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As contradições do “social” e do

"político" em Hannah Arendt


por Warney Smith Silva

Hannah Arendt foi uma das pensadoras mais importantes e influentes do século
20 e em grande parte do mundo Ocidental. Mas uma das características de sua obra,
são suas concepções e críticas teorico-políticas bastante particulares que, embora
consistentes e aprofundadas, acabaram criando diversas polêmicas e muitas críticas.
Não apenas de representantes dos corpos políticos por ela criticados, mas também dos
próprios analistas de sua obra.
Aqui irei tratar de uma dessas concepções que mais lhe causaram críticas e
incompreensões em sua conturbada trajetória: seus conceitos de “sociedade” e a
diferenciação que ela faz entre “social” e “político” em situações controversas. Por fim
discuto a proposta de Benhabib para caracterizar a filosofia na obra de Hanna Arendt.

Uma importante mudança histórica ocorreu com o fim do antigo regime e o


surgimento da modernidade contemporânea: No século 18 uma enorme quantidade de
camponeses e descendentes de servos, expulsos dos campos onde viviam, passaram a
viver em péssimas condições em cortiços nas grandes cidades da época, como London
e Paris. Surgiu assim uma massa de pobres, miseráveis que a partir das crises de 1770
passaram a viver momentos de fome e desespero, participando de saques, ocupações,
e que foram incitados pelos liberais a lutarem contra a monarquia francesa. O ponto
culminante foi, é claro, a tomada e destruição do presídio da Bastilha contra dezenas
de guardas em Paris e a partir daí uma união de milhares que mudou a França e a
Europa. Também se refere aos movimentos de trabalhadores ingleses em London na
mesma época. E, ao longo do tempo, essa unificação de pessoas se movimentando nas
ruas por objetivos diversos passou a ser chamada de “multidão”, sobretudo a partir da
fase do “imperialismo”.

Foi isso que levou a filósofa Hannah Arendt a estudar o fenômeno e o descreveu
como “advento da sociedade” em seu livro “A Condição Humana”: uma sociedade de
pobres que passou a atuar no espaço público, ao contrário do abismo que havia desde
a antiguidade entre o espaço privado (como o “lar” grego e romano), e o domínio
público (o espaço reservado à política, às artes, à fama e aos homens). o mundo da
vida privada e da intimidade na antiguidade, completamente fora da “res publica” dos
homens proprietários.
Mas Hannah Arendt tem uma concepção particular do termo “Sociedade”.
Explicando sobre a diferença entre os domínios público e privado de sua “A Condição
Humana” diz que a “sociedade”;
“... surgiu com a ascensão da administração do lar, de suas atividades,
problemas e modelos de organização para a luz da “esfera pública”.

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Mas esse “surgimento” da sociedade, segundo ela, acabou complicando ou
atrapalhando a diferença entre público e privado que havia, mudando o significado na
vida de cada indivíduo e até da política na era moderna a ponto de torná-los “quase
irreconhecíveis”. Arendt diz que o que hoje chamamos de privado é “uma esfera de
intimidade cujos primórdios podemos remeter aos últimos períodos da civilização
romana… mas cujas peculiaridades, multiplicidade e variedade eram certamente
desconhecidas de qualquer período anterior ao moderno” (2016, p.46)
O conceito/idéia de esfera privada na era moderna trata-se do surgimento do
“indivíduo” e do “individualismo”. Num crescente enriquecimento/ fortalecimento da
esfera privada a ponto de se tornar distinto das esferas política e principalmente da
social. Porém;
“O fato histórico decisivo é que a “privatividade” moderna, em sua função mais
relevante, a de abrigar o que é íntimo, foi descoberta não como o oposto da esfera
política, mas da esfera social, com a qual é, portanto, mais próxima e autenticamente
relacionada” (2016, p47)

Para estudar e definir o social, Arendt primeiro analisa a “intimidade”. Ela parte
de um estudo do que ela chama de primeiro teórico da “intimidade”: Jean Jacques
Rousseau que, segundo ela, propôs uma “rebelião do coração” contra “a insuportável
perversão do coração humano pela sociedade, contra a intrusão dela em uma região
recôndita do Humano: a intimidade do coração” . Esse espaço privado, segundo
Rousseau, nunca teve um lugar tangível no mundo e também a sociedade - contra à
qual a intimidade se rebela -, "também não pode ser localizada com a mesma certeza
que o espaço público”. Ambos são “formas subjetivas da existência humana” e por isso
, o indivíduo moderno “e seus intermináveis conflitos” nasceram dessa “rebelião do
coração”. E a partir desse surgimento do indivíduo moderno , seus conflitos, seu
radical subjetivismo é que a leva a caracterizar a “sociedade” ou o social.

