgica”dirigida a um objeto discursivo, um ativismo construído socialmente ao
longo da história e da cultura humana e não como um fenômeno individual ou pontual –, de uma época

281 O termo hibridismo tem ancoragem em Bakhtin (2015), quando tematiza o híbrido entre linguagens e as hibridações nas práticas
assentadas na cultura. Canclini (2013) também mobiliza o termo hibridação para se referir aos processos socioculturais nas quais estruturas
ou práticas discretas, que existiam de forma separadas, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.
282 Neste texto, o autor investiga gêneros discursivos em redes sociais digitais, focalizando a análise de dados do Twitter a fim de discutir os

processos de reelaboração de gêneros, que emergem das relações entre linguagem e tecnologia.

NARRATIVAS
1104

e para uma época específica283. Desse modo, os enunciados em cartazes apresentam,arriscamos


dizer, um ativismo outro, pelo modo de o estudante secundarista da escola pública se posicionar na
cena enunciativa, empenhando-se em outra lida de narrativas de empoderamento e resistência.Pode-
se observar deslocamentos dos projetos de dizer na escola (dos dizeres pedagógicos), marcados,
agora, nesse espaço-tempo, pelo protagonismo juvenil (ativismo político).
Na figura a seguiré apresentada uma imagem da página inicial do perfil no Facebook “Não
fechem minha escola”, atualizada em 24/02/2017284:

Figura 1 – Página inicial do perfil no Facebook“Não fechem minha escola”

Fonte:NÃO FECHEM... (2017).

É necessário destacar que, nesse cenário em que a página do perfil no Facebook foi
formulada, ainda que tentativas de mudanças se concretizassem, como a revisão do plano de
reorganização educacional de São Paulo, outros projetos de reestruturação educacional como, por
exemplo, a Medida Provisória 746285, convertida na Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de
2017, continuaram em curso e também geraram mais protestos do movimento secundarista. Nesse
contexto sócio-histórico, o movimento teve continuidade e, consequentemente, a página não só
continuou sendo alimentada, como também agregou novas discussões sobre a atual situação político-
social no país como se verifica, por exemplo, na imagem de perfil. Atualmente a página possui 213.796
seguidores e apresenta 216.067 curtidas 286 . As postagens ocorrem em múltiplas materialidades
semióticas e recebem tanto comentários de apoio, como também de repúdio, em algumas situações.

283 “Estudiosos de Bakhtin vêem no conceito de exotopia – que o autor formulou tendo em conta a atividade estética e que perpassa por toda a
sua obra –, um elemento-chave para a atividade da pesquisa e a atividade crítica, que se caracterizam, de fato, como ativismo. No contexto da
teoria de Bakhtin, atividade (traduzindo a palavra russa deiátielnost),aparece regularmente como o exercício de alguma função, mas sem a
ideia de intensidade. Já o termo aktívnostsignifica “atividade enérgica” dirigida a um objeto, segundo especifica o tradutor de Estética da
criação verbal (edição 2003 da Martins Fontes), Paulo Bezerra.” (BORTOLOTTO, 2007, p. 29).
284 Imagem de capa do perfil atualizado em 24/02/2017.

285 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm>. Acesso em 01 mar. 2017.

286 Dados retirados da página do Facebook em 25/02/2017.

NARRATIVAS
1105

No período das ocupações, as notícias eram frequentemente atualizadas na página e eram postados
diversos cartazes de manifestações, produzidos no espaço da escola, comoapontado neste texto.
A seguir, é apresentada a análise de01 (um) enunciado do gênero cartaz de manifestação,
representativo das postagens feitas pelos estudantes secundaristas em página do Facebook.

3. CARTAZES DE MANIFESTAÇÃO: NARRATIVAS POSSÍVEIS?

Para a análise aqui propostade 01 (um) exemplar de enunciado do gênerocartaz de


manifestação,a noção de cronotopo e esferas discursivas, inscrita na produção teórica do Círculo de
Bakhtin, é fundamental. Na visão de Machado (1998),

O tempo na teoria do dialogismo não é um constituinte estrutural da narrativa, pelo contrário, a


narrativa e, consequentemente, os gêneros, são instâncias estéticas de representação do tempo. Visto
por esse viés, a noção de tempo distancia-se das abordagens mais divulgadas sobre o assunto,
sobretudo porque desconhece as fronteiras entre a ética e a estética (p. 33).

Bakhtin concebea relação espaço-tempo como processo em contínua formação e está no


campo do acontecimento. O tempo que se passa em qualquer espaço não é mero preenchimento
espacial, mas é, sobretudo, movimento e transformação. Bakhtin resguarda:

A capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial do mundo e, por outro lado, de perceber o
preenchimento do espaço não como um fundo imóvel e um dado acabado de uma vez por todas mas
como um todo em formação, como acontecimento; é a capacidade de ler os indícios do curso do tempo
em tudo, começando pela natureza e terminando pelas regras e ideias humanas.(BAKHTIN, 2003[1979],
p. 225, grifos do autor).

Tudo aponta para o tempo em movimento, desde as manifestações do tempo na natureza (o


movimento do sol, das estrelas, o canto dos pássaros, etc.) até as realizações humanas, que
configuram as marcas do tempo histórico (a criação das cidades, ruas, obras de arte, técnicas,
organizações sociais) (BAKHTIN, 2003 [1979]).
Ainda, sobre a dimensão espaço-tempo Bakhtin escreve:

As séries espaciais e temporais dos destinos e das vidas dos homens se combinam de modo peculiar,
complicando-se e concretizando-se pelas distâncias sociais, que não são superadas. Este é o ponto do
enlace e o lugar onde se realizam os acontecimentos. Parece que o tempo se derrama no espaço e flui
por ele (formando os caminhos) [...]. (BAKHTIN, 1998 [1975], p. 350).

Tal entendimento, como aponta Bortolotto (2007, p. 105), “fornece um ângulo metodológico
para a observação da atividade real” seja ela qual seja, porque permite aproximação com a
historicidade e nos indica que há “um modo de ver e ‘de ler o mundo real’, de tornar o mundo das

NARRATIVAS
1106

práticas sociais compreensível pelas manifestações mais profundas e sutis das relações e ideias
humanas.” (BORTOLOTTO, 2007, p. 105).
Ocronotopo da estrada, da soleira da porta etc., evocadas por Bakhtin, são significativas e
provocativas, pois a concretização do espaço nos indícios do tempo aponta para o tempo da vida
humana e para o tempo histórico (BAKHTIN, 1998 [1975], p. 355). Imagens cronotópicas constroem
cenas no romance, elas nos permitem olhar determinadas produções discursivas contemporânease
complexas, difusa e fragmentada para então configurar as relações de espaço que se dão nosindícios
de tempo, e, desse modo, atribuir sentido aos enunciados.
Machado (1998) expõe,

O tempo, para Bakhtin, é pluralidade de visões de mundo: tanto na experiência como na criação,
manifesta-se como um conjunto de simultaneidades. A pluralidade de que fala Bakhtin só pode ser
apreendida no grande tempo das culturas e das civilizações, quer dizer, no espaço. Eis a síntese teórica
que orientou sua abordagem da narrativa com modelo artístico de temporalidades. (p. 35).

Na análise dos enunciados dos estudantes secundaristas em cartazes, há a provocação de um


exercício do olhar para as relações cronotópicasem que os cartazesforam produzidos em um tempo
histórico situado, compreendendo-os comonarrativas produzidas pelos sujeitos. Os cartazes de
manifestação são considerados na sua condição de gênero discursivo, pois se há cronotopo, há
gênero do discurso, uma vez que é possível associar ocronotopo a uma situação social de interação,
no seio da qual se constituem os gêneros (RODRIGUES, 2001).
Ao observar os embates na esfera escolar e político-governamental, nesse evento em
particular, o espaço da escola foi deslocadonão somente pelos projetos de dizer dos jovens
estudantes secundaristas, mas também pelos acontecimentos sociais, políticos e ideológicos e pelas
possibilidades, na contemporaneidade, de materializar esses projetos discursivosmediante o
agenciamento de novas mídias sociais.
Nesse sentido, o espaço escolar marcado historicamente pelo autoritarismo, pela disciplina,
pelo controlee, em alguns momentos, visto como um lugar de domesticação de corpos e mentes,
mostra-se, nesse evento, como heterogêneo, vivo, pulsante;um lugar de possibilidades de
protagonismo juvenil, de narrativas outras. Esse deslocamento da escola como um espaço público
heterogêneo e plural se dá,em grande medida, pelo hibridismo entre esferas (escolar e midiática). É
perceptível queo movimento de ocupação da escolase irradia e transborda para outros espaços de
manifestação para além dos muros da escola.
Em uma perspectiva bakhtiniana,é possível afirmar que enunciados e gêneros do discurso não
são produzidos em um vácuo social, são, antes de tudo, gerados no interior de determinada esfera de
atividade humana e são balizados pelas finalidades de cada esfera. As esferas de atividades humanas
são um lugar de coerções e contingências na constituição dos enunciados, que nascem nas interações
discursivas; desse modo, elas são moventes, dinâmicas e complexas.

NARRATIVAS
1107

Assim, as esferas sociodiscursivasnão são espaçoshomogêneos. Isso se verifica no caso dos


cartazes de manifestação produzidos nas ocupações das escolas, pois há um hibridismo entre
esferas. O cronotopo da escola adentra o cronotopo midiático e produz sentidos outros,
ressignificando sobretudo a esfera escolar, mais precisamente a escola pública, como lugar de luta e
resistência ao discurso oficial. Ao mesmo tempo que nascem na situação de manifestação na esfera
escolar, tomam as ruas e deslizam para as interações midiáticas sendo replicadas em vários sites, e
redes sociais tanto em perfis pessoais como em páginas oficiais. Esse deslizamento produz uma
fragmentação desses enunciados sendo difícil situar o espaço de autoria, ou seja, onde o cartaz foi
produzido; em qual escola, por qual grupo de estudantes.

4. ANÁLISE VERBO-VISUAL DOS CARTAZES DE MANIFESTAÇÕES

Os cartazes de manifestação se constituem pela sua imbricada relação de sentido que se


estabelece entre diferentes semioses; entre o signo verbal e o imagético, como se evidencia na figura
2:

Figura 2 – Cartaz postado no perfil “Não fechem minha escola” 287

Fonte:NÃO FECHEM... (2016)

O cartaz, apresentado na figura 2, evidencia na escolha estilístico-composicionalum processo


intertextual com o poema “E agora José”, de Carlos Drummond de Andrade.Do ponto de vista

287Disponível em: <https://www.facebook.com/naofechemminhaescola/photos/pb.1485355621759400.-


2207520000.1459982666./1498154713812824/?type=3&theater>.Acesso em: 06 abr. 2016.

NARRATIVAS
1108

estilístico-composicional temos uma paródia do poema “E agora José”, de Carlos Drummond de


Andrade, exposta como cartaz-protesto, com tom dedenúncia do que motivou o movimento estudantil
da ocupação e, ao mesmo tempo, com tom de reivindicação de respostas por parte do governador do
Estado de São Paulo do que é pleiteado como política do seu governo para o ensino básico.

A luz apagou
A escola ocupou
E agora Geraldo?
A máscara caiu,
A juventude emergiu,
A luta explodiu
E agora
GERALDO?

Há a consciência do inusitado diante da tradição da esfera escolar: estudantes passivos,


dóceis, cumpridores dos ditames sociais hierárquicos. Há a inversão hierárquica da relação
costumeiramente assimétrica na qual o aluno está sempre em uma condição de subordinado a; há a
consciência por parte dos estudantes da inversão hierárquica “A juventude emergiu,/ A luta
explodiu”/ E agora/ GERALDO?
Ao mesmo tempo que se identifica a letra cursiva, característica das práticas escolares,
observamos também que, na linguagem das redes sociais, quando a palavra é grafada em caixa alta é
indicativo de elevação da voz. O poema vem grafado na cursiva, contudo, no último verso “ E
agoraGERALDO?”o nome próprio vem grafado em caixa alta, produzindo o efeito de elevação do tom de
voz, de um questionamento mais enfático, indicando o enfrentamento no embate que se enuncia. É
preciso observar, ainda, que o nome próprio Geraldo remete ao Governador do Estado de São Paulo
Geraldo Alckmin.
A análise revela que, em todos os versos, os estudantes cobram de quem lhes cobra a
responsabilidade do que está ocorrendo: a quebra do fluxo pedagógico costumeiro, pela ameaça do
risco iminente do fechamento de escolas (e do agrupamento delas por níveis de ensino), portanto do
direito de acesso à educação pública gratuita e de qualidade. O modo de se referir à instância
governamental, alvo do protesto, o Governador Geraldo Alckmin é um aspecto importante, pois nessa
enunciação, o objeto de discurso não é referenciado como Governador, mas simplesmente Geraldo. O
enunciado é marcado por um tom de enfrentamento e não subserviência (relação de simetria entre as
pessoas do discurso). O enunciador se posiciona de modo a ignorar as relações assimétricas, já que
se trata do Governador do Estado, chamando-o pelo nome, Geraldo, e acrescenta que “a máscara
caiu”.
Do ponto de vista das escolhas lexicais, nesse cartaz, há a menção do termo ‘luta’ ‘ocupação’,
fazendo referência ao movimento das ocupações. De modo geral, o termo recorrente nos cartazes foi
ocupação, que é extremamente significativo para todo o movimento, que, nesse contexto discursivo,

NARRATIVAS
1109

significa uma escola ocupada pelos próprios sujeitos que dela fazem parte, explicitando uma
contraposição aos discursos que enunciam que a escola teria sido “invadida” pelos estudantes.
O enunciador, por sua vez, se desvela como a juventude que emergiu. A juventude que
discursivamente é tomada como passiva e alienada politicamente. O jovem da escola pública que, não
raras vezes, é discursivizado como aquele que não quer estudar e como um aluno indisciplinado. Essa
juventude emergiu num processo de luta por seus direitos. De certo modo, esses enunciados
conferem a essa juventude um outro lugar, um outro modo de se posicionar como sujeito nesse
discurso, um sujeito que se inscreve na luta pela escola pública.
Esse modo de se enunciar e publicizar tais enunciados nas redes sociais digitais vai dando
novos contornos a própria esfera escolar, que assume agora um lugar de protagonismo, tornando-se
um espaço público importante na discussão de variadas temáticas: etnia, gênero, direitos,
democracia 288 . Parece que essa imbricação/hibridismo entre esfera escolar e midiática está
produzindo, na escola, uma identidade que deveria ser sua desde sempre, que é a identidade de um
espaço público de debate e de pluralidade cultural.
A análise põe em relevo a subversão da hierárquica costumeiramente assimétrica no espaço
escolar, a mobilização de múltiplas semioses e a intertextualidade como recursos para a produção
dos efeitos de sentido. Nas produções analisadas, as interações e, consequentemente, os gêneros
discursivos borram fronteiras, promovem agenciamentos e hibridismos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, nosso objetivo foi compreender, pela criação e circulação de cartazes de
manifestação estudantil, postados em um perfil da rede social Facebook, intitulado “Não fechem minha
escola”, os sentidos dessa prática social observando-a por domínios da linguagem, mídia e cultura. Os
cartazes tematizavam a ocupação das escolas públicas de São Paulo (Brasil) pelos estudantes
secundaristas ocorrida em 2015. Buscou-se observar como os enunciados, com tonalidade de
protesto e resistência, produziam sentidos nesse hibridismo entre cronotopos e de que modo
apontavam para a construção de outras narrativas de resistência e empoderamento dos estudantes
secundaristas no atual contexto político-ideológico da escola brasileira.
A análise pôs em evidência que os cartazes de manifestação hibridizam os espaço-tempos da
escola, por meio de imbricadas relações de sentido que se estabelecem entre diferentes semioses.
Esse modo de enunciar e publicizar que nasce nas escolas e é disseminado nas redes sociais digitais
produz novos contornos para a própria esfera escolar, que assume um lugar de protagonismo,
constituindo-se em espaço público importante para a discussão de temáticas fundamentais não só às
juventudes, mas a toda sociedade. Esse hibridismo entre esfera escolar e midiática produz, na escola,
uma identidade necessária, pois o espaço escolar precisa se constituir em espaço-tempo de encontro,

288 No decorrer das ocupações, eram realizadas palestras e debates envolvendo estudantes, artistas e comunidade sobre variados temas
etnia, gênero, democracia, direitos humanos, cultura etc.

NARRATIVAS
1110

debate e pluralidade de vozes e culturas. Precisa se fortalecer como espaço para (re) criação de
narrativas não indiferentes às investidas que ameaçam dar invisibilidade ao outro.

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VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores,
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NARRATIVAS
RESUMO
1111
A literatura, como manifestação discursiva do
mundo da arte, é capaz de refletir e refratar
posições ideológicas do mundo da vida. Nesse

ESTÉTICA RESISTIVA EM
sentido, o autor literário, valendo-se de sua verve
criadora e da possibilidade de gerenciar vozes, tem
o poder de promover, no seio do ato estético,
embates ideológicos que encontram eco e respaldo

JOSÉ BEZERRA GOMES: a


no mundo real. Considerando tal problemática, este
estudo propõe-se a investigar o embate de vozes
presentes no romance A porta e o vento, do

voz da tradição versus a posição particular escritor potiguar José Bezerra Gomes. O exame
empreendido ancora-se nos pressupostos teóricos
do Círculo de Bakhtin (2010a, 2010b, 2010c, 2011) e,
de santos metodologicamente, está alicerçado no paradigma
dialógico depreendido desse mesmo Círculo. As
análises empreendidas na obra A porta e o vento,
romance de temática rural ambientado no Seridó
potiguar (região sertaneja do Rio Grande do Norte),
permitem afirmar que seu autor-criador estabelece
SALES, Willame Santos de 289 inúmeros embates dialógicos entre vozes sociais
ecoantes em sua e em outras épocas. Em um
desses embates, confronta veladamente a voz da
tradição, no que diz respeito à instituição do
casamento, com a voz particular do personagem
INTRODUÇÃO Santos, contrário ao matrimônio e solteiro por
opção. Situando cronotopicamente esse discurso

A
específico do autor-criador, manifestado pela voz
ntes de iniciar as considerações atinentes ao embate de vozes de um dos personagens do romance, percebe-se
como mecanismo de resistência, convém apresentar aqueles sua íntima relação com o momento e o espaço
sociocultural em que foi produzido, o Seridó
com quem este texto dialoga (o autor e a obra). José Bezerra potiguar, região tradicionalmente marcada pela
Gomes foi escritor potiguar nascido em uma comunidade rural – religiosidade, especialmente a católica, em que se
impõe ao homem o dever de casar e de constituir
Sítio Brejuí – do município de Currais Novos, sertão do Rio Grande do família, dever este negado e confrontado pelo
Norte, no ano de 1911, e morto em Natal, capital do Estado, em 1982. personagem Santos.

Graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Palavras-Chave: Discurso Literário. José Bezerra
Direito da Universidade de Minas Gerais e escreveu, além de Gomes. A Porta e o Vento. Embate de Vozes.
Resistência.
romances, ensaios, poemas e monografia. Nunca se casou e foi tido
como louco e boêmio, apresentando, inclusive, crises de confusão
mental em momentos importantes de sua vida, como quando
participou do I Congresso Brasileiro de Folclore, no Rio de Janeiro – RJ.
A obra A porta e o vento, por sua vez, é um dos três romances (os outros são Os Brutos e Por
que não se casa, Doutor?) publicados por José Bezerra Gomes. Além desses, existe um outro ainda
não publicado, provisoriamente chamado de Ouro Branco em alusão à riqueza que o algodão
representou para a região do Seridó potiguar. Os motivos principais da narrativa da obra em análise
são a paisagem e os dramas da provinciana cidade de Currais Novos da primeira metade do século XX.
Trata-se de uma obra de temática rural em que são evidenciados a relação entre campo e cidade, os
costumes sociais, os tipos humanos e a vida rural versus a vida urbana.

289Doutorando em Estudos da Linguagem/PPgEL – UFRN. Prof. de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Norte – IFRN – Campus Nova Cruz. E-mail: willame.sales@ifrn.edu.br

NARRATIVAS
1112

O objetivo deste estudo é analisar um aspecto específico da obra mencionada, qual seja, o
embate ideológico promovido pelo diálogo entre a voz da tradição, no que respeita à instituição do
casamento, e a voz particular do personagem central do romance – Santos, um solteiro convicto.
Para tanto, metodologicamente, utiliza-se o paradigma dialógico (qualitativo, interpretativista)
depreendido das ideias do Círculo de Bakhtin. Do ponto de vista teórico, as discussões ancoram-se
especialmente nas concepções bakhtinianas de vozes e dialogização, como se verá a seguir.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA: vozes e formas de dialogização

A literatura, notadamente no romance, constitui-se um espaço de tensões que não responde


cartesianamente ao pragmatismo racional e ao inacabamento experimentados pelos sujeitos reais, de
carne e osso, que possuem apenas uma visão parcial de si e dos outros. Na literatura, o autor-
criador, valendo-se do chamado excedente de visão, pode dar o acabamento desejado aos inúmeros
fios discursivos tecidos no interior de uma obra. Nessa direção, pontua Bakhtin:

A consciência do autor é a consciência da consciência, isto é, a consciência que abrange a consciência e


o mundo da personagem, que abrange e conclui essa consciência da personagem com elementos por
princípio transgredientes a ela mesma e que, sendo imanentes, a tornariam falsa. O autor não só
enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam
e conhecem, como enxerga e conhece mais que elas, e ademais enxerga e conhece algo que por
princípio é inacessível a elas, e nesse excedente de visão e conhecimento do autor, sempre determinado
e estável em relação a cada personagem, é que se encontram todos os elementos do acabamento do
todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas vidas, isto é, do todo da obra.
(BAKHTIN, 2011, p. 11)

Em outras palavras, quer-se dizer que o autor-criador tem a possibilidade de dar o


acabamento que desejar a seus personagens, chamando ao diálogo os fios discursivos que julgar
convenientes para promover a discussão almejada. Na obra A porta e o vento, o autor-criador realiza
esse movimento ao evocar diversas vozes sociais que se contrapõem, se negam, refletem e refratam
a diversidade social inerente à cultura que subjaz o conjunto da obra.
Ao chamar essas vozes, o autor-criador assume a função de gerenciá-las, de dar-lhes um
acabamento frente à sua própria voz e as dos outros, imprimindo, assim, uma tonalidade própria e
característica a que se pode chamar de estilo.
Bakhtin (2010b, p. 73) diz que “o romance, tomado como um conjunto, caracteriza-se como um
fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal”. Diz ainda que “o romance é uma diversidade social
de linguagens” (op. cit., p. 74). Nesse sentido, o sujeito do discurso, ao dirigir-se para o tema/objeto
do seu enunciado, encontra-o já povoado por vozes alheias. Assim, o enunciado mergulha nesses “já-
ditos” e de tal diálogo emerge posicionando-se em relação a ele, em relação ao interlocutor, ao outro,
ao seu horizonte subjetivo (ou intersubjetivo).

NARRATIVAS
1113

O que José Bezerra Gomes, enquanto autor-criador, realiza no romance em tela é exatamente
isto: ao encontrar um discurso relativo ao casamento previamente construído por vozes alheias,
posiciona-se em relação a ele, construindo seu próprio discurso, um discurso-outro, dissonante em
relação ao anterior, manifestando, assim, sua própria voz, a qual ganha tonalidade de resistência ao
pensamento socialmente construído e, muitas vezes, imposto aos sujeitos.
As vozes, para Bakhtin, estão intrinsecamente relacionadas aos sujeitos do discurso (social,
histórica e temporalmente situados) e, mais que isso, aos diálogos que se estabelecem entre esses
sujeitos – falante e ouvinte, ou entre os discursos desses sujeitos (ditos e ainda não ditos).
Pensar em vozes é, portanto, pensar em vozes sociais, pois ninguém se constitui, como
consciência individual, sozinho, haja vista que o centro organizador e formador da consciência não se
situa no interior, na mente do sujeito, mas no exterior, pela relação que estabelece com os outros
sujeitos, estes carregados por valores, histórias e modos de compreender e enxergar o mundo.
Na visão de Bakhtin, é importante perceber como essas vozes dialogizam-se umas com as
outras. Nesse contexto, o mencionado autor apresenta as seguintes formas de dialogização que serão
importantes para a análise posteriormente realizada:
Polêmica interna velada. A palavra do outro permanece fora dos limites do discurso do autor,
mas esse discurso a leva em conta e a ela se refere. Aqui, a palavra do outro não se reproduz sem
nova interpretação, mas age, influi de um modo ou de outro determina a palavra do autor,
permanecendo ela mesma fora desta. Assim é a palavra na polêmica velada e, na maioria dos casos,
na réplica dialógica. Na polêmica velada, o discurso do autor está orientado para o seu objeto, como
qualquer outro discurso; neste caso, porém, qualquer afirmação sobre o objeto é construída de
maneira que, além de resguardar seu próprio sentido objetivo, ela possa atacar, polemicamente, o
discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto. Orientado
para o seu objeto, o discurso se choca no próprio objeto com o discurso do outro. Esse último não se
reproduz, é apenas subentendido; a estrutura do discurso seria inteiramente distinta se não houvesse
essa reação ao discurso subentendido do outro. Na polêmica interna velada, ao lado do sentido
concreto, surge um segundo sentido – a orientação centrada no discurso do outro (BAKHTIN, 2010a).
Polêmica aberta. Em um caso concreto, às vezes, é difícil traçar uma linha divisória nítida
entre a polêmica velada e a aberta, mas as diferenças de significação são muito consideráveis. A
polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é o seu objeto.
Aqui, esse discurso é atacado diretamente ou, por assim dizer, abertamente. O discurso do outro é,
portanto, claramente citado e confrontado, algo que não acontece na polêmica velada, em que a
palavra alheia é, sutilmente, citada e polemizada (BAKHTIN, 2010a).
Réplica dialógica. Todas as palavras que surgem nessa réplica estão orientadas para o objeto
e reagem, ao mesmo tempo e intensamente, à palavra do outro, correspondendo-lhe e antecipando-a.
O momento de correspondência e antecipação penetra profundamente no âmago do discurso
intensamente dialógico. É como se esse discurso reunisse, absorvesse as réplicas de outro,
reelaborando-as intensamente (BAKHTIN, 2010a).

NARRATIVAS
1114

Diálogo velado. Imagine um diálogo entre duas pessoas no qual foram suprimidas as réplicas
do segundo interlocutor, mas de tal forma que o sentido geral não tenha sofrido qualquer
perturbação. O segundo interlocutor é invisível, suas palavras estão ausentes, mas deixam profundos
vestígios que determinam todas as palavras presentes do primeiro interlocutor. Esse diálogo, embora
só um fale, é um diálogo sumamente tenso, pois cada uma das palavras presentes responde e reage,
com todas as suas fibras, ao interlocutor invisível, sugerindo fora de si, além dos seus limites, a
palavra não pronunciada do outro (BAKHTIN, 2010a).
No discurso literário, é imenso o valor desses procedimentos, dessas formas de refração da
palavra alheia, em última análise, dessas formas de relações dialógicas que se travam entre dizeres
que ecoam de diferentes vozes históricas e sociais. A polêmica interna velada, na visão de Bakhtin
(2010a, p. 225), é especialmente cara ao discurso literário, uma vez que todo discurso literário sente,
com maior ou menor agudeza, o seu ouvinte, leitor, crítico. O discurso literário sente, ao seu lado,
outro discurso literário, com o qual polemiza (o elemento da chamada reação ao estilo literário
antecedente, presente em cada estilo novo). Não obstante isso, tratando do fenômeno da apropriação
da palavra alheia, da introdução do discurso outro no discurso próprio, de uma forma mais geral, diz
Bakhtin:

O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas delas fundimos
inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos as nossas próprias
palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós; por último, revestimos terceiras das nossas
próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas. (BAKHTIN, 2010a, p. 223)

Finalmente, o escopo metodológico deste estudo, por sua vez, é orientado pela mesma
proposta teórica do Círculo, de modo que teoria e metodologia caminham conjuntamente. Assim,
observou-se, por meio da materialidade linguística representada pelo romance, o diálogo, o embate
promovido entre as vozes sociais em questão. Não se partiu de categorias prontas, acabadas. Em
lugar disso, procedeu-se a uma conversa com o texto e com as pistas deixadas pelo autor-criador,
dos quais emergiram as considerações e afirmações ora realizadas.
Com base nisso, a seguir, serão elucidados alguns diálogos promovidos pelo autor-criador em
A porta e o vento, no que diz respeito à voz da tradição e à do personagem Santos relativas ao dever
de casamento socialmente imposto ao homem e à mulher naquela e em outras épocas.

2. EMBATES DIALÓGICOS: voz da tradição versus voz particular de Santos – formas de


dialogização

A obra de José Bezerra Gomes, em especial o romance A porta e o vento, é povoada por
visões de mundo (muitas vezes antagônicas), vozes sociais que dialogam, que se digladiam, sem se
suprimir, o que não poderia ser diferente, pois que esta é, consoante Bakhtin (2010b), a característica
mais marcante da prosa romanesca – a pluridiscursividade e a plurivocalidade.

NARRATIVAS
1115

Não custa lembrar o que diz Bakhtin (2010a, p. 87), ao analisar a obra de Dostoievsky: “O herói
dostoievskiano não é apenas um discurso sobre si mesmo e sobre seu ambiente imediato, mas
também um discurso sobre o mundo: ele não é apenas um ser consciente, é um ideólogo”. Assim,
também, é o herói bezerriano. Muito mais que um discurso sobre si (sobre o ser sertanejo, sobre a
origem provinciana ou sobre a tradição do casamento), é um discurso sobre o mundo, é uma visão de
mundo, uma posição ideológica que se diferencia frente a tantas outras, contrárias ou consonantes.
Nesse sentido, ainda segundo a visão bakhtiniana, muito mais importante do que reconhecer a
multiplicidade de vozes no romance é observar como elas se relacionam, como dialogam no texto e na
construção de seus sentidos. Na obra tomada para análise, são inúmeros os diálogos que se
estabelecem entre as diversas vozes sociais que ali aparecem e, dentre elas, uma das que mais salta
aos olhos é o confronto entre a tradição, que não perdoa de cobranças o homem (ou a mulher, mas
muito mais o homem) que chega a uma certa idade e não se casa, e a posição particularizada de quem
não segue essa imposição social. Essas são duas vozes constantes no romance A porta e o vento (elas
se repetirão, ainda, na obra Por que não se casa, doutor? de um modo bem mais explícito, mas isso
não será objeto de análise aqui) que entram em constante conflito, a ponto de ter implicações
drásticas (loucura) para Santos, personagem que “passa da idade de casar” e sofre as consequências
e as cobranças sociais por sua solteirice.
Tomando o romance como um enunciado concreto, o que pressupõe encará-lo como uma
forma de discurso responsivamente ativo situado numa cadeia discursiva da qual é tão somente um
elo, é interessante observar como essas duas vozes (a tradicional e a particularizada) dialogam para
a construção do sentido do texto e para a tomada de posição do autor frente aos fatos da vida. Nesse
contexto, diferente do que preconizam algumas correntes de estudos linguísticos e literários, a
palavra literária não pode ser tomada como uma abstração ou uma formalidade linguística. Pelo
contrário, precisa ser considerada como uma manifestação de linguagem situada e concreta,
profundamente influenciada e atravessada por índices sociais de valor que subjazem sua constituição.
A seguir, será feita uma análise de três trechos da obra, que melhor ilustrarão o que se está tentando
dizer.
Logo no segundo capítulo do romance, Santos é confrontado com o “dever”, socialmente
imposto, de casar-se:

Santos vinha para a casa da rua. Laura passava por debaixo da rede de Santos. Ficavam-lhe no sentido
os olhos vivos da prima aconselhando:
– Precisa é se casar, Santos. Moça é o que não falta no mundo.
Santos comia encolhido na mesa. Acabava de almoçar e ficava mastigando o palito. (GOMES, 2005, p.
258).

Veja-se que Laura, aí portadora da voz da tradição, é capaz de fazer o seu conselho (“Precisa
é se casar, Santos.”) ficar “no sentido” de Santos, de certo modo, atormentando-o, como se verá mais
à frente. Fato é que, logo de início, a partir da leitura do trecho acima, é possível perceber qual será a

NARRATIVAS
1116

tônica do diálogo entre as duas vozes que aqui estão sendo discutidas, correspondentes a duas visões
de mundo: uma forjada socialmente na tradição, segundo a qual a todo homem impõe-se o dever de
casar, de constituir família; e outra, mais particularizada, daquele sujeito que não segue esse padrão e
tem de viver, eternamente, respondendo, socialmente, por isso. Naturalmente, estabelecem-se
espécies de relações dialógicas conflituosas, as quais ora aparecem como uma polêmica aberta, ora
como uma polêmica interna velada; às vezes como um diálogo velado, outras vezes como uma réplica
dialógica.
O trecho supracitado é o primeiro, no romance, em que essas duas vozes antagônicas se
encontram. É também o primeiro indício de que a temática do casamento, ou melhor, do dever de
casar-se, será posta em discussão. Importa saber, conforme já sinalizado, a forma como se dá o
diálogo, o confronto, a tensão entre essas visões de mundo. Vejamos que Laura, a prima por quem
Santos nutre alguma espécie de sentimento amoroso, chega abruptamente (“passando por debaixo da
rede”) e dispara um “Precisa é se casar, Santos. Moça é o que não falta no mundo”. Ora, não há
nenhuma marca linguística anterior que aponte para o início dessa discussão, isto é, da “precisão” ou
necessidade de Santos por um casamento. Vê-se, claramente, que, na voz de Laura, existe uma outra
voz, não pronunciada, com a qual tensiona. É a atitude passiva (não verbal) de Santos, de estar deitado
na rede, vendo o tempo passar, que desencadeia a resposta de Laura. O “Precisa é se casar, Santos”
soa, claramente, como uma resposta de Laura a um diálogo (velado?) com Santos.
Note-se que, de fato, a fala de Laura, acima transcrita, apresenta traços tanto da réplica
dialógica, orientando-se para o objeto (o discurso de Santos), a ele reagindo, correspondendo-lhe e
antecipando-o, como também apresenta a característica do diálogo velado, em que a voz do outro
(Santos) é totalmente apagada, mas se faz presente na medida em que deixa vestígios que
determinam a palavra pronunciada. Nesse caso, apesar de só um falar (Laura), há um diálogo
sumamente tenso e responsivo. E é o uso do verbo estativo “é” (“Precisa é se casar, Santos”),
aparentemente expletivo, o responsável por uma espécie de clivagem ou evidenciação da expressão
“se casar”. Ao mesmo tempo, ele é responsável pela ideia de reiteração, ênfase, reforço do que está
sendo dito, de modo que é, claramente, perceptível a diferença entre um “Precisa se casar, Santos” e
um “Precisa é se casar, Santos”. Neste último caso, o dever de casar-se, devido à sintaxe utilizada,
aparenta-se mais impositivo ainda, quando comparado à primeira construção. Isso, certamente, não é
à toa. É uma escolha do autor que demonstra a tentativa de evidenciação de uma visão de mundo
arraigada na cultura da época.
Como se percebe, um dos principais discursos tomados no romance é mesmo a questão da
solteirice, do casamento, do dever masculino de constituir família, que é posto em cheque pelo fato de
Santos “ter passado da época de casar”. No entanto, é preciso salientar o poder que tal discurso tem
no imaginário da sociedade da qual Santos faz parte. Tanto é que não apenas o homem solteiro torna-
se “falado”, mas também a mulher, apesar de as formas de um e de outro serem bem diversas.
Observe-se um trecho retirado do terceiro capítulo:

NARRATIVAS
1117

Tia Ângela envelhecia solteira, dentro das quatro paredes do Bom Retiro, donde nunca arredava os pés,
a não ser para ir a uma missa na rua, de ano em ano. (GOMES, 2005, p. 259).

Tia Ângela, por envelhecer solteira, também é confrontada pela voz da tradição. No trecho acima, tem-
se a voz do narrador da obra, que, não por coincidência, é o personagem Santos. É, sumamente,
importante observar as palavras escolhidas pelo narrador para se referir ao fato de tia Ângela nunca
ter se casado (“envelhecia solteira”), uma vez que não será essa a escolha lexical preferida pela voz da
tradição, algo que se pode perceber mais claramente no seguinte trecho, constante do sétimo capítulo
do romance:

Tia Graça aparecia no Bom Retiro. Descia do cavalo e entrava de casa adentro, rangindo as botas,
tinindo as esporas:
– Cadê o povo dessa casa?
Passava por tia Ângela:
– Como vai esse caritó? Tanto viúvo no mundo... (GOMES, 2005, p. 274).

Ao salientar a existência de “tanto viúvo no mundo”, tia Graça, encarnação do discurso


tradicional, assevera o dever de tia Ângela de casar-se, apontando a inexistência de explicações para
que a irmã seja ou permaneça um “caritó”, já que ela tem à disposição, inclusive, homens mais velhos
(viúvos) que talvez a aceitassem como espora. Fica evidente a eloquência da voz da tradição, que
sempre se levanta contra todo aquele, homem ou mulher, que ouse desafiá-la. Obviamente, a leitura
do romance em questão leva a admitir que tal imposição é muito mais rigorosa quando se trata de um
homem solteiro. Em todo o romance, apenas nessas duas passagens a solteirice de tia Ângela é, de
algum modo, contestada pela voz da tradição. Já no que respeita a Santos, encontra-se o confronto
dessas vozes em inúmeras outras falas, o que, claro, também pode ser explicado pelo fato de ser
Santos, e não tia Ângela, a personagem principal da obra. No entanto, é importante perceber como as
formas de se referir à solteirice mudam num e noutro caso.
Na esteira dessa discussão, vejamos: a solteirice de tia Ângela, diferentemente da de Santos,
é chamada, por tia Graça, de “caritó”. O dicionário online Aulete (http://aulete.uol.com.br), em uma
das inúmeras possibilidades de uso do termo, define “ficar no caritó” como sendo “envelhecer
solteira”, restringindo, portanto, o uso da expressão à solteirice feminina. Popularmente, em especial
no interior nordestino, apesar de se ver o uso do vocábulo em alusão ao homem solteiro, diz-se que
caritó é uma mulher relativamente velha que, por algum motivo, não conseguiu ou não quis se casar.
Ora, trata-se de uma expressão cujo uso é carregado de um valor negativo, pejorativo, o que apenas
corrobora a ideologia do signo linguístico, de acordo com o pensamento bakhtiniano segundo o qual
toda palavra é ideológica. A escolha de tia Graça (representante da voz da tradição) por usar a
expressão caritó, algo que não ocorre quando a voz é a de Santos (ainda que como narrador, já que,
como personagem, ele sequer toca nesse assunto), reflete e refrata visões de mundo acerca do
casamento. Assim, solteirice e caritó não são apenas duas palavras diferentes; são, na verdade,
visões de mundo diferentes acerca de um mesmo fenômeno, o que demonstra, com clareza, a
pluridiscursividade presente no romance de José Bezerra Gomes, cuja consciência criadora é capaz
de gerenciar essas vozes antagônicas.

NARRATIVAS
1118

Como se pode notar, o diálogo entre tais vozes sociais antagônicas é constante na prosa de
José Bezerra Gomes, sendo, na verdade, um dos traços mais marcantes do romance A porta e o
vento. A dialogização não se esgota apenas nas polêmicas veladas, nas réplicas dialógicas ou nos
diálogos velados, os quais, todos, consubstanciam, de forma bem evidente, o embate entre a voz da
tradição e a de Santos, no que respeita ao dever do casamento. Tal dialogização se dá entre muitas
outras vozes, e de muitas outras formas (algumas não previstas por Bakhtin), conforme apontado
durante esta análise. Importa, momentaneamente, saber que o processo de interlocução de discursos,
em que se demarcam as diferentes vozes sociais, assume papel fundamental na caracterização da
prosa bezerriana, tornando-se um traço marcante da escrita desse autor, um posicionamento
particular frente aos demais discursos circulantes em sua época. Em outras palavras, trata-se de um
traço constitutivo do estilo bezerriano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim se pode raciocinar em relação ao embate havido entre a voz da tradição e a voz do
personagem Santos no que diz respeito ao dever do casamento: nele, não está presente somente uma
visão particularizada ou, ainda, idealizada, de vida; nele reside, na verdade, uma tentativa flagrante de
resistência a uma norma social que se arraigou no imaginário popular e se impôs socialmente,
tornando-se um verdadeiro lugar-comum.
A voz da tradição, amparada no discurso religioso do casamento, impõe, de fato, ao homem (e
à mulher) o dever de contrair matrimônio a fim de constituir família e gerar filhos. Aqueles que não se
submetem a esse dever sofrem as consequências de suas escolhas. No entanto, o autor-criador, na
obra em análise, faz questão de retratar um outro lugar, não comum, a esse respeito. Da perspectiva
desse lugar, o homem não pode ser obrigado a se casar e, por isso, deve resistir a uma cultura que
lhe impõe esse gravame.
É evidente que essa estratégia de enfrentamento a um comportamento socialmente imposto
está relacionada a um movimento de resistência defendido, nas entrelinhas, pelo discurso literário
manifesto na obra A porta e o vento, especialmente na voz do personagem Santos. Isso mostra o
quanto a literatura é influenciada pela cultura e pela sociedade mas também pode se voltar contra as
imposições culturais e sociais comumente aceitas pela maioria dos sujeitos.
Pode-se dizer que o autor criador, por meio do gerenciamento de vozes sociais, tenta
promover o enfrentamento a uma visão de mundo (relativa ao casamento) que considera injusta, ou
pode-se afirmar, ainda, que, no mínimo, ele tenta refratar essa visão a partir de uma perspectiva
resistiva, confrontadora. Obviamente, isso causa uma tensão, mesmo que implícita, levando a uma
dialogização que reflete e refrata discursos sociais circulantes naquela época e ainda hoje.

REFERÊNCIAS

NARRATIVAS
1119

ARAÚJO, Humberto Hermenegildo de. Modernismo: anos 20 no Rio Grande do Norte. Natal: Editora da UFRN, 1995.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_____. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense, 2010a.
_____. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2010b.
_____. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010c.
GOMES, José Bezerra. Obras reunidas: romances. Natal: EDUFRN – Editora da UFRN, 2005.

NARRATIVAS
RESUMO
1120

O QUE É INTERESSANTE?: O artigo pretende desvelar a relevância dos


conceitos de enunciação e dialogismo diante da
construção infantil acerca do que é interessante
enunciados e diálogos de uma criança e numa produção artística. Para tanto utiliza-se o
referencial bakhtiniano sobre o tema (Bakhtin,
adultos sobre a produção infantil Fiorin, Brait e Amorim), bem como a compreensão
sobre a Sociologia da Infância (fundamentada em
Corsaro) destacando no protagonismo infantil e em
suas manifestações um campo de pesquisa rico e
potente.
SAMPAIO, Ana Alice Kulina Simon Esteves290
A palavra
Já não quero dicionários Palavras-Chave: Enunciação. Dialogismo.
Protagonismo infantil. Sociologia da infância.
consultados em vão. Cotidiano
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.
Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.
Carlos Drummond de Andrade

Figura 1: Coleção Interessante

Fonte: acervo da autora

290Orientadora Pedagógica do Colégio de Aplicação de Resende; Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação e
Contextos Contemporâneos da UFRRJ. Email: aannalli@hotmail.com

NARRATIVAS
1121

O
que é interessante? Quem diz o que é interessante? Você acha essa coleção interessante? Com
essas três perguntas Ana Beatriz (5 anos) me surpreendeu e fez pensar. Sua coleção de três
penas e quatro pedras, cuidadosamente recolhidas e organizadas, expostas para sua
apreciação, foram disponibilizadas numa rede social quando solicitou: Você coloca na internet e me diz
o que seus amigos pensam?
Para muitos essas indagações, seguidas da solicitação de Ana Beatriz passariam sem muita
atenção, o valor atribuído a sua coleção seria de quinquilharia, afinal, penas e pedras colhidas ao
chão, sujas, são consideradas lixo por muitos adultos, mas por atuar em uma escola 291 que assume
como objetivo principal possibilitar o protagonismo da criança e acreditar que esses sujeitos são
competentes e produzem cultura, resolvi me aprofundar e trazer algumas hipóteses e respostas
provisórias as questões que ela me apresentou.
Diante dessa nova perspectiva sobre a infância, entendemos esta é reconhecida como uma
forma estrutural e as crianças são agentes sociais que contribuem para a reprodução do conceito de
infância e de sociedade, por meio das negociações que realizam com adultos e da produção criativa
através da cultura de pares com outras crianças. Como Corsaro (2011) aponta:

Uma tendência geral nos últimos 20 anos tem sido um movimento da pesquisa sobre para a pesquisa
com ou para as crianças. Essa tendência reposiciona as crianças como sujeitos em vez de objetos de
pesquisa. Assim, o processo de pesquisa reflete uma preocupação direta em capturar as vozes infantis,
suas perspectivas, seus interesses direitos como cidadãos. (CORSARO, 2011, p. 57)

Para iniciar gostaria de refletir sobre as perguntas que Ana Beatriz fez, visto que todo
enunciado, mesmo o mais simples, é um acontecimento: O que é interessante? Quem diz o que é
interessante? Você acha essa coleção interessante? Fiorin diz (2006, p. 161): “Só se pode falar do que
é e não daquilo que não é”. Ao pensar estas questões Ana Beatriz nos incita a pensar sobre os
conceitos que possuímos sobre a palavra “interessante”, e a concepção implícita nela ao definir assim
sua coleção.
No dicionário Houaiss, a palavra interessante é definida como um adjetivo de dois gêneros que
significa:

Que desperta interesse, que motiva, que não entendia.


Que se revela útil.
Que ou aquilo que é digno de atenção, que é intrigante, curioso.

Para além das definições existentes, assim como Drummond aponta na epígrafe desse texto, o
significado atribuído por Ana Beatriz a sua coleção, e a expectativa que possuía em saber o que

291Atuo como Orientadora Pedagógica da Educação Infantil do Colégio de Aplicação de Resende, que referencia sua prática na abordagem
Reggio Emilia para a primeira infância.

NARRATIVAS
1122

pensavam sobre ela, nos revela que não temos relações com as coisas, mas com os discursos que
lhes dão sentido.
Bakhtin (1998) reforça esta concepção ao indicar que:

[...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado, sempre, por
assim dizer, desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário,
iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por
ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu
objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de outrem, de julgamentos e
de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de
outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em
todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto
estilístico. (BAKHTIN, 1998, p. 86)

Fiorin (2017) reflete que:

O real apresenta-se para nós sempre semioticamente, ou seja, linguisticamente. Um objeto qualquer do
mundo interior ou exterior mostra-se sempre perpassado por ideias gerais, por pontos de vista, por
apreciações dos outros; [...] não há nenhum objeto que não apareça cercado, envolto, embebido em
discursos. (FIORIN, 2017, p.22)

Entendendo que o enunciado é a réplica de um diálogo que se estabelece entre os sujeitos


falantes, recebemos e ressignificamos o uso das palavras em seu fluxo de uso. Atendendo a
solicitação de Ana Beatriz, estas foram as considerações que obtivemos ao lançar a fotografia e
perguntas dela na rede social292:

Carlos Magno Goulart Fernandes: Muito! Leveza da pena que voa para o alvo da pedra.
Vanessa Diniz Garcia: A pena que era branca foi ficando pretinha! E o contraste... pena leve pedra
pesada... é muito interessante mesmo Ana Beatriz!
Cristyna Sangenis: São famílias. Das penas e das pedras. A pena branca com a pena preta dá uma pena
mesclada. As pedras tb. A primeira mais escura com a segunda mais clara, deu pedras menores, uma
escura e uma mais clara.
Gloria Sangenis: Eu achei muito interessante como coleção!
Dois reinos: os orgânicos representado pelas penas que outrora pertenceram a um ser animado e os
inorgânicos representados pelas pedras que pertencem a um mundo inanimado! Muitos conceitos
podem ser levantados a partir dessa linda coleção!
Elizabete Tavares Muito interessante!!
Ana Lucia Esteves Essa minha sobrinha é um arraso! Ela que é interessante!!
Ana Carla Esteves Heringer: Pena mole e pedra dura tanto bate até q... hi! Acho q não é assim!
Soyanara Andrade: Vamos sempre lembrar das pedras no caminho até criar asas para voar! Rsssss

292 Cabe destacar que as redes sociais apresentam formas de interagir e expressar diferentes do
que estamos habituados academicamente, entendendo que são representativas deste cronotopo, optei
por não corrigi-las ou alterá-las.

NARRATIVAS
1123

Alice Kulina Simon Esteves: Tinha que ser minha neta! Conseguir observar a natureza e se surpreender
com tudo! A natureza é interessante sim, Bibi! Seja através da primeira impressão, que chama a
atenção, pela segunda impressão, que procuramos entender, pela terceira impressão, que buscamos
uma compreensão. Exatamente a sequência de perguntas que você fez!
Eduardo Conde Sangenis: Ela está preocupada em aprimorar o estudo das penas e com isso, entender a
leveza do espírito e a beleza do Ser. Para tal, estuda as pedras que poderá encontrar no caminho para
melhor compreendê-las! Parabéns Ana Beatriz!
Gloria Sangenis: Eu sei que essa família é muito "coruja"!....mas eu penso que essa coleção tem uma
beleza plástica surpreendente! Amei, Bibi!

Ao buscar no outro, as concepções acerca do que é interessante, nos remetemos novamente


ao conceito de enunciado de Bakhtin (apud Fiorin: 2006, p. 169), que afirma:

O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de
uma dada esfera (a palavra “resposta” está empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confirma-os,
completa-os supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles. Não se pode esquecer
que o enunciado ocupa uma posição definida numa dada esfera de comunicação verbal relativa a um
dado problema, a uma dada questão, etc. Não podemos determinar nossa posição sem correlacioná-la a
outras posições. (BAKHTIN, 1970, p. 316)

Os sentidos dados aos enunciados da rede social, são constitutivamente dialógicos, pois como
vemos em Bakhtin (2011, p. 365), “A palavra do outro deve se transformar em minha-estrangeira (ou
em estrangeira-minha). Distância (exotopia) e respeito. O objeto, no curso do processo de troca
dialógica ao qual dá ligar, transforma-se em sujeito (no outro eu)”. Ao receber as
contrapalavras, questionei Ana Beatriz acerca de suas perguntas: O que é interessante? Quem diz o
que é interessante? Você acha essa coleção interessante? Ao que ela respondeu: é interessante o que
gostamos, chama a atenção. Qualquer pessoa pode dizer que é interessante e eu concordo ou não.
Acho que essa coleção foi a melhor, porque eu gostei e os outros também.
Na arena da vida, a percepção de que o enunciado do outro me constitui, perpassa o meu
discurso e a compreensão do que me cerca, é tarefa que exige a liberdade de pensamento de uma
criança de 5 anos, o respeito e admiração que elas tem pela humanidade e pelos acontecimentos que
ocorrem no mundo e na história.
Espero que Ana Beatriz ao longo de sua vida considere interessante tudo aquilo que vivenciar
e puder transformar com sua compreensão de mundo, independente de definições e conceitos. Pois
como Barros disse (1993):

O vidro que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta
atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem. (1993, p.25)

NARRATIVAS
1124

REFERÊNCIAS

AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa editora, 2004.
ANDRADE, Carlos Drummond. A palavra. In: A paixão medida. São Paulo : Companhia das letras, 1980.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
_____. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1998.
BARROS, Manoel. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Editora Record, 1993.
BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
CORSARO, William A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.
FIORIN, José Luiz. Interdiscursividade e intertextualidade. In: Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto,
2006.
_____. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Contexto, 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
1125

ALTERIDADE: saberes do encontro Palavras-Chave:

na cultura escolar

SANTOS, Ana Elisa A. dos293

A
credito que em tempos difíceis como o que estamos vivendo no nosso país, é preciso questionar,
questionar e questionar mais uma vez. Dizer e afirmar que todos têm direito a uma escola de
qualidade – seja índio, negro, branco, moreno, pardo, amarelo, bissexual, hetero ou homossexual,
brasileiro, do nordeste, do sul, rico ou pobre, butanês ou norueguês, presidiário, deficiente, com
orelha grande ou pequena... Não importa onde nascemos, quemforam nossos pais, qual a nossa
condição social; qualquer criança, em quaisquer situações, de qualquer lugar do mundo tem direito a
uma escola com educação de qualidade, e podemos dizer – uma educação alteritária – que a
compreenda na cultura de seu meio social. Uma educação que se preze não deveria caminhar no
sentido de expurgar a cultura do outro, pois somente o diálogo entre culturas é capaz de construir
uma sociedade plural, que se escute como democrática ecidadã: gostosa de viver.
O nosso debate, se inicia trazendo o significado da palavra: escola. Etimologicamente falando,
o vocábulo - escola – vem do grego skholê, ês que significa lazer, descanso; estudo. Adentro numa
reflexão imediata, pois devo confessar minha surpresa ao deparar-me com a raiz etimológica dessa
palavra única, cujo sentido é tão distante e diferente da realidade que tenho vivido cotidianamente
como professora do ensino fundamental em escolas públicas. E é deste lugar, tão instável e sofrido,
mas ao mesmo tempo tão profícuo e potente para caminhos libertários, que busco tecer
considerações e possibilidades para a escola como local do encontro e não apenas de aborrecimentos
e desavenças infrutíferas. A escola, espaço onde as relações entre as pessoas que ali convivem é uma
prioridade; e não o prédio, a papelada, a porta, a mobília, as máquinas. Lógico: quando o prédio de uma
escola está bonito, aberto à criatividade, agradável, confortável; oferece facilidades à construção do
conhecimento e de preciosos saberes, mas não deveriam sobrepujar a escola como um espaço de
relação entre pessoas por excelência.
Percebo que a relação professor-aluno/aluno-professor vem à tona como um grande tesouro
a ser protegido, resguardado e defendido, como atributo para uma educação plena. Indubitavelmente

293
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro. Professora de Artes Cênicas da Rede Municipal de Ensino
do Rio de Janeiro. Integrante do Grupo de Estudos Bakhtinianos Atos – UFF. E-mail: anaelisa.alsan@gmail.com

NARRATIVAS
1126

é um grande desafio a ser enfrentado se quisermos pensar a escola como o lugar onde centros de
valores se encontram para tramar um caminho de aprendizagem para a vida. Com efeito, nós
educadores carecemos de enfrentar nosso inacabamento, jamais saberemos tudo e o diálogo para a
construção de saberes brota através de uma escuta humilde e amorosa.

A condição para este constante aperfeiçoamento do educador não é somente a sensibilidade aos
estímulos intelectuais, mas é, sobretudo a consciência de sua natureza inconclusa como sabedor. Não
são tantos os negligentes, mas principalmente os auto-suficientes os que estacionam no caminho de sua
formação profissional. Julgar que sabem todo o necessário, considerar que seu papel na educação
elementar nada mais exige deles, é uma noção que paralisa a consciência do educador e o torna inapto
para progredir. Porque o progresso não consiste na aquisição de dados de saber, mas muito mais na
aquisição da sua consciência de sua realidade como servidor social, de seu papel como interlocutor
necessário do diálogo educacional. Esta consciência não tem limites em seu progresso, pois muda com o
curso do processo objetivo, que é interminável. (Pinto, 1994, p.113)

Parece que estamos ficando adormecidos, anestesiados e ao mesmo tempo arrogantes, pois
não estamos nos lembrando de que processos educativos/formativos se dão através do diálogo.
Parece que nos esquecemos dos professores que nos tocaram e de como eles conseguiram fazer
isso. Estamos desacreditados, talvez?! Freire (2014) nos fala sobre isso de uma forma muito clara:
“não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os
conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem
aprende ensina ao aprender”. (p.25)
Por mais que professores dos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º) se queixem que os
alunos dos anos iniciais estão chegando cada vez mais sem saber o mínimo dos conteúdos
programáticos, não justifica o jogar da toalha no chão e dar a luta por vencida. Da mesma forma, não
significa que os alunos nada sabem, pois cada um traz consigo sua cultura, sua vivência oriunda das
experiências de vida, e não cabe o julgamento se elas são boas ou más, bonitas ou feias. Um olhar
preparado para lidar com a escuta na diversidade cultural tem grandes chances de encontrar a fenda
que abre o caminho para a construção de saberes. A educação não é apenas aquisição de conteúdos
programáticos: português, matemática, ciências, história, geografia, artes e educação física.

A educação é um fenômeno cultural. Não somente os conhecimentos, experiências, usos, crenças,


valores, etc. a transmitir ao indivíduo, mas também os métodos utilizados pela totalidade social para
exercer sua ação educativa são parte do fundo cultural da comunidade e dependem do grau de seu
desenvolvimento. Em outras palavras, a educação é a transmissão integrada da cultura em todos os
seus aspectos, segundo os moldes e pelos meios que a própria cultura existente possibilita. O método
pedagógico é função da cultura existente. O saber é o conjunto dos dados da cultura que se têm tornado
socialmente conscientes e que a sociedade é capaz de expressar pela linguagem. (Pinto, 1994, p.31)

Nessa perspectiva, é de suma importância dinamizar a pedagogia do fazer fazendo, permitindo


que a cultura local integre os conteúdos programáticos. O respeito pela cultura do outro precisa ser
considerada, pois a arrogância bloqueia quaisquer trajetórias benéficas para ambos – alunos e

NARRATIVAS
1127

professores, e consequentemente para todo o fluir de uma escola. “A educação é a cultura


simultaneamente como feita (porém não como acabada) no educador que a transmite, e como
fazendo-se no educando, que a recebe (refazendo-a) [...]”. (idem, p.36) Penso que, se nós professores,
olharmos para “nossos” alunos percebendo a realidade cultural da qual fazem parte sem aversão e
sim com uma postura acolhedora e compassiva (nem por isso sem disciplina) ofereceríamos muitas
chances à comunicação produtiva do saber para a luta que é a própria vida.
No dia a dia, no corre-corre de uma escola para outra, no trânsito engarrafado, naquele
almoço imprensado, compreende-se o quanto esse pique é desgastante; mas nada pode justificar o
desrespeito e a discriminação aos nossos alunos julgando-os inferior. Muito menos com essa palavra
de acabamento: Tem gente que não tem jeito! Continuar lutando por melhores condições de trabalho
sim, porém lembrando que a escolha de ser um educador foi nossa. A escolha de prestar um concurso
para trabalhar em uma rede pública foi nossa, isto é, uma opção deliberada por nós mesmos.
Muitas escolas hoje da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro pensam que se “livrando”
dos alunos que julgam indisciplinados que o problema está resolvido. Qual seria verdadeiramente o
problema? O que é ser disciplinado? É silenciar e aguentar ser humilhado? Permanecer sentado
durante quatro horas copiando do quadro? Importa assinalar que cada caso é um caso, contudo
trocar alunos de turma por indisciplinaou expulsá-los sem se dar ao trabalho de investigar os
aspectos da linguagem corpóreo-verbal, que os estão oprimindo dentro de uma sala de aula - não
soluciona nenhum problema. Vivemos em sociedade, logo não expulsamos ninguém. Vamos ficar todos
juntos. A expulsão escolar pode em muitos casos reforçar deveras os rótulos da marginalidade,
quando jogamos estudantes indisciplinados à sua própria sorte, ao invés de olhar para o que a escola
tem oferecido para tirar e não para empurrá-los ainda mais para a margem da sociedade. Somos e
estamos entremeados em sociedade. Não nos livramos de ninguém.
Freire (2014) nos mostra que a prática político-pedagógica carece de uma rigorosa formação
ética, onde nós, seres histórico-sociais exercitamos nossa generosidade com o diferente para evitar
cairmos nas armadilhas da marginalização. Ele nos ensina que:

Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A
prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega
radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam
meninos nas ruas, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres. [...] Pensar e fazer
errado, pelo visto, não tem mesmo nada que ver com a humildade que o pensar certo exige. Não tem
nada que ver com o bom-senso que regula nossos exageros e evita nossas caminhadas até o ridículo e a
insensatez. (p.37)

Somos dotados de uma ética universal, inerentemente humana que nos possibilita a
convivência, portanto vivê-la na prática docente, “é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas
relações com eles”. (idem, p.17) Caminhando juntos, pensando certo, conscientes de que nosso
inacabamento nos torna éticos, nós nos tornamos aprendizes no próprio exercício do ensinar. Freire
(2014) também nos alerta que, ainda assim podemos ser infiel à nossa ética universal, “pois o mundo

NARRATIVAS
1128

da cultura que se alonga em um mundo da história é um mundo de liberdade, de opção, de decisão,


mundo de possibilidade em que a decência pode ser negada, a liberdade ofendida e recusada”. (p.55)
Não podemos generalizar, nem tampouco simplificar a questão, visto que vivemos na crise de
todo o tipo de desrespeito e intolerância. O desrespeito para com professores é também uma questão
muito séria, atual e contundente, começando pelo desrespeito das nossas autoridades políticas com
os profissionais de ensino. A crise vivida pela escola e a educação pública em muito reflete e refrata o
descaso proposital das políticas educacionais que fingem com fins eleitoreiros estarem realmente
preocupadas com a educação dos brasileiros. Culpar a escola seria deslocar os legítimos
responsáveis por esta crise. Por isso,a hora é essa de fazer reverberar a falta de vergonha dos
políticos desse governo ilegítimo, que nem de longe está a honrar o significado da palavra democracia
(governo em que o povo exerce a soberania). Trago a força da voz de Ranciere (2014) para proclamar
o que está posto no que estamos vivendo hoje no Brasil.

[...] O que chamamos de democracia é um funcionamento estatal e governamental que é o exato


contrário: eleitos eternos, que alternam funções municipais, estaduais, legislativas ou ministeriais e
veem a população como o elo fundamental da representação dos interesses locais; governos que fazem
eles mesmos as leis; representantes do povo maciçamente formados em certa escola de administração;
ministros ou assessores de ministros realocados em empresas públicas ou semi-públicas; partidos
financiados por fraudes nos contratos públicos; empresários sempre investindo uma quantidade
colossal de dinheiro em busca de um mandato; donos de impérios midiáticos privados apoderando-se do
império das mídias públicas por meio de suas funções públicas. Em resumo: apropriação da coisa
pública por uma sólida aliança entre a oligarquia estatal e a econômica. (P. 93)

Às vezes me pergunto se já conseguimos sair desse engodo alguma vez? Dessa predação do
bem público pelo apetite insaciável dos oligarcas capitalistas brasileiros que se intitulam
fraudulentamente os donos do Brasil. Pode parecer uma digressão ter mencionado o golpe político ao
qual estamos experimentando amargamente, no entanto trazê-lo aqui importa (e muito) no sentido de
enfatizar o quanto política e educação fazem parte de uma díade intimamente conectada. Entre a
política e a escola pública podemos dizer que existe uma trama cheia de nós vigorosamente atrelados
aos interesses econômicos que regem o nosso país. Essa cruel oligarquia está mostrando suas
presas ferozes atacando o ensino público de modo a fazer com que as classes populares tenham cada
vez menos chances de ascender socialmente; e de enxergar a verdade sobre a sabotagem que vem
sendo feita aos direitos dos cidadãos em uma condição social inferior. Porém, inferior apenas na
condição social-financeira, jamais inferior na sensibilidade, inteligência, nas capacidades cognitivas,
de reflexão, compreensão e de virtudes inerentes à condição humana. Somos potencialmente iguais
em possibilidades e habilidades – independente da cor, credo, hábitos e costumes.
Se a escola pública não tem verbas, carece de profissionais qualificados e os concursados
que estão trabalhando não recebem uma remuneração justa ou não recebem nenhuma remuneração
– temos aí um grande problema que forçosamente irá repercutir nas salas de aula e em toda a
logística de uma escola.

NARRATIVAS
1129

Na minha ingenuidade pensava a educação como um enigma cuja solução seria algo sempre
prestes a concretizar uma trajetória que levasse os seres humanos a uma vida mais harmônica e
benéfica. Mas agora, agora não há mais espaço para o romantismo ingênuo em relação às forças que
forjam esta ou aquela maneira de educar um grupo, seja este micro ou macro. As escolhas que
norteiam a escola e o educar de um povo têm um encadeamento de ideias, metas pré-estabelecidas
onde continuamente subjaz por detrás de um compêndio pedagógico, a intenção do porque fazê-lo
desta ou daquela forma. A pedagogia está mergulhada no material ideológico dos interesses
capitalistas objetivados nos assuntos econômicos, mercadológicos e lucrativos, ou seja, o poder
político-econômico é quem dita as regras. Mesmo não concordando que a educação seja prisioneira
dos interesses financeiros é esta a realidade que se observa no nosso país, pois a realidade dos fatos
não nos deixa margens para que se pensemos o contrário.
Todavia queremos chegar ao ponto de dizer que, culpar o governo por nosso destino
profissional e cruzar os braços na sala de aula seria uma traição ética, portanto uma temeridade.
Karnal (2016) afirma, que a maior vingança que um professor pode ter contra esse governo ilegítimo é
ser um excelente profissional, é ser um excelente professor, desenvolvendo nos alunos o pensamento
crítico que descortina a máscara opressora.
O ato de educar é um ato responsável, sem álibis, sem desculpas para não oferecer as
ferramentas intelectuais que apontam os projetos de dominação. Acho que neste momento da atual
conjuntura política brasileira, ser um profissional da educação que abraça o discurso de resistência –
é o que devemos fazer. E no exercer da práxis pedagógica, o desmascarar do esquema de dominação
que oprime as classes populares em seus diversos níveis. “Educar é um ato político”, já dizia o
professor Paulo Freire (2014, p.40). - Estamos trabalhando a favor de quem?
Ser uma professora encarnada na rede pública pressupõe sair da abstração imposta pelo dito
sistema que reproduz um discurso marginalizante:Nessa turma não se salva ninguém!Esses pangarés
não querem nada! É fazer da aula um momento vivo, de palavras vivas com alunos vivos, que não são
ideais, eles existem; eles se chamam Caio, Kalyane, Dieniffer, Allisson, Pedro Henrique, Bárbara... Não
são virtuais, não são números, eles respiram, têm meleca, sentem amor, sentem raiva, estudam, têm
libido, precisam ir ao banheiro, são agitados, arrotam, suam... Como nós.
Fazer da aula um momento vivo é fazer a escola viva. É viver no existir-evento de pessoas
normais. Sem álibis tais como: Eu tenho que seguir a apostila! - É o sistema! - A secretaria de
educação mandou! A secretaria de educaçãonão conhece a realidade dos nossos alunos. “Tudo o que
pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca. A singularidade do existir
presente é irrevogavelmente obrigatória.” (Bakhtin, 2012, p.96) Na singularidade do ato responsável
tomamos a decisão de uma vez por todas de assumir, marcar e assinar as nossas aulas na esfera
alteritária. Descobrir de que modo burlar a matriz opressora para transformar a escola pública
morta em escola pública viva. Essa é nossa força-tarefa. Gerar um ambiente escolar formado por
pessoas que se aceitam culturalmente, que se respeitam nas suas confluências e adversidades e
assim adentrar no mundo do ato concretizado nas nossas relações de maneira viva.

NARRATIVAS
1130

O mundo em que o ato realmente se desenvolve é um mundo unitário e singular concretamente vivido: é
um mundo visível, audível, tangível, pensável, inteiramente permeado pelos tons emotivo-volitivos da
validade de valores assumidos como tais. É isso que garante a realidade da singularidade unitária deste
mundo – a singularidade não relativa ao conteúdo-sentido, mas a singularidade emotivo-volitiva,
necessária e de peso – é o reconhecer-me insubstituível na minha participação – é o meu não-álibi em
tal mundo. Esta participação assumida como minha inaugura um dever concreto: realizar a
singularidade inteira como singularidade absoluta não substituível do existir. E isso significa que esta
participação transforma cada manifestação minha – sentimentos, desejos, estados de ânimo,
pensamentos – em um ato meu ativamente responsável. (Bakhtin, 2012, p.118)

A verdadeira escola viva configura-se, pois, como um evento vivo que acontece entre todos no
movimento das relações que tiram do lugar, que convocam, que interpelam, que provocam resposta.
“Por isso essa ação mútua nunca deixa os interagentes da mesma forma como estavam no início da
relação. Ninguém sai imune de uma relação. Leva em si inoculado o outro. E vai inoculado no outro”.
(Miotello, 2014, p.197) É isso que o outro na relação de um ato responsável faz com você, te inocula
dele mesmo te transformando. Dentro desse campo da relação interpessoal legítima, em que podemos
ser aquilo que somos sem o aprisionamento do papel representado é que se dá o evento da escola
democrática, viva, alegre, com pessoas encarnadas não abstratas; onde uma professora pode
pronunciar a si mesma:

A alteridade é meu único caminho possível. Meu poder é servir. O serviço, o ir ao Outro, o colocar-me na
relação com ele é que me renova, me refaz. Assim, aprendo. Só aprendo quando me abro ao outro. Só
aprendo quando ele me povoa com seu mundo. Quando a voz do outro povoa meu Eu, então sou chamado
à vida. Educar é conduzir ao Outro. Educere. Conduzir para fora. Fora de mim está o outro. Sou
condenado eticamente a buscar sempre o Outro. (Miotello, 2014, p.200)

O outro tem participação fundamental na nossa existência. Meus pais me concederam a vida,
escolheram como me chamaria: Elisa. De professora assim sou chamada pelos “meus” alunos, então
são eles que me concedem ser - uma professora. Sem o outro quem somos? Sem os alunos para que
serve uma escola? Se não existem alunos para que precisa existir professores? Se com o outro
aprendo ensinando sem o outro nada tenho a aprender. Sou um ser estagnado. Comungamos a vida na
relação. Um é nenhum! O outro me invade e me proporciona crescer, dar um salto adiante na
compreensão das coisas do mundo. Enquanto estivermos vivos estaremos incompletos, sempre com
um outro a nos interpelar por nós mesmos. Ampliar sempre implica um outro, um alargamento, uma
dor, possibilidades...

“em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente

NARRATIVAS
1131

centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós”.

(Contranarciso, de Paulo Leminski)

É muito fácil em tempos difíceis como o nosso cair nas armadilhas de um discurso
marginalizante, que alija as minorias e os mais desfavorecidos da nossa sociedade. Acho importante
cultivarmos a escola como um espaço por primazia democrático: dialogando, intervindo, buscando
estratégias que minimizem agressões de qualquer tipo, onde todos os envolvidos efetivamente
participam da construção do Projeto Político Pedagógico; e por isso todos se apropriam, apoiam e
cuidam da escola. Em uma escola democrática o trabalho acontece em sinergia entre alunos,
professores, funcionários, pais e toda a comunidade escolar - é muito mais saboroso! Uma escola
com alegria espanta a raiva, com humor destrona o que oprime, com arte explode em criatividade,
com sorrisos e gargalhadas espanta o fantasma da mesmice; com ensino de qualidade promove os
educandos a melhores condições de vida. Uma escola alteritária é inteligente, democrática, tem
saberes e gargalhadas. É uma escola viva!

Para os que se encontram desmotivados (professores ou não) deixem a escuta do coração


tragar docemente as palavras recitadas de PelageaWlassowa:

Quem ainda vive, não diga: jamais!


O certo não está certo
Assim, como está, não ficará.
Quando os opressores tiverem falado
Hão de falar os oprimidos
Quem ousa dizer: jamais!
Se a opressão permanece a quem se deve? A nós.
A quem se deve se for esmagada? A nós também.
Quem for derrubado, levante-se!
Quem tiver perdido, lute ainda!

NARRATIVAS
1132

Quem conhece a situação, por que ficará parado?


Pois os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã
E o jamais se tornará: Já.

(BertoldBrecht, 1994)

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. 2ª ed. São Carlos, 2012.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 48ª ed. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra, 2014.
BRECHT, Bertold. A Mãe. 2ª ed. Editora Paz e Terra. São Paulo, 1994.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. 3ª ed. São Paulo. Editora Paz e Terra, 2014.
MIOTELLO, Valdemir; MOURA, Maria Isabel de (Orgs.). A alteridade como lugar da incompletude. São Carlos. Pedro e
João Editores, 2014.
PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. 12ª. ed., São Paulo: Cortez, 1982.
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. 1ª ed. São Paulo. Boitempo, 2014.
Sites
https://www.dicionarioetimologico.com.br/escola/
Fonte de Vídeo
Título: A maior vingança de um professor é ser um excelente profissional - Leandro Karnal. Publicado em 05/06/2016
https://www.youtube.com/watch?v=tDkxnxbnK14

NARRATIVAS
RESUMO
1133
O artigo que segue é uma leitura de “Cultura
Popular na Idade Média e no Renascimento”, de

O CARNAVAL E A PRAÇA Bakhtin (2010), e do artigo “Os novos letramentos


digitais como lugares de construção de ativismo
político sobre sexualidade e gênero”, Moita Lopes

PÚBLICA NA WEB 2.0:


(2010), onde busca-se cotejar dialogicamente esses
dois texto e seus referenciais teóricos para propor
uma visão da Internet atual, dentro do mindset da
web 2.0, como Nova Praça Pública Carnavalizada,
reflexões sobre novos modos de ser e estar explorando as novas formas de narrativa pessoal e
coletiva dentro desse ambiente ambivalentemente
na era das mídias digitais positivo e universal, realizando pontes conceituais
entre esses dois textos. Sua construção resultou
em dois capítulos da dissertação “Relações
dialógicas em fanfictions: carnavalização na
reescrita da saga Harry Potter na era da
Convergência” (2016), que agora compartilhamos,
SANTOS, Gabrielle Leite dos294 destacados do projeto maior que foi a pesquisa,
com o objetivo de apresentar um panorama mais
focalizado nessa hipótese teórica que pretende-se
explorar de maneira mais aprofundada em
pesquisas futuras.

Palavras-Chave: Cultura Popular. Carnavalização.


Praça Pública. Web 2.0. Bakhtin

A CULTURA POPULAR

C
om o projeto de decifrar as imagens enigmáticas e controversas do conjunto da obra do
escritor François Rabelais, Bakhtin empreende, no livro A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais (BAKHTIN, 2010), um estudo profundo das fontes
populares. Bakhtin acredita que a presença dos elementos provindos das fontes populares é a
principal qualidade distintiva da obra deste escritor e a razão para seu caráter resistente ao cânone e
às regras literárias no contexto romanesco europeu da época, conferindo-lhe um aspecto não-
literário, ousado e transgressor. Bakhtin alinha-se ao julgamento de Michelet, quando este afirma que
“Rabelais recolheu sabedoria na corrente popular dos antigos dialetos, dos refrões, dos provérbios,
das farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos” (sic. MICHELET apud BAKHTIN, 2010, p. 1.
Grifos do autor).
Para compreender sua obra, portanto, conforme defende Bakhtin, é preciso abrir mão de
chaves de leitura óbvias e traçar um caminho novo que se ancore internamente ao referencial
temático e simbólico que fundamenta o romance de Rabelais, “perfeitamente posicionado dentro da
evolução milenar da cultura popular” (op. cit. p. 3. Grifos do autor).
É, portanto, para criar um quadro conceitual a partir do qual Rabelais pudesse ser
compreendido, numa perspectiva interna a sua própria imagética, que Bakhtin remete-se às fontes
populares, à literatura cômica popular, à praça pública e ao carnaval.

294
Mestre em Linguística Aplicada pelo Programa de Pósgraduação em Estudos da Linguagem da UFRN. Profa. Assistente do Departamento de
Letras e Ciências Humanas da UFERSA. E-mail: gabriellegabi@gmail.com

NARRATIVAS
1134

Por outro lado, Bakhtin acredita que a decifração da obra de Rabelais serviria de chave para a
devida apreciação de toda a obra cômica popular, até então pouco explorada e pouco compreendida
pela crítica literária moderna. Seu objetivo inicial, assim, é o de colocar o problema da cultura popular
na Idade Média e no Renascimento, abordando suas características originais e definindo suas
dimensões.
A principal característica provinda da cultura da praça pública e do cômico popular,
vivenciado nas festas carnavalescas, nos ritos e cultos cômicos, bastante populares durante a Idade
Média e Renascimento, é o caráter opositor à cultura oficial, à realidade fria e imóvel, ao tom sério e à
rígida hierarquia feudal. E elas tinham, basicamente, três categorias de manifestação: 1. As formas dos
ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, representação de obras cômicas em praças públicas
etc); 2. Obras cômicas verbais (inclusive as paródias, tanto orais, quanto escritas); e 3. Diversas
formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos etc).
Bakhtin observa que, nas etapas anteriores à sociedade de classes, não havia uma separação
entre os aspectos sério e cômico das divindades, do mundo, da vida e do próprio homem. Ambos eram
igualmente sagrados e legitimados, não existindo uma noção exata de oficialidade – os dois aspectos
eram tidos como oficiais. Com o surgimento do regime de classes e do Estado e sua necessidade de
imposição, entretanto, o aspecto cômico foi dissociado progressivamente do sério, do sagrado e do
oficial. Isoladas, as formas cômicas se modificaram sensivelmente, adquirindo complexidade e
profundidade, para tornarem-se, finalmente, a expressão fundamental da cultura popular – em
oposição aos aspectos sérios e oficiais da vida pública.
O carnaval, assim como os ritos cômicos e os demais festejos populares de base geral
carnavalesca, tinha grande importância na vida do homem medieval. Durante o carnaval, suspendia-se
a realidade estéril e fixa do cotidiano e criava-se uma atmosfera de possibilidades, em que os homens
não eram separados por papéis sociais definidos nem reprimidos; ao contrário, havia uma mistura e
uma inversão de papéis, onde bobos eram coroados reis, onde reis eram destronados e onde as
fronteiras e as regras de comportamento eram borradas.
Esses dois aspectos da vida medieval eram rigorosamente separados, mesmo quando
ocorriam de modo concomitante ou subsequente, como nas procissões religiosas acompanhadas por
cortejos de festejo público, nos quais exibiam-se anões, gigantes, monstros e animais ‘sábios’; ou na
presença de bufões e bobos que assistiam a cerimoniais sérios, parodiando seus atos, como os de
entrega do direito de vassalagem, iniciação de novos cavaleiros ou proclamação de vencedores de
torneios. Além destes, ocorriam os carnavais propriamente ditos, que ocupavam praças públicas e
ruas adjacentes por dias inteiros (há alguns carnavais que duravam até 3 meses ao ano, no total), e
outras formas de festejos populares, como por exemplo: a festa dos tolos, a festa do asno e o riso
pascal.
O oficial e o público-carnavalesco tinham naturezas inconfundivelmente distintas. Os ritos e
festejos de natureza cômica-popular criam uma espécie de dualidade: ofereciam uma nova visão de

NARRATIVAS
1135

mundo deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e não controlada pelo Estado, e uma espécie de
segunda vida para o homem, vivida em determinadas ocasiões.
É importante admitir que esses dois aspectos do mundo e da vida, embora rigorosamente
separados, tinham caráter igualmente legítimo e igual importância na vida do homem medieval -
subestimar a importância do riso popular no período medieval tem o risco de deformar o quadro
evolutivo cultural histórico europeu e mundial dos séculos subsequentes. A cerca dessas duas vidas,
Bakhtin afirma:

Pode-se dizer (com algumas ressalvas, evidentemente), que o homem medieval levava mais ou menos
duas vidas: uma, oficial, monotonamente séria e sombria, subordinada à rigorosidade hierárquica,
impregnada de medo, dogmatismo, devoção e piedade, e outra, público-carnavalesca, livre, cheia de riso
ambivalente, profanações de tudo o que é sagrado, descidas e indecências do contato familiar com tudo
e com todos. (BAKHTIN, p.148, 2015)

O riso que é subjacente a todos os festejos de natureza carnavalesca liberta-os


completamente do dogmatismo religioso e do misticismo – algumas formas carnavalescas, inclusive,
são uma verdadeira escarnia dos ritos religiosos. Todas as suas formas são, portanto, decisivamente
distantes da Igreja. Elas são desprovidas de qualquer pretenso caráter doutrinário, de repressão ou
de controle. São descompromissadas com a ordem social vigente e pertencem exclusivamente à
esfera particular da vida cotidiana.
Semelhante às formas artísticas do espetáculo teatral, os ritos carnavalescos apresentavam
um forte e decisivo caráter de jogo. No entanto, é principalmente no que se distancia do teatro que é
possível captar a verdadeira natureza do núcleo dessa cultura: o carnaval popular ignora qualquer
distinção entre artistas e espectadores, ele possui um caráter universal; ele dispensa ainda qualquer
forma de palco - não se assiste ao carnaval, vive-se o carnaval. E essa vida vigora enquanto perdura o
festejo. Não é possível escapar a ele, uma vez que ele não tem nenhuma delimitação espacial. Além
disso, são as regras dessa vida que permanecem vigentes durante a sua realização, ou seja, as
regras de liberdade, numa espécie de fuga provisória - “[...]por um certo tempo, o jogo se transforma
em vida real” (BAKHTIN, 2010, p. 7). Portanto, ele não tem um aspecto puramente artístico, por ser
concreto, sensorial, empírico e profundamente enraizado na terra e no povo, situando-se na fronteira
entre a vida e a arte.
O carnaval, dessa maneira, representa, para Bakhtin, a segunda vida do povo, a sua vida
festiva. Ele afirma que as festividades são uma forma primordial da civilização humana, não havendo
necessidade de explicá-las como um produto ou por meio das condições e finalidades do trabalho
coletivo ou ainda, vulgarizando, por uma necessidade biológica-fisiológica de descanso periódico. Elas
exprimem uma concepção de mundo, possuindo um conteúdo essencial e um sentido profundo. É fácil
verificar que o simples descanso não representa festividade. Para que o seja, é necessário algo a
mais, oriundo do espírito e das ideias:

NARRATIVAS
1136

A sua sanção deve emanar não do mundo dos meios e condições indispensáveis, mas daqueles dos fins
superiores da existência humana, isto é, do mundo das ideias. Sem isso, não pode existir nenhum clima
de festa (BAKHTIN, 2010, p. 8. Grifos do autor)

É importante ainda notar que os períodos festivos sempre coincidem com períodos de
instabilidade e crise, transtorno e mudança, tanto na vida da natureza (o elo genético que une o
carnaval às festas pagãs agrícolas da Antiguidade é essencial), quanto na vida do homem. Assim,
morte e ressurreição, alternância e renovação são sempre celebrados. Nesses momentos, penetrava-
se numa atmosfera utópica da universalidade, liberdade, igualdade e abundância.
Diferentemente, as festas oficiais não criavam essa segunda vida festiva do povo, mas, ao
contrário, sancionavam a ordem vigente, as verdades pré-fabricadas, a estabilidade e perenidade das
coisas do mundo: a hierarquia, os valores, as normas e os tabus religiosos, políticos e morais.
Portanto, ela só poderia ter um caráter solene e sereno, deformador da verdadeira natureza festiva
humana – e por isso eram apenas toleradas. Já o carnaval era o triunfo da liberdade sobre a verdade
vigente, era a abolição das hierarquias, privilégios, regras e tabus; ele era a oposição à toda a
perenidade e regulamentação, e apontava para um futuro ainda em aberto.
A quebra das relações hierárquicas no carnaval, aliás, é uma característica de excepcional
importância. Propositadamente, nas festas oficiais, as relações hierárquicas eram enfatizadas – sua
intenção era a de ratificar a desigualdade. A percepção carnavalesca do mundo, no entanto, anulava
essa alienação temporariamente. Os homens se sentiam iguais entre os seus semelhantes, numa
interação que Bakhtin nomeia de contato livre e familiar. Esse aspecto verdadeiramente humanístico e
utópico oferecido pela visão carnavalesca de mundo não era abstrato nem imaginário, mas
profundamente concreto, experienciado intensamente nesse contato sensível, vivo e material.
Era a praça pública o lugar privilegiado onde ocorria essa interação ideal e efetiva. Ela se
constituía como um plano nivelado, no qual as possibilidades e as utopias de igualdade e liberdade
tinham espaço. A praça pública se opõe às Igrejas, à organização espacial do feudo, à Casa Grande,
que eram essencialmente biplanares, desnivelados e segregacionistas, cuja ordem comportamental e
hierárquica era onipresente, pairava normativamente sobre os indivíduos, impregnadas nas paredes,
nos altares e nos campos de cultivo, reprimindo e regulando, amordaçando e engessando. A praça
pública, ao contrário, tem natureza inclusiva, universal, do contato livre e não regulado, e pulsa em
possibilidades e em fluidez.
Por essa razão, surgiu um linguajar e um gestual próprio da praça pública, franco e sem
restrições, que aproximava os indivíduos em uma comunicação impossível em situações normais,
distenso e informal, liberado das normas de etiqueta e decência – que é a linguagem típica
carnavalesca.
Essa linguagem se formou ao longo de séculos de evolução, das saturnais da Antiguidade até
os carnavais medievais, e tornou-se bastante diversificada e original, com a capacidade de expressar
as formas e os símbolos carnavalescos, a sua percepção de mundo. Antagonizando com toda ideia de

NARRATIVAS
1137

perfeição e acabamento, ela valoriza as formas fluidas, as renovações e as ambivalências. A cerca


desta linguagem, Bakhtin afirma:

Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das
permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de
paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda vida,
o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como
um “mundo ao revés”. (2010, p. 10)

Note-se que a paródia carnavalesca não é de natureza puramente negativa, como a paródia
moderna e a sátira, mas, ao contrário, é sempre festiva e positiva. Ela renova, ressuscita, reafirma ao
mesmo tempo em que nega e mata. O riso carnavalesco é desestabilizador e ambivalente. Aquele que
escarnece está incluído no mundo em transformação do qual se ri.
O que é fundamental perceber é que a linguagem familiar da praça pública contribui para a
instauração de uma atmosfera de liberdade, de matiz transgressora e positiva. Ela vai assimilar o
ideal carnavalesco e tornar-se uma espécie de centelha viva de sua grande chama, na boca das
pessoas simples, no contato livre, nas obras cômicas, na literatura popular, projetando suas luzes em
pequenas quantidades para além do período temporal da festa de rua.
Esse conjunto de formas e símbolos, veiculados por meio da linguagem, entra na literatura em
um movimento que Bakhtin nomeia de carnavalização. É essa a linguagem presente na obra de
Rabelais e de outros escritores do Renascimento, em maior ou menor grau, como Shakespeare e
Cervantes. As próprias utopias e ideais renascentistas estão embebidos da percepção de mundo
carnavalesca e adotava com alguma frequência sua linguagem.
Essa literatura carnavalizada se ampara no espírito ousado próprio do carnaval. Incluía toda
sorte de palavrões, indecências, impropérios, injúrias, blasfêmias, em uma espécie de depósito
vocabular de certo modo proibido nas formas e tipos oficiais de comunicação. Nesse contexto, mesmo
os juramentos e promessas adquirem um caráter cômico e ambivalente.
Não raro em nosso cotidiano, injúrias e ofensas passam a ter um tom afetivo no contato
íntimo amistoso e familiar. Apelidos jocosos, provocações e mesmo gesto como tapas no traseiro ou
outros, obscenos e provocadores, carnavalescos por natureza, adquirem uma tonalidade alegre e
amorosa, porque são envolvidos no riso ambivalente popular. Contudo, esse contato moderno tem um
elemento essencial ausente quando comparado ao livre contato familiar por excelência, pois, no
carnaval, na praça pública, esse contato é universal, de natureza festiva, dentro de um ideal utópico e
veiculado a uma percepção profunda de mundo. Essas manifestações nossas cotidianas, assim, são
filhas dos modos populares do carnaval medieval: não as representam em sua plenitude, mas trazem
em suas raízes genéticas profundas os ideais ali postos.
Quanto aos temas e imagens dessa literatura, um dos princípios fundamentais da obra de
Rabelais é o da vida material e corporal. Ele compreende o conjunto de imagens recorrentes do corpo,
da bebida e da comida, da satisfação das necessidades naturais e da vida sexual. Nesse princípio, o
cósmico, o social e o corporal ligam-se indissociavelmente, numa unidade orgânica. A vida material e

NARRATIVAS
1138

corporal aparece sub a forma universal, festiva e popular, de natureza profundamente positiva e
afirmativa: representa a fertilidade, o crescimento e a abundância.
O corpo adquire um caráter cósmico: não se trata do ser biológico isolado nem do indivíduo
egoísta burguês, em seu aspecto privado. Ele é magnífico, infinito e exagerado: grotesco. O termo, a
propósito, tem sua origem quando, em meados do século XV, encontram-se formas ornamentais
surpreendentes em escavações feitas em Roma, as quais foram chamadas de grottescas – do
substantivo italiano grotta (gruta). Esses ornamentos surpreendiam pela estranha combinação
fantástica e livre de formas animais, vegetais e humanas, que se transformavam e se confundiam
entre si. As fronteiras desses reinos e suas representações estáveis eram, assim, audaciosamente
superadas. Neles, tais formas metamorfoseavam-se umas nas outras, em um impulso interno da
própria existência, em inacabamento infinito. Daí porque Bakhtin chama a corrente literária de base
popular carnavalesca de realismo grotesco.
Um dos traços marcantes do realismo grotesco é o rebaixamento. Ele consiste em aproximar
tudo o que é elevado, espiritual, ideal e abstrato, do plano material e corporal, da terra e do corpo, em
sua unidade orgânica. O “alto” e o “baixo” têm, nessa concepção, sentidos puramente topográficos: o
alto é o céu, o baixo, a terra – enquanto princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento e
ressurreição. Em termos corporais, o alto é a face, a cabeça, e o baixo, os órgãos genitais, o ventre e
o traseiro.
Rebaixar, nessa arquitetônica teórica, consiste em degradar – porém, no sentido ambivalente
e positivo do termo. Degradar significa entrar em comunhão com a parte inferior do mundo e do
corpo, e, portanto, com a terra e com os atos do baixo corporal, como o coito, a concepção, a
gravidez, o parto, a absorção de nutrientes e a satisfação das necessidades naturais. Significa,
portanto, entrar em contato com tudo aquilo que possibilita a existência, frente a frente com seus dois
limites: o túmulo e a germinação, a morte e a ressurreição. É um movimento não apenas para o baixo
negativo, para a destruição e para o nada, mas também para o baixo produtivo, fértil, de renascimento
e renovação.
É essa percepção da vida material e corporal, cósmica e universal, de um corpo aberto e
incompleto, agonizante e em constante transformação, confundido com a natureza e com os outros,
misturado ao mundo, que está na base da concepção carnavalesca de mundo e na sua representação
literária, o realismo grotesco. São esses elementos que exercem influência organizadora direta sobre
a linguagem, o estilo e a construção dessa literatura. Suas formas eram dinâmicas, ousadas e livres,
expressavam as verdades de maneira franca e ambivalente e ligavam-se intimamente às formas de
degradação e aproximação à terra e ao baixo corporal.

INTERNET (WEB 2.0): a nova praça pública

Em seu artigo intitulado “Os novos letramentos digitais como lugares de construção de
ativismo político sobre sexualidade e gênero”, Moita Lopes (2010) pensa os espaços virtuais como

NARRATIVAS
1139

lugares de ativismo político e de construção de significados transgressores sobre a vida pública e


privada. Ele ainda caracteriza a Web 2.0, enquanto prática social (de letramento digital) com um modo
específico de pensar e agir.
Partindo de uma outra lente conceitual, concordamos com Moita Lopes, quando ele afirma que
os espaços virtuais atuais, da Web 2.0, se assemelham às praças públicas da Antiguidade ou aos
moinhos da Idade Média, por se constituírem como espaços nos quais a vida pública e privada foi/é
constantemente discutida e problematizada, resultando em construções alternativas para a vida
social, longe dos olhos reguladores da Igreja e do Estado.
Moita Lopes se remete à Ágora grega: na qual as pessoas se reuniam para o exercício da
cidadania, sobre decisões fundamentais, gerando a vida democrática; e aos moinhos medievais:
lugares de fluxo de informações culturais, sexuais e técnicas, essencialmente transgressores, cuja
função era reinventar a vida social e política, numa alternativa para os dogmas religiosos
pesadamente impostos à população.
Em suma, sua tese é a de que a Web 2.0 representa, semelhante à ágora grega, o espaço
democrático de debates políticos sobre a vida pública e privada e, portanto, de ativismo político. Além
disso, semelhante aos moinhos medievais, esses espaços virtuais permitem a libertação de um
constrangimento histórico e milenar, quando possibilitam o questionamento de princípios tradicionais
que regem a vida pública.
Em seu artigo, ainda é importante a caracterização sintetizada que o autor propõe do mindset
Web 2.0 e a sua comparação com a Web 1.0. A primeira geração da Web tinha um caráter fortemente
industrial, de produção para o consumo, isto é, havia uma grande separação entre produtores e
consumidores. A tela do computador era um lugar em que se oferecia um conteúdo acabado a ser
acessado. Assim, nas páginas disponibilizadas na web, persistia a autoridade do autor como
especialista, e seu conteúdo tinha um único fluxo, o de consumo pelo usuário da internet. Já a Web 2.0
opera sob a lógica da interatividade, da colaboração e da participação, gerando uma espécie de
inteligência coletiva e a possibilidade da intensificação das relações sociais por meio de redes sociais,
fóruns, chats etc.
Essas duas gerações da Web caracterizam dois modos de agir e pensar ou atitudes metais
(mindset) de uma época, importando observar as mudanças e os ganhos da Web 2.0 em relação à Web
1.0. Enquanto a primeira geração opera com uma tecnologia sofisticada, mas não altera os modos de
consumo nem as formas de pensar e agir em ambientes virtuais; a Web 2.0 modifica o modo de vida
contemporâneo, por meio da alteração dessa tecnologia, e cria novos modos de agir e de estar no
mundo.
Um exemplo dessa mudança é a importância que damos ao ato de compartilhar a informação,
tão típico de nossa época. Há um impulso latente e profundo de compartilhar com o outro conteúdos
diversos, ao invés de guardá-los para si, em relação tanto à vida pública, quanto à vida privada - de
modo que esses dois âmbitos são constantemente confundidos e entremeados. Para Schrage (apud
MOITA LOPES, 2010), não somos a sociedade da informação, mas a sociedade da intensificação das

NARRATIVAS
1140

relações sociais. O que importa é a ação colaborativa, que adquire caráter coletivo, dispersando ou
apagando a autoria, muitas vezes, em consequência.
Tal mindset propicia ainda as práticas de mixagem / hibridizações dos artefatos culturais:
textos, música, vídeos etc, construídos por outros, originando novas histórias destes. Este é o caso da
fanfiction, por exemplo, que são produções literárias criativas localizadas dentro de um universo
ficcional já dado, em livros, filmes, séries, etc, escritas e lidas por fãs desses produtos culturais.
Nessas condições, o consumidor confunde-se com o produtor, e seus papéis já não são mais
claramente separados e únicos, mas duplos: ao mesmo tempo em que se consome conteúdo, se
produz conteúdo, e vice-versa. Conforme conclui Moita Lopes:

Do ponto de vista epistemológico, a compreensão teórica do mindset da Web 2.0 como ações de pessoas
em conjunto em espaços entendidos como práticas sociais de letramento torna possível qualificá-los
como lugares onde a vida social pode ser construída, criticada, transformada, reinventada ou, em última
análise, transgredida. Desse modo, é possível dizer, seguindo O’Reilly (2005), que ‘a Web 2.0 não é uma
tecnologia, mas uma atitude’” (2010, p. 400)

De modo análogo ao de Moita Lopes, porém de uma perspectiva distinta da apreensão das
características essenciais da Web 2.0 e do seu impacto cultural na vida do homem contemporâneo,
observamos que ela, enquanto espaço social de atuação humana, guarda certa essência da praça
pública carnavalizada bakhtiniana.
É necessário admitir algumas ressalvas, no sentido de compreender os séculos que nos
separam da Idade Média. Obviamente, muitos aspectos de nossas vidas se modificaram ao longo do
tempo: as tecnologias modificaram a nossa percepção do mundo, tanto na área de transporte, quanto
na área de comunicação; instituições como a Igreja e o Estado têm uma natureza diversa daquela que
tinha durante a Idade Média – a Igreja Católica disputa influência com outras religiões no mundo
ocidental, como o Protestantismo e suas diversas vertentes, ou ainda com o Ateísmo e o
Agnosticismo, dentre outros posicionamentos religiosos; o Estado brasileiro hoje (ainda) é republicano
representativo, com voto popular democrático, e a Constituição Nacional prevê como direitos
fundamentais e universais a liberdade, a igualdade e a justiça. Facilmente verificamos que o homem
contemporâneo não pode ser considerado da mesma maneira que o homem medieval.
Contudo, há questões humanas que são atemporais, como os medos, as incertezas, as
contradições, as intolerâncias, os ideais, as utopias. Considerando a lógica marxista de luta de
classes, ainda funcionamos numa dinâmica de exploração de uma classe oprimida por outra,
opressora, no contexto econômico capitalista - ou, dialogicamente, por meio de todas as disputas que
ocorrem em todas as relações humanas, de maneira pulverizada e múltipla, em lugar da dicotomia
simplista. A disputa incessante por interesses e poder, independente do seu âmbito e natureza,
mantém um mesmo cerne: forças centrípetas, hegemônicas, reacionárias, tradicionais e coercitivas
em luta com forças centrífugas, revolucionárias, vanguardistas e libertadoras. E do contato entre
essas forças, temos as mais variadas composições e combinações, entre uma e outra, em todas as
direções, ocorrendo em diversos níveis, em todas as esferas de atividade humana. Isto é, embora de

NARRATIVAS
1141

modo diferente da Idade Média, o homem contemporâneo ainda é afligido por tabus morais, sociais e
religiosos; ainda sofre certa alienação em decorrência de seu trabalho e de sua posição social; ainda
guarda em seu íntimo frustrações e fantasias, desejos e medos, dissimulações e culpa.
Por essa razão, dentre outras, as festas carnavalescas populares modernas ainda
representam uma espécie de fuga da realidade estéril cotidiana. Elas criam uma atmosfera de
possibilidades e utopias, tem natureza festiva e alegre, aproxima os homens, antagoniza com o sério e
com o oficial-religioso. Também há certa desmistificação do corpo, com sua exibição despudorada e
afirmativa. Observa-se ainda o mesmo caráter de jogo: ainda que temporariamente, os homens
despem-se de suas responsabilidades diárias e dos limites diversos que lhe são impostos, para
sentirem-se infinitos e experimentarem o mundo, de maneira sensível e material, livre e sem culpa.
De modo semelhante à carnavalização da praça pública na Idade Média, os espaços virtuais
online adquirem certa atmosfera carnavalizada na modernidade, a partir da assimilação de certas
formas e símbolos, de certa linguagem e de certa atitude carnavalesca.
Um fenômeno claramente observado é o riso popular ambivalente, que ri de tudo e de todos,
no qual também se inclui quem ri. As chacotas e brincadeiras online criam os populares memes -
certa construção frasal reiterada diversas vezes, em situações diversas, como algum tipo de jargão
cômico; ou imagens de pessoas ou personagens destacadas de seu contexto original para expressar
um determinado sentimento ou reação geral, aplicado em outras situações estranhas e engraçadas.
Ainda pode-se pensar, a partir dos memes, no motivo das máscaras carnavalescas.
Há certa fama dos brasileiros, internacionalmente, quanto ao uso que estes fazem das redes
sociais, de que, para os brasileiros, “a zoeira não tem fim”. De modo que se escarnece de tudo,
principalmente de assuntos sérios, tais como a crise política e econômica atual, ameaça terrorista,
surtos de doenças como a zika e a dengue, tragédias naturais, preconceito e segregação sofrida por
parte das minorias (mulheres, negros, gays) etc. Especialmente os aspectos negativos do cotidiano
são tratados com irreverência, desconstruídos e reafirmados sub forma risonha e festiva,
ambivalente.
Outro ponto de convergência entre esses dois referenciais é que há flexibilidade quase
absoluta nas relações hierárquicas nas interações ocorridas por meio da internet. Os espaços
virtuais tendem a ser bastante democráticos e livres. Todos têm direito à palavra, a manifestar sua
opinião livremente, sem que disso dependa qualquer outro aparato ou meio econômico além do acesso
à internet – mesmo que o acesso à internet em si já dependa de outros fatores hierárquicos da
sociedade atual.
Ainda que tenha se construído certas hierarquias, a depender do domínio e dos valores
capitais que se desenvolveram dentro dos próprios ambientes virtuais, tais como número de
seguidores, de visualizações, de curtidas etc, existe uma fluidez inquestionável dessa hierarquia em
comparação com a hierarquia oficial, presente em outras esferas de atividade. As pessoas se
engajam mais corajosamente, expressam seus pontos de vistas e assumem posições responsivas
frente a outros discursos, de maneira universal e desinibida, numa espécie de desalienação de si

NARRATIVAS
1142

mesmo e dos outros, despertada pelo ambiente virtual interativo, de modo que há um contato livre e
familiar mesmo entre pessoas desconhecidas.
A comparação com a interação em outras mídias, em telejornais e revistas por exemplo, deixa
esse traço bastante claro. Nos meios virtuais da Web 2.0, os participantes têm voz ativa, suas
opiniões são relevantes, o ato de curtir, comentar, compartilhar e emitir reação negativa (unlike), tem
um impacto maior e mais imediato do que em qualquer outra mídia. Além disso, a maioria dos
domínios online propiciam o contato livre e direto com os demais usuários, tornando essas
experiências mais coletivas e universais – em oposição à experiência individual e monológica de
assistir a um telejornal ou ler uma revista.
Por essa razão, surgiu, de modo semelhante à praça pública bakhtiniana, uma linguagem
própria da Web 2.0, que expressa essas formas e símbolos carnavalizados. Essa linguagem é distensa,
prima pela rapidez da expressão e tende a aproximar as pessoas, na grande maioria das suas formas
de comunicação: uma linguagem franca e sem regulações muito rígidas, quanto às normas da língua,
que inclui gírias, palavrões, expressões populares, vocábulos estrangeiros, obscenidades. Além disso,
por permitir a fusão de muitas formas de linguagens - vocal, verbal escrita, imagem, vídeo; ela
também apresenta formas de expressão exclusivas, como os memes já citados, os gifs, emoticons,
dentre outros.
Esse contato livre e direto, desinibido, cria uma atmosfera fértil e acolhedora: democrática.
Como a terra após o instante da criação do universo, na qual tudo o que se planta germina.
Entretanto, é importante lembrar que a linguagem é uma arena de batalhas, de modo que esse contato
direto e familiar nem sempre ocorre de maneira pacífica: ele pode ser problemático, áspero,
inquietante, desestabilizador. O que é importante compreender é que este espaço acolhe todas as
formas de expressão, de maneira universal. Essa liberdade gera as atitudes transgressivas, ousadas,
de desconstrução e reconstrução, típica atitude carnavalesca, irreverente por natureza. Assim, a Web
2.0 também leva à tona temas e questões reprimidas, tanto de fórum íntimo quanto questões
coletivas, em termos morais, políticos, culturais, religiosos e econômicos.
Os meios virtuais ainda trazem a possibilidade da encarnação de uma persona, alter ego, ou
algo parecido – relacionado ao motivo da máscara carnavalesca - sob a forma de perfis fake e pelo
anonimato. Nesse aspecto, a analogia com o jogo dentro do carnaval é bastante relevante. O nosso
ponto de vista é de que esses mecanismos têm caráter ambivalente, afirmativo e positivo,
contrariando a opinião geral negativa para estas expressões: de que esconder-se ou torna-se outro é
um ato de covardia. Sob a ótica do carnaval, os perfis fake e o anonimato são formas de
possibilidades, num tensionamento da vida para além dos limites do real, para a fantasia. É a
possibilidade de uma outra vida, livre e festiva, de uma outra face, dentre as várias que temos, de
burla das proibições e limites impostos, por diversos motivos, na vida ordinária.
Em suma, é possível perceber nos ambientes online, na Web 2.0, uma atmosfera de liberdade e
ousadias que tem em sua natureza a centelha do carnaval popular da Idade Média. Ela é, portanto, um
espaço socialmente construído com suas características latentes: a nova praça pública carnavalizada

NARRATIVAS
1143

bakhtiniana. Propicia o contato livre e familiar, a partir de uma linguagem típica, cheia de riso festivo,
ambivalências e fantasias. Sua natureza remonta às utopias de liberdade, igualdade e abundância que
permeia a cosmovisão carnavalesca do mundo e na qual beberam as grandes revoluções.

(IN)CONCLUSÕES

As considerações superficiais propostas neste artigo certamente não resolvem a questão das
comunicações por meio da rede internacional de computadores nem de sua natureza carnavalizada.
Na verdade, aponta para a necessidade de aprofundamento exploratório do tema em pesquisas
futuras. Nossa analogia apenas testa alguns aspectos dos modos de ser e de agir online, sem que
esses sejam, também, os únicos modos possíveis de interpretação, nem os conclusivos. A
compreensão real e plena dessa questão só será alcançada, obviamente, com a colaboração de
diversas pesquisas, das mais diversas áreas, a fim de que se possa criar um mosaico de visões que
unidas, possam representar os muitos aspectos da cultura moderna, a partir da Web 2.0.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.


São Paulo: Hucitec, 2010. 7 ed.
MOITA LOPES, L. P. Os novos letramentos digitais como lugares de construção de ativismo
político sobre sexualidade e gênero. In: Trab. Ling. Aplic.; Campinas, 49(2): 393-417, Jul./Dez. 2010.
SANTOS, G. L. RELAÇÕES DIALÓGICAS EM FANFICTIONS: carnavalização na reescrita da saga Harry
Potter na era da Convergência. Dissertação de Mestrado. UFRN. Natal: 2016

NARRATIVAS
RESUMO
1144
Este artigo apresenta reflexões sobre o projeto
interdisciplinar ‘Cinema Experimental na Escola’
desenvolvido na escola de educação integral, no

REFLEXOS DO VIVIDO EM eixo linguagens, visando à aproximação dos alunos


com as práticas de produções de vídeos curtos,
partindo de aspectos específicos dos filmes pré-

OUTRO TEMPO-ESPAÇO:
selecionados, pelos professores envolvidos no
projeto. Objetivou-se realizar oficinas periódicas
com os alunos dos oitavos e nonos anos do Ensino
Fundamental, oportunizando produzirem seus
uma experiência da educação integral próprios filmes, com a finalidade de desenvolver,
discutir, refletir e aprimorar suas relações com o
cinema e com a própria prática de captura de
imagens, discutindo sobre o poder da imagem e das
diversas linguagens favorecidas pelo audiovisual. A
exibição semanal de cada filme trouxe o cinema
Idelvandre Vilas Boas S. SANTOS295 para a prática, aproximando da realidade dos
alunos, a partir de um aspecto específico do filme,
como a narrativa ou o conteúdo, através de
oficinas, favorecendo o protagonismo juvenil,
possibilitando que os alunos planejassem,
produzissem e criassem um novo vídeo. Os temas
dos filmes dos alunos foram independentes dos
INTRODUÇÃO filmes exibidos e discutidos no projeto com os
professores, embora estes repertoriassem os

O
alunos, oferecendo elementos para criarem suas
trabalho com o cinema na escola de educação integral foi um próprias produções, tanto individual quanto em
diferencial que enriqueceu as práticas pedagógicas no grupo. As produções dos alunos apresentaram
qualidade suficiente para que dois vídeos fossem
desenvolvimento de trabalhos reflexivos e significativos submetidos ao Festival de Cinema do Rio de Janeiro
através da linguagem narrativa, para o desenvolvimento de um na Mostra Geração 2017, sendo selecionado para
exibição, o vídeo ‘A viagem no tempo’ realizado por
trabalho interdisciplinar envolvendo diferentes componentes alguns alunos do 9º ano. O vídeo trouxe um
curriculares nos anos finais do Ensino Fundamental. Nesse sentido conteúdo de ficção e abordou o tema mutação,
oferecendo ao espectador uma imagem de tempo
Volóchinov, (2013, p. 157) diz que, “a linguagem humana é um futuro.
fenômeno de duas faces: cada enunciação pressupõe, para realizar- Palavras-Chave: Protagonismo Juvenil. Narrativ.
se, a existência não só de um falante, mas também de um ouvinte”. Cinema.
A reflexão a partir do desenvolvimento do projeto ‘Cinema
Experimental na Escola’ envolveu cinema e debates, abrindo um
mundo de possibilidades para que os alunos dos oitavos e nonos
anos fossem protagonistas e aprendessem, experimentassem e produzissem seus próprios vídeos,
com a finalidade de desenvolver, discutir, refletir e aprimorar suas relações com o cinema e com a
própria prática de capturar as imagens, transformando criticamente à produção imagética nos dias
atuais.
Desse modo, pensou-se nas oficinas com variados vídeos e temas que favorecesse as
discussões e reflexões ampliando a visão cultural e de mundo dos alunos, além de filmar situações do
cotidiano, relacionar a produção a outros projetos e trabalhos desenvolvidos no ambiente escolar.
Então se pensou em organizar a partilha das dúvidas e discussão sobre o fazer pedagógico e o

295Especialista em Coordenação Pedagógica pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Gestão do Currículo pela Universidade de São
Paulo (USP). Pedagoga pela Universidade Paulista (UNIP). Orientadora Pedagógica na Rede Municipal de Ensino de Campinas-SP. Membro do
GRUPAD e GRUBAKH subgrupos do GEPEC/Unicamp. E-mail: idelvandre@gmail.com

NARRATIVAS
1145

desenvolvimento das filmagens com os alunos, em uma exibição do vídeo para análise e discussão em
uma roda de conversa com os envolvidos no processo. Nessa dialogia “[...] ele deve tornar-se outro
em relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2011, p. 13), em um
constante deslocar-se para compreender o outro.
Para Bakhtin, (2011, p. 382-383), “eu-para-mim e eu-para-o-outro, o-outro-para-mim” na
“composição heterogênea da minha imagem”, como uma espécie de “homem no espelho”, no momento
em que há um distanciamento para que haja uma percepção do ‘eu’ vivido no mundo com toda sua
experiência e do outro ‘eu’ atuando em outro tempo-espaço, que também é percebido pelos vários ‘eu’
e ‘outro’, construindo sentidos para o protagonismo juvenil ao assistirem a exibição do vídeo.
Durante o acompanhamento e discussão sobre o trabalho realizado e os ajustes propostos
durante o processo de produção, houve um envolvimento intenso dos alunos na construção dos
personagens, na escrita do roteiro, nas cenas produzidas, na edição, refletindo em todo o processo de
construção do vídeo. Sendo assim, para Volóchinov (2017, p. 210): “A situação social sempre determina
qual será a imagem, a metáfora e a forma de enunciar [...]”.

