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PESQUISA EM ARTE

E DIFUSÃO DO
CONHECIMENTO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira

Vice-reitor
Penildon Silva Filho

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora
Susane Santos Barros

Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo

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( O RG A N I Z A D O R A S )

U R Â N I A AU X I L I A D O R A S A N TO S M A I A D E O L I V E I R A
M A R I A I N Ê S CO R R Ê A M A RQ U E S
A D R I A N A B I T T E N CO U RT M AC H A D O

PESQUISA EM ARTE

E DIFUSÃO DO
CONHECIMENTO

S a l va d o r
E D U F BA
2022

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2022, autores.
Direitos para esta edição cedidos à Edufba.
Feito o Depósito Legal.
Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Analista editorial Imagem de capa


Mariana Rios Dante Augusto Galeffi

Coordenação gráfica Revisão e normalização


Edson Nascimento Sales Tikinet

DIAGRAMAÇÃO
Coordenação de produção
Tikinet
Gabriela Nascimento
arte final
projeto gráfico
Josias Almeida Jr.
Miriã Santos Araújo

Sistema Universitário de Bibliotecas – UFBA

P474 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento / Urânia Auxiliadora Santos


Maia de Oliveira, Maria Inês Corrêa Marques, Adriana Bittencourt
Machado (Organizadoras). - Salvador: EDUFBA, 2022.
280 p.
ISBN: 978-65-5630-354-3
1. Artes - Pesquisa. 2. Artes – Estudo e ensino. 3. Teatro – Estudo e
ensino. 4. Dança – Pesquisa. I. Oliveira, Urânia Auxiliadora Santos Maia
de. II. Marques, Maria Inês Corrêa. III. Machado, Adriana Bittencourt.
CDU – 7:001.891

Elaborada por Geovana Soares Lira CRB-5: BA-001975/O

EDITORA AFILIADA À

EDITORA DA UFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufba.ufba.br | edufba@ufba.br

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Sumário

Prefácio 7
Dante Augusto Galeffi

Apresentação 11
Adriana Bittencourt Machado

Capítulo 1
A percepção para o teatro como o desejável para a
sala de aula: um ensaio motivacional 15
Hélio José Santos Maia: Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira

Capítulo 2
Arte, cognição e crítica: objetivismo estético em
contextos de mercado e Cyber Media 29
Geraldo Rui Almeida Cunha: Maria Inês Corrêa Marques

Capítulo 3
Da toca do coelho ao sorriso do gato: reflexões sobre
a prática como pesquisa nas artes cênicas 41
George Mascarenhas

Capítulo 4
Para fazer o verbo delirar: pesquisa em artes cênicas com
ênfase na experiência em teatro 65
Cilene Nascimento Canda

Capítulo 5
Teorias e olhares sobre o espectador teatral contemporâneo 89
Letícia Mendes de Oliveira

Capítulo 6
Sublime é a noite: processos de criação dramatúrgica para
um espetáculo de formatura com estudantes de teatro 105
Paulo Henrique Alcântara

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Capítulo 7
O mal-estar no teatro antidramático e os impasses
diante da representação 119
Carlos Cézar Mascarenhas de Souza

Capítulo 8
Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa
no Deart/UFRN: Cruor Arte Contemporânea 145
Adriano Marinho dos Santos: Nara Salles: Jéssica de Lima Torreão Cerejeira

Capítulo 9
Possibilitando outros textos e contextos: entre ações
culturais e educativas na exposição “Olhares pra dança” 167
Valéria Maria Chaves de Figueiredo: Luciana Gomes Ribeiro

Capítulo 10
Como confabulações do corpo nos Recantos
dos corpos na Árvore 179
Lela Queiroz

Capítulo 11
Grupo X de Improvisação em Dança: diálogos abertos 207
Carlos Eduardo Oliveira do Carmo: Fátima Campos Daltro de Castro

Capítulo 12
A pesquisa nos estudos da performance: transitando em
territórios e fronteiras nebulosas e movediças 227
Felipe Henrique Monteiro Oliveira

Capítulo 13
Inventários do sertão nas cenas moderna e contemporânea 249
Diogo Ramon da Silva Costa: Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira

Apresentação dos Autores 271

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PREFÁCIO

Reunindo pesquisadores/artistas engajados com as questões de


arte, estética, aprendizagem, corpo, criação cênica, teatro, dra-
maturgia, teatro antidramático, curadoria artística, cognição e crí-
tica estética, dança, performance, improvisação em dança, o livro
Pesquisa em Arte e Difusão do Conhecimento é uma ação de resis-
tência criadora em tempos de obscurantismo intelectual e barbárie
política contra o “outro” em sua radical diferença ontológica e ética.
Os temas de pesquisa dos 13 capítulos que compõe este livro
fazem parte de um amplo e consistente universo de produção
de sentido focado na criação e acontecimento estético múltiplo,
a partir das circunstâncias das pesquisadoras/professoras e pro-
fessores/pesquisadores atuando no campo da formação da pós-
-graduação, pelo acontecimento criador da resistência artística e
da ação de uma estética não dissociada da ética radical necessária
para ultrapassar a condição dada de servidão involuntária e volun-
tária. São dezenove autoras e autores consagrados no campo da
produção de conhecimento em suas específicas áreas de atuação,
uma ação organizada a partir do Doutorado Multi-Institucional
e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC), pela
iniciativa das professoras Urânia Maia, Maria Inês Marques e
Adriana Bittencourt, na direção de um investimento formativo
multirreferencial, complexo e polilógico, compreendendo ampla-
mente os fenômenos artísticos e estéticos em seus processos de
produção e valoração social, ampliando o campo de ação do Analista
Cognitivo visado na formação doutoral. A novidade é a abertura
de um campo de ação discursiva e performática no espaço-tempo
de um doutorado em difusão do conhecimento, com uma área de
concentração denominada “Modelagem da Geração e Difusão do
Conhecimento”, com nítida ênfase na modelagem matemática e
computacional, mas também com a abertura e ação ao campo da

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modelagem antropossocial, envolvendo outras modulações cien-
tíficas e outras epistemologias, ampliando o campo de interesse
investigativo, acolhendo as vozes potentes dos que falam a partir de
seus próprios e a apropriados lugares e tempos. Louvável iniciativa
em um tempo estranho em que a guerra híbrida também significa
a polarização das políticas e a afirmação da disputa e concorrência
entre os humanos vivos, uma  política de morte (necropolítica)
contra os estranhos, os estrangeiros, o “outro” em sua singulari-
dade irredutível. Sim, porque em tempos de guerras psicológicas e
da instauração de um Estado Capitalista de Exceção, que visa tudo
destruir para impor a lógica do mercado mundial neoliberal em sua
resistência contra a força da colaboração comum-pertencente que
flui em direção contrária à guerra, à disputa, à  concorrência for-
çada, à divisão e à confusão mental generalizada. Aqui, as linhas
de fuga revelam os territórios de subjetivações contra-hegemô-
nicas, as diferenças marcantes de cada desejo vivo que se faz dis-
curso e ação criadora escrita. E como classificar e distinguir aquilo
que é excelente daquilo que é mediano e daquilo que não é nada?
Mas por que deveríamos seguir no sentido oposto à reunião de tudo
e ao acolhimento radical do outro em sua singularidade radical?
Por isso, é preciso agir na condição do próprio e apropriado, o que
não é redutível a normas externas e linhas de corte ideais, mas res-
ponde ao impulso desejante criador de processos contemporâneos
no sentido do que é emergente e inadiável. É emergente e inadiável
romper com a lógica binária do sim ou não, e aprender a operar com
a lógica que inclui sempre um terceiro termo em todo fluxo cognitivo
presente e em relação intersubjetiva. Um movimento de valorização
do que não se encontra “qualisficado”, mas que também atende à
“qualisficação”, porque é preciso produzir dentro dos parâmetros
impostos para se ter garantida uma sobrevida de quatro anos no
âmbito da pós-graduação. Mas este livro inevitavelmente também
será avaliado pelo sistema de corte “qualis”, e por ser editado e
publicado pela EDUFBA, já carrega em si um valor a ser reconhe-
cido pelo sistema central de controle “qualis”. Então, enquanto não

8 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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aprendermos a lidar com as escadas e seus degraus da ascensão
intelectual de modo a podermos posicionar-nos à frente dos acon-
tecimentos, e não na sua retaguarda, não podemos nem imaginar
a emancipação como diferença radical. Mesmo se hoje são mais
importantes os intelectuais de retaguarda do que aqueles de van-
guarda. Uma retaguarda em relação ao que quer se impor como
norma e modelo único de condução da vida humana em suas pos-
sibilidades. Um movimento de resistência criadora tem o seu valor
próprio para além das comparações que só servem para fortalecer
a desigualdade e os privilégios de uma minoria detentora dos meios
de poder para agir em benefício próprio, e não em benefício da tota-
lidade vivente que a tudo e todos reúne no mesmo sem-fundamento
que abisma até hoje os que se acham a medida de todas as coisas.
Eis aí o valor do que se torna ato, se realiza como expressão de
uma vontade de compartilhamento e de crescimento próprio e a
apropriado, o que só diz respeito a cada um em seu mistério inson-
dável. Mas aqui, o que importa é o âmbito da reunião das presenças
que compõem a força viva das palavras escritas, e que se conjugam
em uma unidade polifônica, reunião da diversidade, acontecimento
do encontro dialógico transversal fora dos limites do que já se sabe,
já se domina, já se tem, já se controla. E é também isso uma questão
de percepção e imaginação, porque só o que é vivido na intensidade
da vontade de potência segue o fluxo do devir incessante de tudo e
pode saltar fora dos limites impostos pela razão neoliberal absolu-
tista e fundamentalista. E porque o que se quer é ampliar o campo
das possibilidades humanas de construção social pública, implicada
na emergência poliética planetária, o que significa remar na direção
oposta ao nazicapitalismo mundial integrado, conectando as partes
e funções que ficaram separadas no ciclo da modernidade industrial
que hoje supera toda espectativa na direção de uma política hegemô-
nica de morte e destruição, comprometendo a vida em sua comple-
xidade viva em que tudo é parte de tudo e nada fica de fora, a clarivi-
dência de que tudo repercute em tudo e nada passa impune na linha
do seu desejo e concretude fática. Resistir à estupidez monológica e

Prefácio 9

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imperial é uma questão de dignidade radical, um clamor no cuidado
da vida em suas variações, maravilhamentos e oclusões.
Enfim, o livro prenunciado, em seu brilho próprio e conjuntural,
é uma oferenda de seus criadores e de suas criadoras ao mundo
comum-pertencente à vida abundante, e, por isso, quem se dispuser
a ler na lentidão de um tempo outro suas linhas e pontos de conexão
e felicidade poderá, em seu silêncio mais próprio, celebrar com os
outros a dádiva de poder ser a arte em sua efetividade encarnada
de partilha e beleza múltipla. Uma leitura rica de aprendizagens e
de surpresas ocorre quando o que se escreve é o que se quer dizer
no plano da partilha e da comunicação comum, e o que se lê é a
escuta atenta do que foi dito na escrita por alguém. São todas linhas
de fuga surpreendentes. E por que não haveríamos de reconhecer
aquilo que é? Ora, o que é não tem circunscrições e nem proprietá-
rios, e o próprio e apropriado é justamente a distância de tudo aquilo
que nos distancia de nós mesmos no mundo com os outros. Almejo
que alguns possam sintonizar com a beleza velada deste livro multi-
versal, polilógico e que seja surpreendente e radicalmente novos os
sonhos que ele provoca nos corações inquietos e sedentos de equi-
dade e ética incondicionalmente livre do que escapa do mundo vivo
da vida-vivente-vivida.

Dante Augusto Galeffi


Fevereiro de 2022

10 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Apresentação

Eis que me deparo com a incumbência de fazer a apresentação


de um livro, cuja temática é a pesquisa em Arte e a difusão deste
conhecimento. Vejo-me surpresa pela necessidade de iniciar
minha escrita me afastando de regras habituais, calcadas numa
narrativa expositiva. Isso, porque o que sinto ao me deparar com
a relevância da pesquisa em arte está atrelada à percepção de um
corpo continuamente instável, entrelaçado pela tríade suspensão,
queda e recuperação.
Há uma contínua tentativa de desmonte da universidade pública,
tendo como alvo a pesquisa e a arte. Um ano marcado pela busca
da implementação de condições incompatíveis com a pesquisa:
a homogeneidade epistemológica, a hierarquia do saber, a ideia de
desserviço sustentada no utilitarismo. Por fim, mas não em um nível
menos elevado, por ser a que sustenta essa sensação, a morte do
fluxo do pensamento pela intolerância ao dissenso. Gera-se uma
crise epistêmica pela tentativa de unidimensionalização e exclusão
das diferenças. O que não é “útil” deve desaparecer. É preciso
deixar de infectar, através de ideias transgressoras, as mentes
humanas. Velhos dogmas retornam, assombrando o direito de
pensar diferente, não apenas do outro, mas de si mesmo, de ques-
tionar e produzir conhecimento. Potencializam-se verdadeiros man-
tras, que se instauram como sentenças: pesquisar é nocivo e a arte
não combina com pesquisa. Mas a pesquisa em arte se incube de
produzir conhecimento, deslocada das particularizações autoritá-
rias que tendem a modular construções epistêmicas insurgentes.
Estabelece-se, assim, a crise nos corpos. Não como algo necessário
à transformação, mas pela imposição da regularidade, criando uma
sucessão de eventos até transformar-se em fenômeno. A ordem
ganhou status de organização e de impedimento da “desordem”.
Entretanto, ordem e caos coexistem. O estado de equilíbrio é a

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morte na termodinâmica dos sistemas dinâmicos. Corpos são sis-
temas dinâmicos. A academia é sistema dinâmico. A sociedade é
sistema dinâmico.
Recuperação, queda e suspensão. Em condições nada propí-
cias para se fazer pesquisa em arte fora daquela ordem, o objetivo
é conter, paralisar. Pressão nos corpos gera reações, pois o movi-
mento, como continuum no universo, é que promove ramificações e
novas estruturas de conhecimento que permitem a permanência da
pesquisa em arte.
Pensar pesquisa em arte, no âmbito da universidade, exige
uma fina percepção do que realmente isso significa. A arte, em seu
caráter de existência, não necessita de institucionalização. Mas a
construção de argumentos sobre ela gera novas possibilidades,
atravessa entendimentos sedimentados que se replicam como
memes ao longo do tempo, condicionando a arte a modos privados e
distorcidos. A produção de conhecimento em arte na pós-graduação
e sua difusão promovem uma cisão em pressupostos arcaicos que a
definem como efêmera, imaterial, como atividade reduzida ao dile-
tantismo, dentre outras. E é por isso que se instaura a necessidade
de atentar para a sua relevância.
A articulação entre o fazer artístico e a pesquisa acadêmica não
sobrevive na lógica da ordem, muito menos de uma ordem especí-
fica. A construção de ideias que se efetuam como hipótese para o
campo não necessita tensionar a noção dualista entre o fazer e o
pensar, entre a pesquisa acadêmica e a produção artística, que só
enuncia o frágil entendimento sobre as próprias condições de suas
existências. Não se faz pesquisa em disjunção com a experiência.
Entretanto, na pesquisa acadêmica, o sujeito do discurso é o objeto,
e não o relator da própria experiência. Assim, a pesquisa em arte
na pós-graduação tem como função gerar um fluxo de saberes que
fomentem construções teóricas e artísticas para o próprio campo.
A pesquisa em arte e a difusão de seu conhecimento propiciam
formulações conceituais, implementam e consolidam a arte como
ação cognitiva do corpo; um índice evolutivo, no qual cada modo

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de pensar e fazer gera organizações específicas. Pesquisa em arte
requer modos operantes próprios, já que há princípios particulares
que não são equivalentes em outros campos de produção de conhe-
cimento. Que o movimento seja estabelecer a sua fina autonomia
e garantir seu reconhecimento ao transformar e anunciar novas
formas de se pensar e estar no mundo. Desse modo, são notórias as
ramificações que emergem e se imprimem como estruturas singu-
lares na pesquisa em arte.
A arte sempre sinalizou o futuro. Assim como não existe uma
única ideia, não existe um único pensamento, não há, também,
um modo único de se fazer arte e pesquisa. A diversidade de eixos
epistemológicos se estabelece, gerando semânticas particulares.
Os eixos são conceituais e promovem ambiências que oferecem a
percepção da produção de conhecimento e sua difusão.
Suspensão, recuperação e movimento. Eis que a geração de
movimento se apresenta como contínua necessidade da arte e
da pesquisa. Os diversos modos definem suas abordagens e seus
aspectos metodológicos e permitem a percepção dos seus fazeres.
São índices de relações efetuadas cruzando referências locais para
potencializar um fluxo de redes cognitivas. Essas redes cognitivas
promovem a atenção para a relação entre arte e ciência, onde a pes-
quisa articula esses dois campos de conhecimento, aparentemente
distintos. Sob o viés aqui exposto, a articulação entre arte e ciência
não ocorre como uma conjuntura arranjada, forçada, mas vinculada,
inicialmente, pela criação. A criação é o mote de suas existências.
Arte e ciência, em suas diferentes naturezas, tecem relações de
longo alcance que se configuram em espaço-tempos. No processo
evolutivo de produção de saberes e conhecimentos, sempre se
entrelaçaram, gerando novos sentidos. Essa é a condição de exis-
tência da pesquisa em arte: esse nó entrelaçado, estabilizando-se e
dissipando-se no tempo.
Suspensão, movimento e recuperação. Gera-se o movimento
a partir da publicação deste livro. O Programa de Pós-Graduação
em Difusão de Conhecimento da Universidade Federal da Bahia

Apresentação 13

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(UFBA) nos oferece a possibilidade de entender a pluralidade como
distinção entre pares para o fortalecimento deste campo do saber,
tendo como área de concentração a cognição. Assim, o programa
promove a percepção de diferentes eixos epistemológicos pela
sua transdisciplinaridade. Pesquisas que adentram por análises e
modulagens cognitivas, aprendizagem colaborativa, produção de
linguagens, tradução, comunicação, entre outras, são articulações
que se edificam no cruzamento de diversas perspectivas cogni-
tivas na relação entre natureza e cultura. Marcam sua singulari-
dade, não pela ordem, mas pela construção de mediações epis-
temológicas. Recuperação, movimento e possibilidades: é o que a
pesquisa em Arte no Programa de Pós-Graduação em Difusão de
Conhecimento se propõe.

Adriana Bittencourt Machado

14 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Capítulo 1

A PERCEPÇÃO PARA O TEATRO COMO


O DESEJÁVEL PARA A SALA DE AULA:
UM ENSAIO MOTIVACIONAL

Hélio José Santos Maia


Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira

O olhar, ação da visão, representa a rapidez em forma de sentido.


