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Fichamento do artigo “Ética e violência” de Marilena Chauí

Aluno: Felipe Uzeda Degado/ 8576626

1} Fala-se em crise de valores e logo a receita é “voltar à ética”. Marilena Chauí critica,
acusando um entendimento errôneo do que é ética.

2} A autora diferencia ética da moral. A moral é necessariamente normativa, enquanto a


ética pode não ser. Sendo ou não, ela deve lidar com ideias de agente ético, ação ética e
valores éticos. O agente ético deve ser racional, consciente do que faz e responder pelo
que faz; a ação ética propõe uma diferenciação segundo aquilo que é tido como bem, o
justo e virtuoso. Nota a autora, um primeiro conflito entre a autonomia do sujeito ético e
a heteronomia da moral da sociedade, que age como força externa. Para que essa situação
não se torne um conflito de fato, o agente ético deve reconhecer os valores da sociedade
como seus, de maneira que agora ele esteja na origem e não recebendo de maneira
coercitiva. Conclui a autora que há um agente racional livre universal, formado por
diversos agentes individuais, de forma que a ética é a relação intersubjetiva entre esses
dois agentes, pautada pela racionalidade, liberdade e responsabilidade.

[dúvida: bom, justo e virtuoso são objetivos ou podem ser subjetivos?]

3} A seguir a autora se debruça sobre o significado da palavra violência: é tudo aquilo


que age usando força para ir contra natureza de alguém; é ato de força contra liberdade
de alguém; é ato de transgressão contra coisas e ações que alguém ou uma sociedade
define como justas. Chauí diz que a violência é contrária à ética, pois trata seres racionais
e livres como se fossem coisas.

4} Chauí volta a pensar o “retorno à ética”, entendendo que ética, nessa palavra de ordem,
é tida como algo que, periodicamente, se perde e se acha e não como ação intersubjetiva
entre agentes. Os motivos dessa ideia de retorno à ética estão no refluxo da sociedade
civil organizada e de políticas de emancipação social; no vácuo ocupado pelo
neoliberalismo; na dispersão dos grupos e classes sociais devido ao modo contemporâneo
de acumulacao capitalismo (flexibilidade), que destrói o campo da ação intersubjetiva e
sociopolítica, destruindo o espaço de construção da ética; a transformação tecnológica,
que atinge a tudo e todos, se dá unicamente sob os desígnios da lógica do mercado; a
sociedade midiática e do consumo não somente cria nova subjetividade como promete
alimentá-la: o sujeito narcisista que cultura sua própria imagem como ‘única realidade
que lhe é acessível. As promessas feitas pela sociedade do consumo, no entanto, não
podem se cumprir, gerando frustração e niilismo.

5-8} A seguir, analisa qual seria a ética a que se deveria retornar. Definida em três pontos:
uma ética de reforma dos costumes (ou seja, refere-se a moralidade e não a ética); ética
como dispersão de variadas éticas, espelhando a fragmentação econômica, de forma que
seja necessário especialistas responsáveis, então, por definir o que é ética (que entrará em
contradição com outras éticas); ética como defesa humanitária dos direitos humanos
contra violência, de forma a aplacar a consciência culpada dos privilegiados.

9-11} “Pensada dessa maneira, a ética se torna ideologia e, como tal, propícia ao exercício
da violência”, por três motivos:
1. divide-se o sujeito ético entre sujeito ético vítima e sujeito ético piedoso e
compassivo. A vitimização, porém, é a morte do sujeito ético, pois o coloca como passivo,
objeto da compaixão alheia, ao passo que, para o sujeito não sofredor se tornar ético, deve
haver duas violências: a factual, da qual a vítima é resultado e a violência ao tratar essa
vítima como passiva, sofredora, inerte. A autora exemplifica usando o caso do MST que,
ao se negar o papel de vítima, agindo e se reafirmando como sujeito ético, ataca
diretamente o cerne da ideologia ética a qual, contrariamente, o considera como agente
da violência justamente por essa reafirmação.

2. Se na ética a autoconstrução do sujeito é determinada pela ideia do bem, do justo


e do feliz, na ideologia ética é a imagem do mal que determina a imagem do bem, tido
como não-mal. Por isso abundam imagens de sofrimento individual e coletivo, em torno
do qual se constrói o consenso. O bem, por outro lado, divide opiniões.

3. As imagens frequentes do que é o mal, então, tem função de acalmar nossa


consciência culpada.

12} O consenso em torno do mal fixa imagem de um presente eterno e imutável,


deslocando-o da história, ao mesmo tempo que considera que definições positivas do bem
e da liberdade são um mal.