Uma primeira caracterização e de que a tal “rebelião do coração” ( que prefiro


caracterizar/sintetizar a grosso modo no conceito de “romantismo”, que aliás a própria
autora relacionou ao trabalho de Rousseau) seria contra “as exigências niveladoras
do social” que Arendt chama de “conformismo”. Por esse conceito, Arendt parece
significar a nivelação e a padronização do comportamento, das opiniões, e que,
independente se há igualdade ou desigualdade, “a sociedade exige sempre que os
seus membros ajam como se fosse membros de uma enorme família, que tem
apenas uma opinião e um único interesse” (p48) E ela lembra ainda que houve uma
“notável coincidência” dessa ascensão da sociedade com o concomitante declínio da
família absorvida por “grupos sociais” e que isso levou ao fenômeno do “conformismo”.
Sintomático também que o antigo governo monárquico, baseado em famílias, foi
transformado na sociedade que por seu domínio implantou “uma espécie de governo
de ninguém”.

Outra característica da sociedade, segundo Arendt, é que ela “exclui a


possibilidade de ação” (política), que outrora era excluída do lar doméstico pela
imposição do que chama de “comportamento”. “Ao invés de ação, a sociedade espera

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de cada um dos seus membros certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e
variadas regras, todas elas tendentes a “normalizar” os seus membros, a fazê-los
comportarem-se, a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária.” (2016p49).

Ela diz que o surgimento da sociedade de massas, indica que os vários grupos
sociais foram absorvidos por uma sociedade única, tal como as unidades familiares;
“com o surgimento da sociedade de massas o domínio do social atingiu
finalmente, após séculos de desenvolvimento, o ponto em que abrange e
controla, igualmente e com igual força, todos os membros de uma determinada
comunidade” (2016p50)

Esse comportamento e conformismo estão nas bases da economia como


“ciência social por excelência” nessa época e também da Estatística como ciência dos
“comportamentos” (e que revelam as ações” apenas nos desvios-padrões) e também
do “behaviorismo” e a crescente intolerância com o não engajamento ao
“comportamento” uniforme.
É aqui que ela aborda a teoria dos primeiros liberais de uma natural harmonia de
interesses únicos na sociedade como um todo que ela chama de “ficção comunista” o
que incluiria a teoria da “mão invisível”. E ai ela compara com o pensamento de Marx.
Essa “vitória da sociedade” até sobre a “privatividade” e o íntimo dos modernos
“cidadãos” levou à emancipação e promoção do “Trabalho” à estatura de “coisa pública”
segundo Arendt, emancipado do domínio privado, em progressivo desenvolvimento
que antecedeu a revolução industrial. E esse desenvolvimento a um “crescimento
artificial do natural”, isto é o “aumento constantemente acelerado da produtividade do
trabalho” e contra o domínio social em constante crescimento. (p57)
Mas Arendt é pessimista em se esperar do trabalho a “excelência” (areté) que
era atribuída ao domínio político e publico na Atenas antiga. Se o trabalho agora
ocupa o domínio público fundada na excelência ou virtude de poucos, agora espera-se
e incentiva-se que é no trabalho que uma pessoa possa sobressair-se e distinguir-se
das demais.. Mas mesmo que isso foi possível em muitos poucos casos em que se
tornaram “excelentes” , “...nossa capacidade de ação e discurso perdeu muito de seu
antigo caráter banida para a esfera do íntimo e do privado. “Nem a educação, nem a
engenhosidade, nem o talento podem substituir os elementos constitutivos do domínio
público que fazem dele o local adequado para a excelência humana” (2016p60)

Após o lançamento de seu primeiro livro “Origens do Totalitarismo” onde também trata
das sociedades populares de massa que aderiram aos movimentos socialista soviético e
nazista, Hannah Arendt publica o livro “Sobre a Revolução”, em que, conforme o organizador
Schiel diz, ela analisa sobre o que ele e outros filósofos chamam de “revoluções arendtianas”
isto é, seriam movimentos “não violentos” (sem armas) que “desde meados dos anos 1970
tem levado ao poder governos democráticos em dezenas de nações de todos os continentes
(...) “ tanto contra como de oposição aos totalitarismos”. (2013,p11)
Nesse livro Arendt trata longamente sobre o que ficou conhecido como a “Questão
Social”, em que analisa o surgimento do “povo” na política, a condição e o conceito de pobreza
e miséria surgidas do princípio da "necessidade" e a diferença entre elas. Analisa também as
diferenças entre as concepções de Marx e Engels e as de John Adams e Federalistas e as de

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Rousseau e vários outros conceitos importantes como: os de “processo vital da sociedade”, a
relação entre “violência” e “necessidade” (por sobrevivência), de “opressão” e “fatores
econômicos”, “distinção/prestígio social” e “piedade/ compaixão” , classes, “consentimento”,
“vontade geral/única” etc.