Mas quando olhamos para algo, o que prende a atenção? Possivelmente,
o interesse despertado pelo objeto. Não se dará a atenção devida a algo
que não estimule a emoção, quer seja por meio da curiosidade, que ins-
tiga os sentidos, ou pela afetividade devotada a algo.
Com relação à motivação, entre as teorias de aprendizagem que
apontam o caminho nesse sentido, pode-se mencionar a Teoria da
Aprendizagem Significativa de David Ausubel (2000). Nessa teoria,
a vontade do estudante de aprender é o pressuposto básico para que
a aprendizagem ocorra de modo significativo. A vontade de aprender
passa a ser terreno de investigação, e certamente envolve questões
multifatoriais para seu entendimento, pois o estímulo motivacional
não parece ser um único processo, já que afeta a todos de modo
semelhante. O foco de interesse das pessoas também é variável
e, por mais que se tente uniformizar processos motivacionais,
a motivação não alcançará a todos de modo semelhante. Comenius
(1592-1670), em sua Didactica Magna, publicada em 1649, aponta
que “é imprescindível despertar nas crianças o amor pelo saber
e pelo aprender”. (COMENIUS, 2002, p.  168) Paro (2017, p.  64)

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critica essa afirmação de Comenius, ao indicar que “A questão tem
a ver, na verdade, com o que comumente chamamos de motivação”,
mas o “despertar” esse amor por aprender, nas crianças, não é algo
que se possa fazer. Segundo o autor,

A palavra ‘motivação’ vem de ‘motivo’. ‘Motivo’, segundo


John Dewey, ‘é o nome que recebe o fim, quando o consi-
deramos em vista da influência que ele tem sobre a nossa
ação, do seu poder de nos mover’. É no motivo, pois, que
precisamos buscar a motivação. Por isso, não se desperta a
motivação, nem se oferece motivação exterior ao motivo da
atividade. (PARO, 2017, p. 64)

Dito isso, a investigação delimitada neste capítulo diz respeito ao


que se passa na sala de aula na relação professor-aluno-objeto e o que
se passa em um espetáculo teatral na relação atores-espectadores-
-objeto relacionados ao modo como se aprende. Entende-se objeto,
aqui, ao que se devota a atenção, podendo ser designado como
“assunto”, “tema”, “do que se trata”. Essas relações, aparentemente
com interfaces muito próximas, despertam apreensões diferenciadas
e, quando analisadas, podem oferecer indicadores surpreendentes
de discernimentos. Em vista disso, a principal pergunta de pesquisa
relaciona-se com o aprender em situações diferentes: o que leva um
indivíduo a aprender em situações diversas, seja em sala de aula
ou assistindo a um espetáculo teatral? Como questões tributárias a
essa, o que é implicado como motivo para não aprender? O que pode
ser feito para incrementar a aprendizagem observando experiências
reais de êxito de aprendizagem?

A emoção motiva

A longa experiência docente dos autores nos seus respectivos


campos, na educação básica e no ensino superior, permite o

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estabelecimento de algumas premissas básicas. A primeira delas
corrobora o pressuposto de Assube (2000), apontado acima, no qual
a vontade e a disposição do estudante em aprender são os pontos
de partida para a efetiva e significativa aprendizagem. Quando se
observa o “público” de uma aula, pode-se notar graus diferen-
ciados de interesse, desde aqueles que demonstram entusiasmo e
atenção aos que se envolvem em um marasmo torturante. Portanto,
a vontade é algo implícito na motivação. O que resgata a ideia de
Descarte, para o qual, segundo Reeve (2006, p. 15),

A principal força motivacional era a vontade. Descartes pen-


sava que, se houvesse condições de entender a vontade,
seria possível compreender a motivação. Segundo ele, a von-
tade inicia e direciona a ação; cabe a ela decidir se e quando
agir. Já as necessidades corporais, as paixões, os prazeres
e as dores criam impulsos à ação, mas esses impulsos só
excitam a vontade. A vontade é uma faculdade (ou poder)
que a mente, agindo no interesse da virtude e da salvação
e exercendo seu poder de escolha, tem para controlar os
apetites corporais e as paixões. Ao atribuir os poderes exclu-
sivos da motivação à vontade, Descartes proporcionou à
motivação sua primeira grande teoria.

Portanto, nessa visão cartesiana, excitar a vontade não é


suficiente para o estabelecimento da motivação, o seu poder
de escolha permite o controle dos apetites, das paixões, e eleva
o espírito para o bom caminho que deve ser o real motivador
para o homem.
Pesquisas tentam identificar a relação entre emoção e apren-
dizagem (MAHONEY; ALMEIDA, 2005; TASSONI; LEITE, 2011),
emoção e memória (PERGHER et al., 2006), mas, afinal, o que é a
emoção? Segundo Reeve (2006, p. 191), definir a emoção é mais
complicado do que definir a “soma de suas partes”. A emoção
é o constructo psicológico que envolve e coordena quatro com-
ponentes, a saber: sentimentos, excitação corporal, sentido de

A percepção para o teatro como o desejável para a sala de aula 17

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propósito e componente social-expressivo. Ao definir cada um
desses componentes, Reeve (2006) aponta que os sentimentos
compreendem experiências subjetivas, consciência fenomenoló-
gica e cognição; quanto à excitação corporal, relaciona-se à ati-
vação fisiológica, preparação do corpo para ação e respostas
motoras; em relação ao sentido de propósito, há o envolvimento
de estado motivacional direcionado para uma meta e aspectos
funcionais; por último, o componente social-expressivo dirige-se
à comunicação social, expressão facial e vocal. Portanto, ainda
segundo Reeve (2006, p.  191), “a emoção é aquilo que organiza
os componentes sentimento, ativação, propósito e expressão em
uma reação coerente a um evento provocador”.
Portanto, diante de um perigo, por exemplo, o sujeito se sente
ameaçado e se apavora, sendo esse aspecto o sentimento. Como
resposta fisiológica, o coração dispara e o estômago “gela”, mani-
festando uma excitação corporal que imediatamente se associa
ao desejo de proteção, ou seja, a um aspecto propositivo e, diante
desse exemplo, o componente social-expressivo reflete na face
lívida, boca repuxada, olhos tensos.
Mas outros exemplos envolvendo situações de um espetáculo
teatral ou de cinema e/ou sala de aula podem ser dados. Quase
todos manifestam reações fisiológicas como o coração disparar
diante de cenas de terror em um filme ou espetáculo. Quantos
já não levaram as mãos aos olhos para não testemunhar uma
cena? Quantos já não marejaram os olhos diante de uma história
triste que um professor contou sobre sua vida? Presumivelmente,
sobre essas condições, tanto se memoriza mais como se aprende
mais. É  comum as pessoas saberem relatar com detalhes o que
estavam fazendo em situações marcantes, ainda que tenha se pas-
sado muito tempo, como o ataque às Torres Gêmeas (World Trade
Center), em Nova York, nos Estados Unidos, em 11 de setembro de
2001. Provavelmente isso ocorra em função da emoção envolvida
que funciona como motivacional para a retenção, memorização e,
até mesmo, aprendizagem.

18 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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O olhar para o espetáculo teatral

Associado aos componentes ditos acima: emoção, aprendizagem,


motivação, façamos uma breve análise dos “olhares” envolvidos em
um espetáculo teatral e em uma aula na escola.
Ir ao teatro não é algo imposto, que se vai normalmente como uma
obrigação. Associado ao lazer, não há obrigatoriedades relacionadas
com o espetáculo, e havendo o desagrado com ele, não há punição
alguma em se levantar e sair da plateia. Portanto, um elemento dis-
tintivo que pode indicar dificuldades na aprendizagem está na liber-
dade. Pode ser que a imposição ou obrigatoriedade na participação
de um evento acione um gatilho para o bloqueio ou para a redução
da atenção. Possivelmente isso ocorra no ambiente da sala da aula.
A tentativa de ensinar em sala de aula parece tolher a liberdade.
Os estudantes aportam em cursos ditados por currículos, ementas,
programas muitas vezes inflexíveis, livros didáticos, planos de
ensino que se pautam por referências bibliográficas extensas, o que
exige a passividade e a obediência forçada. Paulo Freire, em 1967,
ano do lançamento do seu livro Educação como prática de liberdade,
já apontava para o fato. Apesar de mais de cinco décadas terem se
passado, a obra possui o “frescor” dos nossos dias:

Ditamos ideias. Não trocamos ideias. Discursamos aulas.


Não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre
o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe uma
ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe pro-
piciamos meios para o pensar autêntico, porque recebendo
as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as
incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de
algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de
procura. Exige reinvenção. (FREIRE, 1967, p. 97)

O direito a decidir, que só a liberdade confere, é condição moti-


vadora para o despertar da vontade de aprender. Mas a escola está

A percepção para o teatro como o desejável para a sala de aula 19

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atrelada a um sistema de cobrança e classificação. Cobrar e classificar
são ações que integram a alma da temida avaliação. Para alguns, ins-
trumento de “tortura” pelo qual a educação se efetiva. Em nosso sis-
tema educacional, não se pode verificar a aprendizagem sem passar
pela avaliação. Ainda que alguns tentem aveludar esses processos.
De posse desse entendimento, é possível verificar outros sistemas
de aprendizagens nos quais a avaliação ocorre de outras maneiras,
sobretudo para buscar soluções. Pensemos na prática orgânica de um
artesão que está ensinando seu ofício a um aprendiz. Se não levarmos
em consideração, aqui, o conceito de “aprendizagem compulsória” –
solução encontrada no século  XIX para atender aos órfãos e desva-
lidos que consistia em ensinar, em internatos, ofícios às crianças e aos
jovens nessas condições, que “eram postos a trabalhar como artífices
que, após alguns anos, ficavam livres para escolher onde, como e para
quem trabalhar” (SANTOS, 2003, p. 207) –, há uma motivação intrín-
seca do aprendiz em aprender, motivado por situações diversas, desde
a possibilidade de a aprendizagem garantir sua subsistência ao prazer
que se tem de construir algo do zero, observando ações sequenciais
garantidas pela observação de um mestre que trabalha. A relação entre
mestre e aprendiz é mediada pela liberdade e pela vontade. O que disso
seria importante emular na aprendizagem escolar?
Retornemos ao teatro como um sistema onde também se aprende
sem as amarras tolhedoras de liberdade. O espectador de teatro está
livre para suas escolhas e, ainda que passivo, como plateia, o que o
assemelha ao aluno na sala de aula, ele é capaz de, após o espetá-
culo, narrá-lo com detalhes de quem aprendeu algo. A sala de aula
representa para grande número de estudantes um ambiente compul-
sório, mediado pela pressão da frequência e pela exigência de certo
nível de pensamento, raciocínio, estes últimos, por sua vez, pode ser
que não sejam o lugar confortável da ação natural do cérebro. Sobre
isso, Willingham (2011, p. 15) esclarece que,

Ao contrário do que se acredita, o cérebro não é projetado


para pensar, ele foi projetado para evitar que você tenha

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que fazer isso. O cérebro, na realidade, não é muito bom em
pensar – o processo é demorado e incerto. Ainda assim, as
pessoas gostam quando o trabalho mental é bem-sucedido.
Elas gostam de resolver problemas, mas não de trabalhar em
problemas sem solução. Se as tarefas escolares sempre são
difíceis demais para um aluno, não deve surpreender que ele
não goste da escola.

Nesse sentido, Willingham (2011, p.  15) parte da premissa de


que “as pessoas são naturalmente curiosas, mas não são natural-
mente boas pensadoras. A menos que as condições cognitivas sejam
favoráveis, pensar será evitado”. Talvez a não necessidade de ter
que obrigatoriamente aprender algo que será cobrado em avaliação
leve as pessoas a reterem mais informações de uma peça de teatro
ou de um filme. Possivelmente, observando esses elementos que
o olhar devotado a um espetáculo teatral demonstra – liberdade,
relaxamento do pensar, emoção –, estruturar métodos de ensino
que não enfatizem a cobrança e a obrigatoriedade de uma avaliação,
por exemplo, seja mais eficiente.
O ambiente em que as pessoas se transformam em especta-
dores para um evento artístico, seja compondo uma plateia de
cinema ou de teatro, por não envolver cobranças, é mais aberto
para a aprendizagem por não exigir a faculdade do pensar con-
dicionada a avaliações. Casos esses elementos (cobrança e ava-
liação) fossem condicionantes para se participar como plateia
de um espetáculo teatral, teríamos o mesmo retorno em aquisi-
ções do público? Presumivelmente, pelos argumentos anteriores,
a resposta é não. Primeiro porque, ao condicionar um espetáculo
a compromissos que emulam o sistema educacional, se está no
campo da obrigação, e não da liberdade. Segundo, ao se exigir
isso, a mente, nos argumentos trazidos por Willingham (2011),
adentra no compromisso do “pensar”, algo que aumenta o gasto
de energia, pela demora em fazê-lo e pela incerteza que o envolve,
e, assim, gera instabilidade.

A percepção para o teatro como o desejável para a sala de aula 21

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Disso, infere-se outro elemento a ser analisado: a instabilidade
emocional envolvida na aprendizagem compulsória no sentido de
obrigar alguém a aprender algo a ser cobrado em uma avaliação
segundo o modelo da educação formal vigente. A instabilidade emo-
cional não parece ser boa companhia para a motivação. Ao gerar
tensões e desconforto, evita-se a aprendizagem.

Quando imaginamos uma pessoa experimentando um estado


de motivação, provavelmente pensamos que a motivação se
relaciona com o fato de o indivíduo estar realizando um grande
esforço. Porém, uma outra dimensão fundamental relacionada
à motivação e à emoção é a aproximação versus a evitação.
Boa parte da atividade cerebral está organizada em torno da
produção de uma disposição manifestada por uma mensagem
excitatória do tipo ‘Sim, quero isso’, ou por uma mensagem ini-
bidora do tipo ‘Não, não quero isso’. (REEVE, 2006, p. 32)

Como o que envolve a estabilidade emocional pode alterar os


estados fisiológicos do indivíduo, recorremos nesse ponto ao cons-
truto da autoeficácia, de Albert Bandura.1 A autoeficácia pode
ser definida como a avaliação individual da eficiência pessoal.
(BANDURA, 1986, 1993; EVANS, 1989) O conceito foi construído ao
longo dos anos de 1977 a 1997 por Bandura, e hoje pode ser enun-
ciado como referindo-se às crenças de alguém em sua capacidade
de organizar e executar cursos de ação requeridos para produzir
certas realizações. (AZZI; POLYDORO, 2006) Sua discussão e enten-
dimento se inserem na Teoria Social Cognitiva, e este conceito tem
sido muito usado para a compreensão de aspectos motivacionais em
várias áreas das atividades humanas, como nos esportes, trabalho,
saúde e na educação. Numerosos trabalhos sobre o tema têm sido

1 Albert Bandura, psicólogo canadense, professor de psicologia social da Universidade de


Stanford, fez contribuições consideráveis no campo da psicologia social cognitiva, psico-
terapia e pedagogia.

22 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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produzidos e publicados internacionalmente, sendo sua produção
nacional mais tímida. (AZZI; POLYDORO, 2006) Essa utilização tem
ganhado realce cada vez mais intenso e se mostrado um agente
que pode contribuir no aspecto motivacional para entendimento do
comportamento humano e sua capacidade de realizações.
Bandura, Azzi e Polydoro (2008) identificam fontes geradoras
de autoeficácia, a principal é a experiência real de êxito; seguida
da aprendizagem vicária, ou seja, a possibilidade de aprender com
alguém semelhante em relações horizontais; não muito eficiente é
a persuasão verbal, em que certamente reside a atuação do pro-
fessor; e, por último, como fator inibidor ou predisponente estão
os estados fisiológicos, situações que vão afetar o desempenho na
aprendizagem e que se centram, muitas vezes, nos desconfortos
físicos e fisiológicos que podem afetar o desempenho, certamente
residindo nesses estados, intervenientes para aprendizagem.
A experiência real de êxito mencionada se liga ao prazer que
se sente na resolução de problemas. Segundo Willingham (2011,
p. 21), “trabalhar em um problema que não oferece a sensação de
que se está progredindo não é prazeroso – na realidade, é frustrante.
Igualmente não há grande satisfação em simplesmente saber a res-
posta à questão”. Vivencia-se corriqueiramente isso em sala de
aula. Os estudantes sem motivação não aprendem como deveriam,
por sua vez, o professor não auxilia de modo a proporcionar situação
nas quais os estudantes experimentem êxito, e, dessa maneira,
vai se criando um ciclo vicioso em que a motivação e o prazer nunca
se conectam à possibilidade de aprendizagem.
A escola deve se inspirar nos elementos que o teatro pode ofe-
recer nesse campo das percepções. Como indicam Oliveira e Maia
(2018, p. 47-48),

Observando um espetáculo teatral bem estruturado, onde


todos os elementos cênicos, da dramaturgia em si, ceno-
grafia, iluminação, ambientação, sonorização, foram elabo-
rados para surpreender e prender a atenção do expectador,

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é de se supor que esse requinte da motivação para a atenção
também poderia fazer parte dos elementos necessários à
formação inicial de professores. O trabalho cênico, a prepa-
ração do corpo, da voz, dos recursos de cena e sua utilização,
podem contribuir de modo substancial na formação inicial
de professores. Afinal, o trabalho docente em sala de aula
possui certos atributos da atuação cênica. A aula como um
‘espetáculo’ que motive de tal modo seu público que traga
como efeito colateral a aprendizagem de conteúdos.

Possivelmente, a percepção dos estudantes do que vem a ser uma


boa aula, em certa medida se conecta à ideia e à experiência exitosa
de aprendizagem de algum conteúdo. Nesse sentido, há uma relação
próxima entre o desempenho do professor – encaminhamentos didá-
ticos e relacionais, comportamento – os sentimentos dos alunos e a
aprendizagem, como indicado por Carvalho (2007). Como mostrado
acima, a experiência real de êxito na concepção de Bandura, Azzi e
Polydoro (2008) é a fonte geradora de autoeficácia mais eficiente.
Em resumo, pode-se dizer que aprender é ter controle e certezas nas
aquisições de um conteúdo e, em função disso, provar satisfação,
o contrário pode levar ao desamparo. Straub (2014, p. 121), citando
Seligman (1975), demonstra que, “quando experimentam resultados
sobre os quais não têm controle, as pessoas perdem a motivação para
reagir, apresentam comprometimento da aprendizagem e sentem
estresse, ansiedade e depressão”.

Considerações finais: o teatro nos ensina no mito de


Dioniso

Talvez o deus grego Dioniso e os cultos rendidos a ele possam dar


pistas sobre o olhar para o teatro de modo diferenciado quando se
compara com o olhar a escola. Segundo a mitologia grega, diferente
dos outros deuses do Olimpo, Dioniso não tinha templo de culto,

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o  deus vagava entre as pessoas que o celebravam nos bosques.
Nas  dionisíacas, festas devotadas a Dioniso, seus adoradores se
fundiam com o deus tornando-se uma única entidade. Como Dioniso
era considerado o deus do vinho, compreendia-se que a bebida unia
intensamente seus adoradores ao próprio deus. Mas o que o também
adorado deus do vinho e do teatro tem a nos ensinar por seus mitos?
Mais uma vez, evidenciamos a liberdade como a principal perspec-
tiva para a motivação. Os cultos que se faziam em templos especí-
ficos devotados àqueles deuses não eram tão concorridos, variados
e com uma maior frequência como os cultos a Dioniso. Como nos
aponta Malhadas (2003, p. 81),

As representações teatrais em Atenas, na época clássica,


estavam inseridas em festas dionisíacas, como um dos
cultos que compunham essas celebrações em honra de
Dioniso. Superiores em brilho e organização às celebrações
dionisíacas de todo o mundo helênico, celebravam-se em
Atenas, por ano, cinco festas de culto a Dioniso: as Lenéias
(em  janeiro-fevereiro), as Antestérias (em fevereiro e
março), as  Oscofórias (na segunda quinzena de outubro),
as Dionisíacas rurais (em dezembro-janeiro) e as Dioníacas
urbanas (em março-abril). Dessas festas as mais importantes
eram as Antestérias, as Lenéias e as Dionisíacas urbanas,
sendo que apenas nas duas últimas havia, entre suas ceri-
mônias, representações teatrais sob forma de concurso.

