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DO CHUCRUTE AO PEIXE FRITO: A REPRESENTAÇÃO DA POLÍTICA NO

ROMANCE “BELÉM DO GRÃO-PARÁ”, DE DALCÍDIO JURANDIR, A PARTIR


DE HANNAH ARENDT

Thainá Oliveira Chemelo

RESUMO

Para sustentar nossa visão de política que, mais tarde, será analisada como representação no
romance de Dalcídio Jurandir, buscaremos as teorias expostas e amplamente discutidas por
Hannah Arendt, em sua obra denominada “O que é política?” (2006). O que pretendemos
analisar no conceito de política de Hannah Arendt é, principalmente, que a ação política nunca
se realiza no isolamento, sempre é uma ação em conjunto, configurando um acordo entre
iguais. Dessa forma, por mais que o início da ação política seja obra de um único indivíduo, há
sempre a necessidade de “outros” para que a ação seja concluída. Dalcídio Jurandir, buscando
a sua liberdade e a liberdade do seu “povo miúdo”, faz da sua literatura um ato político.
Dalcídio Jurandir não tomava partido apenas nos embates políticos diretos, na época de
membro do Partido Comunista. Também em seus romances isso era feito. Ele mesmo
declarou, em uma entrevista à Eneida, que sua produção literária tomava partido e isso era
motivo de orgulho para ele. Se por um lado Dalcídio seguia uma tradição de politização que
outros escritores já haviam enveredado, por outro suas referências de engajamento são
direcionadas para uma realidade bem particular: a comunidade amazônica vivida a partir do
Marajó. O escritor acreditava ter um compromisso especial com as pessoas que transitavam
por seus romances. No presente artigo, buscamos analisar a representação da política no
romance. Analisaremos a relação conflituosa – mas repleta de inconstâncias e dualidades –
entre a suposta aristocracia paraense de Antônio Lemos e os pretos cabanos que se
organizavam na periferia se desenvolveu no imaginário dos personagens, principalmente a
partir da matriarca da família Alcântara, D.Inácia. Também será foco de nossa análise a relação
entre D.Inácia, Libânia e Alfredo. Os três personagens convivem na Gentil Bittencourt, 160,
porém algumas atitudes de D.Inácia para com Libânia causam certa incredulidade em Alfredo.

PALAVRAS CHAVES

Dalcídio Jurandir, política, romance, Hannah Arendt, literatura.

ABSTRACT

To support our vision of politics, which will later be analyzed as representation in the novel by
Dalcídio Jurandir, we will look for the theories exposed and widely discussed by Hannah Arendt,
in her work called “What is politics?” (2006). What we intend to analyze in Hannah Arendt's
concept of politics is, mainly, that political action never takes place in isolation, it is always a
joint action, configuring an agreement between equals. Thus, however much the initiation of
political action is the work of a single individual, there is always a need for "others" for the action
to be completed. Dalcídio Jurandir, seeking his freedom and the freedom of his “small people”,
makes his literature a political act. Dalcídio Jurandir did not take sides only in direct political
clashes, at the time a member of the Communist Party. This was also done in his novels. He
himself declared, in an interview with Eneida, that his literary production took sides and that he
was proud of. If, on the one hand, Dalcídio followed a tradition of politicization that other writers
had already embarked on, on the other hand, his engagement references are directed to a very
particular reality: the Amazon community lived from Marajó. The writer believed that he had a
special commitment to the people who passed through his novels. In this article, we seek to
analyze the representation of politics in the novel. We will analyze the conflictive relationship -
but full of inconsistencies and dualities - between the supposed paraense aristocracy of Antônio
Lemos and the black huts that were organized in the periphery developed in the imaginary of
the characters, mainly from the matriarch of the Alcântara family, D.Inácia. The relationship
between D.Inácia, Libânia and Alfredo will also be the focus of our analysis. The three
characters live together in Gentil Bittencourt, 160, but some attitudes of D. Inácia towards
Libânia cause a certain disbelief in Alfredo.

KEYWORDS

Dalcídio Jurandir, politics, romance, Hannah Arendt, literary.

POLÍTICA E LIBERDADE, EM HANNAH ARENDT

Jamais existiu um governo baseado exclusivamente nos meios da


violência.

(Hannah Arendt)

Para sustentar nossa visão de política que, mais tarde, será analisada
como representação no romance de Dalcídio Jurandir, buscaremos as teorias
expostas e amplamente discutidas por Hannah Arendt, em sua obra
denominada “O que é política?” (2006). Arendt era judia alemã, se mudou para
os Estados Unidos devido à perseguição política aos judeus no período do
Nazismo. A sua vivência, de maneira óbvia, se fez presente na sua obra,
principalmente quando a autora escreve sobre os movimentos totalitários e
absolutos e do quanto os mesmos impediram que a política fosse feita da
maneira que Arendt acreditava que deveria ser feita. Ocorre que a perplexidade
diante das catástrofes do século XX e XXI, por exemplo, a recente tensão entre
Estados Unidos e Irã e a - ainda que remota - possibilidade de uma nova
guerra mundial, bem como a constatação de que a destruição total, a
eliminação da Humanidade e de toda vida orgânica da face da Terra é uma
possibilidade real, fez não só com que se questionasse o que representa uma
decisão “política” em uma guerra de extermínio, mas principalmente reforçou
uma já tradicional aversão pela política, o anseio por uma ilusória extinção da
mesma. Dessa forma, pode-se dizer, seguindo a linha de raciocínio de Arendt,
que o fato da “política” ter levado à desumanização completa dos indivíduos
nos campos de concentração e de ter como resultado possível a extinção do
fenômeno humano está por detrás dos preconceitos contra a mesma nas
sociedades atuais, pois na medida em que a política é identificada com
violência, com domínio desconhecedor de limites de uns sobre os outros
norteado por interesses egoístas e mesquinhos, na medida em que, segundo
Arendt (2006), “todo poder corrompe e que o poder absoluto corrompe ainda
mais”, a passividade – mesmo aquela que vivenciamos nas eleições de 2018 e
que ainda a sentimos nas conversas corriqueiras do dia a dia -, a apatia dos
indivíduos, a renúncia ao exercício da cidadania – o aumento dos votos em
branco e a ausência no dia das eleições – têm sido cultivadas.