REFLETINDO SOBRE O PROCESSO

A construção da narrativa produzida na relação com os vários ‘outros’ existentes no ambiente


escolar e com o mundo da cultura favoreceu o ato ético responsivo, a tudo que foi possibilitado no
eixo linguagem ao longo do desenvolvimento do projeto ‘Cinema Experimental na Escola’, favorecendo
o conhecimento necessário para que os alunos produzissem o vídeo ‘A viagem no tempo’. Para
Bakhtin, (2010, p. 25) “reside na singularidade do ato a possibilidade da religação entre cultura e vida,
consciência cultural e consciência viva”.
A escuta no acompanhamento e desenvolvimento dos trabalhos e a circularidade de vozes dos
professores envolvidos neste projeto interdisciplinar, possibilitou uma multiplicidade de olhares que
contribuiu para o direcionamento dos trabalhos dos alunos, enriquecendo o processo de
aprendizagem e de construção sobre um modo de produzir narrativas em vídeos com múltiplos
diálogos. “O centro organizador de qualquer enunciado, de qualquer expressão não está no interior,
mas no exterior: no meio social que circunda o indivíduo” (VOLÓCHINOV, 2017 p. 216).
Ao assistir ao vídeo produzido pelos alunos, percebeu-se que através da ficção e da expressão
social vivenciada pelos sujeitos na interação social, apresenta-se uma situação em que se torna
possível vivenciar em tempos diferentes experiências outras, antes inimagináveis, como viver um
tempo fora de seu tempo. Essa singularidade dialógica revela a pluralidade cultural nesta viagem no
tempo, em que há uma interação entre personagem e auditório, em que a “mensagem [...] considera o
papel do ouvinte” (VOLÓCHINOV, 2017 p. 218), mexendo com o imaginário, trazendo a magia da viagem
no tempo e a mutação no tempo futuro.
As cenas de ficção e mutação nos surpreenderam, pois para Skliar (2014, p. 44) “dois ou três
fatos que ocorre no mesmo instante, tenha alguma relação entre si é necessário inventar mais de um

NARRATIVAS
1146

terço da história, dissimular suas dobras, evitar a tentação da moral e, inclusive, evitar a intempérie
absoluta do alheio”, escolhendo o que ocultar e o que mostrar, buscando uma interação dialógica no
encontro entre a cena e o auditório, produzindo sentido para a narrativa construída para esse fim.
No desenvolvimento do trabalho coletivo no ambiente escolar, o encontro com o ‘eu’
constituído pelo outro e os vários ‘eu’ que constitui o ‘nós’ constitui também a “Vivência do nós” que
para Volóchinov, (2017, p. 208-209), “quanto mais unida, organizada e diferenciada for a coletividade
na qual se orienta um indivíduo, tanto mais diversificado e complexo será seu mundo interior”.
Essa organização coletiva foi essencial para o desenvolvimento dos trabalhos, favorecendo o
planejamento, a produção e a edição do vídeo, na construção de uma narrativa que dialoga com o
imaginário do auditório, através do vídeo de ficção, que trouxe elementos estudados no projeto
‘Bestiário Fantástico’, como a criptozoologia que é o ramo da zoologia que estuda os chamados
“criptídeos”: animais tidos normalmente como criaturas fantásticas de lendas e mitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de planejar, produzir roteiro, editar as cenas, refletir sobre a produção do


vídeo, possibilitou a construção de sentido dos alunos, envolvendo-os em uma lógica poética e própria
da linguagem do cinema. As produções dos vídeos apresentaram qualidade suficiente para que fossem
submetidos ao Festival de Cinema do Rio de Janeiro na Mostra Geração 2017.
A notícia da seleção do vídeo ‘A viagem no tempo’ trouxe euforia e encantamento para os
alunos, familiares e equipe escolar, o que mobilizou a busca pela parceria com a Secretaria Municipal
de Educação para viabilizar a participação de todos os envolvidos no evento, em que os alunos
apresentarão seus filmes e trocarão impressões sobre linguagem audiovisual, possibilitando que se
expressassem.
Esta experiência vivenciada pelos alunos no desenvolvimento do projeto, e estarem entre os
42 escolhidos para participarem do evento, com a exibição do vídeo e o debate sobre ele, implicou em
uma nova perspectiva de futuro, visão de mundo e possibilidades de continuidade dos estudos,
favorecendo suas escolhas para o mercado de trabalho e ingresso em cursos universitários,
vislumbrando um futuro profissional promissor.
A partir deste acontecimento iniciou-se também o trabalho com cinema para os alunos do
sextos e sétimos anos, alguns professores pensaram na possibilidade para os alunos dos anos iniciais
do Ensino Fundamental. Sendo assim, este acontecimento foi um marco para a rede municipal de
Campinas e principalmente para a escola.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. 6ª Edição: Editora WMF. Martins Fontes. 2011.
______. Mikhail M. Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

NARRATIVAS
1147

SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem: Educar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014.
VOLOCHÍNOV, Valentin N. A construção da Enunciação e Outros ensaios. São Carlos. Pedro e João Editores, 2013.
VOLOCHÍNOV, Valentin N. Marxismo e filosofia da linguagem:Problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
1148
O objetivo do presente artigo é desenvolver, por
meio de uma incursão à filosofia da linguagem de

NARRATIVAS LITERÁRIAS Mikhail Bakhtin e de seu Círculo, uma reflexão


sobre o modo como a literatura infantil é abordada
pela escola, visando à formação do leitor e ao

E ESCOLA: formar leitores como


desenvolvimento do letramento literário. Com base
em elementos relativos à história da literatura
infantil no Brasil, busca-se compreender a natureza
do tratamento dado pela escola à literatura infantil.
exercício de resistência Esses elementos permitem reconhecer que, em
suas origens, as relações entre literatura infantil e
escola são marcadas por uma dimensão pragmática
e monológica, que destitui do leitor seu estatuto de
protagonista das leituras que realiza. A partir dos
conceitos de polifonia, dialogismo e exotopia,
SCHEFFER, Ana Maria 296 discutem-se outras possibilidades de tratamento
das narrativas literárias pela escola, que
MICARELLO, Hilda 297 contemplem a dimensão estética do diálogo entre
autor, texto e leitor.

Palavras-Chave: Literatura Infantil. Dialogismo.


Polifonia. Exotopia. Formação do leitor.

INTRODUÇÃO

Uso a palavra para compor meus silêncios.


Não gosto das palavras
Fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.

Manoel de Barros, Memórias inventadas

N
a epígrafe que inicia o presente texto, Manoel de Barros revela sua preferência pelas palavras
que compõem o seu cotidiano e estão figuradas em seu mundo interior, imaginário. A literatura
abre espaço para criar esse mundo, a poesia, por seu caráter aberto, inconcluso, infinito, é uma
forma de expressá-lo. O texto literário oferece a possibilidade de realizar, com a linguagem, o que “as
palavras fatigadas de informar” não realizam. Por meio de seus diferentes gêneros - poesia, romance,
conto, crônicas e tantos outros - a literatura, por ser arte, abre caminho para o conhecimento mais
profundo do homem. O objetivo do presente artigo, fruto de reflexões desenvolvidas no âmbito da
disciplina “Literatura e Escola”, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, é discutir como a escola pode se constituir numa
instância de formação do leitor de literatura capaz de contemplar a dimensão humanizadora da
experiência com o texto literário.

296 Doutoranda em Educação do PPGE da Faculdade de Educação/UFJF. Prof. da Rede Municipal de Juiz de Fora . E-mail:
anamscheffer@oi.com.br
297
Pós-Doutora em Educação pela PUC-Rio. Prof. Adjunta da Faculdade de Educação da UFJF. E-mail: hilda.micarello@uab.ufjf.br.

NARRATIVAS
1149

As narrativas literárias, na qualidade de práticas culturais, têm uma dimensão humanizadora


e, portanto, potencial transformador. Por sua natureza formativa, exercem importante papel na
promoção de uma participação dos sujeitos na sociedade que vise à plena realização desses enquanto
seres humanos, inseridos e participantes de uma coletividade. Essas narrativas provocam emoções,
angústia, sofrimento, satisfação, esperança, deleite e, assim, vão estimulando a capacidade do ser
humano de fantasiar, de fabular e refinar a sua sensibilidade, de aprender e ensinar, de estabelecer
relações interpessoais e interpelar, continuamente, a sua própria condição humana. Afinal, as
respostas trazidas pela literatura para as variadas questões que afligem o humano vêm
acompanhadas de muitas outras perguntas. Nesse movimento de entrega à leitura literária é possível
sair do lugar comum, se deslocar do cotidiano e depois retornar a ele, alimentado pela palavra que
leva a compreender a vida, a si mesmo e aos outros.
Numa perspectiva de ação desinteressada, as narrativas literárias rompem com o
pragmatismo, que vai na contramão da gratuidade da experiência estética. Literatura não combina
com pressa. Todavia, na contemporaneidade, as ações humanas estão sempre voltadas para a
realização de atividades que visam a resultados imediatos, fazendo com que o ato de ler se realize, de
modo geral, com o objetivo de atender a uma necessidade interessada, com fins utilitários, o que
contribui, em certo grau, para anular o sentido e o valor da experiência literária. Ler literatura é,
portanto, uma forma de resistir.
Mas o que é a literatura? É possível defini-la sem desconsiderar sua polissemia? Pacheco
(2008), afirma que definir o termo literatura não é tarefa fácil, porque não é algo estático. Mas, dadas
suas especificidades, pode-se dizer que:

Literatura é acima de tudo, arte; pertence à esfera da estética. Arte e estética são termos polissêmicos,
não se prestam a definições fechadas e conclusivas. A estética antes de ser uma apologia ao belo, às
formas perfeitas, a um estado de pura inspiração para a sua execução, antes de tudo isso, estética está
associada aos sentidos, à percepção através dos sentidos. [E conclui:] A arte, então, muito mais que
uma atitude contemplativa, provoca fruição estética em que não só o belo e o prazer tranquilo e sereno
têm o seu lugar, mas, também, o incômodo e o desconforto oriundos de uma experiência impactante,
engendrando processos internos extremamente salutares e catárticos, que possibilitam a elaboração e
reelaboração do sujeito, de sua subjetividade e da realidade em que se encontra (PACHECO, p.211-212).

Como essa arte entra na escola? O acesso à leitura literária tem sido garantido por essa
instituição? Como as diversas narrativas literárias entram na vida dos alunos? Como os alunos se
põem em diálogo com essas narrativas? Como as narrativas literárias vão sendo incorporadas a
outras narrativas de vida, por professores e alunos? Qual o papel das narrativas literárias na
construção de uma educação estética?
Implicada com essas questões, embora sem a pretensão de respondê-las, a proposta do
presente texto é refletir sobre o papel das narrativas literárias na formação do leitor, na escola,
considerando essa formação como uma forma de resgate da humanidade dos sujeitos e, portanto,
como forma de resistência a tudo o que nos desumaniza. A partir da filosofia da linguagem de Mikhail

NARRATIVAS
1150

Bakhtin e de sua arquitetônica, que articula ética e estética para refletir sobre as relações de
alteridade, o presente texto busca travar um diálogo com e sobre a experiência de formação de
leitores de narrativas literárias na escola.

1. LINGUAGEM E LITERATURA NUMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA

A filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin e seu Círculo se origina num contexto em que a
União Soviética passava por uma crise política, filosófica e científica. O movimento revolucionário
russo de 1917 e as ideias marxistas que lhes deram origem atravessa a obra desse autor russo, que
tem como fundamento o marxismo histórico dialético. Ao longo de sua vida, Bakhtin realizou uma
intensa atividade de reflexão e escrita, o que o tornou um grande pensador do século XX. As questões
que o movem têm a ver com a busca de compreensão das relações eu/outro e das dimensões
axiológicas envolvidas nessas relações (FARACO, 2006). Como grande pensador Bakhtin soube, de
modo ativo e responsivo, compreender o seu contexto histórico e cultural, expressando, a partir de
suas ideias, o que muitos intelectuais de sua época sentiram, viveram e desejaram, mas poucos
conseguiram dizer em função do momento de crise por que passava o seu país. Como consequência
disso, foi preso e exilado e seus escritos foram censurados.
A formação interdisciplinar de Bakhtin lhe possibilitou englobar, na sua produção teórica,
diferentes campos de estudos, como a linguística, a literatura, a linguagem, a cultura e, assim,
abranger, em seus escritos, variados temas, que se articulam e são dotados de uma unidade de
sentido e coesão teórica. De acordo com Bakhtin (2003), sua pesquisa transcorre em campos
limítrofes, nas fronteiras das disciplinas da linguística, filologia e crítica-literária, entre cruzamentos
e junções. Fundamentalmente, a sua visão de mundo é construída a partir de uma concepção do
homem como um ser que se constitui na e pela linguagem, o que implica numa concepção filosófica de
linguagem.
Para Bakhtin “a linguagem não é um dom divino nem uma dádiva da natureza. É o produto da
atividade humana, coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica como
a organização sócio-política da sociedade que a tem gerado” (1993, p.227). Dessa forma, são as
interações estabelecidas entre os indivíduos na sociedade, em diferentes contextos e situações que
permitem ao homem produzir linguagem. Na solidão o homem não pode produzir linguagem e nem
tampouco cultura, pois todos os conhecimentos historicamente construídos, em todas as suas
manifestações, foram constituídos por meio da linguagem.
A análise filosófica de Bakhtin coloca a linguagem no âmago da investigação das questões
humanas e sociais, inaugurando um novo modo de concebê-la. Seu pensamento é contrário à visão de
língua como algo acabado, pronto, reificado, uma instância isolada e distante do falante, defendida
pelas correntes linguísticas de sua época, as quais ele denominava subjetivismo idealista e
objetivismo abstrato. Apesar de reconhecer a contribuição de cada uma dessas correntes para os
estudos linguísticos, Bakhtin não deixou de apresentar sua crítica em relação a elas, uma vez que

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1151

ambas tomam a enunciação monológica, isolada, como base dos seus estudos e desconsideram a
dimensão social e dialógica da língua. Além disso, segundo Bakhtin (2004), essas correntes
linguísticas não apreendem o signo com seu conteúdo ideológico, constituído no social, mas no
interior de um sistema sígnico (objetivismo abstrato) ou no psiquismo individual (subjetivismo
idealista). Para Bakhtin, essas abordagens constituem obstáculos à apreensão da natureza social da
linguagem porque, no seu entender, “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN, 2004, p.95).
Decorre desse entendimento, a ênfase dada em sua teoria à enunciação dialógica, devido a
sua natureza social e concreta, não havendo, pois, a supremacia do individual sobre o social e do
abstrato sobre o concreto, conforme orientavam os estudos linguísticos da época. A grande questão
apresentada em sua concepção dialógica de linguagem é o discurso alheio. Ao destacar a enunciação
dialógica, a alteridade se torna parte constitutiva dessa análise filosófica da linguagem, porque para
Bakhtin só há linguagem se houver interação. Em sua teoria, a base da língua está na interação verbal,
por isso a palavra-chave do seu pensamento é o diálogo instaurado nas e pelas relações sociais.
Bakhtin debruça-se sobre a relação do “eu” e do “tu” via linguagem. Na visão bakhtiniana, esse diálogo
não se circunscreve ao diálogo face a face, embora seja esta também uma importante forma de sua
ocorrência. Ao contrário, o diálogo é concebido num sentido mais amplo, como todo e qualquer tipo de
comunicação verbal. Conforme Faraco (2006) destaca, Bakhtin não se ocupou do diálogo em si, mas
com o que ocorre nele, ou seja, com as forças que nele atuam e condicionam as formas e as
significações do que nele é dito.
A literatura foi o pano de fundo para que Bakhtin elaborasse a sua teoria. Muitos de seus
conceitos, no campo dos estudos literários, foram construídos com base na análise de obras
literárias. O conceito bakhtiniano de polifonia teve sua origem na obra de Dostoievski, escritor que
criou uma estrutura de romance ainda inexistente, a ponto de ser considerado por Bakhtin como um
autor polifônico por excelência. No enfoque polifônico, os personagens estão em constante evolução,
deixam sempre algo para ser recriado. É colocada em evidência não só a consciência do autor como
também a do personagem. É certo que o autor não deixa de atuar, de exercer a sua função, pois ele é
um regente ativo do grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Todavia, ele não fala
pela personagem e não a reduz a seu objeto, pois mantém um distanciamento em relação a ela o que
permite que aja sozinha, tendo vida e estilo próprios.
A partir deste conceito, foi inaugurada na literatura uma nova maneira de conceber o autor
em relação à obra, uma vez que a sua posição diante dos personagens é que caracterizará a polifonia
no romance.
Segundo Bezerra,

O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam
do processo dialógico. Mas esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou
recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro “eu para si” infinito
e inacabável. (BEZERRA, 2005, p.194)

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1152

A partir de uma visão mais abrangente da obra de Bakhtin, polifonia configura-se não como
uma categoria meramente literária ou técnica, mas como uma categoria filosófica que expressa uma
visão de mundo. O desejo de um mundo pleno de relações dialógicas, inconclusivas, onde não
predomine a voz do sentido único, mas, sim, onde haja a plenivalência, a plenipotência de vozes. O
desejo bakhtiniano divergia fortemente do mundo em que viveu: o da monologia, do autoritarismo e do
pensamento único, inclusive no campo da estética, no qual a busca pela forma ideal obscurecia a
necessária ênfase no conteúdo do texto literário, em especial da poesia. A polifonia seria não só uma
forma de dialogismo, mas, sim, a plenitude do dialogismo.
A linguagem literária, por ser artística, apresenta um diálogo de várias linguagens, tecidas a
partir de outros discursos, de outras vozes, que ajudam a construir a voz do narrador. Tomando esse
conceito para a prática de ensino da literatura, podemos considerar a possibilidade instaurada de o
aluno /leitor e o professor/leitor, diante de uma obra literária, também participarem desse processo
dialógico ao interagirem com o autor, com as personagens e de produzir uma multiplicidade de
leituras e de sentidos provocados pelo texto literário. Assim, o contato com as narrativas literáriais é
fonte de abertura ao múltiplo, ao inusitado, ao imprevisto. É, portanto, exercício de libertação.
Trata-se também de considerar que, em Bakhtin, a linguagem literária é concebida como parte
da cultura e, como tal, está em relação dialógica com outros textos, contextos, num entrecruzamento
entre passado, presente e futuro. O autor afirma que para penetrar no sentido de uma obra não se
deva enquadrá-la na visão de língua como um código e um sistema fechado em suas regras, mas na
sua relação com a cultura. O estudo da literatura não deve estar atrelado apenas à época em que a
obra foi criada, na sua atualidade, porque o texto literário é mais abrangente, ele ultrapassa as
fronteiras de seu tempo, vive no grande tempo (BAKHTIN, 2003). Se esse grande tempo for
desconsiderado, Bakhtin alerta que não penetraremos nas profundezas dos sentidos da obra e no que
ela nos evoca.
Para capturar a pluralidade de sentidos, a fim de que não seja fixada a nossa percepção
apenas em uma única possibilidade de leitura, Bakhtin propõe olhar para o mundo e para os textos a
partir de um olhar extraposto. Esse olhar extraposto se refere ao princípio da exotopia, outro
conceito-chave de sua filosofia, que se realiza através do que o filósofo denominará de excedente de
visão. O princípio da exotopia é desenvolvido por Bakhtin no texto “O autor e o herói” e está
relacionado à noção de dialogismo. Em sua obra, esse conceito é apresentado, primeiramente, para
tratar da relação entre autor e personagem, e, posteriormente, no texto “Notas sobre a epistemologia
das ciências humanas”, aparece como um princípio fundamental para a realização e compreensão da
atividade de pesquisa em Ciências Humanas. Conforme assinala Machado, a “extraposição é condição
ética que levou Bakhtin a olhar as manifestações criativas da linguagem”(MACHADO, 1997, p.141).
Para compreender a relação entre o autor e o personagem, na perspectiva de Bakhtin, é
necessário que se considere o excedente de visão do autor sobre o herói, pois será ele que
completará a composição estética e dará acabamento ao personagem. Como destaca em sua teoria,

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1153

“o que vejo predominantemente no outro, em mim mesmo só o outro vê” (BAKHTIN, 2003, p.22).
Segundo Amorim (2003), ao formular esse conceito, Bakhtin faz uma análise da criação artística e
deixa claro que entre o autor e o personagem haverá sempre uma diferença de lugares e de valores.
A autora considera que o conceito de exotopia traz a ideia de doação, uma vez que ao dar ao sujeito
outro sentido e outra configuração, o pesquisador e o artista oferecem aquilo que de suas diferentes
posições e lugares que ocupam e com seus valores lhes é possível ver. Sendo assim, na obra literária,
o autor é a consciência de uma consciência, que ao estar em contato com o personagem, coloca-se no
lugar dele e depois retorna ao seu lugar para completar o horizonte do personagem.
Outro componente da estrutura da obra literária apresentado por Bakhtin é o autor
contemplador, o qual é considerado um participante constante do evento criativo. Assim como o
autor-criador e o personagem, o autor contemplador, terceiro componente externo da obra, pode ser
compreendido como sendo o leitor, que necessita também tomar uma posição exotópica para
“atualizar o objeto estético” (TEZZA, 2005, p.213). Dessa maneira, na visão estética de Bakhtin, autor,
personagem e leitor são atuantes e não coincidentes. Nesse sentido, outro princípio a ser destacado
em sua teoria diz respeito à compreensão. Para o pensador a “compreensão é uma forma de diálogo”
e “compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra” (2004, p.32).
O autor assinala ainda que

Na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois
sujeitos. Não pode haver relação dialógica com o objeto, por isso a explicação é desprovida de
elementos dialógicos (além do retórico-formal). Em certa medida, a compreensão é sempre dialógica
(BAKHTIN, 2003, p. 316).

A compreensão nos leva, portanto, a produzir o novo, é atividade autoral, transgressora.


Compreender é perceber, em uma situação de leitura, o que o autor do texto apresenta, por meio da
escrita e/ou imagens e, do lugar de leitor, extraposto à atividade do autor-criador, oferecer
acabamento ao texto. Isto requer uma busca de sentido, empreendida através de uma reflexão sobre
em que contexto foi escrita a obra, quais os recursos expressivos e imagéticos utilizados pelo autor
para dialogar com o seu leitor, dentre outros elementos envolvidos no ato de leitura. Compreender o
texto literário é, portanto, dialogar com ele, preencher os seus vazios, o que implica não ficar
submetido à palavra do autor, mas oferecer a contrapalavra necessária à construção de sentidos.
Dialogar sobre os personagens que fazem parte das narrativas literárias, compartilhar os sentidos
atribuídos por cada leitor em relação à obra lida, em vez de buscar explicações para compreendê-la:
nisso residiria a tarefa da escola de ensinar a ler. Dialogar é condição para que a linguagem não se
restrinja apenas a uma consciência, mas para que os sujeitos, produtores de linguagem, particpantes
da prática educativa, possam estabelecer diálogos uns com os outros, com os textos, com os autores
e com as outras diferentes vozes presentes nas obras. Talvez esteja aí uma questão pedagógica de
destacada importância para quem reconhece o compromisso que a escola tem de formar leitores
literários: as narrativas literárias são meios de compartilhar o vivido. A leitura compartilhada

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1154

potencializa a força humanizadora da literatura e contribui para formar leitores que, ao puxarem os
fios das narrativas contidas nos livros e nas suas próprias experiências, possam expressar a vida,
porque afinal, antes de promover o livro e a leitura, é preciso promover os sujeitos envolvidos no
contexto pedagógico. A literatura representa um caminho possível para que isso seja efetivado.
Com base nessa abordagem bakhtiniana dos estudos literários, o discurso da literatura, por
sua natureza, requer compreensão ativa e responsiva e não uma explicação passiva. Além disso, se a
literatura for tomada exclusivamente para fins de análise linguística, como reiteradamente acontece
em algumas práticas escolares com o texto literário, perderá a sua natureza dialógica e passará a
ser visto apenas dentro do sistema da língua com suas normas. Muitas vezes, na escola, a literatura
acaba assumindo finalidades alheias à dimensão estética que lhe é própria, pois o discurso literário
apresenta elementos linguísticos que produzem efeitos expressivos e significativos que eram tratados
por alguns teóricos da época de Bakhtin como efeitos circunscritos unicamente às suas dimensões
formais. Diante disso, vale trazer as palavras de Ponzio que, ao abordar a caracterização da escrita
literária com base na concepção de linguagem de Bakhtin, afirma que

A escrita literária se diferencia da escrita científica, daquela da propaganda política, informativa etc.,
porque foge ao que lhe é contemporâneo, ficando livre da divisão dos papeis da vida real, não se
submete às regras do discurso funcional e produtivo, no qual quem fala se identifica como “eu” do
discurso e converte-o em palavra própria, pela qual ele é responsável e pela qual responde em primeira
pessoa (PONZIO, 2008, p. 49).

De um modo geral, a escola desconsidera essa diferenciação e, muitas vezes, trata o texto
literário como se fosse uma notícia, um documento, um texto científico. Nesse ponto é conveniente
recorrer a alguns aspectos que envolveram a constituição da literatura infantil no Brasil, para
compreender o desafio e os dilemas a serem superados pela escola no que se relaciona ao ensino da
literatura. No tópico a seguir será abordada a entrada da literatura infantil na escola e, por
conseguinte, a repercussão disso na educação literária dos alunos.

2. LITERATURA, ESCOLA E LETRAMENTO LITERÁRIO

A filosofia da linguagem de Bakhtin convida a pensar as relações entre narrativas literárias,


infãncias e escola, buscando as origens dessa relação no contexto brasileiro, para compreender como
ela se dá na contemporaneidade e como pode ser potencializada. Embora não se pretenda abordar,
dados os limites e ênfase do presente artigo, as fases por que passou a literatura infantil brasileira
em sua constituição, a partir de uma perspectiva histórica, alguns aspectos desse processo
contribuem para a compreensão do porquê de, ainda hoje, prevalecer, em muitas práticas docentes, o
excesso de didatismo no trabalho com a literatura, tornando-o monológico.
Estudos que tratam da história da literatura infantil brasileira, realizados por Cadermatori
(2010), Arroyo (2011) e Paiva e Soares (2008), evidenciam que escola e literatura são duas

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instituições que estiveram e permanecem em constante interação, tornando-se inseparáveis. Isso se


explica pelo fato de que, no Brasil, a gênese da literatura infantil se deu por meio da imensa e
diversificada literatura escolar, que recebeu grande influência não só de Portugal, como também de
outros países da Europa. As obras pedagógicas e literárias adotadas pelas instituições escolares se
tratavam de traduções portuguesas, alheias à realidade brasileira. Esses textos traduzidos, traziam
um acentuado espírito moralista, pois possuíam uma linguagem que expressava valores e
comportamentos que deveriam ser apropriados pelas crianças brasileiras, face a um modelo europeu
de formação. As leituras desses textos eram praticadas de forma pragmática, visando à erudição,
sem maiores preocupações em despertar nos estudantes o gosto pela leitura e de oferecer-lhes a
oportunidade de fruição do texto. O objetivo da leitura estava voltado para o acúmulo de
conhecimentos de fatos e conceitos, atendendo aos padrões sociais e educacionais vigentes à época,
numa perspectiva moralizante.
O papel da literatura era, ainda, auxiliar no ensino da língua. Tomemos como exemplo o livro
“Os Lusíadas”, do poeta português Luís Vaz de Camões, uma obra clássica que foi leitura obrigatória
de todo menino do século XIX e serviu ao ensino da língua portuguesa no Brasil. Consideravam,
naquele momento, que quanto mais difícil e rebuscado fosse o vocabulário presente nos textos lidos,
mais os estudantes se apropriariam da língua. A apropriação dos aspectos formais da língua, era,
portanto, o fim do trabalho com o texto literário.
À medida que as escolas primárias se expandiam, maior era o crescimento editorial dos livros
destinados ao público que as frequentava, o que revela que essa instituição se tornou a razão de ser
da produção de uma literatura escolar. Tal fato fez com que muitos livros fossem produzidos com
vistas a atender a propósitos didáticos. Como esclarece Arroyo,

Nem sempre será possível estabelecer-se uma separação nítida entre os livros de entretenimento puro
e os de leitura para aquisição de conhecimentos e estudo nas escolas, durante o século XIX. Percebe-se
que a literatura infantil propriamente dita partiu do livro escolar, do livro útil e funcional, de objetivo
eminentemente didático. Daí também ser difícil estabelecer-se aquela distinção (ARROYO, 2011, p.124).

Não havia clareza quanto aos critérios estéticos e pedagógicos para a seleção dos textos, de
tal modo que se conseguisse diferenciar o que era um livro de literatura e o que era um livro para
ensinar as diferentes disciplinas escolares. Desse modo, a educação era vista como um meio para
promover a formação do cidadão e a literatura era o instrumento utilizado para difundir valores e
comportamentos e promover o ensino da gramática da língua. Conforme adverte Paiva (2008), em vez
de o texto literário ser utilizado para ampliar o universo cultural das crianças, para promover a
sensibilização estética, buscava-se conformá-lo aos processos de escolarização, acreditando que
através da literatura seria garantida uma aprendizagem mais prazerosa. Tudo isso porque o caráter
formador da literatura esteve vinculado, já na sua origem, a objetivos pedagógicos estritos, o que
levou a “uma tensão entre o saber da obra literária (que diz ‘apresento o mundo assim’) e o ideal da
pedagogia (que diz ‘o mundo deveria ser assim’)” (CADERMATORI, 2010, p.24). Não sendo solucionada

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1156

essa tensão, tornou-se necessário que educadores se colocassem em posição de defesa do estatuto
literário das obras de literatura infantil que circulavam nas escolas.
Os estudos de Arroyo e de Cadermatori aqui citados consideram que ao longo do processo de
constituição da literatura infantil brasileira, o reivindicado reconhecimento e a necessária valorização
do caráter literário das obras voltadas para o público infantil se materializaram na publicação, em
1921, do livro “Narizinho Arrebitado” de Monteiro Lobato. A despeito de muitas de suas publicações
estarem pautadas no currículo escolar da época, a linguagem de suas obras se aproxima da criança,
estimula a imaginação, a criatividade e conclama o leitor a participar de seu universo ficcional. A
visão moralista presente na produção literária é dissolvida, pois outros valores ganham espaço como
a esperteza, a inteligência, a liberdade.
No momento atual, a literatura infantil vem conquistando cada vez mais espaço e alcançando
uma produção editorial que busca despertar, por meio das obras, o imaginário, a fantasia, a
criatividade, o lúdico, o poético, provocando grande interesse das crianças. Contudo, ainda merece
atenção a apreciação estética desse objeto artístico no contexto das práticas escolares de leitura.
Quando a literatura infantil entra na escola, ganha uma conotação diferenciada, uma vez que se trata
da realização de uma prática cultural, a leitura literária, que pode ser realizada em diferentes
contextos da vida social como a escola.
A literatura, como já abordado, promove uma experiência estética. Porém tal experiência,
quando se dá no contexto escolar, ganha contornos específicos. Esses contornos podem ser mais ou
menos propícios a uma apropriação adequada de abordagem da dimensão estética do texto literário. É
o que Soares (2006) chama de “adequada escolarização do texto literário”, pois ler literatura exige o
desenvolvimento de determinadas habilidades que levem o leitor a ler literariamente, compreender e
apreciar um texto literário.
Nessa direção, vale considerar não só o texto literário, mas também toda a diversidade de
usos sociais da leitura e da escrita presentes na contemporaneidade, que exigem novas formas de
ensinar e aprender a ler e escrever a serem incorporadas às práticas pedagógicas. As práticas
sociais de leitura e escrita dão visibilidade ao fenômeno presente na área da educação, denominado
letramento, que corresponde ao que “as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita, em
um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e
práticas sociais” (SOARES, 2000, p. 72).
O uso do termo letramento explicita a complexidade de processos sociais e discursivos
envolvidos nas práticas de leitura e escrita. A vida social exige que os sujeitos se envolvam em
diferentes práticas de leitura e de escrita, e isso faz com que diversos letramentos sejam
desenvolvidos, dentre eles, o letramento literário. Se tomado numa dimensão estreita, esse conceito
pode representar uma distorção do que é próprio à literatura. A especificidade da interação do leitor
com o texto literário faz com que seja necessário distinguir o letramento funcional do letramento
literário. O letramento funcional diz respeito às práticas cotidianas de leitura e escrita de textos
expositivos e instrucionais, enquanto o letramento literário envolve textos como poemas, contos,

NARRATIVAS
1157

romances, entre outros gêneros que são apresentados em suportes diferentes (PAULINO, 2004).
Como o letramento literário está inserido num contexto mais amplo de letramento e possui, enquanto
prática cultural, um modo específico de se desenvolver na sociedade, torna-se necessário considerar
as especificidades da leitura literária no tratamento dado a ela pela escola. Assim sendo, Soares
assinala alguns objetivos específicos da leitura do texto literário, considerando as implicações que lhe
são próprias:

Os objetivos de leitura e estudo de um texto literário são específicos a este tipo de texto, devem
privilegiar aqueles conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias à formação de um bom leitor de
literatura: análise do gênero do texto, dos recursos de expressão e de recriação da realidade, das
figuras autor-narrador, personagem, ponto de vista (no caso da narrativa), a interpretação de
analogias, comparações, metáforas, identificação de recursos estilísticos, poéticos, enfim, o estudo
daquilo que é textual e que é literário (SOARES, 2006, p.43).

Tomar conhecimento das práticas de leitura literária realizadas fora do contexto escolar
pelos alunos, da sua história de leitor, antes e após o seu ingresso na escola, reforça as motivações
para que o desenvolvimento do letramento literário, no âmbito escolar, propicie a tão desejada e
necessária experiência estética, que ultrapassa os usos mais pragmáticos da leitura e da escrita.
Desse modo, essa experiência pode ser vista numa perspectiva social e cultural mais ampla, de seus
interesses e dos sentidos que produzem para essas vivências. Assim, a experiência com narrativas
literárias parte das vivências cotidianas dos alunos, passa pela escola e outras instâncias sociais
para, em seguida, retornar à vida cotidiana e assim realizar efetivamente o letramento literário.
Estando o letramento literário em interface com as outras formas de letramento, isso faz com
que a experiência com a leitura literária ganhe outras dimensões no contexto escolar e fora dele, pois
para formar um leitor literário é importante considerar que tal formação

[...] significa a formação de um leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e
significações verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor
tem de saber usar estratégias de leitura adequadas aos textos literários, aceitando o pacto ficcional
proposto, com reconhecimento de marcas lingüísticas de subjetividade, intertextualidade,
interdiscursividade, recuperando a criação de linguagem realizada, em aspectos fonológicos, sintáticos,
semânticos e situando adequadamente o texto em seu momento histórico de produção (PAULINO, 2004,
p. 56).

Para além de ser uma forma diferenciada de uso da linguagem, o letramento literário é,
assim, uma instância fundamental de qualquer processo de letramento, pois é por meio dele que
construímos o nosso ser, na escrita, que nos apropriamos da literatura como linguagem e, por meio
dela, somos capazes de compreender melhor a nós mesmos e aos outros. Se o letramento literário é
tão importante para a inserção no mundo da linguagem, ele não pode deixar de estar na escola e, uma
vez estando, precisa ser escolarizado adequadamente. De acordo com Cosson (2014), o letramento
literário não pode deixar de fazer parte do processo de letramento, em geral, empreendido pela

NARRATIVAS
1158

escola, mas é necessário manter os seus princípios para que funcione como tal. Princípios esses que
são, comumente, ameaçados, não só pela organização da escola, com seus tempos e estruturas
curriculares lineares, como também pela tradição de escolarização da literatura que se conformou a
essa organização. O letramento literário se efetiva quando acontece o relacionamento entre um
objeto material - o livro - o universo ficcional expresso por meio de gêneros literários e a construção
de uma comunidade de leitores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Face ao exposto, é necessário considerar a importância da presença da literatura na escola


em sua dimensão humanizadora de professores e estudantes. Nesse sentido, essa presença não se
reduz a apenas mais uma proposta de trabalho pedagógico, seja quando houver tempo, vontade ou
condições favoráveis. Ao contrário, se expressa em diferentes vivências que consolidam a
experiência estética com a literatura para além das salas de aula. Afinal, é preciso gostar de ler
textos literários, seja por fruição, para conhecer e brincar com as histórias, para interagir, para
alimentar a imaginação, para desenvolver a criatividade e o posicionamento crítico frente aos
acontecimentos da vida. É preciso ler para resistir ao instuído. O encantamento pelas histórias
desperta também uma atitude e uma relação reflexiva e afetiva entre leitor e livros.
Relacionar a filosofia da linguagem de Bakhtin e de seu Círculo à experiência de formação do
leitor na escola com a linguagem literária e aos estudos sobre a literatura infantil, evidencia um
grande caminho a ser percorrido para que se promova, efetivamente, a formação do leitor na
perspectiva do letramento literário, através da qual venha a ser superado o didatismo da literatura,
de tal modo que a literariedade dos textos que compõem esse gênero seja considerada.
É importante destacar que os estudos literários desenvolvidos por Bakhtin sinalizam
mudanças importantes no modo de conceber a linguagem literária e o papel da literatura. De acordo
com sua filosofia da linguagem, a literatura é uma fonte primordial de humanização e sensibilização,
que precisa estar voltada para a formação do sujeito leitor, mais pelo viés estético do que o
pedagógico.
Desse modo, no lugar do discurso monológico, marca da pedagogização da literatura, desde a
sua chegada à escola até os nossos dias, haverá de ser considerada a dimensão dialógica da
linguagem. Ao se criar um espaço de diálogo entre textos, leitores, autores, nas práticas de leitura
literária na escola, o aluno terá a possibilidade de ler e refletir sobre o lido, de atribuir sentidos aos
variados textos literários escritos e orais a que terá acesso, de se posicionar e compartilhar modos
de compreender a vida, o mundo, a existência, a identidade, a relação com o outro. Ensinar a ler,
desse modo, é exercício de resistência e libertação.

NARRATIVAS
1159

REFERÊNCIAS

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sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005.

NARRATIVAS
RESUMO
1160

ANÁLISE DIALÓGICA DO Palavras-Chave:

DISCURSO: conceitos basilares

SERRATTO, Maria Regina Franke


BERBERIAN, Ana Paula

A
Análise Dialógica do Discurso (ADD) delineada a partir dos
pressupostos do Círculo de Bakhtin298 nos permite a análise de
enunciados produzidos por participantes de uma pesquisa em
diálogo com o pesquisador.
Neste sentido, ressaltamos de saída que o pesquisador, a
partir da posição ontológica assumida, compromete-se com um
determinado aporte teórico, o qual, por sua vez, está atrelado a
visões de homem e de sociedade que direcionam toda a orientação metodológica e conceitual adotada
no desenvolvimento da pesquisa (FREITAS; SOUZA; KRAMER, 2007).
Para a explicitação das visões de “homem e de mundo” que subsidiam ontológica e
metodologicamente a análise do discurso na perspectiva dialógica, recorremos às colocações de Brait
(2006) pois comprometida com a sistematização de princípios teóricos e analíticos próprios à ADD, a
autora adverte para o fato de que:

[...] sem querer (e sem poder) estabelecer uma definição fechada do que seria essa análise/teoria
dialógica do discurso, uma vez que esse fechamento significaria uma contradição em relação aos
termos que a postulam, é possível explicitar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel
relação existente entre a língua, linguagens, história e sujeitos que instaura os estudos da linguagem
como lugares de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável, e não apenas como
procedimento submetido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas, Mais ainda,
esse embasamento constitutivo diz respeito a uma concepção de linguagem, de construção e produção
de sentidos necessariamente apoiadas nas relações discursivas empreendidas por sujeitos
historicamente situados (BRAIT, 2006, p. 10).

298
O Chamado Círculo de Bakhtin foi constituído por um grupo de intelectuais russos que se reuniram regularmente entre 1919 e 1929, para
debater acerca de temas como literatura, política, artes e linguagem. Dentre os participantes destacamos aqueles que mais diretamente
estavam envolvidos com questões relacionadas à linguagem, ou seja, Bakhtin, Voloshinov, Medevediev, entre outros (FARACO, 2005).

NARRATIVAS
1161

Se, de acordo com Brait (2006), a adoção da ADD para a realização de pesquisas pressupõe o
reconhecimento da impossibilidade da definição e/ou descrição de uma metodologia “fechada”, os
pressupostos que fundamentam tal abordagem constituem um referencial teórico capaz de sustentar
a posição analítica do pesquisador no processo de construção do conhecimento (BRAIT, 2006).
A partir de tal referencial, construído com base nos postulados formulados por Bakhtin
(2006), a ADD está assentada numa concepção social de sujeito e de linguagem, sendo que ambos são
constituídos nas relações discursivas estabelecidas entre sujeitos historicamente situados.
Alinhados a tais princípios e ao assumir a ADD para conduzir a realização de uma pesquisa,
passamos a compreender que todos os enunciados têm uma natureza eminentemente dialógica e que
os mesmos são constitutivos de um “[...] discurso concreto e único proferido em um determinado
espaço e tempo e por determinados interlocutores [...].” (ROHLING, 2014, 47).
Enfim, a partir da concepção de linguagem como constitutiva dos sujeitos, dos modos como se
organizam socialmente, como coordenam suas ações, como produzem e manifestam suas
subjetividades, como legitimam valores e explicitam posições axiológicas e ideológicas (BAKTIN,
1997/2006), o enunciado passa a ser considerado como unidade de análise.
Enquanto prática social que reflete e refrata posições singulares e coletivas, consideramos
que os enunciados produzidos pelos participantes, permitirão analisar concepções de um grupo, no
qual os participantes se encontram inseridos, acerca de um objeto específico, entendendo tais
concepções como constituídas, por posições axiológicas/valorativas.
As concepções dos participantes, objeto de análise são, desta forma, compreendidas como
posições axiológicas que se encontram enredadas nas vozes produzidas nas diferentes esferas
sociais, individual e coletivamente.
Partimos do pressuposto de que nos enunciados dos participantes, concepções acerca de um
determinado objeto emergem como produção intersubjetiva e dialógica, complexa e heterogênea, por
consequência da multiplicidade de vozes e posições ideológicas que as constituem.
Ressaltamos que as produções enunciativas-discursivas dos participantes revelam posições
axiológicas constituídas e assumidas nas diferentes esferas da vida e, portanto, nas relações que
estabelecem na sua prática profissional.
Evidenciando o fato de que um constructo axiológico é materializado nos discursos dos
sujeitos, Faraco (2003), de acordo com o Círculo de Bakhtin, afirma que nas relações dialógicas são
estabelecidas:

[...] relações entre índices sociais de valor [...], parte inerente de todo enunciado, entendido este não
como unidade da língua, mas como unidade da interação social; não como um complexo de relações
entre palavras, mas como um complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas. (FARACO,
2003, p. 64).

A citação acima, assentada em princípios formulados por Bakhtin (1997/2006), além de


reiterar a noção de que as pessoas são seres sociais, circunscritos num tempo e num espaço

NARRATIVAS
1162

determinado, permitem compreender que as concepções enunciadas pelos participantes, não estão
restritas à interação estabelecida entre eles e o pesquisador, mas em diálogo com diferentes vozes
sociais e posições ideológicas.
Acerca da orientação dialógica e da dimensão axiológica envolvidas com os enunciados, objeto
de análise, cabe recorrer, novamente, às palavras de Faraco (2005):

Nesse sentido, é interessante lembrar que aquilo que Bakhtin chama de relações dialógicas não remete
ao diálogo face a face (como muitos acreditam), mas à dinâmica de múltiplas inter-relações responsivas
entre posições socioavaliativas. Na interação vista pelo olhar bakhtiniano, não se trocam mensagens,
mas se dialogizam axiologias (FARACO, 2005, p. 219, grifos do autor).

Sendo assim, nossos enunciados estão repletos das falas/das vozes dos outros, as quais são
assimilados ou empregados, de forma consciente ou não-consciente, como reflexo da estrutura social
em que vivemos (BAKHTIN, 2006).
Dessa idéia, decorre a noção de que todo discurso presente nas diferentes esferas humanas
nunca é totalmente inédito, pois traz ecos de outros discursos, ou seja, discursos de outrem,
reorganizados dialogicamente nas falas dos sujeitos (GEGE, 2013).
Partindo do entendimento de que os discursos/enunciados tanto refletem como refratam uma
realidade que lhes é exterior, outro ponto a ser considerado é que os mesmos nos permitem
apreender, dialeticamente, a inter-relação entre o singular/particular e a totalidade, o individual e o
social, bem como, entre as dimensões, sincrônica e diacrônica, que os constituem como eventos
únicos e históricos.
A partir dessas noções, podemos inferir que as concepções dos participantes de uma
pesquisa, interpretadas a partir dos enunciados produzidos, revelam diferentes posições ideológicas
acerca de um objeto e que tais posições, configuradas discursivamente, participam do julgamento e
da tomada de posição dos mesmos durante a relação dialógica estabelecida com o pesquisador.
A colocação de Freitas (1994), a partir dos preceitos formulados por Bakhtin (1997/2006),
conforme abaixo transcrita, reitera a importância da análise do discurso no contexto da pesquisa
qualitativa, uma vez que é a linguagem e, portanto, a interação verbal que orienta e materializa a
atividade mental, o conhecimento, a consciência e, portanto, a posição axiológica dos sujeitos:

[...] o centro organizador e formador da atividade mental não está no interior do sujeito, mas fora dele,
na própria interação verbal. Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas é a expressão que
organiza a atividade mental, modelando e determinando a sua orientação. A atividade mental do sujeito,
da mesma forma que sua expressão exterior, se constitui a partir do território social. Assim, a situação
e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais de enunciação. Os estratos
mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões sociais substanciais e duráveis a
que está submetido o locutor (FREITAS, 1994, p. 138).

Como Freitas (1994) e Brait (2006), Pan (2003), também comprometida com a construção de
parâmetros para a ADD, que estejam assentados em princípios formulados por Bakthin (1997/2006),

NARRATIVAS
1163

enfatiza que a “[...] busca dos sentidos, deve se dar sobre o efetivamente produzido por meio da
linguagem, levando-se em conta a história da existência dos enunciados [...]”. (SOUZA, 2011, p. 112) e
que, portanto, cabe ao analista do discurso:

[...] problematizar os enunciados concretos em sua historicidade, descrevendo e analisando os fatores


que permitiram que esses enunciados se inter-relacionassem, se negassem, se excluíssem, se
substituíssem, para construir sentidos que são móveis, já que são possibilitados por um feixe de
enunciados (SOUZA, 2011, p. 112).

Com base nas formulações de Bakhtin (1997/2006) é necessário, ainda, considerar que o
enunciado/discurso, fruto de “inter-relações dinâmicas” e, enquanto, “réplica do diálogo social” é,
também, ideológico (BAKHTIN, 2006). Conforme explicita Faraco (2003), para Bakhtin (2006), a
natureza ideológica do enunciado comporta dois sentidos:

[...] qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no interior de uma das áreas da
atividade intelectual humana) e expressa sempre uma posição avaliativa (i.e., não há enunciado neutro; a
própria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica (FARACO, 2003, p. 46-47).

A dimensão axiológica diz respeito a nossa singularidade que somente existe em função do
outro. Dessa forma, assumimos uma posição a partir da qual “[...] a produção de conhecimento
acontece dialogicamente e inclui a dimensão alteritária dos sujeitos envolvidos [...]”. (JOBIM E SOUZA,
2007, p.92).
Corroborando com o fato de que “[...] a interlocução entre o pesquisador e o seu outro ganha
uma especificidade que precisa ser caracterizada [...]” (JOBIM E SOUZA, PORTO E ALBUQUERQUE,
2012), temos, ainda no que se refere às dimensões de um diálogo Di Fanti (2003), a qual afirma que:

[...] do ponto de vista dialógico, não é possível qualquer espécie de dicotomização, pois nada existe
isoladamente, isto é, uma dimensão tem vida a partir da interdependência à outra. Assim, acontece
entre o verbal e o social, o social e o ideológico. São dimensões que existem imbricadamente no
enunciado, não se limitando à dimensão “interior” e “exterior” ao discurso, e podem ser apreendidas na
observação das situações concretas desde que não nos limitemos a analisar somente o verbal, mas sim
o verbal na relação com o extraverbal, como constitutivos da linguagem, do enunciado, do discurso (DI
FANTI, 2003, p.109).

A partir de tal enunciado, entendemos que nos textos produzidos pelos participantes, bem
como na análise dos mesmos não há neutralidade, ambos estão impregnados pela valoração, portanto,
por uma dada ideologia.
Nesta direção, nossa intenção é abordar o enunciado, a valoração e a ideologia como
dimensões indissociáveis. A ideologia, entendida como o universo de interpretações passíveis de
serem realizadas acerca de uma realidade social, está materializada por meio da linguagem, do
discurso, do enunciado e pressupõe uma tomada de posição.

NARRATIVAS
1164

O imbricamento e a indissociabilidade das referidas dimensões, pressupõe que o enunciado


seja analisado enquanto uma unidade concreta e discursiva que se torna conclusivo quando determina
a resposta do outro, o que se constitui num ato de valoração sobre o enunciado do outro, já que
responder ao outro é posicionar-se axiologicamente face ao enunciado do outro (BAKHTIN, 2003).
Reiterando o princípio de que a expressividade de um enunciado e a valoração estão
intimamente relacionadas, cabe recorrermos à colocação de Pereira e Rodrigues (2014), ao
afirmarem que o enunciado expressivo “[...] é uma das marcas da posição valorativa dos
participantes da comunicação discursiva face ao tema do enunciado e a eles próprios [...]”. (PEREIRA,
RODRIGUES, 2014, p. 183).
Segundo Bakhtin (2003), “[...] nos diferentes campos da comunicação discursiva, o elemento
expressivo tem significado vário e grau vário de força, mas ele existe em toda parte: um enunciado
absolutamente neutro é impossível [...]”. (BAKHTIN, 2003, p. 289).
Neste sentido, podemos compreender que os enunciados produzidos pelos participantes são
reveladores das concepções que os mesmos assumem acerca da temática abordada em um estudo e,
portanto, da “[...] relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e
do sentido do seu enunciado [...]”. (BAKHTIN, 2003, p. 290).
A partir da explicitação de alguns dos conceitos reconhecidos como basilares da ADD,
conforme sistematizações formuladas por Brait (2006), Freitas (1994), Jobim e Souza (2007), Pan
(2003) e Rohling (2014), optamos por elencar aqueles que, especialmente, orientam a interpretação
dos enunciados produzidos pelos participantes de um estudo:
Não há categorias a priori a serem aplicadas, uma vez que as mesmas emergem das relativas
regularidades dos dados. Assim, é a partir do discurso concreto, produzido no processo da pesquisa,
que surgirão as categorias;
A articulação entre o único, o particular e a totalidade, é o trabalho do pesquisador que
compreende que todo enunciado é produzido em um determinado tempo e espaço social, enfim, a
partir de extratos sociais amplos;
A análise do pesquisador não é neutra, pois ele, assim como os participantes, é constituído
por um horizonte valorativo a partir do qual dialogará com e interpretará os discursos produzidos.
Neste sentido, o pesquisador, a fim de perceber os possíveis pontos de inserção entre os diversos
enunciados, buscando seus endereçamentos, deverá manter uma posição exotópica frente aos
enunciados produzidos. Tal posição pressupõe um movimento dinâmico de aproximações para
conhecê-los e de distanciamento para conhecer e analisar tais enunciados;
Cabe ao pesquisador ocupar um lugar ético-responsivo no ato de fazer pesquisa, o qual
pressupõe que ele não se cale, nem tampouco silencie os participantes implicados.
Concluindo, como ressaltamos anteriormente, por meio da ADD, os enunciados dos
participantes de uma pesquisa revelam posições axiológicas constituídas e assumidas por eles nos
diferentes momentos da vida e, portanto, nas relações que estabelecem na sua prática profissional.

NARRATIVAS
1165

Desta forma, o grande desafio a ser enfrentado no contexto do objeto pesquisado é confrontarmos um
problema filosófico e de valores.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Para Uma Filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al.
São Paulo: Hucitec, 2010.
BRAIT, Beth (org). Bakhtin – outros conceitos chaves. São Paulo: Editora Contexto, 2006.
DI FANTI, Maria da Glória Corrêa. A linguagem em Bakhtin: pontos e pespontos. VEREDAS – Rev. Est. Ling, Juiz de Fora,
v. 7, n. 1, p. 95-111, Jan/Dez. 2003.
FARACO, Carlos Alberto Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições,
2003.
FARACO, Carlos Alberto. A interação e linguagem: balanço e perspectivas. Caleidoscópio, v. 3, n. 3, p. 214-221, set./dez.
2005.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vygostky e Bakhtin. Psicologia e educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 1994.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. O pensamento de Vygotsky e Bakhtin no Brasil. 2ª ed. Campinas, SP: Papirus
Editora, 1994.
FREITAS, Maria Tereza de Assunção. Bakhtin e a Psicologia. In: FARACO, Carlos Alberto. et al. Diálogos com Bakhtin.
Curitiba: Editora da UFPR, 1996, p. 165-187.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. A abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa qualitativa. Cadernos
de Pesquisa. n. 116, p. 21-39, julho/2002.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção; SOUZA, Solange Jobim e; KRAMER, Sonia. (Orgs.). Ciências humanas e pesquisa:
leitura de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2007, v. 107.
GEGe – UFSCAR Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2013, p.33.
JOBIM E SOUZA, Solange. Dialogismo e Alteridade na utilização da imagem técnica em pesquisa acadêmica: questões
éticas e metodológicas. In: FREITAS, Maria Teresa de Assunção; JOBIM E SOUZA, Solange; KRAMER, Sonia (Orgs)
Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez Editora, 2007. 77-94 p.
JOBIM E SOUZA, Solange; PORTO E ALBUQUERQUE, Elaine Deccache. A pesquisa em ciências humanas: uma leitura
bakhtiniana. Bakhtiniana, São Paulo, 7(2): 109-122, Jul/Dez. 2012.
PAN, Mirian Aparecida Graciano de Souza. Infância, discurso e subjetividade: uma discussão interdisciplinar para
uma nova compreensão dos problemas escolares. Tese de Doutorado, Departamento de Estudos Linguísticos,
Universidade Federal do Paraná, 2003, 332 f.
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inter-relação entre ideologia e linguagem. Linguagem em (Dis)curso – LemD. Tubarão, Santa Catarina, v. 14, n. 1, p.
177-194, jan/abr. 2014.

NARRATIVAS
1166

ROCHA, Décio; DAHER, Maria Dal Carmen; SANT’ANNA, Vera Lúcia de Albuquerque. A entrevista em situação de pesquisa
acadêmica: reflexões numa perspectiva discursiva. Polifonia – Estudos Linguísticos, v. 8, n. 8, 2004.
ROHLING, Nívea. A Pesquisa Qualitativa e Análise Dialógica do Discurso: Caminhos Possíveis. Cadernos de Linguagem e
Sociedade, 15(2), 2014.
SOUSA, Kátia Menezes de. Análise do Discurso: para além das vertentes sociológica e formalista da Linguística. In:
BARONAS, Roberto Leiser; MIOTELLO, Valdemir (Org) Análise de Discursos: Teorizações e Métodos. São Carlos: Pedro e
João Editores, 2011.

NARRATIVAS
RESUMO
1167
O presente artigo tem por finalidade apontar a
relação de alteridade que os indivíduos (crianças)

A CRIANÇA E A ESCOLA constituem dentro do ambiente escolar. A


consolidação social que acontece através da
interação com o outro e as transformações através

NUMA RELAÇÃO DE
do outro. Para a construção desse artigo dialoga-se
com Bakhtin e Vygotsky evidenciando a Educação
Infantil, o lócus e esse período da infância como um
amplo recurso para pesquisa.

ALTERIDADE Palavras-Chave: Alteridade. Interação.


Transformação. Construção. Ambiente Escolar.
Infância

SILVA, Eliana Rodrigues Medeiros da299

A
criança não está no espaço, não está no território, não está no lugar, nem na paisagem; ela é o
espaço, ela é o território, ela é o lugar, é a paisagem e, por serem produtoras de culturas e
geografias, enriquecem nossa condição humana. (Lopes, 2007).

O QUE É ALTERIDADE?

Fonte: acervo do Colégio de Aplicação de Resende

299
Orientadora Educacional do Colégio de Aplicação de Resende. E-mail: eliana-rodriguess@hotmail.com

NARRATIVAS
1168

O
que é alteridade? Em: Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções
de Bakhtin. Caderno produzido pelo Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe), 2009.
Alteridade:

Para Bakhtin, é na relação com a alteridade que os indivíduos se constituem. O ser se reflete no outro,
refrata-se. A partir do momento em que o indivíduo se constitui, ele também se altera, constantemente.
E este processo [...] é algo que se consolida socialmente, através das interações, das palavras, dos
signos. [...] Em “estética da criação verbal”, Bakhtin afirma que “é impossível alguém defender sua
posição sem correlacioná-la a outras posições”, o que nos faz refletir sobre o processo de construção
da identidade do sujeito, cujos pensamentos, opiniões, visões de mundo, consciência etc. se constituem e
se elaboram a partir de relações dialógicas e valorativas com outros sujeitos, opiniões e dizeres. A
alteridade é fundamento da identidade. Relação é a palavra-chave na proposta de Bakhtin. Eu apenas
existo a partir do Outro.

Partindo do princípio de que nenhum ser passa ileso por um grupo social ou que toda a
transformação e desenvolvimento acontecem através das linguagens e o processo de formação é
acompanhado pela compreensão e interpretação das muitas vozes, as crianças em formação da
identidade têm a alteridade como alicerce desse processo. Sem o outro a concepção do “EU” torna-se
impossível.
Bakhtin (2011) afirma que:

Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência
pela boca dos outros... com a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu
tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade
para a formação da primeira noção de mim mesmo.

Para Bakhtin a construção da identidade se constitui a partir das relações dialógicas com
diferentes sujeitos e a formação do “EU” se dá através do outro.
Diante dessa perspectiva trago a Escola como lócus do campo de pesquisa para compreender
como essas relações acontecem dentro do tempo e espaço que são indissociáveis e estão
entrelaçados com a vida desses indivíduos. A escola é um cronotopo em constante transformação,
onde a polifonia é um conjunto de vozes heterogêneas carregadas de significados essenciais para a
interação e construção da criança. Compreendo a Escola como lugar de grande importância na vida e
formação dos pequenos, eles chegam carregados de curiosidades e surgem com seus valores sociais
e sua cultura familiar. São locutores de sua história. E é importante que esse protagonismo e essas
vozes sejam respeitados numa relação locutor/interlocutor como elo na constituição e aprendizagem
do sujeito. Assim como nos mostra Loris Malaguzzi (professor italiano, propulsor na construção de
uma escola nova e da abordagem Reggio Emilia, para a primeira infância, na Itália): A criança é feita
de cem... mas roubaram-lhe noventa e nove.
Ao contrário, as cem existem.
A criança
É feita de cem.

NARRATIVAS
1169

A criança tem
Cem mãos
Cem pensamentos
Cem modos de pensar
De jogar e de falar.
Cem sempre cem
Modos de escutar
As maravilhas de amar.
Cem alegrias
Para cantar e compreender.
Cem mundos
Para descobrir.
Cem mundos
Para inventar.
Cem mundos
Para sonhar
A criança tem
Cem linguagens
(e depois cem cem cem)
Mas roubaram-lhe noventa e nove.
A escola e a cultura
Lhe separam a cabeça do corpo.
Dizem-lhe:
De pensar sem as mãos
De fazer sem a cabeça
De escutar e de não falar
De compreender sem alegrias
De amar e maravilhar-se
Só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe:
De descobrir o mundo que já existe
E de cem
Roubaram-lhe noventa e nove.
Dizem-lhe:
Que o jogo e o trabalho
A realidade e a fantasia
A ciência e a imaginação
O céu e a terra
A razão e o sonho
São coisas
Que não estão juntas.
Dizem-lhe:
Que as cem não existem
A criança diz:
Ao contrário, as cem existem.

A constituição do sujeito se dá através da valorização das suas relações, seu potencial


intelectual, emocional, social e moral. As relações de qualidade são desenvolvidas através dos

NARRATIVAS
1170

diálogos e da formação coletiva, na qual, alunos, famílias, comunidade e professores integram o


trabalho, o ambiente escolar e a cultura organizacional da escola. Descontruir a relação hierárquica –
a criança é aquela que é sempre vista de cima – reconhecer, considerar, prestigiar, admirar e
apreciar as culturas da infância, suas especificidades e peculiaridades, compreender as diferentes
linguagens, seu tempo e espaço, sua constituição enquanto sujeito e sua apropriação de identidade
como indivíduo singular na construção do caminho que concerne no êxito da consolidação de sua
identidade é essencial. A aprendizagem acontece através de diferentes linguagens, pode ser
resultante da interação, observação, da experiência, da pesquisa e do raciocínio em diferentes
escalas de complexidade e consciência. Bakhtin em MOTTA (2013, p. 65) entende que a linguagem é
social; ela é necessária para a existência humana. Não é a experiência que organiza a expressão; a
expressão precede e organiza a experiência, dando-lhe forma e sentido.
A escola concebida pela democracia e autonomia, rejeita o autoritarismo e se contrapõe as
ideias e doutrinas sistematizadas de uma massa homogênea que ainda banaliza e carrega a premissa
de que a educação infantil não tem importância, de que as crianças pequenas não ocupam lugar
significativo na sociedade e que o espaço escolar existe para a criança e pela criança.
Não há, portanto, como negar a importância das relações interpessoais ou ignorar o indivíduo
e sua visão de mundo, como percebe e compreende o outro, como se comporta em relação ao
diferente, a pluralidade. Dentro da escola a relação eu/outro é maximizada e dialogam com a
adversidade do ambiente por atributos culturais inter-relacionados com uma visão histórica de
espaço e tempo. Nessa perspectiva é inadequado a criança ser controlada, privada, sob o olhar do
adulto cerceador que castiga e imputa seus direitos com o discurso ditador que compreende o
pequenino como ser incompleto. Essa imagem da criança precisa ser desconstruida e a criança
compreendida como ser em potencial no que tange suas experiências e vivências dentro do contexto
social contemporâneo. A criança não chega à escola como uma tábua rasa, sua carga história tem
impacto direto na construção de suas relações e aprendizagem, o que resulta numa relação mais
intensa de alteridade entre os interlocutores envolvidos.
Dialogando com Ana Clara de 4 anos da turma do jardim II, surgiram as seguintes indagações:
Quem é você? Ela de pronto respondeu: Ana Clara ué, você não sabe? Você já me conhece. Eu tenho 4
aninhos, sou moreninha e meu cabelo é enroladinho. E o que é a escola? Segundo ela é o lugar que têm
amiguinhos, brinquedos, parquinho, sala, mesa e diretoria. Perguntei diretoria? Ela respondeu: é
diretoria onde ficam as crianças que desobedecem e fazem feiúras e eu já fui para a diretoria, lá é a
sala da tia Camila. Perguntei por quê? E ela respondeu que foi porque fez feiúra, mas só quando era
novinha e que o Pedro Paulo faz feiúra até hoje. Sarmento (2005) aponta:

A criança, cada criança, ocupa o lugar que os adultos prescrevem que a sociedade lhes reserva e que a
administração simbólica lhes indica, mas fá-lo sempre a partir desse lugar irredutível e distinto que é o
da sua cultura, conjugada e construída continuamente na interacção com os outros e com os adultos.

NARRATIVAS
1171

A escola é um lugar de muitas descobertas, é um espaço onde se articulam o saber/fazer, as


relações e as práticas educativas na formação integral do educando. Nesse contexto educativo os
debates coletivos com princípios éticos, políticos e estéticos são indispensáveis para uma mudança de
paradigma, atrelando a atitude responsiva ao dialogo ininterrupto e a verbalização no que implica no
processo de interação e constituição do sujeito. Vygotsky (1991, p.208) nos fala, “para compreender a
fala de outrem não basta entender as suas palavras – temos de compreender o seu pensamento. Mas
nem mesmo isso é suficiente – temos que compreender a sua motivação”.
A instituição escolar que tem como finalidade contribuir de forma significativa para a
formação integral do indivíduo, também assume o papel de ampliar a capacidade de reflexão,
criticidade e interação do sujeito para que tenha condições de atuar na sociedade e assim, colaborar
para sua transformação. Além disso, todo o movimento tecnológico e informativo de hoje pedem uma
escola dinâmica, com aporte teórico que dialogue com uma prática significativa, o que exige uma
mudança paradigmática sobre o processo ensino-aprendizagem no ambiente. Romper com o
tradicionalismo ainda enraizado na formação dos docentes da educação infantil e nos confrontarmos
com a necessidade de ultrapassar essa barreira, buscando uma maior interação, conhecimento e
experiências, é essencial para uma nova perspectiva responsiva e de alteridade.
Rinaldi (2012) afirma que:

A definição da identidade profissional do professor, então, não é vista em termos abstratos, mas em
contextos, em relação aos colegas, aos pais e, acima de tudo, às crianças, mas também em relação à
sua própria identidade e à sua formação pessoal e educacional, além da sua experiência.

Dentro de uma perspectiva histórica as crianças nunca foram vistas como seres detentores
de saberes e de conhecimentos prévios e isso hoje é desmistificado. A criança desde sua tenra idade
precisa ter voz, ter direito à sua autoria, as interações e de desenvolver sua autônoma, o professor
deve ser o mediador e não o detentor do saber. Em uma sociedade contemporânea a criança precisa
ser vista como parte do processo e não um ser oculto dentro de sua própria construção de vida.
Partimos dos princípios: interagir, ouvir, investigar e pesquisar.
Podemos vislumbrar novos olhares com foco na educação infantil, movimentos e ações que
buscam romper com o tradicionalismo e consideram as vivências das crianças em seus primeiros
anos de vida escolar como essenciais para a construção de um mundo cheio de possibilidades dentro
do processo educacional. Reconhecemos o valor desses pequenos que transitam e interagem a todo o
momento em diferentes grupos sociais e são produtores de cultura e que fazem sua leitura de mundo
através de suas experiências, potencializando seus direitos e deveres e evidenciando a aprendizagem.
O direito de interagir com o outro potencializa o encontro com os pares, o encontro de diferentes
gerações e histórias, dando significado e sentido as relações constituídas ao longo da vida e
configuram os diferentes grupos sociais. Podemos propiciar dentro dos ambientes escolares novas
possibilidades, novos olhares e que os educadores possam ampliar o diálogo sobre suas práticas e
relações, trabalhando de forma dinâmica o desdobramento das atividades cotidianas.

NARRATIVAS
1172

Enfim, penso que muitas inquietações são provocadas, pelo que nos diz AMORIM, (2011) “A
alteridade do “outro - criança”, com suas diferenças naturais e também sociais e culturais se
confrontaram com o mundo do adulto”. Não podemos tornar iguais os diferentes, não podemos
ignorar que a criança deixou de ser objeto para se tornar parte integrante e ativa da pesquisa, da sua
formação, da construção de sua identidade, tendo liberdade à emancipação e a compreender sua
existência a partir do outro e com o outro dentro de uma sociedade que seja justa e igualitária.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakthin nas ciências humanas. São Paulo: Musa, 2001.
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VYGOTSKY, L. S., A formação social da mente, 4ª edição, São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1991.

NARRATIVAS
RESUMO
1173
Este trabalho apresenta o meu processo de vivência
no mundo escolar, com o objetivo de refletir sobre

NA ARENA DA VIDA: meu a estrada percorrida no decorrer formação


acadêmico e profissional. Para conduzir a reflexão
sobre minha construção de sujeito atuante e a
caminho em verbo presença do interesse pelo ensino e aprendizagem
de língua portuguesa, tem como base os seguintes
autores: Bakhtin (2011), Rojo (2005) entre outros.
Ao partir dos referidos estudos, identifico que meu
processo escolar, a formação acadêmica, o
processo de autoria estão imbricados no professor
da educação básica.
SILVA, Francisco Leilson da
Palavras-Chave: Formação. Docência. Vida.
Registro

1. COMEÇOS

P
ensar na década de oitenta do século passado é trazer um período de ditadura militar no Brasil,
restrições a direitos e a lutas pelas eleições diretas para presidentes e outros representantes
políticos. Então, em meio à repressão do golpe militar que ocorreu de 1964 -1985, em meio à
ditadura, no ano de 1983, em um janeiro ensolarado, numa tarde clara da cidade do Natal começa a
saga de um Francisco como tantos outros de pia.
Repensar minha trajetória de vida, minhas veredas de formação acadêmica promovem um
olhar de felicidade, da mesma forma que o profeta Jeremias no livro bíblico de seus lamentos
proclamou: “Quero trazer à memória aquilo que pode me dar esperança” (Lamentações 3, 21). Sendo
assim, refazer minha trilha de vida é trazer uma história de resgate do meu eu para que não possa me
roubar de mim. Como afirma D’Ávila (1995), a alma nessas moradas está iniciando a vida, e, a partir
disso, começa a preparação para o grande encontro.

2. SILÊNCIO: o útero docente

O filho de uma professora sabe como é complicado conviver em um ambiente em que sua mãe
é uma autoridade, aquela que está no lugar de quem sabe e definida como tia, logo redefine, emaranha
conhecimentos com o intuito de formar e deforma o sujeito, assim iluminando aquele denominado ser
luz, tornando-se aluno.
O espaço escolar foi e sempre será lugar de formação para mim, pois o frequentei quase
todos os nove meses em que fui gestado, pois minha mãe trabalho até quase o final da gestação. Eu
era a criança que precisava ser carregada para o ambiente de trabalho, sempre arrastando uma
lancheira vermelha, pois já tinha uma fome de fazer milhões de coisas e experimentar sabores e
saberes que não eram para sua idade, assim a palavra a mim dirigida vinha com marcas de pó de giz,
com um cheiro do álcool das provas mimeografadas.
O cenário supracitado tinha uma trilha sonora própria que ensinava aos alunos com uma
coreografia ímpar ao som das seguintes palavras: “A janelinha fecha, a janelinha abre... assim...

NARRATIVAS
1174

assim... assim... assim”. Todos remexiam com os ombros e achavam uma bobagem total aquilo, porém
obedeciam a mulher de voz forte e que tinha fama de que tudo que era menino “desarnavam” com ela.
Meus brinquedos preferidos eram papel, lápis, coleção, livros didáticos, algumas revistinhas
velhas dos primos que moravam na capital, pois vivi no interior do Rio Grande Norte boa parte da
minha vida. Tudo que era escrito vinha da minha mãe-professora ou professora-mãe, ou seja,
realidades consubstanciais em uma eterna indefinição que sempre que penso em minha progenitora,
consequentemente, vem alguma lição, alguma aprendizagem e/ou alguma orientação para vida, para o
mundo. Logo, sou definido enquanto ser de linguagem e plena palavra pela boca do outro, sendo
compreendido da seguinte forma:

Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do
mundo exterior, da boca dos outros (da mãe, etc.), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo
dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra,
a forma e o tom que servirão para a formação original da representação que terei de mim mesmo. [...]
Assim como o corpo se forma originalmente dentro do seio (do corpo) materno, a consciência do
homem desperta envolta na consciência do outro. É mais tarde que o indivíduo começa a reduzir seu eu
a palavras e a categorias neutras, a definir-se enquanto homem, independentemente da relação do eu
com o outro (BAKHTIN, 2011, p.373).

Minha identidade – enquanto sujeito – era ministrada por doses homeopáticas de muitos
fonemas, o método fônico trouxe-me para o mundo da codificação e decodificação. O processo de
alfabetização foi em casa, a cartilha “Caminho Suave” era um de meus livros preferidos, pois lá eu
fazia uma coisa que ansiava, imaginava ler. Então, a mulher de minha vida me fazia juntar sons de
letras que me trariam um universo de saberes e de compreensões. Parecia que tudo era mãe, que
tudo cheirava a laços de família:

SE AS COISAS FOSSEM MÃE

Se a lua fosse mãe, seria mãe das estrelas,


o céu seria sua casa, casa das estrelas belas.

Se a sereia fosse mãe, seria mãe dos peixinhos.


o mar seria um jardim e os barcos seus caminhos.

Se a casa fosse mãe, seria a mãe das janelas,


conversaria com a lua sobre as crianças estrela,
falaria de receitas, pastéis de vento, quindins,
emprestaria a cozinha pra lua fazer pudins!

Se a terra fosse mãe, seria a mãe das sementes,


pois mãe é tudo que abraça, acha graça e ama a gente.

Se uma fada fosse mãe, seria a mãe da alegria,


toda mãe é um pouco fada...Nossa fada mãe seria.

NARRATIVAS
1175

Se uma bruxa fosse mãe,


seria mãe gozada:
seria a mãe das vassouras, da família vassourada!

Se a chaleira fosse mãe seria a mãe da água fervida,


faria chá e remédio para as doenças da vida.

Se a mesa fosse mãe,


as filhas, sendo cadeiras,
Sentariam comportadas,
Teriam “boas maneiras”

Cada mãe é diferente: e mãe verdadeira,


[ou postiça,
mãe vovó e mãe titia, Maria Filó
[Francisca,
(escreva o nome de sua mãe, ou tia, ou quem
[lhe cria)
Gertrudes, Malvina, Alice, toda mãe é como eu disse.

Dona mamãe ralha e beija, erra, acerta arruma a mesa,


cozinha, escreve, trabalha fora,

ri, esquece, lembra e chora,


Traz remédio e sobremesa...

Tem até pai que é “tipo mãe”...


Esse, então, é uma beleza!
(ORTHOF, 2003, p.51-52)

No meu olhar só tinha mãe e escola, aprendizagem, língua/linguagem plástica que me movia
para tudo, pois amava conversar com planta, com bicho, bicho feito gente, gente feito bicho, eu falava
e brincava de ensinar. Interessante é descobrir que meus pais aprenderam a ser pais comigo, então,
já ensino desde muito dantes, desde que me tornei gente.
Quando cheguei oficialmente à escola já sabia contar, escrever e ler com proficiência. A
chamada pré-escola era um espaço que já conhecia. Estava lá para fazer o que minha mão já fazia,
“ensinar”. As professoras relatavam para minha mãe que eu não suportava as atividades, terminava a
minha e ensinava para os outros. A genética, ao que parece, foi um dos elementos para definir minha
profissão, desde a mais tenra idade ensinando. E, sempre, falei muito, a oralidade é marca de um
senhor contador de história, meu pai, aquele que veio e quebrou meu vínculo com a madre, um
contador de prosas que me promoveu um gosto pela fala, jamais imaginaria que meu objeto de estudo
estava literalmente debaixo do meu nariz.
A oralidade no ensino de língua materna ganha um papel definidor, pois a conversação está
presente e o uso é constante. No Brasil, a referência teórica sobre os estudos da oralidade que utiliza

NARRATIVAS
1176

as bases americanas da Análise da Conversação (AC) teve início na década de 80, do século XXI, com
o trabalho de Marcuschi, lançado em 1989, sendo pioneiro na análise do discurso com base americana.
A compreensão de que o texto oral tem um papel fundamental para a aprendizagem de uma
língua e a minha formação ganhará mais significado no decorrer do trabalho, logo quando relato o
encontro com meu objeto de pesquisa, o qual dediquei um longo tempo da minha vida acadêmica.
Encontrar com o estudo e a pesquisa da produção do texto oral promoveu uma legitimação do direito
à fala do menino interiorano, que a única reclamação da escola a seus pais era a “conversação”
produzida de forma demasiada.

3. NO GRAU: adestramentos, saberes, amores e rezas

Entrei no Primeiro Grau Menor, nomenclatura que perdurou até o final da década de 80 do
século passado, que era constituído por quatro séries. Na primeira e segunda séries, o gênero
discursivo mais executado por mim era o bilhete, e endereçados às professoras.
Na terceira série foi um momento crucial, talvez um dos mais complicados de minha vida
infante, uma vez que a professora regente era minha primeira professora, minha mãe que me trazia
com um zelo ético sem fim, eu era o mais comportado, o mais estudioso, as melhores notas da sala
eram minhas. Nada diferente dos outros dois anos. Ser filho da professora era algo pesado para os
dois lados, eu me sentia mais vigiado, ameaçado pela presença materna que sabia tudo, os
acontecimentos in loco, também para ela era algo pesado, pois as suas provas eram produzidas pela
madrugada, todas trancadas em algum lugar para que eu não tivesse acesso.
Todas as atividades relacionadas ao trabalho docente/materno eram realizadas de forma
discreta para que eu não tivesse acesso a nada, desde o planejamento, até as notas que só eram
reveladas em sala como todo os outros alunos. Na verdade, o susto era em Matemática, sempre tive
muita dificuldade com números, a relação com as letras sempre foi mais suave, mais leve, serena e
doce, entretanto, operações matemáticas são um martírio avermelhado... eis a prova cabal... minha
conta bancária!
Ao chegar à quarta série, a professora regente era magra, de estatura mediana, com um
nariz grande e era a dupla da minha ex-professora, jamais ex-mãe. A suposta cooperação das duas
era comentada pela comunidade como a arena dos leões, não aprendeu com uma, logo não escaparia
da outra que fazia menino ler, escrever e contar. Extremamente temidas, chegavam a ser o terror da
escola, resultando em transferências e escolhas maquinadas por pais rígidos que queriam seus filhos
com um bom nível de aprendizagem.
Um fato que aconteceu nesse ano letivo me marcou muito por muitos anos e ainda faço relato
vivo pela decepção ocorrida. Na escola, chegou um aluno novato, um paulista, que “chiava” e todos
ficavam hebetados por aquela maneira de falar diferente de todos na escola, era tanto ê, era tanto ô
que nem sabia como falar, além disso, havia a ansiedade para saber em que sala ele ficaria. O
“paulista” ficaria na sala da 4ª série, os meninos o estranharam, as meninas se derretiam, e a sala

NARRATIVAS
1177

toda tentava se adaptar aquele “corpo estranho” que causou um certo alvoroço nos sentimentos e
nos ouvidos de todos.
Em um dia do referido ano, a professora solicitou que recontássemos a parábola “Galinha dos
ovos de ouro”, utilizando as nossas palavras. A atividade supracitada foi realizada por todos, a
professora corrigiu um por um, elogiou alguns e ralhou outros, porém, quando chegou na minha
versão, ela disse que estava muito boa, entretanto, eu tinha descrito a ganância de quem matou a
galinha. Após minha correção, veio o paulista e disse que tinha sido o trabalho mais fiel ao texto.
Após alguns anos, olhar para o fato supracitado é entender que eu já tinha uma prática de
análise do discurso. Ver aquilo que estava na materialização do texto me leva a entender que a
língua\linguagem se organiza e reorganiza o entendimento sobre o mundo que o rodeia, implicando
diretamente na escola e suas formas de tratamento da linguagem para o ensino de língua materna.
O discurso emana da materialização do texto, quer seja escrito, quer seja oral, logo não o
percebemos como único, monológico, pois não existe o discurso inaugurador, sempre é realizada a
reprodução de outros discursos. Nessa organização, aquele que profere sua voz é autor pela sua
singularidade. Entendo a multiplicidade dos outros que nos formam por meio de seus discursos, assim
compreendidos:

Nossas palavras não são ‘nossas’ apenas; elas nascem, vivem e morrem na fronteira do nosso mundo e
do mundo alheio; elas são respostas explícitas ou implícitas às palavras do outro, elas só se iluminam no
poderoso pano de fundo das mil vozes que nos rodeiam (TEZZA, 1988, p. 55).

Nesse contexto de reorganização educacional da década de 80, várias questões do fracasso


escolar estavam atreladas ao ensino de Língua Portuguesa (LP), tais como: dificuldade para
alfabetizar, o uso ineficaz da língua e a dificuldade na escrita de textos, principalmente, na
organização das ideias de forma escrita, com sérias limitações no que se refere à estruturação do
texto.
Nesse processo, ser diferente naquele mundo infante cruel já tinha suas agruras, porém a
escola era uma festa, era uma alegria, afinal, a hora do recreio era o momento mais esperado e
desejado por todos.
No decênio de 90, entrei no primeiro grau maior, na adolescência, os hormônios gritando em
desespero, a cabeça em chamas pelas dúvidas de quem era. Recebi vários nomes chulos, porém eu
sabia que daquilo que me constitui do gosto pelo igual e sabia do nome do afeto, do desejo e da
proibição.
Uma das horas mais alegres da escola era a aula de Língua Portuguesa. Eu tinha acesso aos
livros que recebíamos de “Comunicação e Expressão”, os velhos conhecidos livros didáticos estavam
comigo. Nesse contexto, muitas dúvidas me assolavam, porém eu tinha me decido estudar. A disciplina
chamada Matemática me aterrorizava desde os primeiros anos da vida escolar, porém na antiga sexta
série eu tirei a nota máxima em uma prova bimestral, assunto comentado por toda a escola em

NARRATIVAS
1178

virtude da professora ser muito rígida, então apesar do meu espaço de conforto sempre está
localizado no campo das palavras eu nunca esquecerei esse dez no árido campo dos números.
Nesse período, minha mãe volta a ser minha professora, e de Língua Portuguesa. Revivi
aqueles momentos que já citei anteriormente, provas escondidas, muita ética e muito respeito, mas,
dessa vez, conseguir achar uma prova que estava muito bem escondida. Aquele artefato precioso tão
bem guardado foi descoberto, tinha uma chance de tirar outra nota máxima, ideia essa que foi
devolvida sem olhar, ao identificar que era uma prova à minha formação de caráter e ao meu amor
pela mãe-professora, que não me deixou fazer isso.
Ao observar o aspecto educacional, os ensinos de todas as disciplinas escolares do sistema
educacional receberam a orientação de um documento que serve até o momento atual como base
para os encaminhamentos dos conteúdos de todas as séries, inclusive, para o ensino de LP. Os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) fizeram com que houvesse uma reflexão sobre essa
abordagem do ensino de LP, propondo um enfoque nas concepções de gêneros discursivos. O avanço
da tecnologia contribuiu para que o trabalho com língua/linguagem ganhasse nova forma para que o
ensino de LP abrangesse os gêneros discursivos presentes na vida do educando.
Como resultado, o ensino de LP foi reorganizado, assim, como uma nova configuração do livro
didático que almeja a seguinte configuração:

[...] os livros didáticos diversificam e ampliam ainda mais a sua seleção textual, destacando-se a
presença dos textos jornalísticos: notícias, reportagens, entrevistas, propagandas. Os alunos deveriam
lê-los, analisá-los e produzi-los. A ênfase nessa variedade de texto é motivada, principalmente, pela idéia
de que os alunos precisariam ler textos mais atuais, mais próximos de sua realidade (não só
jornalísticos, mas também os literários), tanto do ponto de vista da temática quanto da linguagem
(BEZERRA, 2003, p.45).

Não tive acesso a essa organização de ensino de língua materna nesse período, pois essas
práticas, no interior do RN, demoravam a chegar e o que eu tinha como estudo do português era a
gramática tradicional, interpretação de texto com muitas limitações e produção textual quase não
acontecia.
A lacuna dessa formação escolar foi preenchida pela presença da Igreja Católica Apostólica
Romana em sua vertente pentecostal, conhecida como Renovação Carismática Católica. A vertente do
catolicismo que me atraiu para o cristianismo romano tinha como elemento a leitura. O estudo e a fala
eram estimulados para termos uma formação com intuito de se diferenciar do catolicismo popular.
O ato da escrita, nesse contexto religioso, tinha por função registrar sua relação com o
mundo espiritual. Escrever era registro do verbo que se fazia carne na minha vida, era registro do
divino que se revelava e humano que se revelava para o divino, então, fazia parte do processo de
obediência para chegar a perfeição.
A fala era exercício do projeto divino, aquela pessoa que proclamava impedia o pecado da
timidez. Naquele momento, o mundo recebia o sopro da boa nova para mudar e promover qualidade de
vida para todos os povos. Anunciar era uma prática que era aprendida por meio da observação, assim

NARRATIVAS
1179

o texto falado era repetido e imitado como forma de aprendizagem da maneira de usar na oralidade
nesse ambiente.
A leitura tornava-se um meio de abstrair a essência divina das experiências divinas dos
outros, dos santificados, daqueles que foram exemplos de vivência da fé, mesmo não sendo
incentivado na escola para leitura, a igreja me formou para ler. Nesse processo, encontrei Santa
Teresa D’ávila, a Grande, enorme em sua crença, sincera em sua escrita, defrontei-me com um poema
tão apaixonante que o guardo até hoje:

VIVO SIN VIVIR EN MÍ

Vivo sin vivir en mí,


y tan alta vida espero,
que muero porque no muero.

Vivo ya fuera de mí,


después que muero de amor;
porque vivo en el Señor,
que me quiso para sí:
cuando el corazón le di
puso en él este letrero,
que muero porque no muero.

Esta divina prisión,


del amor en que yo vivo,
ha hecho a Dios mi cautivo,
y libre mi corazón;
y causa en mí tal pasión
ver a Dios mi prisionero,
que muero porque no muero.

¡Ay, qué larga es esta vida!


¡Qué duros estos destierros,
esta cárcel, estos hierros
en que el alma está metida!
Sólo esperar la salida
me causa dolor tan fiero,
que muero porque no muero.

¡Ay, qué vida tan amarga


do no se goza el Señor!
Porque si es dulce el amor,
no lo es la esperanza larga:
quíteme Dios esta carga,
más pesada que el acero,
que muero porque no muero.

Sólo con la confianza

NARRATIVAS
1180

vivo de que he de morir,


porque muriendo el vivir
me asegura mi esperanza;
muerte do el vivir se alcanza,
no te tardes, que te espero,
que muero porque no muero.

Mira que el amor es fuerte;


vida, no me seas molesta,
mira que sólo me resta,
para ganarte perderte.
Venga ya la dulce muerte,
el morir venga ligero
que muero porque no muero.

Aquella vida de arriba,


que es la vida verdadera,
hasta que esta vida muera,
no se goza estando viva:
muerte, no me seas esquiva;
viva muriendo primero,
que muero porque no muero.

Vida, ¿qué puedo yo darle


a mi Dios que vive en mí,
si no es el perderte a ti,
para merecer ganarle?
Quiero muriendo alcanzarle,
pues tanto a mi Amado quiero,
que muero porque no muero.
(ÁVILA, 2009, p. 1356-1357)

A força dessa paixão me moveu para guardar meus desejos, minha fala que se tornou
assexuada, a verdade Teresiana me incomodava, a minha verdade destoava de tudo que almejava. Fui
sendo tolhido, a escola era campo de martírio causado, também, por uma nota baixa em Língua
Portuguesa. Nada era como antes, eu já conhecia o desrespeito e agressões.

4. TEMPOS MEDIANOS

Nesse momento, a escola não tinha mais tanto gosto, eu iria cursar uma escola técnica
agropecuária que fui aprovado entre os primeiros lugares, entretanto, não era desejo meu, era a
necessidade de ter uma escola.
O primeiro passo com a literatura foi nesse lugar, os gêneros literários começaram a
pertencer à minha vida de forma consciente. Um professor que não me apetecia, mas aquilo que ele
falava era belo, as “escolas literárias” e tudo era tão belo e formoso que parecia uma fuga de vida.

NARRATIVAS
1181

Não aguentei muito naquele espaço educacional, cheguei ao ponto que nada me satisfazia,
apenas pensava como sair daquela tortura, nem horta, nem peixe, nem nada. O internato era uma
realidade bizarra, eu o via como um freak show, ou seja, o show dos horrores, onde eu era o animal
grande, desengonçado de voz e alma destoante, que não se enquadrava na forma da normalidade e do
normativo, era o motivo de aposta para ver se minha desorganização era passageira ou um estado
permanente. O Ensino Médio (nomenclatura recém adotada) foi a época de descobrir o dessabor der
ser um animal exótico, ser rotulado como aquele que merece o estranhamento e a observação, porém
queria ser igual, apenas igualmente livre igual aos outros.
Mudei de escola, a cidade de estudo foi mudada e alguns acontecimentos marcaram minha
passagem por esse período, eu não precisava ficar fora de casa e alguns acontecimentos das aulas de
Língua Portuguesa me marcaram, pois não tinha um interesse significativo pelas outras disciplinas. A
professora daquele período pediu que interpretássemos a seguinte música:

SE EU QUISER FALAR COM DEUS

Se eu quiser falar com Deus


Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar

NARRATIVAS
1182

Decidido, pela estrada


Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
(Gilberto Gil)

A minha formação religiosa condicionava minha visão do texto, apenas uma visão, então
jamais imaginaria que era uma crítica respeitosa e educada ao sistema religioso opressor que
estabelece mil condições para ter uma relação com a divindade. Após apresentar minha interpretação
dessa música, não esqueço a face daquela professora de muitos anos de profissão dizendo que não
era bem assim, porém não consegui me convencer, nem ampliar meu horizonte de entendimento.
Em um dia qualquer, surge um estagiário que pediu licença e começou a dizer que nós não
líamos apenas textos, líamos imagens e outras coisas mais, instaurando nosso entendimento sobre
práticas de letramentos. Segundo Kleiman (1995), o indivíduo participa de práticas de letramento em
que a escrita é um elemento que faz parte do uso social, bem como a leitura. Aquele rapaz de cabelo
maior que o comum para uma capital do Nordeste do Brasil, óculos de lentes arredondas e barba por
fazer trouxe três elementos para entendimento de um comercial que fazia sucesso na época: as
personagens (antigo x atual), aquilo que traziam nas mãos (trabalhoso x prático) e os diálogos (nova x
tio). Para reavivarmos as lembranças, segue a imagem do comercial do tiozinho do refrigerante sabor
artificial laranja “ Sukita”:
Figura 1. O tio da Sukita

Fonte: internet

Ao final da exposição, os alunos bateram palmas, ficaram todos de pé e o nosso aspirante a


professor se emocionou, ficou feliz e parecia que ele tinha realizado um trabalho hercúleo, na
verdade, realizou mesmo, pois iniciou o processo da saída da caverna, ampliou os meus horizontes de
leitura, velhas escamas começaram a ser retirada daquilo que não me deixa ver o além do

NARRATIVAS
1183

escrito/falado. Não lembro dos ocorridos depois dessa aula, porém essa foi minha aula magna e meu
gosto pelo estudo da linguagem aumentava e nem percebia.
Nesse processo dos tempos medianos, duas obras literárias me marcaram de forma intensa
por ser uma obrigação escolar. Aquela professora que tem nome de flor sabia que “o hábito faz o
monge”, então uma obra literária brasileira e uma alemã deixa um trilho de gosto pela leitura.
A primeira obra foi de Sá (1997) chamada “Beijo azul no céu da boca” que trata de Mariana,
uma menina apaixonada pela literatura que se encantou por um rapaz chamado Fred. A menina que
gostava de literatura trocou os livros pelas drogas, então compreendi que foi uma forma didática e
literária de tratar de um tema delicado chamado “drogas ilícitas” de forma aprazível. Anos depois, ao
assumir uma vaga de professor de Língua Portuguesa sem formação adequada, usei o mesmo
caminho ao discutir as diferenças com alguns fragmentos do livro “A terra dos meninos pelados”, de
Graciliano Ramos.
O outro livro foi um clássico chamado deGoethe (1999) “Os sofrimentos do jovem Werther”
que tratava de um jovem apaixonado por Charlotte e seu amor não poderia ser consumado. A
realidade dos amantes separados por um casamento arranjado e um belo escape da vida terrena, logo
apresentando uma característica clássica do romantismo: a morte como único caminho para o amor
não correspondido.
Goethe em sua obra clássica sem normativismo, métrica muito bem trabalhada, rimas, em
uma livre produção contemplada em uma mulher divina, superior e fonte das delícias e dessabores de
um jovem.
O trágico, o dramático sempre me atraiu, porém, os sentimentos que eu vivenciava oscilando
entre os desejos de vida e morte que marcavam minha vida e minha experiência de leitor iniciante. Os
momentos que Werther relembrava as paisagens bucólicos e campesinos com Charlotte causaram-
me horror, a sua abstração substantivada na construção do cenário, as relações emotivas, sempre
recorrendo às figuras de linguagem que apontavam para o suicídio como determinação para o fim da
tragédia.
Nesse tempo de conflito, de dúvida, a professora de nome de flor marcou meu momento de
vida com o seguinte poema:

Cota Zero

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
(ANDRADE, 1977, p. 23)

A materialização da linguagem feita por Drummond causou-me um choque tão profundo que
não sei se foi a minha condição ou meu estado de espírito que produziu um efeito devastador em mim,
pois sempre fui mais velho de consciência, a distimia me escravizava desde a infância e na
adolescência ganhou mais força e era preso cada vez mais nessa patologia. Então, decidir ter uma

NARRATIVAS
1184

profissão, ser religioso, amar psicologia e paquerar com as letras era algo que me deixava cada vez
mais aflito e sem saber o que fazer.

5. HORA DE SER, EU CRESCI

O caminho para entrar na Universidade Federal do Rio Grande Norte era o cursinho, uma
realidade sem prova, sem chamada, sem vínculos de aprendizagens mais significativos, apenas aulas
expositivas e ao final algumas perguntas de um galpão com 500 pessoas que, em sua maioria,
estavam tão desnorteadas quanto eu.
A psicologia era um desejo do meu coração, ansiava por isso, queria muito, porém deixava
minhas limitações serem maior que eu, não tinha certeza de nada, era tudo tão doloroso, era tudo tão
desgastante, levantava de madrugada e chegava sem força para nada. Tudo era tão grandioso, uma
autoestima no chão me deixava sem razão para prosseguir.
A coisa maravilhosa era ter uma lista de livro para ler e viajar com eles para realidade que eu
nem imaginava existir. O vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte indicava as obras
e eu tinha aulas de Literatura que nunca tinha visto, nem sabia; o meu aporte cultural era religioso,
era meu mundo, a religião era o meu sentido de vida. Aquela lista me fez mais humano, me fez
negrinha, me fez usar Black-tie, eu fui rosa do povo, relembrei memória póstumas, eu me fiz Capitu
por uma opção transgressora.
Eu me encontrei em Macabéa, eu me encontrei na minha hora da Estrela, uma estrela
interiorana, de uma cidade que é apenas passagem, lá não tinha vida, eu me tornei heroína da feiura,
da insignificância, porque sempre eu me doo todo.
A resistência daquela alma fictícia me fez uma pessoa que acreditava que existiam outros
iguais ao meu eu silenciado, ou seja, eu estava crendo que existia um grupo para me agregar. A igreja
não fazia mais tanto sentido, eu tinha aspirações de conhecer o mundo livremente, de amar sem
culpas, eu me sentia um lixo em meio aquelas pessoas que eram oriundas de escolas melhores, que
sabiam o que era um cinema e eu não.
Uma bela reprovação no vestibular me fez sentir Leonardo, aquele filho do Leonardo Pataca,
que só sentia vontade e não fazia nada, mas eu queria ser um universitário da Federal, queria saber
muito, então arrumei um modelo, um certo professor de uma disciplina que também é conhecida como
um anjo que olha para trás, modelo de erudição e inteligência. O grande problema que ele era e
continua a ser um anfíbio que acredita ser o rei da floresta, alma onde culmina soberba e vaidade
intelectual, então um ano de cursinho se foi, mais dúvidas se instalavam e mais descaminhos eu
insistia trilhar, com petulância e soberba da juventude, como veredas verdadeiras de salvação.
Nem imagina eu que anos depois eu seria aprovado em psicologia duas vezes em duas
renomadas universidades federais, jornalismo duas vezes em uma universidade federal, em Letras
uma vez e em Psicopedagogia duas vezes também.

NARRATIVAS
1185

6.FINAIS

A formação de um professor sempre continua, nunca finda, sempre há a busca de mais


conhecimento para melhor exercer sua profissão, assim pensava nesse momento como entrada e
saída, como alfa e ômega, princípio e fim.
Diante das experiências vivenciadas durante a escrita desse trabalho, logo compreendi que o
papel do professor é transpor para sua prática os conhecimentos aprendidos no itinerário de sua
formação, refletindo acerca dos acontecimentos que perpassaram minha vidano ambiente escolar, no
âmbito profissional para transformar tudo em um processo constante de aprendizagem sendo eterno
autor, professor-aluno, aluno-professor.

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NARRATIVAS
RESUMO
1187
Vladimir Propp (1984), a partir de um estudo da
estrutura composicional e do enredo de contos

ESTILO INDIVIDUAL E maravilhosos recolhidos na Rússia, afirma que


estes apresentam personagens e enredos
semelhantes, embora seus autores tenham vivido

ESTILIZAÇÃO EM FOCO: o
em lugares totalmente isolados um do outro. É
possível identificar alguns desses elementos
composicionais, apontados por Propp como
edificadores do gênero conto maravilhoso, em
resgate dos contos maravilhosos pela produções literárias contemporâneas inseridas nos
gêneros que são lidos pelo público infanto-juvenil.
literatura fantástica juvenil Tendo ciência dessa relação das produções
literárias contemporâneas com os contos
maravilhosos em uma relação dialógica entre
elementos específicos que dizem respeito ao
enredo e ao papel de certas personagens,
objetivamos problematizar como se dá essa relação
Rafael Oliveira da SILVA300 301 e quais elementos dos contos são retomados
nesses livros contemporâneos. Este artigo filia-se à
pesquisa acerca dos contos maravilhosos de
Vladimir Propp (1984), propõe, primeiramente, uma
análise das marcas estilísticas e composicionais
Os contos de fadas são verdadeiros. que edificam o gênero conto maravilhoso, para a
Ítalo Calvino partir daí, adentrar numa segunda análise, esta
identificando as marcas de estilização,
fundamentado em concepções de Bakhtin, focaliza
INTRODUÇÃO uma produção literária contemporânea tendo como
corpus o livro Carry on - Ascensão e Queda de
Simon Snow, da autora americana Rainbow Rowell.

É
inegável a contribuição dos contos maravilhosos para a Espera-se que este artigo aponte para uma cadeia
dialógica entre os contos maravilhosos e a
literatura que se produziu e se produz no ocidente. É possível literatura infanto-juvenil, criada a partir do
percebermos elementos advindos dos contos maravilhosos em processo de estilização da segunda tendo como
base os contos. A pesquisa se insere na área da
livros escritos no decorrer dos últimos 50 anos, como O Senhor dos Linguística Aplicada e se orienta teórico-
Anéis, de J. R. R. Token, Harry Potter, de J. K. Rowling, Guerra dos metodologicamente por uma investigação
qualitativa dos dados.
Tronos, de J. R. R. Martin, etc. Inúmeros podem ser os exemplos de
livros que apresentam elementos que compõem os fios da enorme Palavras-Chave: Estilo Individual. Estilização.
Gênero. Fantasia. Conto Maravilhoso.
manta dos contos maravilhosos. Elementos tais como a fantasia, o
heroísmo, as ações do destino, os reinos, príncipes e princesas etc.
Ao tratar do conto maravilhoso, Propp (1984, p.26), afirma
que “(...) os personagens do conto maravilhoso, por mais diferentes que sejam, realizam
frequentemente as mesmas ações. O meio em si, pelo qual se realiza uma função, pode variar (...)”.
Ele chega a essa conclusão após analisar cerca de 100 contos maravilhosos recolhidos ao redor do
mundo e encontrou semelhanças no que diz respeito ao enredo e às personagens desses contos. Seu
estudo, porém, limita-se ao estudo estrutural dos contos e não se volta para a linguagem, ponto
fundamental de análise em qualquer estudo que envolva enunciados - concretos ou não.

300
Graduando em Licenciatura em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: rafaelodssilva@gmail.com
301
Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves. Doutora em linguística aplicada. Profa. Associada do Departamento de Letras e do
Programa de Pós-Graduação em Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: penhalves@msn.com

NARRATIVAS
1188

Analisar estas manifestações simultâneas dos contos maravilhosos utilizando-se de algumas


noções levantadas pelo estudo de Propp, como algumas de suas categorizações de enredo - às quais
ele chama funções -, além das noções bakhtinianas no que diz respeito ao teor interacional da
linguagem e também às noções de gênero, estilo individual e estilização, se faz necessário para que
seja possível, a partir do reconhecimento das relações dialógicas internas ao gênero conto
maravilhoso, identificar uma relação entre os contos maravilhosos e a literatura contemporânea
destinada para o público infanto-juvenil que a cada dia ganha mais leitores.

1. O LEGADO MUNDIAL DOS CONTOS MARAVILHOSOS

Para Julio Casares há três acepções da palavra conto, que Julio Cortázar utiliza no seu estudo sobre
Poe: 1. relato de um acontecimento; 2. narração oral ou escrita de um relato falso; 3. fábula que se conta
às crianças para diverti-las. Todas apresentam um ponto em comum: são modos de se contar alguma
coisa e, enquanto tal, são todas narrativas. (GOTLIB, 2006, p. 11)

Utilizando-se do estudo de Julio Casares e Cortázar acerca do gênero conto, Gotlib (2006)
procura apontar diferenças entre as diversas manifestações do gênero conto, estando este dividido
em três tipos diferentes inicialmente. É possível relacionar essa capacidade do gênero conto de se
subdividir nessas três categorias teorizadas por Cortázar com a definição dada por Bakhtin (2016,
p.12) do que seria um gênero discursivo; segundo ele, trata-se um gênero discursivo de “tipos
relativamente estáveis de enunciados”, estes enunciados se diferenciam um do outro em cada campo
da atividade humana através de seu estilo, conteúdo temático e a construção composicional. Dada
essa definição, é compreensível a subdivisão do gênero para atender os diversos tipos de escritores e
leitores.
Casares, ao tratar das multiformas do conto, enquadra o conto maravilhoso em sua terceira
acepção: fábula que se conta às crianças para diverti-las, mas quais seriam os elementos que
constituem essas fábulas e a constitui enquanto gênero destinado à criança? Quais seriam as
construções composicionais, estilísticas e conteúdo temático de um conto maravilhoso?

O conto, segundo a terceira acepção de Julio Casares, (...) liga-se mais estreitamente ao conceito de
estória e do contar estórias, e refere-se, sobretudo, ao conto maravilhoso, com personagens não
determinadas historicamente. E narra como “as coisas deveriam acontecer”, satisfazendo assim uma
expectativa do leitor e contrariando o universo real, em que nem sempre as coisas acontecem da forma
que gostaríamos. [grifos do autor da citação] (GOTLIB, 2006, p, 17)

Gotlib aponta para características que compõem o conteúdo temático dos contos
maravilhosos que, segundo ela, contraria o universo real, ou seja, adentra por enredos fantasiosos e
que levam sempre ao que o leitor, nesse caso a criança, espera: o felizes para sempre e a vitória do
bem sobre o mal. No entanto, ao partir para a definição de uma forma para o conto maravilhoso,
Gotlib se fundamenta na pesquisa feita por Propp acerca da estrutura composicional desses contos

NARRATIVAS
1189

em sua Morfologia dos contos maravilhosos (1984). Propp analisa cerca de 150 contos maravilhosos
russos e identifica semelhanças na construção narrativa e das personagens. Aponta que certos
elementos seguem uma ordem que aparece no enredo de um conto maravilhoso e esta ordem não
pode ser alterada, embora nem todos os contos apresentem necessariamente todos elementos
constantes, ou seja, que aparecem com frequência em mais de um conto, aos quais ele chama de
funções.
A partir da análise das personagens dos contos que toma como corpus, Propp (1984)
identifica 31 funções distintas. Podemos identificar essas funções como manifestações da construção
composicional do conto maravilhoso, visto que essas aparecem apenas numa determinada ordem,
guiam o enredo e estão presentes no todo do gênero conto maravilhoso; já a escolha pelo uso de
determinada função (ação realizada por uma personagem) e as escolhas particulares sobre o meio
pelo qual se realiza uma função por parte de um autor implica escolhas que levam em consideração a
expectativa do seu leitor acerca do conto, compõe o estilo do conto, uma vez que a determinação de
um estilo está ligada indissoluvelmente à sua função e ao outro ao qual este se destina (BAKHTIN,
2016).
Graças ao estudo de Gotlib e Propp acerca dos contos maravilhosos, é possível identificar
com mais clareza os elementos que compõem o gênero do conto maravilhoso como as marcas
composicionais e o conteúdo temático, no entanto, um dos pontos cruciais levantados por Propp e que
não pode ser deixado de lado num estudo que aborda a linguagem interacionalmente é o fato de que
cerca de 150 contos recolhidos em lugares que, muita vez, não mantinham nenhum tipo de contato,
apresentavam temas idênticos, tendo apenas o estilo, a maneira como esses traços eram
empregados no gênero, como diferencial entre um e outro conto. Propp, no entanto, não analisa a
fundo o que isso significa sob a perspectiva da linguagem, focando apenas em alcançar a sua
morfologia dos contos, para a qual, esses traços estilísticos não interessavam. Entretanto, analisando
esses traços estilísticos a partir da noção bakhtiniana de estilo individual (BAKHTIN, 2016), é possível
identificar o seu porquê e como um indivíduo faz a seleção desses recursos estilísticos.

Todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciado, ou seja, aos
gêneros do discurso. Todo enunciado - oral e escrito, primário e secundário, também em qualquer
campo da comunicação discursiva - é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou
de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual. (BAKHTIN, 2016, p. 17).

Ou ainda observa:

O que determina a seleção dos recursos linguísticos e estilísticos: 1) o conteúdo semântico-objetal (isto
é, o direcionamento para o objeto do discurso); 2) a expressividade, ou seja, a expressão do sujeito
falante (suas emoções, suas relações com o objeto do discurso); 3) a relação com o ouvinte e com o
discurso do outro (de uma terceira pessoa). (BAKHTIN, 2016, p. 135)

NARRATIVAS
1190

Com base no que foi dito por Bakhtin (2016) acerca do estilo individual e de como cada
falante/autor faz suas escolhas estilísticas que o fundam , é possível afirmar que essa repetição de
temas que ocorre nos contos maravilhosos apenas com a alteração de elementos estilísticos das
narrativas, tais como nomes de personagens com a mesma função, o meio pelo qual determinadas
personagens chegam a fins idênticos em narrativas distintas, etc., são marcas do estilo individual de
cada autor. Se o estilo individual se manifesta também a partir da relação de seu autor para com o
discurso do outro, é possível afirmar que cada autor cria assim, através de seu estilo individual, uma
maneira de se diferenciar do estilo do outro, e do outro em si. Ele reage responsivamente e manifesta
a sua individualidade.
Os contos Árvore de Ouro e Árvore de Prata, recolhidos do folclore celta por Joseph Jacobs -
estudioso de contos folclóricos de tradição oral - e Branca de Neve, recolhido pelos Irmãos Grimm,
contam essencialmente a mesma história, apesar de os celtas terem sido um povo que surgiu a partir
do segundo milênio a.C. e os irmãos Grimm terem vivido no século XVIII.

