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1No filme Estrelas além do tempo, dirigido por Theodore Melfi, usa-se a palavra computador com esse
sentido, pois há um grupo de computadoras negras trabalhando para a NASA, das quais se destacam
as personagens brilhantemente interpretadas por Tarji Henson, Octavia Spencer e Janelle Monae.
usos dessa palavra possuem em comum em
termos semânticos?
Segundo o Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa (HOUAISS; VILLAR,
2008, p. 2027), norma é uma palavra polissêmica. Portanto, há um núcleo semântico
presente em todos os seus sentidos, o qual podemos resumir com três palavras:
regra, padrão, comportamento. Vemos isso, por exemplo, nas normas técnicas que
estabelecem regras de comportamento a ser adotadas como padrão, como as
determinadas pela ABNT e as constantes nos manuais de redação dos jornalões,
como o Estado de São Paulo. Até na área de estatística, costuma-se falar de norma ao
se referir ao padrão de comportamento de uma variável analisada.
Etimologicamente, qual a origem de norma? De acordo com The Merriam-
Webster new book of word histories (1991), a palavra norm, correspondente a norma, é
oriunda do latim nōrma. Esse termo, provavelmente entrou no latim a partir do
termo grego gnōmōn, cujo significado era ‘esquadro de carpinteiro’. Essa informação
etimológica não nos ajuda a entender os usos correntes da palavra norma.
Entretanto, o Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales fornece
uma informação importante: em 1867, a palavra norme foi introduzida no léxico
francês com o significado de ‘estado habitual, regular’.2 Obviamente, ela já estava em
uso na França antes de os dicionários a registrarem oficialmente naquele ano. Com
esse sentido, norma passou a ser usada para se referir a um comportamento habitual
das pessoas em um determinado grupo social e gerou os adjetivos normal e anormal,
muito importantes para as discussões acerca dos comportamentos humanos.
Vejamos como o Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa define esses dois
adjetivos:
normal adj. 2g. (1836 cf. SC) 1 conforme a norma, a regra; regular <a
homologação seguirá os que trâmites n.> 2 que é usual, comum; natural, <tráfego
n.> <reação n. a um medicamento> 3 sem defeitos ou problemas físicos ou
mentais <uma criança n.> 4 cujo comportamento é considerado aceitável e
comum (diz-se de pessoa) [...] (HOUAISS; VILLAR, 2008, p. 2027).
anormal adj. 2g. (sXV cf. OrdAf) PSIQ 1 que desvia claramente de uma norma
(diz-se de manifestação, comportamento, vivência etc.) • adj. 2g. s. 2g. 2 que
ou o que está fora da norma, da ordem habitual das coisas; diferente, irregular
<a influência foi considerada a.> <o a. foi a vitória do time mais fraco> 3 que ou o que
gera surpresa ou inquietação pelo seu caráter imprevisto ou inexplicável;
excepcional, insólito 3.1 que ou o que é de intensidade excepcional 3.2 que ou
aquele que apresenta desenvolvimento físico, intelectual ou mental defeituoso
4 infrm. pej. que ou aquele que é tarado, depravado [...] (HOUAISS; VILLAR,
2008, p. 227).
PERIGO
ÁREA
SUJEITA
A ATAQUE
DE GABIRU
6Cf. o trecho original: [...] English speakers, against all evidence to the contrary, that uniformity is the
normal condition whereas variation is deviant; and that any residual variation in standard English
must therefore be the contingent and deplorable result of some users’ carelessness, idleness or
incompetence.
As palavras de Camara Jr. dão muito pano pra manga e servem de ponto de
partida para algumas reflexões. Ele usa o conceito de língua como um conceito
guarda-chuva no qual estão incluídos os dialetos. Não há como não pensar aqui na
frase de Max Weinreich, quase um lugar-comum na área de linguística: “Uma língua
é um dialeto com exército e marinha”. Em outras palavras, uma língua, na verdade,
é um dialeto. Mais especificamente, uma língua é o dialeto de um grupo social
hegemônico o qual foi alçado à posição de língua nacional por conta de fatores
históricos relativos ao processo de invenção das nações.
Segundo Mario Pei (1940, p. 46), “não há nenhuma diferença intrínseca entre
uma língua e um dialeto, sendo a língua um dialeto que, por alguma razão especial,
como, por exemplo, ser a fala de uma localidade que é o assento do governo,
adquiriu proeminência em relação aos outros dialetos do país”. 7 Vale lembrar o caso
do dialeto de Florença na unificação da Itália: como era o dialeto da região
hegemônica, liderada pelo imperador Vítor Emanuel II, ele foi alçado à condição de
língua da Itália e sofre resistência até hoje.