Hannah Arendt defende a ideia de que a política não é domínio, de que


não se baseia somente na distinção entre governantes e governados e nem é
mera violência, mas ação em comum acordo, ação em conjunto, sendo reflexo
da condição plural do homem e fim em si mesma. Porém, o falar sobre política
ou o mero envolvimento com a mesma causa aversão em muitos participantes
do jogo político na sociedade e até mesmo uma espécie de preconceito. Esses
preconceitos não são novos e, em certos aspectos, justificáveis: há toda uma
tradição de identificação da política com domínio, com violência, cuja origem
remonta à desvinculação entre política e liberdade realizada pelos filósofos que
primeiro trataram do tema, em clara oposição à experiência da pólis grega.

O conceito de liberdade, atrelado à política, é fundamental para entender


o pensamento de Arendt. A autora desenvolve o conceito de liberdade também
a partir do conceito de vontade, remetendo-se assim ao pensamento cristão de
Paulo e Agostinho. Segundo Arendt (2001), essa aproximação de liberdade e
vontade pode ser elencada como “uma das causas pelas quais ainda hoje
equacionamos quase automaticamente poder com opressão ou, no mínimo,
com governo sobre outros” (ARENDT, 2001, p.210). No entanto, o que nos
interessa nessa relação entre política e liberdade é justamente a perda da
concepção política de liberdade, do entendimento de que a liberdade não pode
ser obtida na solidão e que não se resume ao “quero”, mas que também
necessita do “posso”, em outros termos, podemos dizer que liberdade não
significa fazer o que se deseja, não significa sabedoria, pois só se é livre
perante outros que também o sejam. Liberdade entre iguais foi justamente no
que se baseou a pólis grega, pois diferentemente do âmbito doméstico onde
reinava o despotismo e a desigualdade, do espaço privado destinado á
satisfação das necessidades da vida, onde era justificada a violência e natural
o domínio de uns sobre os outros, o domínio patriarcal do marido sobre a
esposa, do pai sobre a filha, filhos e escravos, a espaço comum da pólis grega
surge como um espaço onde a distinção entre governantes e governados não
fazia sentido, onde todos aqueles que igualmente obtiveram libertação das
necessidades vitais, ao participarem ativamente da vida política, podiam tornar-
se livres e construir um mundo comum através de feitos e palavras. Desse
modo, percebe-se que a liberdade não era obtida no relacionamento do eu
consigo mesmo, mas sim na interação com seus semelhantes.

Dessa forma, podemos determinar que Arendt considera a liberdade e a


ação política como sinônimas, ou seja, o homem só tem a possibilidade de ser
livre se ele não se enclausura em si mesmo, mas ao contrário, participa
ativamente da vida política, utilizando-se unicamente da capacidade de pensar
ou querer. Esse indivíduo, portanto, passa a ser livre. A liberdade existe onde a
condição plural do homem não seja desconsiderada, sendo nada mais que
ação, em outras palavras, o indivíduo só é livre enquanto está agindo
politicamente, nem antes, nem depois. É importante ressaltar, todavia, que a
ação política só pode ser entendida como liberdade se a mesma não sofre
qualquer forma de funcionalização, de instrumentalização, como a presente
nas atividades do labor e do trabalho, cujo valor não estaria, ao contrário da
ação política, em si mesmo, mas sim em algum resultado, um fim a ser
alcançado quando termina o processo produtivo. Nas palavras de Arendt, a
pólis grega foi “uma espécie de anfiteatro onde a liberdade podia aparecer”
(ARENDT, 2001, p.201).

O que pretendemos analisar no conceito de política de Hannah Arendt


é, principalmente, que a ação política nunca se realiza no isolamento, sempre é
uma ação em conjunto, configurando um acordo entre iguais. Dessa forma, por
mais que o início da ação política seja obra de um único indivíduo, há sempre a
necessidade de “outros” para que a ação seja concluída. Assim, a política,
apesar de ser iniciada pela espontaneidade humana, surge como relação, ela
existe entre homens, em outras palavras, podemos dizer que não é da
essência do homem, considerado isoladamente, ser um “animal político”, como
pensava Aristóteles, mas por viver num mundo plural, a presença, o olhar do
“outro”, é uma marca bastante significativa do fenômeno humano, só podendo
ser “apagada” em momentos de “delírio”. Percebemos, portanto, no
pensamento de Arendt, a importância da alteridade para que a ação política
seja concluída.