Era uma vez um rei que tinha uma esposa cujo nome era Árvore de Prata e uma filha cujo nome era
Árvore de Ouro. Num certo dia, entre outros dias, Árvore de Ouro e Árvore de Prata foram a uma ravina
em que havia uma fonte e dentro dela havia uma truta.
Árvore de Prata disse:
Trutinha, minha pequena camarada, não sou a mais bela rainha do mundo?
Oh! De verdade? Você não é não!
Mas quem é então?
Ora, é Árvore de Ouro, sua filha.
Árvore de Prata foi para casa, cega de raiva
Deitou-se na cama e jurou que nunca mais ficaria boa se não conseguisse comer o coração e o fígado de
Árvore de Ouro, sua filha. (JACOBS, 2013, p. 19)

Como pode-se observar, o que causa o nó inicial da história é o mesmo em Branca de Neve: o
objeto, ou meio, mágico revela que há alguém mais bonito que a rainha e esse alguém acaba por ser
sua filha no conto celta e sua enteada no conto dos irmãos Grimm. Em ambos os contos a rainha
manda que matem a jovem e pede seus órgãos como garantia. A jovem, no entanto, foge e vive certo
tempo escondida até que é descoberta pela rainha, envenenada por ela cai num sono que se
assemelha à morte, mas desperta magicamente com ajuda de alguém. A rainha morre no final de
ambos os contos.
Ao analisar os dois contos, é perceptível que a única diferença entre eles se dá através das
escolhas lexicais, semânticas e ideológicas feitas por cada autor. São as representações usadas por
cada um que dão uma roupagem pessoal para cada um dos contos e faz com que, mesmo ao tratar da
mesma história, um não se trate da imitação do outro, não há aqui a imitação do discurso do outro,
visto que o autor usa de artifícios lexicais, semânticos e ideológicos para expressar o seu ponto de
vista acerca daquela história.
Todos esses elementos analisados nos ajudam a compreender melhor o gênero conto
maravilhoso enquanto um gênero literário auto suficiente e também enquanto gênese das

NARRATIVAS
1191

representações contemporâneas do universo fantástico que se popularizou através de livros como


Senhor dos Anéis, Harry Potter e até mesmo Carry On - Ascensão e Queda de Simon Snow. Tais livros
trazem à tona heróis com destinos traçados, dragões a serem derrotados, vilões que se passam por
benfeitores, objetos mágicos, marcas, estigmas e tantas outras funções elencadas por Propp. De
certa forma, os contos maravilhosos ainda vivem na literatura contemporânea e seu legado gerou
muito mais frutos do que se podia imaginar; dentre eles novos gêneros literários, novos leitores e até
mesmo novos olhares para a literatura infanto-juvenil.

2. UM NOVO REINO LITERÁRIO: contos maravilhosos recuperados na fantasia

Ao tratar da questão dos gêneros, Todorov (2008) levanta, entre outras postulações, que o
reconhecimento de um gênero implica justamente o reconhecimento das relações de uma obra
literária com outra já existente e continua: “É difícil imaginar atualmente que se possa defender a tese
segundo a qual tudo, na obra, é individual, produto inédito de uma inspiração pessoal, fato sem
nenhuma ligação com as obras do passado.” (TODOROV, 2008, p. 11). Seguindo sua perspectiva, então,
seria possível, por meio da identificação das marcas genéricas de uma obra literária, chegar a um
gênero mais antigo mediante uma obra contemporânea.
Essas relações que uma obra estabelece com outra mais antiga é dialógica e leva em
consideração o discurso do outro. É possível levar em consideração que são várias as motivações que
levam um autor em questão a inserir elementos do discurso do outro em seu próprio discurso, da
mesma forma como também é possível identificar várias maneiras que um autor pode utilizar-se do
discurso do outro, como a citação, a paródia, a estilização, a carnavalização, etc. Porém, em se
tratando de uma inserção dos contos maravilhosos na literatura atual, o que nos interessa neste
artigo é a estilização do discurso maravilhoso deste gênero feita por autores contemporâneos do
gênero fantasia.
Antes de tratar de fato da estilização, é preciso primeiro destacar a gênese desse fenômeno
da linguagem, as partes do discurso maravilhoso das quais autores como Rainbow Rowell se utilizam e
estilizam como meio de inserção do discurso do outro em seu próprio. Esse elementos do discurso
maravilhoso encontram-se bem definidos no trabalho de pesquisa feito por Vladimir Propp, Morfologia
do conto maravilhoso, já mencionado neste artigo. Nele, Propp elenca 31 funções para os personagens
dos contos maravilhosos, além de tipos específicos de personagens como o herói, o antagonista, o
auxiliar, etc. Selecionamos 13 dessas funções para melhor identificar, através delas, como cada uma
dessas funções acaba sendo retomada na literatura infanto-juvenil contemporânea, com o auxílio da
análise do livro Carry On - Ascensão e Queda de Simon Snow.
São elas:

▪ Proibição: “impõe-se ao herói uma proibição.” (PROPP, 1984, p. 32)


▪ Ardil: “o antagonista tenta ludibriar sua vítima para apoderar-se dela ou de seus bens.”
(PROPP, 1984, p. 34);

NARRATIVAS
1192

▪ Cumpleidade: “a vítima se deixa enganar, ajudando assim, involuntariamente, seu inimigo.”


(PROPP, 1984, p. 35);
▪ Dano: “o antagonista causa dano a um dos membros da família.” (PROPP, 1984, p. 35);
▪ Fornecimento: “o meio mágico passa às mãos do herói” (PROPP, 1984, p. 44);
▪ Os meios mágicos podem ser: animais, objetos dos quais surgem auxiliares mágicos, objetos
que possuem propriedade mágica, qualidades doadas diretamente .
▪ Deslocamento no espaço entre dois reinos, viagem com um guia : “o herói é transportado,
levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura.” (PROPP, 1984, p. 49);
▪ Combate: “o herói e seu antagonista se defrontam em combate direto.” (PROPP, 1984, p. 50);
▪ Vitória: “o antagonista é vencido” (PROPP, 1984, p. 50);
▪ Reparação do dano ou carência: “o dano inicial ou a carência são reparados” (PROPP, 1984, p.
51);
▪ Tarefa difícil: “é proposta ao herói uma tarefa difícil” (PROPP, 1984, p. 56)
▪ Realização: “a tarefa é realizada” (PROPP, 1984, p. 57);
▪ Desmascaramento: “o falso herói ou antagonista ou malfeitor é desmascarado” (PROPP, 1984,
p. 57);
▪ Transfiguração: “o herói recebe uma nova aparência” (PROPP, 1984, p. 58);

Cada uma dessas funções acaba marcando o enredo da narrativa nos contos maravilhosos e o
mesmo ocorre ainda atualmente. A utilização delas, seja intencionalmente ou não, em livros do gênero
fantasia dá-se por meio de um processo de estilização do discurso maravilhoso dos contos, esse
processo mantém a orientação do discurso do outro - nesse caso dos autores dos contos
maravilhosos -, em termos de estilo e conteúdo semântico (BAKHTIN, 2010). É possível perceber uma
mesma linha de estilo e conteúdo semântico ao reconhecer personagens semelhantes em Carry On,
heróis, antagonistas, etc e ainda via o reconhecimento das funções dos contos maravilhosos
presentes na literatura fantástica.

Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros,
produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele
que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos,
de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o
acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é
regida por leis desconhecidas para nós. (TODOROV, 2008, p.30)

É “num mundo exatamente como o nosso”, com exceção da existência da magia, de bruxos,
ogros, dragões e etc, que o livro Carry On - Ascensão e Queda de Simon Snow, de Rainbow Rowell,
uma autora norte americana que se destaca na literatura infanto-juvenil, se passa. Originalmente
composto de partes inseridas em seu livro Fangirl, até então sendo o livro preferido da protagonista
de Fangirl, Cath, Carry On ganha seu próprio livro e se torna rapidamente um best seller do New York
Times. Nessa realidade onde o fantástico é comum e crível, Simon Snow, um aluno da escola de magia
Watford, o bruxo mais poderoso do mundo e, além disso, O escolhido - que não tem tanto talento para
a magia e evita ao máximo usá-la - deve enfrentar uma entidade conhecida como Insípidum, que
ameaça pôr um fim no mundo da magia. A autora dá uma nova roupagem aos livros de fantasia ao

NARRATIVAS
1193

inserir no seu um protagonista que, junto do anti-antagonista, se descobre gay, dando a ele um toque
de literatura young adult, ao tratar de assuntos mais pertinentes à fase da adolescência, como a
descoberta da sexualidade.
É preciso ater-se aos elementos que constituem o enredo e retomam as funções de Propp
(1984), em Carry On, sob a perspectiva da estilização:

(...) A ideia objetificada do outro (ideia artístico-objetiva) é colocada pela estilização a serviço de seus
fins, isto é, dos seus novos planos. O estilizador usa o discurso de um outro como discurso de um outro
e assim lança uma leve sombra objetificada sobre esse discurso. (...) Ele trabalha com um ponto de vista
do outro. (BAKHTIN, 2010, p. 217)

Segundo Bakhtin (2010), para que a estilização seja possível é necessário significação direta e
imediata, que reflita e refrate a voz de seu autor. Dessa forma, é possível identificarmos os contos
maravilhosos enquanto enunciado de significação direta e imediata, isto é, seu estilo é que será alvo
da estilização feita pela literatura infanto-juvenil atual. Ao estilizar:

“(...) o autor inclui no seu plano o discurso do outro voltado para as suas próprias intenções. A
estilização estiliza o estilo do outro no sentido das próprias metas do autor. (...) Após entrar na palavra
do outro e nela se instalar, a ideia do autor não entra em choque com a ideia do outro, mas a
acompanha no sentido que esta assume, fazendo apenas esse sentido tornar-se convencional.”
(BAKHTIN, 2010, p. 221)

Ou seja, não se profana o discurso do outro ao fazer uma estilização, pelo contrário, este é
usado para legitimar o próprio discurso do autor estilizador, que o reconhece como matriz.
É possível, então, encontrar marcas do discurso maravilhoso dos contos presentes
fortemente em livros contemporâneos como Carry On - Ascensão e Queda de Simon Snow , por
exemplo. Analisar a escolha de sua autora por estilizar esse discurso aponta não só para um
reconhecimento responsivo do discurso (do outro) dos contos maravilhosos, mas também para um
olhar particular e pessoal dela enquanto autora para um tema tão antigo, a magia, que é um dos
pilares nos quais o gênero fantasia se sustenta.
Assim, quando, na narrativa Simon precisa derrotar o dragão para obter a espada do mago, a
autora está estilizando trechos dos contos maravilhosos que remete à função da “provação”; quando
O Mago se passa por aliado do Simon a autora utiliza-se da função “ardil”; ao fazer que Simon
acredite no Mago, utiliza-se a função “cumpleidade”; os furos no véu da magia remetem à função
“dano”; ao fazer com que Simon consiga a espada do mago, utiliza-se a função “fornecimento”; ao
fazê-lo ir de encontro ao Mago na capela, utiliza-se a função “deslocamento no espaço entre dois
reinos” e também o “desmascaramento”; ao destinar Simon como o escolhido e aquele que derrotaria
o grande mal da profecia, utiliza-se a função “tarefa difícil” e tentar alcançá-la leva à função
“combate”; quando Simon derrota o Insípidum ambas as funções “vitória” e “realização” são ativada,
assim como a consequência disso faz com que a autora se utilize da função “reparação do dano ou

NARRATIVAS
1194

carência”, já que derrotá-lo implica restaurar a paz no mundo da magia; por fim, a autora utiliza as
funções de “marca” e “transfiguração”, ao fazer com que, após a batalha, Simon acabe marcado com
asas e rabo de dragão.
O reconhecimento das funções no livro de Rainbow Rowell, implica que a autora não somente
foi leitora dos contos maravilhosos, mas reconhece que estes são de suma importância para a sua
escrita; ela reage responsivamente aos contos maravilhosos em sua escrita ao estilizar o discurso
maravilhoso em seu livro. Esses diálogos, estabelecidos mediante a estilização do discurso
maravilhoso, entre gêneros antigos (conto maravilhoso) e contemporâneos (fantasia) proporciona
não só a divulgação de um gênero antigo para um novo público leitor, mas também a ressignificação
de antigas representações encontradas na literatura ao longo do tempo.
Devido a estilização levar em conta o discurso do outro, mas utilizá-la para os fins do
estilizador (BAKHTIN, 2010), é que é possível, por exemplo, encontrarmos em Carry On um herói tido
como o Escolhido inserido no mundo da fantasia, algo que não é novo e que já havia sido feita por
diversas vezes, mas que não tem talento no papel de escolhido e é gay. A homossexualidade do herói
e sua falta de talento em ser herói, neste caso, fazem parte do estilo individual de Rainbow Rowell e é
como ela se utiliza do estilo do discurso maravilhoso a seu favor, revestindo-o com seu ponto de vista.

O maior mago. O Escolhido. O poder dos poderes.


Parece estranho acreditar que esse cara deveria ser eu. Porém, também não posso negar. Digo,
ninguém mais tem um poder como o meu. Nem sempre consigo controlá-lo ou direcioná-lo, mas ele está
lá.
Acho que quando apareci em Watford as pessoas tinham meio que desistido das antigas profecias. Ou
imaginado que o Maior Mago tinha surgido e desaparecido sem que ninguém reparasse.
Não acredito que alguém esperasse que o Escolhido viesse do mundo normal - da mundanidade.
(ROWELL, 2016, p. 39)

A boca de Baz é mais fria que a de Agatha.


Porque ele é um garoto, penso, e então: Não, é porque ele é um monstro.
Ele não é um monstro. É apenas um vilão.
Ele não é um vilão. É apenas um garoto.
Estou beijando um garoto.
Estou beijando Baz.
Ele é tão frio, e o mundo é tão quente. (ROWELL, 2016, p. 302)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não restam dúvidas de que o estudo de Vladimir Propp acerca dos contos maravilhosos é de
suma importância para qualquer pesquisa que os tenha como foco, no entanto, ao afirmar que apenas
o estudo do que fazem as personagens é importante (PROPP, 1984) e deixar de lado quem faz e como
isso é feito, ele acaba por deixar de analisar fenômenos da linguagem que justificam, por exemplo, o
surgimento de contos maravilhosos com histórias idênticas ao redor do mundo e também a influência

NARRATIVAS
1195

do autor acerca “quem faz algo e como isso é feito” (Propp, 1984, p. 26). Ambos são fenômenos
correspondentes ao estilo individual de cada autor.
Não entra também no estudo de Propp a estilização e uma pesquisa que leve esses fenômenos
em consideração é mais que necessária para esclarecer o que, na escrita de um dado autor, leva a
uma reação responsiva por parte de seu leitor. Uma pesquisa futura acerca das influências que
recaem sobre o autor para a escolha de suas representações pessoais, suas marcas de estilo
individual, como no caso da Rainbow Rowell a escolha de um protagonista gay, podem vir a revelar
ainda mais pontos que fazem com que o leitor jovem reaja responsivamente à sua escrita e faça com
que livros como Carry On sejam best-sellers mundo a fora.
É perceptível que autores contemporâneos, principalmente os que escrevem o gênero
fantasia, como Rainbow Rowell, vão até fontes mais antigas como os contos maravilhosos para criar
suas personagens e os enredos de seus livros, estilizando o discurso dos contos de fada e
introduzindo toda uma carga cultural e ideológica a uma nova geração de leitores - leitores esses
jovens em sua maioria e como tal escolhem aquilo com que se identificam. Além disso, esses autores
proporcionam uma inserção de elementos de uma literatura mais antiga, espalhada pelo ocidente
através dos contos de fada, a leitores mais novos; essa estilização também age responsivamente com
os leitores, que se identificam com os elementos que encontravam ao ouvir, ou ler, contos de fada
quando pequenos, outro aspecto que causa a aproximação de novos leitores. O diálogo aqui se
estabelece, portanto, não apenas no domínio da linguagem, mas também da vida.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2 016.
_______. Problemas da poética de Dostoiésvsky. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: WMF Martin Fontes, 2010.
CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto e Do conto breve e seus arredores. In: Valise de cronópio. Trad. Davi
Arrigucci Jr. E João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006.
JACOBS, Joseph. Princesas e damas encantadas. Trad. Vilma Maria da Silva e Inês A. Lohbauer. 1. ed. São Paulo:
Martin Claret 2013.
ROWELL, Rainbow. Carry On: ascensão e queda de Simon Snow. Tradução Marcia Men. 1. ed. São Paulo: Novo Século, 2016.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castelo. 3. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2008.

NARRATIVAS
RESUMO
1196
Este artigo trata-se de um relato de experiência
sobre um projeto intitulado “Leitura: abertura para

LEITURA: abertura para o ser-no- o ser-no-mundo” que foi desenvolvido com alunos
do Instituto Interdisciplinar da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro. Participaram da atividade
mundo cerca de 30 alunos do Curso de Pedagogia,
matriculados no terceiro período. O objetivo do
trabalho foi explorar estratégias que tornassem a
sala de aula um lugar pleno de tonalidades
dialógicas, envolvendo professor e alunos. Para que
pudéssemos vivenciar uma metodologia que
considerasse essa realidade, escolhemos a obra
SILVA, Rosana P. Plasa 302
“Olhinhos de Gato”, da escritora Cecília Meireles,
visando estudar o tema “leitura” como forma de
AZEVEDO, Nikolas Bigler de303 incentivar, despertar o gosto e o prazer de ler, a
CARVALHO, Carlos Roberto de304 partir do exercício da imaginação e sensibilidade
propiciado pela obra aos alunos. Como recurso
didático, optamos por realizar a análise da
narrativa, especificamente os três primeiros
capítulos, na forma de uma celebração. Ao
explorarmos a celebração como metodologia,
pensamos em um recurso que pudesse resgatar a
1 INTRODUÇÃO compreensão da sala de aula como lugar de ação,
mesmo que simbólica, para que viéssemos

O
promover relações interpessoais, de encontros.
espaço-tempo sala de aula é antes de tudo ação, ação Mikhail Bakhtin se destaca, neste relato, como o
resultante das interações estabelecidas entre os seres que autor em cuja teoria nos fundamentamos para fazer
as reflexões acerca do espaço-tempo sala de aula
concretizam a ideia de existência do ambiente escolar: como um lugar de ação onde professor e aluno,
professor e alunos. Entre estes se estabelecem linhas de fronteira enquanto seres sociais, falam e se exprimem de
forma ativa, são ambos sujeitos do processo
identificadas no jogo discursivo, no modo como cada um vive em ensino-aprendizagem. O teórico Frei Hermógenes
relação ao seu outro. No entanto, sabe-se que, nesse movimento, na Harada representa o autor que fundamenta a nossa
discussão sobre o tema leitura.
ação de um para o outro e vice-versa, há muitas vezes um processo
passivo de comunicação discursiva, em que o professor se coloca Palavras-Chave: Sala de Aula. Leitura. Relações
Dialógicas
como autoridade, palestrante, e o aluno, como um ser objetificado,
plateia.
Foi para rever essa realidade de comunicação discursiva,
monológica, com a qual ainda nos deparamos na sala de aula, que demos início ao projeto “Leitura:
uma abertura para o ser-no-mundo”. A atividade, objetivando explorar estratégias que tornem a sala
de aula um lugar de trabalho, pleno de tonalidades dialógicas, envolvendo professor e aluno,
aconteceu, durante um mês, em uma aula por semana, na disciplina de Didática, junto à turma do
terceiro período de Pedagogia, do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro.
A leitura está presente em todos os momentos da vida do homem. Ela se encontra
incorporada no ser, relacionada à sua esfera objetiva e subjetiva. Para estarmos no mundo,

302 Mestre em Educação. Profª de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Colégio Técnico da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro. E-mail: rosanapplasas@gmail.com
303
Graduado em Pedagogia. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: nikolas.bigler@gmail.com
304
Doutor em Educação. Prof. Adjunto IV do Departamento de Educação e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail:
carlosbeto.carvalho@gmail.com

NARRATIVAS
1197

constituindo-nos, estruturando-nos, ou seja, sentindo-nos no, do mundo, para conhecermos esse


mundo, pensarmos sobre ele, é preciso lê-lo, e, para assim ser, esse ato não pode estar reduzido a
um simples processo de troca de informações, por meio da linguagem verbal e não verbal, entre um
emissor e um receptor.
Tudo no mundo é duplo: visível e invisível, segundo Cecília Meireles (1980, p. 73). Então, se
assim o é, faz-se necessário que estejamos abertos para nos colocar como um ser-no-mundo
(HARADA, 2009), nos afeiçoar ao interesse de estar nele, conhecer como ele é, na sua forma visível e
invisível, saber o que estamos fazendo nele e o que somos nele. Sem essa afeição do interesse não
podemos antecipar as objeções do nosso destinatário. Sem essa consideração da simpatia ou
antipatia do outro em relação ao nosso discurso, estaremos no mundo como meros consumidores
dele. Isso também se estende à leitura de um livro, por exemplo. O que adianta vivermos saturados de
livros, lermos livros em quantidade, se estes para nós estão estruturados de letras que pouco
saberemos alguns minutos depois e, por isso, vão se tornar letras mortas? (HARADA, 2011).
Defendemos, portanto, neste projeto, a leitura no seu sentido primeiro, o de pegar, recolher,
captar ações que, para serem exploradas com aprofundamento, vão exigir um contato corporal bem
familiar, e não meramente mecânico. Assim sendo, partimos da crença de que, antes do início da
leitura, seria necessário estabelecer um contato maior com o livro, explorando-o da forma mais
elementar – capa, contracapa, para depois então ir folheando a obra, conhecendo e analisando seu
prefácio, assim como cada capítulo que a estrutura. Dessa forma, a leitura do livro passa a ser feita
mais lentamente, favorecendo a compreensão do texto como reflexo subjetivo do escritor acerca do
mundo objetivo, como expressão da consciência de alguém (autor e leitor) que reflete algo (BAKHTIN,
2003, p. 318).

2. O ESPAÇO-TEMPO SALA DE AULA: lugar de ação e celebração do ser

Para que pudéssemos vivenciar uma metodologia que considerasse essa realidade,
escolhemos a obra “Olhinhos de Gato”, da escritora Cecília Meireles. Como recurso didático para a
apresentação do referido texto, optamos, em um primeiro momento, por organizar o estudo da obra,
especificamente os três primeiros capítulos, na forma de uma celebração.
A escolha do formato “celebração” para o estudo da obra ceciliana se justifica por esse
modelo pressupor uma reunião de pessoas para atingir determinado fim: um momento em que
falamos da vida como algo sagrado, como um processo no qual as pessoas inseridas nesse espaço-
tempo criam condições para compreender o mistério da vida, entender a sua natureza sagrada,
refletir sobre ela a partir do encontro consigo mesmas e com o outro (BUYST, 2011). Inspirando-nos
na letra da música “Samba da Bênção”, composta por Vinícius de Moraes e Baden Powell, defendemos,
neste projeto, que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
Consideramos que nos encontramos nos desencontros do outro, assim como este outro se encontra
em nossos desencontros, e, por isso, a vida merece sempre ser celebrada.

NARRATIVAS
1198

Ao explorarmos, no projeto desenvolvido na turma de Pedagogia da UFRRJ, a celebração como


metodologia, estávamos pensando em um recurso que pudesse resgatar a compreensão da sala de
aula como lugar de ação, mesmo que simbólica, para que viéssemos promover relações interpessoais,
de encontros. Tais relações, então, teriam de se configurar como interações de consciências que se
caracterizassem como um diálogo substantivo, em que não houvesse um sujeito cognoscente que
domina a verdade e ensina a um ser não cognoscente, tal qual a relação existente entre o mestre e o
discípulo (BAKHTIN, 2002, p. 80). Entendemos neste trabalho a celebração como um meio interpessoal
de relação e de encontro, compreendida no contexto da pessoa humana e do encontro com o outro e
consigo mesmo na celebração comunitária.
A sala de aula - lugar de reunião de pessoas, acolhida, realizações, promoções - representa
vida, a presença da vida, materializada nos seres – professor e aluno – que vivem os encontros e
desencontros. Nada melhor, portanto, do que explorar tal espaço de modo simbólico para celebrar
algo ou alguém, ou seja, exaltar, por meio de ações, uma escritora que marcou a nossa literatura ao
valorizar a vida em toda a sua plenitude, ainda que efêmera, e ao reinvertar-se sempre nos encontros
e desencontros de sua própria vida: a poetisa e educadora Cecília Meireles.
Dentre as várias obras da poetisa, optamos por “Olhinhos de Gato”, texto autobiográfico,
estruturado com treze capítulos numerados, mas sem título. Estes foram publicados, primeiramente,
ao longo de dois anos, na revista portuguesa Ocidente, entre 1939 e 1940, e mais tarde no Brasil, em
sua primeira edição, em 1980. Em “Olhinhos de Gato”, Cecília Meireles realiza o que sempre defendeu:
a capacidade de o ser adulto descer ao mundo infantil, de se transfigurar para entender a criança
(MAGALDI, 2001, p. 136). Nessa obra, prosa poética memorialística, encontramos Cecília Meireles, a
“Olhinhos de Gato”, por meio de uma narrador onisciente, voltando-se para a sua infância e se
transfigurando para entender a criança que fora, para recordar o seu passado de menina quando se
tornou órfã aos três anos e meio.
Dessa forma, a Cecilia adulta, justapondo passado e presente, entrecruzando lembranças e
pensamentos, pôde entender melhor os sentimentos da Cecília-menina, suas dores e alegrias, definir
melhor o que vira e sentira de forma nebulosa, assim como entender um pouco mais a si mesma na
fase adulta, momento em que também enfrentava perdas e ganhos. A obra se divide em dois
momentos: o da sua orfandade, quando, ao perder a mãe, vai morar com a avó materna, e o do rito de
passagem representado na narrativa pelo corte dos “cachos em que a luz despertava umas levezas
de ouro claro”, levando-a a se ver no espelho como “uma outra, diferente da anterior, (...) mais séria
agora, com os cabelos concentrados num tom mais escuro, parados, quietos, unidos, tristes”
(MEIRELES, 1980, p. 124). “Olhinhos de Gato”, portanto, tem como tema a infância de Cecília Meireles,
uma infância marcada pela presença da morte, ou melhor, uma história de vida em diálogo constante
com a morte, pois, antes mesmo de ela vir ao mundo, morreram os dois irmãos e, três meses antes
do seu nascimento, o pai. “Parece mentira! Quem havia de dizer! Só ela escapou” (MEIRELES, 1980,
p.131)

NARRATIVAS
1199

É importante também afirmar que essa leitura ceciliana da própria infância irá marcar as
suas poesias e a sua visão de educação, visão esta que se fez conhecer nas muitas crônicas, quase
mil, que escreveu enquanto diretora de uma página do Jornal Diário de Notícias entre 1930 e 1933.
Paulo Ronái (2014, p.67), ao falar de Cecília Meireles, diz que na maioria de seus poemas, o que ela faz
é explicar-se a si mesma. Apropriando-nos dessa avaliação, atreveríamos a estender esse comentário
para os textos em prosa também, como, por exemplo, a prosa-poética “Olhinhos de Gato”.
Assim, no ambiente sala de aula, considerado neste projeto como um espaço de ações
participativas que envolvem professor e alunos, iniciamos o Projeto “Leitura: abertura para o ser-no-
mundo” com a turma de Pedagogia da UFRRJ, explicando a proposta e os objetivos da atividade que
envolveriam dois movimentos:

▪ de tornar a sala de aula um espaço de trabalho, e não de platéia, isto é, entender a


sala de aula como intercâmbio vivo de uns com os outros, como um espaço-tempo em
que ocorrem relações dialógicas autênticas entre professor e alunos;
▪ e, para concretizar esse diálogo entre consciências equipolentes, imiscíveis, o de
promover, por meio da prosa-poética “Olhinhos de Gato”, de Cecília Meireles, a ação
de discutir, estudar o tema “leitura” como forma de incentivar, despertar o gosto e o
prazer de ler, a partir do exercício da imaginação e sensibilidade propiciado pela obra
aos alunos.

Após esse momento, distribuímos, o material impresso que foi apresentado no formato de um
texto de celebração, a saber:

▪ Ritos Iniciais, parte em que trouxemos quatro poemas de Cecília Meireles, para
dialogar tematicamente com a obra em foco (“olhinhos de Gato”) e, ao mesmo tempo,
configurar o canto de entrada, a acolhida e a oração do dia;
▪ Aclamação à Cecília Meireles, momento em que se deu o estudo da capa e contra-capa
da obra “Olhinhos de gato”;
▪ Segunda Leitura, etapa em que se realizou a leitura e estudo de três textos
estruturados a partir de fragmentos dos três primeiros capítulos do livro “Olhinhos
de Gato”;
▪ Clamores Cecilianos aos Fiéis Leitores, fase em que ocorreu leitura e interpretação
de frases-mensagem retiradas dos três primeiros capítulos da obra citada;
▪ Ritos Finais, última parte da aclamação, na qual se encontravam a mensagem final,
representada por uma poesia ceciliana, e o canto final, música-paráfrase de um dos
poemas cecilianos.

NARRATIVAS
1200

2.1 Celebrar: ação de compreensão do mistério da vida

2.1.2 Primeiro ato: Como pegar o livro?

A atividade, no primeiro dia de estudo, centrou-se nos “Ritos Iniciais” e na “Aclamação à


Cecília Meireles”. Rapidamente falamos sobre a definição de rito, que neste projeto assume o sentido
de cerimônia que se desenvolve a partir de um conjunto de normas previamente estabelecidas. Foi
uma experiência bastante singular, porque percebemos que, assim como numa celebração, as
pessoas mostraram-se formais e, ao mesmo tempo, curiosos com o que estava por vir. Entendemos
essas reações como uma situação bastante similar a de uma celebração, na qual nos colocamos
abertos para compreender o mistério de algo, entender e refletir sobre ele, individual e
coletivamente.
Prosseguindo nessa ação, por meio da oralidade, exploramos a leitura e o estudo, por uma
hora aproximadamente, de quatro poesias de Cecília Meireles que foram selecionadas para dialogar
com a obra “Olhinhos de Gato” e estruturar os “Ritos Iniciais” da celebração: a poesia “Motivo”, como
canto de entrada; o poema “Cântico II”, como a acolhida aos fiéis; “Cântico I”, como a oração do dia; e
“Apresentação”, texto escolhido como forma de realizar a apresentação da poetisa Cecília Meireles
por ela mesma.
Percebemos, nesse período, reações mais isoladas de participação e outras que se
mostravam mais à vontade para expor a sua compreensão ou até mesmo dúvidas. À medida que
entrávamos em contato com os textos cecilianos, um na forma de música e os demais declamados,
íamos falando, conversando sobre a autora que nos inspirou a metodologia e, ao mesmo tempo,
trazendo as reflexões desses textos para o nosso cotidiano. No contexto de envolvimento,
percebíamos as visões de mundo de uns se cruzando com as de outros, tudo isso constituído num
diálogo, no qual respondíamos às perguntas que surgiam, colocávamos novas perguntas,
provocávamos o nosso outro, concordando ou discordando de suas ideias (BAKHTIN, 2002, p. 76).
Nesse mesmo dia, finalizado o momento dos “Ritos Iniciais”, demos início à “Aclamação à
Cecília Meireles”: o contato externo com o livro “Olhinhos de Gato”- capa e contracapa. Nesse corpo a
corpo, que representou a “Primeira Leitura” da celebração, foi explorado individualmente o primeiro
contato com o livro. Nesse momento, experimentamos tocar a capa, ver os detalhes presentes na
ilustração da obra, as frases na contracapa que situam a narrativa, a tonalidade das cores
exploradas, o tato, ao roçar os dedos pelos desenhos finos que compõem a imagem da capa, e até a
audição, pois, concomitantemente a esse devaneio pela parte externa de “Olhinhos de Gato”, ouvíamos
uma música instrumental suave para que a nossa sensibilidade pudesse ficar mais aflorada. Depois
desse exercício em que os nossos sentidos colaboraram para fazer a leitura da composição da capa e
contracapa, compartilhamos entre nós os muitos significados sobre esse manto poético que
representava um convite para mergulharmos profundamente no texto que estava sendo anunciado
por essa parte da obra.

NARRATIVAS
1201

Tal compreensão do que seja a leitura esteve apoiada nas reflexões que nos trazem o escritor
Hermógenes Harada (2011). O ato “de pegar do livro, tateá-lo, olhá-lo de todos os lados, cheirá-lo,
experimentar folheá-lo, contemplar os tipos de letras” é uma ação que deve acontecer antes de
iniciarmos a leitura de uma obra (Idem). Segundo o referido autor, será nesse contato mais próximo,
mais íntimo com o livro que vamos desenvolver a nossa afeição ao que se encontra diante de nós a
ser descoberto. A leitura inicial da obra ceciliana “Olhinhos de Gato”, a que fizemos referência
anteriormente, nos oportunizou exatamente essa sensação de termos todos os nossos sentidos se
desenvolvendo, se exercitando em prol desse contato com o livro, contato esse que nos foi tornando
tão próximos da obra que, aos poucos, nos sentimos enlaçados por ela, à espera de um novo encontro
que se deu uma semana depois.

2.1.2 Segundo ato: A leitura como o caminho do saber

Chegou o segundo encontro: a “Segunda Leitura” da celebração, na qual iríamos conhecer os


três primeiros capítulos do livro “Olhinhos de Gato”. Tínhamos um novo desafio: prosseguir com a
nossa aproximação do livro, mas desta vez tomando-lhe suas folhas sob o tato dos olhos (HARADA,
2011), para lermos o primeiro capítulo, as suas primeiras linhas que nos levariam a sentir o suspirar
do vento matinal descrito por Cecília adulta na pele da menina Cecília, então com três anos e meio,
que acabava de acordar de uma noite inteira em que teve febre. OLHINHOS DE GATO!! Sim, os olhos
dela eram azuis-verde-cinzentos assim como os dos gatos, olhos que nos convidavam a recordar
junto com ela de momentos doces e amargos, que “cheiravam a flor murcha”. Mas, para que
caminhássemos de um saber ainda parco sobre a obra que estava se abrindo para nós, era preciso
uma maior sensibilização nossa. E mais uma vez optamos pela música instrumental, um recurso que
criaria um clima no qual os nossos sentimentos pudessem ficar à flor da pele. E assim, sob o som da
música escolhida, o texto, resultado de fragmentos selecionados do capítulo um do livro, foi lido.
A leitura foi lenta, pausada, objetivando que cada um de nós fôssemos tateando com os olhos
as palavras, as frases, tropeçando, em alguns momentos, nelas, como que querendo entender aquilo
que nem mesmo a menina Cecília sabia. “Palavras sem sentido...”. Quando acabamos de ler, foi
necessário perguntar o que se poderia compreender do que tínhamos acabado de ouvir. Havia um
silêncio, perceptíveis olhares de dúvidas e também um certo desgaste emocional. Mas, mesmo no
silêncio e com o silêncio dialogamos (ANDRADE, 1985). Precisávamos, portanto, deixar aquele silêncio
ser exteriorizado. Tratava-se precisamente de nos traduzir da linguagem interna para a linguagem da
expressividade externa e nos entrelaçarmos inteiramente, sem reservas, com o nosso outro
(BAKHTIN, 2003, p. 29). Bastou então que fizéssemos a pergunta para que uma das pessoas falasse
aproximadamente o seguinte: “Já havia lido esse capítulo em casa e a sensação foi a de tudo estar
muito confuso, mas, depois prosseguindo a leitura, vi que isso poderia ser proposital, para que
entrássemos no mundo da menina que está se descobrindo órfã e não sabe muito bem o que está
acontecendo”. A partir daí as falas surgiram: “límpidas ignorâncias” de alguns olhos - ainda

NARRATIVAS
1202

estupefatos com o que tinham lido e ouvido - foram expostas, assim como foram apresentadas
complementações e confirmações da leitura do nosso outro. O ritmo desse segundo encontro nos
pareceu um pouco lento, mais do que gostaríamos que fosse. Era necessário que, na próxima semana,
no próximo encontro, investíssimos nisso. E assim fizemos!

2.1.3 Terceiro ato: A entrada no jogo do enredo

Chegou o terceiro encontro da celebração à Cecília Meireles e, junto, a leitura do segundo


capítulo da obra. Já estávamos numa relação de afeição do interesse (HARADA, 2011) com a obra, não
a tocávamos mais como um consumidor indiferente. A leitura parecia boa, e o texto não nos parecia
mais cheio de letras mortas. Se a leitura é boa, ela nos deve conduzir para o não saber (Idem). Já
tínhamos algumas ideias acerca da narrativa, no entanto carecíamos saber mais, porque tudo o que
tínhamos, até finalizar o segundo encontro, eram só ideias vagas. E, para compreendermos a
narrativa de “Olhinhos de Gato”, exigia-se que nos aprofundássemos nela, jogássemos o jogo do
enredo. Tratava-se de uma prosa poética memorialística, cujo tema era a infância, uma infância que
ficara marcada pela forma abrupta com que se iniciou o contato da menina Cecília com a morte: a
perda do vínculo materno. Concentração era preciso para que pudéssemos entrar no entrecruzar da
realidade com a fantasia, com a imaginação da criança que sente a dor da ausência, porém não sabe
defini-la, definir-se nesse contexto.
A leitura ocorreu acompanhada de música instrumental, sempre com o objetivo de trazer
maior sensibilização a todos nós que nos encontrávamos envolvidos com o texto ceciliano. Encerrada
essa parte, precisávamos imediatamente começar a discussão sobre o capítulo e de forma mais
dinâmica, realizada em grupos formados por quatro componentes. Recurso e colagem foi o recurso
pelo qual optamos. Folhas brancas, revistas variadas, tesouras e colas foram distribuídas para que
pudéssemos construir a nossa leitura da narrativa. Gastamos cerca de quarenta minutos com esse
processo, pois, antes de escolhermos as imagens e palavras que formariam o painel da nossa
interpretação, tivemos que trocar ideias sobre o lido dentro de cada grupo. Não poderíamos vivenciar
apenas em nós, de modo intuitivamente persuasivo, o texto do capítulo dois; só em relação ao outro
poderíamos vivenciar a precariedade da nossa apreensão cognitiva (BAKHTIN, pp. 37 e 38).
E dessa forma realizamos o nosso painel interpretativo do capítulo dois: vimos o instante em
que “Olhinhos de Gato” andou pela casa da avó “com os seus cacos de vidro e os seus pedaços de
concha” (MEIRELES, 1980), discutimos a apreensão da menina com a possibilidade de a avó Boquinha
de Doce vir a morrer, ouvimos as cantigas da empregada da casa, Maria Maruca, sentimos os cheiros
de alho e cebola vindos da cozinha, escutamos as histórias contadas por Dentinho de Arroz à menina
Cecília e até acompanhamos a transformação da chácara da sua avó, que ficou sem cuidados depois
da morte do marido, mas que veio a renascer com a chegada da menina. Todas essas impressões se
configuraram em pequenos murais que, oralmente, foram explicados e comentados por grupo. Ao

NARRATIVAS
1203

final, dessa fase, tínhamos painéis que somados possibilitaram a todos nós a construção da unidade
de sentido do capítulo dois a partir do que foi dito, do modo como cada grupo leu o texto. Só assim a
vida da menina Cecília pôde ser percebida por nós, percepção essa que se deu na categoria do outro,
ao lado de outras pessoas e suas vidas, no mesmo plano com elas (BAKHTIN, 2003, p. 54).

2.1.4 Quarto ato: O saber como um jogo

Mais uma semana se passou e, nesse movimento temporal, conquistamos mais um dia em que
foi possível realizar o estudo do terceiro capítulo de “Olhinhos de Gato”. Neste quarto encontro,
respeitando a mesma vagarosidade proposital empregada na leitura do primeiro e segundo capítulos
e explorando uma nova música instrumental, fizemos a leitura do novo texto – o terceiro capítulo.
Após percorrermos a “antiga rua, larga e pobre, escancarada ao sol e às tempestades”
(MEIRELES, 1980), onde morava a Cecília menina, observarmos o trabalho duro do lixeiro, do
garrafeiro e do laranjeiro, sentarmos na soleira junto com ela para vermos o cotidiano em que
circulavam as andorinhas transportando a mudança de algum morador; após acompanharmos juntos
com Cecília adulta a lembrança remota do que se passou “no quarto de sua casa, de onde saíam e
entravam homens como aqueles” (Idem) das andorinhas, paramos para compreender o que lemos.
Dessa vez, o estudo do texto se deu a partir da relação do conteúdo do capítulo com outros textos
escritos por Cecília Meireles: uma poesia , “Orfandade”, publicada no livro “Viagem”, em 1939, e um
fragmento da crônica “A infância e sua atmosfera”, publicada no Jornal Diário de Notícias, em
novembro de 1932.
A ideia era que percebêssemos que o tema infância e morte, explorados nesse e nos outros
capítulos estudados, perpassam várias obras cecilianas, independente do gênero. A discussão ocorreu
de forma muito significativa, pois, por meio do diálogo, nos aprofundamos sobre a abordagem
temática, as combinações de palavras presentes no terceiro capítulo que mantinham relação com os
outros textos cecilianos, revelando-nos, de forma subjetiva, o mundo objetivo da personagem
“Olhinhos de Gato”: os seus embaraços com as imagens que ficaram na sua lembrança de uma moça
sentada na cama, identidade essa que só lhe foi revelada como sendo de sua mãe, muito tempo depois,
pela avó materna; o cheiro diverso do ambiente do velório da mãe; os molhos e rodas de flores, enfim
representações que confirmavam a sua orfandade. Todas essas imagens, em que se misturam
realidade, fantasias, expõem uma infância marcada pela morte. O resultado da análise do terceiro
capítulo foi bastante animador, pois percebemos o quanto todos nós estávamos mais familiarizados
com os pensamentos, os questionamentos, as imaginações da menina, revelando-se como um duplo da
criança protagonista (OLIVEIRA, 2014, p. 487): a Cecília adulta relembrando sua infância como a
narradora de sua autobiografia.
Dando prosseguimento à celebração, fomos para o momento dos “Clamores Cecilianos aos
Fiéis Leitores”. Nessa fase que antecede os ritos finais, pensamentos do narrador onisciente da obra
“Olhinhos de Gato”, vistos por nós como sendo de Cecília Meireles adulta, são apresentados para que

NARRATIVAS
1204

façamos uma reflexão sobre o seu conteúdo a partir da nossa vivência. Esse é o momento de catarse
final. Algumas pessoas dentre nós escolheram um clamor e fizeram um comentário sobre ele,
atualizando-o, relacionando com o seu cotidiano. Foram vários os temas explorados: o ser e o
parecer; o poder das crenças populares; a perseverança nos momentos de dor; o respeito à natureza;
e a gratidão a Deus. As nossas reflexões sobre os clamores estavam naquele momento não só lado a
lado, mas se interpenetravam na medida em que, embora destacássemos as nossas próprias
histórias, as nossas próprias experiências, estávamos todos envolvidos na unidade da culpa e da
responsabilidade (BAKHTIN, 2003) em relação aos nossos atos, visto que somos seres inseridos em
um contexto social, interagindo uns com os outros e, por isso, o que acontece conosco atinge de
algum modo também o outro. Dessa forma, somos todos responsáveis pelos nossos atos e
respondemos por eles na vida sempre em relação ao outro com quem convivemos.

2.1.5 Quinto ato: Encerrando a celebração

Reservamos esse momento final da celebração para comentar que, ao finalizarmos o estudo
dos três primeiros capítulos da obra “Olhinhos de Gato”, de Cecília Meireles, estávamos encerrando
apenas uma etapa. Há ainda outros capítulos da obra que podem nos oferecer um maior
aprofundamento da prosa memorialística na qual Cecília adulta trata da infância da menina Cecília.
Sendo assim, novas propostas de leitura deveriam nascer. A leitura, por ser abertura para o ser-no-
mundo, se renova em cada nova etapa de compreensão e análise de um texto. O projeto na forma de
celebração representou um enunciado verbalizado que foi criado a partir de algo, a obra “Olhinhos de
Gato”, de Cecília Meireles. Esse criado, dividido e dado na aula de Didática do Curso de Pedagogia
deveria então ser explorado para que venha surgir algo novo e singular. Seria então hora de
buscarmos outras formas autônomas e criativas para planejar novas abordagens dessa mesma obra
que também favorecessem um contato vivo das nossas ideias com o pensamento ceciliano, com os
nossos próprios pensamentos e vivências e com o dos nossos outros que se encontram no espaço-
tempo sala de aula.
Depois disso, encerramos a celebração à Cecília Meireles lendo um outro poema da própria
autora como mensagem final, “É preciso não esquecer nada” (1962), e, em seguida, trouxemos, como
canto final a música “Canteiros”, interpretada pelo cantor cearense Raimundo Fagner que é uma
composição-paráfrase do poema “Marcha”, de Cecília Meireles.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizar o projeto “Leitura: abertura para o ser-no-mundo” na forma de celebração, com os


alunos da turma de Pedagogia do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, nos possibilitou confirmar que,
em tudo através do qual o homem se exprime e exprime exteriormente para outro – do corpo à
palavra - existe uma tensa interação, uma luta entre o “eu” e o “outro”, um desconhecimento ingênuo

NARRATIVAS
1205

de um a respeito do outro ou ignorância mútua, ou até um não reconhecimento quando se objetifica o


outro.
Nessa luta, está a palavra viva que, por sua natureza dialógica, quer ser ouvida e respondida
(BAKHTIN, 2003, p. 350). Só no dialogismo é possível uma interação substantiva de consciências, em
que a voz do professor e a do aluno são plenivalentes. Sendo assim, ter explorado, durante um mês,
com os alunos do Curso de Pegadogia do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, o tema leitura, na forma
de uma celebração, deram ao espaço-tempo sala de aula o movimento necessário que a tornasse um
lugar de trabalho, pleno de tonalidades dialógicas.
Observamos que na relação do leitor com o livro, houve uma tensa interação que transformou
a sala de aula em lugar de ação. Iniciamos – do corpo à palavra – um contato ingênuo com a obra
"Olhinhos de Gato", de Cecília Meireles. E, nessa aproximação, existiram comportamentos diferentes
que foram desde o desconhecimento ingênuo da obra, de um não saber que quer saber, até ao
aprofundamento do conhecimento da narrativa.
A partir desse mergulhar na obra ceciliana, da afeição do interesse pela história da infância
da menina Cecília, contada por um narrador onisciente, representado pela Cecília adulta, nasceu um
diálogo contínuo, substantivo entre todos que estavam interagindo, no qual cada palavra nossa, cada
palavra do nosso outro pôde ser ouvida, respondida, apreciada e reapreciada numa interação
sucessiva. Dessa forma, nesse processo de entender a sala de aula como um lugar de trabalho, de
ação, e não de platéia, defendido pelo projeto, tivemos a oportunidade de nos descobrir na expressão
e defesa de ideias, assim como descobrir a capacidade do nosso outro no entrecruzar das nossas
ideias.
Portanto os três primeiros capítulos da obra “Olhinhos de Gato”, de Cecília Meireles,
apresentados por meio de uma celebração, tornaram-se o elo na cadeia de comunicação discursiva
que nos possibilitaram construir um contexto dialógico em que não existia nem a primeira nem a
última palavra, mas uma renovação do diálogo a cada réplica do nosso outro (BAKHTIN, 2003).
Considerando o exposto, reafirmamos que a sala de aula pode e deve ser sempre compreendida como
um lugar de intercâmbio vivo de uns com os outros, como um espaço-tempo em que ocorrem
relações dialógicas autênticas entre professor e alunos.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, C. D. Nova Reunião: 19 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo; Martins Fontes, 2003.
BUYST, I. O segredo dos ritos: ritualidade e sacramentalidade da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 2011. Antonio
Wardison C. Silva. Revista de Cultura Teológica - v. 20 - n. 80 - out/dez 2012.
HARADA, H. Iniciação à Filosofia. Teresópolis, RJ: Daimon, 2009.
___________. De como estudar. Curitiba: São Boaventura, 2011.

NARRATIVAS
1206

MAGALDI, A. B. M.A Poesia no Mundo: Educando Educadores. In: Cecília Meireles: A Poética da Educação. Org. Neves,
Margarida de Souza ET AL. Rio de Janeiro: PUC, Loyola, 2001.
MEIRELES, C.. Olhinhos de Gato. São Paulo: Editora Moderna, 1980.
MEIRELES, C. Cecília Meireles de Bolso – uma antologia poética. Org. Carpinejar, Fabrício. Porto Alegre, RS: L&PM,
2014.
OLIVEIRA, G. P. Cecília Meireles por ela mesma e sobre outras mulheres: sua autobiografia e a representação do
feminino no Brasil do início do século XX. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 4, p. 487-494, out/dez 2014.

NARRATIVAS
RESUMO
1207

MEMORIAL ANALÍTICO- Palavras-Chave:

DESCRITIVO: um acabamento
estético ao vivido a partir de contribuições
de Pierre Bourdieu

SILVA, Rute Almeida e 305

INTRODUÇÃO

N
esse artigo, busco empreender um olhar, um acabamento estético, sobre o vivido, a partir da
noção de habitus e campo de Pierre Bourdieu. Pensando a formação de professores como um
caminho promissor, no que diz respeito a busca pela melhoria da qualidade da educação,
apresento aqui um memorial306 analítico-descritivo, como um instrumento formativo, que possibilita
inúmeras reflexões sobre a vida mesma, trazendo à memória elementos capazes de fazer repensar e
transformar as práticas pedagógicas de ensino-aprendizagem.
Desse modo, o memorial aqui é tomado como uma ferramenta dialógica. Isso porque, na
perspectiva bakhtiniana, o diálogo, uma das maneiras mais importantes de interação social, constitui-
se como possibilidade inesgotável de enunciação, em que as pessoas enunciam-se e, nesse processo,
situam-se nos meandros da própria trajetória de formação. Sendo assim, este memorial representa a
minha própria experiência e, como tal, está prenhe de significados e reinterpretações. Por meio dele,
é possível aderir ao meu pensamento e ao significado que dou às minhas aprendizagens, além de
acessar aquilo que se passa (passou) comigo, que me toca(tocou) e que me acontece (aconteceu)
(LARROSA, 2002), além de iluminar, nas palavras de Galvão (2005), meu processo de desenvolvimento
profissional docente.
Na qualidade de professora da disciplina de Língua Portuguesa, manifesto minha preocupação
com a formação docente para o enfrentamento não só da realidade sócio-político-cultural que
permeia o universo escolar, como também dos desafios colocados frente à profissão docente, no

305 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL), da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT. E-mail:
mocanegra@hotmail.com
306 Estamos atribuindo ao memorial o mesmo sentido de narrativas, pois entendemos que, na essência, tanto um texto como o outro trata-se

de forma escritas (ou orais) de contar histórias. Neste artigo, compreendemos que o memorial descritivo-analítico é composto,
inevitavelmente, por narrativas autobiográficas.

NARRATIVAS
1208

contexto atual, que se mostra, por vezes, “escatológico”. Por isso, busco a escrita deste memorial,
dialogia pura, edificante e constitutiva do ser, como alternativa prática, teórica e metodológica, para
(re) pensar a minha própria atuação docente.

MEMORIAL: instrumento de formação

Um memorial analítico-descritivo, composto por narrativas autobiográficas, é um importante


instrumento que, narrado, reflete, a história do sujeito, a partir de suas experiências pessoais e
profissionais. Com base em referenciais teóricos, a escrita e análise desse material permitem não
somente resgatar o percurso de vida do sujeito, como também refletir e resignificar suas ações.
Nesse aspecto, Cunha (1997) explica que o uso dessa metodologia narrativa vem crescendo em todo o
Brasil, nas pesquisas qualitativas, especialmente, na área da Educação.
Segundo a autora, as narrativas representam a própria realidade do indivíduo e o “fato da
pessoa destacar situações, suprimir episódios, reforçar influências, negar etapas, lembrar e
esquecer, tem muitos significados e estas aparentes contradições podem ser exploradas com fins
pedagógicos (CUNHA, 1997, p.186). Logo, tendo em vista o caráter educativo, tanto na pesquisa como
no ensino, esse instrumento autobiográfico contribui para a formação da consciência emancipatória
do sujeito, porque provoca mudança na sua maneira de compreender diversas situações ao seu redor,
inclusive, a si mesmo, acrescenta a autora.
Sobre esse assunto, Guedes-Pinto (2005) também destaca que, embora tenhamos uma
história compartilhada socioculturalmente, cada ser possui uma biografia impar, irrepetível, que não é
igual a de qualquer outro, e a rememoração dela possui uma força imensa de nos colocar em xeque. A
formulação, a indagação acerca do vivido, de nossas escolhas, de nossos caminhos, permite o diálogo
conosco mesmo, e, a partir dele, muitas vezes, surpreendemo-nos. Tal prática possibilita rever nossa
trajetória e “passar a limpo” alguns aspectos incompreendidos. Eis aí a oportunidade de refazer meu
percurso, de definir um novo rumo, um novo “fim” ou “começo” a minha vida pessoal e profissional.
Então, escrever um memorial descritivo é reconstituir, através da memória, as vivências,
recontando minha trajetória, minhas experiências pessoais, acadêmicas e profissionais. É repensar
minha própria existência. No entanto, a elaboração desse material não é uma tarefa fácil, pois não se
sabe ao certo que direcionamento dar a escrita, que fatos relatar, que ordem seguir, que aspectos
destacar, entre outras questões. Apesar de ser um trabalho árduo, pretendo aqui revisitar o passado,
fazendo uma retrospectiva, de forma introspectiva e extrospectiva, considerando o tempo, os
sentimentos, os ambientes vividos (CLANDININ & CONNELLY, 2011), recompondo minha história, de um
outro lugar, já que minhas concepções de hoje são ressignificadas e tomam, desse modo, outros
sentidos.
Portanto, considerando esta uma oportunidade de refletir e redimensionar o mundo em que
vivo, com um olhar autocrítico, apresento este memorial analítico-descritivo, baseado no pensamento

NARRATIVAS
1209

de Pierre Bourdieu 307 , especialmente, nas noções de habitus e de campo. Porventura, esses
pressupostos ajudarão a compreender, dentre outras questões, a construção da minha identidade,
enquanto profissional, do meu habitus docente, dentro do campo educacional, no qual atuo nos dias de
hoje.

BREVE REFLEXÃO SOBRE OS CONCEITOS DE HABITUS E CAMPO NA PERSPECTIVA BOURDIANA

O habitus é um dos conceitos central na obra de Bourdieu. Essa noção possui uma longa
história. Segundo o próprio autor, tal noção tem sua origem na teoria de Aristóteles, passando por
Durkhein, depois, por Marcel Mauss. Todavia, para Bourdieu ([1983] 2003), nenhum desses
pensadores empregou um papel decisivo a esse conceito. Logo, ele emitiu seu olhar sobre tal termo,
fazendo, por exemplo, uma distinção entre a noção de habitus e de hábito. Este último é considerado
algo repetitivo, mecânico, mais reprodutivo do que produtivo. Já o primeiro (habitus) é aquilo que se
adquiriu, que se incorporou no corpo de forma durável e que possui, sobretudo, uma enorme potência
geradora.
Assim como no pensamento aristotélico, o habitus refere-se a um capital, que, quando inscrito
no corpo, exteriormente parece ser inato (mas não é). Seu caráter histórico não é descartado,
porque, de acordo com Bourdieu, o habitus está intimamente ligado à história individual de cada
pessoa. Ele é o produto dos condicionamentos que tem a tendência de reproduzir as condições sociais
da própria produção do sujeito, de maneira imprevisível (BOURDIEU, [1983] 2003). Isso quer dizer que
esse fenômeno sociológico ─ o habitus ─ impregna profundamente não só o psiquismo, o cognitivo,
como também o corpo do ser humano.
Desse modo, é possível compreender o habitus como um conceito basilar na obra bourdiana,
visto que, a partir dele se origina todas as práticas das pessoas ─ ação, crença, postura, estilo, modo
de vida, percepções, pensamento, expressões, entre outros. Essas capacidades se originam no social
e têm por limites as condições históricas em que cada indivíduo está inserido. Nas palavras de Grillo
(2008, p. 140/141), “os sujeitos são formados pela incorporação de disposições produzidas por
regularidades objetivas, situadas dentro da lógica de um campo determinado (ciência, religião, mídia,
família, classe social, etc)”.
Imbricado com a noção de habitus, encontramos o conceito de campo. Para Bourdieu ([1930]
2001, p. 121), configurado como um lugar social estruturado, “cada campo é a institucionalização de um
ponto de vista nas coisas e nos habitus”. O autor francês definiu o campo como um espaço de luta,

307 Sobre o aspecto narrativo, de antemão, vale reassaltar aqui a oposição que o autor francês mantinha com a abordagem biográfica, embora
já tivesse publicado um livro nesse estilo (Esta não é uma autobiografia). A respeito de tal questão, Montagner (2009) esclarece que, para
Pierre Bourdieu, a perspectiva científica de história de vida sempre esteve relegada a um segundo plano, a um material sociológico pouco
notável. Montagner (2009) explica que estudioso criticava, de fato, a postura metodológica de pesquisadores preocupados em traçar
panoramas individuais de sujeitos históricos, portadores da capacidade de instaurar por si mesmos um projeto criador excepcional e
extrassociedade. Mas, como mostram os últimos trabalhos, Bourdieu já havia assumido novos rumos e investiu na possibilidade de fazer do
científico uma base social do intelectual atuante e engajado (MONTAGNER, 2009, p. 260).

NARRATIVAS
1210

onde se determina as condições e os critérios de pertencimento e de hierarquia legítimos (GRILLO,


2008). Nessa perspectiva, os campos são autônomos, ou seja, um lugar em que o agente produz
ideologias, sendo capaz de refratar, traduzir ou transformar as demandas externas (especialmente, a
de base econômica), complementa a autora.
A noção de campo de Bourdieu se liga também à sua teoria sobre economia e mercados de
bens simbólicos (música, arte, televisão, moda, literatura, entre outros), que remete à “forma de um
sistema de probabilidades objetivas de ganho (positivo ou negativo)” (idem, [1930] 2001, p. 236). Isso
quer dizer que o espaço social está associado às estratégias de acumulação, de reprodução de
diferentes espécies de capital (social, cultural, econômico, linguístico, entre outros) adquirido por
uma pessoa, com o intuito de manter ou melhorar sua posição no campo. Portanto, os campos sociais
constituem-se como espaços de lutas (entre dominante e dominado), onde os diferentes grupos
entram em disputa pela imposição dos princípios legítimos de sua percepção do mundo e dos seus
interesses. Trata-se de uma luta simbólica, em que cada qual defende o que lhe é favorável,
complementa Almeida (2007).
Desse modo, partindo desses conceitos-chave, abordarei, em seguida, relatos de minha
trajetória pessoal, profissional e acadêmica, buscando compreender como meu percurso de vida
condiciona a minha forma de inserção no campo educacional e reverbera sobre minhas atitudes,
enquanto profissional da educação, haja vista que minha postura é dependente, sobretudo, do volume
de capitais (simbólicos, cultural, econômico) exigidos pelos sistemas coercivos desse campo de
atuação.

O INÍCIO

Sou a oitava filha de uma família de dez irmãos. Mesmo tendo uma casa tão cheia, nunca
tivemos uma boa união, já que meus pais, semianalfabetos, separaram cedo, quando eu ainda tinha
três anos, na cidade de Barão de Melgaço – MT. Cinco anos depois dessa separação, já na capital
goiana, após passarmos por situações de miséria e fome, minha mãe faleceu. Depois disso,
retornamos para o interior do Mato Grosso e fiquei morando com meu pai até 12 anos. Ele também
faleceu, anos depois.
A descrição feita neste início da narrativa já remete à noção de campo de Bourdieu, porque,
para o autor, o campo (neste caso, o campo familiar) configura-se como um lugar social conflitante,
cuja necessidade se impõe aos sujeitos que nele se encontram envolvidos. Trata-se de um campo de
lutas, poderia dizer: de sobrevivência, pois, nessa parte da infância, deparei-me com situações
angustiantes de desunião familiar, divórcio, fome e morte.
Em Barão de Melgaço, estudei da 2ª série até meados da 5ª série, do Ensino Fundamental,
numa escola pública, na zona rural. Recordo-me que todos os dias quando chegávamos fazíamos filas,
organizadas do menor para o maior, de um lado meninas; do outro, meninos. Era tudo bem rigoroso.
Nessa escola, por dois anos, tive um professor supertradicional e muito bravo. Ele dava beliscões e

NARRATIVAS
1211

cascudos, chingava, jogava giz e puxava nossas orelhas. Lembro-me que, nas aulas de Artes, fazíamos
colagem com caroços de milhos e pregávamos tampinhas de garrafas em tábua de madeira. Com esse
material, ele nos deixava de castigo, de joelhos, atrás da porta, quando cometíamos deslizes em sala.
Nossas famílias tinham o conhecimento de todas aquleas práticas, apesar disso, não me recordo de
nenhuma reclamação por parte do meu pai, por exemplo.
Hoje, sei que aquele tipo de “pedagogia” não condizia e nem condiz com as leis educacionais
do país. Imagino que aquelas punições, baseadas na violência física e humilhações psicológicas, frutos
de uma cultura vivida por nossos ancestrais, no período da escravidão, contribuíam pouco para uma
formação humana. Ao contrário, serviam apenas para criar terror nas nossas mentes, tanto que
presenciei várias vezes meus colegas chorando, com medo, na sala de aula. Diante dessa questão,
atualmente, evito momentos tensos como aqueles nas escolas que leciono, já que o diálogo, além do
afeto, é um bom caminho na resolução de conflitos na sala de aula.
Como docente, esse fato tem estado presente em meu pensamento, na lida com meus alunos.
Ressignifico tal acontecimento, buscando me policiar para não agir de modo tão insensato e
traumatizante. Ainda mais sabendo que esta postura não é coerente com as tendências atuais de
ensino. As Orientações Curriculares Nacionais (BRASIL, 2006), por exemplo, um dos referencias
oficiais de ensino-aprendizagem, sugerem uma aula participativa, com espaço para indagações,
incertezas, equívocos, desconstrução e (re) construção de conhecimentos.
Partindo do pressuposto bakhtiniano de que, na interação, uma pessoa está sempre
replicando outras falas, refutando-as ou aceitando-as, conforme sua apreciação valorativa, parece
que, ao me posicionar, na narrativa acima, sobre esse tipo de “pedagogia”, busco negar o ensino sob
uma perspectiva tradicional, baseado em castigos corporais, fruto da influência do ensino jesuíta.
Fixada em minha experiência, apresento uma postura analítica, de alguém que não quer cometer os
mesmos “equívocos” vivenciados outrora.
Nesse aspecto, o saber da experiência (LARROSA, 2002) parece sublinhar uma qualidade
existencial, em uma relação direta com a vida concreta, possibilitando-me uma reflexão sobre o
evento ocorrido. Quando digo que, nos dias de hoje, tenho buscado novos meios de lidar com os
alunos, de modo afetivo e dialógico, em sala de aula, a minha postura vai ao encontro do pensamento
de Chalita (2001, p. 64) de que “o início da revolução educacional precisa começar com singelas
manifestações de amizades e comprometimento, de competência, solidariedade e amor”. Acredito que
o ensino-aprendizagem, está, inegavelmente, impregnado de afetividade, pois ocorre nas interações
reais, entre seres humanos vivos, numa relação não neutra
O olhar, o acabamento estético, sobre o vivido nessa situação possui exatamente essa força
de me colocar em xeque, de me fazer formular questionamentos sobre o vivido. Esse diálogo comigo
mesma me possibilita passar a limpo minha própria história (GUEDES-PINTO, 2005). Afinal, quando um
indivíduo relata os fatos vividos por ele próprio, organizando suas ideias, de maneira escrita, ao
mesmo tempo, ele se percebe, enquanto sujeito, reconstruindo sua trajetória, dando-lhe novos
significados. Nessa reconstrução reflexiva, a pessoa faz uma autoanálise e cria novas bases de

NARRATIVAS
1212

compreensão de sua própria vida (CUNHA, 1997). Acredito que é exatamente este o movimento feito
aqui. Ao rememorar, faço aqui um estudo das situações que vivi, relacionando-as com a influência do
ambiente, buscando, extrair, sobretudo, um resultado das diversas interações sociais e dos vários
percursos realizados.
Em 1992, aos doze anos, fui trabalhar de doméstica na casa de uma professora de Língua
Portuguesa, em um bairro nobre da capital matogrosse. Minha patroa era formada em
Letras/Francês. Embora, na época, esse fato não representasse nada para mim, porque não
compreendia bem acerca de formações acadêmicas, é pertinente acreditar que tive significativa
influência da mesma na minha vida profissional, especialmente.
Considerando o pressuposto de Guedes-Pinto (2005, apud Bosi, 1995) de que, na maioria das
vezes, lembrar não é reviver, mas refazer com imagens e ideias de hoje as experiências do passado e
que a memória não é sonho, mas sim trabalho, realizo, aqui, um esforço para me lembrar de algo
marcante, no que se refere a um incentivo dado por esta patroa que resultasse na minha atual
escolha profissional. Mas não recordo de nenhum apoio ou direcionamento concreto recebido por
parte dela. Lembro-me, apenas, que nessa residência, havia uma biblioteca cheia de livros
paradidáticos e que, nas horas vagas, por curiosidade, eu realizava diversas leituras, principalmente,
de obras juvenis.
No entanto, é possível acreditar que a vivência com essa família foi decisiva para o
redirecionamento da minha vida, ainda que de modo inconsciente, isto é, a experiência vivida, com
uma professora, colaborou na constituição do meu habitus que, de certo modo, me direcionou para o
campo da docência. Isso porque, segundo Bourdieu ([1983] 2003), o habitus é o produto dos
condicionamentos que tem a tendência de reproduzir as condições sociais, mesmo que sem
consciencia, de maneira imprevisível.
Da 5ª série ao 1º ano do Ensino Médio, morando com essa família, estudei numa escola pública,
localizada em um bairro de classe média alta de Cuiabá. Como vinha do interior do estado, de uma
escola rural, apresentava muita dificuldade no ensino-aprendizagem, precisava me esforçar muito
para a companhar a turma. Em relação a isso, pode-se pensar que o mau desempenho escolar se deu,
dentre outras questões, devido a ausência de capital308 cultural na minha constituição. Tendo em vista
que eu originava de uma família muito pobre, não foi feito em mim, diretamente, um investimento que
possibilitasse o acúmulo de capital necessário para me sobressair nesse espaço escolar, pois os bens
culturais pressupõem um capital econômico (BOURDIEU, 1998).
Nessa perspectiva, as pessoas são dotadas de habitus, encarnado nos seus corpos pelas
experiências que viveram ao longo da vida, na sociedade, conforme Bourdieu ([1930] 2001). Tendo em
vista isso, no relato acima é possível perceber que sou, de fato, resultado de um processo histórico
de minha própria existência, essencialmente, quando faço referência às minhas dificuldades no

308A noção de capital cultural, em Bourdieu, tem origem no pensamento marxista e constitui-se em uma ferramenta para se apreender a
dimensão simbólica de luta entre os diferentes grupos sociais. Ele pode existir sob três formas: no estado incorporado (disposições duráveis
do organismo), no estado objetivado (bens culturais) e no estado institucionalizado (ALMEIDA, 2007; BOURDIEU, 1998).

NARRATIVAS
1213

ensino-aprendizagem. Diante dessa experiêcia, pobre e desassistida que vivi naquele período, esse
resultado nao poderia ser diferente. Como não houve investimentos (de capital econômico) reais e
específicos na minha educação que me proporcionassem melhor desenvoltura na escola, eu só
poderia resultar naquela aluna com problemas de aprendizagem. Isso pois o indivíduo nunca é
totalmente o sujeito de suas ações, ao contrário, ele é fruto do meio em que vive.
Ao longo da minha trajetória, vivenciei diversos momentos difíceis. Mas nunca deixei de
estudar. Em 1999, concluí o Ensino Médio, na cidade de Goiânia-GO. Embora sem incentivo familiar,
porque morava sozinha, lá continuei participando de um cursinho comunitário que visava a
preparação para o vestibular. Tinha dentro de mim uma esperança de que com estudo um dia
conseguiria mudar meu destino. Desde essa época, eu acreditava na educação como o único caminho
que me faria “alguém na vida”. A minha dedicação e esforço na escola (pública), de certo modo, pode
ser visto como uma estratégia, indireta, de investimento educativo que me assegurou um futuro
melhor, conforme a perspectiva bourdiana. Isso pode ter sido determinante para que eu tenha
garantido uma profissão e não tenha seguido outros caminhos como o das drogas ou da prostituição,
por exemplo, fuga para muitos indivíduos marginalizados socialmente.
Por outro lado, como não sou totalmente o sujeito de minhas ações (BOURDIEU ([1983] 2003),
embora tenha intenções aparentemente lúcidas, agi conforme as estruturas, as disposições e as
crenças dos campos que participava. Nesse aspecto, parece que as escolhas estão profundamente
incorporadas, inscritas no corpo e na postura das pessoas de modo que não permite uma mera
tomada de consciência. Acerca desse assunto, Morato e Bentes (2002, p.34) reforça que para a maior
parte de nossas ações não há uma “reflexão especial, posto que somos tomados de maneira
largamente inconsciente pelo jogo social, seus pressupostos culturais e suas práticas ou formas de
ação”.

A UNIVERSIDADE: um sonho inalcançável

Mesmo com muita dificuldade de aprendizagem, em Goiânia, fiz o meu primeiro vestibular para
o curso de Letras Português/Francês, embora, sem compreender bem o porquê da escolha do curso,
pois, na escola, nunca me destaquei na disciplina de Língua Portuguesa. Certamente, havia no meu
habitus uma incorporação inconsciente relacionado ao convívio com a minha ex-patroa, formada
exatamente neste curso. Logo, na ótica bourdiana, minha escolha não foi lúcida e sim condicionada a
minha trajetória social e histórica. Isso é bem verdade, pois, também pelo princípio constitutivo da
interação social de Vygotsky ([1984] 2007), eu me constituo nessa relação, através do outro, nas
práticas sócio-historicamente situadas. Trago em mim, inevitavelmente, marcas de um outro diferente
de mim (BAKTHIN ([1929] 2010).
Realizei, nessa época, vários exames seletivos de vestibulares e reprovei em todos, porque
não tinha capital cultural suficiente para a inserção em uma universidade. Além disso, não possuía
referência pessoal e nem incentivo econômico-financeiro que pudesse ajudar nessa conquista. Para

NARRATIVAS
1214

mim, entrar em uma instituição pública já estava se tornando algo inalcançável e impossível. Então,
em 2002, um pouco desanimada com minha situação, retornei para Cuiabá, para morar na casa de um
irmão. Com muito sacrifício, ele e minha cunhada havia ingressados numa universidade pública. Era
tudo que eu precisava: uma referência, um caminho. Naquele momento, eu tive contato com alguém
que havia de fato conseguido chegar “lá”. Então, acreditei. Vi que era real, que seria possível para mim
também.
Fiquei muito feliz. Senti minhas energias renovadas. Eu trabalhava de dia, como vendedora,
numa loja, e era bolsista em um cursinho pré-vestibular à noite. Sem dúvida, a presença do meu irmão
e da minha cunhada na minha trajetória foi fundamental. A relação dialógica instalada entre nós
acerca do estudo acadêmico possibilitou uma cumplicidade muito grande. Descobri-me neles. Como
bem destaca Cunha (1997, p. 05): “Ao mesmo tempo que se descobre no outro, os fenômenos revelam-
se em nós”.

INGRESSAR EM UMA UNIVERSIDADE PÚBLICA: a concretização de um sonho

No segundo semestre, de 2003, saí do serviço e estudei muito para o vestibular. No final
daquele ano, realizei o exame e fui aprovada, para o curso de Letras Português/Francês, na
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). “Escolhi” esse curso, porque o volume e a composição
dos capitais individuais e familiares que eu dispunha não me autorizavam estratégias mais
ambiciosas, como concorrer a cursos superiores mais rentáveis e com maior status social, como
Direito, Medicina, Engenharia ou Psicologia. Esses cursos parecem exigir agentes com maior nível de
capital cultural.
Na ótica bourdiana, eu (não escolhi) fui encaminhada, por todas as coações visíveis e
invisíveis, a optar por este curso mais modesto, com menor reconhecimento social e com menor
rentabilidade (em termos salariais). Quanto a isso, Bourdieu ([1983] 2003) esclarece: o indivíduo
nunca é totalmente sujeito (dono) de suas ações, embora tenha intenções aparentemente lucidas, sua
escolha está incorporada no seu habitus, ligada ao jogo social, cultural, histórico no qual está inserido.

A ENTRADA NO CAMPO EDUCACIONAL

No último semestre, no final do curso de Letras, senti muita angustia, pois precisava sentir de
perto meu curso de licenciatura, ou seja, tinha necessidade de praticar aquilo que vinha estudando na
graduação. Talvez não soubesse dimensionar o fato de que eu estava prestes a entrar no campo da
educação, um lugar que possui um habitus específico, uma lei própria de funcionamento, e que eu
teria necessidade de corporificá-las para participar efetivamente.
Assim, lecionei por pouco tempo em uma escolinha no meu bairro, no Ensino Fundamental.
Esse primeiro contato com os alunos, na sala de aula, foi marcante em minha vida. Tive a sensação de
que havia aprendido pouco na universidade, pois não conseguia pôr em prática os conhecimentos (tão

NARRATIVAS
1215

teóricos) que havia estudado. Sentia-me sozinha, como se estivesse que aprender tudo por mim
mesma. Tinha vontade de atuar. Entretanto, sentia-me despreparada.
Como já disse, eu não imaginava que estava adentrando um campo, regido por regras que eu
precisava incorporar para pertencer. Era um lugar conflituoso, de luta, cuja necessidade se impunha a
mim, enquanto professora, enquanto agente que nele se inseria (BOURDIEU ([1930] 2008). Todavia,
apesar dos percalços, aquele momento marcava minha inserção no mercado de trabalho,
representava, sem dúvida, um movimento de ascensão profissional. Mesmo reconhecendo os sérios
problemas do campo educacional: baixos salários, desvalorização da carreira, condições de trabalho
ruins, entre outros, considero um avanço tal inserção. As circunstâncias pelas quais passei (péssima
estrutura familiar, educação de baixa qualidade, entre outras experiências ao longo da vida) poderiam
ter me levado a outras ocupações e profissões menos qualificadas e menos valorizadas. Por isso
estava feliz.
Ainda na busca de compreender o processo da teoria/prática em sala de aula, com muito
sacrifício consegui entrar, já nos últimos meses do curso de licenciatura, em dois projetos existentes
dentro da universidade (sobre os quais eu não tinha conhecimento até então): Conexões de Saberes ─
um Programa que visava ajudar os jovens universitários de origem carente a permanecerem na
instituição com qualidade; Programa de Iniciação Científica (PIBIC), que tinha como objetivo contribuir
para o processo de formação científica dos alunos, mediante a participação em projetos de pesquisa
dentro da universidade.
Depois disso, da imersão nesses Projetos de estudos, logo comecei a “colher” os frutos de
tais investimentos. O campo universitário, um lugar social de leis próprias, da produção de
conhecimento, que, agora, estava imersa, exigia de mim nova postura, pois novas necessidade se
impunham. O capital cultural que adquiri nessas participações acadêmicas me preparou para o
ingresso, em seguida, em 2009, no curso de mestrado, na UFMT. Nessa ótica, tendo em vista que cada
campo possui um hábito específico, a minha participação, nesse campo da pesquisa, era dependente
do ajuste (da incorporação, da inscrição) ao hábito do campo acadêmico que eu pretendia participar.
Isso porque em todos os campos há hábitos específicos, regras de funcionamento e hierarquias e os
agentes assumem posições, de acordo com as coerções existentes.
Desse modo, depois de passar pela experiência de sala de aula em algumas escolas do bairro,
em cursos pré-vestibulares e também em uma universidade estadual, ingressei-me na carreira
pública. Fui aprovada no concurso de professora para a educação básica, em 2011. Quanto a estes
percursos, é correto pensar que o capital acumulado na trajetória escolar/acadêmica (Ensino
Fundamental, Médio, Graduação, Pós-Graduação) e na profissional contribuiu para a minha
participação ativa no campo educacional, permitindo-me não só entender os códigos, bens materiais e
simbólicos e jogos específicos desse espaço, como também me familiarizar com eles, no sentido de
pertencer.
Entre 2012 e 2014, tive a oportunidade de lecionar também na Educação a Distância (EAD), na
Universidade Aberta do Brasil (UAB) ─ pelo Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). Finalizado esse

NARRATIVAS
1216

trabalho, fiquei por dois anos, como Supervisora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
Docência (PIBID), de Letras/Francês, da UFMT, na escola pública em que trabalhava (e trabalho até
hoje). Eu era responsável por fazer a “ponte” entre a universidade e a escola. Nesses últimos três
anos, estive participando de alguns grupos de pesquisa na universidade, o que colaborou para o meu
ingresso no curso de Doutorado nessa instituição, em 2016.
Sendo assim, é válido dizer que todas essas atividades foram desafiadoras. Estava sempre
buscando absorver cada novo conteúdo (saber) aprendido. Tentava ligar a vivência na sala de aula
com minhas leituras ─ teóricas, feitas na universidade. Por isso, destaco, aqui, a importância da
inserção do indivíduo (docente), sobretudo, nos cursos de Pós-Graduação, como formação continuada,
junto às atividades de pesquisa. Esse espaço constitui-se em um lugar importante de desconstrução e
de (re)construção de saberes, necessários para atuação pedagógica. É um ambiente propício,
inclusive, para o processo de desenvolvimento profissional do professor (MARCELO GARCIA, 2009).
Essa inserção acadêmica (lato sensu e/ou stricto sensu) é de fundamental importância
também no jogo de forças existentes no campo educacional, uma vez que, dentro dele, o agente
(docente) assume sua posição de acordo com as coerções existentes, dentre elas, o capital simbólico.
Significa que ter um diploma de mestrado, de doutorado, pode ser considerado um critério de
pertencimento e de hierarquia no espaço educacional, um lugar socioideólogico de disputa. A
objetivação do capital cultural sob a forma do diploma é um dos meios de se posicionar, de se manter,
ou de melhorar a postura no campo. Essa certidão de competência cultural confere ao seu portador
(professor) um valor convencional, legítimo, constante e juridicamente garantido no que tange à
cultura, num dado momento histórico. (BOURDIEU, 1998).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Em síntese, a formação continuada é um processo constante na vida do professor. Para tanto,


é primordial que ele se esforce na busca (individual e/ou coletiva) de alternativas práticas, teóricas e
metodológicas que contribuam, de fato, para sua melhor atuação e para seu desenvolvimento
profissional. Nessa lógica, o memorial analítico-descritivo, nesse artigo, foi defendido como um
instrumento dialógico formativo. Isso porque ele pode possibilitar diversas reflexões, conosco mesmo,
além trazer elementos para que repensemos nossas práticas , já que o processo formativo propiciado
por essa análise reflexiva ocorre primeiramente na instância individual, para depois mostrar sinais na
vida social e profissional docente.
A escrita de um memorial analítico-descritivo ─ à luz dessa teoria ─ contribuiu para meu
desenvolvimento profissional, no sentido de me possibilitar tanto a (res)significação dos saberes
construídos ao longo da vida, como o (re)conhecimento dos meus percursos trilhados. Através da
minha própria narrativa, foi possível perceber como se deu a minha construção identitária
profissional, isto é, a constituição do meu habitus docente, além de identificar alguma implicação disso
na prática pedagógica, no campo educacional.

NARRATIVAS
1217

REFERÊNCIAS

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NARRATIVAS
RESUMO
1218

UM ENSAIO Palavras-Chave:

CRONOTÓPICO: o espaço-tempo
de um centro de ações comunitárias

SOUZA, Ana Lucia Gomes de 309

BARBOZA, Georgete Moura 310

E
ste texto articula o conceito bakhtiniano de cronotopo à história do Centro de Ações
Comunitárias de São João de Meriti – CAC/SJM que ao longo de sua existência tem evidenciado a
construção de um trabalho coletivo na busca de um espaço político e do empoderamento da
comunidade atendida.
O Centro de Ações Comunitárias de São João de Meriti – CAC está localizado na Região
Metropolitana do Estado Rio de Janeiro,em um bairro simples na Baixada Fluminense, uma região
menos favorecida de equipamentos públicos e desprovido de beleza urbana. As residências são
modestas, as fachadas das casas e dos comércios, as ruas, os ônibus e outros veículos, os letreiros,
a linha do trem, as crianças que correm na rua e atravessam apressadas na frente do carro, tudo em
volta revela a simplicidade do bairro e de sua gente.
Assim, ao compreendermos que os acontecimentos da vida não estão separados dos
acontecimentos históricos (BAKHTIN, 1998, p. 50), olharemos para esta instituição buscando
inspiração no conceito de cronotopo (BAKHTIN 1998), onde o autor constrói uma perspectiva filosófica
de espaço-tempo aberto e coletivo que será de grande relevância para a compreensão do processo
histórico na constituição deste espaço comunitário e da sua contribuição socioeducativa na região
onde se insere.

309
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professora Assistente da UERJ e Supervisora Educacional da
Rede Municipal de Mesquita/RJ. E-mail:analucia.eja@gmail.com
310
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Especialista em Educação Infantil pela PUc-Rio e Orientadora
Pedagógica da rede municipal das cidades de Mesquita e São João de Meriti/RJ. E-mail: georgetemoura2014@gmail.com

NARRATIVAS
1219

UM MUNDO CRONOTÓPICO311

Bakhtin (2011) utiliza o conceito de cronotopo para conhecer, em cada época da história do
romance, de que maneira a questão do tempo é tratada ou qual a ideia de tempo que prevalece, pois a
concepção de tempo carrega consigo uma concepção de homem, o que faz com que, a cada nova
temporalidade, surja também um novo homem.
O termo é uma composição das palavras gregas cronos: tempo e topo: lugar. Tomado de
empréstimo da matemática e da teoria da relatividade de Einstein, Bakhtin o traduz para a literatura,
mais especificamente para o Romance.
Tempo-espaço indissolúveis, sendo o tempo um elemento privilegiado, pois que, articulado no
espaço e culturalmente construído. A representação do tempo conecta-se à do espaço como uma
imagem que se faz real, “o tempo se faz visível e o espaço responde a esta visibilidade dos
movimentos do tempo e do enredo” (p. 258). Neste sentido, os significados ganham a forma de um
signo “audível e visível”.
O movimento cronotópico acompanha as mudanças, incorporações e reavaliações conceituais
que fazem parte da constante transformação da subjetividade e dos movimentos sociais. Neste
sentido, a partir da análise do que é dito, logo da cultura -à medida que se consegue identificar o
cronotopo de uma determinada produção discursiva - será possível compreender a visão de homem
que se faz presente.
Através do cronotopo, Bakhtin nos ajuda a olhar para cada temporalidade, considerando as
várias histórias (oficiais, coletivas, privadas etc.) que se contam ou se escrevem do espaço coletivo. O
autor, em sua obra Questões de literatura e estética: a teoria do romance (1998), utilizou vários
cronotopos como categoria de análise estética, dos quais escolhemos três para dialogar nesse
ensaio.
Começamos com o cronotopo do encontro. Aqui, predomina a nuance do tempo e se
caracteriza pela atribuição de forte grau de intensidade ao valor emocional. Nesse tipo de romance, o
ponto de partida do desenrolar do enredo é o primeiro encontro entre o herói e a heroína e a grande
paixão entre eles; e o ponto de chegada é a feliz união com o matrimônio. Apesar dos polos das ações
(o 1ª encontro e o casamento) serem os acontecimentos essenciais na vida dos heróis, o romance não
é construído sobre eles, mas na ação que se realiza entre eles. Nos encontros, há despedidas, perdas,
obtenções, buscas, descobertas, reconhecimentos, não reconhecimentos etc. (BAKHTIN, 1998, p. 221).
Típico dos romances gregos, nas diversas obras, o motivo do encontro recebe nuances
variadas e concretas, também emocionais e de valor, pois o encontro poderá ser desejado ou não,
alegre ou triste, assustador e ambivalente. Dependendo do contexto, Bakhtin (1998, p. 221), informa

311
Parte integrante da dissertação de mestrado de Georgete de Moura Barboza: “Agora, acabou a brincadeira! A transição da Educação Infantil
para o Ensino Fundamental na perspectiva dos coordenadores pedagógicos” defendia em dezembro de 2015 pela Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro.

NARRATIVAS
1220

que o encontro receberá expressões verbais variadas. “Com muita frequência o cronotopo do
encontro exerce, em literatura, funções composicionais: serve de nó, às vezes, ponto culminante ou
mesmo desfecho (findo) do enredo”.
O motivo do encontro tem ligação com o cronotopo daestrada, poishá vários tipos de encontro
pelo caminho. Bakhtin sinaliza que o cronotopo real do encontro tem continuamente lugar nas
organizações da vida social e nacional. Nesta perspectiva, os encontros são muito importantes, pois
eles podem determinar “diretamente todo o destino de um indivíduo na vida e na rotina cotidiana de
cada pessoa” (1998, p. 222-223).
Afirmamos então que o cronotopo da estrada se liga ao do encontro, mas possui menor valor
emocional. É na estrada que ocorre a maioria dos romances, sendo considerada o lugar preferido dos
encontros casuais. Bakhtin anuncia que é na “grande estrada” que se cruzam num único ponto
espacial e temporal os caminhos “espaços-temporais” dos sujeitos representantes de todas as
classes, faixa etária, etnias, religiões etc. Na estrada podem se encontrar, por acaso, pessoas
geralmente, separadas pela hierarquia social e pelo espaço. Parece que o tempo se derrama no
espaço e flui por ele (formando os caminhos); daí a tão rica metáfora do caminho-estrada: “o caminho
da vida”, “ingressar numa nova estrada”, “o caminho histórico” (p. 349).
Nas obras de “romances de aventura e costumes”, os heróis de cavalaria da Idade Média312
saem para estrada, e em torno dela se desenrolam ou se concentram todos os acontecimentos do
romance. O tempo se divide em uma sequência de fragmentos-aventuras, no interior dos quais se
organiza de forma abstrata e técnica.
O herói do romance de cavalaria é um aventureiro desinteressado. Ele vive as aventuras como
se fosse um elemento natural em sua vida, “para ele o mundo existe apenas sob o signo do
maravilhoso “de repente”, essa é a condição normal do mundo” (BAKHTIN, 1998, p. 268). E nesse
tempo de aventuras, surgem as rupturas, no intervalo da vida normal e os acontecimentos recebem
um rumo inesperado e imprevisível.
O castelo313, como interseção dos caminhos, que está repleto de tempo do passado histórico.
Ele carrega as marcas dos séculos e das gerações, situadas sobre várias partes do edifício, nas
características do mobiliário, nos armamentos, nas fotos dos ancestrais, nos pertences das famílias,
nas relações humanas referentes à sucessão dinástica e da transferência dos direitos hereditário.
O castelo é o lugar do ponto de interseção das séries espaciais e temporais do romance. Nele
ocorrem os encontros (diferente do encontro ocasional na “estrada”), a criação e o desfecho das
intrigas, as ideias, as paixões dos heróis, enfim, os diálogos que possuem um significado relevante no
romance. Ali, as reputações políticas, comerciais, sociais e literárias são criadas e destruídas, as
carreiras iniciam e fracassam. No castelo estão em jogo vários destinos, reunidos num único lugar e

312
Alguns exemplos de heróis da cavalaria: Lancelot, Parzival, Tristão e Dom Quixote de La Mancha.
313
Na Inglaterra do fim do século XVII, formou-se e fortaleceu-se o chamado romance “gótico” ou “negro”, trazendo o “castelo” como um novo
território para a realização dos acontecimentos romanescos. (p. 350).

NARRATIVAS
1221

num mesmo tempo. Para Bakhtin, o mais relevante é a possibilidade de entrelaçamento do que é
histórico, social e público com o que é particular e até individualmente privado (p. 352).
Por fim, falemos do cronotopo da soleira: é aquele da crise e da mudança de vida. Está
impregnado de intensidade, com forte valor emocional. Pode se associar ao tema do encontro, embora
seja mais completo que este. O cronotopo da soleira (limiar) é sempre metafórico e simbólico, está
ligado ao momento da decisão que modifica a existência ou mesmo da indecisão, do medo que se tem
de ultrapassar o liminar (as fronteiras).
O romance em crise apresenta apenas um ou dois momentos que decidirão a vida e também o
caráter do homem. Bakhtin utiliza o exemplo do romance Asno e Ouro de Apuleio 314, onde Lúcio o
personagem principal é apresentado em três imagens: Lúcio antes da transformação em asno, Lúcio
asno e Lúcio purificado e regenerado. Aqui os segredos da vida privada revelam a natureza do homem.
Da metamorfose em asno mantém-se justamente a posição específica do herói como um “terceiro”
em relação à vida cotidiana privada, o que lhe permite ouvir e escutar conversas ocultas. O estado de
asno é para Lúcio vantajoso, pois em sua presença todos se revelam totalmente. Mas essa é uma vida
particular e privada. Em outros romances os personagens também assumem a mesma característica
de Lúcio-Asno (o servidor, o criado, as prostitutas a cortesã), ocupam uma posição propícia para
espiar a vida privada, seus segredos mais íntimos. Mas mesmo na diversidade social do mundo
privado, encontram-se os traços fugazes do tempo histórico.
Bakhtin analisa no texto literário, a natureza da metamorfose a que o herói é submetido, onde
o tempo é visto como a dimensão do movimento, da transformação. Assim, esta mudança vai criando o
“tipo de representação de toda a vida humana em seus momentos essenciais de ruptura e de crise:
como um homem se transforma em outro.” (p. 237).
No cronotopo da soleira, o tempo é, em síntese, um momento que parece não ter duração,
saindo do curso normal do tempo biográfico. Segundo o autor, esses momentos estão enredados nos
grandes cronotopos, que englobam tudo, do tempo dos mistérios e do carnaval 315 . Mas cada um
destes pode incluir em si uma infinidade de outros pequenos cronotopos que podem ser entrelaçados
a tantos outros.
Para Bakhtin podemos pensar num mundo cronotópico, seja do autor, do intérprete, dos
ouvintes ou dos leitores. Apontando que os cronotopos do autor e do ouvinte-leitor se revelam no
material exterior da obra, mas ele (material da obra), não é inerte, pelo contrário, é falante e
significativo. Não podemos ver e nem tocar neste material, mas podemos ouvir a sua voz “mesmo

314
O romance de Apuleio é uma coleção de novelas, coligidas sob a forma de extensa narração do tipo Satiricon de Petrônio, onde são narradas
as façanhas de um certo Lúcio, transformado por magia em burro e finalmente levado à primitiva semelhança humana, meses depois (APULEIO
– O Asno de Ouro. Introdução, tradução e notas de RUTH GUIMARÃES. São Paulo, Editora Cultrix, 1963).
315
A cultura cômica popular, na Europa dos séculos 15 e 16, opunha-se ao tom sério e religioso e se manifestava em formas de ritos,
espetáculos, obras cômicas verbais e diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro. As festas carnavalescas populares, em
praça pública, eram a forma fundamental de manifestação da cultura popular, que se convertiam numa espécie de segunda vida do povo vivida
durante período determinados, oferecendo uma visão diferenciada do mundo, em condição de simultaneidade com o mundo oficial, mas que
destruía simbolicamente os dogmatismos e o autoritarismo (SILVEIRA. P.D. e AXT. M. Mikhail Bakhtin e Manoel de Barros: entre o cronotopo e a
infância. Bakhtiniana, São Paulo, 10 (1): 176-192, Jan./Abril, 2015).

NARRATIVAS
1222

numa leitura silenciosa e de si para si” (p. 356). O autor nos diz que o texto que nos é dado, ocupa um
lugar determinado no espaço (localização), porém as informações que se têm dele fluem no espaço.
Neste sentido, ao partirmos de qualquer texto, chegaremos sempre à voz humana,

(...) pois o texto está sempre consolidado sobre um material morto qualquer: nos estágios primeiros do
desenvolvimento da literatura, sobre os sons físicos, no estágio da escrita, sobre os manuscritos
(pedra, tijolo, couro, papiro, papel); posteriormente, o manuscrito pode receber a forma de um livro
(livro-pergaminho ou livro-códex). Mas qualquer que seja a forma dos manuscritos e dos livros, eles se
encontram já nos limites entre a natureza morta e a cultura; se nós os abordamos como portadores do
texto, eles entrarão no campo da cultura (...) (p. 356).

Então, no tempo-espaço real onde ecoa a obra (o manuscrito ou livro), encontra-se também o
“homem real que criou a língua falada, que ouve e lê o texto”. Para Bakhtin, esses “seres reais”
(autores e ouvintes-leitores) podem e, frequentemente se encontram, em tempos-espaços diferentes,
separados até por séculos e por distancias espaciais. No entanto, “se encontram da mesma forma
num mundo singular, real, inacabado e histórico que é separado pela fronteira rigorosa e
intransponível do mundo representado no texto”. E apesar da presença da fronteira, que separa esses
mundos (mundo real representado e o mundo representado na obra), eles estão “indissoluvelmente
ligados um ao outro e se encontram em constante interação: entre eles ocorre uma constante troca
(...)”. A obra e o mundo nela representado adentram no mundo real e enriquece-o. E mundo real
adentra na obra e no mundo representado, no processo da sua criação quanto no processo
subsequente da vida, promovendo renovação constante da obra numa “percepção criativa dos
ouvintes-leitores”, onde esse “processo de troca é sem dúvida cronotópico” (p. 357).
Assim, se o cronotopo de um texto é indissociável da concepção de homem e de mundo que
nele está inserido, trazer tal compreensão nos permitirá olhar para a trajetória deste Centro de
Atividades Comunitárias e perceber no espaço-tempo das transformações políticas do município de
São João de Meriti, como a sua importância foi se afirmando e ganhando novos contornos dentro da
comunidade.

CAC: uma instituição cronotópica

Bakhtin através do cronotopo nos ajuda a olhar para cada nova temporalidade, considerando
as várias histórias (oficiais, coletivas, privadas etc.) que se contam ou se escrevem do espaço
coletivo.
Revisando a literatura, encontramos uma pesquisa316 que descreve detalhes sobre a fundação
do CAC. A narrativa menciona o contexto político do município de São João de Meriti, por volta de
1980, que sofria com o crescimento demográfico desenfreado, deixando a comunidade desfavorecida
316
ROSA, M. A História da infância narrada na juventude por ex-alunos do Centro de Atividades Comunitárias de São João de Meriti – CAC. Tese
de Doutorado – USP, 2011.

NARRATIVAS
1223

de bens públicos. O principal problema apontando neste período se refere a falta de saneamento
básico. A ausência do poder público impulsionou a organização de diversos movimentos de
reivindicação e culminou na criação de alguns movimentos sociais, tais como: Federação das
Associações de Moradores e Amigos do Bairro de São João de Meriti – ABM; algumas associações de
moradores em diversos bairros; as Comunidades Eclesiais de Base – CEB’s; As Pastorais Sociais; os
Sindicatos dos Profissionais da Educação – SEPE, entre outros.
O ideal se materializou num Centro de Atividades Comunitárias que “pudesse desenvolver
ações e oferecer subsídios para suas discussões sobre a qualidade na educação e na saúde, e
também sobre as possibilidades de produção para a sustentabilidade institucional.” (ROSA, 2011) Sua
fundação contou com o apoio de entidades importantes, como a Central Única dos Trabalhadores –
CUT e com apoio financeiro de organismos internacionais, como a Central Francesa Democrática de
Trabalhadores – CFDT e a Comunidade Econômica Européia – CEE. Foi desta forma que foi adquirido o
terreno da chácara com 4.000 m², ao qual foi construída gradativamente toda estrutura para o CAC.
É neste espaço-tempo que surge o CAC. Um local, onde vários caminhos se cruzam e muitos
encontros acontecem. É um cronotopo da luta e organização comunitária, reivindicatória,
mobilizadora e arraigada de ideiais para o bem comum.
A instituição trabalha com duas turmas de Educação Infantil (4 e 5 anos) e uma de primeiro
ano do ensino fundamental, em cada turno. As professoras são vinculadas ao município de São João
de Meriti. Mas o CAC é uma instituição não governamental, sem fins lucrativos, fundada a partir da
ação da comunidade local. As crianças utilizam um uniforme próprio (camiseta e short).
Bem lá no fundo do quintal no espaço do CAC existe uma horta cuidada por parceiros da Rede
Ecológica, que trabalham com a economia solidária e agroecologia. Eles plantam aimpim e verduras
variadas, além de algumas ervas medicinais. Existem mais árvores, inclusive uma espécie do pau-
brasil, tem também outra casa muito velha e interditada e uma sala ainda em uso para biblioteca. Os
espaços confessam a idade deste local – são 30 anos de existência do CAC/SJM.
O CAC foi fundado em 1987, a partir dos movimentos sociais de São João de Meriti, com a
intenção de ser um equipamento para oferta de atividades culturais, educacionais, experiências na
área da saúde, o funcionamento de uma gráfica e o trabalho com formação de professores. Foi
pensado e idealizado por representantes da comunidade para suprir a carência deixada pelo poder
público local. Seus fundadores declaram ser o CAC um local apartidário. A escola do CAC nasceu em
1989. Temos boas notícias quanto a produção da equipe de professores do CAC. O investimento no
letramento e na alfabetização é bem forte nesta escola. Tendo decorrido 30 anos, apenas a educação
se manteve em parceria com a prefeitura de São João de Meriti e a oferta de formação de
professores em parceria com a UERJ. Muitos professores participaram de cursos de extensão nos
projetos desenvolvidos no CAC em parceria com a UERJ, sendo privilegiando a alfabetização no
contexto do letramento.

NARRATIVAS
1224

O cronotopo deste espaço muito nos interessa e nos impulsiona a entender a dinâmica dos
movimentos sociais, sua ideologia, sua história e luta política. O CAC tem sido um espaço importante
para esta localidade tão desprovida de cultura, tão esquecida pelos seus governantes.
No cronotopo do encontro e do caminho, Bakhtin fala da “grande estrada”, o local onde se
cruzam num único ponto espacial e temporal os caminhos de diferentes pessoas. No romance, os
encontros pelo caminho, são geralmente casuais. Na história desta instituição os encontros são
revelados a partir dos interesses da sociedade na qual está inserida.
Por sua característica peculiar o CAC precisa de profissionais que compreendam a sua
proposta e a especificidade do trabalho pedagógico. Assim, dependendo dos arranjos políticos esse
espaço se altera e se reconfigura.
A instituição já enfrentou vários momentos difíceis pelas mudanças nas parcerias com o
município. As rupturas acontecem pela falta de continuidade das políticas e propostas a cada troca de
governo municipal que ora cedem os professores ora suspende o convênio.
Dessa forma, os arranjos políticos, os interesses econômicos, tudo isso vai sendo desvelado
no caminho,como no romance, isso tem grande valor emocional, pois as decisões coletivas alteram a
comunidade escolar e também a vida particular de cada indivíduo que pertence aquele espaço.
Nos encontros do romance da cavalaria, o herói é considerado um aventureiro, pois não há
continuidade no seu caminho, ele é movido pelo “de repente”, sua trajetória e feita por várias
histórias fragmentadas. Tal como na política municipal, onde “de repente” surge uma nova parceria,
um novo convênio, uma nova diretriz, e os profissionais precisam se fazer um aventureiro para dar
conta destas novas demandas que geralmente fragmentam o trabalho que estava sendo realizado.
No romance da cavalaria os encontros se cruzam no castelo, já na educação, na escola. Se o
castelo (espaço) remete à ideia de passado, depositada nos objetos que marcam o tempo, a escola
também remete a um passado através da forma como sua estrutura está organizada. Mesmo no
presente, a escola está ligada ao passado, pois conserva objetos que ultrapassam gerações (quadro
de giz, carteiras enfileiradas, grades curriculares e tantos outros). A escola pode ser considerada
como um grande cronotopo, de onde emergem vários outros cronotopos (sala de aula, pátio,
refeitório, sala de professores etc), locais onde vários encontros acontecem e com diferentes
pessoas (BARBOZA, 2015, p. 31).
No castelo, estes encontros criam “os nós das intrigas” e frequentemente os desfechos,
através dos diálogos travados que revelam ideias e paixões dos heróis. No nosso castelo (CAC),
germinam os mais variados temas que se tornam conteúdos de muitos encontros, onde pessoas de
variadas posições dialogam e debatem suas ideias, que podem se concretizar e também fracassar.
Na escola, estão em jogo vários destinos em um só lugar e num mesmo tempo, o que
possibilita o entrelaçamento histórico, social e público com o que é individual e privado. No CAC,
encontram-se professores, alunos e comunidade que no espaço-tempo onde estão inseridos, vão
interpretando e dando conta de sua maneira singular, fazer cumprir as legislações e as demandas que
se apresentam a cada nova temporalidade.

NARRATIVAS
1225

Considerando o CAC como um cronotopo, percebemos que os encontros realizados lá são


capazes de revelar diferentes ideias, acordos, intrigas, negociações, assim como, decidir o destino de
muitos sujeitos (professores, alunos, responsáveis etc.) que no percurso da estrada da vida,
convivem, por pouco ou muito tempo naquele espaço-tempo.
No Romance de Cavalaria, Bakthin (2011, p. 269), diz que o herói é um aventureiro
desinteressado, no sentido de perseguir os objetivos almejados pelos caminhos anormais da vida. Tal
como no romance de Dom Quixote de La Macha317 em que, num dos episódios, o herói chega cansado e
prostrado de fome, não em um país ecantador ou em um castelo, mas num vulgaríssimo comércio,
frequentado por viajantes e moças de costumes pouco relevantes.

Deu-se pressa em caminhar, e chegou a tempo, que já a noite se ia cerrando. Achavam-se acaso à porta
duas mulheres moças, destas que chamam de boa avença, as quais se iam a Sevilha com uns arrieiros,
que nessa noite acertaram de pousar na estalagem. E como ao nosso aventureiro tudo quanto pensava,
via, ou imaginava, lhe parecia real, e conforme ao que tinha lido, logo que viu a locanda se lhe
representou ser um castelo com suas quatro torres, e coruchéus feitos de luzente prata, sem lhe faltar
sua ponte levadiça, e cava profunda, e mais acessórios que em semelhantes castelos se debuxam. Foi-se
chegando à pousada (ou castelo, pelo que se lhe representava); e a pequena distância colheu as rédeas
a Rocinante, esperando que algum anão surgiria entre as ameias a dar sinal de trombeta por ser
chegado cavaleiro ao castelo (CERVANTES, 2017, p.06).

Neste lugar, o herói nos dá uma pista da trama de seu romance, ou seja, o que não existe e
nem pode existir, Dom Quixote inventa e constrói a sua maneira, conforme a sua imaginação. Uma
simples venda se transforma num castelo com torres, ponte levadiça e chaminés, repleto de damas
nobres e com um arauto (anão) que anuncia a sua entrada no local (MOTTA e ABARBOZA, 2017, p. 131)
Assim, como o herói da cavalaria neste mundo cronotópico, os profissionais que atuam no CAC
se veem aventureiros nessa estrada da vida, muitas vezes cansados do cotidiano escolar, das
atribuições que suas funções exigem, das demandas oficiais e privadas que de repente surgem pelo
caminho. Assim, entre uma ruptura e outra, os sujeitos buscam outras maneiras de olhar para além
daquilo que está posto. Usam a imaginação e criam outras possibilidades para ver a realidade que os
cercam, e neste tensionamento entre o que se vê e o que se imagina, ressignificam seus fazeres
pedagógicos.
O sonho idealizado por um grupo de pessoas perdura até os dias atuais. O cronotopo político,
por incrível que possa parecer, não sofreu alterações significativas. A cidade continua carente de
ações de políticas públicas e o CAC ainda é um equipamento importante para esta localidade. Agora já
sem os incentivos financeiros advindos das instituições internacionais, sobrevive graças à parceria
com instituições públicas como a Prefeitura Municipal de São João de Meriti e a Universidade Estadual
do Rio de Janeiro.

317
Do escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616). A primeira parte deste livro foi publicada em 1605. É uma das obras mais conhecidas
da literatura mundial. Já foi traduzida para diversas línguas.

NARRATIVAS
1226

Portanto, se o cronotopo de um texto é indissociável da concepção de homem e de mundo,


esses “seres reais” que Bakhtin (2011) chamou de autores e ouvinte-leitores, mesmo que se
encontrem em tempos-espaços diferentes, “se encontram da mesma forma num mundo singular, real,
inacabado e histórico que é separado pela fronteira rigorosa e intransponível do mundo representado
no texto” (p.357). Esse processo de troca entre o mundo representado e o mundo real é cronotópico.
O mundo real é enriquecido pela obra e esta se renova no processo subsequente da vida.

CONSIDERAÇÕES DE INÍCIO DE UMA ESTRADA

Apresentamos até aqui o início do caminho que escolhemos para desvelar o cronotopo do
Centro Comunitário de São João de Meriti. Estamos ansiosas pelos encontros que ainda serão
travados neste percurso. Sendo assim, as considerações são provisórias, mas impregnadas de
significados e representações.
À luz de Bakhtin, entendemos que conhecer o contexto da criação do Centro de Atividades
Comunitárias – CAC são condições essenciais para localizá-lo no cronotopo atual. Quando estamos no
CAC conseguimos nos situar no cronotopo do encontro, servindo de ponto culminante para o
desenvolvimento da pesquisa desejada. Situamo-nos no cronotopo da estrada, cruzando caminhos,
“espaços-temporais”, assim como Dom Quixote, em busca de informações que desvendem a riqueza
deste espaço. No cronotopo da soleira, nos encontramos como o asno e as transformações que
sofreu. Estamos nós, já impactadas pela representatividade do CAC em sua localidade e o serviço
prestado na vida das crianças e seus familiares ao longo das décadas.
Assim, conforme nos interpela, Bakhtin, percebemos que os cronotopos se incorporam um ao
outro, coexistindo e mobilizando-nos rumo as novas descobertas desse espaço tempo.Para o autor o
significado dos cronotopos é temático, neles que os nós do enredo são feitos e desfeitos, os
acontecimentos ganham corpo. “Pode-se relatar, informar o fato, além disso, pode-se dar indicações
precisas sobre o lugar e o tempo de sua realização”. Através da condensação e concretização
espaciais dos índices do tempo (tempo da vida humana, tempo histórico, em regiões definidas do
espaço) o cronotopo fornece um “terreno substancial à imagem-demonstração dos acontecimentos”
(1998, p. 354-354).
Neste sentido, o cronotopo trata de uma produção da história. “Designa um lugar coletivo,
espécie de matriz espaço-temporal de onde as várias histórias se contam ou se escrevem”. Liga-se
aos gêneros e o seu trajeto, visto como formas coletivas específicas, que finalizam temporalidades
específicas e, em consequência, visões especificas do homem. Bakhtin revela que a visão do homem
como “sujeito individual e privado corresponde um tempo individualizado e desdobrado em múltiplas
esferas: o tempo de cada um dos sujeitos, em função de suas múltiplas vivências”. Em contrapartida, a
visão do homem como sujeito público, definido completamente pelo âmbito social reflete num tempo
coletivo e único. Um tempo partilhado por todos em espaços coletivos de atividades (AMORIM, 2012,
105).

NARRATIVAS
1227

Como ouvintes-leitores de um mundo cronotópico, seguiremos na estrada desta pesquisa


atentas aos encontros casuais e pontuais que ela nos proporcionará,buscando perceber no
cronotopo do CAC como os indivíduos transformados pelo tempo, transformam o espaço, num
movimento dialógico que se articula com o espaço do outro, num constante movimento de tensão e
abertura de discursos e de práticas.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Marília. Cronotopo e Exotopia. In: BRAIT, Beth, (org), Bakhtin: outros conceitos-chave. 2ed. São Paulo:
Contexto, 2012.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: UNESP, 1998.
_____. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BARBOZA, M.G. Agora acabou a brincadeira! A transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental na
perspectiva dos coordenadores pedagógicos. Dissertação de Mestrado em educação – UFRRJ, Rio de Janeiro, 2015
(mimeogr.).
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Disponível em http://www.elivros-gratis.net/livros-download-
gratis-pg-8.asp. Acesso em 20/05/2017.
ROSA, M. A História da infância narrada na juventude por ex-alunos do Centro de Atividades Comunitárias de
São João de Meriti – CAC. Tese de Doutorado – USP, 2011.
MOTTA, F. N; BARBOZA, G.M. Encontros, caminhos e soleiras no cronotopo da coordenação pedagógica. In Currículo
e Formação de Professores: sobre fronteiras e atravessamentos. Curitiba, CRV, 2017, p. 131-146.