Retomemos aqui um comentário de Alexandre Garcia, apresentado no
primeiro capítulo, sobre os usos linguísticos não abonados pelas gramáticas
normativas: a língua está “virando um dialeto confuso”. Isso está duplamente
errado. Em primeiro lugar, um dialeto é tecnicamente uma língua e vice-versa.
Portanto, um dialeto não pode ser confuso nem uma língua pode ser confusa pelo
fato de serem sistemas semióticos regidos por regras socialmente (e tacitamente)
estabelecidas as quais permitem a construção de sentidos. Em segundo lugar, ele faz
alusão ao dialeto como se fosse algo inferior à língua em termos qualitativos. E isso
não procede pelo fato, repito, de a língua ser tecnicamente um dialeto.
É necessário deixar claro aqui o conceito de dialeto. Para isso, vejamos a
definição oferecida por Jean Dubois et al. em seu Dicionário de linguística:
O dialeto é uma forma de língua que tem o seu próprio sistema léxico,
sintático e fonético, e que é usada num ambiente mais restrito que a própria
língua.
7 Cf. o trecho original: [...] there is no intrinsic difference between a language and a dialect, the former
being a dialect which, for some special reason, such as being the speech-form of a locality which is the
seat of the government, has acquired preeminence over the other dialects of the country.
8 Dialeto francês da região da Picardia.
Aqui cabe uma pequena digressão, pois é curioso vermos que há quem use o
termo dialeto como sinônimo de dialeto regional. Há quem fale, por exemplo, de
dialeto caipira, dialeto carioca, dialeto gaúcho, dialeto nordestino. Entretanto, é
preciso ter cuidado com tais classificações. Afinal, se pensarmos em uma região
como o Nordeste, composta por nove estados, cada um com mais de 100 municípios
(à exceção de Sergipe), como é possível colocarmos todos os diferentes falares das
pessoas desses municípios em um mesmo balaio e rotulá-las de “dialeto nordestino”
ou de “dialeto baiano”, por exemplo? É uma homogeneização inválida, não é?
Jacques Derrida, comentando sobre a distinção entre língua, idioma e dialeto,
aceita a existência de diferenças entre eles, mas recusa a existência de diferenças
estruturais entre eles:
A produção de estigmas é constante. Existem até blogs cuja razão de ser é fazer
patrulha linguística (digite “matando o português” no Google e você verá os
resultados). E estigmatizar alguém é algo terrível, pois o estigma é “a situação do
indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena”, como lembra Erving
Goffman (2008, p. 7).
As consequências do estigma relacionado à língua são concretas. Um exemplo
disso é o fato de crianças, por não dominarem a norma padrão, serem julgadas
negativamente ao chegarem à escola e terem sua capacidade de aprendizagem
colocada sob desconfiança. Isso já é uma barreira a ser superada por elas.
As poucas crianças oriundas de famílias cujos membros frequentemente se
envolvem com artefatos da cultura escrita, como livros, jornais e revistas, terão
menos dificuldades para interagirem com as regras prescritas pelas gramáticas
normativas se comparadas com as muitas crianças oriundas de famílias socialmente
excluídas, para quem livros, jornais e revistas representam uma realidade distante.
Mesmo assim, tanto um grupo de crianças quanto o outro perceberão discrepâncias
entre a língua que falam e a língua apresentada nessas gramáticas. Elas saem da
escola, vão para casa, e não ouvem ninguém falar coisas como “Dê-me...”, “A
bicicleta foi roubada...”, “O brinquedo quebrou-se...”, “O doce de que mais gosto...”.
Como professoras e professores reagiriam se uma aluna perspicaz lhes
perguntasse a razão pela qual ela não ouve ninguém, fora da escola, falar do jeito
ensinado na escola. Talvez se comportassem como Mário Henrique Simonsen,
Ministro da Fazenda do governo Geisel, durante a ditadura militar. Segundo reza a
lenda, ele respondeu assim às críticas ao fracasso de um dos seus pacotes
econômicos: “a realidade está atípica”. Pois é... No final das contas, a culpa é da
realidade, pois ela não se comportou como deveria.