Por vivermos em um mundo plural, não podemos prever plenamente as


consequências de nossas ações, e isto nada tem a ver com problemas de
cognição, mas sim com certo grau de imprevisibilidade de toda ação, haja vista
que, por estarmos inseridos em uma rede de relações, onde toda ação gera
reações, não podemos saber integralmente qual o resultado do processo
irreversível que desencadeamos no mundo. Nessa perspectiva, podemos dizer
que a constituição de nós mesmos, da nossa “bagagem”, do sentido de nossa
existência, bem como a constituição da comunidade política em que vivemos é
uma atividade plural, que é incapaz de ser realizada solitariamente, pois aquela
rede de relações que está por detrás dos negócios humanos não permite que
sejamos totalmente soberanos e onipotentes afinal, nós precisamos do outro
para nos constituir como sujeito dotado de liberdade.

Dessa forma, podemos dizer que ninguém governa sozinho, sendo que
até mesmo aquele que se utiliza da violência, que governa através de
implementos, precisa de certa organização, do apoio dos outros para a
implementação de seu objetivo ou nas palavras de Arendt, diríamos que
mesmo “o mandante totalitário, cujo maior instrumento de domínio é a tortura,
precisa de uma base de poder – a política secreta e sua rede de informantes”
(ARENDT, 2004, p.128), o que significa dizer que a violência, apesar de ser
uma variável que não pode ser ignorada, não é um operador universal, não
sendo suficiente para constituir uma comunidade política, haja vista que onde a
violência prolifera o poder se esvai. Ressalta-se, porém, que dificilmente
existirá a forma extrema do poder – Todos contra Um -, ou a forma extrema da
violência – Um contra Todos -, o que ocorre é um movimento pendular de
aproximação para cada uma das extremidades.

Outra perspectiva importante para se analisar em Arendt é a relação que


a autora estabelece entre família e política. A política, principalmente, trata da
convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para
certas coisas em comum, essenciais no caos absoluto, ou a partir do caos
absoluto das diferenças. Enquanto os homens organizam corpos políticos
sobre a família, em cujo quadro familiar se entendem, o parentesco significa,
em diversos graus, por um lado, aquilo que pode ligar os mais diferentes e por
outro aquilo pelo qual formas individuais semelhantes podem separar-se de
novo uma das outras e umas contra as outras.

Nessa forma de organização, a diversidade original tanto é extinta de


maneira efetiva como também destruída a igualdade essencial de todos os
homens. A ruína da política em ambos os lados surge do desenvolvimento de
corpos políticos a partir da família. Quando se vê na família mais do que a
participação, ou seja, a participação ativa na pluralidade, começa-se a bancar
Deus, ou seja, a agir como se pudesse sair, de modo natural, do princípio da
diversidade. Ao invés de se gerar um homem, tenta-se criar o homem na
imagem de si mesmo. Porém, sob o ponto de vista prático-político, a família
ganha sua importância inquestionável porque o mundo assim está organizado,
porque nele não há nenhum abrigo para o indivíduo — vale dizer, para os mais
diferentes. As famílias são fundadas como abrigos e castelos sólidos em um
mundo inóspito e estranho, no qual se precisa ter parentesco. Porém, se a
família se envolve no ato político leva-se a perversão fundamental da coisa
política, porque anula a qualidade básica da pluralidade ou a perde através da
introdução do conceito de parentesco, um velho conhecido da nossa realidade
brasileira e, principalmente, paraense: o nepotismo, familismo, etc. A prática
tem muitos nomes, mas a destruição democrática que a acompanha é sempre
a mesma. Todo familismo é avesso à democracia que pressupõe estar aberto
ao outro-imprevisível, não apenas os ligados a nós por laços de sangue, de
certo modo, naturais e não-sociais.

Bruno de Menezes, escritor e intelectual paraense, membro ativo da


Academia do Peixe Frito – da qual falaremos mais especificadamente no
próximo tópico – já denunciava, no contexto da dificuldade dos escritores
paraenses produzirem ou publicarem suas obras, dividindo o tempo entre ser
artista e ter que conseguir o “ganha pão”, através de outros meios, o que ele
chamou de “afilhadismo”, o apadrinhamento político regional, que significava o
beneficiamento de uns em detrimento de outros. Geralmente, as pessoas
beneficiadas eram da família de políticos ou daqueles que detinham o poder de
maneira mais direta. Os desprotegidos “iam ficando no limbo, na topada do
primeiro degrau, preteridos e humilhados” (MENEZES, 1993, p.382). Essa
prática, comum em 1930 e comum em 2020, é totalmente avessa ao ato
político e democrático, nos moldes do pensamento de Hannah Arendt.

O que podemos então constatar é que o regime que impeça a


articulação de um mundo comum entre os indivíduos, que pretenda a
concentração do poder em uma só pessoa (ou na família) está fadado a entrar
em crise, pois não há governo que permaneça sem uma base de sustentação,
em outros termos, poderíamos dizer que mesmo que todos os homens se
tornem “Um-Só-Homem” (ARENDT, 1990, p.519), que o governante se intitule
o representante do povo, de uma sociedade transparente, unificada, sem
diferenças, sem conflitos, tal governo não passa de uma abstração, de um mito
cujo trágico destino já está traçado.