NARRATIVAS
RESUMO
1228
Este estudo apresenta um debate referente às
vivências como bolsista do Programa Institucional

HISTÓRIA, TEMPO E de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). O PIBID é a


prática que em muitas ocasiões antecede o estágio
e insere o discente no ambiente escolar,

NARRATIVA: uma relação entre o


qualificando sua formação, como professor. A
discussão que segue refere-se às ações
desenvolvidas na sala de aula pelo professor e seu
impacto na vida do aluno, entendido aqui como o
pesquisador e o outro, por meio do outro. Para está compreensão, será feito um
diálogo com Mikhail Bakhtin referente aos estudos
dialogismo de Mikhail Bakhtin e a experiência da linguagem e com alguns autores da área da
Educação e da História. Com isso, compreende-se o
em programa de docência processo ensino-aprendizagem e sua relação com o
professor comopesquisador, que após conhecer o
outro, torna-se capaz de preparar conteúdos para
serem aplicados em sala de aula, obtendo
resultados satisfatórios.

STELLA, Thais Angela318 Palavras-Chave: Experiência. Outro. História.


Narrativa

INTRODUÇÃO

E
ste escrito apresentará com base nas vivências como bolsista no Programa Institucional de
Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), no subprojeto de História pela Universidade Federal da
Fronteira Sul, uma experiência de ensino e a sua relação com o outro a partir deMikhail Bakhtin.
Para que ocorra a compreensão destas vivências e sua relação com a teoria bakhtiniana, será feito
um diálogo com outros autores, sendo eles: Michel Foucault, Leandro Karnal, Jörn Rüsen e Michel de
Certeau.
No decorrer do curso de graduação em História, percebe-se que existem muitas teorias de
aprendizagem a serem analisadas e compreendidas pelo professor, quando o mesmo se propõe a
trabalhar um determinado conteúdo em sala de aula. No entanto, a dúvida que surge ainda na
formação é como fazer uso dessas teorias na prática. Ter contato direto com a educação básica ainda
na graduação pode contribuir para seu aperfeiçoamento e identificação com o curso além de,
aprimorar a qualidade da formação de professores. O PIBID ocorre em muitos casos antes mesmo do
primeiro estágio supervisionado as ações do ocorrem com a coordenação de um professor docente
da universidade e também, sob a supervisão de uma professora da escola em que os bolsistas atuam.
Todas as intervenções possuem orientações de profissionais capacitados na área da educação. Os
principais objetivos do PIBID são:

318
Discente do curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e atua como bolsista do subprojeto de
História no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), Campus de Chapecó, SC. Financiado pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: thaisangelaa@hotmail.com

NARRATIVAS
1229

Incentivar a formação de docentes em nível superior para a educação básica; contribuir para a
valorização do magistério; elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de
licenciatura, promovendo a integração entre educação superior e educação básica; inserir os
licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de educação, proporcionando-lhes oportunidades
de criação e participação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter
inovador e interdisciplinar que busquem a superação de problemas identificados no processo de ensino-
aprendizagem; incentivar escolas públicas de educação básica, mobilizando seus professores como
coformadores dos futuros docentes e tornando-as protagonistas nos processos de formação inicial
para o magistério; e contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à formação dos
docentes, elevando a qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura.(CAPES, 2017).

Na formação docente o futuro profissional precisa ter consciência de que enfrentará grandes
desafios na profissão.

É fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável
pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados
intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo supera o ingênuo e
tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. (FREIRE, 1996, p.
43).

Desta forma, compreende-se que para se formar um profissional da área de Educação, é


necessário superar barreiras e desafios da realidade escolar, buscando informações além de sua
formação. Para elaborar um projeto a ser trabalhado na sala de aula,analisar as relações existentes
no ambiente escolar pode auxiliar, tornando possível compreender o comportamento e o
desenvolvimento dos alunos, a partir disso criar novos projetos para atender as necessidades desses
alunos.
Com base nisso e com uma compreensão no conceito de outro, empregado por Bakhtin (2010),
a discussão segue em torno do entendimento do aluno, situado aqui como o outro, que não é apenas
receptor de conteúdos passados por um professor, mas sim, alguém que possui uma memória, um
contexto social, uma vida pessoal além do ambiente escolar. A problematização deste escrito vai ao
encontro da construção de uma narrativa histórica baseada na experiência em sala de aula, a qual
discute sobre a necessidade da História e do Tempo para a escrita e para o ensino.
De acordo com Amorim (2004), não há pesquisa ou trabalho prático que não esteja
relacionado ao encontro com um outro. Para a autora, há métodos em que muitas vezes o outro é
ignorado, ou seja, ocorre o esquecimento que outro lado existe um sujeito que fala e produz textos
assim como o pesquisador que o estuda.
Deste modo, compreende-se que o esquecimento do outro no ambiente escolar faz com que o
processo ensino aprendizagem falhe mesmo o profissional da área acreditando ter feito o seu melhor.
Portanto, o que se analisa no momento, é o modo como ocorre a interação entre o professor/aluno,
ou seja, entre o pesquisador e o outro.

NARRATIVAS
1230

1. O PROFESSOR E O SEU OUTRO, UM DIÁLOGO ENTRE MIKHAIL BAKHTIN E O PROCESSO ENSINO-


APRENDIZAGEM.

Mikhail Bakhtin coloca a linguagem como um eixo central epartir disso desenvolve
fundamentos como interação verbal, dialogia, polifonia, as quais podem trazer problematizações para
o campo pedagógico. Com base na filosofia da linguagem de Bakhtin, entende-se que o pesquisador
deve saber o que é conhecer o outro. Para Bakhtin(2010), essa distinção é fundamental, pois é através
dela que é possível caracterizar cada elemento, objeto e sujeito em suas especificidades,
compreendendo seus limites.
Para Bakhtin (2010), a relação com o outro é fundamental, pois é a partir dela que ocorrem
elaborações conceituais compostas por meio de um caráter coletivo e não individual. Explorando a
relação de um sujeito com outro, é possível não deter a língua ao psiquismo individual e sim de modo
coletivo para encontrar as possibilidades de compreensão. Ao mesmo tempo, as possibilidades de
compreensão também são restritas, pois são determinadas socialmente e historicamente. Deste
modo, são ampliadas por conterem a possibilidade de múltiplos sentidos dados por aspectos
individuais e subjetividades humanas.
Dentro desta perspectiva, o professor pode fazer algumas indagações para que seu trabalho
alcance resultados positivos. Compreendendo desta forma, quem é o aluno para ele, qual o objeto de
estudo ou então quem é o sujeito para o qual ele está compartilhando experiências, se a este sujeito
está concedido o direito de expressão e de autoria, ou se o professor está apenas reconhecendo a voz
desse sujeito (aluno) como uma cópia da sua. A partir disso, compreender também se o aluno está
produzindo seu próprio discurso ou apenas repetindo o discurso do professor. Além disso, entender
também o que se passa dentro da sala de aula e fora dela, para que seja possível adequar o ensino
para a realidade do aluno.
Essas questões possibilitam um replanejamento da dinâmica em sala de aula. A perspectiva
Bakhtiniana permite pensar na relação do professor com o aluno, uma relação dialógica onde se
enfrentam dois sujeitos. A construção do conhecimento passa a ser partilhada entre ambos, tornando
o outro sempre necessário

Na medida em que a interação social entre os indivíduosgera o espaço cultural em que o aprender-
ensinar é praticado, alimenta-se um processo educacional quanto ao agir humano. (MARTINS, 2014, p.
48).

As ações desenvolvidas com o outro, possuem certa interação entre a própria ação e quem
está participando dela e quais serão seus resultados. De acordo com Martins (2014), a partir do
momento em que ocorre um registro da ação, se incorpora uma percepção interativa e desta forma é
possível não apenas aprender, mas compreender, descrever, formular críticas e análises a respeito
das ocorrências e principalmente, narrar a experiência do ontem para planejar o amanhã. De acordo
com Bakhtin (2010), ao tratar sobre a interação verbal, o modo como ela ocorre está situado no

NARRATIVAS
1231

exterior das ações, ou seja, não é a atividade mental que organiza as expressões, mas sim, a
expressão quem organiza a atividade mental. Para o autor, o contexto da sala de aula, incluindo o
professor, os alunos e o conhecimento que circula compõe o que ele chama de cenário social, que
será o responsável em determinar os dizeres de cada um, as ações e intenções.

(...) o discurso na vida é atravessado por julgamentos de valor e a compreensão de qualquer ato de fala
não pode descartar as avaliações que inevitavelmente estão presentes nas interações sociais. (SOUZA;
ALBUQUERQUE, 2012, p. 114).

Desta forma, entende-se que o conhecimento é construído de acordo com os aspectos


cognitivos, emocionais e sociais presentes neste processo. Deste modo, a formação dos alunos não é
apenas uma atividade intelectual mas sim, um processo mais complexo, onde se faz necessário
conhecer e interagir com a realidade destes alunos, como outro. Portanto, para que isso
ocorraentende-se que se trabalha com as singularidades, pois cada aluno possui sua própria história.
A partir disso, o ato de educar faz com que o aluno se torne autor de sua própria palavra.

2. UM DIÁLOGO COM MICHEL FOUCAULT , JÖRN RÜSEN, LEANDRO KARNAL, MICHEL DE CERTEAU E
A RELAÇÃO COM O PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSA DE INICIAÇÃO À DOCÊNCIA (PIBID).

Michel Foucault (2009) trabalha a discursividade em sua obra, para que todos que tenham
acesso a ela pensem algo diferente do que foi apresentado. Ele abre espaço para que novos
pensamentos se produzam, e que estes pensamentos sejam diferentes daqueles apresentados na
obra, trazendo diferenças sobre o assunto tratado. Com base nisso, é possível verificar que Bakhtin
não permite apenas repetir os pensamentos de sua obra, mas sim, como fundador da discursividade,
ele permite trazer diferenças ao longo de sua leitura.
Desta forma, é possível interagir um diálogo com Karnal (2012), onde o mesmo afirma que não
existe um método específico que possa ser aplicado a qualquer grupo de pessoas e que garanta um
resultado satisfatório. Neste caso, o exemplo é de um professor com várias turmas, onde cada turma
exige um método diferenciado de acordo com a realidade de cada um.

Porém, ouvindo pessoasenvolvidas na prática da sala de aula e da pesquisa histórica, você pode
oferecer uma resposta mais criativa a seus desafios diários. Poderá dizer com tranquilidade: “Isto não
serve para minha sétima série”, ou “Isso é perfeito para meu segundo ano do ensino médio”. A primeira
lição de experiência em sala de aula é que as fórmulas só servem quando são idealizadas numa aula
estática. (p. 11).

Portanto, o ensino deve ser levado para além da sala de aula, para que a escola compreenda a
vida do aluno, a vida do professor, a vida da comunidade, do país, com referência no contexto social,
político e econômico. A palavra que se produz na escola deve refletir essa realidade e a ela retornar.

NARRATIVAS
1232

Neste caso, destaca-se o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID),


onde foi possível perceber na prática algumas relações entre Bakhtin e os demais autores discutidos
até o momento. O programa ocorre através de intervenções em sala de aula, as quais
provocaramuma reflexão sobre o papel do educador e os desafios enfrentados por esses
profissionais na escola que atuam. Percebe-se através do convívio com estes profissionais que o seu
papel no ambiente escolar, depende dos fatores já citados anteriormente, no que se refere aos
sistemas políticos, sociais e econômicos, ou seja, conhecer a realidade do outro.
O PIBID é a prática que em muitas ocasiões antecede o estágio, e insere o discente no
ambiente escolar qualificando sua formação como docente a partir, da experiência adquirida pelo
programa. Através disso, percebeu-se que há uma grande dificuldade dos professores em trabalhar a
partir da realidade do aluno, tendo em vista, que a preocupação muitas vezes se volta em conseguir
aplicar todos os conteúdos do bimestre dentro do calendário escolar que foi programado. Isso faz
com que o aluno muitas vezes, não se sinta parte daquele processo e acaba desmotivando-se, ou seja,
o outro passa despercebido, fazendo com que os resultados dessas aulas não sejam satisfatórios
para estes alunos. No que se refere à disciplina de História, a qual é possível analisar de acordo com a
experiência através do PIBID, uma das ferramentas utilizadas pelo professor em sala de aula, para
que este trabalho se torne possível, é a Didática.

(...) a Didática da História alimenta a elaboração do conceito de identidade. A organização dos conteúdos
da disciplina escolar traduz-se por representações; trata das identidades, enfatizando as origens, as
genealogias, os ancestrais; justifica os pertencimentos e dirige os quadros, as relações que esclarecem
as diferenças que se tem com os outros, institui as “memórias sociais”, aquelas que os componentes de
grupos determinados têm em comum.(ABUD, 2014. p. 96).

Portanto, o planejamento é necessário para cada aula a fim de, atender as necessidades dos
alunos no decorrer das aulas. Analisar as relações existentes no ambiente escolar pode auxiliar em
compreender o comportamento e o desenvolvimento dos mesmos. Percebe-se que o professor
quando preparado consegue ministrar boas aulas, caso contrário, sofre com a desmotivação e não
conseguirá promover o senso crítico entre seus alunos. A didática é uma ferramenta que além de
fortalecer a formação profissional docente, contribui gradativamente para a formação do outro
(aluno).
Rüsen (2001), ao refletir sobre a razão da História, afirma que sua importância está na falta
de orientação referente às consequências dos efeitos das ações no tempo. De acordo com o autor, a
consciência histórica está estagnada ao fato de que a perspectiva temporal é o passado que se
relaciona com o presente e a partir disso com o futuro. No entanto, ela deve ser compreendida de um
modo mais elaborado e complexo. Desta forma, entende-se que o professor trabalhará o conteúdo a
partir do conhecimento histórico que o aluno possui, para que seja possível perceber que a noção de
História, Tempo e Narrativa corresponde a um processo mental da consciência histórica, podendo ser
descrito como significado da experiência do tempo interpretado.

NARRATIVAS
1233

Neste caso, de acordo com Certeau (1982), é possível pensar em alguns aspectos presentes
na historiografia, entre eles, a especificidade da construção de uma narrativa histórica voltada para
alguns esquecimentos na história e que passam a ser pensados como “ausências” que influenciam a
produção de uma escrita. Com base nisso, a separação de História e Memória tem uma dissociação
cada vez maior devido ao tempo histórico, ou seja, de acordo com Certeau (1982), a história narrada
nem sempre será a mesma, dependendo da memória de quem está narrando a mesma, sujeitos
históricos narrando a mesma história tendem a narrar de modos diferentes e até opostos. Deste
modo, a história se dissocia da memória, para Claude Lefort (1983), a busca pelo passado é feita para
atender aos anseios do momento, ou seja, se busca no passado por algo que permita representar o
presente.
Desta forma, é possível concluir que a história pode ser confundida com a memória e ao ler
os escritos de memórias e não buscar por outros registros referindo-se ao mesmo fato narrado,
pode acontecer de se entender a memória como história, ocorrendo então um equívoco. Um exemplo
a ser citado, é a experiência aqui descrita com o PIBID, onde os bolsistas procuraram entender o que
os alunos da turma trabalhada sabiam sobre a História do Município de Chapecó - SC, e então
perceberam que os mesmos conheciam a história dos colonizadores da região como os responsáveis
pelo desenvolvimento do município. No entanto, poucos sabiam sobre os indígenas que ali habitavam e
hoje se encontram marginalizados na sociedade chapecoense. De acordo com Facco, Lemes e
Piovezana (2008), as terras ocupadas pelos índios foram cada vez mais invadidas durante o processo
de colonização, o qual era formado por uma organização fundiária, neste contexto os índios foram
expulsos da pequena área de refúgio que habitavam.
Outro fato que os alunos desconheciam, era o linchamento de 1950 descrito por Mônica Hass
(2013), que descreve alguns acontecimentos de outubro de 1950 que ocasionaram a prisão, tortura e
linchamento de quatro pessoas em Chapecó e que apesar de ser um fato marcante, não foi descrito
nos relatos da história da cidade. O fato dos alunos “desconhecerem” parte da História do próprio
município, é porque ficou no "esquecimento", termo usado por Certeau. Assim, quem escreveu a
história pode ter esquecido por motivos de memória, ou por intenções do tempo presente, agindo de
propositalmente ao que mais lhe favorecia naquele momento.

"(...) é elaborada no interior e na conjunção de múltiplos agrupamentos que apenas retém do passado o
que convém à sua representação do presente. E é moldada em nossa época, cada vez mais
insistentemente, pelo pequeno número que dispõe dos meios para difundir estas representações (...)"
(LEFORT, 1983, p.167-168).

Com isso, partes da História tornam-se ausentes, a partir do momento em o outro, passa a
interpretá-la com base nos escritos feitos até o momento. Ainda é possível fazer mais uma relação
com o outro, que foi necessário entender o que os alunos conheciam da História de Chapecó, para
preparar o plano de aula e aplicar o mesmo. Portanto, se faz necessário aqui ressaltar a importância
de compreender o outro para depois disso, trabalhar com ele.

NARRATIVAS
1234

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas reflexões feitas durante o desenvolvimento deste escrito, é possível identificar
que a categoria da linguagem fundamental em Bakhtin, é o dialogismo. No que se refere ao estudo do
outro, se tem como base a construção e a reflexão através do diálogo, entre o pesquisador e o outro.
Para Bakhtin, as Ciências Humanas são definidas pela atividade crítica, a partir da crítica é
possível pensar nas possibilidades para a solução de determinados problemas. Portanto, se faz
necessário determinar como cada enunciado, cada palavra e cada ação ocupam um lugar único e
singular na existência.
Ao entender o pesquisador e o outro como professor e aluno para a compreensão deste
escrito, conclui-se que apesar das mais diversas teorias desenvolvidas na área da educação sobre o
processo ensino aprendizagem, de nada adiantam se não existir o diálogo com o aluno, a compreensão
de sua realidade e suas particularidades. De acordo com Carlino (2013), o conteúdo trabalhado na sala
de aula pelo professor, produz resultados particulares em cada aluno, pois depende de compreensões
diversas que estão relacionadas ao contexto de vida de cada sujeito.
Ao pensar que o estudo desenvolvido até o momento, ocorreu através da experiência obtida
em sala de aula pelo PIBID, é possível afirmar que além de promover a inserção do discente no
ambiente escolar a fim de, aprimorar sua formação, o programa também é capaz de instigar a
pesquisa científica e proporcionar ao discente, o contato com diversos autores fluentes para a
compreensão do processo ensino aprendizagem.

REFERÊNCIAS

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Auxiliadora; BARCA, Isabel; URBAN, Ana Claudia (Org.). Passados Possíveis: A Educação Histórica em Debate. Ijuí: Unijuí,
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NARRATIVAS
1235

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RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UNB, 2001.

NARRATIVAS
RESUMO
1236

O MESMO E O DIFRENTE Palavras-Chave:

NO MESMO LUGAR: o instituído


e o instituinte no ensino de língua
portuguesa

TARDAN, Denise Lima319

SITUANDO O LEITOR

E
sta carta é parte de minha dissertação de mestrado intitulada Cara carta: (co)respondências de
uma professora, pensada apartir da filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin, para quem o outro
é imprescindível para a constituição do indivíduo. Com Bakhtin penso o sujeito das Ciências
Humanas como um sujeito vivo, expressivo,falante. Por isso escrevi a dissertação em cartas para
criar planos estéticos onde mecoloco como autora e personagem e com meus interlocutores em
diálogos que se configuram como atos responsáveis e responsívos. Uma relação de autor e herói onde
este último tem competência ideológica e independência, e que por isso não são objetificados pelo
autor. Como professora do primeiro segmento do Ensino Fundamental do Colégio Pedro II (Instituto
Federal de Educação) acompanhei, no ano de 2015, uma turma de crianças, com idade entre 8 e 10
anos. Em um movimento que passou de uma prática de análises metalinguísticas e epilinguísticas,
para uma prática que se deu nos enunciados, nos gêneros, na vida, busquei qualificar a atividade
criadora da composição escrita das crianças. Esta se dá no ato responsivo que se faz em um gênero
discursivo, que possui acabamento estético (com conteúdo, forma, tema, entonação, estilo e etc.), é
valorativo e formado no social. Tomo como conclusão do estudo essa qualificação da atividade
criadora como consideração central no ensino de Língua Portuguesa na escola.

***

319
Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Professora da Educação Básica e Tecnológica do Colégio Pedro II e
membro do grupo Atos-Uff. E-mail: de_tardan@yahoo.com.br

NARRATIVAS
1237

rio de janeiro, 18 de abril de 2016

Querida Júlia,

Esta é minha primeira carta depois de minha qualificação, e ela é para você, minha amiga,
porque foi com você que vivi a dor e a delícia de trabalhar com as crianças do terceiro ano do Colégio
Pedro II, no ano de 2015. Eu com a turma 301 e você com a turma 303. Quantas vezes nos
encontramos no recreio e no almoço para trocarmos ideias sobre nossa prática. Me emocionava
quando via seus olhos brilharem ao falar das crianças. Dentre tantas questões sobre as quais
conversávamos, havia uma que me instigava um pouco mais. Sei que você já imagina qual seja. Sim!
Estou me referindo às questões ligadas ao ensino e ao uso da linguagem escrita em nossa escola.
Por onde começar? Pensei de conversarmos um pouco sobre nossas reuniões de
planejamento na equipe do 3° ano... E então você pergunta: “aonde ela quer chegar rememorando as
reuniões de planejamento?” Te proponho uma breve reflexão sobre o sistema de ensino ao qual o
Colégio se insere. Fique tranquila, a ideia é nos restringirmos à questão do ensino da linguagem
escrita, como citei acima. Não vamos enveredar a discussão para o formato dessas reuniões, com
coordenadoras das quatro áreas do ensino (Língua Portuguesa, Matemática, Estudos Sociais e
Ciências) que se revezam em um período de uma hora e meio na tentativa de orientar nosso trabalho
em sala de aula. Você bem sabe, amiga, que ficamos só na tentativa e que tenho questionamentos
quanto este formato... Será que ainda devemos sustentar uma escola que divide o conhecimento em
“gavetas”? Este formato que já presume o que o aluno precisa saber, esquematizando propostas e
materiais a oferecê-lo, sem que antes sejam ouvidos, é o melhor?
Mas não é disso que falaremos agora. Embora seja um assunto que mereça nossa atenção,
deixaremos para outra ocasião... Essa minha mania de falar demais é um perigo... Escapo do assunto
com certa facilidade. Ainda bem que tenho você para balizar e me trazer de volta ao foco da questão.
Então... Logo no primeiro encontro da equipe do terceiro ano, nossa coordenadora de Língua
Portuguesa nos entregou um planejamento trimestral.
Você lembra, Júlia? Ele eradividido em “habilidades/competências”, e “conteúdos” a serem
trabalhados para que os alunos desenvolvessem tais habilidades e competências, que são divididas em
eixos (linguagem oral, linguagem escrita e análise e reflexão linguística). Mas tem uma coisa: alguns
conteúdos se repetem nos eixos de “linguagem escrita” e “análise e reflexão da língua”: alfabeto,
ordem alfabética, vogais e consoantes, sílaba e separação de sílaba, distribuição espacial da escrita. A
análise da língua deve ser trabalhada, sistematizada à parte do discurso escrito? Claro que não! É
certo você me responder que há uma preocupação, na proposta do Colégio, de refletir e analisar a
linguagem nos textos (os quais são propostos em gêneros específicos para este ano de escolaridade.
Esta é outra questão...). Sim, concordo. Chegamos ao ponto que eu queria, este é o cerne da minha
pesquisa: (1) como estes aspectos da linguagem são compreendidos nos textos que as crianças leem e
escrevem? (2) estes aspectos devem mesmo ser sistematizados da forma que são, com fichas de

NARRATIVAS
1238

atividades no intuito de treinar? Ou, melhor dizendo, como ensinar a escrever? Vamos pensar amiga...
Vamos pensar...
Confesso que fiquei um pouco assustada quando me deparei com este quadro de conteúdos e
com as estratégias oferecidas pela coordenação. A preocupação com a “sistematização”, a meu ver, é
uma marca no trabalho do Colégio Pedro II. Veja bem, não estou dizendo com isso que a
sistematização não deva fazer parte do processo de aprendizagem das crianças, o problema é como
ela é feita. No diálogo com Sírio Possenti escutei que “não se ensina a língua falada com exercícios
sistematizados. Não se aprende a escrever por exercícios, mas por práticas significativas. (...) O
domínio de uma língua é o resultado de práticas efetivas, significativas, contextualizadas.” (1996, p.
47).
Entenda a minha posição: acredito na importância do exercício da língua, mas precisamos
pensar bem nas estratégias desse exercício. No caso da nossa instituição, você bem sabe quais são
as estratégias: fichas de exercício; livros didáticos; projeto de leitura de livros literários, com
propostas de “desdobramentos” do que se leu (lembrei-me da apostila com sugestões de
desdobramentos que recebemos). Estou esquecendo alguma? Claro! O caderno de textos com
propostas de “escrita livre” em diversos “gêneros”, que deveria ser lido pelas crianças toda quarta-
feira.
Me envolvi com aquele planejamento de tal forma que ao final do primeiro trimestre, fui
preencher a ficha de avaliação das crianças e, no que tange à produção textual, percebi que havia
poucos escritos das mesmas. O que havia eram exercícios de interpretação de texto no livro didático
e em fichas oferecidas pela coordenação de Língua Portuguesa; um texto coletivo (carta que a turma
fez para falar do recreio com a coordenadora de turno); perguntas que elaboraram para as
entrevistas com Claudinha (aquela moça da limpeza) e o Sr. Luiz Sacopã; e as impressões da visita ao
Quilombo que nem todas as crianças registraram. Além disso, você sabe que o tempo das aulas
também eram preenchidos com os exercícios de Matemática e de Ciências (os quais não tiveram
propostas de criação de texto). Rapidamente criei um pretexto para que escrevessem um texto.
Haviam utilizado o Tangran na aula de matemática, criaram uma figura com a montagem do mesmo e
colaram em uma folha. Então pedi para que escrevessem uma história no verso da folha utilizando
como tema a figura criada (somos boas em arrumarmos estratégias para cumprir com o exigido, não
é mesmo? O problema é que a escolha destas estratégias nem sempre são boas). Algumas crianças
relutaram em fazer, mas como tinham que cumprir a tarefa, iniciaram a mesma faltando pouco tempo
para o término da aula e escreveram seus textos em breves linhas. Breno Silva questionou: “Como
assim? Fiz um super-homem, não sei o que vou escrever!” Passei o resto da aula mandando o Breno
sentar (você o conhece bem e sabe que gosta de se movimentar pela sala e conversar com os
colegas) e escrever a história. Nos últimos cinco minutos de aula escreveu o mínimo possível, com a
intenção de cumprir com a tarefa que solicitei.
Quanto constrangimento estou sentindo agora, Júlia, por este relato que acabo de fazer.
Vamos pensar juntas: a criança recebe as peças do Tangran, brinca com elas, cria uma figura, cola em

NARRATIVAS
1239

uma folha e quando pensa que a professora vai propor que compartilhe sua criação com os colegas e
que a exponha em um mural, ela, simplesmente, pede para que criem uma história. A que ponto
cheguei, hein amiga?
Imagine você fazendo uma obra de arte e depois ser obrigada a criar algumas frases e
orações sobre aquela cena ou personagem criado? É a mesma coisa da “história do desenho”. Me diga
se você já não passou por isso na escola: a professora dá uma folha para a criança desenhar e depois
pede para que crie uma história usando as imagens do desenho. Eu penso o seguinte, Júlia: um texto é
um enunciado e, portanto, uma resposta nossa a algo ou alguém. A criação de um desenho ou de uma
imagem com as peças do Tangran já é um ato enunciativo responsivo do sujeito. É um texto imagético,
que tem um contexto, uma intencionalidade, um acabamento estético. O que a escola faz (e eu fiz isto
com as crianças) é propor ao aluno (proposta esta que se converte em obrigação) que faça uma
redação usando a imagem criada. E nesse momento se instaura o fracasso, minha amiga: o enunciado
da obra é apagado e os princípios reguladores passam a ser os da gramática. Se é uma narrativa que
está sendo proposta, por exemplo, o aluno deve aplicar as regras gramaticais correspondentes a este
gênero textual (parágrafos com introdução, desenvolvimento e conclusão, além da pontuação e
ortografia correta das palavras). E foi exatamente isto que fiz com as crianças, Júlia, pedi para que
fizessem uma redação a fim de avaliá-los de acordo com os conteúdos, as habilidades e competências
descritas naquele trimestre.
As crianças passaram por tudo isso para eu arrancar delas alguns escritos e preencher as
tais fichas de avaliação. Quanta incoerência de minha parte... Principalmente em relação ao que venho
estudando... Entende agora o motivo do constrangimento?
Já tivemos a oportunidade de conversar sobre minha pesquisa e as ideias de alguns autores
com os quais dialogo. Wanderley Geraldi é um deles. Falarei um pouco dessas ideias e você perceberá
como vão de encontro à minha atitude.
Provocado pelo discurso de Bakhtin, autor principal em minha pesquisa, Geraldi defende que o
espaço do ensino da língua deve ser um espaço de interlocução, de produção de linguagem e de
constituição de sujeitos . Com estes autores entendi que os sujeitos se constituem na interação com o
outro, e no caso da constituição da linguagem escrita, a interlocução com a professora tem lugar
privilegiado.
É, minha amiga... Parece que eu não soube aproveitar muito bem esse espaço privilegiado
naquela ocasião. Disse um pouco acima que me envolvi com o planejamento oferecido pela
coordenadora de Língua Portuguesa a ponto de chegar ao final do primeiro trimestre sem conhecer a
escrita das crianças. Vamos pensar juntas, Júlia: será que não estamos nos prendendo demais no que
é instituído? E o instituinte em nossas práticas? Estamos buscando?
Este ano fui a um encontro promovido pelo GEGe – Grupo de Estudos de Gêneros do Discurso,
na Universidade Federal de São Carlos e escutei umas palavras do professor e coordenador do grupo
citado, Valdemir Miotello, que ecoam até agora em meus ouvidos: “Essa escola que oprime deve ser a
escola que liberta também.” Ou seja, a escola é um espaçotempo instituído, mas também deve ser um

NARRATIVAS
1240

espaçotempoinstituinte. Penso que isto tem tudo a ver com o que estamos conversando. Nós,
professoras(es), enunciamos desse lugar, dessas políticas educacionais macros. E a aula que
pensamos é a nossa resposta única, nossa voz enunciada com autoria, nesse universo discursivo que
é o magistério. Da forma que você fala em sua aula, por exemplo, só você pode falar. É seu
acabamento estético que está associado à sua visão de mundo, que é ética. É seu ato responsável. Sua
resposta singular que está carregada de valores e de interesses, consciente ou não. Entende?
Paulo Freire também já conversou muito conosco sobre isso. Quando ouvi as palavras de
Miotello que trouxe acima me recordei do título de um livro de Freire: Educação como Prática da
Liberddade. Nele, o autor vai defender de que existe a “educação para a domesticação, alienação” e
uma “educação para a liberdade”. Este autor só diverge das palavras de Miotello (aliadas às de
Bakhtin) quando afirma que devemos optar entre a primeira “educação” e a segunda. O que Miotello
quis dizer contradizendo isso? A meu ver, é que não há a escolha entre uma ou outra, existe uma
“educação e outra no mesmo lugar. E nós estamos ali, minha amiga, vivendo as contradições dos
sentidos de ambas.
Ultimamente tenho pensado muito na relação de alteridade que estou construindo com as
crianças. Para mim, isto é instituinte. Você quer saber por quê? Penso que é por me colocar no lugar
da escuta sensível e do diálogo amoroso. É claro que na interlocução com elas, muitas vezes aceito o
que é instituído, ou seja, os temas dessa interlocução são os conteúdos de ensino prontos e acabados.
E então não é “o mesmo e o diferente no mesmo lugar”, como diz Bakhtin? O instituído e o instituinte
se contrapondo? Isto não é de arrepiar, minha amiga? Sabermos que nós e as crianças não somos
sujeitos passivos e passíveis de opressão e dominação, mas ao contrário, que somos sujeitos
históricos, escrevendo a história nesse coletivo?
Vamos voltar no caso da proposta de escrita a partir da figura criada com o Tangran. As
crianças me provocaram com suas palavras orais e escritas e esta provocação me alterou, alargou
minhas ideias e me fez pensar que aquela não era uma boa estratégia para que escrevessem e eu
pudesse acompanhar e apontar caminhos para ajudar no processo dessa escrita.
Nesses momentos, minha amiga, o grupo de estudos também ajuda bastante! (acho que já lhe
falei que faço parte de um grupo de estudos na Uff. O nome é sugestivo: ATOS-Uff – Grupo bakhtiniano
de estudos e pesquisas. Gosto muito). Pois é na reflexão e no diálogo com o grupo e os autores que
estudamos que penso em minha prática e tento agir de forma coerente com os princípios construídos
nesse coletivo.
Enquanto preenchia as fichas de avaliação refletia sobre meu trabalho e me perguntava: com
o que eu e as crianças trabalhamos durante esses três meses? Com exercícios de sistematização?
Com as fichas oferecidas pelas coordenadoras de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e Estudos
Sociais? Então voltamos a falar do instituído: o sistema está posto, o Colégio tem um projeto político-
pedagógica (ele tem 624 páginas, sabia disso?) e uma portaria de avaliação. É com base nesses
documentos e na formação profissional e pessoal de cada uma que nossas coordenadoras propõem
estratégias que consideram eficazes no atendimento às exigências do sistema. E você poderia me

NARRATIVAS
1241

perguntar: e o que é instituinte, não está presente na prática das coordenadoras? Responderia que
sim, amiga! Para essa resposta lembrei-me, por exemplo, de uma fala que usam frequentemente:
“Gente, estas são algumas sugestões de como atingir os objetivos e trabalhar com os conteúdos
propostos. Vocês podem e devem criar as estratégias que considerarem melhor.” Então não é
instituinte esta postura de nossas coordenadoras? Temos autonomia, sempre há margem de ação. Só
nos resta atenção para que não nos percamos nos artifícios do sistema instituído.
Já havia lhe falado mais acima que me deixei envolver pelo sistema.Realmente, aquele
trimestre foi difícil para mim... Lembra-se da visita que fizemos com as crianças ao Quilombo Sacopã?
Quanta emoção ao vermos aquelas crianças de 8, 9 anos de idade conversando com o Sr. Luiz Sacopã,
o patriarca das famílias que vivem naquele espaço da zona sul do Rio de Janeiro, lutando para se
manterem donas de sua terra e poderem manifestar sua cultura. Recordo-me agora de ouvir você
dizer que foi uma experiência marcante e que iria escrevê-la no trabalho de conclusão de sua pós-
graduação em Políticas Públicas e Cultura de Direitos, oferecida pela UFRJ. E então, você escreveu?
Gostaria muito de ler. É, amiga... Uma experiência marcante que deixei passar... Como assim, “deixei
passar”? Até hoje não acredito que perdi a chance de conversar mais a fundo com as crianças sobre
tudo que vimos, ouvimos e vivemos naquele espaço. Conversei muito pouco com elas a respeito do que
viveram naquele espaço, pedi para que escrevessem o que mais marcou na visita e voltei a trabalhar
os conteúdos definidos no nosso planejamento. Sei que você gostou muito da exposição que fizemos
com os desenhos e algumas falas das crianças, ambos expressos naqueles tecidos crus, pendurados
no salão da escola. Ficou muito bonito realmente. Mas algo em mim incomodava ao contemplar a
exposição: Sr. Luiz tinha dito muitas coisas sobre sua luta para se manter naquelas terras... Eu tinha
muito o que conversar com as crianças após escutarmos o Sr. Luiz e essa conversa poderia gerar
registros muito além do que breves enunciações e algumas ilustrações delas, escolhidas por mim
para serem reproduzidas em um tecido cru que seria exposto na escola. Não pense amiga, que falando
dessa forma, eu seja dessas que vive se lamuriando. Não, não foi esta a minha intenção. O
acontecimento, a ida das crianças ao Quilombo Sacopã, foi uma experiência que marcou nossas vidas,
de alguma maneira fomos todos afetados. Fomos alterados! Quanto ao meu incômodo, esse serviu
para que refletisse sobre minha prática e buscasse outros caminhos. Eu não pensava assim antes,
Júlia. Bakhtin me ajudou a enxergar que vivemos em um mundo feito de relações entre identidades
que exclui a diferença singular, um mundo da verdade universal, pronta, reprodutível e constante
[istina]. Mas este mundo também é o mundo da vida, da singularidade única do ser-evento, um mundo
da verdade [pravda] do ato, da posição justa de cada participante. E nós vivemos na tensão desses
mundos de verdades pravdas e istinas. Muitas vezes somos subservientes ao sistema de verdade
(istina) – como eu em relação ao sistema do Colégio – mas no encontro com a alteridade, “com a
verdade (pravda) do seu real dever concreto” (2010, p.104), nas relações dialógicas e valorativas com
o outro, elaboramos nossos atos de pensamento, de sentimento, de fala, de desejo, de opinião, de
visão de mundo que é intencional e deve ser responsivo, sem álibi, sem desculpas, sem indiferença
com o outro, com a vida. É isso que venho tentando fazer, minha amiga.

NARRATIVAS
1242

Bem... Vamos retomar as provocações que lhe fiz no início desta carta: Falávamos do
planejamento trimestral de Língua Portuguesa. Dos conteúdos que se repetem nos eixos de
“linguagem escrita” e “análise e reflexão da língua” (alfabeto, ordem alfabética, vogais e consoantes,
sílaba e separação de sílaba, distribuição espacial da escrita). Perguntei-lhe o que pensava dessa
separação e se a análise da língua deveria ser trabalhada, sistematizada, a parte do discurso escrito.
Comentamos que o Colégio procura trabalhar estes aspectos da linguagem nos textos. E então, outras
provocações foram suscitadas: como estes aspectos da linguagem são analisados nos textos que as
crianças leem e escrevem? Estes aspectos devem mesmo ser sistematizados da forma que são? Com
fichas de atividades no intuito de treinar?
Posso dizer que foi no vigor de meus incômodos, de minhas questões e das discussões com o
grupo ATOS que iniciei esta pesquisa com as crianças.
Lembra que no segundo trimestre iniciamos um trabalho com recontos de fábulas para tratar
do discurso direto com elas? Naquele período também vivemos duas experiências marcantes com as
crianças: visitas à padaria Santa Marta e à fábrica de sorvetes Itália. Já com a ideia da pesquisa na
cabeça, os relatos que as crianças escreveram contando essas experiências tiveram um tratamento
diferente de minha parte: a tentativa era trabalhar a linguagem escrita com as crianças pensando na
estilística e no gênero (um todo orgânico: forma e conteúdo unidos no discurso que é um fenômeno
social).
Naquela época conversamos rapidamente sobre isto, quando você quis saber qual era o tema
da minha pesquisa. Naquele momento lhe falei que estava aprendendo a olhar para os textos das
crianças de forma outra que não aquela que aprendemos no curso de formação de professores e na
prática docente. Você sabe do que estou falando? Refiro-me àquela “velha” preocupação do professor
de pontuar os problemas do texto do aluno em relação ao emprego das regras gramaticais de cunho
semântico, morfológico e sintático.
Quando falei com você sobre olhar para os textos das crianças de forma diferente dessa que
fomos a vida toda acostumadas a olhar, me referia dialogar com elas e seus textos de modo a ajudá-
las a pensar em seus projetos discursivos. Com os estudos de Bakhtin que venho fazendo, minha
amiga, acredito que meu papel na sala de aula é apontar às crianças elementos que as ajudarão,
através de ações responsivas, a enunciaremem um gênero discursivo e se comunicarem,
respondendo ao outro e à vida. Para isto, penso em ajudá-las a conhecer o gênero pelo qual vão
enunciar, explorando seus elementos indissociáveis: unidade temática, acabamento estético, forma
composicional, entonação, intencionalidade, estilo, autoria, destinatário, etc. Esta organização vai
sendo delineada de acordo com os princípios de cada gênero. Acredito que dessa forma as crianças (e
qualquer sujeito social) vão construindo sua maneira própria, única e irrepetível de penetrar no real,
na vida, compreendendo novos aspectos dessa realidade. Isto tudo ficará mais claro para você quando
ler meu trabalho completo.
Tenho pensado muito nessas ideias e aprendido outro jeito de “ensinar” a escrita na escola. E
preciso lhe dizer que tenho gostado muito desse exercício. Busco possíveis respostas a muitos dos

NARRATIVAS
1243

questionamentos e incômodos que sempre pairaram em minha mente no tocante ao ensino da língua
escrita na escola.
Quando passei a entender e acreditar na ideia de que nos comunicamos em um gênero
discursivo e que para isso damos um acabamento estético (que tem vinculação à nossa visão de
mundo, ética) a este projeto discursivo, fui buscar formas que pudessem ajudar na concepção coletiva
desse acabamento em um contexto de vivência na escola.
Uma dessas formas tem a ver com o estudo da gramática de nossa língua. Mais uma vez fui
escutar Bakhtin. Em Questões de estilística no ensino da língua ele enuncia que “As formas
gramaticais não podem ser estudadas sem que se leve em conta seu significado estilístico. Quando
isolada dos aspectos semânticos e estilísticos da língua, a gramática inevitavelmente degenera em
escolasticismo” (2013, p. 23).
Sendo assim, ao debruçar-me na leitura dos relatos e recontos das crianças, procurei
escutá-las de forma cuidadosa e flexível. Tentei olhar para a individualidade linguística de cada uma e
me encantei com o que antes não conseguia apreciar.
Os recursos e o modo de dizer, quando escreviam um relato ou um reconto de uma fábula
eram diferentes. Nos recontos, por exemplo, algumas vezes, se apropriavam do que ouviam em
relação à construção sintática e semântica da linguagem. Após conversar com as crianças sobre
recursos gramaticais que utilizavam como ferramenta em sua estilística elas passaram a usar o que
haviam observado nessas conversas. Ainda que de forma incipiente, foi isso que tentei fazer: disse às
crianças que havia me encantado com algumas peculiaridades de seus textos e pedi para que
socializassem no grupo (os que quisessem) seu modo de escrever.
O vocabulário dos textos foi um dos pontos explorados, pois pudemos discutir que ao
pensarmos em algo que queremos dizer escolhemos as melhores palavras para tal ação. Passamos
um tempo “brincando” com a entonação de alguns trechos socializados pelas crianças. Na fruição da
leitura, com direito a entonação e dramatização, íamos destacando algumas palavras do vocabulário
deles importantes para a construção de orações expressivas. A partir daí essa prática de socializar
os textos foi se intensificando... Não vou negar amiga, que poderia ter aproveitado mais a
oportunidade de estar com aquelas crianças contribuindo para o alargamento de suas construções
estilísticas de escrita. Mas o pouco que consegui valeu a pena! Vi mudanças nas produções escritas de
cada uma após esses dias de troca.
Esta prática de ficarmos atentos à estilística nos textos foi estendida às leituras de textos
literários, o que nos ajudou bastante. Isto aconteceu quando entramos no projeto de Conto de Fadas.
Como você sabe, este projeto abarcou as quatro turmas do terceiro ano... Humm! Não lhe parece que
estou falando demais? Sim, eu estou falando demais. Mas não consigo encerrar. Falta só mais um
pouco.
Vamos voltar a falar do trabalho com contos de fadas... Sabe, fiquei pensando no quanto as
crianças escreveram. Sei que não foi diferente com as crianças da sua turma. Recontar um conto de
fada de forma transgressora não foi uma tarefa fácil. Mas me emocionei quando estava aqui em casa

NARRATIVAS
1244

relendo a última versão do reconto que as crianças da minha turma fizeram de João e Maria.
Transbordava nos textos as conversas e leituras que tivemos em sala de aula. Além de ter lido com
elas duas versões deste conto (uma adaptação do texto original dos irmãos Grimm e um reconto de
Ana Maria Machado) lemos dois contos do livro “Contos de todo o mundo”, escolhidos pela turma em
regime de votação: “O diabo dá o diabo leva”, de origem holandesa e “A moça das pérolas”, originário
de Portugal. Conversamos muito sobre a estilística dos autores. Quando li a versão de João e Maria
contada por Ana Maria Machado, dramatizando e valorizando a beleza das palavras e do estilo e,
posteriormente conversamos sobre o texto, o movimento das crianças foi surpreendente... Queriam
saber o significado de algumas palavras (muitas fizeram questão de usá-las em seu reconto),
destacavam os detalhes que a autora trazia fazendo uso dos adjetivos, dos pronomes, dos parênteses,
das aspas... Nessas leituras dos contos explorei algo que não havia feito antes: as diferentes formas
do narrador se referir a um personagem. Chegamos até a sistematizar este trabalho no caderno.
Sabe Júlia, Geraldi em seu livro Portos de Passagem, na página 137, defende uma ideia que já
trás consigo desde quando escreveu “O texto na sala de aula” que é a seguinte:
Por mais ingênuo que possa parecer, para produzir um texto (em qualquer modalidade) é
preciso que:
a) Se tenha o que dizer;
b) Se tenha uma razão pra dizer o que se tem a dizer;
c) Se tenha para quem dizer o que se tem a dizer;
d) O locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz (...)
e) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d).

Esta ideia me é muito cara minha amiga. Como diz Geraldi, ela só parece ingênua, pois de
ingênua ela não tem nada. Pensando em tudo que venho lhe dizendo até agora, esta é a proposta que
tentei trazer para as crianças, para trabalharmos suas enunciações em um gênero. Aí estão os
elementos que vão caracterizar o gênero pelo qual enunciamos. Estes elementos são citados em um
livro de um autor que fez parte do “Círculo de Bakhtin” (uma espécie de grupo de estudos).
PávelMedviédev é o autor, e o livro chama-se O Método Formal nos Estudos Literários – introdução
crítica a uma poética literária. O capítulo que trata deste assunto é o terceiro, da terceira parte do
livro: “Os elementos da construção artística”. Fiz uma relação entre os elementos trazidos por Geraldi
para a enunciação no texto e os trazidos por Medviédev para a enunciação no gênero discursivo. Será
que tem lógica esta relação? Veja se consegue acompanhar minha ideia.
Ao enunciarmos no texto, que não deixa de ser enunciar em um gênero discursivo, precisamos
de um “tema” (Medviédev) ou de que “se tenha algo a dizer” (Geraldi). Tem que haver
“intencionalidade” (Medviédev) ou “uma razão pra dizer o que se tem a dizer”(Geraldi). Também não
pode faltar o “destinatário” (Medviédev) ou “alguém para dizer o que se tem a dizer” (Geraldi). “O
locutor se constitua como tal enquanto sujeito que diz para quem diz” (Geraldi), ou seja, deve haver
“autoria” (Medviédev). E, por fim, a “forma composicional”, a “entonação”, o “estilo” (Medviédev) ou as

NARRATIVAS
1245

“estratégias para que se concretizem todos os elementos acima” (Geraldi). Faltou lhe dizer que para
pensarmos na exploração desses elementos com as crianças é preciso considerar que eles formam
uma unidade orgânica que atende a um projeto de dizer de sujeitos socialmente situados respondendo
ao mundo.
Ju, quando iniciei essa proposta de compartilhar os textos das crianças, não tive como deixar
de conversar com elas sobre a divulgação de seus textos tão bem trabalhados. Estes não cabiam mais
na sala de aula e nos cadernos. O mundo precisava conhecê-los! Foi aí que veio a ideia de publicarmos
um livro em parceria com o Laboratório de Informática Educativa (Lied), que acabou virando um
trabalho de todo o terceiro ano.
No caso da sua turma, fizeram só o reconto do conto de fadas, pois me recordo que vocês se
envolveram em um trabalho longo com o Lied, que foi a elaboração de uma peça de teatro. Aproveito
esse momento Júlia, para declarar o quanto me tocou sua atitude de ouvir as crianças, seus desejos,
suas ideias... Lembro-me de você falando, com amor e entusiasmo, da ideia que a turma teve de fazer
uma peça e que você não podia recusar. Seus olhos brilhavam enquanto me contava os detalhes desse
acontecimento. Pois meus olhos também brilharam minha amiga, quando vi cada criança da turma 301
produzindo o seu livro com a coletânea de textos que fizeram ao longo do segundo semestre. Havia
relatos, recontos, fábulas, conto de fadas, autobiografia... E com direito a desenhos que criaram no
programa do computador.
Bem, está na hora de parar. Já falei bastante! Vou pensar em tudo o que conversamos e
continuar depois, esperando sua resposta. Quem sabe você se interessa pela leitura de Medviédev que
lhe falei anteriormente... Tem também as leituras de Bakhtin que nos ajudam: Questões de literatura e
de estética, Estética da Criação Verbal... Mas estas leituras não farão sentido se você não se sentir
provocada com a questão central dessa nossa conversa: existe um outro modo de pensar, interferir e
ajudar na atividade de criação na composição escrita das crianças, que não seja meramente levá-las
a analisar e refletir sobre os aspectos linguísticos da escrita. É no que acredito hoje.
Certa de que voltaremos a conversar,me despeço com um abraço.

Denise
REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 4 ed., São Paulo : Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma Filosofia do ato responsável. Tradução: Valdemir Miotello& Carlos Alberto Faraco. 2 ed.,
São Carlos : Pedro & João Editores, 2012.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de estilística no ensino da língua. São Paulo: Editora 34, 2013.
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MEDVIÉDEV, PávelNikoláievitch. O Método formal nos estudos literários:introdução crítica a uma poética
sociológica. São Paulo: Contexto, 2012.

NARRATIVAS
RESUMO
1246

REFLEXÕES BAKHTINIANAS PARA Palavras-Chave:

PENSARMOS OUTROS CAMINHOS


PARA AS ATIVIDADES DE
INTERPRETAÇÃO/COMPREENSÃO DE
TEXTOS MATERIALIZADOS NOS
CADERNOS ESCOLARES 320

TEIXEIRA MACEDO, Rômulo 321

SCHWARTZ, Cleonara Maria 322

INTRODUÇÃO

A
o desenvolvermos uma pesquisa de nível mestrado ainda em andamento sobre as atividades de
compreensão textual/interpretações textuais materializadas nos cadernos escolares de
crianças, com o objetivo de analisar tendências de abordagens de interpretação/compreensão
de textos que vem sendo assumidas na alfabetização, a partir dos anos 2000, em municípios que
fazem parte da Região denominada Grande Vitória, localizada no estado do Espírito Santo, e como
essas articulam com diretrizes assumidas pelos organismos internacionais para o ensino da leitura
nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Parece-nos que precisamos investir em fundamentos teórico-metodológicos a respeito
dessas nossas suscitas investigações. Esses investimentos no campo epistemológico nos fazem
repensarmos que é preciso trilhar outros caminhos para o campo da linguagem, de texto e de leitura
que fundamentam esses tipos de exercícios ou atividades.
Para discutir essas questões iniciais, tomaremos algumas ponderações de Luiz Antônio
Marcuschi (1996, p. 64) que assegura que as aulas envolvendo as atividades de compreensão textual
devem “[...] exercitar a compreensão, aprofundar o entendimento e conduzir a uma reflexão crítica

320
Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES).
321
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE,UFES), integrante da linha de
pesquisa Educação e Linguagens. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES).
322 Professora associada do Departamento de Linguagens, Cultura e Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, coordenadora do

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq.

NARRATIVAS
1247

sobre o texto”. Nessas enunciações o autor problematiza que as atividades acabam se configurando
como exercícios de copiação das partes literais que compõem os textos. Compreender. Essa palavra
tantas vezes utilizada nos planejamentos de ensino de língua portuguesa ou nas atividades de
interpretações de textos merece um destaque central no nosso debate, pois, tem nos direcionado a
refletir como as atividades de compreensão textual têm sido trabalhadas no âmbito educacional.
Assim, em exercícios de compreensão ou copiação nos manuais de ensino de língua?
Marcuschi (1996) analisa manuais de língua portuguesa das séries 1ª a 7ª (atuais 2º e 6º anos)
investigando as atividades desenvolvidas nesse tipo de manuais se de fato constituem exercícios de
compreensão. O autor destaca que os exercícios de compreensão/interpretação materializados nos
manuais de língua portuguesa se preocupam “[...] apenas com aspectos formais ou então reduzem
todo o trabalho de compreensão à identificação de informações objetivas e superficiais” (MARCUSCHI,
1996, p. 64); e aponta em seu estudo bem resumidamente que as atividades que privilegiam noções
objetivas e superficiais estão ligadas as questões que restringem às conhecidas indagações objetivas
tais como: O quê? Quem? Quando? Onde? Qual? Como? Para que?
Ao polemizar essas questões em seu estudo, o autor salienta que esses tipos de exercícios
limitam-se apenas as indagações objetivas, pois, de acordo com o autor esses tipos de atividades não
devem ser considerados como atividades de compreensão textual, contudo, explica em seu estudo que
“[...] são questões meramente formais, raramente apresentam algum desafio ou estimulam a reflexão
crítica sobre o texto” (MARCUSCHI, 1996, p. 65-71). Contudo, o autor assegura que atividades que
tratam o sujeito leitor como mero decodificador, a noção de língua é compreendida como “[...] um
código ou um sistema de sinais autônomo, totalmente transparente, sem história, e fora da realidade
social dos falantes”. Em oposição a essa concepção de língua concebida nas atividades, o autor
adverte que a língua não é “[...] um sistema monolítico e transparente, mas é variável, heterogênea e
sempre situada em contextos de uso. Não pode ser vista e tratada simplesmente como um código”.
Ao defender essa noção de língua, o autor observa que “a língua é uma atividade constitutiva
com a qual podemos construir sentidos; é uma forma cognitiva com a qual podemos expressar nossos
sentimentos e representar o mundo” (MARCUSCHI, 1996, p.72). Desse modo, posiciona-se contrário às
noções de língua como um código que é limitado à transmissão de informações que são exploradas na
maioria das atividades consideradas como exercícios de compreensão textual. Ele também pondera
que “[...] as significações e os sentidos textuais e discursivos não podem ser aprisionados no interior
dos textos pelas estruturas lingüísticas”. Nessa perspectiva, a produção de sentidos pelo sujeito leitor
não é elaborada pelo reconhecimento das estruturas funcionais linguísticas (aspectos fonéticos,
sintáticos e morfológicos), e sim os sentidos são produzidos por sujeitos situados em um contexto
histórico-social.
Já a noção de texto, o autor avalia que essa outra categoria conceitual (texto) precisa ser
analisada em conjunto com os exercícios de compreensão textual que são realizadas nos contextos
escolares, nas palavras do autor a escola tem tratado os textos que compõem as atividades de
interpretação como um produto acabado que funciona como “[...] uma cesta natalina, onde a gente

NARRATIVAS
1248

bota a mão e tira coisas” (MARCUSCHI, 1996, p. 73). Essa assertiva nos convida a
argumentar/analisar, que as atividades de compreensão/interpretação tencionadas nos cadernos
escolares têm dimensionado o texto como mero reprodutor de informações objetivas que são
facilmente identificáveis. Em oposição à noção de texto como um produto acabado, ele adverte que
“[...] o texto se acha em permanente elaboração e reelaboração ao longo de sua história e ao longo
das diversas recepções pelos diversos leitores”.
Sendo assim, nós sujeitos passamos a produzir sentidos perante os textos e as suas
atividades de compreensão textual. Dessa maneira, os textos não podem ser analisados como
“produtos acabados” porque cada um de nós sujeitos leitores elaboramos produções de sentidos, que
nesse entendimento, para Marcuschi (1996, p. 74) essas propostas de significações (sentidos) acabam
“[...] eliminando aquela ideia de compreensão como identificação de informações objetivas”.
Em síntese, a aprendizagem da leitura nessa tendência de memorização dos sinais gráficos e
da identificação das informações objetivas é respaldada por um viés mecânico, em que a criança
aprende por repetição, por condicionamento, as unidades menores da língua. Ressaltamos, assim, que
essa forma de compreensão não considera outros fatores, extralingüísticos, como a historicidade, o
contexto de produção da leitura e outros intervenientes no ato da leitura. A boa codificação garantiria
a eficácia da escrita e a boa decodificação, a eficácia da leitura, como se fosse possível ao autor
controlar todos os sentidos que o leitor possa produzir nos momentos da leitura. Essa forma de
compreender a leitura e as atividades de compreensão textual acaba por distanciar o aluno, porque
se prende puramente ao aspecto da linguística e, desse modo, propõe técnicas que auxiliam a
descoberta de um sentido único.
Desse modo, a pesquisa caracteriza-se como um estudo documental, cujas premissas do
historiador italiano Jacques Le Goff (2003) pontua que os documentos não são neutros, pois derivam
do empenho de homens que resulta de intenções a quem elabora. Assim, podemos inferir que as
atividades de compreensão textual materializadas nos cadernos escolares não são neutras, se
orientam segundo vozes responsivas a outras, de enunciados já ditos e daqueles que aguardam a
própria manifestação, querendo, por sua natureza construtivamente enunciativa-discursiva, serem
ouvidos, respondidos e reapreciados.
Seguindo os vestígios de Gvirtz e Larrondo (2008, p. 43), destacam que trabalhar “[...] o
documento em si mesmo e interrogá-lo em sua imanência é o princípio metodológico que converte o
documento em monumento”. Por essa razão, o pesquisador não deve ter um olhar ingênuo sobre as
fontes documentais, sendo necessário considerar suas condições de produção bem como saber
questionar e desmistificar os discursos ali materializados. Isso porque as condições específicas de
produção (atividades, contexto do qual fazem parte, interlocutores que participam da enunciação)
interferem na produção de sentidos que, consequentemente, nos evidenciam que não há como isolar
os documentos do seu contexto de enunciação e das intenções dos sujeitos que proferem discursos.
Pois, essa perspectiva de documento nos convoca a pensar que é necessário olharmos para todos os
elementos que os constituem, uma vez que os documentos impressos (os cadernos escolares),

NARRATIVAS
1249

manuscritos ou orais “[...] não se equipara a toda a obra em seu conjunto (‘ou ao objeto estético’). A
obra é integrada também pelo seu necessário contexto extraverbal” (BAKHTIN, 1992, p. 34).

1. NOSSA PESQUISA E SEUS FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado/ Do lirismo funcionário público com livro
de ponto expediente protocolo e/ manifestações de apreço ao sr. diretor. / Estou farto do lirismo que
pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo./ Abaixo os puristas./ Todas as
palavras, sobretudo os barbarismos universais/ Todas as construções, sobretudo as sintaxe de
exceção/ Todos os ritmos, sobretudo os universais/ [...] Quero antes o lirismo dos loucos/ O lirismo
dos bêbados/ O lirismo difícil e pungentes dos bêbados/ O lirismo dos clowns de Shakespeare./ Não
quero saber do lirismo que não é libertação (Manuel Bandeira, Poética).

Para fundamentar teoricamente o estudo das atividades de compreensão textual,


discutiremos a noção de linguagem, compreensão passiva e ativa, sujeito ativo/responsivo, avaliação
à revelia e a noção de enunciado concreto. Queremos tomar como ponto de partida o nosso objeto de
estudo, as atividades de compreensão/interpretação materializadas nos cadernos escolares de
crianças do Ensino Fundamental.
É fundamental problematizar que as pesquisas sociais, na sua maioria, fazem abordagens
positivistas de seus objetos, partindo de posicionamentos e modelos lineares da realidade,
demandando condições à determinação de um dado fenômeno, cujos elementos são discretamente
ordenados de forma sucessiva pelo pesquisador, a partir da observação do objeto.
Em companhia com Moraes e Paula (2013) o intuito de rompermos com essas visões
positivistas, surgem outros caminhos e formas de abordagem, sendo uma delas de perspectivas
sócio-histórica ou materialista dialética (marxista). Portanto, esses outros caminhos têm
possibilitado pesquisas inseridas em um dinamismo com o contexto imediato de seres humanos
diferentes, que sobrevivem arduamente em um mundo de relações de conflitos e transformações
inimagináveis.
Portanto, fazer pesquisa diante desse contexto social exige de nós pesquisadores, produções
de textos, que de acordo com Bakhtin (1992, p. 329), “[...] onde não há texto não há objeto de estudo e
pensamento”. Ao adotarmos a concepção de linguagem bakhtiniana, entendemos a língua como um
processo de interação eminentemente humana, contudo, o que nos difere dos outros animais é a
nossa linguagem, enquanto signo que estabelece uma função mediadora das relações interpessoais e
do processo de apropriação das produções humanas, bem como formadora das funções psicológicas
superiores nos indivíduos. Desse modo, entendemos o signo linguistico carregado de conteúdo
ideológico, marcado por uma relação dinâmica do tempo – espaço das relações entre a linguagem e
vida social. Ao situar a língua como uma produção humana, Bakhtin (1992) sinalizou que a língua é
organizada por enunciados, e, portanto, toda enunciação é um elo na cadeia discursiva que, de certa
forma, responde, interroga e rejeita ou carrega enunciados anteriores e responde a possíveis

NARRATIVAS
1250

respostas. Para o autor, “[...] a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela
se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o interlocutor. A palavra é o território
comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014, p. 117).
Os trabalhos de Bakhtin e seu Círculo a respeito da filosofia da linguagem contribuem para
essa outra ciência da linguagem que rompe com os estudos de orientações filosóficos – linguísticos,
sendo elas objetivistas e subjetivistas ou individualistas. A epígrafe escolhida sintetiza alguns
posicionamentos do século XIX a respeito da linguística estrutural tradicional, que normatiza os
lirismos dos sujeitos. Portanto, prevalecia um lirismo “comedido”, “bem comportado” e “que pára e
vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocabulário”. Desse modo, a língua pautava-se
em um “[...] sistema estável, imutável, de formas linguísticas submetidas a uma norma”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014, p. 75). No entanto, o autor, em seu tempo, desenvolveu seus
fundamentos teóricos a partir da análise crítica de duas orientações teóricas e filosóficas de
linguagem que predominava o século XIX. Segundo esses autores, a primeira orientação, o
Subjetivismo Idealista ou Individualista, tem como principal representante Wilhelm Humboldt. A
segunda orientação, o Objetivismo Abstrato, é representada fundamentalmente por Ferdinand de
Saussure.
Para os defensores do Subjetivismo Idealista, a língua é concebida como uma criação
linguística individual cujo processo de elaboração é o psiquismo individual (psicologia individual).
Como principal representante, Humboldt, considerava a língua como atos de evolução ininterrupta de
fala. Portanto, essa tendência (orientação) considerava a criação individual como fundamento da
língua, que nesse sentido era entendida toda a atividade de linguagem. Sendo assim, concebida como a
realidade essencial da língua. Porém, esses enunciados, conforme Bakhtin/Volochínov (2014, p. 74),
não são considerados como um processo que envolve sempre uma relação de conteúdo ou de
sentidos ideológicos que se desenvolve no contexto e nas relações entre os sujeitos, “[...] a língua é,
desse ponto de vista, análoga as outras manifestações ideológicas, em particular às do domínio da
arte e da estética”.
Ferdinand Saussure (1857 – 1913) que, de acordo com Bakhtin/Volochínov (2014, p. 14),
representante do Objetivismo Abstrato, compreende a língua como “[...] um fato social, cuja existência
se funda nas necessidades de comunicação”. No entanto, para Saussure, a língua é considerada como
um objeto abstrato, e que tende a afirmar as realidades e a objetividade da língua como sistemas de
formas normativas. Portanto, essa posição levou “o pai da lingüística” a criar divisões, dentre elas
entre a sincronia (ocupações das relações lógicas, ou seja, a língua é estática) e diacronia (dimensão
histórica). Desse modo, salientam Bakhtin/Volochínov (2014) que Saussure levou em conta apenas os
fatores sincrônicos, desconsiderando os elementos extraverbais, ou seja, os aspectos históricos,
culturais, geográficos e políticos. Nesse sentido, o interesse da linguística de Saussure está na
estrutura da palavra. Nos dizeres de Bakhtin/Volochínov (2014, p. 90), o espírito racionalista
representava que, “[...] na segunda orientação do pensamento filosófico – linguistico e para o qual a
história é um domínio irracional que corrompe a pureza lógica do sistema linguistico”. Nessa

NARRATIVAS
1251

perspectiva, a língua é “[...] um ato em si mesma e um princípio de classificação”


(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014, p. 88). No entanto, já a fala não é objeto de classificação, pois, os
racionalistas não consideravam o contexto, o extraverbal, os elementos transitórios, que, para
Saussure e outros componentes desta orientação, não seriam objetos de estudo da linguística.
De acordo com Bakhtin/Volochínov (2014, p. 99) ao separar a língua da fala, separa-se, ao
mesmo tempo, o que é individual do que é social, pois, separar a “[...] a língua do seu conteúdo
ideológico, constitui um dos erros mais grosseiros do objetivismo abstrato”, porque essa orientação
retrata uma visão de um mundo abstrato, ou seja, racionalista e mecanicista, desprovido de história.
Assim, inferimos que essa tendência linguística (objetivismo abstrato) de Saussure busca
analisar/compreender a dinâmica da língua nela mesma. Logo, para essa orientação filosófica a
organização (estrutura) da língua está no sistema linguistico, nas formas fonéticas, gramaticais e
lexicais.
Mikhail Bakhtin/Volochínov (2014) buscando superar tais orientações filosóficos – linguísticas,
afirmou que a língua não é um ato individual, fisiológico, como defendido pelas tendências analisadas
por ele, que concebiam a língua como um sistema de normas rígidas, imutáveis e um produto acabado.
Para os autores, a língua só pode ser analisada e compreendida a partir dos eventos de interação
verbal. Pois, compreendemos na companhia desses autores, “[...] a língua vive e evolui historicamente
na comunicação verbal concreta, não no sistema linguistico abstrato das formas da língua nem no
psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2014, p. 128). Contudo, podemos salientar
que ao superar com essas duas orientações, Bakhtin/Volochínov consideram o “lirismo dos loucos”,
“o lirismo dos bêbados” e o “lirismo dos clowns de Shakespeare” como contexto imediato carregado
de evoluções ininterruptas que se materializam na interação verbal social dos sujeitos inseridos em
uma totalidade histórica, que determinam a “[...] estrutura da enunciação é uma estrutura puramente
social” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014, p. 132).
Consideramos de extrema importância clarificar que não temos a pretensão de estabelecer
uma unanimidade discursiva monológica e converter os estudos bakhtinianos em uma camisa de força
para as investigações, por isso, ao longo deste estudo, dialogaremos com escritos do Círculo de
Bakhtin, de forma igualmente com outros autores que, em nossa visão, compartilham da abordagem
dialógica de linguagem e colaboraram para torná-la cada vez mais viva e mais próxima da nossa
realidade sócio – histórica e cultural.

2. OUTROS CAMINHOS DE COMPREENSÃO, DE TEXTO E DE LEITURA QUE APOSTAMOS PARA AS


ATIVIDADES DE INTERPRETAÇÃO/COMPREENSÃO DE TEXTOS NA ALFABETIZAÇÃO

Entendendo a dimensão de linguagem bakhtiniana, nessa direção, nosso desafio, ao analisar as


atividades de compreensão textual (interpretação de textos) por meio dos cadernos dos sujeitos
escolares, é buscar discutir, por exemplo, a compreensão textual e como essa concepção vem sendo
trabalhada nas atividades de interpretação, assim como as noções de linguagem, de leitura e de texto

NARRATIVAS
1252

que as fundamentam. Nesse sentido, conforme assinala Bakhtin (1992), nossa investigação incide nas
relações entre enunciados (atividades) produzidos por sujeitos em um contexto histórico. Para
Bakhtin/Volochínov (2014, p. 154), “[...] a palavra vai a palavra”. Ao examinar os enunciados (os
exercícios de compreensão textual) presentes nos cadernos escolares dos sujeitos dos anos iniciais
do Ensino Fundamental, não teremos como proposta/meta apreender a enunciação do outro de forma
muda, privada de respostas, mas, ao contrário, faremos o exercício de sermos interlocutores ativos
responsivos (assim como esses sujeitos que realizam as atividades) desses impressos, ampliando,
desse modo, a cadeia discursiva, abrindo espaço para novas enunciações.
Com base nos estudos de Brait acerca do texto nas reflexões de Bakhtin e do seu círculo
(2016), entendemos as atividades de compreensão textual (enunciados concretos) como portadores
de valores, de posições que acabam garantindo uma produção de sentidos, mas sempre em
confrontos com outras atitudes e valores em uma cultura e sociedade. Para essa autora, a ideia de
texto como concepção dialógica implica, teórica e metodologicamente, em três universos
constitutivamente articulados: a materialidade, que é a vida do texto, ou seja, esta constituição é
realizada na elaboração de linguagens socialmente organizadas e reconhecidas. E, portanto, é o
contexto imediato que garante a existência dessa materialidade. Assim, também cada texto possui sua
singularidade, que está relacionada a uma situação, ou também a um contexto, que é permeado em
uma cadeia histórico-discursiva que é a natureza social de toda enunciação. Sendo que, todo
enunciado concreto é concebido de um ponto de vista histórico, cultural e social. De acordo com Brait
(2016, p. 14, grifo nosso), “[...] advinda dessa combinatória com as relações dialógicas com outros
textos, no sentido de propiciar, provocar e convocar diálogos, abrindo espaços para respostas, para
novos textos”. A autora acrescentou ainda que a ideia de texto seja como um acontecimento da vida.
Ela explica:

a vida do texto e entre textos se dá no universo da dialogicidade, caracterizando-se pelo movimento de


discursos sociais, culturais, ético, estéticos que, para serem mobilizados, dependem da existência do
texto enquanto evento, enquanto acontecimento, necessariamente protagonizado por sujeitos situados
histórica e socialmente (BRAIT, 2016, p. 18).

A partir das contribuições de Brait, consideramos as atividades de compreensão textual como


instauradoras de um acontecimento que é realizado por sujeitos, que estão situados em um contexto
social imediato. Portanto, apostamos que as atividades que estão materializadas nos cadernos
escolares são movimentos de discursos entre sujeitos que mobilizam posicionamentos e tensões, e
que são produtores de sentidos. Logo, todo ato de compreensão envolve sempre duas consciências,
ou seja, as atividades de compreensão só ganham vida no entrecruzamento de duas consciências. De
acordo com Bakhtin, em Estética da Criação Verbal, especificamente em Apontamentos 1970 – 1971
(1992, p. 382, grifo nosso),

[...] não se deve entender a compreensão em termos de identificação e de colocação de si mesmo no


lugar ocupado pelo outro (perda do próprio lugar). Isto é necessário apenas nos momentos periféricos

NARRATIVAS
1253

da compreensão. Não se deve entender a compreensão em termos de tradução de uma língua


pertencente ao outro para a pessoal.

Nessa perspectiva, os atos de compreensão não são abrangidos como resultados de


identificações de informações, que normalmente algumas atividades acabam especificando em seus
comandos, que localizem os elementos informativos presentes nos textos. Portanto, os exercícios que
se limitam a encontrar essas informações acabam sendo caracterizados por traduções de registros
literais. Bakhtin (1992) destacou que a compreensão passiva é baseada por um sinal. Tais
compreensões caracterizam-se por nítidos signos linguísticos como um objeto-sinal. Conforme o
autor,

[...] a compreensão passiva caracteriza-se justamente por uma nítida percepção do componente
normativo do signo linguistico, isto é, pela percepção do signo como um objeto – sinal: correlativamente,
o reconhecimento predomina sobre a compreensão (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014, p. 102).

É importante que reportemos a essa categoria conceitual de Bakhtin, porque em nossas


análises evidenciamos que alguns exercícios que tem explorado esse reconhecimento das partes
literais ou as informações dos textos tem ganhado um destaque central na metodologia de ensino das
atividades de interpretação/compreensão de textos na alfabetização. Diante disso, na análise
bakhtiniana o sinal refere-se ao reconhecimento em detrimento do processo de compreensão, sendo
que, esse reconhecimento do objeto-sinal torna-se uma atitude compreensiva passiva do sujeito
diante das atividades de compreensão. Contudo, nas premissas do filósofo da linguagem
consideramos que o processo de compreensão não pode ser confundido com os processos de
reconhecimentos, até porque para o autor o sinal sempre estará ligado ao reconhecimento, e o signo
ao plano do mundo ideológico. Na perspectiva bakhtiniana, a compreensão sempre completará o texto,
trazendo elementos do nosso contexto social e também de nossas posições enquanto sujeitos
responsivos. Assim, nos dizeres de Bakhtin e Volochínov (2014) o reconhecimento dos sinais não
possui nenhuma relação com o contexto social de produção. Portanto, acreditamos que todo ser
humano situado em um contexto social acaba exercendo posicionamentos que são geradores de
sentidos. Segundo Bakhtin (1992, p. 382), essa atitude de compreensão significa que,

Compreender o texto como compreendia o próprio autor. Mas a compreensão pode e deve ser superior
à dele. Uma obra, poderosa e profunda, é, sob muitos aspectos, inconsciente e portadora de sentidos
múltiplos. A compreensão faz com que a obra se complete com consciência e revela a multiplicidade de
seus sentidos. A compreensão completa o texto: exerce de uma maneira ativa e criadora. Uma
compreensão criadora prossegue o ato criador, aumenta as riquezas artísticas da humanidade. Co-
criatividade do compreendente.

As contribuições de Bakhtin a respeito da compreensão criadora/ativa é fundamental para


que possamos analisar como as atividades de compreensão textual tem explorado os sentidos dos
sujeitos que a realizam, compreendendo-as como enunciados concretos que sinalizam encontros de

NARRATIVAS
1254

consciências, ou seja, posicionamentos entre as pessoas que revelam multiplicidades de sentidos.


Assim, todo ato de compreensão ativa ou criadora é impossível tentar traçar limites para a
compreensão e as respostas. Dessa maneira, toda compreensão responde, isto é, traduz o
compreendido em um novo contexto, ou seja, em um contexto possível de resposta.
Assim, consideramos que as atividades de compreensão textual desenvolvidas por sujeitos, e
que são concretizadas nos cadernos escolares dos estudantes, são possíveis de ser analisadas sob
uma perspectiva bakhtiniana, como exercícios constituídos de respostas e atitudes responsivas, e não
por metodologias de ensino que privilegiam o reconhecimento das informações dos textos. Por isso,
apostamos em atividades de interpretação/compreensão de textos que requer dos indivíduos
julgamentos e intenções que extrapolam as informações explícitas dos textos (enunciados concretos).
Compreendendo nesse sentido, que todo ato de compreensão ativa envolve uma relação mútua de
concordância e discordância, o que revela que, ao deparar-se com as atividades de compreensão
textual, os sujeitos constituem dizeres de um mundo que é formado por pessoas que estabelecem
significados em uma cadeia discursiva.
Nessa perspectiva, o sujeito responsivo concorda, discorda ou completa, adapta, repensa, e
essa sua atitude está em constante processo de audição. Nesse sentido, as atividades de
compreensão textual é muito mais que apontar os elementos informativos dos textos, ou seja, é muito
mais que ler e escrever, é para além desse ato mecânico que é arraigado em metodologias que
privilegiam a decodificação textual. Assim, o ato de compreensão ativa é o posicionamento do homem
perante o mundo, ou seja, interpelando, interrogando e criando sentidos múltiplos para o mundo.
Só este tipo de compreensão ativa que permite a apreensão dos sentidos, portanto, toda
compreensão ativa difere das atividades de compreensão textual que legitimam os processos de
identificação de respostas literais, ou seja, as informações presentes no texto. Diante disso, nos
dizeres bakhtinianos, o sinal carece de acontecimentos ligados ao contexto imediato, sendo que, essa
compreensão passiva (a identificação do sinal) não pertence ao domínio ideológico. Todavia, todo
enunciado (produção de respostas) das atividades de interpretação/compreensão de textos deve ser
elaborada para ir ao encontro de respostas dos outros. De fato, o que constitui uma atividade ligada à
compreensão ativa é o ato de dirigir-se a alguém e de estar voltado para a produção de sentidos. De
acordo com Bakhtin (1992, p. 386), somente na corrente dessa comunicação é possível que se
construam sentidos, “[...] chamo sentido ao que é resposta a uma pergunta. O que não responde a
nenhuma pergunta carece de sentido”.
Durante a década de 1970, abordou esse conceito (sentido) em Estética da criação verbal,
assinalando que a produção de sentidos só se atualiza em contato com o outro sentido. Para Bakhtin,
o sentido é sempre uma resposta a uma pergunta, pois vai depender da participação ativa do
interlocutor/ouvinte, que se dispõe em contato de diálogo e respondendo aos espaços singulares por
ela abertos na comunicação discursiva. Por isso, na perspectiva balhtiniana, “[...] o sentido é
potencialmente infinito” (BAKHTIN, 1992, p. 386).

NARRATIVAS
1255

Outro conceito abordado por Bakhtin que contribui para pensarmos as atividades de produção
textual é o conceito de avaliação à revelia, sendo que em 1920, Bakhtin explorou esse conceito em
Problemas da poética de Doistoiévski, apontando que nos romances monológicos há um sentido total e
conclusivo da vida e da morte de cada personagem. De acordo com Bakhtin, esse aspecto conclusivo
da vida e da morte revela somente o campo de visão do autor, não existindo relações dialógicas e
avaliações das personagens. Segundo Bakhtin (2015, p. 80), “[...] por sua própria natureza, a avaliação
conclusiva da personagem pelo autor no romance monológico é uma avaliação”. Nesse sentido, esse
tipo de avaliação “[...] não pressupõe e nem leva em conta a possível resposta da própria personagem
a tal avaliação”. Nessa perspectiva, podemos relacionar que tais atividades de
interpretação/compreensão de textos na alfabetização configuram-se a essa avaliação, tendo em
vista, uma compreensão passiva em que os sujeitos estabelecem diante de determinados exercícios. E
que, portanto, suas ponderações de sentidos são suprimidas por uma avaliação que não pressupõe os
dizeres dos sujeitos leitores. Assim, acreditamos na companhia de Bakhtin (2015, p.80) que “[...] a
posição do autor não encontra resistência dialógica interna por parte da personagem”. Nessa
dimensão, o autoritarismo se associa à indiscutibilidade das verdades veiculadas por um tipo de
discurso, ao dogmatismo; o acabamento dos universos individuais das personagens e sua sujeição ao
horizonte do autor (BEZERRA, 2007).
Para o autor, essa avaliação descredibiliza toda produção de sentidos que os sujeitos
estabelecem em contato com o contexto social e com as atividades que buscam legitimar um
determinado discurso como uma verdade acabada, formulada a partir do ponto de vista do autor.
Nesse sentido monológico, o outro “[...] é mero objeto da consciência de um ‘eu’ que tudo enforma e
comanda” (BEZERRA, 2007, p. 192, grifos do autor). O objeto de estudo de Bakhtin não é o “eu” isolado,
mas sim a interação das múltiplas consciências que caracteriza toda uma compreensão ativa dos
sujeitos, contribuindo para a constituição do próprio “eu”. Sendo assim, o “eu” é constituído a partir
do outro,

Eu me projeto no outro que também se projeta em mim, nossa comunicação dialógica requer que meu
reflexo se projete nele e o dele em mim, que afirmemos um para o outro a existência de duas
multiplicidades de ‘eu’, de duas multiplicidades de infinitos que convivem e dialogam em pé de igualdade
(BEZERRA, 2007, p. 194, grifo nosso).

Bezerra (2007) procura explicitar de acordo com Bakhtin o efeito negativo que o monólogo
(as atividades de interpretação/compreensão de textos que exigem copias das informações dos
textos) produz para uma vida social se quer fraterna, solitária, porque, no monologismo, apenas uma
voz se faz ouvir, pois as demais são abafadas, é algo concluído e surdo à resposta do outro, nega a
isonomia entre as consciências, pretende ser a última palavra e com isso desconsidera o outro
enquanto sujeito ativo responsivo e constitutivo de verdades carregadas de conteúdos histórico,
ideológico, social, enquanto uma compreensão ativa que se define especialmente pela multiplicidade
de consciências, embora autônomas e equivalentes.

NARRATIVAS
1256

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ancorados nos pressupostos bakhtinianos de linguagem, bem como em autores que adotam a
perspectiva histórico-cultural, consideramos que a língua é viva e dinâmica, carregada de valores
axiológicos, sendo utilizada para fortalecer ou não determinadas perspectivas que influenciam a
organização das atividades de interpretação/compreensão de textos na alfabetização. Por isso,
apostamos em um rompimento com os modelos hegemônicos de linguagem que dominaram o século
XIX, melhor dizendo permanecendo ainda resquícios no ensino da língua materna. Podemos pontuar
que esses respectivos modelos consideravam a linguagem enquanto uma exigência interior do
homem; e a linguagem enquanto um sistema de formas normativas.
Portanto, a nossa defesa outra é em uma ciência da linguagem pela qual o sujeito se constitui
enquanto indivíduo social situado em um contexto de produção, por isso, essa constituição da
linguagem na premissa bakhtiniana é denominada de dialogismo expresso na própria conduta de
Bakhtin, ao visitar outros pensadores e as condições socioeconômicas e políticas de sua época. Ele
foi até as correntes de pensamento de seu tempo e expôs a “fragilidade” de cada uma com a
construção de sínteses dialógicas e dialéticas. Quando ele reflete sobre a linguagem e se pergunta se
ela é uma superestrutura, ao discordar, em responder tal questão, vai encontrar na linguagem aquilo
que denomina de dialogismo, termo esse que se opõe ao monologismo estrutural vigente no modelo
linguista de Saussure. Dessa forma, Bakhtin encontra no dialogismo a possibilidade “criadora” do
sujeito, o que na verdade se opõe às “normas” e às “formas”, características do estruturalismo, que
coisificam a humanidade. Sendo assim, consideramos outras apostas de atividades de
interpretação/compreensão de textos na alfabetização que não submete o sujeito leitor como
“apontador” de informações no texto, um leitor decodificador de textos e muitos menos, um leitor
verbalizador de palavras. Contudo, o nosso desafio maior é sempre romper com perspectivas
hegemônicas que dominam práticas pedagógicas, e influenciam o ensino das atividades de
interpretação/compreensão de textos.
Queremos salientar que as atividades de interpretação/compreensão de textos na
alfabetização exigem de todos nós uma postura metodológica que envolve sempre atos de criação do
sujeito leitor. Assim, em parceria com Bakhtin, o autor alerta que todo processo de compreensão
busca sempre compreender com “[...] sua visão de mundo, de seu ponto de vista, de suas posições”
(BAKHTIN, 1992, p. 378). Por isso, essa posição é para além das perspectivas reducionistas e
cognitivistas positivistas que consideram as atividades de compreensão como: ler e escrever.
Portanto, essas concepções revelam-se porta-vozes de uma noção de compreensão textual que
invisibiliza as crianças como sujeitos produtores de histórias e de cultura. Consideramos que é
preciso pensar em outros caminhos teórico-metodológicos para as atividades de
compreensão/interpretação de textos que contemple a posição do sujeito como uma atitude
responsiva ativa primordial para a promoção da participação dos indivíduos na democracia. Só assim,

NARRATIVAS
1257

promoveremos esses horizontes de inquietações diante das práticas mecânicas e descontextualizadas


sobre as atividades de compreensão textual!

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
________. Marxismo e Filosofia da linguagem.16.ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
________. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2015.
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2007. p. 191-200.
BRAIT, Beth. O texto nas reflexões de Bakhtin e do Círculo. In: BATISTA, Ronaldo de Oliveira (Org.). O texto e seus
contextos. São Paulo: Parábola Editorial, 2016. p. 13-30.
GVIRTZ, Silvina; LARRONDO, Marina. Os cadernos de classe como fonte primária de pesquisa: alcances e limites teóricos
e metodológicos para sua abordagem. In: MIGNOT, Ana ChrystinaVenancio (Org.). Cadernos à vista: escola, memória e
cultura escrita. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008. p. 35-48.
LE GOFF, Jacques. História e memória.4.ed. Campinas: UNICAMP, 2003.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Exercícios de compreensão ou copiação nos manuais de ensino de língua?Revista Em
Aberto, Brasília, ano 16, n. 69, jan./mar. 1996.
MORAES, Raquel de Almeida; PAULA, Nanci Martins de. Revista Dialogia, São Paulo, n.17, p. 127-136, jan./jun. 2013.

NARRATIVAS
RESUMO
1258
Neste trabalho, abordaremos alguns aspectos do
gênero discursivo canção na esfera social escolar
do Ensino Fundamental II, focalizando as relações

CONSIDERAÇÕES SOBRE A entre literatura e ensino e os seus desdobramentos


na prática docente. Sob a ótica do Círculo de
Bakhtin, faremos alguns apontamentos acerca da

TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA DA transposição didática da canção. Para tanto,


centralizaremos essa breve análise na concepção
de enunciado concreto (MEDVIÉDEV, 2012; BAKHTIN,

CANÇÃO NA ESFERA ESCOLAR 2016; e VOLÓCHINOV, 2017). Com esse estudo,


corroboraremos com uma transposição didática
mais coerente tendo em vista que, habitualmente,

DO ENSINO FUNDAMENTAL II privilegia-se apenas um aspecto da canção – a letra


– e se desconsidera toda a informação musical que
constrói o sentido.

Palavras-Chave: Canção. Transposição didática.


Enunciado concreto

UCELLA, Orlando Brandao Meza 323

INTRODUÇÃO

E
studar literatura na escola para quê? Para aumentar a cultura dos alunos? Qual cultura? Para
formar leitores? Para contribuir com uma construção de identidade nacional plural? Para
humanizar, como propõe Todorov (2009)324? A escolarização da leitura literária é uma questão
ainda bastante rizomática325. No que diz respeito à finalidade do texto literário em sala de aula, são
diversos os caminhos a serem seguidos.
Neste primeiro momento, não tenho a pretensão de discutir essas questões, mas sim de
apresentar o que impulsiona o exórdio desta pesquisa, que será ampliada, sazonada e transformada
em tese. Farei, neste breve ensaio, algumas considerações acerca do gênero discursivo canção. Para
isso, é crucial destacar que a canção é compreendida aqui como parte da esfera discursiva literária,
assim como sugere Ítalo Moriconi (2002) na abertura do livro “A poesia brasileira do século XX”326.
Antes de prosseguir com as considerações que me proponho realizar e o delineamento dos
objetivos, acredito ser necessário fazer uma breve apresentação do sujeito que escreve e as veredas
que este ensaio percorrerá: do mestrado até aqui, houve um deslocamento de objeto de estudo. Em
2014, conclui o mestrado em Literatura Comparada (UFRN), no qual analisei três canções de Chico

323 Especialista em Literatura Brasileira (UFRN); e em Literatura e Ensino (IFRN); Mestre em Literatura Comparada (UFRN). Professor da Rede
Municipal da cidade de Natal. E-mail: orlandoucella@gmail.com
324 Outros autores também trazem essa perspectiva humanizadora e até certo ponto questionável, a exemplo de Antonio Candido em “Direito à

literatura” (1995).
325 Expressão emprestada de Deleuze e Guattari (1995) que indica, no contexto empregado, várias possibilidades de ramificação, de conexão

que podem se complementar e gerar outras conexões.


326 Esse autor afirma que a canção popular está mais presente na cultura brasileira do que o poema escrito. Para ele: “Todo letrista é poeta.

Mas nem todo poeta é ou que ser letrista” (2002, p. 15). Considero como crucial destacar essa compreensão, uma vez que há estudos que
digam o contrário, como é o caso do pesquisador Lauro Meller (2015).

NARRATIVAS
1259

Science & Nação Zumbi (1996). Ainda neste ano, como já sinalizava ao final da dissertação, parti para o
estudo da relação literatura e ensino. De 2016 até o presente momento esta pesquisa vem se
projetando para a área de Linguística Aplicada, especialmente para o Estudo de Práticas Discursivas.
Com o objetivo de incorporar os aspectos teórico-metodológicos dessa linha de pesquisa,
decidi cursar como aluno especial a disciplina “Teorias contemporâneas do discurso”, oferecida pelo
Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da UFRN (2017.1). Assim, essas considerações
que me proponho a fazer emergem desse percurso e tiveram como objetivo cumprir também com
esse componente curricular.
Por conseguinte, sob a ótica dos estudos do Círculo de Bakhtin, tratarei de trazer alguns
apontamentos sobre da canção popular e sua relação com a escolarização da leitura literária. A
esfera social de onde vamos partir é a escolar, sobretudo do Ensino Fundamental II, dado que esta
será a situação de comunicação em que desenvolveremos a futura tese.

A CANÇÃO COMO GÊNERO DISCURSIVO E A SALA DE AULA327

A canção é um gênero híbrido, que, segundo Nelson Barros da Costa (2002) 328, conjuga dois
tipos de linguagens, a verbal e a musical. Corroborando com isso, um dos pesquisadores mais
expressivos dos estudos da canção, Luiz Tatit (1986)329, ao tratar especificamente da canção popular,
afirma que a identidade da canção está na melodia. Tendo em vista essas pesquisas e diversas outras
acerca do gênero discursivo canção, sobretudo a nomeada de “popular” 330 , consideraremos a
conjugação das linguagens verbal e musical, traço basilar desse gênero.
Todavia, é crucial ressaltar dois pontos: o primeiro é que esses dois autores compreendem a
canção a partir de pontos de vistas teóricos distintos, que mesmo se cruzando em alguns momentos e
revelando particularidades da canção popular brasileira, não estão consoantes com o que esperamos
estudar neste breve ensaio sobre a transposição didática da canção popular. Ademais, estamos
propondo aqui um breve estudo, como já foi dito, portanto não cabe aprofundarmos nesse ponto da
discussão. O segundo ponto: é que mesmo possuindo divergências esses autores são importantes
para recuperarmos determinados aspectos da canção popular brasileira que possa agregar à noção
de gênero do discurso na perspectiva bakhtiniana, uma vez que esta será nosso eixo central. Por

327 A partir daqui, deixarei de fazer as observações por meio da primeira pessoa do singular e seguirei na primeira pessoa do plural, por achar
que nessa ordem estaria sendo mais coerente com cada seção.
328 Apesar de Nelson Costa (2003) ainda apresenta em um de seus artigos um interesse pelo estudo da canção no contexto escolar, sua

análise da canção popular brasileira segue pelo viés da análise francesa do discurso, especialmente Maingueneau (1993, 1996 e 2005).
329 Esse autor, talvez o mais difundido no meio acadêmico, propõe uma análise por meio das teorias semióticas. Esse autor considera, como já

foi apontado, que a melodia é a identidade da canção. O problema da abordagem desse autor não está na teoria, mas sim no recorte que ele
propõe, uma vez que busca estudar a canção apenas por meio da melodia, desconsiderando assim o ritmo e outros elementos da voz. Esse
problema se equipara a da delimitação por meio do estudo isolada da face sonora do signo linguístico criticado por Bakhtin em “Marxismo e
filosofia da linguagem” (2017).
330 Outros autores igualmente importantes e que reforçam essa compreensão são: João Batista de Morais Neto (2009), Joaquim Aguiar (1998),

José Miguel Wisnik (1982 e 1989), José Ramos Tinhorão (1998, 2001, 2009), Luiz Tatit (1986, 2004 e 2012), Santuza (2010 e 2015), Vasco Mariz
(2002) etc.

NARRATIVAS
1260

conseguinte, quando necessário, traremos outros teóricos para acrescentar aspectos mais pontuais
a respeito da canção.
Recorremos às teorias do Círculo de Bakhtin, uma vez que, ao contrário dos dois teóricos
supracitados no começo desta seção, encontramos no Círculo noções significativas para o presente
estudo. Assim, para sermos mais exatos, a seguir elucidaremos uma das noções que consideramos
cruciais para estudar a transposição didática do gênero discursivo canção popular, a saber:
enunciado concreto.
Segundo Bakhtin (2016), o enunciado concreto é único e reflete as condições específicas e as
finalidades de determinado campo da atividade humana. Ele afirma também que a língua, nas palavras
do autor, “efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos por
integrantes desse ou daquele campo da atividade humana” (p. 12).
Assim, compreendemos que o estudo da canção em sala de aula deve considerar a canção
como um enunciado concreto, em outras palavras, cada canção é um gênero discursivo particular e
único, não cabendo estuda-la como algo fixo e repetível. Ao afirmarmos isso, estamos considerando
que o estudo da canção em sala de aula não pode se prender ao estudo da letra da canção isolada de
seu material sonoro e nem que deve prender-se apenas às análises estruturais dessa letra (métrica,
presença de narrador, tipos de eu lírico, rimas etc.). Ademais, o enunciado concreto não se restringe
apenas aos enunciados verbais. Ele pode ser qualquer enunciado (verbal ou verbo-visual-musical) que
se encontra em uma situação real de comunicação.
Para esclarecer melhor o que é o enunciado concreto, Bakhtin (2016), em “Os gêneros do
discurso”, recorre a distinção entre enunciado concreto e oração gramatical. Ele diferencia e
problematiza a “oração como unidade da língua naquilo que a diferencia do enunciado como unidade
da comunicação discursiva” (grifos do autor, p. 31).
De um lado, temos a oração, entendida como abstração, como algo deslocado de um contexto
(situação extraverbal), além de não possuir também relação imediata com enunciados alheios. Essa
unidade da língua “não é delimitada de ambos os aspectos pela alternância dos sujeitos do discurso”
(p. 33), isso significa dizer que na oração há não responsividade.
De outro lado, o enunciado concreto, por sua vez, é um ato singular, concretamente situado e
emergido de uma atitude responsiva e valorativa. Logo, “o discurso sempre está fundido em forma de
enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir” (p.
28). Volóchinov, um dos teóricos do Círculo de Bakhtin, também reforça essa compreensão em
“Marxismo e filosofia da linguagem” (2017):

a unicidade do meio social e a do acontecimento da comunicação social mais próximo são duas
condições totalmente necessárias para que o complexo físico-psicofisiológico apontado por nós possa
ter uma relação com a língua, com o discurso, possa tornar-se um fato da língua-discurso (linguagem).
Dois organismos biológicos nas condições de um meio puramente natural não gerarão nenhuma fato
discursivo. (grifos do autor, p.145 e 146).

NARRATIVAS
1261

Por fim, podemos dizer que essa distinção entre enunciado concreto e oração gramatical deve
estar clara nas práticas docentes e no material utilizado em sala, dado que os documentos oficiais
corroboram com essa concepção. Esse é o caso da 3ª e última versão da Base Nacional Curricular
Comum (BNCC) divulgada em abril do corrente ano. Nela, há, entre outros elementos que demonstram
convergir com a noção de enunciado concreto, o seguinte objetivo do eixo leitura: “Reconstrução das
condições de produção e recepção de textos”. Com isso, a BNCC sinaliza que o estudante deve
compreender um aspecto das vozes sociais presentes no texto ou fora dele (fator extraverbal).
Essas questões também surgem, de maneira mais clara, em outro documento: os Parâmetros
Curriculares Nacional – Fundamental II (1998). Neste, afirma-se que “a importância e o valor dos usos
da linguagem são determinados historicamente segundo as demandas sociais de cada momento”
(p.23), completando em seguida que “atualmente, exigem-se níveis de leitura e de escrita diferentes
dos que satisfizeram as demandas sociais até há bem pouco tempo” (idem). Consoante com o que
trouxemos a respeito do pensamento de Bakhtin (2016) sobre enunciado concreto esse documento
ainda traz que: as unidades básicas do processo de ensino não devem basear-se em uma “análise de
estratos – letras/fonemas, sílabas, palavras, sintagmas, frases – que, descontextualizados, são
normalmente tomados como exemplos de estudo gramatical e pouco têm a ver com a competência
discursiva” (PCN. 1998, p. 23).
Logo, espera-se, por exemplo, que o livro didático do Ensino Fundamental II traga a canção
considerando-a como um enunciado concretamente situado e emergido de uma atitude responsiva e
valorativa. Isso pode ser apresentado ao educando, situando-o das condições de produção e
recepção, e/ou estimulando-o a reconhecer esses elementos. Espera-se também que esse material
de apoio também estimule o aluno transpareça seu ponto de vista, assim, atuando no sujeito sua
responsividade acerca de determinado enunciado.
Na contramão disso, o atual processo de escolarização do texto literário, quase como um
consenso entre pesquisadores, é muito precário. Isso se justifica pois, nessa etapa do ensino,
cristalizou-se um modelo de tratamento do objeto literário sob um viés descritivo-historicista
(especialmente no Ensino Médio) ou como pretexto para analisar apenas elementos estruturais (como
métrica, rima, tipos de narrador etc.) ou gramaticais.
Quando abordamos apenas esses no estudo do texto (não só o literário), é como se
estivéssemos considerando a língua como ausente de ideologia, como algo deslocado de uma
realidade específica e, portanto, passamos a considerar o texto do ponto de vista abstrato. Não cabe,
pois, um estudo imanentista ou historicista do enunciado. É preciso estudar também seu conteúdo e
sua carga ideológica, no entanto isso só é possível fazer ao analisar o gênero como um todo.
Se estamos considerando o enunciado concreto, especificamente, o gênero discursivo canção
popular, devemos, por conseguinte, buscar abordagens que compreendam sua totalidade (temática,
estilo e elementos composicionais), uma vez que “eles refletem as condições específicas e finalidade
de cada referido campo” (p. 11). Bakhtin (2016) não isola nenhuma das características do gênero para
dizer que estudando apenas uma é suficiente para compreensão da obra. Corroborando com isso,

NARRATIVAS
1262

outro autor do Círculo de Bakhtin, Medviédev (2012) aponta que “a poética deve partir precisamente
do gênero”, dado que “O significado construtivo de cada elemento somente pode ser compreendido na
relação com o gênero” (p. 193).
Por esse motivo, a palavra na canção não pode ser vista a partir apenas da modalidade
escrita. Sabendo isso, um dos estudiosos da canção Simon Frith (1996) define da seguinte forma: são
as “palavras em performance” (p. 166). Sobre a ideologia presente na palavra Volóchinov (2017) diz o
seguinte: “A palavra está sempre repleta de conteúdo e de significação ideológica ou cotidiana” (p.
181), em seguida o autor afirma que “A ruptura entre a língua e seu conteúdo ideológico é um dos
erros mais graves do objetivismo abstrato” (grifos do autor, p. 182).
Não só palavras estão intrinsecamente ligadas à ideologia, bem como a produção do som de
um tambor ou uma guitarra também estão necessariamente carregadas de ideologia. Por isso, a
escola e, sobretudo, o educador devem estar preparados para abordar esses elementos em sala de
aula quando forem estudar a canção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista o que foi discutido anteriormente, podemos dizer que a transposição didática
da canção, por vezes, é realizada de forma inadequada, uma vez que as abordagens didático-
pedagógicas cristalizadas desconhecem ou ignoram a natureza híbrida do gênero canção, ou seja, a
intersemiose letra e música. O reflexo disso está em propostas ou práticas pedagógicas que exploram
parcialmente o gênero canção, sobretudo, como já foi mencionado, a letra da canção. Ao fazer isso,
ignorasse toda a linguagem musical da canção, elemento fundamental para construção de sentido
desse gênero discursivo.
Um exemplo de proposta pedagógica que considera o ritmo dos versos, mas não trabalha a
linguagem musical presente nas canções é a coleção de dois volumes de Tereza Telles, “Chico
Buarque na sala de aula: leitura, interpretação e produção de textos” (2009, 2012). Nesses volumes, a
autora, de modo geral, explora os aspectos estruturais da letra da canção, o contexto de produção, as
categorias narrativas, os temas e ao final, com base no que foi abordado, propõe tópicos de discussão
ou de abordagem em sala de aula do conteúdo trabalhado. Aliado a isso, a prática docente ainda
reforça esse tipo de proposta quando não ouve a canção em sala, mas somente lê. Outro exemplo que
persiste nesse problema é: “Como usar a música na sala de aula” (FERREIRA, 2005).
Portanto, não se trata de um estudo imanente do enunciado verbal em sala de aula, nem
tampouco da análise apenas dos elementos estruturais, tratando-o como um poema. É preciso buscar
uma abordagem que contemple o signo verbal e musical. Talvez agora surja a pergunta: o professor
terá que se formar em música para fazer uma transposição didática adequada? Claro que não. Assim
como um educador antes de realizar uma transposição didática deve estudar o gênero que se
pretende estudar, buscando, por exemplo, elementos basilares que o compõem, temas recorrentes,

NARRATIVAS
1263

estrutura composicional, estilo, sua esfera de circulação, perfil do coenunciador etc., ele também
deve fazer o mesmo com a canção.
Para finalizar, trarei um exemplo simples e um pouco fora do contexto do Ensino Fundamental
II, todavia servem para elucidar essa questão: se estudamos o gênero decreto de lei, devemos então
busca os elementos para compreendê-lo, como sua esfera de circulação, a quem ou a que costuma se
destinar um texto como esse, seus elementos estruturais, estilo (por mais que nesses gêneros eles
sejam mais condensados) etc.
Corroborando com isso, Rildo Cosson (2014) considera que o seguinte: "para fazer uma leitura
pertinente da canção popular como literatura, é preciso desenvolver uma escala de valores própria
dessa manifestação, abarcado (sic) a multiplicidade de seus gêneros, estilos e temáticas" (p. 16). O
principal problema da transposição didática desse gênero está justamente nesse ponto. Há outros
entraves proporcionado pelo estudo imanente da letra, como pudemos observar neste ensaio, no
entanto, a questão central que é “como realizar a transposição didática desse gênero discursivo?”.
A canção popular brasileira na sala de aula, portanto, revela uma série de questionamentos
acerca da sua transposição didática, visto que não basta apenas apresentar a letra da canção,
tratando-o como poema. Não basta também expor apenas o áudio da canção com os elementos
musicais. Nesse campo de atuação, há muitas propostas de estudo da canção em sala de aula,
algumas reforçam os problemas apontados até aqui, outras, poucas, corroboram para uma prática
educativa que contemple melhor o gênero discursivo em questão. Deixaremos, assim, o percurso
dessas veredas para outro artigo ou para uma possível tese, em que possamos analisar uma proposta
e sugerir elementos para também contribuírem com o aprimoramento da transposição didática da
canção.

REFERÊNCIAS

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CÂNDIDO, Antônio. O direito à Literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Chaos, 1996. Compact Disc. Digital Áudio, 1 CD.
Resmaterizado em Digital.
COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.
COSTA, Nelson Barros da. A produção do discurso literomusical brasileiro. Tese (doutorado em Linguística), PUC de
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Portuguesa. v. 4, nº 1. Revista Linguagem em (Dis)curso: Unisul, 2003. p. 9-36.