13} Chauí analisa agora o “mito da não violência” da sociedade brasileira. Mito, pois:

- é narrativa de uma origem perdida, que lida com tensões que nào podem ser resolvidas
sem profunda transformação da sociedade. Dessa maneira, essas tensoes são transferidas
para uma solução imaginária que justifica a realidade;

- é uma crença tão interiorizada que não é percebida como crença, mas como a própria
realidade, resultado de ações sociais e que, por sua vez, produz ações sociais que a
confirmam;

- tem função apaziguadora e repetidora: o mito é o suporte de ideologias que, por sua vez,
mantêm a matriz mítica, num processo auto referenciado. Ou seja, a ideologia impõe um
filtro por meio do qual a realidade é interpretada, de forma que é possível admitir
existência empírica da violência sem que a raiz mítica da não violência seja atingida.

14} Ou seja, há uma divisão na sociedade brasileira, entre os que praticam a violência,
que não são “nós”, por um lado, e aqueles que não praticam, mas estão impotentes para
combatê-la, por outro. É a divisão da ideologia da ética que trata a autora.

15} Agora, se indaga Chauí: como funcionam os mecanismo ideológicos de conservação


da mitologia?

- exclusão: se há violência, não vem de brasileiros “verdadeiros”.

- distinção entre acidental e essencial: violência é acidental, passageira, deixa intacta


nossa essência; essa sim não violenta.

- jurídico: violência circunscrita ao ataque à propriedade privada. Dessa maneira, fica


determinado quem são os agentes violentos, isto é, os destituídos de propriedade, os
pobres, e legitima-se a ação violenta (diz a autora: esta sim, violenta) contra estes. Mesmo
que se admita o excesso policial em momentos de violência concentrada (as “chacinas”),
a violência diária a que são submetidos os pobres deste país não é vista como violência.

- sociológico: violência como episódio isolado causado pela transição para a


modernidade, ou seja, contida enquanto durar a transição para uma nova sociabilidade.

- inversão do real: comportamento, ideias e valores violentos dissimulados como não


violentos (ex: visões positivas do machismo, do paternalismo branco, da repressão contra
homossexuais, da destruiÇão do meio ambiente etc.).

16} Não se percebe, portanto, a violência, a naturalizando. Conserva-se, assim, o mito da


não violência.

17} A base material da ideologia é o autoritarismo social.

18} A sociedade brasileira é marcada, por um lado, pelo patrimonialismo, legado da


sociedade colonial escravista, e por outro, pela forte hierarquização, legada do modelo
baseado no núcleo familiar em que diferenças se tornam desigualdades. O outro, dessa
forma, não é reconhecido nem como sujeito, nem como subjetividade, tampouco como
alteridade.

19-21} Agora a autora busca resumir os traços do autoritarismo nas características da


sociedade brasileira:

- Por se basear no modelo de núcleo familiar, recusa o principio liberal da igualdade


formal e tem dificuldade de luta pelo princípio socialista da igualdade real. Diferenças
são desigualdades, que por sua vez são hierarquizadas: naturalmente inferiores (mulheres,
negros, indios etc) ou monstruosidades (homossexuais).

- A lei funciona de acordo com a classe social: privilégio para a elite e repressão para
camadas populares.

- O patrimonialismo é a própria forma como a sociedade brasileira funciona, não restrito


somente a governadores e parlamentar, vai além, sequer havendo uma percepção de esfera
pública de opinião, de sociabilidade coletiva, da rua como espaço comum. Há
encolhimento do público e alargamento do privado.

- naturalização das desigualdades econômicas e sociais. Pobres, sem terra e


desempregados existem devido a própria preguiça e incompetência.

22} Os partidos também se relacionam com a sociedade de maneira autoritária, mantendo


quatro tipos de relações, segundo a autora: cooptação, clientela, tutela e promessa
salvacionista. Os dirigentes acreditam que são detentores do poder por direito natural, não
precisando se justificar aos eleitores. Esses, por sua vez, esperam um messias que os
salvará ou um governante para execrar. O Estado, dessa forma, é reduzido ao executivo,
gerando ao desejo de um “Estado forte”, enquanto que o poder legislativo é visto como
corrupto e o judiciário, injusto. O Estado, por outro lado, vê a sociedade civil como
perigosa e inimiga, bloqueando suas formas de organização. As relações de nossa
sociedade são verticalizadas, de maneira que são realizadas ou sob forma de cumplicidade
(entre iguais) ou sob forma de mando e obediência (entre diferentes-desiguais). É
impossivel realizar política democrática nos termos de clientela/tutela.
23} As “dádivas neoliberais” a acrescentar. De um lado, a da economia: a acumulacao de
capital brasileira não necessida incorporar mais pessoas ao mercado de trabalho, podendo
operar com desemprego estrutural. Do outro, a da política: privatização do público e
abandono de políticas sociais por parte do Estado. Ambas reforçam a estrutura histórica
da sociedade brasileira, centrada no espaço privado, distinguindo espaço privado e
público antes mesmo que houvesse a diferenciação. A política, dessa maneira, se reduz
ao marketing da vida privada e o Estado fica reduzido à condição de aparelho de reforço
do privilégio.

