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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

CINEMA E AUDIOVISUAL - HISTÓRIA E ESTÉTICA DO CINEMA II

DIEGO FERREIRA DA SILVA

APOCALYPTO:
O dialeto maia como artifício realista

Juiz de fora
2023
A fala, ou o dom da linguagem, é a maior expressão e forma de comunicação
adotada pelo ser humano ao longo de milhares de anos, e nela está contida a nossa
impressão do mundo e de como vemos e pensamos sobre a natureza à nossa volta.
Neste ensaio, falarei sobre como o filme Apocalypto utiliza de seu dialeto maia
antigo, assim como outros artifícios, para alcançar um certo realismo e assim
reforçar a noção de unidade cultural enquanto povo, que vemos também no
neo-realismo italiano do pós-guerra.
Apocalypto é um filme de 2006, dirigido, produzido e roteirizado por Mel
Gibson, quarto filme assinado pelo famoso ator de Hollywood, ainda no auge de sua
carreira nos anos 2000. O filme conta a história de Jaguar Paw (Rudy Youngblood),
um jovem guerreiro que tem sua tribo dizimada pelo povo maia, e acaba sendo
capturado e assim destinado a morrer como tributo para os deuses sedentos por
sangue, para que os mesmos os protejam do declínio iminente. Diferente e ousado,
o filme usa de vários mecanismos para alcançar um grau a mais de realismo, sendo
que um dos principais artifícios que Apocalypto utiliza é o uso de um dialeto antigo
maia, o iucateque. Artifício estilístico este que Mel Gibson também usa em seu filme
anterior de 2004, A Paixão de Cristo (The Passion of the Christ), filme gravado em
hebraico, aramaico e latim, línguas faladas pelos povos da região em que se passa
o filme naquela época.
Desde os primórdios, o ser humano sentia a necessidade de se expressar, e
ao longo dos anos, a comunicação foi evoluindo: pinturas rupestres foram feitas,
alfabetos e a escrita cuneiforme foram criados e, por fim, sons foram juntados para
que dessem sentido às abstrações e conceitos do universo. Foi assim que foram se
formando os primeiros dialetos, línguas e idiomas. O objeto do nosso interesse aqui,
neste ensaio, é o dialeto, portanto falaremos apenas sobre ele.

O dialeto é a variedade de uma língua própria de uma região ou


território e está relacionado com as variações linguísticas
encontradas na fala de determinados grupos sociais. As variações
linguísticas podem ser compreendidas a partir da análise de três
diferentes fenômenos: exposição aos saberes convencionais
(diferentes grupos sociais com maior ou menor acesso à educação
formal utilizam a língua de maneiras diferentes); situação de uso (os
falantes adequam-se linguisticamente às situações comunicacionais
de acordo com o nível de formalidade) e contexto sociocultural
(gírias e jargões podem dizer muito sobre grupos específicos
formados por algum tipo de “simbiose” cultural). (PEREZ, [s.d.])
Sendo falada por diferentes grupos de diferentes partes do México
(principalmente na península de Yucatán) e dois países da América Central: Belize e
Guatemala, a língua iucateque, que também pode ser considerada um dialeto, pois
é a variante linguística local falada por um grupo de habitantes que coexiste com os
falantes do espanhol e do inglês nesses países (portanto fazendo do iucateque uma
expressão regional) é o dialeto maia treinado e utilizado pelos atores do filme
Apocalypto. O dialeto, que ainda é falado por mais de 700 mil pessoas, é usado
para aproximar o filme do realismo desejado pelo diretor; que para complementar,
gravou todo o filme nas florestas da América Central e utilizou atores desconhecidos
para interpretar os personagens.
Vemos neste filme três dos elementos que são bastante corriqueiros nos
filmes feitos pelos cineastas do neo-realismo italiano: o uso de locais reais como
locação, o uso de atores anônimos e, é claro, o uso de dialetos locais para dar
ênfase na regionalização da produção.
Depois da unificação, que se iniciou em 1860 e terminou depois da Primeira
Guerra Mundial, a Itália, cuja língua nacional era o italiano, vivia uma fragmentação
linguística de dialetos falados pela população local das províncias.