Arendt se baseia no fundamento básico dos revolucionários para explicar o


surgimento do povo pobre como agente político no contexto da Revolução Francesa: o
conceito de “necessidade”(relativo à sobrevivência). Trata-se do argumento básico de muitos
autores e fontes da época, de que “os pobres, levados por suas necessidades físicas”, surgiram
como principais atores da Revolução Francesa aos milhares de desconhecidos, num turbilhão
de pessoas destruindo símbolos do mundo antigo.

O fenômeno do surgimento do “povo” (milhares de pessoas atuando conjuntamente em


busca de comida e moradia em primeiro lugar), causou uma imagem de terror no campo
elitizado dos vários tipos de pensadores sociais na época. E que acabaram por criar e
descrever o conceito de “multidão” que se tornou cada vez mais utilizada na bibliografia social
dos séculos seguintes. Segundo Arendt o conceito de “multidão”
“é a pluralidade empírica de uma nação, de um povo ou de uma sociedade”, que é visto
pelos estudiosos “como um único corpo sobrenatural, movido por uma “vontade geral”
irresistível e sobre humana” (2013 p 93)

É a partir desse conjunto de imagens e narrativas sobre algo visto como um fenômeno
inédito para a modernidade até então, é que Arendt determina o surgimento da chamada
“questão social”:
“A realidade que corresponde a esse conjunto moderno de imagens é aquilo que, a
partir do século 18 viemos a chamar de “questão social” e que seria mais simples e
melhor chamar de “existência da pobreza”. A pobreza é mais do que a privação, é um
estado de carência constante e miséria aguda”. (2013p93)

É essa pobreza e sua alta “necessidade” que levou a “multidão” a não só ajudar como
a tomar a Revolução Francesa para si mas que, na opinião de Arendt, também “acabou por
conduzi-la à ruína, pois era uma multidão de pobres”:
Quando apareceram no palco da política, a necessidade apareceu junto com eles e isso
mostrou claramente que tanto o Antigo Regime, como a República eram impotentes para
sanar tal “necessidade”. E Arendt ainda conta que Robespierre acabou invertendo a teoria do
“despotismo da liberdade” pela “mais sagrada de todas as leis, o bem estar do povo” e mudando
de rumo:
Ela cita que o próprio Robespierre disse que “foi a conspiração muito mais poderosa
da “necessidade e da pobreza que os distraiu por tempo suficiente para perder o momento
histórico (de instaurar a liberdade)”. Arendt disse que ele mesmo reconheceu que foi essa
carência premente do povo que desencadeou o período do “terror” e destruiu a revolução. E a
partir disso e da morte dele, a Revolução esqueceu a luta pela “liberdade” - isto é, o processo
aberto ao público de discussão das leis, justiça e organização e metas da sociedade por todos
os setores e camadas sociais dela mesma, sem distinções - e passou a lutar pelo conceito de
“felicidade do povo”.
A esse processo transformativo Arendt diz que foi a transformação dos “Direitos dos
Homem” pela liberdade, nos “Direitos dos Sans- Cullottes” como fundamento básico tanto da
revolução francesa como de todas que se seguiram depois. E isso ocorreu porque, segundo

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ela “o maior de seus teóricos , Karl Marx” estava “mais interessado em História do que em
política”. (2013 p94)
Direitos dos Sans Cullotes teria o mesmo significado que direitos dos “trabalhadores” e
dos “pobres”? Arendt quer significar com isso que a renúncia da motivação inicial da
Revolução Francesa - a luta pela “liberdade” política individual, os direitos iguais de cada
Humano - foi sobrepujada e substituída pelas “imposições da necessidade”. E que foi melhor
incorporada por Karl Marx em sua teoria do “materialismo histórico dialético” E isso ocorreu
porque, segundo ela, a revolução Americana
“não resultou em nada nem remotamente comparável, em termos qualitativos, no nível
conceitual e teórico, as revoluções caíram definitivamente sob a influência da Revolução
Francesa em geral e sob o predomínio da questão social em particular”. (2013 p95)

A filósofa diz que as conceituações e formulações de Marx tiveram um enorme


impacto sobre “o curso” da revolução. Suponho que ela se refira à ideologia e militância por
revoluções . Ela parte do princípio que o “escolasticismo marxista” no século 20 foi prejudicial
às próprias descobertas e teorias de Marx.
Ela diz que o jovem Marx concluiu que a Revolução Francesa falhou em instaurar a
liberdade porque não resolveu a “questão social”. E que por isso, concluiu que liberdade e
pobreza são incompatíveis
“Sua contribuição mais explosiva e, de fato. mais original à causa da revolução foi
interpretar as necessidades imperiosas da pobreza das massas em termos políticos,
como uma revolta não por pão ou por bens, mas também pela liberdade”. (2013p95)

