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PORTUNHOL: PRECONCEITO OU PRESTÍGIO? MARCAS IDENTITÁRIAS NA


REGIÃO FRONTEIRIÇA

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Juan Rafael de Abreu da Silva


Universidade Federal de Santa Maria
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Revista Ideias (UFSM) | ISSN 2177-4099 | n. 32, 1.º semestre de 2022 | Seção Artigos Científicos

PORTUNHOL: PRECONCEITO OU PRESTÍGIO? MARCAS


IDENTITÁRIAS NA REGIÃO FRONTEIRIÇA

Juan Rafael de Abreu da Silva1 1

RESUMO: Este artigo traz informações a respeito da incidência do portunhol em uma perspectiva voltada
ao preconceito linguístico. O portunhol é uma variante da língua portuguesa e da espanhola/platina muito
recorrente na fronteira entre as cidades de Sant’Ana do Livramento no Brasil e Rivera no Uruguai. Como
objetivos, buscamos apontar se ocorre a utilização da variante linguística, constatar seu reconhecimento
e prestígio como uma fala que contribui na construção da identidade regional e cultural fronteiriça,
além de registrar a presença de preconceito linguístico, tanto pelos próprios usuários como pelos seus
interlocutores, a fim de identificar as características e origens do preconceito. E, para isso, fomos a campo,
mais precisamente ao Instituto Federal Sul-rio-grandense, localizado na cidade brasileira, o qual oferta
à população fronteiriça cursos técnicos binacionais. Por meio de questionário investigativo, obtivemos
dados da comunidade acadêmica que foram entrecruzados com os da literatura sobre o portunhol, com a
finalidade de comprovar a sua importância e relevância como uma língua identitária da fronteira, bem como
o prestígio que a variante recebe de sua comunidade de fala. Com o presente estudo, constatamos que
o portunhol atualmente detém uma relevância por parte da comunidade fronteiriça, visto ter se tornado
marca da identidade e da constituição linguística e sociocultural do povo fronteiriço, além de estar em
contínua expansão e utilização.

PALAVRAS-CHAVE: Portunhol. Preconceito. Identidade. Fronteira.

ABSTRACT: This article aims to bring information about the incidence of Portunhol in a perspective
focused on linguistic prejudice. Portunhol is a variant of Portuguese and Spanish languages that is very
common on the border between the cities of Sant’Ana do Livramento in Brazil and Rivera in Uruguay.
Our objective is to point out if the use of this linguistic variant occurs, verify its recognition and prestige
as a speech that contributes to the construction of the border regional and cultural identity and register
the presence of linguistic prejudice, both by the users themselves and by their interlocutors, in order to
identify the characteristics and origins of the prejudice. In order to achieve this, we got field data at the
Federal Institute of Rio Grande do Sul located in the Brazilian city, which offers binational technical courses
to the border population. We obtained this data from the academic community through an investigative
questionnaire and intertwined it with data from the literature on Portunhol, in order to demonstrate its
importance and relevance as an identity language from the border as well as the prestige that the variant
receives from its speaking community. With this study, we found that Portunhol currently holds a relevance
from the border community, since it has become a mark of the identity and the linguistic and socio-cultural
constitution of the border people, in addition to being in continuous expansion and use.

KEYWORDS: Portunhol. Prejudice. Identity. Border.

INTRODUÇÃO

Sabemos que a identidade nacional de um povo não provém de uma homogeneidade


cultural sistematizada, pois o Brasil possui em sua estrutura sociocultural inúmeros
contatos históricos com outras nações que servem como base para a construção de

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Graduado em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Orientador(a): Profa. Dra. Andrea Ad Reginatto. E-mail: juan.r.silva@ufv.br

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sua identidade nacional. Dentro desse contexto, é sabido que tal identidade nacional
provém de diversas representações e manifestações que despertam o sentimento de
pertencimento a um determinado país. Uma dessas representações de identidade é a
língua. Contudo, não nascemos com essa identidade intrínseca às nossas personalidades,
porque é com a aquisição da linguagem que construímos nossas identidades nacionais
e mesmo assim ela não é uniforme em seu processo de construção já que recebe
interações das mais diversas culturas e, consequentemente, de outras línguas que também
representam identidades nacionais.
Sabe-se que dentro de um país a língua se desdobra em variantes, as quais
determinam identidades regionais e que, devido a diversos aspectos históricos e
socioculturais, definem as características que diferenciam cada região. Além do mais, o
Brasil faz fronteira com sete países onde o espanhol é uma das línguas oficiais, fato que
torna inevitável o contato linguístico entre duas grandes línguas e suas variações que
se misturam em determinados contextos. Visto isso, cabe salientar que algumas destas
fronteiras têm apenas uma rua como divisor entre os países. É o caso das cidades de
Sant’Ana do Livramento no Brasil e Rivera no Uruguai, onde tal situação é vivenciada
diariamente pelos seus habitantes.
Historicamente, conforme Sturza e Tatsch (2016), esse espaço entre as cidades
que chamamos de fronteira é caracterizado por estar limitado a um bioma comum tanto
ao sul do Brasil como também à Argentina e ao Uruguai. Além de suas características
geográficas e ecológicas, segundo a literatura e a história, este local também é reconhecido
como o lugar de onde surge a figura do gaúcho e, consequentemente, um tipo social
em um espaço marcado em sua história por inúmeros conflitos que se destinavam à
delimitação territorial da região do Rio da Prata e do Estado do Rio Grande do Sul.
Consoante às autoras,

O processo de formação do Estado do Rio Grande do Sul se caracteriza, tal como


descrevem os historiadores, pela presença de etnias e culturas variadas. No caso
das fronteiras é predominante a presença das culturas portuguesa e castelhana/
platina. E, por esta razão, clima, relevo, vestimentas, atividades da vida campeira,
hábitos e costumes similares com os dos gauchos uruguaios e argentinos,
produziram uma identificação da sociedade e da cultura gaúcha sul-rio-grandense
com a cultura argentina e uruguaia. (STURZA & TATSCH, 2016, p. 86)