Praticamente banidos pelo fascismo, que os considerava uma


ameaça à consolidação da língua nacional, com o neo-realismo os
dialetos voltam a ganhar as telas, como expressão da língua falada
no dia-a-dia pela maior parte dos italianos. Se o neo-realismo fazia
do povo seu principal protagonista, à sua representação só podia(m)
corresponder a(s) língua(s) na(s) qual(is) ele se expressava: os
dialetos ou o chamado italiano popular unitário, que, em cada região,
apresenta variantes fonéticas, lexicais e morfossintáticas derivadas
do dialeto local. (FABRIS, Mariarosaria. In: MASCARELLO, 2006, p.
215)

Os cineastas do neo-realismo, em especial Luchino Visconti, com o seu A


Terra Treme (La Terra Trema) de 1948, filmado em um dialeto local dos pescadores
da Sicília, usava o dialeto siciliano como uma forma de reforçar a cultura regional
em seu filme. Visconti e os outros neo-realistas davam foco ao povo, a história se
focava nos cidadãos que compunham a nação e sua cultura. Mimetizando esta
mesma premissa, Gibson usa o dialeto iucateque para dar vida a cultura maia em
Apocalypto, aproximando a relação entre os espectadores e o filme, usando e
abusando desta, que é uma importante manifestação cultural de um povo, a língua.
Apesar das polêmicas envolvendo a fidelidade dos rituais maias e se eles
realmente eram tão sangrentos assim, o iucateque falado pelos atores no filme nos
prende enquanto assistimos, o som do dialeto nos transporta para as florestas da
região da Mesoamérica, enriquecendo a experiência cinematográfica, trazendo uma
cultura indígena americana mais realista, ao contrário do que aconteceria se o filme
fosse gravado com os atores falando inglês, ou até mesmo espanhol. Entre
templos-pirâmides e um eclipse solar, Apocalypto acerta ao tentar trazer
autenticidade e realismo à cultura maia de séculos atrás.

Referências bibliográficas:

APOCALYPTO; Direção: Mel Gibson. Produção: Icon Productions. Estados Unidos: Walt
Disney Pictures, 2006. On-line.

ARAÚJO, Renato Moreira; SOLDAN, Marcello. O cinema Neorrealista italiano e o


realismo; In: GT 2 - CAIU NA REDE AINDA É CINEMA? CAPPA. 5., 2018, Goiás.
CERCOMP.UFG, 2018. Disponível em:
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/971/o/5gt3_ARTIGO_RENATO_OK.pdf. Acesso em: 21
abr. 2023.

BEZERRA, Bianca. Apocalypto (2006); Boca do Inferno, mar. 2022. Disponível em:
https://bocadoinferno.com.br/criticas/2022/03/apocalypto-2006/. Acesso em: 21 abr. 2023.

FABRIS, Mariarosaria; Neorrealismo Italiano. In: MASCARELLO, Fernando. História do


cinema mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006.

HONEYCUTT, Keith. Gibson faz retrato cruel dos maias em “Apocalypto”; O Globo, jan.
2007. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/cultura/gibson-faz-retrato-cruel-dos-maias-em-apocalypto-423784.
Acesso em: 21 abr. 2023.

MACEDO, Matheus. A Paixão de Cristo (2004); Cinemação, abr. 2020. Disponível em:
https://cinemacao.com/2020/04/10/a-paixao-de-cristo-2004/. Acesso em: 21 abr. 2023.

PEREZ, Luana Castro Alves. Diferenças entre língua, idioma e dialeto; Brasil Escola,
[s.d.]. Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/gramatica/diferencas-entre-lingua-idioma-dialeto.htm. Acesso
em: 21 de abr. 2023.

Redação Adorocinema. Apocalypto (Créditos); Adorocinema, [s.d.]. Disponível em:


https://www.adorocinema.com/filmes/filme-61676/creditos/. Acesso em: 21 abr. 2023.

SILVA, Daniel Neves. Civilização Maia; História do Mundo, [s.d.]. Disponível em:
https://www.historiadomundo.com.br/maia. Acesso em: 21 abr. 2023.

SIMÕES, Eduardo. “Apocalypto” usa língua maia viva; Folha de S. Paulo, dez. 2006.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2112200622.htm. Acesso em: 21
abr. 2023.

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