Você está na página 1de 168

Matrizes estéticas na

cena contemporânea
diálogos entre culturas, práticas, pesquisas
e processos cênicos

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 1 22/07/2022 16:26:33


UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Reitor
João Carlos Salles Pires da Silva

Vice-reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora
Susane Santos Barros

Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 2 22/07/2022 16:26:33


Daniela Amoroso
Eliene Benício
Érico José Souza de Oliveira
Organizadores

Matrizes estéticas na
cena contemporânea
diálogos entre culturas, práticas, pesquisas
e processos cênicos

Salvador
EDUFBA
2021

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 3 22/07/2022 16:26:33


2021, autores.
Direitos dessa edição cedidos à Edufba.
Feito o Depósito Legal.
Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Coordenação editorial Vetores de capa


Susane Santos Barros Freepik

Coordenação gráfica Revisão


Edson Nascimento Sales ...

Coordenação de produção Normalização


Gabriela Nascimento Sandra Batista

Capa e Projeto Gráfico


Miriã Santos Araújo

Sistema Universitário de Bibliotecas – UFBA

Editora afiliada à

Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n –
Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufba.ufba.br | edufba@ufba.br

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 4 22/07/2022 16:26:33


Sumário
Apresentação 7
Daniela Amoroso . Eliene Benício . Érico José Souza de Oliveira

Dos conceitos

Perceber é conceber: a etnocenologia e o olhar selecionado 13


Alexandra Gouvêa Dumas

Patrimoine immatériel scénique africain: des œuvres d’art,


hors des normes coloniales en Haïti et au Brésil? 31
Christine Douxami

No miudinho se corre a roda: trajetos a partir das noções


do passo, da etno[skènos]logia e da criação 43
Daniela Maria Amoroso

Corpo-Máscara: nenhuma origem é possível 61


Erico José Souza de Oliveira

Mamas épicas: revendo noções de matrizes estéticas


para a cena contemporânea 73
Graça Veloso (Jorge das Graças Veloso)

Das experiências

La voie des fleurs, du carnaval et de l’ethnoscénologie.


Une approche sensible et transnationale 89
Nathalie Gauthard

Performance, arte e ambiente: do Reisado do Mulungu


às intervenções urbanas 101
Eloisa Brantes Mendes

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 5 22/07/2022 16:26:33


Eugenio Barba, L’Odin Teatret et L’art de La Sur-Vie 115
Jean Marie Pradier

Eden’s Cave’s Forests: Theatre Laboratory 135


as Theatre Ecology
Eleanor Buchan . Henry McGrath . Patrick Campbell

Corporalidade das danças sagradas de matrizes


negro-africanas: ancestralidade, conhecimentos
e recriação 153
Suzana Martins

Sobre os autores 163

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 6 22/07/2022 16:26:33


7

Apresentação
Daniela Amoroso . Eliene Benício . Érico Oliveira1

O Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), juntamente


com a Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba), lançou, em 2020,
a Coleção Artes Cênicas, uma coletânea de cinco livros relativos às linhas
de pesquisa do referido Programa.
Em relação à Linha 1: Matrizes Estéticas na Cena Contemporânea,
que versa sobre “Pesquisas de caráter transdisciplinar em artes do es-
petáculo, estudos de etnocenologia, metodologias de construção e de
transmissão de saberes e fazeres”, nós, − professoras Daniela Amoroso
e Eliene Benício e professor Érico José Souza de Oliveira − organizamos
este volume Matrizes estéticas na cena contemporânea: diálogos entre culturas,
práticas, pesquisas e processos cênicos, que está subdividido em discussões
conceituais e experimentais, com um total de dez artigos relacionados aos
trânsitos entre cenas e culturas.
Professores, professoras, pesquisadores e pesquisadoras do Brasil
e exterior foram convidados e convidadas a refletir, em forma de artigo,
sobre questões caras a esta linha de pesquisa e suas óticas e pontos de
vista, não necessariamente, refletem a visão da comissão organizadora
deste livro, pois deu-se enfoque à diversidade de discurso e compreensão

1 Professores da linha de pesquisa Matrizes Estéticas na Cena Contemporânea,


do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas/UFBA.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 7 22/07/2022 16:26:33


8 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

do complexo universo das artes e das culturas, em detrimento de um pensa-


mento uníssono sobre o assunto.
Participam do primeiro agrupamento, denominado “Dos Conceitos”,
os professores e as professoras:
Alexandra Gouvêa Dumas, professora da Escola de Teatro da Universi-
dade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora do mestrado interdisciplinar
em Culturas Populares, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), apresen-
tando o artigo “Perceber é conceber: a etnocenologia e o olhar selecionado”,
no qual pretende aprofundar discussão à luz do debate teórico contempo-
râneo sobre produção de conhecimento, tendo como referencial aspectos
anunciados como sendo basilares da etnocenologia, a exemplo do “multicul-
turalismo” e da “alteridade”.
Christine Douxami, pesquisadora em Antropologia da Arte no Instituto
dos Mundos Africanos (IMAF) e professora de Artes Cênicas na Universidade
de Franche-Comté (França), com seu artigo “Patrimoine immatériel scénique
africain: des œuvres d’art, hors des normes coloniales en Haïti et au Brésil?”,
no qual interroga quando e como os patrimônios imateriais foram vistos
como obras de artes, e como esses patrimônios foram apropriados pelos
artistas no aprender-ensinar e no fazer criativo. No Brasil, a pesquisadora
tem como fonte a sua pesquisa de campo sobre o Nego Fugido, as Danças
dos Mouros e Cristãos e os Reisados. No Haiti, as experiências artísticas vin-
culadas ao Vodu são o ponto de partida.
Daniela Maria Amoroso, professora da Escola de Dança da UFBA e do Pro-
grama de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, em seu artigo “No Miudi-
nho se Corre a Roda: Trajetos a partir das noções do Passo, da Etno[Skènos]
Logia e da Criação”, trata do entendimento do passo das danças populares
brasileiras como disparador criativo na composição do solo-pesquisa: Hortênsia,
resultado de seu pós-doutorado e das experimentações vinculadas ao pro-
jeto de pesquisa “Do miudinho à umbigada: estudos dos passos e gestos do
samba de roda no Recôncavo Baiano em processos de criação em dança”.
Erico José Souza de Oliveira, professor da Universidade de Brasília (UnB),
em seu artigo “Corpo-Máscara: nenhuma origem é possível”, discute a noção
de Corpo-Máscara no âmbito das Artes Cênicas, construindo um diálogo con-
ceitual e crítico sobre as escritas que tratam deste tema. Tal noção é abordada
como operador conceitual e, para isso, noções como transculturalidade e
transcriação, além das epistemologias do sul, são capitais na tentativa de
deflagrar discussões sobre práticas e reflexões cênicas acerca de tal tema.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 8 22/07/2022 16:26:33


APRESENTAÇÃO 9

Graça Veloso (Jorge das Graças Veloso), da UnB e do Programa de Pós-


-Graduação em Artes Cênicas da UnB, em seu artigo “Mamas Épicas: revendo
noções de matrizes estéticas para a cena contemporânea”, reflete sobre ques-
tões relacionadas às noções de matrizes estéticas na cena contemporânea,
principalmente as surgidas com as proposições de Armindo Bião em suas
investigações sobre a baianidade. Passa por abordagens apresentadas pelos
estudos culturais e multiculturalismo, com todas as suas consequências teóricas,
como as relações étnico-raciais, feminismo, gênero, dentre tantas outras. E se
debruça nas novas discussões proporcionadas pelas abordagens decolonialistas.
Já no segundo agrupamento, intitulado “Das Experiências”, estão:
Eloisa Brantes Mendes, professora da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (Uerj), que no artigo “Performance, arte e ambiente: do reisado do
mulungu às intervenções urbanas”, aborda as relações entre performance,
arte e ambiente focalizando a experiência de trabalho de campo do artista-
-pesquisador e os processos de deslocamento desta experiência em sua
prática cênica. As implicações éticas presentes nesse deslocamento ultra-
passam a intenção do artista-pesquisador em valorizar a “outra cultura”,
problematizando os limites da sua própria cultura artística como matriz es-
tética colonizadora.
Jean-Marie Pradier, professor emérito da Universidade Paris-8, França,
em seu artigo “Eugenio Barba, L’Odin Teatret et L’Art de la Sur-Vie”, analisa a
saída de Eugênio Barba da direção do Odin Teatret, deixando sua liderança
por causa da idade, sem pretender nomear um herdeiro. Pradier, que foi membro
fundador da Escola Internacional de Antropologia do Teatro, criada por Eugenio
Barba, faz uma análise do teatro produzido por Barba, e suas proposições
multiculturais.
Nathalie Gauthard, professora da Universidade de Artois, França, em seu
artigo “La Voie des fleurs, du carnaval et de l’ethnoscénologie: une approche
sensible et transnationale”, ilustra a abordagem sensível e transnacional e os
métodos usados na etnocenologia para circunscrever um fenômeno festivo
e efêmero que se desenrola em escala global, bem como uma análise dos
dados históricos e socioeconômicos da cidade de Maragogipe e seu carnaval
registrados nas listas da Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (Unesco). Este artigo retorna à colaboração da autora
com Armindo Bião no Carnaval.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 9 22/07/2022 16:26:33


10 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Patrick Campbell, professor da Universidade Metropolitana de Manchester,


Eleanor Buchan e Henry McGrath, performers, neste artigo “Eden’s Cave’s
Forests: Theatre Laboratory as Theatre Ecology”, interrogam as maneiras pelas
quais as estratégias dramatúrgicas que sustentam a mais recente perfor-
mance, Florestas (2020), refletem a cultura emergente do grupo e a identida-
de estética do Eden’s Cave, que opera no espaço liminar entre o laboratório
de teatro, tradição da Europa continental e o conceito de Kershaw (2009) de
“ecologia teatral”, em que o teatro é reconfigurado como uma práxis profun-
damente ecológica.
Suzana Martins, professora da Escola de Dança e do Programa de Pós-
-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, em seu artigo “Corporalidade das
danças sagradas de matrizes negro-africanas: ancestralidade, conhecimentos
e recriação”, analisa a corporalidade das danças sagradas de matrizes negro-
-africanas, como as do Candomblé, que se constroem no trânsito entre a
ação física e a dimensão transcendental do invisível, de uma forma singular,
espetacular.
Com os conteúdos mais diversos, assim como suas abordagens episte-
mológicas, conceituais e estéticas, o livro Matrizes estéticas na cena contempo-
rânea: diálogos entre culturas, práticas, pesquisas e processos cênicos se propõe
a apresentar um panorama sobre o estado das pesquisas que transitam entre
as Artes Cênicas e as culturas, possibilitando, assim, perspectivas diversas
do lugar de onde se olha e se percebe o outro, a outra.
Convidamos os leitores e leitoras a esta viagem rumo às relações multi-
facetadas e dinâmicas em campos tão plurais dos saberes e dos fazeres que
reúnem artistas, mestres de culturas, pesquisadores e pesquisadoras e in-
telectuais nestes contatos humanos e artísticos que fundam as sociedades.

Referências
KERSHAW, Baz. Theatre Ecology: Environments and Performance Events.
Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 10 22/07/2022 16:26:33


Dos conceitos

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 11 22/07/2022 16:26:34


matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 12 22/07/2022 16:26:34
13

Perceber é conceber:
a etnocenologia e o olhar selecionado

Alexandra Gouvêa Dumas

“Blanco”

me vejo no que vejo


como entrar por meus olhos
em um olho mais límpido

me olha o que eu olho


é minha criação
isto que vejo

perceber é conceber
águas de pensamentos
sou a criatura
do que vejo

(BLANCO, 1996)1

A qualidade humana de “olhar” recebe destaque nos textos que


conceituam a etnocenologia, especialmente no que se refere ao termo
espetacular, este advindo do etmo latim spectare, que, por sua vez, signi-
fica olhar, mirar, ver, observar. Para a disciplina citada, o que particula-
riza essa área de conhecimento é a maneira espetacular humana de se

1 “Blanco”, de Octavio Paz, recriado por Haroldo de Campos.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 13 22/07/2022 16:26:34


14 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

expressar. Ressalto que a ação espetacular pode ser estabelecida em focos


variantes e inter-relacionados, revelando, por consequência, qualidades do
olhar: a cena que se organiza para ser vista, o observador ou a observadora
que se dedica à apreciação da cena e um terceiro elemento relacional que
flutua no “entre”, ou seja, na ambiência sociocultural que envolve a cena
e quem a observa. Para um dos fundadores da etnocenologia, o professor
universitário Jean-Marie Pradier (2013, p. 99-100), o conceito estético “se ins-
creve na ontogênese do observador”. Ainda de acordo com ele, “Na origem
de toda teoria se encontra um teórico, isto é, uma biografia, uma história de
vida inscrita em um contexto histórico, cultural, social familiar, acadêmico”.
(PRADIER, 2013, p. 100)
Dessa forma, a atenção deste texto volta-se para alguns pontos advin-
dos da relação cultural que se estabelece no pesquisador ou na pesquisa-
dora que atua no campo da etnocenologia, sendo eles: a projeção de si no
que é visto e a concepção do que é visto, tendo como referência formas
de percepção que passam pela formação cultural do(a) pesquisador(a) e,
por consequência, seus desdobramentos interpretativos.
Para maior entendimento, faz-se necessário uma breve apresentação
a respeito da anunciada nova disciplina. A etnocenologia surgiu em maio
de 1995, em Paris, tendo como campo as práticas humanas espetaculares.
(PRADIER, 2013, p. 103) A sua gênese foi promovida por pesquisadores,
sobretudo homens, vinculados a centros de pesquisas acadêmicas, sendo seus
principais articuladores o professor Jean-Marie Pradier2 da Universidade de
Paris 8, na França, e, no Brasil, o professor Armindo Bião, da Escola de Teatro
da Universidade Federal da Bahia.3 Nesta digressão textual, destaco postu-
lados anunciados pela etnocenologia, especialmente quanto ao difundido
combate ao eurocentrismo, e busco analisar como essa meta opera em

2 Jean Marie-Pradier (1939) é “Doutor em Psicologia e Letras, responsável pela Equipe


de Pesquisa Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados (CHSO), professor
da Universidade de Paris 8”. (BIÃO; GREINER, 1999, p. 8)
3 Armindo Bião (Salvador, 1950-2013). Foi professor da Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia (UFBA), coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas,
presidente da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas
e professor visitante da Paris 8, na França. (BIÃO; GREINER, 1999, p. 7)

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 14 22/07/2022 16:26:34


PERCEBER E CONCEBER 15

narrativas de pesquisas realizadas sob o epíteto etnocenológico, tendo aqui


como ponto de ancoragem a sua primeira publicação em livro editado no Brasil.
A primeira obra literária em português a respeito desse tema foi intitu-
lada Etnocenologia: textos selecionados, lançada no ano de 1999, organizada
pelos professores universitários Armindo Bião e Christine Greiner. Na sua
“Introdução”, somos informados de que se trata de uma reunião de comu-
nicações realizadas em três anos de colóquios e seminários “organizados na
França (1995), no México (1996) e no Brasil (1997), para discutir os funda-
mentos e as aplicações desta nova teoria”. (BIÃO; GREINER, 1999, p. 11)
Publicado pela editora Annablume (SP), a obra é dividida em três partes.
A primeira, intitulada “Etnocenologia, o conceito, o nome, a história”, é com-
posta por cinco textos, escritos por Armindo Bião: “Etnocenologia, uma in-
trodução”, Jean-Marie Pradier: “Etnocenologia”, Jean Duvignaud: “Uma nova
pista”, Rafael Mandressi: “La mirada del anatomista, la etnoscenologia y la
construcción de objetos muertos”, e Chérif Khaznadar: “Contribuição para
uma definição do conceito de etnocenologia”.
A segunda, intitulada “O corpo e seus corpus, o pensamento e as di-
ferentes gestualidades”, é composta por oito textos, escritos por Vivaldo
da Costa Lima: “Etnocenologia e etnoculinária do Acarajé”, Lucia Calamaro:
“De cuerpos y viajes – Notas sobre la transferencia intercultural de formas
espetaculares”, Inês Alcaraz Marocco: “Gestualidade: experiência e expres-
são espetaculares”, Katia Canton: “Transculturalidade e a narrativa dos
contos de fadas na educação e cultura”, Graziela Rodrigues: “O bailarino-
-pesquisador-intérprete incorpora uma realidade gestual”, Edward MacRae:
“O uso do Ayahuasca nos rituais de cura do Santo Daime”, Demian Reis:
“A dramaturgia histórica da dança do Quilombo”, e Abel Kanaú: “O Adsabá e
a cultura kulina”.
A terceira e última parte, nomeada “O teatro e os diálogos culturais,
as tradições e a emergência do novo”, é composta por sete capítulos,
com os seguintes autores: Rafael Mandressi: “La emergencia de lo nuevo”,
Patrice Pavis: “Análise do espetáculo intercultural”, Mike Pearson: “Reflexões
sobre a etnocenologia”, Marcia Strazzacappa: “As técnicas corporais e a
cena”, Gabriel Weisz: “Textura xamânica do corpo”, Osvaldo Barroso: “A cena
tradicional e a renovação do teatro”, e André Carrera: “Risco físico: a aborda-
gem teatral da silhueta urbana e a preparação do ator”. No total, o livro tem
19  artigos, cada um escrito por um(a) autor(a) diferente, compreendendo

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 15 22/07/2022 16:26:34


16 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

194 páginas. A obra tem uma seção designada “Os autores”, nas páginas
7-9, na qual consta uma breve apresentação dos(as) estudiosos(as), sendo a
maioria dos trabalhos decorrentes de pesquisas desenvolvidas em seios uni-
versitários do Brasil e da França.
Pretendemos agora iniciar uma discussão à luz de alguns aspectos do
debate contemporâneo pautado nos pressupostos da decolonização do
conhecimento, tendo como recorte pontos anunciados na referida obra et-
nocenológica, a exemplo do “multiculturalismo”, do “combate ao eurocen-
trismo” e da “alteridade”. Uma questão orienta este debate: em que medida
uma disciplina que se insere no campo dos comportamentos espetaculares
humanos, tendo na sua fundação homens brancos, de formação acadêmica e/
ou artística de base europeia, ocidentalizada, consegue alcançar seus propó-
sitos anunciados, em alguns pontos até antagônicos em relação às formações
culturais de quem a propõe? Tendo a sua gênese assentada em privilégios
epistêmicos (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016), seria possível a et-
nocenologia, de fato, combater o eurocentrismo?
Para estudiosos ligados ao grupo Modernidade/Decolonialidade, a exemplo
de Enrique Dussel (2005, p. 27), o mundo europeu é uma “invenção ideológica
que ‘rapta’ a cultura grega como exclusivamente ‘européia’ e ‘ocidental’”.
Além disso, a Modernidade promove a centralidade dessa Europa “[…] e a
constituição de todas as outras culturas como sua ‘periferia’”. (DUSSEL, 2005,
p. 277) O pesquisador segue seu raciocínio afirmando que:

[…] o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode pretender


identificar-se com a ‘universalidade-mundialidade’. O ‘eurocentrismo’
da Modernidade é exatamente a confusão entre a universalidade
abstrata com a mundialidade concreta hegemonizada pela Europa
como ‘centro’. (DUSSEL, 2005, p. 27)

Relacionando a centralidade europeia nos campos hegemônicos de pro-


dução de conhecimento, que orientam, inclusive, a implementação das univer-
sidades brasileiras, a etnocenologia surge de antemão como um paradoxo,
pois, sendo gestada por professores(as) vinculados(as) a uma formação
europeia, academicista, ela também traz nos seus postulados basilares pro-
posições como “luta contra o etnocentrismo” ou desconstrução da “hierar-
quia entre as culturas”, como afirma Bião (2011, p. 352).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 16 22/07/2022 16:26:34


PERCEBER E CONCEBER 17

Por ora, sigamos nesta análise destacando um recorte que particulariza


a disciplina em questão: o significado de espetacular. A propósito desse caro
conceito, Patrice Pavis (2008, p. 141), professor da Universidade de Paris 8
e autor de um dos capítulos do livro, diz que espetacular é “Tudo o que é
visto como que fazendo parte de um conjunto posto à vista de um público”.
Ele ainda acrescenta à sua definição que “O espetacular é uma noção bas-
tante fluida, pois, como o insólito, o estranho e todas as categorias definidas
a partir da recepção do espectador, ela é função tanto do sujeito que vê
quanto do objeto visto”. (PAVIS, 2008, p. 141) Há alguns distanciamentos
conceituais a esse propósito, pois para certos(as) pesquisadores(as) da área,
esse espectro se define a priori pelo objeto e não se coloca em evidência o
seu aspecto relacional. Para o professor francês Jean-Marie Pradier (1999,
p.  24), espetacular é o que se destaca das “ações banais do cotidiano”.
Já para o professor brasileiro Armindo Bião, o cotidiano também é composto
de espetacularidade.
A definição do ato espetacular envolve a sua apreciação e remete a um
olhar seduzido por algo que é realizado de forma proposital a ser visto. O ato
de ver uma cena implica a presença e a história de corpos. E no caso da
etnocenologia, isso atinge os corpos envolvidos em todo o processo de
quem promove a cena e de quem a observa, incluindo o caráter relacional,
marcado por traços históricos, conceituais e culturais, sem descartar os re-
ferenciais teóricos também produzidos pela trajetória e formação dos(as)
intelectuais que referenciam e constroem a etnocenologia. A propósito do
entendimento de espetacular, Pavis (2008, p. 141) afirma: “O espetacular é
uma categoria histórica que depende da ideologia e da estética do momento,
as quais decidem o que pode ser mostrado e sob que forma […]”.
Se os processos relacionais que compõem os estados do olhar nas pes-
quisas etnocenológicas se estabelecem entre corpos, é importante ressal-
tar o que podemos pensar do corpo que olha, percebe e concebe as cenas
ou mesmo dos corpos que se expõem ao estado de observação. A visão,
como uma qualidade de ação corporal, torna-se limitada quando denotada
apenas como o ato de olhar, e este é reduzido a uma ação de parte do corpo
e à redutível ação fisiológica. Pradier (2013, p. 105) afirma o seguinte:

Numa situação banal, a percepção visual abrange apenas os traços


emergentes do outro, de maneira tanto mais grosseira quanto mais

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 17 22/07/2022 16:26:34


18 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

a qualidade da informação apreendida e sua interpretação são de-


pendentes ao mesmo tempo do estado do aparelho perceptivo e dos
conhecimentos do observador.

Destacando os trabalhos da psicofisiologia social, Pradier (2013, p. 105)


remete ao adágio popular que diz que “apenas se percebe aquilo que se
aprendeu a perceber”. Sendo a percepção uma ação pertencente ao cam-
po da cultura, faz-se necessário expor aqui algumas concepções filosóficas
de corpo que historicamente caracterizam o pensamento intelectual euro-
peu ocidentalizado e também o brasileiro, sobretudo no conceito de corpo,
que é elemento constitutivo do léxico ceno da etnocenologia.
Levando-se em conta a evidência dada ao corpo na composição do termo
etnocenologia, Pradier (1999, p. 26), um dos seus fundadores, afirma que o
“ceno” que o compõe tem uma relação com skènos, do grego, evidenciando
sua acepção arcaica no sentido de “evocar o corpo humano e a sua relação
dinâmica com a alma”. Explorando, brevemente, algumas inferências de
pensadores gregos, ressalta-se o sentido de percepção em instâncias parti-
lhadas pelo corpo e pela alma, termos que para Pradier concebem a própria
etnocenologia.
A propósito do olhar, acercando referências anunciadas por Pradier,
encontramos nos registros feitos pelo filósofo grego Platão (184 d.C.) o en-
tendimento de que a percepção passa pelo corpo e pela alma. Nos diálogos
platônicos entre Teeteto e Sócrates, seus personagens expõem questões
relacionadas ao sujeito e à sua competência de percepção:

Sócrates: Dize-me o seguinte: os órgãos por intermédio dos quais sen-


tes o quente e o seco, o leve e o doce, tu os localizas no corpo ou noutra
parte?

Teeteto — Em nada mais, se não for no próprio corpo.

Sócrates — E não quererás, também, admitir que tudo o que sentes


por meio de uma faculdade não podes sentir por meio de outra? Assim,
o que é percebido por meio dos olhos não o será pelos ouvidos, e o
contrário: o que percebes pelo ouvido, não perceberás pelos olhos.

Teeteto — Como não hei de querer?

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 18 22/07/2022 16:26:34


PERCEBER E CONCEBER 19

Sócrates — E no caso de conceberes, ao mesmo tempo, alguma coisa


por meio desses dois sentidos, não poderás ter alcançado essa per-
cepção comum nem só por meio de um nem por meio do outro.

Teeteto — De jeito nenhum. (PLATÃO, [201-])

Para outro conhecido filósofo grego, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.),


a percepção humana se dá pelo corpo e pela alma sem haver separação,
“por isso, a afecção é comum, mas ocorre de modo distinto no corpo e na
alma”. (AGGIO, 2009, p. 63) A etnocenologia, como evidencia Pradier, parece
se aproximar, através da introdução do sufixo skènos, dos referenciais clás-
sicos gregos tanto na sua denominação como também em conceitos ociden-
tais de compreensão de corpo. Assim Pradier (2013, p. 348) discorre sobre o
léxico cena que compõe a etnocenologia: “A metáfora gerada pelo substantivo
feminino deu a palavra masculina skènos: o corpo humano, enquanto abrigo
para a alma que nele reside temporariamente. De alguma maneira, o ‘taber-
náculo da alma’, o invólucro da psyché”. Dessa forma, o pesquisador revela
as bases de teorização de corpo aplicadas por ele na etnocenologia que são
prioritariamente pautadas em referenciais europeus que tanto caracterizam
a hegemonia ocidental do conhecimento produzido e legitimado nas univer-
sidades, inclusive a brasileira.
O professor Muniz Sodré (2017, p. 7), ao discorrer suas observações so-
bre a cultura nagô, expõe: “Na autoimagem cultural construída pelas potências
europeias, a autenticidade do ato de pensar sempre foi atestada que se
formulou em grego na Antiguidade”. Afirmando essa localização eurorrefe-
renciada, Pradier aproxima o conceito de corpo ao difundido pensamento
filosófico greco-ocidental hegemônico, reconhecendo as dimensões corpo e
alma na conceituação do acontecimento social espetacular. Esse ponto pode
ser identificado como paradoxal, pois, ao tempo que a etnocenologia anuncia
a sua “luta contra o etnocentrismo” (BIÃO, 2011, p. 352), na própria compo-
sição da sua nomenclatura as referências são centradas em experiências
culturais ocidentalizadas, em destaque as europeias.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 19 22/07/2022 16:26:35


20 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Um dos pensadores presentes na gênese da etnocenologia, Chérif


Khaznadar (1999, p. 57),4 entretanto, apresenta um contraponto crítico quanto
ao neologismo criado para nomear a disciplina, afirmando ser esse termo
“tão ligado etimologicamente à cultura ocidental […]”. Ainda que Pradier (1999,
p. 27) revele o intento de se voltar para “a descoberta de formas espetacula-
res além das ocidentais, suas reapropriações e sua salvaguarda”, esse mesmo
discurso parece se esvair ao levarmos a cabo a nomeação criada para designar
um campo de conhecimento voltado para estudos de comportamentos es-
petaculares de diferentes culturas.
Com as bases de entendimento de corpo apresentadas por Pradier,
relacionadas ao escopo greco-ocidental, uma questão se evidencia: como é
possível desenvolver pesquisas no campo da etnocenologia de forma a
atender o seu postulado antieurocêntrico, sobretudo quando os fenômenos
investigados são matricialmente localizados em corpos e culturas distintos
dos europeus? O próprio Pradier (2013, p. 105) sinalizou preocupações ini-
ciais a respeito disso quando coloca em análise o observador e suas “[…]
inevitáveis deturpações do olhar, matriz das distorções da descrição e da
análise”. Seguimos, porém, com algumas reflexões de outros/as autores/as
do livro em destaque relacionadas a essa complexa questão.
Quanto à gênese da etnocenologia, Chérif Khaznadar (1999, p. 55), um dos
autores do livro, afirma que os pesquisadores diretamente envolvidos na
sua criação eram “surpreendidos com os limites universitários na abordagem
de certas manifestações espetaculares originárias de culturas e de civiliza-
ções não-ocidentais”. Os fundamentos metodológicos que a comunidade
acadêmica desenvolve sobre fenômenos que acontecem fora da circunscrição
convencional de estética europeia esbarram, em geral, em limitações cultu-
rais de compreensão e condição de entendimento desse “outro” espetacular.
Muitas vezes o encontro do(a) estudioso(a), que tem formação acadêmica
ocidentalizada, com formas de produção de conhecimento que envolvem
outras cosmologias de corpo, de processos de aprendizagem, de interpretação
de mundo e de produção de cenas, evidencia mais a formação de quem

4 O livro Etnocenologia: textos selecionados tem uma seção intitulada “Os autores”, que traz
uma breve apresentação dos(as) criadores(as) dos artigos. Sobre Chérif Khaznadar
consta: “diretor des Cultures du Monde”.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 20 22/07/2022 16:26:35


PERCEBER E CONCEBER 21

realiza a pesquisa do que o conhecimento produzido por quem diretamente


o concebe e o pratica. A esse respeito, Pradier (2013, p. 104) reconhece que
“O olhar do observador, ou do espectador, é tanto mais enganado por si
mesmo quanto mais o corpo percebido vem de longe, ou é estrangeiro ao
nosso universo sensorial habitual”.
Khaznadar (1999) cita como exemplo fenômenos espetaculares originários
fora do eixo cultural europeu dominante e que são frequentemente enqua-
drados em denominações teatrais ocidentais. Para ele, “Um Nô não é teatro
é um Nô, o Kathakali, a mesma coisa e assim por diante […] Por conseguinte,
não é necessário apelar para Sófocles ou Shakespeare para estudar um Nô
ou o Kathakali”. (KHAZNADAR, 1999, p. 56) O estudioso aponta mais precisa-
mente sobre os objetos espetaculares analisados no campo da etnocenologia:

As formas espetaculares que entram no campo da etnocenologia são


aquelas que são próprias de um povo, que são a expressão particular
de sua cultura, que não pertencem ao sistema codificado do teatro
tradicional; as formas mestiçadas não excluídas do seu campo de estudo,
na medida em que são reconhecidas ou adotadas pela sociedade à
qual são destinadas, na qual integram-se ao patrimônio vivo, e na me-
dida em que fazem parte do seu corpus de expressões espetaculares.
É o que acontece com o candomblé ou o Bumba Meu Boi no Brasil,
o Rai na Argélia, o Chau de Serakella na Índia etc. (KHAZNADAR, 1999,
p. 58)

A observação feita pelo pesquisador francês quanto ao estabelecimento


de parâmetros de análise que partem de uma cultura ocidental ou ocidenta-
lizada para outras formas e culturas espetaculares encontra eco no pensa-
mento do brasileiro Armindo Bião, que aponta dois paradigmas conceituais
como enfrentamento ao etnocentrismo: a alteridade e o multiculturalismo.
Para o pesquisador brasileiro, esses referenciais identitários estão localizados
nas demais etnociências, assim como na etnocenologia: “[…] o acréscimo do
prefixo etno a essas disciplinas serviu para explicitar uma perspectiva episte-
mológica e metodológica”. Além disso, para ele, ao se reportar aos “diversos
povos e raças”, o pressuposto paradigmático da alteridade e do multicul-
turalismo “pretende evacuar os preconceitos etnocêntricos e positivistas”.
(BIÃO, 1999, p. 16)

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 21 22/07/2022 16:26:35


22 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Mesmo afirmando que a etnocenologia surge como forma de combater


o eurocentrismo, e aqui tomando como referência a sua primeira publicação
literária em português, nota-se uma abordagem de cunho conservador no
que tange à percepção e à interpretação dos objetos em análise em relação
aos demais referenciais de disciplinas ou áreas de estudo que também se
dedicam às manifestações localizadas na ordem cultural do espetacular.
Dito isso, partimos para algumas reflexões sobre objetos espetaculares
que compõem parte do escopo analisado pelo filtro etnocenológico produ-
zido e legitimado pela sua comunidade acadêmica. O referencial de corpo
e de teatro dos pesquisadores da etnocenologia fundado em bases ociden-
talizadas se apresenta como prioritário na percepção dos comportamentos
espetaculares organizados de fenômenos culturais afro-brasileiros abordados
em artigos que compõem a obra analisada, Etnocenologia: textos selecionados.
Dessa forma, a atenção volta-se para os textos do livro tentando localizar as
pretendidas rupturas com o eurocentrismo.
Na segunda parte do livro, um conjunto de estudos versa sobre fenô-
menos culturais espetaculares. São eles: a culinária do acarajé, a dança do
Quilombo de Limoeiro de Anadia e o Lambe Sujo e os Caboclinhos, os contos
de fadas, a gestualidade do gaúcho do Rio Grande do Sul, o Ayahuasca da
Amazônia ocidental, entre outros.
Os textos são resultado de trabalhos realizados por investigadores não
pertencentes de forma direta aos grupos analisados. Em geral, estão em
foco formas espetaculares que não se associam a um sistema codificado
ocidental de teatralidades, e seus(suas) pesquisadores(as) tiveram formação
acadêmica no Brasil e/ou em universidades europeias.
Não se trata aqui de definir a autorização de quem pode ou deve falar e
sobre o quê e sobre quem. Não é a reivindicação do lugar de pertencimento
associado diretamente a um posicionamento crítico e sua consequente legi-
timação da fala. Mas, sim, a discussão que se estabelece sobre reflexividade,
entendendo-a como movimento de problematização das hierarquias. No campo
das Ciências, é apresentado como uma

[…] tentativa de incluir criticamente o sujeito que investiga, suas visões


de mundo no âmago das representações e os ideários da pesquisa.
O sujeito é estudado, conjuntamente com suas cosmovisões, construindo
não um objeto, mas uma negociação, um tapete que traduz, de modo

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 22 22/07/2022 16:26:35


PERCEBER E CONCEBER 23

sempre provisório, um encontro, um diálogo multiversal. (COUTINHO;


SILVA; MACIEL, 2018, p. 329)

Porém, questões que rondam esse complexo universo de encontro entre


diferenças vêm sendo sinalizadas desde o nascedouro da referida disciplina.
Nota-se a presença de células iniciais que envolvem essa discussão em narrativas
de alguns de seus autores fundadores. Ao percorrer a trajetória de desen-
volvimento acadêmico da etnocenologia, partindo do sujeito-pesquisador,
o professor Bião propõe um indicativo metodológico para concepção de
projetos de pesquisa pautado na seguinte tríade: objeto, trajeto, projeto.
Essa proposição aventa, de forma breve, rápidas aproximações com as
atuais discussões trazidas pela pesquisadora, feminista e antirracista Djamila
Ribeiro e suas reflexões sobre a negritude e o conceito de lugar de fala.
Ao apresentar o percurso de quem observa, como propõe Bião (2007), é dada
a oportunidade ao(à) leitor(a) de conhecer o olhar de quem está falando e,
possivelmente, ser afetado(a) criticamente por esse dado na interpretação
da pesquisa e seus resultados. Entretanto, as narrativas de Ribeiro vêm de
lugares onde se encontram o pertencimento do seu corpo, mulher negra,
e o engajamento político de seu discurso.
Na etnocenologia, considerando o discurso literário apresentado no seu
primeiro livro publicado no Brasil, os(as) escritores(as), em grande maioria,
têm ligação com universidades francesas e/ou brasileiras, abordam objetos
de análise afrodiaspóricos, populares, ameríndios, mas exploram prioritaria-
mente referenciais teóricos europeus para grande parte de suas reflexões.
Muitos dos fenômenos espetaculares analisados que compõem o escopo
do livro são vistos socialmente num lócus de inferiorização que evidencia
uma hierarquia corporal superior de quem pensa/escreve em contraponto
ao corpo que faz/movimenta, do corpo que vê pesquisador(a) – ao corpo
que é visto – fenômenos culturais de caráter popular. De forma simplificada,
podem ser observados localizadores sociais que situam corpos em agrupa-
mentos de raça, localização geográfica, diferenças culturais, em invenção de
categorias submetidas a uma estrutura de poder e ao beneficiamento de
alguns em detrimento da qualidade de vida de outros. A respeito de culturas
negras e seus agentes, Ribeiro (2017, p. 35) afirma:

As experiências desses grupos localizados socialmente de forma hie-


rarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais,

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 23 22/07/2022 16:26:35


24 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado,


além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estru-
turalmente. Isso, de forma alguma, significa que esses grupos não criam
ferramentas para enfrentar esses silêncios institucionais, ao contrário,
existem várias formas de organização políticas, culturais e intelectuais.
A questão é que essas condições sociais dificultam a visibilidade e a
legitimidade dessas produções.

As observações da autora a propósito das questões raciais apontam


também para uma crítica à universalização epistemológica. Para Ribeiro
(2017, p. 16):

A consequência dessa hierarquização legitimou como superior a ex-


plicação epistemológica eurocêntrica conferindo ao pensamento mo-
derno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido,
estruturando-o como dominante e, assim, inviabilizando outras expe-
riências do conhecimento.