Ainda segundo as autoras, o contato de natureza social, cultural e linguística, os


quais são mencionados em discursos historiográficos e que se destinam a descrever a
formação étnica e social do Rio Grande do Sul, tratam a respeito do período de ocupação
e colonização marcado pelos conflitos das demarcações nas fronteiras. Essas disputas não
só tratavam dos limites geopolíticos, mas também dos limites culturais, conforme constam
em documentos uruguaios, os quais nos dão uma ideia de que uma das preocupações do
país vizinho com relação às fronteiras com o Brasil estava relacionada à questão linguística,
principalmente à questão relacionada à língua portuguesa e ao portunhol.
Neste viés, esta pesquisa aborda o uso do portunhol, mais precisamente dentro
da instituição pública brasileira Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSul) localizada em
Sant’Ana do Livramento, a qual oferece à comunidade fronteiriça cursos técnicos entre o
Brasil e o Uruguai desde 2010, mais diretamente com a instituição uruguaia Consejo de
Educación Técnico Profesional – Universidad del Trabajo del Uruguay (CETP-UTU).

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O tema principal deste estudo gira em torno do preconceito linguístico que os


falantes do portunhol sofrem. Com isso, pretende-se mostrar que ele recebe prestígio
por parte dos usuários e dos seus interlocutores. Para tanto, levamos em consonância a
perspectiva dos estudos sociolinguísticos da teoria da variação, os quais em sua abordagem
defendem a variação e a diversidade linguística como sendo inerentes à linguagem
humana. Nesse contexto, temos um campo de estudo interessante de pesquisas a serem
realizadas em prol do acréscimo de informações e conhecimentos agregados aos estudos
já realizados a respeito de um assunto tão presente no cotidiano dos habitantes dessa
região de fronteira seca entre os dois países, classificada por Gonçalves (2013, p. 201)
como “cenário do contato linguístico entre duas línguas de poderosas raízes culturais,
demográficas e econômicas na região”.
Seguindo a perspectiva citada acima, esta pesquisa pretende trazer à luz
novas contribuições aos estudiosos do tema, considerando os aspectos históricos e
socioculturais que envolvem a presença e o uso do portunhol na região da fronteira
entre o sudoeste do sul do Brasil e o norte do Uruguai, que se faz sentir há pelo menos
300 anos. Teve como objetivo geral verificar se a presença e uso é alvo de preconceito
linguístico, como algumas pesquisas e literaturas anteriores demonstraram existir, bem
como o possível prestígio e consideração do mesmo como uma fala/língua identitária
de uma sociedade fronteiriça.
Como objetivos específicos, este trabalho pretende: a) apontar se ocorre a
utilização da variante linguística portunhol, assim como seu reconhecimento e prestígio
como uma fala que contribui na construção da identidade regional e cultural fronteiriça;
b) registrar a presença, ou não de preconceito linguístico tanto pelos próprios usuários
quanto pelos seus interlocutores e c) identificar as características e origens do preconceito.
Desse modo nossa contribuição, ainda que mínima, espera favorecer
epistemologicamente os estudos que se dedicam a tratar da questão histórica, social e
linguística das fronteiras entre o Brasil e o Uruguai, a fim de considerar o portunhol como
uma língua identitária da sociedade resultante desses encontros. Com este objetivo, o
artigo está organizado em cinco seções, contando com a introdução. A primeira discorre
sobre as literaturas que norteiam nosso objeto de estudo, as quais são consideradas
alicerces que embasaram nossa pesquisa de maneira epistemologicamente exploratória.
A segunda apresenta a metodologia, os critérios de constituição dos participantes da
pesquisa, o instrumento de coleta de dados e os pressupostos de análise. A terceira
trata da discussão e dos resultados obtidos por meio dos dados coletados relacionados
ao objeto de estudo e entrecruzados com os estudos teóricos existentes sobre o tema.
A quarta e última tece a respeito das nossas considerações que finalizam e sintetizam os
elementos da pesquisa relativos a essa variante linguística que teve – e tem – uma forte
influência dentro da realidade dos habitantes dessa região fronteiriça considerada singular
e única no mundo.

REFLEXÕES HISTÓRICAS E GEOGRÁFICAS

No tocante à literatura especializada nos estudos sociolinguísticos das fronteiras


entre o Brasil e o Uruguai, temos uma ampla gama de abordagem temática, porém,

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breves estudos se dedicam ao tema do preconceito linguístico no portunhol da região,


a partir do contexto que nos propomos a investigar. Os estudos que encontramos e
que aqui abordamos trazem dados relativamente antigos referentes ao nosso objeto
de estudo. Mesmo assim, são de grande importância para que possamos entender o
contexto e tecer nossas considerações do panorama atual na questão linguística que
envolve a manifestação do portunhol na região fronteiriça.
As questões históricas e geográficas são relevantes para entendermos como se
constitui a linguagem em regiões de fronteira. Nesse sentido, segundo Pintos (1990, p.
111), é importante destacar que “la penetración del habla portuguesa en el territorio
del actual departamento de Rivera, se extiende desde la época de su poblamiento rural
y aún desde años anteriores”. Este fato ocorreu durante a invasão portuguesa, pelo que
está registrado no censo uruguaio de 1824, o qual foi publicado no livro Rivera en el ayer,
e que “permite comprobar desde el punto de vista demográfico el afincamiento en el
actual territorio departamental de familias luso-brasileñas con sus esclavos, entre ellas,
de oficiales del ejército lusitano” (PINTOS, 1990, p. 112).
A presença de luso-brasileiros em terras hispano-uruguaias era – e ainda é –
possível, graças à falta de um limite físico que demarcasse toda a região fronteiriça entre os
dois países que, em meio às disputas territoriais, permitiam aos portugueses e espanhóis
se locomoverem ilimitadamente pela região. Como afirmam Sturza e Tatsch (2016, p.
87), “as linhas divisórias, embora simbolizadas por meio de marcos, não delimitavam o
movimento de pessoas nesta região, seus encontros, seus contatos”.
Esse espaço de confluência sociocultural contribuiu muito para o desenvolvimento
da linguagem utilizada pelos povos que aqui habitavam. Tal linguagem é peculiar e
é mencionada em vários estudos antigos e atuais sobre o aspecto sociolinguístico da
região fronteiriça. Dentre esses povos, destaca-se principalmente o gaúcho “homem
aventureiro, destemido, guerreiro, bruto. Filho do encontro violento entre o europeu
e a mulher indígena” (SCHLEE, 2014 apud STURZA & TATSCH, 2016, p. 90), o qual se
levantou destas terras para a sociedade, para a história e para a literatura “a ponto de
produzir uma cultura singular, um modo de vida, com seus sabores, costumes e dizeres.
O gaúcho nasceu na fronteira. E é a fronteira que ele carrega dentro de si. Para onde quer
que vá, é o espírito da fronteira que o anima.” (GARCIA, 2010, p. 15 apud STURZA &
TATSCH, 2016, p. 89). As autoras nos ajudam a entender como a história da ocupação e
do povoamento do Rio Grande do Sul está marcada pela questão das fronteiras:

Nesta época, o espaço de circulação de pessoas, que ocupavam o território mais


próximo das fronteiras, era totalmente livre, não existia controle fiscal ou militar
organizado, tampouco empecilhos para o vaivém de pessoas e mercadorias.
(STURZA & TATSCH, 2016, p. 87)

Mais adiante na história, segundo Pintos (1990), em 1845, o deputado pela


província de São Paulo, Silva Ferraz, ofereceu ao parlamento brasileiro a seguinte visão
concreta da situação que imperava no norte uruguaio:
Veo, señores Representantes, que tenéis una idea muy equivocada del poder y de
los recursos del Imperio: vosotros creéis que allá en la línea o divisa material del
Yaguarón donde termina el imperio de nuestras leyes, al pasar a la otra banda y
pasar al territorio que se dice de la República Oriental, creéis que vas a encontrar
al otro lado de la divisoria material un Pueblo completamente distinto de lo que

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se llama Imperio del Brasil; pero es preciso que sepáis que felizmente no es así!
Al pasar al otro lado del río Yaguarón, señores, el traje, el idioma, las costumbres,
la moneda, los pesos, las medidas, todo, todo señores, hasta la otra banda del río
Negro, todo, todo señores, hasta la tierra: todo es brasilero (PINTOS, 1990, p. 112).

Observamos, então, que apesar de naquela época já estarem estabelecidos os


limites fronteiriços entre os dois países, as populações que aqui habitavam não estavam
limitadas e, mesmo com os esforços da República Oriental do Uruguai para homogeneizar
linguisticamente os seus habitantes através da Instituição Escola, a influência luso-brasileira
sempre se mantivera imóvel aos ataques políticos que se davam com a finalidade de
oficializar a língua espanhola em território uruguaio. No entanto, tal influência, apesar da
imobilidade geográfica, não se manteve estática a nível social, cultural e linguístico, como
nos mostram Sturza e Tatsch (2016, p. 87 apud. STURZA 2006):

[...] a Fronteira não significa apenas pela sua relação espacial, como o lugar que
marca o limite entre territórios. Os limites cartográficos são referências simbólicas
que significam a fronteira através de um marco físico, embora a vida da fronteira,
o habitar a fronteira signifique, para quem nela vive muito mais, porque ela já se
define em si mesma como um espaço de contato, um espaço em que se tocam
culturas, etnias, línguas, nações. (STURZA, 2006, p. 26).

Esse contexto regional é o berço para um contato linguístico nada homogêneo,


tendo como resultado o portunhol, uma variante linguística que nasceu da mezcla entre o
português brasileiro do sul do país com o espanhol do norte uruguaio. Tal mistura é objeto
de estudos contemporâneos, nos quais seus pesquisadores e estudiosos a denominam de
muitas formas a depender da abordagem, mas aqui utilizaremos apenas como portunhol.

LÍNGUAS EM CONTATO: PRECONCEITO OU PRESTÍGIO?

A linguística como ciência tem a língua e suas manifestações como objeto de


estudo e investiga a linguagem verbal humana, suas manifestações e evoluções. A fim
de delimitar mais precisamente o seu foco de estudo, a linguística pode se debruçar
em outras áreas do conhecimento, como a sociologia, dando espaço à sociolinguística;
entre outras (DIANA, 2019). William Labov iniciou nos anos de 1960 os estudos da
sociolinguística, uma corrente teórica que analisa as variações e as mudanças linguísticas
a partir dos reais usos da língua por diferentes falantes, buscando compreender a relação
entre sociedade e língua. A partir dos seus estudos, Labov confirmou que não há falantes
com um estilo único, todos apresentam variações fonológicas e sintáticas em suas
manifestações linguísticas. Consoante Martins (2015), “o termo sociolinguística fixou-se
em 1964, com William Labov, que formulou um modelo de descrição e interpretação do
fenômeno linguístico no contexto social de comunidades urbanas” (MARTINS, 2015, p. 11).
Assim, a Sociolinguística Variacionista se centra no estudo de uma
comunidade de fala, entendida como um grupo de sujeitos ou usuários que
compartilham de forma consciente os mesmos valores associados aos usos
da língua em uma determinada sociedade. Nesse sentido, “Linguagem e
sociedade estão ligados entre si de modo inquestionável. Mais do que isso,

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podemos afirmar que essa relação é a base da constituição do ser humano.”


(ALCKIMIN, 2003, p. 21 apud MARTINS, 2015).

Para Bright (1968), a tarefa da sociolinguística é relacionar as variações linguísticas


observáveis em uma comunidade às diferenciações existentes na estrutura social
desta mesma sociedade. Para ele, o objeto de estudo da Sociolinguística é a
diversidade linguística (MARTINS, 2015, p.1).