Dessa forma, a política tal com Arendt a entende, como criação do novo,
do inesperado, como ação plural, resultado do amor ao mundo e não como
violência, não somente se apresenta como alternativa, como algo inerente à
condição humana, mas também representa uma necessidade, pois é condição
para a constituição do indivíduo e da comunidade política na qual nos
movemos. Em outras palavras, o mundo comum, as instituições, o Direito, tudo
aquilo que pretende realizar a mediação entre os homens, erigindo mais
pluralidade e menos deserto, mais compartilhamento do que isolamento, só
pode ser construído se a política for sinônimo de liberdade.

Dalcídio Jurandir, buscando a sua liberdade e a liberdade do seu “povo


miúdo”, faz da sua literatura um ato político. Dalcídio Jurandir não tomava
partido apenas nos embates políticos diretos, na época de membro do Partido
Comunista. Também em seus romances isso era feito. Ele mesmo declarou,
em uma entrevista à Eneida, que sua produção literária tomava partido e isso
era motivo de orgulho para ele:

Eu me prezo, honradamente, de ser bem parcial. Objetividade,


imparcialidade olímpica, não há, o Olímpo se mete em tudo, é só ver
na Ilíada ou na Bíblia, os deuses são da política mais rasgada, do
puro campanário. Todo romancista não é político? O exemplo vem
dos grandes, sempre interessados pelo homem, pelo destino da
sociedade, por mil e uma formas ou aspectos da conduta do indivíduo
ou do homem. Três grandes políticos no romance moderno sob a
absoluta aparência de artistas puros ou puros visionários: Kafka,
Joyce, Faulkner. Já é uma banalidade dizer que é impossível a um
romancista, o menos intemporal dos artistas, fugir do seu tempo. (DE
MORAES, Eneida entrevista Dalcídio, 1996, p.33).

Se por um lado Dalcídio seguia uma tradição de politização que outros


escritores já haviam enveredado, por outro suas referências de engajamento
são direcionadas para uma realidade bem particular: a comunidade amazônica
vivida a partir do Marajó. O escritor acreditava ter um compromisso especial
com as pessoas que transitavam por seus romances. Veremos essa faceta
militante e politizada de Dalcídio Jurandir no tópico a seguir.

DALCÍDIO JURANDIR E A ARISTROCACIA DO PÉ NO CHÃO: A FACETA


MILITANTE DO ESCRITOR

É importante retomar alguns aspectos da vida do autor, para que


possamos compreender a tomada de partido do mesmo em defesa da periferia,
da denominada por ele, “aristocracia do pé no chão”: Dalcídio Jurandir foi
atuante do Partido Comunista na luta contra o fascismo, sobretudo na década
de 1930. Essa é uma faceta do autor ainda pouco explorada, a da resistência
como militante. Tal exercício lhe rendeu, no entanto, no âmbito das ações
repressoras do governador Magalhães Barata, na Era Vargas, em terras
paraenses, seu encarceramento por duas vezes: em 1936 e 1937. Segundo o
crítico Renard Perez (1964), um ano antes da primeira prisão, Dalcídio Jurandir
já sinalizava suas ideias esquerdistas em público:

Vai falar no largo da Pólvora. Sobe nos caixões de comício de


subúrbio. Em 1936 é preso, preso incomunicável, nunca ouvido, sem
que nem mesmo jornal lhe permitiam folhear. Sua sorte é o tenente
Soares - delegado de Gurupá em 1931 e aquela altura Comissário de
polícia – que aparece de vez em quando no plantão da Central e lhe
leva, dentro do paletó, um jornalzinho do dia. A prisão – acredita o
escritor – trará ao menos uma vantagem: oferecerá a sempre adiada
ocasião de ler Dom Quixote por inteiro num só fôlego. [...] Em 1937 é
preso novamente, por três meses, por campanha contra o fascismo.
Fica na cadeia São José, num xadrez comum, onde nem verba
sequer havia para a alimentação dos detidos (PEREZ, 1964, p. 268).
Além de fazer parte da “Academia do Peixe frito”, grupo de autores
modernistas que se reuniam no Ver-o-Peso para falar – e fazer – literatura à
beira do rio Guamá, deixando impregnar na roupa o óleo do peixe sendo frito
na hora. Grupo de homens periféricos e, em sua maioria, negros, que já faziam
literatura de qualidade muito antes dos paulistas e cariocas pertencentes ao
suposto eixo cultural e ideológico do país. Um grupo de pretos periféricos de
resistência – quando esta palavra ainda nem era moda - que representavam e
estavam comprometidos com as camadas populares, prontos para dar
visibilidade a esses assombrados e silenciados pelas mais variadas formas de
indigência, em detrimento ao então governo do intendente Antônio Lemos.

A Academia do Peixe Frito tornou-se uma referência no Pará, sobre as


condições materiais de produção intelectual e artística, após a crise da
borracha de 1912. Miceli (2001) considera que a condição social de alguns dos
personagens principais dos romances na década de 1930 resume, no campo
da ficção, “a ambiguidade da trajetória de seus autores”, além de realizarem
um registro negativo da experiência de vida dos mesmos. Afinal, a maioria dos
romancistas da Academia do Peixe Frito começou a produzir suas obras em
situação de relativa independência e ascendeu no meio literário através da
venda de suas obras, participação em concursos literários etc. Mesmo assim,
foi o envolvimento ideológico com o comunismo, além da própria situação de
restrição financeiras dos intelectuais naquela época, que os aproximou muitas
vezes das classes menos favorecidas economicamente. Todos os principais
intelectuais envolvidos no Peixe Frito não tiveram formação acadêmica, todos
foram autodidatas. Com exceção de Dalcídio Jurandir, que teve pai letrado e
político no interior, a maioria deles era oriunda de famílias pobres.

