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Uma vez colocadas estas aparentemente simples, porém bastante espinhosas indaga-
ções, ela passou a contextualizá-las em diversos episódios da história universal: Por que os
governantes de Tróia aceitaram prazeirosamente aquele “presente grego” - aquele grande
cava-lo de madeira colocado às portas da sua cidade? Eram eles tão estúpidos a ponto de
não levan-tar a suspeita de que se tratava de um truque banal? Por que sucessivos
ministérios de Jorge III insistiram em manter uma política externa intolerante e repressiva
em relação às Treze Colônias da América, apesar de políticos e pensadores brilhantes como
Edmund Burke mos-trarem claramente que tal orientação era desastrosa e traria muito mais
prejuízos reais para o Reino Unido do que possíveis vantagens?!
Por que Napoleão - um brilhante estrategista - cometeu o mesmo erro que Carlos
XII da Suécia, e Hitler o mesmo erro que Napoleão, invadindo um país extenso e de
rigoroso inverno, como é o caso da Rússia? Por que o imperador dos astecas, Montezuma,
dispondo de um exército mais de dez vezes maior do que o de Cortez e os invasores
espanhóis, não ofere-ceu resistência na capital do império, mesmo depois de os invadidos
terem descoberto que os invasores não eram deuses, porém meros mortais? Por que, na
crise do petróleo, na década de 80, as nações importadoras não se uniram para fazer frente
ao cartel da OPEP constituído pelos exportadores árabes? (Tuchman, 1985, p.4).
Na sua tipologia geral das causas de desgoverno, Tuchman reconheceu quatro
causas e admitiu combinações entre elas: (1) a tirania ou opressão (2) a ambição
desmedida (3) a incompetência ou decadência (4) a insensatez ou obstinação.(Tuchman,
1985, p.5).
Mas o que essas causas têm a ver com a akrasia? A incompetência, por exemplo,
não pode ser considerada uma questão de natureza moral, porém técnica, ao passo que a
ambição desmedida parece estar mais ligada ao auto-engano (Giannetti, 1997) do que à
akrasia (Mele, 1987) e como veremos adiante essas noções são plenamente distintas,
apesar das relevantes analogias. [Neste sentido discordamos veementemente de L.T.
Zagzebski (1996, pp.137-165) e de outros quando eles pretendem desfazer a clássica
distinção aristotélica de virtudes éticas e dianoéticas (intelectuais), pois uma pessoa de
altíssimo Q.I. pode ser um rematado patife e uma pessoa de caráter irreprochável pode ser
não só ignorante como também burra].
A questão da akrasia especificamente foi retomada por diversos filósofos
contempo-râneos voltados para a Ética. R.M.Hare começou considerando que há uma
importante diferença entre o hipócrita que alega seguir determinada regra moral enquanto
sua conduta mostra o contrário da sua alegação e o indivíduo sincero que faz um autêntico
esforço para viver de acordo com as regras morais em que acredita, embora não consiga
realizar tal coisa. O primeiro não tem a menor intenção de fazer aquilo que apregoa; o
segundo a tem de fato, porém fracassa na sua tentativa de realização. Para Hare, a
hipocrisia é uma característica de algumas pessoas, mas a defasagem entre o plano das boas
intenções e o dos maus resultados é uma característica típica da condição humana. Dizemos
isto, porque ele não hesitou em fazer explicitamente uma ousada generalização:
De acordo ainda com Hare, esta incapacidade peculiar à condição humana está bem
refletida nos nomes extremamente significativos empregados para nomeá-la, tanto em
grego como em inglês. Os gregos a chamavam de akrasia, [o estado mental de não ser
suficiente-mente forte para controlar a si mesmo]. As expressões eqüivalentes em inglês
são: moral weakness (fraqueza moral) e weakness of will (fraqueza de vontade). O estado
mental que a maioria das pessoas tem em vista - quando fala de uma fraqueza de vontade -
envolve, em certo sentido, uma incapacidade específica: a de fazer aquilo que livremente
impomos a nós mesmos como uma obrigação moral.
Para Hare, a akrasia tem sido motivo de uma controvérsia histórica dentro da
Filosofia Moral. Segundo ele, há duas passagens clássicas geralmente citadas contra a
posição prescritivista. A primeira - extraída das Metamorfoses de Ovídio - tem como
tópico uma descrição de Medeia tentando resistir à sua avassaladora paixão por Jasão.