E por causa disso Marx concluiu e passou a defender que a pobreza poderia ser uma
força política primordial: “A transformação da questão social em força política, efetuada por Marx,
está contida no termo "exploração”, isto é, na ideia de que a pobreza é resultado da exploração de
uma "classe dominante" que possui os meios da violência”. (p96)

Para Arendt essa hipótese tem valor bastante reduzido para a História (como “ciência”)
porque segundo ela, Marx se inspirava na economia da escravidão em que uma "classe"
(aspas dela) de senhores efetivamente domina um substrato de trabalhadores. Mas para
Arendt essa concepção de "domínio de classe” só é válida “apenas para os estágios iniciais do
capitalismo, quando a expropriação à força resultou numa pobreza em escala sem precedentes”
(p96)
E foi em nome da revolução que Marx criou a “economia política” “uma economia
baseada no poder político" e portanto passível de ser subvertido por uma organização
revolucionária e somente por esse conteúdo revolucionário (ao invés de científico) é que essa
concepção sobreviveu até hoje. Para Arendt a teoria dele foi convincente aos pobres porque
defendia que “a pobreza é um fenômeno político não natural, resultado da violência e da
violação e não da escassez”.
Como disse Seyla Benhabib, um século antes dela, Hegel havia descrito esse processo
como o desenvolvimento, no meio da vida ética, de um “sistema de necessidades” (System der
Bedürfnisse), de um domínio de atividade econômica governado pela troca de mercadorias e
pela busca pelo interesse-próprio econômico. Para Hegel, a expansão dessa esfera significou o
desaparecimento do “universal”, do interesse comum pela associação política e pela res publica
do coração e das mentes dos homens. “Arendt vê nesse processo o obscurecimento da política
pelo “social” e a transformação do espaço público da política em um pseudoespaço de interação
em que indivíduos não mais “agem”, mas “apenas se comportam” como produtores econômicos,
consumidores e moradores de cidades urbanas” (Benhabib,p190)

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Contradições contra Marx
A chave para compreender a crítica à Marx talvez esteja na concepção dela de que
“por definição” (de quem?) a condição de miséria nunca poderia gerar um povo mentalmente
livre, por ser a condição em que o indivíduo está preso à necessidade. E para Marx as
necessidades básicas é que deveriam gerar revoluções em vez de conduzi-las à ruína. E
portanto era preciso converter condições econômicas miseráveis em fatores políticos e explicá-
las em termos políticos. E como ela diz, Marx acreditava (com Hegel?) de que a liberdade
surgiria diretamente da necessidade.

Não dá pra entender muito bem porque Arendt considera como “a doutrina politicamente
mais perniciosa dos tempos modernos”, a concepção de que a vida é o bem supremo (e não
é?) e que “o processo vital da sociedade é a própria essência do esforço humano”. (98)
É dificil entender que isso tem a ver com o fato de que, segundo ela, o papel da “revolução”
“não era mais libertar os homens da opressão de seus semelhantes, e muito menos
instaurar a liberdade, e sim libertar o processo vital da sociedade dos grilhões da
escassez, para que ela se convertesse num caudal de abundância. Agora, o objetivo da
revolução não era mais a liberdade e sim a abundância.” (2013:98)

Também dificil entender porque ela diz que a revolta da Comuna de Paris em 1871 contrariava
todas teorias e previsões de Marx. Mas contrariava em que?
A principal crítica de Hannah à Marx é de que, devido à “ambição” do autor em tornar sua
concepção teórica (materialismo histórico) como “ciência”, que foi o que o levou a “inverter
suas próprias categorias” cujo desenvolvimento levou a uma “rendição efetiva da liberdade à
necessidade”. Conforme Hannah:
“Uma vez estabelecida uma relação concretamente existente entre violência e
necessidade, não havia razão para não pensar a violência em termos de necessidade e
entender a opressão como resultado de fatores econômicos, muito embora.
originalmente, essa relação tivesse sido descoberta ao inverso, isto é. desmascarando a
necessidade como violência perpetrada pelos homens.” (2013:98/99)