No Brasil, é possível encontrarmos uma gama de variações linguísticas. Embora


a mesma língua seja falada em todas as regiões, cada região possui suas peculiaridades
e diferenciações. Isso ocorre porque, nos atos de fala, os sujeitos vão determinando
expressões, sotaques, entonações e até misturam línguas de acordo com suas necessidades
linguísticas. Segundo a autora (op. cit. 2015),

Para a sociolinguística as diferenças linguísticas observáveis nas comunidades


em geral são vistas como um dado inerente ao fenômeno linguístico. Porém,
há outros “(des)entendimentos” sobre o fenômeno da variação linguística que
deram origem ao que ficou conhecido como preconceito linguístico.
(MARTINS, 2015, p. 20, grifos da autora).

Já o preconceito linguístico está intimamente relacionado às variantes linguísticas.


Surge com a finalidade de julgar as manifestações na fala dos usuários de uma determinada
língua, seja ela qual e como for. De tal modo, o preconceito surge no tom de desvalorização
da variante linguística utilizada por determinada comunidade, estigmatizando-a e a
apontando como pejorativa (DIANA, 2020). De acordo com o linguista Marcos Bagno
(2007), o preconceito linguístico é a atitude que consiste em discriminar uma pessoa
devido ao seu modo de falar: “Assim, o problema não está naquilo que se fala, mas em
quem fala o quê. Neste caso, o preconceito linguístico é decorrência de um preconceito
social.” (BAGNO, 2007, p. 40).
Seguindo essas considerações, e pretendendo analisar a incidência do preconceito
linguístico que o portunhol recebe atualmente – sendo este uma variante linguística da
fronteira, conseguimos constatações de que tal preconceito se fazia muito presente
desde antigamente, principalmente por parte dos uruguaios, os quais se mobilizaram a
fim de erradicar a constante presença do português brasileiro em suas terras no decorrer
do século XX, mesmo a língua portuguesa estando ligada às circunstâncias históricas
somadas às socioeconômicas da região (PINTOS, 1990).
A partir do autor, percebemos a abordagem nacionalista a qual se dedicava à
proteção do espanhol do lado uruguaio. Em sua obra, Pintos (1990) apresenta-nos
declarações projetadas publicamente em periódicos de uma época nem tão distante
assim, em que, inclusive, um professor uruguaio, indignado, exterioriza seu preconceito
linguístico de maneira transparente:

[...] en “Jornada” (20 de julio de 1985), al maestro Jesús A. Da Silveira, refiriéndose


a la incidencia del idioma portugués en Rivera, preguntó públicamente: “¿No le
ha pasado a Ud., amigo lector, sentirse avergonzado cuando oye a un funcionario
del Estado hablar el idioma portugués? nos invade la música, y es notorio y
alarmante ver la cantidad de programas de música folklórica brasileña frente a los
escasos programas de folklore oriental que sintonizamos en las emisoras locales.
Nos invade la moda, las costumbres, en una palabra, estamos siendo absorbidos
culturalmente y ¿qué hemos hecho en cuanto a ésto?” (PINTOS, 1990, p. 115).

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Partindo das questões expostas, podemos pensar o nome portunhol como a


própria materialização gramatematical da constituição linguística da fronteira (português
+ espanhol = portunhol) que, de acordo com Pintos (1990), na década de 70, começou,
assim, a se designar a linguagem característica das fronteiras uruguaias e argentinas com
o Brasil que até o momento era denominada fronteiriço. A respeito do portunhol e de
sua nomenclatura, Eliana Sturza (2019) traça considerações mais profundas relacionadas
às diferenciações dos diversos portunhóis existentes, sendo elas: portunhol língua étnica,
portunhol como interlíngua, portunhol língua de interação social e portunhol selvagem:

Cada designação de Portunhol é única na medida em que está determinada por


sua função, sua história, seu sentido político e suas formas de materialização na
escrita. Evidentemente, identificar uma língua com tantas facetas, a começar por
tirá-la do escopo do dialeto, é dar-lhe uma relevância pela forma como se constitui
historicamente, uma língua permeada, sobretudo, pelas várias e variadas fronteiras
que ela traz significada na sua designação e claro na sua definição. (STURZA, 2019, p. 114).

Destacamos da citação acima a unicidade da designação/definição do portunhol,


visto que, no aspecto em que nos propomos a investigar, ele está intimamente relacionado
à sua função; ou seja, pela sua característica de relação social em interações comunicativas
estabelecidas pela comunidade acadêmica da instituição campo de pesquisa, denotando
“um propósito comunicativo relevante para a convivência na fronteira” (STURZA, 2019,
p. 101). Nesse sentido, “Toda língua é adequada à comunidade que a utiliza, sendo um
sistema completo que permite a um povo exprimir o mundo físico e simbólico em que
vive.” (MARTINS, 2015, p. 20).

METODOLOGIA

Do ponto de vista da sua finalidade, a pesquisa é classificada como aplicada,


pois pretendemos gerar reflexões sobre o uso do portunhol, caracterizando-o como
uma fala que identifica os habitantes da fronteira. Com isso, almejamos acrescentar
conhecimentos, bem como refletir sobre o problema do preconceito linguístico que a
fala sofre por parte da comunidade resultante do encontro entre as duas cidades. Em
relação à abordagem, nós a enquadramos como mista (quali-quantitativa), considerando
o instrumento de coleta de dados e os pressupostos de análise. Quanto aos objetivos, é
descritiva e bibliográfica, pois visa descrever as características dos falantes do portunhol
envolvendo relações entre as variáveis para análise a partir da coleta de dados por meio
de questionário e da observação dos seus resultados, além de ser alicerçada a partir de
uma significativa bibliografia já publicada a respeito do portunhol.
Primeiramente, foi feito o contato com o coordenador de ensino da
instituição com intuito de informar e elucidar alguns aspectos da pesquisa, para
que as instituições envolvidas tivessem a colaboração documentada através
da Autorização Institucional do Instituto Federal Sul-rio-grandense. Afinal,
como nossa pesquisa estabeleceu contato com pessoas físicas para a coleta
de dados, – de nossa parte – consideramos ser de absoluta valia dar o devido
respaldo, a fim de mantermos a transparência e seriedade deste estudo, bem