Trazendo as reflexões do feminismo negro para dialogar com a etnoce-


nologia, nota-se a presença de rápidos pontos de contato quando a disciplina
acadêmica se volta para o “combate ao etnocentrismo”, expressão que faz
parte do texto de autoria do professor Armindo Bião. Abre-se aqui uma re-
flexão acerca da pretensa universalidade anunciada por Ribeiro e do regime
de legitimação e autorização discursivas, associados ao conhecimento reco-
nhecido pelas universidades que reproduzem na sua estrutura colonizadora
a afirmação da linguagem escrita, assim como das representações espetacu-
lares referendadas no teatro branco-greco-ocidental.
Ao se voltar para fenômenos espetaculares, Bião fala do multiculturalismo,
o que poderia ser a coexistência de múltiplas vozes problematizando o siste-
ma e as relações de poder que colocam a universidade, logo a etnocenologia,
em lugar privilegiado de legitimação de saberes e linguagens. Entretanto,
o autor não aprofunda e não apresenta meios, práticas e reflexões que demons-
trem o seu engajamento nessa proposição anunciada.
Ao considerar a produção textual publicada no livro Etnocenologia: textos
selecionados, percebe-se uma intencionalidade registrada de combate ao
etnocentrismo, mais precisamente ao eurocentrismo. Entretanto, essa frase
não se efetiva nas narrativas textuais que compõem a obra. Apresentamos

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 24 22/07/2022 16:26:35


PERCEBER E CONCEBER 25

pontos que revelam esse distanciamento: a quase exclusividade de referências


bibliográficas e a ausência de depoimentos com as vozes dos(as) que agen-
ciam os fenômenos analisados; a transposição do que é próprio do teatro
convencional para leitura e designação dos fenômenos espetaculares vincula-
dos a outras matrizes culturais, a exemplo do uso de termos como “dramaturgia
encenada; dança dramática”.5 Essa reprodução baseada no referencial euro-
peu foi criticada por Bião (2009, p. 36) ao se reportar à Antropologia Teatral:6
“Do ponto de vista léxico, considero que a expressão, antropologia teatral,
reforça o etnocentrismo europeu, que privilegia o teatro em detrimento de
outras artes e formas espetaculares […]”. Na sua proposição de luta contra
o eurocentrismo, o pesquisador brasileiro chega a propor: “Nós podemos
sempre usar outras palavras como espetáculo, função, brincadeira, brinquedo,
apresentação, folguedo, xirê, jogo ou festa, conforme quem vive e faz chama
aquilo que faz e vive”. (BIÃO, 2011, p. 355) Ao tempo que propõe a escuta e
o uso de termos gerados pelos próprios produtores do conhecimento espe-
tacular a ser pesquisado, Bião se contradiz, descartando essa possibilidade,
afirmando: “Apesar do valor positivo dessa atitude, pode-se perceber cla-
ramente sua plena impossibilidade, pois ao fim e ao cabo deste exercício,
o que restaria como discurso compartilhável com quem ainda não conhece
esse desconhecido?”. (BIÃO, 2011, p. 353) Dessa forma, um dos principais
pensadores da etnocenologia revela priorizar a comunicação entre seus
pares acadêmicos, com uso de termos e palavras já familiares ao universo
teatral privilegiado epistemologicamente a ter de traduzir em discursos
textuais e comunicativos narrativas mais próprias dos léxicos gestados pe-
los(as) próprios(as) autores(as) dos conhecimentos e fenômenos espetacu-
lares analisados.
Mesmo distante temporalmente das discussões decoloniais da atuali-
dade que problematizam a colonialidade do saber, a etnocenologia, no final
da década de 1990, ensaia uma criticidade em relação ao seu próprio meio

5 Uso aplicado dos termos citados no texto “A dramaturgia histórica da dança do Quilombo”,
nas páginas 117-133, do livro Etnocenologia: textos selecionados.
6 “Como define seu principal teórico e fundador Eugenio Barba. A antropologia teatral é
uma ciência pragmática que estuda as bases técnicas do trabalho do ator a partir de
um processo comparativo com os vários estilos de interpretação do teatro oriental e
ocidental”. (ANTROPOLOGIA…, [2020])

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 25 22/07/2022 16:26:35


26 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

de origem, o acadêmico, porém não parece mostrar rupturas metodológicas


na sua prática. O panorama exposto em capítulos que compõem a segunda
parte do livro revela uma obediência aos parâmetros europeus, seja nas re-
ferências estéticas no campo da representação ou na estrutura formal da
escrita. Parece que uma não continuidade desse aprofundamento crítico no
seio da etnocenologia desacelerou um desenvolvimento dos paradigmas do
multiculturalismo e da alteridade pautados numa práxis metodológica mais
coerente com seus enunciados.
O livro apresenta-se como um mosaico com textos que convergem para
pontos comuns e outros que se friccionam, revelando alguns distanciamentos
de pontos de vista. Khaznadar (1999, p.  59) diz que a etnocenologia é “o
conceito e a disciplina que permite dar, outra vez, aos povos, os meios para
praticar os seus próprios sistemas de referências, para se libertar das ideo-
logias dominantes e resistir à uniformização cultural”. Ao nos fixarmos sobre
essa afirmação, podemos encontrar no verbo usado “dar” uma pseudo au-
torização a ser emitida para quem não a tem. A etnocenologia seria a pro-
motora da emancipação dos “povos” ao fornecer os meios para uma prática
autorreferenciada, o que se revela como um paradoxo em relação ao que
ela anuncia no seu manifesto de fundação.
Quanto à questão metodológica, o professor francês Patrice Pavis, um dos
autores de um artigo escrito no ano de 1995 e publicado no Etnocenologia:
textos selecionados, revela algumas reflexões críticas e que sinalizam a cons-
trução de caminhos possivelmente mais coerentes com os paradigmas
anunciados no projeto de criação do que se chamou uma nova disciplina.
Voltando-se para práticas espetaculares não-ocidentais, afirma:

A análise das práticas espetaculares não ocidentais ou interculturais


força-nos a repensar o conjunto dos métodos de análise, a adaptar o
olhar semiológico ocidental, que não pode permanecer puramente
funcionalista, mas deve tentar compreender o âmago da outra cultura,
o que convida o etnocenólogo a fazer algumas incursões no terreno
da prática. Mas, como modificar o olhar da análise clássica ocidental?
(PAVIS, 1999, p. 148)

Em que medida a etnocenologia poderia se descolonizar ou inserir outros


meios e jeitos de produzir conhecimentos ao abordar práticas culturais não-
-ocidentais, de matrizes culturais diversas; pensar a inserção de uma produção

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 26 22/07/2022 16:26:35


PERCEBER E CONCEBER 27

corporal proveniente de outros centros para além das universidades desde


quando ela mesma é gerada por pessoas e meios que estão localizados em
lugares privilegiados de poder? Esse desafio é anunciado por Pavis. Ele diz
que a etnocenologia não deve projetar sobre as diferentes práticas espeta-
culares “o modelo bastante reducionista do teatro ocidental”. (PAVIS, 1999,
p. 147) Entretanto, é o que percebemos aplicado eventualmente nos tex-
tos selecionados que compõem a obra aqui analisada, sobretudo nos que
se debruçam sobre práticas culturais de matriz africana, localizadas fora do
centro das teatralidades de matriz branco-europeia.
Interessa à etnocenologia fazer uma revisão de referenciais e das estrutu-
ras que imperam nas academias e que a referenciam e a colocam num lugar
de privilégios? A partir do que Pavis indica em seu texto, podemos aventar
que a etnocenologia não esteve alheia a essa autocrítica. Para ele, “[…] o Oci-
dente não chega a teorizar sobre noções retóricas e mágicas como as da
presença, da energia, do real e da autenticidade, enquanto conceitos fluidos
que são como aquilo que não foi pensado pelo racionalismo”. (PAVIS, 1999,
p.  148) O professor Bião (2011, p.  352) diz que a disciplina em evidência
“pretende desconstruir a hierarquia entre as culturas”. Ainda ao falar da et-
nocenologia, afirma que “[…] todos afirmam seu respeito pelo outro e a im-
portância de se conhecer o discurso interno dos praticantes do fenômeno
que se estuda, seus termos, suas palavras”. Nessa sua observação, aponta
uma possibilidade de combate ao eurocentrismo quando diz: “Assim, se pode-
ria evitar o etnocentrismo do pesquisador, sempre traduzindo o que é des-
conhecido para o que já se conhece, usando seus próprios termos”. (BIÃO,
2011, p. 353) No entanto, o autor contesta essa atitude e sua validação como
antietnocêntrica, como já dito. O próprio Bião apresenta no formato afirma-
tivo uma questão mobilizadora. Para ele,

Talvez aí resida um de nossos paradoxos (dos etnocenólogos, em par-


ticular, e de todos os seres humanos, em geral): somos humildes a
ponto de querermos conhecer e valorizar o outro e arrogantes ao
imaginarmos que o compreenderemos como ele se compreende a si
próprio. (BIÃO, 2011, p. 353)

A etnocenologia funciona como um espelho que reflete questionamentos


que transcendem seus próprios postulados. Servem como observação para

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 27 22/07/2022 16:26:35


28 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

pesquisadoras e pesquisadores que buscam e alcançam rupturas com a


própria formação e sistemas de poder e intentam ampliar visões e percepções
para outros cosmos culturais, geralmente localizados na periferia do recor-
rente centro europeu. Pavis (1999, p. 148) sinalizou caminhos: “[…] sistemati-
zaremos as novas prioridades e indicaremos sobre as quais se deverá dirigir
o olhar. Trata-se – insistimos bastante nisso – mais de uma mudança de
atitudes e de ênfase, do que propriamente de substituição de um método
por outro”.
Ao tomar a etnocenologia como objeto, considerando a sua primeira pu-
blicação brasileira em livro, pode-se ali encontrar pontos de discussão que
foram posteriormente desenvolvidos por áreas outras de conhecimento.
Alguns fachos de luz foram lançados. Cabe saber se os trajetos que a disciplina
vem percorrendo estão coerentemente em consonância com seus enuncia-
dos iniciais. Tanto na pesquisa como na arte, o fazer é percurso e criação.7
De 1999, data de publicação do livro branco da etnocenologia, aos dias atu-
ais, mais de duas décadas se passaram. O processo de desenvolvimento da
etnocenologia nos últimos anos, tomando como referência o local de seu
nascedouro no Brasil, citando a Universidade Federal da Bahia (UFBA), passa
por um processo menos produtivo se comparado à primeira década do ano
2000, percebido na limitação de surgimento de novas publicações, na redução
de teses e dissertações defendidas, na não oferta do componente curricular
em cursos de graduação e pós-graduação e com um quantitativo baixo de
pesquisadores(as). Essa constatação, no entanto, não se afirma como uma
anulação da disciplina, pois os anúncios iniciais da etnocenologia registrados

7 O pesquisador Adailton Santos defendeu sua tese, intitulada A etnocenologia e seu mé-
todo: um olhar sobre a pesquisa contemporânea em Artes Cênicas no Brasil e na França,
no ano de 2009, no Programa De Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal da Bahia (PPGAC/UFBA), sob a orientação de Armindo Bião e Idelette Muzart.
Posteriormente, a tese foi publicada em livro, no ano de 2012, pela editora da UFBA
(Edufba). Para Santos (2012, p. 66), “A etnocenologia no Brasil é restrita à academia e
continua girando em torno da influência do professor Armindo Bião”. Armindo Jorge
de Carvalho Bião faleceu no ano de 2013, em Salvador, Bahia. Atualmente, a Universidade
Federal do Pará (UFPA), em Belém, se destaca como um local de produtividade con-
siderada na área da etnocenologia, seja na realização de eventos, na defesa de teses
e dissertações ou na oferta de componente curricular. Alguns dos pesquisadores que
atuam na UFPA realizaram suas pesquisas de mestrado e doutorado no PPGAC/UFBA
e tiveram contato com o professor Bião.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 28 22/07/2022 16:26:35


PERCEBER E CONCEBER 29

na publicação de 1999 a propósito das reflexões em torno da alteridade e


do multiculturalismo estão sendo frequentemente atualizados por diversas
outras áreas de estudo em discussões acerca dos fenômenos sociais, de forma
que aproximações entre os estudos decoloniais e antirracistas e a etnoceno-
logia podem gerar inferências relevantes no campo dos estudos das espe-
tacularidades. Nesse contexto, que a etnocenologia continue sendo projeto
e reflexo do que ela anunciou, colocando como atuantes a coerência e a
sensibilidade crítica na percepção e na concepção de suas práticas, pesquisas
e publicações.

Referências
AGGIO, J. O papel do corpo na percepção segundo Aristóteles. Trilhas Filosóficas,
Caicó, RN, ano 2, v. 2, p. 62-71, dez. 2009. Disponível em: http://periodicos.uern.br/
index.php/trilhasfilosoficas/article/view/73/73. Acesso em: 29 abr. 2021.
ANTROPOLOGIA teatral. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. [S. l.], [2020].
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia_teatral. Acesso em:
1 abr. 2021.
BERNARDINO-COSTA, J.; GROSFOGUEL, R. Decolonialidade e perspectiva negra.
Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 31, n. 1, p. 15-24, jan./abr. 2016.
BIÃO, A. A presença do corpo em cena nos estudos da performance
e na etnocenologia. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 1,
n. 2, p. 346-359, jul./dez. 2011.
BIÃO, A. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A, 2009.
BIÃO, A. Etnocenologia, uma introdução. In: BIÃO, A.; GREINER, C. (org.).
Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999. p. 15-21.
BIÃO, A.; GREINER, C. (org.). Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo:
Annablume, 1999.
BLANCO. Interpretação: Marisa Monte. Composição: Octavio Paz. Tradução:
Haroldo de Campos. In: BARULHINHO bom. Interpretação: Marisa Monte. [S. l.]:
EMI, 1996. 1 CD, faixa 18.
COUTINHO, D. P. R.; SILVA, J. A. M.; MACIEL, J. C. Sobre o modelo decolonial:
a importância do outro e a urgência de seu olhar. Ciências Sociais Unisinos,
São Leopoldo, RS, v. 54, n. 3, p. 328-335, set./dez. 2018.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 29 22/07/2022 16:26:35


30 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

DUSSEL, E. Europa, modernidade e Eurocentrismo. In: LANDER, E. (org.).


A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais perspectivas
latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 24-32. (Colección Sur-Sur).
KHAZNADAR, C. Contribuições para uma definição do conceito de etnocenologia.
In: BIÃO, A.; GREINER, C. (org.). Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo:
Annablume, 1999. p. 55-59.
PAVIS, P. Análise do espetáculo intercultural. In: BIÃO, A.; GREINER, C. (org.).
Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999. p. 147-156.
PAVIS, P. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
PLATÃO. Teeto. Tradução Carlos Alberto Nunes. [S. l.: s.n.], [201-]. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000068.pdf. Acesso em:
1 abr. 2021.
PRADIER, J.-M. Etnocenologia. In: BIÃO, A.; GREINER, C. (org.). Etnocenologia:
textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999. p. 23-29.
PRADIER, J.-M. Etnocenologia: as encarnações do imaginário.
Unidade da espécie. Diversidade dos olhares. Revista de Antropologia,
São Paulo, v. 56, n. 2, p. 99-136, 2013.
RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? São Paulo: Letramento, 2017.
SANTOS, A. A etnocenologia e seu método: pesquisa contemporânea
em artes cênicas. Salvador: Edufba, 2012.
SODRÉ, M. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 30 22/07/2022 16:26:35


31

Patrimoine immatériel scénique africain:


des œuvres d’art, hors des normes coloniales en haïti
et au brésil?

Christine Douxami

Entre revendication identitaire nationale et affirmation


de la négritude: la place du patrimoine immatériel
en Amérique Latine des années 1930 à nos jours,
les cas plus spécifiques d’Haïti et du Brésil
Dès les années 1920 en Amérique Latine avec les mouvements dits
“ indigénistes”, des poètes, plasticiens, metteurs en scène, chorégraphes,
issus du Sud -nous incluons ici la péninsule ibérique − cherchèrent dans
les manifestations aujourd’hui dénommées de patrimoine immatériel,
une source d’identité et d’inspiration à même de donner une “originalité na-
tionale et personnelle” à leurs travaux artistiques. Dans le même temps,
les États, nouvellement indépendants d’Amérique Latine, s’appuient
également sur ces derniers pour créer une nouvelle identité nationale,
plus ou moins émancipée de celle de la colonie dont ils sont issus,
puisque la majorité des élites dominantes (blanches ou métisses) des
nouveaux régimes, exceptés en Haïti du fait de la Révolution haïtienne,
sont directement issus de cette dernière.
Or il exista concomitamment, en Europe, dès les années 1920, un élar-
gissement du champ de l’art, plus particulièrement avec le mouvement

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 31 22/07/2022 16:26:35


32 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Dada, qui “libère” l’artiste et “l’autorise” à se pencher sur d’autres matériaux


qu’il soit plasticien ou metteur en scène. De plus, des mouvements, tels que
le primitivisme ou le mouvement cubiste (dès 1907 avec les Demoiselles
d’Avignon, de Picasso) ont parallèlement intégré d’autres horizons culturels
dans leurs œuvres et ont décloisonné l’Art. Les artistes du Sud, souvent au
contact de leurs pairs du Nord par le biais de différents “aller-retour” tran-
socéaniques, incorporent cette transformation au cœur même de la définition
de ce qu’est, ou non, une “œuvre d’art”. La notion d’œuvre d’art qui serait
réservée à l’art des colonisateurs est ainsi questionnée. (CÉLIUS, 2015) Ainsi,
Blaise Cendrars, immergé dans la diffusion de “l’art nègre” en France, partage
ses idées auprès de Mario de Andrade, futur instigateur du Mouvement An-
thropophagique au Brésil et surtout précurseur dans la législation de recon-
naissance et de valorisation de l’art populaire et du folklore dans les années
trente1. Mario de Andrade était d’ailleurs en lien avec son homologue haïtien,
Jean Price-Mars, comme le souligne Normélia Parise (2014) et Myriam Mont-
point (2008).
S’ensuit alors une pratique d’introduction et d’articulation d’éléments
issus de patrimoines immatériels à l’art contemporain (incluant ici les arts de
la scène). Carlo Célius nous éclaire sur cette pratique en Haïti. Son analyse
entre en résonnance avec ce qui s’est passé au Brésil mais également dans
le reste de l’Amérique Latine, à Cuba par exemple avec le travail de Fernando
Ortiz à la même période, par-delà les différence historiques des mouvements
d’indépendance, Haïti ayant initié le mouvement d’abolition de l’esclavage
lors de sa déclaration d’indépendance en 1804, 84 ans avant la fin de l’escla-
vage au Brésil. Dès les années1930, c’est une modification du regard porté
sur leur patrimoine national, qui permet aux artistes de ces sociétés nouvel-
lement indépendantes de s’intéresser à des thèmes issus du folklore “indigène”

1 L’action de Mario de Andrade est comprise jusqu’à aujourd’hui comme le point de dé-
part de la réflexion brésilienne autour du Patrimoine culturel immatériel, qui a permis
au Brésil de mettre en place une législation favorable dès sa constitution de 1934, puis
le décret de 1937 protégeant une catégorie d’objets dit «ethnographiques, indigènes
et d’art populaire» aboutissant à une gestion proche de celle de l’UNESCO de 2003 dès
2000 et d’être également très actif dans nombre de conférences de l’UNESCO aboutis-
sant à la Convention du Patrimoine Culturel Immatériel de 2003.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 32 22/07/2022 16:26:36


PATRIMOINE IMMATÉRIEL SCÉNIQUE AFRICAIN 33

ou “afro”. Les références de “ce qui fait Art” ne se veulent plus issues de l’Art
du colon, comme l’explique Carlos Célius (2015, p. 120-121):

Pendant tout le XIX e siècle, le seul domaine de la création plastique


que les élites légitimaient étaient les beaux-arts hérités de la période
coloniale. Le renouveau est survenu entre les années 1930 et 1950,
en lien avec le tournant ethnologique dans l’histoire intellectuelle du
pays qui redéfinit la société en mettant en valeur des composantes
culturelles jusque-là minorées, voire rejetées (Célius [dir.] 2005). Tout
cela n’est pas sans rapport avec les impacts de courants de la mo-
dernité artistique européenne où le primitivisme a joué un rôle non
négligeable. […] Tout d’abord, est apparu dans les années 1930 un
courant pictural promouvant une modernité indigène dont l’un des
gestes emblématiques a consisté en l’introduction dans la tradition
interne des beaux-arts de thèmes tirés de conditions subalternes: situa-
tion des paysans, univers des quartiers populaires urbains, pratiques du
vodou, etc. On en mesure la portée quand on sait que les beaux-arts,
imposés pendant la période coloniale comme éléments de l’appareil-
lage symbolique de domination, ont fait l’objet d’une véritable conquête
politique de la part des élites coloniales émergentes puis des élites
nationales, qui s’en sont servi comme instrument d’affirmation de soi
aux yeux de l’étranger mais aussi comme facteur de différenciation
sociale sur le plan interne (Célius 2000, 2009a et 2009b). L’introduction
des conditions subalternes dans l’univers d’autovalorisation des élites,
même sur un mode folklorisé, a affecté et perturbé les représenta-
tions collectives dominantes.

L’enjeu soulevé ici par Carlo Célius est bien celui de la colonisation des
imaginaires et de la volonté des élites nationales des pays nouvellement in-
dépendants, de se pencher sur ce qui pourrait les distinguer des anciens
colons. Cependant, ces mêmes élites des nouvelles nations latino-américaines,
sont elles-mêmes issues du système colonial et demeurent en quête de
reconnaissance internationale tant diplomatique qu’économique. La reconnais-
sance de leur patrimoine national, de leur “folklore”, s’avère parfois straté-
gique mais non antithétique avec une fascination pour l’ancienne colonie et sa
culture exportée et transformée dans le Nouveau Monde. On a ainsi pu voir,
au Brésil, Getulio Vargas dans les années trente faire l’éloge de la démo-
cratie raciale brésilienne et de l’apport de la matrice africaine sous l’égide

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 33 22/07/2022 16:26:36


34 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

théorique de Gilberto Freyre tout en gardant une stricte pigmentocratie qui


plaçait le Blanc en haut de l’échelle et le Noir à sa base, tant dans les interac-
tions sociales qu’en ce qui concerne la production culturelle.
Cependant, certains artistes et avant-gardes intellectuels, tels l’écrivain
Stefen Alexis en Haïti ou le metteur en scène Solano Trindade au Brésil
(DOUXAMI, 2002), à cette même période, associent cette fascination de leurs
élites nationales pour la culture de l’ancien colon à une appartenance de
classes et de races. Mais leur lutte ne se restreint pas uniquement à une re-
connaissance du patrimoine immatériel des populations noires soumises au
racisme à l’instar des hérauts de la négritude mais à l’ensemble du « Peuple »
-haïtien ou brésilien en l’occurrence-, soumis à la violence du capitalisme
issu du colonialisme. Tous deux communistes, ils revendiquent l’apport des
africains, sans oublier celui des indiens et des colons européens, dans la
construction originale d’un peuple haïtien ou brésilien caractérisé cependant
en dernier ressort par l’impact de sa négritude. Or c’est cette originalité na-
tionale au sein du “Peuple”, qui serait à l’origine d’un patrimoine immatériel
lui-même unique et par là-même source d’une création contemporaine ar-
tistique singulière.
Grâce à l’indication de Carlo Célius, nous avons pu constater l’engage-
ment de Stefen Alexis lors de sa communication au sein du Premier Congrès
International des écrivains et artistes noirs de 1956 pour la valorisation du
folklore haïtien, vecteur de modernité artistique. Son texte, “Du réalisme
merveilleux des Haïtiens” (ALEXIS, 1956) appelle les artistes haïtiens à inclure
les différentes formes du patrimoine immatériel haïtien à leurs créations
artistiques afin de faire “vibrer le peuple” à qui ces œuvres sont destinées.
Les artistes sont invités à faire leur la culture populaire:

Il y a justement dans toutes les cultures nationales un trésor de formes


populaires originales qui ne sont encore que fort peu utilisées par les
artistes professionnels; il est clair que ceux-ci peuvent adapter, selon
leur personnalité propres, ces formes, en tenant compte bien enten-
du des traditions du passé ou même créer des formes entièrement
neuves qui respectent l’esprit national. C’est une glorieuse mission
pour les créateurs partisans d’un réalisme social vivant et d’une es-
thétique populaire que de puiser dans ce trésor qu’enrichissent con-
tinuellement les peuples et qui sont dédaignées par les artistes moins
clairvoyants. (ALEXIS, 1956, p. 262)

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 34 22/07/2022 16:26:36


PATRIMOINE IMMATÉRIEL SCÉNIQUE AFRICAIN 35

Stefen Alexis (1956, p. 260) s’oppose aux partisans d’un Art pur, d’un Art
pour l’Art à la fois non emprunt de son utilité social et non réaliste (rappelons
qu’il revendique le réalisme merveilleux) ni de sa marque nationale puisque
marqué par les codes des Beaux-Arts occidentaux. Pour l’auteur, il ne s’agit
pas tant de revendiquer un engagement politique et révolutionnaire dans le
contenu de l’œuvre mais dans la forme adoptée qui puise dans un savoir po-
pulaire issu de traditions haïtiennes syncrétiques. Adopter une forme issue
de ce que l’on dénommerait aujourd’hui patrimoine immatériel est politique
en soi, indépendamment du discours adopté. Si l’artiste s’approprie un son,
un contour, une image, propre à ce savoir, il a un impact sur la perception de
l’identité nationale et de la nation, non plus vue comme une succursale de la
colonie mais comme une entité propre, globalement «dominée par l’élément
africain»(ALEXIS, 1956, p. 255) dans le cas d’Haïti.
Au Brésil, à cette même période, Solano Trindade, Haroldo Costa ou Abdias
Nascimento, chercheront également à voir dans les formes issues de cultures
africaines, la marque d’une nouvelle brésilianité. (DOUXAMI, 2001) Alors que
la politique nationale du pays à l’époque étaient au blanchiment, ces artistes
cherchaient à négrifier l’art, et par là même, l’imaginaire national. Il s’agissait,
pour Roger Bastide (1961, p. 11), «d’un mulatisme comme négrification et
non plus comme aryanisation»,2 c’est-à-dire le contraire des théories en
vogue dans le Brésil de cette période.

Intégrer le patrimoine immatériel dans de nouvelles formes


artistiques en Haïti et au Brésil, aujourd’hui, ou considérer
ce dernier comme une œuvre d’art?
En Haïti, à la suite de Stefen Alexis, s’est développé toute une iconogra-
phie autour du vaudou dans les Arts plastique, le thème de cette religion

2 Rappelons que le «mulatisme» est une théorie qui fut développée au début des an-
nées 1930, entre autres par Gilberto Freyre, dans le cadre de la construction de la dé-
mocratie raciale qui valorisait le métissage brésilien comme élément fondateur de la
nation, inscrivant ce dernier dans une perspective de blanchiment, puisqu’à terme,
il devait faire de la nation brésilienne une nation blanche, ou en tout cas plus claire,
donc «meilleure». Mais les militants noirs ont vu l’inverse : grâce au métissage, la nation
allait devenir plus noire.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 35 22/07/2022 16:26:36


36 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

afro devenant central dans la production plastique jusqu’à aujourd’hui.


On retrouve la présence de cette dernière également dans la performance
et dans le théâtre. Lors d’un entretien avec Carlo Célius en février 2017,
ce dernier expliquait ainsi cette interpénétration entre patrimoine immatériel
et théâtre en Haïti:

Le metteur en scène Félix Morisseau-Leroy a longuement réfléchi à


une interaction de la transe vaudou et de l’état modifié de conscience
de l’acteur sur scène. Des texte de Price Mars, s’intéresse également à
l’ethnodrame, et cherche à le théoriser. D’autres auteurs ont prolon-
gé la réflexion sur le sujet comme Franck Fouche (Vodou et théâtre.
Pour un théâtre populaire) ou encore Louis-Jean Antonio (La crise de
possession et la possession dramatique), Marie-Jose Alcide Saint Lot
(Vodou, a Sacred Theatre. The African Heritage in Haiti).3

Notons, d’ailleurs, que Price Mars était l’interlocuteur de Mario de Andrade.


La performeuse contemporaine Barbara Prézeau Stenfenson a ainsi déve-
loppé tout un imaginaire autour du vaudou, comme j’ai pu le constater lors
de la présentation de sa performance Discrimination/Paris dans le cadre du
séminaire que je co-organise, à la Cité des Arts, à Paris, du 13 juin 2019,
où elle faisait référence à la déesse Erzulie, au travers de l’utilisation de tis-
sus rose et vert clairs, sans toutefois le revendiquer explicitement lors de
la représentation.
Cette présence d’une religion afro, en l’occurrence le vaudou en Haïti et
le candomblé au Brésil, au sein des revendications d’un théâtre à la fois noir
et revendiqué comme spécifiquement haïtien ou brésilien. De Price Mars en
Haïti et d’Abdias Nascimento au Brésil à Barbara Prézeau Stefenson (Haïti)
ou Fernanda Julia du groupe NATA (Brésil, avec sa pièce Exu, par exemple),
aujourd’hui, les religions afro sont considérés comme des marqueurs es-
thétiques (DOUXAMI, 2001) dans leur volonté de se démarquer d’un théâtre
héritier des formes coloniales françaises et portugaises. Or cette quête
d’identité qui se confond entre une identité spécifique, noire en l’occurrence,
et une identité nationale fut une constante jusqu’à présent, dans les mouvements

3 Entretien avec Carlo Célius, 14 février 2017, 1 heure, à Paris dans un restaurant du 6e
arrondissement.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 36 22/07/2022 16:26:36


PATRIMOINE IMMATÉRIEL SCÉNIQUE AFRICAIN 37

militants noirs en Haïti comme au Brésil, même si l’actuelle situation politique


brésilienne tend à exclure les afro-brésiliens dans le processus de construc-
tion d’une identité nationale. Les affres du “diviser pour mieux régner” de la
gouvernance récente, tendent à isoler les revendications dites des “minorités” 
à leur sphère “ethnique” et non nationale.

CHIFFRE 1: Performance “Discrimination/Paris”, Barbara Prézeau Stefenson, 13 juin


2019, à la Cité des Arts, Paris, dans le séminaire Les arts en Afrique et dans ses diasporas:
pratiques, savoirs, mobilités (EHESS)
Photo: Christine Douxami.

Mais, par-delà le marqueur esthétique que constitue les religions afro,


ces dernières acquièrent parfois, à l’instar d’autres manifestations de patrimoines
immatériel, un statut d’œuvre d’art à part entière. Lorsque le curateur de la
Biennale de Bahia de 2015, Ayrson Heraclito, décide d’inviter des maîtres
de manifestations de patrimoines immatériels dans le Musée d’Art Moderne
de Bahia, qu’il leur donne le nom de performeur, leur permet de donner
des ateliers aux côtés d’autres artistes-chorégraphes performers et qu’il les
place en ouverture de la Biennale, il s’agit d’un changement de statut de ce

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 37 22/07/2022 16:26:38


38 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

savoir. Le savoir des détenteurs de patrimoine immatériel va être transmis


avec le même statut artistique que celui des autres artistes présents à la
Biennale. Il n’est plus “primitive”, “folklorique” ou “ethnographique” et il ac-
quiert le statut d’art contemporain. De plus, c’est Edivaldo Bolagi, qui appar-
tient parallèlement à l’équipe dirigeante de l’ASSEBA (l’association qui gère le
plan de sauvegarde de la samba de roda), qui a chorégraphié la performance
d’ouverture de la Biennale du 29 mai 2014 avec 33 alabês (hommes dans le
candomblé chargés de chanter en hommage aux orixas) des principaux lieux
de culte du candomblé (Terreiros) et avec l’illustre présence de la chanteuse
Inaicyra Falcão fille de feu Mestre Didi, grand officiant du candomblé.4 Ainsi,
en étant inclus dans la Biennale, le chant des officiants du candomblé et
les danses d’autres patrimoines immatériels acquièrent un statut d’œuvre
d’art. Mais ici aussi se pose la question du secret. Quel savoir issu du patri-
moine immatériel religieux peut-être présenté à un public exogène, non lié
à la religion? La possibilité de rendre public ce savoir religieux évolue. Ce qui
pouvait relever du secret il y a 10 ans est parfois présentable artistiquement
aujourd’hui, du fait de l’implication militante des responsables religieux
quant à la «cause» afro-brésilienne et de la fragilisation du candomblé face
aux nouvelles églises pentecôtistes. Ainsi feu Mãe Estela autorisa la pièce du
Bando de Teatro Olodum intégrant des rituels du cultes, par exemple dans
le spectacle Bença (2010), ce qu’elle n’autorisait pas auparavant.
Or le secret fait partie intégrante de nombre de patrimoines immatériels,
comme le Jongo du sudeste ou le maracatu nação (Pernambuco), le Nego Fugido

4 Neuf grands Terreiros (huit à Bahia et un dans le Maranhão) ont été reconnus en tant
que patrimoine matériel par l’IPHAN. Selon un article du 28 sept. 16 de l’IPHAN:
à Salvador (Bahia) Casa Branca do Engenho Velho, Axé Opô Afonjá , Ilê Iyá Omim Axé
Iyamassé (Gantois), Ilê Maroiá Láji (Alaketo), Bate-Folha, Ilê Axé Oxumaré Itaparica
(Bahia) Omo Ilê Agboulá Cachoeira (Bahia) Terreiro Zogbodo Male Bogun Seja Unde
(Roça do Ventura) São Luís (Maranhão) Casa das Minas Jeje . http://portal.iphan.gov.
br/pagina/detalhes/1312 (consulté le 4. nov. 2016). D’ailleurs, des ateliers sont orga-
nisés par l’IPHAN et l’Université Fédérale de Bahia (Juillet 2015) pour enseigner aux
membres du candomblé comment préserver les lieux de culte (menacés physiquement
par les pratiques des agents immobiliers et par les religions pantecôtistes) et leurs
patrimoines culturels. Selon l’IPHAN une religion ne peut bénéficier d’un statut de
patrimoine immatériel http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/2746/patrimo-
nio-cultural-de-terreiros-de-candomble-e-tema-de-curso-de-extensao-na-bahia,
consulté le 5 nov. 2015.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 38 22/07/2022 16:26:38


PATRIMOINE IMMATÉRIEL SCÉNIQUE AFRICAIN 39

de Acupe (Reconvavo Bahiano), pour ne citer qu’eux, ce qui rentre d’une cer-
taine façon en opposition avec les principes de l’UNESCO quant à la Conven-
tion de 2003 sur le patrimoine immatériel qui prétendait, par le bais des plans
de sauvegarde, faire de ces manifestations des “biens communs”. Pourtant,
pour les brincantes issus de ces patrimoines immatériels, il est difficile de voir
d’autres individus se les approprier, fussent-ils des artistes.
Cependant, l’appropriation par les artistes des formes du patrimoine im-
matériel s’avère, à nos yeux, comme une possibilité de passation du savoir
issu de ces manifestations et ce jusqu’à aujourd’hui. Ce dernier est transmis
à d’autres publics, tant nationalement qu’internationalement, qui n’auraient pas,
en temps normal, accès à ces manifestations. Lorsque la compagnie de Danse
SeraQ, de Belo Horizonte (Minas Gerais, Brésil), menée par Rui Moreira, se pré-
sente à Dakar au Festival Mondial des Arts Nègres de 2010 avec son spec-
tacle Q eu isse, qui réinterprète une manifestation de patrimoine immatériel
du village d’Acupe (Bahia) le Nego Fugido, elle permet à un public non initié
de s’approcher de l’esthétique de cette manifestation. Rui Moreira reprend,
en effet, la jupe faite de feuilles de bananier séchées et tressées, le torse nu,
la langue rouge de colorant, propres au Nego Fugido, qu’il revisite sur une
musique de samba sur laquelle se meuvent ses danseurs dans un décor très
contemporain. Cette installation plastique faite d’un amoncellement labyrin-
thique de cartons en équilibre instables accueille la transe de Rui Moreira,
qu’il reprend également de la manifestation. Tel un Derviche Tourneur,
Rui tourne et “s’envole” au milieu des cartons et s’arrête enfin plaqué au sol.
Le Nego Fugido, a lieu chaque année à Acupe, en juillet, durant trois week-
ends et se joue dans les rues du village. La manifestation réinterprète l’escla-
vage et son abolition en 1888 par la Princesse Isabelle. Les anciens esclaves
ont le visage peint en noir, les gardiens d’esclave ont la jupe en feuilles de
bananier évoquée ci-dessus, dont les feuilles ont une force symbolique in-
déniable car issues des bananiers plantés sur les tombes de leurs ancêtres
esclaves, dans la fazenda à côté du village d’Acupe. Une fois la jupe vêtue,
les brincantes affirment tous entrer dans un état de conscience différent.
La musique jouée reprend les rythmes du candomblé, exceptionnellement
rendu profanes pour cette manifestation, ce qui favorise, néanmoins,
l’induction de la transe, que craigne certains membres de la population,
même ceux des terreiros qui ne reconnaissent pas dans ces manifestations
une transe «organisée» comme l’est celle de l’initié du culte.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 39 22/07/2022 16:26:38


40 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Rui Moreira, en décidant d’extraire certains éléments de cette manifestation


donne un contenu engagé en faveur de la revalorisation des afro-brésiliens
au sein de la société brésilienne mais permet également de transmettre un
savoir, celui de l’esthétique de ce patrimoine immatériel méconnu tant au
Brésil qu’à l’étranger. Il le fait sur la musique de la samba de Rio de Janeiro,
reconnue patrimoine immatériel national par l’IPHAN depuis 2007. Le fait-il
pour rendre cette musique décalée en présence de représentations du Nego
Fugido, ou pour questionner cette mainmise de la samba sur l’identité natio-
nale? Ou simplement pour retirer son potentiel de transe et donc de secret?
A l’exception du Negô Fugido, du Lambe Sujo de Sergipe, du Maracatu
Nação et de nombreuses autres manifestations, bien qu’extrêmement mé-
tissées dans leurs esthétiques et leurs dramaturgies, ces manifestations
portent souvent les stigmates de leurs origines coloniales ibériques, notam-
ment dans les préjugés qu’elles véhiculent vis-à-vis des afro-amérindiens.
Ainsi, dans le Guerreiro d’Alagoas, un noir ne peut que faire le rôle du clown,
pas celui du mestre. Dans le Quilombo d’Alagoas, les rôles du clown Mateus
et de sa femme Catarina, sont à nouveau joués par des Noirs, souvent peint
de noir (Black Face). Dans le Reisado de l’État de Rio de Janeiro, les clowns,
poètes émérites, dont les talents sont admirés, sont là aussi joués par des
afro-brésiliens, à qui l’on prête d’ailleurs des pouvoir liés à la magie de cultes
afro-brésiliens, non clairement définis. Dans ces deux manifestations ils sont
là aussi rarement mestres.
Cependant, la patrimonialisation de ces folklores a fortement modifié
cette situation, qu’il m’a été nécessaire d’étudier en lien avec ma thèse et mon
approche du théâtre noir et des formes de racisme au Brésil. Les préjugés
rencontrés envers les Afro-amérindiens au sein des dramaturgies de ces folgue-
dos, restent souvent présents, ce qui n’invalident pas, cependant, un phénomène
d’appropriation par ces mêmes populations. Ce racisme induit dans la dra-
maturgie reflète la situation post-coloniale du Brésil, notamment en milieu
rural, qui va de pair avec une instrumentalisation des danses-théâtres par
les élites politiques blanches issues de la colonisation qui utilisent fréquem-
ment ces manifestations pour leur propre promotion électorale. (DOUXAMI,
2008, 2015) Les politiques du patrimoine immatériel reflètent deux visions
du Brésil qui s’affrontent entre un Brésil revendiquant une identité nationale
regroupant ses différentes origines reconnues sur un pied d’égalité et un
Brésil conservateur issu de la colonisation. Mais ces plans de sauvegarde

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 40 22/07/2022 16:26:38


PATRIMOINE IMMATÉRIEL SCÉNIQUE AFRICAIN 41

tant internationaux (Unesco), que fédéraux, des États ou des municipalités


parviennent à modifier en profondeur la vision que les détenteurs de ces
patrimoines ont d’eux-mêmes tout comme celle du public qui les apprécie:
ils sont peu à peu considérés comme des artistes à part entière, et leurs
manifestations acquièrent le statut d’œuvre d’art. En d’autres termes eurs ré-
alisations sont à la fois sources d’inspirations pour des metteurs en scène et
des chorégraphes et œuvre d’art. De fait, ce changement de statut, transforme
peu à peu, le regard des hommes politiques locaux sur ces manifestations.

Références
ALEXIS, J. S. Du réalisme merveilleux des Haïtiens. Présence Africaine, Paris, n. 8/10,
p. 245-271, juin/nov. 1956.
BASTIDE, R. Variation sur la négritude. Présence Africaine, Paris, n. 36, p. 7-77,
janv./mars 1961.
CÉLIUS, C. A. Quelques aspects de la nouvelle scène artistique d’Haïti. Gradhiva,
Paris, n. 21, p. 104-129, 2015.
CÉLIUS, C. A. Cheminement anthropologique en Haïti. Gradhiva, Paris, n. 1,
p. 47-55, 2005.
DOUXAMI, C. Abdias Nascimento et Solano Trindade: Deux conceptions pionnières
du théâtre noir brésilien. Cahiers du Brésil Contemporains, Paris, n. 49/50, p. 49-68,
2002.
DOUXAMI, C. Abdias Nascimento e Solano Trindade: dois conceitos pioneiros
do teatro negro brasileiro. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-
GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 3., 2003, Florianopolis. Anais [...]. Florianopolis:
ABRACE, 2003. p. 136-138. (Memória ABRACE VII).
DOUXAMI, C. Poder, política, manifestações populares e extensão turística
no litoral norte da Bahia. In: COLOQUIO INTERNACIONAL DE ETNOCENOLOGIA, 5.,
2007, Salvador. Anais [...]. Salvador: PPGAC, UFBA, 2007. p. 75-80.
DOUXAMI, C. Le théâtre noir brésilien, un processus militant d’affirmation de l’identité
afro-brésilienn. Paris: L’Harmattan, 2015. (Collection Sociologie de l’Art).
DOUXAMI, C. Le théâtre noir brésilien: un processus militant d’affirmation de
l’identité afro-brésilienne. 2001. Thèse (Doctorat en Ethnologie et anthropologie
sociale) − École des hautes études en sciences sociales, Paris, 2001.
DOUXAMI, C. La politique de Patrimoine Culturel Immatériel au Brésil: une volonté
politique de démocratisation et d’inclusion des “minorités”? In: CAPONE S.;

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 41 22/07/2022 16:26:38


42 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

MORAIS, M. R. de (dir.). Afro-patrimoines Culture afro-brésilienne et dynamiques


patrimoniales. Paris: EHESS, 2015. p. 77-97. (Les carnets du Lahic, 11).
MOMPOINT, M. Symbolic Exchanges: Haiti, Brazil and the Ethnopoetics of Cultural
Identity. 2008. Dissertation (Doctorat en Philosophy) − University of Miami, 330 p.
PARISE, N. Rencontre de Macunaïma et de l’Oncle. In: PICARD BYRON, J. (dir.). Production
du savoir et construction sociale: l’ethnologie en Haïti. [Québec]: Presse Université Laval
et Editions de l’Université d’Etat d’Haïti, Port au Prince, 2014. p. 181-197.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 42 22/07/2022 16:26:38


43

No miudinho se corre a roda:


trajetos a partir das noções do passo, da etno[skènos]
logia e da criação

Daniela Maria Amoroso

No jardim de Hortênsia,
o solo da criação desestabiliza o passo
No métier da dança, o passo é um modo de nomear o movimento
dançado. Existem sistemas de dança já bastante desenvolvidos que são
compostos por um vocabulário de passos, o domínio destes permitindo
a elaboração de sequências e a composição de coreografias. Os métodos
de dança clássica, por exemplo, se organizam pelos nomes de passos,
por exemplo: “pas de chat”, “pas de burré”, “plié”, “tendu” etc. Os passos de
dança compõem sistematicamente o léxico da dança clássica. Essa lógica
de organização em sistemas de passos pode ser encontrada em diver-
sos contextos, inclusive em danças urbanas, como no caso do Hip Hop,
por exemplo. Na cultura popular,1 o termo passo de dança é bastante
recorrente e assume outros nomes, como pisadas, golpes, movimentos,

1 O entendimento dialético de cultura popular neste trabalho segue a proposição de


Hall (2006, p. 241): “O essencial em uma definição de cultura popular são as rela-
ções que colocam a ‘cultura popular’ em uma tensão contínua [de relacionamento,
influência e antagonismo] com a cultura dominante. Trata-se de uma concepção
de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural”.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 43 22/07/2022 16:26:39


44 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

ou mesmo com o diminutivo passinho, como no funk, por exemplo, ganhando


inclusive complementos, o “passinho do Romano”. Na capoeira angola,
uma frase poderia ser composta pela sequência: negativa, rasteira, rabo de
arraia e ginga. No samba, uma frase poderia ser composta pela sequência:
miudinho, corre a roda, roda a saia e umbigada. E assim por diante. Trata-se,
desse modo, de uma complexidade de termos e não se pretende definir o
que é o passo, mas criar aproximações de entendimentos que esse termo
popularizado na dança assume. Em conseguinte, na cultura popular, em que
as tradições garantem as transmissões dos saberes e fazeres, os passos ad-
quirem sentidos simbólicos, que conectam a pessoa a uma visão de mundo.
É essa abordagem de passo que interessa neste artigo.
A preocupação com o passo das danças populares iniciada durante a
pesquisa de doutoramento,2 na qual, sob a lente da perspectiva disciplinar
da etnocenologia,3 investiguei o contexto local do samba de roda4 e pude
entender o “miudinho” como próprio daquela expressão cultural e, portanto
patrimônio cultural imaterial:

Entende-se por ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, represen-


tações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instru-
mentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados
– que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos re-
conhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este pa-
trimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração,

2 Levanta mulher e corre a roda: dança, estética e diversidade no samba de roda de Ca-
choeira e São Félix. Tese de doutorado defendida em 2019 no Programa de Pós-Gra-
duação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob orientação da
professora Dra. Suzana Martins, disponível no repositório da UFBA.
3 Perspectiva disciplinar interessada no combate ao etnocentrismo nas artes. Tem como
objeto de estudo as práticas e comportamentos espetaculares organizados. Para apro-
fundamentos, consultar: Bião (1996) e Amoroso (2017).
4 O Brasil, no ano de 2005, em parceria com a Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), elegeu o samba de roda do Recôncavo
Baiano. Sob o processo de número 01450.010146/2004-60, abertura do processo de
inscrição de registro datada em 17 de agosto de 2004, aprovação em 30 de setembro
de 2004 e inscrição no Livro de Registro das Formas de Expressão do Iphan em 5 de
outubro de 2004, o samba de roda inaugurou a representação do patrimônio cultural
imaterial brasileiro no que tange às formas de expressão no contexto das políticas
culturais internacionais.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 44 22/07/2022 16:26:39


NO MIUDINHO SE CORRE A RODA 45

é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função


de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história,
gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo
assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade
humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta
apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os ins-
trumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os im-
perativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos,
e do desenvolvimento sustentável. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNI-
DAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, 2003, p. 3)

Nesse contexto, o entendimento do passo considera subjetividades como


o imaginário local, processos de aprendizagens próprios da cultura popular e
atravessamentos de classe, gênero e/ou raça. Essa visão complexa nos pare-
ce fundamental para avançar nas indagações sobre como podemos enten-
der uma dança contextualizada, culturalmente indexalizada, como o próprio
samba de roda.5 Desse modo, o passo de dança quando localizado no seu
próprio contexto cultural é constituído de informações, heranças, e especial-
mente nos aponta uma condição de existência: a condição humana. Assim,
chegamos ao entendimento de que o caráter imaterial do passo diz respeito
ao corpo e às relações de poder. De acordo com Gilroy (2001, p. 168):

Os diálogos intensos e muitas vezes amargos que acionam o movi-


mento das artes negras oferecem um pequeno lembrete de que há um
momento democrático, comunitário, sacralizado no uso de antífonas
que simboliza e antecipa (mas não garante) relações sociais novas,
de não-dominação. As fronteiras entre o eu e o outro são borradas,
e formas especiais de prazer são criadas em decorrência dos encon-
tros e das conversas que são estabelecidas entre um eu social fratu-
rado, incompleto e inacabado e os outros. A antífona6 é a estrutura
que abriga esses encontros essenciais.