Dessa forma, conseguimos compreender o interesse de Dalcídio


Jurandir e de seus colegas escritores do Peixe Frito de estudar novos temas e,
especialmente, o tema da cultura brasileira que levou muitos intelectuais a se
dedicarem, de diferentes modos, a uma maior aproximação com os grupos
populares e coloca-los em papel de protagonista nos seus romances.

Paralelamente ao seu trabalho engajado como escritor, Dalcídio Jurandir


militava no Partido Comunista e se relacionava com outros intelectuais
engajados. Sua militância, bastante polêmica, o levaria a ter problemas de
relacionamento com alguns intelectuais envolvidos nas mobilizações políticas
do Rio de Janeiro e ele se tornaria persona non grata no meio literário e
intelectual. Isso talvez até tenha repercutido na pouca divulgação de suas
obras no resto do país, pois ainda que seus romances se esgotassem, não
eram reimpressos pelas editoras. Suas convicções fortemente comunistas o
levariam a adotar posturas mais radicais que a de outros escritores paraenses
de sua geração.

A postura política de Dalcídio Jurandir já evidenciava que sua ação


intelectual se pautava mais na convicção (certeza de estar fazendo a coisa
certa, apesar das consequências) do que no cálculo da responsabilidade.
Jurandir saía em defesa dos “seus”, se sentia na obrigação de fazê-lo. Os seus
personagens, mesmo não sendo comprovadamente biográficos, diziam
respeito à própria existência do romancista, desde sua infância. Contavam
parte de sua história, pois ele também era “menino de beira de rio, do meio
campo, banhista de igarapé”. A postura do escritor não era apenas inspirada na
militância no comunismo, mas em um compromisso com suas origens. Por
isso, os personagens das classes populares eram protagonistas de suas obras:

A esse pessoal miúdo que tento representar nos meus romances


chamo de aristocracia de pé no chão. Modéstia à parte, se me coube
um pouco de dom de escrever, se não fiquei por lá, pescador,
barqueiro, vendedor de açaí no Ver-o-peso, o pequenino dom eu
recebo como um privilégio, uma responsabilidade assumida, para
servir aos meus irmãos de igapó e barranca. As poucas letras que me
cabem, faço tudo por merecê-las. Entre aquela gente tão sem nada,
uma pequena vocação literária é coisa que não se bota fora. Se
posso tocar viola, mesmo de orelha, tenho de tocar com ou por eles.
A eles tenho de dar conta do encargo, bem ou mal, mas com
obstinação e verdade (DE MORAES, Eneida entrevista Dalcídio,
1996, p.32-3).

REPRESENTAÇÃO DA POLÍTICA NO ROMANCE “BELÉM DO GRÃO-PARÁ”


Nesse tópico, buscamos analisar a representação da política no
romance. Analisaremos a relação conflituosa – mas repleta de inconstâncias e
dualidades – entre a suposta aristocracia paraense de Antônio Lemos e os
pretos cabanos que se organizavam na periferia se desenvolveu no imaginário
dos personagens, principalmente a partir da matriarca da família Alcântara,
D.Inácia. Também será foco de nossa análise a relação entre D.Inácia, Libânia
e Alfredo. Os três personagens convivem na Gentil Bittencourt, 160, porém
algumas atitudes de D.Inácia para com Libânia causam certa incredulidade em
Alfredo. Se partirmos do pressuposto que o menino Alfredo é uma espécie de
alter-ego do autor, Dalcídio Jurandir podemos pensar que os questionamentos
de Alfredo perante as falas, pensamentos e atitudes de D.Inácia mostram
também a incredulidade do próprio Dalcídio, já que o mesmo sempre se definiu
como parcial defensor das classes populares e uma espécie de delator das
mazelas aos quais essa “gente miúda” enfrentava e enfrenta no seu cotidiano.

A primeira menção aos caboclos do Guamá ocorre no início do capítulo


16. Percebemos uma relação dual de D.Inácia perante os levantes do Guamá.
Há um preconceito próprio da suposta elite paraense para com os revoltosos,
pois, segundo essa elite, os caboclos brigavam por muito pouco, afinal, nada
tinham. Também havia um desinteresse coletivo sobre os reais motivos que
levaram esses homens a iniciarem um levante, o que importava, para D.Inácia
e aquela elite, não era o fogo em si, mas o quanto de fumaça ele podia fazer:

O bando de roceiros no Guamá e a conspiração dos quartéis


agitavam a senhora Alcântara. Não procurava ver nos dois
acontecimentos uma lógica ou uma necessidade. Não a comovia
tanto a fome dos roceiros nem a grave situação nacional. Assaltavam
o comércio os roceiros do Guamá? Conspiravam contra o Governo os
quartéis e as fortalezas? Pouco importava a D.Inácia o motivo real ou
justo de um e de outro. No Guamá ou no Rio, o que valia
simplesmente era o arrojo do homem. [...] D.Inácia fazia, era certo,
uma distinção entre os dois acontecimentos, entre os dois tipos de
homem em ação. Os caboclos do Guamá agiam por fome. Tudo
arriscavam, e por tão pouco, peça de pano ou punhado de sal. Os
militares agiam por ambição do poder, pela má natureza do homem,
em querer mais, em fazer soar a sua valentia, paixão do brilho e da
fama. Brigar, seja por que motivo, fome, glória, cobiça, amor ou ódio,
mas arriscar, era a exigência que D.Inácia fazia aos homens.
(JURANDIR, 1960, p.214, grifo meu).
Ao mesmo tempo, D.Inácia – mulher, dona de casa e muito interessada
em política, causa de intenso desconforto em seu Vírgilio, afinal já não bastava
o Lemismo? Agora D.Inácia também queria se envolver com os roceiros do
Guamá? – apesar de seu preconceito aristocrático, gostaria de estar à frente
do levante. Obviamente que não era por simpatia aos ideais dos caboclos que
se revoltavam, mas se se unisse a eles, poderia derrubar o governo atual de
Lauro Sodré que retirou seu estimado senador Antônio Lemos do poder. A
vontade de D.Inácia é genuína, ela é um ser político nato, porém o
entendimento de sua condição de mulher a coloca de volta à beira do fogão:

Ah, tempos de moça. Ver um oficial escalando o muro para entregar a


ela um papel, dar-lhe um recado, uma mensagem cifrada... Sairia na
rua, empunhando bandeira, por Nilo e por Seabra, a gritar na cara
dos lauristas contra o atraso do funcionalismo e a sorte das
professoras, que, por um vale de seus atrasados no Tesouro, cediam
honra, cediam vergonha. [...] Não esperem coragem ou brio de nós,
pobres mulheres. O que separa a senhora honrada da meretriz é uma
cortina muito transparente, um fiozinho de seda, um risco de giz...
Que podem esperar as professoras? Deixar de ensinar os
barrigudinhos papa-terra ou manter-se puras e famintas? Que não se
dispam? Não levantem a saia? Se não têm mais o que vestir as
pobrezinhas... Saia! Mas não é pra não andarem despidas, ter uma
saia, que se entregam? [...] E o braço estendido, num gesto de
comando, a dentadura solta: - Ao Palácio das Águias! Ao Palácio das
Águias! Seguia para o fogão (JURANDIR, 1960, p.216, grifo meu).

Na conversa com o Desembargador, no Cinema Olímpia, D.Inácia


novamente demonstra em pensamento a sua verdadeira intenção ao apoiar a
revolução dos caboclos do Guamá:

Também ficou fascinada, no encontro com o Desembargador, pela


sensação de correr um imaginário risco, estar ali ás barbas do Chefe
de Polícia, pensando assim: “Estás falando com uma que tudo faria
que os caboclos roceiros viessem até Belém e limpassem os traseiros
no teu arminho, canalha” (JURANDIR, 1960, p.234).

Podemos crer que D.Inácia, devido sua personalidade um tanto


aristocrática, uma espécie de wannabe de elite paraense, não simpatizava com
movimento em si, a ela pouco importava se os revoltosos passavam fome ou
saqueavam lojas, como já dito anteriormente. Órfã do Lemismo, a vontade dela
era que os revoltosos atacassem os governantes atuais, simpatizantes de
Lauro Sodré, responsáveis pela queda e humilhação pública de Antônio
Lemos, o estimado e saudoso Senador de D.Inácia e toda a aristocracia
paraense da época. Nesse trecho, podemos perceber uma certa ironia de
D.Inácia em relação à fome sentida pelos revoltosos, afinal, para ela, eles
brigavam por isso:

Rindo, ergueu os braços, suplicante: - Mas, meu Sagrado Coração de


Jesus, multiplicai aquela vaca entre aqueles próximos. Multiplicai
aquela carninha, valei eles, Senhor! (JURANDIR, 1960, p.284).

Outro personagem interessante que podemos rapidamente analisar, sob


a perspectiva da ação e envolvimento político, é seu Vírgilio, patriarca da
família Alcântara, homem pacato e até certo ponto, submisso. Seu Vírgilio
desaprova o caráter político de D.Inácia, não entende porque sua mulher gosta
de se envolver em assuntos desse tipo, afinal D.Inácia “já não era mais moça
para aquele frenesi” (p.214); tinha ela que estar falando o tempo todo em
política? “Não bastara o lemismo?” (p.214), “comia e bebia política?” (p.216).
Esse descontentamento do personagem quando o assunto era política
confirma o pensamento de Hannah Arendt, citado no início. Seu Vírgilio tinha
aversão à política, tinha desistido de acreditar nela e, portanto, preferia não
discutir. Para ele, o ato político era sinônimo de violência e de decepção, para
D.Inácia, discutir política era sinônimo de liberdade e completude:

Antes discutia a política, com a naturalidade com que comia os bolos


da afilhada e punha a toalha no ombro, seguindo para o banheiro.
Mas diante daquele “mal” que o atingia como uma doença da velhice
principiava a ver na política uma danação, um ácido que dissolvia
famílias e nações, consagrado ofício da mentira e da desonra.
Imaginem se os oposicionistas ganhassem neste Estado, que seria
de Inácia e de Emília? Teria uma promoção na Alfândega? À custa de
quê? Depois, governo era governo. O Norte era sempre a parte
enjeitada do país. E a época das vacas gordas na Amazônia não
voltaria nunca mais. Adeus, borracha. Adeus, Mercado. Veneza,
adeus. E aquilo que pensava ter sido farto e bom, ao tempo do velho
Lemos, voltava-lhe agora, obscuro e sujo, em que ele aparecia, tão
enxovalhado, vaiado e cuspido quanto o Senador... (JURANDIR,
1960, p.221).