Certamente o inebrio associado à algazarra e às pândegas


acompanhadas das encenações teatrais traziam a liberdade confe-
rida por um deus querido em suas celebrações. Olhar para esses
tempos remotos é conectar-se com o lazer como hábito cultural,
e os elementos que aí estão postos dão as pistas necessárias às res-
postas aos questionamentos feitos no início do capítulo. A emoção
envolvida frente à liberdade motiva as pessoas no desejo de par-
ticipar, de aprender, de se consubstanciar com o objeto, e esses
princípios, intuitivamente, estão presentes na ação teatral, seja por

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seus atores, seja por seus espectadores. O espectar do espetáculo
alcança os sentidos da visão e da audição. A luz, o som, o arrepio
se tornam orgânicos, fundindo todos no espetáculo, como se a pre-
sença de Dioniso levasse a isso.
Mas o que temos na escola? Os elementos ditados, sem esco-
lhas, sob o signo da autoridade, da regra, do controle e da impo-
sição. O que fazer? A pesquisa é a solução para a criação de
métodos que transformem os estudantes em espectadores e o
professor e seu objeto no próprio espetáculo. Pesquisar esses ele-
mentos do espectar no teatro, conjecturar com uma abordagem
fenomenológica, compreender todos os elementos envolvidos
nessa capacidade que temos de aprender livremente, sem as
amarras das cobranças e dos olhares fechados direcionados a
objetos determinado por um outro, são indicações que o “olhar”
sobre o teatro nos faz.

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Ciências da Educação) – Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação,
Universidade de Lisboa, Lisboa, 2007. Disponível em: http://hdl.handle.
net/10451/818. Acesso em: 1 nov. 2019.

26 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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A percepção para o teatro como o desejável para a sala de aula 27

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Capítulo 2

ARTE, COGNIÇÃO E CRÍTICA:


OBJETIVISMO ESTÉTICO EM CONTEXTOS
DE MERCADO E CYBER MEDIA

Geraldo Rui Almeida Cunha


Maria Inês Corrêa Marques

Introdução

O juízo estético exemplifica o gosto (Geschmack), dizem Hume e Kant.


O gosto consiste numa faculdade mental ou no uso dessas faculdades
na análise das respostas que determinado objeto ou expressão artística
provoca sobre o sentimento de alguém, como a admissão, sincera ou
insincera, de uma emoção. A isso se denomina o subjetivismo estético.
Uma sensação advinda de um objeto que, por suas características e
contextos, imprime alguma emoção ou sentimento de gozo (lato sensu,
eis que a aversão se inclui na categoria) em alguém.
Um hedonismo qualitativo (um construto de Stuart Mill), segundo
o qual, tanto maior a duração e a intensidade da sensação experi-
mentada pelo observador (de obra de arte), mais felicidade há de
ser gerada por essa ação.
Nem regras, nem princípios regem ou desempenham nesse juízo
qualquer papel, eis que as leis estéticas não podem conectar as
qualidades estéticas de uma expressão artística com suas proprie-
dades sensíveis, não estéticas. (GARDNER, 2010)

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As estéticas do classicismo e do racionalismo outorgavam aos
objetos, paradigmas normativos intrínsecos. A isto se chamou
objetivismo estético, a determinar formas e proporções ideais,
como elementos necessários do sentir (consubstanciados em pro-
priedades formais do objeto) – a dogmática ou canônica de um
fazer artístico acadêmico e normalizado.
Outra forma de objetivismo tributava uma condição de paradigma
alternativo ou específico do belo ao sui generis (naturalismo ético)
ou à irredutibilidade a propriedades formais (intuicionismo ético).
O naturalismo ético ou naturalismo definista cognitivista se
assenta em três pressupostos metaéticos, a saber: sentenças
éticas expressam proposições; algumas dessas proposições são
verdadeiras; essas proposições são verdadeiras tão somente por
características objetivas do mundo, independentemente do que
sobre eles se possa opinar. O que não é caráter objetivo do mundo
é sui generis.
O intuicionismo ético propõe como ontologia que valores éticos
(bem, mal, neutro) nascem de intuições – conhecimentos instan-
tâneos, não racionais e empíricos, ou noéticos, estes últimos,
provenientes de uma iluminação abstrata própria ou de algum ser
messiânico/epifânico.
Os paradigmas, sob regência dessas ontologias, atracavam uma
ancoragem em pressupostos decorativistas ou utilitaristas: cumpriam
função político-religiosa; seu exercício foi parte de atividade tipica-
mente econômica; e seu conjunto, corporativo ou industrial, em escala
e mecânico, replicável e submisso a dogma ou cânon.
Aquilo que se replica com facilidade e em escala é indistinto,
e corresponde a produto de qualidade e características uniformes,
indiferenciados quanto à origem ou quanto a quem os produziu, estando
sujeitos a precificação uniforme determinada por oferta e procura.
Este capítulo identifica, demonstra e critica a construção de
um novo objetivismo ancorado em leis de mercado e escala de
Cyber Media, que torna indistinta a arte como produto e a reduz a
commodity normalizada por regras e juízos econômicos.

30 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Objetiva-se sugerir um caminho à pesquisa em arte com olhares
polilógicos e metaéticos. Como decorrência de tal abordagem,
faz-se análise cognitiva dos limites objetiváveis de produto, obra ou
objeto artístico (arte, stricto sensu) e mercadoria.
A ideia em si comporta os seguintes aforismos de partida: o que
não é mercadoria e possui qualidades estéticas, é arte; o que não é arte
e possui qualidades estéticas, é mercadoria; arte é, pois, tudo aquilo
que não é mercadoria e possui qualidades estéticas.
Qualidades estéticas são um atributo decorrente de alguma
cultura – derivada, original, contemporânea ou ancestral capaz de
imprimir uma emoção – aqui considerada como um fenômeno bio-
cultural (ENGELEN; MARKOWITSCH et  al., 2009), compartilhado,
opinativo e, sobretudo, resposta a um evento significativo da vida:
a especialidade do artista.

Operacionalizando o conceito de mercadoria e


desambiguando o conceito de obra de arte

Se o que não é mercadoria e possui qualidades estéticas é arte,


cumpre-se inicialmente estabelecer o que é uma mercadoria,
objetivamente. Prefere-se partir de mercadoria por ser um con-
ceito econômico e sujeito a leis naturais e jurídicas que lhes
determinam a natureza e os critérios de precificação previsíveis
e quantificáveis.
Uma mercadoria é, rigorosamente: qualquer coisa material ou
imaterial (decorrente do engenho criativo humano) que se compra
e se vende (SAMUELSON; NORDHAUS, 1993); é aquilo que se com-
prou e que se expõe à venda; a mercadoria é algo necessariamente
substituível por outra mercadoria de igual valor.
Arte pode ser vendida ou negociada, como qualquer outra merca-
doria. O que caracteriza a arte, contudo, é a existência de um subja-
cente estado psicológico que nenhuma mercadoria tem. Não se nega

Arte, cognição e crítica 31

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a emoção ou o sentimento que as simples coisas podem ter. Mas só os
têm pela relação de pressuposição recíproca (solidariedade) estabele-
cida na seara das grandezas de um determinado plano de expressão
(o significante) e de conteúdo (o significado), no singular momento de
um ato específico de linguagem. (GREIMAS; COURTÉS, 2008)
O objeto artístico tem única singularidade: um pré-requisito
necessariamente subjetivo que torna único o objeto; eis que a
singularidade do objeto artístico é a sua intrínseca singularidade.
Dito de outro modo, a única singularidade do objeto artístico é ser
igual a si mesmo; insubstituível em sua própria existência.
Nascido por um ato deliberado (livre e incondicional) de um
artífice, sujeitado a razões insondáveis (porquanto subjetivas)
e particularíssimas em originalidade, singularidade. A legendária
cinzelada no pé do Moisés, de Michelangelo Buonarroti, é exemplo
de um estado emocional catártico e extasiado decorrente do des-
frute artístico de um artista que constata que construiu na matéria-
-prima (mercadoria) uma singularidade: fez de um objeto indistinto
uma expressão do seu próprio pensamento, a concreção satisfatória
de sua própria emoção. “Parla!”.
Além de tal coesão entre desejo, pensamento e sua objetivação,
o artista ainda compartilha com o observador da obra algum des-
lumbre ou deleite estético/gozo lato sensu.
A mercadoria em sua objetividade não decorre de nenhum ato
livre, senão daqueles estritamente econômicos, legais, positivados
ou não, e não necessariamente lícitos. A mercadoria é uma cons-
trução jurídica e econômica. A arte é um evento cultural, sujeitado a
normas técnicas, mas nunca por elas contingenciado.
A mercadoria, contudo, até pode produzir uma emoção quando
significada. Isto é, quando a inexpressiva mercadoria recebe,
por significação, o caráter de signo-indício ou signo-sinal. Vale dizer,
quando o objeto permite um raciocínio por inferência (signo-indício)
ou convenção (signo-sinal).
Já o momento psicológico da contemplação artística caracteriza-
-se por uma relação do objeto com o observador, mediada por uma

32 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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impressão sensorial – aquela que o artista pretende – reproduzida na
obra/objeto de arte.
Propõe-se, aqui, uma desambiguação entre a mercadoria sig-
nificada e obra de arte: considera-se aquela, o objeto usado como
suporte de inferências ou convenções, e a obra de arte, como a
representação signo-icônica de alguma emoção que lhe é intrínseca
– a representação objetal de uma sensação, impressão ou emoção
compartilhada.
Para ser sinal, é necessário que o objeto tenha sido produzido
para servir de índice, ele é não fortuito, decorre de uma intenção
deliberada. O signo pode ser explícito, convencional ou voluntário.
(DUBOIS et al., 2006) No signo indicial existe uma relação de conti-
guidade (a cinza diz-me da fogueira que se extinguiu); no signo sinal
há uma relação convencional (o Jolly Roger: aquele crânio sobre dois
fêmures, dos navios piratas e dos agrotóxicos e venenos, adverte-
-nos do risco de morte); já o ícone representa muitos sentimentos
advindos da impressão sensorial de um artista, desde uma figurati-
vização do objeto até um abstrato ou absurdo, todos livres, arbitrá-
rios e únicos.
A mercadoria é a utilização casuística, histórica, sociocultural,
intencional e não artística (a despeito de alguma eventual –
não necessária – interferência artística em forma, mas não em con-
teúdo) de um objeto.
O objeto de arte, por sua vez, não é, em si, útil. Pelo contrário, o
seu uso funcional é excepcional e, por vezes, deturpador do sen-
tido proposto pelo artista (a suástica, v.g., é símbolo ideológico,
somente a partir da terceira década dos novecentos; antes, ícone
multimilenar de bem-estar e boa sorte).

Arte, cognição e crítica 33

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Definindo mercado e seus contextos

A atividade de troca de mercadorias é o comércio (commutatio mer-


cium), cujo ambiente de desenvolvimento é o mercado. O mercado
abarca uma grande extensão das diversas atividades de comércio;
o de arte, inclusive.
Observe-se que o comércio de arte segue lógicas bastante par-
ticulares, especialmente em estabelecimentos de valores. A dificul-
dade de como saber calcular o valor de mercado de uma obra de arte
encontra-se em um simples fato: não se sabe de onde vem esse valor!
Pode-se aceitar que arte tenha valor, mas não se pode encontrar
um terreno comum para explicar por que uma obra de arte tem mais
valor do que outra. (GRAW, 2017) Fato é que mercado de obra de
arte não é o mesmo ambiente em que circulam commodities.
As normas de mercado de commodities são reguladas por con-
trole positivo (legal) e valoração objetiva decorrente de oferta
e demanda, previsíveis, sob pena de crime econômico sujeito à
repressão do Estado.
Demanda tem um significado específico de variedade de preços
e montante de um bem ou serviço que indivíduos estão dispostos
e aptos a adquirir num dado mercado, num dado momento e sob
determinado regime de preços. Importante notar que demanda não
leva em consideração aqueles que não têm como ou não estão dis-
postos a pagar pelo bem ou serviço. (HARRISON, 2011)
Daí que se estabelecem escopos e ambientes em sede de
mercados para mercadorias (commodity) e outro tipo de mercado
com preços, interesses e cotações diferenciados.
Todos se interessam fundamentalmente por liquidez (grosso
modo, a rapidez com que se pode transformar um dado título ou
objeto em dinheiro), risco e rentabilidade (retorno), elementos estes
que regem os investimentos em mercados de mercadorias.
Em mercados de arte, os critérios tendem a reproduzir tendên-
cias, cenários econômicos, especulações e sentidos contraditórios

34 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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por impossibilidade de composição fora de um in casu específico
(um caso concreto).
A liquidez do objeto/obra de arte é, em geral, baixa; o risco é alto
e a rentabilidade, aleatória. Um objeto de arte é um investimento
para poucos investidores, por suas características econômicas.

A economia da arte

Sublinhe-se, neste ponto, que apesar da radical diferença entre


mercadoria e obra de arte, os seus mercados são permeáveis em
uma similaridade até mesmo conceitual, de Economia Criativa,
com cotação de obras de arte em mercados de commodities.
Porém, a questão de fundo deste artigo persiste sem res-
posta: como definir o valor de uma obra de arte? Para tanto,
Findlay (2014) socorre-se de entidades míticas, presente nas
iconografias de muitos momentos, escolas e artistas visuais:
as três Graças – Thalia, Euphrosyne e a mais jovem, Aglaæ
(pronuncia-se Aglaé). Todas filhas de Zeus. Delas também nos
valeremos neste capítulo.
Thalia era a deidade da fertilidade e da abundância, represen-
tava o comércio. Euphrosyne era a deusa da alegria, representando a
sociedade. E Aglaæ era a deusa da beleza, a qual, estando nos olhos
de quem vê, representa o essencial (ou intrínseco) valor da arte.
A obra de arte possui esses três componentes para Findlay (2014).
Toda e qualquer obra de arte tem, potencialmente, um valor
comercial, um valor social e um valor essencial. Contudo, nenhum
desses valores é constante; todos estão se incrementando ou
diminuindo pela flutuação dos costumes e gostos de diferentes
tempos e culturas.
Há dois tipos de segmentos de mercado distintos, embora
estejam inter-relacionados e, por vezes, sobrepostos: o segmento
primário para um trabalho novo do artista e o segmento secundário

Arte, cognição e crítica 35

Pesquisa.indb 35 30/11/2022 16:45:56


para obras de arte que são de segunda mão (ou terceira ou vigé-
sima mão).
Em ambos os segmentos estão envolvidos valores sujeitos a
contextos comerciais (de oferta e demanda, especulação, ciclos
econômicos, escala do produto, durabilidade etc.). Portanto, o valor
comercial pode favorecer ou desfavorecer o preço de uma obra de
arte sob diversos aspectos e contextos. Muitos desses aspectos são
típicos de mercado comercial de bens e serviços – todos, de natu-
reza econômica.
Contudo, conforme já exposto, há interligado e sobreposto a
esse valor, e a ele interdependente, um valor social, de matiz his-
tórico e cultural que reflete aquele elemento abstrato, manipulável
(ou, pelo menos, influenciável), mercadológico (no sentido de ele-
mento componente do marketing e do market share). Moralmente
construído em razão de relevância histórica, sentimento coletivo,
relevância social ou nacional etc.
Um dos pontos elementares do valor social de um objeto de arte
é a sua relevância e repercussão, positiva ou negativa, na sociedade,
nos costumes, nos comportamentos comunitários, nas preferências e
gostos compartilhados por moda ou mores (o consenso tácito do povo
após longa e repetida prática costumeira). Este é um elemento do
imponderável preço (valor comercial) de uma obra de arte. A fixação
de valor social se infirma em dimensões histórica, cultural, local ou
global, que recobrem de relevância a obra de arte ou a revelam indis-
tinta e banal, tal que commodity significada.
A beleza não está condicionada a gosto, pois este é um valor
social e mutável no tempo, no espaço e nas classes. A beleza é valor
essencial, intrínseco da obra de arte e reconhecido socialmente
pelo gozo lato sensu, compartilhado pelo observador com o artista
que produziu a obra. Aqui, tem-se o grande problema do preço.
Beleza não tem preço, é valor puro e simples (em si).
Considere-se a existência de alguma uniformidade contin-
gente da sensibilidade humana. Não se trata de validade uni-
versal, mas de sensação estética compartilhada. Esse valor

36 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 36 30/11/2022 16:45:56


indefinido não deixa de ser o ponto de partida de uma valoração
social, bem como de um elemento compositor do valor comercial
de qualquer obra de arte. Daí, a impossibilidade de se definir o
porquê de uma obra de arte valer mais que outra. Existem nos
objetos de arte elementos multidimensionais e polilógicos –
por reportar vozes (logos) e reflexões (logos) de campos diversos
integrados, convergentes.

A massificação e os novos critérios estéticos objetivos

A comunicação contemporânea apresenta uma configuração sis-


têmica que, de certa forma, tomou critérios objetivos de acessos e
preferências em ambiente de Cyber Media (o meio de comunicação
através da internet) para qualificar, classificar e precificar merca-
dorias de toda natureza, inclusive objetos de arte tratados como
commodities e precificados por share (a fatia de mercado contro-
lada por empresa, marca ou produto).
A configuração sistêmica ou massificada imposta pelos Cyber Media
uniformizou a obra de arte em segmento primário e a mercadoria por
critérios de números de acesso e visualizações em escala de bilhões.
O  paradigma mais acessado acaba por definir cânon estético, valor
comercial e valor social da arte. Contudo, afeta parcialmente o seg-
mento secundário, cuja precificação continua a privilegiar a dimensão
tríplice de valores da obra de arte.
Um excelente horizonte de pesquisa – sugere-se – pode ser
empreendido na área da Economia Criativa ou Arte e Economia,
com mapeamento de oscilações de mercado de obras de arte, moti-
vações e padrões de consumo. Por que se constitui um horizonte de
pesquisa específico? Pela relevância dos dados em termos de plane-
jamento de políticas públicas e fomento ao mecenato. Existe ainda o
fato de que, em contexto de mercados de qualquer natureza, as ações
são determinadas por interesses e preferências para cada situação

Arte, cognição e crítica 37

Pesquisa.indb 37 30/11/2022 16:45:56


no jogo financeiro. Em termos matemáticos, cada jogador tem uma
função de utilidade que atribui um número real (o ganho, recompensa,
pagamento ou pay-off do jogador) a cada situação do jogo.

O olhar de mercado e o horizonte de pesquisa

O mercado de arte pode ter alguma vantagem ante à massificação


e pulverização de share, porém há mais tabu de se pesquisar em
áreas transdisciplinares de Economia e Arte do que tratar a obra
de arte como uma commodity. Daí que se acumulam perdas para o
artista e o produtor cultural, pela falta de conhecimento dos cená-
rios de comércio, fisco e financiamento.
Há perdas para a própria inovação artística e criação livre, pela
necessidade ingênua de se comportar de acordo com o cânon
comercial vigente, desprezando as outras dimensões do produto da
arte e sua inovação.
Deforma-se ao conformar a œuvre d’art a critérios pura-
mente comerciais, por falta de distinção e evolução de linguagem.
Criam-se cânones e dogmas que provocam refrações, distorções
de valor e facilidades à especulação e manipulação de mercado,
sem que o artista tenha qualquer controle do terreno em que está
negociando o fruto do seu trabalho.
Tudo acompanhado do debacle de uma expressão artística livre
e, por outro lado, com forte perda de mercado em relação ao pro-
duto industrial, produzido em escala e indistinto, com pouquíssima
capacidade de sustentabilidade.
Conhecer o campo em que se negociam os interesses do artista,
do produtor, do mecenas, do banco e da banca (balcão e over-the-
-counter) é necessário para conviver com o volume de circulação de
dados, informação e cultura em Cyber Media e possibilitar de manu-
tenção e criação de novos nichos de mercado.