Para Adriano Correia, a “sociedade” constituiria para Arendt um âmbito híbrido “no qual
os interesses privados assumem importância pública”. Assim a esfera pública seria espúria
justamente por se constituir na medida em que avança sobre o privado e o público, turvando
suas fronteiras até enfim alterar seu significado “ao ponto de torná-los irreconhecíveis”. “Trata-se
da ascensão do processo vital, traduzido no trabalho e no consumo, da obscuridade dos
processos metabólicos acolhidos no lar para o espaço de visibilidade da esfera pública: “a
sociedade constitui a organização pública do “processo vital”
Ele cita que em seu primeiro livro, “As origens do totalitarismo”, Arendt reconhece na fase
do imperialismo o principal motor que transformou o “processo vital” na ocupação central do
Estado-nação, multiplicando ilimitadamente a acumulação de riqueza e quando identificou no
imperialismo “o primeiro estágio do domínio político da burguesia” e cita um trecho importante:
“os interesses privados, que por sua própria natureza, são temporários, limitados pelo
período natural de vida do homem, agora podem fugir para a esfera dos assuntos
públicos e tomar-lhe emprestado aquela infinita duração de tempo necessária para a
acumulação contínua. Isto parece criar uma sociedade muito semelhante àquela das
formigas e abelhas, onde ‘o bem Comum não difere do Privado; e sendo por natureza
inclinadas para o benefício privado, elas procuram consequentemente o benefício
comum’.Não obstante, uma vez que os homens não são nem formigas nem abelhas,

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tudo isto é uma ilusão. A vida pública assume o aspecto enganoso de uma soma de
interesses privados, como se estes interesses pudessem criar uma nova qualidade
mediante a mera adição” (2012p 168)

Assim, como ele diz, a política converte-se em uma mera função da sociedade
(reprodução econômica). A liberdade da sociedade “requer e justifica a limitação da autoridade
política. A liberdade situa-se no domínio do social, e a força e a violência tornam-se monopólio
do governo” - diz Arendt.
“O resultado é a conversão da política em mero governo e enfim do governo em mera
administração, cuja forma acabada é o governo de ninguém ou burocracia, que se
mantém sempre na iminência de ser uma das “mais cruéis e tirânicas versões” do
governo e que Arendt julgava ser em sua época “uma realidade muito maior que a
classe” diz Correia (Correia, p 112)

Ele conta que em “Sobre a revolução” quando analisa a relação entre política e
pobreza, Arendt afirma que “era tão impossível desviar os olhos da miséria e desgraça da
grande maioria da humanidade no século XVIII em Paris ou no século XIX em Londres, onde
Marx e Engels iriam refletir sobre as lições da Revolução Francesa, quanto hoje em alguns
países europeus, em muitos latino-americanos e em quase todos os asiáticos e africanos”.
Para Correia esse diagnóstico é ainda muito atual. “O problema é como conciliá-lo com a tese
arendtiana de que foi a irrupção da pobreza na esfera pública, “a necessidade, a carência
premente do povo, que desencadeou o Terror e condenou a revolução à ruína”.(Correia, p.113)
Arendt diz que a questão social traduzida na existência da pobreza e da miséria trouxe
as obscuras necessidades corporais antes abrigadas no lar para a esfera pública. Mas mesmo
assim, como diz Correia, ela não reconhece na pobreza uma questão política, nem parece
julgar que a questão pré-política elementar consistente na “libertação”, como condição
necessária, mas não suficiente, para a liberdade política, possa ter revelada sua face política,
que poderia então ser legitimamente trazida ao domínio público.

Adriano Correia diz que a posição de Arendt quanto àquilo que chama de “processo vital” ser
também uma questão de poder e política “é de uma dificuldade desconcertante e ao mesmo
tempo surpreendente, se tivermos em conta suas análises sobre o imperialismo e a
emancipação política da burguesia” (p115)

Cita autores como Sheldon Wolin e Maurizio Passerin D’Entrèves que reclamam exatamente
essa mesma incapacidade dela em compreender essa noção:
“(Arendt foi) incapaz de reconhecer que uma economia capitalista moderna constitui uma
estrutura de poder, determinando a alocação de recursos e a distribuição dos ônus e
benefícios. Ao se apoiar na analogia enganosa com a família, Arendt sustentou que
todas as questões relativas à economia eram pré-políticas e,portanto, ignorou a questão
crucial do poder econômico e da exploração” (D´Entreves apud Correia, p 115)
Ele cita a própria Arendt dizendo que mesmo se os pobres fossem “autorizados” a ingressar na
esfera pública, não poderiam ser resolvidos por meios políticos, pois “eram questões
administrativas, a ser entregues às mãos de especialistas, e não questões passíveis de
solucionar com o duplo processo de decisão e de persuasão”
E diz que sua insistência na solução das questões sociais por expedientes técnicos é
reiterada e frequentemente a enredou em embaraços, “como quando sustenta, no caso
específico da escravidão, que foi “a tecnologia e não o surgimento das ideias políticas modernas
em si, que veio a refutar a velha e terrível verdade de que apenas a violência e o domínio sobre

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os outros podiam trazer liberdade a alguns homens” e outros casos quando elogia Lenin por
defender a “eletrificação + sovietes” como fórmula para o desenvolvimento da URSS.
Mas ele mostra também que por várias vezes Arendt também defendeu a necessidade
de uma resolução política para a pobreza, como o caso da “mistoforia” de Péricles. Embora de
forma discreta.