24 -25} Chauí compara o Movimento sem Terra com o Movimento dos Desempregados
na França. Ambos são considerados agentes éticos propriamente ditos. Analisa, em
seguida, sua ação ética frente ao capitalismo contemporâneo.

26-28} Aponta que há uma contradição, no modo de acumulaçao do capitalismo


contemporâneo, entre o desenvolvimento tecnológico (ou trabalho morto cristalizado no
capital) e o trabalho vivo. O desenvolvimento tecnológico torna inutil e desnecessario o
trabalho vivo. Para a autora, o desemprego em massa não é uma crise, que passará logo
mais, mas situação permanente e devemos lidar com ela nesses termos. A massa humana
não é mais necessária material e economicamente para o pequeno número dos que detém
o poder. Os Movimentos, cientes desses fatos, realizam a ação ética da seguinte forma:

- não reivindicam o direito ao trabalho, mas a condição de cidadãos com direitos;

- não reivindicam nova jornada de trabalho, o que permitiria nova divisão do trabalho,
mas a distribuição social da riqueza, através de política fiscal e das políticas sociais.

29} Conclui a autora que, ao agir dessa maneira, promovem ações éticas, mudando os
termos da discussão e se recusando a ocuparem a posição destinada pela ideologia do
“retorno à ética”.

Estrutura da argumentação:

Premissa: há uma palavra de ordem comum e frequente: “retorno à ética”

Tese: essa palavra de ordem propõe não uma ética, mas uma ideologia ética.

Argumentação:

1) ideologia ética é produzida pelo neoliberalismo e pelo mercado.

2) ideologia ética é baseada na reforma dos costumes; na dispersão de variadas éticas, de


maneira que a ética fique a cargo de especialistas; na ética como defesa contra violência
de forma a aplacar a consciência culpada dos privilegiados

3) ideologia ética cria cisão entre sujeito ético vítima e sujeito ético piedoso.

Exemplo: mito da não violência da sociedade brasileira. Mitos suportam ideologias. O


autoritarismo é a base material da ideologia.

4) Ideologia ética é propícia à violência, admitindo duas violências: a factual, da qual a


vítima é resultado e a violência ao retirar da vítima seu horizonte de agente social.
Exemplo pela negação: MST e Movimento de desempregados franceses não agem de
acordo com a ideologia ética, mas de acordo com a ética

Conclusão: a ideologia ética é a morte da ética, movimentos sociais agem eticamente.

Análise contextual e discussão

A autora, Marilena Chauí, é professora titular em história da filosofia moderna na


Universidade de São Paulo, atua nos temas de democracia, políticas, direitos, cidadania e
luta de classes. Seu mestrado lidou com o trabalho do filósofo fenomenólogo francês
Maurice Merleau-Ponty e a crítica do humanismo e no seu doutorado estudou Spinoza.
Sua tese de livre docência também foi sobre Spinoza, tratando de temas como liberdade,
servidão, beatitude, paixão, imanência e necessidade. Além da área acadêmica, Marilena
Chauí também tem notável atuação política: uma das fundadoras do Partido dos
Trabalhadores, além de já ter atuado como Secretária de Cultura do município de São
Paulo durante o gestão Luiza Erundina

O artigo é de primeiro de outubro de 1998, publicado pela revista Teoria e debate,


da Fundação Perseu Abramo, um think-thank do Partido dos Trabalhadores. O Presidente
do Brasil era Fernando Henrique Cardoso e a data da publicação ocorreu alguns dias antes
do primeiro turno da eleição de 1998, que consagraria em primeiro turno o segundo
mandato de FHC. O governo FHC é tido como social democrata de centro direita,
impulsionando enxugamento do Estado ao mesmo tempo em que davam os primeiros
passos vários programas de assistência social contidos na Constituição de 1988.

A autora lida com as questões mais prementes da política brasileira naquela época:
o avanço neoliberal e a desorganização da sociedade civil. Seu artigo conversa com

- Émile Durkheim e sua teoria de Fato Social;

- cita Viviane Foster: O horror econômico; Chauí não se alonga em seu uso, mas
conversa com seu conteúdo ao lidar com o movimento dos desempregados franceses

- Marilena aponta que a desigualdade é naturalizada no Brasil. Jonathan J. B Mijs,


por sua vez, em artigo intitulado “O paradoxo da desigualdade: desigualdade de renda e
a crença em meritocracia andam juntas” defendeu a mesma ideia, mas lidando com vários
outros países também, o que reforça o argumento de Chauí

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