NARRATIVAS
1264

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia
Pinto Costa. 1 ed. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995.
FERREIRA, Martins. Como usar a música na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2002.
FRITH, Simon. Performing Rites: on the value of popular music. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1996.
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MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética
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VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução: Sheila Grilo e Ekaterina Vólkova Américo. São
Paulo: Editora 34, 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
1265
Este texto procura trazer uma reflexão sobre o
processo de construçao de um campo de pesquisa

NARRATIVAS SOBRE para se pensar sobre a responsabilidade em lidar


com as narrativas presentes em um documento
institucional que será o objeto de analise dessa

DIVERSIDADE SEXUAL NO
pesquisa. Considerar um documento institucional de
uma universidade pública e federal como um espaço
de produção de sentidos sobre diversidade sexual,
quando esta emerge enquanto palavra escrita neste

ESPAÇO UNIVERSITÁRIO: documento, possibilita a discussão sobre quais


negociações, demandas sociais e ações
institucionais dialogam com os contextos nacionais
apontamentos de um percurso investigativo e particulares dos sujeitos envolvidos neste espaço
acadêmico no processo de constituição deste

em curso documento. E como lidar com as narrativas que


possam emergir, tornou-se a reflexão maior nesse
processo em andamento da pesquisa. Estes corpos
postos à margem, identidades e experiências
esquecidas das narrativas constituídas socialmente
e que emergem sob o signo do patológico, da égide
a anormalidade e do não-lugar, com os quais estar
Hamilton E. S. VIEIRA 331 diante e mesmo fora deles e nao poder viver a vida
deles, caminhar até estes outros e ao voltar para o
Claudia R. REYES 332
meu lugar é que posso estabelecer com eles uma
interação. É pela emergência da palavra que
constitui-se em signos ideológicos prenhe de
significados, que a diversidade sexual institui na
linguagem do documento estas narrativas que
muitas vezes estão apagadas, invisibiizadas e
INTRODUÇÃO esquecidas propositadamente por relações
ideológicas de poderes, porque linguagem é poder e

M
institui também a existência dos sujeitos.
useu e pedofilia, arte e abuso infantil. Proibir sobre ensinar
crianças a “serem homossexuais” na escola. Não à “ideologia Palavras-Chave: Percurso Investigativo.
Narrativas. Diversidade Sexual
de gênero”. Homem são homens e mulheres sempre é mulher,
não tentem mudar isso! Pela família e pelo que é certo, sem
“esquerdopatia” ou degeneração.
Massivamente temos sidos abordados em algum contexto, seja por meio das redes sociais ou
outras mídias e nas relações que temos no nosso cotidiano por palavras carregadas de um discurso
ideológico que leva a pensar sobre os lugares que as enunciam e como lidam com o outro nestas
relações estabelecidas com seus interlocutores. Como lidar com narrativas em contextos atuais,
quando a palavra é tomada como lugar de poder e inscreve sujeitos e sentidos sobre o que enuncia e
constitui.
Contar algo para quem escuta ou lê, ou se apropria de qualquer outra forma destes dizeres
aqui colocado, leva a considerar a narrativa como o lugar da prática social, na interação, onde a arte

331 Mestre em Educação Escolar. Doutorando e Bolsista CNPq do Programa de Pós-Graduação em Educação da Univresidade Federal de São
Carlos/São Carlos. Membro dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos da Sexualidade (NUSEX/UNESP/Araraquara) e Linguagem, formação e
aprendizagem (UFSCar/São Carlos). E-mail: hamiltonv@hotmail.com
332 Professora Titular do Departamento de Teorias e Práticas da Universidade Federal de São Carlos/São Carlos, credenciada ao

PPGE/UFSCar/São Carlos e líder do grupo de pesquisa Linguagem, formação e aprendizagem. E-mail: claudiareyesufscar@gmail.com

NARRATIVAS
1266

de narrar permite recriar pelo ato da imaginação, dos lugares, das instâncias, os aspectos e
pensamentos em uma relação direta e imediata entre interlocutores (BENJAMIN, 1994).
Um percurso investigativo nos lança em como olhar o mundo com o qual nos envolvemos
referente ao campo de um objeto investigado. Esta aproximação desde sua elaboração mental até o
estar lá, nunca é impune ou ocorre ao acaso. A palavra viva não está dada ou pressuposta, mas se
constitui no trajeto, pois indica desde o momento que a procura que existe já certa atitude sobre o
objeto (BAKHTIN, 2012).
O caminho de produção da pesquisa revela muito sobre o lugar de onde constituem os
sentidos e o lugar de onde se fala. A escolha sobre as narrativas presentes em um documento
institucional, de uma universidade pública e federal, que emergem gênero e sexualidade em seu
espaço dos dizeres, não é apenas em função de uma escolha acadêmico-metodológica-científica. Mas,
dialoga com contextos diversos, desde o sujeito-pesquisador e os saberes e vozes com os quais se
constitui, aos lugares e tempos que atravessam a enunciação de questões sobre a sexualidade
humana e das relações generificadas que estabelecemos com uns com os outros.
O objeto dado no discurso de um locutor-sujeito-pesquisador não é seu objeto pela primeira
vez neste enunciado. Nem como o eu-sujeito-pesquisador, ser o primeiro a falar dele. Este objeto ja foi
apontado constantemente em outras pesquisas de diversas áreas do saber e campos epistemológicos
e metodológicos diversos, que são tencionados desde então na produção de sentidos sobre os quais
se utilizam para produzir os diferentes discursos sobre gênero e sexualidade encontrados na
pesquisa acadêmica.
O trato com as questões que envolvem gênero e sexualidade precisa ter a noçao clara do
pesquisador que já são objetos falados, controvertidos, esclarecidos e julgados de diversas maneiras.
Assim sendo, não há uma única voz posta ao narrar as apreensões sobre este objeto, mas de um
passado que talvez nem esteja consciente na constituição do texto, das vozes presentes que são “obra
de um contexto sócio-ideológico em que estamos imersos; e as vozes da memória do futuro, que
serão aquelas que nos responderão provindas do que imaginaginamos que sejam interlocutores
futuros” (GIOVANI; SOUZA, 2014, p. 59), onde a palavra é parte da realidade material e com ela se
relaciona transmutando-a em signo que adquire significação.
Pesquisar nas fronteiras das temáticas coom gênero e sexualidade se tornou um lugar do
imprevisível e das imprecisões, principalmente quando arranjos políticos-administrativos ocorridos
nos últimos tempos em nosso país, que envolveu desde a saída forçada e orquestrada de uma
presidenta democraticamente eleita e mantém por este mesmo arranjo político-partidário e de
sujeitos, um governo não reconhecido por grande parte da população, percebendo sua rejeição
principalmente aos que acessam as mídias digitais para se manifestarem pela palavra sua relação
com este momento atual.
E quando estas temáticas são tomadas por discursos de pânico moral, excludentes e
marginalizadores que determinam binariamente o permitido e o não permitido, tomados por uma
matriz heteronormativa de poderes que constituem signos, enunciam discursos violentos, repressivos

NARRATIVAS
1267

e silenciadores que abjetam corpos e silenciam sujeitos que transgridem o que não está sendo
autorizado por uma norma hegemônica. Falar sobre todas as vidas que não são consideradas assim e
da qual sua materialidade é descategorizada e questionada em sua própria humanidade (BUTLER, 2001;
PRINS e MEIJER, 2002).
No relatório realizado a partir de fontes informais em diferentes mídias, o Grupo Gay da Bahia
(GGB) divulgou que em 2016, o país registrou o assassinato de 343 pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
transgêneros (LGBT). Sendo que 10 destes assassinatos foram identificados contra lésbicas, outros
173 contra gays, mais quatro relacionadas a bissexuais e 144 envolvendo travestis e transexuais
(transgêneros). Esse quadro indica que a cada 25 horas morre uma pessoa vítima de violência por
sua identidade ou orientação sexual (GRUPO GAY BAHIA, 2017).
Para se pensar nessas violências, há que se diferenciar pelo requinte muitas vezes nelas
utilizado de crueldade, perversidade e signos que mostram esse ódio, como ter o penis decepado, o
cabelo raspado, principalmente de travestis, e a quantidade de chutes, socos, tiros, facadas ou outras
formas de extermínio que marcam esses crimes como de ódio e que muito dizem sobre o Brasil nesse
contexto ser um dos países que mais mata travestis e transexuais no mundo e um dos que não
reconhecem muitos dos direitos relativos às diferentes identidades de gênero (TRANSGENDER EUROPE,
2016)
Se não são excluídos do direito de vida, são retirados da sua existência enquanto vivos/as.
Tratados/as como infames pelas diversas violências e por se construírem à margem dos discursos
que não identificam esses corpos no padrão de inteligibilidade constituídos por saberes e verdades,
baseados em uma presumida heterossexualidade, mesmo que ainda oBrasil seja considerado pela
Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex (ILGA) como um dos países
que mais têm direitos no que concerne à orientação sexual e políitcas de reconhecimento, programas
de ações e investimento contra a violência (CARROL, ITABORAHY, 2015).
Como narrar estes corpos e vivências? Como lidar com estas narrativas do corpo e dos
sujeitos? E, neste aspecto, pensar como um objeto de pesquisa que procura lidar com estas
narrativas e como pensá-las nos registros documentais de políticas institucionais, que procuram dar
conta destas questões no âmbito da responsabilidade social gerido por um lugar administrativo.
A princípio tão quase óbvio, apenas descrever ou trazer as narrativas. Mas há outro caminho
de reflexão, que precisa de um contexto histórico sobre o ato de narrar.
Walter Benjamin (1994) aponta que a Modernidade solapou a constituição básica da narrativa.
Com a chegada de todo o desenvovilmento tecnológico que se deu com a imprensa e dos grandes
romances, o narrar se dá pelo alheamento da experiência, pois não estava mais na tradição oral e
nem dela se alimentava. Com o advento dos romancistas, o recurso de narrar trouxe para o próprio
romancista que colocava o tinha de sua experiência ou do que era relatado por outros. Com isso,
narrar se tornou um ato de segregar a narrativa do coletivo. Instalou um processo individual de
conceber o narrar por sua ótica. Este momento rompe historicamente com a arte de narrar, que se
acentuou após os períodos das grandes guerras do século XX, quando narrar tornou-se um imenso

NARRATIVAS
1268

vazio, em que soldados não tinham o que dizer e quando surgiram livros que contavam se
distanciavam ainda mais daquelas experiências vividas in loco.
Experiência no sentido que Benjamin (2000) aponta como o lugar do vivido, mas sob o auxílio
da memória. Porque as surpresas que categorizam nossas impressões e sensações vividas
testemunham uma insuficiência do ser humano. A lembrança funciona então como um fenômeno
necessário para nos dar o tempo – que inicialmente faltou - de organizar a recepção aos estímulos,
ao choque destes dessas impressões e sensações. Este choque oferece as melhores condiçoes para a
recepção, e ao ser preso pela consciência, provoca a experiência vivida. Experiência esta que procura
“marcar para o acontecimento, à custa da integridade de seu conteúdo, um lugar temporal exato na
consciência” (BENJAMIN, 2000, p. 40), convertendo assim o acontecimento em uma experiência vivida.
A vulnerabilidade de existência, dada por questões de orientação e identidade sexual, provoca
uma reflexão para outros aspectos dessas diferentes violências com as quais LGBT convivem
diariamente e irão acompanhar todos/as no processo de construção deste projeto no sentido, que
falar da população LGBT e suas demandas nas políticas institucionais das universidades é contribuir
no debate da emergência cada vez maior desses corpos realocando-se da margem para lugares onde
queiram e possam estar e lhes seja assegurado esses direitos ao que se enuncia como diversidade
sexual.
Considerar um documento institucional de uma universidade pública e federal como um
espaço de produção de sentidos sobre diversidade sexual, quando esta emerge enquanto palavra
escrita neste documento, possibilita a discussão sobre quais negociações, demandas sociais e ações
institucionais dialogam com os contextos nacionais e particulares dos sujeitos envolvidos neste
espaço acadêmico no processo de constituição deste documento. E como lidar com as narrativas que
possam emergir, tornou-se a reflexão maior nesse processo em andamento da pesquisa.
O diálogo a partir destas considerações, na constituição da investigação acadêmica sobre
diversidade sexual, refletir como lidar com a concepção e escrita, o registro deste percurso. Na troca
de experiências, indispensável para uma interlocução dialógica, determinada justamente por ter
alguém que procede este diálogo como também porque alguém que o recebe, não em um sentido
único, mas permeado do que constitui ambos e do caráter potencialmente transformador dessa
interlocução, já que por meio da palavra “defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, à
coletividade” (BAKHTIN, 1995, p. 113). Na constituição do discurso que estrutura-se de forma
relativamente estável, une e integra o material, a forma e o conteúdo, como uma unidade que vem do
sentido de forma a poder compor de modo específico e externo uma determinada concepçao
arquitetônica, que nesta pesquisa mergulha densamente sobre um documento produzido na
Universidade Federal de São Carlos aprovado nem outubro de 2016 no Conselho Universitário
(ConsUni) nomeado como Política de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade.
Esta universidade, no recorte temporal da pesquisa, até o ano de aprovação do documento, foi
a única da rede federal de ensino superior público a ter uma hierarquia aprovada pelo Conselho ligada
diretamente à reitoria e que lhe confere a possibilidade de atuar por toda o organograma da

NARRATIVAS
1269

instituição e ter ainda um documento que possibilitasse traçar normas e diretrizes que fomentam
projetos, ações e torna-se um instrumento pedagógico ao enunciar questões sobre populações
étnico-raciais, o avançao da inclusão e da efetivação de acessibilidade de pessoas com deficiência no
espaço da universidade e por trazer questões de gênero e sexualidade, tratando da diversidade sexual
como enunciado prenhe de sentidos (SECRETARIA GERAL DE AÇÕES AFIRMATIVAS DIVERSIDADE E
EQUIDADE, 2016).
Se para Benjamin (1994) houve uma quase extinção sobre a experiência de narrar, como se
tívessemos perdido a faculdade de intercambiar experiências, na “substituição do antigo relato pela
informação e da informação pela ‘sensação’, reflete-se a atrofia progressiva da experiência”
(BENJAMIN, 2000, p. 36) e na perda de se comunicar, dado ser este lugar um fenômeno entendido
social justamente por ter em sua base a troca de experiências, possibilidade necessária para a
interlocução dialógica.
A individualização sobre o fato e a privatização sobre o olhar apenas para o individual exclui
rigorosamente sobre o qual poderia atuar a experiência de quem lê a narrativa, como a imprensa, que
baseada em seus princípios de informação jornalística, ancora na novidade, no breve, o que é
intelígivel a uma maioria e na ausência de conexao entre notícias isoladas, dificultando que a
informação entre sobre a tradição que é a arte de narrar (BENJAMIN, 2000).

A narração não visa, como a informação, a comunicar o puro em-se do acontecido, mas o incorpora na
vida do relator, para proporcioná-lo, como experiência, aos escutam. Assim, no narrado fica a marca do
narrador, como a impressão da mão do oleiro sobre o pote de argila (BENJAMIN, 2000, p. 36-7).

Posto isso, pensar nestas narrativas de corpos indóceis e insurgentes em relação ao sistema.
Estes corpos postos à margem, identidades e experiências esquecidas das narrativas constituídas
socialmente e que emergem sob o signo do patológico, da égide a anormalidade e do não-lugar, com
os quais estar diante e mesmo fora deles e nao poder viver a vida deles, caminhar até estes outros e
ao voltar para o meu lugar é que posso estabelecer com eles uma interação.
Desdobrar de olhares a partir de um lugar exterior. Estabelecer pelo movimento exotópico
permite me colocar em contato com o olhar do outro retornar a mim colocando em ação o excedente
que a visão do outro me provocou de maneira a me atualizar sobre o que penso do mundo em meu
lugar de sujeito, instaurando um lugar particular da minha atividade que somente eu posso acessar de
maneira que esse acesso inicial é onde se instala a possibilidade de completar este outro justamente
onde ele/a não alcançam se completar. Não é uma relação autoritária, haja vista que eu me completo
a/com o outro neste percurso e ele/a se completam a partir da relação que juntos construimos,
podendo um com o outro contribuir sobre um todo maior dessa relação.

[...] devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal
qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte
dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele

NARRATIVAS
1270

um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha
vontade e do meu sentimento (BAKHTIN, 2006, p. 23).

O desafio da pesquisa ao trabalhar com narrativas de outros e sob o registro da escrita poder
dar conta deste desafio nos coloca numa questão do ato ético sobre esse narrar, pois não é viver a
dor e a vida alheia, mas na volta a si mesmo sobre estas experiências ser capaz da identificação com
estes sujeitos, não pelo risco de perder meu lugar, mesmo porque vivencio essas narrativas na
categoria do outro, e quando volto ao meu lugar, fora do lugar que estive com ele/a, posso dar forma
e acabamento ao material que trouxe no processo de identificação com o outro, de maneira a
completar o que transcende à consciência que este outro sujeito tem do mundo e de suas coisas, e
que deixa de ser apenas uma informação dada a mim, se transformando este saber que passa a me
constituir em uma ação sobre o mundo, olhar para o historicamente vivido, para a singularidade que
desconstrói o único, o global, no sentido que “no momento do ato, o mundo se reestrutura em um
instante, a sua verdadeira arquitetura se restabelece, na qual tudo o que é teoricamente concebível
não é mais que um aspecto” (BAKHTIN, 2012, p. 53), e mesmo assim, não se completa a ânsia de
apreeender a realidade, e nem se estabelece como verdade, já que a verdade nao depende de ser
conhecida ou dominada, ela ja o é antes mesmo de qualquer evento.
Ao se pensar no objeto de pesquisa que trata sobre a produção de sentidos enunciados a
partir do que se registra em dizeres documentais de uma instituição de ensino superior pública, este
evento da pesquisa não torna toda a produção de verdade que constitui seus dizeres como a legítima
verdade sobre a temática. Pelo contrário, há que se pensar em verdades caleidoscópicas, suscetíveis
e marcadas pela eventicidade e a novas projeções exotópicas, sendo que assim nos completam e nos
constituem sob o signo da provisoriedade contínua e no contato com o outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os diferentes processos de constituição dialógica dos sujeitos (BAKHTIN, 1995), m da relação


do sujeito com o outro, e permite uma constante negociação de sentidos de maneira que recriem e
reinterpretem conceitos e significados (REYES, 2000).
Sem dúvida, a questão da linguagem se torna aqui fundamental, possibilita a mediação entre o
social e individual, no intuito que o sujeito tenha consciência de si e conhecimento do mundo a partir
da internalização das práticas sociais que ocorrem nos processos de interlocução dadas nessas
interações sociais em que o indivíduo (re) constrói-se, transforma e é transformado.
A relação sujeito- linguagem é marcada pela troca e muito fortemente pela heterogeneidade
inserida em determinada cultura. Para Vygotsky (1991), o sujeito é social e tanto ele quanto a sua
subjetividade são constituídos com e pelas relações sociais. O que instiga em nossa investigação é
justamente esse potencial pedagógico das ações institucionais de uma universidade pública e federal,
que atende demandas das mais diversas e ainda se produzem e são produzidas nas relações

NARRATIVAS
1271

pedagógicas que se estabelecem em seus espaços, não reservados apenas à sala de aula, mas
também em ações institucionais registradas em seus documentos regulatórios.
Logicamente o aprendizado sobre gênero e sexualidade não se dá somente em função das
políticas institucionais, começa muito antes e vai muito além. Porém, essas políticas produzem algo
fundamentalmente novo para estes sujeitos que fazem parte da comunidade universitária no que
tange a construção dos sentidos sobre diversidade sexual.
É pela emergência da palavra que constitui-se em signos ideológicos prenhe de significados,
que a diversidade sexual institui na linguagem do documento estas narrativas que muitas vezes estão
apagadas, invisibiizadas e esquecidas propositadamente por relações ideológicas de poderes, porque
linguagem é poder e institui também a existência dos sujeitos.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Ed. Hucitec, 1995.
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______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2 ed., São Carlos:
Pedro&João Editores, 2012.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov. In: ______. Magia e Técnica, Arte e Política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, p. 197-221, 1994.
______. A modernidade e os modernos. 2 ed., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira L. O Corpo Educado:
pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, p. 151-172, 2001.
CARROL, Angus; ITABORAHY, Lucas P. State-Sponsored Homophobia: a World Survey of Laws: criminalization,
protection and recognition of same-sex love. ILGA, 2015. Disponível em:
<http://www.old.ilga/Statehomophobia/ILGA_State_Sponsored_Homophobia_2015.pdf>. Acesso em 26 set. 2017.
GIOVANA, Fabiana; SOUZA, Nathan B. Bakhtin e a Educação: a ética, a estética e a cognição. São Carlos: Pedro&João
Editores, 2016.
GRUPO GAY BAHIA. Relatório 2016: assassinatos de LGBT no Brasil. Disponível em:
<https://www.homofobiamata.files.wordpress.com/2017/relatc3b3rio-2016.pdf> . Acesso em 24 set. 2017.
PRINS, Baukje; MEIJER, Irene C. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. In: Revista Estudos
Feministas, v. 10, n. 1, Florianópolis, p. 155-167, jan./2002.
REYES, C. R. Sobre o que falam as crianças em suas histórias: leituras e práticas cotidianas. 2000, 241 f. Tese
(Doutorado), Universidade Federal de São Carlos, Programa de Pós Graduação em Educação, São Carlos, 2000.
TRANSGENDER EUROPE. Comparative research data on 190 countries worldwide. Disponível em:
<http://www.transrespect.org>. Acesso em 25 set. 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
1272
Afim de dar visibilidade às histórias do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no
Assentamento Conquista do Jaguarão, localizado no

DIÁLOGOS ENTRE MILITÂNCIA município de Aceguá/RS, a presente pesquisa surge


para dar voz as lutas deste movimento, levando
para dentro do âmbito acadêmico as discussões

E EDUCAÇÃO EM UMA sobre militâncias de esquerda e educação. O estudo


surge a partir de uma perspectiva pessoal, política
e pedagógica, de alguém que viu e viveu a realidade

COMUNIDADE SEM-TERRA do movimento e carrega consigo as marcas de uma


luta de classe (o pesquisador que faz parte do
contexto de pesquisa). Luta que começa desde cedo,
quando ainda criança, na escola capitalista, que
muitas vezes deforma o pensamento do militante e
o faz enraizar, dentro de si, o sentimento de
inferioridade. Esta pesquisa se baseia nos
VIEIRA, Lilia de Lima333 pressupostos da pesquisa qualitativa a partir de um
estudo auto-etnográfico. A memória coletiva de
militantes do Assentamento Conquista do Jaguarão
é o principal objeto de investigação. Mediante os
discursos de sujeitos que lutam por reforma
agrária e uma educação emancipatória, narro a
história do assentamento, o papel formador da
INTRODUÇÃO escola nesse contexto, ideologias e os jogos de
poder entre igualdade e diferença. Os relatos são

C
analisados com o auxílio de referenciais teóricos
om a finalidade de dar visibilidade às lutas do Movimento dos pertinentes para as discussões pretendidas e que
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Assentamento contribuem na construção e fundamentação do
estudo.
Conquista do Jaguarão, localizado no município de Aceguá/RS,
o presente trabalho tem o intuito de romper o silenciamento do Palavras-Chave: História. Militância. Educação.
Memória coletiva. MST
movimento nas mais diversas esferas sociais, levando para dentro
do âmbito acadêmico a discussão sobre militâncias de esquerda e
educação para além das perspectivas apequenadas e distanciadas.
Desse modo, poderemos desconstruir as generalizações e os estereótipos frequentemente
encontrados em trabalhos de vieses iluministas que focalizam o que está à margem (ZACCHI, 2016).
Este texto surge a partir de uma perspectiva pessoal, política e pedagógica, de alguém que viu
e viveu a realidade do MST, e carrega consigo as marcas de uma luta de classe. Luta que começa
desde cedo, quando ainda criança, na escola capitalista que, muitas vezes, deforma o pensamento do
militante e os faz enraizar, dentro de si, o sentimento de inferioridade perante o “outro”. Neste
sentido, este trabalho é um “NÃO!” e um “BASTA!” ao opressor que nos cerca, nos limita e nos excluí
social e culturalmente.
Inicio esta caminhada reflexiva e comprometida sobre militância e educação para além das
cercas do sistema capitalista, excludente, opressor, etc. E também das fronteiras físicas e do
pensamento que conduzem ao preconceito, ao desrespeito e à desigualdade. Com a letra da música
“Canção da Terra” de Pedro Munhoz podemos vislumbrar a terra:
Tudo aconteceu num certo dia
Hora de ave maria o universo vi gerar
No princípio o verbo se fez fogo

333
Mestranda em Ensino de Línguas. Profª. Substituta do curso de Letras Línguas Adicionais da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) E-
mail: lilialimaviera@hotmail.com

NARRATIVAS
1273

Nem atlas tinha o globo


Mas tinha nome o lugar
Era terra, terra
E fez o criador a natureza
Fez os campos e florestas
Fez os bichos, fez o mar
Fez por fim, então, a rebeldia
Que nos dá a garantia
Que nos leva a lutar
Pela terra, terra

Madre terra nossa esperança


Onde a vida dá seus frutos
O teu filho vem cantar
Ser e ter o sonho por inteiro
Ser sem-terra, ser guerreiro
Com a missão de semear
À terra, terra

Mas apesar de tudo isso


O latifúndio é feito um inço
Que precisa acabar
Romper as cercas da ignorância
Que produz a intolerância
Terra é de quem plantar
À terra, terra.

Esta escrita também é um grito para que se possa “romper as cercas da ignorância”, do olhar
de fora, alheio, distanciado, sobre o que é ser militante do MST, e de como é viver e ser educado na
militância em um assentamento. Uma possibilidade que se ergue na mais pura subjetividade, pois não
estou a falar de “outros”, como quem pesquisa com certo distanciamento, estou a falar de “outros”
que também me constituem, que fazem parte de mim, do que fui, e do que sou agora.
Freire (1987) em sua Pedagogia do Oprimido teoriza sobre a relação indissociável entre o “eu”
e o “tu”. Não me reconheço sendo quem sou, sem ter o “outro” para contrastar, e me revelar, em uma
relação dialógica, minha verdadeira constituição e meu lugar no mundo.

O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído
por um tu – um não-eu –, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um
tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se
fazem dois eu. Não há, portanto, na teoria dialógica da ação, um sujeito que domina pela conquista e um
objeto dominado. Em lugar disto, há sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua
transformação. (FREIRE, 1987, p.96).

Sou também esse “outro”, me constituo como militante e filha de militantes do MST, numa
relação dialógica entre aquilo que vivi no movimento em contraste com minhas outras relações com o
mundo. Cresci no Assentamento Conquista do Jaguarão, embora tenha nascido em outro
assentamento, mas vivi dos quatro aos 17 anos neste assentamento. Vi lutas e calmarias; fui criada
por pais quase analfabetos, mas militantes de longa data. Sujeitos que viram na educação uma forma

NARRATIVAS
1274

de libertação para seus filhos, de ampliação de horizontes e de apropriação de saberes há muito


destinados apenas à elite e de posse do opressor.
A história que pretendo contar não se estrutura apenas de maneira teórica, mas está
permeada pela tomada de consciência política e pedagógica, ou seja, uma história que emerge do
contato direto entre pesquisador (a) e objeto de pesquisa. Um relato de vivências históricas e do
contexto de luta em que se está inserido.
Partindo do que foi brevemente relatado, este estudo se lança à uma análise de como o
Assentamento Conquista do Jaguarão e seus militantes vivem. Para tal tarefa, registrei a história
contada oralmente pelos integrantes desta comunidade, suas lutas diárias, como a escola está
inserida nesse meio, a relação entre trabalho e escola, e quais ideologias estão presentes na
comunidade de assentados.
Esta pesquisa se justifica na necessidade de se evidenciar e dar voz às discussões sobre
educação e movimentos sociais no âmbito acadêmico. No caso específico do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mesmo reconhecendo suas falhas, é um movimento que
representa uma força fundamental no Brasil, na América Latina e no mundo, principalmente por se
envolver no enfrentamento das contradições do capitalismo (FERREIRA, 2012). E ainda que se
reconheça os limites de um movimento social para a transformação da sociedade capitalista, este
estudo busca causar questionamentos e dar visibilidade aos sujeitos que vivem em assentamentos e
que lutam diariamente pelo direito de reforma agrária, de educação de qualidade e de políticas
públicas que realmente contemplem aqueles que se encontram à margem334.
(Re) conhecer e teorizar a história oral dos militantes do Assentamento Conquista do
Jaguarão, é fonte e o objeto primordial de estudo para se compreender a realidade do assentamento
e também para se (re) conhecer sua história.
É importante salientar, neste momento em que finalizo a parte introdutória deste trabalho,
que 2017 marca justamente o ano em que o assentamento completa seus vinte anos de existência.
Neste sentido, este trabalho tem como uma de suas finalidades, também homenagear às lutas pela
terra, pela reforma agrária e pela busca da tão almejada vida digna, que transpassa o ideário de cada
militante da minha comunidade. Almejo que, a partir de relatos de vida, de uma pesquisa estruturada
dentro dos pressupostos da auto-etnografia na pesquisa qualitativa, que meu leitor tenha a
oportunidade de adentrar o universo de narrativas históricas de militantes do MST, na comunidade
foco deste estudo, e perceber, a partir desta leitura, como a história, a educação e a militância
dialogam neste espaço.

334 Os sem-terra do MST estão sendo sujeitos de um movimento que acaba pondo em questão o modo de ser da sociedade capitalista atual e a
cultura reproduzida e consolidada por ela. Fazem isto não porque professem ideias revolucionárias, nem porque este seja o conteúdo de cada
uma de suas ações tomadas em si mesmas. Contestam a ordem social pelo conjunto (contraditório) do que fazem nas ocupações, nos
acampamentos, nos assentamentos, nas marchas, na educação de suas crianças, jovens e adultos; pelo jeito de ser de sua coletividade, que
projeta valores que não são os mesmos cultivados pelo formato da sociedade atual; fazem isto, sobretudo, pelo processo de humanização que
representam, e pelos novos sujeitos que põem em cena na história do país. (CALDART, 2001, p. 2010)

NARRATIVAS
1275

PRIMEIROS PASSOS DA MARCHA: conhecendo o contexto

O assentamento Conquista do Jaguarão está localizado no interior da cidade de Aceguá/RS, e


tem como um dos seus marcos históricos o dia vinte de agosto de 1997 335, dia em que a fazenda foi
desapropriada e tornou-se assentamento.336 Nos dias atuais, a comunidade conta com cento e treze
famílias assentadas na localidade, constituindo-se como o maior assentamento da região. Organizados
de maneira particular337, os militantes desta comunidade atuam constantemente em prol das lutas
pela reforma agrária, organizando reuniões, discutindo pautas em torno da agricultura familiar e
também se mobilizam por políticas públicas que contemplem o homem do campo.
No que tange à questão educacional do assentamento, boa parcela desses sujeitos são
analfabetos, ou com baixa escolaridade (RODRIGUEZ, 2000, p. 100). Eles vivem da agricultura familiar,
mas a principal fonte de renda está baseada na produção pela pecuária leiteira.

Fotografia 1- Fotos representativas das principais fontes de renda dos assentados da comunidade (pecuária leiteira e agricultura familiar).
Localidade: lote da assentada Izolde Dobler

Fonte: Acervo da autora

Os filhos dos assentados do Conquista do Jaguarão estudam na escola localizada na sede do


assentamento - Escola Estadual de Ensino Fundamental Conquista do Jaguarão. O prédio da instituição
de ensino está situado onde antes fora a casa maior do fazendeiro.

Fotografia 2- Sede do assentamento onde está localizada a única escola da comunidade.

335 RODRIGUEZ, 2000, p. 95


336É importante destacar que nesta época, o município de Aceguá ainda era pertencente ao município de Bagé/RS, embora possuísse maior
contato com o município de Hulha Negra, que neste período tinha um forte apoio do Partido dos Trabalhadores (PT), através do prefeito
Fernando Campani.
337 Este assentamento é dividido em quatro bolsões, ou seja, são determinadas áreas onde grupos de produção, compostos em média de cinco

famílias cada um, articulam-se no processo produtivo e também nas discussões, pois cada um deles tem um representante que, ao ser
escolhido por seus pares, passa automaticamente a participar das reuniões da coordenação do assentamento. As pautas das assembléias são
estabelecidas antecipadamente, proporcionando a discussão de cada coordenador com seu grupo e levando para elas as decisões não suas,
pois se pressupõe que seja do grupo. (RODRIGUEZ, 2000, p.96)

NARRATIVAS
1276

Fonte: Acervo da autora

Como a escola é pertencente ao governo do estado, entende-se que não é permitido um


envolvimento maior dos militantes na formação de seus filhos, ou abertura de espaços de promoção e
valorização da identidade/ cultura sem-terra, salvo algumas ações realizadas por professores que
são pertencentes à assentamentos e atuam na docência. Isto é a realidade vivida na comunidade,
muito embora a escola só tenha sido implementada a partir das lutas dos assentados, quando o
assentamento foi gerado, em que se constatou pela comunidade a necessidade de se instaurar uma
instituição escolar no assentamento338. Com a finalidade de dar a seus filhos a oportunidade de serem
alfabetizados e de adquirirem conhecimentos específicos e formais que uma instituição escolar
disponibiliza.
Promover discussões sobre militância e educação torna-se pertinente a partir do momento
em que existe um anseio de movimentos sociais pela inserção social, sem exclusão, das ditas
minorias. Segundo Corazza (2009) vivemos o tempo da Diferença Pura, ou seja, um tempo em que o
diferente surge para ser discutido e problematizado e as mudanças das condições sociais, das
identidades, das relações, dos espaços e das culturas, gritam a nossa porta. A autora ainda fala dos
“Sem...”, sujeitos marginalizados socialmente e que clamam por visibilidade.

Chamo-o tempo de Desafio da Diferença Pura porque suas concepções e práticas atestam a existência
dos diferentes, que povoam nossas casas e ruas, escolas e salas de aula, dias e noites. Diferentes, que
são os homossexuais, negros, índios, pobres, mulheres, loucos, doentes, deficientes, prostitutas,
marginais, aidéticos, migrantes, colonos, criminosos, infantis-adultos, todos os que foram denominados
minorias, isto, todos os Sem...; os quais, por tanto tempo, ficaram borrados e excluídos, calados e
subordinados, dominados e pisoteados pela lógica da Identidade-Diferença, mas que, hoje, por força
de suas próprias lutas, são diferentes em si-mesmos, essencialmente-outros, não-idênticos,
outros-diversos, puros em si mesmos, não aceitando mais serem vistos como vítimas ou
culpados, fontes do mal, ou desvios a serem tolerados; e para que nunca mais suas diferenças sejam
governadas, traduzidas, calibradas, reparadas ou integradas ao velho Princípio da Identidade
Universal. (CORAZZA, 2009, p.14)

A ideologia que circunda o movimento MST é uma ideologia de esquerda, marxista. Quem
nasce no assentamento Conquista do Jaguarão já leva consigo as marcas de uma luta de classe, de

338 RODRIGUEZ, 2000, p. 95

NARRATIVAS
1277

uma luta por reforma agrária, de uma luta por terra, para a agricultura familiar, para a educação dos
filhos, para dar um basta à monocultura e à utilização abusiva de agrotóxicos, dentre outras metas.
Segundo GRAMSCI (1980, apud BUCI- GLUCKMANN, p. 84), “a ideologia é necessária, pois possui uma
validade “psicológica”, ela organiza as massas humanas, forma o terreno onde se movem, onde
adquirem consciência de sua posição, onde ela luta, etc.”

EDUCAÇÃO VERSUS MILITÂNCIA

Temos consciência que um dos principais desafios da educação desenvolvida no âmbito rural
está na formação política dos sujeitos que fazem parte dessas histórias de luta de um movimento
como o do MST, e também de formação da consciência social desses sujeitos. Segundo Santos (2009)
é necessário dar sentido ao que se é vivido pelo sujeito, e o educador deve se fazer presente neste
processo:

Para darmos sentido a um passado comum vivido em ambientes distintos é necessário o envolvimento
coletivo em torno do conhecimento histórico e dos embates teóricos com educadores e educando.
Significa pensar no cotidiano das crianças, dos jovens e adultos, que vivem realidades heterogêneas e o
direito de ser diferente. (SANTOS, 2009, p.01)

O movimento social já é por si só um movimento educativo. Arroyo & Fernandes (1999)


comentam sobre a importância de os educadores estarem engajados no processo educativo dos
sujeitos pertencentes ao campo, não se detendo demasiadamente apenas ao currículo da escola, mas
ao meio em que se está inserido:

Como educadores, temos de ter sensibilidade para essa dinâmica social, educativa e cultural, e
perguntar-nos que novos sujeitos estão se constituindo, formando, que crianças, jovens, adultos, que
mulheres, que professoras e professores, que lideranças, que relações sociais de trabalho, de
propriedade, que valores estão sendo aprendidos nesse movimento e dinâmica social do campo. O foco
do nosso olhar não pode ser somente a escola, o programa, o currículo, a metodologia, a titulação dos
professores. Como educadores temos de olhar e entender como esse movimento social vêm se
formando, educando um novo homem, uma nova mulher, criança, jovem ou adulto. (ARROYO &
FERNANDEZ, 1999, pp 15-16)

A forma encontrada pelos militantes do MST para romper estas limitações entre o que
acontece na comunidade e no espaço escolar, é distinta do que ocorre em outros assentamentos, em
experiências de escolas de movimento por exemplo, em que se busca fazer um diálogo salutar entre
esses dois espaços. Mesmo que os sujeitos pertencentes à comunidade reconheçam a importância de
uma instituição de ensino, na vida de seus filhos, e no assentamento como um todo, os processos
educativos que sustentam a identidade sem-terra não são apenas aprendidos na escola localizada no
assentamento Conquista do Jaguarão.

NARRATIVAS
1278

Justamente pela necessidade de manter a identidade e de reafirmá-la, “a concepção de


educação do MST comporta vários aspectos teóricos e ideológicos, bem como diversas práticas
educacionais” (VIEITEZ, 2004, p.45). E estes aspectos vão mais além, estão em constante movimento,
principalmente no que tange a concepção de “escola” e de “educação”, defendida por estes sujeitos
dentro da ideologia na qual são pertencentes, como podemos constatar nas palavras de Caldart
(2000):

A escola projetada pela pedagogia do movimento é, pois, uma escola em movimento: movimento de
pedagogias, movimento de sujeitos humanos. E este movimento acontece em torno de duas referências
básicas: ser um lugar de formação humana, no sentido mais universal desta tarefa; e olhar para o
Movimento como sujeito educativo que precisa da escola para ajudar no cultivo da identidade Sem Terra,
e na continuidade de seu projeto histórico. Quando é assim, cada uma das pequenas coisas que
acontecem no dia a dia da escola, passa a ter um outro sentido, não porque sejam coisas que nunca
antes aconteciam na escola, (em alguns casos também isto) mas porque olhadas e feitas desde uma
outra intencionalidade. (CALDART, 2000, p. 19)

A construção de conhecimento no assentamento Conquista do Jaguarão vai além da educação


formal disponível na escola da comunidade, transpassando o mero ensino do “Bê-á-bá”. Segundo Gohn
(2011, p. 333) “a educação não se resume à educação escolar, realizada na escola propriamente dita.
Há aprendizagens e produção de saberes em outros espaços, aqui denominados de educação não
formal (...)”. No que tange a concepção de educação para um assentado do assentamento Conquista
do Jaguarão, as aprendizagens acontecem também na própria família, nos ensinamentos da
agricultura familiar transmitidos de pai/mãe para filho(a).
Os sujeitos históricos se formam no Assentamento Conquista do Jaguarão a partir de uma
formação para à vida, para a produção de alimentos saudáveis, do não uso de agrotóxicos, para a
militância, para a luta pela terra, pela continuidade de sua história e também de sua ideologia, etc. Nas
palavras de Pires (2012):

O Movimento é uma escola sem muros, onde o trabalho, a produção da vida, a cultura, as tensões que
vivencia ao produzir sua existência se compõe como construtor do sujeito histórico Sem Terra. Esse
processo de formação humana poderá trazer contribuições para a educação formal, atestando que o
processo de apreensão e construção dos conhecimentos resulta de saberes socialmente construídos e,
por vezes, ressignificados, pelo sujeito imerso na luta da cultura cotidiana. A vida latejando e sendo
construída a cada passo da luta. (PIRES, 2012, p. 87)

Através do relato do assentado Sr. João Maria, um dos principais líderes do assentamento, o
militante reafirma essa ideia do saber construído socialmente para além da educação formal.
Segundo o mesmo, o que se produz em sua terra é da agricultura familiar, e parte dos princípios
apreendidos da agroecologia. Esse ideário é passado de geração em geração das famílias assentadas,
em que se defende a produção agrícola voltada para uma alimentação saudável, e também por uma
vida digna, sem tanta necessidade de consumo externo, ou seja, se busca na “cidade” somente aquilo

NARRATIVAS
1279

que não se consegue produzir na sua própria terra. Assim afirma o assentado na citação que segue,
em que o mesmo me apresenta sua lavoura, não como quem quer simplesmente mostrar o que irá
colher na safra do ano, mas como um militante que precisa reafirmar sua posição ideológica, sobre o
que se produz na agricultura familiar do assentamento e qual importância e procedência destes
alimentos.
Fotografia 3 - Assentado apresentando sua plantação de milho agroecológico.

Fonte: Acervo da autora

Sobre a importância do direito à terra e da vigorisidade da produção do pequeno agricultor


assentado, o Sr. João Maria relata em sua entrevista sobre a produção de milho em seu lote e da
importância do cultivo de alimentos saudáveis para a alimentação de sua família:

Essa lavoura de milho aqui, é uma lavoura de milho agroecológico. Isso aqui não tem nada de veneno.
Não se trabalha com veneno aqui dentro do assentamento. Muito poucos que hoje trabalham com
veneno, a maioria trabalha com sementes agroecológicas. Isso é milho comum. Sementes crioulas,
feitas por nós mesmos. Todas essas lavouras de milho que tu está vendo aqui na volta, todas são
agroecológicas. Então, muitos dizem que não dá sem veneno, né? Mas a gente trabalha sem veneno! O
que “nóis comemo” aqui é “bóia” saudável. Então isso é a grande vantagem, de poder ter uma
alimentação saudável, criar nossos filhos saudáveis, comendo a “bóia” que “nóis mesmo produzimo”.
(informação verbal)339

O relato do assentado João Maria rompe os discursos ditos “oficiais”, expressos na mídia pela
qual somos muitas vezes alienados e conduzidos a um julgamento precipitado sobre o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Estes mesmos discursos, muitas vezes, acabam por silenciar a voz
do movimento, mas felizmente não calam seus militantes. Muito pelo contrário, abre espaço para a
pedagogia da luta e da resistência, da luta das classes e pelo direito social garantido a todos. Não são
os ditos “vadios beberrões” que habitam estas comunidades, são sujeitos em luta contra um sistema
que não os acolhe, mas que depende diariamente destes pequenos produtores rurais para a sua
alimentação diária.

339 João Maria. Entrevista VI. [fevereiro. 2017]. Entrevistadora: Lilia de Lima Vieira.Aceguá/RS, 2017. 1 arquivo vídeo (4 min.). A entrevista na
íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta monografia.

NARRATIVAS
1280

A educação surge dentro deste espaço, como sinônimo de estratégia política, de emancipação
e de resistência. A pedagogia do MST apresenta contribuições para um projeto identitário
emancipatório da sociedade (FERREIRA, 2012).
Romper marcos e cercas, essas fronteiras visíveis e invisíveis, tona-se algo cada vez mais
necessário na atual conjuntura de nossa sociedade, uma vez que ela está sendo consumida por um
sistema avassalador, onde uma minoria cresce e ascende socialmente, enquanto a maioria está à
mercê, à margem da sociedade.
A existência do que chamamos aqui de fronteiras “invisíveis” devem ser observadas com
especial atenção. Para elucidar de forma mais clara essas fronteiras invisíveis, que muitas vezes
transpassamos, ou somos impedidos de atravessar, sem nem ao menos nos darmos conta dos fatos,
devemos refletir. Para tal reflexão, conto brevemente minha história, quando tinha quinze anos e vivia
no assentamento Conquista do Jaguarão: Quando terminei o ensino fundamental na escola do
assentamento Conquista do Jaguarão, não tínha (mos) outra alternativa, se não irmos para a cidade,
era somente na zona urbana do município que existia Ensino Médio (até hoje é assim). Muitos jovens
adentravam um ônibus velho, empoeirado, que chovia dentro, porque era esse o tipo de transporte
destinado aos estudantes filhos de assentados. Os “alemão” tinham um meio de transporte melhor. O
porquê, o (s) amigo (as) leitor (es/as) já deve (m) ter se dado conta. Enfim, ir à escola era algo
custoso, pois eram quatro horas de viagem todos os dias. Uma rotina “sair cedo, voltar tarde”, que
era difícil de ser encarada por jovens que queriam estudar, e ainda tinham o compromisso de ajudar
seus pais na lida do campo. Está aí um dos muitos motivos que faz o jovem do campo abandonar os
estudos.
Para além desta breve narrativa, trago outros jovens assentados para ilustrar o que tem sido
viver imerso na ideologia do MST, a partir de narrativas de sujeitos que apontam as muitas
dificuldades enfrentadas pelo jovem do campo, quando este almeja dar continuidade em seus estudos.

Fotografia 4- Daiana Kaminski de Oliveira, filha de assentados da comunidade e acadêmica de Licenciatura em Química da Universidade Federal
do Pampa/ Campus Bagé.

Fonte: Acervo da autora

A companheira Daiana Kaminski de Oliveira, 22 anos, atualmente acadêmica da Universidade


Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus Bagé/RS, assim como eu, compartilha desta história.

NARRATIVAS
1281

Vivenciamos juntas essas dificuldades, não só pela dificuldade de deslocamento até a escola de Ensino
Médio, mas também pelo preconceito sentido na pele, mediante o simples fato de ser filha de
militantes sem-terra.

E eu me lembro que no assentamento mesmo não tem ensino médio, e quando a gente foi estudar o
ensino médio na cidade, existia um grande preconceito com o pessoal, até por causa dos ônibus que
puxavam. O pessoal sempre dizia: “Ah, agora os ônibus vão se encher de gente que vem de
assentamento.” Então tinha um grande preconceito, e até mesmo por parte dos professores, que dava
pra ver, era muito visível, até na separação das turmas. Porque tinha uma turma que era só do pessoal
que morava na cidade e outra turma do pessoal que era de assentamento. Então os professores, até no
ensino, não sei se no ensino isso influenciava um pouco... (informação verbal) 340

Existem fronteiras na educação? Eu afirmo que “SIM! ”, visto que o que enfrentei como aluna
no ensino médio, juntamente com muitos outros alunos filhos de assentados, comprova isso
veementemente. Não éramos muito bem recebidos, os professores tinham medo de seus próprios
alunos, algo explicitado pelos olhares de preconceito, como se fossemos invadir o espaço deles, mas
não estávamos invadindo espaço algum, apenas ocupávamos um espaço de nosso direito. Afinal,
educação deve ser direito de todos, como afirma nossa constituição.341
No que tange ao contexto das lutas sociais, Freire (2000) aborda a importância da educação
no “processo de denúncia da realidade perversa como do anúncio da realidade diferente a nascer da
transformação da realidade denunciada” (2000, p. 90). Ele destaca a educabilidade do ser humano,
compreendendo-o como inacabado, como ser em constante processo de criação e recriação de seus
saberes, de sua cultura, do mundo. Para ele, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem
ela tampouco a sociedade muda”. (2000, p.67).

ENCERRANDO A MARCHA...

Como diria Saramago (1997) “é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se
não nos saímos de nós, se não saímos de nós próprios. ” Sou atravessada por este fragmento do
escritor português, toda vez que me coloco a pensar nos anos que vivi dentro do assentamento
Conquista do Jaguarão, em contraste com as outras relações que construí com o mundo quando me
inseri na vida universitária.
Uma das primeiras jovens da minha comunidade a levantar a bandeira da possibilidade, a
romper o discurso que nos denomina incapazes de sonhar voos mais altos. Hoje sou professora, me
apropriei de saberes que me fizeram compreender meu lugar e meu dever no mundo, e me dei conta

340 OLIVEIRA, K. Daiana. Entrevista VI. [Fevereiro. 2017]. Entrevistadora: Lilia de Lima Vieira.Aceguá/RS, 2017. 1 arquivo vídeo (4 min.). A
entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta monografia.
341 A educação é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988. Logo em seu art. 6º, o documento jurídico mais importante do nosso

país diz que a educação – juntamente com a moradia, o trabalho, o lazer, a saúde, entre outros - é um direito social. Mais à frente, o art.205 a
Constituição afirma: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

NARRATIVAS
1282

que o saber vale muito, principalmente para aqueles sujeitos que advém de grupos marginalizados
socialmente, e que são abafados, calados, cerceados pelos que se dizem “donos do mundo”, como bem
o disse Paulo Freire.
Posso dizer veementemente que hoje vejo minha “ilha” com outros olhos, um olhar mais
maduro e consciente. Muito deve ser feito em prol da minha comunidade, pois há muitas demandas
sociais necessárias na mudança da realidade vigente. Mas ter essa possibilidade, de (re) pensar meu
lugar como educadora e militante do MST, dentro do âmbito acadêmico, não tem preço, visto que, se
faz necessário um olhar mais atento para os movimentos sociais, e para a função dos mesmos no
processo histórico da sociedade.
No ano em que o Assentamento Conquista do Jaguarão completa seus 20 anos de existência,
sinto-me a presentear minha comunidade com esta pesquisa. Os sujeitos que entrevistei representam
dignamente o que é o “Jaguarão”. Sua história encontra-se agora registrada e refletida de maneira
teórica, embora tantas outras histórias encontrem-se nesse momento apenas na memória de cada
militante. Meu esforço está em documentar e problematizar essa memória coletiva, valorizando
sujeitos que lutam diariamente pela inserção na nossa sociedade, que infelizmente ainda perdura na
desigualdade.
As mulheres, os homens e as crianças Sem-Terra do Assentamento Conquista do Jaguarão
constroem suas identidades coletivas a partir dos processos históricos de lutas sociais realizadas
pelos trabalhadores rurais e baseadas na busca de inserção social sem injustiças e desigualdades, e
no anseio de uma formação singular de seus militantes do que chamamos processo educativo. No
assentamento em questão, as pessoas vivem uma luta diária pela sobrevivência, do corpo e da mente
de seus militantes. As bagagens ideológicas vão sendo rompidas, algumas são conservadas e muitas
tantas caem no esquecimento, isso ocorre devido ao fato de o Assentamento Conquista do Jaguarão
ter perdido líderes comprometidos com a formação ideológica de seus militantes.
A escola surge, então, como lugar de emancipação dos sujeitos e de produção de
conhecimento, porém o cuidado com a doutrinação ideológica de crianças e jovens por parte de
professores advindos de outras localidades (zona urbana, cidades vizinhas), se faz necessário, pois
estamos a falar de um contexto outro, de sujeitos que vivem e carregam consigo as marcas de uma
luta de classe, de um pensamento militante/esquerdista, e que necessitam ampliar seus horizontes e
perspectivas de mundo, e só conseguirão isso com docentes comprometidos com o contexto
específico em que estão inseridos. Neste pensar, militância e educação devem romper as cercas,
romper os marcos que delimitam onde devemos ir e como devemos pensar. Nosso agir no mundo deve
ir mais além. Nossa marcha acadêmica se encerra aqui, mas a luta do MST não para! Seguimos.

REFERÊNCIAS

NARRATIVAS
1283

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maio de 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
1284

No contexto de um grupo de pesquisa que tem como

NARRATIVAS COMO foco de estudo a formação de educadores e como


ancoragem teórico-metodológica os presupostos
bakhtinianos, compartilhamos, neste texto,

POSSIBILIDADES DE narrativas de nossas vivências como pesquisadoras


e docentes. No diálogo com conceitos de
responsividade, memória de futuro e contra

RELAÇÕES DIALÓGICAS E palavras, realçamos a necessidade do outro como


fundamental para a formação humana,
reconhecendo o desafio de efetivar esse princípio

PRODUÇÃO DE nas relações cotidianas. As interações com


diferentes sujeitos em nossas atividades como
docentes e pesquisadoras nos desafiam a acolher o

CONHECIMENTOS outro em suas narrativas, legitimando seu


pertencimento à imensa cadeia dialógica que tem a
linguagem como base de constituição dos seres
humanos. Tais desafios encontram, nos conceitos
de Bakhtin, possibilidades de compreensão desses
enunciados e de fortalecimento da resistência às
constantes ameaças de destituição de direitos
VIEIRA, Maria Nilceia de Andrade 342
conquistados em movimentos históricos de luta.

REIS, Marcela Lemos Leal 343

LOVATTI, Renata Rocha Grola 344 Palavras-Chave: Narrativas. Formação Docente.


Pesquisa em Educação
CÔCO, Valdete 345

INTRODUÇÃO

C
onsiderando o conjunto da obra de Mikhail Bakhtin, atualmente temos acesso a muitas de suas
produções, bem como de outros autores estudiosos que se dedicam à assimilação e
compreensão de referenciais bakhtinianos, seja no campo da filosofia, da arte, da linguística e
de outras áreas do conhecimento. Acreditamos que todo esse acervo, em lugar de promover um
acúmulo de estudos e repetição de argumentações, nutre os diálogos e fomenta problematizações que
emergem dos diferentes pontos de vista expressos pelos leitores de Bakhtin.

342 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Integrante do Grupo de Pesquisa Formação e Atuação de
Educadores – GRUFAE. Professora do Curso de Pedagogia da Faculdade Estácio de Vila Velha e pedagoga na Prefeitura Municipal de Vitória – ES.
E-mail: nilceia_vilavelha@hotmail.com
343 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Integrante do Grupo de Pesquisa Formação e Atuação de

Educadores – GRUFAE. Professora em função pedagógica de Inspeção Escolar na Secretaria Municipal de Educação de Itapemirim - ES. Membro
do colegiado do Fórum Permanente de Educação Infantil do Espírito Santo (FOPEIES/MIEIB), Membro do Comitê de Educação do Campo do
Espírito Santo (COMECES). E-mail: marcelallealr@gmail.com
344 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Integrante do Grupo de Pesquisa Formação e Atuação de

Educadores – GRUFAE. Professora formadora na Educação Infantil e professora pedagoga na Secretaria Municipal de Educação de Marataízes –
ES. Membro do colegiado do Fórum Permanente de Educação Infantil do ES – FOPEIES/MIEIB. E-mail: renatalovatti@hotmail.com.br
345 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense; Professora vinculada ao Departamento de Linguagens, Cultura e Educação e ao

Programa de Pós-graduação em Educação do Centro de Educação da UFES. Líder do Grupo de Pesquisa Formação e Atuação de Educadores –
GRUFAE e Coordenadora do GT 07 - Educação de Crianças de 0 a 6 anos - da ANPEd. . E-mail: valdetecoco@hotmail.com.

NARRATIVAS
1285

Em consonância com as concepções desse autor, é importante assinalar que as controvérsias


e discordâncias compõem essa arena social em que os debates se intensificam especialmente pelo
fato de que as opiniões, as ideias e as compreensões não coincidem, e sim rivalizam, divergem,
entram em disputa. Situando o contexto atual marcado por intensas transformações políticas,
econômicas, sociais e culturais, têm sido constantes as determinações e medidas que desrespeitam
princípios do direito constitucional e da democracia.
Reafirmando a pertinência e atualidade dos conceitos desenvolvidos por Bakhtin,
especialmente em tempos de tantos retrocessos com a perda de direitos que incidem sobre
diferentes questões sociais, entre elas, a educação, ressaltamos a relevância dos Encontros de
Estudos Bakhtinianos (EEBA) em nosso percurso acadêmico e profissional, especialmente pela
oportunidade de participação como narradoras, participantes ativas e falantes das discussões
realizadas durante o evento.
No intuito de mais uma vez nos inserirmos responsivamente nesse encontro dialógico,
direcionamos os argumentos deste texto aos desafios de acolhermos as narrativas dos diferentes
sujeitos com quem interagimos e, simultaneamente, produzirmos narrativas, compreendendo que
juntos integramos uma cadeia dialógica e nos constituímos nesse processo como seres políticos.
Nesse propósito, inicialmente abordamos as contribuições das narrativas produzidas em
nossas relações com os outros e com o mundo cultural com destaque para a nossa participação no
EEBA. Na sequência, dialogamos sobre a interação entre os sujeitos pesquisadores e pesquisados e o
papel das narrativas na produção de conhecimento no campo da educação como possibilidade de
promover sentidos às memórias do passado, buscando compreensões das vivências no presente e
impulsionando a projeção de memórias de futuro. Finalizando o texto, sem o intuito de encerrar as
reflexões, apresentamos, ainda que inacabadas, as considerações finais.

1. PARTICIPAÇÃO NO EEBA: narrativas como possibilidade de relações dialógicas

Concebemos as narrativas como manifestações humanas que dialogam com os estudos em


ciências humanas e, mais especialmente, os estudos no campo da educação, por serem expressão das
visões de mundo de cada sujeito com suas necessidades e proposições. Essas manifestações se
efetivam numa perspectiva de singularidade, enunciando de forma irrepetível a compreensão dos
sujeitos sobre uma situação, um fato, uma possilbilidade. Sendo assim, ao acolhermos as narrativas
do outro e nos colocarmos também como narradores, promovemos movimentos dialógicos
ininterruptos, uma vez que:

[...] toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória
da resposta (seja qual for a forma em que ela se dê). O próprio falante está determinado precisamente
a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer,
que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma
participação, uma objeção, uma execução, etc. (BAKHTIN, 2011, p. 272).

NARRATIVAS
1286

Bakhtin nos acompanha nessa trajetória formativa desde 2012 como pesquisadoras e a
participação nos Encontros de Estudos Bakhtinianos (EEBA) amplia a arena discursiva das ideias que
defendemos, fortalecendo as lutas na construção coletiva, democrática e política da educação e
fundamentadas em pressupostos de compromisso com o nosso ato ético. Os eventos do EEBA
representam um importante encontro com Bakhtin, com os integrantes do grupo de pesquisa e
também com outros pesquisadores e estudiosos dos pressupostos bakhtinianos. Cabe destacar que,
no grupo de pesquisa, as conversas sobre a participação no EEBA se iniciam bem antes do evento,
quando alguns encontros se firmam entre as integrantes, outros desencontros acontecem,
silenciamentos expressam opções e posicionamentos.
No contexto da trajetória de dez anos do grupo de pesquisa, reconhecemos nosso lugar na
cadeia discursiva, em que distintas narrativas nos antecederam, visto que, quando passamos a
integrar o grupo, nos apropriamos de dinâmicas já constituídas e especialmente dos enredamentos
concentuais tecidos pelos diferentes integrantes que contribuíram e contribuem com a formação
cultural do grupo. Nesse movimento, estabelecemos relações com o passado, construindo nossa
memória de futuro, ousando antever projetos que nos mantenham em movimentos propositivos de
investimentos em futuras relações dialógicas.
Em conexão com o pertencimento ao grupo, ao participarmos do evento, produzimos nossas
narrativas construímos e ressignificamos conceitos, problematizamos sentidos de nosso lugar, de
nosso compromisso com a educação a partir do reconhecimento de que “[...] eu ocupo no existir
singular um lugar único, irrepetível, insubstituível e impenetrável da parte de um outro. [...] Tudo que
pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca” (BAKHTIN, 2010, p. 96).
Em tempos marcados por medidas e regulamentações que atingem frontalmente o estado
democrático e a qualidade da educação construída com seus diversos sujeitos, somos requeridos a
ocupar este lugar singular que traz as ressonâncias de tantos outros, resistindo diante da
constituição de uma política pública que não dialoga com educadores, famílias, comunidades e demais
envolvidos. As relações dialógicas estabelecidas no grupo, cunhadas nas pesquisas, nos debates e nas
vivências, nos alteram e alteram posicionamentos de grupos e categorias. No encontro dialógico e
plural de contextos, consideramos as diferentes vozes e também o encontro de potentes memórias
discursivas. Assim vamos, no coletivo, nos posicionando singularmente.
Nesse sentido, reiteramos a palavra como “[...] produto da interação do locutor e do ouvinte”
(BAKHTIN, 2009, p. 84) e território comum entre ambos, concordando que ela se constitui como
expressão de um em relação ao outro e também em relação ao grupo. Assim, as palavras circulam e
vão compondo materialidades, desafiando-nos também a considerar que, na realidade,

[...] não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou
más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um
conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente
reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida (BAKHTIN,
2009, p. 71, grifo do autor).

NARRATIVAS
1287

Desse modo, longe de demarcarmos posições ou lugares isolados em nossas atuações como
pesquisadoras e como docentes, o que nos anima nessa conversa é a compreensão das
simultaneidades, do entrelaçamento das diferentes vivências que reúnem entre si infinitas
possibilidades narrativas em todos os lugares, nos distintos momentos, com diferentes sujeitos, visto
que compreendemos a dinâmica da vida como permanentes encontros dialógicos. Nessa direção,
compartilhamos a seguir nossas assimilações em relação às narrativas no contexto da investigação
científica.

2 NARRATIVAS NO PERCURSO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA

Quando acolhemos as narrativas como formas legítimas de produção de conhecimento,


acreditamos que essa postura humaniza o campo das pesquisas em ciências humanas, pois
consideramos as vozes dos sujeitos como questão primordial para vivificar e revigorar as relações
dialógicas constituídas no desenvolvimento de estudos. No caso de nossas pesquisas, investimos
nessas relações dialógicas que envolvem os docentes, as famílias e as crianças como integrantes do
coletivo das instituições educacionais.
Cabe assinalar que ao desenvolvermos as pesquisas e materializarmos seus registros, não
desconsideramos a importância de valorização tanto da forma como do conteúdo. Entretanto, não
acreditamos em uma produção baseada na lógica produtivista, e sim, coerente com o pressuposto
ético de nossa constituição na relação com os outros, mediados pela linguagem.
Nesse mote, defendemos o compartilhamento de diferentes ideias e compreensões como ato
responsivo dos pesquisadores para que a produção científica nas ciências humanas e, em nosso caso,
especificamente na educação, possa circular, se conectar com outras produções, movendo
contrapalavras, instando problematizações, suscitando discordâncias, enfim constituindo reflexões
que revigoram os conhecimentos e mantém vivo o compromisso político com as disputas e a pauta da
educação, uma vez que:

[...] cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela
identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma
resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra ‘resposta’
no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como
conhecidos, de certo modo os leva em conta (BAKHTIN, 2011, p. 297, grifo do autor).

Nessa perspectiva de movimento dialógico, faz-se necessário realçar que não temos a última
palavra, pois buscamos compreender os acontecimentos da nossa posição e, nesse intento, cada
sujeito está “[...] com sua visão de mundo já formada” (BAKHTIN, 2011, p. 378). Assim, precisamos nos
atentar que esse ponto de vista já determina a análise de determinada situação, mas não se mantém
inalterado, passando por mudanças, considerando que “[...] o sujeito da compreensão não pode excluir
a possibilidade de mudança e até de renúncia aos seus pontos de vista e posições já prontos. No ato

NARRATIVAS
1288

da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento”


(BAKHTIN, 2011, p. 378).
De acordo com Faraco (2017), ao discutir valores da filosofia neokantiana, Bakhtin apresenta
uma visão diferenciada do que vem a ser a interação, concebendo-a como “[...] encontro de posições
sócio-axiológicas. Na interação vista pelo olhar bakhtiniano, não se trocam mensagens, mas se
dialogizam axiologias [...] em diversos graus de conflito ou convergência” (FARACO, 2017, p. 55). Sendo
assim:
O fato de que o outro não foi inventado por mim para uso interesseiro mas é uma força axiológica que
eu realmente sancionei e determina minha vida (como a força axiológica da mãe que me determina na
infância) confere-lhe autoridade e o torna autor interiormente compreensível de minha vida: não sou eu
munido dos recursos do outro mas o próprio outro que tem valor em mim, é o homem em mim (BAKHTIN,
2011, p. 141, grifo do autor).

Considerando a compreensão do valor do outro em mim, acreditamos que no campo das


pesquisas, nossas narrativas movimentam diferentes interlocuções, nosso auditório social se amplia
quando inclui, além dos próprios colegas pesquisadores do grupo, os sujeitos de pesquisa, os leitores
de nossas produções, os pesquisadores que encontramos em eventos, dentre outros interlocutores.
Portanto, acolher, considerar, atentar para as narrativas implica que podemos acessar
nossas memórias de passado, não para revivê-las, e sim para buscar compreensões outras das
vivências que temos no presente e que nos levam a projetar nossas memórias de futuro. Essas
memórias se encontram num plano de possibilidades. Entretanto, isso não significa que são
inatingíveis. Seus sentidos nos impulsionam, nos movem, direcionam as ações para a construção do
que vislumbramos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dispostas a expressar vivências no processo de produção de conhecimentos com a pesquisa e


a atuação docente, compartilhamos neste texto os sentidos das narrativas em nossas trajetórias,
focalizando os desafios de acolher o outro como integrante da imensa cadeia dialógica que nos
constitui como seres humanos. Diante de um cenário atual fortemente marcado por instabilidade e
risco da perda de direitos, alguns acontecimentos colocam em risco também a compreensão de nosso
lugar ético e responsivo.
Ao respondermos ao convite do IV EEBA para enunciar formas de resistir à escatologia
política, encontramos nos conceitos bakhtinianos de responsividade, memória de futuro e contra
palavras, possibilidades de materializar uma ciência singular produzida por e com sujeitos ativos e
falantes, situados social e historicamente e dispostos a diferentes movimentos de resistência.
Destacamos ainda que as constantes tentativas (algumas já determinadas) de retirada da
autonomia dos sujeitos vem se materializando com as frentes privatistas na educação, com a
precarização da formação reduzida a propostas superficiais e alocadas a discussões direcionadas

NARRATIVAS
1289

apenas à prática. Sem considerar o contexto das condições de trabalho docente e das propostas de
formação continuada apresentadas pelos movimentos sociais e entidades de pesquisa, tais medidas
vão continuar a exigir a mobilização em defesa de direitos já conquistados.
Cientes do contexto já apresentado e com as diferentes narrativas produzidas neste texto,
demarcamos o lugar dos pesquisadores e pesquisados, dos docentes, das famílias e das crianças
como sujeitos humanos. Na continuidade desse percurso, nos dispomos ao compartilhamento de
nossas narrativas a partir do nosso encontro com Bakhtin, com a pesquisa, com a formação docente
enquanto campo de trabalho, e nas relações com todos os outros que nos constituem.
Nessa teia polifônica, os acontecimentos requerem de nós uma resposta ética como sujeitos
políticos circunscritos na cadeia dialógica da formação humana, como educadores que em diferentes
espaços e de formas distintas assumimos a resistência e anunciamos uma ciência outra. Resistimos à
lógica imposta da negação do sujeito como ser humano e da ideia do ser coisificado em diferentes
propostas que nos desumanizam.
Anunciamos nossa disposição ao desenvolvimento de pesquisas que possa nos distanciar de
uma perspectiva monológica e abrir caminhos às diferentes narrativas, aproximando-nos da
pluralidade de ideias, opiniões e concepções. Uma pluralidade que, buscando aproximações e
distanciamentos, fortaleça as pautas referentes às lutas da educação.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2011.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da
linguagem. Tradução de Michel Lhud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto
Faraco. São Carlos: Pedro & João, 2010.
FARACO, Carlos Alberto. Bakhtin e filosofia. Bakhtiniana, São Paulo, 12 (2): 45-56, Maio/Ago. 2017. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/31815>. Acesso em: 20 set. 2017.

NARRATIVAS
RESUMO
1290
Tendo em vista que pessoas com Síndrome de
Treacher Collins, geralmente, apresentam

O PROCESSO TERAPÊUTICO dificuldades relacionadas à produção de sons da


fala e à interação social, o presente estudo
objetivou analisar um trabalho clínico

NA SINDROME DE TREACHER fonoaudiológico, voltado à linguagem oral de um


menino com tal síndrome. Trata-se de um estudo de
caso longitudinal e prospectivo, pautado em uma

COLLINS A PARTIR DE UM perspectiva dialógica de linguagem, que considerou


um trabalho clínico fonoaudiológico, realizado em
uma clínica escola de uma universidade situada no

ÓTICA DIALÓGICA sul do país, durante um período de quatro anos,


desde 2012 até 2016. Os dados coletados para o
presente estudo foram retirados de prontuários,
registros de terapia, relatórios de entrevista inicial,
avaliação, contatos interdisciplinares, devolutivas,
relatórios semestrais, além de gravações semanais
do paciente em interação com a terapeuta.
VIEIRA, Sammia Klann346 Percebeu-se que, apesar das dificuldades da
produção vocal e a da articulação de fonemas
decorrentes de alterações anatomofisiológicas
próprias da síndrome em questão, as atividades
dialógicas estabelecidas entre o menino, sua família
e os seus terapeutas, propiciaram mudanças
gradativas no seu posicionamento frente ao outro e
à linguagem. Inicialmente, ela fazia uso de gestos,
INTRODUÇÃO mímicas faciais, apontamentos, os quais eram
compreendidos apenas pelas pessoas que faziam
parte do seu cotidiano. Atualmente, além dos

A
Síndrome de Treacher Collins (STC) é um distúrbio recursos gestuais, ele passou a usar da oralidade
para participar de práticas interativas, indicando
autossômico dominante decorrente de mutações genéticas¹ e autonomia para interagir com diferentes
caracterizado por anomalias craniofaciais, com manifestações interlocutores em situações discursivas diversas.

clínicas variáveis. Apresenta uma incidência que se estabelece entre Palavras-Chave: Fonoaudiologia. Síndrome.
1:40.000 a 1:70.000 casos por nascidos vivos, aproximadamente, não Treacher. Collins. Linguagem

havendo prevalência de sexo ou raça². Suas mutações são resultado


de excesso ou falta de material cromossômico em grupos variados e
dependem de diferentes fatores, tais como os pareamentos dos cromossomos afetados e a
combinação genética dos pais do indivíduo acometido³.
Assim, tendo em vista que pessoas com STC apresentam, de forma geral, dificuldades
relacionadas à integibilidade de fala, as quais podem ocasionar prejuízos nas relações sócias
estabelecidas com esses sujeitos, o presente artigo, pautado em uma perspectiva dialógica, volta sua
atenção à linguagem oral de um menino com STC, considerando um trabalho clínico fonoaudiológico.
Sobre esse trabalho, inicialmente, convém considerar que a Fonoaudiologia consolidou-se oficialmente
no Brasil, fundamentada, sobretudo, no discurso médico⁸. Porém, é preciso ressaltar que os
conhecimentos médicos só podem responder pelo fazer médico e não pelo saber e o fazer
fonoaudiológicos.

346 Mestranda no programa de Distúrbios da Comunicação. Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: sammia.klann@gmail.com

NARRATIVAS
1291

Em vista disso, estudo⁹ vêm enfatizando que o trabalho clínico fonaoduiológico precisa
conceber a linguagem a partir de bases teóricas voltadas a própria linguagem, afastando-se do saber
médico, que toma a fala e a linguagem como sintomas de lesões cerebrais ou de outras síndromes,
como é o caso da STC. Nesse contexto, pesquisas 10 têm apontado para a possibilidade de a
Fonoaudiologia desenvolver sua prática clínica sob uma ótica dialógica. Essa ótica, afastada de uma
visão que toma a linguagem como um meio de comunicação estanque, que serviria apenas para
transmitir mensagens, passa a considerá-la como um processo interacional e constitutivo da
singularidade de cada sujeito.
Na ótica dialógica¹¹, as questões orgânicas são consideradas em função das relações
socioverbais, das quais cada pessoa participa de maneira única e irrepetível. A consciência individual
é fruto dessas relações, por isso, ela não se estrutura no interior de cada um, como mera
consequência de fatores orgânicos. Ao contrário, o conhecimento que cada pessoa tem do mundo, de
si mesma e do próprio organismo, se organiza a partir da interação social.
Portanto, tendo em vista a importância das interações verbais para a apropriação da
linguagem, a Fonoaudiologia, pautada em uma perspectiva interacional, leva em conta o fato de que os
sujeitos, incluindo aqueles acometidos pela STC, têm uma história a ser considerada, que não se
resume aos seus aspectos morfolóficos e fisiológicos. Esses sujeitos situam-se em uma dada
comunidade, na qual reconhecem a si mesmos e o mundo que os rodeia. Assim, fundamentado em uma
ótica dialógica, que não abstrai o organismo de suas significações sociais, o presente estudo pretende
analisar um trabalho clínico fonoaudiológico, voltado à linguagem oral, de um menino com STC.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo pautado em uma perspectiva dialógica, elaborado a partir de um


trabalho clínico fonoaudiológico voltado a uma criança com Síndrome de Treacher Collins. Essa
criança vem sendo atendida em uma clínica-escola vinculada à graduação em Fonoaudiologia de uma
Universidade situada no sul do Brasil, em terapias semanais, com duração de 40 minutos cada. Para
análise dos dados, foram considerados os quatro anos de atendimento fonoaudiológico, levando em
conta o seu início, que se deu em junho de 2012, quando ocorreu o primeiro contato do paciente e de
sua família com profissionais e estagiários em Fonoaudiologia, até agosto de 2016, quando a coleta de
dados foi encerrada. Cabe ressaltar que, por se tratar de uma clínica escola, durante cada ano letivo
um estagiário diferente atendeu Marcos.
Para manter preservadas as identidades da criança e de sua família, foram-lhe dados os
nomes fictícios: Marcos, para o paciente; Sofia, para a sua mãe; Dante, para o seu pai; e Mário, para o
seu irmão.
Os dados foram coletados nos prontuários do paciente, durante o seu processo terapêutico,
levando em consideração a entrevista inicial, as avaliações fonoaudiológicas, os registros diários, os
relatórios semestrais, os relatórios vinculados aos contatos interdisciplinares, as devolutivas dadas a

NARRATIVAS
1292

família, além disso, foram realizadas gravações em áudio e vídeo, no aparelho SM- T116BU, versão
android 4.4, a partir do momento em que Marcos passou a usar a oralidade para interagir com sua
terapeuta.
Sobre a história do paciente, convém explicitar que Marcos é um menino nascido em uma
cidade do Sul do país, no segundo semestre de 2010. No inicio do processo terapêutico, Sofia, sua
mãe, afirmou que Marcos era tudo para ela, referindo ter sido difícil lidar com a Síndrome. Ela
comentou que passou por situações constrangedoras quando saia com o filho em público. Disse ter
sido acusada, de forma inverídica, de ter procurado abortar Marcos, pois as pessoas que se
deparavam com a imagem facial do filho, associavam-na, inadvertidamente, com tentativas abortivas.
A mãe foi questionada se essas situações abalaram o relacionamento familiar e ela respondeu
que não. Informou, ainda, que, segundo os médicos, o filho não tinha expectativa alguma de vida ao
nascer, pois a síndrome havia se manifestado em um grau muito forte. Apesar da experiência ter sido
traumática, conforme a mãe, “Marcos é uma criança maravilhosa, digna de qualquer esforço”.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os diálogos apresentados na sequência foram transcritos com pausas, prolongamentos,


repetições e hesitações presentes na linguagem oral do paciente e da terapeuta. Porém, apesar da
fala de Marcos apresentar trocas e distorções, a transcrição não foi feita de maneira literal, pois tais
enunciados foram interpretados e significados pela terapeuta, a partir do contexto enunciativo em que
sua fala foi produzida. O uso da inicial T. sinaliza a participação da terapeuta e a inicial M. indica as
produções de Marcos.

Diálogo 1: 11/04/2016

No momento em que ocorre o diálogo 1, a terapeuta está mostrando para Marcos uma foto dos
seus cachorros de estimação, no celular.

01 ((M. tenta perguntar algo à terapeuta, ela não entende. Marcos pega um papel e começa a rabiscar
algo, como se estivesse assinando algo))
02 T: Você quer saber o nome dos meus cachorros?
03 M: ((Sim com a cabeça))
04 T: Elvis
05 M: ((Faz gesto de grande))
06 T: Preta
07 M: Não, o nome!
08 T: Preta
09 M: O NOME!
10 T: Mas o nome da minha cachorra é Preta!
11 M: É?
12 T: Porque ela é muito preta, demos esse nome pra ela.
13 M: A: !

NARRATIVAS
1293

No diálogo 1, percebe-se que Marcos assume-se como sujeito na situação enunciativa.


Inicialmente, ao considerar que a terapeuta não consegue compreender sua oralidade, ele recorre ao
uso de recursos gráficos para indicar o que quer explicitar. Logo na sequência, ele passa a fazer uso
de gestos que indicam afirmação e o tamanho do animal que aparece na imagem fotográfica, sobre a
qual o diálogo foi estabelecido. Depois, a partir do turno 07 começa a fazer uso da oralidade. Marcos
toma iniciativa para questionar a terapeuta e denunciar que não entende, em principio, como o nome
da cor preta pode ser usado para designar uma cachorra. Ou seja, ele parece mostrar indignação
pelo fato de considerar que nomes próprios não coincidem com cores. Ao perceber tal indignação, a
terapeuta explica o motivo que a levou a chamar sua cachorra por Preta. E, só depois dessa
explicação, Marcos parece se dar por satisfeito, conforme a exclamação que produz, no turno 13.
Nesse trecho dialógico, é possível acompanhar Marcos fazendo uso de diferentes recursos
para participar da situação enunciativa. Ele rabisca um papel, faz uso de gestos e da própria oralidade
para conversar com a terapeuta sobre uma representação fotográfica, denunciando interesse em
interagir com o outro e saber desse outro o que lhe desperta atenção.

Diálogo 2: 30/05/2016

A terapeuta e o Marcos estão conversando sobre super-heróis e ela apresenta alguns


adesivos de super-heróis para construir, com Marcos, um painel.

01 T: Esse eu não sei quem é... Será que é a viúva negra?


02 M: É
03 T: Agora não dá pra desgruda o adesivo!!
04 M: Não dá.
05 T: E onde eu vou escrever o nome dos super- heróis?
06 M: Aqui Ó:: ((aponta onde a terapeuta deve escrever))
07 T: Esse aí é o ...
08 M: Capitão América
09 T: Capitão América
10 M: Esse é... ((não lembrou o nome do super-herói))
11 T: E esse aqui é o ...
12 M: Thor.
13 M: ((aponta um super-heroi )) O:
14 T: É, esse é o Thor, né ?
15 T: Vou escrever aqui viúva negra ...
16 M: Não é...
17 T: Será que é quem?
18 M: ((faz cara de quem não sabe))
19 T: Temos que pesquisar...

Nesse diálogo, é possível perceber que Marcos usa a oralidade, de forma contextualizada,
para responder questões elaboradas pela terapeuta, no turno 02, para concordar com ela, no turno

NARRATIVAS
1294

04 e, também, para discordar dela no turno 16. Além disso, faz uso efetivo de mímicas faciais e de
gesticulações para participar da conversa que estabelece com a terapeuta. De um ponto de vista
dialógico, pode-se afirmar que, embora essa criança tenha começado a usar a oralidade a partir do
final de 2015, já estava inserido no fluxo discursivo bem antes disso.
Pois, no diálogo 2, evidenciado acima, ele mostra que está envolvido em uma dada organização
social que privilegia a imagem de super-heróis. Também revela que reconhece o espaço em que se
insere na medida em que consegue situar a terapeuta quanto ao local que ela deve escrever o nome
de um super-herói, usando o advérbio de lugar aqui de forma coerente com o enunciado produzido, no
turno 06.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo objetivou analisar um trabalho clínico fonoaudiológico, voltado à linguagem


oral, de um menino com STC, a partir de uma ótica dialógica. Nesse sentido, evidenciou que, apesar
de toda a inadequação de órgãos fonoarticulatórios que Marcos apresenta, em função da STC, esse
menino gradativamente começou a fazer uso da oralidade, para assumir seu papel de interlocutor e
participar do fluxo dialógico. Mas, convém ressaltar os efeitos que um trabalho clínico
fonoaudiológico, fundamentado na ótica dialógica, produziu no sentido de auxiliar essa criança a se
perceber como sujeito da linguagem.
Cabe ressaltar que essa perspectiva, proporciona um novo olhar e uma escuta a esse
paciente de forma que ressignifica os enunciados orais de Marcos e o seu lugar frente à linguagem
oral. Esse olhar para o outro, não esta com o “holofote” para os aspectos orgânicos, mas sim para um
sujeito que participa dessa corrente dialógica.

REFERÊNCIAS

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http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S231717822016000500653&script=sci_abstract&tlng=pt
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem- 12ª Edição – 2006 – HUCITEC. Disponível em:
http://www.fecra.edu.br/admin/arquivos/MARXISMO_E_FILOSOFIA_DA_LINGUAGEM.pdf

NARRATIVAS
RESUMO
1296

ENUNCIADO CONCRETO Palavras-Chave:

BAKHTINIANO: resistência à
narrativa da escatologia política de capas da
revista Veja

VILLARTA-NEDER, Marco Antonio 347

RODRIGUES, Andreiza Aparecida Santos 348

NASCIMENTO, Natália Rodrigues Silva do 349

INTRODUÇÃO

A
grave crise política que aflige o país na atualidade faz com que os brasileiros vivam em um
ambiente de constante instabilidade, seja política, seja econômica, seja social. Vários são os
setores e as instituições que tentam fazer previsões ou justificar os acontecimentos ligados às
mais diversas formas de corrupção e de uso indevido do dinheiro público, mas os brasileiros se
sentem, em geral, desesperançosos e perdidos, tendo como única certeza a de que a atual conjuntura
ocasionará inúmeros efeitos negativos e talvez irreversíveis em suas vidas, uma vez que a ruína do
Estado enquanto patrimônio público resulta em elevação dos impostos e em diminuição da prestação
dos serviços básicos em benefício da população. Esta situação de inconstância faz surgir,
principalmente por intermédio dos meios de comunicação, personagens que procuram se passar por
salvadores, e que, dentro de uma relação de poder instituída, escavam brechas, constroem atalhos
para projetos específicos (quando não, pessoais) de poder. Essa construção se apoia,
costumeiramente, em um cenário escatológico.

347 Doutor em Letras. Prof. Adjunto do Departamento de Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Lavras. Coordenador do GEDISC
(Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin). E-mail: villarta.marco@del.ufla.br
348 Graduanda em Letras Inglês/Português – Universidade Federal de Lavras (UFLA) – membro do Grupo de Estudos Discursivos sobre o

Círculo de Bakhtin (GEDISC). E-mail: isa911catleia@gmail.com


349
Graduanda em Letras Inglês/Português – Universidade Federal de Lavras (UFLA) – membro do Grupo de Estudos Discursivos sobre o
Círculo de Bakhtin (GEDISC). Bolsista PIBIC-CNPq. E-mail: natalia.nascimento@letras.ufla.br

NARRATIVAS
1297

Escatologia pode aludir a dois sentidos. Um primeiro refere-se ao final dos tempos, tendo um
contexto de discussão que nasce na teologia, mas que se amplia posteriormente para problemáticas
políticas, culturais e estéticas, dentre outras. Brüseke introduz esse conceito:

O escaton, a salvação, é o que move o judaísmo-cristianismo-islamismo, é sua essência e sua azão de


ser. A escatologia é a doutrina das últimas coisas e do fim da história. Acreditase que, depois do juízo
final e o fim do mundo, inicia-se uma nova vida que realizaria as esperanças religiosas. (BRÜSEKE, 2004,
p. 16)

Há vários âmbitos implicados. Podemos destacar os caracteres apocalíptico e teleológico.


Concebe-se uma finalidade dos eventos e um grand finale destruidor do mundo tal como entendido
antes e uma estabilização, atemporal, posterior, que consagra uma condição de prevalência da
divindade, geralmente ligada a uma figura messiânica (caso mais diretamente presente no judaísmo e
no cristianismo, enquanto que, no islamismo, a figura da própria divindade cumpre ambos os papéis).
Um outro sentido do escatológico é o de dejeto, secreção corporal, excremento:

Toda excreção fisiológica tende a ser concebida como algo nojento e distante de uma “boa” higiene. O
que sai de nosso corpo é percebido como imundo e, isso nos leva a pensar que estamos nos
distanciando cada dia mais daquilo que é natural (e que, outrora, fora visto com naturalidade). (MORAES,
2017, p. 29)

No caso do cenário político, há uma relação metonímica entre a ação política de sujeitos e
instituições políticas e a produção de secreções e excrementos. A ação política é desqualificada por
essa atribuição metonímica.
Em ambos os sentidos do escatológico, há uma descrença e um abandono simbólico do político
como instância decisória e de governança da sociedade. A própria constitutividade do ato político
como construção social, inescapável a qualquer sujeito que faça parte da sociedade – na medida em
que interage sociopoliticamente com outros sujeitos – é desqualificada simbolicamente. No escopo
desse texto optaremos por privilegiar o sentido do escatológico como final dos tempos.
Bakhtin, no livro Estética da Criação Verbal, ao abordar a questão da personagem, trata da
biografia. Dentro dos eixos propostos para a discussão sobre a resistência a essa escatologia política,
optamos por assumir a perspectiva da narrativa. E será como narrativa de biografias que nos
deteremos em nossa análise. O corpus aqui analisado consiste em capas da Revista Veja que
estampam os sujeitos Luís Inácio Lula da Silva (ex-presidente da República) e Sérgio Fernando Moro
(juiz da 13 ª Vara Criminal Federal de Curitiba, no Estado do Paraná). Sérgio Moro é o responsável por
comandar, em primeira instância, o julgamento da Operação Lava-Jato, investigação sobre lavagem
de dinheiro, corrupção ativa e passiva, ligadas a agentes públicos do Poder Executivo e Legislativo dos
três níveis de poder (federal, estadual e municipal).
Propomo-nos a analisar como a construção da biografia desses personagens-sujeitos
político-institucionais é feita pela revista em direção a uma escatologia, que define o mal a ser banido

NARRATIVAS
1298

e um messias a ser o responsável pela redenção da sociedade brasileira. A relevância da questão da


biografia pode ser assentada na natureza de narrativa que a biografia constitui. Bakhtin, ao tratar da
biografia, diz que

O autor de biografia é aquele outro possível, pelo qual somos mais facilmente possuídos na vida, que
está conosco quando nos olhamos no espelho, quando sonhamos com a fama, fazemos planos externos
para a vida; é o outro possível, que se infiltrou na nossa consciência e frequentemente dirige os nossos
atos, apreciações e visão de nós mesmos ao lado do nosso eu-para-si; é o outro na consciência, com
quem a vida exterior pode ser suficientemente móvel [...] que pode, não obstante, tornar-se duplo-
impostor se lhe dermos liberdade e sofrermos um revés, mas, em compensação, com que se pode viver
uma vida de modo imediatamente ingênuo, tempestuoso e alegre [...]. (BAKHTIN, 2011, p. 140)

De uma perspectiva a partir da arquitetônica bakhtiniana, a biografia constitui uma instância


de narrativa que pode ser construída pelo próprio sujeito (autobiografia = eu-para-mim), por ele
sobre um outro (outro-para-mim), extralocalizado em relação ao lugar que ocupa no mundo ou sobre
esse sujeito ou de um outro que narra esse sujeito na unidade do acontecimento (eu-para-o-outro).
O que se pretende no presente trabalho é discutir a constituição, enquanto narrativa, de
biografia de dois personagens atualmente importantes e antagônicos entre si, o ex-presidente Lula e o
juiz federal Sérgio Moro, como são construídos e apresentados ao público por uma revista de grande
circulação no país, a Revista Veja. Na sequência, discutir quais as condições axiológicas de
constituição de que o sujeito-leitor ocupe um lugar de resistência à escatologia política que a
construção maniqueísta e messiânica dessas biografias tenta estabelecer. Tendo como base o
referencial do Círculo de Bakhtin, com enfoque prioritário no conceito do enunciado concreto,
pretende-se discorrer sobre a produção de discursos pela revista, os quais têm como objetivos
construir e moldar esses personagens e fazer o público tomar partido de um ou de outro. Para tanto,
elegeu-se como objeto de estudo as capas das edições 2424 de 06/05/2015, 2458 de 30/12/2015,
2527 de 26/04/2017, 2529 de 10/05/2017 e 2539 de 19/07/2017 da mencionada revista, as quais
possuem como figura central as imagens desses dois personagens, seja conjuntamente, seja
separadamente.

1. A CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS A PARTIR DO ENUNCIADO CONCRETO PRODUZIDO PELAS


CAPAS DA REVISTA

A teoria bakhtiniana concebe a comunicação como função principal da linguagem, por tal
motivo, elege como objeto de estudo a língua a partir de sua função comunicativa. Segundo Bakhtin, “a
língua é deduzida da necessidade do homem de autoexpressar-se, de objetivar-se. A essência da
linguagem (...) se reduz à criação espiritual do indivíduo” (BAKHTIN, 2011, p. 270). Nesse sentido, não há
meios de se considerar a linguagem apenas a partir da figura do falante sem se levar em conta os
outros envolvidos na situação comunicativa, uma vez que quem fala (produz um enunciado) o faz
considerando o outro, ouvinte/leitor, almejando expor um ponto de vista, um raciocínio. Importante

NARRATIVAS
1299

ressaltar, que o outro nunca assume uma postura passiva no momento da comunicação, já que, ainda
que não se manifeste de forma imediata e explícita, “cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente
entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte” (BAKHTIN, 2011, p.
272). Ademais, no momento da produção de um enunciado, o falante já considera o que, no seu
entendimento, será a resposta do outro, de forma que essa circunstância interfere diretamente nas
escolhas feitas pelo falante, revelando, mais uma vez, a postura ativa do ouvinte/leitor.
Por entender que a palavra “fala” é indefinida terminologicamente, Bakhtin emprega o termo
“enunciado” para tratar das unidades que compõem a comunicação e afirma que a língua é
empregada pelos falantes a partir de enunciados concretos e únicos, orais ou escritos, produzidos em
situações reais de comunicação verbal:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos,


proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. (...)
A indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico central no pensamento linguístico
são o resultado do desconhecimento da real unidade da comunicação discursiva – o enunciado. Porque o
discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos
do discurso. O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado
sujeito de discurso, e fora dessa forma não pode existir. (BAKHTIN, 2011, pp. 261 e 274).

Em cada ato de linguagem, os sujeitos dos discursos vão se alternando. Tradicionalmente,


concebe-se que o falante, depois de terminado o seu enunciado, dá lugar ao ouvinte, que fará uma
réplica. De uma perspectiva do referencial bakhtiniano, esse processo vai além. Além dessa
circunscrição temporal entre a produção da fala de um e a produção da fala de um e a de outro,
intermediados por recepções de cada sujeito, a própria recepção já é uma réplica:

Toda compreensão é dialógica. A compreensão opõe-se ao enunciado, assim como a réplica opõe-se a
outra no diálogo. A compreensão busca uma antipalavra à palavra do falante. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 232)

Nesse caso, a réplica do leitor se dá por pela compreensão do que foi dito pelo autor, o que
causa reflexos no entendimento, nas convicções e na maneira de pensar e agir do leitor a partir da
leitura realizada.
Tendo em vista que é por meio da criação de enunciados que as pessoas fazem o uso da
língua, é também por meio dos enunciados que são construídas as interpretações do que ocorre ao
redor das pessoas e os argumentos que serão direcionados ao outro a fim de se alcançar uma
compreensão ou uma resposta. Nesse sentido, Bakhtin afirma que:

Em cada enunciado – da réplica monovocal do cotidiano às grandes e complexas obras de ciência ou de


literatura – abrangemos, interpretamos, sentimos a intenção discursiva de discurso ou a vontade
discursiva do falante, que determina o todo do enunciado, o seu volume e as suas fronteiras.
Imaginamos o que o falante quer dizer, e com essa ideia verbalizada, essa vontade verbalizada (como a
entendemos) é que medimos a conclusividade do enunciado. (BAKHTIN, 2011, p. 281)

NARRATIVAS
1300

Para cada enunciado construído e direcionado ao ouvinte (aos ouvintes) temos uma projeto de
sentido, um argumento emanado pelo falante, que espera compreensão e/ou por uma resposta. Assim
ocorrem as situações comunicativas. Dito de outra forma, a partir da análise dos enunciados
construídos e divulgados por determinado falante é possível se obter a intenção, o sentido e/ou a
verdade que o falante almejou transmitir por meio do seu discurso.
No que se refere às capas da Revista Veja em análise, o enunciado escrito apresenta ao leitor
um modo de dizer que retrata a situação da constituição da identidade do herói X anti-herói na visão
da revista. A partir da leitura feita, o leitor dialoga com o que foi lido, de forma a avaliar se a
informação que está sendo passada está de acordo ou não com o que ele entendia previamente sobre
o assunto. Nesse momento, o leitor toma um posicionamento no sentido de concordar ou não com o
que está sendo proposto pela revista, sendo que, se concorda, ele acata o que está sendo dito, se não
concorda, ele o ignora.
Ao analisar a obra “Estrutura do Enunciado” de Bakhtin, Faraco (2009) entende que Bakhtin,
em sua teoria, nos faz refletir sobre o aparecimento de lacunas que colaboram para o (des)
entendimento do leitor. O leitor pondera o enunciado da capa da revista rotulando-o ou não como
confiável. A perspectiva construída pelo conhecimento prévio do leitor sobre as informações contidas
podem reconstruir-se em novos enunciados após a leitura/releitura do material analisado.
Em se tratando especificamente das capas da Revista Veja que possuem como tema central as
imagens do ex-presidente Lula e do juiz federal Sérgio Moro, percebe-se que são produzidos
enunciados concretos que convidam o leitor a conhecer a imagem desses personagens que é
construída pela revista e a tomar partido de um deles, deixando claro que, se você concorda com um,
automaticamente, você discorda do outro.
Interessante notar, que por meio desses enunciados, a revista constrói as biografias dos
sujeitos Lula e Sérgio Moro dentro de uma perspectiva maniqueísta, de uma dicotomia bem x mal
bastante definida. Isso faz com que, dependendo da posição ocupada pelos leitores, esses possam
passar a considerar uma das figuras como o herói, o salvador, aquele que, definitivamente, vai
consertar as coisas e colocar o país de volta na direção do crescimento e do desenvolvimento. Por
outro lado, tais enunciados fazem com que o outro personagem seja considerado um anti-herói,
aquele que tem o poder de acabar com esse plano perfeito e de fazer com que o país caminhe cada
vez mais em direção da crise. Ou o leitor assume este lado (herói), ou o leitor assume aquele lado
(anti-herói).
Em sua réplica, o leitor se posiciona de um lado ou de outro e passa a defender as ideias
difundidas pela revista ao dar vida e ideologia a este ou a aquele personagem. Os discursos divulgados
pela revista são ampliados por meio da sua difusão pelos leitores, principalmente através das redes
sociais, que se tornaram campo fértil para a manifestação do pensamento, como também para a
produção de discursos recheados de ódio e intolerância, mas esse não é o tema central do presente
trabalho.

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1301

Retomando a análise das capas da Revista Veja que mostram as imagens dos dois
personagens aqui mencionados, no que se refere às características desse gênero textual, tem-se que
a revista em questão possui como público alvo o cidadão em geral, posto que trata de assuntos
inespecíficos, relacionados à política, à economia, ao entretenimento, à saúde, à educação, à ciência,
entre outros. Tendo em vista que a capa é um dos principais meios de propaganda da revista para o
leitor não assinante, interferindo diretamente na decisão dos demais leitores de comprá-la ou não, as
capas da Revista Veja selecionadas possuem imagens e manchetes chamativas e interessantes,
revelando o seu intento de atrair a atenção do público e propiciar a venda do produto, sendo que a
escolha das imagens e dos enunciados relacionados aos dois personagens, os quais estão em
evidência no momento presente, corrobora com esse objetivo.
Ainda em análise da obra bakhtiniana, Faraco (2009) entende que, em geral, o contexto verbal
não é autossuficiente para a compreensão de uma enunciação ou de um texto verbal. Há,
consequentemente, sob este aspecto, uma diferença que permite distinguir enunciados que dependem
mais do contexto extraverbal que do contexto verbal e vice e versa. Assim, a imagem dos personagens
na capa constrói o sentido pretendido pela revista independentemente do texto escrito num primeiro
momento. Isto ocorre pelo fato de que em uma banca de jornais e revistas a primeira coisa que
chamará a atenção de um leitor não assinante é a fotografia da capa, ou seja, antes mesmo de
conseguir ler os enunciados existentes na capa da revista, o leitor repara na imagem, para então,
caso tenha chamado a sua atenção, se aproximar e ler o texto que a acompanha. Interessante
destacar que até mesmo um sujeito não letrado conseguirá decodificar a mensagem pretendida pela
revista, ainda que não consiga ler os enunciados que também se fazem presentes na capa.
Passando à análise das capas selecionadas, a primeira que aqui se traz à discussão é a da
edição 2527, datada de 26 de abril de 2017. Nela, observa-se a face do ex-presidente Lula em preto e
branco, com a expressão séria e preocupada, sendo que no meio da imagem se abre um espaço, como
se a fotografia tivesse sido rasgada em uma tira, e nesse espaço está escrita a seguinte frase em
vermelho: “Se tiver, destrua”. Tal frase apresenta uma proposta de análise ao público, que pode criar
uma narrativa biográfica pelo enunciado apresentado sobre o homem “Lula”, suas escolhas e as
consequências delas, uma vez que induz o leitor a destruir a imagem preconcebida do ex-presidente e
adotar a imagem fabricada pela capa da revista. Na parte de baixo da imagem está a manchete que diz
em fonte grande e caixa alta: “Acabou”, acompanhada do título auxiliar: “Em audiência com o juiz Sério
Moro, o empreiteiro Léo Pinheiro, da OAS, revela que recebeu ordens de Lula para eliminar provas”.
Interessante destacar que a revista traz ao menos uma característica das pessoas
mencionadas na capa, diz: “juiz Sério Moro” e “empreiteiro Léo Pinheiro”, entretanto, ao se referir ao
ex-presidente Lula, a revista diz, apenas, “Lula”. Considerando que todos esses personagens são
conhecidos do público em geral, principalmente se feita uma comparação entre o ex-presidente Lula e
o juiz Sérgio Moro, a falta da menção de um adjetivo para o primeiro soa como se o tratamento
dispensado pela revista fosse o de indiferença ou menor respeito que o tratamento dispensado ao juiz
Sério Moro.

NARRATIVAS
1302

A próxima edição que tem como assunto os personagens aqui referidos é a edição 2529, de 10
de maio de 2017. A manchete dessa edição anuncia: “O primeiro encontro cara a cara” e, logo abaixo,
são mostradas as imagens do juiz Sérgio Moro e do ex-presidente Lula, ambos de perfil, um de frente
para o outro, com máscaras de super-heróis.
Nota-se que a imagem do juiz Sérgio Moro está em um fundo azul, mesma cor que aparece em
maior destaque em sua máscara. Por outro lado, o fundo da imagem do ex-presidente Lula é vermelho,
assim como a maior parte de sua máscara. Por mais que a cor vermelha seja a adotada pelo partido
político do ex-presidente, nota-se que o objetivo da revista foi o de colocar o juiz como do lado do
“bem” e o ex-presidente como do lado do “mal” – bem/mal; céu/inferno; salvação/perdição.
Considera-se que

Assim, todo enunciado da vida quotidiana comporta [...], junto à sua parte expressa verbalmente, uma
parte extraverbal, não exprimida mas sub-entendida, formada pela situação e pelo auditório. Se não se
leva em conta este último elemento, o enunciado ele mesmo não pode ser compreendido. (VOLOCHINOV,
1930, pp. 2-3)

Volóchinov, na citação acima, aponta dois aspectos que interessam à discussão desse
trabalho. Se pensarmos no auditório do enunciado, nos veremos diante de sentidos que se constroem
por/com signos em relação metonímica com a cor vermelha. Vermelho, de um dos lugares de um
conjunto de sujeitos, é o diabo, o comunista que come crianças, o vilão insidioso. Vermelho é sangue, é
o perigo, é a cor da sinalização policial diante da cena do crime. Dessa maneira, é importante,
igualmente, a consideração que o autor russo faz sobre a relação entre signos verbais e não verbais.
As capas da revista dialogam, enquanto texto multissemiótico, com outros enunciados verbais e não
verbais.
A próxima edição sobre o tema é a 2539, do dia 19/07/2017, que tem como imagem principal a
fotografia do ex-presidente Lula com uma expressão inegavelmente preocupada no rosto, inclusive
com uma das mãos na face, em um gesto que demonstra desespero e, talvez, culpa. Logo abaixo da
imagem, observa-se a manchete em caixa alta e fonte grande, que diz: “Acabou”, com o título auxiliar:
“Lula torna-se o primeiro presidente da história do Brasil condenado por corrupção e lavagem de
dinheiro”. A revista ainda acrescenta: “Mais: ele vai para a prisão? Ele pode ser candidato a
presidente? Veja responde a todas as dúvidas sobre o futuro do petista”.
No período de janeiro a setembro de 2017 não existem capas da Revista Veja que tenham como
imagem central a fotografia do juiz Sérgio Moro, com exceção da edição 2529, conforme acima. Tal
medida pode se justificar pelo fato de que a intenção da revista talvez seja a de não expor e desgastar
a imagem do juiz. Lado outro, no ano de 2015 várias foram as capas contendo como tema central o
juiz. Nelas, percebe-se claramente o posicionamento da revista no que se refere a Sérgio Moro, que é
mostrado como o único que se preocupa com o futuro do Brasil.

NARRATIVAS
1303

Figura 1 – Capa da Revista Veja, edição 2527, Figura 2 - Capa da Revista Veja, edição 2529, Figura 3 - Capa da Revista Veja, edição 2539,
de 26/04/2017 de 10/05/2017 de 19/07/2017

Fonte: http://veja.abril.com.br/edicoes- Fonte: http://veja.abril.com.br/edicoes- Fonte: http://veja.abril.com.br/edicoes-


veja/2527/ veja/2529/ veja/2539/

Na edição 2424, de 06 de maio de 2015, o juiz Sérgio Moro aparece imponente, com o olhar em
direção ao horizonte sem fim, como se enxergando mais longe. E é justamente essa a manchete: “O
juiz Moro vê mais longe”, seguida do título auxiliar: “Por que a soltura, pelo STF, dos empreiteiros
presos na Lava-Jato não representa o fim da esperança dos brasileiros de que corruptos vão para a
cadeia”. Nota-se que a revista procura fazer com que o leitor continue apoiando o juiz, ainda que a
decisão dele de manter os empreiteiros presos tenha sido reformada pelo Supremo Tribunal Federal,
maior e mais importante corte do nosso país, da qual não há instância superior.
No que se refere à edição 2458, de 30 de dezembro de 2015, percebe-se que a foto de capa é
bem parecida com a edição comentada acima, mostrando o juiz Sérgio Moro em uma posição
parecida, com a expressão séria e com o olhar que encara diretamente o leitor. Tal edição é tida como
uma retrospectiva do ano de 2015 e, por possuir a imagem do juiz na capa, faz com que o leitor seja
levado a pensar que o ano de 2015 se resumiu à atuação do mencionado juiz. Como manchete
principal, a revista traz: “Ele salvou o ano” e como título auxiliar: “Veja pesquisou 300 sentenças que
Sérgio Moro lavrou nos últimos quinze anos e descobriu as raízes da determinação e eficiência do juiz
que deu ao Brasil a primeira esperança real de vencer a corrupção”. A partir do título auxiliar
descrito acima, nota-se que a revista coloca em evidência a sua opinião sobre o juiz, que é tido como
determinado e eficiente.
A língua é constitui os falantes (e é constituída por eles) a partir de enunciados concretos e
únicos, orais ou escritos, verbais ou não verbais. No caso das capas analisadas, há um texto
multissemiótico, no qual esses signos coexistem e interagem, constituindo um enunciado. A partir da
análise de tais enunciados é possível se obter o sentido ou a verdade que o falante almejou construir
por meio do discurso (construção da narrativa que institui os personagens), considerando-se as
relações dialógicas resultantes entre o enunciado e a realidade do sujeito falante.

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Figura 4 – Capa da Revista Veja, edição 2424, de 06 de maio de 2015 Figura 5 – Capa da Revista Veja, edição 2458, de 30 de dezembro de
2015

Fonte: VEJA, 2015, Edição 2458.


Fonte: VEJA, 2015, Edição 2424.

2. A NARRATIVA DA CONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA COMO ESCATOLOGIA POLÍTICA

O processo de construção de uma narrativa biográfica dos personagens-sujeitos-políticos


Lula e Sérgio Moro, por meio das capas da Revista Veja aqui analisadas, posiciona-se como uma
escatologia. É na direção de um “paraíso” sem corrupção, e contra o “mal” que as capas constroem
uma biografia de um juiz como heroi justiceiro e messiânico. Brüseke, quando aborda a questão da
escatologia como final dos tempos faz uma consideração que podemos tomar como suporte para essa
análise:

O problema da escatologia sempre foi o problema do falso profeta, indicando caminhos errados,
especulando, sem fundamento, sobre a vontade de Deus e prognosticando datas erradas para a
finalização do processo da salvação. (BRÜSEKE, 2004, p. 16)

É, portanto, em torno de um enunciado sobre decadência política e moral irreversível,


terminal, decadência essa atribuída a um líder político e a um ex-presidente que se situa no campo de
enunciados de defesa dos interesses do povo, que se constroi a biografia de um messias, de um
salvador da pátria. Em contraposição a um falso profeta, cujo partido se identifica pelo vermelho que
a revista associa ao mal, ao satânico, que é proposta a biografia do juiz Moro. Brüseke faz outra
consideração sobre escatologia que também nos interessa aqui:

A história, que para muitos modernos é algo que acontece mas que não revela nenhum sentido fora
daquele que os homens inventam, possui, para os cristãos, uma direção. Nesta perspectiva, estar no
mundo é, no seu início, uma punição para a não-obediência a um mandamento de Deus; falta não
cometida por mim mas herdada de meus ancestrais ou, em uma versão mais contemporânea, estar no
mundo significa ser culpado. (BRÜSEKE, 2004, p. 17)

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Se a salvação do caos e da destruição que o fim de todas as coisas representa está para além
da história e do tempo, está, também, fora da possibilidade do humano, já que somos criados e
vivemos no tempo e no espaço. Portanto, já que somente a divindade transcende ao tempo, é que pode
cumprir esse papel teleológico pós-escatológico. É como corolário do fim (enquanto término) e
instaurador do fim (enquanto finalidade) que a divindade intervém e se marca como divindade,
diferentemente do humano. Essa característica teleológica é abordade por Ferguson et alii:

Em contraste com a visão cíclica sobre a História que sustenta que o universo está preso a um ciclo de
repetição interminável, uma revelação divina especial levou os hebreus a verem a história da
humanidade como que se movendo em direção a um alvo futuro. Embora os primeiros profetas do AT350
clamassem a Deus para exercer juízo e salvação na história, logo se desenvolveu a esperança de uma
resolução histórica final, pela qual Deus baniria definitivamente o mal e estabeleceria uma era
permanente de salvação, paz e justiça. Essa perspectiva, que quase sempre considerava a salvação
somente em um mundo transcendente, era caracteristicamente apocalíptica. (FERGUSON et al., 2009,
338-339)

Podemos ver a escatologia, no campo religioso como um devir que nega a construção do
evento no presente. Ao sujeito não cabe agir. Cabe somente a submissão a uma ordem transcendente,
ética e moral que, no futuro, resultará em recompensa, exclusivamente por benevolência e graça da
divindade. No campo político, especialmente considerando-se as capas da revista analisadas, há um
diálogo entre essa perspectiva e a de uma resolução, de uma presença do elemento messiânico.
Se por um lado, é num devir que a Lava-Jato promete a redenção do país, por meio do juiz
Moro, por outro, as capas da revista utilizam-se, nos signos verbais de seus enunciados, com uma
aspectualidade perfectiva ou e tempo não marcado. Assim, na edição 2424, o título é “Moro vê mais
longe” (forma presente do indicativo, com tempo não marcado). Essa escolha resulta em um efeito de
universalização do conteúdo semântico do verbo. O juiz, desse ponto de vista, não é um sujeito que se
(re)constroi, aprendendo, ampliando a visão. Ele simplesmente vê. E vê mais longe. A modalização
realizada pelo sintagma adjetival intensificado amplifica essa visão.
Na outra capa, aqui analisada, em que o juiz é postado, o título apresenta uma aspectualidade
perfectiva (“Ele salvou o ano” – edição 2458). Nesse caso, é ação delimitada e acabada. Essa escolha
aspectual resulta, embora em um recorte temporal específico – o ano – uma conclusibilidade
irreversível e valorizada. Interessante que o conteúdo semântico do verbo alude exatamente a essa
perspectiva de sentido religioso e em um viés escatológico. “Salvou”. É o messias que realizou de
forma cabal sua missão. Reinstaura a ordem no caos. Em um percurso reverso, reordena a criação.
Se no ínicio, era o caos, e pela criação a divindade instarou uma ordem, o mal que instaurou o pecado
e a corrupção do gênero humano é enfrentado, extirpado. Em uma dimensão política, a revista aborda
diretamente uma perspectiva escatológica e messiânica.

350
Antigo Testamento. Nota dos autores.

NARRATIVAS
1306

3. NARRATIVA DA RESISTÊNCIA COMO RÉPLICA: uma outra biografia do leitor

Como resistir a narrativas escatológicas, definitivas, paralisantes de sujeitos que, no Grande


Tempo, estão constituindo (e sendo constituídos pelo) diálogo com cada ato de linguagem, inscritos
(os sujeitos e os atos) na unidade de cada acontecimento ?
Bakhtin, quando discute a narrativa da biografia, aponta um aspecto importante para
começarmos a pensar sobre a natureza dessa narrativa:

Esse outro que se apossou de mim não entra em conflito com meu eu-para-mim, uma vez que não me
desligo axiologicamente do mundo dos outros percebo a mim mesmo numa coletividade: na família, na
nação, na humanidade culta; aqui a posição axiológica do outro em mim tem autoridade e ele pode
narrar minha vida com minha plena concordância com ele. Enquanto a vida flui em indissolúvel unidade
axiológica com a coletividade dos outros, é assimilada, construída e organizada no plano da possível
consciência alheia dessa vida, é percebida e construída como uma possível narração que sobre ela o
outro faz para os outros (os descendentes); a consciência do possível narrador e o contexto axiológico
do narrador organizam o ato, o pensamento e o sentimento em que estes estão incorporados em seus
valores ao mundo dos outros; cada um desses momentos da vida pode estar na boca das pessoas [...].
(BAKHTIN, 2011, pp 140-141)

A revista, ao construir, por meio de suas capas, uma narrativa biográfica dos sujeitos-
personagens políticos Lula e Sérgio Moro, exerce esse ato axiológico de autoridade. Refrata, a partir
de seu lugar político, os sentidos, dando seu viés à narrativa biográfica que institui. No entanto, não é
somente a biografia de Lula e Sérgio Moro que as capas analisadas constroem. Há uma biografia do
leitor que essas capas também constituem. E essa biografia é constituída a partir do lugar da
escatologia política e do messianismo.
Ainda a partir da noção de enunciado concreto, a réplica do leitor, enquanto compreensão
ativa e enquanto ato responsável pode ser diversa. Uma possibilidade é que o leitor construa como
ato responsivo uma réplica que seja de assentimento a essa escatologia, que aceite sua condição
passiva de impotência histórica, já que nessa escatologia não há história, senão como manifestação
do caos, da falha e do pecado. O ato responsável do leitor, nesse caso, é alinhar-se nessa justa (no
sentido de combate medieval), entre o bem e o mal. Como espectador que apenas observa o gesto de
salvação no contexto escatológico-messiânico.
Outra possibilidade é a de que esse leitor responda ao enunciado da revista com uma
antipalavra que reafirme a condição dele como sujeito que vê de outro lugar. Cabe voltar a Bakhtin:

O fato de que o outro não foi inventado por mim para uso interesseiro mas é uma força axiológica que
eu realmente sancionei e determina minha vida [...] confere-lhe autoridade e o torna autor
interiormente compreensível de minha vida; não sou em munido dos recursos do outro mas o próprio
outro que tem valor em mim, é o homem em mim. Não sou eu mas o outro, investido de afetuosa
autoridade interior em mim, quem me guia, e eu não reduzo a meios (não é o mundo dos outros em mim
mas sou eu no mundo dos outros, familiarizado com ele); não há parasitismo. (BAKHTIN, 2011, p. 141)

NARRATIVAS
1307

Em cada ato (enquanto postupok, “ato como passo como iniciativa, movimento, ação
arriscada, tomada de posição.”[PONZIO, 2010 apud BAKHTIN, 2010, pp. 9-10), o sujeito está diante
desse dilema axiológico: responsavelmente constituir-se com essa autoridade não interesseira que
lhe dá autoridade para narrar a biografia do outro. Em complementação, julgar até que ponto a
narrativa de sua biografia, construída pelo outro tem sua autoridade assentada numa relação
axiologicamente não-interesseira. E se, em consequência dessa avaliação, permite-se ser narrado
pelo outro dessa maneira.
Assim, a condição de os leitores de se influenciarem ou não pelo enunciado da revista,
constituindo-se por um ou outro tipo de réplica, mostra a reflexão sobre valores e poderes,
exprimindo avaliação do texto lido e sob sua orientação mudar de posição de acordo com a sugestão
do enunciado.
As subjetividades dos enunciados podem sugerir ao leitor também que ao concordar com a
opinião escrita cada um pode tornar-se, por identificação, a partir de um lugar outro, constitutivo de
sua condição e de sua identidade, um poderoso herói nacional, combatendo os crimes políticos,
fazendo escolhas diferentes no momento de eleger um futuro presidente; ou se preferir continuar se
posicionando como antes correr o risco de ser vítima das “vilanias” impostas pelos anti-heróis
combatidos.
Esse segundo tipo de ato responsivo e responsável do leitor e que pode constituí-lo como
sujeito historicamente engajado na resistência a essa escatologia política pode também ser
compreendida a partir de outro conceito bakhtiniano, que é o de terceiro. Para Bakhtin

Todo enunciado tem sempre um destinatário (de índole variada, graus variados de proximidade, de
concretude, de compreensibilidade, etc.), cuja compreensão responsiva o autor da obra de discurso
procura e antecipa. Ele é o segundo (mais uma vez não em sentido aritmético). Contudo, além desse
destinatário (segundo), o autor do enunciado propõe, com maior ou menor consciência, um
supradestinatário superior (o terceiro), cuja compreensão responsiva absolutamente justa ele
pressupõe quer na distância metafísica quer no distante tempo histórico.
O autor nunca pode deixar plenamente a si mesmo e toda a sua obra feita de discurso à mercê plena e
definitiva dos destinatários presentes ou próximos (porque até os descendentes mais próximos podem
equivocar-se), e sempre pressupõe (com maior ou menor consciência) alguma instância superior de
compreensão responsiva que possa deslocar-se em diferentes sentidos. (BAKHTIN, 2011, p. 333).