Arendt e sua filosofia agonística


Hanna Arendt nasceu em 14 de outubro de 1906, em Linden mas viveu mais tempo em
Könisberg, cidade de Kant. Filha de Martha e Paul Arendt que era engenheiro, era de classe
média e teve uma excelente educação em literatura, grego clássico e filosofia moderna e antiga,
e alta cultura. Seus pais eram judeus alemães assimilados e agnósticos, liberais e como ela
contou em livros e entrevistas seus pais nunca disseram que eram judeus. Ela só ficou
sabendo disso na adolescência por seus avós e por experimentar comentários antissemitas.
Seu pai faleceu quando ela tinha 7 anos. Estudou Filosofia em Berlim antes de entrar na
Universidade de Mahburg em 1924 . Na faculdade, o nome mais famoso era do jovem
professor Martin Heidegger, que trouxe a fenomenologia de Edmund Husserl de Freiburg. Para
fazer pos graduação procurou o professor mas acabou tendo um caso com ele. Heidegger teve
grande influência nos estudos e pensamento de Arendt. Mas ao resolver acabar a relação
mudou-se para a Universidade de Heidelberg em 1926 onde realizou tese sobre o conceito de
amor em Santo Agostinho, orientada por Karl Jaspers e defendida em 1929.
Mas em 1930, com a ascensão de Hitler e do nazismo, o antisemitismo atingiu o auge
e ela não conseguiu mais continuar sua carreira, e se tornou militante sionista até ser presa por
8 dias em 1933 , depois resolveu fugir para Paris onde juntou-se novamente aos sionistas e
conheceu seu segundo marido Heinrich Blücher e o filósofo Walter Benjamin. Mas quando os
nazistas invadiram a França em 1940 ela foi levada para um campo de concentração de onde
conseguiu fugir junto com outros alemães para Lisboa onde passou um tempo desesperador e
de lá foi para os Estados Unidos onde construiu sua carreira, publicou vários livros e viveu até
seu falecimento em 1975.
Hannah ficou conhecida mundialmente tanto por sua brilhante obra crítica no campo da
filosofia política, como pelas grandes polêmicas que causou devido à suas posições
diferenciadas e contraditórias. Primeiro por ter tido a relação com Heidegger que se filiou ao
Partido Nazista em 1933 quando Hitler chegou ao poder. Mas após o rompimento de sua
relação “secreta” com ele, Arendt continuou tendo contato literário com ele após o fim da
guerra, inclusive trabalhando por sua reabilitação no meio filosófico , o que lhe gerou críticas
por sionistas dos Estados Unidos.
A segunda e maior polêmica, entretanto foi com os sionistas o grupo político do qual
participou inicialmente e que defendia a criação do Estado de Israel , a maioria na Palestina.
Arendt trabalhou com os sionistas ainda na Alemanha antes da ascensão de Hitler e também
em Paris de 1933 a 1940 ano de sua fuga. Já em 1933 Arendt tornou-se oposição aos amigos
judeus que decidiram apoiar o regime nazista. Hannah publicava artigos nos jornais sionistas,
como o Aufbau, criticando as posições dos sionistas. Primeiro defendeu por vários anos (de
1941-44) em prol da criação de um Exército Judeu até que os sionistas decidiram não criá-lo. Aí
ja se considerava “oposição leal”
Mas a polêmica continuou quando, ao final da 2ª guerra, os sionistas decidiram lutar e
apoiar a criação de um único Estado Judeu na Palestina, excluindo os palestinos árabes de
Jerusalem. O que perturbava Arendt nas declarações dos sionistas era o fato de ignorarem cada
vez mais a questão árabe – o fato de que a maioria das pessoas que vivia na Palestina era de
árabes e não de judeus.