38 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 38 30/11/2022 16:45:56


Essa conjuntura é ainda mais essencial ao se tratar de share.
Em escalas de terabytes, por exemplo, fala-se da capacidade de arma-
zenamento de até 40 filmes de longa-metragem em alta definição.
Há um universo aberto na internet com armazenamento e circulação
de dados bem superior, em escala de petabytes. Para se ter uma leve
ideia do que se está a tratar, o volume de informações diárias proces-
sadas pelo Google é de cerca de 24 petabytes. O volume de informação
circulante na web estima-se em 30 exabytes por mês, ou 1 EB por dia
(o que equivale a um bilhão de gigabytes).
Não conhecer o custo, nem meios de inserção do objeto de arte
nesse ambiente é anacronismo inaceitável, próximo do atavismo
pautado pela burocracia das notas e títulos, amarrado e custodiado
por editais e até meios desleais de apropriação de recursos ociosos
para fomento de grupos privilegiados.

Conclusão: a via metaética e polilógica

O meio de se obter relevância e integridade dos valores artísticos


(comercial, social e estético) em mercado pautado por objetivismo
estético de consumo, oferta e demanda é conhecer o campo ao qual
se podem estender o olhar para uma “compreensão articuladora do
mundo-instante – tornando-nos potências criativas encarnadas”.
(GALEFFI, 2001, p. 61)
O conhecer propiciado por uma pesquisa transdisciplinar,
honesta e pautada em princípios metaéticos pode representar
efetiva mudança de paradigmas que definam o sentido próprio da
obra de arte e da sua imprescindibilidade na construção de um
mundo humanista.
A nova onda de obscurantismo e dissociação de valores
e civilidade demanda uma intervenção artística forte nesse
ambiente pautado pela quantidade indistinta em detrimento

Arte, cognição e crítica 39

Pesquisa.indb 39 30/11/2022 16:45:57


do artista, profissional em vias de obsolescência e indistinção
de sujeito-mercadoria.

Referências

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e MEVEL, J.-P. Dicionário de linguística. Tradução Izidoro Blikstein. 10. ed.
São Paulo: Cultrix, 2006.
ENGELEN, E.; MARKOWITSCH, H. J.; SCHEVE, C.; RÖTTGER-RÖSSLER,
B.; STEPHAN, A.; HOLODYNSKI, M.; VANDEKERCKHOVE, M. Emotions as
Bio-cultural Processes: Disciplinary Debates and an Indisciplinary Outlook.
London: Springer, 2009.
FINDLAY, M. The Value of Art: Money, Power, Beauty. New York: Prestel, 2014.
GALLEFI, D. A. O ser-sendo da filosofia: uma compreensão poemático­-
-pedagógica para o fazer-aprender filosofia. Salvador: Edufba, 2001.
GARDNER, S. Estética. In: BUNNIN, N.; TSUI-JAMES, E. P. Compêndio de
filosofia. Tradução Luiz Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2010.
GRAW, I. The Value of the Art Commodity: Twelve Theses on Human Labor,
Mimetic Desire, and Aliveness. Santiago: Universidad Católica del Chile, 2017.
GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Tradução Alceu
Dias Lima et al. São Paulo: Contexto, 2008.
HARRISON, J. L. Law and Economics in a Nutshell. 5. ed. Saint Paul, 
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HUME, D. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril,
1973. (Os Pensadores).
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método experimental de raciocínio nos assuntos morais. São Paulo:
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MILL, J. S. Utilitarismo. Tradução Pedro Galvão. Porto:
Porto Editora, 2005.
SAMUELSON, P. A.; NORDHAUS, W. D. Economia. Tradução Elsa Nobre
Fontainha e Jorge Pires Gomes. 14. ed. Lisboa: McGraw-Hill, 1993.

40 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 40 30/11/2022 16:45:57


Capítulo 3

DA TOCA DO COELHO AO SORRISO DO GATO:


REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA COMO
PESQUISA NAS ARTES CÊNICAS

George Mascarenhas

Caindo na toca do coelho

A toca do coelho seguia em linha reta como


um túnel por algum tempo e então despencava
repentinamente, tão repentinamente que Alice
não teve sequer um momento para pensar em
parar antes de se ver caindo no que parecia
ser um túnel muito profundo.

(CARROLL, 1995, p. 5)

Nos encontros, aulas e seminários de pesquisa em que tenho parti-


cipado, tanto no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal da Bahia  (UFBA) quanto em outras institui-
ções, tenho me deparado com frequência com um dilema enfren-
tado por artistas que decidem iniciar ou voltar à pesquisa e à vida
acadêmica. O “ser ou não ser” em questão se refere, normalmente,
à suposta incompatibilidade entre a vida artística e a vida acadê-
mica, entre a pesquisa artística e a pesquisa acadêmica e mesmo
entre a expressão artística e a comunicação acadêmica.

41

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A obrigatoriedade de ajustar-se a demandas da academia –
formas, linguagens, metodologias – se confunde com uma espécie
de camisa-de-força intelectual que, em muitos casos, se não
impede, dificulta enormemente o desenvolvimento das pesquisas
em artes cênicas, nos níveis de mestrado e doutorado.
Muitas vezes, o discurso, acompanhado de grande insatisfação,
revela as fricções entre a imaginação artística criadora liberta e o
cumprimento do que parecem ser rígidas normas intransponíveis.
Como pode o artista, em sua livre expressão, submeter-se às
regras da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)?
Não sendo “cientistas”, por que é necessário vincular-se, cumprir
e obedecer a modos de fazer preestabelecidos pela academia?
Por que a obra de arte em si mesma não pode ser considerada
como dissertação ou tese, já que é, de fato, um modo de conhe-
cimento corporificado? Por que os pesquisadores que optam
por trabalhos acadêmicos práticos ou com encenação artística
são também obrigados a defender, no âmbito da pós-graduação
acadêmica, uma dissertação ou tese com formatos específicos?
Como colocar em palavras as dimensões sutis do conhecimento
sensível conquistado a duras penas em árduos e prazerosos pro-
cessos criativos? Em que perspectivas metodológicas pode ser
apoiado o trabalho de um artista que deseja dialogar com as
dimensões do pensamento acadêmico?
Essas questões que surgem de modo recorrente são também
as mesmas que têm possibilitado a busca e descoberta de dife-
rentes abordagens de pesquisas em artes cênicas desenvol-
vidas por artistas-pesquisadores na pós-graduação e o desenvol-
vimento de instrumentos de avaliação, como o Qualis Artístico,
que reconhece a produção artística como produção intelectual e
acadêmica resultante dessas investigações. Instrumento regula-
mentado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes) para avaliação da produção dos programas
de Pós-Graduação em Artes, o Qualis Artístico se constitui a partir

42 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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da relação entre a pesquisa acadêmica e a produção artística.
Segundo Antonia Pereira Bezerra1 (2020, p. 259):

O que nós queremos é valorizar as ações que articulam


pesquisa acadêmica de Pós-Graduação com a criação de
objetos artísticos. Nessa perspectiva, consideramos o con-
texto da realização, a difusão e o impacto dessa produção,
bem como a coerência dessa produção com a respectiva
proposta do curso. Interessa saber se essa produção foi
analisada ou foi apoiada por instituições, por comitês ou
por comissões curatoriais. Com isso, queremos identificar
potenciais repercussões dessas produções e seu reconhe-
cimento pela área de artes.

Talvez o grande enfrentamento do pesquisador em artes, que


deseja produzir arte abarcando uma reflexão sobre seu processo
de criação, seja o receio de um aprisionamento teórico, contrário
à potência sempre transformadora e dinâmica da própria arte, ou,
como indaga Eagleton (2005, p. 110), “uma teoria da arte não é algo
como tentar fazer uma ciência do emburramento ou da carícia?”.
A prática como pesquisa é uma abordagem surgida do desejo
de artistas-pesquisadores(as) na academia de investigar o seu pro-
cesso criativo e criações resultantes a partir de uma investigação da
própria prática.
Segundo Mäkellä (2018), há cerca de três décadas, no meio aca-
dêmico, artistas-pesquisadores(as) provocaram a adoção de modos
de pesquisa da sua própria prática, possibilitando a produção de
conhecimento que não pode ser desenvolvido de nenhum outro
modo. Whitton (2007, p.  28, tradução nossa) indica que a “virada
prática, como eu chamo, reside na reivindicação do trabalho cria-
tivo considerado como um processo de pesquisa válido ou como

1 Atriz, dramaturga e professora da Escola de Teatro da UFBA, coordenadora da área de


Artes/Música da Capes (2011-2018).

Da toca do coelho ao sorriso do gato 43

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resultado de pesquisa”. No mesmo sentido, referindo-se aos pro-
jetos de pesquisa na área de Artes, Antônia Pereira Bezerra (2020,
p. 258) defende que:

Nossas pesquisas, portanto, derivam de vivências, de redes,


de conexões, de sistemas, de links. Logo, nossas pesquisas
são centradas basicamente nos processos e produtos artís-
ticos. Essa é a pesquisa em artes na academia: de um lado,
ela tem a produção, a prática, os processos e os procedi-
mentos; de outro, a análise, logo uma dimensão teórica,
uma abordagem de ensino-aprendizagem, quer no centro
prático-teórico quer no teórico-prático. Hoje, quase todos
os programas de Pós-Graduação têm linhas de pesquisa,
na área de artes visuais, na área de teatro, na área de música
ou de dança. Esses programas têm linhas de pesquisa com
teoria e prática.

A abordagem de pesquisas relacionadas com a prática é


conhecida por uma grande variedade de termos: prática como
pesquisa, pesquisa guiada pela prática, pesquisa baseada na prá-
tica, pesquisa baseada nas artes (PBA), pesquisa performativa.
Steagall e Ings (2018), citando Candy (2006), sublinham as dife-
renças de acepção entre alguns termos, como pesquisa baseada
na prática e pesquisa guiada pela prática. Whitton (2007)
também indica variações no uso dos termos, com distinções
que trazem mais problemas do que explicitação (por exemplo,
entre pesquisa prática e prática como pesquisa).
Mäkellä (2018, p. 1) defende que a “pesquisa com a inclusão
da prática criativa pode ser nomeada intercambiavelmente como
baseada na prática, guiada pela prática e pesquisa artística”.
A autora argumenta que a constituição da abordagem se volta
particularmente para os modos “como o/a pesquisador/a que
também é artista documenta e reflete sobre seu processo cria-
tivo em relação a um determinado tópico de pesquisa”. (MÄKELLÄ,
2018, p. 1, tradução nossa)

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Um salão com muitas portas

Alice abriu a porta e descobriu que ela dava


para uma pequena passagem, não maior do que
um buraco de rato. Ela ajoelhou-se e avistou,
através da passagem, o jardim mais bonito que
já tinha visto. Como ela queria sair daquele salão
escuro e andar entre aqueles canteiros de flores
brilhantes e aquelas fontes frescas…

(CARROLL, 1995, p. 8)

O surgimento da prática como pesquisa remete à resistência de


artistas-pesquisadores às normas acadêmicas que ainda hoje apa-
rece em teses e dissertações nas quais os pós-graduandos declaram
a necessidade de denunciar e lutar contra tendências e padrões para
a escrita de trabalhos acadêmicos nas artes cênicas e combater o
distanciamento entre a vida acadêmica e a experiência artística.
Em alguns casos, as afirmações se apresentam como rele-
vantes reflexões críticas sobre o pensamento acadêmico, a pro-
dução escrita sobre a arte e as possibilidades e dificuldades de
inserção do artista nos rigores da academia, propondo articulações
entre a teoria e a prática, a partir da própria experimentação artís-
tica. Nesses casos, os artistas-pesquisadores oferecem pontos
de vista que podem contribuir para o aprofundamento e avanço
das pesquisas na área. Em Ulteridades: ser e não ser uma ence-
nação-tese, por exemplo, a atriz, professora e pesquisadora Iami
Rebouças Freire2 (2015, p. 4) “explora os paradoxos inerentes ao
universo da criação cênica e da sua prática artístico-acadêmica,
nas quais aparece a temática da alteridade no teatro”. O trabalho,

2 Iami Rebouças Freire é atriz, doutora em Artes Cênicas e professora da Escola de


Teatro da UFBA.

Da toca do coelho ao sorriso do gato 45

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apresentado como tese-encenação, desenvolvido a partir da expe-
rimentação prática em improvisações, discute a problemática da
atriz, sua relação com a alteridade – ser e não ser outras persona-
gens – e explicita de modo crítico, reflexivo e criativo as fricções
entre a artista e a pesquisadora no meio acadêmico, em diálogo
com autores de diversos campos de conhecimento através das
personas/personagens Filosofeu e Babel.
Em outros casos, as críticas expressas em comunicações de pes-
quisa são acompanhadas pela adesão a metodologias ou formatos
considerados e referidos comumente como “não-acadêmicos”.
Assim, a escrita performativa, por exemplo, uma das configura-
ções de comunicação adotadas com frequência, é defendida de
modo contundente como um contraponto à escrita acadêmica.
No entanto, a escrita performativa, que tem sua origem articulada
com os enunciados performativos do filósofo da linguagem J.  L.
Austin, é um modo de escrita que foi assimilado e transformado no
meio acadêmico para dar conta de processos particulares do campo
de conhecimento das ciências sociais e das artes.
A contradição que se nota, portanto, é de que para combater o
suposto rigor da academia, artistas-pesquisadores acabam recor-
rendo a um procedimento gestado na própria academia, em virtude
do mesmo tipo de inquietação. Compreendo, assim, que são os pró-
prios artistas-pesquisadores que podem encontrar, no seu campo
de estudo, as soluções formais e metodológicas para as questões
que se apresentam nos processos de pesquisa.
No entanto, alguns artistas-pesquisadores optam por perspec-
tivas metodológicas oriundas de outras áreas de conhecimento.
Sylvie Fortin e Pierre Gosselin (2014, p. 2) observam que, enquanto
expressam seu desconforto com a necessidade de teorização da
prática nos trabalhos acadêmicos, “os alunos de pós-graduação
[em artes cênicas] ainda consideram o modelo quantitativo/positi-
vista de pesquisa dominante na sociedade ocidental, como o modelo
de pesquisa válido” e que sua adesão a esses modelos poderia con-
ferir respeitabilidade às pesquisas.

46 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Em busca de uma legitimação da pesquisa, recorre-se,
frequentemente, do ponto de vista metodológico, à adoção
de práxis e pensamentos diversos oriundos de outros campos
de conhecimento, como a filosofia, a antropologia ou as ciên-
cias sociais. Essa legitimação fora do campo possibilitaria aos
artistas-pesquisadores a aproximação ao referido rigor acadê-
mico exigido, revestindo a pesquisa artística, em contrapartida,
de etnografia, de pesquisa de campo, de pesquisa-ação etc.
O diálogo entre diferentes modos de conjugar o pensamento
enriquece, sem dúvida, as possibilidades de aprofundamento das
pesquisas em qualquer campo de conhecimento. O risco, porém,
é a substituição do diálogo profícuo entre disciplinas de campos dis-
tintos por uma anexação como sugere Sonia Rangel (2019), em que
a pesquisa é encerrada em modelos epistemológicos preexistentes,
até de outras áreas de conhecimento, ignorando as dimensões do
saber originário da própria prática artística. Em consequência disso,
há um afastamento da investigação e descoberta de metodologias
mais diretamente conectadas ou oriundas do próprio conhecimento
das artes cênicas ou da pesquisa em artes. Ora,

a prática não é meramente a aplicação de conhecimento teó-


rico para fins instrumentais (sua função tradicional na epis-
temologia positivista), mas uma forma de conhecimento em
si mesmo, um conhecimento que pode ser chamado de arte,
intuição criatividade ou habilidade, termos que denotam um
tipo de conhecimento que não deriva de uma operação cog-
nitiva anterior. (WHITTON, 2007, p. 1)

Em diversas situações, as reações expressas contra os supostos


modos fixos de fazer acadêmicos deixam de lado o fato de que o
pensamento acadêmico sobre a arte, sobre o fazer artístico, existe e
é provocado, alimentado e ampliado pela própria existência da arte
em sua dinâmica. Há, sem dúvidas, distorções, excessos, distan-
ciamentos gerados pela arrogância do próprio conhecimento, mas,

Da toca do coelho ao sorriso do gato 47

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é a manifestação artística que está no cerne das questões geradas e
discutidas no meio acadêmico.
Assim, com todas as suas contradições, discordâncias, tensões e
até incongruências, o pensamento acadêmico surge como uma
possibilidade de compreender os fenômenos artísticos que se ins-
tauram no próprio fazer artístico. Falamos, por exemplo, de um
Teatro do Absurdo, porque o crítico teatral e pesquisador acadêmico
Martin Esslin (2018) desejou investigar, agrupar, compreender obras
de dramaturgos tão distintos quanto Jean Genet, Eugène Ionesco e
Samuel Beckett, os quais considerou como precursores de uma nova
forma dramatúrgica, alterando os modelos poéticos do fazer tea-
tral de uma época, com efeitos duradouros em décadas seguintes
e em diferentes linguagens artísticas. Isso se pode dizer do teatro
pós-dramático, do drama rapsódico e do teatro performativo, todos
produtos gerados pela observação de práticas artísticas, realizadas
por pesquisadores (artistas ou não), para compreender, justificar,
definir, aprimorar conhecimentos acerca da cena teatral, em modos
de categorização ética, estética ou poética. Isso inclui artistas que,
através de escritos sobre a sua própria arte fizeram conhecer seus
percursos e propósitos e que se tornaram documentos fundamen-
tais para a prática e a reflexão artísticas, igualmente dentro e fora da
academia, como sugere Josette Féral (2015), a exemplo de Bertolt
Brecht, Jerzy Grotowski e Constantin Stanislavski.
Do mesmo modo que o pensamento acadêmico é gerado
pelo estudo dos fenômenos artísticos, sua produção tem,
frequentemente, efeitos de ressonância sobre os artistas e
sobre o fazer artístico. É assim que, por exemplo, nos releases
das agendas culturais, o termo teatro pós-dramático já aparece,
algumas vezes, como gênero teatral, ao lado dos mais comuns
drama, comédia e musical em produções de grupos teatrais não
necessariamente ambientados em contextos acadêmicos.
Isso não significa que a produção acadêmica seja necessaria-
mente absorvida ou aceita por artistas fora da academia. A ideia
do teatro do absurdo, que se tornou bastante popular tanto entre

48 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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artistas de teatro quanto pesquisadores acadêmicos, é refutada
por ninguém menos do que o próprio Samuel Beckett, cuja obra
Esperando Godot (1949) é tratada como um dos marcos deste
gênero teatral. Em entrevista a Juliet (1989), Beckett declara que a
noção de absurdo é um juízo de valor moral,

Mas os valores morais não são acessíveis. E não podemos


defini-los. Para defini-los, seria necessário pronunciar um
juízo de valor, o que é impossível. Por isso é que nunca estive
de acordo com essa noção de teatro do absurdo. Pois aí há
um juízo de valor. Não é possível sequer falar da verdade.
(JULIET, 1989, p. 66)

Em uma tese sobre arte ou processos artísticos, encontram-se


elementos que podem ser questionados e que permitem, por sua
vez, o avanço e aprofundamento de aspectos que são relevantes
para o próprio campo de conhecimento e que podem, inclusive,
ser contestadas por pesquisadores e artistas, dentro e fora do
âmbito acadêmico. Marco de Marinis adverte que “enquanto o
saber-fazer implica o conhecer, o conhecer não implica o saber-
-fazer”. (DE MARINIS, 2012, p. 40)
Mas por que a obra de arte não poderia ser a própria tese?
Por que os artistas que realizam pesquisa acadêmica a partir de
processos artísticos precisam, além da própria criação, defender
uma tese ou dissertação? A apresentação da obra de arte não seria,
nela mesma, a própria defesa? Essas são questões controversas
que alimentam discussões acaloradas.
De acordo com Antônia Pereira Bezerra (2020), não havendo
consenso na área para os mestrados e doutorados acadêmicos com
relação a pesquisas com produção exclusiva de obras artísticas,
essas discussões estão na base das implementações de Mestrados
Profissionais em Artes, cujo resultado pode ser a obra artística
acompanhada ou não de uma reflexão teórica mais sistematizada.
Para os Doutorados Profissionais, as discussões estão no início.