5 Sobre o samba de roda, consultar o livro: Levanta Mulher e corre a roda: dança, estética
e diversidade no samba de roda de Cachoeira e São Félix (2017).
6 Do grego “antiphona”, “som em resposta”. Termo que deu origem à palavra “anthem”
(na Inglaterra do século XVI), versículo cantado antes e depois do Salmo, com repostas
do coro, dividido em dois. (GILROY, 2001)

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 45 22/07/2022 16:26:39


46 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Na relação com o outro, no jogo de pergunta e resposta, nos desafios,


ou em outros modos de diálogo do corpo nas danças afro-diaspóricas7 é que as
relações inclusive de poder podem reveladas e subvertidas. Assim, aprender a
dançar o passo é tomar contato com a ancestralidade de uma dança, sendo o
passo uma espécie de portal que revela a corporeidade que transpassa a
relação de tempo/espaço presente. Ou seja, o passo nas danças tradicionais
e populares é poder criativo da memória e, ao mesmo tempo, é atualizador
de culturas que foram invisibilizadas em processos políticos diversos.
O miudinho, que caracteriza o modo de dançar das sambadeiras do Recôn-
cavo Baiano e que foi registrado no Livro de Registro das Formas de Ex-
pressão do Iphan, como explica Martins (apud INSTITUTO DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2006, p. 53), “[…] é um deslizar dos pés
para frente e para trás, sem que os calcanhares percam o contato com o
chão”. É nesse deslizar dos pés para frente e para trás do miudinho que as
sambadeiras percorrem a roda, acompanham o repinicado da viola e um-
bigam a próxima sambadeira para entrar na roda. É no miudinho que as
mulheres, senhoras herdeiras de tradições ancestrais, compartilham expe-
riências na roda, rodam as saias, arrastam os chagrins, quebram os quadris,
reinventam cantando e dançando a realidade afro-diaspórica no Recôncavo
Baiano. O miudinho desenha um trajeto do saber-fazer do corpo que per-
mite o acesso a uma visão de mundo diaspórica, entendendo que a dança é
um campo de relação com o mundo, é instrumento do saber, do pensamento
e da expressão.

Mas, o que acontece quando o passo sai do seu contexto local


e se territorializa8 em outro contexto?
Nos procedimentos metodológicos de inspiração etnográfica, a pesquisa
de campo é o caminho do acesso às culturas locais, tirando o(a) pesquisador(a)

7 A Diáspora Africana transforma os entendimentos eurocêntricos, dando um ponto de


vista novo e perturbador ao mesmo tempo. Trata de questões como a identidade e o
pertencimento. Gilroy (2001, p. 168) utiliza o termo “desterritorialização” como fator
fundamental nesse processo da diáspora. A saída do território não significa perda de
identidade, mas criação e poder criativo da memória.
8 O verbo territorializar foi escolhido sob duas inspirações teórico-filosóficas: a noção
de desterritorialização de Paul Gilroy (2001) e de transculturação, de Ortiz (1983).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 46 22/07/2022 16:26:39


NO MIUDINHO SE CORRE A RODA 47

do escritório para a imersão no campo de pesquisa.9 (LAPLANTINE, 2003,


p. 57) Possui métodos rigorosos de observação, categorização, análise dos
dados coletados e descrição etnográfica. Em geral, a descrição etnográfica
pode ser entendida como a escrita das percepções no campo de pesquisa,
um modo de interpretar uma cultura a partir da imersão direta e total da
pesquisadora. Assim, o processo da escrita é a etapa final e que sistema-
tiza a complexidade da imersão e das percepções de cada pesquisadora.
Em dança, enfatizamos que as vivências no campo de pesquisa permitem
afetações e percepções do corpo a partir de experiências vividas num con-
texto específico. Essas percepções e afetações do corpo podem ser descritas e
interpretadas na linguagem da criação em dança no lugar da escrita etnográ-
fica. É nesse ponto específico que o campo da dança se diferencia do campo
da antropologia ou da etnografia. Isso não significa dizer que a escrita et-
nográfica perde importância, mas que o corpo configurando as percepções
vivenciadas no campo de pesquisa é a especificidade do campo da dança.
Nesse sentido, o passo não se resume a um dado etnográfico, já que exis-
te a imersão de um ser humano em um grupo de pessoas que interagem,
que convivem, que se relacionam. O passo abre caminho para os afetos e
para a percepção de uma visão de mundo, como já dissemos. A noção de
etnicidade quando destaca a sensação de se sentir parte de um grupo e de
se reconhecer como parte desse grupo diz respeito ao pertencimento e à
alteridade, e o miudinho é um passo de entrada nesse sentido de dançar
junto, de perceber o samba e de se perceber. Isso dito, partimos para uma
indagação mais precisamente da criação em dança: o que acontece quando
o passo sai do seu contexto local e se territorializa em outro contexto,
tal como o da criação em Dança?

9 Laplantine (2003, p. 57) ao tratar da virada etnográfica realizada por Malinowski e


Franz Boas, no século XX, explica: “O pesquisador compreende a partir desse mo-
mento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade
dos que devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados,
e sim como hóspedes que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então,
como aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua
língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo”.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 47 22/07/2022 16:26:39


48 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

A investigação por meio da criação, nos moldes como Pablo Parga (2018,
p. 15, tradução nossa) nomeia a InvestiCréacion, nos direciona para um ca-
minho próprio das artes no contexto acadêmico:

A InvestiCreación propõe um diálogo entra as formas de investigação


acadêmica e a criação artística; está direicionada pricipalmente aos
artistas dispostos a reconhecer-se como pesquisadores − também
docentes − e, portante pertencentes a um espaço institucionalizado.
A proposta metodológica que aqui se expões faz coerente a presença
e a convicência da arte nos contextos acadêmicos, sem submeter-se
às lógicas da pesquisa científica, porém sem desdenhá-las, pois incor-
pora elementos e procedimentos que podem ser de utilidade ao cria-
dor. Para que esse diálogo seja equilibrado, respeitoso e enriquecedor,
é importante enfatizar que a pesquisa científica e a pesquisa artística
são entidades distintas e independentes: à pesquisa científica não se
pede que seja artística, à pesquisa artística não se pede que seja
científica.10

O passo como matéria de pesquisa do corpo expande o tema de pes-


quisa em Dança, para além do reconhecimento deste como vocabulário
codificado de uma dança tradicional. Existem saberes somáticos, de pro-
priocepção, de estudo do gesto em cada passo a serem considerados.
Por exemplo, a estrutura da bacia ou cintura pélvica no fazer do miudinho,
revela o pêndulo do umbigo, que balança de um lado ao outro, enquanto os
pés deslizam no pra frente e pra trás e o corpo se desloca na espacialidade

10 “La investiCreación propone un diálogo entre las formas de investigación académica


universitaria y la creación artística; está dirigida principalmente a los artistas dis-
puestos a reconocerse como investigadores − también docentes − y, por tanto, perte-
necientes a un espacio institucionalizado. La propuesta metodológica que aquí se ex-
pone hace coherente la presencia y convivencia del arte en los contextos académicos,
sin someterse a las lógicas de la investigación científica, pero tampoco desdeñándolas,
pues incorpora elementos y procedimientos que podrían ser de utilidad al creador.
Para que este diálogo resulte nivelado, respetuoso y enriquecedor, es importante en-
fatizar que la investigación científica y la investigación artística son entidades dis-
tintas e independientes: a la investigación científica no se le pide que sea artística,
a la investigación artística no se le pide que sea científica”.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 48 22/07/2022 16:26:39


NO MIUDINHO SE CORRE A RODA 49

circular da roda… a multirreferencialidade do miudinho no corpo é extrema-


mente complexa. O esgarçamento do passo, ou seja, a sua investigação em
dança com aportes diversos como o da anatomia, das práticas somáticas,
da improvisação, nos oferece um caminho pedagógico de estudo do movi-
mento. Para o solo-pesquisa Hortênsia,11 o estudo do miudinho foi a base
de treinamento do corpo para o processo de criação, tendo permanecido
como trabalho de preparação do corpo antes de cada apresentação do solo.
Democraticamente, dentre os elementos estéticos que compuseram a poética
da criação estava o miudinho, em diversos planos de composição. Desse modo,
o miudinho estava passando por um processo de transculturação, do campo
de pesquisa (Recôncavo Baiano) para o campo da criação em dança − o solo
Hortênsia.12 A insatisfação de reduzir o miudinho a um código de movimen-
to inserido numa coreografia foi um desafio da investigação, resultando,
por exemplo, no miudinho feito com os ísquios apoiados no chão que con-
figurou a movimentação inicial do solo realizada em cima de uma mesa,
com contrações dos glúteos e da púbis irradiando para as pernas e che-
gando aos pés; o miudinho nos ombros que reverberou no peneirar dos
ombros, cotovelos e mãos e depois no tremor generalizado de Hortênsia;
o miudinho Café Müller que era provocado por um desequilíbrio inspirado
na movimentação de Pina Bausch em Café Müller; o miudinho que virou sam-
ba de escola de samba no salto alto e dourado de Hortênsia, o miudinho que
foi ponto de ignição para o giro de Hortênsia…
Nesse processo de desestabilização do passo, novas emergências tomaram
lugar, um imaginário menos apegado à materialidade e execução do passo e
mais atento ao próprio corpo, a estímulos somáticos para além de um movi-
mento codificado. Hortênsia teve atravessamentos das questões de gênero,
relacionadas especialmente à violência doméstica, e essa encruzilhada com
o samba13 foi o fio condutor do processo. Assim, estados de corpo limítrofes
foram investigados: o tremor, o giro, o desequilíbrio, por exemplo. Novas si-

11 Para visualização do miudinho na composição Hortênsia, acessar o link: https://www.


facebook.com/jonathan.skinner.566/videos/10158360010211002/.
12 Universidade Paris 8 Saint Denis, Departamento de Teatro, sob a tutoria de Madame
Katia Legeret, no período de outubro de 2015 a outubro de 2016.
13 Nota-se que no meio do samba, dentre rodas dos grupos Cupinzeiro (Campinas/SP),
Botequim (Salvador/BA) e Samba das Cumades (Salvador/BA), a presença das mulheres

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 49 22/07/2022 16:26:39


50 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

tuações foram criadas provocando novos sentidos e novas motivações para


o próprio passo. Essas ressignificações resultantes de uma experimentação
de pesquisa corroboram a noção de transculturação (ORTIZ, 1983) e de des-
territorialização. (GILROY, 2001) Ou seja, é no corpo que as subjetividades
são produzidas, percebidas e engajadas a questionamentos identitários, po-
líticos e estéticos. Assim, o passo do samba de roda, o miudinho, sendo uma
herança diaspórica, é, por ele mesmo, uma sobrevivência na dança.14

Como uma alternativa à metafísica da ‘raça’, da nação e de uma cultu-


ra territorial fechada, codificada no corpo, a diáspora é um conceito
que ativamente perturba a mecânica cultural e histórica do pertenci-
mento. Uma vez que a simples sequência dos laços explicativos en-
tre lugar, posição e consciência é rompida, o poder fundamental do
território para determinar a identidade pode também ser rompido.
(GILROY, 2001, p. 18)

No processo de dar condições de adaptação e de criar caminhos de iden-


tificação no lugar estranho, o tensionamento entre a imposição codificante
do passo e a possibilidade de inclusive escondê-lo, ele próprio se transfigura
e resiste na transformação. Nesse sentido, seria possível inclusive o desa-
parecimento do passo na materialidade coreográfica permanecendo fan-
tasmagoricamente, já que descontinuidades e ambivalências são parte do
processo de sobrevivência. São intensas e numerosas as reflexões quando
mergulhamos numa pesquisa-criação e não é possível esgotá-las neste arti-
go. Por enquanto, tivemos a aproximação de dois campos do conhecimento,
o da dança e o dos estudos pós-culturais que são tensionados em questões

vem tomando cada vez mais protagonismo nas atividades de musicistas, compositoras
e produtoras das rodas de samba. No entanto, ainda se enfrentam situações que en-
tendemos como machismo estrutural no sentido de existir “lugares” predetermina-
dos para as mulheres no samba. Soma-se a esse contexto contemporâneo, o lugar
sexualizado da mulher no samba e/ou o corpo feminino estigmatizado e passível de
interferências como as agressões por exemplo, evidentes na letra do samba de roda:
Se essa mulher fosse minha eu tirava do samba pra já/ dava uma surra nela que ela
gritava chega/, de domínio público.
14 De acordo com Paul Gilroy (autor de O Atlantico negro), é no corpo que a sobrevivência
e ressignificação dos elementos estéticos africanos se deram no contexto da Diáspora
africana.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 50 22/07/2022 16:26:39


NO MIUDINHO SE CORRE A RODA 51

de pesquisa elaboradas no corpo que dança. Pensar e/ou teorizar a criação


em danças populares, de modo crítico, deve acontecer com aportes teóricos
referenciados em experiências de subalternidade especificamente afro-indí-
genas na busca incessante por um pensamento não colonizado em Dança.
Tais problematizações urgentes no processo de criação do solo-pesquisa
foram tensionadas no corpo e investigadas no vai e vem das leituras, memórias
do campo de pesquisa, laboratórios de criação, tomadas de decisões no pro-
cesso de configuração do solo. Nesse contexto, o solo-pesquisa abre uma
reflexão de cunho metodológico: é na investigação pela criação que essas
questões puderam se tornar emergências ou acontecimentos no corpo.
Existem, então, pistas relacionais entre a etnocenologia enquanto perspec-
tiva disciplinar que prevê a prática no campo de pesquisa num combate ao
eurocentrismo nas artes e a investigação pela criação, como dois vetores
próprios das artes que se entrecruzam e proporcionam um agenciamento
dos atos de criação como caminhos metodológicos.
Ao tratarmos da investigação pela criação, estamos corroborando tam-
bém o fortalecimento de um novo paradigma de pesquisa denominado por
prática como pesquisa:

[…] nos últimos anos, alguns pesquisadores tornaram-se impacientes


com as restrições metodológicas da pesquisa qualitativa e sua ênfase
em resultados escritos. Eles acreditam que aquela abordagem necessa-
riamente distorce a comunicação da prática. Tem ocorrido um impulso
radical para não somente colocar a prática no âmbito do processo de
pesquisa, mas para guiar a pesquisa através da prática. (HASEMAN,
2015, p. 43)

A prática entendida como pesquisa, de acordo com Brad Haseman,


vem inaugurando um terceiro paradigma de pesquisa, ou seja, um terceiro
entendimento de como o conhecimento é criado, que se diferencia do pa-
radigma positivista e do fenomenológico, do método quantitativo e do qua-
litativo. De fato, essas questões já vinham sendo colocadas em pauta no
Brasil, especialmente no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
UFBA desde os anos 1990. Nos estudos da etnocenologia, Armindo Bião15

15 Professor fundador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e da Associação


Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (Abrace), referência mundial

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 51 22/07/2022 16:26:39


52 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

foi pioneiro em enfatizar a importância das práticas espetaculares brasileiras


no corpus das pesquisas em artes cênicas no Brasil. Essa preocupação com a
dimensão da prática na etnocenologia foi um dos motes de longas conversas
e discussões com o mestrando no Programa de Pesquisa em Pós-Graduação
em Artes Cênicas (PPGAC/UFBA), Filipe Dias.16 Das conversas de orientação
e da experiência de lecionar por dois semestres a disciplina de Etnocenologia
advieram duas indicações: primeiro, a apetência de artistas do corpo e dança-
rinas(os) para as pesquisas ao entender que é no corpo que o conhecimento
se elabora, um conhecimento que é corporificado; segundo, a necessidade
de entendermos o paradigma da prática como pesquisa em nossas investi-
gações com as práticas populares brasileiras. Configuramos então um campo
metodológico em que os métodos etnográficos são inter-relacionados com
os métodos próprios das artes. Sobre essa inter-relação, coloca Haseman
(2015, p. 45):

Para alguns, o perigo é que ‘as questões de métodos e de como aplicá-los


estão fortemente empurradas para o fundo ou arquivadas como sendo
desatualizadas’ (FLICK, 1998, p. 206), enquanto outros se perguntam
se essa ‘vez da performance’ (neste caso, aplicada a pesquisa qualita-
tiva etnográfica) ‘vai nos levar para mais longe do campo da ação so-
cial e dos dramas reais da vida cotidiana e, assim, assinalar a sentença
de morte da etnografia como um empreendimento empiricamente
fundamentado’. (SNOW; MORRIL, 1995, p. 226)

O que para Haseman se configura como uma tensão relacional, para as


pesquisas em etnocenologia, o paradigma da prática como pesquisa favorece
uma posição privilegiada. Exatamente na combinação entre a abordagem
etnocenológica e a prática como pesquisa vemos a legitimação de um cami-
nho de anos de pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação em
Artes Cênicas. Lembramos que no PPGAC, ao entrar, o(a) candidato(a) opta

dos estudos da etnocenologia do Brasil. Dedicou-se nos últimos três anos de sua vida
a pesquisar a figura emblemática da Maria Padilha, inclusive com criação cênica de
um musical de teatro de cordel chamado A gente canta Padilha no ano de 2011.
16 Filipe Dias defendeu a dissertação: Reza de Brejões, em março de 2015, sob minha
orientação e atualmente é doutorando em etnocenologia no PPGAC/UFBA, sob orien-
tação da professora doutora Eliene Benício.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 52 22/07/2022 16:26:39


NO MIUDINHO SE CORRE A RODA 53

por ter um resultado da criação ao final de sua pesquisa. De acordo com a


professora Ciane Fernandes,17 também do PPGAC, o paradigma da prática
como pesquisa, por ela desenvolvido como Abordagem Somático Performativa,
prevê a prática no processo da pesquisa nem sempre sendo configurado
como resultado da pesquisa. Não daremos conta de todas as abordagens
que fortalecem o paradigma metodológico das artes mas destacamos que a
prática como pesquisa (PAR), a InvestCréation, a abordagem somático per-
formativa e diversas derivações, inclusive afro-referenciadas, vêm sendo
desenvolvidas em nossos programas de pós-graduação na Bahia.
No intuito de continuar processos de investigação, o projeto de iniciação
cientifica PIBIC 2017/2018, intitulado Do miudinho à umbigada: estudos dos
passos e gestos do samba de roda no Recôncavo Baiano em processos de cria-
ção em dança se ocupou em dar sentido a essas questões metodológicas
ao colocar as estudantes de graduação18 numa experiência da prática como
pesquisa sob a perspectiva da etnocenologia. Foi a elas proposto:

1. estudo teórico-prático dos passos/gestos do samba de roda do Recôn-


cavo Baiano em seu lócus (grupos tradicionais das cidades da região do
Recôncavo), especialmente o miudinho e a umbigada;
2. criação em dança a partir da pesquisa de campo realizada nas cidades de
Santiago de Iguape e Cachoeira, Recôncavo Baiano;
3. entendimento de passo como patrimônio imaterial e do gesto como
caminho de investigação em dança;
4. escritura do processo de pesquisa em formato de artigo.

Para o projeto de pesquisa de iniciação cientifica, no que tange à noção


de passo, tomamos como motes de investigação, o miudinho. Luana Lordelo
(2018, p. 4) descreve seu processo:

17 Ciane Fernandes é doutora e docente dos Programas: PPGAC e PPGDança/UFBA.


Para aprofundamentos sobre a abordagem somático-performativa, consultar: Dança
Cristal: da arte do movimento à abordagem somático-performativa (2018).
18 Luana Lordelo, estudante do último ano da licenciatura em Dança e Thaise Reis,
estudante do terceiro ano da Licenciatura em Dança. O projeto foi realizado no âmbito
do Grupo de Pesquisa Umbigada (Grupo de Pesquisa em Dança, Cultura e Contempo-
raneidade/CNPq).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 53 22/07/2022 16:26:39


54 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Ao mergulhar no rio Paraguaçu, inicia-se esta pesquisa de campo pelo


Recôncavo da Bahia, passando pelas cidades de Cachoeira, São Félix e
Santiago do Iguape. Cidades que carregam gestos e histórias de can-
tos de janela, de quintais, de muitas mulheres ou apenas da vizinha
aqui do lado. A partir do reconhecer e do se afetar por esses gestos e
estas histórias, encontramos mulheres que nos apresentaram o samba
de roda em suas respectivas cidades; como Dona Dalva – de Cachoeira,
Beatriz da Conceição, Bibi – de São Félix e Dona Carolina – de Santiago
do Iguape. Partindo desses encontros e desencontros, das idas e
vindas ao Recôncavo, o processo de criação do solo vai encontrando
sua nascente.

Nas palavras de Thaise Reis (2018, p. 3):

A pesquisa se estabelece a partir do entendimento do passo como


patrimônio imaterial e do gesto como caminho de investigação em
dança, tendo como base o samba de roda da cidade de Cachoeira.
O diálogo entre contemporaneidade e tradição se estabelece a partir
do corpo que observa, cria e dança e se fundamenta através do
passo, do som e das escolhas cênicas que são organizadas […]. Além
do miudinho que já está como base da pesquisa, o desequilíbrio é
outro princípio que surge durante o processo de investigação corporal
e criação coreográfica, seja ele direto como um movimento que já é
proposto ou indireto como a sensação de correr a roda, girar e parar
deixando o desequilíbrio tomar conta do corpo ou resistir a ele bus-
cando o equilíbrio. Já tendo o miudinho e o desequilíbrio, começa-se
a pensar nas possíveis qualidades de movimento: ‘areia nas articu-
lações’ e ‘escorregando no dendê’ estas surgem através do som e do
cheiro no campo de pesquisa, o som das rodinhas da mala no chão
de Cachoeira e o cheiro do caruru no aniversário de Dona Dalva que
quando levados para a cena são transformados em movimento. O solo
começa a se estruturar a partir dessas referências do campo e das
memórias que o próprio corpo já carrega.

Desse modo, ainda em terreno de transformações, optamos por desen-


volver um procedimento metodológico de vivência de campo e de criação:
o Casaskènos. Sabendo-se que skènos é referência etimológica da palavra
etnocenologia:

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 54 22/07/2022 16:26:39


NO MIUDINHO SE CORRE A RODA 55

Na origem, skène significa uma construção provisória, uma tenda,


um pavilhão, uma choupana, uma barraca. Em seguida, a palavra
ganhou, eventualmente, o sentido de templo e cena teatral. A skéne
era o local coberto, invisível aos olhos do espectador, onde os atores
vestiam suas máscaras. Os sentidos derivados são numerosos. A partir
da ideia de abrigo temporário, skéne significou as refeições comidas
sob a tenda, um banquete. A metáfora gerada pelo substantivo fe-
minino deu a palavra masculina skénos: o corpo humano, enquanto
abrigo para a alma que nele reside temporariamente. De alguma ma-
neira, o ‘tabernáculo da alma’, o invólucro da psyché. Neste sentido
aparece junto aos pré-socráticos. Demócrito e Hipócrates a ele re-
correm (Anatomia, I). A raiz gerou, igualmente, a palavra skenoma,
que significa também corpo humano. Skenomata: mímicos, malaba-
ristas e acrobatas, mulheres e homens, apresentavam-se em barracas
de feira no momento das festas (XENOFONTE, Helênicas, VII, 4, 32).
(PRADIER, 1995, p. 21, tradução nossa)

Quando propusemos o Casaskènos, a prioridade era sensibilizar os corpos


para a imersão no ambiente da pesquisa de campo. Assim, os sentidos fo-
ram colocados em evidência no Casaskènos: a pele que sente a temperatura
do ambiente, o calor da chuva, a água salgada e doce do rio Paraguaçu e
da bacia do Iguape, que sente o toque e que toca outros corpos; o olfato
que percebe novos odores e aromas de cozinhas das cidades do Recôncavo,
dos carurus, do dendê, das marés; a audição que percebe os sotaques, atenta
às histórias locais de moradores da região, aos sons que o samba de roda
oferece de palmas de mão, de tabuinhas batendo, de pandeiros e violas…
A tentativa de sensibilização do corpo que está no ambiente e que se afeta
pela percepção do próprio ambiente nos permitiu um entendimento expan-
dido de alteridade. Assim, de maneira simples e na tentativa de valorizar a
percepção, desenhamos conjuntamente nesse projeto de pesquisa o dese-
nho do Casaskènos na forma de uma casinha, com cinco vértices. Cada vértice
sendo um elemento para o qual a atenção do corpo se mobilizou, pousou,
investigou. Gostaria de destacar que as pistas para a elaboração desse dis-
positivo de criação em pesquisas dessa natureza foram sendo encontradas
com aportes diversos e ao longo dos dez anos de ensino, pesquisa e exten-
são na Escola de Dança da UFBA. O entendimento de deriva e de atenção

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 55 22/07/2022 16:26:39


56 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

desenvolvido nas pesquisas da cartografia de Virginia Kastrup19 foram sendo


lidos e experimentados em componentes curriculares da especialização em
dança, e da pós-graduação do PPGAC e do PPGDança durante as vivências
de campo na Feira de São Joaquim, no mercado municipal de Itapuã, no bairro
do Santo Antônio Além do Carmo, na festa de Iemanjá, na festa de nosso
senhor do Bonfim, nos festejos cívicos do 2 de Julho (festa do caboclo 2 de
Julho), na cidade de Cachoeira e na casa do samba de Santo Amaro. Os es-
tudantes para organizar ou configurar suas percepções em textos e/ou per-
formances foram sendo guiados pela prática de dar atenção20 à percepção.
Antes de iniciarem a vivência, eram encorajados a diferenciar o tipo de atenção
durante o trajeto que não era predeterminado. Caminhar rastreando, perceber
com o corpo todo, pousar a atenção. Assim, as memórias mais relatadas nas
experiências eram decorrentes de cheiros, cores, texturas, objetos que as-
sumiam significados na história de vida de cada um, pessoas com as quais
conversavam e aprendiam, gestos e modos de mover das pessoas, as espa-
cialidades, a iluminação, a temperatura… Aos poucos, fomos entendendo
que a deriva permitia deixar o corpo à vontade, permitia que nossa casa-
-corpo se instaurasse num ambiente novo e permitia que as pausas fossem
feitas, que a atenção se acomodasse em pequenos acontecimentos durante
essa deriva. Entendemos, assim, que a Casaskènos enquanto dispositivo de
pesquisa nos auxiliava como modo de estimular a percepção com fins de
elaboração artística. Não se tratava de um dispositivo para captar a realidade
nem para expormos nossas individualidades, tratava-se de um dispositivo
relacional aos moldes do entendimento construtivista.21

19 O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo na obra Pistas do método da


cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (2009), organizada por
Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia.
20 A atenção é entendida como um músculo que se exercita e sua abertura precisa sempre
ser reativada, sem jamais estar garantida. O cultivo da atenção pelo aprendiz de car-
tógrafo é a busca reiterada de um tônus atencional, que evita dois extremos: o relaxa-
mento passivo e a rigidez controlada. (KASTRUP, 2009, p. 48)
21 Através da descrição da dinâmica atencional, procuramos apontar que a cartografia
constitui um mtodo que assume uma perspectiva construtivista do conhecimento,
evitando tanto o objetivismo quanto o subjetivismo. Objetivismo e o subjetivismo são
duas faces de uma mesma política de pesquisa, o realismo cognitivo. Além de uma
posição epistemológica, o realismo é uma política cognitiva corporificada em muitos

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 56 22/07/2022 16:26:39


NO MIUDINHO SE CORRE A RODA 57

No projeto de pesquisa em pauta, no que tange ao procedimento me-


todológico Casaskènos, combinamos uma preparação do corpo para a pes-
quisa de campo através da noção da percepção háptica22 com a imersão
como prática de pesquisa de campo, configurando modos de fertilização do
solo da criação. O diálogo entre contemporaneidade e tradição foi entendido
como modos do corpo vivenciar, criar, dançar e se apoiar nas escolhas que
foram organizadas no dispositivo Casaskènos baseadas na atenção e percepção
de cada corpo. Ela pode trazer enquanto memória criativa: um cheiro, um som,
um passo, uma pessoa, uma história etc. De acordo com Lordelo (2018, p. 5),
existe relação entre o Casaskènos e a poética da criação:

[…] foi construído um dispositivo de criação – o Skènos, estudado ao


longo da pesquisa PIBIC, juntamente com o grupo de pesquisa GP-
DACCO – Grupo de pesquisa em dança, cultura e contemporaneidade,
apelidado de Umbigada, orientado por Daniela Amoroso na escola de
Dança da UFBA. Este dispositivo apresentava 5 elementos que foram
disparadores durante o processo criativo, dentre eles: Um movimento
– das caranguejas, uma lembrança – do rio Paraguaçu, uma pessoa –
Bibi Sambadeira, um som – do rio e um cheiro – de gente e de café.
Estes elementos foram modificados muitas vezes ao longo de um ano
de pesquisa, que iniciou em julho de 2017 e ainda está em processo.
Contudo, para este momento, estes foram os elementos encolhidos
para compor atualmente o solo da Mulé Carangueja.

O projeto culminou com a apresentação dos solos das bolsistas Luana


e Thaise na III Jornada de Estudos do Grupo de Pesquisa Umbigada: Dança,
Etnocenologia e Criação, com apresentação dos solos-pesquisa PIBIC e com-
partilhamento do processo de criação no mês de julho de 2018. A partir

pesquisadores, que por esse motivo parece uma “atitude natural”. A atitude de sele-
cionar informações por critérios supostamente objetivos ou subjetivos situa-se nesse
contexto. Por sua vez, adotando uma política construtivista, a atenção do cartógrafo
acessa elementos processuais provenientes do território – matérias fluidas, forças
tendenciais, linhas em movimento – bem como fragmentos dispersos nos circuitos
folheados da memória. (KASTRUP, 2009, p. 49)
22 A percepção háptica abrange o tato e os outros sentidos de percepção para além da
percepção ótica/objetiva. Para aprofundamentos ver Kastrup (2009).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 57 22/07/2022 16:26:39


58 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

das trocas com os artistas Marilza Oliveira e Denny Neves, ambos professo-
res da Escola de Dança da UFBA, que trabalham com a poética das danças
dos orixás e com as danças populares afro-indígenas, as estudantes pude-
ram exercitar a prática do feedback em artes, ou seja, quando os pares são
convocados a colaborar com o trabalho no sentido de uma apreciação foca-
da e construtiva. Assim, podemos concordar com o que nos traz Haseman
(2015, p. 46):

O resultado de um projeto de pesquisa apresentado enquanto uma


obra de dança, concorda com a luta de nós artistas validarmos nossos
saberes e fazeres de um modo outro senão as escrituras tradicionais.
Nesse caso, apresentados como formas simbólicas, diferentes de
palavras de um texto discursivo. No lugar de relatórios de pesquisa,
nesse paradigma acontecem ricas formas de apresentação. Para Su-
zanne Langer, tais formas de apresentação não estão balizadas pelas
restrições lineares e limitações sequenciais da escrita discursiva ou
aritmética. Ao contrário, seu ‘próprio funcionamento como símbolos
se apoia no fato de que estão envolvidas em uma simultânea e integral
apresentação’ (LANGER, 1957, p. 97). E, assim, quando os resultados
da pesquisa são organizados como formas de apresentação, eles im-
plantam dados simbólicos nas formas materiais da prática; formas de
imagens fixas e em movimento; formas de música e som; formas de
ação ao vivo e código digital.

Para finalizar este artigo, entendo como dançarina, criadora e profes-


sora que as danças populares constituem um manancial infinito de possibi-
lidades de pesquisa e estamos tendo essa certeza com o desenvolvimento
na nossa área da Dança no contexto da graduação e da pós-graduação.
A abordagem processual e experimental tem sido nossa escolha para a pro-
dução de conhecimento nesta área. São muitas vozes, muitos corpos e muita
diversidade envolvidas numa produção de saberes que alcançam questões
conceituais, metodológicas e epistemológicas. Procuramos aqui tocar ativa-
mente essas questões a partir de experiências realizadas de pesquisa em
Dança com a esperança de continuidade e vislumbres de democracia dos
saberes nas artes.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 58 22/07/2022 16:26:39


NO MIUDINHO SE CORRE A RODA 59

Referências
AMOROSO, D. Levanta mulher e corre a roda: dança, estética e diversidade
no samba de roda de Cachoeira e São Félix. Salvador: Edufba, 2017. E-book.
BIÃO, A. Matrizes estéticas: o espetáculo da modernidade. In: BIÃO, A. et al. (org.).
Temas em contemporaneidade, imaginário e teatralidade. Salvador: GIPE-CIT;
São Paulo: Annablume: 2000. p. 15-30.
BIÃO, A. Estética performática e cotidiano. In: TEIXEIRA, J. (org.). Performance
e sociedade. Brasília, DF: TRANSE: UNB, 1996. p. 12-20.
BIÃO, A. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A, 2009.
BIÃO, A. Etnocenologia, uma introdução. In: GREINER, C.; BIAO, A. (org).
Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999. p. 15-21.
GILROY, P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução
Cid Knipel. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: UCAM, Centro de Estudos
Afro-Asiáticos, 2001. p. 9-30.
HALL, S. Pensando a diáspora. In: HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 25-48.
HASEMAN, B. Manifesto pela pesquisa performativa. In: SEMINÁRIO DE PESQUISAS
EM ANDAMENTO, 2015, São Paulo. Resumos […]. São Paulo: PPGAC-ECA/USP, 2015.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (Brasil).
Samba de roda do Recôncavo Baiano. Brasília, DF: Iphan, 2006. Dossiê.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (Brasil). CD Samba
de roda patrimônio imaterial da humanidade. Brasília, DF, 2005.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lrQ4h6UzgL8. Acesso em:
nov. 2021.
KASTRUP, V. Pisa 2: O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In:
PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da (org.). Pistas do método da cartografia:
pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.
LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. Tradução Marie Agnès Chauvel. São Paulo:
Brasiliense, 2003.
LEGERET, K. Transdiplinarité en question: le champs du spectacle vivant,
programme d’excellence européenne erasmus mundus ‘études en spectacle
vivant’. Bruxelles: AISS-IASPA, 2016.
LORDELO, L. Relatório final de pesquisa Fapesb/PIBIC. Salvador: [s. n.], 2018.
LOUPPE, L. Poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2004.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 59 22/07/2022 16:26:39


60 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

MACEDO, R. A etnopesquisa critica e multirreferencial nas ciências humanas


e na educação. Salvador: Edufba, 2004.
MARTINS, L. da. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, G.; ARBEX, M.
(org.). Performance, exílio e fronteiras: errâncias territoriais e textuais.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 69-91.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA.
Convenção para a salvaguarda do património cultural imaterial. Paris: UNESCO,
2003. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/Convencao_
Salvaguarda_Patrimonio_Imaterial.pdf. Acesso em: 23 maio 2022.
ORTIZ, F. El contrapunteo cubano del azucar y del tabaco. La Habana: Ciencias
Sociales, 1983.
PARGA, P. P. INVESTIcreación toda obra artística es una investigación invisible:
metodología de investigación artística para el ámbito universitario y de la
educación superior. Queretaro: Universidad Autonoma de Queretaro, 2018.
PRADIER, J. Ethnoscénologie manifeste. Théâtre Public, Paris, n. 123, p. 46-48,
maio/jun. 1995.
REIS, T. Relatório final de pesquisa, PIBIC. Salvador: [s. n.], 2018.
ROQUET, C. Vu du geste: interpréter le mouvement dansé. Pantin: CND, 2019.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 60 22/07/2022 16:26:39


61

Corpo-máscara:
nenhuma origem é possível1

Erico José Souza de Oliveira

Quem inventou a roda? ou o corpo-máscara?


Para além do mito de Téspis e seu protagonismo mascarado nas
representações da Grécia Antiga, todos sabemos que a máscara e suas
funções religiosas, culturais e cênicas datam praticamente do nascimen-
to das práticas rituais de coletividades humanas. Porém, neste artigo tra-
tarei da relação da máscara com o mundo do teatro, lugar em que ela
pode ser vista de diversos ângulos. Aqui, enfocarei a utilização da másca-
ra entre a reflexão acadêmica e a cena, âmbito de confrontos conceituais
e ideológicos nos quais os dogmas sobre a máscara podem ser, inclusive,
formas de silenciamento.
Através do texto de Grada Kilomba intitulado “A máscara” (2016),
reflito sobre os lugares de poder que artistas-pesquisadores(as) tentam
ocupar, através de criações de regras, normas, cânones e, sobretudo,
de uma conduta de detentores(as) do conhecimento e criadores(as) de
conceitos, silenciando, na maioria das vezes, outros(as) pensadores(as)

1 “Nenhuma origem é possível” é uma paráfrase retirada do artigo da Profa. Dra. e


pesquisadora Ana Kiffer (2018, p. 97).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 61 22/07/2022 16:26:40


62 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

do mesmo tema, com outros vieses de poéticas, processos e pedagogias


sobre as máscaras.
Um desses casos é a noção de Corpo-Máscara que abordarei especifi-
camente neste texto, fruto de pesquisas de alguns(mas) pesquisadores(as)
– Sim! Corpo-Máscara é uma noção que vem sendo tratada por vários(as)
artistas e pesquisadores(as)! Tais pesquisas ora se entrelaçam, ora se con-
tradizem ou se complementam.
A postura competitiva no meio acadêmico cria interdições e prejulga-
mentos que em nada contribuem para o avanço das pesquisas práticas e
teóricas nas artes da cena. Como nos alerta Kilomba (2016, p. 178):

Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo.


Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus re-
gimes brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’:
Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que
podemos falar?

Mesmo em se tratando da questão da máscara-objeto usada enquan-


to elemento de castigo e silenciamento dos(as) negros(as) escravizados(as),
tal questão levantada por Kilomba se aplica perfeitamente ao universo aca-
dêmico e artístico, no sentido em que as formas de silenciamento não se dão
mais através de máscaras de ferro, ou de impossibilidade de acesso ao am-
biente universitário, mas de máscaras sutis e invisíveis que tentam amordaçar
e invisibilizar os(as) outros(os), criando dogmas em formas de opressão.
Minha proposta é discutir a noção de Corpo-Máscara enquanto opera-
dor conceitual,2 trazendo alguns(mas) pesquisadores(as) que se debruçaram
sobre ela, suas questões específicas, diferenças e semelhanças, para que a
reflexão acadêmica sobre o tema se desenvolva e contribua para a teoria e
prática cênicas de forma conceitual.