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como o comprometimento ético e moral entre os pesquisadores, as instituições


envolvidas, seus representantes e seus colaboradores.
Em segundo momento, para efetivar a coleta de dados, levando em consideração
a conjuntura mundial atual de combate à disseminação do SARS-CoV-2 pela pandemia
atualmente em curso de Coronavírus (COVID-19), foi realizado um questionário remoto
via internet utilizando o mecanismo de pesquisa online do Google Drive (Google Forms).
O questionário foi enviado via e-mail ao coordenador de ensino do IFSul, para que ele
o encaminhasse aos participantes/colaboradores através do e-mail e dos grupos do
aplicativo de mensagens WhatsApp.
O questionário online não solicitou a identificação dos participantes e contemplou
em sua estrutura 20 questões (3 abertas-descritivas, 1 fechada-descritiva, 2 fechadas-
seletivas e 14 fechadas-objetivas) consideradas relevantes para a constituição do material
de análise aplicado à comunidade acadêmica. Desse modo, abrangeu temas como idades
dos participantes, gênero, nacionalidade, cidade onde residem, se os pais são brasileiros
e/ou uruguaios, em qual língua se comunicam em suas respectivas residências, se eles se
comunicam ou já se comunicaram em portunhol e em quais circunstâncias, entre outras.
Nosso objetivo foi abranger toda a comunidade acadêmica, a fim de totalizar
majoritariamente os dados dos sujeitos que frequentam, convivem e interagem dentro
da instituição. Os colaboradores foram alunos, professores e funcionários técnico-
administrativos do IFSul e constituem uma população de 1.014 sujeitos; destes, não
são considerados os alunos binacionais na instituição CETP-UTU/Rivera,UY – e 511
alunos EaD.
No terceiro e último momento, foram analisados os dados coletados e comparados
com os da literatura pertinente ao tema, a fim de elucidar novas questões ou reafirmar as
já existentes. Isso foi feito com o intuito de, por meio deste corpus, despertar o interesse
de pesquisadores e defensores do não preconceito linguístico em estudos futuros,
revelando a importância e a originalidade das diversas variantes da língua portuguesa.
Neste caso principalmente as que se encontram em confluência quando em contato
através de zonas fronteiriças – como o portunhol – onde não existem limites físicos entre
os países e nas quais seus habitantes transitam livremente entre elas, fazendo valer o seu
direito de ir e vir. No caso dessas duas cidades que contribuem social e culturalmente
para as identidades nacionais e identificações político-pessoais dos seus cidadãos.

DISCUSSÃO E RESULTADOS

DConsiderando as características da região fronteiriça e da instituição campo de


estudo, os resultados obtidos em nossa pesquisa a partir da análise dos dados coletados
a respeito do portunhol, nos permitiram observar com maior relevância características
pessoais dos sujeitos, as quais foram primordiais para levar adiante este levantamento.
Assim, ao analisar os dados, é possível a compreensão dos perfis característicos dos 59
participantes que responderam ao questionário, com idades entre 15 a 60 anos, em
sua maioria do gênero feminino e alunas da instituição. Porém, há uma considerável
participação da equipe técnica/administrativa e dos professores. Essas variações de
idades, gêneros sexuais e tipos de participantes têm grande valia para o entendimento do

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que buscamos, ou seja, verificar a existência de falantes do portunhol e de preconceito


ou prestígio a ele relacionados. Certamente, as diferenças identitárias e o contexto
de alfabetização trazem respostas confiáveis para o corpus seguindo uma perspectiva
diastrática ou social; que segundo Martins (2011),

relaciona-se a um conjunto de fatores que têm a ver com a identidade dos falantes
e também com a organização sociocultural da comunidade de fala. Classe social,
idade, sexo e situação ou contexto social são fatores que estão relacionados às
variações de natureza social. (MARTINS, 2011, p.8).

Julgamos importante verificar e entender o tipo de língua usada na comunicação


familiar. Certamente, este estímulo no lar é importante para a investigação, já que os
participantes residem na fronteira em questão. Com relação ao uso da língua no contexto
residencial, 61% dos entrevistados utilizam a língua portuguesa, 24% a língua espanhola e
15% utilizam os dois idiomas em suas residências. Esses dados nos mostram a incidência
de falantes da língua portuguesa em detrimento à espanhola levando em consideração
o índice populacional familiar, o que tem um peso relevante quando falamos de nossa
constituição linguística familiar em regiões de fronteira.
Em entrevista ao jornalista João Vicente Ribas, publicada em 21 de julho de 2019
no Jornal do Comércio, o historiador Eduardo Palermo relata a respeito das lembranças
da convivência com sua avó dentro do universo fronteiriço: “As nossas avós são as
depositárias do que tem de mais sagrado da língua e de todo conhecimento.”; isso vai
ao encontro do que afirma Martins (2015, p. 6), “Todas as línguas do mundo são sempre
continuações históricas – gerações sucessivas de indivíduos legam a seus descendentes
o domínio de uma língua particular. As mudanças temporais são parte da história das
línguas.”.
Para ajudar a identificar o perfil dos participantes e, ao mesmo tempo, facilitar a
compreensão dos dados obtidos nas questões acima, questionamos sobre a nacionalidade
e cidade de residência. Em respostas, os dados indicam que 71,2% dos participantes são
brasileiros e 28,8% uruguaios. Essa informação é importante para explicar o elevado
índice dos falantes de língua portuguesa (61%). Entendemos com esses dados que a
língua portuguesa é a mais falada entre os investigados, o que confirma a afirmação de
Pintos (1990, p.111) de que a língua portuguesa se sobrepõe à espanhola na região desde
anos anteriores aos limites fronteiriços.
Ao considerarmos a análise dos dados, podemos evidenciar que a influência da
língua portuguesa no espanhol é considerada através da incidência populacional dos
participantes daquela em relação a esta, bem como nos mostram os dados historiográficos
da região. Sobre isso, Eduardo Palermo (2019) diz que “É muito difícil tu falar espanhol 24
horas por dia, 365 dias por ano, quando tu convive mais tempo com pessoas que falam
português.”.
Quanto ao local de residência, observamos que 69,5% vivem em Sant’Ana do
Livramento (Brasil) e 30,5% em Rivera (Uruguai). Cruzando esses dados, é possível
acrescentar que há participantes de nacionalidade brasileira morando no Uruguai, tendo
em vista que os índices dos dados coletados se alternam, sendo brasileiros (71,2%)
residentes no Brasil (69,5%); uruguaios (28,8%) e residentes no Uruguai (30,5%). É