Da toca do coelho ao sorriso do gato 49

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Essa finalização com uma produção, com a prática apenas,
só é possível hoje no mestrado profissional, no mestrado aca-
dêmico stricto sensu e no doutorado acadêmico stricto sensu,
em que há uma abordagem prático-teórica, teórico-prática
ou só teórica. Ou seja, além da prática, é necessário haver
uma dimensão escrita, toda uma problemática científica,
descrevendo essa produção e discutindo e refletindo sobre
ela, de modo contrário à realidade de outros países anglo-
saxões ou a outros cursos de Doutorado e de Mestrado
também profissional na Alemanha. (BEZERRA, 2020, p. 258)

Pessoalmente, compreendo que os programas de pós-graduação


têm optado pela pesquisa acadêmica como um lugar de construção,
discussão, aprofundamento e análise de conhecimentos comparti-
lháveis. Barrett (2010, p. 195, tradução nossa) afirma que:

Deve-se lembrar que a função do relatório de pesquisa ou


exegese é discutir e replicar o processo da investigação prá-
tica no contexto de ideias teóricas e práticas que sejam rele-
vantes para o próprio trabalho do pesquisador, bem como
no contexto mais amplo que considera as práticas artísticas
criativas como produção de conhecimento.

Neste sentido, a obra de arte é o lugar próprio de produção de


conhecimento corporificado, sensível e poético, mas não necessa-
riamente compartilhável. Não à toa, muitos artistas optaram, com o
propósito de explicitar novos modos de criar artisticamente e rejeitar
formas passadas, pela publicação de manifestos que acompa-
nhavam seus próprios trabalhos: Victor Hugo, Maurice Maeterlinck,
August Strindberg, Luigi Pirandello e Étienne Decroux para citar
alguns. A experiência sensível da expressão artística é acompa-
nhada pelo discurso político e poético desses artistas, que preten-
diam dar voz às suas posições acerca dos modos de fazer artístico
do seu tempo com proposições para novos olhares.

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Em sua expressão, a obra de arte se dirige, em última instância,
a um sujeito e, se se propaga coletivamente, é porque toca em pontos
coletivos do tempo em cada sujeito pertencente àquele coletivo.
O conhecimento sensível da arte nasce da experiência do sujeito e,
portanto, é pessoal e intransferível, ou como sugere Bondía:

Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da


experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do
sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber
finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comu-
nidade humana particular; ou, de um modo ainda mais explí-
cito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto e
singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido
ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria
finitude. Por isso, o saber da experiência é um saber parti-
cular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a expe-
riência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas
pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento,
não fazem a mesma experiência. […] O saber da experiência
é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto
em quem encarna. (BONDÍA, 2002, p. 27)

Sabemos, todavia, que muitas obras de arte, mesmo sem mani-


festos redigidos como tal, se comportaram como manifestos artís-
ticos e foram definidoras de percursos importantes para o desen-
volvimento de poéticas. Por exemplo, a primeira montagem de
Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, pelo grupo Os comediantes,
dirigida por Ziembinski, em 1943; a encenação de O rei da vela, de
Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina, dirigida por José Celso
Martinez Corrêa, em 1963; ou os espetáculos performáticos do Dzi
Croquettes, em 1972, instalaram novos modos de pensar e fazer
teatro no Brasil que influenciaram diversas gerações.
Mas nem todas as obras de arte têm esse lugar assegurado.
Um trabalho artístico pode até ser pivô de grandes revoluções na
arte (e na sociedade) mas esta não é necessariamente a vocação

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de todas elas. Diferentemente das revoluções científicas que
acontecem pela substituição de paradigmas anteriores por novos,
as “revoluções” artísticas acontecem por acúmulo. Podem levar
um longo tempo sendo semeadas pelos contextos, culturas,
histórias e subjetividades.
Lehmann (2007), por exemplo, reconhece que procedimentos
utilizados no que chama de teatro pós-dramático remontam às van-
guardas do final do século XIX e início do XX e adverte que a dis-
tinção se dá pelo uso de uma constelação de procedimentos e não
do uso de um procedimento ou outro isoladamente, como entende
que acontecia nas peças teatrais daquele período. Embora refira-
-se a textos e espetáculos destacados, a originalidade das obras
se expressa, muito provavelmente, não como um salto quântico,
mas pelo acúmulo de experimentações com procedimentos que
vêm de longe. As revoluções chegam a conta-gotas e transbordam
em obras que se conectam com o aqui e agora, podendo gerar
escândalos estéticos, políticos e morais. Diferentemente do conhe-
cimento científico, as revoluções artísticas parecem manifestar-se
não por um novo paradigma substitutivo, mas parafraseando Etienne
Decroux, por trazer “a primavera para coisas antigas”. (DECROUX,
2003, p. 80, tradução nossa)
Nos programas acadêmicos de mestrado e doutorado em artes
cênicas, de modo geral, interessa na pesquisa acadêmica, portanto,
o desenvolvimento de pensamentos oriundos da prática artística
que ultrapassem a esfera subjetiva e possam ser compartilhados,
discutidos e aprofundados. Espera-se que esses pensamentos
possam ser revertidos em favor do próprio campo de conhecimento,
com ressonâncias inclusive sobre o fazer artístico fora da academia.
Daí a exigência de que as práticas sejam refletidas teoricamente na
maioria dos programas. Féral (2015, p. 27) afirma que:

Exceto tais casos raríssimos, teoria e prática não constituem,


na maioria das vezes, dois conjuntos que se excluem um ao
outro, mas são bem interdependentes, a teoria servindo

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amiúde de moldura à prática, de ponto de partida, ajudando
sua progressão (teoria do jogo, por exemplo). Igualmente,
não existe teoria estável que não se fundamente sobre qual-
quer observação prática.

Mas, de fato, uma coisa é viver a prática criativa na condição de


artista. Outra, é experimentar a teorização dessa mesma prática.
Algumas soluções metodológicas para esse dilema têm sido apon-
tadas através da moldura da prática como pesquisa, cujos princí-
pios, desenvolvidos no âmbito acadêmico, permitem que o artista-
-pesquisador realize sua investigação tendo como base a própria
prática artístico-criativa, podendo utilizar-se de metodologias do
processo criativo para o seu desenvolvimento e incluir, nos resul-
tados, o produto artístico criado.
Não sendo considerada um método de per si, a abordagem da
prática como pesquisa abriga diferentes possibilidades metodo-
lógicas, permitindo o diálogo inter e transdisciplinar com diversos
métodos e campos de conhecimento, enquanto mantém fortale-
cido seu eixo central na investigação artística. Sonia Rangel (2019)
defende, por exemplo, que a teoria seja formulada ou oriunda da
prática. Ao artista-pesquisador cabe compreender quais os pen-
samentos que regem sua prática e que podem ser articulados com
os pensamentos de outros pesquisadores ou clave de autores,
como ela nomeia.
Como sugere Barbara Bolt, na abordagem da prática como pes-
quisa, a mágica está no manuseio da materialidade do fazer artís-
tico. O  conhecimento novo “emerge do envolvimento com mate-
riais, métodos, ferramentas e ideias da prática”. (BOLT, 2010,
p.  31, tradução nossa) A autora discute a pesquisa desenvolvida
pelo artista-pesquisador David Hockney – um dos expoentes da
pop  art nos anos 1960 na Inglaterra – sobre o processo criativo
de pinturas de retratos feitas por Jean-Auguste Dominique Ingres,
pintor francês do século XIX. Espantado com a precisão das ima-
gens realizadas em um curto tempo de observação dos modelos,

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Hockney se pergunta como o pintor poderia tê-las pintado e começa
a supor que, provavelmente, Ingres teria se utilizado de uma camera
obscura, dispositivo ótico descrito desde a antiguidade e que contém
os princípios que levariam à criação da câmera fotográfica.
A partir dessa suposição, o pesquisador estabelece um método
de trabalho pessoal que consiste na produção e comparação dos
seus próprios desenhos, alguns feitos à mão livre e outros com a
utilização de uma câmera obscura. Ele observa que os traços resul-
tantes dos seus próprios desenhos com utilização do aparelho ótico
tinham natureza distinta daqueles obtidos à mão livre.
Com seu experimento, Hockney não demonstra de modo irrefu-
tável que Ingres tivesse efetivamente utilizado uma camera obscura
na produção dos retratos, mas apresenta um argumento visual que
contraria a crença no gênio do pintor e, por extensão, de artistas
como Rafael e Vermeer. O artista-pesquisador defende que “desde
o início do século  XV, artistas ocidentais não apenas conheciam,
mas se utilizavam da ótica para criar ‘projeções vivas’”. (BOLT, 2010,
p. 28, tradução nossa)
Segundo Bolt, com esse trabalho, o autor não desqualificou
a habilidade artística ou técnica daqueles renomados artistas,
mas “sugeriu que era o uso de instrumentos óticos que lhes per-
mitiram desenhar e pintar com uma verossimilhança tão incrível
que deixava e ainda deixa as pessoas admiradas”. (BOLT, 2010,
p. 29, tradução nossa) A autora declara que enquanto essa argu-
mentação permanece sujeita a controvérsias, esse tipo de pes-
quisa só pode ser feito por um artista, como é o caso de Hockney,
que tenha conhecimento específico e profundo dos materiais,
métodos e técnicas de pintura e desenho.
O exemplo da pesquisa de Hockney indica alguns aspectos a
serem levados em consideração na prática como pesquisa que podem
ser facilmente compreendidos nas artes cênicas. Em primeiro lugar,
essa modalidade de pesquisa só pode ser realizada com o manuseio
dos elementos que constituem a própria materialidade da linguagem
artística. No caso de Hockney, o trabalho com tintas, pincéis, telas,

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luz etc. Em segundo lugar, a argumentação se manifesta, no diálogo
entre prática e teoria, no cerne da própria linguagem artística, nesse
caso, apresentada como um argumento visual. O terceiro aspecto é,
justamente, a necessidade de conhecimento e domínio técnico do
artista-pesquisador com relação ao seu objeto de estudo.
Do mesmo modo, a pesquisa em artes cênicas que tenha
a prática como cerne da investigação, tem de levar em conta,
por exemplo, a materialidade do corpo no espaço ou as diferentes
linguagens cênico-performativas, ou elementos da visualidade etc.,
apresentando o que chamo de argumento cênico-performativo teo-
ricamente fundamentado, para discussão das indagações surgidas
no processo. Isso implica que cada projeto de pesquisa, ressaltadas
as peculiaridades de cada objeto, precisa de perspectivas metodo-
lógicas próprias que podem ser criadas originalmente pelo artista-
-pesquisador ou desenvolvidas a partir da experiência registrada de
outros artistas-pesquisadores no manuseio dos materiais que lhes
são inerentes. A defesa de investigação a partir de teorias endó-
genas, oriundas do próprio campo de conhecimento, é argumen-
tada por Fortin e Gosselin (2014), ao apresentar o pensamento de
Donald Schön acerca da formação do profissional reflexivo:

Para Schön, os artistas possuem um saber encarnado,


um saber que se encontra na totalidade de sua pessoa (com-
portamento, emoções, atitudes etc.) e que se atualiza na ação.
Em arte, a ideia é de que os artistas possuem saberes que são
operacionais, mas que estão implícitos, e é desejável que eles
sejam explicitados. Para fazer isso, o artista acumulará vestí-
gios de seu trabalho de criação da mesma forma que um etnó-
grafo documentará os usos e costumes de uma comunidade
cultural. (FORTIN; GOSSELIN, 2014, p. 10)

Nesse sentido, a artista, professora e pesquisadora Sonia Rangel


afirma, em sua modalidade de prática como pesquisa, nomeada
Abordagem artístico-compreensiva, que é a escuta do processo

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criativo, o ato de compreender, “desenhando e apagando fronteiras”,
que permite descobrir os caminhos do pensamento e as escolhas da
abordagem operacional, “as técnicas de pesquisa para dar conta do
particular objeto, das pesquisas de campos poéticos específicos”.
(RANGEL, 2019, p. 81)
Assim, por exemplo, na tese As primeiras águas – travessia
pelo ser-tão: trajeto de encenadora-brincante por uma pedagogia
mitopoética, em que a abordagem artístico-compreensiva é ado-
tada como perspectiva metodológica, a artista-pesquisadora e
professora Maria Eugenia Milet (2018)3 integra sua experiência
artístico-pedagógica com artistas, educadores e mestras de saberes
tradicionais para criação de uma “cena-experimento em trajeto”,
que se constitui como um dos objetivos do estudo. A partir da nar-
rativa dos encontros com mulheres sertanejas e artistas de teatro,
a autora desenvolve e apresenta princípios operadores do seu pro-
cesso criativo, definidos em torno da própria noção de encontro,
do brincar e das narrativas mitopoéticas. Os princípios defendidos
pela autora são claramente apresentados como fruto da sua experi-
mentação prática original na condição de encenadora e educadora,
na relação com o outro, em diálogo articulado e fundamentado de
modo polifônico com o pensamento de autores diversos dos estudos
teatrais, da literatura e da filosofia.
A aparente liberdade de atuação conferida pela prática como
pesquisa não isenta o artista-pesquisador, todavia, do percurso
básico de qualquer investigação: o levantamento de questões, a
busca de informações ou dados referentes à questão principal,
a categorização e análise dessas informações e, finalmente, a dis-
cussão teórica da questão amparada na prática com possível levan-
tamento de novas questões.
Barrett (2010) afirma que a elaboração de uma pesquisa acadê-
mica em artes depende da definição do tema ou objeto de estudos,

3 Maria Eugenia Milet é doutora em Artes Cênicas, professora da Escola de Teatro da UFBA.

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acompanhada de questões norteadoras, objetivos, metodologia,
articulação com teorias existentes etc. Em outras palavras, não se
distingue, nestes aspectos, das pesquisas realizadas em qualquer
campo de conhecimento.
A principal distinção é que o modo de percorrer o caminho não
precisa ser determinado de antemão, mas pode ser indicado pela
experiência do artista-pesquisador e pelo próprio desenvolvimento
da prática, no enfrentamento das questões surgidas na sala de
ensaio, na dinâmica que se instala no exercício do processo criativo.
E os resultados obtidos também se apresentam em sua forma prá-
tica, como ação cênico-performativa na construção do que deno-
mino de argumento cênico-performativo.
Um projeto de investigação em artes que tenha a prática como
eixo principal de referência se estabelece a partir de inquieta-
ções, indagações surgidas com a própria experiência do artista-
pesquisador. Para essas indagações, que podem ser chamadas de
questões norteadoras ou problema de pesquisa, prefiro a deno-
minação mais poeticamente aprazível de perguntas-passaporte
proposta por Sonia Rangel (2019, p. 155): “Não são perguntas
para serem respondidas. São perguntas-passaporte que me
levam a sondar os pensamentos da forma e as formas do pensa-
mento em novas obras”.
A pergunta ou perguntas-passaporte tem o papel de orientar
o artista-pesquisador em sua busca, definindo consigo o foco
da investigação (objeto e objetivos de pesquisa) e os caminhos
através dos quais a pesquisa será desenvolvida. Considerando-se,
no entanto, o papel da experiência prática, pode-se compreender
que essas questões poderão ser alteradas ou mesmo substituídas
por outras emergentes do manuseio com os materiais eleitos.
Entendo que essas questões precisam ser claramente formuladas
pelo artista-pesquisador e devem cumprir requisitos que permitam
o desenvolvimento da pesquisa.
É importante, neste sentido, que a(s) pergunta(s)-passaporte
abriguem inquietações reais e cuja discussão efetivamente não

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seja conhecida de antemão pelo artista-pesquisador, permitindo
a descoberta daquilo que não se sabe, do salto no desconhe-
cido. Muitas vezes, o escrutínio das perguntas que aparecem nos
projetos revela que, mesmo sem ainda ter iniciado a pesquisa, o
artista-pesquisador tem domínio integral do que supostamente
pretende investigar. A expressão do não saber é o motor principal
de qualquer investigação legítima; com a pesquisa, deseja-se
saber algo sobre o que ainda é desconhecido: o que ainda não sei
sobre isso que estou investigando?
Embora estabelecer as perguntas-passaporte não seja uma tarefa
muito fácil, sua definição permite circunscrever o mapa da pesquisa
e possibilitar, ao artista pesquisador, o mergulho em seu objeto e
traçar o caminho que será seguido inicialmente. Neste momento,
de definição da operacionalização da pesquisa, é possível, para o
artista-pesquisador optar por seus procedimentos usuais de criação,
utilizar-se de técnicas já propostas em outras pesquisas no campo ou
ainda tomar de empréstimo técnicas de outros campos de conheci-
mento. Fortin e Gosselin dão exemplos de pesquisas que

utilizam métodos mais ou menos familiares nas ciências


sociais. Etnografias, interpretativa, crítica ou pós-moderna,
na verdade, podem inspirar uma bricolagem metodológica
em termos de teorias, métodos, coleta de dados e estraté-
gias de análise de dados. (FORTIN; GOSSELIN, 2014, p. 12)

O equilíbrio delicado entre o empréstimo e a anexação se


estabelece na medida da conexão com a essência da prática,
guia determinante do percurso. É a escuta do processo um dos
princípios fundamentais da pesquisa que se constitui pela centra-
lidade na prática artística.
A definição das perguntas-passaporte também é fundamental
para compreender a qualidade e natureza das informações que
serão necessárias para compreender aquilo sobre o que se indaga e
como essas informações serão coletadas, observadas e analisadas.