A possibilidade de o leitor das capas deslocar-se, extralocalizar-se em um lugar a partir do


qual tenha condições de exercer um ato axiologicamente constitutivo de sua participação no mundo,
em todas as instâncias, inclusive a política, rompe com o congelamento estabelecido pela escatologia
e pelo messianismo.
A recusa em conferir autoridade a esse outro (a revista) que promove esse projeto de sentido
de paralisá-lo em uma obediência servil a uma narrativa biográfica que se constrói sobre ele a partir
de interesses que o desdignificam enquanto sujeito, pode permitir a antipalavra de resistência: esse
sujeito pode escolher identificar-se ou não com as narrativas sobre si. Não pode se contar a não ser
de um lugar-outro, mas pode (re/des)conhecer-se em alguns desses outros lugares.

NARRATIVAS
1308

Por fim, cabe destacar um último ponto. A revista é um veículo jornalístico. Longe de
concebermos o jornalismo como uma instância meramente informativa, queremos apontar que há
sempre um lugar (inevitável, como a qualquer outro sujeito, esfera ou instituição) único a ser ocupado
por ele e os atos responsáveis decorrentes dessa tomada de posição. Bakhtin discute brevemente a
condição do jornalista (o que pode ser estendido a um veículo jornalístico):

O jornalista é acima de tudo um contemporâneo. É obrigado a sê-lo. Vive na esfera de questões que
podem ser resolvidas em sua atualidade (ou ao menos num tempo próximo). Participa de um diálogo que
pode ser terminado e até concluído, que pode passar à ação, pode tornar-se força empírica. É
justamente nessa esfera que a “palavra própria” vem a ser possível. Fora dessa esfera a “palavra
própria” não é própria (o indivíduo está sempre acima de si mesmo); a “palavra própria” não pode ser a
última palavra. (BAKHTIN, 2017, p. 51)

É possível ligar essa discussão feita por Bakhtin à questão da narrativa biográfica que vimos
discutindo até aqui. Esse abandono do sujeito ao outro que o narra, que inscreve no mundo e no
discurso uma biografia possível daquele, conferindo-lhe autoridade, pode conferir ao falante e ao
ouvinte, uma condição de autoria. Desde que, no retorno desse lugar-outro da biografia que narra sua
conclusibilidade provisória, o sujeito invista-se de uma palavra própria que essa invenção não
interesseira do outro lhe conferiu.
Para isso, a palavra própria nunca pode ser a última. Ela participará desse movimento de
narrativas que se abraçam e que (re)tornam (os) sujeitos. Um jornalismo baseado na escatologia
política não permite esse movimento e esse diálogo. Torna os sujeitos reféns de um messianismo
determinista. Tenta construir uma autoridade dessa biografia não pelo respeito à descoberta que o
outro pode proporcionar em sua condição privilegiada de extralocalização. Torna-se αὐτός (autós),
palavra grega presente na etimologia de autoridade e que pode ser traduzida como mesmo. Aqui,
seria um mesmo que torna o sujeito refém da repetição atemporal da escatologia e da delegação
infinita ao messias. Com um deslocamento importante: ao contrário do messias que advém da
divindade, ainda que miticamente, o messias político não nasce perfeito nem universal. O autor da
narrativa fabrica sua biografia higienizada e, ao fazê-lo, fabrica, também, uma narrativa biográfica do
leitor como mero observador reverente, à espera das benesses e favores que a subserviência ao
messiânico para salvá-lo do fim do mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se pretendeu neste trabalho foi discutir a constituição, enquanto narrativa, de biografia
de dois personagens atualmente importantes e antagônicos entre si, o ex-presidente Lula e o juiz
federal Sérgio Moro, como foram construídos e apresentados ao público por uma revista de grande
circulação no país, a Revista Veja. Na sequência, procuramos discutir quais as condições axiológicas
de constituição de que o sujeito-leitor ocupe um lugar de resistência à escatologia política que a
construção maniqueísta e messiânica dessas biografias tenta estabelecer.

NARRATIVAS
1309

Bakhtin afirma que a “única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem
é o diálogo inconcluso. [...] Viver significa participar do diálogo” (BAKHTIN, 2011, p. 348). Para além dos
temores ou das nossas maneiras constitutivamente humanas de (nos) ver (n)o mundo, as escatologias
permitem deslocar a possibilidade de os sujeitos narrados se constituírem por sentidos outros. Em
escatologias não inteiramente distópicas, por conta do messianismo, há uma tentativa de delegação
de atos responsivos e responsáveis. Procuramos discutir que embora não seja possível não haver
réplica e esse ato não estabelecer um compromisso axiológico, há sempre o risco de o sujeito ser
narrado por uma biografia em que a reivindicação de autoria dessa narração recai exclusivamente
sobre o narrador, o outro.
Nas capas analisadas, há um fazer jornalístico que é político. E que é escatológico e
messiânico. Pode haver diversas maneiras de se resistir a isso. A que apontamos aqui como
possibilidade, é que o leitor pratique essa condição de olhar axiológica e extralocalizadamente para a
narrativa biográfica que estão fazendo dele, quando, aparentemente, estão construindo outras
biografias.
Enquanto projeto de sentido, a revista, ao construir uma narrativa biográfica dos personagens
Lula e Sérgio Moro, constrói, também, uma biografia que narra a si mesma como lugar, e como atos
responsivo e responsável. Constrói, igualmente, uma narrativa sobre esse leitor. Um primeiro ato de
resistência pode ser, exatamente, esse leitor situar-se num lugar outro a partir do qual possa (se)
ver sendo narrado quando parece que é somente sobre outros que os enunciados estão falando.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de
Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017.
_____. Estética da Criação Verbal. Tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2011.
_____. Para uma Filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BRÜSEKE, Franz Josef. Romantismo, mística e escatologia política. Lua Nova [online]. 2004, n.62, pp.21-44. ISSN 0102-
6445. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452004000200003.
FARACO, C. A. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
FERGUSON, S. B. et. al. Novo dicionário de teologia. São Paulo: Hagnos, 2009.
MORAES, Vanessa Daniele. Anacronismo, corpo e memória nas imagens escatológicas de Francisco Toledo. 29 Revista
GEARTE, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 29-40, jan./abr. 2017. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/gearte . Acesso em 28 set.
2017.
REVISTA VEJA. São Paulo: Ed. Abril, ano 48, n. 18, ed. 2424. 06 mai. 2015.
_____. São Paulo: Ed. Abril, ano 48, n. 52, ed. 2458. 30 dez. 2015.
_____. São Paulo: Ed. Abril, ano 50, n. 17, ed. 2527. 26 abr. 2017. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/edicoes-
veja/2527/>. Acesso em 29 set. 2017.

NARRATIVAS
1310

_____.São Paulo: Ed. Abril, ano 50, n. 19, ed. 2529. 10 mai. 2017. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/edicoes-
veja/2529/>. Acesso em 29 set. 2017.
_____.São Paulo: Ed. Abril, ano 50, n. 29, ed. 2539. 19 jul. 2017. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/edicoes-
veja/2539/>. Acesso em 29 set. 2017.
VOLOCHINOV, V. N. A estrutura do enunciado. Trad. de Ana Vaz, para fins didáticos, com base na tradução francesa de
Tzevan Todorov (“La structure de l’énoncé, 1930). In: TODOROV, T. Mikhail Bakhtine: le principe dialogique. Paris: Seuil,
2005. p. 287-316.

NARRATIVAS
RESUMO
1311

A RÉPLICA DA ARTE COMO ATO Palavras-Chave:

RESPONSÁVEL EM
RESISTÊNCIA À ESCATOLOGIA
POLÍTICA

VILLARTA-NEDER, Marco Antonio 351

SILVA, Jaqueline Araújo da 352

TEIXEIRA, Gislaine Aparecida 353

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

P
or um viés bakhtiniano, buscamos através desse trabalho pensar as manifestações artísticas
como forma de resistência ao que podemos chamar de escatologia política. O termo
“escatologia política” é aqui pensado como a ideia de fim dos tempos da política visto as várias
narrativas midiáticas que tem abordado a crise política pela qual o país está passando, com
escândalos de corrupção, impeachment, denúncias contra o atual e ex-presidentes aparecendo,
população se mobilizando pedindo por Diretas Já.
Nesse contexto conturbado, a mídia tem adotado uma cobertura extensiva que chega ao limite
da saturação do interesse das pessoas e tem levado a um descrédito e desinteresse pela participação
política dos cidadãos.
Em alguns locais do país, entre os quais o Estado do Rio de Janeiro, tem havido impactos da
crise política e econômica na sobrevivência de servidores públicos. As consequências que implicam
em atingir a satisfação das necessidades mínimas de sobrevivência produzem sentidos mais
persuasivos quanto à inevitabilidade da percepção de uma escatologia política. Mas, em contrapartida,

351 Doutor em Letras. Prof. Adjunto do Departamento de Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Lavras. Coordenador do GEDISC
(Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin). E-mail: villarta.marco@del.ufla.br
352
Graduanda em Letras Inglês/Português – Universidade Federal de Lavras (UFLA) – membro do Grupo de Estudos Discursivos sobre o
Círculo de Bakhtin (GEDISC). Bolsista PIBIC-CNPq. E-mail: jakearaujo28@gmail.com
353
Graduanda em Letras Inglês/Português – Universidade Federal de Lavras (UFLA) – membro do Grupo de Estudos Discursivos sobre o
Círculo de Bakhtin (GEDISC). Bolsista PIBID-CAPES. E-mail: gislaine.teixeira77@gmail.com

NARRATIVAS
1312

como resistir a tudo isso? Como pensar a arte como forma de demonstrar que não estamos em um
processo escatológico na política? Para discutir essas indagações, utilizaremos como exemplo as
manifestações artísticas, especificamente a do Theatro Municipal do Rio de janeiro, que tem resistido
as várias dificuldades através da arte:

Funcionários do Theatro Municipal do Rio de janeiro protestaram hoje (9) contra a crise financeira da
instituição com um espetáculo de ópera e música clássica na escadaria no prédio, na Cinelândia, centro
da capital fluminense. O corpo da orquestra, do coro, bailarinos e técnicos administrativos da instituição
encantaram a multidão que se juntou ao redor do teatro. Entre uma peça e outra, os artistas alertaram
a população sobre os atrasos salariais e a falta de investimentos que vêm deteriorando o funcionamento
do teatro. (EBC, 2017, p. 1)

No caso dos artistas e funcionários do Theatro Municipal do Rio de Janeiro a resistência está
sendo exercida por meio da arte. Para Bakhtin a arte é vista como um ato de responsabilidade, como
uma forma de diálogo com a vida. Vida e arte não são vistas de forma individual, mas são
acontecimentos singulares na vida do sujeito, pensar a arte como forma de resistência é pensá-la
como um ato responsável, que não está fora da vida de quem a interpreta, mas está na unidade do
acontecimento. Quando um sujeito interpreta, utiliza-se de todos os tipos de linguagem, fala por meio
dos movimentos que produz. A arte é, assim, um acontecimento que, em sua unidade, congrega os
sujeitos que se constituem pela alteridade e, ao mesmo tempo, faz, performativamente 354 , esse
sujeito acontecer como sentido – ainda que provisoriamente - concluso, acabado. Essa instauração do
estético como acabamento do sujeito não lhe dá álibi, no entanto: ele acontece pela arte, mas fora
dela precisa responder pela vida. Se o sujeito utiliza a arte como forma de manifestação, precisa
responder na unidade da responsabilidade com sua vida. Portanto, quando um grupo artístico resolve
utilizar da arte para resistir a política, ele responsabiliza sua vida pelos seus atos e podemos assim
confirmar que a arte é uma forma de resistência.
Para além disso, visamos refletir também sobre os lugares que esses sujeitos artísticos
ocupam na sociedade: de onde falam e para quem falam? O que permite a eles visualizarem os seus
atos através de um outro olhar? A análise será fundamentada nos conceitos bakhtinianos de
enunciado, exotopia/extralocalização355 e ato responsável.

1. SOBRE LINGUAGEM, ACONTECIMENTO E ATO RESPONSÁVEL

Antes de falar em arte é preciso falar em linguagem. A relação entre arte e linguagem é de
uma mútua constituição. A linguagem constitui a arte e a vida, sendo que essas são também

354
Utilizamos esse termo em uma dupla direção: tanto no sentido de ato de linguagem que se realiza por seu próprio dizer, quanto pelo sentido
de se apresentar, de encenar um espetáculo.
355
Os termos extralocalização e exotopia representam diferentes traduções da palavra russa vnienakhodímost [вненаходимост]
(também traduzida como distância). Preferimos, aqui, o termo extralocalização, mas por questões de uso do termo exotopia em textos citados
e para facilitar o diálogo com o leitor, utilizaremos, paralelamente esta segunda tradução.

NARRATIVAS
1313

constituídas pela linguagem. Assim como arte e vida se constituem uma à outra. Não há como pensar
a linguagem, o ato de fala ou a enunciação como algo único, individual, como discorre Volóchinov:

[...] a personalidade falante, tomada por assim dizer de dentro, é inteiramente um produto das inter-
relações sociais. Seu território social não é apenas a expressão exterior, mas também a vivência
interior. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 211)

Dessa perspectiva, a situação social é elemento constitutivo da interação dos sujeitos na


enunciação, da sua expressão e da objetivação no enunciado. Sendo assim, a arte como manifestação
social requer um contexto, requer processos sócio-históricos-culturais que irão resultar na
representação artística. Quando um grupo teatral escolhe dramatizar uma peça, um romance, uma
cena, a escolha realizada tem um viés ideológico que reproduz no espetáculo uma resposta do
interlocutor, que irá reagir ao todo de acordo com a situação social que o cerca.
O ato realizado pelos artistas e funcionários do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sob um
viés bakhtiniano remete a algumas discussões importantes para o âmbito desse texto. O Portal R7
noticia assim esse ato:

Integrantes do coro, do balé e da orquestra sinfônica, além de funcionários administrativos do Theatro


Municipal do Rio de Janeiro se reuniram nas escadarias da instituição, na Cinelândia, região central do
Rio, nesta terça-feira (9). O encontro é um protesto contra o atraso e falta de pagamento de salários
aos servidores. O teatro, assim como os funcionários, são de responsabilidade do Governo do Estado,
que desde o final do ano passado enfrenta problemas para quitar a folha dos funcionários públicos.
O ato reúne artistas em um concerto aberto e pretende chamar atenção da população para a situação
enfrentada por servidores e pelo próprio Theatro Municipal. Os funcionários da instituição estão há dois
meses sem receber salário e não sabem quando ou se irão receber o 13º de 2016. (PORTAL R7, 2017, p. 1)

Os funcionários da instituição estão há dois meses sem receber salário e não sabem quando
ou se irão receber o 13º salário de 2016. Com a manifestação o grupo conseguiu arrecadar “cerca de
10 toneladas de alimentos não-perecíveis e materiais de limpeza foram doados por dezenas de
instituições, empresas e pessoas físicas.” (THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO, 2017). O ato
realizado pelos funcionários contou com a participação de um grande número de pessoas. Foram
realizadas manifestações através de palavras de ordem, cartazes e além disso uma orquestra tocou
nas escadarias do teatro, e o que torna interessante notar é que entoaram como primeira música o
hino nacional brasileiro, demonstrando a resistência quanto ao descaso e ao desmonte que os
governos municipal, estadual e federal promovem com relação à cultura. Há funcionários que, em
função dos atrasos de pagamentos, não têm tido condição financeira de se alimentar ou se deslocar
para o local de trabalho.
Podemos, inicialmente, situar o ato público desses servidores como acontecimento, como
evento no mundo ao qual os sujeitos em interação atribuem sentidos e que dá sentido a esses sujeitos,
em diálogo com a natureza da interação que os constitui e que também é constituída por eles. Para
Bakhtin, considerar o que ocorre no mundo não corresponde a situar fragmentariamente um recorte

NARRATIVAS
1314

do tempo. Para o autor russo, há uma inter-relação indissociável entre tempo e espaço, que se torna
necessária para uma consideração mais acurada da questão. É essa inter-relação que ele estuda nas
obras de Goethe. Para Bakhtin fazer essa análise mais profunda implica

A aptidão para ver o tempo, para ler o tempo no espaço, e, simultaneamente, para perceber o
preenchimento do espaço como um todo em formação, como um acontecimento, e não como um pano de
fundo imutável ou como um dado preestabelecido. (BAKHTIN, 2011, p. 225)

Portanto, uma primeira atenção para com a noção de acontecimento toca nessa complexa
relação entre tempo e espaço e com a irrupção de um evento que não independe dos sujeitos que o
veem, que o leem e que são inscritos no tempo e no espaço também por ele. Geraldi, ao situar o
conceito de acontecimento em Bakhtin, diz que

A nova unidade real do mundo deixa de ser produto de mente abstrata (mundo das ideias) para ser
experimentada no concreto. Partindo desse pressuposto, Bakhtin começa a estudar os romances de
Goethe, mostrando a noção de acontecimento como componente essencial e irremovível, e não mais
fragmentos de tempos determinados. A noção de acontecimento adquire essencialidade única, unitária,
geograficamente localizada, uma vez que o acontecimento é da ordem do humano, interfere no humano e
na natureza justamente por ser geograficamente localizado. (GERALDI apud DAVID, SD, p. 2).

Essa é uma primeira dimensão que nos interessa colocar para assentar a análise que
pretendemos nesse texto. Não há um fato, uma ocorrência dada, abstrata, quase um destino. O
acontecimento constitui o humano porque, como qualquer outro evento de linguagem, é
representação, como mediação, da possibilidade de o humano ver-se no mundo e de ver o mundo. E,
na medida em que irrompe nessa inter-relação espaço-temporal (cronotópica, em termos
bakhtinianos), tal irrupção é constituída pelas maneiras por meio das quais o humano a recorta no/do
tecido do mundo, que só pode existir para o humano, na unidade que congrega essa interação entre
sujeitos e de sujeitos situados nessa localização geográfico-temporal.
Outro aspecto dessa noção que ainda queremos destacar é a inconclusibilidade do
acontecimento. Essa relação dinâmica entre sujeitos em interação, em mútua constitutividade, na
unidade espaço-temporal do acontecimento, constrói inteirezas, acabamentos provisórios e instáveis.
Bakhtin faz uma consideração sobre essa inconclusibilidade quando diz que

Não posso viver do meu próprio acabamento e do acabamento do acontecimento, nem agir; para viver
preciso ser inacabado, aberto para mim – ao menos em todos os momentos essenciais -, preciso ainda
me antepor axiologicamente a mim mesmo, não coincidir com a minha existência presente. (BAKHTIN,
2011, p. 11)

Uma das maneiras de se entender essa inconclusibilidade dos sujeitos e dos acontecimentos é
a necessária extralocalização/exotopia que constitui os sujeitos. É de um lugar externo ao que ocupa
no mundo naquele momento (portanto, numa relação espaço-temporal, já que o lugar como espaço no
mundo está associado a uma permanência provisória, de caráter temporal) que o sujeito pode se

NARRATIVAS
1315

atribuir acabamento, enfim, de onde pode ser ver e se atribuir uma inteireza. Há um degradé de
movimentos e de olhares: como esse sujeito se vê (eu-para-mim), como vê o outro (outro-para-mim)
e como representa a visão que o outro tem de si (eu-para-o-outro)356.
Além disso, pode-se considerar uma extensão teórica do conceito dessa arquitetônica
proposta por VILLARTA-NEDER (2017) que inclui como o sujeito vê o acontecimento (acontecimento-
para-mim), como o sujeito representa a visão do outro sobre o acontecimento (acontecimento-para-
o-outro) e, finalmente, como o sujeito representa a visão do outro sobre a visão que tem do
acontecimento (acontecimento-do mim-visto-pelo-outro).
Feita essa discussão sobre a noção de acontecimento, vamos, agora, prosseguir em direção à
noção de ato. Pretendemos caracterizar o ato público dos artistas e funcionários do Theatro Municipal
do Rio de janeiro em uma concepção bakhtiniana e, a partir disso, discuti-lo como resistência.
De um ponto de vista bakhtiniano, o acontecimento torna-se ato. E não ato como um agir
abstrato. Para Bakhtin, esse ato é postupok. Ponzio discorre sobre essa concepção de ato em sua
introdução para a edição brasileira de Para uma filosofia do Ato: ‘“Postupok”, ato, contém a raiz
“stup” que significa “passo”, ato como um passo, como iniciativa, movimento, ação arriscada, tomada
de posição. (PONZIO in BAKHTIN, 2010, pp. 9-10).
Para a discussão que desenvolvemos aqui, o ato público é postupok. Para entendê-lo assim,
vamos apontar três aspectos:

▪ A relação entre ato e seu relato como postupok. Para ilustrar esse aspecto, cabe levar em
conta o que diz Michael Holquist em seu prefácio da edição inglesa de Para uma filosofia do ato,
traduzida para o português:

Para Bakhtin, a unidade de um ato e seu relato, uma ação e seu significado, se preferir, é algo que nunca
é um a priori, mas que deve sempre e em toda parte ser conquistado. O ato é uma ação, e não um mero
acontecimento (como em ‘uma maldita coisa depois da outra’), apenas se o sujeito de tal postupok, de
dentro de sua unicidade radical, tece uma relação com ele em seu relato dele. A responsabilidade, então,
é a fundação da ação moral, o modo pelo qual nós superamos a culpa da cisão entre nossas palavras e
nossas ações, mesmo que não tenhamos um álibi na existência – de fato, porque não temos tal álibi: ‘É
apenas o meu não-álibi no Ser que transforma uma possibilidade vazia em um ato ou ação responsável e
real...’ (p. 44 da presente tradução). (HOLQUIST in BAKHTIN, 1993, pp. 9-10)357

Assim, se considerarmos o acontecimento na dimensão da tomada de posição dos artistas e


funcionários e de seu relato por eles (como vamos discutir mais abaixo por meio da análise da nota

356
Essas categorias correspondem ao que Bakhtin chama de arquitetônica.
357Bakhtin, ainda diz que “Um ato realizado é ativo no produto único real que ele produziu (numa ação real, atual, numa palavra enunciada, num
pensamento que foi pensado, onde, além disso, a validade em si, abstrata, de uma lei jurídica real é apenas um momento constituinte).”
(BAKHTIN, 1993, p. 44).

NARRATIVAS
1316

emitida por eles), podemos considerar o que fizeram do ponto de vista de um ato responsável, que os
situa no espaço-tempo (cronótopo) do acontecimento e da relação deles com os outros sujeitos
(inclusive em relação a que e a quem eles resistem).
▪ A extralocalização/exotopia que os constitui. Um dos aspectos que podem ser apontados
axiologicamente em relação ao ato responsável é que, em decorrência de o sujeito só poder se
atribuir acabamento a partir de um lugar externo ao que ocupa, a esse lugar extralocalizado,
exotópico, esse lugar-outro que o constitui (e que, já que é diferente do lugar que ocupa, é –
atual ou virtualmente ocupado por outro sujeito) é responsável por seu acabamento
(provisório). Igual e complementarmente, o lugar que ocupa também será uma extralocalização
a um outro lugar que será constitutivo para o acabamento de um outro sujeito.

▪ Ato enquanto enunciado. O referencial epistêmico-axiológico bakhtiniano assenta-se sobre a


concepção de que a relação dizer-fazer é mutuamente constitutiva. O ato de dizer ocorre com o
falante investindo-se de um agir sobre o outro, sobre si e sobre a própria natureza da
interação que os congrega e os constitui. De maneira reversa e complementar, o fazer também
é dizer-se, dizer de si, sobre si, sobre o outro. Sendo assim, podemos considerar o ato como
enunciado e entender sobre ele o que Volóchinov considera sobre este último conceito:

[...] todo enunciado da vida quotidiana comporta [...], junto à sua parte expressa verbalmente, uma parte
extraverbal, não exprimida mas sub-entendida, formada pela situação e pelo auditório. Se não se leva
em conta este último elemento, o enunciado ele mesmo não pode ser compreendido. (VOLOCHINOV, 1930,
pp. 2-3)

Um enunciado é sempre um dizer que responde a um dizer prévio e que suscita um dizer.
Podemos considerar, nessa relação entre dizer e fazer, que um dizer-fazer responde a um dizer-fazer
já realizado e suscita um dizer-fazer. E que essa interação é formada pela situação e pelo auditório.
Como réplica ou dizer-fazer que provoca réplica, o enunciado institui uma responsabilidade. Seja em
relação ao enunciado anterior para o qual se constituiu como auditório, seja para o auditório que
instiga construir uma réplica. Dessa perspectiva, podemos considerar o ato público dos artistas e
funcionários do Theatro Municipal do Rio de Janeiro como enunciado.

2. ESCATOLOGIA POLÍTICA E RESISTÊNCIA

O termo escatologia alude a dois campos de saberes e práticas. Uma delas é a que trata dos
dejetos e excrementos e dos sentidos que se produzem sobre os corpos e como esses corpos, pelos
enunciados metonímicos de seus resíduos, significam na interação entre sujeitos, numa situação
sócio-histórico-cultural. A noção de higiene mobiliza essa relação com o corpo. É o que Moraes
aponta:
Toda excreção fisiológica tende a ser concebida como algo nojento e distante de uma “boa” higiene. O
que sai de nosso corpo é percebido como imundo e, isso nos leva a pensar que estamos nos

NARRATIVAS
1317

distanciando cada dia mais daquilo que é natural (e que, outrora, fora visto com naturalidade). (MORAES,
2017, p. 29)

Constituído ora por uma relação dicotômica entre natureza e cultura, ora por uma intrincada
rede de classificações, hierarquias e categorias axiológicas e conceituais, esse sentido de escatologia
dialoga com várias esferas de atividade, inclusive com a política. Podemos dizer que, no contexto
histórico recente, há uma escatologia política no Brasil, já que os complexos movimentos entre
poderes, instituições e agentes menos obviamente envolvidos nos jogos de poder, tendem,
principalmente a partir da mídia, a gerar uma visão distópica acerca da possibilidade de exercício de
cidadania e de governança democrática da sociedade. Além disso, produzem, também, um sentido de
metonimizar as práticas políticas de representantes políticos dos três poderes constituídos da
República como um fazer sujo, índice de produção de excrementos, dejetos.
Outro sentido de escatologia é o de final dos tempos . De cunho originariamente teológico, tal
concepção assenta-se, principalmente, no contexto judaico-cristão, a uma inter-relação entre uma
distopia apocalíptica e uma utopia messiânica. Assim, à inevitabilidade de uma entropia cosmológica,
segue-se uma redenção, por meio de uma figura transcendental, representando ou constituindo a
própria presença da divindade. Podemos ver essa questão apresentada por Brüseke:

O escaton, a salvação, é o que move o judaísmo-cristianismo-islamismo, é sua essência e sua azão de


ser. A escatologia é a doutrina das últimas coisas e do fim da história. Acredita-se que, depois do juízo
final e o fim do mundo, inicia-se uma nova vida que realizaria as esperanças religiosas. (BRÜSEKE, 2004,
p. 16)

Em primeiro lugar, há uma teleologia que sustenta o modelo. Por um lado, a condição humana
levaria, inevitavelmente, a esse estado degradante e irreversível da destruição de todas as coisas.
Por outro, constituindo uma cosmologia cíclica, se o a divindade foi a única capaz de criar a partir do
nada, será novamente a única capaz de, após o retorno da criação ao nada de onde veio, restaurá-la
e, enfim, purifica-la, expurga-la da imperfeição e do erro. Por isso, essa redenção vem acompanhada
de um Juízo Final, um ordenamento classificatório que estabiliza o bem e confina definitivamente o
mal.
Esse conceito amplia-se para questões políticas e socioantropológicas, dentre outras.
Podemos perceber essa visão no contexto histórico brasileiro atual. De um lado, há uma percepção,
cada vez mais difundida de degradação irreversível de todas as instituições e da própria possibilidade
de a sociedade brasileira subsistir com valores éticos básicos. De outro lado, há um investimento
simbólico crescente de segmentos da sociedade em diferentes figuras políticas que, do ponto de vista
das crenças e expectativas desses segmentos – trariam a estabilidade, a restauração e a ordem,
punindo, inclusive, aqueles responsáveis pela corrupção econômica, política e moral. Neste texto,
nossa opção é por esse sentido de escatologia, como final dos tempos.
Essa associação de uma entropia irreversível e de um messianismo catártico cumprem o
papel de circunscrever o sujeito em uma impotência. Não lhe cabe fazer nada, já que, no que se refere

NARRATIVAS
1318

ao final do cenário político e do próprio tecido da sociedade, essa dimensão ultrapassa sua
capacidade de ação. No que se refere à atuação de um messias, também não cabe a esse sujeito, agir,
senão esperar e cumprir a sentença de um julgamento final. É de um âmbito transcendente que esse
messias se inscreve numa pós-história desse sujeito.
Como resistir a essa distopia paralisante e a essa utopia absoluta?
Em primeiro lugar, se tomarmos essa narrativa escatológica como um enunciado. Se
entendermos que nenhum dizer-fazer deixa de constituir uma réplica a outro enunciado, enquanto
outro dizer-fazer e que todo enunciado suscita uma resposta, estaremos situando a narrativa da
escatologia política nessa dimensão dialógica constitutiva dos sujeitos, dos sentidos e dos
acontecimentos. Uma vez encarada como enunciado, em relação a essa narrativa da escatologia
política poderemos interrogar sobre o auditório a quem se dirigiu o enunciado escatológico e a qual
auditório se remeterá nossas possíveis réplicas.
É importante lembrar que para o Círculo de Bakhtin, a própria compreensão já é uma réplica,
dentro da interação e do diálogo: “A compreensão opõe-se ao enunciado, assim como a réplica opõe-
se a outra no diálogo. A compreensão busca uma antipalavra à palavra do falante.” (VOLÓCHINOV,
2017, p. 232). Há, assim, uma dupla instância dialógica da compreensão: uma, que compõe o próprio
movimento do enunciado, constituindo a réplica a um enunciado anterior e/ou um dizer-fazer que vai
suscitar outra resposta; e outra instância, que é a compreensão do funcionamento do enunciado. Dar
como réplica à narrativa da escatologia política a compreensão de que é não é uma sentença divina,
mas um enunciado, advindo como réplica e prenhe de outras réplicas, dá ao sujeito a extralocalização
necessária para se dar um outro acabamento que não concorde com a imobilidade que lhe está sendo
imposta. Visto dessa maneira, uma réplica possível é a de um enunciado de resistência, como
antipalavra ao enunciado da escatologia política.
Resistência, no seu termo geral, consiste em se opor/resistir contra algo. BOSI (1996, p.11)
discorre que “o seu sentido mais profundo apela para a força da vontade que resiste a outra força,
exterior ao sujeito. Resistir é opor a força própria à força alheia.”.
Podemos considerar, também, que o enunciado da escatologia política consolida-se como
enunciado hegemônico, congregando um conjunto de forças políticas, econômicas, institucionais,
religiosas e culturais que propõem, como verdade reificada, seu enunciado. O conceito gramsciano de
hegemonia pode efetivamente nos ajudar a pensar essas relações de sentido. Moraes o sintetiza:
Segundo Gramsci, a hegemonia é obtida e consolidada em embates que comportam não
apenas questões vinculadas à estrutura econômica e à organização política, mas envolvem também,
no plano ético-cultural, a expressão de saberes, práticas, modos de representação e modelos de
autoridade que querem legitimar-se e universalizar-se. Portanto, a hegemonia não deve ser entendida
nos limites de uma coerção pura e simples, pois inclui a direção cultural e o consentimento social a
um universo de convicções, normas morais e regras de conduta, assim como a destruição e a
superação de outras crenças e sentimentos diante da vida e do mundo (MORAES, 2010, p. 55)

NARRATIVAS
1319

Há no enunciado hegemônico das forças que proclamam a escatologia política, um dizer-fazer


que se articula em torno de uma produção de sentidos sobre prioridades de governança e por uma
desmontagem infraestrutural. Assim, enquanto de um lado há um discurso de prioridade para
justificar, por conta da crise a prioridade em honrar o serviço dos juros e o pagamento de títulos da
dívida pública, por outro, de maneira complementar, há práticas de governo que não disponibilizam os
recursos necessários para os serviços e ações contrárias a essa mentalidade funcionarem. É um
enunciado de fato consumado. No caso do Estado do Rio de Janeiro, a relação entre crise política,
crise econômica, falência do Estado e não cumprimento das obrigações sociais e trabalhistas mínimas
tem se assentado, com uma intensa cobertura midiática, nessa direção.
No entanto, por mais monológico que seja (ou pareça ser) um enunciado (como é o caso do
enunciado da escatologia política, que tenta interditar a voz do sujeito submetido por ele), na dinâmica
da temporalidade em movimento, no Grande Tempo, esse ato monológico está em diálogo com outros
atos. Bakhtin pondera sobre essa relação entre monólogo e diálogo: “Pode-se dizer que cada réplica é
monológica em si (um diálogo mínimo), e cada monólogo é a réplica de um grande diálogo (da
comunicação discursiva de um dado campo).” (BAKHTIN, 2011, p. 323).
Assim, ao enunciado da escatologia política é possível colocar em diálogo um enunciado de
resistência. Podemos entender esse enunciado, como um dizer-fazer contra-hegemônico, se
trouxermos esse conceito de Gramsci. Moraes discorre sobre o conceito gramsciano:

Gramsci (1999, p. 314-315) situa as ações contra-hegemônicas como “instrumentos para criar uma nova
forma ético-política”, cujo alicerce programático é o de denunciar e tentar reverter as condições de
marginalização e exclusão impostas a amplos estratos sociais pelo modo de produção capitalista. A
contra-hegemonia institui o contraditório e a tensão no que até então parecia uníssono e estável.
(MORAES, 2010, p. 73).

Entendemos que o enunciado do ato público dos artistas e funcionários do Theatro Municipal
do Rio de Janeiro caracteriza-se como resistência, como enunciado contra-hegemônico ao enunciado
da escatologia política. Vamos aprofundar essa relação no próximo item desse texto.

3. NARRATIVA DA ARTE COMO RESISTÊNCIA

Colocadas as bases teóricas e axiológicas de nossa reflexão, nos deteremos agora no ato
público realizado pelos artistas e funcionários do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A primeira
questão a ser tratada é a característica do ato público enquanto enunciado que se constrói, na
relação com outros enunciados, como narrativa. Para isso, inicialmente, vamos retomar as
considerações de Holquist, em seu prefácio da edição norte-americana do livro Para uma filosofia do
ato, de Bakhtin:

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1320

O ato é uma ação, e não um mero acontecimento (como em ‘uma maldita coisa depois da outra’), apenas
se o sujeito de tal postupok, de dentro de sua unicidade radical, tece uma relação com ele em seu relato
dele. (HOLQUIST in BAKHTIN, 1993, pp. 9-10).
O ato responsável não é somente um agir, mas, como agir (diríamos, do ponto de vista
assumido nesse trabalho, como dizer-fazer) que se relata na interação. Agir é fazer, dizer e contar
sobre si, sobre a visão que se tem do outro e da visão que se tem da recepção do outro, de sua
réplica (arquitetônica bakhtiniana). É, também, da perspectiva complementar de Villarta-Neder (2017),
relatar a visão que se tem de como o eu e outro veem esse próprio agir. É, portanto, construir uma
narrativa, no interior da qual somos autores e personagens.
A caracterização do ato público permite discutir essas questões. A descrição do Portal G1
descreve sucintamente o momento propriamente artístico do ato:

Bailarinos, coro e orquestra do Municipal faziam a apresentação de obras de Beethoven, Orff e Bizet no
Centro do Rio. O evento atraiu uma multidão às escadarias do Theatro, o que interrompeu o trânsito na
Rua Evaristo da Veiga. (PORTAL G1, 2017, p. 8)

Interessante notar como o veículo midiático constrói esse enunciado. Em primeiro lugar, a
aspectualidade imperfectiva da sentença inicial remete o leitor para o período seguinte. Neste, com
aspectualidade perfectiva, destacam-se na narrativa dois aspectos: o da multidão que compareceu e a
interrupção do trânsito na Rua Evaristo da Veiga. O enunciado dialoga, entre outros, com uma
percepção de que o trabalho dos artistas é elitizado. Pode parecer pouco relevante apresentar Orff e
Bizet (será que são autores conhecidos dos leitores do portal?) no centro do Rio. A interrupção do
trânsito pode evocar essa irrelevância, algo de desordem na organização da cidade, como pode,
inversamente, situar a importância e a receptividade das pessoas que compareceram (multidão).
Comparando a informação com outros veículos, pode-se entender o acontecimento do ato
público. O evento coincidiu ocorreu no aniversário de 108 anos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
As portas do teatro foram abertas – gratuitamente – ao público e, em seu interior, no palco,
apresentou-se o corpo de baile. Depois, os artistas e funcionários deslocaram-se para as escadarias
externas do teatro, onde o coro e a orquestra se apresentaram e também quando foi lido um
manifesto e foram feitos explicações e posicionamentos, constituindo um protesto contra o atraso
nos salários, fruto da (má) gestão e da concepção política do governo municipal, estadual e do
governo federal. Depois foi cantado o hino nacional brasileiro. A fotografia abaixo ilustra um desses
momentos:
Figura 11 - Ato público.

NARRATIVAS
1321

Fonte: EBC - Agência Brasil


Quando os funcionários do Theatro Municipal do Rio optam por entoarem o hino nacional, não
foi uma escolha aleatória. Historicamente a entonação do hino nacional é realizada como forma de
apontar o patriotismo dos cidadãos, de manifestação. Ele representa um enunciado que busca
congregar a identidade da nação. Há vários elementos contra-hegêmonicos nesse enunciado e nesse
ato responsável.
O primeiro deles é em relação à situação de penúria e de desprestígio pessoal e profissional
dos artistas e da instituição Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Comemorar um aniversário
centenário da instituição em comunhão com o público em geral, que, muitas vezes, por questão de
condição social e econômica, não tem acesso aos espetáculos instaura uma réplica humanizante, um
ato responsável, ética e esteticamente no diálogo com o enunciado monológico e distópico da
escatologia política. Porque até mesmo a utopia messiânica alija a arte como resposta. Da perspectiva
dessa escatologia, esse messias há de ser o “bom administrador”, capaz de “cortar na carne” os
gastos públicos, restaurando a “ordem política, econômica e social”. A réplica contra-hegemônica
institui outra narrativa, a da relação de um relato que o ato responsável põe em movimento.
O segundo aspecto refere-se a uma tradição hegemonicamente de estilo marcial, mais afeita
à execução do hino por bandas militares. Até o final do regime militar de 1964 eram proibidas
execuções do hino que não fossem em uníssono. A execução por parte de uma orquestra e um coro
com formação musical erudita de excelência dá à execução do hino nacional um caráter de ato
estético. Refratar a execução não deixa de ser a arte sendo constituída pela linguagem, linguagem
essa que transmite uma reação a situação mais imediata que os cerca. Podemos entender essa
resistência tomando o que Volochinov discute sobre a compreensão no processo dialógico:

Compreender um enunciado alheio significa orientar-se em relação a ele, encontrar para ele um lugar
devido no contexto correspondente. Em cada palavra de um enunciado compreendido, acrescentamos
como que uma camada de nossas palavras responsivas. Quanto maior for o seu número, quanto mais
essenciais elas forem, tanto mais profunda e essencial será a compreensão. (VOLOCHINOV, 2017, p. 232)

Sendo assim, quando um sujeito se posiciona, reage em relação a algo, ele está expressando a
sua compreensão quanto à enunciação que o constitui e na qual ele está envolvido, “a compreensão
opõe-se ao enunciado, assim como uma réplica opõe-se a outro no diálogo. A compreensão busca uma
antipalavra à palavra do falante.” (Bakhtin, 2017, p. 232). Opor à palavra uma contra palavra requer

NARRATIVAS
1322

um ato responsivo e responsável, pois além de se posicionar no diálogo, o sujeito estará manifestando
suas crenças, a ideologia. O posicionamento do grupo de funcionários do Theatro Municipal do Rio de
Janeiro quanto às decisões governamentais consiste num ato responsável: ao assumirem as palavras
na manifestação, eles não somente colocaram em jogo a contra palavra em relação ao governo como
também resistiram a ele através da arte.
Em um dos momentos do manifesto dos servidores houve a leitura da seguinte nota:

Acreditamos que, juntos e contando com a compreensão e o apoio do público e de toda a sociedade, nos
seja possível atravessar esse terrível momento na história do nosso Estado. Nas escadarias do Theatro
Municipal, um dos mais importantes celeiros de arte clássicas do país, artistas e técnicos-
administrativos se manifestarão através de sua arte! Orquestra, Coro e Corpo de baile se apresentarão
nas escadas e estarão coletando doações ou alimentos não perecíveis para que possam ser revertidos
em cestas básicas de alimentação e garantir um mínimo de dignidade aos servidores do Theatro
Municipal. Somos a cultura pública, trabalhamos com a arte e merecemos ter nossos salários pagos.
(Trecho publicado pelo Sintac - Sindicato dos Trabalhadores em Entidades Públicas da Ação Cultural)

A escolha de palavras utilizadas pelo locutor não se trata de uma escolha qualquer, se trata
de palavras que demonstram força, resistência, são palavras que demonstram o ato ético dos
servidores quanto à política e o mais importante por meio da arte. Quanto à expressão por meio da
arte, Bakhtin pontua:

Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida para que todo o vivenciado e
compreendido nela não permaneçam inativos. No entanto a culpa está vinculada a responsabilidade. A
vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mútua, mas também com a culpa mútua.
(BAKHTIN, 2011, p. XXXIII-XXXIV).

Logo, ao produzirem a réplica à situação social que vivenciam através da arte, eles não
colocam em jogo somente a arte, mas junto com ela suas vidas e suas responsabilidades. O ato
estético exige do sujeito uma posição responsável e ativa e está inteiramente ligado à linguagem, é
postupok: na singularidade de quem o faz em seu dever de responder, responder responsavelmente, a
partir do lugar que ocupa na enunciação (do lugar único que ocupa, naquele momento na existência).
Resistir por meio da arte requer coragem, requer responsabilidade, resistir à escatologia política é
resistir ao fim dos poucos direitos que ainda restam.
A dimensão contra-hegemônica de uma réplica por meio da arte, com as implicações de se
constituir como ato responsável indissociável de ser, ele mesmo, um relato da arquitetônica
constitutiva dos sujeitos, dos sentidos e da própria interação, suscita uma resposta compreensiva
dessa inter-relação entre o ético e o estético.
No prefácio à edição francesa, Todorov (2011) esclarece que Bakhtin ao utilizar-se da obra
dostoievskiana vai muito além de uma teoria da estética romântica, pois tal fundamenta-se em um
processo transitório, que busca uma temática central, o olhar para as relações estabelecidas entre
criador e criatura, entre autor e herói. Todorov (2011) salienta:

NARRATIVAS
1323

[...] uma vida encontra um sentido, e com isso se torna um ingrediente possível da construção estética,
somente se é vista do exterior, como um todo; ela deve estar completamente englobada no horizonte de
alguma outra pessoa; e, para a personagem, essa alguma outra pessoa é, claro, o autor: é o que Bakhtin
chama ‘exotopia’ deste último (TODOROV, 2011, p. XIX, grifo nosso).

Dessa forma, a criação estética, de qualquer natureza, possibilita um tipo de relação bem
sucedida, na qual, em uma relação dialógica com o outro, o completa e o dota de sentido. Diante disso,
a exotopia (extralocalização) refere-se ao acabamento promovido pelo olhar alheio/outro, ou seja, ao
contemplar o horizonte do outro e observar informações do lugar que se ocupa (fora dele), permite
que ao ser contemplado, informações até então inobserváveis, sejam “acumuladas”, possibilitando que
esse distanciamento torne o terreno mais propício ao acabamento estético/ético do ser. Nas palavras
de Bakhtin:

[...] em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim,
sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes de
seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e, sua expressão –, o mundo atrás dele,
toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre
nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem
na pupila dos nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de
horizontes, mas para eliminá-la inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma só
pessoa (BAKHTIN, 2011, p. 21).

Diante disso, chamaremos atenção para processo exotópico (extralocalizado) que podemos
encontrar no ato responsável tomado pelos funcionários do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, ao
realizarem o espetáculo em protesto contra o atraso de salários nas escadarias do teatro, com livre
acesso a toda a população. Nesse momento, nosso olhar se fixará na escolha do local como um ato.
Ato que para Bakhtin se configura como passo, posicionamento, e diante desse processo escatológico,
a arte como resistência e (re) construção desse sujeito.
Bosi, na discussão que faz sobre resistência, em seu texto Narrativa e Resistência, inicia uma
abordagem da ideia de resistência na narrativa estética, conciliando duas maneiras: “(a) a resistência
se dá como tema; (b) a resistência se dá como processo inerente à escrita.” (BOSI, 1996, p. 13). Não
constitui uma extrapolação irresponsável estender o que ele discute em relação à escrita para outros
sistemas sígnicos. O próprio Bosi exemplifica exaustivamente, durante seu texto, com realizações
estéticas no campo do cinema relativas à resistência.
Estabelecida essa possibilidade de análise, podemos situar além das questões ligadas ao tema
do enunciado constituído pelo ato ético/estético de protesto dos artistas e funcionários do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro – que julgamos já ter analisado – a questão do processo “inerente à
escrita”, ampliado para um processo “inerente à produção sígnica”. Vale lembrar a relação entre
signo e ideologia, exposta por Volóchinov:

NARRATIVAS
1324

O signo não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade,
sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico, e
assim por diante. As categorias de avaliação ideológica (falso, verdadeiro, correto, justo, bom etc.)
podem ser aplicadas a qualquer signo. O campo ideológico coincide com o campo dos signos. Eles podem
ser igualados. Onde há signo há também ideologia. Tudo o que é ideológico possui significação sígnica.
(VOLOCHINOV, 2017, p. 93 – destaque do autor).

Portanto, a produção sígnica é, também, produção ideológica. Constitui uma tomada de


posição, postupok diante de outros enunciados, de atos que se fazem e se dizem como atos e como
relatos, que se narram. Na continuidade de sua discussão, Bosi vai por um caminho semelhante:
Chega um momento em que a tensão eu/mundo se exprime mediante uma perspectiva crítica, imanente
à escrita, o que torna o romance não mais uma variante literária da rotina social, mas o seu avesso;
logo, o oposto do discurso ideológico do homem médio. O romancista "imitaria" a vida, sim, mas qual
vida? Aquela cujo sentido dramático escapa a homens e mulheres entorpecidos ou automatizados por
seus hábitos cotidianos. (BOSI, 1996, p. 23)

A resposta da arte como ato ético/estético na responsabilidade exercida pelo protesto dos
artistas e funcionários dialoga com o entorpecimento que o enunciado da escatologia política tenta
suscitar. Podemos, nessa direção, como produção sígnica, pensar, finalmente, nos espaços do teatro,
da escadaria e da praça em que o espetáculo se constrói como enunciado.
Para isso, mobilizaremos conceitos de Milton Santos, importante geógrafo brasileiro, utilizado
por Andreis para uma análise bakhtiniana. Inicialmente, cabe trazer as noções que Santos tem de
paisagem e território:
[...] a paisagem geográfica é tratada como um modo de abordar a espacialidade, colocando acento na
leitura de um fragmento do espaço em determinado tempo. Já o território compreende um modo de
abordar a espaço-temporalidade, por meio da análise que salienta as relações de poder e propriedade.
Neste contexto, a territorialidade é a dimensão dessas forças em movimento de (inter) ação. (ANDREIS,
2016, p. 209)

A discussão que empreendemos aqui pode se beneficiar desses conceitos para pensar esse
movimento dos artistas e funcionários na paisagem do Theatro Municipal, em seu interior (palco,
corredor), escadaria e na sua fronteira com a praça (calçadão) da Cinelândia e as ruas do seu
entorno. A autora, em outro trecho de seu artigo toca nessa questão de território e fronteira:

Território envolve fronteiras, não como limites ou divisas, mas como elo. Na verdade, é no nó criado
como vinculação entre os diferentes âmbitos que habita a fronteira. O sentido geográfico de território
tem importantes análises, algumas interpretando-o mais pelo viés da área superficial, outras mais pelo
viés posse e propriedade, e ainda outras, como a que me serve como argumento para esta discussão, a
que enlaça nas relações de força, empoderamento, libertação e responsabilização dos sujeitos que
produzem espaço. (ANDREIS, 2016, p. 213)

NARRATIVAS
1325

Do ponto de vista da produção sígnica espacial, geográfica, há um gesto que se constitui com
ato responsável: abrir as portas do Theatro Municipal para o público - gratuitamente. Nesse as
relações entre poder e propriedade se deslocam. O acesso que temporariamente o ingresso dá à
paisagem do teatro e a seus sentidos de compartilhamento de territorialidade são deslocados,
extralocalizados. Os territórios socioculturais se mostram como elos na produção de uma réplica.
Constituem réplica à postura financista do enunciado da escatologia política. Esse ato de resistência,
ressignifica o próprio espaço do teatro, assim como a ideia de artista como assalariado, já que ali, a
apresentação se deu de forma gratuita. Cabe aqui o que Bakhtin analisa com relação ao ato estético
na relação entre autor e personagem:
O autor vivencia a vida da personagem em categorias axiológicas inteiramente diversas daquelas em
que vivencia sua própria vida e a vida de outras pessoas – que com ele participam do acontecimento
ético aberto e singular da existência -, apreende-a em um contexto axiológico inteiramente distinto.
(BAKHTIN, 2011, p. 13).

Em segundo lugar, o deslocamento de paisagens (trazer o público para o interior do teatro,


depois para as cadeiras para assistir ao balé, retornar do interior do teatro para as escadarias e
posicionar os artistas nas escadarias e o público na praça e na rua) compartilham o ato de
responsabilizar-se por essa caminhada, por esses passos em direção ao Theatro Municipal e ao que
ele representa.
Na parte final do ato, os artistas e funcionários posicionaram-se nas escadarias. Essa
escolha final dos artistas pelas escadarias permite a caracterização de um ato de resistência,
também como comunicação corporal, por meio da ocupação de espaço outro e da reorganização
assimétrica entre artista e público. Para além disso, podemos notar o olhar exotópico/extralocalizado
que o ato realizado pelos funcionários permite a esses sujeitos, que ao se posicionarem em um outro
lugar, terão um novo horizonte, uma nova perspectiva (paisagem) de sua arte e dessa forma poderão
dar um acabamento distinto dos atos realizados anteriormente, reafirmando sua responsabilidade.
A escolha pela escadaria nos permite ainda, de forma simbólica, fazer alusão, enquanto signo
arquitetônico, ao Theatro antigo, a disposição da escadaria, ou seja, o anfiteatro, construindo assim
uma visão exotópica do espaço. Há nesse momento, a quebra do Theatro como lugar elitista, já que o
fora dele, a disponibilidade do público se dá sem uma ordem hierárquica tão rígida, automaticamente
gratuita e sem nenhum padrão formal de vestimenta. Diante desse ambiente, o anfitrião torna-se
convidado do seu próprio ato de resistência.
Não deixa de ser sugestivo pensar a produção sígnica de territorialidade das fronteiras do
Theatro (de suas escadarias externas) com a praça e a rua. Como uma espécie de anfiteatro
invertido, os músicos, o coro e os funcionários tomaram um lugar hegemonicamente construído para
o público, enquanto o público, na parte plana que resulta da escadaria, ocupou um lugar fronteiriço
entre o palco (do que seria um anfiteatro) com a praça, a ágora, paisagem fundadora dos discursos
sobre a origem da democracia ocidental. E a rua. O público tomou a rua, que é um enunciado de
participação política, e o fez coexercendo um ato responsável com os artistas e funcionários. Por

NARRATIVAS
1326

meio disso, extralocalizaram-se em relação à narrativa da escatologia política. Estabeleceram um


enunciado de resistência. Que suscitará réplicas. Algumas poderão ser desse elo entre fronteiras,
desse ato de libertação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tivemos como objetivo, nesse trabalho, pensar o espetáculo-manifesto (nas palavras dos
próprios artistas e funcionários do Theatro Municipal do Rio de Janeiro) contra o não pagamento de
salários e a inviabilização desse teatro como forma de resistência aos enunciados da escatologia
política que se tornaram hegemônicos no Brasil nesse momento histórico.
Procuramos discutir como a consideração dessa prática hegemônica enquanto enunciado
permite refletir sobre o diálogo entre as réplicas em relação às quais essa escatologia se posiciona e
quais réplicas pode suscitar, incluindo a compreensão como resposta a esse discurso.
Essa discussão empreendeu, também, uma análise que inter-relaciona, nesse ato público, a
responsabilidade do indissociável elo entre ato ético e ato estético. Ao protestarem por meio da arte,
o dizer-fazer desses servidores construiu uma extralocalização em relação à narrativa da escatologia
política.
Por meio de diversos sistemas sígnicos, o ato responsável do espetáculo-manifesto deslocou
os sujeitos-artistas, deslocou o público e reinstarou-os na condição de sujeitos na/pela alteridade. Na
arquitetônica dessa constituição, esses sujeitos ressignificados dialogam com cada um de nós,
espectadores e leitores de seus signos: provocam-nos não somente para uma réplica de resistência,
mas, também, para uma resposta de esperança.

REFERÊNCIAS

ANDREIS, A. M. A territorialidade na ética da paisagem estética. In VII CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana:
literatura, cidade e cultura popular. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6. ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2011.
______________. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos
Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
______________. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza a partir da edição
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NARRATIVAS
1327

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THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Agradecimento dos Funcionários do Theatro Municipal. Disponível em
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TODOROV, T. Prefácio. In BAKHTIN, M.M. Estética da Criação Verbal. Tradução feita a partir do francês por Maria
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VILLARTA-NEDER, M.A. Silêncio e intersubjetividade: a reforma do Ensino Médio. Comunicação pessoal. I Intercâmbiode
Pesquisas em Letras.CentroAcadêmico de Letras/Departamento de Estudos da Linguagem. Universidade Federal de Lavras.
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VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência
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_________________. A estrutura do enunciado. Trad. de Ana Vaz, para fins didáticos, com base na tradução francesa
de Tzevan Todorov (“La structure de l’énoncé, 1930). In: TODOROV, T. Mikhail Bakhtine: le principe dialogique. Paris: Seuil,
2005.

NARRATIVAS
RESUMO
1328

PRIMEIRAS LETRAS Palavras-Chave:

ZERBINATTI, Thaís Otani Cipolini 358

INTRODUÇÃO

E
ste texto foi elaborado visando dialogar com transcrições de
observações realizadas em sala de aula, percebendo-as não
apenas como a escrita do áudio, mas como tentativa de
possibilitar aos leitores uma visão mais ampla do momento, dos
instantes em que tais gravações ocorreram.
Durante a escrita,tanto da transcrição, quanto dessa
narrativa, pululavam questionamentos. Alguns são apresentados
aqui, para que juntos possamos dialogar e aprofundar as discussões.

1 PRIMEIRAS LETRAS

Abro o computador sem saber por onde começar. Em minha cabeça, inúmeros e infrutíferos
começos. Cenários sem perspectivas de histórias a acontecer. Redemoinhos de ideias, novelos de
fios. Emaranhados de nada e tudo. De sombra e luz.
O que falta? Me falta a forma. Me assombra e me aponta a poesia querendo fazer morada.
Poesia narra? Ou poesia nada?
Encarando a página em branco, com algumas manchas na tela, os dedos digitam o que a mente
ordena sem ordem. Sem lógica.
Qual a dificuldade? Qual é o sentido? O que impede de ouvir as gravações das contações de
histórias?
Não sei. A incerteza do que irei ouvir, apesar de já ter vivido e experimentado o momento tem
me assustado. Quase me paralisando. Por onde começar?
Respirando fundo, abro a pasta de arquivos, organizados automaticamente pela inteligência
artificial que habita em meu notebook.

358Doutoranda em Educação na Universidade Estadual de Campinas.

NARRATIVAS
1329

A primeira que aparece é a Dália. Assim, um dos motivos que me leva a iniciar a transcrição e
análise é o “acaso”. Outro foi o fato dela ter me enviado mensagem solicitando cópias dos áudios, para
saber como foi.
Inicio a observação no agrupamento II A pelo período da tarde. Havia visto à distância essas
crianças: encontros nos corredores, espiadas no parque, andanças pelos espaços e conversas na
porta com as professoras e monitoras e agentes de educação infantil.
A penumbra da sala me convida dificulta ver os 21 colchonetes espalhados pelo chão. Ando
devagar, desviando das crianças, meias e afins que as crianças tiraram para ficarem mais
confortáveis. Ambiente convidativo para um cochilo logo após o almoço.
Resistindo bravamente, continuo a travessia em direção à agente de educação infantil, que
pouco conheço. Sento-me ao seu lado. O implacável relógio mostra que são quase 14h: hora de
acordar – ou levantar – e tomar o café da tarde.
Aguardando o horário, Dália e eu conversamos sobre amenidades, sobre as crianças já
acordadas, e pedimos a elas que não acordem os colegas que estão dormindo (mas por que será que
elas precisam, têm que, devemesperar pelas outras para poderem levantar, conversar, brincar?)
Finalmente, chega a hora do despertar, do agito e da movimentação: as cortinas são abertas,
criança acordando criança, criança indo ao banheiro, criança sentada no chão sem perceber que já
acordou. Tira lençol. Separa colchonete com xixi. Crianças saindo para fazer xixi. Crianças pelo
corredor. E duas únicas adultas para coordenar essa dança.
Aos meus olhos de visitante com memórias de outras turmas dessa faixa etária nessa mesma
escola, nessa mesma sala, esse agrupamento é mais calmo que em outros anos, porém cuidar e
(tentar) educar 28 crianças dessa faixa etária não é tarefa fácil. Para sobreviver, as
monitoras/agentes criam estratégias.
Durante o período em que eu observei, a estratégia incorporada à rotina foi: a agente de
educação infantil lê e canta enquanto a monitora troca as fraldas das crianças que ainda não
aprenderam usar o banheiro (ensinar novas crianças a usar o banheiro está inviável devido à
quantidade de funcionários).
Parece caótico? Pois realmente É caótico. Não por culpa da adulta que fica na sala, mas por
todo um sistema educativo que pressupõe que está tudo bem organizar as turmas da forma atual.
Quero ressaltar que não quero crianças sentadinhas, quietinhas, silenciadas e adestradas. Acho que
agrupar com idades variadas é uma proposta válida, mas alguns parâmetros precisam ser
urgentemente revistos, pois não consigo perceber qual o “ganho” para as crianças por serem
depositadas nas creches dessa maneira. Ressalto: as funcionárias fazem o possível (errando e
acertando) dentro da realidade imposta pela Secretaria Municipal de Educação. de Campinas
Voltando à rotina. Após guardar os colchonetes, é hora de calçar os sapatos: alguns sabem,
outros não. Alguns sapatos são fáceis de colocar. Outros, não. Alguns tem nomes. Outros, não. Assim,
após devidamente calçados, todos seguem para o refeitório para degustar o muito conhecido menu do
café da tarde: leite, ou suco, e bolachas.

NARRATIVAS
1330

Enquanto as crianças comem, me transformo em “mais uma”: mais uma pessoa para ajudar, e
volto para meus tempos de vice-diretora-bombeira: corre para lá e para cá para socorrer a turma
que mais precisa nesse momento. Com esse agito todo, observar o que acontece torna-se difícil.
Minha atenção foca no emergencial, no imediato, no necessário para garantir um atendimento com o
mínimo do mínimo de qualidade para as crianças enquantoestou ali, mesmo que isso signifique dar
uma bolacha a uma criança em uma solicitação que a monitora/agente não viu. O sono foi embora
pela porta que a algazarra de duas turmas de crianças pequenas deixou aberta.
Quando as crianças terminam o lanche, voltamos para a sala para continuar a higiene e para
acontaçãode histórias, atividade organizada pelas educadoras.
Tento, agora, tornar-me pesquisadora observadora e interferir pouco. A agente escolheu um
livro que já estava na sala, deixado pela professora no período da manhã, e orientou as crianças para
que se sentassem no chão, em um cantinho perto do armário. Chama, carinhosamente, a atenção de
um aluno, e começa a contar a história:

Música:
“É hora, é hora da história
Vou me sentar, vou escutar
Quietinho eu vou ficar.
Shiiiiiiiiii”

Com essa música introdutória, a agente Dália prepara o ambiente para a contar a história: as
crianças dispersas buscando posições e lugares mais confortáveis, aos poucos, começam a olhar
para ela, - e tentando cantar a música, sendo que a maior participação ocorre na hora do “Shiiiiiiiiii”.
Nesse caos organizado é difícil conseguir perceber que a coletividade dessa turma de
crianças é formada por sujeitos singulares. A engrenagem, própria da modernidade capitalista que
organiza o sistema educacional da cidade de Campinas, transforma as creches municipais em
depósitos.
Chocante essa imagem, não?
Mas como chamar de outro nome diante da impossibilidade deobservar, conversar, tocar e ter
olho no olho de 28 crianças (de 1ano 6 meses a 2 anos) ao mesmo tempo? (Por melhor que seja o
trabalho que das profissionais envolvidas, por melhor formadas que sejam, por mais que se esforcem
é impossível atender às crianças de forma plena)
Não consigo entender o que a prefeitura pretende com isso. E há anos que penso a respeito.
Nessa situação, a desconstrução do sujeito como ser inteiro inicia-se desde muito cedo, visto
que a creche atende crianças desde 4 meses de idade, e em uma turma cuja situação não é mais
favorável que essa.
Assim, considerando a premissa de Bakhtin de excedente de visão, onde o outro que me
observa, por mais próximos que estejamos, sempre terá mais conhecimentos sobre mim do que eu
mesmo, o que torna o lugar que cada um ocupa como único no mundo, como as educadoras

NARRATIVAS
1331

conseguirão apropriar-se desse excedente para melhor interagir com as crianças e potencializar
seus momentos de aprendizagem, se são tomadas pelo turbilhão da rotina e da quantidade? Como
ajudar as crianças a se tornarem sujeitos inteiros se não temos tempo de vê-los por inteiro? Se não
temos braços, pernas, olhos e ouvidos para perceber a todos por inteiro?
Vemos a todos, mas massificados.
Nesse momento me questiono como o excedente de visão da criança dessa mesma faixa
etária contribui para a construção das outras enquanto sujeitos e como essa interação constrói o
coletivo da sala de aula.
Outro ponto de destaque (cuja importância só percebi depois de ser mãe) é que nem todas as
crianças dessa sala conseguem se expressar através da linguagem oral. Na realidade, poucas
crianças conseguem. Assim, estar atento à criança torna-se muito mais especial, pois essa irá
dialogar com o mundo exterior através de outros meios, como gestos, bater nas coisas e nos colegas,
apontar, resmungar, e não estar atento a essas formas de comunicação pode levar a injustiças,
frustrações e desestímulos. Como estimular a contrapalavra, o ouvir e o falar, a compreensão nessas
condições?
Durante a contação da história as crianças comportam-se como crianças: falam, imitam
animais, conversam, trocam ideias, se levantam para ver melhor. Nesses momentos, Dália torna-se
uma maestrina: estimula a interação delas, perguntando o nome dos animais, pedindo para que os
imitem. Porém, a “história” precisa continuar e faz o som Shiiiiiiiiii. No áudio escutamos um shiiiii
tranquilo, calmo, sem imposição. Algumas crianças conseguem responder mais prontamente ao
“pedido” de silêncio que outras. Algumas continuam imitando o animal que apareceu na página. Outras
ainda dizem coisas a respeito do bichinho. Assim, a outra educadora interfere e faz outro shiiiii. No
entanto, faz um chiado mais forte, mais duro. Um shiii que tenta impor uma ordem. Isso me chamou
muito a atenção durante a transcrição. No shiii da primeira educadora residia uma indecisão e um
respeito pelas crianças (talvez essa indecisão seja fruto da minha presença, medo de minha reação,
medo do meu cargo). O segundo, não. Era “cheio de si”, consciente do que queria alcançar com as
crianças.
Na perspectiva de Bakhtin, o shiiii é um enunciado acabado: “Se uma palavra isolada é
pronunciada com entonação expressiva, já não é uma palavra, mas um enunciado acabado expresso
por uma palavra (não há nenhum fundamento para desdobrá-la em oração)” (2006, p. 49). Um
enunciado que as crianças, pela convivência, aprenderam a interpretar.
Esse pedido de silêncio sem palavras diz muito a respeito de cada educadora, de suas
sensibilidades e visões de educação e de criança.
A leitura continua e acaba com as crianças já ansiosas pela próxima atividade. Estimuladas
por Dália, cantam músicas relacionadas aos animais presentes no livro, enquanto aguardam o término
da higiene dos colegas que usam fraldas.
Quando terminam, correm em debandada para o parque.

NARRATIVAS
1332

Há outros pontos a explorar nesse registro e na transcrição escrita que não coloquei aqui.
Um deles diz respeito à forma como escrevi história mais acima (“história”). Ainda não sei como
classificar o texto que esse tipo de livro contém. A narrativa, experiência e infância tendo como
aporte teórico Walter Benjamin, também são pontos a serem explorados.
Mas por ora, é o que basta.
Já desligaram o ar condicionado da biblioteca pública aqui de São José dos Campos. A
penumbra que ocupava a sala de aula começa a ocupar as ruas.
A tela, antes branca e assustadora, está preenchida com caracteres pretos, cujos significados
outros serão dados pelos leitores e pelas personagens.
Escrever narrativamente é difícil. Fazer pesquisa narrativa é difícil.
E dói. Dói muito. Dói olhar para si e perceber o quanto ainda há para fazer. Dói perceber que
por mais que faça, não será suficiente.
Dói ver agora o que deveria ser visto antes e mudado. Dói ter ignorado pequenos vestígios,
mas que poderiam ter feito a diferença.
Com a dor e olhando para dentro e para fora, ouvindo vozes outras e conselhos diversos,
termino esse texto, com bastantes pontas soltas para refletir e construir sobre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse pequeno recorte, tento dialogar com algumas impressões e sensações que a ida para a
escola e as transcrições causaram em mim, principalmente à incapacidade de trazer para a
linguagem escrita as nuances e sutilezas que a linguagem oral traz, assim como a dificuldade
emtraduzir em palavras os gestos e outros movimentos corporais. Mas será que é necessária
essa”tradução”?
Muitos questionamentos surgem nessa relação, sem nenhuma resposta aqui, apenas
vislumbres pelas frestas e pelas brechas.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016.


_____. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo:
Hucitc, 2014.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
RODRIGUES, Nara C.; PRADO, Guilherme do Val T. Investigação Narrativa: construindo novos sentidos na pesquisa
qualitativa em educação. Revista Lusófona de Educação. n. 29, 2015.
SERODIO et al. A metanarrativa e a relação inextricável entre os mundos da vida e da cultura: uma aproximação entre
Bakhtin e a educação. RevistAleph, ano XIII – maio 2016, n 25.

NARRATIVAS
riso
RESUMO

.
1334

Palavras-Chave:

SAMBA E RESISTÊNCIA

BRANCO, Nanci Moreira1

O
que trago, neste texto, são recortes de minha tese Memórias
do samba carioca na voz dos compositores populares: uma
análise discursiva de depoimentos do projeto Puxando
Conversa, mas, antes de tudo, são experiências de vida. Dentre os
muitos fios e laços que compõem a trama desse enredo, a percepção
do papel do riso e da festa é um dos grandes ensinamentos que o samba nos dá.
Visto por uma perspectiva comunitária, o samba é uma celebração – um encontro de pessoas
que celebram a vida partilhada, sua história e o evento único de cada encontro. Enfim, é um
acontecimento pleno de vida. Por isso, é regenerador, no intuito de superar as adversidades ou de
submetê-las ao riso e à festa, e é renovador, pois, cada novo encontro é único e essa novidade é que
faz revigorar tal evento.
Esse entendimento reforça a concepção de que a cultura não deve ser entendida como uma
realidade já dada, preestabelecida de alguma forma, mas construída na relação com os sujeitos
sociais. O samba, portanto, resulta em uma construção viva e histórica do povo, da sua gente, e que é
festejada todos os dias, em qualquer lugar onde ouvimos os seus batuques e o seu canto ser entoado.
Assim, o riso, a festa, é a resistência diante de tudo o que oprime as manifestações de cultura
popular.
Bakhtin (2010) ressalta, em seu estudo sobre a cultura popular na Idade Média, a qualidade de
Rabelais de estar ligado às fontes populares. E esse reconhecimento contribui para entendermos que
o estudo da cultura popular passa pela percepção das relações humanas de seu povo e da
construção/reafirmação de identidade como fruto dessas relações.
A noção de cultura popular nos estudos de Bakhtin nos revela que ela não é um evento estagnado, acabado,
mas em constante ressignificação e transformação; é o lugar em que ideologias diferentes ocupam o mesmo espaço,
sem que haja apagamento de uma dessas vozes. Por essa perspectiva, podemos entender o popular não como uma
imposição da cultura oficial, da indústria cultural, especificamente, mas como algo construído nessas interações.

1Doutora em Linguística pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), Professora de Educação Básica da rede pública estadual paulista;
membro do GEGe (Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso). Email: nancimbranco@hotmail.com

RISO
1335

Dessa forma, mesmo com todo o caráter de oficialidade que muitos eventos do samba
ganharam, as rodas, as escolas de samba, os blocos carnavalescos, ainda evidenciam a expressão do
riso, da festa, como um meio de quebrar certos paradigmas. Esse riso está nas festas em que
extravasavam um pouco do sofrimento e, dessa forma, vencem, pelo menos por alguns momentos, o
medo, a opressão. Ao falar do riso carnavalesco, Bakhtin (2010) afirma-o em contrapalavra à
seriedade oficial, que impõe o autoritarismo, a violência, a restrição e o medo: “Pelo contrário, o riso
supõe que o medo foi dominado. O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o
poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso” (BAKHTIN, 2010, p.78).
No depoimento do sambista Bandeira Brasil, ele nos conta de uma conversa com seu parceiro
Beto Sem Braço (lendário sambista carioca), que lhe tinha convidado para uma festa. Diante do
convite, Bandeira indagou: Pô Beto, não é brincadeira não! Vai ter festa de novo na semana que vem?
Você adora festa, hein? A isso Beto Sem Braço responde: O que espanta miséria é festa! (BANDEIRA
BRASIL, 2004). É essa ideia do riso como resposta à adversidade que encontra sua ressonância maior
nessas palavras de Beto sem Braço. É a ambivalência contida no riso carnavalesco de que nos fala
Bakhtin.
Há, nesse riso carnavalesco, um feitio jocoso e alegre, que lhe confere aspecto regenerador e
positivo, e que o difere do riso irônico e sarcástico. Esse enunciado de Beto sem Braço nos revela
exatamente a essência do grotesco, de acordo com Bakhtin (2010): a sua força libertadora e ao
mesmo tempo regeneradora, o que lhe confere esse tom alegre e jocoso. Esse desabafar, extravasar
no riso as adversidades tem uma “significação positiva, regeneradora, criadora” (BAKHTIN, 2010, p.61),
que permite uma renovação, um renascer.
Não posso deixar de mencionar, ainda, do olhar para o caráter grotesco que o próprio nome
do artista revela: Beto Sem Braço já é uma carnavalização, é realismo grotesco puro!

A verdadeira natureza do grotesco – Sua verdadeira natureza é a expressão da plenitude contraditória


e dual da vida, que contém a negação e a destruição (morte do antigo) consideradas como uma fase
indispensável, inseparável da afirmação, do nascimento de algo novo e melhor. (BAKHTIN, 2010, p.54)

Com isso, podemos ver que Beto Sem Braço2 é um olhar para o grotesco de si, o que foge do
padrão de idealização romântica; o que é considerado imperfeição. Esse encarar a “imperfeição” e
transformá-la numa identidade (lembrando que o apelido é um olhar do outro, logo é uma identidade
construída na alteridade) é “rir” das limitações humanas, é a sua forma de “carnavalizar-se”, de se
libertar e se regenerar, de franquear os próprios limites. Repito: o riso grotesco é força
regeneradora e renovadora. E essa característica marca de forma pontual o samba: os nomes dos
sambistas carregam uma identidade. Muitos são os nomes de “batismo do samba”, como o próprio
Beto sem braço, Nego Fogão, Alcides Malandro histórico, Wilsinho Saravá, Sarabanda, Barbeirinho do
jacarezinho, entre outros. Cada nome carrega um traço da vida do sujeito, um evento que marcou sua

2
Esse apelido foi-lhe dado na infância, quando perdeu o braço direito, numa queda de cavalo.

RISO
1336

história e que fica eternizado na sua vida artística. É o olhar do outro que lhe constitui, nesse ritual de
“batismo” no samba, por meio do nome que lhe é conferido.
O riso, nas festividades do samba, assim como em Rabelais, aparece como regenerador por
ser subversivo em relação a um pensamento unilateral. É sempre um riso festivo.

Não é, portanto, uma reação individual diante de um ou outro fato cômico isolado. O riso carnavalesco é
em primeiro lugar patrimônio do povo (esse caráter popular é inerente à natureza do carnaval); todos
riem, o riso é geral; em segundo lugar, é universal, atinge todas as coisas e pessoas, o mundo inteiro
parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último
esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e
afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (BAKHTIN, 2010, p. 10).

As imagens na obra de Rabelais estão repletas desse riso coletivo, popular, que desafiava os
cânones vigentes, que se opunha a todas as regras e imposturas da época. Esse riso que está por
detrás do sério e que se apresenta na obra de Rabelais evidencia um dos principais atributos que
Ponzio (2008) atribui à cultura popular: a relação entre ideologia oficial e ideologia não oficial, que,
por meio da comicidade popular, põe em questão as formas da cultura dominante.
Para estudar a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin (2010) escolhe
como porta de entrada o riso, porque é nele que se revelam os lugares onde se davam os jogos de
classes e que “congregava na mesma atmosfera a praça e o palácio, evidenciando uma ordem
estética da cultura popular” (PAJEÚ, 2014, p.139). Daí a cultura popular ser mestiça, híbrida, porque se
trata de um movimento heterogêneo de manifestações distintas que não se inserem no interior de um
sistema único, posto que ela seja plural (ORTIZ, 1985, apud PAJEÚ, 2014, p.140).
Embora tenha sido aceito como um ícone da cultura brasileira, o samba, como gênero musical,
por esses seus traços mestiços, “sempre esteve carregado de contradições, principalmente pela
capacidade de aglutinar as diferenças sem reduzi-las” (FILÉ, 2006, p.52). Essa capacidade é o que
mantém o samba tão ligado à vida das pessoas e o torna um gênero que extrapola a dimensão musical
e é capaz de propiciar uma identificação em todas as esferas sociais e em todos os níveis intelectuais.
Assim, é possível contemplarmos o diálogo, observarmos o embate dos encontros, as
manifestações de interação entre diferentes culturas, que o modificam e o preservam, assim como a
transgressão e as transformações proporcionadas por esses encontros. As rodas, os blocos, ainda
são um espaço de pluralidade social, étnica, que resistem a um pensamento de padronização, de
monologia, que ainda ronda a nossa sociedade.
O samba marca, com sua festa, um movimento de resistência que teve início com as casas
das “Tias Baianas”, numa das quais, o samba se formou, e que eram espaços de acolhida e nos quais
pessoas de diferentes classes sociais se reuniam pra festejar, cantar, saborear quitutes e receber as
bênçãos das tias do Candomblé. Assim, essa festa congregou a cidade e o morro e resistiu à
“higienização” social imposta ao Rio de Janeiro pelo governo da época.

RISO
1337

Com sua festa, o samba, a cultura e a religião desse povo, abriram caminho e esse espírito
ainda resiste porque essa luta é cada vez mais viva. Enquanto, hoje, terreiros de candomblé ainda são
destruídos por conta da intolerância religiosa, o carnaval reverencia os orixás em seus desfiles.
Quando as casas das “tias baianas” surgiram, o Rio de Janeiro vivia um projeto de
“modernização”.

Sabe-se que uma das metas do projeto modernizador é a obtenção da homogeneidade, fato que o torna
inflexível em relação às territorialidades culturais. Cidade sertaneja, aldeamento indígena, feira africana
foram expressões utilizadas pelas nossas elites, referindo-se aos espaços da cidade que pretendiam
excluir do imaginário urbano. Dessa forma, a República não consegue oferecer as bases integrativas
capazes de unificar a sociedade. Imigrantes nordestinos, índios, ciganos e negros são vistos como
elementos indesejáveis, incapazes de serem absorvidos pela “cidade moderna”. (VELLOSO, 1990, p.2)

Segundo a autora, esse contexto vivifica a “ideia de pertencimento ao pedaço” desse povo
marginalizado pela sociedade. Assim, pertencer ao espaço, ao lugar, não implica uma ideia de posse,
mas uma “rede de relações”, que, assumida, torna-se parte da identidade do indivíduo. Há, por isso,
uma reação, uma atitude responsiva, que se revela na organização do grupo e na rede de relações, e
na própria reafirmação e socialização da cultura e religião desses excluídos. Assim, a cultura popular
se constituiu não apenas na produção, mas como o lugar da resposta, da construção de suas
identidades e da constituição desses atos responsáveis.

A “Pequena África”, trecho da cidade geralmente habitada pelos negros baianos, constitui um exemplo
nesse sentido. Para eles, demarcar e defender o pedaço era uma estratégia de sobrevivência, que
aparecia nas mais variadas práticas do cotidiano. [...] Era comum no pedaço o uso dos dialetos
africanos, principalmente os de origem nagô. A música Yaô, de Pixinguinha e Gastão Viana, é um exemplo
vivo do enraizamento cultural. Composta provavelmente na segunda década do século, ela só seria
gravada em 1950 (Sodré, 1979:61 e Rocha, 1986). A música traz a África de volta; grande parte da letra é
escrita em iorubá, a marca da identidade lutando contra o exílio da memória. Mesmo sendo lembrança
remota ou construção do imaginário, a África permanece como ponto de referência para o grupo, no
sentido de marcar a sua identidade. (VELLOSO, 1990, p.2)

Assim, esses povos excluídos, especialmente os negros baianos, introduziram no Rio de


Janeiro novos costumes e valores que influenciaram a cultura carioca. Esses valores contrastam
visivelmente com os introduzidos pela modernidade.
No samba Yaô3 (1938), de Pixinguinha e Gastão Viana, há referências a práticas cotidianas de
cunho religioso e, nele, a questão religiosa extravasa numa letra repleta de expressões de origem
africana e que remetem à própria religião.

3
Iaô: No Candomblé, título adquirido pela inicianda após o Sudidé, quando ultrapassa a condição de abiã. Do ioruba iyàwó, “esposa mais jovem”,
“recém-casada”. (LOPES, 2004, p.333)

RISO
1338

Yaô

Aqui có no terreiro
Pelú adié
Faz inveja pra gente
Que não tem mulher (Bis)
No jacutá de preto velho
Há uma festa de yaô (Bis)
Ôi tem nêga de Ogum
De Oxalá, de Iemanjá
Mucama de Oxossi é caçador
Ora viva Nanã
Nanã buruku (Bis)
Yô yôo
Yô yôoo
No terreiro de preto velho iaiá
Vamos saravá (a quem meu pai?)
Xangô!

A música Yaô é, portanto, profundamente reveladora dessa reafirmação e construção de uma


identidade por um povo marginalizado pela sociedade elitista. E essa reafirmação está presente em
toda a trajetória do samba, bem como de outras manifestações da nossa cultura popular. E a festa, a
celebração, ganha contornos de resistência contra o preconceito e a opressão.

Brigando pelo espaço, esses grupos, na realidade, estavam brigando para terem reconhecida a sua
própria existência A territorialização aponta para a especificidade, revelando como o homem entra em
ação com o meio imprimindo nele as suas marcas. Assim, a idéia de território está estreitamente ligada
à questão da identidade. Demarcando um espaço, o grupo está estabelecendo a sua diferença em
relação aos outros (Sodré, 1988). É a marca da propriedade, aqui no sentido original do termo, ou seja,
do que é próprio e específico em relação ao conjunto. (VELLOSO, 1990, p.1)

Dessa forma, vemos que essas músicas, e a manifestação religiosa nelas contida, funcionaram (e funcionam,
ainda) como atos responsáveis, contrapalavras a uma sociedade excludente, na qual raízes e hábitos culturais
africanos eram por vezes negados e subjugados. O samba praticado no Rio de Janeiro foi perseguido e discriminado no
início do século XX, assim como os descendentes africanos. E, infelizmente, não podemos afirmar que hoje seja muito
diferente.
Ainda que a intolerância e o preconceito estejam ferindo dolorosamente o lugar do samba e a
sua gente, a festa continua. Os tambores seguem batendo e, mesmo no lugar de maior oficialidade do
samba, ainda ecoam cantos aos orixás, como no samba enredo da Mangueira, de 2016, entre outros:
“Maria Bethânia – a menina dos olhos de Oyá”, cujo samba trazia versos como: Oyá matamba de
kakorocá zinguê/ Abebé ilumina meu caminhar/ Abre o terreiro que hoje vai ter xirê/ Xeu epa babá,

RISO
1339

xeu epa babá/ Valei-me senhor do Onfim... Magia/ Morada de todos os santos... Bahia/ A brasilidade
que vem de lá/ A retratar a miscigenação4
Oferecer uma contrapalavra faz parte do ato de interação que demonstra uma compreensão
ativa, a qual permite uma atitude responsiva (BAKHTIN, 2006), no caso, um enfrentamento diante do
opressor. Dessa forma se deu o diálogo entre os negros, suas culturas e religiões, e a sociedade/o
governo que lhes impunha a exclusão. Tal conflito nos revela o quanto os enunciados se constituem um
espaço de luta, de conflito, entre vozes sociais, e que, por isso, são um lugar da contradição (BAKHTIN,
2006). É sempre uma resposta, uma tomada de posição ideológica.
Que esse riso e essa festa nos façam acreditar que podemos enfrentar todas essas mazelas
às quais estamos em embate constante. Vivemos dias de dor, de aborrecimentos, de desilusão, mas
tudo o que lemos e ouvimos em Bakhtin nos aponta o caminho da esperança, da luta que nunca cessa.
E é isso que nos mantém vivos: a possibilidade de respondermos sempre a toda forma de dominação.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec, 2006b.
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Francois Rabelais. 7ª Ed. Trad. Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010a.
FILÉ, Valter. O que espanta miséria é festa! – Puxando conversa: narrativas e memórias nas redes educativas do
samba. Tese de doutorado. UERJ, 2006. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br.
PONZIO 2008 A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coordenação de
tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
PAJEÚ, Hélio M. A estética da cultura popular na folia de Momo do Recife - questões de alteridade, corporeidade e
transgressão. Tese de doutorado. UFSCar, 2014.
VELLOSO, Mônica Pimenta. As Tias Baianas tomam conta do pedaço: espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro;
Estudos Históricos, n.6, 1990.

4
Composição: Lequinho / Gilson Bernini / Junior Fionda / Gabriel Machado / Flavinho Horta / Igor Lea

RISO
RESUMO
1340
O presente artigo promove uma discussão sobre o
cronotopobakhtiniano, através de uma análise do
conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa. O conceito

O CRONOTOPO BAKHTINIANO de cronotopo na literatura foi introduzido por


Bakhtin (1998) ao considerar que em uma narrativa
existem elementos representativos que fundem a

NA NARRATIVA DE GUIMARÃES noção tempo-espaço e que condicionam as relações


dialógicas entre as personagens. Esses diálogos,
além de conduzir o texto por meio dessa fusão,

ROSA: O TEMPO DO RISO EM representam os sujeitos dessa interação em seus


tempos e espaços, onde a noção de passado e
futuro está interdependente da tensão discursiva.

“FAMIGERADO” Assim, objetivamos mostrar que nesse conto de


Guimaraes Rosa, o riso do jagunço Damásio e a
relação que ele estabelece com o médio (o outro
nessa interação verbal) provocam a alteração no
tempo da narrativa, à medida que afeta a relação
entre os dois: ora tensa (ausência do riso), ora
calma (riso solto). Além dessas marcas
enunciativas, outros “risos” condicionam a relação
de Damásio e o médio, fazendo com que o
BRAZ, Cleidson Frisso5 cronotopo se sintetize nessas marcas e nas
relações que delas advêm. Para comprovação
CARVALHO, Letícia Queiroz de6 dessa ideia, analisamos o conto “Famigerado” à luz
da teoria de Bakhtin (1998) sobre cronotopo e
demais diálogos que outros autores estabeleceram
a partir do autor, o que nos levou a concluir que o
tempo do riso é o cronotopo do conto analisado.

Palavras-Chave: Cronotopo. Narrativa. Riso. Tempo


INTRODUÇÃO

D
iscutir o tempo no texto literário parece uma tarefa um tanto paradoxal, ao passo que entre um
acontecimento e outro existe sempre o imensurável, bem como um universo de fatores
impossíveis de se delimitar ou contabilizar. O tempo, compreendido em seu aspecto não apenas
cronológico, mas também como topos da enunciação verbal é postulado por Bakhtin como cronotopo,
que figura a fusão com o espaço, incutindo na produção literária as marcas discursivas do homem em
relação com o mundo, o outro e consigo mesmo.
A partir de tais pressupostos, objetivamos mostrar que no conto de Guimaraes Rosa,
“Famigerado” do livro Primeiras estórias, o riso do jagunço Damásio e a relação que ele estabelece
com o médio (o outro nessa interação verbal), provocam a alteração no tempo da narrativa, à medida
que afeta a relação entre os dois: ora tensa (ausência do riso), ora calma (riso solto). Além dessas
marcas enunciativas, outros “risos” condicionam a relação de Damásio e o médio, fazendo com que o
cronotopo se sintetize nessas marcas e nas relações que delas advêm.
O percurso argumentativo do artigo será organizado a partir das seguintes seções: “O
cronotopobakhtiniano”, em que a categoria conceitual será explicitada para possíveis interlocuções

5
Mestrando em Letras do Profletras, do Instituto Federal do Espírito Santo. Professor efetivo da Prefeitura Municipal de Anchieta, Espírito
Santo. Coordenador do Fórum Municipal de Educação de Itapemirim, Espírito Santo. Email: cleidsonfrisso@hotmail.com
6
Doutora em Educação. Professora titular do Mestrado Profissional em Letras – Profletras e do Mestrado Profissional em Ensino de
Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo – Campus Vitória. E-mail: leticia.carvalho@ifes.edu.br

RISO
1341

com o conto roseano a ser analisado. Em seguida, na seção “O tempo do riso em “Famigerado”,
buscaremos um diálogo entre o cronotopobakhtiniano e o texto literário escolhido como corpus de
análise deste artigo, por meio das situações narrativas criadas por Guimarães Rosa, de modo a
destacar a importância do tempo do riso na edificação do texto em análise. Por fim, na última seção,
“Considerações finais”, serão sintetizadas as marcas enunciativas no conto e as suas relações com a
tessitura narrativa do texto roseano, de modo a propor outras possibilidades de leitura literária em
suas articulações com o contexto social mais amplo.

O CRONOTOPO BAKHTINIANO

O conceito de cronotopo é introduzido por Bakhtin em ‘The dialogicimagination’ (1988), no


ensaio ‘Formsof time andofthechronotope in the novel’ emprestado da teoria da relatividade para a
análise literária. Segundo o autor

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo
compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o
próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do
tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste- se de sentido e é medido com o tempo. Esse
cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico (BAKHTIN, 1988, p 211).

Com isso, Bakhtin (1988) propõe que tempo (crónos) e espaço (tópos) manifestam-se, no texto
literário, uma indissolubilidade onde as ações, conflitos e marcadores enunciativos determinam a
passagem do tempo, incutindo nas personagens aspectos metamórficos que retratam o vínculo entre
o real e o imaginário.Assim, no conto “Famigerado “, de Guimaraes Rosa, o riso é a marca enunciativa
que, à medida que se manifesta no personagem Damásio, conduz a narrativa e provoca alteração no
tempo, através da fundição com o espaço.
O cronotopo conceituado por Bakhtin pode ser representado por diferentes marcas, como na
cultural romanesca era o casamento, ou a estrada nas culturas populares, os castelos na sociedade
medieval, mas o principal ponto em comum é o entrelaçamento entre o tempo e o espaço que se
fundem e conduzem as narrativas e seus conflitos. Assim sendo, os cronotopos

[...]são os centros organizadores dos principais acontecimentos temáticos do romance. É no cronotopo


que osnós do enredo são feitos e desfeitos. Pode-se dizer francamente que a eles pertence o significado
principal gerador do enredo (BAKHTIN, 1998, p 147).

Embora o conceito de cronotopobakhtiniano suceda a obraEstética da Criação Verbal (1997), já


se notava a percepção do autor quanto a um tempo não estigmatizado por uma ideia plástica ao
afirmar que o ritmo no texto literário é o resultado do movimento entre os sentidos, e não entre os
marcadores discursivos temporais.

RISO
1342

O ritmo pressupõe certa predeterminação da tensão interna, do ato, da vivência (certa desesperança do
sentido). O ritmo supera o futuro real, absoluto, irremediável, incerto, e supera a própria fronteira entre
o passado e o futuro (e o presente, claro) em proveito do passado. O futuro do sentido se dissolve num
passado e num presente que lhe predeterminam o princípio artístico (pois, de fato, o autor-
contemplador engloba sempre um todo temporal: situa-se mais tarde não só no tempo, mas também
mais tarde no sentido) (BAKHTIN, 1997, p 133).

Nunes (1987, p. 147) corrobora com tal concepção afirmando que “toda narração transmite
uma estória que, organizadaem um enredo, evolui no tempo e noespaço”, isso não significa delimitar a
interpretação literária num viés estruturalista da linguagem, mas perceber que “há uma passagem de
um estado para outro” (Cardoso, 2007, p. 134). Nesse sentido, este artigo se ancora nas concepções
bakhtinianas sobre o cronotopo para mostrar que o “riso”no conto “Famigerado”, de Guimaraes Rosa,
é o marcador discursivo que provoca a alteração no enredo e, consequentemente, produz a passagem
do tempo, ou seja, ele é o lugar (topos) onde se fundem tempo e espaço e sempre que há uma
mudança cronotópica o ato de rir (ou o seu não ato) é o elemento enunciativo que altera essa
passagem.
O cronotopo, para o filósofo russo, apresenta-se também por meio de significados temáticos,
principais geradores da edificação narrativa. Assim,cronotopos

[...] são os centros organizadores dos principais acontecimentos temáticos do romance. É no cronotopo
que os nós do enredo são feitos e desfeitos. Pode-se dizer francamente que a eles pertence o
significado principal gerador do enredo.” Bakhtin atribui também um significado figurativo ao cronotopo,
que “como materialização privilegiada do tempo no espaço é o centro da concretização figurativa, da
encarnação do romance inteiro”. Nele cabem os elementos abstratos do romance que gravitam ao redor
do cronotopo: “as generalizações filosóficas e sociais, as idéias, as análises das causas e dos efeitos,
etc. (BAKHTIN, 1998, p. 355-356).

As configurações cronotópicas no texto literário relacionam-se às categorias espaço e tempo,


sejam aplicadas às singularidades de cada texto ficcional, sejam em sentido mais abrangente ao
abarcar contextos históricos por meio de uma visão mais distanciada, para além da materialidade
textual. Ou seja, a passagem do tempo pode se vincular aos elementos textuais, mas também
considerar a relação entre tais elementos e as suas possíveis interlocuções com o cenário cultural
que se constitui nas relações sociais.
No conto, encontram-se, em riste,um “[...] brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe”
(ROSA, 1988, p.32), que vai até a fazenda de um médico, acompanhado de três homens que servem de
testemunhas de uma questão: “[...] o que é mesmo que é: famisgerado... faz-me-
gerado...falmisgeraldo... familhas-gerado...?(ROSA, 1988, p. 34)e se encena uma batalha antitética
entre culto e vulgar, senhor e vassalo, medo e coragem. Em questão, está a necessidade do jagunço
em saber o significado da palavra “famigerado”, frente ao medo do médico que recebe em sua porta
“[...] um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta,
equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo”(ROSA, 1988, p. 32).

RISO
1343

Nesse cenário hostil, o autor ambienta sua narrativa em uma “[...] espécie de moldura que
enquadra o retrato” (BRAIT, 2012,p. 98), provocando no leitor a possibilidade de percepção de uma
cena do embate a vir ocorrer, mas que, até então, não define os papéis dos personagens ali
presentes, quem é vilão ou mocinho, como em toda batalha épica que se prese. Bakhtin (1997) nos
explica que isso ocorre porque o herói se constitui no olhar do outro, sendo assim, naquele momento
da narrativa, não se sabe quem é herói, quem é vilão, e se o há,pois somente o outro que observa a
cena é capaz de criar uma imagem pronta das personagens e a tensão da cena não permite que o
leitor identifique tais papéis.
Bakhtin (1998) nos provoca a compreender esse espaço conflitante, que determina e é
determinado pelos sujeitos, como exotopia, em que, naquele momento, não estão reunidos naquela
disputa apenas aquelas pessoas, mas todos os conceitos formados sobre “ser jagunço” e “ser
médico” que se têm pré-concebidos e que, no texto literário, tomam significando no “[...] ato generoso
do outro de quem dá de si” (BRAIT, 2012, p. 97).
Notamos que o espaço se funde com o tempo e marca o início da narrativa, uma vez que não
se percebe no conto nenhuma referência específica a um tempo determinado. Nas primeiras linhas o
narrador anuncia, num tom cordelista, que o “Foi de incerta feita – o evento”(p. 32), a partir dali, não
se nota nenhuma expressão que possibilite a associação de um tempo cronologicamente preciso, há
apenas uma sucessão de “causos” que conduzem o leitor a perceber uma sequência temporal na
narrativa a partir docronotopo do riso, ou seja da fusão tempo-espaço onde os momentos de tensão
são compilados nos enunciados verbais de “[...]não-rir, quase que rir, se é que riu, riso seco, sorriu,
mais sorriu e alto rir”(ROSA, 1988, p. 32 - 35).
Além de marcar o movimento da narrativa, o riso topifica o homem que rí. Sendo ele um
jagunço, sertanejo, de cultura desprivilegiada linguística e socialmente, ele personifica o riso do
homem como topos de toda uma classe em geral. Pode-se dizer que Guimaraes Rosa capturou a
essência do jagunço e anteviu que o riso representaria toda a libertação que a descoberta do
significado de uma palavra traria para esse homem, que passa a ser “[...] todos os homens jagunços”
(BRAIT, 2012, 102).
No início do conto, a marca discursiva que determinada o cronotopo é a ausência do riso, que
ao longo da narrativa vai ditando as performances, o clima dos personagens e as cenasda
disputaentre um médico e um jagunço, praticando-o para que o tempo progrida, alterando o espaço e
a relação entre as personagens, definido por Gancho (2004, p. 149) como tempo fictício, ou
seja,“[...]criações internas à narrativa, ou entranhados no enredo”.
Inicialmente, são apresentados aos leitores os personagens do conto por meio de uma
anunciação de um conflito que rompe com a tranquilidade do “arraial”: a aparição de “Um grupo de
cavaleiros. Isto é, vendo melhor, um cavaleiro rente, [...] três homens a cavalo [...]. Tomei-me nos
nervos”(ROSA, 1988, p. 32).A partir deste momento, toda a narrativa é conduzida de modo a mostrar a
“brabeza” do visitante inesperado. É interessante notar que os personagens não são determinados
por características físicas, até então o que se sabe é que “o oh-homem-oh – com cara de nenhum

RISO
1344

amigo” é o líder do grupo e que a presença dos demais é subjugada para que o foco narrativo se dê na
tensão entre os personagens principais: o jagunço e o médico.
Durante os cinco primeiros parágrafos não há nenhum esboço de expressão de pazes ou
cordialidade entre os personagens, assim como não há sorriso e sinais de placidezes em nenhum
deles, muito pelo contrário, ao perceber que “aquele homem” era um “brabo sertanejo, jagunço até a
escuma do bofe”, o médico sente que “não ficava útil dar cara amena”. A seriedade e o ato de “não
rir” representam o clima tenso e conflituoso da narrativa, fundindo o tempo e o espaço.
O medo (aliás “O medo O“) entre os combatentes é um fator preponderante na narrativa. Até
então, não há nenhuma referência de tempo por meio de marcadores enunciativos evidentes, como
locuções adverbiais por exemplo. O tempo se uniu ao espaço e ambos corroboram para o conflito do
enredo.
Ao final do quarto parágrafo, se esboça um congraçamento quando, ao referir-se ao homem, o
narrador explica: “[...] sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe; talvez
são-franciscano.”(p. 32). Nesse momento, a narrativa toma outro tom, a atmosfera se altera,
transmutando-se ao ponto de o homem “[...] desfranziu-se, porém, ‘quase que sorriu’”(p. 33),
mostrando que o riso (ou quase) provoca a alteração entre o espaço-tempo da narrativa, fazendo
com que os personagens criem aproximação, e o conflito se desencadeia nas cenas que sucedem.
Entre o tempo de “não rir” e o “quase que riu” ocorrem as tensões que revelam que o “[...]
tempo da literatura é pendular, ele vai e volta, só vai para frente na condição de que dê um passeio
pelo remoto. O tempo da literatura é a construção do desejo” (RODRIGUES, 1989,p. 6). Nesse sentido,
os conflitos e medos não deixam de existir após o tempo de “quase rir”, ele apenas anuncia a mudança
de um painel, até então estático, para um cenário de acordos e entremeios:

Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por gentiliza? Reteve no pulso a ponta do
cabresto, o alazão era para paz. [...] Seria de ver-se: estava em armas – e de armas alimpadas. Dava
para sentir o fogo, no cinturião...”
Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, acalmava-me
(ROSA, 1988, p. 33).

Após o momento de tensão inicial, os personagens retomam o diálogo e o “aquele homem” é


nomeado: “Damázio, dos Siqueiras”. O ato de dar nome ao personagem revela que, aos poucos, as
identidades são reveladas com cada vez menos tensão e os papeis definidos. Podemos afirmar que
essa natureza da metamorfose coloca o personagem em crise, ao passo que essas alterações de
comportamento do jagunço representam uma mudança na temporalidade do texto: “[...] cada nova
temporalidade, corresponde um novo homem” (BRAIT, 2012, p. 103). Esse personagem submetido à
mudança provoca uma alteração do espaço e clima de crise, desembocando na passagem do tempo:
“se é que riu”.
O tempo “se é que riu” revela a quebra da crise entre os personagens principais, ao ponto que
se percebe a ironia do médico ao julgar a característica física de Damázio que, de tão feio, não se

RISO
1345

sabia se aquilo podia ser considerado um sorriso. Riso ou não, o fato é que o tempo passa mais uma
vez pelo cronotopodo riso. Agora o tempo se insere num ante clímax do problema que motivou o
jagunço a procurar o narrador-personagem: saber o significado da palavra “famigerado”.
Para que se compreenda o tempo além de um padrão cronológico é preciso aceitar que a
temporalidade literária no conto se dá pela sucessão de ideias e sensações transformadas pela ação
do riso, cuja metamorfose do sujeito ocorre justamente no momento da experiência com o outro
(BRAIT, 2002). Nota-se, portanto, que o contato cada vez mais próximo entre os personagens (“só se
fito à meia esguelha”) possibilita a passagem do tempo. Esse é tratado, aqui, como durée(Eco, 2003, p.
149):
O tempo atua sobre as personagens, apresentando e as modificando.É o tempo de duração de um
fato,acontecimentomarginaloucena,talcomoumaversãodo tempoconcretointernaànarrativa.

Entre o ato de rir e o quase rir desenredam-se seis parágrafos, cujo conflito tenso e intenso
dá o tom combativo entre os personagens. Já entre o tempo do “quase rir” e o “se é que riu” são
desenvolvidos cinco parágrafos. Contudo, entre esse último é o tempo do “riso seco” bastaram três
parágrafos. Essa diminuição de intervalos entre o tempo do riso se dá pela quebra do clima de tensão
da narrativa, já que o jagunço “de golpe” revela sua dúvida e se expõe mediante ao médico como um
ser ignorante que precisa “das grandezas machas duma pessoa instruída” para revelar o sentido da
palavra famigerado, já que de onde ele vem não tem “nenhum ninguém ciente, nem o legítimo – o livro
que aprende as palavras”. Esse riso seco permite que pensemos em se tratar de um riso
inconsciente, uma vez que ele só é transmitido através do som produzido das palavras ditas a golpe:
“Disse de golpe, trazia entre os dentes aquela frase. Soara com riso seco”(ROSA, 1988, p. 34). Vale
notar que, a cada nuance do riso, o espaço se altera e corrobora para o ideia do riso como cronotopo.
A partir daí o conto toma um clima diferente; os papeis se invertem e o medroso passa a ser
respeitado pela consciência que toma o outro mediante a sua importância. Já o jagunço, que nesse
momento já é Damázio, desmonta-se de sua soberba e arrogância, assumindo sua grosseria: “ _
Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender”(ROSA, ano, p. 35). O tempo passa
devagar a ponto de desenredar-se um intenso diálogo onde o autor dá voz aos personagens pelo
discurso direto, deixando que o tempo corra quase que imperceptível.
Após a resposta obtida sobre o significado da palavra “famigerado”, Damázio, satisfeito com a
colocação, resolve “saltando na sela” ir embora. Para marcar esse tempo “sorriu-se”. E em seguida
“outro”. Outro sorriso ou outro homem? Não se sabe, mas é certo que o tempo passa nesse interim,
seja pelo intervalo psicológico de um homem transformado em outro pelo sorriso que o conhecimento
da palavra famigerado lhe trouxe, seja pela distância invisível de um riso seguido de outro. Neste
momento, fundem-se os intervalos entre passado e futuro que, de acordo com Bakhtin (1997, p. 133),
“não é uma categoria de tempo, mas uma categoria de sentido”, ou seja, ela é um desdobramento do
que se pretende ser e acontecer, mas que ainda não se presentificou e está em constante intenção do
dever ser. Nesse cenário, o jagunço se insere no contexto de querer ser e saber sobre o sentido da
palavra e essa passagem tempo-espacial é marcada pelo cronotopo do riso.

RISO
1346

O tempo que antes passava entre espaços distantes devido a tensão, agora passa rápido uma
vez que não há tensão nem dúvida, a ponto de, ao final do mesmo parágrafo do conto, Damázio“mais
sorriu”. A partir daí o tempo-espaço anda a galope e o jagunço “esporou, foi-se, o alazão”. Isso
ocorre quando Damázio não tem mais dúvida sobre a palavra e “não pensava no que o trouxera”;
assim, sem conflito, sem tensão, o tempo se esvai e o jagunço “alto ri”, marcando o tempo do fim do
“famoso assunto”.Conclui-se assim, a metamorfose do tempo, do espaço e do homem, que se torna
outro ao ponto que se movimentou no tempo do riso.
O tempo na narrativa do conto “Famigerado”, de Guimaraes Rosa, é ditado por uma esfera
social, revelado por um jagunço ignorante que determina a passagem do tempo pelo riso. Por senso
comum,era de se esperar que o poder de “comandar” o tempo fosse conferido ao médico, uma vez
que é ele quem detém o conhecimento da palavra, mas Guimaraes Rosa subverte essa ideia assenta
ambos os personagens no mesmo patamar, sem hierarquias, uma vez que estão sujeitos às condições
imprevisíveis que se ecoam no cronotopo do riso. Assim, podemos afirmar que o tempo na narrativa
literária do conto é muito mais que a contagem progressiva ou regressiva marcada por palavras ou
expressões, mas sim a materialização e transformação que repercute do conflito tempo e espaço que
se fundem no cronotopo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O riso em “Famigerado” projeta o homem transfigurado e representa todo homem. Assim,


esse tempo do riso projeta uma visão genérica sobre o homem-jagunço no texto. Damázio não é mais
um jagunço, no ato de rir ele é a metáfora do homem que transcende a um status de culto, única e
exclusivamente pelo conhecimento da palavra “famigerado”, com isso Guimaraes Rosa expõe sua
crítica à sociedade que prioriza o saber científico sobre o saber popular.
Bakhtin (1988) assinala um lugar coletivo para o cronotopo e isso se percebe nesse conto de
Guimaraes Rosa, já que naquele espaço de arena onde se encena uma batalha de interesses e medos
várias histórias se inscrevem. Mas é válido lembrar que esses personagens são muito mais que dois
homens, mas sim representações sociais que concentram todas as tensões dos sujeitos que eles
simbolizam, são suas histórias socioculturais que estão tencionadas no texto e permitem entender
“visões típicas de homens” (BRAIT, 2012).
O tempo do riso não pode ser desabrigado do sentido daquele tempo do eu-narrador que, ao
se posicionar como contador, já não é mais o primeiro e, por isso, o riso passa a ser o tempo do que
foi vivenciado, naquele conflito; mas que, em outro espaço-tempo adquire outros sentidos, outros
tempos, portanto um cronotopo contemporâneo.
O riso como cronotopo na sociedade contemporânea representa o homem em sua
temporalidade, pois ao mesmo tempo em que se isola no sujeito, transcende-se em diferentes
momentos de sua vida. Assim, é possível “mudar de tempo, sem mudar de lugar” (BRAIT, 2012, p. 104),
já que o sorriso se aprisiona no homem, mas se movimenta no próprio sujeito. O cronotopo do riso no

RISO
1347

conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa, é passaporte para a mudança do tempo. Muda o sujeito que
ri, seja do/com o outro e até mesmo de si, cujo ápice do cronotopo é ato de “alto rir”, pois nele
fundem-se as dimensões espacial e temporal, pois resolve-se o “famoso assunto”.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética – a teoria do romance. São Paulo: Unesp, 1998.
_____. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes: 1997.
BRAIT, B. Bakhtin: outros conceitos-chave. 2ª Edição. São Paulo: Contexto, 2012.
CARDOSO, J. B. Teoria e prática de leitura, apreensão e produção de texto. 2001.
ECO, U. Sobre a literatura. Rio de Janeiro, Record: 2003.
GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2004.
LUQUES, S. U. Cronotopo: a teoria bakhtiniana em sala de aula. Cadernos de pós-graduação em Letras. São Paulo:
Mackenzie, 2017.
RICOEUR, P. Temps et récit, tome I, cit. p. 104. Apud NUNES, B. O tempo na narrativa. 1987.
RODRIGUES, A.M.; BARBOSA, J.A. Estudos sobre o tempo: o tempo na literatura. São Paulo. IEA / USP: 1989.
ROSA, J.G. Famigerado. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

RISO
RESUMO
1348
Neste texto, apoio-me nos teóricos Bakhtin e Propp,
bem como na teoria da análise do discurso, para
traçar algumas ideias acerca do escatológico na

O RISÍVEL E OS MEMES rede social Facebook. Focalizo os memes que se


apresentam com diversos temas sociais e políticos
e que se configuram em um gênero discursivo
cômico. O estranho, o escárnio, a irreverência e o
ridículo estão presentes em posts na rede e
dialogam com seus leitores e frequentadores,
abrindo espaço para respostas e risos. Junto com
todas as publicações - dejetos de uma cultura que
gera incessantemente lixo textual e imagético -, os
FAJARDO TURBIN, Ana Emília 7 memes se constituem como ferramentas de
resistência ao poder instituído e aos costumes e
ideologia da classe média. Quiçá sejam eles alguns
dos possíveis propulsores a fim de acordar o dito
“gigante adormecido” que passivamente
testemunha a volta do nosso país ]”ao século
passado”, no que toca às conquistas sociais e
INTRODUÇÃO trabalhistas.

V
Palavras-Chave: Memes. Cômico. Rede Social
amos abordar textos. Não por outra razão, faz-se
necessário, de modo inicial, conceituarmos o texto, que no
presente caso, vem a ser aquele escrito em discursos
jornalísticos, postados nas mídias sociais, em particular no Facebook.
Texto, para Bakhtin, é fonte, fonte como “realidade imediata”. Nosso dado, a ser analisado e
aprisionado na tela do computador, vem nos alertar sobre o momento em que vivemos e,
parafraseando o autor, configura-se em textos nos quais os deuses se manifestam com suas
revelações, em que no nosso momento sócio-histórico-político é considerado tragicômico. Por meio
deste viés cômico, tocaremos no dialogismo desses textos, publicados na mídia eletrônica, para
leitores ávidos da escatologia por ela gerada. Segundo Wetman (2009) duas atitudes fundam dois
tipos de risos: o rir de e o rir com. O rir de refere-se à zombaria, assim definida por Propp (1992) na
comédia do caráter. O rir com nos remete à Bakhtin (1987), na comicidade carnavalesca. Nosso
objetivo está circunscrito nessa explosão do riso e em por que há explosão no momento em que nos
deparamos com o que nos faz rir: por ser absurdo ou ridículo? Estamos nos atendo ao rir de
proposto por Propp (1992). Queremos rir e precisamos rir, pois vivemos indubitavelmente a cultura
do lixo (BAUMAN, 1999) gerada pela globalização causadora da morte, da fome, do desemprego e do
caos. Segundo BAUMAN (Ibid.) consumimos cada vez mais lixo, em todos os sentidos, pois tememos a
morte, queremos escapar da ideia de finito. No meio desse lixo, porém, manifesta-se o riso pelo
meme8, pelo sarcástico e irreverente.