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Richard Bernstein conta que a raiva dela contra os sionistas chegou ao auge quando
a Organização Sionista Mundial decidiu em outubro de 1944 uma resolução em favor de um
Estado apenas Judeu unico em toda a Palestina. Bernstein diz que seu artigo “Sionismo
reconsiderado”, condenando a resolução, foi ainda mais veemente do que qualquer coisa que
ela havia escrito anteriormente sobre questões judaicas ou sionistas. “Ela empregou todas as
suas habilidades retóricas – ironia, sarcasmo, desprezo e denúncia contundente. Sua cólera foi
provocada por sua raiva e decepção com os ideólogos sionistas mais extremos. A linguagem de
“Sionismo Reconsiderado” era tão inflamada que o jornal intelectual judeu Commentary se
recusou a publicá-lo. Por fim, foi publicado no Menorah Journal” . (Bernstein pg 3)
Ele diz que Arendt ficou contrariada não apenas com essa “virada dos sionistas para o
revisionismo extremo”, mas também com as crescentes pressões em direção à conformidade
ideológica que ela tanto condenava e cita o trecho do artigo “Para salvar a Pátria Judaica”
contra os males que a unanimidade em política podem causar.
Por fim em 1961 o comandante nazista Adolf Eichmann é preso na Argentina e levado
para julgamento em Jerusalém. E Arendt foi convidada pelo jornal “The New Yorker” a ir ao
julgamento como correspondente. Após a publicação os textos renderam o livro “Eichmann
em Jerusalém” escrito a partir da cobertura do julgamento. No livro ela conta que percebeu
algo diferente do que a grande maioria pensava: Que Eichmann não era nenhum monstro cruel
e antissemita convicto. “Era tão medíocre que seria incapaz de ser um monstro. Eichmann era
apenas uma pessoa buscando ascensão por meio de um sistema totalitário e teria entrado para
a Gestapo para ganhar dinheiro”. Arendt ressalta que ele era tão medíocre que nem conseguiu
subir para uma patente alta na hierarquia militar.
A obra causou polêmica, sobretudo entre a comunidade judaica, que acusou Arendt de
ter minimizado o mal cometido por Eichmann e por nazistas como ele. Também causou
polêmica as denúncias que Arendt fez no livro sobre lideranças judaicas que teriam entregado
alguns judeus para as forças armadas a fim de salvar outros judeus.
Outra grande polêmica e contradição de sua vida se dá com a questão da mulher ou
feminina ao longo de sua vida acadêmica. Já em 1932 escreveu uma crítica do livro Das
Frauenproblem in der Gegenwart (O problema da mulher na atualidade) de Alice Rühle-Gerstel
que fala sobre a emancipação da mulher na vida pública, mas também discute suas limitações
Nessa crítica, Arendt constata o "menosprezo fático" sobre as mulheres na sociedade de sua
época e critica os deveres que não são compatíveis com sua independência. Arendt dizia que
contemplava o feminismo à distância. Dizia que as frentes políticas são "frentes de homens" e
em algumas vezes considerava "questionáveis" os movimentos feministas, assim como os
movimentos juvenis, porque discordava da tendência de ambos os movimentos em criar partidos
políticos. Foi em 1964 na entrevista a Günter Grauss, que Arendt dizia que era antiquada e que
mulheres não eram feitas para “cargos de mando” que isso não pegava bem.
Benhabib diz que a negação persistente de Hannah Arendt da “questão das mulheres” e
sua inabilidade de relacionar a exclusão das mulheres da política a essa concepção do espaço
público, agonística e dominada por homens, é espantosa”. Segundo ela, a “ausência” das
mulheres como atores políticos coletivos, na teoria de Arendt ( pois só indivíduos como Rahel
Varnhagen ou Rosa Luxemburgo, etc estão presentes) é uma questão difícil. Mas começar a
pensar sobre isso significava para Arendt, primeiramente, desafiar a separação entre privado--
público em seu pensamento, na medida em que ela corresponde à tradicional separação sexista
(homens = vida pública; mulheres = esfera privada). ( Benhabib analisou essa aversão sexista
da autora em seu livro The reluctant modernism of Hannah Arendt. Além dela várias outras
autoras criticaram o sexismo de Arendt como Hanna Pitkin, Anabella di Pego e outras.
Por fim, parece que a última de suas controvérsias foi com o movimento negro dos
Estados Unidos. Após o Senado estadunidense decidir pelo fim da segregação nas escolas

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entre pretos e brancos (black and white), a foto de uma menina afroamericana sendo
perseguida e xingada em publico ao sair da escola na cidade de Little Rock, publicada em um
jornal causou muita polêmica e debate público no país. Não se sabe porque Arendt decidiu
entrar no debate e publicou o texto “Reflexões sobre Little Rock” onde defende que a questão
“racial” é uma questão social e não política e logo no início do texto considerou errado a
mãe da criança enviá-la para uma escola de brancos escreveu : “Ao ver a foto a minha
primeira pergunta foi: o que eu faria se fosse uma mãe “black” ? Resposta: em nenhuma
circunstância exporia meu filho a a condições que dariam a impressão de querer forçar sua
entrada num grupo onde não era desejado” (2008p261) E explicou que a situação de “não ser
desejado” era menos violenta que a de ser perseguido como estava na foto. Ao longo do texto
ela explica porque considera equivocado tanto a segregação como as mães que simplesmente
agiram dentro da lei.
Arendt foi extremamente criticada por diversas pessoas, inclusive sendo chamada de
“racista” e até “supremacista” mais atualmente. Mas depois que viu o artigo do escritor Ralph
Ellison “Who Speaks for the Negro?”, de 1965, Arendt escreveu-lhe uma carta reconhecendo
que se equivocou ao ter escrito o que escreveu e se desculpando.