Na fala de seu Vírgilio, conseguimos perceber um discurso político do


próprio autor, Dalcídio Jurandir, ao denunciar que o Norte seguia sendo a parte
enjeitada do país, o filho bastardo, a parte mais distante e esquecida pelo dito
centro cultural e econômico do Brasil. Essa denúncia pode ter sido motivada
pela imensa dificuldade que os escritores daqui tinham em publicar suas obras,
obter reconhecimento e buscar integrar culturalmente a Amazônia ao restante
do país.

O interesse de D.Inácia pela política era quase uma obsessão, a


senhora não deixava de falar da revolta da Guamá aos quatros ventos, seja
para o desembargador, o chefe de polícia ou sua vizinha, falida como ela,
receosa do suposto levante e carregada de pré-julgamentos. Para essa
aristocracia decadente do período da borracha, os caboclos não eram
revoltosos com causa, mas meros bandidos. Tinham uma visão equivocada e
tendenciosa dos levantes populares, mais inclinados à esquerda. D.Inácia era
uma política nata, o jogo político de enganações e mentiras fazia com que ela
se deleitasse. Seria a mais pura coincidência que a mais mau caráter das
personagens de Dalcídio Jurandir fosse justamente a mais interessada por
política?

[...] Deleitava-se em sustentar a conversação como se fosse uma


política experimentando com a vizinha as artes da hipocrisia. [...] E
isso como agradava a D.Inácia! “Ó o mundo enganador, endiabrado,
cheio de postiços!’. Dizia por dentro dela. Custava aquela vizinha
dizer o que sentia, abrir o jogo, rasgar que o rapto tinha sido feito
pelas Alcântaras? Mas, a ela, Inácia, também não custaria dizer:
“olhe, d.Luduvina, o Antônio fomos nós que roubamos. A senhora
maltratava muito ele. Está numa casa de tratamento. Não se abusa
assim tanto de um desvalido...” Mas falava? Era uma política, não
tinha que ver. [...] – A senhora viu como ferve no Guamá, d.
Luduvina? – Aquele puro banditismo? Mas a Brigada vai, acaba. – A
senhora não acha que pode virar numa cabanagem? D. Inácia
provocava os receios da vizinha. Teria sabido alguma coisa da
Cabanagem? – Os cabanos fizeram desta Belém, vizinha, um valha-
nos Deus. – Como, D. Inácia? – Mataram o Governador, os
comandantes, mataram muito branco, muito português, mas
mataram... – Mas de onde vinham, os demônios? – Do interior, se
ajuntaram nos sítios, nas roças, nas vilas, aos bandos. Foi um fuzuê
doido. Cercaram Belém. Entraram. Mais que índios. Principiou igual
ao que agora acontece no Guamá. Eu até que queria, a senhora
pensa? Ah, eu queria ver esses do Guamá entrar agora no Palácio,
abrir o bucho do governador, eu me refastelava... (JURANDIR, 1960,
p.277-278).

Defendemos que, na ida ao Olímpia, assim como Alfredo, a costureira


Isaura também assume, nesse momento, o papel de alter ego do escritor.
Estava na fala dela também o pensamento de Jurandir sobre essas senhoras
mumificadas da alta sociedade:
Como sempre, a costureira manifestou desprezo e zombaria pelas
altas senhoras que entravam. A tia-bimba da senhora do presidente
da Associação Comercial. A enjambrada da mulher do banqueiro
Assaid, a macaca do Museu, pintada de branco, que era a sra.
Comandante da Região Militar. Aquela coruja de gaze e aquela
tartaruga, entremeada de laçarotes e colares. Ali estava a sociedade,
a alta. A costureira sorria, tinha um ar contente. Compreendia o amuo
de Emília e isso parecia diverti-la, exagerando o mau gosto, os
requififes e arrebiques das senhoras (JURANDIR, 1960, p.235).

Outro momento em que o discurso político de Dalcídio Jurandir aparece


é na incredulidade de Alfredo, uma espécie de alter ego de Jurandir, perante a
situação de Libânia, de como a mesma era tratada pela madrinha-mãe,
D.Inácia. Libânia é uma jovem menina trazida do interior para trabalhar de
graça em casa de família, com a desculpa que viriam estudar na capital, prática
comum naqueles tempos, que ainda encontram-se vestígios na sociedade
paraense de hoje. Essa tomada de partido de Dalcídio por esse povo “mais
miúdo”, esquecido e explorado demonstra o quanto sua literatura tinha um
caráter político e do quanto ele estava disposto a ser parcial e defender esse
povo o qual fazia parte dele também, suas origens e subjetividades:

Nesse passo, chegava a Libânia, sustentando na palma da mão um


bolo inglês ainda na forma, trazido do forno da padaria. Alfredo viu-lhe
a fitinha no cabelo, nos pés... E foi um espanto, como se nunca
tivesse reparado: e o sapato? Libânia não tinha nem um sapato? Isso
para Alfredo toldou um pouco o aniversário. E o mais triste era que
Libânia fingia não se dar conta, fingia resignar-se a andar descalça
num degrau mais baixo ainda que aquele em que se bebia, cantava e
dançava no 72 ao som do violão e cavaquinho (JURANDIR, 1960,
p.226).