7 Professora Doutora Adjunta III da Universidade de Brasília - Departamento de Ensino de Línguas Estrangeiras e Tradução. E-mail:
anemiliaturbin@gmail.com
8 Meme é um termo grego que significa imitação. O termo é bastante conhecido e utilizado no "mundo da internet", referindo-se ao fenômeno de

"viralização" de uma informação, ou seja, qualquer vídeo, imagem, frase, ideia, música etc. que se espalhe entre vários usuários rapidamente,
alcançando muita popularidade. O conceito de "meme" teria sido criado pelo zoólogo e escritor Richard Dawkins, em 1976, quando escreveu no
livro "The Selfish Gene" (O Gene Egoísta), pois tal como o gene, o meme é uma unidade de informação com capacidade de se multiplicar,
através das ideias e informações que se propagam de indivíduo para indivíduo. Os memes constituem um vasto campo de estudo da Memética.
O primeiro meme a ser utilizado na internet foi provavelmente criado em 1998, por Joshua Schachter, que na época tinha 24 anos e trabalhava

RISO
1349

Participamos, no Brasil, de um momento único. O país questiona sua identidade. Nunca antes
pudemos assistir, de camarote, aos macetes e ardis do submundo político com suas nefastas ações
advindas de um contexto sociopolítico em que se privilegia a prostituição do poder. Podemos dizer que
manifestações do povo perplexo e inativo se encontram em grandes quantidades em textos cômicos,
os chamados memes, presentes nas mídias sociais e, em particular, no Facebook.
O escatológico nos textos jornalísticos surge frente a nossos olhos, todos os dias, mesmo que
não queiramos vê-lo ou ouvi-lo. Ele faz parte da ideologia da globalização já mencionada. E, por mais
paradoxal que seja, há desejo em se consumirem detritos escatológicos. Basta, para mostrar isso,
abrirmos rapidamente uma página da internet que contenha notícias: imediatamente, estaremos em
contato com textos (que aqui denominarei de “textos-lixo”) da atualidade, misturados a outros, até
importantes e relevantes, mas todos na mesma dimensão de importância9.
Seguem exemplos de algumas manchetes representativas da cultura do indecente, vulgar e
corriqueiramente chamado de “sem noção”: “Um truque simples derrete gordura da barriga...”;
“Vazam os salários dos maiores atores globais...”; “Descubra como Geisy emagreceu tão rápido...”.
No meio destas notícias e manchetes, outras mais relevantes acabam por não se destacar; ao
contrário, mantêm-se no mesmo formato e tamanho das demais: “As sete razões de Palocci para
detonar Lula...”; “Renomados modernistas vão à leilão...”10.
Neste artigo, portanto, pretende-se destacar a forma cômica de se retratar nosso momento
político com memes, no Facebook e pensar criticamente acerca da seguinte questão: o que diriam
Bakhtin e Propp sobre os memes?

METODOLOGIA

A metodologia que aqui adotada é a qualitativa. Coletaram-se memes atuais sobre o momento
político brasileiro, como forma, talvez, de resistência. Estaremos atentos aos fatos, pois seguimos o
pensamento de Propp:

Devemos resolver a questão das relações entre a teoria e os fatos de modo diferente do que tem sido
até aqui. Sua base deve ser um estudo sério e imparcial dos fatos e não elucubrações abstratas por
mais interessantes e atraentes que elas venham a ser (PROPP, 1976/1992, p.16).

Algumas categorias teórico-metodológicas darão sustentação à análise. Iniciamos com a


categoria gênero do discurso. Estudaremos os memes do Facebook que, de acordo com Bakhtin
(1953/2017), se constituem em um gênero discursivo, devido às seguintes razões: conteúdo temático;
estilo e construção composicional.

no serviço de weblog chamado Memepool, onde vários usuários podiam postar links interessantes e compartilhar com as outras pessoas
(Disponível em: <https://www.significados.com.br/meme/> Acesso em: 29 set. 2017.
9 Disponível em: <www.vitruvirus.com.br>. Acesso em: 29 set. 2017.

10 Disponíveis em: <www.msn.com> Acesso em: 29 set. 2017.

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1350

Os três componentes citados ligam-se no conjunto do enunciado e são determinados pela


especificidade de um campo de utilização da língua (BAKHTIN, 1953/2017, p.12).
Explicando cada um dos itens acima, o conteúdo temático dos memes é variado. São objetos
simbólicos, produtos de uma determinada configuração sócio-histórica-política. Diz-nos Propp que
vários temas podem ser objetos do riso: aspectos da pessoa, seu rosto, sua silhueta, seus
movimentos. Podem, também, na fala do autor, ser cômicos os raciocínios que a pessoa pouco
sensata revela. Quanto ao escárnio, afirma que ele vem à tona a partir do caráter da pessoa em foco,
por sua vida moral, suas aspirações, seus desejos e objetivos (PROPP, 1992, p.31).
Quanto ao estilo, digamos que se enquadra no risível, no rir de, rir de alguém que se
aproveita do poder para criar medidas denominadas pelos jornais de “pacote de maldades”. O estilo é,
via de regra, satírico ou, como diz nos Bakhtin (2017), “breves réplicas do diálogo do cotidiano“.
Podemos, de certa maneira, comparar ao estilo surreal de Magritte, que se apresenta escondido em
suas obras, sendo alvo de diversas interpretações. Magritte tentou reproduzir sátiras de quadros
famosos que inspiraram o sentido de humor non sense moderno (GUERRA, 2011) .
Em suas obras, bem como nos memes, há um deslocamento e uma condensação. Em outras
palavras, duas figuras essenciais da Linguística: metáfora e metonímia. Na verdade, essas duas
figuras, presentes no discurso humano, são características da piada, que compartilha com o meme
seu lugar no risível. O gênero que escolhemos tem uma estrutura composicional singular: sentenças
curtas e inesperadas que levam ao riso; contêm em si mesmas uma desestrutura do que se é
esperado. Proliferam metáforas e comparações das mais bizarras e a metonímia é mostrada por
deslocamentos e hibridismo de gêneros discursivos variados.

ANÁLISE

Os memes se referem a personalidades reais ou fictícias da mídia. Animais como gatos e


cachorros são usados para mostrar, através do olhar ou de trejeitos, sentimentos ou ideias. Os
enunciados são muitas vezes trocadilhos, jogos de palavras.
Nos memes abaixo, figuras políticas são escancaradas, desafiadas em sua masculinidade e
honestidade, como se houvesse uma condensação de imagens e textos. Vejamos alguns exemplos de
memes políticos:

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1351

Figura1 - Riso maroto

Fonte: www.facebook.com

No meme acima (Figura 1) a pessoa em questão é ridicularizada por seus trejeitos. A posição
das mãos é comparada à posição das mãos de uma senhora que parece estar segurando o coração,
pois se preocupa demais com algo; porém há uma risadinha marota que desconstrói essa
preocupação, transformando o meme numa piada em que o “To rindo” demonstra uma contradição:
estou sorrindo, mas no fundo não estou; havendo uma proposição falsa. O sentido escondido termina
sendo: “não confiem em mim”.

Figura 2. O palhaço

Fonte: www.facebook.com

No meme apresentado na Figura 2, o palhaço fala, o sujeito por trás do palhaço não tem
respeitabilidade alguma por ser quem é. Afinal, nesta condensação entre o homem/palhaço as falas
provêm do palhaço. A metáfora é óbvia. As falas, por sua vez, têm sentido, pois foram proferidas por
um palhaço. O recurso estilístico é a ironia.

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1352

Figura 3. Cochilo do casal

Fonte: www.facebook.com

No meme acima (Figura 3), o flagrante viralizou. Ao cochilar e acordar, o sujeito se lembra
das “ropa” no varal, como se os dois fossem um casal conversando sobre a rotina doméstica. O par
aparece frequentemente em memes. A metáfora se refere a um político que se iguala a uma dona de
casa ao se lembrar das roupas que não tirou do varal. A seu lado, seu companheiro também parece
estar cochilando. Há uma ironia e um escárnio num meme de gênero híbrido pois a função dos sujeitos
da figura em nada se relaciona com lavar roupas.

Figura 4. Ele sabe

Fonte: www.facebook.com

Neste meme que é constituído pela capa do primeiro LP (long play) do cantor e compositor
Chico Buarque de Holanda, o artista, famoso e apreciado pela qualidade e beleza de suas composições
e obras, está sorrindo, ao profetizar a queda do presidente e imediatamente mudando de expressão
ao enunciar quem assumirá o lugar deste. Essa descrição corresponde a fatos sabidamente
conhecidos pela mídia. Primeiramente, Chico defende o partido de oposição ao governo. Deportado na
década de 1960, o compositor sofreu na pele as agruras do regime militar. Sendo sujeito dessa fala,

RISO
1353

sua imediata mudança de expressão entrega o seguinte sentido: nada vai mudar. Parece até o título de
uma canção. Será? Sua imagem é usada, pois em si só já traz uma marca ideológica.

Figura 5. Obama

Fonte: www.facebook.com

Nesta outra sequência, temos um tipo de meme - Como eu me sinto quando - em que um gesto
- o colocar de um boné e arrumá-lo na cabeça - tem um significado especial. Uma metonímia: sentir-
se poderoso ao colocar o boné do FBI. O boné no lugar de uma instituição política. Obama pode usar o
boné do FBI e cobrar os significados de ligações suspeitas de Trump com a Rússia, por exemplo.

CONCLUSÕES

Os enunciados dos memes dialogam com o leitor de forma singular, e podemos perceber que,
de forma cômica, a mensagem é entregue àqueles que compartilham as vicissitudes do cenário
político e social brasileiro. A risada é imediata se há compreensão do texto. Curtos e diretos, os
enunciados se configuram como charadas e trocadilhos, anedotas que trazem um recado permeado
pelos valores compartilhados pelo público que frequenta a rede midiática Facebook. Importante
repetir que a compreensão dos sentidos está relacionada ao conhecimento social e político dos fatos.
Memes cumprem, portanto, uma função bastante importante: tentar “cutucar”, no jargão do
Facebook, o “gigante adormecido” com provocações. Seus enunciados mostram o que se pensa a
respeito de figuras como políticos e suas artimanhas. A metáfora é presença constante, e a
metonímia cumpre seu papel de representar ou simbolizar um todo maior, com o qual tenha uma
relação de contiguidade.

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1354

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, A. F. de. Sentidos do corpo: metáforas e interdiscurso. Linguagem em (Dis)curso. LemD. Tubarão, SC,
volume 14 n 2 pp321 a 335. maio/ag.2014. In: <http://www.scielo.br/pdf/ld/v14n2/1518-7632-ld-14-02-00321.pdf>
Acesso em: 1 out. 2017.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. SãoPaulo: Editora 34, 2017.
______. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólvoka Américo. SãoPaulo:
Editora 34, 2015.
______. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1987.
BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
GUERRA, D.C. O surrealismo cerebral de René Magritte. Disponível em:
<http://obviousmag.org/archives/2011/01/rene_magritte.html> Acesso em: 1 out. 2017.
PROPP, W. Comicidade e Riso. São Paulo: Ática, 1976/1992.
WETMAN, A. L. Passeando entre a comicidade, a paródia, o estranhamento: o riso na série O bairro de Gonçalo
Tavares. Dissertação de Mestrado. UFRGS. IL Letras. 2009.

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RESUMO
1355

Palavras-Chave:

DIVAGAÇÕES SOBRE O RISO

FERREIRA, Fernanda de Moura 11

INTRODUÇÃO

E
studar o fenômeno do riso não é das tarefas mais simples e
“sérias”, uma vez que historicamente o tema nunca foi
considerado “digno” de estudos sérios ou esteve na pauta
principal dos grandes estudiosos da humanidade. Bakhtin já afirmava
isso na introdução do seu texto sobre Rabelais, vendo-o como “o
campo menos estudado da criação popular”. Isso pode ser
evidenciado na própria literatura da Antiguidade haja vista os grandes e festejados gêneros da época
não apresentarem o riso em sua composição, caso da epopeia, isto é, aquilo que é consagrado ao
“grande” não pode ser “corrompido” pelo riso. Na epopeia em especial, que objetiva a exaltação de
uma nação, nada pode tirar mais a coroa de esplendor de uma nação grandiosa que visa o respeito e
temor das outras do que rir de si mesma. Riso e grandiosidade não dividem o mesmo espaço. A
seriedade é que garante o ar de reverência e imponência. Ao contrário disso, os gêneros que tinham
por coluna vertebral o riso eram considerados menores, a saber, a comédia, as sátiras, dentre outros
enunciados relativamente estáveis. Em outras épocas, o riso também teve acento pesadamente
negativo. Exemplo disso é a figura do homem e da mulher de respeito, em virtude dos modos
extremamente controlados e adequados a uma sociedade que aproxima seriedade e autoridade,
competência e sisudez. Pode-se citar ainda, a título de ilustração, uma personagem muito conhecida
na Idade Média e dos espaços palacianos, o bobo da corte, sujeito que se dedicava ao divertimento da
realeza e, consequentemente, mais uma peça no jogo da corte, sendo visto como um idiota que não
merecia que suas palavras “fossem levadas a sério”. Ou seja, o que não é sério não merece ser
ouvido ou considerado.
Muito embora o tema sempre tenha rodado em segundo plano, sem o destaque dos holofotes e
vivendo na penumbra, muitos autores se debruçaram sobre o estudo do que seria o riso
contemplando estudiosos e pensadores das mais variadas áreas do conhecimento e épocas. Voltando
a Antiguidade, vários filósofos teceram considerações sobre o risível. Platão via-o como sinal de

11 Mestre em Linguística Aplicada pela UFRN. Profa. Efetiva do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte,
campus João Câmara. E-mail: fernanda.ferreira@ifrn.edu.br.

RISO
1356

fraqueza e arrogância; Aristóteles, como o elemento diferenciar entre os homens e os demais animais
ao afirmar que apenas o homem ri; Sócrates pensava o riso como gerado pela inveja; Cícero afirmava
que o fenômeno é próprio dos temas indignos ou deformados. A partir do exposto, salta aos olhos a
origem do “olhar atravessado” que se tem até a atualidade para o tema. No entanto, antes da época
dos filósofos citados, o riso era algo positivo na Grécia e remetia a Idade de Ouro em que os homens
eram felizes e viviam tranquilos, longe das moléstias.
Contudo, o risível também teve e tem seus momentos de “louros” e agraciamento. A medicina,
por exemplo, comprova seus benefícios para a saúde e a eficácia no tratamento de doenças graves,
como câncer. A materialização desse pensamento pode ser vislumbrada em hospitais por meio da
ação de grupos voluntários que buscam divertir pacientes que passam por tratamentos de saúde. Tal
concepção chega ao cinema por meio de filmes como “Patch Adams - o amor é contagioso”, o qual
conta a história de Hunter Adams que, após tentar suicídio e ser internado em um sanatório, decide
virar médico e ajudar as pessoas usando de métodos poucos tradicionais que usam do risível. Em
função disso, passa por diversas situações de conflito em seu ambiente de trabalho, entretanto
conquista o respeito de seus colegas devido aos resultados obtidos por seus pacientes, provando que
o riso pode ser um aliado na recuperação de enfermidades. Tal ideia médica sobre o riso também
entra na ideologia do cotidiano por meio da frase “Rir é o melhor remédio”.
Trazendo o tema para a atualidade, a partir da nossa experiência enquanto partícipes na
sociedade de hoje, o riso é visto como algo positivo e que deve ser cultivado. Essa visão tem levado a
uma mudança de paradigma comportamental que pode ser evidenciada através de situações como: a
entrada do riso em vários programas jornalísticos enquanto estratégia para garantir audiência e
popularidade, já que os programas que usam desse artifício têm feito sucesso e aumentado a olho nu
principalmente em canais abertos; o crescimento expressivo nos últimos anos de programas,
espetáculos e canais virtuais de viés humorístico, diga-se de passagem, o grande sucesso de
youtubers que passaram das telas dos computadores para os teatros, espaços de apresentação e até
mesmo livros com seus “shows de humor” (Whindersson Nunes, por exemplo), também de artistas
que fazem Stand Up Comedy; o uso do riso por parte de diversos professores, em especial os de
cursinhos preparatórios, e oradores para atrair a atenção do público para aquilo que está sendo
expresso; entre outras circunstâncias que podem ser facilmente encontradas no cotidiano.
Com base no discutido e assim como qualquer conceito que se serve de alvo de análise de
numerosas áreas e por tanto tempo, é de se esperar que a ideia do riso tenha sido concebida de
variados modos (saliente-se, também, ser uma ação humana, portanto tão volúvel quanto o homem o
é). Em detrimento disso, é difícil, para não dizer irresponsável, conceituar de maneira estanque um
conceito tão abrangente. Nesse ponto, há uma aproximação entre os conceitos de riso e língua em
virtude de ambos necessitarem de filiação teórica e serem situados no tempo e espaço para que haja
um delineamento mínimo a respeito. Do mesmo modo que a língua é pensada enquanto sistema,
instrumento do pensamento e interação social (para ficarmos nos conceitos mais difundidos e
conhecidos), o riso também foi visto de maneiras várias, passando de meio para a criação do mundo a

RISO
1357

signo demoníaco. Também a semelhança da língua em que um conceito predomina enquanto outros
coabitam, o riso apresenta conceitos diferentes dentro do mesmo recorte temporal. Acerca do dito, a
Idade Média pode servir mais uma vez de respaldo, uma vez que São João Crisóstomo pregava um
Cristo sério enquanto as igrejas explodiam em gargalhadas no tempo pascal após um pesado período
de penitência quaresmal, demonstrando o riso como condenável e santo concomitantemente, profano
e santo ao unir concepções e acentos de valor que, a priori, seriam inconciliáveis, mas que se
mesclam dentro do mesmo espaço e tempo.
Ainda sobre a Idade Média, há diferentes tipos de riso que cobrem variados segmentos
sociais com diversas valorações. Além dos já citados (riso palaciano, riso pascal e riso como desforra
do diabo), há o riso explicitado pelos estudos de Bakhtin. A partir deste momento, concentremo-nos
nas avaliações do filósofo russo da linguagem.
A concepção de riso apresentada por Bakhtin figura entre uma das principais no que tange ao
riso na Idade Média e no Renascimento, sendo, inclusive, citada em trabalhos de peso que se propõe a
investigar o fenômeno sob um viés histórico, como é o caso de Minois (2003) que ao tratar do
fenômeno confere crédito ao filósofo russo e explicita que

De início, devemos dar a César o que é de César e a Mikhail Bakhtine o que lhe pertence. Seu estudo,
muitas vezes citado nos capítulos precedentes, é essencial para a época da Renascença. Ele nos servirá
como ponto de partida para colocar os problemas próprios ao século de Rabelais, e, se nossas
conclusões diferem das dele, seu trabalho permanece indispensável para a compreensão do riso
rabelaisiano. (p. 271)

Mesmo que as reflexões bakhtinianas não estejam totalmente em consonância com o


pensamento do historiador francês, este reconhece a qualidade do trabalho bakhtiniano. O riso é
trazido, segundo Minois (2003), com um valor de subversão social o qual é temporariamente liberado
pelas autoridades, devido a haver na Idade Média uma nítida separação entre o cômico e o sério,
também devido ao oficial se pautar em uma visão de seriedade do mundo, ficando relegado ao cômico
uma zona de “submundo” não reconhecida pelas instâncias legitimadoras. Porém, as festas de cunho
carnavalesco aparecem como refrigério à atmosfera pesada que havia sobre essa era, oportunizando
que houvesse um tempo específico para que as pessoas pudessem relaxar um pouco a postura grave
e, consequentemente, entrar em um clima mais leve que apresenta como bandeira o riso. Assim, o
riso está associado a uma atmosfera que se opõe ao oficial e aparece como alternativo, fazendo com
que o risível se apresente enquanto opositor da visão séria do mundo. Assim, o riso seria o
ingrediente indispensável nas festividades carnavalescas e aquele que corroboraria com a criação de
uma cosmovisão carnavalesca da vida, criando um mundo paralelo ao habitual. Assim, o fenômeno
seria genuinamente festivo.
A questão do riso foi pensada por Bakhtin em vários momentos de sua obra enquanto uma das
manifestações de descentralização, isto é, um dos agentes utilizados pelas forças centrífugas,
demonstrando o fenômeno como transformador e desestabilizador. As raízes do romance (gênero
considerado pelo filósofo da linguagem como da modernidade e de renovação frente a enunciados

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1358

clássicos, como a epopeia e a tragédia, que predominavam em sua germinação) estão no riso e no
plurilinguismo, devido a ambos serem historicamente fatores de descentralização e relativização da
consciência humana. O argumento usado por Bakhtin (2010) é que a humanidade vai construindo
historicamente, por meio do riso e da percepção do plurilinguismo, uma consciência descentrada e
que se percebe uma entre tantas outras: a consciência galileana. Portanto, o riso auxilia na corrosão
da centralização, sendo instrumento utilizado pelas forças de descentralização e, por isso, fragiliza
muitos discursos. Sobre isso, Faraco afirma que

O riso participa organicamente desse processo porque tudo dessacraliza e relativiza. Rir dos discursos
deixa clara sua unilateralidade e seus limites, descentrando-os, portanto. A consciência socioideológica
passa a percebê-los como apenas um entre muitos e em suas relações tensas e contraditórias. O riso
destrói, assim, as grossas paredes que aprisionam a consciência no seu próprio discurso, na sua
própria linguagem. (2009, p. 82)

O riso aparece, portanto, enquanto libertador de uma visão de mundo fortemente


verticalizada, pesadamente unilateral e abre caminhos para que novos horizontes possam ser
vislumbrados, de modo a se perceber um caminho antes visto como único enquanto um em meio a
tantos; a visão se alarga, dando um leque de possibilidades antes não evidenciadas ou expostas.
Assim, ao trincar discursos predominantes e que se colocam como únicos, o riso os dessacraliza, os
rebaixa e os aproxima dos que habitam uma região underground, colocando-os todos em uma relativa
equidade. Como o trecho supracitado diz, o riso consegue corroer as “grossas paredes” e levar os
discursos a perceber o plurilinguismo no qual eles estão submersos e a perceber também que
coabitam com muitos outros. Daí o caráter desestabilizador.
Segundo o ensaio de Shepherd (2006), ao tratar da obra de Gogol, Bakhtin traça um plano de
leitura para o escritor russo e traz como referência o riso como uma zona de contato familiar, um
ponto de vista sobre o mundo todo e uma força para superar a seriedade do mundo e o medo (p. 211).
Também em Problemas da Poética de Dostoiévski (2010) o filósofo russo toca na questão do riso
quando aborda o sentido da ridicularização do supremo, prática da Grécia antiga anterior a era
aristotélica que determinou os privilégios do riso tanto na Antiguidade quanto na Idade Média. Sob a
marca do riso, resolvia-se muito daquilo que não seria possível em um âmbito sério. Assim, o riso se
dirige ao supremo para a mudança de paradigmas, de estruturas, poderes e verdades, preza por uma
reestruturação, apontando, pois, para os dois polos da mudança e pertencendo ao próprio processo
de mudança.
Assim, o fenômeno é visto por Bakhtin como se opondo à cultura oficial, ao tom sério, religioso
e feudal da época, porém ele se fazia presente em todas as festividades de cunho carnavalesco,
inclusive na Igreja por meio do riso pascal já citado neste texto. Também nas cerimônias e rituais civis
da vida cotidiana. E para melhor entendermos, o autor nos explica “a natureza complexa do riso”, o
qual, segundo ele, é carnavalesco, isto é, um ingrediente essencial nas festividades de viés
carnavalesco. Assim, Bakhtin (2010) pontua que o riso

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1359

É, antes de mais nada, um riso festivo. Não é, portanto, uma reação individual diante de um ou de outro
fato “cômico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo (esse caráter
popular, como dissemos, é inerente à própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é “geral”; em
segundo lugar, é universal, atinge todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o
mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre
relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo
burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente. (p. 10)

Dessa forma, o riso, segundo o fragmento acima, apresenta três características definidoras
de sua natureza na Idade Média: popular, universal e ambivalente. Seria popular porque é um
patrimônio do povo e por ele é usado contra a hegemonia, seria universal por ser geral e seria
ambivalente em razão de ter um caráter regenerador e formar um ciclo de destruição e de
regeneração, por unir os opostos sem se prender a um deles de maneira estanque. Sobre a
ambivalência do riso, Minois (2003) afirma que

O riso tem um poder revolucionário. Melhor: é um verdadeiro demiurgo, uma potência criativa capaz de
ressuscitar os mortos, cerzida na cultura popular da Idade Média, na qual a vida e a morte se misturam
de forma inextricável, num processo indefinido e decomposição e renascimento. (p. 272)

Assim, o riso tem um poder de renovação nas mãos do povo, cujo objetivo é descentralizar o
paradigma oficial durante uma limitação temporal, a limitação de tempo própria das festas
carnavalescas, visando uma mudança que ultrapassasse a temporalidade estabelecida. Para que ele
surja, é necessário que uma característica da cosmovisão carnavalesca entre em cena: a alegre
relatividade do mundo, tendo em vista que é ela que auxilia na gênese do riso ao passo que ela permite
que se ria sem o receio de uma retaliação e faz com que o fenômeno tenha o caráter renovador e não
destruidor. Assim, há uma relação de gênese do riso, devido à relatividade preparar o terreno para
que ele surja, e de alimentação dessa relatividade, ao momento em que o riso ajuda a constituir a
atmosfera da relatividade das coisas uma vez que ele auxilia na percepção de que as coisas não
nasceram assim, mas se tornaram assim, apresentando uma esperança de mudança. Daí a força do
riso. Outro elemento da cosmovisão carnavalesca que se faz presente para a constituição do riso
carnavalesco é a zona de contato familiar, por ela permitir que o riso seja geral, fazendo com que o
escarnecedor seja alvo de zombaria, havendo, assim, uma permuta de papéis que visa a uma
aproximação dos homens por meio da equidade que se almeja.
Bakhtin (2010) ressalta, ainda, a natureza utópica e o valor de concepção de mundo que o riso
tem. Utópica em razão de, por meio do riso carnavalesco, se realizar algo impensável no mundo
oficial: a equidade entre os homens, o fim da assimetria e das diferenças entre as pessoas, realizando
um projeto que aparece na obra bakhtiniana e tem seu apogeu no conceito de polifonia que aparece na
poética de Dostoiévski. Já a noção de concepção de mundo se liga à luta entre o oficial e o não oficial.
Seria uma espécie de grito, de reação popular contra as injustiças e as disparidades cometidas por
toda a superioridade, uma batalha em que de um lado ficaria o povo e, do outro, as instâncias que
imperavam na Idade Média: a Igreja e a realeza. Concepção de mundo, por ser uma forma peculiar de

RISO
1360

ver e julgar a vida e as circunstâncias, embasando-se em uma atmosfera cômica. Porém, a cultura
popular do riso viveu e desenvolveu-se fora da esfera oficial e foi graças a essa existência extraoficial
que ela conseguiu se distinguir por seu radicalismo e sua liberdade excepcionais, tendo a praça
pública como palco. A verdade do riso englobava e arrastava a todos, de tal maneira que ninguém
podia resistir-lhe. Assim, o riso da Idade Média foi homologado pela festa e perdurou até o
Renascimento no qual explodiu e, com o tempo, iniciou processo de degeneração.
O riso era tão importante na vida do homem medieval que ele sentia o fenômeno como uma
vitória sobre o medo, não somente sobre o terror místico (terror divino) e o medo que inspiravam as
forças da natureza. Era uma vitória sobre o medo moral que cercava o homem e obscurecia sua
consciência, criando um temor de tudo o que é sagrado e interdito. Ao derrotar esse medo, o riso
esclarecia a consciência do homem, revelando um novo mundo e criando uma sensação de liberdade
no que tange a todas as correntes que o prendem através de sua mentalidade, muito embora essa
libertação fosse apenas temporária e toda a superestrutura voltasse assim que a festa terminasse.
Porém, sementes lançadas pelo riso atingiam a esfera do sério e serviam de gérmen para que as
transformações almejadas durante o cômico fossem também desejadas na vida oficial, constituindo e
alimentando a consciência do homem medieval. Sobre isso, Bakhtin nos explica que

O riso não é forma exterior, mas uma forma interior essencial a qual não pode ser substituída pelo
sério, sob pena de destruir e desnaturalizar o próprio conteúdo da verdade revelada por meio do riso.
Esse liberta não apenas da censura exterior, mas antes de mais nada do grande censor interior, do
medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado, do poder, medo ancorado no espírito humano há
milhares de anos. [...] O riso revelou de maneira nova o mundo, no seu aspecto mais alegre e mais
lúcido. (p. 81)

O riso, portanto, é usado como arma popular, como um modo de levar o homem medieval a
outra consciência e lutar por ela. Assim, o riso está ao lado do homem popular medieval e jamais
poderia ser instrumento de opressão e de embrutecimento do povo, devido a nunca se conseguir tê-lo
tornado oficial, permanecendo, nesta perspectiva, uma arma de liberação nas mãos do povo. Sobre
isso, em “Apontamentos de 1970-1971”, Bakhtin (2011) afirma que o riso, junto com a ironia, é uma
superação da situação, como elevação sobre ela e apresenta as culturas dogmáticas e autoritárias
enquanto unilateralmente sérias, enquanto amontoadoras de situações de impasse e o riso como
aquele que se coloca sobre elas, que liberta delas. Assim, o riso não aprisionaria o homem, mas o
libertaria. Por fim, vejamos o que o autor fala sobre a relação riso e libertação:

A índole social e coral do riso, sua aspiração ao popular e ao universal. As portas do riso estão abertas
para todos e cada um. A indignação, a ira, a revolta são sempre unilaterais: excluem o fato de se
indignarem com alguém, etc., provocam uma ira responsiva. Elas se dividem ao passo que o riso só
unifica, não pode dividir. (BAKHTIN, 2011, p. 370)

RISO
1361

DANDO ACABAMENTO A DISCUSSÃO

A partir do que foi discutido ao longo deste trabalho, podemos colocar o riso dentro da
arquitetônica bakhtiniana enquanto mais uma peça do quebra-cabeça. Este tem por base a esperança
de uma realidade mais generosa para criar aquela. Nesse caso, o riso como mais um elemento para
atingir a expressão máxima da obra filósofica de Bakhtin: a polifonia. Se pensarmos nesse conceito de
uma maneira mais abrangente, teremos a tentativa de quebrar com o paradigma de sua época, mas a
realização de fissuras que mostram um outro caminho possível. Em virtude disso e com olhar
amoroso e esperançoso, o riso estudado por Bakhtin compõe a utopia de um mundo melhor.
Embora o riso seja um fenômeno social e parte da história da humanidade, uma vez que o riso
sempre esteve junto ao homem, pensar sobre o tema ainda é adentrar em um terreno pantanoso e é
preciso estar preparado para os dizeres adversos que frequentemente despontam sobre os
pesquisadores do assunto. Os passos dos estudiosos do riso ainda afundam na lama do preconceito
daqueles que acreditam que o risível não tem contribuições a dar. Enunciados como “você estuda riso
por quê?”, “qual a importância disso para a academia?”, “você devia procurar algo mais útil para
estudar”, “de onde você tirou isso de estudar riso?” lembram os vigilantes olhos do crocodilo prontos
a intervir ao menor deslize. Todavia, é no meio do lamaçal que se tem a grata e bela surpresa da flor
de Lótus: a descoberta de um universo de acentos de valor, de cosmovisões de diversas épocas e
segmentos sociais, o descortinar ideológico de um imenso mosaico do pensamento humano.
Em suma, estudar riso é mais uma forma de tentar compreender o Homem.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. São Paulo:
Hucitec, 2010.
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_______. Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997.
_______. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
_______. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
______. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
GEGE (Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso). Palavras e contrapalavras: glossariando conceitos, categorias e
noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro e João Editores, 2009.
MINOIS, G. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora da UNESP, 2003.
PONZIO, A. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2009.

RISO
1362

RAMOS, P. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2010.


_____. Faces do humor: uma aproximação entre piadas e tiras. Campinas, SP: Zarabatana Books, 2011.
SKINNER, Q. Hobbes e a teoria clássica do riso. RS: Unisinos, 2002.

RISO
RESUMO
1363
Este trabalho tem por objetivo principal discutir o
conceito de paródia enquanto transgressão de um

A PARÓDIA ENTRE A discurso-fonte, elucidando um pouco mais a relação


que se estabelece entre este e o discurso que o
parodia. Para tal, parte-se da teoria bakhtiniana,

TRANSGRESSÃO E O
retomando trechos em que o autor tratou do tema,
para depois fomentar um diálogo com outros
autores, da área das linguagens e dos estudos do
riso, de forma a ampliar o alcance da compreensão

LIMITE 12
da paródia e dos seus efeitos nos fenômenos
sociais. Por fim, propõe-se uma análise, com base
nessa resenha teórica, para elucidar um pouco
mais a discussão desenvolvida. Desta maneira,
analisa-se uma notícia fatual e uma desnotícia
(gênero que parodia aquele), ambas respectivas ao
discurso político e às figuras políticas brasileiras
contemporâneas.
FIGUEIRA, Filipo13
Palavras-Chave: Paródia. Transgressão. Desnotícia

INTRODUÇÃO

Q
uando se trata do riso em sua relação com a língua e a linguagem, hoje, uma coisa é certa: é
praticamente impossível não dialogar minimamente que seja com M. Bakhtin. A influência do
filólogo russo é indiscutível, visto as apropriações de diversos autores (como J. Kristeva e T.
Todorov, em sua esteira) de conceitos como carnavalização e dialogia, mesmo que tenham
esterilizado, em certa medida, seu aspecto humorístico. Diferentemente destes últimos, o conceito de
paródia (junto com o de estilização, principalmente) não está organizado coerentemente em apenas
um de seus livros, mas pincelado em diversas de suas obras; esta dispersão causa um efeito
significativo: tal qual a necessidade sentida M. Barbosa (2001), para representar o conceito de paródia
para Bakhtin em sua totalidade seria preciso resenhar, antes, diversos de seus conceitos, como
polifonia, dialogia e carnavalização.
O que se pretende com esse texto é um objetivo muito mais singelo: retomar os pontos
principais da teoria bakhtinianas da paródia (apresentando outros conceitos apenas na medida
necessária para esta discussão), para depois, através da interlocução com outros autores,
compreender sua atualidade e expandir seu alcance. Ao fim, construir, em diálogo, um conceito de
paródia que se funda no pensamento de Bakhtin, mas que permite, ao mesmo tempo, refletir com a
modernidade tardia (ou a chamada “pós-modernidade”) por meio de autores contemporâneos. Vamos,
então, à definição de paródia.

12Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo nº 2017/01190-9).
13Graduado em Letras – Licenciatura pela UNICAMP. Aluno de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UNICAMP, e membro
do centro de pesquisa FEsTA. E-mail: figueirafp1@gmail.com

RISO
1364

1. A PARÓDIA EM M. BAKHTIN

Para Bakhtin (1993, 1981), antes de tudo, é impossível entender qualquer manifestação
linguageira que não como “palavra encarnada” (BARBOSA, 2001), isto é, em sua manifestação
dialógica-responsiva a dizeres alhures e anteriores: “todo discurso existente não se contrapõe da
mesma maneira ao seu objeto: entre o discurso e o objeto [...] interpõe-se um meio flexível,
frequentemente difícil de ser penetrado, de discursos de outrem, de discursos "alheios"” (BAKHTIN,
1993 [1975]14, p. 86). Continua, complementando que “todo discurso concreto (enunciação) encontra
aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado,
avaliado, envolvido [...] pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele” (idem). O discurso,
deparando-se com essa terra já colonizada por outras vozes, nela penetra e dialogicamente
estabelece suas relações, separando filiações e antagonismos, tornando-se, enfim, a palavra
encarnada.
Há, no entanto, uma categoria especial de realizações enunciativas: as que visam representar
precisamente voz anterior. Estes fenômenos, segundo o autor, ultrapassam, por isso mesmo, os
limites da linguística, devendo ser compreendidos metalinguisticamente, para além de sua realização
formal mas na sua existência dialógica (BAKHTIN, 1981 [1963]). Eles estabelecem, pois, com os
enunciados-fonte dois tipos de relação: associam-se a eles, mas em uma nova direção, “misturando”
duas linguagens sociais distintas; quando essas vozes (primeira e segunda) coexistem em acordo ou
contiguidade, Bakhtin chama o fenômeno de estilização, i.e., uma paráfrase deslocada da voz original
(SANT’ANNA, 2003) mas que a segue disciplinarmente. Porventura, a segunda voz pode tornar-se
propositalmente indisciplinares às vozes originais, contrapondo-se à palavra que a fomenta –
entramos, enfim, no campo da paródia.
Nela,

como na estilização, o autor fala a linguagem do outro, porém, diferentemente da estilização, reveste
essa linguagem de orientação semântica diametralmente oposta à orientação do outro. A segunda voz,
uma vez instalada no discurso do outro, entra em hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga a
servir a fins diametralmente opostos. O discurso se converte em palco de luta entre duas vozes. Por
isso é impossível a fusão de vozes na paródia, como o é possível na estilização ou na narração do
narrador (em Turguiêniev, por exemplo); aqui as vozes não são apenas isoladas, separadas pela
distância, mas estão em oposição hostil. Por isso a deliberada perceptibilidade da palavra do outro na
paródia deve ser especialmente patente e precisa (BAKHTIN, 1981 [1963], p. 168, meus destaques).

Para que ambos os fenômenos surtam efeito, no entanto, é imprescindível que essa diferença
seja marcada: “a paródia, se não é grosseira [...] é geralmente muito difícil que revele o seu segundo
contexto sem conhecer o seu fundo verbal alheio” (BAKHTIN, 1993, p. 170); sendo este segundo
contexto ignorado, para ambos os fenômenos, “a estilização será interpretada como estilo, a paródia,
simplesmente como obra má” (idem, p. 160-161). No entanto, e aqui se separa da estilização em um

14 As datas indicadas por colchetes indicam a publicação original das obras, afim de manter alguma evidência da cronologia de sua publicação.

RISO
1365

caminho sem volta, a paródia contrapõe-se à voz original, hostilizando-a em uma direção semântica
diametralmente oposta:

as intenções do discurso que representa não estão de acordo com as do discurso representado,
resistem a elas, representam o mundo real objetivo, não com o auxílio da língua representada, do ponto
de vista produtivo, mas por meio de sua destruição desmascaradora (BAKHTIN, 1993, p. 160-161, meu
destaques).

Em suma, para Bakhtin, a paródia é uma voz que não se conforma, é um enunciado que se
insurge contra um discurso anterior; retoma-o, torna-o fundamento apenas para poder contrapô-lo e
hostiliza-lo. Enfim, é uma voz que para existir habita outra, desmascarando-a onde ela, eventualmente,
falha.

2. TRANSGRESSÃO E LIMITE: o paradoxo da Paródia

Não obstante algumas discordâncias com a perspectiva bakhtiana, L. Hutcheon expande a


noção de paródia e propõe uma questão interessante, que nos permite ver o caráter paradoxal do
humorismo paródico. Para ela, a paródia não deixa de ser um ricochete, mas com um toque
deleuzeano: é repetição com diferença; é imitar a partir da distância crítica: “as naturezas textual e
pragmática da paródia implicam, ao mesmo tempo, autoridade e transgressão e ambas devem ser
tomadas em consideração” (HUTCHEON, 1989, p. 89, meu destaque). Em outras palavras, a paródia é
uma relação intertextual em que coexistem, paradoxalmente, a oposição e a autorização da voz
parodiada: “as transgressões da paródia permanecem, em última análise, autorizadas - autorizadas
pela própria norma que procura subverter” (idem, p. 97).
Esse paradoxo, em última instância, não é restrito às enunciações paródicas, diria M. Foucault
(2006 [1963]), mas à própria definição de transgressão: esta “transpõe e não cessa de recomeçar a
transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue
memória, recuando então novamente para a horizonte do intransponível” (FOUCAULT, 2006, p. 32, meu
destaque). O irresolúvel de toda transgressão é, portanto, que o elemento transgressor, por mais que
chegue ao limite do que transgride, o fortalece pela própria memória que carrega em si desse
elemento transgredido: “o limite e a transgressão devem um ao outro a densidade de seu ser:
inexistência de um limite que não poderia absolutamente ser transposto” (idem). Qualquer
transgressão – a paródia, para este estudo, ou as manifestações de uma sexualidade “subversiva”,
objeto de estudo de Foucault – não está para seu limite em uma oposição polarizada, mas “ligada a ele
por uma relação em espiral que nenhuma simples infração pode extinguir” (idem, p. 33).
A paródia, enfim, como fenômeno dialógico-intertextual é uma subversão legalizada, na medida
em que é inseparável do discurso a que se opõe (HUTCHEON, 1989). O texto paródico enuncia-se por
uma licença momentânea, e, na atualização de seu discurso, transgride e rememora o discurso
parodiado, simplesmente porque esse precisa existir, em termos de “reconhecibilidade”, para que a

RISO
1366

paródia possa, ela mesma, ser inteligível: a fonte da paródia dita, por assim dizer, as normas e formas
que serão quebradas, apenas para serem reatualizadas no fio do discurso paródico, garantia para que
este possa continuar a existir.
Esse paradoxo – que põe em cheque a hostilidade da paródia e sublima a possibilidade
sugerida por Bakhtin de uma suposta destruição da obra parodiada –, não é, ao meu ver, um aspecto
negativo, ou sequer “secundariza” a paródia em relação a outras manifestações intertextuais. Muito
pelo contrário, essa constante atualização e oposição de um discurso prévio é precisamente sua
“galinha de ouro”, visto ser aquilo que permite à paródia expor-se como contrário ao que for
contraditório daquilo que parodia.
Ela seria, retomando a metáfora de L. Pirandello (1996 [1908]), a partícula “se”, o símbolo
máximo do riso humorístico15, em uma de suas manifestações por excelência. Isto é, o privilégio da
paródia é que ela faz trabalhar dentro da voz parodiada a sua própria contrariedade, em um
constante lembrete que não cessa de se atualizar. O discurso parodístico desloca e desagrega o
objeto parodiado na constância da sua atualização discursiva: na proposta bergsoniana, o riso da
paródia nos faz entrever o funcionamento da voz parodiada, irrompe constantemente como
contrariedade na fluidez do discurso que parodia, mostrando, a cada instante, sua mecanicidade, sua
artificialidade (BERGSON, 2004 [1901]). Aí está o valor da transgressão paródica: a suspensão e
deslocamento da voz parodiada, sem nunca perdê-la de vista, coloca em mesmo plano transgressor e
transgredido, chocando-os em sua resistência semântica.

3. DOIS DEDOS DE ANÁLISE: a desnotícia e a paródia político-jornalística

Afim de tornar a questão menos abstrata, proponho realizar em seguida uma análise para
demonstrar as proposições acima.
Retomo aqui o objeto da pesquisa de mestrado que desenvolvo, para discutir a
intertextualidade paródica que ele mobiliza com o discurso jornalístico mainstream, dominante. O
objeto em questão é o gênero discursivo que tem sido designado por “desnotícia” 16 ; um gênero
emergente e bastante difundido no meio virtual, principalmente nas redes sociais (como Facebook e
Twitter). A desnotícia, enfim, imita humoristicamente as notícias jornalísticas fatuais para, ao
contrário destas, “desnoticiar” os acontecimentos: enquanto o discurso jornalístico informa, a
desnotícia “faz piada” a partir deste discurso jornalístico veiculado sobre os “fatos”. As desnotícias
são, portanto, paródias, tal qual ela foi definida acima. O que busco, agora, é tornar evidente como,
simulando uma notícia factual, a desnotícia traz à tona o discurso jornalístico por alusão (sem citá-lo

15 Conforme Pirandello (1996 [1908]): “o se, esta partícula que pode se inserir feito cunha em qualquer acontecimento, para desagregá-lo, é o
grande instrumento do humorismo, que consiste no sentimento do contrário, provocado pela especial atividade da reflexão, reflexão esta que é
o contrário do sentimento, embora acompanhando-o passo a passo como a sombra segue o corpo” (p. 14-15, meus destaques em itálico).
16 No âmbito da minha pesquisa, dedico-me exclusivamente às desnotícias publicadas pelo blog The Piauí Herald, hospedado por e vinculado à

revista Piauí.

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1367

diretamente): dependendo, portanto, do reconhecimento do leitor sobre os fatos e sobre o gênero


jornalístico, ao mesmo tempo que transgride seu discurso dominante.
Antes de apresentar os trechos que serão analisados, é importante um breve comentário
sobre a relação entre “imparcialidade” e “objetividade” na construção do fato jornalístico. Esta
questão está muito bem resumida no trecho que segue, de F. Biroli e L. F. Miguel (2017):

Os valores da imparcialidade e da objetividade no jornalismo, embora possam servir como uma forma
de resistência relativamente a pressões de governos e mesmo de agentes econômicos, escondem a
adesão a posições que, por sua vez, correspondem à visão de mundo de alguns grupos, mas não de
outros. Numa sociedade cindida por clivagens (de classe, de gênero, de raça, entre muitas outras), a
apresentação de visões parciais como se fossem “nenhuma posição” permite que as experiências e os
interesses de alguns grupos sejam universalizados . Como as clivagens que diferenciam os grupos
correspondem a privilégios, estamos falando de hierarquias socialmente estruturadas que ganham
forma no debate público por meio da visibilização e vocalização desigual dos grupos (BIROLI; MIGUEL,
2017, p. 11-12, meus destaques).

Pode-se dizer, portanto, que o efeito de objetividade serve, para o discurso jornalístico, como
meio de naturalizar a (sua) verdade que enuncia: uma verdade inacessível à maioria, mas que se
apresenta (apenas) por meio do veículo jornalístico, imparcial, desinteressado e sem uma “agenda
política” própria. Esse escamoteamento da adesão a posições de grupos específicos é, em larga
medida, o alvo da paródia das desnotícias, que reportam os personagens e os fatos à sua maneira
irreverente. Vejamos a notícia abaixo, coletada no portal O Globo:

Gilmar Mendes diz que caixa 2 precisa ser ‘desmistificado’

SÃO PAULO. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), Gilmar Mendes, disse que o caixa 2 de campanha precisa ser “desmistificado” e defendeu que a
Justiça e a Procuradoria-Geral da República separem os casos de doações eleitorais oriundas de
propina das feitas com dinheiro limpo, mas que não foram declaradas .
“Caixa 2 tem que ser desmistificado também. Necessariamente ele não significa um quadro de abuso de
poder econômico. Por que se faz caixa 2? A princípio para o candidato seria indiferente, seria até
melhor que ele recebesse pelo caixa 1”, afirmou Mendes, em entrevista à BBC Brasil.
[...]
Segundo o presidente do TSE, as investigações da Lava-Jato revelaram a existência de quatro tipos de
situação: “Temos a doação plenamente legal. Tem essa chamada doação legal entre aspas, (oriunda de)
propina. Temos a doação irregular, informal, caixa dois, que não teria outros vícios. E podemos ter
também essa doação irregular, informal, (oriunda de) propina, portanto com o objetivo de corrupção” (O
Globo, 10 mar. 2017, destaques meus).

Tematiza-se na notícia, é possível perceber apenas com esse recorte, a argumentação do


ministro do STF e presidente do STE, Gilmar Mendes, sobre a prática ilegal, até então, do desvio de
dinheiro em campanhas eleitorais, conhecido como “caixa 2”. A tese do ministro é que esse “tipo de
doação” pode ser tipificado em quatro categorias diferentes e, em dissonância com a lei atual e com a
compreensão do grande público, apenas uma dessas categorias seria de fato ilegal.

RISO
1368

A notícia começa, com esse intuito, apresentando a tese de G. Mendes: “o caixa 2 precisa ser
desmistificado” – o que segue, portanto, é a demonstração do que seria essa desmitificação. Em um
jogo de palavras no qual “caixa 1” e “caixa 2” tornam-se meramente rótulos, designações ordenadas
dos caixas e não propriamente paráfrases de “caixa oficial” e “caixa paralelo/ilegal”; o caixa 2 não é
mais sinônimo de “abuso de poder econômico”, mas apenas um meio mais conveniente de receber as
doações – mais conveniente, cabe dizer, não aos políticos, mas aos doadores. Enfim, segue-se com a
tipificação citada acima das formas de doação: a “plenamente legal” / “doação legal entre aspas
(oriunda) de propina” / “doação irregular” / “doação informal (oriunda de propina) com objetivo de
corrupção”.
Para separar os tipos de doação, Mendes precisa primeiro fugir ao binarismo legal/ilegal,
criando uma área cinza que possibilitaria rearranjar o “caixa 2”: assim, à doação não precisa ser legal
em sentido estrito, pois pode sê-lo plenamente ou entre aspas (neste último caso, legal mesmo que,
de maneira não explicada, oriunda de propina), variando dentro de um continuum da legalidade. Há um
terceiro caso que admite a irregularidade, isto é, doado em caixa 2, mas em que não há dolo, isto é,
não há intenção de corrupção; a este caso é designado um certo limbo no continuum, não sendo ele,
ainda, propriamente ilegal. Enfim, chega-se ao quarto e último caso, este, por paralelo, plenamente
ilegal, mesmo que o adverbio fuja ao político, que designaria a doação ilegal que visaria enfim o
enriquecimento ilícito e, portanto, mereceria ser considerado contravenção. Enfim, para conseguir
distribuir essa descrição da doação política, i.e., “desmistificar o caixa 2”, G. Mendes joga, em sentido
lato, com as palavras para ampliar o escopo da legalidade. A paródia desnoticiosa permite evidenciar
indiretamente esse processo. Vejamos, agora, a desnotícia publicada pelo The Piauí Herald:

“Caixa dois é apenas a soma de dois caixas um”, desmistifica Gilmar Mendes
BRASÍLIA – O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, afirmou nesta terça-feira que a
discussão sobre financiamento ilegal de campanha “não cabe em caixinhas ”. “Temos que desmistificar a
questão. Tirar dela todo incenso, todos os cristais e todos os duendes ”, conclamou. “Numa chapa
presidencial, por exemplo, o candidato a presidente tem um caixa e o vice tem outro . É natural que seja
assim. Instados a apontar em qual caixa pretendiam depositar suas contribuições, os empresários
frequentemente responderam: ‘Nos dois’. Não à toa, ao longo do tempo, o termo ‘caixa dos dois’ foi se
simplificando até virar ‘caixa dois’.”
A reboque dos esclarecimentos feitos por Mendes, muitas bancadas do Congresso se articulam para
apresentar pacotes de desmistificação de pautas como trabalho escravo, abuso do poder econômico,
desmatamento e latrocínio (TPH, 15 mar. 2017).

Nesta desnotícia, parodia-se precisamente o jogo de palavras que G. Mendes constrói em seu
depoimento. Desmistificação, de início, é tomada “ao pé da letra”, evocando-se uma proposição
inusitada, para não dizer absurda. Não mais como sinônimo de “resolver os equívocos”, desmitificar
passa a ser, literalmente, retirar qualquer resquício místico: incenso, cristais e duendes. Sem
nenhuma coerência lógica, “G. Mendes”17 passa então a um jogo de palavras parecido com o da notícia

17 Grafo o nome em aspas para indicar que não estou designando a pessoa “real”, mas sua versão parodiada.

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1369

original; se, para Mendes, caixa 1 e caixa 2 são designações que parecem apenas ordenar a sequência
de caixas, para o símile “Mendes” é de fato apenas uma questão matemática. “Caixa dois” é, enfim, a
simples soma dos dois caixas (do presidente e de seu vice), e a palavra composta não seria mais que
a simples redução de uma frase mais longa: “caixa do presidente e do vice-presidente” / “caixa dos
dois” / caixa dois”. Enfim, no último parágrafo, alude-se uma vez mais à fala de Mendes com a
coordenação de “abuso de poder econômico” (termo que o ministro usou para designar a prática
ilegal do caixa 2) ao lado de “trabalho escravo”, “desmatamento” e “latrocínio”, construindo uma
argumentação sério-cômica em que “desmistificar” o “caixa dois” teria o mesmo peso legislativo que
fazê-lo com essas outras questões.
De um lado, há a “voz jornalística”, o dizer que defende neutro para esconder seu aspecto
intrinsecamente ideológico. Associado a esta voz, encontra-se a manifestação do ministro G. Mendes e
sua defesa de um continuum da legalidade e as múltiplas facetas da doação de campanha “paralela”.
De outro, diametralmente, a voz paródica, que se imbrica nessa construção para suspender sua
ordem: o que se narra não é nem real, pois não relata os fatos, nem falso, pois ainda diz algo do
acontecimento em que se baseia. Ao mesmo tempo, reinscreve a manifestação de G. Mendes em um
novo regime enunciativo, humorístico, subvertendo e explorando seus percursos de palavra enquanto
signo ideológico. Nessa breve leitura, já foi possível observar como o discurso paródico da desnotícia
pretende deslocar o discurso jornalístico hegemônico, que, sob o signo da “objetividade”, escolheu dar
voz ao ministro. No entanto, não apenas a representação jornalística, como a própria declaração do
ministro foi parodiada, sendo levada ao seu limite, ao máximo de seu absurdo (à pura matemática, ao
esoterismo e, enfim, a práticas legislativas duvidosas). No entanto, para que se compreenda esse
discurso paródico, a todo momento faz-se necessário que o leitor retenha o texto original, que ele não
perca de seu horizonte interpretativo o que foi dito por G. Mendes; não obstante, é preciso também
que o leitor tenha em mente que a desnotícia pretensamente imita a objetividade, narrando com
verossimilhança uma verdade-outra, não factual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, viu-se, em primeiro lugar, a definição primordial de M. Bakhtin (1981, 1993) para o
fenômeno dialógico-intertextual do discurso parodístico. Em resumo, para o filósofo russo, a paródia,
tal qual a estilização, é uma hibridização de duas vozes, mas, e aqui os fenômenos diferem-se, que
coexistem em um antagonismo de oposição diametral; uma coexistência de vozes hostis uma à outra.
Ademais, a paródia, como processo de desmascaramento, desloca a voz original, parodiada, nos
permitindo entrever seus defeitos e falhas.
Enfim, discutiu-se também o pouco alcance da proposta bakhtiana da paródia como uma inter-
relação que poderia, enfim, destruir ou superar o discurso parodiado – índice dessa restrição é a
própria colocação do autor de que a paródia, para ser bem sucedida como tal, precisa ser obviamente
percebida. Apoiados em L. Hutcheon (1989) e M. Foucault (2006), vimos que a paródia, ao invés de

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1370

destronar o discurso-fonte, na verdade o leva ao extremo: por ser transgressiva, a paródia faz
trabalhar o discurso original até o seu limite, alarga-o, desloca-o, coloca-o contra si mesmo. A
potência do riso paródico reside, portanto, precisamente nesse funcionamento: no estabelecimento
polêmico de dois discursos que se mobiliza em pura contradição e que, distanciando-se dele, permite
desnaturalizar o discurso parodiado, permite-nos compreender seu funcionamento.
Foi este o objetivo que busquei cumprir com a breve análise da desnotícia: evidenciar o
funcionamento transgressor a partir da paródia do discurso jornalístico. Vimos que a desnotícia
depende de um duplo reconhecimento: é preciso que se reconheça o adorno da “objetividade”
jornalística (em uma mimese verossímil, mas ainda evidentemente falsa) e o conteúdo da declaração
de G. Mendes; essa dependência, no entanto, desloca o teor da tese do ministro e a “neutralidade”
jornalística, permitindo coloca-los, paradoxalmente, em suspense.
Este percurso, finalmente, é menos conclusivo e mais uma proposição de trabalho. Tanto para
mim, que ainda vou desenvolver minhas reflexões sobre o tema, quanto para todos que se interessam
pela problemática da paródia e da dessacralização da política; discussão que não pode jamais fugir da
rica obra bakhtiniana.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski [1963]. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981
______. Questões de Literatura e Estética: A Teoria do Romance [1975]. São Paulo: Hucitec, 1993. Trad: Aurora
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BARBOSA, Márcia Helena. A Paródia no Pensamento de Mikhail Bakhtin. Vidya, Santa Maria, v. 19, n. 35, p.55-62, jun. 2001.
Disponível em: <https://www.periodicos.unifra.br/index.php/VIDYA/article/view/503/493>. Acesso em: 22 set. 2017.
BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade [1901]. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Trad: Ivone
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BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Notícias em Disputa: Mídia, Democracia e Formação de Preferências no Brasil. São
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“CAIXA DOIS é apenas a soma de dois caixas um”, desmistifica Gilmar Mendes”, THE PIAUÍ HERALD (TPH), 15 mar. 2017.
Disponível em: http://piaui.folha.uol.com.br/herald/2017/03/15/caixa-dois-e-apenas-a-soma-de-dois-caixas-um-
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FOUCAULT, Michel. Prefácio à Transgressão (1963). In: ______. Ditos e Escritos III. Estética: Literatura e Pintura,
Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 28-46. Trad: Inês Barbosa.
GILMAR Mendes diz que caixa 2 precisa ser “desmistificado”, O GLOBO, 10 mar. 2017. Disponível em:
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HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: Ensinamento das formas de arte do Século XX. Lisboa: Edições 70, 1989. Trad:
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PIRANDELLO, Luigi. O Humorismo [1908]. São Paulo: Experimento, 1996. Trad: Dion Davi Macedo.
SANT'ANNA, Affonso. Paródia, Paráfrase e Cia. São Paulo: Ática, 2003.

RISO
RESUMO
1371

No presente artigo a proposta é discutir o humor

QUANDO O RISO NÃO É veiculado por meio de memes no blog de um


cursinho pré-vestibular online. Neste blog, os
memes estão presentes nos posts que contêm

REVOLUCIONÁRIO: uma análise


conteúdos que são cobrados nos vestibulares. O
objetivo é discutir como nem sempre o riso é
revolucionário e como, muitas vezes, ele “mascara”
relações opressivas. Nosso olhar para este
da presença de memes em posts do blog do material é direcionado pelos estudos do Círculo de
Bakhtin, que propõe uma abordagem dialógica dos
cursinho descomplica enunciados.

Palavras-Chave: Riso. Memes.Blog Educacional

Marina Totina de Almeida LARA 18

INTRODUÇÃO

N
ão é recente o fato de que as propagandas dos grandes cursinhos pré-vestibulares são
compostas por professores cantando, dançando e contando piadas, recursos hoje vastamente
utilizados para atrair e entreter alunos em sala (sobretudo pré-vestibulandos). A, podemos
dizer, “indústria do vestibular”, que capitaliza através de ofertas de “soluções” para o acesso às
grandes universidades, acarretou mudanças no cenário escolar, dentre elas, a que denominamos de
espetacularização da aula. Chamamos “espetacularização”, pois, o que encontramos nas salas de aula
atualmente, sobretudo nas de Ensino Médio e Cursinho Pré-vestibular, e que se relaciona ao
espetáculo pela apropriação – voluntária ou não –, por parte dos professores, de elementos como
música, dança, humor e teatro.
Nesse movimento atual de espetacularização da aula, esses recursos, majoritariamente
verbo-visuais ou verbo-voco-visuais (quando possuem som em associação no acontecimento),
funcionam como um termômetro das aulas, qualificando-as (e qualificando também os professores), e
buscam estabelecer uma relação de proximidade entre eu e outro (respectivamente professor e
aluno).
Nosso objetivo neste artigo é discutir, a partir do arcabouço teórico do Círculo de Bakhtin, a
presença do humor em um blog educacional (www.descomplica.com.br/blog) evidenciada
pela presença de memes. A problemática que norteia a discussão é se o humor do blog é
revolucionário, como entende Bakhtin (2015) em seus estudos sobre Rabelais.

18Mestranda do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. E-mail: m.almeidalara@hotmail.com.

RISO
1372

1. O RISO NOS ESTUDOS BAKHTINIANOS

Bakhtin é um importante estudioso da cultura popular e das relações entre a literatura e o


folclore, tendo como trabalhos expressivos nesse contexto sua tese de doutoramento A cultura
popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais, publicada em 1965, e
Problemas da Poética de Dostoiévski, de 1963. Nessas obras, o destaque dado é à categoria
“Carnaval”, categoria importante para adentrarmos nas imagens e ao cenário da cultura popular
cômica da Idade Média e do Renascimento, que se opõe à ideologia oficial da Igreja e do então Estado
Feudal, e também importante para propiciar reflexões sobre o embate entre a Ideologia Oficial e a
Ideologia do Cotidiano.
Para Bakhtin, Rabelais é o mais complexo dos autores clássicos, pois demanda uma libertação
das amarras da tradição cânone literária para compreender o universo da cultura cômica popular
(que Bakhtin reflete a partir de Rabelais), tão desvalorizada no meio literário, especialmente a partir
do século XVII, e também para compreender a obra rabelaisiana. Segundo o autor “as imagens
rabelaisianas inclusive continuam ainda e grande parte enigmáticas” (BAKHTIN, 2013, p. 2), assim
sendo, todo universo da cultura popular permanece intocado, incompreendido e desvalorizado,
principalmente a partir da época pré-romântica, na qual estabeleceram as concepções de cultura
popular e folclore e excluíram destas concepções a cultura peculiar da praça pública e suas formas
de riso.
Entretanto, no Renascimento (século XVI), Rabelais é uma figura de suma importância. Foi no
Renascimento que o riso alegre da praça pública deixou de ser encarado como inferior e “não oficial”
e adentrou o meio literário: nas obras de Rabelais vê-se a tradução da praça pública para o meio
literário. A partir das análises bakhtinianas das obras Gargantua e Pantagruel, de Rabelais, descobre-
se um mundo libertador, construído por meio do carnaval, do riso popular, na praça pública.
O carnaval, na Idade Média, era o momento de libertação do povo. Era nesse período que o
povo livrava-se dos medos e amarras do sistema oficial e, na praça pública, assumia uma nova forma
de vida, “às avessas”. Tudo o que era temido, sério e abusador transforma-se em cômico durante o
carnaval e, por meio de teatros, danças, vestes e vocabulários, a visão carnavalesca e o riso popular
davam asas à imaginação do sujeito na praça pública. Enquanto as festas oficiais consagravam as
desigualdades e eram estáveis, sérias e imutáveis, a festa popular na praça pública era libertadora,
renovadora, estabelecia a igualdade entre todos, rompia com a monofonia, com a hegemonia, com as
classes sociais, hibridizava as culturas, e questionava o sistema oficial e os valores por ele
propagados.
O carnaval era uma visão alternativa de mundo, a qual não se assistia, mas se vivia. Durante
o carnaval, grupos sociais opostos (corpo social do palácio e corpo social da praça pública) se tocam
e produzem mudanças que perduram por uma temporalidade. É o momento de libertação dos sujeitos
da praça pública, o momento de inversão dos valores: o vendedor da praça pública pode tornar-se rei,
e o rei pode ser despido de suas vestes. No carnaval são rompidas temporariamente as barreiras

RISO
1373

hierárquicas e as normas oficiais e também é quando as regras e os valores sociais são invertidos,
libertando a população, ainda que momentaneamente, do sistema oficial. É importante ressaltar a
temporalidade momentânea da “libertação” do povo, o que, portanto, não constituía uma
transformação, pois, passado o período do carnaval, os membros da praça pública voltavam às suas
subjugações.
O discurso da praça pública, durante o carnaval, é oposto ao discurso oficial, o que revela dois
movimentos nesse contexto social da Idade Média e do Renascimento: um centralizador, dominador, e
outro libertador. O discurso libertador (ambivalente, que gera o riso), o da praça pública, destrona o
discurso das autoridades, torna-o familiar, “dizível” por todo e qualquer cidadão, destruindo a
formalidade, os valores, e a imutabilidade dos discursos oficiais e hierárquicos. No tempo do carnaval,
a ordem do oficial e popular se inverte, e todos participam da vida “às avessas”. Nesse sentido,
podemos afirmar que o carnaval é, em sua gênese, dialógico, pois coloca em relação duas formas de
vida opostas: uma oficial, monológica, séria, imutável e temível e outra livre, alegre, profana e familiar.
No Carnaval, nesse movimento de ridicularização de saberes e poderes oficiais, ri-se com o
outro, não se ri do outro. Rir do outro evidencia preconceitos, desigualdades, e o espírito do carnaval
era outro: o da igualdade, o do destronamento de poderes. A festa do carnaval evidenciava uma
concepção de mundo, totalmente contrária à habitual, e essa concepção era do povo, que se opunha,
através do riso, ao sistema oficial. Portanto:

o riso carnavalesco é, em primeiro lugar, patrimônio do povo [...]. Todos riem, o riso é ‘geral’; em
segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval),
o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre
relativismo; por último, esse riso é ambivalente : alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo
burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (BAKHTIN, 2013, p.10).

O riso da praça pública era uma conquista do povo, um momento em que um outro – cômico –
revelava-se por meio das manifestações populares (que geralmente eram ligadas às festas
religiosas), evidenciando as falhas do mundo oficial, e garantido uma inversão de valores no sistema
normativo da época, conferindo liberdade e igualdade a todos. Para Bakhtin, “na forma do riso
resolvia-se muito daquilo que era inacessível na forma do sério” (BAKHTIN, 2015, p.145).
O povo via na comicidade uma possibilidade de manifestação de diversas vozes sociais, o que
não contribui para estabelecer uma hegemonia, mas, sim, para construir um espaço onde, com o riso,
não há dominação, os sentidos são diversos e a vida é regenerada. Para Ponzio, atribui-se ao riso
“[...] a capacidade de provocar, ele próprio, a vida” (PONZIO, 2008, p. 173).
A seriedade do mundo oficial só produz hegemonias e soberanias, pois é o lugar da voz única,
da monofonia. Não há espaço, no mundo oficial, para a voz do outro e para o acabamento do outro,
pois as relações são de domínio e opressão. Entretanto, mesmo nesse cenário de contrastes entre o
sério e o cômico, é importante destacar que, para Bakhtin (2013), o riso ambivalente do carnaval não
nega o sério.

RISO
1374

Nesse movimento de oposição, as imagens grotescas traduzem os sentidos carnavalescos de


renovação, de nova forma de vida, de renascimento. Materializam em si a história de civilizações e a
utopia de um povo que via no carnaval um momento de libertação e de encerramento de uma vida
velha, dando lugar a uma vida livre e igualitária.

2. QUANDO O RISO NÃO É REVOLUCIONÁRIO

O riso tem sido incorporado nas relações de ensino contemporâneas. Como mencionamos na
introdução do presente texto, as propagandas de muitas instituições escolares são compostas por
professores em situações que podem causar riso nos alunos. Na figura 1 temos um exemplo sobre o
que tem ocorrido nas salas de aula presenciais do país – sobretudo de Ensino Médio e Cursinho Pré-
vestibular – e também nos espaços online de ensino-aprendizagem:
Figura 1. Vídeoaula Descomplica

Fonte: https://www.youtube.com/user/sitedescomplica

O enunciado que propomos analisar neste artigo faz parte dos recursos pedagógicos do
Cursinho Descomplica e trata-se de um blog. Neste blog – Desconversa – são postados conteúdos
sobre as diferentes disciplinas que compõem um cursinho pré-vestibular e há uma preocupação
evidente com a utilização de recursos humorísticos nos posts deste blog.
Os gêneros que veiculam humor encontrados nos posts deste blogsão, de maneira geral:
charges, cartuns, tiras cômicas, gifs e memes. Interessa-nos, particularmente, nesta discussão, a
presença dos memes nestes posts, devido ao fato deste gênero do discurso (BAKHTIN, 2011) não ser
comum nas relações de ensino-aprendizagem. A espectativa é a de que o meme, gênero que veicula
humor, altere as relações de ensino-aprendizagem, que são marcadas, na história, pelo autoritarismo

RISO
1375

e pela opressão, fato presente também nas representações escolares da escola na literatura, como
em O ateneu, de Raul Pompéia.
No exemplo abaixo (Figura 2), temos um recorte de um post da disciplina de redação,
destinado ao curso pré-vestibular, que apresenta um meme em resposta à temática do post e, nessa
relação, o humor é produzido:

Figura 2: Recorte de post sobre temas de redação

Fonte: http://descomplica.com.br/blog/redacao/lista-temas-de-redacao/

RISO
1376

Inicialmente, destacamos que esse movimento – presença do humor – que tem sido
incorporado nos ambientes escolares e que envolve, sobretudo, a presença do riso, é importante se
considerarmos o histórico de autoritarismo e opressão que marca a imagem de escola que se tem no
Brasil. Interessa-nos pensar se este passo é suficiente para uma mudança nas relações que
permeiam esta instituição.
A figura 2 corresponde a um recorte de um post sobre temas de redação recorrentes nos
vestibulares. O post é dividido em três tópicos que correspondem, portanto, às temáticas que
costumam estar presentes nas propostas de redação dos vestibulares, sendo elas: questões sociais,
atualidades, leis e projetos. Cada tópico é ilustrado com uma gif, acompanhada de legenda e, logo
abaixo do título da postagem, temos o meme exposto.No caso do recorte da Figura 2, o meme não tem
relação direta com o conteúdo didático trabalhado no post, mas há, no blog, também memes que
servem como “exemplo do conteúdo” das disciplinas.
O enunciado verbal e o visual do meme da figura 2 nos parece uma possível resposta e reação
do aluno-leitor (“Você tá de brincadeira, né?”) frente ao subtítulo da postagem “Quer tirar nota 10 na
redação?”. Essa hipótese é acentuada quando lemos a legenda do meme, que diz “Não estou, não! Olha
só!”, que novamente soa como a voz professoral em diálogo com este aluno-leitor do blog,
estimulando-o a produzir um texto que venha a ser bem-sucedido nas provas .
A imagem do aluno, animalizado no meme e associado à imagem daquele que não é capaz,
ideologia constituída da escola (SOARES, 1986), ligada à voz descontraída do professor, que se
encontra como “legenda” da imagem, contribui para o humor e para a edificação de um eu que
constrói uma imagem de si que se distancia do “tradicional professor” e para uma imagem de aluno
que continua sendo desprovido de conhecimento. O interessante, nesse caso, é que, durante a
explanação do “conteúdo”, no texto verbal que segue o meme (figura 3), não há presença do humor,
ele aparece separado da voz que “transmite” esse conteúdo.
Contudo, a legenda do meme, que o comenta, deixa aflorar a voz do professor, ou seja, ele não
é completamente desligado da “brincadeira”. Nesse sentido, entendemos que há um conflito de
valores sobre a voz do professor na Figura 2, que ora se coloca em uma posição social – autoritária,
ora se coloca em outra, e o meme é o lugar da instauração desse conflito. É devido à presença do
meme, no post, que podemos discutir os valores ligados à instituição escolar e atribuídos aos
personagens que figuram este ambiente, sobretudo professores e alunos.
Há um conflito de valores também relacionado à imagem do aluno neste post, que,
animalizado, como já afirmado, representa a figura daquele que não tem a capacidade de adquirir
determinados conhecimentos, e que anseia por ajuda. No entanto, a própria presença do meme em
práticas de ensino-aprendizagem já revela uma instituição que considera o aluno nas relações de
ensino. Nesse sentido, o aluno é ora valorizado, ora subjugado.

RISO
1377

Figura 3: Recorte com texto que segue o meme

Fonte: http://descomplica.com.br/blog/redacao/lista-temas-de-redacao/

Pensamos que o humor veiculado no post acima não é social e revolucionário, como o
Rabelaisiano, mas subjetivo. Essa forma de riso não questiona o sistema oficial e não o ridiculariza,
além disso, não há uma inversão de valores e o sistema oficial veste-se de “atração” para o público,
mascarando sua superioridade. Assim, a função do riso neste corpus se afasta do fenômeno que o
autor nomeia de Carnavalização e se aproxima do que o autor entende como “formas reduzidas do
riso: humor, ironia, sarcasmo, etc” (BAKHTIN, 2013, p. 103), estabelecidas a partir do século XVII, após
o início do processo de decomposição do riso da festa popular. Portanto, o riso presente neste corpus
não parece ser derrisório, porque se organiza em função dos valores da instituição à qual se
relaciona, o que pode, ainda, acentuar as relações opressivas e as hierarquias, porque deixa a
instituição mais interessante e chamativa para os alunos, e, estes, podem ser mais oprimidos por uma
instituição com uma “máscara” de “divertida”, de “próxima”, atingível e modificável.
Inicialmente, a presença do meme em enunciados que envolvem práticas de ensino e
aprendizagem justifica-se pela sua função de descontração, e atua no sentido de motivar o aluno, que,
tem uma imagem cristalizada socialmente de sempre estar desmotivado, ou de demonstrar pouco

RISO
1378

interesse pelos conteúdos que envolvem a instituição escolar. Além isso, a presença do meme altera a
construção de imagens de aluno e de professor.
Isso não significa que o riso deixe de ter uma função importante, pois ele é o lugar do conflito
de valor, que, de alguma forma, ameniza as hierarquias, mas a finalidade da incorporação do riso na
escola é uma questão importante, que envolve as ideologias dessa instituição. O fato de uma
instituição escolar conceder espaço para gêneros que veiculam o riso faz parte de um projeto –
ideológico – de reconstrução de uma imagem histórica deste ambiente, o que, inclusive, atende a
interesses mercadológicos. Não podemos desconsiderar o fato de que é uma instituição que manipula
um discurso em prol de si. Sendo assim, há um movimento, propiciado pelo riso, no que tange a
relação de ensino-aprendizagem presente em nosso corpus, mas este movimento não é suficiente
para quebrar as hierarquias e as relações coercitivas que envolvem este ambiente. São memórias
que se relacionam e interinfluenciam: a memória do discurso didático autoritário e a memória do
discurso descontraído que conquista o outroaluno, caminhando em direção ao espetáculo, explorado
pelos enunciados verbo-visuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo afirmando que o humor encontrado no corpus não é o Rabelaisiano (BAKHTIN, 2013),
podemos concluir que nele há ambivalência de alguma forma, pois sempre há confluência de valores
em uma produção de humor (por exemplo: se provoca humor, é porque não deveria ser dito,
mostrado). O humor é sempre produzido em uma quebra de expectativa, em valores em confluência,
naquilo que é “indizível” e, nesse sentido, é ambivalente, como em Rabelais (alegre e sarcástico). No
corpus vemos essa ambivalência, sobretudo sobre a imagem do professor. Quando o professor se
manifesta com gêneros que geram riso, vemos essa ambivalência de sua imagem que altera o estilo e
o tom dos enunciados produzidos. Por conseguinte, altera as relações aluno-professor e instituição
escolar-aluno. Este é um dos movimentos do discurso didático, quando há presença do riso,
entendemos que ele não deixa de ser autoritário, mas é ambivalente.
Destacamos que esse movimento, que tem sido incorporado nos ambientes escolares e que
envolve, sobretudo, a presença do riso, é importante se considerarmos o histórico de autoritarismo e
opressão que marca a imagem de escola que se tem no Brasil, pois é um passo – ainda que não
suficiente – para uma mudança nas relações que permeiam esta instituição. Contudo, é preciso
analisar as finalidades dessa mudança (da incorporação do riso, por exemplo), que envolvem as
ideologias dessa constituição e a construção de uma nova imagem para o ambiente escolar e para
aqueles que o constituem.
Essa possível mudança no estilo do discurso didático evidencia como as condições
institucionais influenciam na maneira como o discurso acontece no espaço escolar, visto que aulas
que integram humorsão interessantes para o mercado educacional, pois garantem uma nova imagem
às instituições de ensino.

RISO
1379

Nesse sentido, concluímos, provisoriamente, que o riso nem sempre é revolucionário, pois
pode, por vezes, servir de apoio para as instituições oficiais tornarem-se atraentes para o povo,
mascarando e perpetuando a opressividade que se dá nestas relações.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal.Tradução de Paulo Bezerra. 6ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
_____. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais.Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.
POMPÉIA, R. O ateneu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 3ªed. São Paulo: Ática, 1986.

RISO
RESUMO
1380
Neste texto, trabalharemos com três eventos que
envolvem crianças e adultos na escola e
discutiremos a questão do oficial (sério) e não

DEBOCHE OU GRANDE oficial (carnavalização) no mesmo lugar,


compreendendo como a cultura hegemônica que
está presente nas instituições, como a escola,

QUADRO?: narrativas do riso


busca separar e abafar o riso; entretanto a
carnavalização, presente no humano, rompe com o
instituído a todo momento. Nesse processo existem
dois lugares ocupados: o da escola, que assume
enunciando uma palavra outra esse lugar do sério como o lugar do oficial
enquanto forma civilizatória da criança; e a criança,
que carnavaliza esse lugar com o riso que resiste a
essa forma oficial, civilizatória e hegemônica. A
escola, muitas vezes, vive o instituído e inclui isso
num movimento civilizatório da criança. Já as
LOPES, Ana Lúcia Adriana Costa e 19
crianças podem aceitar ou não esse modelo.
Algumas “compreendem” rapidamente como devem
NEVES, Liliane Correa Mesquita 20 se comportar, outras podem subvertê-lo, e o fazem
a partir da carnavalização, correndo o risco de
serem taxadas de indisciplinadas e podendo ser
excluídas dentro do processo de escolarização. O
que é considerado como indisciplina pode ser visto
como processo de resistência dessas crianças que,
INTRODUÇÃO pelo riso e pela troça desmascaram um modelo
linear de viver a vida. Mas a vida não é definida pelo

O
instituído, como veremos no último evento, o riso
s eventos relatados abaixo podem fazer parte de qualquer pode ser uma resistência à escatologia política.

lugar e de muitos contextos escolares. Muitos de nós já Palavra-Chave: Bakhtin. Risos. Destronamento
vivenciamos situações semelhantes ou já ouvimos histórias
parecidas; muitos de nós nos espantamos com elas; muitos achamos
que essas falas e situações são “naturais” no contexto escolar. Aqui
nos cabe escutá-las a partir de uma perspectiva bakhtiniana, a fim de compreender como esses
eventos, essas narrativas e esses risos, presentes nas histórias, estão a favor de uma ciência outra,
se trazem movimentos de resistência ou participam de um movimento para a hegemonia da cultura
escolar. Aqui não estamos trabalhando com um professor ou um aluno personificado, nem estamos
em um movimento de crucificação das instituições que educam, muito menos em uma estereotipia de
um sujeito que aprende ou não. Buscamos compreender, a partir dos eventos que envolvem ambos, o
que podemos aprender para desenvolvermos uma ciência outra, compreensão que para nós
pesquisadores se traduz em nosso ato responsável.

OS EVENTOS21

-Lili você viu o Sérgio por ai?

19
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal Fluminense. Integrante do Grupo ATOS/UFF. Professora da
Educação Básica da Rede Municipal de Juiz de Fora.
20 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal Fluminense. Integrante do Grupo ATOS/UFF. Professora

Assistente do CAp-UERJ.
21
Os eventos narrados neste texto são compostos por notas pessoais e vivências escolares das autoras presenciados em seus cotidianos
escolares de professoras do ensino básico de redes públicas.

RISO
1381

- Ana, ele passou aqui igual um corisco!


Ana passa por Lili que está indo para outra direção, mas de seus lugares as duas olham e
veem a professora tentando colocar Sérgio para dentro da sala, ele se recusa; ele é rápido, pequeno,
desvia de um lado para o outro, e se diverte correndo do grupo de pessoas que tenta pegá-lo. Em
dado momento, para distante do grupo,cansado, e ri.
- Eu sou o Flash!
A coordenadora diz:
-Ele é debochado, sabe? Ele sabe muito bem o que está fazendo e ainda ri na nossa cara…
Quero responder mas vou andando e pensando no ocorrido... se Lili ainda estivesse ali no
pátio, procuro um pouco, ela já está lá na quadra com outra professora, quero ir lá, mas preciso ir
para outra sala, chego um pouco depois do começo da aula e ouço a voz de Diego:
- Esse texto é estranho…
Ele é interrompido pela professora, que diz:
-Estranho? Estranho... Estranho é uma coisa que não conhecemos, vamos ver se você vai
continuar achando estranho depois que ler.
Ele faz menção de começar a ler e ela diz pra outro aluno:
-Davi lê pra gente...
Davi começa a ler...
-Quem mais quer ler um pedacinho?
Diego assobia enquanto outra colega lê, a professora pede outra criança para ler e ele
espreguiça, diz ai, ai... suspira!
As crianças riem baixinho...
Ela diz: quem não fez comentário, quer fazer agora?
Ele grita: nããão!
As crianças começam a rir e a professora diz alto:
-Não começa a brincar não!
A professora vai para o quadro e começa a escrever uma atividade.
As crianças percebem a retaliação e algumas dizem:
-Ah não!
Ele continua: Anão é um homem pequenininho!
A sala toda ri!
A professora olha pra sala de cara feia; não adianta, elas continuam a rir.
Ana, para não constranger a professora, olha pela a janela para a quadra e observa Lili e a
professora com as crianças, Risos espalhafatosos são ouvidos, Lili conversa com uma professora
bem grandona. Ambas estão gargalhando junto às crianças.
A professora e as crianças haviam ido para a quadra há poucos minutos. Atravessaram a
escola, levando tintas e pincéis em direção à quadra, pois lá não há risco de sujar a sala.As crianças
estão de aventais, começam a pintura colocando as tintas em potes e os papéis sobre o plástico; a

RISO
1382

professora orienta o trabalho e as crianças perguntam... Começa a pintura! As crianças se


locomovem por entre as tintas usando as que querem. De repente, Sebastião está de costa e se choca
com Carlos, que também está de costas; eles se desequilibram e Sebastião pisa na ponta do pote de
tinta vermelha que é projetada na professora, respingando por toda sua roupa; as crianças começam
a rir; Carlos e Sebastião olham como que congelados para a professora. Ela olha pra roupa e começa
a rir também; Carlos e Sebastião riem; uma criança diz:
- A professora vai virar quadro!
Todos riem!
A professora, que é grande, responde:
- Quero ver o tamanho do prego pra me aguentar!
Eles riem:
- Tem que ser grande…
O outro diz, abrindo os braços:
- Muito grande,
Risos e mais risos.
- Quem pode me ajudar aqui?
Todos correm para ajudar.
-Ah se Aninha ainda estivesse ali no pátio! Lili procura um pouco por ela, seus olhos se cruzam
pela fresta da janela, mas ela precisa ajudar a professora que se manchou de tinta.
O sino finalmente bate e as duas se encontram perto do portão da escola.
-Lili, preciso refletir com você sobre umas coisas que vi hoje na escola...
- Eu também, não via a hora de te encontrar…
Ana conta os dois eventos do qual havia participado...

2. A CONVERSA

- Você viu o que aconteceu lá na quadra? Diz Lili ainda rindo.


- Eu vi! A risada de vocês era ouvida lá de dentro. Foi logo depois da risada da turma com a
história do anão do Diego... e a professora ficou braba, como dizem as crianças.
- Porque o riso na escola incomoda?
- Incomoda? Nunca me incomodou, uai!
- Incomoda, Aninha... Incomoda tanto a ponto dos adultos acharem sempre que é um deboche.
- Ouvindo você agora um pouco, Lili, acho que essas crianças estão no cronotopo da escola e
subvertem a lógica oficial dela através do destronamento e isso incomoda aos outros que ali estão. A
escola, nas bases e conceitos que ela foi constituída, tenta ser o lugar do sério e do oficial, impondo,
por meio de descrições comportamentais, um padrão para que o convívio social seja facilitado, pois é
mais “tranquilo” trabalhar com o que se apresenta homogêneo. Estudei muito esses “padrões
comportamentais” na Psicologia.

RISO
1383

- Olha, Aninha, eu não fiz Psicologia não. Mas, na Pedagogia tem um bocado dessas questões
também. E tudo o que extrapola os limites desses padrões acaba sendo taxado de indisciplina,
deboche, problema de comportamento.
-Nossa, sabe que isso tem tudo a ver com o debate que fizemos no grupo Atos esta semana!
Bakhtin, ao olhar para a obra de Rabelais sobre a Idade Média e o Renascimento, nos traz
características da vida humana em que o destronamento da vida séria e oficial dada por um riso tem
uma significação positiva, regeneradora, criadora… No Renascimento, tínhamos a alternância dessas
duas esferas da vida humana de forma positiva, como características do humano, influenciadas pelas
tradições da cultura cômica da Idade Média.
-Eu fico pensando que o cômico sempre esteve presente na vida humana. O riso é uma
característica dele e o acompanha ao longo da história, mas a necessidade de garantir uma
organização social, que não ameaçasse o poder, foi separando o riso da vida oficial e o colocando em
lugares bem limitados, para que os que não estavam no poder não ameaçassem os que nele queriam
se manter.
- Na hora aquele trecho do Bakhtin não fez muito sentido pra mim. Mas, agora ele tem um
outro significado cotejando com estes acontecimentos de hoje. Olha o que ele diz:

Na cultura clássica, o sério é oficial, autoritário, associa-se à violência, às interdições, às restrições. Há


sempre nessa seriedade um elemento de medo e intimidação. Ele dominava claramente na Idade Média.
Pelo contrário, o riso supõe que o medo foi dominado. O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma
restrição. Jamais o poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso. (BAKHTIN, 2013 pág.
78)

- Quando penso que Sérgio, tem apenas 6 anos... nunca havia frequentado a escola...
-Me divirto com ele, adora correr.
- E o Diego? Chateou-se porque suas considerações sobre o texto foram desconsideradas,
porque “ele não sabe”. (faz aspas com os dedos)
- Não sabe?
- Dizem que ele é considerado com “dificuldade de aprendizagem”. (Faz as aspas com os
dedos novamente).
-Mas tem razão de se chatear, sua fala foi desconsiderada e depois quem leu foi Davi!
Também ia ficar chateada!
-É , ele é o “melhor aluno da sala”- diz Lili fazendo aspas com os dedos pela terceira vez. -
Incorporou o modelo oficial e faz o que se espera dele: ler um texto com maestria. Ele segue o fluxo.
-Tudo agora pra você é com aspas, é?
- Deixa de ser implicante, Você é muito “implicante”! (Fazendo várias aspas com os dedos). As
duas riem.
- Aquele grupo do Miotello fala umas coisas bem legais. Naquele livro deles, o Glossariando,
sabe qual é? Tem um trecho que diz assim:

RISO
1384

Todo ato de cultural vive por essência sobre fronteiras, sem esta ele perde terreno e torna-se vazio,
despretensioso degenera e morre, Enfim deve se dizer que nem um ato vive, nem se movimenta no vazio,
mas na atmosfera valorizante, tensa, em um mundo vivo e também significante, assim proporcionando e
proporcionado pela cultura em determinado tempo e espaço” (GEGe, 2009, p 27).

- Davi tem como fronteiras a cultura escolar instituída.


- Ei! Mas, não podemos crucificar o Davi também!
- Não! Não! Não é uma crítica a Davi, pois a instituição escolar se empenha muito para
formatar os que dela participam dentro desse modelo civilizatório instituído. Esse modelo que
trabalha numa perspectiva adultocêntrica, em que os mais velhos ensinam aos mais novos, e estes
devem obedecê-los.
- Davi está sendo “civilizado” pela escola, nessa atmosfera valorizante em que ler , se
comportar, obedecer, ser sério é o que tem valor .
- E quem não quer ter valor, não é mesmo?!
- E o Flash miniatura?!
-Igualzinho, né? Imita ele agitando os braços e os pés bem rápido! Morro de rir.
- Sérgio quer só correr, afinal ele é o Flash! Ele ri porque ninguém consegue pegá-lo; porque
conseguiriam? Ele é o Flash!
- Mas, como dissemos, na cultura clássica, o sério é oficial, associado às interdições, às
restrições. Não pode correr na escola, na escola correr está nas restrições; nem rir porque
consegue correr, pois o riso está interditado também...
- Sérgio quebra as duas regras ao mesmo tempo! Para este mundo sério da escola, isso é
deboche! Correr e rir na escola é quase um crime!
- Diego acabou sendo desconsiderado em sua participação na aula, sua fala não teve valor.
- Ah, mas ele se recusou a ser invisibilizado, a não ser ouvido; ele assobiou, espreguiçou-se,
suspirou, mostrou sua presença de alguma forma.
- E, por fim, usou aquele jogo de palavras.
- Entretanto, ele também está cerceado pelas fronteiras do oficial, do sério, do instituído: Não
brinca, não!- disse a professora. E depois trouxe uma cara séria como represália.
- Sérgio e Diego formaram uma boa dupla hoje! Ambos, destronaram a lógica civilizatória da
escola, carnavalizando a escola como forma de resistência e o resultado foi o riso de satisfação que
“afrontou” a coordenadora e o riso da turma que “desbancou” a retaliação da professora.
- Mais uma vez Bakhtin nos aponta a arte para nos ajudar a olhar a vida. Em suas
considerações nas obras literárias de Rabelais e Dostoiévski, ele destaca a carnavalização na
literatura como um cronotopo literário de destronamento.
-E como esse cotejo das três cenas de escola com o cronotopo do carnaval na literatura nos
ajudou a pensar tão bem essa questão do destronamento.
- Imagina aquelas festas de carnaval na Idade Média e no Renascimento que duravam cerca de
três meses e delas participavam todos os segmentos da sociedade!

RISO
1385

- Eu ia amar…
- Eu ia ficar cansada… Nunca tive pique para tanto!
- No período da festa, posições hierárquicas eram suspensas e bufonarias eram permitidas a
todos. Olha o que ele nos diz mais sobre o Carnaval desta época:

...revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência
devoção, etiqueta, etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por
qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive a etária) entre os homens. Elimina-se toda a distância
entre os homens e entra em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar entre
os homens. Este é um momento muito importante da cosmovisão carnavalesca. Os homens, separados
na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em livre contato familiar na praça pública
carnavalesca. (BAKHTIN,2013, p. 140)

- Para o GEGe[1] , lá do Miotello, a carnavalização é festa que se passa em espaço público e


que rompe com a relação de poder instituído oficialmente. Nessa festa, o movimento é de
horizontalidade e não de verticalidade, as assimetrias e privilégios são desconsideradas e o que está
em pauta é a renovação. “A lógica deste carnaval dionisíaco é a do ‘homo demens’ que o transforma
no ‘locus’ privilegiado da inversão, da ridicularização e da desobediência a tudo que seja oficial.” (
GEGe, 2013, p. 21).
- Pois é! A carnavalização é essa forma que relativiza a verdade e o poder instituído. O
carnaval permite um diálogo com o outro de igual para igual; não há classes sociais, chefes e
empregados, no nosso caso, professores e alunos. Até as relações etárias são destronadas.
- Sergio carnavaliza, Diego carnavaliza, o riso é o elemento que traz a equidade entre eles e a
instituição escolar.
- Um sonho não é?! Escola sem hierarquia etária que justifique a indelicadeza.
- Mas, assim como as festas populares foram relegadas a um lugar subalterno e de menor
importância, na escola essas esferas foram separadas.
- Para o recreio ficou delegado o espaço da brincadeira, da descontração, da livre relação.
- Às vezes nem nele.
- Mas nele a brecha ainda é um pouco maior. Na sala de aula, é que as brechas precisam ser
cavadas pelas crianças. Lá ficou sendo o lugar da aprendizagem, do sério, ou do riso comedido,
permitido apenas em alguns momentos específicos, quando permitido.
- Mas, por isso vira um lugar de tensão, de luta de forças, porque o humano não nasce com
essa separação do sério e do cômico, ele vai sendo forçado a entrar nesses moldes. Diego e Sérgio
extrapolam esses “limites” estabelecidos. No seu ato responsável alargam os sentidos e nos mostram
a tensão dessa indissociabilidade riso-sério, oficial-não-oficial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: (e a conversa não para…)

RISO
1386

- Enquanto os eventos vividos por mim se aproximam claramente, vemos que eles se afastam
do que aconteceu na quadra com você.
-No acontecimento da quadra podemos perceber o que Bakhtin chama de mésalliance. Ao nos
falar sobre o riso na Idade Média, nos diz que “a verdade do riso, englobava e arrastava a todos, de tal
maneira que ninguém podia resistir-lhe.” (BAKHTIN,2013 p. 71)
-Sim, a mésalliance é a possibilidade desse encontro em que os sujeitos dialogam em condição
de igualdade, se respeitam, se escutam e se alteram.
- A professora do terceiro evento poderia ter pensado que o riso era “deboche” das crianças,
poderia ter feito cara feia para Sebastião e Carlos, poderia ter tido muitas ações de “civilizar” as
crianças, mas ela prefere o riso; em seu ato responsável pela educação das crianças, ela prefere a
escuta desse acontecimento como a produção de um grande quadro!
-Vamos que já vão fechar o portão de saída. Hoje o dia foi de acontecimentos que nos
alteram...
Lili concorda com a cabeça, colocando a mão sobre a barriga e resmungando:
- Ainda estou me sentindo um pouco enjoada com o cheiro da tinta...
Ana imita as aspas com os dedos feitas por Lili:
- Você “está” enjoada? Ou você “é “ enjoada?
- Olha lá , Aninha!!!
As duas atravessam o portão às gargalhadas.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense, 2013.


______. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de FrançoisRabelais. São Paulo: Hucitec,
2013.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe – UFScar. Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos,
categorias e noções de Bahktin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.

RISO
RESUMO
1387

Palavras-Chave:
A CONTRIBUIÇÃO DO RISO
CARNAVALIZANTE DO PROGRAMA
GREGNEWS PARA A COMPREENSÃO
DA LINGUAGEM EM MOVIMENTO E A
DESCONSTRUÇÃO DE VERDADES

MANFRIN, Aline Maria Pacífico 22

1. INTRODUÇÃO

A
o assumir que a língua é inseparável do fluxo da comunicação verbal e que, por conta disso, os
indivíduos não recebem a língua, mas penetram neste fluxo por meio das relações sociais
possibilitanto, assim, o nascimento social e o despertar da consciência (que também é social),
os estudos bakhtinianos defendem que é ativa a interação entre a consciência do locutor e a realidade
evolutiva na vida da língua e é justamente esta interação que vai despertar a responsabilidade
linguística dos sujeitos.
Este processo de vivência e interação por meio da linguagem é parte das experiências que os
sujeitos vivenciam nas situações comunicativas de modo que o uso da língua é realizado a partir da
palavra nativa “percebida como um irmão, como uma roupa familiar, ou melhor, como a atmosfera na
qual habitualmente se vive e se respira” (BAKHTIN, 2009, p. 104).
É deste lugar de compreensão que os estudos bakhtinianos vão interpretar e discutir os
estudos saussurianos. Uma característica norteadora destacada para refletir sobre as postulações
estruturalistas é a de basear toda a teoria no que chamam de palavra estrangeira, conforme afirmam
a seguir
A palavra estrangeira foi, efetivamente, o veículo da civilização, da cultura, da religião, da organização
política […] Esse grandioso papel organizador da palavra estrangeira […] fez com que, na consciência
histórica dos povos, a palavra estrangeira se fundisse com a ideia de poder, de força, de santidade, de
verdade e obrigou a reflexão linguística a voltar-se de maneira privilegiada para seu estudo (BAKHTIN,
2009, p. 104-105).

22
UNIFRAN

RISO
1388

Esta conclusão apontada pelos estudos bakhtinianos tem origem na afirmação de que as
postulações saussureanas possuem influência forte da Filologia, disciplina esta que tem como
metodologia principal descrever e identificar os significados das palavras das línguas antigas, isto é, o
lugar de observação das línguas se volta para o passado e a recuperação dos contextos se dá a partir
da interação entre filólogo e registro e não com a comunicação real.
Para Bakhtin (2009), quando os estudos saussureanos defendem que a língua é um sistema e
se volta a estudar as relações entre os elementos do sistema linguístico, partem de uma
interpretação de que o sistema é algo estrangeiro e fora das relações humanas e das práticas
sociais, o que leva o linguista a se comportar de maneira semelhante ao filólogo, isto é, identificam,
comparam e relacionam os signos dentro do mesmo sistema ou entre sistemas linguísticos distintos,
mas sempre o considerando como um ente que possui existência independentemente do sujeito que
enuncia.
Cabe aqui estabelecer uma diferença entre os conceitos de língua estrangeira e palavra
alheia tratados nos estudos bakhtinianos. Diferente da questão da língua estrangeira como algo
culturalmente distante do sujeito e, portanto, que não faz parte das práticas sociais das quais ele, em
seu contexto social, participa e vivencia, a palavra alheia, ao contrário, é parte integrante da língua
nativa dos indivíduos, ou seja, a familiaridade é de tal intensidade que o ato de enunciar é uma
resposta ao que o enunciador prevê que seu interlocutor espera encontrar no processo interativo.
Nesse sentido, a palavra alheia é a materialização do dialogismo constitutivo do processo
comunicativo.
Sendo assim, a questão da palavra estrangeira na visão bakhtiniana é recurso argumentativo
utilizado para compreender as razões pelas quais a Linguística, no contexto de seu processo de
constituição enquanto disciplina científica, elegeu conceitos como língua, sistema e valor como
norteadores do modo de pesquisar nesta área de estudos.
Em termos metodológicos, segundo esta interpretação, estes conceitos são mobilizados com
o intuito de identificar os traços que se repetem nas enunciações no âmbito fonético, gramatical e
lexical pelo fato de terem como pressuposto que são justamente estes elementos idênticos que
garantem a unicidade de uma língua e, consequentemente, a possibilidade de comunicação entre os
sujeitos falantes. Nesta lógica, cabe ao indivíduo aceitar o sistema como ele é de modo que toda e
qualquer interferência causada por ele quando interage não seria relevante para os estudos
linguísticos estruturalistas já que o sistema da língua não seria alterado.
As reflexões propostas pelos estudos bakhtinianos associam o ato de aceitar o sistema da
língua pelos falantes, defendido pela Linguística estruturalista, com a dinâmica da colonização importa
pelos países europeus ns séculos XVIII e XIX, ou seja, centrada na posição inferior do colonizado sobre
o colonizador. Em termos ideológicos, cabe ao sujeito identificar o sistema linguístico e se valer dele e
não descodificar, isto é, compreender seu sentido em uma enunciação particular. Nesse sentido, a
forma mais apropriada do processo de identificação acontece no âmbito do certo e do errado, ou seja,
por meio de uma relação hierárquica e normativa em que a correção torna-se o ponto central.

RISO
1389

Em condições normais, o critério de correção linguística cede lugar ao critério puramente ideológico:
importa-nos menos a correção da enunciação do que seu valor de verdade ou de mentira, seu caréter
poético ou vulgar etc. (BAKHTIN, 2009, p. 99)

A questão da correção é explicada pelos estudos bakhtinianos pelo fato de, além do propósito
de pesquisa, a Linguística estruturalista, a partir da noção de sistema e associada ao modus operandi
da Filologia, tem também o objetivo dem uma vez identificado o sistema, de ensiná-lo. Desse modo, a
ênfase no sistema e no processo de identificação criou um instrumental para o processo de aquisição
de uma língua, reforçando, com isso, a consolidação de uma dinâmica educacional em que o êxito dos
aprendizes se daria por meio da codificação passiva de elementos fonéticos, gramaticais e lexicais,
resumindo-se no movimento de deciframento da palavra estrangeira (no sentido explicitado acima) e
na transmissão do que foi decifrado.

2. DA VISÃO SOCIOLÓGICA À PERSPECTIVA DIALÓGICA DA LINGUAGEM

Partindo da compreensão da língua como nativa, o sistema linguístico, para os estudos


bakhtinianos, nada mais é do que um produto de uma reflexão sobre a língua e, por isso, não pode ser
considerado o norteador das formas de comunicação e de aprendizagem pelos falantes.
Na realidade concreta, “o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma
da forma utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto” (BAKHTIN, 2009, p.
96) já que, para que a forma linguística se torne um signo, é necessário admitir sua mobilidade, isto é,
a relação entre a palavra o o contexto, configurando, assim, uma orientação de análise que se volta
para o sentido da evolução histórica e não do imobilismo sincrônico justamente porque a evolução da
língua, nesta perspectiva, ocorre na comunicação verbal concreta e não no interior do sistema
linguístico.
Sob esta ótica, em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin (2009) define interação verbal
(toda comunicação verbal é um diálogo de forma que “toda a substância da língua é constituída pelo
fenômeno social da interação verbal” [BAKHTIN, 2009, p. 127]) atrelada à discussão sobre tema (o
novo) e significado (o dado) e defende que as enunciações são constituídas por meio da mobilização
do discurso de outrem (seja de forma direta, indireta ou no formato indireto-livre) de modo que este
movimento realça a reação ativa do enunciador, provando, assim, que os sujeitos não simplesmente
utilizam os recursos da língua, já que os utilizam a seu favor quando enunciam.
Neste cenário teórico, este pensador propõe uma forma de análise linguística a partir do que
denomina método sociológico, orientado pela seguinte sequência:

1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação
de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que
se prestam a uma determinação pela interação verbal.

RISO
1390

3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual. (BAKHTIN, 2009, p.
129).
O item 1 refere-se à necessidade de se situar a produção de um enunciado no espaço e no
tempo, além de considerar os envolvidos e as relações sociais que existem entre eles. O item 2
refere-se às formas de produção dos enunciados relacionadas com as esferas de circulação, ou seja,
os gêneros discursivos e suas características relacionadas ao tema, à estrutura composicional e ao
estilo e, por fim, o item 3 permite que o exame das formas da língua só ganha sentido de análise
quando relacionadas aos itens anteriores.
Após 34 anos após a publicação da obra acima, em Problemas da poética de Dostoiévski
Bakhtin (1997) amadurece suas reflexões sobre a interação verbal e busca, no campo estético,
principalmente nas obras de Dostoiévski, elementos da relação entre autor e personagem que o levam
a aprofundar o que denominava médodo sociológico para uma abordagem que pode ser denominada
dialógica para se interpretar os discursos.
Este aprofundamento se evidencia na consolidação da percepção do imbricamento que existe
entre o mundo ético (mundo da vida, do cotidiano) e o mundo estético (mundo da produção artística)
de modo que os processos de compreensão, de tomada de consciência, de interação humana e da
construção de subjetividades na produção de enunciados passam pelo trânsito entre estes dois
mundos, garantindo, assim, um elo com a corrente ininterrupta da comunicação.
O processo dialógico, então, possibilita enxergar a produção de enunciados em determinados
gêneros como respostas possibilitadas e cotejadas por meio da utilização da palavra alheia. Schaefer
(2011, p. 195) afirma que, na concepção bakhtiniana, “A palavra é entranhadamente dialógica e, por
isso, precisa manter a possibilidade de diferenciação.” Nesse sentido, cada forma de articulação de
palavras outras, realizada por um sujeito, torna-se singular porque diz respeito à relação de
alteridade que ocorre em cada interação verbal, seja na vida ou na produção estética.
Por meio dos estudos das obras de Dostoiévski, Bakhtin pode mostrar que o dialogismo
constitutivo da linguagem humana pode ser representado no romance, elegendo como principal
representante o escritor russo porque este conseguiu deixar transparecer, em suas obras literárias,
formas de diálogo nas quais personagens e narrador se encontram no mesmo nível de importância, ou
seja, o narrador, assim como os demais personagens, enuncia a partir de seu ponto de vista e de suas
vivências na obra, não possuindo, portanto, nenhum poder para direcionar a trama narrativa sozinho
de modo que ele interfere e é interferido pelos personagens.
Devido a esta característica desenvolvida por Dostoiévski, Bakhtin afirma que as obras deste
autor, além de dialógicas, são polifônicas porque os personagens não são simplesmente objetos do
discurso do autor, mas sim sujeitos do seu próprio discurso, a partir da comunicação com os outros
sujeitos do discurso (os demais personagens que interagem entre si), isto é, em uma relação de
alteridade, assim como ocorre nas interações existentes no mundo ético.
Roman (1992) destaca que Bakhtin soube identificar em Dostoiévski que os personagens
assumem a autoria da palavra de forma que as vozes deles apresentam uma independência em
relação à estrutura da obra, tornando-se, então, vozes equipolentes. Devido a isso, aponta que a prosa

RISO
1391

dostoievskiana se diferencia das demais literárias até então conhecidas porque o que se ressalta é o
diálogo, evidenciando a inconclusibilidade temática à obra porque as contradições não se resolvem.
Mais uma aproximação entre mundo ético e mundo estético para a construção de uma compreensão
(cognição) sobre o mundo.
Shaefer (2011) trata, nesta relação dialógica inconclusa e complexa, do papel do leitor, que, na
vicência da leitura, torna-se também um personagen, produzindo suas contrapalavras na interação
com os outros da obra (narrador e demais personagens). Para este pesquisador,

A polifonia não é mosqueteira – todos por um; também não é platônica – muitos e um. É Dostoiévskiana
– muitos uns em um; pertença pela diferença; unidade pluralizada (SHAEFER, 2011, p. 196)

Ponzio (2008, p. 67), ao discutir o romance polifônico a partir dos estudos bakhtinianos,
aprofunda o tema quando afirma que o escritor usa os estilos e os discursos dos personagens sem se
identificar com nenhum deles, uma vez que “Os sujeitos que o escritor faz falar têm um estilo próprio
e uma situação própria”.
Sendo assim, o aprofundamento do método sociológico para a perspectiva dialógica reforçou
o diálogo como lugar de encontro entre sujeitos situados histórico e socialmente, em um espaço e
tempo determinados, mostando que a língua só se materializa na interação. O acontecimento da
interação é que coloca em jogo as expectativas e respostas dos sujeitos discursivos que aparecem
nos enuciados que produzem e traz o novo que mobiliza e atualiza os significados já existentes nos
usos já realizados por outros sujeitos em outros contextos.
Os diálogos, nesse sentido, não são determinados simplesmente pela hierarquia dos
envolvidos na interação porque trazem, nos enunciados, a disputa pela palavra no processo de
construção dos sentidos. Esta disputa pelas palavras se dá em meio a forças centrípetas e
centrífugas que agem no processo discursivo.
Em Questões de literatura e estética, Bakhtin (1988, p. 82), ao defender que a Estilística, a
Filosofia da Linguagem e a Linguística não detectavam que o meio em que se forma uma enunciação
concreta é o do plurilinguismo dialogizado que considera tanto as ações sociais centralizadoras
quanto individuais, repletos de expressividade e acentuação, defende que “é possível dar uma análise
concreta e detalhada de qualquer enunciação, entendendo-a como unidade contraditória e tensa de
duas tendências opostas da vida verbal”.
Nesse sentido, as forças centralizadoras, uma vez exercidas na vida prática, ou seja, no
plurilinguismo real, são negociadas e colocadas em conflito de forma ativa na produção de enunciados
concretos de forma que as forças centrífugas possuam o mesmopeso que as suas contrárias na
interação verbal concreta e vida.
Nesta perspectiva, cabe aos estudos linguísticos não serem surdos em relação ao diálogo e às
forças que o constituem, seja nas interações do mundo da vida, seja da prosução estética romanesca.
Estão atreladas às forças centrífugas as resistências ao mito da unidade da formação das línguas, a
ênfase excessiva na padronização dos gêneros do discurso, a priorização dos significados em

RISO
1392

detrimento do caráter ativo dos sujeitos quando enunciam e, por fim, uma reação à concepção do
sistema linguístico como definidor das interações humanas a qual minimiza o caráter dialógico e
responsivo da linguagem e da consolidação das línguas.
A inserção das forças centrífugas com o mesmo peso das centrípetas nos estudos linguísticos
gera a demanda de se tratar o codidiano e o contexto das interações humanas como elemento
definidor da construção dos sentidos e mobilização dos significados de forma ativa realizados pelos
sujeitos discursivos participantes do diálogo entre si e com a corrente ininterrupta da comunicação.