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Nas experiências da prática como pesquisa é importante que essas
informações estejam conectadas e surjam da prática. É através do
conhecimento corporificado que se estabelecem os argumentos e
se encontram as reflexões, cuja base teórica nasce também da prá-
tica e não de uma imposição do pensamento sobre a experiência.
Assim, por exemplo, uma investigação prática que tenha como fun-
damento a improvisação cênica precisa nascer da exploração da
própria improvisação, no espaço escolhido, pela experimentação
dos princípios que constituem a(s) metodologia(s) do sistema de
improvisação eleito, do cruzamento de princípios com outras meto-
dologias ou da subversão dos princípios existentes etc.
Além disso, o mergulho no processo e na pesquisa criativa não
pode ser confundido com a pesquisa sobre as questões levantadas
relativas ao processo. Para o artista, o processo criativo se dá,
de modo geral, no mergulho absoluto das instâncias da liberdade
criativa, da imaginação, da intuição, da sensibilidade, dos cami-
nhos propostos pela potência e limites do próprio exercício artístico.
Compreendo que a teorização se estabelece, na maioria dos casos,
como uma segunda camada na pesquisa, que pode ser simultânea
ou consequente à experimentação prática. E, por isso, o pesquisador
precisa adotar práticas rigorosas e diversificadas de registros do pro-
cesso (anotações, diários de bordo, vídeos, fotografias, gravações)
que possibilitem encontrar as informações visuais, sensoriais, emo-
cionais, físicas, afetivas, psíquicas que estejam em articulação com a
indagação original. São essas as informações que, após serem anali-
sadas, definem-se no argumento cênico-performativo e que poderão
constituir a argumentação teórica.
Tendo realizado o percurso criativo e de posse dos registros, é neces-
sário organizar, agrupar, categorizar, analisar e selecionar os elementos
que emergiram da experimentação prática e que serão discutidos de
acordo com o foco do trabalho. O esforço de análise é, também, um
exercício criativo, de ordem prática. Ao agrupar, decompor, recompor
as informações registradas no processo criativo, o artista-pesquisador
pode visualizar as diferentes dimensões, princípios, procedimentos e

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novas questões surgidas na experimentação na perspectiva da elabo-
ração da discussão teórica, crítico-reflexiva. Mais uma vez, essa etapa
oferece grande liberdade na escolha dos critérios para categorização
dos dados obtidos e registrados. Segundo Barrett (2010, p.  192),
as observações sobre o processo devem abordar questões sobre o que
aconteceu, o que mudou, o que surgiu, o que foi significativo e não teria
aparecido com outros métodos de investigação, como esses achados
se articulam com ideias ou teorias de outras pessoas e quais os pro-
blemas encontrados.
A comunicação da pesquisa se constitui como a última etapa
no desenvolvimento da pesquisa, configurada com a apresentação
do resultado artístico e a defesa da dissertação ou tese acadê-
mica. Considero que o resultado artístico se constitui, efetivamente,
como argumento cênico-performativo no qual estão presentes, poeti-
camente, os elementos investigados na pesquisa. O exercício cênico
não é um apêndice, mas, visto como argumento cênico-performativo é
elemento fundamental no corpo da dissertação ou tese.
O esforço de produção da dissertação ou tese também não se
constitui uma tarefa fácil para muitos pós-graduandos, o que se
justifica, eventualmente, pela simples falta de prática de escrita
ou pelo desejo de permanecer no contexto da criação artística.
Não sendo possível eximir-se do esforço de teorização da prática
na maior parte dos programas acadêmicos de pós-graduação,
resta o desafio da escrita do relatório, em que a fundamentação
e discussão de teorias pertinentes ao trabalho, a apresentação
do processo e resultados devem ser compartilhados. Além disso,
a descrição do processo, embora seja recomendável, não é sufi-
ciente na constituição do relatório de pesquisa na pós-graduação
na maioria dos programas.
Considerar a escrita como prática criativa possibilita identificar
também as diversas possibilidades de conexão entre o processo
de criação cênica e a produção textual. Richardson (2018, p. 548)
propõe uma série de gêneros que “implantam dispositivos literários
para recriar a experiência vivida e evocar respostas emocionais”,

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as quais ele nomeia de etnografias práticas analíticas criativas (PAC).
E continua: “Qualquer crença dinossauriana de que ‘criativo’ e ‘ana-
lítico’ são modos contraditórios e incompatíveis estão no caminho
de um meteoro. Eles estão condenados à extinção”.
A problematização e discussão crítico-reflexiva estão no cerne
da produção de conhecimento na pós-graduação. Goddard (2010)
sugere que a integração da prática com a escrita do relatório possi-
bilita uma “práxis de pesquisa combinada e reflexiva” e que o rela-
tório de pesquisa “em paralelo com o trabalho criativo do projeto
pode oferecer outra arena de prática criativa”. (GODDARD, 2010,
p.  113) Em outras palavras, o artista-pesquisador tem a possibili-
dade de explorar ou descobrir configurações distintas, originais e
criativas articuladas com a sua própria prática artística, para abor-
dagem da sua investigação desde o levantamento de questões até
a escrita do relatório, ampliando espaços para o aprofundamento
simultaneamente prático e teórico no próprio campo de conheci-
mento das artes.

O sorriso do gato

Bem! Eu sempre vi um gato sem sorriso,


pensou Alice, mas um sorriso sem um gato!
É a coisa mais curiosa que eu já vi na vida!

(CARROLL, 1995, p. 94)

Os artistas-pesquisadores das artes cênicas estão constantemente


em uma encruzilhada – como Alice, na fábula de Lewis Carroll.
A escolha do caminho pode levar a qualquer lugar, dependendo de
onde se quer chegar, contanto que se ande o tempo necessário.
A abordagem da prática como pesquisa nas artes cênicas em
modalidades já configuradas e outras ainda por surgir tem apontado

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caminhos para o confronto dos artistas-pesquisadores com as
demandas da pesquisa acadêmica, permitindo o diálogo entre a
própria prática artística e sua discussão crítico-reflexiva. A prática
artística é o lugar próprio de produção de conhecimento nas artes,
como conhecimento encarnado, e é, a partir disso, também, que se
abrem espaços para o compartilhamento de saberes, simultanea-
mente, de ordem prática e teórica.
Compreender que a produção de conhecimento nas artes
cênicas não depende da anexação de saberes de outras áreas de
conhecimento, mesmo que o diálogo inter e transdisciplinar seja
desejável e possível, permite, além disso, ampliar as possibilidades
de descoberta e exploração de caminhos de investigação próprios,
mais diretamente vinculados a esse campo de saber.
Essa perspectiva permite sublinhar a prática artística como pro-
cesso e produto da pesquisa, na condição de argumento cênico-
performativo em que estão colocadas e experimentadas as questões
centrais da investigação, estabelecendo-se uma profunda conexão
entre a prática e sua teorização.
Através da abordagem da prática como pesquisa, em suas diversas
modalidades e nomenclaturas, surgem possibilidades metodológicas
originais, criativas, vinculadas diretamente aos saberes artísticos
engendrados pelo fazer. Abrem-se espaços possíveis de aprofunda-
mento do campo de conhecimento e perspectivas dialógicas entre
os desejos e potências criativas dos(as) artistas pesquisadores(as)
com as diretrizes de pesquisa acadêmica em artes. Como na fábula
de Alice, no sorriso flutuante – os vestígios e traços do processo –
revela-se o enigma do gato – o lugar aonde se quer chegar.

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Theatre Studies Association, [s. l.], v. 33, p. 267-314, 2007.

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Capítulo 4

PARA FAZER O VERBO DELIRAR:


PESQUISA EM ARTES CÊNICAS COM
ÊNFASE NA EXPERIÊNCIA EM TEATRO

Cilene Nascimento Canda

No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo,
ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz de fazer nascimentos. O verbo tem
que pegar delírio.

(BARROS, 2015, p. 83)

O descomeço

Escrever sobre pesquisa em artes cênicas toca diretamente na


minha trajetória no teatro, no meu percurso acadêmico no ensino
superior e na vida pessoal com a poesia em cena. No itinerário aca-
dêmico, observo que algumas dúvidas perpassam diversos traba-
lhos acadêmicos, na graduação e na pós-graduação, em torno de
princípios e bases de um trabalho acadêmico em artes cênicas.
É muito comum verificarmos processos criativos marcados por

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muita riqueza de experiências de cunho estético, mas ao serem tra-
duzidos para a linguagem acadêmica, apresentam a dificuldade de
tradução da experiência em resultados de pesquisa.
Diante da dificuldade e no exercício de investigações diversas,
uma tendência muito comum é o engessamento do objeto em pro-
cedimentos metodológicos “emprestados” das ciências humanas
que, muitas vezes, não dão conta da diversidade e da natureza
artística do objeto cênico. Por outro lado, observamos também o
entendimento da pesquisa como um mero registro da experiência
da prática artística, limitando-se à empiria e ao registro de pro-
cedimentos técnicos, tendendo a restringir o campo do conheci-
mento em artes cênicas. Pensando nessas questões do cotidiano
de orientação de pesquisas na universidade, percebo a necessi-
dade de superação de alguns problemas básicos na produção
e difusão de conhecimentos em artes cênicas, sem, contudo,
esgotar a discussão nesse texto, mas contribuir para essa dis-
cussão em ampliação e efervescência.
Ao refletir sobre como o conhecimento artístico é produzido e
difundido, delimitamos a seguinte pergunta que nos inquieta e nos
inspira neste texto: a que se destina a pesquisa em artes cênicas?
Quais princípios regem a produção e a difusão do conhecimento
em artes cênicas? Para responder a tal questão de ordem episte-
mológica, iniciarei com problematizações acerca de noções gerais
sobre pesquisa em arte, questionando sobre a distinção clássica
sujeito-objeto e a separação corpo-mente, razão-sensibilidade,
promulgada pela ciência moderna. Tais relações dicotômicas
vêm sendo problematizadas e superadas no âmbito dos estudos
em artes cênicas, que se propõem a abordar questões referentes
especificamente à natureza dos objetos de pesquisa no campo das
artes cênicas.
Para início do debate, partimos do pressuposto de que as artes
cênicas, em si mesmas, são capazes de potencializar a produção
de um tipo de conhecimento singular e pessoal, impossível de ser
mobilizado e investigado somente pelas vias do discurso verbal e

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do intelecto. No caso do teatro, as ferramentas tradicionais de pes-
quisa não dão conta da complexidade do fazer cênico, marcada-
mente pela presença, pelo sentido dado pelo sujeito à experiência
vivida de natureza efêmera. Os estudos de Pupo realçam a natureza
do trabalho educativo em teatro, afirmando a sua complexidade,
uma vez que “a atividade teatral é vista como um sistema de sig-
nificação com múltiplos códigos – gestualidade, cenário, figurino,
iluminação [...]. A representação é constituída por um conjunto de
sistemas de signos que só adquirem significado uns em relação aos
outros”. (PUPO, 2005, p. 1) Assumir a complexidade da experiência
teatral ajuda-nos a refletir sobre a natureza e as peculiaridades da
pesquisa em artes cênicas, compreendendo-a para além do resul-
tado artístico espetacular, como campo de produção e difusão de
saberes em amplo processo de crescimento.
Na interpretação de Jean Jacques Roubine (2003, p.  9), “toda
prática artística se desenvolve a partir de motivações teóricas implí-
citas ou explícitas. Ao mesmo tempo toda teoria se alimenta da prá-
tica por ela fundada”. Assim, quem faz teatro também faz pesquisa
e tende a buscar mais conhecimentos para uma melhor consciência
do próprio artístico, afinal, teoria e prática “contribuem mutua-
mente para sua evolução e sua transformação”. (ROUBINE, 2003,
p. 9) Refletir e criar são processos complementares que se retroa-
limentam na experiência de sujeito. Por tais razões, a atividade de
pesquisa não é tarefa restrita dos pesquisadores, mas há um modo
específico de se fazer pesquisa na universidade, e é nesse enfoque
de pesquisa que me debruçarei nesta escrita.
Autores relevantes da pedagogia do teatro, a respeito de André
Carreira, Narciso Telles e Renato Ferracini (2015), atribuem um
valor à experiência de pesquisa, no sentido de ampliar, sistema-
tizar, difundir e gerar novos saberes para a área teatral. Contudo,
identificam também uma complexa relação entre ser professor,
artista e pesquisador da própria experiência artística na universidade,
afirmando dilemas e questões postas nesse campo:

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Mesmo reconhecendo o direito de todo artista de buscar
todas as alternativas de produção de seu trabalho artís-
tico, o que inclui a universidade, é fundamental dizer que
tais práticas exigem que estes artistas compreendam
que no contexto universitário existe uma necessidade de
produção de um pensamento organizado em um formato
que se projeta para além da obra. Compreendendo que
a obra artística neste contexto pode, e deve ser motor
dessa produção de conhecimento, nos cabe perguntar
qual a especificidade do mundo universitário que efetiva-
mente pode ter impacto no universo da criação artística.
(CARREIRA; TELLES; FERRACINI, 2015, p. 96)

A partir dessas problematizações, cabe-nos também refletir


sobre a natureza e a especificidade do conhecimento das artes
cênicas para melhor compreendermos este campo da pesquisa.
Para isso, adotei alguns princípios da experiência em artes cênicas,
suas peculiaridades, desafios e modos de produção, para poder
me debruçar acerca dos alcances da sua investigação. Dito isso,
me detenho na reflexão sobre as possibilidades e os limites da
pesquisa em artes cênicas, cuja natureza é dinâmica, flexível,
insubmissa, transgressora, sem contornos didáticos e que toca no
íntimo das relações entre os sujeitos e o mundo.
Nesse lugar fluído a ser pesquisado, a experiência corporal
não pode ser suprimida, relegada a um segundo plano, ou mesmo
fadada à inexistência, sem conferir-lhe qualquer importância, pois,
desse modo, estaríamos desconsiderando a natureza das expe-
riências em artes cênicas, no sentido defendido por Jorge Larossa
Bondía (2015), como algo nos move, nos acontece e nos faz tremer
de pavor, de sofrimento ou de prazer. Consideramos, com isso,
a experiência estética como produtora de conhecimento, ainda que
diferentes desafios e dificuldades possam ser encontrados na sua
tradução. Como, por exemplo, explicar em linguagem acadêmica a
cadência de corpos em uníssono ao som de uma música? Em que
medida é possível mensurar o olhar reflexivo e a subjetividade do

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espectador perante um espetáculo? Considerando os limites dessa
investigação, refletimos sobre esta pergunta: quais as peculiari-
dades e os desafios da pesquisa em artes cênicas? Tais perguntas
nos conduzirão à produção reflexiva sobre o campo da pesquisa em
das artes cênicas, com enfoque na experiência em teatro.

Metodologia: corpo, sensibilidade e pesquisa

Escrever sobre a experiência de pesquisa em artes cênicas é também


um processo de criação, portanto, há lugar para dúvidas, consultas,
acasos, buscas e novas interrogações. Uma das perguntas possí-
veis que oportuniza pensarmos no horizonte teórico-metodológico
da pesquisa: como transpor, ou traduzir, a experiência sensível,
rica em gestos, imagens, sons, movimentos, cores, formas, em
objeto e trajeto de pesquisa? Evidentemente, a linguagem acadê-
mica oportuniza que registremos as nossas reflexões, inflexões e
sínteses de estudos, mas é plausível também afirmar que se trata
apenas de uma representação incompleta, ensaística, na busca de
capturar o fruir das experiências em arte, como também a busca por
responder a tal indagação. A experiência, em si, é impossível de ser
substituída. Entretanto, importante ponderar alguns aspectos nesse
contexto, uma vez que

A incompatibilidade não implica na incomunicabilidade, mas


indica a impossibilidade de uma tradução completa entre
a ordem corporal e a linguagem. Entre ambas há uma arti-
culação, uma possibilidade de tradução parcial, que per-
mite falar da experiência corporal. [...] Mas esse ‘corpo’
que falamos na linguagem não pode identificar-se ao corpo
que sentimos. [...] Este ‘corpo’ de que falamos emergiu
em nossa experiência social e histórica num contexto
específico e está atravessado por múltiplos imaginários.
(NAJMANOVICH, 2001, p. 9)

Para fazer o verbo delirar 69

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Assumimos a perspectiva da comunicabilidade entre o corpo da
experiência, vivente e sensorial, que fala de si e das suas experiências,
que gera, portanto, conhecimento de mundo. Esse corpo-linguagem
que fala, dá sentido, provoca e registra as experiências vividas somam
saberes que traduzem conhecimentos a serem partilhados. É nessa
perspectiva que também dialogo com Jacques Rancière ao convocar,
em A partilha do sensível, a discussão sobre outros modos de pro-
duzir conhecimentos, integrando o saber, o pensar e o sentir, ou seja,
um modo de articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade
dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações,
implicando uma determinada ideia da efetividade do pensamento.
(RANCIÈRE, 2005, p. 13)
Ao refletirmos sobre outros modos de pensabilidade enunciados
por Rancière, nas artes cênicas, o primeiro elemento que merece
destaque é a maneira como o corpo vem sendo subjugado histori-
camente e subordinado a categorias estéreis e avessas ao processo
de criação em artes cênicas. Pensar em pesquisa em artes cênicas
requer questionar e problematizar a supervalorização da razão em
detrimento do processo de pesquisa de um objeto que não se torna
refém de uma análise. A ação do corpo enquanto sujeito que age,
aprende e interage – e não simplesmente como objeto de estudo
científico – apresenta uma quebra de paradigmas dos modos tradi-
cionais de produção de conhecimentos. Ao questionar a dicotomia
clássica entre sujeito-objeto e a separação corpo-mente, da pers-
pectiva cartesiana, aponta-se para a emergência de construção de
um novo espaço cognitivo, de modo a ultrapassar o sentido das pro-
duções técnicas e instrumentais da ciência, valorizando “o corpo
emocional e a mente corporalizada”. (NAJMANOVICH, 2001, p. 9)
Tal postura nos aponta para a disseminação de reflexões acerca
de abordagens que valorizem e revelem as capacidades múltiplas
do corpo no âmbito da aprendizagem inventiva, da atividade de pes-
quisa e da produção de sentido(s). Entendendo, portanto, que o corpo
todo é cognitivo, atravessado por experiências de afetos, sensações e
significados. O conhecimento gerado pelas artes cênicas é um saber

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corporificado; captar e analisar experiências como essas potencia-
lizam o nosso entendimento sobre produção e memória. O teatro como
gênero artístico e literário “é também uma aprendizagem dos afetos
e dos perceptos, um mergulho na vivência estética do corpo próprio
como lugar de afetos e palco da pessoa que dele se dá conta como
consciência intencional”. (GALEFFI, 2018, p. 41)
Esse lugar da consciência do fazer e do ver-se pelo olhar
de outros possibilita um mergulho em si mesmo e nas relações
de afetos promovidas pela arte do encontro; implica, portanto,
em ampliação das experiências. É significativo também realçar como
Jorge Larrosa Bondía traça o seu conceito de experiência, apresen-
tando, primeiramente, o que não é experiência, posto que “A expe-
riência não é uma realidade, uma coisa, um fato, não é fácil de definir
ou identificar, não pode ser objetivada, não pode ser produzida. E
também não é uma ideia, um conceito, uma categoria clara e distinta”.1
(BONDÍA, 2015, p. 16, tradução nossa) Se a experiência não pode
ser produzida, feita, categorizada, nem se encerra em um conceito,
trata-se, então, de um modo de estar no mundo repleto de sentido,
de querer, de nos tocar e mover algo em nós.
Pensar em experiência requer pensar em sentidos e nos desafios
daí advindos, dando-nos lastro para a compreensão sobre a expe-
riência em artes cênicas. Assumindo a perspectiva de ser sujeito-
corpo encarnado no desafio de produzir pesquisa, ou seja, eu,
como pesquisadora que fala no lugar de mulher e de professora na
condição de formar outros professores, partilharei algumas reflexões
sobre a minha experiência e meus modos de fazer pesquisa, impli-
cando uma forma outra de pensar, de escrever e de registrar aquilo
que se viveu. As minhas análises e indagações se situam no âmbito
de ações cotidianas que integram ensino, pesquisa e extensão,

1 “La experiência no es uma realidad, uma cosa, um hecho, no es fácil definir ni de identi-
ficar, no puede ser objetivada, no puede ser producida. Y tampoco es uma idea, um con-
cepto, uma categoria clara y distinta”.

Para fazer o verbo delirar 71

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tendo as artes cênicas como campo de produção de conhecimentos
que perpassa todo o tripé acadêmico, tanto do ponto de vista da
invenção e do processo criador, quanto no âmbito da pesquisa e da
partilha com o público.

Resultados: voz de fazer nascimentos

Após analisar o lugar do corpo e da experiência sensível para o


campo de produção do conhecimento artístico, buscamos apro-
fundar alguns pontos fundamentais a respeito da natureza artística
do objeto de pesquisa. A título didático, organizamos e caracteri-
zamos alguns saberes e princípios que perpassam a pesquisa em
artes: 1. Natureza inventiva do teatro, incapaz de ser enclausu-
rada em um objeto estático; 2. A pesquisa em arte abarca variadas
formas de pensamento sensível, efêmero e flexível; 3. A pesquisa
em arte exige um rigor outro, fundamentação teórica e reflexão
metodológica; 4. O lugar do outro: dimensão intersubjetiva e polí-
tica do teatro.