2 Com base em comunicação verbal da professora e pesquisadora Ana Kiffer durante


sua conferência no Colloque International Théories et pratiques artistiques dans le con-
texte académique: polarisations et contaminations, em dezembro de 2018, na cidade
de Paris, França.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 62 22/07/2022 16:26:40


CORPO-MÁCARA 63

Por uma noção transcultural e transcriadora de corpo-máscara


Já em 2002, quando iniciei minha pesquisa de doutorado sobre o Cavalo
Marinho Estrela de Ouro, liderado pelo Mestre Biu Alexandre, na cidade do
Condado, em Pernambuco,3 a noção de Corpo-Máscara começou a rondar
minhas inquietações sobre o uso da máscara neste universo específico de
práticas culturais.
Com suas técnicas, princípios e conceituações diferentes do teatro nor-
matizado e, sobretudo, acadêmico, o emprego da máscara no Cavalo Marinho
possui epistemologias próprias, inclusive de pensamento pós-abissal,4 se as
conceituarmos a partir das conjecturas de Boaventura de Sousa Santos (2009).
Em entrevista com o Mestre Biu Alexandre e o seu neto e também brin-
cador do Cavalo Marinho, Fábio Soares (Fabinho), a questão do uso da máscara
veio à tona, fortalecendo minha perspectiva sobre a noção de Corpo-Máscara.5
Na fala de Fábio Soares, fica evidente que a máscara não tem uma impor-
tância superior aos demais elementos que compõem as figuras que entram
na roda: “Uma figura sem um paletó e sem um chapéu, não é figura. Pra mim, eu acho
assim: não é figura. Ela tem, além da máscara, porque, lógico, tem que ter a
máscara, mas tem que ter um paletó e um chapéu […] Quer dizer, dependendo
da figura, né?”.6
Já o Mestre Biu Alexandre enfatiza: “Rapaz, pra mim, tudo é importante.
Eu não separo de importância. Eu não separo nada, porque, pra mim, tudo é
importante […]”.7

3 Cavalo Marinho é uma festa do ciclo natalino, realizada na Zona da Mata Norte de Per-
nambuco e sul da Paraíba. Para saber mais, ver Oliveira (2006).
4 O pensamento pós-abissal, segundo Santos (2007), é a libertação epistemológica, política
e sociocultural da dependência do Norte global, é pensar o Sul global com suas epis-
temologias próprias.
5 Lembrando que a noção Corpo-Máscara não é utilizada pelos brincadores do Cavalo
Marinho, mas uma adequação conceitual minha a partir das conceituações deles.
6 Entrevista de Fábio Soares concedida a mim, em 19 de fevereiro de 2005, na cidade do
Condado, Pernambuco.
7 Entrevista do Mestre Biu Alexandre concedida a mim, em 17 de fevereiro de 2005,
na cidade do Condado, Pernambuco.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 63 22/07/2022 16:26:40


64 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Esta vivência profunda de quatro anos de doutoramento (2002-2006),


imerso no ambiente do Cavalo Marinho pernambucano me fez cogitar – mas
sem realmente me deter à época – sobre as questões canônicas do teatro
relacionadas à utilização da máscara na cena e às especificidades da másca-
ra nesta tradição,8 ao ponto de intitular um subitem de meu livro – resultado
da tese – de “Corpo mascarado: do poder das vestimentas e dos objetos”.9
O que eu denominei de Corpo mascarado em minha tese, foi sendo
aprofundado e transformando-se na noção de Corpo-Máscara, à medida que
minhas reflexões iam ganhando embasamento teórico e escopo conceitual.
Em conversas informais e debates públicos sobre a máscara no Cavalo
Marinho, a noção de Corpo-Máscara começava a ser esboçada e difundida
oralmente por mim já em 2004.
Procedimento sequencial de reflexão conceitual, como relata o pesqui-
sador, poeta e tradutor Haroldo de Campos (2015, p. 78): “Nessas suces-
sivas abordagens do problema, o próprio conceito de tradução poética foi
sendo submetido a uma progressiva reelaboração neológica”. No meu caso,
este procedimento se deu de Corpo mascarado para Corpo-Máscara.
Essa transmutação de nomenclatura conceitual leva a uma cadeia de
neologismos que deriva de insatisfações em relação às noções ou conceitos
já estabelecidos e que não contemplam a diversidade das práticas artísticas
e/ou culturais, como bem expõe Campos (2015, p. 79). Porém, o embrião da
operação conceitual que me levaria à ideia de Corpo-Máscara já estava lá,
desde 2002, pulsando pelos canaviais da Zona da Mata Norte de Pernambuco
e sendo gerado aos poucos, com prudência e responsabilidade.
Por isso, não trago aqui a noção de Corpo-Máscara como um pensamento
abissal10 (SANTOS, 2009), no qual a construção epistemológica se baseia em

8 “Quem diz ‘Tradição’, diz, por este fato, transmissão de elementos vivos anteriormente
recebido e secularmente elaborados no interior de um meio étnico. A Tradição, em si,
é coisa viva pois se elabora da mesma forma que a própria vida”. (JOUSSE, 2008, p. 95,
tradução nossa) Original:“Qui dit ‘Tradition’ dit, par le fait même, transmission d’élé-
ments vivants préalablement reçus et séculairement élaborés à l’intérieur d’un milieu
ethnique. La Tradition, en soi, est chose vivante puisqu’elle s’élabore à même la vie”.
9 “Corpo mascarado: do poder das vestimentas e dos objetos” é o subtítulo do capítulo
III, publicado em Oliveira (2006, p. 563).
10 Para Boaventura de Sousa Santos (2007), o pensamento moderno ocidental é um pen-
samento abissal e se configura como um aparato colonial/capitalista excludente que

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 64 22/07/2022 16:26:40


CORPO-MÁCARA 65

utilizar o Sul global como objeto utilitário de pesquisa para desenvolvimento


do lado da linha ocidentalizada, o Norte global. Mas o encaro como um pen-
samento pós-abissal, “[…] um pensamento não-derivativo, [que] envolve uma
ruptura radical com as formas ocidentais modernas de pensamento e acção
[sic]”. Ou, para ser ainda mais preciso, “[…] aprender com o Sul usando uma
epistemologia do Sul”. (SANTOS, 2009, p. 44)
Podemos perceber a concretização de um pensamento abissal na utiliza-
ção do termo Corpo-Máscara como um aporte perceptivelmente intercultural,11
no qual se propõe acessar máscaras italianas, por exemplo, através de tra-
dições brasileiras, como o frevo, o samba e a capoeira, o Cavalo Marinho.
Isto é, as tradições afro-brasileiras passam a ser utilizadas como acesso
de um corpo que busca encontrar as máscaras da Commedia dell’Arte ou de
bufões e clowns, num evidente processo de apropriação cultural.12 Inclusive,
a expressão “apropriação” é utilizada tanto por Pavis quanto por artistas-
-pesquisadores(as) que utilizam esta fórmula.
Na prática, uma das primeiras coisas é perceber, como muito bem aponta
Sousa Santos (2009, p. 45), que o pensamento pós-abissal exige uma copresença,
isto é, a consciência de que práticas e praticantes dos dois lados da linha são
contemporâneos em termos igualitários. Isto leva, definitivamente, ao esfa-
celamento do que se pode entender como conceitos antagônicos, a exemplo
de natureza x cultura, cultura maior x cultura menor, popular x erudito,
sagrado x profano, clássico x grotesco, cânone x experimental, tradição x
contemporaneidade, sujeito x objeto, e assim por diante.
Sendo assim, percebo que a noção de transculturalidade,13 fundada por
Fernando Ortiz, é um operador conceitual potente para a discussão sobre as

invisibiliza política e culturalmente as práticas oriundas do Sul global, usando-as sim-


plesmente como objetos que podem ser apropriados de forma violenta.
11 Ver crítica à noção de Interculturalidade em Oliveira (2014).
12 Para aprofundamento sobre apropriação cultural, ver: William (2019).
13 “Dados los múltiples ámbitos en que puede aplicarse y recontextualizarse, y hasta en
algunos casos resemantizarse, el concepto de transculturación […] no es tan sencillo
como algunos piensan; no lo es llegar a un sentido único y último del término, conce-
bido precisamente por su dinámica capacidad de readaptación y resignificación […]”.
(WEINBERG, 2002, p. 34 apud GÓMEZ ARREDONDO, 2016, p. 15)
Tradução: “Dados os múltiplos ambitos em que pode ser aplicado e recontextualizado,
e mesmo em alguns casos ressemantizado, o conceito de transculturação [...] não é

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 65 22/07/2022 16:26:40


66 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

relações criativas entre cenas e culturas. Em vários artigos, de 2014 a 2018,


trabalho com a definição de transculturalidade, via Ortiz (1973, p. 134-135,
grifo do autor), e de sua aplicabilidade nos processos de criação nas artes
cênicas, mas convém repetir sua fala sobre o que vem a ser tal operador
conceitual, para alargarmos a discussão sobre a noção de Corpo-Máscara:

Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as di-


ferentes fases do processo transitivo de uma cultura a outra, porque
este não consiste somente em adquirir uma distinta cultura, que é
o que, em rigor, indica a voz anglo-americana aculturation, mas que
o processo implica também necessariamente na perda e no desen-
raizamento de uma cultura precedente, o que poderia-se dizer uma
parcial desculturação, e ademais, significa a consequente criação de
novos fenômenos culturais que poderiam denominar-se de neocultu-
ração […] O conceito de transculturação é cardinal e elementarmente
indispensável para compreender a história de Cuba e, por razões aná-
logas, a de toda a América em geral.

Malinowski (2002, p. 104), no prólogo da obra clássica de Fernando Ortiz,


Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, também esclarece de forma exem-
plar a noção de transculturalidade:

É um processo no qual ambas as partes da equação resultam modifi-


cadas. Um processo no qual emerge uma nova realidade, composta
e complexa; uma realidade que não é uma aglomeração mecânica de
caracteres, nem sequer um mosaico, mas um fenômeno novo, original
e independente.14

É baseado nessa premissa que afirmo que a noção de Corpo-Máscara é


transcultural e não intercultural: ao meu ver, ela não deve servir para utilizar

tão simples como alguns pensam; não é chegar a um significado único e último do termo,
concebido justamente por sua capacidade dinâmica de reajuste e ressignificação […]”.
14 Tradução: “Es un proceso en el cual ambas partes de la ecuación resultan modificadas.
Un proceso en el cual emerge una nueva realidad, compuesta y compleja; una realidad
que no es una aglomeración mecánica de caracteres, ni siquiera un mosaico, sino un
fenómeno nuevo, original e independiente”.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 66 22/07/2022 16:26:40


CORPO-MÁCARA 67

as culturas tradicionais brasileiras para gerar bufões, clowns, dell’artes, isto é,


construções de cânones de um teatro ocidental e eurocêntrico, delimitando
uma postura de pensamento abissal e, consequentemente hierarquizado,
na qual umas culturas (geralmente as do Sul) servem a outras culturas (as do
Norte), no sentido de enriquecê-las. Em outros termos, a tão discutida e já
abordada apropriação cultural, ingrediente nocivo do neocolonialismo.
No meu entendimento, a noção de Corpo-Máscara deveria servir para
gerar outras criações, aliás, transcriações que “dançam” em poéticas e princí-
pios específicos em cada processo artístico vivenciado. Corpo-Máscara, neste
caso, não serviria somente como um operador experimental, mas como um
operador conceitual e, por isso mesmo, aberto, assim como Haroldo de Campos
(2015, p. 200-201, grifo do autor) pontua ao falar da antropofagia para tratar
da transcriação:

[…] uma espécie de desconstrucionismo brutalista: a devoração crítica


do legado cultural universal, levado a efeito não a partir da perspecti-
va submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’, mas segundo o ponto
de vista desabusado do ‘mau selvagem’, devorador de brancos, antro-
pófago […] não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma
‘transculturação’ […] É uma atitude não reverencial perante a tradição:
implica expropriação, reversão, desierarquização.

É nessa postura transcultural, antropofágica que vinculo o conceito de


Corpo-Máscara, como noção aberta e transcriadora, que não se limita a per-
petuar um passado construído através de apropriações culturais em prol de
manutenção de cânones hegemônicos de poder, assim como reflete Santos
(2009, p. 40): “Sem este [o reconhecimento da persistência do pensamento
abissal], o pensamento crítico permanecerá um pensamento derivativo que
continuará a reproduzir as linhas abissais, por mais anti-abissal que se au-
toproclame”.
Santos (2009) chama atenção para o fato de muitas práticas abissais se
dizerem, no seu discurso prepotente, práticas antiabissais e, de fato, isto é
visto com frequência, sobretudo, nos exemplos citados anteriormente.
Continuando o diálogo com Haroldo de Campos, aprofundo sua noção
de transcriação, neologismo que, mesmo voltado às questões da tradução
poética, pode com tranquilidade ser absorvido pelos universos das artes cê-
nicas e das culturas, como operador conceitual, e muito pode contribuir para

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 67 22/07/2022 16:26:40


68 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

o aprofundamento da noção aqui discutida, assim como a transculturalidade


de Ortiz.
Campos (2015, p. 205) é categórico ao afirmar que

[…] ‘a transcriação’ – é a maneira mais fecunda de repensar a mímesis


aristotélica, que marcou tão fundamente a poética do Ocidente […]
Enfrentar-se com a alteridade é, antes de mais nada, um necessário
exercício de autocrítica, assim como uma vertiginosa experiência de
ruptura de limites.

Por isso, em nada contribui usar a noção de Corpo-Máscara na reprodução


de modelos estabelecidos, hegemônicos e eurocêntricos. No meu caso, tal noção
me leva não a um resultado já proclamado e existente, mas a um processo
que deriva de uma busca técnica e criativa em direção a algo que ainda não
se sabe o que é, que não será nem o que já existe no Norte global, nem no
Sul global; isto é, uma nova invenção, transcriada, transculturalizada.
Este mesmo encaminhamento conceitual pode ser visto na reflexão sobre
a preparação de elenco realizada por Sônia Machado de Azevedo (2004, p. 194):

Não pretendo didatizar um processo como o da criação da máscara


pelo ator; qualquer processo envolve uma série de elementos orga-
nizados num todo, segundo lógica própria e onde cada um de seus
componentes afeta os outros, numa relação de interdependência em
contínua alteração.

Sônia Machado de Azevedo (2004, p. 136) utiliza diversas nomenclatu-


ras para tratar do que chama de processo de mascaramento do(a) atuante
das artes cênicas, que para ela é o “[…] desenvolvimento de uma consciên-
cia corporal que permita o jogo, o risco, o erro; uma consciência criança,
uma consciência artista, que, atenta ao que ocorre no corpo, possa permitir
o acaso, a surpresa, o susto”.
Como fica evidente, ela não busca uma forma, um estilo de interpretação,
ou um modelo de personagem, mas potencializa na ideia da máscara o
perder-se e redescobrir-se, o abrir-se a um corpo disponível em processo
de autoeducação para a quebra de hábitos, ampliação sensorial, despren-
dimento de estereótipos, organicidade etc.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 68 22/07/2022 16:26:40


CORPO-MÁCARA 69

Expressões utilizadas por Azevedo (2004) como corpo-mágico, corpo-


-imagem, corpo-espaço, corpo-ritmo, corpo-linguagem, corpo-drama, corpo-
-transcendência, corpo-narrativa, corpo-criança, corpo-símbolo, máscara fic-
cional, máscara corporal, máscara sígnica corporal, entre outras, vão levá-la
à ideia de um corpo-signo, construído em função da expressão da cena,
para a “configuração da máscara cênica”: “O processo de construção da
máscara, portanto, é essencialmente esboço, desenho, novo esboço (reorga-
nizado), consequentemente, novo desenho, e assim por diante”. (AZEVEDO,
2004, p. 170)
Para Azevedo (2004, p. 176) o que ela denomina de máscara é “[…]
a grande síntese final, o resultado da fusão”. Fusão de um trabalho prepara-
tório que objetiva criar uma unidade fundadora de expressividade que per-
mita a atores e atrizes canalizarem suas energias em prol de um universo
cênico específico que parte do corpo – o que eu chamo de Corpus Cênico:15
“[…] um soma em contínuo movimento, pulsação, vai e vem, flexível e on-
dulante na relação de si mesmo com todos os estímulos presentes em seu
trabalho”.

Reflexões e práticas sobre um possível corpo-máscara


Trazendo o operador conceitual Corpo-Máscara para o lugar de ressonân-
cias práticas, acredito que as artes cênicas poderiam se inspirar em proce-
dimentos diversos para repensar suas poéticas artísticas e metodológicas,
pois, especificamente na área teatral, há uma grande deficiência de processos
que enfoquem as experiências corporais do elenco em prol da instauração
de uma percepção de unidade físico-expressiva. Assim como nas práticas
culturais seus agentes embebem-se de suas tradições e de seu entorno

15 Corpus Cênico: a intervenção poética para o encontro de procedimentos artístico-


-pedagógicos que evidenciem uma preparação para o ato espetacular calcada no corpo
dos/as participantes. Neste caso, um operador experimental para a práxis cênica,
com o intuito de construir uma unidade de presença cênica orgânica, a partir da apli-
cação princípios que levem à assimilação dos elementos imateriais da atuação e da
encenação: a atmosfera, o ritmo, a energia, a dinâmica etc.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 69 22/07/2022 16:26:40


70 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

sociocultural para a criação de corpos expressivos, porém, sempre em diá-


logo com a alteridade.16
Torna-se importante perceber que, como Sonia Machado de Azevedo,
Andréa Stelzer traz como princípio fundante da sua percepção de corpo más-
cara17 um deslocamento de um corpo cotidiano para um corpo cênico do(a)
intérprete, a partir da geração de um corpo de potência plástica, rítmica e
expressiva, porém, não imitativo de alguma tradição teatral e/ou cultural.
Apoiando-se no conceito de perturbação de Hans-Thies Lehmann e seu
teatro pós-dramático, Stelzer (2009, p. 2) defende “[…] uma nova visão do
teatro contemporâneo e da relação ator/personagem” que desestabiliza as
normatizações do drama. Não mais conflito, perfil psicológico de personagem,
sequência de enredo ou ação linear, mas acontecimentos. E a noção de corpo
máscara, para Stelzer, traz esta possiblidade de fragmentação, de incomple-
tude, de desarranjo dramatúrgico, de complexidade de ações, de metáforas
e, sobretudo, de dilaceração da ideia de personagem e/ou personagem-tipo.
Sendo assim, Corpo-Máscara serviria no sentido de encaminhar a busca
de uma poética ímpar e exclusiva e não de uma estética específica. Usando a
definição de Luigi Pareyson (1997, p. 15, grifo nosso):

Se nos lembrarmos que a estética tem um caráter filosófico e especu-


lativo enquanto que a poética, pelo contrário, tem um caráter progra-
mático e operativo, não devemos tomar como estética uma doutrina
que é, essencialmente, uma poética, isto é […] um determinado progra-
ma de arte. Uma doutrina que se propõe traduzir em normas ou modos
operativos um determinado gosto pessoal ou histórico.

Isto é, instaurar-se-ia uma poética – ou modos pedagógicos que visas-


sem criar um conjunto coeso de corpos expressivos – chegando-se a um

16 No caso do Cavalo Marinho de Pernambuco, por exemplo, todo o arcabouço corporal


provém das práticas do cultivo e recolha da cana-de-açúcar, além das relações com
os animais que, em outros tempos, também trabalhavam no canavial, como os bois e
cavalos.
17 Andréa Stelzer traz a nomenclatura sem hífen: corpo máscara. Sempre que eu estiver
falando de sua pesquisa, utilizarei a grafia usada por ela. Quando estiver tratando do
que designo a noção, usarei a grafia com hífen e iniciais maiúsculas: Corpo-Máscara.
Respeitarei a grafia de cada autor(a) chamado(a) ao diálogo.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 70 22/07/2022 16:26:40


CORPO-MÁCARA 71

resultado mais ou menos convergente artisticamente, dentro de linhas de


performatividades específicas, o que resultaria num Corpo-Máscara, do qual
as individualidades presentes se retroalimentariam para criar suas personagens,
personas ou figuras para a cena, e a encenação se mobilizaria criativamente
a partir destas descobertas.
A noção Corpo-Máscara que desenvolvo é o operador conceitual que advém
destas experimentações e, portanto, não está vinculado a nenhuma estética
específica, além de não se portar como um procedimento abissal, mas como
um conceito completamente transcultural, transcriativo e aberto, como já
dito anteriormente.
O caráter aqui evidenciado em relação à noção de Corpo-Máscara trans-
cende qualquer cultura originária e/ou particular e torna-se fluido, como em
uma encruzilhada, onde confluem e transitam diversas influências para a
criação de outras formas geradoras de arte no presente, através de uma
consciência crítica sobre o emprego metodológico e formativo da máscara
nas artes cênicas brasileiras, para que os dogmas inventados pela academia
não sirvam para sufocar, invisibilizar, silenciar ou amordaçar práticas diversas,
como nos alerta Grada Kilomba (2016).

Referências
AZEVEDO, S. M. de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2004.
CAMPOS, H. de. Transcriação. Organização Marcelo Tápia; Thelma Médici Nóbrega.
São Paulo: Perspectiva, 2015.
FREIXE, G. La Filiation Copeau, Lecoq, Mnouchkine: une lignée théâtrale du jeu de
lacteur. Paris: L’Entretemps, 2014.
GÓMEZ ARREDONDO, D. La transculturación y el método en el contrapunteo
cubano del tabaco y el azúcar. Cuadernos Americanos, Ciudad de México, v. 4,
n. 158, p. 15-26, 2016.
JOUSSE, M. L’Anthropologie du geste. Paris: Gallimard, 2008.
KIFFER, A. O rascunho é a obra: o caso dos cadernos. Estudos de Literatura
Contemporânea, Brasília, DF, n. 55, p. 95-118, set./dez. 2018.
KILOMBA, G. A máscara. Tradução Jéssica Oliveira de Jesus. Cadernos de Literatura
em Tradução, São Paulo, n. 16, p. 171-180, 2016. Disponível em: http://www.
revistas.usp.br/clt/article/view/115286. Acesso em: 22 dez. 2018.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 71 22/07/2022 16:26:40


72 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

MALINOWSKI, Bronislaw. Prólogo. In: ORTIZ, F. Contrapunteo cubano del tabaco


y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002. p. 102-111.
OLIVEIRA, E. J. S. de. A roda do mundo gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho
Estrela de Ouro (Condado-PE). Recife: SESC-Piedade, 2006.
OLIVEIRA, E. J. S. Por trás da máscara: tranculturalidade em Vsevolod Meierhold
e Jacques Lecoq. DAPesquisa, Florianópolis, v. 9, n. 12, p. 1-14, dez. 2014.
OLIVEIRA, E. J. S. Teatralidades híbridas y elementos inmateriales en
Esta propiedad está condenada de Tennessee Williams. Cuadernos de Música,
Artes Visuales y Artes Escénicas, Bogotá, v. 10, n. 1, p. 153-165, jan./jun. 2015.
OLIVEIRA, E. J. S. Uma pedagogia teatral transcultural com máscaras: experiências
na Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq. TEATRO: criação e construção
de conhecimento, Palmas, v. 3, n. 2, p. 51-58, jul./dez. 2016.
ORTIZ, F. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Barcelona: Ariel, 1973.
PAREYSON, L. Os problemas da estética. Tradução Maria Helena Nery Garcez.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ROMANO, L. O papel do corpo no corpo do ator de Sônia Machado de Azevedo.
Sala Preta, São Paulo, v. 5, p. 249-252, nov. 2005.
SANTOS, B. S. Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia
de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007.
SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.
STELZER, A. O corpo máscara do ator contemporâneo. Cardenos Virtuais
de Pesquisa em Artes Cênicas, Rio de Janeiro, p. 1-8, 2009.
WILLIAM, R. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 72 22/07/2022 16:26:40


73

Mamas épicas:
revendo noções de matrizes estéticas
para a cena contemporânea

Graça Veloso

Tradição, matrizes estéticas e etnocenologia


Este texto é escrito ao mesmo tempo em que a humanidade enfrenta
uma das maiores crises sanitárias dos últimos cem anos, provocada pela
disseminação do novo coronavírus/covid-19. É recorrente entre pensa-
dores contemporâneos uma compreensão de que, depois de 2020, a vida
das interações societais nunca mais será a mesma. E eu concordo que
nossa percepção de mundo, tanto ética quanto esteticamente, passará
inevitavelmente por transformações jamais por nós imaginadas. Se me-
lhor ou pior, se para o bem ou para o mal, não temos ainda como afirmar,
mas compreendo que o mundo moderno nunca mais será como antes,
e isto, sem nenhuma dúvida, trará consequências profundas também
para nossa produção estética. Entretanto, como esta escrita se dá no
viver do passo a passo histórico deste momento, só é possível produzir
qualquer estudo no campo estético, partindo de nossa trajetória, o que
não posso deixar de levar em conta aqui, neste caso. Parte então este
artigo de reflexões surgidas em diálogos com estudantes da graduação
e pós-graduação em Artes Cênicas e das atividades do Afeto – Grupo de
Pesquisa em etnocenologia, na Universidade de Brasília (UnB). Isto inclui

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 73 22/07/2022 16:26:40


74 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

também minhas práticas artísticas como ator, diretor e dramaturgo. Esses diá-
logos se sustentam ainda em pesquisas em etnocenologia, ao longo dos anos,
desde os primeiros dias do século atual, quando passaram a fazer parte de
meu universo acadêmico as discussões sobre matrizes estéticas na cena
contemporânea.
As noções primeiras sobre este campo, das quais me aproximei, foram
as apresentadas por Armindo Bião, principalmente em seus estudos sobre a
baianidade. São discussões presentes em toda sua trajetória, como um dos
fundadores e pesquisador da etnocenologia, etnociência das artes presen-
ciais, do corpo e do espetáculo. Vale sempre lembrar que o saudoso artis-
ta-professor-pesquisador baiano foi um dos que pensaram essa disciplina
como uma nova abordagem para a cena contemporânea.
Apresentando as definições de matrizes como sendo “identificadas por
suas características sensoriais e artísticas, portanto estéticas”, Bião (2009,
p. 251) se refere à “ideia de que é possível definir-se uma origem social comum,
que se constituiria, ao longo da história, numa família de formas culturais
aparentadas, como se fossem ‘filhas de uma mesma mãe’”. Seriam, assim,
concepções que viriam das noções de estética transcendental e ciência do belo,
desde Emmanuel Kant e Alexander Baumgarten. Bião parte da ideia de que
nossa matriz estética maior é a humana e, mais amplamente, do reino animal.
Ora, é muito recorrente uma compreensão de que os processos de
transculturação que formaram nosso espectro cultural, seriam sustentados
por alguns conjuntos de práticas e comportamentos gerais, de alguns gru-
pos que em terras brasileiras aportaram. Ainda Bião (2009, p. 254), tratando
das questões do que se definiria como baianidade, afirma:

Tendo como variantes aspectos linguísticos e religiosos, geográficos


e climáticos, poderíamos, por enquanto, pensar em uma matriz estética
baseada na oralidade e em outra baseada na comunicação escrita.
Esta última, por sua vez, poderia ser subdividida em duas matrizes,
uma tendo como referência a escrita definida – grosseiramente –
como fonética (que, derivando fundamentalmente do grego clássico,
passaria pelo latim, gerando, entre outras línguas, o português), outra
tendo como referência formas de língua escrita que não reproduziriam
– histórica e integralmente – a língua falada (o árabe, o japonês e o
hebreu, por exemplo).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 74 22/07/2022 16:26:40


MAMAS ÉPICAS 75

O pensador baiano acrescenta às suas reflexões o impacto que a re-


volução das telemáticas, que se deu na passagem do século XX para o XXI,
provocou em todas as culturas. Em última análise, entretanto, não deixa ele
de sugerir que as matrizes estéticas contemporâneas advêm de formulações
étnicas, a partir de dados históricos, geográficos, linguísticos e religiosos,
sempre nos encaminhando para uma compreensão do papel de Europas,
Áfricas e povos originários das Américas.
Trazendo essa discussão para o campo a que me dedico, em minhas
pesquisas etnocenológicas, não posso deixar de me referir a que cenas con-
temporâneas estou me reportando. Pela perspectiva daquela etnociência
das artes do corpo e do espetáculo, podemos localizar essas cenas em três
subconjuntos de práticas de si voltadas para a apreciação da alteridade:
os espetáculos propriamente ditos, os ritos espetaculares e os ritos cotidianos.
Novamente Bião, ainda falando da Bahia, coloca luz sobre esses aspectos
propostos pela etnocenologia, dizendo que o conjunto dessas artes do espe-
táculo não compreenderia somente o teatro, a dança, o circo, mas também:

[…] os eventos lúdicos que se encontram na interface profano/sagrado


(festas populares de largo, micaretas, carnaval) e os rituais públicos
mais especificamente religiosos (procissões católicas, rituais públicos
do candomblé, cultos evangélicos e espíritas), transbordando-se daí
para os campos do esporte, da política e até mesmo do lazer na vida
cotidiana (como a frequentação de praias, por exemplo) […] e os jogos
corporais coreográficos e de papéis sociais. (BIÃO, 2009, p. 263)

Estaria então aqui o que o mesmo autor redimensiona como três distintas
espetacularidades: substantiva, que se localiza em todos os espetáculos pro-
priamente ditos, onde existe um pacto consensual de consciência mútua
sobre os estados alterados de corpo e comportamento de atuantes e seus
espectadores; adjetiva, presente no que nominamos de “ritos espetaculares”.
São aqueles onde os atuantes podem prescindir de outras presenças para
espetacularizar seus estados de corpos. Bons exemplos são os rituais re-
ligiosos ou os desfiles militares que independentemente de espectadores
podem acontecer. Por fim o terceiro grupo, das espetacularidades adverbiais,
que ocorrem nas ações cotidianas. Aqui estão “os fenômenos da rotina social
que […] a depender do ponto de vista de um espectador, [podem ser vistos]
como espetaculares”. (BIÃO, 2007, p. 28) Assim pensando, tudo aquilo que

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 75 22/07/2022 16:26:41


76 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

seria estudado como cena, estaria ligado aos aspectos matriciais para a con-
temporaneidade.
Ocorre que a partir de algumas reflexões surgidas nas últimas décadas
do século XX, nossas matrizes estéticas adquiriram diversas novas tonalidades,
abarcando um sem-número de outras possibilidades. Isso começa a se con-
solidar com o aparecimento dos estudos culturais, em proposições de pen-
sadores como Raymond Williams, Edward Palmer Thompson e Richard
Hoggart. Eles nos apresentam reflexões sobre este campo, na Inglaterra dos
anos 1960, como sendo estudo de fenômenos culturais nas diversas socie-
dades, o que vem, alguns anos mais tarde, a coincidir com as proposições da
etnocenologia, para as artes do espetáculo. Incorporando o multiculturalis-
mo nos Estados Unidos da América, os estudos culturais determinam como
campos prioritários questões étnico-raciais, feminismo e gênero, lutas de
classe, movimento LGBTQIA+, e muitos outros, dentre um vasto conjunto de
abordagens a grupos historicamente subalternizados.
Vistos como estudos, por isso mesmo como transitoriedade, sobre os
agenciamentos das relações simbólicas dos espaços de poder históricos, os
estudos culturais trazem para o centro das discussões também a produção
estética dos grupos de relações sociais. E com isso inauguram abordagens
artísticas que se instauram, de maneira muito poderosa, como referenciais
para abordagens do que seria uma ética de cada um daqueles campos de
poder. Torna-se então imperativo o reconhecimento de que ao lado de uma
ética, por exemplo, caminha de forma indissociável uma estética interna a
cada grupo estudado.
E da mesma maneira se dá em todos os campos de poder que se conso-
lidam a partir da produção de narrativas de resistência. Neste lugar se locali-
zam, por exemplo, movimentos feministas, negros, LGBTQIA+, feminismos
negros, dos povos originários, de Romani ou Roma,1 e muitos outros.

1 A denominação Roma ou Romani surge com a necessidade de resistência que os po-


vos chamados de Ciganos tinham (e ainda têm) de se contrapor ao grande preconceito
enfrentado em todos os lugares por onde passam. Lembrando sempre que essas são
etnias nômades.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 76 22/07/2022 16:26:41


MAMAS ÉPICAS 77

Novas narrativas e singularidade estética


na pluralidade contemporânea
Derivando para o multiculturalismo, mesmo sem deixar de considerar
todas as problematizações que surgem sobre o tema, advindas dos mais
variados lugares, consolidam-se coexistências de culturas diversas em um
mesmo espaço. Não se trata aqui somente de considerar a existência de
todas as culturas, de todos os grupos, mas também a possibilidade do sur-
gimento de novas práticas culturais. Coincidindo com os avanços tecnológicos
a serviço da revolução nas comunicações, principalmente a partir do avanço
incomensurável da rede mundial de computadores, a Internet, aquilo que era
antes considerado como cultura toma outra dimensão. Saem das margens e
vêm para o centro das correntezas do pensamento contemporâneo palavras
como alteridade, diversidade, pluralidade, relativismo, complementaridade,
paradoxo, dentre outras que agregam o reconhecimento de que nenhuma
cultura existe desconectada de outras.
Com as novas redes sociais, o que antes era local se torna globalmente
visível. Narrativas até então restritas, ou pouco consideradas pelos costumes
hierarquizados, passam também a ocupar espaços até então impensados.
Novos grupos, antes excluídos ou totalmente subalternizados, passam a
ocupar espaços na produção de narrativas de resistência, até então não per-
cebidas, pouco ou nada consideradas.
Outra discussão que surge no bojo das transformações sociais trazidas
pela revolução comunicacional dos últimos tempos, se dá na reflexão sobre
as noções de identidade. Existe certo consenso nos meios intelectuais de que
a identidade fixa é um conceito inventado pela ideia romântica de que existiria
uma unicidade do eu, desde o Iluminismo, conforme podemos apreender no
que defende Stuart Hall (2001, p. 12-13):

A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada


continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unifi-
cadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 77 22/07/2022 16:26:41


78 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. […]


A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é
uma fantasia.

Conceitualmente, pela observação de indivíduos nos meios urbanos,


genericamente tendo a compartilhar esse pensamento. Pelas práticas de si,
nas relações societais contemporâneas, é inegável certa prevalência das no-
ções de identificações, de patrimônio identitário, agenciáveis pelas circuns-
tâncias, se sobrepondo aos conceitos de identidade fixa, imutável. Existe,
porém, outra percepção sobre essa mesma questão, que não pode deixar
de ser considerada. Enquanto os indivíduos intercambiam seus interesses
relacionais, dependendo do contexto em que se encontram no momento,
é inegável a necessidade política que diversos grupos ainda têm de defender
uma identidade definida, até como estratégias de sobrevivência e autoafir-
mação. Por mais que seja real a ausência de uma plausível narrativa do eu,
politicamente ainda se impõe a demanda por outra, a de identidade dos
grupos, como veremos a seguir.
Tendo herdado todas as consequências do racismo estrutural provo-
cado por um período de mais de três séculos de escravização, e pelo epis-
temicídio gerado pela diáspora africana, movimentos em favor de ações
afirmativas consideram como impositiva a defesa de uma identidade negra.
É exaustiva a discussão sobre o fato de que o fim da colonização e a pro-
palada “libertação dos negros” não se concretiza, ainda hoje, no cotidiano
afrodescendente. Existe toda uma consciência de que os valores a serem
postos em pauta devem sair do lugar de somente falar da perspectiva da es-
cravização e da opressão. O reconhecimento dos movimentos de resistência,
com a presença marcante de suas heroínas e de seus heróis, adquire cada
vez mais visibilidade. E isso tem reverberações permanentes nas proposi-
ções ético/estéticas de nossa cena atual, como ainda veremos mais adiante.
Esse novo olhar sobre a negritude não soluciona ainda, é verdade, a gravi-
dade do tratamento desigual dispensado às comunidades negras no Brasil.
É incontestável o fato de que são incontáveis as formas de subalternização,
silenciamento e invisibilização de negras e negros, o que é proporcionado
ainda por uma maneira estruturante de práticas racistas. Mais de três quartos
das mortes por assassinato são desse grupo, principalmente jovens. Em torno
de 75% das vítimas de atuação letal da polícia são desse extrato étnico; no que-
sito salarial, negros e negras recebem, em média, R$ 1.200,00 menos que

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 78 22/07/2022 16:26:41


MAMAS ÉPICAS 79

brancas e brancos. (CALEIRO, 2018; CARVALHO, 2019) É importante então


continuar afirmando cada fala e cada gesto de resistência, principalmente
na produção estética de nosso tempo.
Afirmando a importância do Teatro Experimental do Negro (TEN) e sua
herança incontestável,2 incontáveis são os grupos e artistas negros e negras,
com marcantes atuações na cena brasileira atual. Por todas as partes do
território nacional, aparecem, dentre inúmeros outros, nomes como Rodrigo
França, Coletivo Preto, Grupo Emú (RJ), Os filhos de Olorum, Os Crespos,
Coletivo Negro, Cia dos Inventivos, Geledés (SP), Jeitus, Bando de Teatro
Olodum (BA), Cristiane Sobral (DF), Espaço Preto, Teatro Negro e Atitude
(MG). O mesmo se dá quando olhamos, por exemplo, para os movimentos
feministas.
A partir desse novo olhar, multiculturalista, e saindo do universo negro,
tornam-se recorrentes discussões sobre uma cena teatral, de dança ou ou-
tras formas de se espetacularizar, com uma percepção feminina de mundo.
Algumas ações importantes neste viés podem ser consideradas, para falar
do mais próximo de nós, em exemplos de algumas práticas artísticas e/ou
acadêmicas. Maria Brígida Miranda traz para a sala de aula, na segunda me-
tade da década de 2010, na graduação na Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC), pesquisas sobre Teatro Feminista na Inglaterra, a partir
da peça Vinegar Tom, de Caryl Churchill. Em 2017, sob a orientação de Lúcia
Regina Vieira Romano, Daniela Alvares Beskow defende dissertação O discurso
das mulheres na cena paulistana de 2015-2016: uma proposta feminista de aná-
lise de espetáculos (2017) analisando a cena feminina paulista nos dois anos
anteriores.
Várias são as montagens teatrais de abordagem feminista na década de
2010, dentre as quais podem ser citadas: “Monólogo da Puta no Manicômio”,
de Dario Fo e Franca Rame, interpretada por Paula Cohen; Para não morrer,
com Nena Inoue, com texto de Francisco Mallman, a partir da obra Mulheres,
de Eduardo Galeano; Helenas, da Cia. Os Satyros, dirigida por Gustavo Ferreira;
A despedida, dirigida por Iuri Saraiva, da Cia. Meia Um.

2 Sobre isso, ver Douxami (2001). Vale ainda citar a importante reflexão sobre o teatro
negro baiano em Freitas (2017).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 79 22/07/2022 16:26:41


80 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Importante ainda citar a presença de diversos grupos formados somente


por mulheres, com permanência maior ou menor, como As Marias da Graça,3
Cia. Trapaça,4 Loucas de Pedra Lilás.5 Cito ainda alguns projetos de formação
cênica feminista, como a Cia Naturalis6 e O Palco.7
Na mesma linha estão formulações sobre ações afirmativas de outras co-
munidades. Assim podem ser vistos, por exemplo, os movimentos LGBTQIA+,
com a contundente cena das Paradas do Orgulho LGBT em várias cidades bra-
sileiras, ou espetáculos com a mesma temática ou estética própria. Para citar
somente o Rio de Janeiro, num único mês (fevereiro de 2020), estrearam três
espetáculos teatrais de temática homoafetiva: Tom na fazenda (prêmios APCA
de melhor peça de 2019 e Shell de melhor ator para Gustavo Vaz e de direção
para Rodrigo Portella), A golondrina e Um príncipe no divã.
Outro exemplo importante sobre a percepção do mundo pela perspec-
tiva do reconhecimento da diversidade vem de trabalhos com as chamadas
pessoas com deficiência (PcD). No Distrito Federal destaca-se a atuação do
Pés, grupo ligado ao Departamento de Artes Cênicas da UnB, como projeto
de extensão, com pesquisa e direção de Rafael Tursi. E é assim em todas as
circunstâncias em que se observa o diverso na produção cênica. Mesmo que
estejamos vendo florescer outra maneira de compreender a diversidade das
proposições decoloniais, parentes muito próximas daquelas da etnocenologia.
No contexto de afirmação dos estudos culturais e do multiculturalismo,
mesmo com as já citadas problematizações, é que surgem outras reflexões
importantes, trazidas para o campo das artes, principalmente pelas denomina-
das etnociências. É pelas trilhas e pistas sugeridas pela etnocenologia que tenho
refletido outras noções para as matrizes estéticas na cena contemporânea.
Essa disciplina, criada em 1995 em colóquio realizado em Paris, pela Maison
des Cultures du Monde em parceria com o Laboratório Interdisciplinar de Práticas
Espetaculares da Paris 8 Saint Denis, tinha como proposta principal a oposição

3 Para saber mais, ver: http://www.asmariasdagraca.com.br/historia.html.


4 Ver: http://ciatrapaca.blogspot.com/.
5 Ver: http://www.fundosocialelas.org/historia-grupos-loucas-pedra.asp.
6 Ver: http://www.fundosocialelas.org/historia-grupos-loucas-pedra.asp.
7 Ver: https://polocultural.com.br/2018/05/21/as-meninas-mulheres-que-falam-de-fe-
minismo-com-teatro-e-dao-exemplo-de-dialogo-aberto/

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 80 22/07/2022 16:26:41


MAMAS ÉPICAS 81

a qualquer etnocentrismo e a sustentação dos princípios do direito à diver-


sidade cultural. Como suporte dessas noções, a certeza de que a vida se dá
nas relações e que seu fundamento maior é o reconhecimento da alteridade,
o que se concretiza também pela produção estética. Como defende Bião
(1996, p. 15):

Sem alteridade não há estética, que é a capacidade humana que permi-


te conhecer o outro por meio de si próprio. Não se sente o que existe
completamente fora de si. Sem forma não há relação, sem cotidiano
não há extraordinário e sem coletivo não há pessoa.

Poderíamos então, partindo desse pensamento, inferir que as noções de


matrizes estéticas na contemporaneidade se deslocam para a diversida-
de, deixando o conforto daquele princípio de “filhos de uma mesma mãe”.
Mas que diversidade seria esta? Ora, sempre que nos referimos a isto,
somos levados a pensar em duas outras questões: os conceitos de diferença
e outridade. E nos mais recentes questionamentos sobre descolonização e
decolonialidade, Diferença e Outro/Outra são postos nos lugares de valores
a serem urgentemente revistos.
Se levarmos em consideração o fato de que para haver diferença é ne-
cessária a noção de igualdade, e se pensamos pela perspectiva da espécie
humana, nunca é possível considerar que existam dois iguais. E se não existem
iguais, claro está que o valor da diferença também não existe. Montaigne
(1980, p. 285-288), já em inícios de século XVI, afirmava que a igualdade não
existe nem mesmo entre nós e nós mesmos. Ele fala: “Quem se examina de
perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado […] Daí ser tão grande
a diferença entre nós e nós mesmos, quanto entre nós e outrem”. Assim,
se não é possível pensar em diferenças, quando nos referimos a outrem,
nos resta a possibilidade de compreender a alteridade nunca pelo olhar
para os(as) diferentes, mas sempre pelo sentido da singularidade.
Pensar o indivíduo, nesse contexto, então, é olhar para a outridade
como aquele ou aquela que tem uma percepção de mundo única, singular.
Como consequência, essa individualidade terá também uma maneira única,
exclusiva, de se colocar no mundo. Não é possível, portanto, mesmo reco-
nhecendo a necessidade política de defesa das identidades étnicas, falar de
PcD, de negros e negras, de mulheres, ou de LGBTQIA+ etc… sem levar em
conta cada indivíduo. Não existe uma maneira de um grupo de pessoas com

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 81 22/07/2022 16:26:41


82 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

deficiência perceber o mundo e assim se colocar. Nesse grupo o que persiste


é a maneira pela qual cada pessoa, com sua deficiência específica, percebe
o mundo e nele se coloca, a partir de seu lugar único de uma deficiência
própria. A identidade de grupo é somente uma ação política, em defesa de
gestões públicas de atendimento a cada situação individual. Como consequência,
essa atitude política torna-se também ação de combate à subalternização,
à invisibilização e à submissão.
Grada Kilomba, em seu precioso livro Memórias da plantação: episódios de
racismo cotidiano (2019), levanta importante reflexão sobre essa noção de
Outro/Outra. Ela diz que quando nós, brancos , racistas estruturais, falamos
de Outro/Outra, em verdade estamos afirmando que ele/ela é uma outridade,
uma identidade relacional produzida pela representação mental branca. Seria,
segundo Kilomba (2019, p. 38), a negação de um direito de ser Eu, pois “a/o
‘Outra/o’ não é ‘outra/o’ per se; ela/ele torna-se [outra/o] através de um pro-
cesso de absoluta negação”. Negação esta idealizada pelo racismo estrutural
e estruturante.
Ora, não considero nada diferente se, pela imposição dos cânones euro-
centrados, todo o estudo voltado para a cena é feito a partir das referências
teatrais. É também uma forma absoluta de negação quando desconsideramos
as regras internas de cada manifestação cultural cênica, inclusive na relação
com seus léxicos próprios, e impomos o referencial teatral. Nessa prática,
o que estamos fazendo é negar o valor de “eu” que cada grupo, ou cada
indivíduo, tem na relação com o seu fazer. Como uma cunha que expõe as
dobras desse teatrocentrismo canônico, entra a proposta da etnocenologia.
Ela defende que cada manifestação espetacular presencial, das artes do corpo,
é matriz de si mesma, apesar de todo o parentesco que podemos encon-
trar no radical ceno, que as aproxima, a todas, do chamado teatro ocidental.
Para nossa ainda muito jovem disciplina, Nô é Nô, Cavalo Marinho é Cavalo
Marinho, assim como Performance é Performance e Folia é Folia.
Mais uma vez recorro a Bião (2011, p. 121), que contribui em muito para
esclarecer:

O léxico, apenas entrevisto (Bião, ‘Um Léxico para a Etnocenologia’),


não levou em conta, por exemplo, a palavra performance, utilizada
por muitos colegas na etnocenologia. De fato, considero que essa pa-
lavra só contribui para a confusão epistemológica e metodológica na

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 82 22/07/2022 16:26:41


MAMAS ÉPICAS 83

etnocenologia. Prefiro também denominar o artista do espetáculo,


ou o participante ativo da forma, ou arte espetacular, com as palavras
usadas pelos próprios praticantes dos objetos de nossos estudos,
quando se autodenominam atores, dançarinos, músicos, brincantes,
brincadores, sambadores e outros. Prefiro sinceramente isso a usar
outras palavras já sugeridas: performer, actante, ator-dançarino ou
ator-bailarino-intérprete, por exemplo. E à palavra performance, tão
polissêmica (Cohen 240-243), prefiro, sempre, usar espetáculo, função,
brincadeira, jogo ou festa, conforme quem vive e faz chama aquilo
que faz e vive.