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importante salientar que julgamos relevante saber em qual língua os participantes foram
alfabetizados, visto que classificamos primordial esse primeiro passo para formação
de falantes e da (re)construção de suas respectivas identidades político-pessoais. Em
respostas, constatamos que 67,8% foram alfabetizados em português e 32,2% na língua
espanhola.
Investigando a respeito do portunhol e sua incidência no contexto da pesquisa,
obtivemos os seguintes resultados: 100% dos entrevistados sabem o que é e do que se
trata o portunhol; além disso, 98,3% conhecem alguém que se comunica em portunhol.
Ampliando o foco desse questionamento, perguntamos onde já leram e/ou ouviram
alguma manifestação do portunhol. É oportuno acrescentar que, para responder a
essa questão no questionário, os participantes poderiam apontar mais de um local de
manifestação do portunhol. Obtivemos resultados como a internet, o rádio e as letras
de músicas sendo os maiores locais de manifestação do portunhol. Outros meios como
placas de divulgação, televisão e livros foram citados pelos participantes.
Esses dados constatam que o portunhol é entendido e falado pela grande maioria
dos participantes e, principalmente, pelos próprios fronteiriços em algum momento de
suas vidas. Tal conhecimento é importante para a difusão da língua/variante, o que pode
ser usado para evitar o preconceito e os estigmas, a fim de estimular a maior aceitação
e consideração de um fenômeno com características históricas e culturais latentes na
fronteira, e que está amplamente ativo no dia a dia dos habitantes locais, o que denota
ampla característica e função social da variedade em questão. De acordo com Martins
(2015),

Existe sempre um conjunto de variedades linguísticas em circulação no meio social.


Aprende-se a variedade a que se é exposto, e não há nada de errado com essas
variedades. Os grupos sociais dão continuidade à herança linguística recebida.
(MARTINS, 2015, p. 21).

Os participantes, ao serem perguntados se costumam mesclar as línguas em seus


atos comunicativos, 45,8% dos entrevistados afirmou que às vezes misturam expressões
do português e do espanhol, 28,8% as misturam continuamente e os outros 25,4% não
as misturam nunca. Caso acrescentemos as porcentagens dos que às vezes mesclam com
a dos que continuamente misturam, teremos um total de 74,6% que falam o portunhol.
Na análise dos dados, ao serem questionados sobre o uso do portunhol em
processo de interação comunicativa, 89,8% dos sujeitos falam em portunhol e em 10,2%
não houve essa prática. Esses que já se comunicaram em portunhol apontaram que a
prática ocorreu nas seguintes situações (do mais recorrente ao menos): entre amigos;
no comércio; na instituição e em casa. Os locais são variados e a linguagem é o meio de
interação entre os sujeitos que vivem na fronteira. Tal meio de interação com a utilização
da variante linguística portunhol se caracteriza por ser constante e realizada em qualquer
local. Portanto, é possível dizer que não há preconceito entre os falantes, tendo em vista
o uso do portunhol em casa, comércio, trabalho ou estudo e até mesmo no lazer com os
amigos. Com isso, podemos constatar o que Sturza (2019) afirma a respeito da variante:

Portunhol é uma língua predominantemente oral, talvez por essa razão venha se expandindo,
venha marcando um espaço de interação comunicativa, necessária para a manutenção de
uma fluidez nas relações entre grupos sociais e comunitários distintos (STURZA, 2019, p. 108).

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Focalizando a prática de preconceito linguístico, quando perguntados se


costumam corrigir as pessoas que utilizam o portunhol como uma língua que permite
a interação da sociedade local, 93,2% afirmaram que não as corrigem e 6,8% que as
corrigem. Com esta questão, podemos concluir que não existe preconceito linguístico
em grande escala entre os interlocutores, embora os sujeitos falem, ou em português,
ou em espanhol, no momento em que são expostos ao portunhol. É importante destacar
que há o entendimento entre eles, entender que há uma troca, que há a comunicação e
uma interação – o verdadeiro papel da língua. De acordo com Lemle (2011):

À parte os preconceitos, seria biologicamente impossível atingirmos a uniformidade


linguística, neste ou em qualquer outro país, tendo em vista como acontece o
processo de aquisição de linguagem: ele é baseado na interação entre princípios
universais da gramática e parâmetros de variação que permitem um leque de
alternativas para a diversidade na linguagem (LEMLE, 2011, apud MARTINS, 2011, p. 4).