Para Seyla Benhabib a chave para compreensão dessa característica “agonística”


do trabalho teórico e político de Hannah Arendt está em sua “metodologia singular” que
concebe o pensamento político como “contar histórias”. Sob essa perspectiva, sua “história” da
transformação do espaço público é um “exercício de pensamento”
“A vocação do teórico como “contador de histórias” é o fio unificador das análises políticas e
filosóficas de Arendt desde as origens do totalitarismo, passando pelas suas reflexões sobre as
revoluções americana e francesa até a sua teoria do espaço público” - diz ela.
Nesse sentido, o relato de Arendt sobre a “ascensão do social” e o declínio do espaço
público sob as condições da modernidade, podem ser vistas não como nostalgia do mundo
clássico, mas como uma tentativa de pensar, através da história humana, “sedimentada em
camadas de linguagem”. Segundo ela, Arendt propõe que devemos aprender a identificar esses
momentos de ruptura, deslocamento e desarticulação na história porque essa perspectiva
enfatiza a continuidade entre o passado original e a condição presente, e busca descobrir na
origem a essência perdida e escondida do fenômeno.(p193-194)
“Há realmente duas tendências no pensamento de Hannah Arendt, uma que
corresponde ao método da historiografia fragmentária, e inspirado em Walter Benjamin, e
outra inspirada pela fenomenologia de Husserl e Heidegger, de acordo com a qual toda
memória é uma recordação mimética das origens perdidas do fenômeno, como se este
estivesse contido em alguma experiência humana original” (2020 p194)

Para Benhabib nessa perspectiva “agonística” de Arendt, o domínio público


representa aquele espaço de aparências em que a grandeza moral e política, o heroísmo e
o prestígio, são revelados, exibidos e compartilhados com os outros. Esse é um espaço
competitivo, em que se compete por reconhecimento, prestígio e aclamação; em última
análise, é o espaço em que se busca a garantia contra a futilidade e a passagem de todas
as coisas humanas” como ela mesmo escreve sobre a “polis” grega na Condição Humana.
E é justamente essa característica ou perspectiva agonística que a nosso ver
melhor representa a vida de Hanna em seus aspectos principais: profissional, pessoal e
político. Suas concepções e hipóteses tidas como antimodernas ou conservadoras em
relação à movimentos de mulheres e sociais - embora bastante avançados em vários outros
casos, como na questão judaica mostra uma estranha contradição ao defender a solução
política - com pluralidade é claro - para os judeus e seu Estado e por outro, não aceitar a

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solução política no caso de movimentos de mulheres, negros e outros que também foi
contra, por considerá-los parte da “sociedade” ou da questão social - e não política. Talvez
tal contradição poderia ser explicada por sua formação clássica na infância na cidade de
Kant, pelos próprios pais e depois ainda antes da Academia, e posteriormente na
Universidade com professores neo-kantianos em sua defesa do estudo dos fenômenos, da
ontologia, das regras universais e dos cânones da filosofia clássica.

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BIBLIOGRAFIA:

● ARENDT, Hanna “A Condição Humana”, Forense, Rio, 2016


● ______________ “Origens do Totalitarismo,S. Paulo, Cia das Letras, 2012
● ______________ “A Questão Social” in Sobre a Revolução, S. Paulo, Cia das letras,
2013
● ______________ “Escritos Judaicos” , S. Paulo, Manolé, 2007
● ______________ “Ação e a busca da Felicidade”, B. Horizonte, editora Bazar do
Tempo , 2018
● ______________ “Reflexões sobre Little Rock” in Responsabilidade e Julgamento. São
Paulo , Cia das Letras, 2008 pp 261-281
● BENHABIB, Seyla, “Modelos de espaço público: Hannah Arendt, a tradição
● liberal e Jürgen Habermas” in “Situando o Self” Brasilia, UnB 2020 pg 187-210
● BERNSTEIN, R. “Oposição leal: a crítica de Arendt ao Sionismo” in Porque ler Hannah
Arendt hoje, Tradução: Nádia Junqueira Ribeiro e Adriano Correia

● BORTOLO BRITO, Renata; “Hannah Arendt (1906-1975) in blog “Mulheres na Filosofia”
in Hannah Arendt - (unicamp.br)
● CORREIA, Adriano ; Política e Pobreza: com Arendt, contra Arendt Cadernos de Ética e
Filosofia Política | Número 28

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