Ampliando trânsitos: afetar e ser afetado na dimensão


da pluralidade estética
Por último, como uma contribuição significativa ao conjunto de noções
propostas para as pesquisas em etnocenologia, consolida-se o Afeto. Durante a
década dos 2010, desloca-se da Bahia (Universidade Federal da Bahia) para
o Pará (Universidade Federal do Pará) o principal ponto da rede etnocenoló-
gica no Brasil. E dessa transição, o Afeto se agrega à tríade Trajeto (trajetória
pessoal do pesquisador), Projeto (corpo teórico-metodológico da pesquisa)
e Objeto (recorte do fenômeno a ser pesquisado).
Santa Brígida (2015, p. 23), pontuando a atuação de pesquisadoras e
pesquisadores em etnocenologia na Amazônia brasileira, esclarece:

Como aspectos relevantes a serem considerados nesses processos


criativos das pesquisas aqui analisados, sobressai de maneira especial
o afeto enquanto substância fundante para o resultado qualitativo e
original dessas travessias na construção do pensamento e da teoria
etnocenológica. Afeto enquanto amálgama da energia do corpo pes-
quisante no envolvimento com o objeto e fenômeno de pesquisa,
seus sujeitos, seu contexto e suas relações humanas. Afeto comungado,
somado, dividido e multiplicado como dimensão criativa, operativa e
espiritualizada para a pesquisa em artes cênicas.

A inclusão do Afeto e da afetividade nas pesquisas etnocenológicas,


como mais um elemento fundante da disciplina, também contribui para a afir-
mação de que, neste universo, amor e humor não se dissociam da objetividade

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 83 22/07/2022 16:26:41


84 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

do(a) pesquisador(a). Não é possível excluir o sentido de humanidade, na sua


forma mais holística, de comunhão entre todas as dimensões que guiam os
processos criativos da pesquisa, seja ela em artes ou sobre artes. O(A) pesqui-
sador(a) afetado(a), também nas proposições amazônicas da etnocenologia,
é aquele(a) que compreende seu recorte de pesquisa não como um objeto
a ser manipulado, friamente, neutramente, mas o sente e o percebe como
algo vivo, espiritualmente também comprometido com o significado de ser,
antes de tudo, humana.
Finalmente, a título de considerações transitoriamente finais, meu pensar
se direciona para as contribuições que essas formulações trazem às noções
de matrizes estéticas, proposição inicial deste artigo. Pelo olhar da etnociên-
cia das artes do corpo e do espetáculo, em diálogos com os estudos culturais,
com o multiculturalismo e com outras etnociências, como a cultura visual,
por exemplo, existe hoje uma evidente transição para uma pluralidade ma-
tricial na cultura espetacular cênica no Brasil. Essa diversidade se concretiza
naquilo que se torna o mais evidente em todos os movimentos de contrapo-
sição aos preconceitos estruturais de toda ordem.
Assim a etnocenologia, com suas propostas contrárias a qualquer tipo
de etnocentrismo ou de subalternização cultural, nos sugere que as cenas
contemporâneas advêm de uma filiação baseada no pluralismo conceitual,
principalmente dos incontáveis grupos de resistência, sejam eles étnicos,
de gênero, ou de qualquer outra ordem. Se existe hoje uma ética homoafetiva,
ela será também uma estética homoafetiva. Se ganha visibilidade uma ética
feminista, feminista será sua estética. E assim se dá com a resistência negra,
dos povos da floresta, da arte urbana, de Romanis, de pessoas com deficiência,
de protagonismo juvenil, de movimentos de sem-terra ou sem-teto. Compre-
endo que, por esta percepção de mundo, as matrizes estéticas da cena con-
temporânea estão localizadas, mais que em qualquer tempo, naquilo que
pode ser considerado como o primevo sentido da raça humana: a busca pela
preservação da espécie. Mais do que nunca, pelo caminho da preservação
da diferença, ou seja, ela politicamente pela afirmação de uma identidade de
grupos diversos, ou seja, ela pela sobrevivência da unicidade de cada indivíduo,
na pluralidade de sua existência singular.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 84 22/07/2022 16:26:41


MAMAS ÉPICAS 85

Referências
BESKOW, D. A. O discurso das mulheres na cena paulistana de 2015-2016:
uma proposta feminista de análise de espetáculos. 2017. Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas) − Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista
“Julio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.
unesp.br/handle/11449/152099. Acesso em: 10 abr. 2020.
BIÃO, A. Estética performática e cotidiano. In: TEIXEIRA, J. (org.). Performance
& sociedade. Brasília, DF: TRANSE/UNB, 1996._ p. 12-20.
BIÃO, A. Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade. In: BIÃO, A.
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A, 2009. p. 251-272.
BIÃO, A. Um trajeto, muitos projetos. In: BIÃO, A. (org.). Artes do corpo
e do espetáculo: questões de etnocenologia. Salvador: P&A, 2007. p. 25-27.
BIÃO, A. A vida ainda breve da etnocenologia: uma nova perspectiva
transdiciplinar para as artes do espetáculo. Cátedra de Artes, Santiago, n. 10/11,
p. 106-123, 2011. Disponível em: https://vdocument.in/a-vida-ainda-breve-da-
etnocenologia.html?msclkid=52423dd4abd511ecb87fd2a984267efa&page=16.
Acesso em: 14 abr. 2021.
CALEIRO, J. P. Os dados que mostram a desigualdade entre brancos e negros no
Brasil. Exame, São Paulo, 20 nov. 2018. Disponível em: https://exame.abril.com.br/
brasil/os-dados-que-mostram-a-desigualdade-entre-brancos-e-negros-no-brasil/.
Acesso em: 30 mar. 2021.
CARVALHO, M. A. 75% das vítimas de homicídio no país são negras, aponta Atlas
da violência. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5 jun. 2019. Disponível em: https://
brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-
negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Acesso em: 30 mar. 2021.
DOUXAMI, C. Teatro negro: a realidade de um sonho sem sono. Afro-Ásia,
Salvador, n. 25/ 26, p. 313-363, 2001.
ETNOCENOLOGIA, Manifesto. In: TEIXEIRA, J. (org.). Performance e sociedade.
Brasília, DF: TRANSE/UNB, 1996.
FREITAS, R. M. A história do teatro negro na Bahia: a força do discurso político-
ideológico da negritude em cena. Repertório, Salvador, ano 20, n. 29, p. 86-104, 2017.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva;
Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&EA, 2001.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.
Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 85 22/07/2022 16:26:41


86 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

MIRANDA, M. B. Rainhas, sutiãs queimados e bruxas contemporâneas - reflexões


a partir da montagem Vinegar Tom. Urdimento: revista de estudos em artes cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 11, p. 133-146, dez. 2008. Disponível em: http://revistas.
udesc.br/index.php/urdimento/article/view/13744/8870. Acesso em: 10 abr. 2020.
MONTAIGNE, M. Ensaios. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Ediouro, 1980.
SANTA BRÍGIDA, M. A Etnocenologia na Amazônia: trajetos-projetos-objetos-
afetos. Repertório, Salvador, n. 25, p. 13-23, 2015. Disponível em: https://
portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/download/15390/10539.
Acesso em: 2 abr. 2021.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 86 22/07/2022 16:26:41


Das experiências

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 87 22/07/2022 16:26:42


matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 88 22/07/2022 16:26:42
89

La voie des fleurs, du carnaval et


de l’ethnoscenologie. Une approche
sensible et transnationale
Nathalie Gauthard

Introduction
Infatigable voyageur, bâtisseur de ponts entre la France et le Brésil,
optant pour une transdisciplinarité totale dans son approche des arts de
la scène, Armindo Biao fut un des pionniers de l’ethnoscénologie. Grâce
à son insatiable curiosité, il inspira de nouveaux axes de recherches en
ethnoscénologie autour des circulations transnationales des pratiques
carnavalesques. En prenant exemple sur le parcours de l’écrivain, poète,
adepte de la floriculture et à l’origine de la première bataille de fleurs du
carnaval de Nice, Alphonse Karr au XIXe siècle, Armindo Biao illustra ainsi les
circulations entre Nice1 et Maragogipe à Bahia au Brésil, dans une perspective

1 J’étais alors enseignante-chercheuse à l’université de Nice (2002-2019), Armindo


Biao y fut invité dans le cadre d’une coopération Erasmus-Mundus en 2009 où
il assista au carnaval. Je l’ai invité ensuite au colloque Carnavals: Circulations,
transformations et contemporanéité (SOFETH, LIRCES, Erasmus Mundus, Carna-
vals sans frontières) les 21 et 22 octobre 2011 à l’université de Nice. Puis il m’invita
à son tour au colloque international Encontro Internacional Máscaras, Carnavais
e Comunidades, les 24-25 avril 2012 à Salvador de Bahia au Brésil. Nous nous

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 89 22/07/2022 16:26:42


90 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

transhistorique et transnationale. Cette recherche inédite a abouti à plusieurs


conférences, à Nice et à Bahia, et à la publication d’un article dans l’ouvrage
Fêtes, mascarades, carnavals. Circulations, transformations et contemporanéité
publié en 2014.
Les fleurs, omniprésentes dans son article − d’Alphonse Karr aux costumes
bigarrés du carnaval de Maragogipe − sont propices à une réflexion appro-
fondie sur les arts de scène. Aussi n’est-il pas étonnant de retrouver une
référence à la fleur du nô japonais des traités de Zeami (1363-1443)2 dans
son article:

Selon ‘La tradition secrète du Nô’ de Zeami, l’acteur doit cultiver la


fleur insolite, qui fleurit hors saison. Le savoir-faire se cultive. Ce qui
suggère une question d’ethnoscénologie: comment comprendre le
processus de recréation ‘anthropophagique’ de la tradition carnavales-
que européenne, métissée à d’autres ‘matrices esthétiques’ (amérin-
diennes et africaines) à Maragogique, Bahia, dont le carnaval a été
classé patrimoine culturel immatériel de Bahia en 2009 ?  (BIAO, 2014,
p. 202)

Même si s’agit là d’une question d’ethnoscénologie pertinente qui fait


douloureusement écho aux débats actuels sur les appropriations et les
constructions culturelles, cette présente contribution se veut davantage un
hommage à Armindo Biao qu’une nouvelle réflexion à l’aune des Post-Colo-
nial Studies comprenant une déclinaison poétique autour des fleurs, celles
d’Alphonse Karr, des carnavals fleuris de Nice à Bahia et du parfum envou-
tant de l’ethnoscénologie.

connaissions déjà grâce à Jean-Marie Pradier et au réseau de recherche international


en ethnoscénologie.
2 Zeami (1363-1443), est l’auteur des traités du nô dont il énonce les principes esthétiques,
en particulier dans le Fushi kaden, «La transmission de la fleur artistique, ou la tradi-
tion secrète du nô». Dans ce livre, il introduit le concept de yugen, «le charme subtil»
comme fondement de l’art de l’acteur, lequel doit faire «fleurir» son interprétation.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 90 22/07/2022 16:26:42


LA VOIE DES FLEURS, DU CARNAVAL ET DE L’ETHNOSCÉNOLOGIE 91

À l’origine: un carnaval et une bataille de fleurs


Chaque année à Nice, le Carnaval s’incarne dans une pluralité de mani-
festations festives à caractère esthétique, touristique, social et identitaire.
Plusieurs mouvements s’affrontent et/ou se complètent: d’un côté les pou-
voirs locaux représentés par la mairie et l’office du tourisme, de l’autre une
nébuleuse de mouvements associatifs de tous bords. Plusieurs postures
idéologiques s’affrontent: d’un côté le carnaval officiel, héritier du carnaval
créé en 1873 par le Comité des Fêtes à l’adresse de la clientèle touristique −
c’est-à-dire les riches hivernants venus profiter du climat niçois, de l’autre les
tenants d’un carnaval plus traditionnel revendiquant un héritage populaire
ancestral, c’est-à-dire la tradition carnavalesque de défoulement populaire
et de subversion. Ces deux types de carnavals ont néanmoins en commun
de clamer leur appartenance à une « authentique » (RINAUDO, 2004) identité
niçoise et à une « tradition » carnavalesque, laquelle se décline sur deux temps
forts du carnaval niçois: le défilé des corsos et la bataille de fleurs.
Nice et ses environs sont une destination touristique depuis la fin du
XVIIIe siècle. C’est un voyageur anglais, Tobias Smolett (BOYER, 2002), qui dès
1763 vante le climat particulièrement doux en hiver auprès de ses concitoyens.
Les anglais, la noblesse d’Europe, les riches bourgeois puis la cour de Russie
(AUGIER, 1981) s’y donnèrent rendez-vous chaque hiver. La « Côte d’Azur »
nait à cette époque.3 Ce label qui gomme de facto les particularismes locaux
pousse certains niçois à créer des associations de sauvegarde du patrimoine
local, notamment l’Académie Nissarda en 1905 (CUTURELLO; RINAUDO, 2005)
destinée essentiellement à défendre « l’Identité niçoise face au cosmopoli-
tisme de la Cité ». Il est à noter que c’est en 1904 que le syndicat d’initiative
de Nice publia son premier guide de la Côte d’Azur et que ce n’est qu’en 1928
que Jean Médecin, alors fraîchement élu Maire de Nice, fit la promotion de
sa ville en tant que capitale de la Côte d’Azur. Le Carnaval officiel de Nice
est donc né de la volonté de promouvoir commercialement une région.

3 Le comté de Nice est un ancien état de Savoie (1388-1793). En 1793, il est rattaché à la
République Française au sein du département des Alpes-Maritimes. Il devient Sarde
entre 1814 et 1818, rattaché au Royaume de Piémont-Sardaigne puis annexé à la France
lors du plébiscite de 1860.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 91 22/07/2022 16:26:42


92 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Ceci étant dit, il est néanmoins essentiel de souligner que ce sont des arti-
sans niçois et leur famille qui ont conceptualisé ce carnaval et lui ont don-
né son esthétique. Il s’inscrit, de surcroît, dans une tradition populaire de
mise en scène de figures grotesques ou burlesques. Ces figures sont l’œuvre
d’Alexis Mossa (1844-1926) et de son fils Gustave-Adolf Mossa (1883-1971).4
Le carnaval consiste en un défilé de chars, des corsos, sur lesquels trônent
des personnages récurrents : le roi, la reine, le carnavalon. Selon Annie Sidro,
petite-fille de carnavaliers niçois et mémoire du carnaval de Nice « les attri-
buts niçois entouraient fréquemment le monarque » et Gustave-Adolf, grand
connaisseur de l’histoire et du folklore ne manquait jamais de faire des pi-
qûres de rappel de ce patrimoine local quitte à s’attirer les foudres du Co-
mité des Fêtes qui craignait que le public extérieur ne se retrouve pas dans
cette débauche de folklore régional.
Une autre des spécificités du carnaval de Nice est son défilé de chars
fleuris et son emblématique bataille des fleurs sur la promenade des Anglais.
Ce défilé, aux multiples senteurs fleuries, a été créé en 1876 par Andriot
Saëtone fondateur du Comité des Fêtes sous l’impulsion de l’écrivain et flori-
culteur Alphonse Karr. Des fleurs fraîches et coupées ornent des chars, elles
sont ensuite lancées à la foule par des jeunes femmes (accompagnées de-
puis peu par quelques jeunes hommes) qui se « bat » pour les attraper. La
grande majorité des fleurs provient de la production locale, en particulier
mimosas, lys, marguerites et gerbera. Un atelier de costume dédié aux lan-
ceurs/euses de fleurs est spécialement consacré aux chars fleuris. Il est à
rappeler que la ville de Nice doit également sa réputation internationale à la
culture des fleurs sur ses collines depuis le XVIIIe siècle. Le célèbre écrivain
et journaliste Alphonse Karr y développa au XIXe siècle le commerce de la
fleur hors serre et sa commercialisation à travers l’Europe et le monde.
Il est également un des premiers à avoir ouvert un commerce de fleurs en
centre-ville pour le plus grand plaisir des hivernants. La floriculture niçoise
connaît son apogée avec l’arrivée du chemin de fer en 1863 et un système
d’irrigation innovant via la Vésubie en 1885. Nice était alors au premier rang
de la production mondiale. À ce titre, le marché aux fleurs de la ville de Nice
créé en 1897 a été le premier marché de fleurs en gros à l’échelle de la planète.

4 Lire à ce sujet Annie Sidro(1979).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 92 22/07/2022 16:26:42


LA VOIE DES FLEURS, DU CARNAVAL ET DE L’ETHNOSCÉNOLOGIE 93

Le costume traditionnel niçois avec tablier et capeline pour les femmes re-
présente l’habit la bouquetière de l’époque.

Le parcours des fleurs de la France au Brésil5


Armindo Biao, dès son arrivée à Nice, se passionna pour la vie et la fa-
mille d’Alphonse Karr (1808-1890), dont un de ses descendants émigra à Rio
au Brésil puis à Bahia. Alphonse Karr est surtout connu en France en tant
qu’écrivain et journaliste, rédacteur en chef du journal Le Figaro. Fils d’un mu-
sicien bavarois installé en France et d’une mère française, il publie des textes
poétiques, satiriques et romanesques. Il écrit dans la revue littéraire La Chro-
nique de Paris, fondée par Honoré de Balzac en 1835 et côtoie Victor Hugo.
Il publie ses articles dans de nombreux journaux, signe des feuilletons et de-
vient rédacteur en chef au Figaro6 de 1836 à 1838. Il crée et publie une revue
satirique entre 1839 et 1849, Les Guêpes dont il est l’unique contributeur et
poursuit ses collaborations avec Victor Hugo.7 Opposé à la monarchie consti-
tutionnelle, il soutient Eugène Cavaignac contre Louis-Napoléon Bonaparte.
Le coup d’État de celui-ci en 1851 le contraint à se retirer dans le sud, à Nice,
alors rattachée au royaume de Piémont-Sardaigne.
Dès son arrivée à Nice, il fut d’emblée « frappé par le fait stupéfiant qu’il
n’y avait pas de fleurs ». (GAVOT, 1961, p. 10) Il y développe alors une activité
de floriculteur de 1853 à 1867 et inaugure une boutique de fleurs, fruits et lé-
gumes à destination des touristes hivernants qui rencontre un grand succès.
Fidèle (apud GUYOT; GIBASSIER, 1967, p. 5) à sa verve littéraire sarcastique
et ironique, il est d’ailleurs l’auteur de cette citation: « La botanique c’est l’art
de sécher les plantes entre des feuilles de papier et de les injurier en grec
et en latin », dénonçant les botanistes qui en donnant des noms savants aux
plantes les ont dépossédés de leur poésie. Pour Alphonse Karr, une fleur est

5 Je reprends ici en partie le titre de son chapitre: «Le parcours des fleurs d’Alphonse
Karr, de Nice, France (XIXe siècle) à Maragogipe, Bahia, Brésil (XXIe siècle)» in Fêtes,
mascarades, carnavals: circulations, transformations et contemporanéité (2014, p. 198-206).
6 Entre 1826 et 1854, Le Figaro est alors un journal satirique.
7 Il publie régulièrement dans L’Évènement un quotidien. Il est créé par Victor Hugo en
1848 d’abord en soutien à Louis-Napoléon Bonaparte puis en journal d’opposition à la
majorité présidentielle.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 93 22/07/2022 16:26:42


94 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

« gracieuse », possède une jolie robe et surtout est délicieusement parfumée.


Ces derniers arguments, esthétiques et poétiques (mais aussi économiques),
motiveront la création de la bataille de fleurs lors des défilés carnavalesques
niçois. Retraçant une généalogie de la famille Karr et ses liens avec le Brésil,
Armindo Biao mit au jour une correspondance entre Alphonse Karr avec la
famille impériale du Brésil, notamment avec l’empereur Pedro II (1825-1891)
et une de ses filles la princesse Isabelle du Brésil8 (1846-1921) qu’il reçut à
plusieurs reprises chez lui à Nice. Ces défilés fleuris inspirèrent Isabelle du
Brésil qui décida à son tour de célébrer l’abolition de l’esclavagisme au Brésil
par le défilé de voitures décorées de fleurs. Cette proximité entre Alphonse
Karr et la famille impériale du Brésil aurait même motivé une aide financière
de l’ex-empereur du Brésil à la famille Karr. (BIAO, 2014, p. 200)
Deux déplacements se firent en parallèle, de la France au Brésil, de Nice
à Bahia: celui des modèles de carnaval (défilés de chars, défilés de fleurs)
et celui des descendants de la famille Karr. Certes, les savoir-faire niçois
en matière de carnaval se sont depuis toujours exportés depuis la créa-
tion officielle du Carnaval de Nice à la fin du XIXe siècle jusqu’à nos jours.9
De surcroît, le carnaval dans sa dimension marchande et produit d’une
consommation de masse génère une économie non négligeable et inspire
de nombreux organisateurs de festivals ou de processions carnavalesques à
travers le monde. Après avoir été répertorié sur des listes locales, nationales
ou internationales comme « patrimoine culturel immatériel », le carnaval
contemporain est catalogué dans les parcours touristiques, étape obliga-
toire du circuit réussi grâce à son caractère participatif. Le carnaval est une
pratique, une expérience commune et partagée même s’il s’agit parfois
d’« une mise en fiction du monde » (AUGÉ, 1997, p. 14), d’une reconstruction
ou d’une réinterprétation de la tradition. (LENCLUD, 1994)
Ces circulations et transformations furent au fondement des recherches
d’Armino Biao, considérant sa « matrice » bahianaise comme singulière,
multiculturelle, se situant dans une perspective dynamique de la notion de

8 Elle participe à l’abolition de l’esclavage en 1888 en signant la Loi d’or (Loi impériale
n° 3353). Elle est l’épouse de Gaston d’Orléans (1842-1922), petit-fils de Louis-Philippe
1er (1773-1850).
9 Lire à ce sujet, Nathalie Gauthard (2014b, p. 15-26).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 94 22/07/2022 16:26:42


LA VOIE DES FLEURS, DU CARNAVAL ET DE L’ETHNOSCÉNOLOGIE 95

tradition et ouverte à la nouveauté. Ses questionnements, esthétiques,


personnels et sensibles sont au cœur des recherches en ethnoscénologie.

Le parfum envoutant de l’ethnoscénologie


En s’exportant, dans une opération de transfert d’une société à une
autre, les arts vivants et performatifs invitent à entrer dans un processus
d’élaboration cognitive où l’imaginaire se mêle au perceptif et au conceptuel:
le monde de l’Autre. Ce phénomène a été observé par de nombreux cher-
cheurs dont Jean-Marie Pradier (2016) et bien évidemment Armindo Biao.
À l’instar des recherches en ethnomusicologie de Laurent Aubert (2001) et d’
Sarah Andrieu et Emmanuelle Olivier (2018) tout un pan de la recherche s’est
également focalisé sur les contextes de productions de ces nouvelles créa-
tions scéniques dites « traditionnelles », voire touristiques, alliées conjointe-
ment au processus complexe de « sauvegarde » de ces formes. Ces nouvelles
perspectives participent d’un mouvement actuel et mondial notamment cen-
tré sur la patrimonialisation des « pratiques culturelles immatérielles » dans
le sillage de l’UNESCO. Armindo Biao, observant la circulation des formes
carnavalesques de la France au Brésil, s’était arrêté sur le carnaval de Mara-
gogipe à Bahia, patrimonialisé « patrimoine culturel immatériel » de Bahia,
ce qui avait soulevé chez lui de nombreuses interrogations.
Dans mon article, « Perspectives croisées: ethnoscénologie et ethnomu-
sicologie ou le dialogue des disciplines» paru en 2008, j’avais souligné l’im-
portance de l’émergence de l’ethnoscénologie dans le paysage des études
théâtrales10 en France en précisant qu’il ne s’agissait pas d’un des « multiples
sous-domaines spécialisés issus de l’ethnologie » ( BERGER, 2005, p. 5) mais
bien d’une nouvelle discipline au croisement de l’anthropologie des mondes
contemporains et des études en esthétique. Les séminaires d’ethnoscénologie
faisaient dialoguer anthropologie, linguistique, neurosciences, ethnomusico-
logie. Jean-Marie Pradier (1999) rappelle:

10 Pour une histoire de la discipline en France, lire Marie-Madeleine Mervant-Roux « Les


études théâtrales : objet ou discipline ?» (2006).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 95 22/07/2022 16:26:42


96 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

L’ethnoscénologie est née dans un climat favorable, au moment


de l’effondrement de certaines théories figées et très morcelantes,
qui considéraient par exemple les comportements spectaculaires,
dont le théâtre et la danse, dans une perspective résolument intel-
lectualiste, au sens pathologique du terme. Elle est née aussi à un
moment où l’on a fait avancer les choses dans le domaine de l’in-
terdisciplinarité. L’ethnoscénologie est par nature transdisciplinaire,
en référence à des corps de savoir scientifique, à des méthodes, à des
épistémés comme par exemple la neurobiologie, l’anthropologie,
la linguistique, la sociologie, mais aussi à la connaissance des prat-
iciens. Elle est née aussi à un moment où l’on s’intéresse de plus en
plus aux formes spectaculaires qui viennent des autres et du très
lointain. Mais l’ethnoscénologie doit s’intéresser également aux pra-
tiques européennes et euro-américaines et ne doit pas être réservée
à ceux que l’on appelle, non sans paternalisme hautain, les peuples
sans écriture, aux primitifs, aux ex-colonisés11.

La transdisciplinarité offrait un parfum intellectuel enivrant grâce aux


perspectives qu’elle offre. Néanmoins l’ethnoscénologie à ces débuts était
difficile à circonscrire comme en témoigne Jean-Marie Pradier ([2014]):

En quelques années plusieurs définitions de l’ethnoscénologie ont


été avancées. Elles se situent entre deux pôles extrêmes. L’un n’est
pas sans rappeler les premiers pas de l’ethnomusicologie lorsque la
taxonomie musicale se faisait l’écho de la conception hiérarchique
des civilisations. L’autre attend d’une nécessaire transdisciplinarité
les moyens de fonder une scénologie générale dont les études théâ-
trales stricto sensu seraient une branche. Plutôt que de penser par
catégories, l’ethnoscénologie se propose d’examiner les contextes qui
ont conduit à l’idée même de catégorie. Si nous adoptons le néolo-
gisme proposé par Grotowski, nous pouvons dire que l’ethnoscénol-
ogie étudie les pratiques performatives des divers groupes ethniques
et communautés culturelles du monde entier, en prenant soin de
tempérer ou de maîtriser l’ethnocentrisme de la perception de l’ob-
servateur et des références théoriques.

11 Entretien avec Jean-Marie Pradier dans Les périphériques vous parlent, n° 12, été 1999,
pp.  26-35. Consultable sur http://www.lesperipheriques.org/ancien-site/journal/12/
fr1226.html.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 96 22/07/2022 16:26:42


LA VOIE DES FLEURS, DU CARNAVAL ET DE L’ETHNOSCÉNOLOGIE 97

Fer de lance de la recherche en ethnoscénologie, le procès en ethnocen-


trisme, ou en « anthropophagie culturelle » comme l’écrivait Armindo Biao,
commence timidement à porter ses fruits dans le monde des études théâ-
trales. En effet, bien que la notion de « tradition » fût analysée et théorisée
en tant que mot-outil et mot-problème,12 à l’heure de la multiplication des
écrans et de l’envahissement des images sur les nouveaux supports de com-
munication, des phénomènes migratoires, des processus de délocalisation
et de la « touristification » de masse, les frontières réelles ou symboliques,
les perceptions sur l’altérité ne sont plus les mêmes. Toutes les études sur
le postcolonialisme et le postmodernisme démontrent que nous sommes à
présent dans l’ère du branchement (Amselle, 2001), de la transculturalité ou
de la transnation, de l’hétérogénéité, voire de l’hybridité. Les conséquences
de cette diffusion permettent d’accroître un travail d’inventivité, un renou-
vellement des imaginaires. Dans « Questions posées à la théorie − une ap-
proche bahianaise de l’ethnoscénologie » (BIAO, 1996, p.145) Armindo Biao
se faisait déjà, avant l’heure, le témoin de l’effervescence bahianaise mettant
en parallèle, mondialisation, hybridation et glocalisation.

Pour conclure: le bouquet aux multiples senteurs…


L’anthropologue Daniel Fabre (2014, p. 5) écrivait à propos de la création
tant littéraire qu’artistique:

12 Gérard Lenclud (1994, p. 25): «Il y a des mots-outils et des mots-problèmes? Un mo-
t-outil est un mot que l’on utilise sans trop penser à son sens. Il est une procédure
grossière d’identification. L’important, c’est à quoi ce mot permet de vite référer. […]
Un mot-problème signale un concept plus qu’il n’identifie un objet ou même qu’il n’ex-
prime un sens; et un concept se caractérise par le fait qu’il est nécessairement équivo-
que et qu’il échappe par conséquent à la définition. On peut définir un mot, c’est-à-dire
décréter une signification, mais pas un concept puisqu’il réunit en lui une pluralité de
significations. Du même coup, le mot-problème oblige à penser. Tout mot-outil est
susceptible de devenir mot-problème; et tous les mots, dont on sait pourtant qu’ils
ont le statut de mot-problème, continuent d’être utilisés comme des mots-outils. Il est
en effet bien difficile de parler du monde et de communiquer avec autrui par l’intermé-
diaire de mots-problèmes!».

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 97 22/07/2022 16:26:42


98 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

[…] le ‘créateur’, ou ‘recréateur’ engage un faisceau extraordinairement


complexe de compétences cognitives, d’expériences affectives, d’ha-
biletés techniques, pour une part muette et pour une part explicitées,
en interférence avec les codes culturels dont il hérite dans son milieu
ou qu’il capte au-dehors, voire au loin… 

Pétri par tous ces éléments, Armindo Biao souhaitait avoir une approche
sensible des arts vivants, il était lui-même comédien et metteur en scène.
Dans la conclusion de sa recherche sur les circulations entre Nice et Bahia il
rapportait une anedocte personnelle:

Le prêtre de Maragogipe (1835 ?-1885) a baptisé quatre de ses filles


naturelles en leur donnant son nom de famille (Gonçalves) et, pour
y vivre et être élevées, une maison à côté de l’église matriciale de
Saint-Barthélemy, qui est devenue connue en ville comme ‘la maison
des jeunes filles ’. L’une d’entre elles (Veneranda Grata/ 1865?-1929?)
a été la mère de ma grand-mère (Evangelina 1885? 1962) et grand-
mère de ma mère (Dulce Aleluia,1922-). À chaque fête de la Saint-Bar-
thélemy, une centaine des descendants du prêtre (y compris moi-
même) font la fête ensemble dans un bateau pendant huit heures.
On mange, chante, danse et plonge dans l’eau de l’estuaire du Paraguaçu.

Son parcours de fleurs de Nice à Maragogipe comprenait ainsi un as-


pect de sa vie personnelle et familiale illustrée par les vicissitudes du temps
et de l’histoire sociale et culturelle, la voie des « fleurs et des masques » du
carnaval, de Nice à Maragogipe. Cet aspect de la recherche aux résonnances
intimes avait été écarté jusqu’à ce que l’anthropologie réflexive et le post-
-modernisme invitent à « penser l’intime » (LAPLANTINE, xxxx2018, p. 75) et
réintroduire un discours sensible dans les sciences humaines.
Dans les traités sur le théâtre, Zeami désigne par yugen, le « charme sub-
til » qui vise à susciter une émotion profonde, à ravir les sens, à établir une
résonnance entre les artistes et les spectateurs de nô. Le maître japonais
propose ainsi une taxonomie poétique autour de hana, la « fleur » des états,
des émotions, des sensations qui se transmettent de cœur à cœur entre in-
terprètes et spectateurs. Cette fleur se décline sous trois aspects, la « fleur
authentique », makoto non hana, qui désigne la maîtrise de l’interprète ;
la « fleur du moment », jibun no hana, éphémère et périssable qui voit flétrir

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 98 22/07/2022 16:26:42


LA VOIE DES FLEURS, DU CARNAVAL ET DE L’ETHNOSCÉNOLOGIE 99

la beauté, et la fleur cachée, celle du « présent éternel » qui échappe à tou-


te substantification. (AKINOBU, 2015) Nul doute qu’Armindo Biao eut éga-
lement recours à la métaphore florale pour cultiver en lui toutes ces fleurs
aux fragrances délicates, contribuant ainsi à diffuser une pensée sensible
ancrée dans une ethnoscénologie contemporaine et dont l’héritage poétique
continuera d’influencer la génération de jeunes chercheurs dont je fis partie.

Références
AKINOBU, K. Le geste dans le théâtre nô: approche philosophique – réflexion
phénoménologique sur la forme vivante, mise en scène dans le théâtre nô. In:
LA FLEUR caché du Nô. Textes réunis et présentés par Catherine Mayaux. Paris:
Honoré Champion Editeur, 2015. p. 23-34.
ANDRIEU, S.; OLIVIER, E. (dir.). Création artistique et imaginaires de la globalisation.
Paris: Hermann, 2018.
AUBERT, L. La représentation de l’autre ou le paradoxe du spectacle. Internationale
de l’Imaginaire, Paris, n. 15, 2001.
AUGÉ, M. L’impossible voyage: le tourisme et ses images. Paris: Payot & Rivages, ,
1997. (Rivages poches/Petite Bibliothèque).
AUGIER, P. Quand les grands ducs valsaient à Nice. Paris: Fayard, 1981.
BERGER, L. Les Nouvelles Ethnologies. Enjeux et perspectives. Paris: Armand Colin,
2005. (Sociologie ).
BIAO, A. Le parcours des fleurs d’Alphonse Karr, de Nice, France (XIXe siècle) à
Maragogipe, Bahia, Brésil (XXIe siècle). In: GAUTHARD, N. (dir.). Fêtes, mascarades,
carnavals: circulations, transformations et contemporanéité. Lavérune : Édition
L’Entretemps, 2014. p. 198-206.
BIAO, A. Questions posées à la théorie: une approche bahianaise de
l’ethnoscénologie. Internationale de l’imaginaire, Paris, n. 5, p.145-152, 1996.
BOYER, M. L’invention de la Côte d’Azur: L’hiver dans le midi. La Tour-d’Aigues:
Éditions de l’Aube, 2002.
CUTURELLO, P.; RINAUDO, C. Mise en image et mise en critique de la Côte d’Azur.
Faire-Savoirs: Sciences de l’Homme et de la Société en Provence-Alpes-Côte d’Azur,
Association A.M.A.R.E.S éditions, [s. l.], p.77-83, 2005.
FABRE, D. Introduction: comprendre la création, entendre la fiction, Gradhiva,
Paris, n. 20, p. 4-21, 2014.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 99 22/07/2022 16:26:42


100 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

GAUTHARD, N. (dir.). Fêtes, mascarades, carnavals: circulations, transformations et


contemporanéité. Lavérune : Éditions L’Entretemps, 2014a. (Les Anthropophages).
GAUTHARD, N. Les avatars de carnavals. In: GAUTHARD, N. (dir.). Fêtes, mascarades,
carnavals. Circulations, transformations et contemporanéité. Lavérune : Éditions
L’Entretemps, 2014b. p. 15-26.
GAUTHARD, N. Perspectives croisées: ethnoscénologie et ethnomusicologie ou
le dialogue des disciplines. In: CHARLES-DOMINIQUE, L. (dir.). L’Ethnomusicologie
de la France: de l’ancienne civilisation paysanne à la globalisation. Paris:
L’Harmattan, 2008. p. 235-246.
GAVOT, J. Alphonse Karr: le jardinier de Nice, le solitaire de Saint-Raphaël.
Draguignan: Lanteaume, 1961.
GUYOT, L.; GIBASSIER, P. Les noms de plantes. Paris: PUF, 1967. (Que sais-je ?,
n. 856).
LENCLUD, G. Qu’est-ce que la tradition ? In: DETIENNE, M. (éd.). Transcrire les
mythologies. Paris : Albin Michel, 1994. p. 25-45.
MERVANT-ROUX, M.-M. Les études théâtrales : objet ou discipline? Paris, 2006.
Colloque Unité des recherches en sciences humaines et sociales. Fractures et
recompositions, organisé par les équipes de recherche du CNRS à l’ENS-Ulm, 9-10
juin 2006, École normale supérieure.
LAPLANTINE, F. Penser l’intime: trouble dans la binarité et perturbation dans
le langage. In: LAPLANTINE, F. Penser le sensible. Paris: Pocket, 2018. p. 75-91.
PRADIER, J.-M. L’ethnocentrisme théorique, ou l’effet clou de girofle. Revue
Horizons/Théâtre, Pessac, FR, n. 7, p. 10-26, 2016.
PRADIER, J.-M. La perception ethnoscénologique. [Entretien donné] Les
Périphériques Vous Parlent, [s. l.], n. 12, 1999. Disponible en: http://www.
lesperipheriques.org/ancien-site/journal/12/fr1226.html. Accès à: 20 mai 2001.
PRADIER, J.-M. Théâtre et sociétés. In: ENCYCLOPÆDIA Universalis. Boulogne-
Billancourt, FR: [s. n.], [2014]. Disponible en: https://www.universalis.fr/
encyclopedie/theatre-occidental-theatre-et-societes. Accès à: 27 mars 2014.
RINAUDO, C. La tradition carnavalesque niçoise: du passéisme à l’invention
délibérée. In: DIMITRIJEVIC, D. (dir.). Fabrication de traditions, invention de modernités.
Paris: Maison des Sciences de l’Homme, 2004. p. 261-274.
SIDRO, A. Le Carnaval de Nice et ses fous: Paillassou, Polichinelle, Triboulet. Nice:
Serre, 1979.
ZEAMI. La tradition secrète du nô: suivi de Une journée de nô. Traduction
et commentaires de René Sieffert. Paris Gallimard: UNESCO, 1960.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 100 22/07/2022 16:26:42


101

Performance, Arte e Ambiente:


do reisado do mulungu às intervenções urbanas

Eloisa Brantes Mendes

Quando me permitiam, escrevia: não venha


para cá não; rio aqui é esgoto, local onde toda
podridão das casas é jogada, e a cidade é
tão grande que você anda seis dias e seis noites
e não chega na ponta da rua, onde se espera
encontrar o mato.

(MARQUES, 2012, p. 128)

Desde 2007 desenvolvo performances coletivas em torno do ele-


mento água com o Coletivo Líquida Ação (Rio de Janeiro).1 A necessidade
vital da água como bem comum, a desigualdade social no acesso à água
e sua exploração econômica como capital natural, no atual contexto de
mudanças climáticas, levantam questões éticas que mobilizam nossos
processos cênicos cujo engajamento político envolve pesquisa e cria-
ção com diversos contextos socioambientais e nossa implicação nestes.
No direcionamento destes trabalhos busco acolher, incluir, provocar e
estimular as inquietações pessoais dos artistas envolvidos na formação

1 Para maiores informações, ver o site www.coletivoliquidaacao.com.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 101 22/07/2022 16:26:43


102 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

do próprio coletivo. O coletivo está sempre em formação, pois não se trata


apenas de um grupo de pessoas reunidas, mas de um modo de estar no
mundo, ou seja, o contato entre as pessoas inclui a relação com o ambiente:
as cidades, as instituições, as culturas, as naturezas e a vida social. O trabalho
colaborativo dinamizado pelos corpos e pelos ambientes que se afetam
mutuamente implica atenção ao entorno do qual somos parte e que nos
constitui enquanto seres vivos. O elemento água como via de conexão en-
tre corpo e ambiente é o fio condutor destes processos de criação que,
na perspectiva de uma arte contextual, se ancoram nas circunstâncias dadas
para “tecer com” a realidade.

Para o artista contextual se trata menos de impor formas strictu sensu,


novas ou não, do que interagir com o ‘texto’ que constitui toda socie-
dade, texto por natureza inacabado e que oferece sempre matéria de
discussão no caso da sociedade democrática – por excelência esta da
negociação, da alternativa e do contrato social evolutivo. (ARDENNE,
2004, p. 35, tradução nossa)

FIGURA 1: Coletivo Líquida Ação. Performance: Paisagens Inter-Urbanas.


II Encontro. Trans-In-Corporados, Praça Mauá, Rio de Janeiro, 2018
Fotógrafo: George Magaraia.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 102 22/07/2022 16:26:45


PERFORMANCE, ARTE E AMBIENTE 103

O questionamento do tipo de relação utilitária com o ambiente, e par-


ticularmente a água, como recurso natural comercializável desvinculado da
própria vida, ecoa a proposta de trabalho coletivo, baseado na horizontalidade
das relações, na multiplicidade de funções de cada artista e na busca de uma
economia que recusa a exploração do outro e a exploração do ambiente como
fontes de lucro.
A edificação das cidades, com seus processos de canalização dos rios para
distribuição da água e escoamento de esgotos, mostra que o afastamento
entre corpo e natureza é produzido pelas sociedades modernas, marcadas
pela manipulação dos recursos naturais como matéria-prima de produtos
industrializados a serem consumidos. As performances, realizadas pelo
Coletivo Líquida Ação, propõem ações com as águas da cidade aproximando
nossos corpos dos ecossistemas ligados aos rios. Os encontros e as conver-
sas com as pessoas que vivem as cidades, suas memórias da água e suas
relações com ela informam diferentes realidades socioambientais. A partir
deste contato direto com as pessoas, os lugares e nossas experiências
urbanas, iniciamos pesquisas documentais sobre a presença da água nas
cidades. Este processo de criação que lida diretamente com textos sociais −
narrativas, memórias e sensações do ambiente − levanta questões políticas
sobre o acesso à água, buscando a dimensão coletiva da existência a partir
da perspectiva sistêmica dos ecossistemas ligados aos rios. Performances
coletivas baseadas no transporte da água, ativação de chafarizes secos,
banhos públicos e formação de paisagens com água em espaços urbanos
denunciam o uso da água como mercadoria, criticando a própria noção de
desenvolvimento e de produtividade nas sociedades modernas no regime
capitalista liberal avançado. Além de performances em situação de interven-
ção urbana feitas em diferentes cidades de estados brasileiros (São Paulo,
Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará, Bahia), a realização de residências artís-
ticas na Vila de Regência Augusta, Espírito Santo, na foz do Rio Doce (2017-
2018), com apoio do Edital Rumos Itaú Cultural;2 na Ilha de Massangando,

2 O projeto FOZ AFORA ocupou o Espaço Municipal de Cultura Sérgio Porto (Rio de
Janeiro) durante três semanas, em setembro 2018, com exposição, mesas de conversa
sobre o crime ambiental no Rio Doce, experiência cênica, apresentação dos artistas da
Vila de Regência Augusta e lançamento do livro Foz afora: residência artística no Rio
Doce com textos e imagens de Jérôme Souty, Inês Linke, Eloisa Brantes, Ana Emerich,

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 103 22/07/2022 16:26:45


104 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Petrolina, Pernambuco, no rio São Francisco (2019), com apoio da Univer-


sidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVESF);3 e na cidade de São João
da Barra, Campos de Goytacazes, Rio de Janeiro, à margem do rio Paraíba
do Sul (2019), em colaboração com a Casa Duna,4 fazem parte da trajetória
de pesquisa e criação do Coletivo Líquida Ação. O contato direto com a des-
truição contínua destes rios, que são de extrema importância para os ecos-
sistemas de suas bacias hidrográficas, intensificou o engajamento político
da proposta de pesquisa e criação artística com as águas em seus diferentes
contextos socioambientais e ampliou meu interesse pelos estudos de ecologia
política e debates sobre pós-extrativismo. (ACOSTA, 2016)
Desde 2007 trabalho como diretora artística e performer no Coletivo
Líquida Ação. Esta prática de pesquisa e criação com performances coletivas
em torno da água começou um ano após a finalização da minha pesquisa de
doutorado sobre performance e espetacularidade no ritual do Reisado do
Mulungu, Chapada Diamantina, Bahia, na linha de pesquisa etnocenologia.
Sempre percebi ressonâncias da pesquisa de doutorado em minha prática
como diretora artística e performer, mas nunca escrevi sobre isto. O convite
para participar desta publicação sobre Matrizes estéticas na cena contempo-
rânea: diálogos entre culturas, práticas, pesquisas e processos cênicos proposto
pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da
Bahia (PPGAC-UFBA), no qual realizei a pesquisa de doutorado entre 2000-2005,
me trouxe o desafio de refletir sobre performance, arte e ambiente, traçando
algumas conexões entre a prática artística do Coletivo Líquida Ação e a pes-
quisa de doutorado intitulada Do canto do corpo aos canto da casa: performance
e espetacularidade através do Reisado do Mulungu, orientada pelo professor
Armindo Bião.