O episódio do cinema Olímpia também se mostra crucial para aguçar


esse senso de justiça em Alfredo. Quando Alfredo é convidado a ir ao cinema e
Libânia não, Alfredo torna-se “branco”. Ele, assim como Libânia, não podia se
misturar aos brancos. Ou até podia, mas sem esquecer-se daqueles que o
compõem como sujeito: o seus irmãos de igapó e barranca. Libânia fazia parte
do seu povo. Ir ao Olímpia e deixá-la lá, cuidando da lenha e do jantar, era fugir
da sua obrigação de defender os esquecidos, era uma espécie de traição aos
“seus”:
Um sentimento de injustiça e temor dominava-o. O olhar de Libânia,
tão difícil de entender, tão breve, gelara-lhe a espinha. E ela já
estava ao pé do fogão, cantando, a partir lenha. Alfredo sentia na
cantiga uma queixa, um ressentimento, entrecortada de ralhos contra
o gato vizinho que subira miando. “Contra o gato ou contra mim?”,
indagou envergonhado, querendo ir à cozinha e ali ficar em
companhia dela. A distinção que lhe dava a d. Emília diminuía-o
perante a cabocla. Ele no Olímpia, quando Libânia era quem sempre
trazia as entradas? A cabocla, por muito favor, ia ao Odeon, no Largo
de Nazaré, esta e aquela vez, na matinê, agora não, porque gastara-
se o sapato presenteado por Isaura [...] Alfredo pôde entrar, sem que
lhe fosse exigido bilhete e isto agradou e não agradou, primeiro por
entrar de graça, segundo por saber-se ainda menino e porque restava
uma entrada, perdida, o que lhe pareceu ainda mais injusto com
Libânia (JURANDIR, 1960, p.227-228).

Alfredo não conseguia compreender porque Libânia não se revoltava


contra os mandos e desmandos da patroa. Essa incompreensão também era
própria de Dalcídio Jurandir:

Alfredo voltou a sentir o olhar dela, ouvir a cantiga, o ralho do gato...


Ou talvez exagerasse, quem sabe? Um olhar de acaso, de simples
curiosidade, nada de mais, até mesmo aprovando que ele fosse ao
Olímpia? Nem azedume algum, pouco apreço ou ameaça de
desforra, na cantiga, como ele entendeu. Mas por que conformada?
Certa de que era assim mesmo, a cumprir as regras da casa, indo,
descalça, buscar as entradas que por direito pertenciam aos irmãos?
[...] Alfredo reparou que d. Emília trazia os sapatos brancos, novos,
tirados do prestação, deixados de usar, no aniversário de Isaura. Esta
notara, sem nada dizer, esperando uma explicação de Emília, que
não lhe deu. Alfredo desassossegava-se. E amanhã, como encarar
aquela pobre que ficava passando a ferro? Por que receava perguntar
às Alcântaras a respeito dos sapatos de Libânia? Que tinha
perguntar? (JURANDIR, 1960, p.228, grifo meu).

Libânia nada questionava. Alfredo o fazia por ela. Uma espécie de


protetor ou defensor, assim como Dalcídio Jurandir foi, nas ações políticas que
buscam o mínimo benefício para esse povo esquecido, subalternos, que nada
têm, aristocratas de pés descalços:

Acolheu-o um olhar luzindo no escuro e um “gostou do Olímpia?” que


era uma carinhosa indagação. Queria Libânia saber se tudo correu
bem porque tudo que houvesse de bom para ele o seria também para
ela ali nas sarrapilheiras que forravam o chão, a dura tábua. [...]
Alfredo soltou um desabafo: – Mas, Libânia, por que tu não tens
sapato? Por que tu não podes ir ao Olímpia? Por que não dormes na
rede? Quando é o roubo do Antônio? Sabes que o noivo de Etelvina
está escondido na tia Gualdina?. Ela sentou-se, de perna traçada,
coçando, de leve o ombro nu e num espanto: como aquele-menino...
mas que perguntador, que sabedor das coisas... hum! Estava por
ver. E num gesto e voz de confidência: - Vai, vai fechar esses
olhinhos que amanhã a gente se fala. Deitou-se, estirou-se,
espreguiçou-se, enfiando a cabeça no pano de saco, enquanto na
sala de jantar o seu Vírgilio expectorava (JURANDIR, 1960, p.244).

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. O que é política? Trad. Reinaldo Guarany. 6.ed. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

_______________. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de


Almeida. 5.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

________________. Crises da República. Trad. José Volkmann. 2.ed. São


Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

_________________. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e


totalitarismo. Trad, Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DE MORAES, Eneida. Eneida entrevista Dalcídio. Asas da palavra, vol.3, n.4,


1996.

LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Gladiadores de escassa musculatura:


sociabilidade, literatura e responsabilidade na Amazônia. Belém: IAP, 2014.

MENEZES, Bruno. Obras completas de Bruno de Menezes. SECULT, Belém,


1993.

MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo, Companhia das letras,


2001, p.160-3.

PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos. Rio de Janeiro, 1964.

SARGES, Nazaré. Belém: riquezas e produzindo a Belle Époque (1870-1912).


3 ed. Belém: Paka-Tatu, 2010.

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