Não por acaso, Marcos Bagno (2011) lança mão do conceito de hipóstase para
se referir à norma padrão. De acordo com o Grande dicionário Houaiss da língua
portuguesa, hipóstase significa um “equívoco cognitivo que se caracteriza pela
atribuição de existência concreta e objetiva (existência substancial) a uma realidade
fictícia, abstrata e meramente restrita à incorporalidade do pensamento humano”
(Houaiss; Villar, 2008: 1540). Para Bagno, houve um processo de hipostasiação da
língua portuguesa: a língua real, esse conjunto de sons, palavras e significados
materializados na interação social, foi transformada em uma norma padrão, em um
conjunto de comportamentos a serem seguidos. E isso gerou o equívoco de se
confundir a norma padrão com a língua:
Conforme escrevo alhures Para ele, uma indicação clara dessa esquizofrenia é
o fato de as pessoas sentirem e saberem que “a língua padrão é a língua de outra
pessoa e não a delas, apesar das afirmações contrárias” (FAIRCLOUGH, 1989, p. 57).
Em outras palavras, a norma padrão, veiculada de maneira inconsistente pelas
gramáticas normativas, não representa a realidade linguística das pessoas falantes de
português no Brasil. Portanto, ela não deixa de ser irreal até certo ponto, justificando
o rótulo de hipóstase atribuído por Bagno, para quem as consequências da
hipostasiação de língua são concretas, pois, conforme o teorema de Thomas, “no
âmbito das ciências sociais, se os homens definem as situações como reais, elas são
reais em suas consequências”.
Há dois pontos do parágrafo anterior para serem esclarecidos. Em primeiro
lugar, por que considero a norma padrão irreal “até certo ponto”? Porque ela
representa, sim, os comportamentos linguísticos de determinados escritores
literários clássicos. Então, nesse sentido, ela é real. Mas ela é irreal no sentido de
supostamente representar os comportamentos linguísticos das pessoas tanto na fala
quanto na escrita em todos e quaisquer contextos de uso da língua. Em segundo
lugar, quais as consequências reais da hipóstase? Posso pensar em três: (1) ela
prejudica as políticas linguísticas por levar muitos planejadores a ignorarem as
variedades não padrão; (2) ela reforça a ideologia da padronização e o discurso
purista; (3) ela potencializa a discriminação contra as variedades não padrão e
reforça o preconceito linguístico.
10Cf. o trecho original: There is an element of schizophrenia about Standard English, in the sense that it
aspires to be (and is certainly portrayed as) a national language belonging to all classes, and yet remains
in many aspects a class dialect.
E, antes de encerrar este capítulo, preciso fazer um comentário sobre uma
consequência conceitual dessa hipóstase. Os linguistas, obviamente, já perceberam a
não realização concreta da norma padrão porque as pessoas apresentam
comportamentos linguísticos diferentes. Em outras palavras, perceberam que a
norma padrão é abstrata e não condiz com a realidade linguística brasileira,
especialmente na fala. Por isso, criaram os conceitos de norma culta e de norma
popular para se referirem aos comportamentos linguísticos reais das brasileiras e dos
brasileiros.
É possível inferir uma definição de norma culta a partir das informações
fornecidas por Cunha sobre o Projeto de Estudo Conjunto e Coordenado da Norma
Linguística Oral Culta de Cinco das Principais Cidades Brasileiras, mais conhecido
como Projeto NURC, cujos informantes são mulheres e homens de quem se exigem
os seguintes requisitos:
REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. O que é uma língua? Imaginário, ciência e hipóstase. In: LAGARES, Xoán
Carlos; BAGNO, Marcos (orgs.). Políticas da norma e conflitos linguísticos. São Paulo: Parábola,
2011. p. 355-387.
BRITTO, Luiz Percival Leme. A sombra do caos: ensino de língua X tradição gramatical.
Campinas: Mercado de Letras, 1997.
CAMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. 22. ed. Petrópolis: Vozes,
1994.
CAMINHA, Pero Vaz de. A carta de Pêro Vaz de Caminha. Disponível em:
<http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html>. Acesso em: 10 abr. 2010 [1500].
CUNHA, Celso. A questão da norma culta brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
DUBOIS, Jean et al. Dicionário de linguística. 2. ed. Tradução de Frederico Pessoa de Barros et
al. São Paulo: Cultrix, 2014. Título original: Dictionnaire de linguistique. A história da
deputada filha de ex-escrava que inspira ativistas negras no Brasil. Disponível em:
<http://g1.globo.com/educacao/noticia/2016/03/a-historia-da-deputada-filha-de-ex-escrava-
que-inspira-ativistas-negras-no-brasil.html>. Acesso em: 15 jun. 2018.
FAIRCLOUGH, Norman. Language and power. Cingapura: Longman, 1989.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 27. imp. São Paulo:
Edições Graal, 2009.
GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. 5. ed. São Paulo: Editora WMF Martins
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HAUY, Amini. Da necessidade de uma gramática-padrão da língua portuguesa. 3. ed. São Paulo:
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Iorque: Books for Library Press, [360 a.C.] 1970. p. 1-13.