Thaís Chilinque, Evee Ávila, Mauricio Lima e Lara Siqueira, todos pesquisadores e artistas
participantes do projeto. O livro está disponível no site www.coletivoliquidacao.com
e também existe em versão impressa.
3 II Congresso Nacional de Artes/CONARTES realizado na UNIFASV. A residência artística
de quatro dias em junho/julho 2019 na Ilha de Massangano, contou com a participação
de professores e estudantes de Artes da UNIFASV.
4 O centro de arte, pesquisa e memória de Atafona: Casa Duna é um espaço aberto a
residências artísticas concebido e coordenado por Julia Nadin e Fernando Codeço.
Para saber mais, ver: https://www.casaduna.org/.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 104 22/07/2022 16:26:45


PERFORMANCE, ARTE E AMBIENTE 105

Após defender a tese de doutorado publiquei apenas dois textos5 e


falei pouco sobre o assunto. O processo de tradução/escrita da experiência
vivida no campo de pesquisa para outros contextos sempre me intimidou.
Apesar de reconhecer a importância da tese na minha formação e do valor
do texto enquanto documentação inédita sobre o Reisado da comunidade
Mulungu na Chapada Diamantina, tentei escapar do modelo científico de
produção de conhecimento baseado no distanciamento e na objetificação
do outro, desenvolvendo a pesquisa de campo como experiência da al-
teridade capaz de desestabilizar o próprio campo da arte em suas espe-
cificidades culturais. Meu intuito como pesquisadora não foi falar sobre a
performance ritual do Reisado do Mulungu como especialista do catolicismo
popular ou da cultura afro-brasileira, nem estudar seus cantos ou danças
enquanto técnicas corporais voltadas para a atuação cênica e muito menos
valorizar a cultura popular enquanto folclore fadado a desaparecer. Estava
interessada em investigar a potência transformadora da performance ritual a
partir das relações entre cultura tradicional e processos de criação. A abor-
dagem de Jerzy Grotowski sobre os diferentes centros de montagem da per-
formance na arte e no ritual conduziram esta investigação sobre a dimensão
coletiva da performance do Reisado no diálogo com as dinâmicas de mudança
da vida social no Mulungu.
Mobilizada pela possibilidade de desenvolver a dimensão ritual da per-
formance em outros contextos fora do campo religioso e/ou das culturas
tradicionais, precisava desdobrar as experiências vividas com o Mulungu
através de experimentações cênicas, que eu não tinha a menor ideia do que
seriam até a formação do Coletivo Líquida Ação no final de novembro de
2006. A trajetória de trabalhos do Coletivo sempre foi, para mim, um campo
de experimentação entre pesquisa artística, trabalho de campo e prática so-
cioambiental. Mas na pesquisa de doutorado os campos sociais, culturais
e históricos predominaram na abordagem da performance do Reisado do
Mulungu, pois a complexidade das questões de gênero e de raça na forma-
ção identitária desta comunidade negra rural ganharam primeiro plano no

5 Os textos: “A Espetacularidade do Reisado do Mulungu (Chapada Diamantina/Bahia)”,


publicado na Revista Religião e Sociedade, em 2007 e “Do canto do corpo aos cantos
da casa: o lugar da dança no Reisado do Mulungu”, capítulo do livro Dança da Terra,
publicado em 2005.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 105 22/07/2022 16:26:45


106 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

estudo das relações entre espetacularidade e performance ritual. Para mim,


a conexão sociedade-ambiente como perspectiva epistemológica só se apre-
sentou com urgência mais tarde, através dos trabalhos com água na trajetó-
ria do Coletivo Líquida Ação e do contexto mundial de mudanças climáticas
que denuncia os equívocos da dicotomia natureza-cultura como pensamento
ocidental hegemônico, cujo modelo de “desenvolvimento” se evidencia como
totalmente insustentável.
Na linha da etnocenologia como estudo da cena em diferentes culturas,
a pesquisa sobre o ritual do Reisado do Mulungu durante o doutorado abriu
trânsitos entre minha formação em artes cênicas (teatro e dança) e as ciên-
cias sociais (antropologia, história, sociologia). A abordagem transdisciplinar
como proposta de investigação etnocenológica associada aos conhecimentos
tácitos do artista cênico seriam uma chave de leitura dos estudos da cena
em diferentes culturas. Mas durante o trabalho de campo percebi que minha
formação cênica como atriz, baseada em processos de montagem centrados
na relação entre palco e plateia, era mais uma chave de equívocos do que de
leitura da performance ritual. No entanto, tais equívocos foram de grande
valia para o entendimento dos processos de criação que estavam em jogo
na performance ritual do Reisado do Mulungu da qual participei ativamente,
como um corpo estranho, dançando e cantando os giros do Reisado em di-
ferentes comunidades rurais durante o período de peregrinação do dia de
Reis (6 de janeiro) até a festa de São Sebastião (20 de janeiro). Após finalizar o
doutorado, as experiências vividas com o Reisado da comunidade negra ru-
ral Mulungu, situada no município de Boninal (Chapada Diamantina - Bahia),
me levaram em direção a processos coletivos de criação, pois com o Mulungu
entendi que a dimensão ritual da performance é indissociável do fortaleci-
mento da vida coletiva em suas relações com o ambiente. Neste sentido a
noção de saber ambiental, traçada por Henrique Leff como epistemologia
política que busca a sustentabilidade da vida, indica campos de reflexão sobre
performance e ambiente.

O saber ambiental não é o conhecimento da biologia e da ecologia;


não trata apenas do saber a respeito do ambiente, sobre as externali-
dades das formações teóricas centradas em seus objetos de conhe-
cimento, mas da construção de sentidos coletivos e identidades com-
partilhadas que formam significações culturais diversas na perspectiva
de uma complexidade emergente e de um futuro sustentável. (LEFF,
2009, p. 21)

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 106 22/07/2022 16:26:45


PERFORMANCE, ARTE E AMBIENTE 107

Este texto que escrevo 15 anos após ter participado dos giros do Rei-
sado do Mulungu, é uma tentativa de articulação com minha atual prática
artística. As limitações do meu próprio corpo de mulher branca, “estudada”6
e urbanizada foi a primeira lição que tive quando, em 2001, cheguei na co-
munidade negra rural Mulungu, com cerca de 600 habitantes, todos parentes
da mesma família.7

FIGURA 2: Mulungu, do município de Boninal, Chapada Diamantina – Bahia, 2002


Fonte: acervo pessoal da autora.

6 “pessoa estudada” era a forma como os moradores do Mulungu se referiam a mim antes
da nossa relação se tornar mais pessoal e eles me chamarem pelos nomes de Lu, Luiza,
Eloisa ou Elói. É comum no Mulungu as pessoas serem chamadas por muitos nomes.
7 O livro Lembranceiras, imaginários e realidade: Chapada Diamantina – Bahia (2012) de
Iêda Marques sobre a cultura sertaneja na Chapada Diamantina são referências da
perspectiva socioambiental traçada aqui. Moradora da cidade de Boninal, artista mi-
litante na defesa das culturas tradicionais e da biodiversidade da região da Chapada
Diamantina, Iêda Marques me levou até o Mulungu pela primeira vez em 2001.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 107 22/07/2022 16:26:46


108 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

A Chapada Diamantina, conhecida pelo seu Parque Nacional, que possui


80% das nascentes que fornecem água para o estado da Bahia, sendo atra-
vessada pelo rio Paraguaçu com 600 km de extensão, também apresenta uma
grande parte de área seca: a caatinga, bioma exclusivamente brasileiro que
está sendo vorazmente desmatado em diversas regiões do Brasil. A enorme
biodiversidade da Chapada Diamantina contém Cerrado, Mata Atlântica e
Campos de Altitude, mas seu bioma principal é a Caatinga. (MARQUES, 2012,
p. 136) A comunidade rural Mulungu/município de Boninal vive na Caatinga.
A chegada das chuvas possibilita o plantio da mandioca e do feijão, base
da alimentação dos moradores que convivem com os santos protetores.
Acordar cedo para capinar a roça na esperança de um dia chover faz parte
do cotidiano no Mulungu. O fortalecimento da fé nas rezas e o árduo tra-
balho de capinar a roça são atividades coletivas. A presença ou ausência de
chuvas durante o ano determina os rumos da sobrevivência no lugar. Quando
retornei ao Mulungu no final do ano 2004, para finalizar a pesquisa de campo
iniciada em 2001, encontrei a secura de um ano e meio sem chuvas. As pesso-
as emagrecidas e preocupadas. Durante um giro do Reisado na cidade de
Boninal aconteceu a chuva. Gotas grossas furando a terra, a euforia das pes-
soas dançando emocionadas e o cheiro sensual de terra molhada. O Reisado
ganhou força. Testemunhei a transformação do solo esturricado em verdes
campos na velocidade de alguns dias. A lembrança deste momento em que
a água diluiu os contornos entre corpo e natureza remete à definição de
ambiente traçado por Henrique Leff (2009, p. 21):

[…] ambiente é objetividade e subjetividade, exterioridade e interio-


ridade, imperfeição em ser e imperfeição de saber, que não acumula
nenhum conhecimento objetivo, um método sistêmico e uma doutrina
totalitária. O ambiente não é somente um objeto complexo, mas que
está integrado pelas identidades múltiplas que configuram uma nova
racionalidade, a qual acolhe diversas racionalidades culturais e abre
diferentes mundos de vida.

A conexão natureza-cultura na prática devocional do Reisado do Mulungu


pode ser associada às chuvas mediadas pela presença protetora de São Se-
bastião, à ancestralidade dos cantos e danças tradicionais e às memórias
dos moradores que recebem a visita do Reisado. A liderança das mulheres
é uma particularidade do Reisado do Mulungu, mantido pela resistência delas,

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 108 22/07/2022 16:26:46


PERFORMANCE, ARTE E AMBIENTE 109

que sustentaram a vida na comunidade e se apropriaram desta prática de-


vocional durante a migração em massa dos homens para a cidade de São
Paulo do final dos anos 1950 até a década de 1980. No giro8 do Reisado,
o ritual de visita às casas é baseado nas relações de troca entre as reiseiras,
o dono da casa e o Santo. As reiseiras cantam levando as palavras do Santo
para abençoar a casa. O dono da casa recebe a proteção do Santo através do
canto do Reis e oferece comida, bebida para as reiseiras, além de dinheiro
e/ou alimentos para a festa final do Santo que é realizada na comunidade
Mulungu.9 Este contexto religioso, do catolicismo popular, fundamenta a
eficácia simbólica das ações rituais de troca e reciprocidade no fortalecimento
da vida coletiva.
“Cantar para recordar” é uma expressão corrente utilizada pelas reiseiras
do Mulungu. Recordar o que já foi vivido pelo Reis em anos passados, lembrar
das pessoas que morreram, dos que estão vivos e foram embora, de quem
voltou de longe, daqueles que irão nascer, dos acontecimentos vividos du-
rante o ano etc.
A entrada em cada casa é um mistério no qual a presença do sagrado
envolve as memórias da família e a ancestralidade dos cantos e das danças,
na comunicação com o Santo de devoção. Na euforia da festa regada com
cachaça e nas emoções suscitadas, a disponibilidade das reiseiras em agra-
dar o dono da casa faz parte do ritual da visita. O compromisso de entrar em
todas as casas de cada comunidade rural visitada é parte do giro do Reisado
que pode durar muitas horas, dependendo do tamanho do lugar. O canto
dos Reis exige força para superar o cansaço, a fome e a falta de sono,
que abatem os corpos após muitas horas de peregrinação. A singularidade
dos encontros em cada casa, envolve tanto a receptividade dos donos das
casas como o estado corporal das reiseiras. Portanto, em cada casa a per-
formance ritual varia de acordo com as condições físicas dos espaços e os
estados dos corpos participantes da prática devocional.

8 Giro é o termo usado para nomear a passagem do Reisado em uma comunidade rural.
Em cada giro do Reisado todas as casas são visitadas, exceto aquelas dos evangélicos
que fecham suas portas. A presença crescente dos evangélico em algumas localida-
des enfraquece o giro do Reisado.
9 Esta lógica da troca é constituinte dos Reisados em várias regiões do país na zona rural.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 109 22/07/2022 16:26:46


110 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Na dimensão coletiva da performance, as memórias ativadas pelos


encontros, os trajetos do Reisado entre as comunidades rurais visitadas
e dentro delas, e a festa final de celebração a São Sebastião indicam uma
ética-estética da inclusão que lida com diferentes graus de participação de
todas as pessoas envolvidas. A existência de regras comportamentais que
precisam ser respeitadas para o Reis não virar bagunça, organiza uma estru-
tura performática que absorve todos os acontecimentos (ocorridos dentro
e fora das casas) sem se diluir neles.

FIGURA 3: Maria, uma das líderes do Reisado do Mulungu,


recebendo farinha de um morador durante o giro do
Reisado na Cutia, comunidade quilombola na Chapada
Diamantina - Bahia, 2002
Fonte: acervo pessoal da autora.

Esta dinâmica ritual baseada em uma estrutura fixa de cantos tradicionais,


que absorve a singularidade dos encontros e dos espaços de cada casa, abre

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 110 22/07/2022 16:26:46


PERFORMANCE, ARTE E AMBIENTE 111

campos para improvisação coletiva. Este tipo de improvisação baseada na


relação entre uma estrutura fixa de cantos e um repertório de danças e chulas
(sambas) que se combinam de acordo com os pedidos do dono da casa e/
ou dos moradores que acompanham o reisado participando ativamente da
performance, se aproxima em muitos aspectos dos procedimentos de cria-
ção/experimentação em dança do Judson Dance Theater na década de 1960
(Nova York), que se tornaram referenciais do próprio conceito de improvisação
na dança contemporânea.
A elaboração de uma estrutura de ações pré-fixada em movimentos de
ativação das memórias da água nas cidades é um dos procedimentos de
criação do Coletivo Líquida Ação. No contexto artístico, a elaboração de es-
truturas de movimento em ações coletivas, com abertura para diferentes
graus de participação, também segue uma ética-estética da inclusão dos
acontecimentos provocados pela performance. Mas é pelos sentidos do ele-
mento água em diversos contextos socioambientais que tais estruturas de
movimento são elaboradas e direcionadas a fim de provocar uma experiência
de coletividade em torno deste elemento vital.

FIGURA 4: Coletivo Líquida Ação. Performance: Paisagens Inter-Urbanas. Bienal


de Dança SESC-Santos. Praça Mauá, Santos. São Paulo, 2013
Fotógrafo: Lairton Alves.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 111 22/07/2022 16:26:47


112 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

A “escuta do espaço” ativada pela presença das águas conduz o processo


de criação destas estruturas de movimento, cuja abertura ao inusitado dialoga
com os imaginários e as memórias coletivas das águas nas cidades. Neste
sentido, as performances em situação de intervenção urbana não delimitam
o lugar do espectador apresentando uma cena como centro das atenções,
mas provoca nas pessoas a possibilidade de experienciar outros modos de
relação com o tempo e o espaço. Muitas vezes, a performance de intervenção
altera a percepção do ambiente deslocando os elementos de seus lugares
estabelecidos. A justaposição de objetos e materiais diferentes que, sem se
fundirem, formam totalidades inacabadas, é outro procedimento da arte
contemporânea que relaciono com a prática de construção das Lapinhas.

FIGURA 5: Lapinha em uma casa do Mulungu, Chapada


Diamantina - Bahia, 2002
Fonte: Acervo pessoal da autora.

As Lapinhas são os presépios construídos pelos donos das casas que re-
cebem o Reisado. Diante das Lapinhas acontece o canto de altar: uma oração

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 112 22/07/2022 16:26:47


PERFORMANCE, ARTE E AMBIENTE 113

coletiva cantada com muito respeito e seriedade. A Lapinha é uma tradição


familiar passada entre gerações, mas sua criação é pessoal. A combinação
entre diversos objetos cotidianos e elementos da natureza na leitura do nasci-
mento de Jesus é significativa de um imaginário coletivo no qual sociedade,
ambiente e religiosidade são articulados com liberdade de criação pessoal
e coletiva. Como prática da cultura tradicional, as Lapinhas são instalações
sagradas que, assim como o giro do Reisado, se fundamentam na lógica de
uma ética-estética de inclusão. A combinação entre elementos díspares:
esmalte de unha, desodorante, fotos de familiares, faróis de carro, conchas,
bonecos, brinquedos, imagens de santos, desenhos de crianças, entre outros
objetos que me chamaram a atenção, quase sempre são associadas a plantas e
a um tipo de cipó que forma a imagem da gruta. A representação do nasci-
mento de Jesus evoca a chegada de todas as crianças no mundo. A presença
da natureza e a combinação entre objetos, materiais, fotografias, plantas,
pedras, conchas etc., na formação do sagrado, faz das Lapinhas uma criação
surpreendente em que memória coletiva, criação pessoal e o espaço domés-
tico participam da experiência do sagrado.
A relação entre tradição cultural e processo de criação, traçada pela minha
trajetória como pesquisadora-artista, entre o estudo do Reisado e minha
prática como diretora e performer no Coletivo Líquida Ação, indica as pos-
sibilidades da performance na ativação da memória coletiva em contexto
cultural/religioso e também artístico. O Reisado do Mulungu foi e continua
sendo para mim uma grande fonte de inspiração. A resistência das mulheres
reiseiras em seguirem cantando o reis com todas as dificuldades encontradas
e a resiliência dos moradores do Mulungu que vivem da agricultura fami-
liar aguardando a chegada de chuvas na Caatinga, ameaçada pelo seu des-
matamento em diversas regiões do país, nos ensinam lições fundamentais
no atual contexto de mudanças climáticas provocado pelo uso da natureza
como mercadoria no sistema capitalista. A dimensão coletiva da existência
precisa ser praticada nas relações entre sociedade e ambiente. O respeito ao
ambiente envolve os saberes dos povos que o habitam. Pesquisar a cultura
popular como fonte de saberes e de práticas artísticas coletivas, fora do viés
folclórico cuja ideia de desaparecimento e de resgate cultural afirmam uma
retórica da perda, e fora da perspectiva patrimonialista como versão globali-
zada da cultura vista pela Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (Unesco), pode nos mostrar outros imaginários e for-
mas de habitarmos o mundo que saiam da lógica individualista e predatória.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 113 22/07/2022 16:26:47


114 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Referências
ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos.
Tradução Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária: Elefante, 2016.
ARDENNE, P. Un Art contextuel: création artistique em milieu urbain, em situation,
d´intervention, de participation. Paris: Flammarion, 2004.
ÁVILA, E.; SOUTY, J. (org.). Foz afora: residência artística no Rio Doce. Rio de Janeiro:
Coletivo Líquida Ação, 2017.
LEFF, H. Complexidade, racionalidade ambiental e diálogo dos saberes.
Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 3, p. 17-24, set./dez. 2009.
MARQUES, I. Lembranceiras, imaginários e realidade: Chapada Diamantina – Bahia.
Lauro de Freitas: Solisluna, 2012.
MENDES, E. B. Do canto do corpo aos cantos da casa: performance e espetacularidade
através do Reisado do Mulungu (Chapada Diamantina/Bahia). 2005. Tese
(Doutorado em Artes Cênicas) − Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 114 22/07/2022 16:26:47


115

Eugenio Barba, l’odin teatret et l’art


de la sur-vie
Jean-Marie Pradier

Introduction
L’helléniste Jean-Pierre Vernant (1986, p. 26), essayant de décrire et
d’inviter à imaginer le corps des dieux tel que le concevaient les Grecs
anciens a forgé le mot sur-corps, à la façon de la sur-nature du monde
sur-naturel. Le sur-corps n’est pas un accessoire ajouté au corps à la façon
d’un sur-vêtement, mais l’inimaginable beauté organique de la divinité.
Pour rassembler en un mot l’œuvre réalisée par Barba que sont l’Odin
Nordisk teaterlaboratorium, l’International School of Theatre Anthropology,
les séminaires et les publications, les films et la toile tissée entre les
membres du ‘peuple secret de l’Odin’ je propose sur-vie, en intégrant ses
deux sens: celui qui vient du mot survivre, comme après un terrible acci-
dent; et cette vie, le bios, exaltante, mystérieuse, inconnue. La résilience
et la nature vivante. Après la première session de l’ISTA, à Bonn en 1980,
Franco Ruffini (1981, p. 145) nous avait demandé d’écrire un témoignage.
J’ai retrouvé le mien qui se terminait par cette phrase: “Certamente il

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 115 22/07/2022 16:26:47


116 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

punto comune a tutti è il gusto della vita. Vita intesa nel senso più immediato,
più concreto. Ma anche più segreto e più assoluto”.1

La saison des libertés


Le 30 mars 2019, comme beaucoup d’autres de par le monde, et en dif-
férentes langues, j’ai reçu ce e-mail d’Eugenio Barba, en français. L’objet était
intitulé «adieux aux armes»: «Cher Jean-Marie. La saison des libertés s’approche.
Je t’embrasse. Eugenio». Le message était accompagné d’un texte d’une page
et demi intitulé: «Eugenio Barba quitte la direction du Nordisk Teaterlabora-
torium». Les premiers mots annonçaient laconiquement:

Le 31 décembre 2020 j’abandonnerai définitivement ma charge de di-


recteur du Nordisk Teaterlaboratorium à Holstebro. Julia Varley assu-
mera la coordination artistique et, au 1º janvier 2021, la responsabilité
générale passera entre les mains d’un nouveau directeur choisi par le
conseil d’administration.

Suivait une brève évocation de 56 ans de création, d’invention et de tis-


sage de multiples liens entre les continents et les personnes.
Quatre mois plus tard, du 4 au 6 juillet 2019, le European Cultural Centre
of Delphi (E.C.C.D.),2 en Grèce, organisait trois jours de manifestations pour
rendre un hommage particulier à l’œuvre d’Eugenio Barba: «Odin and Dionysos
– The spirit of Laboratory». La veille, l’université du Péloponèse, à Nauplie
siège de la faculté des Beaux Arts, avait décerné à Barba le titre honori-
fique de docteur honoris causa. A 83 ans, 55 ans après la fondation de l’Odin
Teatret à Oslo, il pouvait prendre le risque d’aller à l’essentiel en s’adressant

1 «Le point commun est certainement le goût de la vie. La vie comprise dans le sens le
plus immédiat, le plus concret. Mais aussi plus secret et plus absolu». (RUFFINI, 1981,
p. 145)
2 Depuis 2018, le E.C.C.D. organise des hommages solennels aux artistes et créateurs
majeurs du théâtre qui ont été associés au Centre. Le premier, intitulé «le retour de
Dionysos» a été rendu en l’honneur du metteur en scène Theodoros Terzopoulos res-
ponsable depuis 1985 des rencontres internationales consacrées au théâtre grec de
l’antiquité.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 116 22/07/2022 16:26:47


EUGENIO BARBA, L’ODIN TEATRET ET L’ART DE LA SUR-VIE 117

à l’auditoire. Rassemblant brièvement les éléments constitutifs d’une longue


et luxuriante aventure artistique, intellectuelle et humaine, il déclara:

Aujourd’hui je crois pouvoir affirmer: le théâtre est énergie. Avec mes


acteurs, je m’obstine à faire fleurir des spectacles dont les spectateurs
ne peuvent pas saisir l’intégralité car ils ne s’adressent pas à l’intellect
mais à l’être-en-vie. Énergie est un mot fuyant, un terme aux multiples
facettes. Pourtant, il suffit de prendre un nouveau-né dans ses bras,
de veiller une personne gravement malade, de poser ses lèvres sur
celles d’une femme ou d’un homme, d’observer un arbre, un nuage,
une araignée pour que la totalité de notre être perçoive un message
et réagisse. (BARBA, 2019, p. 2)

Pour conclure, Eugenio Barba (2019, p. 5) donna sa propre définition du


théâtre, qui, transcendant l’histoire et la diversité des formes, justifie le titre
de cet article: “Qu’est-ce que le théâtre? C’est la science suprême du mystère
de la vie, accessible même aux réprouvés de la terre”.

Inter, multi, pluri


Frappés par les productions d’artistes – Peter Brook, Ariane Mnouchkine,
Eugenio Barba − qui présentaient des œuvres où manifestement se per-
cevaient des éléments «exotiques» ou non européens, les théoriciens ont
introduit dans les années quatre-vingt la notion de «théâtre interculturel».
(PAVIS, 2016) Plus tard, s’adaptant à la mode de la «globalisation», et consta-
tant les limites des études post-coloniales, Erika Fischer-Lichte (2014) lui a
préféré la formule «Interweaving Performance Cultures», le mot imbrication
− interweave − lui paraissant plus adapté que le préfixe inter, dans l’adjectif in-
terculturel. Cela ne revient-il pas à faire du neuf avec du vieux? Dans les deux cas,
persiste l’héritage philosophique qui sous-tend la notion de culture, par
distinction sinon par opposition à la notion de nature. Quand l’idée de na-
ture renvoie de façon réductrice à l’animalité de l’humain, celle de culture
conduit à concevoir leur pluralité comme des hypostases. Penser autrement
la dualité nature/culture invite à s’interroger sur la vieille aporie occidentale
du corps/esprit. La recherche historique contemporaine y contribue notam-
ment en prêtant attention aux échanges entre les personnes, et non entre les

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 117 22/07/2022 16:26:47


118 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

«cultures»: ce ne sont pas les cultures qui voyagent, mais des individus avec
leurs caractéristiques propres: genre, âge, langue, imaginaire, statut social,
intérêts, techniques du corps, émotions, logiques etc.
Tout en notant que ‘l’interculturalité’ ou l’imbrication culturelle est loin
de s’être réalisée au sein des universités et des programmes d’enseigne-
ment sous la forme de la pluridisciplinarité, je remarque que le souci du bios
chez Barba a fécondé une pensée et une pratique de la relation entre les
personnes engagées dans une discipline, une tradition ou un mode de vie.
Ce n’est pas la danse Odissi qu’il a fréquentée, mais la danseuse Sanjukta
Panigrahi (1944-1997) qui fut pour lui, l’Odin et l’ISTA le bios d’excellence. Il ne
s’est pas réclamé de la physique quantique, mais l’esprit et la personne de
Niels Bohr ont été inspirants pour lui. L’originalité de la pensée d’Eugenio
Barba tient au fait qu’elle est interrogative, adogmatique, associant scep-
ticisme et engagement en un constant exercice énantiodromique, de re-
cherche de la complémentarité des contraires. Héraclite, plutôt qu’Aristote!
Niels Bohr – dont le blason figure sur les en-tête de l’Odin Teatret – plutôt
que Descartes. Cette tournure mentale s’incarne dans son esthétique de la
scène, les ateliers de formation, les interventions orales et les publications.
Si souvent invoqué par les artistes du spectacle vivant, les chorégraphes
en particulier, le mot énergie – «mot fuyant» – se précise et se concrétise
avec Barba qui souvent lui a préféré celui de bios (BARBA, 1994),3 le βιος
grec à partir duquel le médecin et naturaliste allemand Gottfried Reinhold
Treviranus (1776-1837) a forgé le terme biologie. Le champ lexical du βιος
bios était vaste pour les Grecs anciens qui appelaient biologos βιολογος,
le comédien, celui qui , la vie. Treviranus estimait quant à lui que cette science
nouvelle avait ses matériaux épars dans les sciences les plus diverses, et il
la définissait comme «philosophie de la nature vivante».4 Dans le monde oc-
cidental la science du vivant – la biologie – a été après la Renaissance dé-
tachée des arts, de la philosophie, puis des sciences humaines et réservée

3 Par exemple dans Barba (1994, p. 23-25, 30, 45, 56, 64, 70, 83, 90, 97, 100, 107, 111, 116,
135, 154, 213, 231, 238)
4 Titre de son ouvrage: Biologie; oder die Philosophie der lebenden Natur für Naturforscher
und Aerzte, (1802-1822). Biologie; ou la philosophie de la nature vivante pour les natu-
ralistes et les médecins. A la même époque, Le naturaliste Lamarck introduit le mot
dans la langue française.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 118 22/07/2022 16:26:47


EUGENIO BARBA, L’ODIN TEATRET ET L’ART DE LA SUR-VIE 119

aux savants matérialistes. (PRADIER, 1997) C’est ainsi qu’après les Lumières
les études théâtrales l’ont considérée comme sans intérêt avant d’y revenir
récemment par le détour des sciences cognitives. (PRADIER, 2001, 2019)
Le lyrisme des poètes romantiques exaltait l’expression vive de la subjectivité
devant la nature et les affects. En 2019 en Grèce, Barba (2019, p. 2) affirme
l’organicité de la relation, de vie à vie, de corps à corps en une communication
écosystémique: «C’est un message d’énergies qui échappe à toute verbalisation,
mais nous sentons que c’est à nous qu’il est destiné. Ce message est un texte
que nous déchiffrons avec la totalité de notre organisme et ses différentes
mémoires».
L’adage «Nihil est in intellectu quod non fuerit primum in sensu». − Il n’y
a rien dans l’entendement qui n’ait été d’abord dans les sens − n’a jamais
cessé d’être discuté et disputé. Son rabâchage depuis les temps médiévaux,
n’a guère mis un terme aux questions sensorielles et perceptives, leur or-
ganisation et leurs fonctions. Aux temps médiévaux, on l’enseignait à la
Sorbonne, en répétant que la vue était l’organe privilégié de la connaissance.
Descartes avait douté: est-ce par les sens, que je reçois la connaissance ou
des sens? Les sens sont-ils simple canal d’informations, maître d’école ou
source d’erreurs? Les théoriciens contemporains de l’écologie corporelle
(ANDRIEU, 2014), des arts immersifs (BERNARD; ANDRIEU, 2014) évoquent
le retour haptique du corps, la connaissance par le toucher. Les anthropologues
ouvrent le débat en interrogeant des logiques jadis considérées primitives
parce que non conformes aux théories de l’idéation, et reconnaissent leur
légitimité. Barba (2019, p.2)les rejoint:

Ce processus de cinesthésie gestuelle et subliminale correspond à des


rythmes et à des natures d’énergie différents. Nous pouvons l’imag-
iner comme le texte écrit dans une langue que nous ne comprenons
pas mais à laquelle nous pouvons tous − acteurs et spectateurs
− nous identifier de manière organique, dynamique et rythmique.
Précisément comme le poète s’identifie de tout son être à chaque mot
qu’il écrit, ou comme le peintre dont le coup de pinceau sur la toile
coïncide avec l’énergie de ses aspirations et de ses origines.

Dès la fin des années soixante-dix, à la fondation de l’anthropologie


théâtrale, l’exploration du bios affichée par Barba lui vaut quelques déboires
de la part des critiques. Dans l’édition italienne de Anatomia del teatro (1983)

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 119 22/07/2022 16:26:48


120 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

il corrige le malentendu possible introduit par la référence à l’anthropologie


en mettant l’accent sur les personnes vivantes (la physiologie) et non sur
l’idée abstraite de culture:

Originariamente, il termine ‘antropologia’ veniva compreso como lo


studio del comportamento dell’uomo non solo a livello socio-culturale,
ma anche a livello fisiologico. L’antropologia teatrale, di consequen-
za, studia il comportamento fisiologico e socio-culturale dell’uomo en
una situazione di rappresentazione.5 (BARBA; SAVARESE, 1984, p. 13)

Deux ans plus tard, dans l’édition française, la définition mentionne ex-
plicitement la biologie:

L’anthropologie théâtrale est l’étude du comportement biologique


et culturel de l’homme dans une situation de représentation, c’est-
à-dire de l’homme qui utilise sa présence physique et mentale selon
des principes différents de ceux qui gouvernent la vie quotidienne.
(BARBA; SAVARESE, 1984, p. 1)

Barba a apporté son écot de façon décisive au mouvement de recherche


pluridisciplinaire sur le théâtre et les arts du spectacle vivant en général in-
cluant les sciences de la vie qui a modestement pris forme à la fin des an-
nées soixante-dix pour conduire à la fondation de l’ethnoscénologie en 1995.
Il intervient avec vivacité – en compagnie de Jerzy Grotowski − au colloque
consacré au théâtre et aux sciences de la vie, organisé à Karpacz (1979), en
Pologne, où il découvre auprès du Dr Henri Laborit la notion fondamentale
de «niveau d’organisation» qu’il adapte à ses besoins. A Paris, en 1984, il pré-
sente une communication sur «les perspectives de l’anthropologie théâtrale»
lors du colloque international Théâtre et sciences de la vie.6 Il intervient dans

5 Dall’International School of Theatre Anthropology, diretta da Eugenio Barba, Anatomia


del teatro: un dizionario di antropologia teatrale a cura di Nicola Savarese (1983, p. 13):
«À l’origine, le terme ‘anthropologie’ était compris comme l’étude du comportement
humain non seulement au niveau socioculturel, mais aussi au niveau physiologique.
L’anthropologie théâtrale, par conséquent, étudie le comportement physiologique et
socioculturel de l’homme en situation de représentation».
6 Performance arts and life sciences, Maison des Cultures du Monde, Paris 4-5-6 juin 1984.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 120 22/07/2022 16:26:48


EUGENIO BARBA, L’ODIN TEATRET ET L’ART DE LA SUR-VIE 121

les universités internationales d’été Pratiques spectaculaires et sciences de


la vie (1989) et Émotions et complexité (1991) qui se tiennent à l’Abbaye
aux Dames de Saintes7. Il ne s’agit pas pour lui d’adopter un néo-scientisme
tel celui qui apparut au XIXe siècle à la suite du positivisme, mais tout au
contraire pour s’étonner, multiplier les points de vue, confronter les logiques
afin de ne jamais hypostasier le réel et céder au dogmatisme.
Certains universitaires n’ont pas fait preuve d’une semblable ouverture
d’esprit. Les mêmes mots n’ayant pas la même signification selon les familles
d’esprit, les disciplines et les Écoles, la référence de Barba à la physiologie et
à la biologie, a poussé des théoriciens à proférer des accusations fondées
sur de purs fantasmes. Interrogé par Jean-Marie Brohm sur la «prétention
à la ‘scientificité’ qui domine aujourd’hui les sciences et les techniques des
activités physiques et sportives», le philosophe Michel Bernard (1927-2015)
n’ayant de l’Odin et de l’International School of Theatre Anthropology ISTA
qu’une connaissance livresque, avait confondu des exercices de kathakali
avec des séances de rééducation d’orthoptique:

Pour te répondre, je prendrai un exemple dans le domaine du


théâtre. Il existe au Danemark l’Institut international d’anthropologie
du théâtre, l’école d’Eugenio Barba qui tente d’appliquer au théâtre
les méthodes scientifiques de l’étude du corps humain. On y étudie
par exemple le fonctionnement de l’œil de l’acteur, l’influence des
possibilités respiratoires sur la durée du maintien de la posture,
l’attention etc.8

Ce jugement de mauvaise foi porté à l’extrême comporte une leçon


épistémologique pour la recherche historique. Barba était conscient que ses
écrits – et leurs multiples traductions -, ses interventions, l’étendue de ses
activités, l’esthétique de ses créations, pouvaient prêter à des malentendus

7 Universités d’été créées à l’initiative du Laboratoire Interdisciplinaire des Pratiques


Spectaculaires (LIPS) de l’Université Paris 8, préfigurant la section «Ethnoscénologie»
de l’Équipe d’Accueil 1573.
8 Sans doute fruit d’un tempérament intempestif, cet étrange commentaire est difficile
à comprendre de la part d’un philosophe qui fut à l’origine de la création du départe-
ment danse de l’université Paris 8. N’avait-il pas qualifié Jerzy Grotowski de «marxiste
polonais», dans sa thèse sur l’expressivité du corps.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 121 22/07/2022 16:26:48


122 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

qui s’ajoutaient aux travers habituels du milieu. Il avait mis en garde ses lec-
teurs et ses commentateurs:

Entretanto quem escrive a historia do teatro frequentemente se


confronta com os testemunhos sobreviventes não tendo suficiente
experiência dos processos artesanais do espetáculo. Desse modo
corre o risco de não fazer história e de, em vez disso, acumular defor-
mações da memória; quem não possui um conhecimento pessoal do
teatro não pode interpretar e alcançar uma imagem viva e autônoma
da vida teatral e de sou sentido em outras época e culturas.

...

A relação que une teatro e livro é fecunda. Entretanto tende a dese-


quilibrar-se em favor da palavra escrita que permanece. As coisas es-
táveis têm uma debilidade: a estabilidade. Desse modo, a memória
das experiências vividas como teatro, uma vez traduzida em frases
que perduram, corre o perigo de petrificar-se em páginas que não se
deixam transpassar. (BARBA, 1994, p.26)

La vie dans l’oeuvre


Eugenio Barba est sans nul doute dans le monde du théâtre celui des
plus récompensés par les titres honorifiques que sont les Prix9 et les doctorats
honoris causa.10 Ce concert de louanges internationales salue un faisceau
de qualités rarement assemblées en une seule personne. Il est également

9 Le prestigieux Prix biennal Sonning (2000). Prix Thallia (2014) International Associa-
tion of Theatre Critics (IATC); Pirandello International Prize; 1995 «Reconnaissance de
mérite scientifique» de l’Université de Montréal, (1995); Prix des critiques de théâtre
du Mexique.
10 Docteur Honoris causa des universités de: Aarhus, 1988 (Danemark); Huamanga, Aya-
cucho, 1998 (Perou); Bologna, 1998 (Italie) ; La Havane, 2002 (Cuba) Varsovie, 2003
(Pologne), Plymouth, 2005 (Grande Bretagne); Hong Kong, 2006 (région administrative
spéciale (RAS) de la République populaire de Chine); Buenos Aires, 2008 (Argentine)
Tallinn, 2009 (Estonie) Cluj-Napoca, 2012 (Roumanie); Edimbourg, 2014 (Ecosse);
Shanghai, 2014, (République Populaire de Chine); Brno, 2017(République Tchèque);
Nauplie, 2019 (Grèce)

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 122 22/07/2022 16:26:48


EUGENIO BARBA, L’ODIN TEATRET ET L’ART DE LA SUR-VIE 123

révélateur de son identité cosmopolite, une façon particulière d’habiter le


monde et de nouer des liens avec les milieux les plus divers. Nous avons une
plus grande connaissance de ses textes rédigés pour être publiés dans des
revues et des ouvrages, pour la plupart traduits en plusieurs langues, que de
ses discours prononcés lorsqu’une université lui décernait le titre de doc-
teur honoris causa, une institution lui remettait un Prix, une ville le nommait
citoyen d’honneur. Cet usage protocolaire peut s’avérer d’une très grande
richesse à découvrir, lorsque le récipiendaire, se livre avec générosité, sincérité,
et donne libre cours aux raisons de sa reconnaissance à l’égard de ses hôtes.
Dans le cadre de cet article il ne m’est pas possible de revenir à tous ces mo-
ments de confidence ou d’allusion révélatrice, glissés entre deux réflexions.
Je n’en retiendrai que deux, aussi fulgurants et lumineux qu’un éclair, l’un à
Varsovie, au pays de son apprentissage auprès de Jerzy Grotowski, l’autre
à Gallipoli la cité millénaire d’une partie de son enfance. Le 28 mai 2003,
en Pologne, répondant à ses hôtes, Barba se décline triune:11 “Par la naissance
et l’école, je suis Italien. Par l’éducation politique Norvégien. Professionnel-
lement Polonais”. Une dizaine d’années plus tard à Gallipoli sur le golfe de
Tarente au sud de la botte, passeport Danois en poche depuis des décennies,
il revient recevoir du maire le titre de citoyen d’honneur:

C’est un pays qui a vaincu le temps. Une ville éternelle. Un lieu sacré
qui m’a fait découvrir les archétypes de la vie. L’archétype de la cru-
auté [...] L’archétype de la foi […] l’archétype de l’injustice […] Ce Gallipoli
n’existe que dans ma tête. C’est un pur mirage que je traverse pour
me retrouver dans le monde. C’est une superstition, elle est en moi
et au-dessus de moi en même temps. […] C’est le Gallipoli dont je n’ai
jamais été séparé depuis que je l’ai quitté en 1954 à l’âge de quatorze
ans. J’ai eu recours à cette ville quand j’ai voulu savoir qui j’étais et d’où
je venais. Dans ces rues, maisons et églises − que les vents enserrent
comme des serpents − je suis revenu pour deviner le chemin que je
voulais prendre ailleurs.12

11 le mot anglais «triune» est préférable au français «trinitaire», marqué par la théologie.
Le neuro-physiologiste Paul D. MacLean parlant du cerveau «triune», signifie qu’il est
à la fois un et composé de 3 entités.
12 26 septembre 2014. «È un paese che ha vinto il tempo. Una città eterna. Un luogo sacro
che mi ha fatto conoscere gli archetipi della vita. L’archetipo della crudeltà […]

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 123 22/07/2022 16:26:48


124 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Remerciant ceux qui venaient de sceller une réconciliation, Barba avait


alors demandé à Iben Nagel Rasmussen, l’actrice danoise qui avait rejoint
l’Odin Teatret il y a 48 ans, de chanter l’histoire d’un exilé qui ne peut que
visiter sa patrie au-delà de la mer, transformée en une branche de fleurs
dans le vent avec ses pensées.
En Pologne, Barba avait remis en mémoire l’effroyable désastre de la
guerre, remémoré l’horreur des ossements déterrés dans la ville détruite.
L’évocation de la douleur passée ne venait pas d’un savoir d’archiviste mais
des sentiments et des sensations vécus par un fils que le conflit avait pri-
vés de père, de même que Jerzy Grotowski. D’évidence, le théâtre né de
l’horreur subie quand le corps et l’esprit de l’enfant se forment à la vie ne
peut être une pratique réglementaire du «spectacle vivant», obéissant aux
contingences du marché, des institutions et des financements. Pour bien le
comprendre, il s’avère nécessaire de remonter le temps, lorsque de retour
en Norvège, Eugenio Barba réussit à fonder son entreprise de sur-vie.
Il est alors seul, sans soutien officiel ni financement, à la différence de Jerzy
Grotowski fonctionnaire de l’État Polonais.