Arte é produção de conhecimento não estático

Sedimentar um modo estático, predefinido e universal de pesquisa


em artes cênicas significa retirar as suas características, ou ignorar
a sua natureza dinâmica e efêmera, a sua potência criadora e a sua
invenção de si. Esse perfil de pesquisa engessado não está distante
da academia, na medida em que, historicamente, o campo das artes
cênicas, para ser aceito como ciência, ou como pesquisa, precisou
beber e aprender com as ciências humanas, dialogando com essas
ou enquadrando a natureza do teatro em padrões e paradigmas
estéticos que mais excluem do que compreendem a realidade.
Zamboni denuncia que a pesquisa em arte sempre esteve à mercê de
paradigmas científicos, uma vez que “é comum se ter a ciência como

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um veículo de conhecimento; já a arte é descrita de maneira dife-
rente, não é tão habitual pensá-la como expressão ou transmissão de
conhecimento humano”. (ZAMBONI, 2006, p. 22)
Manifestando-se em favor do entendimento de que arte é
conhecimento, a partir do seu campo referencial e paradigmático
que define o seu método, Zamboni afirma que a pesquisa pode gerar
conhecimento, mas que nem todo conhecimento pode ser cons-
truído através da pesquisa. Os paradigmas tradicionais da pesquisa
não dão conta da natureza inventiva das artes cênicas, por isso,
é preciso pensar o objeto de modo relacional, sensível à escuta,
assumindo o lugar de incompletude e da complexidade dos objetos
de estudos do campo do teatro. Destaca-se, portanto, a natureza
inventiva do teatro, incapaz de ser enclausurada em um objeto está-
tico, e que deve ser compreendido como um outro modo de com-
preender a realidade investigada. Isso requer uma revisão e redefi-
nição do que entendemos como razão, não como entidade abstrata
e pura, mas em sua complexidade, pois

Trata-se de revitalizar a razão pura porque o mundo das


formas é um mundo plural, complexo e porque induz,
justamente em função desse pluralismo, ao relativismo
gnoseológico. Por isso mesmo fica-se ligado à experiência,
reconhece-se que a razão, não importa o que pensem os
defensores do racionalismo, é construída a partir de uma
intuição inteligente. (MAFFESOLI, 2008, p. 140)

O teatro é tempo/espaço propício para exercer uma outra


racionalidade integrada a uma intuição inteligente, proposta por
Maffesoli (2008) como lugar de encontro de linguagens, signos
organizados em uma encenação. Há distintos modos específicos
de produção do ser e do conhecer que requerem o contato cor-
poral capaz de ativar sentidos, como também implicam em formas
cognições inventivas. Esse tipo de cognição interessa à univer-
sidade e à sociedade, uma vez que os estudos contemporâneos

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apontam para uma perspectiva complexa de compreensão da
vida, abrindo campos para os modos como os sujeitos aprendem,
atuam no mundo, dialogam, interagem e ampliam conhecimentos.
Há conhecimentos produzidos por jogos e exercícios de criação,
pelas vias da ação dramática, do gesto corporal, da pintura,
da produção musical, do olhar fotográfico para a realidade.
Tais modos de produção e difusão demonstram que as artes
apresentam modos próprios de conhecer distintos entre o conheci-
mento produzido pela ciência e pela filosofia. O teatro não é apenas
uma forma de linguagem, é a criação de pensamento, é cognição
e é um modo específico de produzir saberes entendendo que é
“quando a consciência abandona as soluções e interpretações que
ela conquista sua luz, seus gestos e seus sons, sua transformação
decisiva”. (DELEUZE, 2010, p. 64) Pesquisar requer uma tomada de
consciência da potência do seu objeto, que não se destina a solu-
ções de um problema, mas à sua realização, à existência dinâmica,
como um devir permanente. O conhecimento artístico, portanto, não
é estático e não busca definições, além de ocupar outras esferas de
conhecer que só podem ser alcançadas ou capturadas pelas vias
das artes. O ato de pesquisar em artes não busca a generalização
nem a universalização dos resultados, uma vez que se busca mais
o saber singular, específico, do que o aplicável em diferentes reali-
dades, conforme apontam os estudos de Zamboni:

Uma das diferenças entre essas formas é que a explicação na


ciência é sempre de caráter geral, procurando, procurando
sempre leis que sirvam para generalizações que possam ser
aplicadas a outras realidades, enquanto a artística é extre-
mamente particular, não passível de grandes generaliza-
ções, mas, mesmo assim, transmite invariavelmente mensa-
gens de natureza bastante ampla. (ZAMBONI, 2006, p. 23)

Portanto, a arte não é um recurso para se ensinar ou para difundir


conhecimentos; arte é, por si, processo de aprendizagem inventiva;

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a arte é, em si, produção de conhecimentos. Dito isso, resta-nos
tecer algumas considerações acerca da natureza do conhecimento
artístico, com enfoque no teatro, para podermos pensar as peculia-
ridades e potencialidades da pesquisa em artes cênicas.

A pesquisa em arte abarca variadas formas de pensamento


sensível, efêmero e flexível

Primeiramente, o pensar sobre a investigação das bases epistemo-


lógicas das artes cênicas nasce tanto do exercício de estar fazendo
arte quanto da necessidade de se fazer pesquisa, de pensar a
prática artística e de contribuir para a difusão do conhecimento.
O interesse de pesquisa surge, então, do envolvimento na área
teatral, das reflexões e das partilhas desse conhecimento.
Refletir sobre os modos de se produzir conhecimentos significa
considerar a vastidão dos objetos, das suas perspectivas epis-
temológicas e (contra)paradigmáticas, bem como as possibili-
dades metodológicas de tratá-los, sistematizá-los e publicá-los.
A necessidade de se pesquisar também alude a um interesse de
manter viva a memória e a reflexão de um objeto não só dinâmico,
mas efêmero, que logo mais deixará de existir, permanecendo vivo
apenas na memória e no sentido do espectador em toda sua sub-
jetivação. Estudar e investigar um espetáculo, independentemente
da abordagem, é compreender que esse objeto artístico não se
estenderá para além da sua realização no ali e agora, do presente
corporificado no instante. Tais ideias ganham ecos no encontro com
as reflexões produzidas por Deleuze (2010, p. 30) sobre o teatro,
ao abordar, entre outras questões, que

E a peça acaba com a constituição do personagem, e ela só


tem como objeto o processo dessa constituição, e não se
estende para além dele. Ela para com o nascimento, enquanto
habitualmente é na morte que se para.

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Vida e morte de um espetáculo, ou das inúmeras produções que
se desencadeiam em um processo de criação, mas que também se
findam e se fincam no instante vivido, são características que per-
passam a realidade do ato de pesquisar. Por tais razões, a pesquisa
em artes cênicas implica em outras formas de pesquisar condizentes
com o seu processo de produção. São incontáveis as formas de pro-
dução de saberes sobre a experiência estética teatral. Tais caracte-
rísticas se ampliam quando pensamos a pesquisa em artes cênicas;
na medida em que os processos criativos são desencadeados,
observamos uma gama de diversificação ainda maior, como também
a necessidade de assumir o lugar do imensurável, do irrepetível,
do inarrável ou do inconsciente na experiência artística.
Por tais razões, é importante considerar que as variadas formas de
pesquisar precisam levar em conta a natureza do seu objeto sensível e
flexível como o processo criativo, bem como efêmero e dinâmico como
o espetáculo. Tais questões molduram, desde a definição da base
epistemológica até a criação e elaboração de procedimentos da pes-
quisa, considerando os modos distintos de conceber os procedimentos
cênicos adotados em uma experiência corporal cênica; de proceder em
uma entrevista ou no campo da história oral sobre o teatro; de analisar
as perspectivas técnicas e estéticas da produção de um espetáculo
ou formas de produção de relatos e histórias de vida no campo artís-
tico; ou, ainda, de observar como o pesquisador se insere no campo
são pontos fundamentais no debate epistemológico. A pesquisa em
artes cênicas, justamente por tratar de objetos efêmeros, muitas vezes
assume uma perspectiva documental da experiência, ainda assim, com
uma variada gama de possibilidades epistemológicas e metodológicas.
Nesse sentido, considerar a natureza dos objetos artísticos condiz
com a forma que serão tratados e analisados em sua complexidade,
pois estes envolvem “questões poéticas que encontram utilização prá-
tica nas técnicas específicas no que se referem aos processos de criação
e de encenação” (GALLO, 2012, p.  3), e, também, alguns elementos
de outras ordens devem ser considerados na investigação em artes
cênicas, referentes às “questões estéticas que envolvem sentimentos

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e emoções, além da maneira que o artista apresenta sua interpretação
e conteúdo artístico, envolvendo também o campo da recepção do
público que assiste à obra”. (GALLO, 2012, p. 3) Assim, demarcamos
o lugar vasto e diversificado da produção em artes cênicas, o que nos
conduz a compreender a necessidade de constituição de modos espe-
cíficos para produzir conhecimentos na área das artes cênicas.
Vale acentuar que tal tendência vem sendo amplamente deba-
tida à medida que outras formas de fazer pesquisa vêm sendo
criadas e examinadas por novos pesquisadores que fazem do seu
exercício como professores, diretores e atores um campo de pro-
dução de conhecimento. Cada vez mais ampliam-se os modos de
investigar e conhecer em artes, como também de difundir e parti-
lhar as experiências de ordem estética. É nesse cenário de criação,
de difusão e de partilha do sensível que Rancière (2005) admite
um caráter insubmisso e transgressor da experiência artística,
contribuindo para o pensamento sobre a sua natureza inventiva:

As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou


de emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou
seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas:
posições e movimentos dos corpos, funções da palavra,
repartições do visível e do invisível. (RANCIÈRE, 2005, p. 26)

Em contextos de partilhas de um sensível comum, em que a pes-


quisa em artes cênicas opera, os corpos – e suas conexões com o
espaço, com o outro, com o trabalho desenvolvido e consigo mesmo –
produzem um tipo de conhecimento que é singular, dinâmico e inven-
tivo. Autores como Maffesoli atribuem um valor fundamental à intuição,
à metáfora, à estética, à experiência de sensibilidade, atribuindo ao
pesquisador um outro lugar, ressaltando que

A teatralidade cotidiana, as diversas manifestações emocio-


nais nas multidões em delírio, os reagrupamentos afetuais
no seio das pequenas tribos, os cultos do corpo e o retorno

Para fazer o verbo delirar 77

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da religiosidade, coisas que escapam às instruções racio-
nais elaboradas ao longo da modernidade, apelam para uma
postura intelectual que seja capaz de integrar essas novas
formas de sensibilidade. (MAFFESOLI, 2008, p. 127)

O autor advoga em favor de uma intelectualidade outra, mais sen-


sível e com lugar para os afetos, o delírio e o ritual, e nesses con-
textos, o olhar do pesquisador deve ser sensível e contextualizado.
A experiência artística é compreendida como fonte, método e con-
teúdo de pesquisa, resultante do que nos acontece e nos marca,
do que nos afeta e nos sensibiliza. Experiência de conhecer é um pro-
cesso ativo no qual o sujeito produz e dá sentido ao que vive. Esse é
um processo contínuo na formação do conhecimento, afinal “apenas
a própria prática indica soluções, pois não há caminho abstrato para
nossas questões: estamos lidando com o corpo e o seu uso poético
investigativo”. (BRAGA; STEPHAN; SANTOS, 2017, p. 181) O conheci-
mento artístico e sua pesquisa exigem prática, que abre campos para
a busca de referências, para os problemas que surgem no processo
e, também, para a descoberta dos acasos e desvios que podem rede-
finir os caminhos criativos.
Refletir sobre a prática em artes implica também em considerar
que os processos de criações e experimentações são sempre cons-
tituídos por incertezas e acasos que surgem do/no processo criativo
inerentes ao processo artístico. Inerentes à natureza da experiência
artística, os acasos redirecionam o próprio processo de elaboração/
criação em artes, podendo, inclusive, reconfigurá-lo, uma vez que
a “sua descoberta pode nos surpreender num primeiro instante,
mas ela assume imediatamente a forma de uma nova lógica, de um
novo modo de se entender as coisas”. (OSTROWER, 1990, p. 7)
Analisando os acasos no processo criativo, cabe-nos enfatizar
que a pesquisa em artes cênicas não se debruça em encontrar ou pro-
duzir resultados seguros, mensuráveis e universalizantes, mas em
constituir e difundir saberes das experiências socialmente válidas.
Não proponho uma superficialidade ou relativização da pesquisa,

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tampouco valorizo a ausência de rigor, mas saliento a compreensão
do ato de pesquisar também como processo de criação, cabendo o
lugar da transgressão, da insubmissão e da desobediência. O pro-
cesso criativo pode ser visto como a própria constituição do conhe-
cimento, assumindo caminhos, métodos e contornos muito dis-
tintos e condizentes com a natureza e a singularidade das artes e
das experiências de seus criadores. Já a pesquisa sobre a criação
assume o rigor do deslocamento entre a ação desempenhada
(pelo pesquisador ou por outrem) e o olhar de pesquisa, atento ao
acontecimento poético, portanto, produtor de sentidos e de refle-
xões filosóficas sobre o objeto investigado, por isso,

Criar e investigar um evento cênico é, de fato, esse deslo-


camento. Pesquisar com rigor implica em criar um evento
e abrir um horizonte de ruptura, dentro e a partir de um
contexto intersubjetivo. Por isso, o evento será em parte
enigmático e em parte inteligível, e mostrará na estru-
tura da ruptura uma compreensão do contexto em relação
ao qual se instala a própria ruptura. (BRAGA; STEPHAN;
SANTOS, 2017, p. 182)

Os autores atribuem o valor da singularidade intersubjetiva


nesse processo, estabelecendo uma compreensão prática e uma
organização interna para tratar e apresentar os fundamentos do
processo criador.

A pesquisa em arte exige um rigor outro, fundamentação


teórica e reflexão metodológica

Até o momento do texto, refletimos sobre questões referentes à natu-


reza inventiva, lúdica, efêmera, insubmissa dos objetos/processos
artísticos. Abordamos, também, a compreensão das artes como
conhecimento, sendo necessário ponderar acerca da pesquisa teó-
rica e do seu rigor metodológico. Os estudos de Pedro Demo (2004)

Para fazer o verbo delirar 79

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embasam o campo da pesquisa qualitativa de cunho participante e
evidenciam o valor da pesquisa teórica, como patrimônio de conheci-
mento consolidado historicamente e que precisa ser acessado, lido e
conhecido por aqueles que pesquisam a área, uma vez que:

O fato de usarmos, depois de muitos anos, teorias passadas


significa, geralmente, que seus autores foram geniais ao conse-
guirem aprofundamentos estruturais da realidade e não apenas
facetas circunstanciais. Todavia, não se escapa da validade
histórica, contextualizada no tempo e no espaço. Assim, o tra-
balho teórico é fundamental ao processo científico, desde que
direcionado ao tratamento da realidade. (DEMO, 2004, p. 26)

Para validar a geração de um novo conhecimento, é importante


que os pesquisadores ampliem o rol de saberes já produzidos histo-
ricamente que darão condições efetivas de problematizações mais
bem fundamentadas. A pesquisa teórica e o tratamento metodo-
lógico exigem rigor de registro, de escuta e de análise, no sentido
de documentar e ampliar os saberes sobre determinado objeto que
é efêmero, dinâmico e diverso. Mas de qual rigor estamos a men-
cionar? Cabe falar em rigor em se tratando de um objeto dinâmico
e inventivo? Inicialmente, vale destacar o rigor necessário à quali-
dade da pesquisa em artes cênicas, justamente pela investigação
de saberes subjetivos, flexíveis, maleáveis e, principalmente, por
lidarmos com processos, pessoas e conhecimentos antagônicos à
exatidão ou a uma verdade universal. Ao buscarmos um rigor outro
na pesquisa, percebemos que

[...] rigor, ainda que mantenha sua origem etimológica no


latim, rigere, relacionado ao ato de estar duro com o corpo
por causa do inverno, firme, rígido, inflexível, severo, em
direção reta para algo e, ainda, um estado frio da natureza,
deve ser conceituado e praticado no sentido da flexibili-
dade, afastando qualquer correlação com dureza ou rigidez.
(BRAGA; STEPHAN; SANTOS, 2017, p. 180)

80 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Transformar experiências sensíveis em um objeto duro e rígido,
padronizado em diretrizes e modelos consagrados, significa limitar
toda a potência inerente à pesquisa em artes cênicas. Assumimos,
aqui, as singularidades a respeito do modo como transformar expe-
riências de vida, de palco, de rua, de sensibilidade em objetos de
estudo que se dão na experiência social e artística e na partilha do
sensível, na visão de Jacques Rancière (2005). Ao acentuarmos o
valor da experiência estética integrada ao olhar reflexivo e inten-
cional da pesquisa para melhor compreendê-la, situamos o teatro
como objeto, processo, investigação e resultado. O campo da peda-
gogia do teatro, dentre outros, aponta para a necessidade de apro-
fundarmos os estudos e as pesquisas em artes cênicas, propondo

discutir nossas práticas de pesquisa para além de sua capa-


cidade de gerar procedimentos cênicos, e compreender que
ao associar os processos de criação aos de reflexão siste-
matizada, estamos produzindo processos de reconstrução
do campo através de uma atuação múltipla. Isso nos pede
pensar como nossas práticas implicam em teorias e como
estas podem (e determinam) as primeiras. (CARREIRA;
TELLES; FERRACINI, 2015, p. 96)

Nesse sentido, enfatiza-se a necessidade do exercício da


reflexão metodológica e de como se operam os modos de produção
de novos conhecimentos em artes cênicas, a partir do objeto inves-
tigado. Metodologia não pode ser vista como engessamento, e sim
como clareza e compreensão sobre o objeto, superando os limites
da superficialidade, da ingenuidade e do empirismo. Para isso,
é importante que os artistas e pesquisadores em artes cênicas se
debrucem sobre uma densidade teórica e uma abordagem tanto
epistemológica quanto metodológica. A palavra método deriva
do grego meta e hodós, que significa via, caminho. Atualmente,
o método de pesquisa se refere à condução da investigação cientí-
fica, mas não pode ser considerado como um conjunto de técnicas

Para fazer o verbo delirar 81

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e procedimentos a serem aplicados. A metodologia é resultante de
diversos fundamentos e reflexões produzidas no processo de pes-
quisar. Não há, portanto, um método único e universal que se ajuste
ou se aplique a determinada investigação, pois cada objeto será
analisado em contexto, segundo os prismas teóricos e o amadureci-
mento do pesquisador.
Sem dúvidas, cada objeto de estudo dará contornos aos caminhos
a serem investigados, às leituras, permitindo, assim, a reflexão e a
ampliação dos conhecimentos em torno de suas problematizações.
Isso, porque “não há amadurecimento científico sem amadureci-
mento metodológico. Para isso, insiste-se na pesquisa metodoló-
gica, que há de significar a construção criativa e crítica de modos
alternativos de dialogar com a realidade social”. (DEMO, 2004,
p. 31) Não nos referimos ao rigor acadêmico tradicional, mas acen-
tuamos uma concepção de pesquisa também como uma aventura,
uma busca a ser encampada, seja no processo criativo do ator,
na história, em seu caráter antropológico, pedagógico, dentre outros
enfoques. Portanto, metodologia é também processo criativo,
fundamentado, evidentemente, por uma base referencial teórica e
ancorado na experiência sensível que produz formas de pensamento
versátil, efêmero e flexível.

O lugar do outro: dimensão intersubjetiva e política do teatro

O teatro cria condições de relações intersubjetivas entre quem os


praticam e destes com seu público, admitindo a compreensão de
que “os outros são mundos possíveis”. (DELEUZE, 2010, p.  77)
Tal reflexão nos leva a pensar o lugar da subjetivação, do teatro
como lugar coletivo por excelência e que os outros “com suas
vozes, que eles dão a única realidade à qual eles podem pre-
tender, constituem histórias”. (DELEUZE, 2010, p. 77) O outro é
parte constitutiva da escrita de um trajeto de pesquisa e tais rela-
ções intersubjetivas são também políticas.