3. O RISO CARNAVALIZANTE COMO CONSTRUÇÃO DO DIÁLOGO DA RESISTÊNCIA À ESCATOLOGIA


POLÍTICA NO BRASIL ATUAL

Para que possa ser arquitetada a carnavalização de maneira própria em cada uma das totalidades
referidas, é imprescindível a ambivalência estrutural das imagens. A função carnavalizadora do herói,
do tempo e do espaço articula-se a um sistema de representação que se afasta da fixidez e do
acabamento. Ao fim destas notas que fique então a noção do limiar como elemento constituinte da
carnavalização. Entretanto, anteriormente a isso, que fique a constatação de que a carnavalização é
categoria que pode ser deprendida e analisada nos textos de qualquer época. (DISCINI, 2006, p. 90)

Ao destacar o limiar como elemento carnavalizador e, associado a isso, considerar a questão


do riso como elemento de resistência e luta para a possibilidade de compreensão dos sentidos em
movimento, por meio da identificação das forças centípetas e centífugas que estão em jogo na
realidade política atual do Brasil, o programa semanal televisivo GregNews (DUVIVIER, 2017),
transmitido no Canal HBO, um canal no YouTube e em breves chamadas no Facebook, apresenta
diversos elementos que pretendem mobilizar a fixidez e o acabamento que o discurso do governo
atual tenta apresentar como estável, positivo e necessário quando trata da realidade do Brasil sob o
comando de Temer e sua equipe.
O cenário do programa, extremamente semelhante ao dos jornais televisivos como Jornal
Nacional, por exemplo, contendo uma bancada, um apresentador de terno e um vídeo ao lado com os
dados que comprovam os fatos da notícia, dialogam com o tom de verdade e imparcialidade que
jornais desta categoria tentam reforçar. Além disso, em termos de encadeamento das informações,
há também uma semelhança no anúncio do tema a ser abordado como, por exemplo, universidade,
aborto, amazônia, imposto, agrotóxicos, energia, carne, fake news e apresentação de trechos de
entrevistas, reportagens e citações de pessoas relevantes para o tratamento do assunto em questão.
Apesar de haver estas semelhanças propositais, são nas diferenças que este programa se
destaca. Diferentemente dos jornais oficiais, cada episódio de GregNews trata de um tema específico,
isto é, de forma aprofundada, distintamente dos jornais que tratam, a cada dia, de diferentes temas e
de forma superficial.
Além disso, toda a seriedade do cenário é construída para se contrapor ao recurso principal
do programa que é o riso, ou seja, todos os temas tratados são polêmicos, porém, a construção da
crítica é feita por meio do tom engraçado, reforçando o recurso do riso como lugar da crítica, da

RISO
1393

resistência e do desabafo perante tamanhas escatologias que ocorrem na realidade política atual do
Brasil. Assim como os temas citados acima, o GregNews também apresenta episódios intitulados com
os nomes de políticos que estão no poder tais como Calendário Maia, Marcelo Crivela, Renan
Calheiros, abordados com a mesma irreverência que os episódios intitulados com os temas
mencionados acima.
Como nesta edição do EEBA vamos discutir a questão da construção da heterociência, cabe
aqui analisar o episódio em do GregNews que apresenta e discute o tema universidade. Por meio do
diálogo entre sério e o riso, a composição temática deste episódio cotejou estatísticas oficiais,
matérias de jornais impressos de grande circulação no país, entrevistas com representantes de
instituições públicas e privadas com outros acontecimentos que, a príncípio, não tinham relação com
o tema, mas que, por este fator inesperado, auxiliou na construção do riso por meio de metáforas.
Exibido em agosto de 2017, com duração de 20min25, o episódio começa apresentando o tema
universidade e quebrando a expectativa do sério quando, em seguida, mostraa fala do menino
desaparecido do Acre, associado ao aparecimento de Ets para compor um campo semântico do
aparecimento e desaparecimento na relação com a construção do conhecimento.
É justamente o eixo do conhecimento que encadeia e inicia a discussão séria sobre as
universidades, mostrando, por meio de palavrões, linguagem informal (em contraste com o cenário e
o formato visual do programa) o processo de sucateamento das universidades federais. Sobre estas
instituições, são focados os cortes de gastos e a apresentação de dados que confirmam a redução do
repasse de orçamento pelo governo federal. Neste contexto, ao mesmo tempo, o apresentdor
Gregório Duvivier associa a esta realidade da desvalorização destas instituições com piadas
relacionadas às contas de infraestrutura e de alimentação que estão em estado crítico.
Ao mesmo tempo, é construída, por meio de metáforas, a imagem crescimento, lucro e
aumento das universidades particulares, em detrimento das federais. É mostrado o processo de fusão
das universidades particulares por meio da compra destas instituições pela empresa kroton,
atribuindo a esta a ideia de acumuladores de universidades cujas práticas de obtenção de lucros e
alunos se dá por meio da utilização do FIES de forma que neneficie somente a instituição e não os
alunos.
Neste sentido, a construção do riso, ao mesmo tempo que critica a condução do FIES e o
crescimento exponencial dos lucros das instituições privadas, se distancia de uma compreensão
maniqueísta de discursos que aparecem atualmente que categorizam a produção de enunciados à
esquerda ou à diretita, possibilitando, assim, uma abordagem mais complexa à realidade das
universidades no Brasil, à qualidade do ensino e a situação da universidades federais.
Dessa forma, por meio do riso, há elementos que podem ser considerados carnavalizantes os
quais invertem dois pontos principais de transmissão e veiculação de informações nas mídias: 1. o
jogo da formalidade e informalidade no formato que um jornal constrói sua identidade, isto é, não é só
a wuestão do layout e do terno que garante que um tema será abordado e discutido a fundo e 2. a
mistura de gêneros no uso é feito da linguagem, gerando, assim o riso, ou seja, os palavrões, as

RISO
1394

metáforas do cotidiano, o tom de bate papo no cotejamento com informações confiáveis como os
dados estatísticos, reportagens de jornal e entrevistas apresentados quebra toda a expectativa do
que se espera de um apresentador de jornal, mas mesmo assim não desqualifica a informação
vinculada neste programa.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir destas reflexões teóricas sobre Bakhtin e da exemplificação a respeito do programa


GregNews, foi intenção promover uma reflexão a respeito de como a linguagem em movimento, nas
situações concretas de enunciação, possibilitam um espaço de luta contra as verdades e as
estabilidades dos discursos monológicos que visam a manutenção da exploração e dos direitos para
poucos.
Em relação à necessidade da construção de uma heterociência, deve-se, cada vez mais, optar
pela seleção de cospus de análise que se abram para o embate para que consigamos, a partir deles,
acessar a complexidade da construção de subjetividades, traços culturais, políticas e relações sociais
por meio da interação verbal.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini. São
Paulo: Hucitec, 1988.
_____. Problemas da poética de Dostoievski . 2.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1997.
_____. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
_____.(VOLOSHINOV) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009.
DISCINI, N. Carnavalização. In: BRAIT, B. Bakthin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
DUVIVIER, G. GregNews com Gregório Duvivier: Universidade. Youtube. 25 ago 2017. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ehwontIab0A>. Acesso em: 01 out 2017.
PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Tradução do italiano por
Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
ROMAN, A. R. O conceito de polifonia. Letras, Curitiba, n.41-42,p.207-220. Editora da UFPR, 1992-93.
SCHAEFER, S. Dialogismo, polifonia e carnavalização em Dostoiévski. Bakhtiniana, São Paulo, 6 (1): 194-209, Ago./Dez.
2011.

RISO
RESUMO

Palavras-Chave:
1395

FALA QUE EU NÃO TE


ESCUTO: o riso como resistência a
escatologia política

NOGUEIRA ALCÂNTARA, Ana Paula Carvalho23

U
m carro para na sua cabine de trabalho. Um senhor sorridente pergunta como você está e em
seguida avisa que vai ali na Piraí. Numa cena muito familiar a quem quer pedir informação, ele
continua: - Vou aqui na Piraí sequestrar sr. Antônio.
Thebas para o carro na cabine de trabalho de um rapaz. Com uma câmera escondida, repete
um gesto que tantos motoristas fazem diariamente. Abaixa o vidro e, sorridente, enuncia: - Tudo bem?
Vou aqui na Piraí. Vou aqui na Piraí sequestrar o Sr. Antônio.
O desfecho dessa cena é o riso frouxo do internauta: “Fique à vontade”, responde o rapaz da
cabine que supostamente é o guardião da segurança da rua. A esquete dura menos de um minuto no
Youtube. A reflexão trazida pela gargalhada, no entanto, pode ser perene.
Não sei se você, leitor, se atentou para o verbo sequestrar. Penso em como essas palavras se
refletiriam e refratariam em mim, no espaço-tempo de um guarda acostumado a dar informações.
Pura e boba especulação! “Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei
algo que ele próprio na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver
(…).” (BAKHTIN, 2011. p. 43 ).
Foi num curso de Comunicação Não-violenta (CNV) que ouvi falar pela primeira vez em
Cláudio Thebas, através de um comentário da palestrante. Bizarra essa nossa falta de capacidade de
prestar atenção no que o outro diz! As concordâncias e debates seguiram.
Fala que eu não te escuto é um projeto relativamente antigo na era do Youtube. A riqueza
dessa plataforma é levar o discurso não-oficial para uma quantidade gigantesca de pessoas,
quebrando o monopólio da informação. O alcance é tão grande que tornou oficial uma nova profissão -
Pedro Rezende, por exemplo, tem 21 anos, ganha anualmente R$1450 milhões como youtuber.
Neste artigo, pretendemos discutir possibilidades de resistência à escatologia de uma época
em mudança por meio da série de vídeos Fala que eu não te escuto, tendo como eixo para
alargamentos da questão o riso como potente criador de denúncia do ato responsável.

23
Colégio Pedro II – Niterói. Mestre em Educação (FFP/UERJ) anacarvalhonogueira@gmail.com

RISO
1396

Rir

Rir! Não parece ao século presente


Que o rir traduza, sempre, uma alegria...
Rir! Mas não rir como essa pobre gente
Que ri sem arte e sem filosofia.

Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente,


Com que André Gil eternamente ria.
Rir! Mas com o rir demolidor e quente
Duma profunda e trágica ironia.

Antes chorar! Mais fácil nos parece.


Porque o chorar nos ilumina e nos aquece
Nesta noite gelada do existir.

Antes chorar que rir de modo triste...


Pois que o difícil do rir bem consiste
Só em saber como Henri Heine rir!...
Cruz e Souza24

O riso é uma poderosa estratégia para questionar o discurso dogmático. Entendemos que todo
discurso dogmático é monológico por querer fazer com que só a sua voz seja ouvida. Contudo,
dizemos que nem todo discurso monológico é dogmático. Em uma sala de aula, por exemplo, quando o
professor que considera os alunos produtores de conhecimento discute um determinado tema e fixa
certos sentidos no final das discussões está enunciando monológica, mas não dogmaticamente
(GOULART, 2007, p.99-100). Henri Heine, citado no poema de Cruz e Souza, foi um poeta romântico que,
por meio do sarcasmo e ironia, protestava contra o conservadorismo, principalmente na arte e na
política - Em vão graceja o clero: dê a César o que é de César. Nossa resposta é: durante mil e
oitocentos anos nós sempre demos demais a César; o que restou é nosso agora. Nas palavras de
Bakhtin,
O verdadeiro riso, ambivalente, não recusa o sério, ele purifica-o e completa-o. Purifica o dogmatismo,
do caráter unilateral, da esclerose, do fanatismo, do espírito categórico, dos elementos de medo ou
intimidação, do didatismo, da ingenuidade, das ilusões, de uma nefasta fixação sobre um plano único, do
esgotamento estúpido. O riso impede que o sério se fixe e se isole da integridade inacabada da
existência cotidiana. Ele restabelece essa integridade ambivalente. (BAKHTIN, 2013. p. 105).

- Tudo bem, amigo? Desculpa te incomodar...a gente vai estourar um caixa do Itaú aqui perto.
Qual é o mais próximo?
- Caixa do Itaú... sim! Na Avenida José Felix, vai ser seu próximo cruzamento.
- É aquela lá na frente?
- É o primeiro cruzamento que o senhor vai encontrar. Na sua esquerda tem um caixa lá.

24
Em LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus, Trótski. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

RISO
1397

Como o riso rompe com o oficial em Fala que eu não te escuto? Na palestra dada ao TEDx,
Cláudio Thebas explica que, para ele, a função do riso (e do palhaço) é lembrar de coisas esquecidas,
"que o porteiro tem nome, que o cara que te dá o bilhetinho no metrô é gente e você também,
obrigado, boa tarde, lembrar que você tem q se escutar, porque escutar é atribuir significados para
as coisas que você faz, para suas intuições." e faz uma provocação: Já reparou que a gente não
escuta?

PORQUE VOCÊ ME ESCUTA EU EXISTO25

Genial e inteligente… revela bem como o povo brasileiro é desligado, alienado e desinformado.
Parabéns! Pior que o mundo "tá" assim mesmo, as pessoas falam demais e escutam de menos! Vídeo
perfeito!!! Como as pessoas não escutam e não prestam atenção ao seu redor.... por isso que a
criminalidade está tão alta... é mole mole matar, roubar ou ao menos enganar as pessoas...
Os comentários do Youtube levam a gente a inferir que os interlocutores de Thebas sejam
passivos e desatentos. Tomemos o dialogismo como princípio para análise. Brait (1996) assegura que
dialogismo funciona como célula geradora dos diversos aspectos que singularizam e mantêm vivo o
pensamento de Bakhtin. Princípio constitutivo de toda enunciação, o dialogismo se realiza tanto na
interdiscursividade quanto na interação verbal. O primeiro caso, o da interdiscursividade, refere-se
ao fato de os enunciados serem produzidos retro e prospectivamente a partir de vários discursos que
configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. Isso significa que nossos discursos são
formados por palavras alheias, assimiladas ou próprias de enunciados anteriores e por prospecção
de réplicas do discurso de outro. O segundo caso, o da interação, relaciona-se ao modo específico de
composição do discurso opondo-se à forma do enunciado monológico (BRAIT, 1996; GOULART, 2009).
Sobral (2008b, p.106) acrescenta ainda uma terceira realização do dialogismo. Esse caso liga-se ao
princípio geral do agir – “só se age em relação de contraste com relação a outros atos de outros
sujeitos: o vir-a- ser, do indivíduo e do sentido, está fundado na diferença”. Como elucida Bakhtin
(2011), “O limite não é o eu, porém o eu em correlação com outras pessoas, ou seja, eu e o outro, eu e
tu." (p.411). Não nos esqueçamos, porém, de que essas correlações não são consensuais ou sem
conflitos.
O acabamento do enunciado é permeado por três elementos (ou fatores) "intimamente ligados
no todo orgânico do enunciado: 1) exauribilidade do objeto e do sentido; 2) projeto de discurso ou
vontade de discurso do falante; 3) formas típicas composicionais e gênero do acabamento.(BAKHTIN,
2011. p. 280-281)". Dessa forma, o sentido é construído na relação, no ato único e irrepetível. Sendo
um enunciado "um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 2011.
p.272) e considerando que os índices de tempo e espaço são valorados na situação, podemos
compreender que o contexto talvez tenha levado o interlocutor a concluir que a intenção discursiva de

25
Apontamento feito no encontro do grupo Atos (UFF) a partir do enunciado da professora Marisol Babenco em referência a um livro de
Augusto Ponzio.

RISO
1398

Thebas fosse pedir uma informação de localização. Mas Carlos deslocou o sentido quando quebrou um
projeto de discurso estabilizado ao enunciar que o objetivo da informação era assaltar um banco ou
sequestrar alguém. Esse deslocamento, somado à incompreensão imediata da intenção discursiva
gera o riso. Mas como discutir possibilidades de resistência à escatologia política de uma época em
mudança considerando essas reflexões?

DO RISO À DENÚNCIA

Eu acho que já passei. É que eu queria colocar uma bomba na igreja. Igreja católica? Sim,
igreja católica. Em frente àquela banca de jornal lá! “Tá” bom, obrigado.
O riso ecoou todas as vezes em que mostrei Fala que não te escuto para alguém. Será que
também ajo assim? Agiria? Já tentamos isso antes... boba especulação! De qualquer modo, as risadas
nos alargam a compreensão da vida.
O vídeo é um alerta à alteridade, sobretudo, em tempos deflaxflus políticos. Um alerta ao
acolhimento da palavra alheia. Mas essa ação não é de modo algum um ato de bondade. Ela não está
baseada no respeito e na tolerância - duas palavras de ordem usadas por cada um dos lados desse
nosso pequeno tempo. “O outro impõe sua alteridade irredutível sobre o eu, independente das
iniciativas desse último” (PONZIO, 2009. p. 23).
A alteridade refrata, desloca da rota, tensiona, interrompe nossa condição de dono de um
determinado cronotopo e nos coloca frente a frente ao outro. Com o outro, é possível dar contornos e
acabamento a mim. É possível agir. É agir não significa se restringir ao ato per se, mas agir com sua
vida: “este fato do meu não-álibi no existir, que está na base do dever concreto e singular do ato, não
é algo que eu aprendo e do qual tenho conhecimento, mas algo que eu reconheço e afirmo de um modo
singular e único”. (BAKHTIN, 2010. p.96). Cabe ressalvar que tal singularidade está aberta a uma
relação de alteridade consigo e com os outros, isto é, não é relativista.
Nas nossas relações diárias, nos vídeos da internet, nos espaços mais diversos, a palavra viva
se oferece à escuta - um ser vivente que fala a um ser vivente (PONZIO, 2009). A escuta, então, se
revela um lugar de diálogo.
Resistências à escatologia política: narrativas, corpos e risos enunciando uma ciência outra é
um tema muito potente. Vivemos em um mundo com aumento da extrema direita, em um país divididos
em pólos. Vivo em um estado que atrasa o salário dos funcionários, que pacientes morrem em seus
leitos por falta de remédio. Vivo em uma onde cidade assalto e tiroteio nos atravessam diariamente.
Escolher um vídeo no Youtube que gera riso parece meio tolo e inocente.
Acreditamos, no entanto, Fala que eu não te escuto é o riso apontando um holofote para a
escuta alteritária:

“uma escuta alteritária vê o outro como real coparticipante de uma interação, com empatia e
respeitando sua maneira específica de ser, que é sempre um desafio para quem escuta. Essa atitude

RISO
1399

permite que nossa igualdade e nossa diferença deem um novo sentido ao nosso encontro” [notas de
trabalho, 2013].26

Nos nossos encontros diários, interromper o fluxo do cotidiano e lançar-se a uma escuta
alteritária é desafio constante. É, sem dúvida, um ato responsável! Vivemos levantando álibis, como
foi, inclusive, a parte Porque você me escuta eu existo deste trabalho.
A escuta alteritária é um ato político. Resistamos até chegar o dia em que o desejo do curso
escutatória do Rubem Alves deixe de ecoar no nosso pequeno tempo!

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_______. Para uma filosofia do Ato Responsável. São Paulo: Pedro e João, 2010.
_______. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
BRAIT, Beth. A natureza dialógica da linguagem: formas e graus de representação dessa dimensão constitutiva. In:
FARACO, Carlos et. A. (Org). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Ed. UFPR, 1996.
GOULART, Cecilia. Em busca de balizadores para a análise de interações discursivas em sala de aula com base em
Bakhtin. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 18, p15-31, jan/abr.2009.
_______.Enunciar é argumentar:analisando um episódio de uma aula de História com base em Bakhtin. Pro-posições,
v.18, n.3 (54) – set./dez. 2007.
PONZIO, A. A revoluçãobakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2009.
SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4 ed. 2 reimp. São Paulo: Contexto,
2008a p. 11-36.
THEBAS, Claudio. Fala que eu não te escuto. Youtube. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=7lrmapp8gRg
Acesso em 02/08/2017.
_______. Claudio. Fala que eu (não) te escuto: TEDEX Jardim Botânico.
Youtube.https://www.youtube.com/watch?v=dVLZYMHympE Acesso em 02/08/2017.

26
Comissão Organizadora do IV Fala outra fala. Disponível em https://www.fe.unicamp.br/eventos/falaoutraescola/EscutaAlteritaria-
OrganizFala.pdf

RISO
RESUMO
1400

O presente artigo tem como principal objetivo

O SITE SENSACIONALISTA E O relacionar o trabalho do site Sensacionalista à


teoria da carnavalização e ao riso proposto pelo
círculo bakhtiniano. Como se sabe, o referido site

RISO COMO ELEMENTO apresenta uma proposta de produção de notícias


fictícias, ou desnotícias, que dialogam com as
notícias atuais e de maior repercussão no país e no

QUESTIONADOR DO DISCURSO mundo. Apesar de ser considerado um site de


humor, os elementos que configuram as notícias
fictícias oportunizam ao leitor não apenas um viés

MIDIÁTICO HEGEMÔNICO cômico sobre o fato em foco, mas também um novo


modo de concebê-lo. Para tanto, analisamos uma
das notíciais veiculadas no site, evidenciando
elementos próprios do caráter carnavalesco, tais
como o riso, o grotesco e a ambivalência dos textos
cômicos.

PAULA, Danielle Bezerra de 27

LIMA, Rhena Raíze Peixoto de 28 Palavras-Chave: Carnavalização. Riso. Desnotícia

INTRODUÇÃO

A
inda que a internet configure um espaço mais descontraído, a propagação de notícias veiculadas
diariamente por essa esfera virtual ocorre em meio a tensões, proporcionadas, tanto pela
propagação de informações falsas, incompletas, descontextualizadas, quanto pelo surgimento de
discursos contrários a esse tipo de propagação, que procuram desfazer o equívoco ou ainda ampliar o
conhecimento sobre determinados assuntos. Há também, por outro lado, conflitos referentes à
legitimação ou não das informações, a depender da fonte em que elas estão sendo transmitidas.
Desse modo, muitos internautas consomem como verdade única e inquestionável a informação de
determinados veículos da grande mídia e desconsideram totalmente a informação difundida em
outros, ainda que tratem dos fatos com seriedade e responsabilidade.
Atitudes como essas impedem a formação de um leitor crítico e bem informado, uma vez que
suas leituras não abrem espaço para outras possibilidades de enxergar o mesmo acontecimento.
Diante desse cenário, é importante evidenciar o potencial de alguns gêneros cômicos que
surgem nas redes sociais como propostas às informações midiáticas hegemônicas que, comumente,
circulam em torno de um mesmo ponto de vista sobre o fato. Para isso, devemos desconstruir a
noção de que os textos cômicos midiáticos integram gêneros “menores” como se fossem totalmente
desbastados de conteúdo e de relevância. Orientados por essa problemática, propomos, neste artigo,

27 Doutoranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora de Língua Portuguesa e
Literaturas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). E-mail: danielle.bezerra@ifrn.edu.br
28 Doutoranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora de Língua Portuguesa e

Literaturas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). E-mail: rhena.lima@ifrn.edu.br

RISO
1401

analisar uma notícia do site Sensacionalista a partir das contribuições bakhtianas sobre o riso e
sobre seu caráter transformador.
Antes de mais nada, comecemos com uma breve explanação sobre os elementos que
contribuirão para a análise presente neste artigo.

1. RISO BAKHTINIANO

Bakhtin (2013) propõe um estudo sobre o riso a partir da obra de Rabelais, autor francês que
escreve narrativas cômicas a partir da cultura popular na Idade Média. Para o estudioso, não há como
compreender a obra de Rabelais a partir de seus contemporâneos, ou a partir dos estudiosos que o
sucederam, pois se para estes temos essa avaliação descontextualizada, para aqueles, a visão sobre
a obra ainda é ingênua, desvinculada das críticas originadas em séculos posteriores e de um
afastamento temporal necessário à análise. Sendo assim, a análise da obra deve ser construída
considerando a relação entre os sujeitos da época medieval; a praça pública, onde os eventos
ocorriam; os discursos oficiais; o riso, que se configura de modos diversos em épocas diversas; as
festas populares e demais elementos que cercam o cotidiano desses sujeitos.
Portanto, a compreensão do caráter renovador das festas populares em praça pública e sua
permissividade em uma época caracterizada pela opressão não podem ser desconsideradas na
análise da obra rabelaisiana. Como elemento principal dos eventos organizados pelo povo e do lugar
da praça, o riso, nesse contexto, ganha um grande significado libertador, se levarmos em
consideração o quanto essa prática era reprimida em outros espaços e eventos formalizados,
organizados pela Igreja, por exemplo.
Por esse motivo, uma das primeiras questões discutidas acerca da história do riso é o lugar
atribuído aos gêneros ditos cômicos. Como são associados a festas organizadas pelo povo, na
literatura universal, esses gêneros passam a ser vistos como uma literatura menor, de fácil
compreensão, cuja função única é o entretenimento e a diversão. Assim como, atualmente, a produção
de textos cômicos que circulam nas redes sociais pode ser vista, pela maior parte de seus usuários,
como fútil, despretensiosa, pobre de conteúdo e de relevância para discussões mais amplas.
Essa ideia está atrelada à concepção do riso como fruição, desconsiderando a oportunidade
de, a partir desses gêneros, discutir questões complexas e ressignificar concepções de mundo, tal
como é possível a partir dos gêneros ditos sérios. Dependendo do contexto, o riso pode ser mais
eficaz do que o tom sério para trazer à tona alguns questionamentos de modo inovador. Como
exemplo, a concepção renascentista do riso apresenta-o como propiciador de

um profundo valor de concepção de mundo, é uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade
sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história, sobre o homem; é um ponto de vista particular e
universal sobre o mundo, que percebe de forma diferente, embora não menos importante (talvez mais)
do que o sério; por isso, a grande literatura (que coloca por outro lado problemas universais) deve
admiti-lo da mesma forma que ao sério: somente o riso, com efeito, pode ter acesso a certos aspectos
extremamente importantes do mundo (BAKHTIN, 2013, p. 56).

RISO
1402

Além disso, o caráter não oficial garantiu ao riso uma essência ampla e profunda, uma vez que
os folguedos e suas manifestações não eram fiscalizados pelo poder absoluto da época, isto é, a igreja
católica. Essa não oficialidade conferiu aos festejos uma maior liberdade e impunidade para os
acontecimentos da praça pública. Dessa forma, o riso foi expurgado do culto religioso, uma vez que
este exigia um tom sério, que permitisse a reflexão sobre o sofrimento de Cristo e de todos os santos.
Tudo o que se caracterizava como oficialidade na Idade Média, inclusive também como verdade, era
exprimido a partir do tom sério. Por isso mesmo, como já dito, o riso foi renegado a um lugar menor.
Sabemos que vivemos em uma época diferente da de Rabelais, em que nossas formas de
expressão não são tão reprimidas quanto na Idade Média. Ainda assim, compreendemos que
determinados espaços, mesmo no caso das redes sociais, impõem “normas” e comportamentos que
podem funcionar como instrumentos de repressão ou de deslegitimação, principalmente quando
consideramos a abordagem de determinados assuntos, em especial aqueles que tomam repercussão
social no país.
Associado ao riso, o grotesco e tudo o que o caracteriza se torna, então, inadmissível. Quando
alguns de seus elementos aparecem, não estão mais revestidos dos festejos da praça pública, mas,
sim, das grandes festas da corte, o que representou uma mudança radical em seu estilo, sua
representação e seu caráter transformador. Isto é, os mesmos elementos assimilados são
enfraquecidos no que se diz respeito à sua aliança com a população em situação mais vulnerável.
Esse exemplo nos move a refletir sobre como o riso também, em diferentes épocas, segue
utilizando-se de novas estratégias, de novos gêneros para sobreviver às novas formas de censura ou
de desapropriação do seu caráter simbólico que essas épocas podem proporcionar. Assim, cada
sujeito ri a seu modo, que, por sua vez, difere do modo como outros sujeitos de séculos anteriores
lidavam com a prática do riso.
Devemos considerar, portanto, que cada povo ri à sua maneira, cada época tem seu modo de
rir, pois o riso é histórico, social e, portanto, mutável. O riso, tal qual o temos hoje, é uma construção
de séculos e milênios, e muitos dos que contribuíram para a imagem desse ato procuraram
desvalorizá-lo como prática que deve ser controlada, assim como fazemos em alguns espaços.
Por trás desse controle, está também o temor de que o riso propicie a recusa do discurso
sério, legítimo, oficial, com caráter de “verdade” próprios de sites jornalísticos cuja intenção é
noticiar os fatos tal como ocorridos. Já no caso do site Sensacionalista observamos outro interesse:
o discurso de deboche ancora-se no formato do discurso dito sério para carnavalizá-lo, questioná-lo
e pôr em evidência o seu caráter escatológico. Essa estratégia desnaturaliza fatos e abre espaço
para, tornando-os motivo de riso, ridicularizá-los e, consequentemente, propiciar novos olhares sobre
eles.
Sobre esse riso, Bakhtin nos mostra que

O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-o e completa-o. Purifica-o do
dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose, do fanatismo, e do espírito categórico, dos elementos
de medo ou intimidação, do didatismo, da ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta fixação sobre um

RISO
1403

plano único, do esgotamento estúpido. O riso impede que o sério se fixe e se isole da integridade
inacabada da existência cotidiana. Ele restabelece essa integridade ambivalente. Essas são as funções
gerais do riso na evolução histórica da cultura e da literatura (BAKHTIN, 2013, p. 105).

Nesse sentido, falamos de um riso que objetiva construir uma realidade que proporcione o
diálogo entre dois lados para que ambos possam participar da construção das normas e do sistema
ao qual todos estão submetidos, sem que essa mudança possa causar prejuízo para uma das partes.
Enquanto isso não ocorre, uma das estratégias do gênero cômico é provocar humor a partir
do destronamento dos discursos oficiais, conforme trataremos a seguir.

2. SENSACIONALISTA: DESNOTÍCIA COMO LINGUAGEM DO RISO

Idealizado, em 2009, por Nelito Fernandes, Martha Mendonça, Marcelo Zorzonelli e Leonardo
Lanna, entre jornalistas e roteiristas, o site foi um dos primeiros que, tomando como referência o
modo de fazer jornalismo, iniciou com a paródia que, ao provocar humor, também retira muitos
leitores da posição de indiferença em relação aos acontecimentos no país e no mundo.
Posteriormente, passaram a integrar a equipe mais três colaboradores: Vinícius Antunes, de leitor do
site à profissional responsável pela parte criativa, Bruno Machado, estudante de Engenharia, e
Rodolpho Rodrigo, designer. Atualmente, também com uma página no Facebook, o grupo atingiu o
número de 3.291.629 de curtidas, o que significa, nas redes sociais, que essa página tem amplo
alcance e, consequentemente, tem considerável impacto nos grandes debates em pauta.
De início, podemos notar que os criadores do site deixam claro o lugar que ocupam até para
evitar que sejam propagados boatos ou falsas notícias, como já ocorreu. Logo abaixo, na reprodução
do layout, vemos que eles esclarecem a filosofia do site “isento de verdade”:

Figura 1. Layout do site Sensacionalista

Fonte: www.sensacionalista.com.br

RISO
1404

De acordo com o observado, a configuração se efetiva recorrendo a um modelo já conhecido e


consolidado em portais de notícias. Mas, embora recorra a eles do ponto de vista da forma,
distanciam-se deles do ponto de vista do conteúdo, transformando-o em um outra unidade29, única e
singular. Em virtude, portanto, dessa característica peculiar, optamos por considerar o site como um
portal de desnotícias (ou notícias fictícias), termo utilizado a partir do que se tem discutido
recentemente nos estudos da área da Comunicação Social (GERSON, 2014; ROCHA, 2017). Nas palavras
de Rocha (2017, p. 74), uma “desnotícia é uma notícia fictícia, paródica, satírica. A partícula ‘des’ se
refere a contraste, oposição, inversão, subversão, como em ‘desconstruir’, ‘desordenar’,
‘desorganizar’ ou ‘desfazer’”. É também uma forma de diferenciá-lo de sites que, intencionalmente,
publicam as chamadas notícias fakes, que nem têm compromisso com a comicidade, a exemplo do
Sensacionalista, nem com a seriedade dos fatos, a exemplo dos jornais de credibilidade.
Na figura acima, identificamos os recursos comumente constituintes dos portais de notícias: a
fonte selecionada para registro do site, a presença de abas destinadas a cada assunto de interesse
possível para os leitores, a disposição das manchetes, a escolha de enunciados verbo-visuais para
compor o cenário ideal.
Vejamos agora uma das notícias publicadas no site:

Figura 2. Notícia fictícia publicada no site

Fonte: <https://www.sensacionalista.com.br/2017/09/28/dem-assume-sua-verdadeira-natureza-e-passara-a-se-chamar-demo/> Acesso: 01


out 2017.

Para compreender como notícia fictícia, porque verossímil e não mentirosa, é preciso
recuperar o contexto da produção desse enunciado, como alerta Bakhtin (2003) quando se refere ao
status do enunciado. Ou seja, saber do momento em que isso foi elaborado permite ao leitor

29Apesar de não ser um fenômeno novo, exemplo disso é O pasquim, que circulou entre 1969 e 1991, nos últimos anos a prática se tornou ainda
mais frequente e com várias frentes. Outros sites seguem essa mesma tendência, para citar apenas alguns: Laranja News, G17, The piauí
Herald.

RISO
1405

identificar a intenção comunicativa: ao provocar o riso, também destila acidez contra os fatos
noticiados naquele mesmo período. Está, portanto, totalmente assentado nos acontecimentos que
tomaram repercussão nacional.
Desde julho deste ano, vêm sendo publicadas notícias a respeito de mudança de nomes de
diferentes partidos na tentativa de renovar a credibilidade já notadamente desgastada devido à crise
institucional que se instaurou nos últimos anos no Brasil. Mas foi depois do encontro de Luciano Huck,
apresentador global que tem revelado interesses políticos, com membros do partido que, no fim de
setembro, a discussão sobre mudança de sigla/nome reacendeu, consistindo objeto ideal para os
editores do Sensacionalista.
Primeiramente, é importante destacar, conforme já apontamos, que a desnotícia utiliza-se da
estrutura do gênero notícia, apresentando elementos como título, texto visual, assim como parágrafos
curtos e presença de citações de discurso. Essa estratégia permite que o leitor, de cara, associe os
dois gêneros, fator importante para a desconstrução do discurso propagado pelo gênero dito sério.
A desconstrução pode ser vista já no elemento visual, representado por uma imagem de uma
figura mitológica, e a sobreposição da palavra “Demo”, caracterizando um estilo de manipulação de
imagem amadora. Em seguida, o título “DEM assume sua verdadeira natureza e passará a se chamar
DEMO” dialoga com a imagem do que pode ser interpretado como a figura do demônio. Além disso, o
título quebra com a seriedade ao utilizar não apenas o fato fictício do próprio partido ter assumido
sua associação com um personagem maléfico, mas também com a utilização da palavra “Demo”,
considerada uma expressão informal e cômica.
Conforme Bakhtin (2013) aponta, o riso tem a sua própria linguagem e é comum que ela esteja
associada à linguagem popular. Assim, quando os gêneros cômicos utilizam essa linguagem, além de
interferir na seriedade dos gêneros ditos sérios a que fazem referência, funcionam como
representatividade de uma voz popular sobre esse gênero e sobre o tema abordado. Nesse sentido,
estilo e representatividade andam juntos no uso de marcas linguísticas típicas de grupos sociais
populares e/ou situações de informalidade. Isso também ocorre no trecho final da notícia quando é
atribuída ao dirigente do partido, figura de quem se espera comportamento formal diante do lugar que
ocupa, a fala contendo as expressões “Capeta, Cramunhão ou Coisa Ruim”.
Há também na notícia um caráter de importância ao fato cômico. Ao longo de todo o texto,
tanto quem escreve, como as citações, lidam com o fato cômico com ares de seriedade, construindo
uma esfera que oscila entre o sério e o cômico. Isso pode ser visto quando personagens políticos
reais são citados como participantes da troca do nome do partido. Tal como os reis, clero e demais
autoridades eram objeto de chacota no carnaval medieval, João Dória, Rodrigo Maia e Luciano Huck
passam por um processo de destronamento, uma vez que estão envolvidos na ficção.
Também o novo nome do partido está asssociado ao baixo, tendo em vista que o inferno, no
imaginário religioso e popular, está situado embaixo da terra. Esse parece ser o lugar destinado para
o referido partido e seus afiliados e simpatizantes. É o que sugere a desnotícia com expressões como
“sua verdadeira natureza”, “em nosso devido lugar”. Essa atribuição valorada negativamente tem uma

RISO
1406

razão bastante evidente se fizermos um levantamento dos projetos de lei defendidos e das ações
executadas e/ou apoiadas por parlamentares da referida legenda. Além disso, são inúmeros os
escândalos de corrupção que vieram à tona nos quais estiveram envolvidos vários políticos desse
partido.
Conhecido hoje como DEMOCRATAS (DEM), embora possa parecer novo, o partido, na verdade,
tem uma longa história na política brasileira. Seu presidente nacional, José Agripino, atualmente
representante do Rio Grande do Norte no Senado Federal pelo 4º mandato e herdeiro da influente
família Maia, por exemplo, iniciou sua atividade política, através do apadrinhamento de seu primo
Lavoisier Maia, no período, governador do RN, como prefeito “biônico”30 para comandar a capital e
manter os objetivos do Golpe de 64.
Sob a defesa do nacionalismo, do liberalismo e da meritocracia, em 2007, o DEM foi refundado
após desgaste da imagem do, então, Partido da Frente Liberal (PFL). Este havia sido instituído em 1985
como resultado da dissidência interna ao Partido Democrata Social (PDS), que era suporte do governo
do presidente-general João Figueiredo. Antes disso, membros do PDS e da União Democrática
Nacional (UDN) ajudaram na criação e no fortalecimento da Aliança Renovadora Nacional (ARENA),
partido fundado meses depois da extinção do pluripartidarismo em 1966, que constituiu base
parlamentar para o Regime Militar.
Vale ressaltar que a UDN, de orientação conservadora e com apoio da elite, foi fundada em
1945 e fazia forte oposição às políticas sociais de Vargas. Incrivelmente, as figuras com mais
visibilidade nacional ligadas ao atual DEM têm relações de parentesco com os membros da extinta
UDN. A título de ilustração, podem ser citados os Caiados, em Goiás, os Maia, oligarquia presente no
Rio de Janeiro, na Paraíba e no Rio Grande do Norte – conforme já apontamos anteriormente, o
presidente do partido simboliza muito bem esse dado –, os Magalhães, na Bahia.
Fazendo esse retrospecto, portanto, compreendemos melhor a escolha dos editores do
Sensacionalista para descrever a “verdadeira natureza” do partido, que deve se chamar “DEMO”. Suas
raízes, de acordo com seu trajeto histórico, revelam esse lado demoníaco, aproveitando a leitura
proposta pelo site, uma vez que o DEM se mostra inevitavelmente ligado a um dos piores momentos da
História recente do Brasil. Dentro desse enquadramento interpretativo, percebemos o quão nebuloso
e obscuro foi tal período, tanto que, até hoje, famílias de pessoas desaparecidas por perseguição
política buscam respostas para perguntas que, a depender dos interesses de muitos que querem
apenas se manter no poder a custo de vidas, continuarão abertas, sem a clareza de que necessitam.
É importante destacar, ainda, que a escolha pela fala dos próprios dirigentes do partido traz à
tona uma outra característica do riso carnavalesco, que é o próprio objeto de riso, rir de si mesmo
junto com o povo na praça pública.
Como podemos ver, o site Sensacionalista, por meio de suas produções, permite efeitos que
vão além de provocar o riso, ressignificando acontecimentos. A partir das características analisadas,

30
Termo usado quando decorrente de indicação sem eleição direta na época da ditadura militar.

RISO
1407

podemos afirmar que o site aproxima o discurso popular, presente nas conversas e piadas cotidianas,
que permanecem às margens, do discurso jornalístico, profisional, sério e inquestionável.
Desse modo, o riso não ocorre de modo gratuito, mas ganha um caráter ambivalente quando, além de
provocativo, contribui, por meio da força coletiva, para que transformações sociais aconteçam, uma vez que evidencia
o embate entre possíveis vozes sobre um mesmo tema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise e das reflexões suscitadas neste artigo, podemos afirmar que a
carnavalização não é um simples processo de divertimento aliado à crítica e à ironia aos discursos
vigentes. É, sobretudo, um processo de construção de uma realidade alternativa a partir e coexistente
à realidade já formalizada e respeitada socialmente.
No caso do site em questão, o riso vai na contramão do pessimismo, do tom catastrófico e
violento da mídia hegemônica. Enquanto a mídia oficial se constitui com base no medo e na violência, o
chamado fakejornalismo resiste pelo riso como libertação e instrumento que aproxima e instiga o
povo a questionar e duvidar da seriedade do jornalismo oficial.
Portanto, o Sensacionalista lida com o riso de modo ambivalente, pois une morte e vida,
seriedade e riso. E mais: orienta os participantes do processo de leitura para outras possibilidades
excluídas pelo discurso midiático hegemônico.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_____. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de
Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.
GERSON, Deborah Cattani. Afinal, o que é pseudonotícia? Um estudo sobre o The i-Piauí Herald, o Sensacionalista e o
Laranjas News. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul: Porto
Alegre, 2014.
ROCHA, Arthur de Oliveira. Paródia satírica e crítica midiática nas notícias fictícias do site Sensacionalista.
Dissertação (Mestrado em Estudos da Mídia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte: Natal, 2017.

RISO
RESUMO
1408
O objetivo deste artigo é realizar aproximações
entre os conceitos de carnavalização e realismo
grotesco propostos pelo teórico Mikhail Bakhtin e

CARNAVALIZAÇÃO E os quadrinhos dos personagens Baixim e Cumprido,


do cartunista Henfil. A metodologia utilizada é a
pesquisa bibliográfica e o referencial teórico pauta-

REALISMO GROTESCO
se em Bakhtin e pesquisadores do humor, Henfil,
quadrinhos e linguagem verbo-visual. Na primeira
seção, trata-se do humor e suas funções, com
destaque para o caráter político e denunciatório

NOS QUADRINHOS DE dos quadrinhos de Henfil. Na segunda, debate-se a


concepção de quadrinhos e verbo-visualidade, em
que texto e imagem são intrínsecos à linguagem e

HENFIL: o humor como resistência


devem ser observados como unidades complexas
de significação. Em seguida, é analisado o contexto
histórico e político da produção humorística de
Henfil, caracterizada como politicamente engajada e
subversiva, pois buscava desnudar pelo humor uma
realidade censurada pelas instituições repressoras
do regime militar no Brasil (1964-1985). Ressalta-se
a relevância do presente artigo ao trazer para o
WERNECK, Giovanna Carrozzino 31
contexto atual a produção de um cartunista que
revelou em seus desenhos representações de uma
LEITE, Priscila de Souza Chisté 32 sociedade e momento político relativamente
semelhantes aos que vivemos hoje, como o
cerceamento das liberdades, a ascensão de
fundamentalismos, a criminalização de movimentos
sociais e a retirada de direitos da classe
trabalhadora.
INTRODUÇÃO
Palavras-Chave: Henfil. Carnavalização. Realismo
Grotesco.

A
pós mais de um ano do golpe político/parlamentar/midiático
Palavras-Chave: Metodologia. Bakhtin. Vygotsky
ocorrido em abril de 2016 com a deposição de uma presidenta
cujo mandato foi legitimamente conquistado nas urnas em 2014, e há 54 anos do golpe militar de
1964, a classe trabalhadora depara-se, mais uma vez, com medidas neoliberais impostas
unilateralmente por um governo que atende aos interesses das classes dominantes promotoras do
último golpe. Dentre tais medidas, há o sucateamento dos serviços públicos, principalmente, nas áreas
de saúde, educação e desenvolvimento social; a expansão de fundamentalismos; o cerceamento de
liberdades individuais; a criminalização dos movimentos sociais; a gestão privada ou com critérios
privados das escolas públicas atrelada ao sequestro da função docente, além de projetos de lei
relacionados ao Programa “Escola sem Partido”33, que visam distanciar as escolas do pensamento
crítico e plural, da socialização do conhecimento sistematizado e da formação de cidadãos
comprometidos com a transformação social em prol da classe trabalhadora.

31 Mestranda em Letras (Mestrado Profissional em Letras, Instituto Federal do Espírito Santo, campus Vitória); professora efetiva da Educação
Básica na rede municipal de Cachoeiro de Itapemirim/E.S.. E-mail: gcarrow@gmail.com.
32 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora do Instituto Federal do Espírito Santo, campus Vitória. E-mail:

priscilachiste.ufes@gmail.com
33 “Ao por entre aspas a denominação de ‘Escola sem Partido’ quer-se sublinhar que, ao contrário, trata-se da defesa, por seus arautos, da

escola do partido absoluto e único: partido da intolerância com as diferentes ou antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação,
de justiça, de liberdade; partido, portanto, da xenofobia nas suas diferentes facetas: de gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres etc. Um
partido que ameaça os fundamentos da liberdade e da democracia liberal, mesmo que nos seus marcos limitados e mais formais que reais. Um
partido que dissemina o ódio, a intolerância e, no limite, conduz à eliminação do diferente” (FRIGOTTO, 2016, p. 12).

RISO
1409

As leituras rápidas e acríticas via redes sociais virtuais, a recepção passiva das notícias
formatadas oriundas de variadas mídias e os discursos agressivos em defesa do retorno ao Regime
Militar, demonstram quão necessário é investir na formação de cidadãos que realizam leituras
críticas dos discursos que circulam socialmente. Nesse sentido, vislumbra-se a possibilidade de
contribuir para a análise do atual cenário político por meio do estudo do humor e da linguagem verbo-
visual dos quadrinhos do cartunista Henfil, a fim de demonstrar o potencial desses textos na formação
de leitores críticos capazes de produzir sentidos contra-hegemônicos para a nova realidade pós-
golpe.
Como modo de sistematizar tal discussão, este artigo inicia-se com a apresentação das
múltiplas faces do humor, que além de provocar risos pode também denunciar, criticar e
desestruturar a ordem vigente. Ainda nesta seção, são explicitadas as relações do humor com o riso,
enfatizando os conceitos de carnavalização e realismo grotesco propostos por Bakhtin (1993). Em
seguida, destacam-se os referenciais teóricos relativos aos quadrinhos e à linguagem verbo-visual
relacionando-os à obra de Henfil. A terceira seção aborda o universo discursivo dos quadrinhos
henfilianos, que, pelo humor político, exteriorizam a contestação, o engajamento político e a crítica
aos costumes e instituições da época. Para tanto, optamos por realizar um recorte da produção
humorística de Henfil, enfatizando os quadrinhos dos personagens Baixim e Cumprido (os Fradins) e
analisando-os por meio da categoria carnavalização e do estilo intitulado realismo grotesco conforme
as enunciações bakhtinianas.
Direcionamos este artigo a pesquisadores interessados em debater a produção de textos
humorísticos como forma de resistência e subversão e o processo de formação de leitores capazes
de ler criticamente a realidade e de se constituírem como sujeitos responsáveis por seus atos e
responsivos aos outros, tendo em vista o rompimento da ordem democrática pós-golpe e os
princípios mercadológicos e neoliberais, que despotencializam espaços e discursos voltados para a
formação política, humana e transformadora da realidade social.

1. HUMOR, CARNAVALIZAÇÃO E REALISMO GROTESCO: formas de resistência e subversão

Quando falamos de humor, pensamos em algo que faz rir e diverte, porém essa é apenas uma
de suas funções. Historicamente, no contexto do desenvolvimento da civilização greco-romana, havia
no humor uma possibilidade não só de provocar o riso, mas também de transgredir a ordem social e,
por isso, na perspectiva do controle hegemônico “[...] o humor era perigoso e seu lugar na cultura
tinha de ser limitado a ocasiões estritamente definidas” (BREMMER; ROODENBURG, 2000, p. 30). Nesse
sentido, os grupos hegemônicos identificavam no humor um recurso de subversão política e
ideológica, configurando algo que deveria ser combatido.

Deleitar-se com o humor e o riso abundante é eminentemente contrário a se esforçar para manter toda
a vida sob controle, o que pode ser observado entre os pitagóricos, aspartanos e, em um grau ainda
mais alto, os cristãos ascéticos. Não deveria surpreender que um grupo social que tentava manter o

RISO
1410

controle sobre todos os tipos de expressão física, como comer, dormir e a sexualidade, também se
opusesse ao riso. Desfrutar livremente o humor e o riso é a marca de uma comunidade tranquila,
aberta, não de uma ideologia ascética ou de uma sociedade tensa (BREMMER; ROODENBURG, 2000, p. 43-
44).

Na Roma Antiga, a utilização do humor era dicotomizada. Utilizá-lo no espaço público como
ferramenta persuasiva da retórica para o convencimento de eleitores nos debates filosóficos era
visto como sutileza e refinamento. Por outro lado, aqueles que pertenciam às classes mais pobres e
excluídas tiravam seu sustento com apresentações ao ar livre de piadas e contos cômicos. Em tais
situações, o humor estava relacionado à marginalização e a costumes que deveriam ser erradicados
por pertencerem aos grupos sociais desfavorecidos. Sendo assim, o reconhecimento das normas
sociais e da divisão entre as classes era o que produzia os limites e sentidos do humor (BREMMER;
ROODENBURG, 2000).
Ao longo da história, o humor, com suas funções, limites e distinções, foi determinado sócio-
historicamente. De acordo com Travaglia (1990):

O humor é uma atividade ou faculdade humana cuja importância se deduz de sua enorme presença e
disseminação em todas as áreas da vida humana, com funções que ultrapassam o simples rir. Ele é uma
espécie de arma de denúncia, de instrumento de manutenção do equilíbrio social e psicológico; uma
forma de revelar e de flagrar outras possibilidades de visão do mundo e das realidades naturais ou
culturais que nos cercam e, assim, de desmontar falsos equilíbrios (TRAVAGLIA, 1990, p. 55).

O humor, além da sua face relativa ao fazer rir, apresenta outros objetivos, que são
explicitados em subcategorias por Travaglia (1992): a liberação, a crítica social e a denúncia. A
liberação ocorre quando existe alguma proibição ou censura derrubadas pelo humor, sendo possível
dizer e fazer coisas que fora dele não seria possível devido à repressão. Para Travaglia (1992, p. 50),
“[...] toda forma de humor tem a liberação como objetivo principal ou subsidiário”. Outro objetivo do
humor é a crítica social, que consiste em desvelar o absurdo e o ridículo de comportamentos,
costumes, instituições, a fim de romper com a estrutura vigente e possibilitar a mobilização e
conscientização do leitor. A denúncia “[...] é uma espécie de crítica dirigida especialmente aos
comportamentos que não são admitidos pelas normas sociais explícitas, mas que são praticados
graças à dissimulação, hipocrisia e conivência social das pessoas” (CARMELINO, 2012, p. 48). Nesse
sentido, o humor possibilita mostrar que determinado comportamento ou costume existe e é negativo,
favorecendo, assim, uma mudança social. Além dessas funções apontadas, acrescenta-se a função
persuasiva, em que o humor “[...] quebra as barreiras do que é considerado ‘normal’ ou ‘sério’, ou
seja, por meio do humor, é possível dizer certas coisas que fora dele seriam impraticáveis”
(CARMELINO, 2012, p. 48).
O objetivo do humor, portanto, transcende o riso à medida em que apresenta outras
funcionalidades, como satirizar, depreciar, denunciar e criticar, tendo em vista os costumes situados
sócio-historicamente. Por conseguinte, a construção do humor é contextualizada e exerce um papel

RISO
1411

político-social: “[...] o que o humor critica, agride, desestrutura é o estabelecido em uma sociedade,
suas estruturas, seus componentes [...] e o seu conteúdo difere de sociedade para sociedade e de um
período histórico para o outro” (TRAVAGLIA, 1990, p. 23).
Mikhail Bakhtin foi um dos grandes estudiosos do riso. Em sua obra “Questões de Literatura e
Estética: a teoria do romance”, ele apresenta uma concepção de riso que se desdobra em dois
aspectos: o linguístico, do qual é possível retirar elementos para compor as mais variadas formas de
expressão do riso; o psicossociofisiológico, isto é, o riso ligado à atitude responsiva ativa 34 do sujeito
diante de um discurso potencialmente humorístico.

Nós temos em vista o riso não como um ato biológico e psico-fisiológico, mas o riso na existência sócio-
histórica, cultural e objetal, e, principalmente, na expressão verbal. O riso se manifesta na fala pelos
mais diferentes fenômenos, que até hoje não foram submetidos a um estudo histórico-sistemático e
rigoroso suficientemente profundo. Ao lado do emprego poético da palavra num ‘sentido não particular’,
ou seja, ao lado dos tropos, existem as mais variadas formas de utilização indireta de um outro gênero
de linguagem: a ironia, a paródia, o humor, a facécia, os diversos tipos de comicidade etc. (não existe
uma classificação sistemática) (BAKHTIN, 2010, p. 343).

Neste trabalho, vamos nos ater as seguintes proposições bakhtinianas relativas ao riso: a
categoria carnavalização e o estilo intitulado como realismo grotesco, elementos presentes, por
analogia, no humor henfiliano, especificadamente nos quadrinhos dos personagens Baixim e Cumprido.
Bakhtin (1993), quando analisa a importância do riso popular no contexto da obra de François
Rabelais, atesta que:

[...] sua amplitude e importância na Idade Média e no Renascimento eram consideráveis [...] opunha-se à
cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e
manifestações - as festas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos e especiais - possuem uma unidade
de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura
carnavalesca, una e indivisível (BAKHTIN, 1993, p. 03).

Ao analisar os textos literários de Rabelais e, em especial seus personagens, Bakhtin (1993)


considera que eles vivenciavam festas medievais carnavalescas nas quais os membros de classes
sociais distintas podiam trocar de papéis ou representar elementos do imaginário social. A alteração
da ordem social ocorrida durante esses festejos era dissipada diante do riso, ao mesmo tempo em
que o absurdo e o ridículo se tornavam parte da ordem aceitável pelos diferentes segmentos sociais,
que se permitiam viver uma segunda vida, um mundo ao revés, negados pelas festas oficiais da Igreja
e pelo poder feudal.

34
Para Bakhtin (2000), toda leitura é passível de uma responsividade oriunda das relações sociais. Daí emerge o conceito de atitude
responsiva ativa: “[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele
uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo [...] essa
posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes, literalmente a partir
da primeira palavra do falante” (BAKHTIN, 2000, p. 271).

RISO
1412

[...] todos esses risos espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável,
uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais
sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas
totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter
construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da
Idade Média pertenciam [...]. Isso criava uma espécie de dualidade do mundo (BAKHTIN, 1993, p. 05).

Nesse mundo ao revés, o medo inexistia e ria-se das contradições sociais inerentes à
sociedade da época. Assim, o que havia de terrível se tornava habitual e o inaudito era desvelado pelo
humor e por uma linguagem que se constituía em paródia da vida ordinária, pois, ao negá-la,
ressuscitava e renovava pela catarse, forma de alívio para as situações de conflito social. Por
conseguinte, “[...] o riso carnavalesco medieval é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao
mesmo tempo, burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente”
(BAKHTIN, 1993, p. 11). Ao rir do interdito pela ideologia oficial e censura do Estado, o povo retratado na
obra de Rabelais, liberava-se do ponto de vista hegemônico sobre o mundo, das convenções sociais e
dos medos, e passava a “[...] olhar o universo com outros olhos, compreender até que ponto é relativo
tudo o que existe e, portanto, permitia compreender a possibilidade de uma ordem totalmente
diferente do mundo” (BAKHTIN, 1993, p. 30).
Em consonância com a categoria carnavalização, Bakhtin reflete sobre o realismo grotesco35,
marca do estilo literário de Rabelais, como aquele que se constitui pela transferência de tudo o que é
elevado, espiritual, da ordem do sagrado e da moral de uma época, para o plano material e corporal.
Tal traço caracteriza o rebaixamento: a aproximação da terra e a corporificação. “O traço marcante
do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da
terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo o que é elevado, espiritual, ideal e abstrato”
(BAKHTIN, 1993, p. 17). Nesse sentido, o corpo grotesco é marcado pelo exagero e manifesta de forma
positiva os princípios da vida material e corporal, como a bebida e comida em abundância e as
necessidades fisiológicas e sexuais. Esse corpo é modelado para uma sociedade carnavalesca que se
alimenta em abundância, festeja livremente a possibilidade de uma sociedade sem proibições ou medo,
e se entrega aos prazeres sexuais valendo-se de uma linguagem com expressões de baixo calão
consideradas como impróprias para a moral cristã. No realismo grotesco, as degradações e exageros
rebaixam o corpo ao aproximá-lo da terra, elemento que simboliza o nascimento, a ressurreição e a
regeneração.

35 Na obra “Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”, Bakhtin define o termo “grotesco”,
substantivo oriundo da palavra grotta (gruta), traçando sua origem a partir da descoberta de uma pintura encontrada no século XV nas
paredes subterrâneas das termas romanas de Tito. Essa imagem reunia representações de formas vegetais, animais e humanas que se
transformavam e se confundiam. O termo “grotesco”, então, exprime a transmutação de certas formas em outras, no eterno inacabamento da
existência. Bakhtin infere também que essa pintura compõe um imenso universo da imagem grotesca que existiu em todas as etapas da
Antiguidade e que continuou existindo na Idade Média e no Renascimento (DISCINI, 2014).

RISO
1413

O baixo material e corporal concebido na sua função regeneradora ampara-se na reversibildiade dos
movimentos, o que é fundante do grotesco. A função regeneradora do rebaixamento grotesco compõe a
cosmovisão carnavalesca (DISCINI, 2014, p. 57).

Sendo assim, durante as festas carnavalescas medievais, fonte para a criação literária de
Rabelais, ocorria uma paralisação temporária de todo tipo de censura e medo impostos pela religião
dominante, bem como uma ruptura passageira das relações hierárquicas vigentes.

Essa eliminação provisória, ao mesmo tempo ideal e efetiva, das relações hierárquicas entre os
indivíduos, criava na praça pública um tipo particular de comunicação, inconcebível em situações
normais. Elaboravam-se formas especiais do vocabulário e do gesto da praça pública, francas e sem
restrições, que aboliam toda a distância entre os indivíduos em comunicação, liberados das normas
correntes de etiqueta e da decência (BAKHTIN, 1993, p. 9).

Era, portanto, pela descrição das festas populares nos textos literários de Rabelais que
Bakhtin inferiu que o povo conseguia relativizar a ordem habitual das coisas, aproximando-se do que,
normalmente, colocava-se à distância e abaixando o que, comumente, encontrava-se no alto. Pelo
humor permitia-se a dessacralização de um modo oficial de conceber a vida, marcado pela opressão,
proibição e rigor, substituído por uma concepção mais livre, catártica, que se revelava nas
alternâncias, reversões e profanações.
A fim de melhor compreendermos o humor pela via da carnavalização e do realismo grotesco
como elementos que podem ser aproximados dos quadrinhos de Henfil, serão apresentadas na
próxima seção as particularidades da linguagem dos quadrinhos e da verbo-visualidade.

2. OS QUADRINHOS E A LINGUAGEM VERBO-VISUAL

A criação de sequências de imagens para contar histórias não é privilégio da Modernidade. O


ser humano valeu-se desse recurso desde a Pré-História, quando registrava crenças e fatos do
cotidiano nas paredes das cavernas para, ideologicamente, marcar o espaço histórico humano. Nesse
sentido, narrar é uma atividade linguística pautada em uma diversidade de manifestações artísticas,
como hieróglifos, pinturas, esculturas, mosaicos, vitrais, tapeçarias, as quais, inicialmente, eram
realizadas apenas por meio do texto visual. A partir da sistematização da escrita, de forma paulatina,
foram estabelecidas as relações entre texto escrito e imagens, como nas iluminuras medievais.
Texto e imagem são, consequentemente, elementos intrínsecos à linguagem e devem ser
observados como unidades complexas de significação por estarem inseridos em um discurso 36 .
Pensar nos quadrinhos a partir desse pressuposto é tomá-los como uma simbiose da linguagem
verbal e visual denominada verbo-visualidade:

36
Consideramos que discurso é “[...] a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido
por meio de uma abstração absolutamente necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos,
abstraídos pela linguística, os que têm importância primordial para nossos fins” (BAKHTIN, 2002, p. 207).

RISO
1414

Ao tratarmos do verbo-visual, da verbo-visualidade, é necessário, antes de mais nada, distinguir alguns


aspectos fundamentais. De um lado, temos os estudos do visual, especialmente os ligados à arte. É disso
que tratamos com referência às obras que recuperam, diferentemente, os trabalhos do Círculo para a
leitura e interpretação do visual, da cultura visual. Outra coisa é um estudo que procura explicar o
verbal e o visual casados, articulados em um único enunciado, o que pode acontecer na arte ou fora
dela, e que tem gradações, pendendo mais para o verbal ou mais para o visual, mas organizados em um
único plano de expressão, combinatória de materialidades, expressão material estruturada (BRAIT, 2013,
p. 50).

Considera-se que a verbo-visualidade constitui os quadrinhos e é caracterizada por


elementos verbais e visuais que se interpenetram e estruturam uma forma composicional própria
atravessada pelo dialogismo37, cujos efeitos de sentido existem a partir de construções discursivas
relacionadas aos contextos enunciativos. Bakhtin (2000) considera a linguagem como atividade
instituída em um processo concreto em que o signo se instaura ideológica (apresenta índices de valor
de cunho social) e dialogicamente. Ao mesmo tempo, o signo ideológico, que compõe as enunciações e
os discursos, pode se materializar de diversas maneiras, sendo uma delas os enunciados verbo-
visuais. Isso posto, Bakhtin (2002) aponta que:

Em uma abordagem ampla de relações dialógicas, essas são possíveis também entre outros fenômenos
conscientizados desde que estejam expressos em uma matéria sígnica. Por exemplo, as relações
dialógicas são possíveis entre imagens de outras artes, mas essas relações ultrapassam os limites da
metalinguística (BAKHTIN, 2002, p. 184).

A perspectiva semiótica-filosófica-ideológica que vai construir o que Bakhtin (1997) designa


como signo ideológico é a que serve de fundamento para a leitura do visual, mesmo não havendo
menção explícita à imagem.

Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua
lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica
de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada.
A imagem, a palavra, o gesto significante etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há
apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos
lhe conferem (BAKHTIN, 1997, p. 35-36).

Esse excerto permite-nos apontar que os enunciados também podem apresentar uma
dimensão verbo-visual. De acordo com Brait (2004), as linguagens em geral buscam combinar o
verbal e o visual para os mais diferentes fins, pois implicam a mobilização de múltiplos sentidos e

37 “[...] o dialogismo diz respeito ao pemanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que
configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. É nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que
instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem. Por outro lado, o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o
eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que por sua vez instauram-se e são instaurados por esses
discursos” (BRAIT, 1998, p. 78).

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1415

discursos, o que promove uma interação mais sinestésica que atinge o homem e a sua condição de
ser e estar no mundo.
Por conseguinte, os quadrinhos são textos em que a verbo-visualidade se apresenta como
constitutiva, impossibilitando o tratamento excludente do verbal ou do visual e enfatizando formas de
junção assumidas por essas dimensões no processo de produção de sentidos. Assim, a concepção de
texto também deve ser diferenciada, pois ultrapassa-se a dimensão exclusivamente verbal com o
reconhecimento também do visual como integrantes de um enunciado concreto que deve ser
analisado tendo em vista as particularidades de seus planos de expressão e das esferas em que
circula (BRAIT, 2009). À vista disso, a dimensão verbo-visual dos quadrinhos pode ser conceituada
como:

A dimensão em que tanto a linguagem verbal como a visual desempenham papel constitutivo na
produção de sentidos, de efeitos de sentido, não podendo ser separadas, sob pena de amputarmos uma
parte do plano de expressão e, consequentemente, a compreensão das formas de produção de sentido
desse enunciado, uma vez que ele se dá a ver/ler simultaneamente (BRAIT, 2013, p. 44).

Diante do exposto, cabe relacionar o que foi apresentado ao nosso objeto de estudo: a
produção henfiliana. Em meio à ditadura que assolava o país desde 1964, Henfil valeu-se em sua
produção humorística das especificidades da linguagem verbo-visual dos quadrinhos, em que as
palavras se integravam ao espaço das imagens desenhadas, dos quadrados fronteiriços e até de
alguns vazios estratégicos.

Mas, o mais importante é se acostumar a ler a sequência dos quadrinhos. Em geral, as pessoas ficam
tensas querendo à força entender. E aí param um tempo enorme em cada quadrinho, olhando todos os
detalhes, como se num deles estivesse a chave, o segredo da piada ou a charada. E perdem o fio da
sequência, que é o que interessa (FRADIM 17, 1977, p. 42).

Cabe assinalar que textos que utilizam diferentes linguagens implicam diferentes leituras e
relações e, consequentemente, leitores familiarizados com tais diferenças, conforme sugerem
Bourdieu e Chartier (2011) acerca das acepções do termo “leitura”:

Há algo mais talvez nesse uso não controlado da palavra leitura, aplicada a todo um conjunto de
materiais que lhe resistem. É claro que se pode decifrar um quadro, um ritual, um mito, mas o conjunto
desses modos de decifração, que não referem dispositivos que funcionam na leitura de textos, não são
enunciáveis, contudo, senão através dos próprios textos. Há, portanto, na própria restrição uma
incitação a essa universalização, contra a qual é difícil de se precaver (BOURDIEU; CHARTIER, 2011, p.
234).

Nesse sentido, as novas relações que o indivíduo pode estabelecer com o texto verbo-visual
dos quadrinhos justificam a utilização desse recurso em práticas que potencializam espaços de
formação de leitores críticos. Os quadrinhos de Henfil conseguem apontar para uma dimensão

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1416

dialógica ainda mais complexa em termos de linguagem, do que apenas aquela voltada para a imagem
autônoma ou, ainda, para os sentidos construídos somente por imagens.

3. HENFIL E O HUMOR POLÍTICO

Mineiro de Ribeirão das Neves, radicado no Rio de Janeiro e nascido em 5 de fevereiro de


1944, Henrique de Souza Filho, mais conhecido como Henfil, era de origem familiar modesta e sua
condição socioeconômica possibilitou que ele verificasse in loco as mazelas da sociedade brasileira,
as quais serviram de inspiração para a criação das narrativas vividas por suas personagen. Henfil e
seus dois irmãos, o sociólogo Betinho e o músico Chico Mário herdaram da mãe a hemofilia, doença
que impede a coagulação do sangue e é controlada por meio de constantes transfusões de sangue.
Por influência dos irmãos mais velhos, principalmente de Betinho, Henfil engajou-se nas causas
políticas e sociais e no universo dos intelectuais mineiros. Em Belo Horizonte iniciou sua trajetória
profissional em jornais e revistas locais como Alterosa, Diário da Tarde, Última Hora, Diário de Minas e
Jornal dos Sports (PIRES, 2010).
Henfil foi para o Rio de Janeiro em 1967 para trabalhar na sucursal do Jornal dos Sports. Em
julho de 1969, passou a integrar a equipe do jornal alternativo O Pasquim38, assumindo uma postura
combativa e irreverente contra o autoritarismo no âmbito político e dos costumes. Nesse jornal,
Henfil tornou-se um dos principais representantes da linhagem carioca da imprensa alternativa 39
durante a ditadura militar iniciada em 1964 no Brasil. Nesse período, além dos problemas econômicos
e da injustiça social que se agravavam, desenvolviam-se aqueles derivados da ostensiva repressão
política após a publicação do Ato Institucional nº 5 (o AI-5, de 13 de dezembro de 1968), decretado pelo
general-presidente Arthur da Costa e Silva, como a pulverização dos movimentos artísticos,
estudantis e sociais, somados ao represamento da luta sindical, da subjugação da classe trabalhadora
e da intensificação da coerção e da censura sobre os agentes produtores de cultura no Brasil.

Naquele momento encontrava-se em ascensão a preocupação com o desenvolvimento de uma cultura


política comprometida, de início, com o estabelecimento dos princípios democráticos e, posteriormente,
com a qualidade da democracia instaurada que se manifestava, sobretudo, através das redes de
militância, de solidariedade, de informação e de comunicação construídas no âmbito da sociedade civil e
que, de alguma forma, contribuíram para reverter o grau de fragmentação e desarticulação da
sociedade civil organizada e para propor às instituições políticas mecanismos de divisão na formulação
e execução de políticas públicas corretivas das gritantes desigualdades sociais existentes (PIRES, 2007,
p. 62).

38 O Pasquim foi um semanário alternativo semanal em formato tabloide, lançado em 26 de junho de 1969, no Rio de Janeiro. Criado um ano
após a promulgação do Ato Institucional nº 05 (AI-5), período marcado por intensa efervescência cultural e de repressão política e civil,
buscava estabelecer com seu público um diálogo com as questões políticas e culturais daquele momento ao apresentar uma oposição ao
regime ditatorial brasileiro iniciado em 1964 e por criticar os comportamentos sociais da classe média (QUEIROZ, 2015).
39 Durante o regime militar iniciado em 1964, o termo “imprensa alternativa” designou o tipo de imprensa não alinhada à linha da mídia

tradicional. Era representada por pequenos jornais, em geral com formato tabloide, dirigidos e elaborados por jornalistas de esquerda que
buscavam informar a população sobre temas de interesse nacional, mesmo sendo alvo de censura (PERUZZO, 2006).

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1417

Foi dentro desse contexto que a imprensa alternativa se transformou em um dos principais
veículos utilizados por atores sociais para expressar a oposição ao regime militar instaurado, ao
modelo econômico proposto, e a defesa dos direitos fundamentais que devem ser garantidos por uma
sociedade democrática. O surgimento do jornal O Pasquim abriu espaço para uma imprensa que
colocou o humor ao lado da reflexão política e da transformação social.

A imprensa, como aparelho ideológico informativo do Estado, reproduzia a imagem oficial de


tranquilidade política conveniente à manutenção do governo militar. [...] Em 1969, o jornal O Pasquim, do
Rio de Janeiro, instaurava-se como resistência à censura ideológica que existia na época. Realizado por
jornalistas de classe média, dirigia-se a essa classe, procurando manter o nível de consciência
adquirido nos movimentos populares que persistiram até 1968, apesar de toda a mobilização dos órgãos
de segurança do Estado. [...] caracterizou-se pela aparente irreverência, pelo humor contra a própria
classe média, que se revelou incapaz de solucionar suas contradições. Através do humor, O Pasquim
tentou discutir a problemática nacional, de maneira metafórica, para poder sobreviver aos censores.
Mas, mesmo assim, seu campo de ação foi limitado e seus editores, muitas vezes, punidos (SEIXAS, 1996,
p. 11).

Carmelino e Ramos (2015) apontam que o humor de O Pasquim não se relacionava a uma
comicidade de diversão, mas sim a um humor engajado e político.

Seus alvos principais eram a ditadura militar, contra a qual se opunha de maneira visceral, a classe
média moralista e a grande imprensa. [...] a ‘patota’ do O Pasquim encontrou seu denominador na mais
intransigente oposição à ditadura. Por isso, O Pasquim possuía duas dimensões: uma, contingente, de
combate à ditadura, e outra filosófica (CARMELINO; RAMOS, 2015, p. 107).

Dessa forma, o humor pasquiniano desmontou discursos, destronou instituições e seus


representantes, ao mesmo tempo que buscou reconciliar e reintegrar seus leitores pela suspensão
temporária do medo das hierarquias e das proibições. Com isso, adquiriu um caráter regenerador e
se instituiu como um instrumento de resistência e desafio ao regime, ao mesmo tempo que promoveu
ações de desvelamento que intentavam retirar o leitor da letargia provocada pelo medo e
desconhecimento da realidade impostos pelo regime.

Uma vez que o espaço público de representatividade política estava cerceado pelas condições impostas
pela ditadura militar, o texto pasquiniano, aí incluído o discurso humorístico de Henfil, buscou,
pretensamente, desempenhar o papel de voz ativa dos interesses sociais democráticos, constituindo
uma alternativa geradora do sentimento de pertença política que se encontrava esvaziado (PIRES, 2010,
p. 51).

Foi a partir da participação e do sucesso alcançado com seus quadrinhos no jornal O Pasquim
que Henfil lançou em 1973 a revista Fradim, que, segundo Souza (1985, p. 245) é “[...] uma das mais
longevas experiências de publicações autorais de história em quadrinhos no Brasil”. Conforme
explicita Pires (2010), havia uma distinção entre o conteúdo apresentado por Henfil no jornal O

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1418

Pasquim e na revista Fradim, pois enquanto no jornal os quadrinhos abordavam questões cotidianas
relacionadas ao âmbito dos costumes da classe média, na revista havia a abordagem de temáticas
mais amplas trazidas pelos movimentos sociais, como relações de poder entre os gêneros 40 ,
transição política, anistia, homossexualidade, movimento estudantil, dentre outros. Tais temas eram
articulados à questão do autoritarismo, cuja representação na revista superava o âmbito político,
compreendendo aspectos da vida social.
Considerando o contexto político e social de censura e repressão iniciado com o golpe de
1964, Henfil modificou sua forma de produzir humor: “Na ditadura, eu acentuava muito a agressividade
do humor. Tínhamos que encontrar um jeito de obrigar as pessoas a refletirem sobre o que estava
acontecendo” (HENFIL apud MORAES, 1996, p. 134). Nesse sentido, a censura determinou a produção
cultural do Brasil dos anos 70, pois qualquer citação sobre o regime militar, político ou pessoa pública
que tivesse sido exilada ou considerada subversiva, tornava a obra impublicável. “A censura
configurou-se como mantenedora do poder do grupo militar dominante no país selecionando e
determinando o saber que poderia ser divulgado às classes dominadas” (SEIXAS, 1996, p. 9). Henfil via
a censura apenas de maneira negativa, à medida em que o distanciava do público, pois o obrigava a se
tornar sutil em suas expressões artísticas.

[...] todo mundo fala assim: ‘Ah, mas a censura é muito propícia para criação, porque você é obrigado a
criar novas linguagens, você enriquece muito!’ Não enriquece coisíssima nenhuma, porque o que
acontece é que você vai ficando cada vez mais sutil, você vai elitizando a sua comunicação. Não é meu
interesse, então, essa elitização e eu estou indo, cada vez indo mais para ela, estou cada vez com menos
contato com o povo, vamos dizer, pelo fato de ficar muito sutil (FRADIM 21, 1977, p. 42-43).

O leitor não sabe da censura e se sabe, pelo tempo que estão nos editando, acaba esquecendo e
achando que eu sou ruim, acabei. Note você que todos esses quadrinhos vetados foram amaciados.
Eram muito mais crus, engraçados. Aí achei que tinha enfraquecido eles tanto que iam passar. [...] Fora
saber que o personagem vai se reprimindo e não avança nem desenvolve a personalidade. As ideias, as
mais quentes, chegam na cabeça e depois fico horas matutando numa saída mais fraca e passável
(FRADIM 12, 1976, p. 29-30).

Há na obra henfiliana uma visível preocupação em fazer do humor um instrumento de crítica


social e política por meio de personagens que retratam o ser humano comum envolvido em ações que
tecem a vida cotidiana, como os fradins (forma amineirada para o termo “fradinhos”) Baixim e
Cumprido.
Inspirado pelas repressões vivenciadas em seu círculo familiar católico e pela sua
convivência com frades dominicanos durante a infância e juventude, Henfil criou seus primeiros
personagens na revista Alterosa, em julho de 1964: os fradins Baixim e Cumprido (MALTA, 2008). Com
personalidades distintas e antagônicas, Cumprido se distingue pela ingenuidade e bondade enquanto

40Utilizamos o conceito de gênero como “[...] um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os
sexos” (SCOTT, 1995, p. 86).

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1419

Baixim destila sarcasmo, ironia, agressividade e maldades que incluem o sadismo e comportamentos
que subvertem o sagrado, o instituído, e expõem o corpo material. O vínculo entre os personagens
constitui uma relação dialética que busca interpretar e criticar a realidade a partir de uma vivência
complementar entre os opostos. Segundo Henfil, nos personagens ele colocava a sua “[...] divisão
interna. Então, metade do meu comportamento era como Cumprido e metade como Baixim” (HENFIL
apud FRADIM 17, 1977, p. 47). Os fradins também representam uma forma simbólica de participação na
vida política apesar dos limites físicos impostos pela hemofilia. Sendo assim, as histórias dos fradins
expressam a dessacralização da ética cristã e as contradições em que vivia a classe média, cindida
entre a euforia promovida pelo suposto milagre econômico e a barbárie praticada dentro e fora dos
porões da ditadura. Vivia-se uma alegoria do real e nessa condição de predominância do absurdo é
que o humor instaura uma possibilidade de sobrevivência existencial e de resistência às formas
instituídas de relações entre os sujeitos.
Escolhemos, tendo em vista a vasta produção artística henfiliana, quatro quadrinhos dos
personagens Fradim e Cumprido para serem analisados à luz dos conceitos bakhtinianos
“carnavalização” e “realismo grotesco”.

Figura 1

Fonte: A Volta do Fradim, 2009

Ao analisarmos a figura 1, percebe-se a prevalência do rebaixamento e da degradação de


discursos de caráter sublime e moralizante próprios do estilo grotesco, que se aproximam do que era
humano ou próprio da realidade da época, como o problema da fome no nordeste apontado por Baixim,
em contraposição à pergunta de Cumprido relativa à origem mítica cristã dos habitantes da lua
(“Estava pensando: o habitante da lua nasceu de Adão e Eva?”). Como contraponto à exacerbação dos
valores morais cristãos personificados em Cumprido, Henfil apresenta a indisciplinada postura crítica
do Baixim, que com sua indagação e seus gestos profanos satirizam elementos associados a uma
retórica ético-moral valorizada pela ditadura. A celebração daquilo que era imoral na sociedade, como
o gesto de “Top! Top!”; o uso das expressões “Putz! Que ferrada!”, consideradas de baixo calão; e tudo
que de forma subjacente tais comportamentos representam, não só relativizam como subvertem a
concepção de moral associada à divindade e a valores cristãos, representados nos discursos de
Cumprido e subvertidos por Baixim. O modo como Henfil compõe o quadrinho, o chamado plano de
expressão, também ajuda a reforçar a análise do discurso verbal, ressaltando a indissociabilidade

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1420

verbo-visual. As expressões dos rostos dos personagens – a tensão de Cumprido enquanto pensa
sobre os problemas brasileiros e a encenação seguida pela ironia rebelde de Baixim – apontam as
particularidades éticas de cada um, definindo o lugar que ocupam tanto ideologicamente quanto no
espaço cênico dos quadrinhos henfilianos.

Figura 2

Fonte: A Volta do Fradim, 2009

Na figura 2, Henfil, por meio de um vocabulário próximo de um discurso infantil, como o uso de
diminutivos (mãozinhas, fitinha), enunciado por um personagem que, frequentemente, vale-se de
termos populares ou de baixo calão relacionados a uma linguagem próxima àquela utilizada por
adultos, possibilita a recriação de valores e práticas sócio-culturais pertencentes ao senso comum,
de forma que esses perdem o caráter absurdo, vergonhoso, proibido ou banal. Nesse sentido,

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observa-se a utilização de linguagem da cosmovisão carnavalesca na simultaneidade dos opostos


criança/adulto, linguagens infantil/adulta, ingenuidade/obscenidade, que se fundem em Baixim. O
emprego de tal vocabulário ambivalente, impregnado de franqueza e liberdade, gera uma familiaridade
que, conforme Bakhtin, corresponde a uma categoria da cosmovisão carnavalesca. Essa familiaridade
revoga “[...] o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta
etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade (inclusive etária) entre os homens”
(BAKHTIN, 2002, p. 123). Na figura 2, percebem-se também elementos do realismo grotesco no
rebaixamento do que é considerado elevado e sublime (a figura materna), que passa para o baixo
corporal pela exploração de processos biológicos, como odores, excreções, absorção de alimentos e a
deterioração do corpo pela morte identificada na fala de Baixim ao profetizar o falecimento da mãe de
Cumprido e imaginar o corpo dela no caixão: “Algodão no nariz e as duas mãozinhas amarradas com
um uma fitinha”. Em outros quadrinhos dos fradins, Baixim, frequentemente, faz referência ao baixo
material e corporal quando tira meleca do nariz, solta gases e vomita, em contraposição aos
comportamentos de Cumprido, que refletem uma ordem instituída em favor da família, dos costumes
da classe média e da religião, um dos pilares em que se ancorou a ditadura militar com o apoio dos
extratos conservadores da sociedade brasileira. Ressalta-se na figura 2 a perspectiva de
ambivalência da morte41. Considerada por Cumprido em uma concepção hegemônica cristã, isto é,
como fim inexorável relacionado à tristeza e a um tabu de nossa sociedade, Baixim, ao contrário,
regozija-se ao imaginar a morte, ligando-a a um momento festivo de júbilo luxurioso carnavalesco.
Além disso, é possível inferir a partir do plano de expressão do quadrinho, ou seja, do modo como
Henfil diz o que diz sobre os personagens nas três cenas, os seus posicionamentos ideológicos. Na
primeira e na segunda cena, Baixim com pernas cruzadas, ouvinte com fisionomia “blasé”, no papel
fugaz de psicólogo; e Cumprido com mãos tensas e gesticuladas, como um frágil paciente em um
consultório. Já na terceira parte toda a encenação relacionada à proposta terapêutica se desfaz, pois
Baixim retoma seu papel de provocador e faz com que Cumprido se distancie correndo histericamente
com as mãos nos ouvidos para não escutar as suas provocações. Desse modo, a visualidade das
expressões corporais dos personagens reforça e dialoga com o texto verbal, ampliando e demarcando
o discurso crítico e satírico henfiliano.

41
“Dentro do sistema de imagens grotescas, a morte é considerada uma entidade de vida na qualidade de fase necessária, de condição para a
sua renovação e rejuvenescimento permanente. A morte está sempre relacionada ao nascimento, o sepulcro ao seio terreno que dá à luz. [...] A
morte está incluída na vida e determina seu movimento perpétuo, paralelamente ao nascimento. O pensamento grotesco interpreta a luta da
vida contra a morte dentro do corpo do indivíduo como a luta da vida velha recalcitrante contra a nova vida nascente, como uma crise de
revesamento. [...] No sistema de imagens grotescas, portanto, a morte e a renovação são inseparáveis do conjunto vital e incapazes de infundir
temor” (BAKHTIN, 1993, p. 43).

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1422

Figura 3

Fonte: A Volta do Fradim, 2009

Na figura 3, ressalta-se o rebaixamento ao plano do material daquilo que é considerado da


ordem do sagrado nas mulheres: a maternidade. Essa ação de rebaixamento e destronamento de um
valor moral tido como inquestionável pela religião e pelo sistema simbólico de repressão do regime da
época sugestionam ao leitor a imprescindível necessidade de tomar posições frente ao contexto
social e político por meio de ações antiautoritárias e subversivas da moral e dos bons costumes.
Sendo assim, a figura materna, representada pela mãe de Baixim (figura 3) é dessacralizada e
rebaixada a uma posição infantil quando responde à pergunta de Cumprido de forma jocosa, deixando-
o envergonhado, e comemora com seu filho tal como em uma brincadeira entre crianças. Quanto ao
plano de expressão do quadrinho, nas duas primeiras cenas Baixim e sua mãe apresentam
semelhanças físicas: são pequenos e possuem os mesmos traços que compõem os rostos, exceto o
cabelo, as roupas e os óculos, aspectos que os diferenciam em gênero e idade. Fica enfatizada na
segunda cena a dissimulação e encenação de ambos, convencendo Cumprido, que logo altera sua
expressão facial, pois sua boca é representada por uma linha ondulada. No desfecho dos quadrinhos

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1423

as expressões corporais de Baixim e de sua mãe se modificam e os sorrisos são retratados de modo
exagerado pela linha que representa os dentes de ambos.
Nesse sentido, a mãe/mulher sagrada, envolvida em valores cristãos de moralidade e
seriedade, torna-se uma criança que ri sem nenhum pudor diante do constrangimento que causa.
Ratificam-se a subversão do instituído e a justaposição de elementos contrários que ocorrem
intencionalmente no intuito de revelar o caráter contraditório, parcial e limitado das ideias defendidas
pela elite dominante e pelas igrejas, transformadas em motivo de riso, sendo possível, então, imaginar
uma nova ordem política e social.

Figura 4

Fonte: Pasquim 338, 1975

Dentre outros temas abordados por Henfil, destacam-se as referências a rituais religiosos e
sociais, que são profanados e dessacralizados pelo humor produzido por uma cosmovisão
carnavalesca. Na figura 4, revelam-se as atitudes sádicas de Baixim, em oposição à benevolência de
Cumprido ao dar presente para um morador de rua cego e desejar “Tudo de bom!”, no questionamento
do caráter cristão de confraternização ou de harmonia que está subjacente nas referências
discursivas oficiais sobre o Natal, evidenciando as contradições inerentes ao discurso religioso que
prega a união e a celebração da vida em um período em que a morte provocada pelo Estado, a tortura
e a repressão faziam parte do cotidiano daqueles tidos como subversivos por resistirem à
institucionalidade, ao poder monopolizante e às culturas dominantes. No plano de expressão podemos
observar que Henfil divide a narrativa em três momentos: em um primeiro, mostra um personagem
sentado com óculos e bengala, aparentando ser um cego que recebe de Cumprido um embrulho sob a
forma tradicional de um presente de Natal. Os dois personagens estão no mesmo plano, fato que
ressalta a necessidade de se reconhecer a igualdade entre as pessoas, mesmo que estejam em
condições desiguais. De modo arbitrário, Henfil insere na cena seguinte apenas um braço que retira o
presente do alcance do cego o qual continua a procurar a prenda. Essa busca é representada, na
última cena, por uma linha sinuosa que indica o caminho percorrido pelo cego. Nesse momento, Henfil

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1424

revela quem subtraiu o presente: Baixim, que sorri de modo irônico no canto superior esquerdo do
espaço cênico.
Ao analisarmos os quadrinhos dos personagens Fradim e Cumprido, por meio do referencial
teórico bakhtiniano, emergem elementos presentes na retórica ético-moral valorizada pela ditadura
militar que podem estimular o leitor a tomar posições frente ao contexto político e social atual,
revelando verdades antes inquestionáveis e fomentando a promoção de ações libertadoras, engajadas
politicamente e antiautoritárias.
Os quadrinhos de Baixim e Cumprido deram início, portanto, a

[...] uma liberação, uma linguagem que não era permitida, então o Baixim tirou meleca e, naquela época,
isso era subversivo. [...] O Baixim anarquiza, ridiculariza e agride as falsidades e as hipocrisias da
sociedade em que vivo. Ela é toda uma negação da religião do terror, na qual tudo é pecado. Minha
política é simples: poesia, não; sadismo, sim! (HENFIL apud MORAES, 1996, p. 104).

A arte defendida por Henfil é a arte que modifica, que busca levar o leitor a produzir sentidos
contra-hegemônicos para os discursos homogeneizantes e fatos políticos de uma época e sociedades
marcados pela censura e pela despotencialização da crítica e da subversão. Assim, o trabalho de
Henfil não pode ser desvinculado da militância, do engajamento política e de uma leitura crítica da
realidade, por mais que a censura da época atuasse no sentido de “cortar” o que fosse inadequado
para a manutenção da ordem pública: “Do alto dos seus 1,70m de insolência Henfil afirmou que ‘o
humor pelo humor é sofisticação, é frescura, já passou’. De acordo com ele, para ser tomado a sério,
o humorismo deveria ser jornalístico, engajado, quente” (HENFIL apud MORAES, 1996, p. 140).
Henfil afirmava que seu compromisso não era com o humor e nem em provocar riso, mas em
clarear os fatos, desvelar uma realidade censurada: "Quando eu faço um desenho, eu não tenho a
intenção que as pessoas riam. A intenção é de abrir, é de tirar o escuro das coisas. Só isso, mais
nenhum interesse" (HENFIL apud SOUZA, 1985, p. 23). Mesmo a partir dessa assertiva é possível
pensar que sua obra não é desprovida de humor. A produção henfiliana transcende as
intencionalidades do artista, ou seja, ela está aberta a diferentes diálogos que ultrapassam os
propósitos do autor no momento da sua criação. Ela incorpora múltiplas vozes, pois em analogia com
o romance polifônico estudado por Bakhtin (2002), os discursos englobam conhecimentos e olhares
de seu autor, que por sua vez se baseou nos olhares de outros, ocorridos em tempos diversos. Tais
discursos ao entrarem em contato com o leitor podem incorporar novos sentidos relacionados com a
vivência deste receptor e com o contexto histórico no qual ele está inserido.
Diante do exposto, ressalta-se que o humor político, sob o olhar das categorias bakhtinianas
de crítica literária da carnavalização e do realismo grotesco, podem ser mediadores de reflexões
acerca dos quadrinhos henfilianos voltados para a militância política e utilizados como instrumentos
de subversão da ordem vigente em um contexto de repressão, ao mesmo tempo que possibilitam a
formação de leitores críticos capazes de se envolverem no exercício da política e de desnudarem

RISO
1425

aspectos de uma realidade transmutada em imagens manipuladas por meio de estratégias midiáticas.
Nesse sentido, torna-se possível, desvelar o real e (re)criar possibilidades para a sua transformação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou retomar a relevância da produção humorística do cartunista Henfil


a partir de aproximações com os conceitos bakhtinianos de carnavalização e realismo grotesco
presentes, principalmente, nos quadrinhos dos fradins Baixim e Cumprido, tendo em vista as
semelhanças entre os contextos políticos pós-golpe 1964/2016, caracterizados pela
despotencialização de espaços de reflexão, participação política e formação de leitores críticos. O
artigo trouxe as concepções de humor relacionado não só ao riso, mas também à subversão, à crítica,
à carnavalização e ao realismo grotesco presentes na obra de Henfil comprometida com a política, a
mobilização e transformação sociais. Apontamos a partir da análise de quatro quadrinhos de Henfil as
possibilidades de subversão e de criação de outras realidades onde é possível celebrar a potência da
vida sem medo ou interdições por sujeitos responsáveis e responsivos, no eterno inacabamento da
existência.
Nesse sentido, enfatizamos a necessidade de nos engajarmos politicamente no atual momento
histórico brasileiro em que projetos de lei cerceadores encontram-se na pauta de discussão nacional
e temas de cunho político e social são silenciados nos espaços públicos mobilizadores da participação
social e de promoção de leitores críticos, o que nos aproxima, atualmente, do contexto histórico em
que Henfil produziu seus quadrinhos. O humor, seria, então, uma alternativa para a subversão da
censura velada, para o destronamento de ideias e sujeitos fundamentalistas que provocam medo e
letargia, e para a potencialização de protestos e discursos da classe trabalhadora, tornando possível,
ao “tirar o escuro das coisas”, a resistência à lógica mistificadora do capital e à escatologia política.

REFERÊNCIAS

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Hucitec, 1993.
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BOURDIEU, P.; CHARTIER, R. A leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, R. (Org.). Práticas de Leitura. 5.ed. São Paulo:
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RESUMO
1427
Este artigo tem como tema o debate sobre três
noções bakhtinianas “o conteúdo, o material e a

NOÇÕES BAKHTINIANAS: forma”, presentes no primeiro capítulo da obra


Questões de Literatura e Estética: a teoria do
romance. O objetivo é refletir sobre tais noções a
problema do conteúdo, do material e da partir de um enunciado de um cartaz de protesto
presente em Belo Horizonte nas manifestações de
forma em um cartaz de protesto rua de junho de 2013, no Brasil. O método utilizado
para atingir tal objetivo foi a análise dialógica do
enunciado. Ao final do trabalho foi possível
perceber que tais noções bakhtinianas não se
limitam ao objeto estético artístico seja ele de
qualquer natureza, muito menos prendem-se ao seu
tempo (1924), ano de publicação da primeira edição
XAVIER, Manuelly Vitória de Souza Freire 42 da obra. É perfeitamente possível atualizá-los para
os enunciados concretos não literários do mundo
NOVAES, Tatiani Daiana de 43
da vida do tempo presente e adequado para as
pesquisas que possuem qualquer enunciado como
objeto de estudo.

Palavras-Chave: Conteúdo. Material. Forma

PALAVRAS INICIAIS

E
ste artigo traz para o debate questões importantes para os estudos da linguagem voltados para
o Círculo de Bakhtin, mas especificamente, as noções de conteúdo, material e forma presentes
na obra “Questões de Literatura e de Estética”. O objetivo central é refletir sobre tais noções a
partir de um enunciado de um cartaz de protesto presente em Belo Horizonte nas manifestações de
rua de junho de 2013, no Brasil.
As manifestações de junho de 2013 foram as maiores desde Diretas Já e o impeachment do
Fernando Collor de Melo. Sua importância se dá por marcar um importante momento histórico e
político do país e por trazer uma série de cartazes carnavalescos, derrisórios, repletos de
criatividade e sofisticação semântica que muito atrai os analistas do discurso.
Este artigo se enquadra no eixo temático “riso” porque é possível considerar ambos
carnavalescos, as jornadas de junho em si, ou seja, o ato de sair as ruas e os vários dos cartazes
satíricos presentes nas manifestações como: “Não contavam com minha astúcia”, “Quero bolsa Louis
Vuitton” (fazendo relações dialógicas com o personagem da série mexicana Chapolin Colorado e com o
programa de governo Bolsa Família, respectivamente), alguns, inclusive, usa a linguagem de praça
pública como “Feliciano: meu cú é laico”, entre outros. Profanações típicas do novo ativismo.
Tal espetáculo ritualístico “as jornadas de junho”, assim como as festas postas em “A Cultura
Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais” (1987), possibilitou o
deboche, a inversão da ordem social, a subversão, a possibilidade de sujeitos periféricos se

42 Mestranda em Estudos da Linguagem, área de concentração Linguística Aplicada UFRN, membro do grupo de estudos Práticas Discursivas
da Contemporaneidade (UFRN) . E-mail: vit.xavier@homail.com
43 Doutoranda em Estudos da Linguagem, área de concentração Linguística Aplicada UFRN, professora do Instituto Federal do Paraná, campus

Curitba. Membro do grupo de estudos Práticas Discursivas da Contemporaneidade (UFRN) e de Políticas Públicas e Formação de Trabalhadores
na Educação Profissional (IFPR). E-mail: tatiani.novaes@ifpr.edu.br

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1428

aproximarem do centro simbólico, possibilitou o extravasamento, a dilaceração das barreiras


hierárquicas, a possibilidade de viver um momento catártico, além de ser marcado por um instante de
disputa discursiva em que hora o discurso oficial da grande mídia levou destaque, hora levou destaque
o discurso não oficial das redes sociais.
Um exemplo desse extravasamento, da inversão social, da linguagem de praça pública e da
violação das regras habituais da vida em sociedade é o cartaz que será analisado neste trabalho.
O Problema do “Conteúdo, do Material e da Forma na Criação Literária” é o primeiro capítulo
que compõe o livro “Questões de Literatura e Estética: a teoria do romance”, de Mikhail Bakhtin, que
teve sua primeira publicação 1924, obra consultada para este trabalho é da edição de 1990. Tal obra
dialoga diretamente com O autor e o herói (1920/1923), parte do livro Estética da Criação Verbal,
quando Bakhtin propõe que autor e espectador sejam partes fundamentais no objeto estético, o que
era uma novidade pois o momento era marcado pelo estruturalismo. A obra discute a relação
complexa entre autor e personagem, além de trazer os fundamentos para a estética.

1. O PROBLEMA DO CONTEÚDO, DO MATERIAL E DA FORMA NA CRIAÇÃO LITERÁRIA

O conteúdo, o material e a forma são grandezas diferentes, porém, inseparáveis, uma


pressupõe a outra. Conteúdo aqui não tem a mesma definição de conteúdo no senso comum, não se
trata simplesmente de ser somente uma ideia, um pensamento:

Chamamos de conteúdo da obra de arte (mais precisamente do objeto estético) à realidade do


conhecimento e do ato estético, que entra que com sua identificação e avaliação no objeto estético e é
submetida a uma unificação concreta, intuitiva, a uma individualização, a uma concretização, a um
isolamento e a um acabamento, ou seja, a uma formalização multiforme com a ajuda de um material
determinado (BAKHTIN, 1990, p.35).

Compreende-se o conteúdo/conhecimento como sendo algo muito além do “assunto


principal”. É algo que se aproxima do pensamento valorado, ou seja, a relação entre: o ato cognitivo, o
ato ético e a valoração.
A noção de ato ético para o Círculo relaciona-se com o ato responsivo, responsável feito por
um sujeito situado, historicizado. Quando se fala de ética não se trata do que é bom ou ruim, certo ou
errado, mas é a forma de se relacionar com o valor e não uma fonte de valores. Trata-se de um ato
com autoria, consciente, pessoal, comprometido e irrepetível. O acesso a esse ato é por meio da
linguagem, através da construção discursiva da realidade. A enunciação é a materialização do ato.
Para o Bakhtin é preciso ver além dos olhos, é preciso enxergar de forma valorada:

Deve-se notar que não se pode igualmente ver uma imagem nas artes figurativas: ver somente com os
olhos um homem representado como homem, com valor ético-estético, imagem, ver seu corpo com um
valor, como uma expressão da aparência, etc., é evidentemente de todo impossível; em geral, para ver
algo, para ouvir algo, isto é, qualquer coisa determinada enquanto objeto ou apenas axiologicamente

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1429

significante, algo que tenha peso, não bastam os sentidos exteriores, nem “uma vista que não vê nem um
ouvido sonado”, como diz Parmênides. (BAKHTIN, 1990, p.53).

A valoração existe, necessariamente, na relação entre o eu e o tu, que se interpenetram com


o conteúdo e com a forma na atividade estética.
Material para Bakhtin é a materialidade propriamente dita, no caso do discurso verbal, trata-
se da língua “não valorada”, não situada, uma espécie de aparato técnico da arquitetônica, ou seja,
algo que não é o enunciado concreto. Quando ele é usado como instrumento para a criação do objeto
estético, ele deixa de ser apenas o material. Outros exemplos de materiais são: mármore, acústica,
massa, espaço físico-matemático.
Para Bakhtin (1990, p.49) elemento técnico, ou seja, o material é:

Denominamos elemento técnico na arte tudo o que é absolutamente indispensável à criação da obra de
arte na sua determinação físico-matemática ou linguística - a isso relaciona-se também todo o conjunto
da obra de arte acabada, tomada como coisa, mas que não entra diretamente no objeto estético, que
não é um componente do todo artístico; os elementos técnicos são os fatores da impressão artística, e
não os constituintes esteticamente significativos do conteúdo dessa impressão, ou seja, do objeto
estético (BAKHTIN, 1990, p. 25).

A expressão “técnica” para o filósofo não tem o sentido pejorativo e muito menos um lugar
“menor” nos estudos dos objetos estéticos, o material é tão importante e diretamente perpassado
pelo conteúdo e pela forma.
Bakhtin também discute a forma. Quando ele diz “forma”, trata-se da “forma arquitetônica”:

As formas arquitetônicas são as formas dos valores morais e físicos do homem estético, as formas da
natureza enquanto seu ambiente, as formas do acontecimento no seu aspecto de vida particular, social,
histórica, etc.; todas elas são aquisições, realizações, não servem a nada, mas se auto satisfazem
tranquilamente; são as formas da existência estética na sua singularidade. (BAKHTIN, 1990, p. 25).

Neste contexto, arquitetônica é compreendida como um conjunto de elementos que vão


construir o enunciado, é mais que uma estrutura valorada, parte de um sujeito ativo e presente,
envolve o horizonte (temporal, espacial, valorativo) imediato, se confunde com o que alguns chamam
de “situcionalidade”. Ou seja, uma definição muito diferente da concepção saussureana que chama
“forma” de estrutura linguística. Trata-se de um arcabouço, uma estrutura valorada e situada.
Assim, pode-se afirmar que quando Bakhtin se refere a forma, ele está discutindo a forma de
um conteúdo materializado em algo, como a língua ou o mármore, por exemplo. A forma arquitetônica
determina a escolha da forma composicional e a forma encarna o conteúdo.
Em síntese, a discussão bakhtiniana em torno do Problema do Conteúdo, do Material e da
Forma na Criação Literária discute o objetivo central da estética que é:

[...] o estudo do objeto estético na sua singularidade, sem de modo algum substituí-lo por uma etapa
intermediária qualquer no caminho da sua realização e, em primeiro lugar, deve compreender o objeto

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estético sinteticamente, no seu todo, compreender a forma e o conteúdo na sua inter-relação essencial
e necessária: compreender a forma como forma do conteúdo, e o conteúdo como conteúdo da forma,
compreender a singularidade e a lei das suas inter-relações. Só com base nessa concepção é possível
delinear o sentido correto para uma análise estética concreta das obras particulares. (BAKHTIN, 1990,
p. 25).

2. AS JORNADAS DE JUNHO DE 2013

Para Gohn (2014), é possível dividir as jornadas de junho de 2013 em três etapas: a primeira,
iniciada 6 de junho, teve como característica a desqualificação das autoridades e da mídia, além de
estarem centradas na temática do aumento da tarifa de transporte público, incitada pelo Movimento
Passe Livre (MPL). Nesta fase, houve criminalização dos manifestantes, pois essa foi a saída que os
governantes encontraram para fugir da situação.
A segunda etapa, para Gohn, (2014), aconteceu entre 13 e 14 de junho, teve marcas a violência
policial, a revolta popular e o susto pelo movimento de massa. Com 192 detenções - no dia 13- e
dezenas de feridos –incluindo jornalistas, a opinião pública mudou e as manifestações ganharam
centenas de novos adeptos com variadas pautas de luta.
A terceira etapa aconteceu entre 19 e 20 de junho, Gohn (2014) chama de etapa da “vitória da
demanda básica” porque no dia 19 de junho houve o revogamento do aumento das passagens em mais
de 100 municípios, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro, quando os parlamentares deixaram claro que
isso iria causar danos para outras áreas prioritárias como segurança, saúde e educação.
Em todas as etapas e em várias capitais foi possível perceber um festival de cartazes
carnavalescos e derrisórios que fogem do militante tradicional, partidário, que participa de coletivos
etc. Com a facilidade de divulgação, tais cartazes foram postados em redes sociais, blogs, jornais e
rediscursivizado na internet.

3. O CONTEÚDO, O MATERIAL E A FORMA DE UM CARTAZ DE PROTESTO

Nesta seção, procurou-se discutir essas três noções bakhtinianas, debatidas anteriormente, a
partir do enunciado de um cartaz de protesto de junho de 2013, presente nas manifestações de Belo
Horizonte, Minhas Gerais. É preciso deixar claro que o cartaz não foi fotogrado por nenhuma das
autoras, ou seja, eles já foram, de certa forma, pré-selecionados pela mídia porque trata-se de um
cartaz amplamente (re) discursivizado na internet.

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Figura 1. Só não transformamos BH em pó senão o Aécio cheira!

Fonte: Site Carta Campinas. Disponível em: http://cartacampinas.com.br/2014/06/historia-da-cocaina-esta-deixando-o-senador-aecio-


neves-louco-de-raiva

Neste caso, pode-se considerar o material, a própria materialidade linguística, ou seja, a


língua descontextualizada, a expressão “Só não transformamos BH em pó senão Aécio cheira!” fora do
fluxo da língua em uso.
Já o conteúdo, o pensamento valorado, é a denúncia e a crítica em relação ao Aécio. Tal
denúncia é marcada pelo humor que é materializado no dialogismo, que se dá pelo princípio interno
das palavras “pó” e “cocaína”. O sujeito manifestante ridiculariza, desestabiliza e, usando uma
expressão bakhtiniana, destrona Aécio Neves.
O conteúdo é a desqualificação, a crítica em relação ao comportamento de Neves,
considerado leviano pela manifestante. Isso reforça e materializa a posição social do sujeito
escrevente e suas relações ideológicas, porém trata-se de ideologias que não é somente desse
sujeito, mas fruto da conivência e valoração do grupo social que o ele está inserido
A forma arquitetônica, ou seja, a valoração de um sujeito ativo perpassado pelos horizontes
(temporal, espacial) são a relação entre tal valoração e: a intenção dada a partir do acento
apreciativo das palavras “pó” e cheira”; o diálogo com outros enunciados, outras vozes que insinuam
que Aécio é usuário de cocaína; as escolhas lexicais; a intenção do ponto de exclamação.
O horizonte espacial de enunciação é centro de Belo Horizonte, Minas Gerais, berço eleitoral
de Aécio Neves. O político brasileiro e economista, pela PUC de Minas Gerais, foi deputado federal de
1987 até 2013, presidente da câmara dos deputados do Brasil de 2001 até 2002, governador do mesmo
estado de 2003 até 2010 e desde 2011 é senador da república por Minas Gerais, sempre pelo PSDB
(Partido da Social Democracia Brasileira).
No que se refere ao horizonte temporal, vale lembrar que Aécio estava em evidência nesse
período, pois havia sido eleito, em 18 de maio de 2013, presidente do PSDB e lançado como potencial
candidato do partido à presidência da república de 2014.

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Em 2009, o editorialista Mouro Chaves escreveu um artigo que foi publicado em fevereiro de
2009, página 3, do jornal O Estado de S. Paulo, intitulado “Pó, pará, governador?44”. O trocadilho “pó,
pará” fez uma clara alusão ao Aécio, na época governador, e ao uso de cocaína. Como nenhum
discurso é neutro, vale ressaltar que o jornalista tem ligação com o José Serra, que competia
politicamente com Aécio na época.
O senador tem fama de festeiro e de gostar da vida noturna, em especial a carioca. Segundo
matéria do Estadão45 , de 24 de março de 2013, “As passagens de Aécio pelo Rio costumam aparecer
em colunas e redes sociais que, não raro, registram sua presença em baladas e eventos cariocas nos
fins de semana”, a crítica feita não está relacionada apenas ao modo carnavalesco do senador levar a
vida, mas as idas e vindas com dinheiro público para o Rio de Janeiro, um dos seus endereços fixos,
onde residem alguns familiares.
A matéria também traz a informação de que “a imprensa do Rio registrou, em tom bem-
humorado, a participação do senador numa celebração do PC (Partido do Chope), num bar em
Copacabana” e que “em novembro de 2011, o tucano foi fotografado em casa noturna de São Paulo
deixando o aniversário do piloto Dudu Massa, na companhia de uma socialite”.
No dia 17 de abril de 2011, o site do G1 46 , noticiou que Aécio Neves teve sua habilitação
apreendida em blitz da Lei Seca no Rio e que se recusou a fazer teste do bafômetro.
Todas essas informações, mesmo sendo de foro íntimo, se relacionam diretamente com o
papel social de Aécio e com os valores axiológicos do sujeito escrevente do cartaz, assim, elas
acabam criando uma atmosfera, de que o senador é um sujeito farrista e abusado, características que
podem ser associadas ao uso de drogas estimulantes como a cocaína. A atitude responsiva ativa de
Aécio reforça tudo isso, ele entrou com uma ação na justiça processando o Google, o Yahoo e o Bing,
da Microsoft, solicitando a retirada de links e perfis em sites de busca que relacionem seu nome com
a expressão “uso de entorpecentes”.
O horizonte temático, que se relaciona com o conteúdo, é justamente a atmosfera negativa e
desqualificatória em torno do Aécio.
No que se refere as escolhas lexicais, ligada a forma arquitetônica, percebe-se que o verbo
“transformar” possui um efeito semântico mais impactante que mudar, alterar, modificar, dando uma
entonação expressiva a capacidade dos manifestantes de atuarem de modo devastador na cidade. Eles
só não colocam a cidade, o trânsito, o debate político em uma situação catastrófica porque “senão” -
uma conjunção adversativa que tem o mesmo sentido que “caso contrário”- o Aécio cheira.
É visível aqui que o verbo “cheirar’ - neste caso transitivo porque tem o sentido de aspirar-
refere-se a cocaína, devido a toda situação extra verbal exposta anteriormente. O caráter enfático é
reforçado pelo uso do ponto de exclamação.

44
O jornal precisou retirar do ar o link por força judicial, porém é possível ter acesso ao texto em
http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,po-para-governador,331197
45
Matéria disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,senador-usa-mais-verba-para-ir-ao-rio-que-a-bh-imp-,1012625
46
Matéria disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/04/aecio-neves-tem-habilitacao-apreendida-em-blitz-da-lei-seca-
no-rio.html

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EFEITO DE FECHO

Diante disso, é possível afirmar que a forma é marcada por meio da liberação da
agressividade do sujeito escrevente e seus valores axiológicos, além do acento apreciativo de
destronamento e uma voz que induz o interlocutor a fazer uma leitura de que o Aécio é usuário de
cocaína, tudo isso se dá por meio da relação dialógica entre os termos “pó” e “cocaína”. O caráter
polêmico desqualifica o senador e contribui para a perpetuação dessa “verdade”. O conteúdo é
justamente a denúncia e a crítica valorada, tudo isso, é materializado: na língua.
Com isso, percebe-se que tais noções bakhtinianas não se limitam ao objeto estético artístico
seja ele de qualquer natureza, muito menos prendem-se ao seu tempo (1924), ano de publicação da
primeira edição da obra e espaço. É perfeitamente possível atualizá-los para os enunciados concretos
não literários do mundo da vida, da língua uso, do cotidiano do tempo presente do Brasil e
perfeitamente adequado para as pesquisas que possuem qualquer enunciado como objeto de estudo.

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Paulo: Hucitec, 1990.
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São Paulo: Hucitec, 2014.
GOHN, M. G. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. Petrópolis: Vozes, 2014.

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