Oslo, octobre 1964


A son retour en Norvège, après un séjour en Inde au Kalamandalam du
Kerala, considéré comme le disciple de Jerzy Grotowski, sinon son épigone,
Eugenio Barba parvient à réunir à Oslo une poignée de jeunes amateurs
de théâtre qui avaient été refusés au conservatoire. Au lieu de monter des
spectacles, il leur propose une formation, un entraînement, un engagement
si rigoureux que beaucoup abandonnent. Une poignée de passionnés persé-
vèrent. Avec eux, en octobre 1964, Barba fonde une troupe à laquelle il donne
le nom du dieu Odin: l’Odin Teatret. De vingt ans son aîné le dramaturge

L’archetipo della fede, […] L’archetipo dell’ingiustizia […] Questa Gallipoli esiste solo
nella mia testa. È puro miraggio dal quale sconfino per raccapezzarmi nel mondo.
È una superstizione, sta dentro di me e al tempo stesso sopra di me. […] Questa è
la Gallipoli dalla quale non mi sono mai separato da quando quattordicenne la lasciai
definitivamente nel distante 1954. A questa città sono ricorso quando volevo sapere
chi ero e da dove venivo. A queste strade, case e chiese − che i venti stringono come
serpenti - sono ritornato per indovinare il cammino che voglio mi porti altrove».

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 124 22/07/2022 16:26:48


EUGENIO BARBA, L’ODIN TEATRET ET L’ART DE LA SUR-VIE 125

et metteur en scène Belge flamand Tone Brulin (1926-2019), co-fondateur


en 1948 du magazine littéraire d’avant-garde Tijd en Mens (Le Temps et les
Hommes) lui demande un article de présentation. Barba lui adresse un texte
rédigé en anglais: The Creation of a Rift-Theater. Il ne sera jamais publié avant
que Lluis Masgrau ne le sauve de l’oubli. (BARBA, 1999) Véritable manifeste,
l’exposé préfigure les décennies à venir: «Le ‘théâtre de fracture’ (Rift-Theater)
ne dépend d’aucune idée préconçue […] C’est donc un théâtre qui se fonde
sur le sacrifice, car chacun de ses membres est prêt à se donner et à se consa-
crer totalement au groupe jusqu’à la limite de ses forces». (BARBA, 1999,
p. 29-35) Afin d’être libres de tout préjugé, de tout apprentissage antérieur,
«les acteurs doivent être issus du milieu ‘amateur’». Les spectacles ne seront
que la présentation publique périodique des résultats de ce «théâtre-école».
La première création est montrée en 1965: Ornitofilene (ornithologue).
Il s’agit – je cite − d’une «interprétation libre collective de l’ensemble de l’Odin
Teatret», de la piècede l’auteur libertaire norvégien Jens Bjørneboe, intitulée
Fugleelskerne (les amoureux des oiseaux). L’auteur commentant l’adaptation
de Barba parle de l’œuvre d’un chirurgien anarchique radical, et il s’en réjouit.
Elle provoqua une certaine stupeur, et partit en tournée en Suède, Finlande
et Danemark. C’est dans ce dernier pays que l’Odin s’établit en 1966 à l’invi-
tation du maire de Holstebro, une petite ville du Jutland Central.
Disposant désormais de locaux aménagés dans une ancienne ferme,
et d’une petite subvention municipale, Barba ajoute à l’Odin le nom de Nordisk
teaterlaboratorium. Il démultiplie ses activités: «séminaires, maison d’édition,
enquêtes sociologiques, organisation de spectacles de l’étranger et réalisation
de films pédagogiques». (HAGESTED, 1973, p. 161) Dès 1966 Jerzy Grotowski
vient animer un “training seminar” avec Ryszard Cieślak (1937-1990), l’acteur
clef du Teatr Laboratorium.13 Les candidats affluent jusqu’à la pléthore. Toutefois,
le maître des lieux prend soin de marquer son propre territoire, et de ne pas
figurer en tant qu’affidé au point de faire naître la rumeur d’une possible
rupture avec le Polonais. La seconde création dont la première eut lieu le
29 septembre 1967 – Kaspariana -, produisit une forte impression et attira
l’attention de la critique locale et internationale. Marc Fumaroli, alors assis-
tant à la faculté des lettres de Lille – futur professeur au Collège de France

13 Grotowski intervint de la sorte annuellement jusqu’en 1969 inclus.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 125 22/07/2022 16:26:48


126 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

et membre de l’Académie française – publia un article au journal de Genève,


qui par la suite fut repris à New York par The Drama Review. (FUMAROLI;
BOWMAN, 1968) L’article est remarquable. Déjà ouvert aux expérimentations
de Jerzy Grotowski, Fumaroli parvient à évoquer la radicalité d’un spectacle
où le corps des acteurs et des actrices est ‘une pierre de Rosette’ biologique.
En septembre 1967, l’écrivain danois Bent Hagested,14 réalisa avec Eugenio
Barba un entretien qui fut publié dans plusieurs revues internationales,
dont The Drama Review en 1969, sous le titre: A Sectarian Theatre: An Interview
with Eugenio Barba - Un théâtre de sectaire.
La secte retrouve ici sa signification ancienne, à l’écart de toute péjoration.
Le mot met en relief l’engagement des jeunes comédiens constitués en
communauté d’artistes à la différence des professionnels papillonnants.
En 1961, s’adressant aux étudiants d’Oxford Jean-Louis Barrault avait vomi
sur les tièdes qui adoptent le théâtre par défaut:

Sur le plan individuel, huit fois sur dix, les jeunes gens qui croient se
consacrer au théâtre se dérobent, en fait, à la vie; ils obéissent à un
réflexe d’impuissance; ils ne vont pas au théâtre par excès, ils vont au
théâtre par défaut. (BARRAULT, 1961, p. 5)

Pour Barba, nous l’avons vu, le choix du théâtre ne peut avoir pour fon-
dation qu’une exigence d’absolu. Hagested (1973, p. 156-157):

B.H. On dit que votre théâtre est un théâtre de sectaire.

Eugenio Barba: […] Nous choisissons nos acteurs non pour leur talent,
mais pour leur force d’âme, leur générosité, leur persévérance. Nous
sommes conséquents dans le choix de notre répertoire et dans nos
buts artistiques, nous essayons d’édifier un théâtre où chaque mem-
bre de la communauté ne se sente pas comme un pion qui est dirigé
par un patron lointain comme dans une grande industrie culturelle
mais où chacun sent qu’il a sa place particulière dans cette petite

14 Pacifiste et spiritualiste Bent Hagested a choisi en 1975 de suivre les idées d’esprit
et de conscience développées par les mystiques islamiques soufis. De 1977 à 1983,
il s’est initié au Shattari −techniques rythmiques d’Adnan Sarhan. À partir de 1981, Bent
Hagested a enseigné à des groupes à New York, Washington D.C., Porto Rico, Londres,
Stockholm et Danemark.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 126 22/07/2022 16:26:48


EUGENIO BARBA, L’ODIN TEATRET ET L’ART DE LA SUR-VIE 127

société et assume sa part de responsabilité dans tout le travail – phy-


sique, technique, administratif autant qu’artistique. Si la définition du
sectarisme c’est une démarche cohérente, mais d’autant plus libre et
ouverte qu’elle est disciplinée, eh bien, alors, nous sommes sectaires.

Suit un échange à propos des aspects prétendument religieux du théâtre


de Barba. Bent Hagested (1973) lui demande: «Prétendez-vous régénérer le
théâtre ou fonder une nouvelle religion. Autre question: Comment se fait-il
que les gens qui ont été témoins de vos spectacles aient souvent parlé à leur
sujet de mysticisme, de religion?»:

E.B.: Les gens qui assistent à nos représentations parlent en réalité


d’eux-mêmes quand ils parlent du spectacle. Ceux qui parlent des
‘résonances religieuses’ de nos spectacles parlent du fond religieux
qui est en eux, qu’ils refusent de reconnaître, et qu’ils projettent sur le
test de Rorschach que nous leur proposons. En parlant ainsi, ils nous
apprennent davantage sur eux-mêmes que sur nous […] Vous avez
parlé de rites religieux. Encore faudrait-il s’entendre sur le sens du
mot. Aujourd’hui c’est devenu la tarte à la crème de la critique drama-
tique. Mais à l’origine, c’est un mot du vocabulaire de l’histoire des re-
ligions. Un rite, c’est un procédé technique lié à une foi religieuse. […]
Au moment où on détache ce procédé technique de la foi religieuse
qui lui donne sens, il n’existe plus de rite, mais une formule vide
que les critiques appliquent sur les phénomènes théâtraux quand ils
n’ont plus d’autres étiquettes pour les cataloguer. (HAGESTED, 1973,
p. 157-158)

Un an plus tard, en 1968, alors que dans l’écume du mouvement de


révolte de la jeunesse s’exalte le mythe de la spontanéité et de l’expression
corporelle dans l’épanouissement de soi, deux articles reprennent l’esprit du
manifeste de 1964. La revue danoise Synspunkter om kunst (regards sur l’art),
publie une lettre que Barba adresse à l’un de ses acteur D.: «Il n’y a que dans
les catacombes que l’on peut préparer une vie nouvelle. C’est là qu’est la
place de ceux qui, à notre époque, cherchent un engagement spirituel en se
mesurant aux éternelles questions sans réponse. Cela suppose du courage
car la plupart des gens n’ont pas besoin de nous». (BARBA, 1968, p. 9-10)
Sa découverte décida un jeune lecteur de Copenhague − Ulrik Skeel − à rejoindre
l’Odin où il se trouve toujours. Le second article sévère pour l’esthétique

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 127 22/07/2022 16:26:48


128 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

anarchiste de la spontanéité apparaît dans la revue de l’Odin Teatrets Teori og


Teknikk TTT sous le titre «théâtre et révolution»:

Nous avons tous vu des spectacles où les acteurs agissent dans un


tourbillon physique incontrôlé – ils l’appellent spontanéité – avec des
cris déchirants et des mouvements convulsifs. Au moment même où
ils cherchent à exprimer leur être total, ils se brisent dans un néant
informe […] Le théâtre, de même que toute activité artistique, est
discipline. Toute explosion visionnaire doit être maîtrisée; l’acteur
doit chevaucher le tigre, il ne doit pas s’en faire déchirer […] Ce faux
déchirement, cette sensiblerie épidermique très proche de l’hystérie,
cette singerie des plaies de l’homme de notre temps et surtout cette
satisfaction personnelle et cet alibi de bonne conscience ressentie
par les acteurs, nous révèlent la misère et l’hypocrisie de toute notre
époque, de toute notre société et le théâtre devient alors le vérita-
ble reflet d’une condition qu’il faut détruire, en commençant par le
théâtre.15

L’apogée
Le troisième spectacle Ferai, créé en 1968 dans la claustration volontaire
à Holstebro, porta la renommée de l’Odin à son apogée, lorsqu’il fut invité en
1969 à la Biennale de Venise. Eugenio Barba est alors interrogé par le Pro-
fesseur Ferruccio Marotti (né en 1939). Celui-ci, historien du théâtre, anime
à l’université de Rome La Sapienza, un groupe de jeunes universitaires qui
ont constitué par la suite un noyau fidèle, attentif et actif de collaborateurs
de l’Odin: Ferdinando Taviani,16 Fabrizio Cruciani, Nicola Savarese et Franco
Ruffini. Marotti ne connaît pas encore Barba. Mais il a lu dans le programme la
retranscription de l’entretien de Bent Hagested qui l’avait interrogé également

15 Version française in Expériences, o.c. p. 167.


16 Né en 1942, Professeur à l’Université de l’Aquila, devenu le conseiller littéraire de l’Odin
en 1975. Ce petit groupe auquel se joignit d’autres universitaires (J.-M. Pradier en
France) a été associé à la fondation de l’ISTA.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 128 22/07/2022 16:26:48


EUGENIO BARBA, L’ODIN TEATRET ET L’ART DE LA SUR-VIE 129

sur sa rupture avec Grotowski. Il réitère la question, et Barba lui répond en


reprenant presque mot pour moi, ce qu’il avait déjà dit au critique danois:

Dans le monde du théâtre, on veut toujours faire preuve d’originalité,


on cherche toujours à nier son père, c’est la tradition dont on est issu.
C’est une attitude qui m’est totalement étrangère. S’il y a un hom-
me que je considère comme mon maître est Grotowski. Il m’a intro-
duit dans le métier, et j’ai le plus grand respect pour tout ce qu’il fait.
Ses idées fondamentales, sa façon de travailler, sa conscience profes-
sionnelle sont pour moi un défi constant. Je me sens comme son dis-
ciple au sens propre du terme: vous êtes un ‘disciple’ jusqu’à ce que
vous reconnaissiez que le maître peut encore nous donner quelque
chose, nous animer au développement de sa personnalité vers une
plus grande autonomie. En ce sens, je suis toujours le disciple de
Grotowski et je serai son rappel pour longtemps encore.17 (MAROTTI,
1975, p. 10)

Jadis, l’apprenti discipulus dans un atelier de peintre, apprenait les bases


du travail. Après des mois d’apprentissage, il devait alors tout oublier et com-
mencer à véritablement peindre dans la liberté octroyée par la virtuosité
acquise au préalable.

Tiers Théâtre & ISTA


L’International School of Theatre Anthropology ISTA est un projet de re-
cherche et de formation à la pratique théâtrale unique au monde par son
ampleur, la qualité et le luxe des rencontres, par lequel Barba, a construit
une sorte de société des nations, en fédérant les attentes et les besoins d’un

17 Nel mondo del teatro si vuole sempre fare mostra della propria originalita, si yende
sempre a rinnegare il proprio padre, cioè la tradizione da cui deriviamo. È un atteggia-
mento che mi è del tutto estraneo. Se c’è un uomo che considero come moi maestro è
Grotowski. È stato lui a introdurmi nel mestiere, e io nutro un grandissimo rispetto per
tutto ciò che fa. Le sue idee fondamentali, il suo metodo di lavoro, la sua conscienza
professionale sono per me una sfida continua. Mi sento suo discepolo nel senso proprio
della parola : si è un ‘discepolo’ finché si riconosce che il maestro possa darci ancora
qualcosa, animarci allo sviluppo della propria personnalità verson una maggiore autonomia.
In questo senso io sono sempre il discepolo di Grotowski e lo sarò encora per molto.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 129 22/07/2022 16:26:48


130 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

mouvement théâtral et sociétal, artistique et scientifique, théorique et pra-


tique bouillonnant qui avait pris modestement naissance à la fin des années
soixante notamment en Europe, l’Inde, le Japon et les Amériques. Ce mouve-
ment, avait reçu et adopté le nom de Théâtre de groupe.
L’Odin était déjà connu pour les séminaires-ateliers internationaux or-
ganisés à Holstebro. Alors secrétaire général de l’Institut International du
Théâtre, ONG près l’UNESCO, l’acteur et metteur en scène Jean Darcante
(1910-1990) demanda en 1976 à Barba d’organiser un atelier de formation à
Belgrade pour cet archipel de théâtres, dans lequel Barba percevait l’énergie
et la sincérité inclassable d’un nouveau Tiers-état, à la façon de ces gens qui,
en France, sous l’Ancien Régime n’appartenaient ni à la noblesse, ni au clergé
et ne bénéficiaient d’aucun avantage. Le Tiers théâtre estima-t-il n’appartient
ni aux avant-gardes, ni au théâtre majoritaire professionnel. Il est ailleurs,
souvent dédaigné. Le texte qu’il rédigea comme document interne destiné
aux participants devint un manifeste après sa publication dans le journal de
l’ITI. (BARBA, 1976) Trois ans plus tard, l’article Teatro Cultura, accueilli par
la revue mexicaine Arte Nuevo (1979) développa et argumenta les prémices
du manifeste. Le texte devint l’un des plus traduits des articles de Barba.18
Revenant sur l’expérience de Belgrade, il proposait une dialectique dynamique
entre l’éloge du ghetto – les Juderias espagnoles, les Judengasse allemands,
les Ghetti italiens surgis de la discrimination, de la violence des goyim, de la
majorité envers la minorité juive – et son refus. Ce que la société ordinaire
peut prendre pour sectarisme ou communautarisme est en réalité pour les
comédiens une façon de vivre librement leur marginalité et de la rendre so-
cialement acceptable. Le ghetto auquel se réfère Barba n’est pas clos sur
lui-même, ni réservé à une cellule orthodoxe. A son image, le théâtre est
l’espace fonctionnel qui assure la liberté de ceux et celles qui refusent toute
oppression, et souhaitent donner libre cours à l’incarnation de leur ima-
ginaire et de leur utopie. Plus qu’une défense de la marginalité créatrice,
l’article mettait en cause l’histoire classique du théâtre dont l’objet ignore
ceux qui sont la réalité de cet art: les comédiens.
La résonance des publications et l’écho de l’atelier de Belgrade furent
à ce point retentissants que le directeur d’un organisme culturel allemand

18 Plusieurs fois publiés en français. Voir Barba (1999, p. 187-206).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 130 22/07/2022 16:26:48


EUGENIO BARBA, L’ODIN TEATRET ET L’ART DE LA SUR-VIE 131

demanda à son Barba de reprendre l’opération en Allemagne de l’ouest.


Fatigué d’en être réduit au champ de la pédagogie, celui-ci posa des condi-
tions financières telles qu’il espérait que le projet tombe à l’eau. Fort heu-
reusement les Allemands réunirent les fonds19 qui permirent de mettre sur
pied une équipe pédagogique incluant des maîtres Balinais, Chinois, Indiens,
Japonais et une équipe scientifique internationale, pour un ambitieux pro-
gramme d’une durée d’un mois accessible aux candidats sélectionnés par
l’Odin Teatret, qui entendait en faire profiter les groupes d’Amérique cen-
trale et du sud. Il convenait en conséquence de donner un nom au projet
et d’élaborer ses fondations théoriques. L’International School of Theatre An-
thropology ISTA était née, et l’anthropologie théâtrale fondée. La première
session se tint à Bonn en 1980 du 1er au 31 octobre et se poursuivit à Holste-
bro, Porsgrunn (Norvège) et Stockholm (Suède). Ce fut un stupéfiant projet,
plusieurs fois répété, capable de réunir dans des lieux inspirants, des dizaines
de comédiens venus de partout pour travailler deux, trois, quatre semaines
avec les maîtres des grandes traditions du spectacle vivant! Prodigieux tra-
vail de terrain et occasion exceptionnelle d’observation participante pour
les universitaires et chercheurs. Une toile a été, de la sorte, tissée entre les
continents, à laquelle Barba a donné le nom de ‘peuple de l’Odin’. La thèse
intitulée L’Odin Teatret et l’Amérique latine : l’invention d’un réseau poli-
tique, esthétique et de compagnonnage que lui a consacré Arianna Berenice
De Sanctis, pour les Amériques expose avec clarté ce réseau de relations,
sans en cacher par ailleurs les conflits et les divergences. La conscience d’ap-
partenir au «peuple de l’Odin» – transnational – est à la fois renforcé et mani-
festé par les fêtes étonnantes, somptueuses, surprenantes par la richesse de
leur esthétique organisées à l’Odin Teatret en certaines occasions en particulier
les anniversaires de l’Odin. Sens festif qui se manifeste par la création du
Festuge, sur le modèle du Holstebro Festuge (semaine de la fête d’Hosltebro)
qui associe l’ensemble des associations culturelles d’un lieu pour une célé-
bration commune.

19 Organisateurs: Hans Jürgen Nagel, Kulturamt der Stadt Bonn, Germany − Under the
auspicies of the ITI, International Theatre Institute.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 131 22/07/2022 16:26:48


132 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Malentendus, auto-dérision et énantiodromie


Tant d’entreprises luxuriantes et pleinement accomplies ne pouvaient
que produire le lot habituel de malentendus et d’incompréhension. Barba
avait sans le vouloir tendu des pièges aux théoriciens, en ironisant le sérieux
académique par l’adoption du terme School, École, et en inventant des néo-
logismes – sats, pré-expressivité – pour une discipline hors du cadre universi-
taire: l’anthropologie théâtrale: «sans appellation, impossible de présenter
un projet admissible par les autorités, les financiers et les interesses», m’a-t-il
raconté en 2003. Particulièrement conscients de ces biais, Barba a multiplié
dans ses écrits et par des actions spectaculaires les mises en garde contre
le danger que courent les interprétations de sa pensée, lorsque le commen-
tateur, serait-il un érudit, ne s’en tient qu’aux textes. Le Canoë de papier
s’achève sur ces mots: «O risco da Antropologia Teatral são os seus leitores,
se eles quiserem dar um peso excessivo às asas e às sombras das palavras
mutáveis. E entre os leitores está incluído também o autor deste livro».
(BARBA, 1994, p. 217)
Des décennies après, fidèle à lui-même et donnant une leçon qui n’est
pas seulement d’ordre épistémologique, scientifique mais plus encore
éthique, Barba reprend le vieil adage d’Héraclite d’Ephèse (540-480) τα παντα
ρει, tout coule, dans un apophtegme mémorable qui clôt sa lettre de mars
2019: «Je n’ai ni héritiers ni héritage à léguer. Mon enseignement ne peut ni
se transmettre ni s’éteindre. Il s’évapore. Et retombe comme la pluie sur la
tête de celui qui ne s’y attend pas».20

Références
ANDRIEU, B.; SIROST, O. Introduction l’écologie corporelle. Sociétés, Paris, v. 125,
n. 3, p. 5-10 2014.
BARBA, E. A Canoa de papel: tratado de antropologia teatral. Tradução Patrícia
Alves. São Paulo: HUCITEC, 1994.

20 Message du 30 mars 2019.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 132 22/07/2022 16:26:48


EUGENIO BARBA, L’ODIN TEATRET ET L’ART DE LA SUR-VIE 133

BARBA, E. Lettre à l’acteur D. Synspunkter om kunst. Brøndums Forlag, 1968.


BARBA, E. Questions de Ma Seconde Vie. 2019 https://odinteatret.dk/
media/4758/2019-universit%C3%A9-du-p%C3%A9loponn%C3%A8se-gr%C3%A8ce-
questions-de-ma-seconde-vie.pdf
BARBA, E. Tiers Théâtre. International Theatre Information, [s. l.], automne 1976.
BARBA, E.; SAVARESE, N. Anatomie de l’acteur: un dictionnaire d’anthropologie
théâtrale. Traduit de l’italien par Eliane Deschamps-Pria. Cazilhac: Bouffonneries
Contrastes; Rome: Zeami Libr: International School of Theatre Anthropology, 1984.
BARBA, E. Théâtre, solitude, métier, révolte. Traduit de l’italien par Éliane
Deschamps-Pria. Saussan: L’Entretemps, 1999.
BARRAULT, J.-L. Le Phénomène théâtral. Oxford: Clarendon Press, 1961.
BERNARD, A.; ANDRIEU, B. Manifeste des arts immersifs. Nancy:
Presses Universitaires Nancy, 2014.
DE SANCTIS, A. B. L’Odin Teatret et l’Amérique latine: l’invention d’un
réseau politique, esthétique et de compagnonnage (1976-2010). 2014.
Thèse (Doctorat en Ethnoscénologie) − Université Paris 8, Saint-Denis, 2014.
FISCHER-LICHTE, E.; JOST, T.; JAIN, S. I. (dir.). The Politics of Interweaving Performance
Cultures: Beyond Postcolonialism. New York: Routledge, 2014.
FUMAROLI, M.; BOWMAN, F. P. Eugenio Barba’s Kaspariana. The Drama Review,
Cambridge, v. 13, n. 1, p. 46-56, Autumn 1968.
HAGESTED, Bent. Un théâtre de sectair. In: ODIN TEATRET. Odin Teatret,
Experiences. [Holstebro]: Odin Teatret Forlag, 1973.
HAGESTED, B.; BARBA, E.; HEWITT, J. R. A Sectarian Theatre: An Interview with
Eugenio Barba. The Drama Review, Cambridge. v. 14, n. 1, p. 55-59, Autumn 1969.
MAROTTI, F. Intervista con Eugenio Barba e Torgeir Wethal. In: TAVIANI, F. (a cura
di). Il libro dell’Odin: il teatro laboratorio di Eugenio Barba. Milano: Feltrinelli
Editore, 1975. p. 9-10.  
PAVIS, P. Theatre at the Crossroads of Culture. London: Routledge, 2016.
PRADIER, J.-M. La scène et la fabrique des corps: ethnoscénologie du spectacle
vivant en Occident, Ve siècle av. J.-C- XVIIIe siècle. Pessac: Presses Universitaires
de Bordeaux, 1997. (Corps de l’Esprit).
PRADIER, J.-M. Os estudos teatrais ou o deserto cientifico. Repertório: teatro
& dança, Salvador, p. 38-55, ano 3, n. 4, 2001.
PRADIER, J.-M. Théâtre et neurosciences: entre effet de mode, malentendus et
recherche innovante. In: PHILIPPE-MEDEN, P.; ROCHE-FOGLI, V. (ed.). Spectacle
vivant et neurosciences Montpellier, Deuxième époque, 2019. p. 17-36. (Linearis).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 133 22/07/2022 16:26:48


134 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

RUFFINI, F. La scuola degli attori: rapporti. Firenze Milano: La Casa Usher, 1981.
VERNANT, J-P. Corps obscur, corps éclatant. In: MALAMOUD, C., VERNANT, J.-P.
(dir.). Corps des dieux. Paris: Gallimard: Folio histoire, 1986. p. 19-35.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 134 22/07/2022 16:26:48


135

Eden’s cave’s forests:


theatre laboratory as theatre ecology

Eleanor Buchan . Henry McGrath . Patrick Campbell

Performance and Ecology and the Laboratory


Theatre Tradition
The nascent scholarly field of Performance and Ecology has developed
over the past twenty-five years as an attempt to reflect the privileged
ways in which theatre and performance generate complex ecologies of
practice. The term ecologies of practice is understood, henceforth, as the
dynamic, relational and changing assemblages established by the work
of artist-practitioners that challenge anthropocentric biases in western
thought whilst emphasising humankind’s dependency on materiality and
space, which are always already co-implicated in our lived experience of
being-in-the-world. It is the medium and not the message that counts
when it comes to the potential of theatre and performance to offer holistic
models of ecological praxis.
Pioneered by scholars such as Una Chaudury, Elinor Fuchs, Bonnie
Marranca, Baz Kershaw, Wendy Arons, Downing Cless, Stephen Bottoms,
Gabriella Giannachi and Nigel Stewart, amongst others, Performance and
Ecology has shifted its concerns since the 1990s from a focus on lands-
cape (CHAUDURI, 1995; Marranca, 1996) and the pastoral (FUCHS, 1996)

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 135 22/07/2022 16:26:48


136 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

as frameworks for thinking performance ecologically, towards an articula-


tion of the ways in which theatre and performance can “[...] turn towards
the literal, a programmatic resistance to the use of nature as metaphor”.
(KERSHAW, 2000, p. 129) More recently, a number of profitable links have
been made between Performance and Ecology and the critical fields of new
materialism and posthumanism, reflecting shifting paradigms within per-
formance studies, ecocriticism, and environmental humanities. Two useful
examples include J-D Dewsbury (2012), who interweaves affect theory,
affordance theory and the neurophysiology of perception in order to argue
that “… outside environments fold into the fabric of our bodies in ways that
install new, maintain and then strengthen ongoing, habitual behaviours”
(DEWSBURY, 2012, p. 79), and Kubiak (2012), who draws on deleuzian theory
and contemporary Buddhist thought to articulate a new ecological animism,
predicated upon:

[…] becoming-porous, becoming-permeable, becoming-vulnerable,


becoming-without-boundaries through performative practices of re-
leasing, developing awareness of thought in the body and reconsidering
the curative potentials of dance, music and community. (KUBIAK, 2012,
p.56)

In many ways, Dewsbury’s reflections on the ways in which ecological


affordance can shape habit resonate with the embodied learning of psycho-
physical training regimes, particularly those taking place in outdoor contexts
in nature. Kubiak’s ecological animism speaks to the notion of communion,
particularly as understood within the Grotowskian tradition. In fact, there are
several historical and thematic overlaps between Performance and Ecology as
a field and the Grotowskian tradition of laboratory theatre. Whilst laboratory
theatre rarely features in the more contemporary writing generated by schol-
ars of performance studies focusing on ecological issues, the Grotowskian
tradition in particular has explored relationships to place and space from an
ecologically grounded perspective since the 1970s.
Jerzy Grotowski initiated an ‘environmental’ approach to theatrical staging,
understood, following Schechner (1994), as a particular preoccupation with
the scenic space and actor-audience relationship. This was particularly devel-
oped from 1957-1969, during the so-called Theatre of Productions phase of

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 136 22/07/2022 16:26:48


EDEN’S CAVE’S FORESTS 137

his creative research. During this period, Grotowski still directed public-facing
theatrical performances with the actors of the Theatre of 13 Rows, in Opole −
renamed the Theatre Laboratory in 1962. (Schechner; Wolford, 2000) The aim
of Grotowski’s theatrical work was to revitalise the ritualistic aspects of the
theatre and establish a sense of communion between actors and spectators,
grounded in the belief that “[...] theatre cannot exist without the actor-spec-
tator relationship of perceptual, direct, ‘live’ communion”. (Grotowski, 1967,
p. 19) This was achieved in part by breaking the fourth wall and orchestrating
scenic space in such a way that spectators could become immersed in the
action taking place on stage. However, the kinaesthetic impact of this scenic
immersion was further heightened by the energetic presence of the Teatr
Laboratorium’s actors, fruit of the ground-breaking psychophysical training
that the company had developed under Grotowski’s guidance. Furthermore,
the actor’s work on the self was channeled into a ritualistic scenic montage
crafted by Grotowski in such a way that, on special occasions, the actor’s role
could operate as a ‘scalpel’, allowing the actor to reveal the most intimate
layers of his or herself to the spectator, triggering a potential epiphanic ex-
perience for actor and spectator alike. This was the so-called total act of the
holy actor.1
In many ways, Grotowski’s early work during the Theatre of Productions
began to establish a unique ecology of practices, characterised in this par-
ticular case by a complex, systemic understanding of theatrical craft as an
energetic, affective weft, transcending the materiality of environmental the-
atre alone. By honing the actor’s capacity to be fully present in a ritualistic
montage, privileging the affect-laden potential of vocal and physical actions,
Grotowski fashioned a unique ambience that immersed spectators in a
heightened experience of (scenic) reality. These environmental strategies were
taken in a different, more overtly ecological direction during the subsequent
phase of Grotowski’s research, Paratheatre (1969-1978), when Grotowski aban-
doned the theatre and began to organise large participatory activities, often
in rural settings, guided by his actors and open to non-specialists. The aim
of Paratheatre was to break down social masks through collective living.

1 See Grotowski (1967).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 137 22/07/2022 16:26:49


138 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

In the ‘Special Project’, led by Grotowski actor Ryszard Cieślak, for example,
the focus of activities was:

[…] direct, sensual contact with the elements (brought about through
paddling in a river, dancing, jumping through fire, rolling about in
mud, digging earth, jumping into a net hung high above the ground
and also running through open spaces) […] The experience of encoun-
tering both other people and also nature was often the participants’
most striking memory and formed the essence of all the activities.
(SPECIAL, 2012)

Paratheatre primarily took place in the Theatre Laboratory’s forest-base


of Brzezinka, with its nearby meadows and hilltops. Schechner suggests
that the work sought to establish “[…] a quasi-Arcadian or Rousseauian
world asserting the purity of ‘nature’ as opposed to the ‘falseness’ of “society’”.
(Schechner; Wolford, 2000, p. 210) The primacy of the contact between
participants and the wider ecological context was particularly emphasised
throughout this period. By the mid-1970s, Paratheatre was beginning to give
way to Grotowski’s next research inquiry, Theatre of Sources, which focused
on a search for transcultural sources of performativity. It was around this
period that a young actor of Grotowski’s, Włodzimierz Staniewski, left the
Laboratory Theatre and founded his own theatre group, the Gardzienice
Centre for Theatre Practices.
Gardzienice’s work has been described as “‘[…] ethno-oratorio’, a unique
song theatre inspired by the expressive traditions of indigenous cultures and
the musicality of the natural environment” (Staniewski; HODGE, 2004, p. 1)
In many ways the group’s praxis reflects a fusion of elements of Grotowski’s
paratheatrical research with his subsequent inquiries into Theatre of Sources.
Staniewski and his actors have developed an array of unique theatrical strat-
egies, including an ecological approach to psychophysical training and an
ethnographic approach to the development of scenic material. Challenging
psychophysical training is often realised in nature, and the group has histori-
cally carried out expeditions, journeys to remote villages with unique cultural
forms, which the actors access by trading their performances for songs,
dances and other cultural materials during gatherings.2

2 See Staniewski e Hodge (2004).

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 138 22/07/2022 16:26:49


EDEN’S CAVE’S FORESTS 139

Gardzienice’s longevity has inevitably meant that other theatre groups


trace their genealogy back to both Staniewski and Grotowski and share sim-
ilar strategies to theatre-making that promote a particular ecology of practice,
one that is highly attuned to the broader ecological valence of laboratory
theatre. Scholar-practitioner Kathleen Cioffi has coined the term Grotland to
encompass the wide range of groups that make up a particular tradition of
post-Grotowskian theatre. She explains that:

I suggested that rather than thinking of these groups as producing the


same type of theatre, we think of them as all inhabiting the same artis-
tic territory, which I named ‘Grotland.’ Grotland does not exist only in
Poland but also outside of Poland, for example, at the Workcenter of
Jerzy Grotowski and Thomas Richards in Pontedera, Italy; at Eugenio
Barba’s Odin Teatret in Denmark; and at the New World Performance
Laboratory in Ohio. It encompasses groups that are called ‘anthropo-
logical theatres’ in Poland, and groups that are seldom if ever men-
tioned in the same breath as those theatres. (Cioffi, 2014, p. 11)

Two key groups comprising Grotland that splintered off from Gardzienice,
and thus share certain similar praxical concerns, include Song of the Goat
−Teatr Pieśń Kozła, referred to henceforth as “Kozła” − and Teatr ZAR. Established
in 1996 in Wrocław, Poland, by Grzegorz Bral and Anna Zubrzycka, Kozła has
developed an ever-evolving training, rehearsal and performance processes
that are treated as laboratories that enable the company to research the
craft of the actor and to evolve new techniques, performance languages and
work. Teatr ZAR, led by Jarosław Fret, is a laboratory theatre based at the
Grotowski Institute in Wrocław which draws on song and music from numerous
traditions, seeking to demonstrate that theatre does only relate to thea
(seeing) but is above all something that should be heard. Importantly, both
groups directly inform the case study company who are the focus of this
chapter, Eden’s Cave. 
The Eden’s Cave Company was founded in the UK in 2016 by Henry McGrath,
a former principal actor with Kozła, in order to bridge connections between
theatre, community and the natural world. Developing a strong community
philosophy, the company incorporates a European model of developing per-
formances over extended periods to create rich, layered, high-quality work.
Its projects contribute to the development of contemporary theatre culture

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 139 22/07/2022 16:26:49


140 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

in the British Isles and to advance new perceptions of how we relate ecolo-
gically to the natural world. Furthermore, Eden’s Cave develops opportunities
for local communities and artists through organised encounters and cultural
exchange developed from its base in the Forest of Dean, an ancient British
woodland located in the South-West of England on the border with Wales. 
Whilst there have been a total of twelve artists in original constellations,
the company currently comprises five core members − Henry McGrath and
Eleanor Buchan (co-artistic directors), Emma Bonnici3 Charles Sandford4 and
Adam Clifford5 − plus working associates. Importantly, all of the members
of Eden’s Cave are connected to Grotland, having been members of Polish
theatre groups or having studied with actors connected to this wider tradition
and its multifaceted ecology of practice. Thus, this young UK-based group
represents a new addition to this lineage of practitioners and, importantly,
are re-inflecting their inherited ecology of practices to foreground a world-
view inherently shaped by a meaningful encounter with the natural world.

Eden’s Cave: An Overview

3 Emma Bonnici is a performer, singer and teacher. Eight years working with Kozła and
Teatr ZAR gave her the foundation on which her performance and teaching practice
have developed. She specialises in voice and polyphonic singing as a means of ex-
ploring character, story and self, and has researched folk songs from across Europe
as well as adapting the work of Kristin Linklater into her praxis. Bonnici is a qualified
craniosacral therapist and uses it in teaching to aid students in unlocking tensions
restricting voice and body.
4 Charles Sandford is a London-born actor, physical performer and visual artist. He trained
at RADA on their MA Theatre Lab and has since become a specialist in embodied ex-
pressive practice. Sandford works closely with British theatre groups Animikii Theatre,
Theatre Re, and Tmesis Theatre, as well as making his own work combining perfor-
mance and sculpture. 
5 Adam Clifford is an actor, theatre-maker, percussionist and composer. He studied at
the Royal Academy of Music in London and the Jacques Lecoq International School of
Theatre in Paris. As an actor and composer, he subsequently moved to Poland to work
with Kozła, Clifford plays the music of Steve Reich internationally with the Colin Currie
Group and is artistic director of son theatre., a theatre company focused on cross-dis-
cipline collaboration.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 140 22/07/2022 16:26:49


EDEN’S CAVE’S FORESTS 141

In 2016, McGrath returned to the UK from his work with Kozła in Poland
with a vision to curate a company comprising actors, singers, musicians,
physical theatre performers and visual artists. The etymology of “Eden” refers
to the Book of Genesis and the Book of Ezekiel in which the garden is a mytho-
logical place of paradise where the Tree of Knowledge and the Tree of Life
reside. For the company, “Eden” refers to the place in which they work −
in this case the Forest of Dean − and indicates the company’s devotion to the
living world, the reverence of, and belief in, interconnection, and the com-
pany itself as a practice of ecologically inspired systems and networks. To a
certain extent, the epithet ‘Eden’ also reflects an ethos, a utopian drive − the
desire to live in a community and establish a new generation of laboratory
theatre practice. In contrast to the Abrahamic roots of “Eden”, the symbol of
“the cave” is more polytheistic, pagan even. In all cultures and in almost all
epochs, the “cave” has been a symbol of gestation and creation, a symbol
of life but also of death. It is a sacred place that constitutes a break in the
homogeneity of space, an opening that is a passage from one cosmic region
to another.
Eden’s Cave has hailed, to some extent, from the laboratory theatre tra-
ditions of Poland and forms part of the assemblage of Grotland groups, with a
genealogy stretching back to Grotowski’s Theatre Laboratory. But other lineages
of work had importance within Eden’s Cave’s evolving group practice, as well.
McGrath, Bonnici and Clifford have all worked extensively in Poland with
Kozła, and Bonnici was a long-term collaborator in Teatr ZAR. McGrath and
Sandford both trained on the MA Theatre LAB at the Royal Academy of Dra-
matic Arts (RADA) in London, under the tutelage of Andrew Visnevski and Ian
Morgan, a principal actor at Kozła for over fifteen years, who had previously
worked with Grotowski at the Work Center of Jerzy Grotowski and Thomas
Richards in Pontedera, Italy. Sandford and McGrath have also worked close-
ly together with Animikii Theatre, a laboratory group based in North-West
England, which McGrath had co-founded alongside director Adam Davies
in 2013.
A further intrinsic branch of Eden’s Cave’s pedagogical lineage and,
specifically the group’s investigation of personal transformation within cre-
ative work, originated in the teachings of American dance and performance
artists Paul Oertel and Nancy Spanier, creative and life partners since 1972.
McGrath first met Oertel and Spanier at age seventeen and began working

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 141 22/07/2022 16:26:49


142 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

closely with them two years later in 2009. His relationship with them is a
pivotal factor in the development of his work as a performer and director.
Buchan, who also trained with Philippe Gaulier and works substantially in the
field of storytelling, has been working with both Oertel, Spanier and as part of
the Authentic Artist Collective6 (AAC) since 2014 and is deeply influenced by
the specificity of their teaching on individual expression. Oertel was an acting
student of the ‘Experimental Theatre Wing’ at New York University’s (NYU)
Tisch School of the Arts in the 1970s, when Oertel was part of the cohort that
worked with Rzyard Cieslak, the celebrated actor of Grotwoski’s Laboratory
Theatre. Although Oertel went on to challenge his training at NYU, there are
interesting connections that link, to some degree, Oertel’s practice to the im-
provisational processes and corporeal considerations of Grotowski.
Thus, each member of Eden’s Cave offers distinct experience and peda-
gogical practices in voice, body, music and ritual, with an extensive combined
experience as professional performers, teachers and theatre makers. The pe-
dagogical roots of each member’s work were vital in shaping the company
identity. Like Kozła and ZAR, focus on embodied theatre training, vocal ex-
ploration and polyphonic singing traditions has been a leading praxical foun-
dation and interest for Eden’s Cave, but while these traditions served as a
valuable history for the theatre and its evolving culture and practice, it has
also proved to be the very thing the company has sought to wrestle with
in an effort to define its own unique aims, approaches and creative charac-
teristics.