Se um homem faz aquilo que ele diz que não deve fazer, embora ele seja
bastante capaz de resistir à tentação de fazer, então há algo de errado com
o que ele diz ou com o que ele faz. O caso mais simples é o da
insinceridade: ele não está dizendo o que realmente pensa. Em outras
situações é o caso do auto-engano: ele pensa que pensa que deve, mas
não se deu conta de es-tar usando um “deve” fraco, i.e. desprovido de
força coagente (Hare, 1978, p.83).
Tal como Hare, Linda.T. Zagzebski também faz uma acentuada distinção entre
essas duas noções:
Estando fora das suas considerações o aspecto caracterizado acima, Cohen entende
que - supondo que a analogia entre a akrasia e o auto-engano seja realmente válida - a
possível solução para o paradoxo gerado por este deve servir para uma solução do gerado
por aquela. Cohen considera que, caso a posição socrática de que não há erro moral
voluntário seja válida, não podemos conceber a consciência moral do agente como o palco
de um conflito entre duas máximas opostas voltadas para ação, sendo uma correta e a outra
incorreta. Se a posição socrática é válida, o paradoxo da incontinência simplesmente se
desfaz. Além disso, uma vez que podemos inferir as máximas que uma pessoa considera
corretas, a partir do que ela realmente faz - não a partir daquilo que ele diz [ pois ela
poderia estar se expressando hipocritamente] - não podemos jamais ter qualquer evidência
de esta mesma pessoa estar realmente em um estado de akrasia.
Cohen entende que podemos comparar a tentativa de desfazer o paradoxo do auto-
engano considerando-o como se fosse um caso de autocomando. Como não há o
pressuposto de outro autocomando contrário, a abordagem socrática da akrasia exclui
taxativamente a possibilidade de um palco interior em que máxi-mas opostas entram em
conflito na consciência moral do agente. (Cohen, 1995, p.151). Para Cohen, a abordagem
socrática não consegue representar o tipo de situação bastante familiar que gera o problema.
Entre outras coisas, ela não deixa o menor espaço para que tenha lugar uma
experiência tão simples e tão conhecida por todos nós: a experiência do arrependimento.
Só faz sentido falar em arrependimento ou remorso, caso concebamos uma situação em que
um indivíduo seguiu voluntariamente um determinado curso de ação, que entrou em
conflito com uma máxima ou com máximas que ele mesmo considerava correta(s) ou
passou a considerá-las assim post facto. Contudo, se aceitarmos a validade da abordagem
socrática, nenhum curso de ação desse tipo poderá ser considerado voluntário. (Cohen,
1995, p.151).
Pensamos que Cohen tem toda a razão. Tanto a experiência do conflito interior
como a do arrependimento são experiências bastante conhecidas por todos nós. Quem
poderia alegar nunca ter experimentado ao menos uma situação angustiante em que se viu
diante de uma difícil escolha entre duas ou mais opções de caráter moral? E quem poderia
alegar nunca ter feito nada que posteriormente tivesse se arrependido? Todavia, para que
haja um autêntico arrependimento, é necessário que a ação praticada pelo agente tenha sido
livremente escolhida por ele. (Stebbing, 1944, pp.167-187).
Nada impede que um indivíduo com um sério problema psicológico se sinta culpado
por uma ação que não praticou, mas neste caso seu arrependimento é tão descabido quanto
a ação que ele fantasiou ter praticado. Os sentimentos de culpa e de arrependimento podem
ser considerados “reais”, à medida que o sujeito os experimenta em toda a sua intensidade;
mas a culpa e o arrependimento em si mesmos não o são, porque carecem de uma causa
real.
Algo semelhante ocorre com um indivíduo que - movido por uma terrível
compulsão de culpa - confessa ter praticado um crime que não praticou. O fato de ele se
sentir culpado é diferente do possível fato de ele realmente ser ou não. Ele não é o
criminoso que fantasia ser, mas sim um doente mental que não se reconhece como tal. Não
há arrependimento real sem reconhecimento de uma culpa real. Se alguém diz: “Eu me
arrependo do que fiz, mas não me considerado culpado”, ele só pode estar expressando uma
contradição como evasiva para não assumir responsabilidade pelo ato praticado.