A respeito do que os entrevistados pensam sobre o portunhol e seus falantes;


81,4% pensam que os que o falam são pessoas que se comunicam em uma língua que
define muito bem a região e a identidade fronteiriça; 15,3% pensam que os usuários,
mesmo não sabendo bem o português e/ou o espanhol, são pessoas que se comunicam e
que se fazem entender, contribuindo para a intercompreensão entre os sujeitos, e apenas
3,3% pensam que são ignorantes e que os usuários do portunhol não sabem falar nem
em português e nem em espanhol.
Ainda direcionado às questões da utilização do portunhol, a maioria dos
entrevistados afirmou que conhecem, utilizam e consideram o portunhol como uma
representação das relações encontradas na sociedade da fronteira. Ele está intimamente
ligado às circunstâncias vivenciadas no dia a dia dessas populações, tendo em vista que “a
língua estabelece um elo de pertença do sujeito ao seu espaço de vivência e convivência
que, em se tratando das zonas de fronteira, tem suas especificidades”, uma vez que “é
uma língua que têm falantes, mas não tem ainda uma gramática estável, nem há uma
regularidade na construção linguística de suas formas” (STURZA, 2019, p. 98).
Embora o preconceito aqui não esteja tão exposto, podemos destacar que, apesar
de apenas 3,3% dos participantes se consideram notavelmente preconceituosos, a essa
porcentagem podemos somar 15,3% referente aos que pensam que os usuários, mesmo
não sabendo bem o português e/ou o espanhol, são pessoas que se comunicam e que se
fazem entender. Esses dados tornam estes tão preconceituosos quanto aqueles, já que,
segundo Bagno (2007), existe um mito em relação à língua portuguesa – e aqui podemos
estender esse mito em relação à língua espanhola – de que “As pessoas sem instrução
falam tudo errado”:

O preconceito lingüístico se baseia na crença que só existe [...] uma única língua
portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas, explicada
nas gramáticas e catalogada nos dicionários. Qualquer manifestação lingüística que
escape desse triângulo escola-gramática-dicionário é considerada, sob a ótica do
preconceito lingüístico, “errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente”, e não é
raro a gente ouvir que “isso não é português” (BAGNO, 2007, p. 38).

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Já sobre o status que o portunhol detém entre os entrevistados, 71,2% consideram


importante existir uma língua que os identifica como uma só sociedade, 10,2% não
o considera importante, enquanto que, para 18,6% dos entrevistados, é irrelevante
tal importância. Para a grande maioria dos fronteiriços, o portunhol é importante e é
considerada uma língua identitária, ou seja, quem fala portunhol está se identificando com
a fronteira, já que, “sujeitos escolhem as línguas nas quais querem se significar, portanto
significar o mundo, nesse sentido, significar-se também como sujeitos fronteiriços”
(STURZA & TATSCH, 2016, p. 53).
Ao passo que, para alguns dos entrevistados, a não importância ou a irrelevância
do portunhol é relativamente considerável (28,8%), podemos acreditar com base nos
dados que, mesmo assim, ele é falado. Isto demonstra a despretensão da língua em
detrimento a sua não valorização, porque, ainda assim, ela ainda persiste, e persistirá.
Ou seja, continuará existindo uma variante linguística resultante da mistura sociocultural
entre dois povos falantes de duas grandes línguas mundiais; do entrevero denominado
por muitos de portunhol, uma língua que é falada em uma região de fronteira seca entre
o Brasil e o Uruguai, uma variante linguística com características únicas. Em um trecho
de um dos textos dos Parâmetros Curriculares Nacionais sobre as variações linguísticas
da língua portuguesa ensinada nas escolas públicas do Brasil, encontra-se que “A variação
linguística é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre
existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa. [...]”. (BRASIL,
PCN/MEC/SEF, 1998, LP, 5ª a 8ª s. p. 29).
Já quando perguntados como classificam/entendem o uso do portunhol na região
fronteiriça, os dados analisados permitiram evidenciar as visões dos usuários a respeito
do portunhol, as quais classificamos em cinco categorias (Quadro 1): A linguagem que
todos entendem; comparado a um dialeto; um modo de comunicar-se; uma identidade
fronteiriça; uma língua extraoficial.

Quadro 1: A visão do portunhol em uma região fronteiriça

A visão do portunhol Principais comentários dos participantes


“O portunhol já faz parte do dia a dia das duas cida-
des, e muitas vezes nem percebemos que estamos
usando.”
“Classifico como uma linguagem em que todos se en-
A linguagem que todos entendem tendem. [...] através do portunhol pode-se haver uma
comunicação irregular, porém conseguem se enten-
derem entre si, e solucionarem possíveis problemas.”
“Compreendo bem, já estou acostumado.”

“Entendo como um dialeto próprio da nossa região,


influenciado por vários fatores, culturais, históricos,
Comparado a um dialeto
pelas relações familiares, de trabalho e estudo, pelo
acesso da televisão aberta.”

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“Uma maneira prática de se fazer entender e facilitar


a comunicação entre brasileiros e uruguaios.”
“O portunhol é bem entendido para os que aqui
vivem. Uma maneira só da região que achamos para
Um modo de se comunicar nos comunicar.”
“Faz parte de nossa cultura e é importante para a
comunicação fluir entre os habitantes dos dois lados
da fronteira.”

“Uma variação linguística regional comum na fron-


teira. [...] corrobora para abreviar, sistematizar e
reafirmar nossa identidade fronteiriça.”
Uma identidade fronteiriça “Uma forma linda e única de comunicação, mos-
trando que as fronteiras são muito relativas e que na
verdade somos um povo só.”

Uma língua extraoficial “Es la lengua extraoficial.”