Towards an Ecology of Practice: Making Forests


The creative process for Forests began with an initial period of Research
and Development, taking place in South-East England in April 2016, featuring
a range of AAC artists and supported by AAC director Dr Kath Burlinson.
In April 2017, a new configuration took shape7 and Eden’s Cave began work

6 For more information on the Authentic Artist Collective, please visit http://authenti-
cartist.co.uk and for Oertel’s and Spanier’s work, please visit http://www.performan-
ceinventions.org.
7 The early configuration of the company included actors and artists Elizabeth Crarer,

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 142 22/07/2022 16:26:49


EDEN’S CAVE’S FORESTS 143

at RADA in London to begin research on a central question set by McGrath:


“How do we give voice to our living planet?” The initial objective was to dis-
cover how the company wanted to work, train and develop material. In May
2017, Eden’s Cave was invited to The ASHA Centre, a peace and education
charity based in the Forest of Dean that has since become the company’s
“parent” organisation. Initiating a series of residential placements allowed
the making of Forests to be held within the framework of a sustainably minded,
intentional community. After a working period of three years, the company
premiered the piece in February 2020. Forests was the result of a deep process
of creative research, forged by substantial investment of time from the group
and ongoing support-in-kind offered by the ASHA Centre, prior to financial
backing from Arts Council England and Reckitt Arts Trust.

FIGURE 1: ASHA studio in the Forest of Dean


Photo: Patrick Dodds.

Vincent Manna, Sioned Jones and Emma Abel. Whilst Abel continues as a key associate,
all the artists made an important contribution to the founding of Eden’s Cave.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 143 22/07/2022 16:26:50


144 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

With five acres of beautifully tended garden and vegetation, located in


a valley bowl and surrounded by some of the most ancient and mysterious
woodland in Britain, ASHA and its locale significantly affected the work and
evolving culture of Eden’s Cave. From the windowless basement of RADA’s
inner-city workroom, the company found themselves working in a glass-
walled studio set within rose gardens, a feature creating a feeling of endless
space and a very real connection with the land and forest beyond. At the gene-
rous invitation of ASHA co-director Adrian Locher, the group slowly weaved
itself into community life. Eden’s Cave was warmly invited into the routines
and customs of the community; the ritually-blessed shared meals with an in-
ternational team of staff and volunteers, the collective work ethic in the house,
grounds and biodynamic garden, the visible community-values and holistic
environment all had a deep impact on the company. Echoing Stanievski’s
desire to pursue an integrative existence within a community − rather than
isolating from urban existence (STANIEWSKI; HODGE, 2004) − the company
have developed their own models of reverence and respect through their work,
communal living and interpersonal relationships with one other. As company
member Emma Bonnici8 suggests:

In many of the first meetings, creative tasks focused on how we wanted


to work and questioned who we were as a company. If we were exploring
ecology, what was our ecology as a company, emotionally, ethically, and
socio-politically?

One of the ways in which the company responded to these questions


was by adopting and adapting a key methodological strategy developed
by Gardzienice and continued by both Kozła and Teatr ZAR: expeditions.
As Hodge (2005, p. 59) explains:

From the mid 1970s to the late 1980s, [Gardzienice’s] work was charac-
terised by expeditions to remote villages and ethnic Roma, Jewish,
Bielorussian and Ukrainian enclaves in the eastern regions of Poland.
Here Gardzienice sought to access the ‘native’ culture that lay beneath
the official culture promoted by the Communist authorities, which

8 Interview with authors. London, 2020.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 144 22/07/2022 16:26:50


EDEN’S CAVE’S FORESTS 145

complemented the intercultural explorations of Brook, Barba and


Grotowski.

Importantly, Eden’s Cave’s expeditions focused more on their connection


to the local land and its varied ecology rather than the local community per se,
giving them the space to consolidate their own identity as a newly founded
theatre company. They had space at ASHA to consider how they could inter-
rogate connection to the land and develop an understanding of ecological
animism akin to that espoused by Kubiak (2012). The local forest became
a place of ritual, reverence and adventure for company members; they un-
dertook a number of meaningful expeditions within the ancient woodlands:
visiting 2000-year old yew trees, carrying out rituals at local historical sites,
encountering wild boar, going on excursions to caves within the area and
exploring song work under darkening tree branches. Dewsbury (2012, p. 80),
paraphrasing Alan Read, calls this:

[…] the social immanence of performance where performance affects


mutate at the boundaries between those things that are already social
and those things that are not yet social. The immanent nature of the
human requires us to address the indeterminate autonomic responses
at the cusp of their foundation within us. Understanding the social to be
our ontogenetic exposed capacity to be open to the world, we almost
wear that exposed capacity like a skin; it is what makes us human.

The company’s willingness to expose themselves to the woodland en-


vironment of the Forest of Dean, becoming porous, becoming vulnerable,
meant that this lived experience of engaging with the natural world folded
into their emerging praxical professional culture. Actor-musician Adam Clifford9
vividly remembers regular expeditions:

Excursions to bathe in the dead of night, walks across the hilltops, singing,
ritual (and, more than once or twice, naked runs in the forest fuelled by
port) and other creative expressions often arrived spontaneously. Hand in
hand with our vast but tailored processes of improvisation, these activities

9 Interview with authors. London, 2020.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 145 22/07/2022 16:26:50


146 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

challenged lurking desires we might have to hide within ourselves and


invited us to be ‘seen’ by one another in quite a breath-taking way.

Group members, particularly the women, developed daily rituals early in


the morning, late evening and at night at St Anthony’s Well, a natural spring
close to ASHA that medieval monks at nearby Flaxley Abbey built into a stone
pool. For Buchan (2020), this repeated experience of engaging with the “[…]
honesty of cold water, the sense of bodies in community”, created a ‘second
skin’ akin to that evoked by Dewsbury above. The repetition of ritual thrown
into relief by the beauty of the natural context offered a sense of return and
reconnection, strengthening Buchan’s felt sense of a link to both the land
and to Eden’s Cave as a creative hub.
Welshbury Hill, an Iron Age Hillfort close to ASHA, was another place
the group visited during a night expedition held in the early stages of the
creative process. The group travelled by night, lighting their path by a candle
lantern, walking in silence in order to encounter the forest in the dark. A par-
ticular yew tree, known locally for its vibration as a nemeton, or sacred place,
became a focus: one-by-one, the group members disappeared into the sur-
rounding blackness. Here, again, the group learned the pitfalls of imposing
humanness onto the arch-alterity of the pitch-black forest; they realised
that, if they sought to go beyond the human − a central research question
at that time − they had to allow the forest to reveal itself through silence,
contemplation, active listening and dedication. The sense of mystery, energy
and wonder that the Forest of Dean revealed to the group time and again
on its own terms has infused the company’s work, and has gone on, to cite
Dewsbury (2012, p. 80), to “[…] thematize the intimate tonality of human and
nonhuman relationality, and the agentic capacities of the material affective
ecologies in which they are situated”.
Later in the process and due to economic factors, the group were
obliged to camp in the woods near St Anthony’s Well while rehearsing. In a
new communal arrangement, they found themselves in direct sensual con-
tact with the elements in a way similar to the participants of Grotowski’s ex-
periments in Paratheatre in 1970s Poland: living in close connection with the
land in which they had been working for over two years, reliant on the well to
wash in and drink from, creating meals with camping stoves and fire, hearing
boar search around the tents at night. Once again, the darkened forest

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 146 22/07/2022 16:26:50


EDEN’S CAVE’S FORESTS 147

suffused the group with its mysteries and the deeply communal nature of
living so close to the earth forged an inspirational and revealing working pe-
riod. In the words of Kubiak (2012, p. 59), the members of Eden’s Cave began:

[…] to understand the world as receptive and cross-fertilizing spheres


of sentience (this is also Heidegger, of course) and to enter into that
sentience, not simply recognize it in a conceptual or theoretical way.
The communication, after all, occurs through sentience, through af-
fect as well as through symbolic means of communication. I suggest
that each of these overlapping spheres of sentience can be under-
stood as its own theatre and that this mode of theatre becomes the
space within which the permeabilities and instabilities of life can best
be approached aesthetically and politically.

Living in nature ‘ontogenetically’ shaped the company’s creative process


during the making of Forests, which reflected their animistic encounter with
the local ecology of the Forest of Dean. The active affordance of the local ecol-
ogy would continue to guide the company over the course of the extended
devising process for Forests, which consisted of numerous short, yet intense,
encounters interspersed over a three-year period.

Excavation: A Horizontal Approach to Creative Collaboration


Part of the impact that Oertel and Spanier’s work has had on Eden’s
Cave’s development is the advocacy and cultivation of an emotional ecology.
Much of Oertel’s work concerns the emotional literacy of the individual,
the ability to trace feelings and truths that arise in oneself within and beyond
the working space, acknowledging the place that the individual’s psycho-
-emotional system has within the room. Inspired in part by Oertel, McGrath
and Buchan’s work is characterised by a devotion to allowing dramatic materials
to reveal themselves through a process the company call excavation, in which
instinctive actions are discovered through a rigorous, horizontal approach to
collective collaboration. Frameworks are established within the working space,
along with questions that set active intentions for the group to explore. Long
scenic explorations, and a dedication to staying in the ‘not knowing’, allow
for critical moments to emerge organically, akin to processes within wider

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 147 22/07/2022 16:26:50


148 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

ecologies of Grotland group practice. What is required is a fierce dedication


to the excavation process, which demands from the actor an ability to impro-
vise for sustained periods of time and to trust that discoveries will be made,
in which key actions, meeting points, texts, sounds and physical gestures
emerge spontaneously. Group members discuss what has been revealed,
refine their ideas, bring further material in, and begin once again. In practice,
this means a lengthy process, one in which substantial material is created
and then shed, in a process of de- and re-composition akin to composting.
While there is little doubt that the traditions of Polish theatre are a strong
force within Eden’s Cave, there are qualities of the Polish working process,
and the traditions of auteur-centralised control, that the group sought to
move away from, seeking to redefine hierarchy within the working space
while at the same time creating an attuned and intelligent collaborative
environment.
Two factors promoted the choice to reimagine structures of hierarchy.
The first related to the philosophies and practice of both Buchan and
McGrath, drawing on experiences of their work with Oertel, to grow a fa-
cilitative environment and a dedicated research space of private and col-
lective creative excavation. The second factor was the material conditions
and financial situation of the early research period. The company could
not support salary. Rather than impeding the creative process, the group’s
financial vulnerability encouraged McGrath to offer artistic opportunities
that nourished, empowered and inspired each individual artist, asking indi-
viduals what they wanted to explore and how they wished to grow creatively.
The initial artistic proposition, therefore, invited members to lead sessions
related to their own specific practice in direct relation to the project’s central
questions. This created active space, allowing methodologies of working to
blend, weaving the personal and spiritual ecologies of each individual with
the evolving material of the piece.
The ecology of the company, its horizontal structure, thus began to
develop, with group members emboldened as active researchers carrying
out personal inquiries with a unified intention. There developed an organicity
to the way the group organised work; with the company acting as a network
where, with guidance from and in dialogue with McGrath, each person took
ownership of process, leading group warm-ups, ensemble training, voice
and song work, shared rituals, movement, visual art, cranio-sacral therapy,

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 148 22/07/2022 16:26:50


EDEN’S CAVE’S FORESTS 149

text work, choreography and outdoor expeditions. The creative focus could
thus be both flexible and variable in what Clifford proposes as the “manifes-
tation of undermining inner and outer expressions of domination, working at a
micro-level”.
By way of example, vocal work is an integral part of the company’s prac-
tice and both Bonnici and Clifford brought significant expertise in this field.
In Poland, McGrath, Bonnici and Clifford experienced rigorous physical and
vocal training with Kozła and the desire to discover the training of Eden’s
Cave was a strong motivation for group practice, exploring resonance and
beginning the important process of finding a commonality in the company’s
approach to collective sounding and a cappella choral song. As extensive and
varied vocal training and exploration led by Bonnici moved towards Clifford’s
musical composition during a lengthy process of improvisation, McGrath se-
lected texts and offered ideas, guiding an interplay between freedom and
the framing of material:

It could perhaps be described as a transcription of the subconscious.


This process of very gradual evolution meant that my composing was in
constant dialogue with all other areas of our work, and the meaning of our
musical episodes grew rightfully and honestly, rather than being imposed
by me or anyone else. (CLIFFORD, 2020)

The company’s shared responsibility to facilitate the making process


formed a key layer of their ecology of practice, one that, slowly, began to
create a collaborative ensemble approach to theatre-making. Sandford10
drove much of the group’s work on dramaturgy in the later period where:

[…] our particular co-authorship worked from an inside-out perspective


[…] [in which] the ripping apart of proposals for structure was a necessity
that allowed for each to have a footing, our own individual understanding
of how the energies and actions taken from improvisations, conversations
and text translated into an understandable dramatic line.

10 Interview with authors. Liverpool, 2020.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 149 22/07/2022 16:26:50


150 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

While Buchan was a critical eye on the community organism and ritual
practice that holds the work, McGrath was a central organiser of material
and ideas, but his role was facilitative; a leadership that sought to guide
the group and channel the materials through a centralised initial vision.
This evolved over time as the material took on its own life, with each member
of the group taking ownership of their imaginative work and developing a
more malleable and horizontal collaborative environment.

Conclusion
In Forests (2020) an author sits at her desk, conjuring up characters out
of her imagination. Heavily pregnant, she pens a love triangle between a
neurotic young couple and a spectral force, a two-headed daemon haunting
their every move. Caught between reality and the mythic, the author is swal-
lowed up by the spirit world, finding herself guest of honour at a party at the
end-of-days, as humankind is extinguished, and the charred remains of the
natural world take centre-stage at last.

FIGURE 2: Emma Bonnici in Forests (2020)


Photo: Patrick Dodds.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 150 22/07/2022 16:26:52


EDEN’S CAVE’S FORESTS 151

Debuted in February 2020, Forests in many ways foretold the present


global Covid-19 pandemic. The three fertile years of research and develop-
ment resulted in a devised performance text that hauntingly spoke to the
present crisis that, as this chapter goes to press, is facing humankind as a
species. The initial question driving the company’s creative process on Forests
had been “How do we give voice to the living planet”. This had been mo-
tivated in part by McGrath’s research trip to Northern Patagonia in Chile
in January 2016, during which, in the virgin rainforests of Cochamó Valley,
he sought to imagine what forests worldwide could communicate to the
human race in an effort to quell deforestation and widespread ecological
destruction. But the sincerity of the group’s early research period, to “give
voice”, to re-perceive and “remember” our relationship with the living world
and thus make a piece about forests, was thwarted by the slow realisation
of a sense of hubris. As Buchan11 reveals:

We could not, of course, get beyond our human limitations. What developed,
as the group fought and tugged and bumped up against one another, was an
honest desire to understand ourselves as part of an ecology, to come closer
to answers that might pave the way for new understandings of connectivity,
underpinned by the realisation that as humans (while very much a part of
said web) we cannot give voice to the living planet, we can only give voice
to the humans struggling to find ourselves.

And as humankind continues to struggle with the imminent meltdown of


the structures that bind us, perhaps the natural world offers us her answer…

References
Chauduri, U. Staging Place: The Geography Of Modern Drama. Ann Arbor:
University of Michigan Press, 1995.
Cioffi, K. Introduction: Grotowski’s Evolving Influence in Poland. Mime Journal,
v. 25, p. 1-16, 2014.

11 Interview with authors. London, 2020.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 151 22/07/2022 16:26:52


152 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Dewsbury, J.-D. Affective Habit Ecologies: Material dispositions and immanent


inhabitations. Performance Research, London, v. 17, n. 4, p. 74-82, 2012.
Fuchs, E. The Death of Character: Perspectives on Theater after Modernism.
Indiana: Indiana University Press, 1996.
GROTOWSKI, J. Towards a Poor Theatre. Holstebro: Odin Teatrets Forslag, 1967.
HODGE, A. Gardzienice’s Influence in the West. Contemporary Theatre Review,
London, v. 15, n. 1, p. 59-68, 2005.
Kershaw, B. This is the way the world ends, not ...? On performance compulsion
and climate change. Performance Research, London, v. 17, n. 4, p. 5-17, 2000.
KUBIAK, A. Animism: Becoming-performance, or Does this text speak to you?
Performance Research, London, v. 17, n. 4, p. 52-60, 2012.
Marranca, Ecologies Of Theater: Essays At The Century Turning. Maryland:
The Johns Hopkins University Press, 1996.
SCHECHNER, R. Environmental Theatre: An Expanded New Edition Including
“Six Axioms for Environmental Theatre”. New York: Applause Theatre
and Cinema Books, 1994.
Schechner, R.; Wolford, L. (ed.). The Grotowski Sourcebook. London: Routledge, 2000.
SPECIAL Project. In: THE GROTOWSKI INSTITUTE. Encyclopedia. Grotowski
[S. l.: s. n.], 19 mar. 2012. Available in: https://grotowski.net/en/encyclopedia/
special-project. Access in: 13 Apr. 2020.
Staniewski, W.; HODGE, A. Hidden Territories: The Theatre of Gardzienice. London:
Routledge, 2004.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 152 22/07/2022 16:26:52


153

Corporalidade das danças sagradas


de matrizes1 negro-africanas:
ancestralidade, conhecimentos e recriação

Suzana Martins

Algumas palavras introdutórias


Este artigo é uma síntese, fruto de projetos de pesquisas e ativi-
dades de extensão, como eventos acadêmicos e artísticos, que venho
desenvolvendo como professora da Escola de Dança e do Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia
(PPGAC/UFBA). São resultados de natureza acadêmica, contudo, produzidos
através das minhas experiências práticas/criativas e de tese de doutorado,
que resultou na publicação do meu livro A dança de Yemanjá Ogunté sob
a perspectiva estética do corpo (2008).

1 “A utilização dessa expressão – matrizes estéticas – sempre no plural, possui,


do ponto de vista retórico, uma consciente preposição paradoxal, posto que a
palavra matriz remete à ideia de mãe, que também remete à ideia de unicidade,
quando pensada como uma e única pessoa, do gênero feminino, que alimenta com
seu próprio corpo e assim é explicitamente geradora de outra, enquanto a palavra
matrizes multiplica esse ente, ainda que se referindo a um mesmo fenômeno –
descendente direto”. (BIÃO, 2009, p. 37)

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 153 22/07/2022 16:26:52


154 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Em geral, após o curso de doutorado e o desenvolvimento do projeto de


pesquisa de tese, em 1995, as minhas atividades profissionais foram vincula-
das ao estudo do corpo em movimento com ênfase nas culturas de matrizes
estéticas africano-brasileiras. Na busca de compreender como esse corpo se
expressa nas manifestações populares, como o samba de roda, os afoxés,
os maracatus e a dança dos Orixás do candomblé, busquei os estudos da
dança étnica, da antropologia da dança e da etnocenologia. De uma forma
geral, estes projetos de pesquisa foram desenvolvidos também através da
prática, experimentando, observando e praticando os movimentos, gestos
e ações no meu próprio corpo. Utilizei ainda uma combinação de técnicas
e métodos da pesquisa qualitativa, uma vez que há carência de metodolo-
gias no campo da dança étnica. Vale ressaltar que a antropologia da dança,
como embasamento teórico, ofereceu-me a possibilidade de compreender
os contextos sociais, culturais e/ou religiosos que envolvem estas manifesta-
ções, como, por exemplo, a compreensão e interpretação das sutilezas das
ações e atitudes de um determinado grupo social escolhido, as quais não
estão descritas nos livros. Outro dado fundamental da pesquisa está na ape-
tência e competência da pesquisadora sobre conteúdo específico da dança,
o que muitas vezes negligenciado pelos antropólogos ao interpretar os fatos
por não possuírem esta formação técnica/acadêmica na área da dança.
Deste modo, devo salientar que os conteúdos etnográficos me auxiliaram
muito, proporcionando a leitura e compreensão do corpo com suas quali-
dades de movimento. Os estudos teóricos de Judith Lynne Hanna e o seu
livro Ethnic Dance Research Guide: relevant data categories (2014) foi a primeira
fonte teórica que me proporcionou o entendimento das ações, movimentos
e gestos que são expressões ordinárias desses grupos culturais/populares.
Hanna esclarece que padrões de movimento são criados a partir do contexto
socio/ cultural em que estes grupos estão inseridos. Ela enfatiza que a dan-
ça como comportamento humano cria seus próprios padrões de movimento,
de acordo com os sentimentos, as crenças religiosas, mitos e culturas dos
povos e serve tanto para entreter quanto para se tornar um objeto de obser-
vações sistemáticas, de análise e pesquisa.
Sob a ótica da etnocenologia foi possível averiguar as práticas e compor-
tamentos humanos espetaculares organizados (PCHEO). Os PCHEO, como
são denominados pela etnocenologia, propõem discutir questões práticas
e teóricas através do processo metodológico, que envolve a tríade “sujeito-

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 154 22/07/2022 16:26:52


CORPORALIDADE DAS DANÇAS SAGRADAS DE MATRIZES NEGRO-AFRICANAS 155

-trajeto-objeto”. Outro aspecto considerado como procedimento metodológico


da etnocenologia é a imersão do artista pesquisador na cena, como sujeito
da própria pesquisa. Embora a etnocenologia seja apresentada como uma
das vertentes da etnociências das artes e formas de espetáculos, estas trans-
cendem fronteiras da investigação, assim, se torna uma abrangente pers-
pectiva de estudo e pesquisa. Com relação à observação e interpretação do
corpo propriamente dito, utilizei os estudos do pioneiro da dança moderna
Rudolf Von Laban, que criou um sistema de análise do movimento e em
colaboração com o industrial F. C. Lawrence apresentam um estudo sobre o
“impulso” (effort) do movimento, como ponto comum a todas as atividades
motoras do ser humano, no livro intitulado Effort: economy in Body Movment
(1974). Este estudo me auxiliou na análise de duas ações contrastantes,
que envolvem a dança de um determinado Orixá: Yemanjá Ogunté – um
Orixá que na sua dança e música demonstra certa dinâmica com qualidades
diferentes e opostas por ser um Orixá que carrega no seu arquétipo duas
características diferentes, ou seja, o seu arquétipo carrega dois aspectos as-
sociados à natureza: o elemento água como “a mãe das águas salgadas”,
sendo Yemanjá e o elemento terra, como Ogum, pois ela tem um relaciona-
mento hierárquico com este Orixá. Geralmente, no ritual de corporificação
com os Orixás, aqueles(as) filhos(as) de santo de Ogum vêm sempre acom-
panhados ao lado ou atrás dos(as) filhos(as) de santo de Yemanjá.

Filosofia holística e o conceito de coolness2


O universo do candomblé é extenso, infinito, e pode ser estudado através
de várias óticas e disciplinas, ou seja, um campo interdisciplinar, multicultural
e transdisciplinar. Em minhas observações em campo e os meus contatos
com as mães de santo, as Iyalorixás, notei que a maioria delas possui um
comportamento e modo de viver semelhantes, refletidos na sua posição hie-
rárquica do candomblé. Com maestria e sabedoria, entre uma conversa
e outra, elas falam com muita naturalidade profecias significativas e eu

2 Coolness. Expressão inglesa que infelizmente não tem uma tradução perfeita para
a língua portuguesa, mas pode-se dizer que está relacionada com comportamento
humano ou compostura diante da vida, sem constrangimentos ou estresse.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 155 22/07/2022 16:26:52


156 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

anotei algumas dessas palavras que me conduziram a refletir sobre a filosofia


holística e o conceito coolness, apontados pelo antropólogo norte-americano
Robert Faris Thompson, em seu livro African Art and Motion: icon and act (1974).
Para a maioria das mães de santo, existem três pilares fundamentais que
estruturam a religião do candomblé, os quais algumas delas se identificam
como “virtudes” ou modos de comportamento. O primeiro consiste na alegria
que, através da dança, do canto, da música percussiva celebram, referenciam
e agradecem aos Orixás pela vida no ayiê.3 Assim, nós “oremos através da dança
e da música”, disse-me mãe Nini, do Ilê Asè Jagun. O segundo pilar trata do
conhecimento que leva a sabedoria e a ancestralidade e o terceiro está na
paciência, que envolve a superação dos problemas e conflitos, em busca da paz
e harmonia entre os seres vivos e o mundo que nos rodeia. Após refletir sobre
estes pilares, os quais se encaixam perfeitamente com a filosofia holística
do candomblé e o conceito de coolness, apontados por Thompson (1974),
que consiste em envolver o todo do ser humano em todas as suas esferas
de vida, seja familiar, seja, espiritual, seja, física, seja mental ou emocional,
sem fragmentação de suas partes. Como explica Thompson (1974) os povos
africanos, em sua maioria, veem a criação do mundo como um jogo de peças
que se encaixam umas nas outras, sem fragmentação ou sem se separarem
do todo. Assim, essa filosofia está também no corpo em movimento, como diz
Martins (2002, p. 89):

O corpo, nessas tradições, não é, portanto apenas extensão ilustrati-


va do conhecimento dramaticamente representado e simbolicamen-
te representado por convenções e paradigmas seculares. Ele é sim,
local de um saber em contínuo movimento de recriação, remissão e
transformações perenes do corpus cultural.

Já o conceito de coolness, apontado também por Thompson (1974), se re-


fere a uma atitude intelectual metafórica a respeito da visão do mundo e
da compostura perante a vida. Para ele, o conceito de coolness dos negros
africanos tem como função precípua trabalhar as ideias com humor, e no
sentido lúdico e mais adiante ele explica que “Isso é matriz da qual as ideias
derivam sobre como ‘ser generoso’, ‘ser claro’, ‘sobre padrões percussivos’,

3 O termo Aiyê se refere a terra, ao terreno que pisamos.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 156 22/07/2022 16:26:53


CORPORALIDADE DAS DANÇAS SAGRADAS DE MATRIZES NEGRO-AFRICANAS 157

‘harmonizar-se com os outros’, ‘ser equilibrado’, ‘ser socialmente perfeito’,


e ‘sobre a riqueza do destino’”. (THOMPSON, 1974) Em outras palavras,
o conceito de coolness, metaforicamente corresponde ao indivíduo em “ficar
solto, livre”, sem conflitos ou estresse, e não se colocando à parte; ao con-
trário, se envolvendo com o todo, assim, o indivíduo desenvolve atributos
significativos, como: “[…] a compostura interage com o silêncio; a vitalidade
com a cura, no sentido de restaurar a saúde e o corpo político é curado pelas
reconciliações sociais”. (THOMPSON, 1974, p. 43, tradução nossa)

Ancestralidade: a presença ancestral na dança e na música


não destrói a força do tempo
Em 2003, foi promulgada a Lei nº10.639/2003, a qual tornou obrigatório
o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nas escolas de
ensino infantil e médio em todo o Brasil. O artigo 26 desta Lei se refere ao
ensino de conteúdos que devem ser ministrados na História e a Cultura
Afro-Brasileira em todo currículo escolar e, em especial, nas áreas da Educação
Artística e Literatura e História brasileiras. Isto veio valorizar estes conteúdos,
mas provocou uma série de debates e discussões sobre a diversidade da
formação étnica dos brasileiros. Após muita discussão e debates, a Lei
nº 10.639/2003 foi ampliada para a Lei nº 11.645/2008, pelo então presidente
da República Luís Inácio Lula da Silva, para incluir também nos currículos a
História e Cultura dos índios brasileiros, reiterando, assim, a atenção para
o significado étnico-racial da formação do povo brasileiro. A intenção deste
ensino é reconhecer e valorizar estes conteúdos para que seja mudada a
atitude do profissional e do alunado com relação a esta diversidade étnico-
-cultural, estimulando-os a reconhecer a contribuição destes povos na for-
mação da sociedade brasileira. Ou seja, formar atitudes de respeito e de
reconhecimento com relação a esta diversidade étnico-cultural da formação
do povo brasileiro.
Entretanto, os(as) professores(as) que atuam, em geral, nestas escolas
não possuem uma formação educacional que proporcionem a compreensão
e entendimento destes conteúdos, e além disso, há uma lacuna na literatura
brasileira que contemple os aspectos teóricos de maneira contundente e
efetiva o ensino das artes e cultura afro-brasileiras e indígenas. Esta dificul-
dade poderá ser resolvida através de uma série de ações, atividades, leituras,
eventos, artigos e outros.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 157 22/07/2022 16:26:53


158 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Os estudos do antropólogo norte-americano Robert Faris Thompson e


da coreógrafa, professora e pesquisadora afro-americana Kariamu Welsh
mostram a importância das culturas negro-africanas, como referências funda-
mentais de produção de conhecimentos. Ambos pesquisaram intensamente
os povos africanos das regiões Oeste e Centro da África. Nas suas publicações,
ambos trazem pontos em comum e outros que se complementam, sendo
que Welsh (1985) concentrou a sua análise e discurso na perspectiva esté-
tica e criativa da dança, enquanto que Thompson (1974) discorreu sobre o
aspecto estético, de maneira extensiva, nas manifestações e expressões da
arte e da vida dos africanos, especificamente, nas artes visuais, na música,
no corpo e nos instrumentos musicais. Thompson (1974) anuncia que a arte
e a vida dos povos africanos se entrelaçam nessa relação, a respeito da qual
elaborou um sistema de análise e diretrizes estruturais e conceituais, a isto
que ele denominou de ícones. Enquanto Welsh (1985) descreveu que são os
sentidos que dão a forma estética e a estrutura da composição coreográfi-
ca e afirmou ainda que o princípio da oralidade assume a responsabilidade
sobre o processo criativo das danças africanas. Sendo assim, o fenômeno
da palavra falada é uma das características mais marcantes do candomblé,
que tem por função dar continuidade à história, à tradição religiosa e à an-
cestralidade dos Orixás e de entreter a comunidade.
A ancestralidade está presente de maneira contundente na arte e na
vida dos povos negros africanos de vários países e etnias, como a Nigéria,
Gana, Zâmbia e Angola, entre outros. Thompson (1974, p. 28, tradução nossa)
nos dá um exemplo significativo quando explica que “[…] entre os povos afri-
canos de Gana, quando uma pessoa está possuída por um espírito ancião,
ela parece se tornar uma jovem quando está dançando no tempo real”.
Visivelmente, essa força vital está no corpo dos(as) filhos(as) de santo, cen-
trada nessa noção de devoção às divindades ancestrais. Isso é muito comum
de se observar nas festas públicas do candomblé, quando uma senhora
filha de santo, com uma idade avançada, corporifica um determinado Orixá,
que exige muita força muscular, agilidade, coordenação motora e concen-
tração, como, por exemplo, o Orixá Ogum, mas as marcas do seu corpo físico
desaparecem, quando ela dança esse Orixá. Rezam as tradições africanas
que os seus povos selecionaram nomes de pessoas nobres das suas histórias,
reverenciando-as com respeito e dignidade. A presença ancestral na dança
e na música não destrói a força do tempo, muito pelo contrário, os nobres

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 158 22/07/2022 16:26:53


CORPORALIDADE DAS DANÇAS SAGRADAS DE MATRIZES NEGRO-AFRICANAS 159

merecem que os seus nomes sejam referenciados para dar continuidade ao


destino e à vida dos homens na terra. Para Leda Martins (2002), os povos
africanos entendem a concepção da ancestralidade a partir da cosmovisão.
Esta autora reforça o seu pensamento através da seguinte citação do escri-
tor negro africano Ngugi wa Thiog’o (1997 apud MARTINS, 2002, p. 139):

[…] nós, que estamos no presente, somos todos, em potencial, mães


e pais daqueles que virão depois. Reverenciar os ancestrais significa,
realmente, reverenciar a vida, sua continuidade e mudança. Somos
filhos daqueles que aqui estiveram antes de nós, mas não somos se-
res gêmeos idênticos, assim como não engendramos seres idênticos
a nós mesmos […]. Desse modo, o passado torna-se nossa fonte de
inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro a nossa
aspiração coletiva.

Deste modo, a devoção às divindades ancestrais do candomblé tornou-se


uma tradição que, por meio de rituais, cerimônias e festas públicas, se cultua
“[…] o passado e o presente [que] são conectados para ajustar o futuro”.
(GIDDENS, 2001, p. 135 apud LIMA, 2005, p. 186) Como todas as tradições
culturais se movimentam de acordo com a mudança dos valores sociais,
morais e éticos de uma sociedade, as nossas religiões de matrizes negro-
-africanas sofreram essas mudanças e ainda sofrem, ao longo dos séculos,
no sentido de preservar a integridade espiritual de seus religiosos. Um dado
atual e curioso está no aumento significativo de casas de candomblé, que rein-
ventam suas tradições e se modernizam através do uso de tecnologia avan-
çada. (LIMA, 2005)
Observando o candomblé como fruto da cultura afrobaiana, os intelectuais,
como, por exemplo, o escritor baiano Jorge Amado, o artista plástico argentino
naturalizado brasileiro, Caribé, e outros, valorizam o candomblé como fonte
de inspiração artística para suas obras de arte. Enquanto isso, as mães de
santo de casas tradicionais, a exemplo do terreio Ilê Axé Opô Afonjá, de mãe
Stella de Oxóssi (falecida em 2018) foi além de ser uma líder religiosa,
foi ativista feminina, democrática, lutando intensamente contra o racismo e
o sincretismo religioso.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 159 22/07/2022 16:26:53


160 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Matrizes estéticas
Especificamente, as matrizes estéticas inseridas nas danças sagradas do
candomblé são visíveis na corporalidade do(a) filho(a) de santo, que se estru-
tura a partir de elementos simbólicos para um determinado fim (LE BRETON,
1995), e que são valorizados através dos sentidos da visão, da audição, do olfato
e da degustação, como aponta Welsh (1985). Através da observação visual
e intensiva durante as atividades cotidianas e religiosas da casa, o corpo
assimila, internaliza e registra os movimentos, ritmos e arquétipo de cada
Orixá. No ritual do xirê ou na dança da roda, o corpo exercita na prática esses
conhecimentos da dança e música que são transmitidos através da tradi-
ção oral pelos(as) mais velhos(as) da casa, de geração a geração. O cheiro
de alfazema, o conhecimento sobre as plantas e ervas tornam-se estímu-
los para o desenvolvimento dos conhecimentos através do olfato. E por fim,
a preparação e cozimento das comidas para os Orixás estimulam o sentido
da degustação. Em síntese, as matrizes estéticas que compõem essa cor-
poralidade reúnem aspectos, tanto tradicionais (ancestralidade, filosofia
holística) quanto contemporâneos (repetição, improvisação, recriação de
padrões de movimentos e ritmos). Além disso, a união dinâmica da dança
com a música promove meios de articular o corpo humano de forma com-
plexa do que seria uma expressão ordinária comum. Enfim, um corporalidade
que se distingue de outras por estar inserida na cultura e religiosidade do
candomblé, na qual os padrões são recriados a partir das matrizes negro-
-africanas de várias etnias, o que nos proporciona a espetacularidade de
um fenômeno a ser observado e apreciado.

Palavras finais
Aspirando um futuro melhor, esta corporalidade se constrói através das
práticas espetaculares desse corpo em movimento, que respeita os ante-
passados e seus valores étnicos e tradicionais. A prática criativa em uma
casa de candomblé é exercitada de forma integral, holística, naturalmente
despojada de estresse e conflitos. A integração dos sentidos é vital para o
desenvolvimento desse fenômeno de corporificação com o Orixá. São ca-
racterísticas singulares que se distinguem de outras religiões, uma vez que a

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 160 22/07/2022 16:26:53


CORPORALIDADE DAS DANÇAS SAGRADAS DE MATRIZES NEGRO-AFRICANAS 161

dinâmica é plural, herdada dos diversos povos negros africanos, foi assimi-
lada à nossa cultura afro-baiana, ao nosso cotidiano e às nossas manifes-
tações populares, de forma expressiva, destacando-se das demais formas
de arte e cultura. Dançar o Orixá é expressão de alegria, prazer e respeito à
ancestralidade, referenciando aos antepassados, por meio da comunicação
divina e espiritual através do corpo e dos ritmos.

Referências
BIÃO, A. J. de C. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A, 2009.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 13 abr. 2022.
HANNA, L. J. Ethnic Dance Research Guide: relevant data categories. University of
Cambridge Press, 2014.
LABAN, R.; LAWRENCE, F. C. Effort: Economy in Body Movement. Boston: Plays, 1974.
LE BRETON, D. Antropología del cuerpo y modernidad. Buenos Aires: Nueva Visión, 1995.
LIMA, F. Corpo e ancestralidade. Repertório: Teatro & Dança, Salvador, ano 18,
n. 24, p. 19-32, 2015.
LIMA, F. Os candomblés da Bahia: tradições e novas tradições. Salvador:
Universidade do Estado da Bahia: Arcadia, 2005.
MARTINS, L. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, G.; ARBEX, M. (org.).
Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002. p. 89-120.
MARTINS, S. A dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo.
Salvador: EGBA, 2008.
THOMPSON, R. F. African Art and Motion: icon and act. Los Angeles: University
of California Press, 1974.
WELSH, K. Commonalities in African Dance: An Aesthetic Foundation. In: ASANTE, M.
K.; ASANTE, K. W. (ed.). African Cultures: Rhythms of Unity. Trenton, NJ: Africa World
Press, 1985. p. 25-35.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 161 22/07/2022 16:26:53


matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 162 22/07/2022 16:26:53
163

Sobre os autores

Alexandra Gouvêa Dumas


Professora da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Doutora em Artes Cênicas pela UFBA em regime de cotutela com a Uni-
versidade Paris Nanterre, com pesquisa sobre festas populares africana
e brasileira – trabalho laureado com a Menção Honrosa no Prêmio Capes
de Tese 2011. Pós-doutorado na Universidade Paris Nanterre, França.
Fundadora, professora e coordenadora do mestrado interdisciplinar em
Culturas Populares, da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Tem experi-
ência na área de teatro: pedagogia do teatro, teatro e culturas populares,
manifestações cênicas afro-brasileiras e estudos do teatro negro.

Christine Douxami
Pesquisadora em Antropologia da Arte no Instituto dos Mundos Africanos
(IMAF) e professora na Universidade de Franche-Comté em Artes Cênicas.
Seu trabalho, na junção entre teatro e antropologia, pesquisa questões
da negritude e do pan-africanismo. Faz o seu trabalho de campo parti-
cularmente na África (Burkina Faso-Senegal) e no Brasil. Defendeu em 2001
sua tese sobre Teatro Negro. Desde 2006, tem coorganizado um semi-
nário na Ecole des hautes etudes em sciences sociales (EHESS). Trabalha
também sobre as questões políticas e artísticas relacionadas ao patrimônio
imaterial no Brasil.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 163 22/07/2022 16:26:53


164 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Daniela Maria Amoroso


Dançarina, pesquisadora, docente da Escola de Dança da Universidade Fede-
ral da Bahia (UFBA) e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da UFBA. Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cê-
nicas da UFBA. Realizou pós-doutoramentos na Universidade Paris-8 Saint
Denis (Bolsa Capes 2015/2016 e Capes/Print 2020) com projetos de pesquisa
sobre corpo, etnocenologia, criação e interculturalidades nas danças populares.
É líder do Grupo de Pesquisa Umbigada- Dança, Cultura e Contemporaneidade,
certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-
lógico (CNPq).

Érico José Souza de Oliveira


Professor doutor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de
Brasília (UnB) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Uni-
versidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Colaborador do Programa
de Pós-Graduação Interdisciplinar em Culturas Populares, da Universidade
Federal de Sergipe (UFS). Líder do Grupo de Pesquisa em Processos, Poéticas
e Pedagogias em Encenação Contemporânea (G-PEC), filiado ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) desde 2006.
Pesquisador, ator, encenador, iluminador, preparador de elenco e produ-
tor cultural, membro fundador do Coletivo Livre de Espetáculos (COLE),
desde 2012.

Graça Veloso
Docente na Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGCEN), no Instituto de Artes
(Prof-Artes) e na graduação do Departamento de Artes Cênicas (IdA) da Uni-
versidade de Brasília (UnB). Professor associado I. Ator, diretor, dramaturgo.

Nathalie Gauthard
Nathalie Gauthard é etnocenóloga, professora universitária de Artes Cênicas
da Universidade de Artois e presidente da Sociedade Francesa de Etnoceno-
logia (SOFETH) – organização não governamental aprovada para o Patrimônio

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 164 22/07/2022 16:26:53


SOBRE OS AUTORES 165

Cultural Imaterial (PCI) pela Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (Unesco). Além de sua especialização em práticas cê-
nicas e performáticas asiáticas, ela estuda estética e práticas carnavalescas.
Autora de vários artigos e publicações científicas, foi eleita recentemente edi-
tora da Revue L’Ethnographie. Criação, práticas, públicos (MSH-PN-USR3258).

Eloisa Brantes Mendes


Professora adjunta no Departamento de Linguagens Artísticas do Instituto
de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde coordena o
projeto de pesquisa e extensão Espaço Transdisciplinar de Pesquisa e Criação
em Performance. Fez pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Arte Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(Faperj). Doutora e mestra em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com bolsa do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Maîtrise
Arts du Spectacle da Universidade Paris-8. Diretora artística e performer no
Coletivo Líquida Ação.

Jean-Marie Pradier
Professor emérito da Universidade Paris-8, onde codirigiu o Departamento
de Teatro e coordenou o componente Etnocenologia do EA 1573. Depois de
pesquisar no Curdistão iraquiano, ele trabalhou em Istambul, Montevidéu,
Rabat. Pesquisador do laboratório de Etnocenologia da Maison des Sciences
de l’Homme em Paris-Nord. Membro fundador da Escola Internacional de
Antropologia Teatral, criada por Eugenio Barba.

Eleanor Buchan
Performer focada em tradições de contar histórias e práticas rituais. Treinada
com Philippe Gaulier e na Escola Central de Fala e Drama. Ela é codiretora
artística da Eden’s Cave Company.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 165 22/07/2022 16:26:53


166 MATRIZES ESTÉTICAS NA CENA COTEMPORÂNEA

Henry McGrath
Praticante de performance, diretor e ator. Ele fundou a Eden’s Cave Company
em 2017, após seu trabalho com a aclamada companhia de teatro polonesa
Song of the Goat (2014-2018).

Patrick Campbell
Professor sênior de Drama e Performance Contemporânea na Universidade
Metropolitana de Manchester, Reino Unido. Ele é especialista em treinamento
psicofísico com foco na expressividade física e vocal do intérprete.

Suzana Martins
Professora titular da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Fez mestrado e doutorado em Dança na Educação pela Universidade de
Temple, Estados Unidos. Realizou dois estágios de pós-doutoramento: no Codarts,
Amsterdã, Holanda e na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade
Técnica de Lisboa, Portugal. Suzana possui experiência profissional na área
de Artes, com ênfase em corpo e criatividade, atuando principalmente nos
seguintes temas: dança, cultura afro-brasileira, metodologias, etnografias
e outros.

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 166 22/07/2022 16:26:53


matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 167 22/07/2022 16:26:53
Formato: 17 x 24 cm
Fontes: Open Sans, Cairo, DTL Documenta
Miolo: Papel Off-Set 75 g/m2
Capa: Cartão Supremo 300 g/m2
Impressão:
Tiragem:

matrizes-esteticas-na-cena-contemporânea_miolo_170x240mm.indd 168 22/07/2022 16:26:53

Você também pode gostar