Geralmente, o arrependimento vem acompanha-do de um juízo condicional emitido pelo
agente para si mesmo ou para quem ele confessa seu remorso:
(a) “Ah! Se eu pudesse voltar atrás, não teria feito o que fiz”.
Isto indica que ele poderia não ter feito o que fez [pois contava efetivamente com
esta alternativa] e que, se realmente o fez, foi por uma livre escolha, posteriormente
reconhecida por ele mesmo como má opção. Temos de convir que dizer (a) é algo
marcadamente dife-rente de dizer:
(b) “Eu não queria fazer o que fiz”
Pois a maior prova de que ele queria é que realmente fez. Em vez disto, a forma
correta de expressar o que ele podia justificadamente pretender com (a) é:
(c) “Hoje eu não quero mais fazer aquilo que queria; e tanto é assim que, se eu
pudesse
voltar atrás, não teria feito o que fiz”.
Suponhamos que alguém dissesse : (a) “Não fui eu quem deu um soco na cara dele,
mas sim meu braço”. Neste caso, estaríamos diante de uma pilhéria ou do mais deslavado
cinismo. Suponhamos que tivesse dito: (b) “Não fui eu quem deu um soco na cara dele, mas
sim um espírito maligno que tomou conta do meu corpo e comandou o movimento do meu
braço”. Neste caso, estaríamos diante de um caso de insanidade mental ou de uma adesão à
crença ancestral da possessão demoníaca.
Contudo, quando o que está realmente em jogo é o caráter insuportável de assumir
plenamente uma culpa por um erro moral deliberadamente cometido, que diferença faz se
um indivíduo adota uma evasiva mágica e transfere esta mesma culpa para “O Pecado”,
“Uma Estranha Compulsão”, “O Inconsciente” ou “O Diabo”? Os nomes dos pseudo-
agentes substancializados em entidades metafísicas podem constituir uma lista limitada,
mas parece não haver limites para a capacidade humana de auto-engano e de horror de
assumir responsabilida-de por atos deliberadamente praticados.
Ao menos neste particular, somos obrigados a concordar com J. P. Sartre (1956):
Não se trata de nenhum dos pseudo-agentes acima mencionados, porém daquilo que ele
denomina de mauvaise foi (má fé) - um conceito filosófico cujo sentido não difere do uso
lingüístico comum: a aplicação é que se revela inusitada e, segundo pensamos, apropriada
para a compreensão desse mecanismo psicológico humano. Como diz o próprio Sartre:
E pensamos que esta última asserção tornar-se-ia ainda mais contundente, caso seu
proferidor tivesse dito: “se ao mesmo tempo não os quero e declaro que se me impõem”,
porque - se não queremos de fato fazer algo - podemos ser forçados por outro(s) a fazê-lo
(mediante tortura ou qualquer forma de forte coerção) porém nada vindo de dentro de nós
mesmos pode compelir nossa vontade a fazê-lo. Há nisto um sério impasse demandando
uma solução. Limitar-nos-emos a explicitá-lo.
Se nada vindo de dentro de nós mesmos pode nos obrigar a fazer algo, toda e
qualquer forma de coerção tem de apresentar um caráter externo, ou seja: o de uma
imposição feita por outro. Se assim é, carece inteiramente de sentido falar em coerção
“interna”, ou seja: uma imposição feita por nós mesmos a nós mesmos. Admitir tal coisa é
admitir uma cisão da vontade pessoal, pois ela passa a se dividir em uma vontade ativa e
uma passiva, uma impondo e a outra recebendo a imposição. Supondo que, como qualquer
outra faculdade humana, a faculdade da volição é indivisa, como pode se dividir em duas
vontades em um mesmo indivíduo? R. Allers, em uma aguçada crítica da psicanálise, ao se
voltar para a noção de inconsciente (Unbewusst), acaba tocando na questão da akrasia:
A noção de inconsciente não era, sem dúvida, uma noção nova; durante
muito tempo tinha desempenhado certo papel na psicologia e na filosofia.
Fora concebida primeiramente, embora não estabelecida por forma
explícita, por Santo Agostinho, quando falou na existência de duas
vontades na alma humana. A sua explicação da aparente fraqueza de
vontade implica que a consciência, ou vontade consciente, não tem
conhecimento de uma se-gunda vontade que possui aquilo que falta à
primeira. (Allers, 1946, p.21, os grifos são nossos).