Fonte: Banco de dados da Pesquisa

Podemos afirmar que a aceitação do portunhol nos dias atuais está mais flexível
do que alguns anos atrás, pois, enquadrando-o como uma variante linguística, podemos
perceber que ele está desenvolvendo muito bem o seu papel na intercompreensão
comunicativa entre os sujeitos fronteiriços. Quando houver falta de fluência em língua
portuguesa ou em língua espanhola, os sujeitos podem usar o portunhol em sua forma
oral na tentativa de se enquadrarem aos atos comunicativos. “Essa nossa tentativa de
adequação se baseia naquilo que consideramos ser o grau de aceitabilidade do que
estamos dizendo por parte de nosso interlocutor ou interlocutores.” (BAGNO, 2007,
p. 118). E para isso, não há a necessidade de que saibamos falar “bem” o português, o
espanhol e o próprio portunhol, mas que saibamos falar, comunicar, interagir. De acordo
com Bagno, “Todo falante de uma língua sabe essa língua. Saber uma língua, no sentido
científico do verbo saber, significa conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade
as regras básicas de funcionamento dela.” (BAGNO, 2007, p. 33).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a análise das citadas afirmações e com base na literatura sobre o tema,
podemos perceber a relevância e a importância que o portunhol tem nas vidas da fronteira
como uma fala identitária do povo fronteiriço. O portunhol, que há mais de 300 anos é
falado na região, a despeito de toda trama forjada em prol do seu desaparecimento,
ainda é o mesmo e começou a entrar na música, na literatura, na história, na culinária, na
poesia, nas propagandas de televisão, nos festivais da fronteira, na internet e nos estudos
acadêmicos da região, e está cada dia mais vivo, mais falado, mais apreciado pelos seus
usuários, mesmo que sua utilização seja em ocasiões esporádicas e não formais. O
portunhol está “na boca do povo”, do seu povo, do povo fronteiriço; povo guardião
de uma variedade linguística que age como catalisador para as relações que na fronteira

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se concretizam, como afirma Bagno, “Toda variedade lingüística é também o resultado


de um processo histórico próprio, com suas vicissitudes peripécias particulares.”
(BAGNO, 2007, p. 44).
Como vimos, durante alguns anos o portunhol foi menosprezado, estigmatizado e
denegrido, mas ainda assim o portunhol se mostra como uma língua livre, sem gramática,
sem regras, sem a mínima vontade de desaparecer. Muito pelo contrário, o portunhol
está na alma dos fronteiriços, ele é a língua das relações. Embora sejam relações
informais da sociedade, da mesma forma são relações, as melhores; e são os sentimentos
resultantes dessas relações que traduzem a essência do portunhol e a sua alma é feita de
afetos, como afirma o poeta, tradutor e dramaturgo Michel Croz, “o portunhol é uma
língua dos afetos, que se fala para comunicar no presente, resgatando o passado. Há
uma tradição forte, mas que se impulsiona para o futuro” (CROZ, 2019 apud STURZA,
2019, p. 103). Esperamos que esse futuro proporcione ao portunhol maior valorização
e reconhecimento por parte da sociedade a quem ele serve e de todos os que algum
dia tiveram ou vierem a ter contato com essa língua única, pois ela ainda estará aqui, na
fronteira onde ela nasceu e se regenerou através do tempo, marcando sua existência
como uma língua sem rédeas a galope pelo pampa gaúcho.
Já com relação às classificações negativas, devido a sua insignificância percentual,
não as consideramos relevantes, mesmo havendo nelas uma denotação inclinação
preconceituosa e estigmatizada a respeito do portunhol. Podemos perceber que a origem
do preconceito – tanto o de antigamente quanto o atual – seja a respeito da incansável
luta de alguns para “promover ridículos movimentos de defesa da língua [...] – , como se
fosse necessário defender a língua de seus próprios falantes nativos, a quem ela pertence
de fato e de direito.” (BAGNO, 2007, p. 136).
O que podemos fazer como estudantes, como habitantes, como seres humanos
pertencentes a uma sociedade fronteiriça binacional e, principalmente, como usuários
do portunhol, é fomentar os estudos e pesquisas que envolvem não somente o próprio
portunhol, mas também toda interculturalidade que através dele se forma na região de
Sant’Ana do Livramento e Rivera; além, é claro, de respeitar os seus falantes, pois, assim,
estaremos respeitando o próprio portunhol, sua essência, sua história, suas peculiaridades
e sua funcionalidade como mais uma dentre tantas outras variedades linguísticas da língua
portuguesa e da língua espanhola/platina, variedades as quais são classificadas por Bagno
(2007, p. 47) como “um tesouro precioso da nossa cultura. Todas elas têm o seu valor,
são veículos plenos e perfeitos de comunicação e de relação entre as pessoas que as
falam”. Ainda, segundo o autor (op. cit.):

Respeitar a variedade lingüística de toda e qualquer pessoa, pois isso equivale


respeitar a integridade física e espiritual dessa pessoa como ser humano, porque
a língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres humanos. Nós somos a
língua que falamos. A língua que falamos molda nosso modo de ver o mundo e
nosso modo de ver o mundo molda a língua que falamos (BAGNO, 2007, p. 131).

A citação acima foi extraída do que o autor chama em sua obra de “Dez Cisões
para um ensino de língua não (ou menos) preconceituoso”, com a finalidade de desconstruir
o preconceito linguístico sofrido pelos usuários das variantes da língua portuguesa faladas
no Brasil, em que uma delas é o portunhol, uma língua única nascida na e para a região

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da fronteira entre o Brasil e o Uruguai e que ainda se faz – e se fará – presente, na alma
e na boca dos sujeitos que ali vivem, interagem e constroem seus futuros. Como afirma
Martins (2015):

Segundo Labov (1983), a variação existe em todas as línguas naturais humanas, é


inerente ao sistema linguístico, ocorre na fala de uma comunidade e, inclusive, na
fala de uma mesma pessoa. Isto significa que a variação sempre existiu e sempre
existirá, independente de qualquer ação normativa. Assim, quando falamos em
Língua Portuguesa estamos falando de uma unidade que se constitui de muitas
variedades (MARTINS, 2011, p. 5).
A respeito do portunhol, podemos afirmar que sua existência e persistência nas zonas
limítrofes entre o Brasil e o Uruguai como uma língua detentora da identidade fronteiriça
ainda será objeto de muitos outros estudos futuros, visto que sua expansão e relevância
se torna a cada dia mais intensa na região, adquirindo mais usuários a cada geração.
Isso vai ao encontro do que defende Bagno (2007, p. 9), “Existe uma regra de ouro na
Lingüística que diz: só existe língua se houver seres humanos que a falem”.

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