82 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Assim, com vistas a superarmos uma visão romântica das artes
cênicas e no exercício constante de criticidade, nos provocamos a
escrever sobre o caráter político e intersubjetivo da experiência cênica.
Pesquisar é uma atitude de poder perante a produção de conheci-
mento, pois o pesquisador é autônomo na definição da base teórico-
-metodológica, na tomada de decisão e quanto ao caráter epistemo-
lógico e metodológico da pesquisa. O ato de pesquisar e de difundir
conhecimentos implica na compreensão de que “o que está em vigor
como paradigma ontológico não consegue alcançar senão um fortaleci-
mento da organização dicotômica entre senhores e servos”. (GALEFFI,
2018, p.  17) O pesquisador é um sujeito vivente em uma sociedade
de classes, com profunda desigualdade social, sendo que a atitude de
pesquisar deve perpassar reflexões sobre a quem se destina o conhe-
cimento produzido: a favor de quem e contra quem.
Nessa perspectiva, nos aproximamos da dimensão política da
produção de conhecimento embasada por Paulo Freire (1979),
no sentido da educação de sujeitos críticos, conscientes e constru-
tores da história e da sociedade, na qual as artes cênicas não apa-
recem como campos etéreos ou desvinculados da realidade social,
mas ancorada em valores e princípios políticos enraizados na vida
cultural e política de cada sujeito. O olhar ingênuo tende a ana-
lisar o processo criativo sob a ótica de uma endogenia dissociada
da vida em sociedade, ao passo que o pesquisador crítico que revê
sua postura e exercita um olhar reflexivo e metodológico na pes-
quisa abre-se a uma perspectiva bastante significativa, ao entendi-
mento que “é pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem
que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teó-
rico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto
que quase se confunda com a prática”. (FREIRE, 1979, p.  39-40)
Quanto mais o pesquisador conscientiza-se das concepções que
norteiam suas investigações, mais se torna capaz de buscar alterna-
tivas de aprimoramento da sua práxis.
A prática do pesquisador torna-se – em diálogo com seu processo
de descoberta do universo vasto que o teatro oferece – um campo de

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análise e de estudo, em um posicionamento crítico que alavanca a pro-
dução de conhecimentos contextualizados. Em se tratando de pesquisa
sobre um espetáculo cênico, destaca-se a abertura para a possibilidade
de diferentes leituras pelo espectador, e não somente apresentar um
produto destinado a uma interpretação única e unilateral. Verifica-se
a importância da vivência social e cultural de cada sujeito, e do seu
horizonte de expectativas, incluindo o que o público considera teatro.
Desse modo, concordamos com Flávio Desgranges (2006), ao tratar o
teatro como campo profícuo de leitura de mundo, como um mergulho,
uma imersão nos processos emancipadores de leitura da realidade:

O mergulho na corrente viva da linguagem teatral acende


também a vontade de lançar um olhar interpretativo
para a vida, exercitando a capacidade de compreendê-
-la de maneira própria. Podemos conceber, assim, que a
tomada de consciência se efetiva como leitura de mundo.
Apropriar-se da linguagem é ganhar condições para essa lei-
tura. (DESGRANGES, 2006, p. 22)

Percebe-se que a interpretação da mesma obra pode variar


ainda mais, libertando-se do controle dos seus criadores; tais ques-
tões também podem ser valorizadas da pesquisa a depender do
objeto e do referencial teórico de base. A ênfase ao lugar do público
enquanto cocriador da obra de arte, valorizando a pessoalidade do
espectador, se dá pela concepção do teatro como um jogo de inter-
-relação entre atores e a plateia, em um rico movimento de fruição
e gozo estético. Para o público, o evento teatral caracteriza-se
como uma experiência estética e educativa, no sentido que Larossa
esboça, de forma análoga à experiência artística:

É verdade que pensar a educação a partir da experiência


a torna mais parecida com uma arte do que com uma téc-
nica, ou uma prática. E é verdade que, a partir daí, a partir
da experiência, tanto a educação quanto as artes podem
compartilhar algumas categorias comuns. Mas também me

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parece que o fato de minhas canções pedagógicas terem
conseguido ressoar com canções artísticas tem a ver com
o fato de eu ter tentado construir a Experiência como uma
categoria vazia, como uma espécie de lacuna ou intervalo,
como uma espécie de de interrupção, ou de falência, ou sur-
presa, como uma espécie de ponto cego, como o que nos
acontece quando não sabemos o que está acontecendo
conosco e, acima de tudo, como aquilo que, mesmo que nos
esforcemos, podemos fazer acontecer conosco porque não
depende de nós nem do nosso conhecimento, nem da nossa
vontade.2 (LARROSSA, 2015, p. 18, tradução nossa)

Além do âmbito da experiência em si, e no diálogo resul-


tante da compreensão da obra artística, encontra-se uma ver-
dadeira troca de saberes e de aprendizagens para o pesquisador,
bem como para o ator; este, tende a aprender mais o seu ofício,
e o espectador, a exercitar uma apreciação qualifica e intensifica a
sua experiência como leitor na apreensão das entrelinhas do espe-
táculo. Nessa dimensão política da pesquisa, destaca-se, nas pala-
vras de Freire (1979, p. 59-60),

[...] a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos


aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito
a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por
seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam
radicalmente éticos.

2 “Es verdad que pensar La educación desde La experiência La convierte em algo más
parecido a um arte que a uma técnica, o a uma práctica. Y es verdad que, desde haí,
desde La experiência tanto La educación como las artes pueden compartir algumas
categorias comunes. Pero me parece también que El hecho de que mis cantos pedagó-
gicos hayan podido resonar com cantos artísticos tiene que ver com que He tratado de
construir La experiência como uma categoría vacía, como uma espécie de hueco o inter-
valo, como una espécie de interupción, o de quiebra, o de sorpresa, como uma espécie
de punto ciego, como eso que nos pasa cuando no sabemos lo que nos pasa y, sobre
tudo, como eso que, aunque nos empenñemos, no podemos hacer que nos pase porque
no depende de nosotros ni de nuestro saber, ni de nuestra voluntad”.

Para fazer o verbo delirar 85

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Esse campo da subjetivação, das emoções e sentidos dos
sujeitos da pesquisa, perpassando, portanto, pela atitude ética do
pesquisador, implica numa íntima relação com a cultura. E o teatro
situa-se nessa relação como um “devir-universal”, na apreensão
de Deleuze, como um ato amoroso revolucionário ou “uma simples
potencialidade amorosa um elemento para um novo devir da cons-
ciência”. (DELEUZE, 2010, p. 64) Os nossos escritos apontam para
o desejo de que as produções artísticas e a pesquisa nos apontem
pistas revolucionárias e caminhos dialógicos com potencialidade
amorosa nos atos de provocar “um novo devir da consciência”,
o conhecimento na sociedade.

Inconclusões: para pegar delírio

O desafio de escrever sobre pesquisa em artes cênicas perpassa o


entendimento de que a experiência sensorial vivente, desencadeada
em processos artísticos corpóreos, jamais será uma tradução exata e
completa, mas, sim, uma tradução parcial e, até mesmo, metafórica,
no sentido de criar códigos e símbolos para a sua difusão. Pensamos o
teatro como arte de representação na cena e, também, como “a arte de
aprender a apreciar, gozar e fazer arte aliada à arte do viver com sentido
próprio e apropriado, viver como doação ao que é urgente e inadiável
ao viver”. (GALEFFI, 2018, p.  15) Como transformar a experiência
vivente, urgente e inadiável, em linguagem acadêmica? No texto,
nos debruçamos na compreensão do teatro como lugar de vida,
de sensibilidade e de produção de saberes outros, como lugar de expe-
riência que toca, dá sentido, que pulsa e faz vibrar em coletivo.
Para capturar a essência e a natureza dessa experiência, vali-
damos o estudo teórico e metodológico, compreendendo a pesquisa
como ato político de geração e difusão de conhecimentos por outras
vias. Destacamos, portanto, a vastidão de definições e de proposições
filosóficas, estéticas e históricas desse campo de estudo e de trabalho

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artístico. O tema discutido neste texto – a pesquisa em artes cênicas –
apresenta diferentes possibilidades de abordagem, pelo fato de o objeto
ser marcado pela sua efemeridade, que logo deixará de existir, como,
também, pela versatilidade dos objetos investigados. A pesquisa em
artes cênicas assume, muitas vezes, um caráter documental, memória,
registro e reflexão a partir de perguntas bem orientadas. Pesquisa é
processo de criação, é busca, é aventura e é investigação. É também
reflexão teórica e metodológica com vistas à difusão de conhecimentos
em combate ao olhar ingênuo e à ignorância.
A valorização de uma dimensão estética na pesquisa em artes
cênicas representa um desafio contemporâneo para a universidade,
na medida em que implica na revisão de práticas de pesquisa e do
currículo. O trabalho com a sensibilidade envolve a mobilização
de princípios essenciais da produção e difusão do conhecimento,
como o diálogo, a participação ativa, a valorização da experiência
estética e a criação humana, ativando as dimensões intelectuais,
físicas, afetivas e intuitivas. Considerar a pesquisa em artes cênicas
como campo crítico de produção de conhecimento é imprescindível
para a difusão de saberes fundamentais à construção de uma socie-
dade mais ajustada ética e esteticamente.
As distintas opções metodológicas abrem pontos relevantes
sobre como cada pesquisador foca o olhar para o seu próprio fazer
acadêmico, consolidando atitudes reflexivas sobre o próprio fazer,
aprimorando-o. Por fim, espero que esses escritos auxiliem na
reflexão sobre a pesquisa em artes cênicas e inspirem novos pes-
quisadores na aventura de conhecer, possibilitando que o teatro
contribua para fazer o verbo pegar delírio.

Referências

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2011.


BONDÍA, Jorge Larossa. Palavra muda: sobre linguagem, experiência e
subjetividade. In: COSTAS, Ana Maria (org.). ABRACE: arte, corpo e pesquisa:
experiência expandida. Belo Horizonte: O Lutador: ABRACE, 2015.

Para fazer o verbo delirar 87

Pesquisa.indb 87 30/11/2022 16:45:59


BRAGA, Bya; STEPHAN, Baumgartel; SANTOS, Glaucio Machado. Sobre o
rigor da pesquisa em artes cênicas na universidade brasileira. Revista Ouvir
ou Ver, Uberlândia, MG, v. 13, n. 1, p. 178-187, jan./jun. 2017.
CARREIRA, André; TELLES, Narciso; FERRACINI, Renato. Procedimentos
de pesquisa em atuação como estratégia de reflexão sobre a cena
contemporânea. In: COSTAS, Ana Maria et al. (org.). ABRACE: arte, corpo e
pesquisa: experiência expandida. Belo Horizonte: O Lutador, ABRACE, 2015.
DELEUZE, Giles. Sobre teatro: um manifesto de menos. Tradução Fátima
Saadi. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
DEMO, Pedro. Pesquisa participante: saber pensar e intervir juntos.
Brasília, DF: Liber Livro, 2004.
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo.
São Paulo: Hucitec, 2006.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução
ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
GALEFFI, Dante. Teatro, experiência estética e arte no educar
transdisciplinar. In: CANDA, Cilene Nascimento; SALUME, Celida (org.).
Paisagens educativas do ensino de teatro na Bahia: saberes, experiências e
formação de professores. Salvador: Edufba, 2018.
GALLO, Fabio Dal. A etnografia na pesquisa em artes cênicas. Revista
Moringa Artes do Espetáculo, João Pessoa, v. 3, n. 2, jul./dez. 2012.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do
cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. Entre o Mediterrâneo e o Atlântico:
uma aventura teatral. São Paulo: Perspectiva, 2005.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: a estética e a política. São Paulo:
EXO experimental org, 2005.
ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003.
ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência.
Campinas, SP: Autores Associados, 2006.

88 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 88 30/11/2022 16:45:59


Capítulo 5

TEORIAS E OLHARES SOBRE O


ESPECTADOR TEATRAL CONTEMPORÂNEO

Letícia Mendes de Oliveira

Cada obra de arte em particular seria a proposta


para habitar um mundo em comum, enquanto
o trabalho de cada artista comporia um feixe
de relações com o mundo, que geraria outras
relações, e assim por diante, até o infinito.

(BOURRIAUD, 2009, p. 31)

À primeira vista, pode-se inferir genericamente que o espectador


teatral é um sujeito sem ação, pois, quando assiste a um espe-
táculo, geralmente é colocado numa posição de contemplação.
No entanto, apesar do espectador não demonstrar, durante a
exibição do evento cênico, de modo geral, o seu olhar pode ser
suficiente para instaurar uma complexa máquina de percepção
e compreensão, capaz de gerar múltiplos sentidos sobre a peça
que assiste. O processo de recepção teatral conta com pelo menos
duas grandes etapas de participação e decodificação dos sen-
tidos: a primeira etapa configura-se como a experiência do espec-
tador do estar inserido no “aqui-agora” da cena, seja assistindo ao
evento, seja fazendo parte direta ou indiretamente da encenação,
e a segunda etapa refere-se ao instante posterior ao término do
espetáculo – o momento de interpretação, reflexão, elaboração

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dos sentidos sobre o que esse receptor acabou de assistir, ou seja,
a leitura crítica sobre o espetáculo.
Trilhando esse caminho, afirma-se que a visão do espectador é
uma mola essencial na engrenagem de funcionamento da máquina
teatral, e não apenas um elemento estático ou um modelo abstrato
que se situa somente na etapa final de estreia de uma peça teatral.
É evidente que o espectador não pode ser comparado ao artista-
-produtor, pois, por mais que esteja disposto a participar do evento
cênico, compreende-se que a condição desse sujeito receptor
necessita do emissor-obra para se manifestar. Observo que o diá-
logo entre produção e recepção pode ser ativo, pois é a partir da
relação entre o espectador e a obra que podemos considerar o
espectador como um elemento ativo e copartícipe no processo de
comunicação, mesmo que esse possa se manifestar, num primeiro
momento, em estado de observação e contemplação.
Com o objetivo de buscar as origens do fenômeno da recepção,
é necessário rastrear alguns conceitos. De acordo com a etimologia,
a palavra espectador vem do latim spectātor -ōris, que significa
aquele que vê qualquer ato, que contempla ou testemunha algo.
(CUNHA, 1986, p. 322) Ser espectador, portanto, é entendido aqui
como um ato culturalmente humano, no qual o sujeito assiste a
um evento, observa uma obra de arte, contempla uma imagem,
acompanha um filme ou testemunha um acontecimento, além de
outras práticas contemporâneas que propõem ao espectador expe-
riências olfativas, táteis e, até mesmo, gustativas.
As palavras espectador e público, que, por vezes, apresentam-
-se como sinônimos, têm funções distintas e podem gerar ambi-
guidades e confusões para futuras análises. Espectador é o sujeito
que assiste a algo, refere-se a cada indivíduo portador de opiniões
e visões intransferíveis, e público refere-se a uma entidade coletiva,
ou seja, uma categoria ampla que agrupa os espectadores e busca
definir, de forma generalizada, determinado conjunto de especta-
dores de um espetáculo específico ou que possua características
sociais, históricas, artísticas e políticas em comum. É relevante

90 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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frisar que público não é a adição indeterminada e aleatória de vários
espectadores, são pequenos coletivos que possuem interesses em
comuns, sejam sociais, culturais, políticos ou identitários.
Outros termos semelhantes são plateia e audiência, que podem
ser tratados como sinônimos. Encontra-se, muitas vezes, a palavra
plateia relacionada ao lugar onde se situa espacialmente o público
na cena, sendo um termo próprio do universo da cenografia. Já a
palavra assembleia apresenta o mesmo sentido do conceito de
público, acrescido o caráter de um grupo de espectadores com
papel ativo de opinar, votar, discutir e debater sobre o assunto ence-
nado. Para este artigo, adotei, na maioria das reflexões, a palavra
espectador, pois, ao considerar as capacidades individuais de cada
receptor futuro de uma cena, é possível adotar uma atitude mais
detalhista, cuidadosa e direcionada também no processo criativo de
composição da dramaturgia e contribuir para proporcionar diversas
leituras subjetivas sobre as obras teatrais.
Para além do ato de visão, torna-se relevante citar também a
definição da palavra experiência, elaborada pelo estudioso Flávio
Desgranges (2016), que discute uma noção da mediação entre pro-
dução artística e recepção. Segundo o pesquisador, a palavra expe-
riência origina do latim experiri, e apresenta o sentido de tentar ou
provar algo. Interessante notar que o radical periri está relacionado
ao radical periculum, que quer dizer perigo, indicando o risco do ato
de se aventurar em experiências desconhecidas. (DESGRANGES,
2016, p.  16) Já o radical da palavra espectador surge também
relacionado a outras palavras, tais como expectativa, especular,
espectro, assim, como a própria palavra espetáculo. É preciso res-
saltar, portanto, que todos os sentidos da percepção humana são
utilizados para a recepção de espetáculos, que se utilizam primor-
dialmente da linguagem visual em suas encenações. Sendo assim,
o espectador é o sujeito que assiste, especula, testemunha, confi-
gurando-se como a visão externa que recebe, aprecia, lê e experi-
menta a apresentação teatral, assim como, num momento posterior,
ao término do evento cênico, elabora uma série de interpretações e

Teorias e olhares sobre o espectador teatral contemporâneo 91

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sentidos para o que acabou de assistir. O espectador se lança ao
abismo do desconhecido e ao jogo e perigo do encontro, e desse
lance vertiginoso nasce a recepção.

O espectador segundo Patrice Pavis

O trabalho (e o prazer) do espectador


consiste em afirmar sem trégua uma série de
microescolhas, de miniações para focalizar,
excluir, combinar, comparar.

(PAVIS, 2003, p. 140)

O francês Patrice Pavis, no livro A análise dos espetáculos (2003),


ao levantar os campos de estudo sobre o espectador teatral,
destaca e organiza três grandes categorias de análise, que serão
resumidamente conceituadas a seguir:

Imagina-se tal espectador no epicentro de um tremor de


cena e dotado de uma tripla visão: psicológica, sociológica
e antropológica. Trata-se de três olhares distintos, mas
complementares, formando círculos concêntricos que não
cessam de alargar a perspectiva individual e psicológica,
rumo a uma visão sociológica e até a uma antropologia na
qual a obra cênica vai ao encontro da realidade humana,
ambiente do espectador. (PAVIS, 2003, p. 213)

A primeira categoria é chamada de abordagem psicológica


e psicanalítica, e refere-se à primeira recepção das sensações e
percepções, num sentido individual, através dos efeitos produ-
zidos, da identificação de gêneros, no sentido masculino-feminino,
e da fruição corporal despertada em cada espectador em relação
a cada espetáculo. São chamadas também de teorias relacionais

92 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 92 30/11/2022 16:45:59


e pertencem aos estudos da Fenomenologia, tendo como um dos
estudiosos de destaque Merleau-Ponty, que concentra seu inte-
resse nas sensações subjetivas de cada espectador.
A segunda categoria é a abordagem sociológica, que são os
estudos Semiológicos de Patrice Pavis (2003) e Marco de Marinis
(2005), que investigam os procedimentos da encenação relacio-
nados à dramaturgia, que acionam uma relação com os especta-
dores e são a base teórica de nossa pesquisa.
A terceira categoria refere-se à abordagem cultural, dos estudos
antropológicos e da etnocenologia; segundo Patrice Pavis, não se
constitui num método, mas numa perspectiva de organização de
vários conjuntos que se dedicam a pesquisar, escutar e olhar para
diversas culturas e manifestações teatrais.
Sabendo da existência de uma zona de leituras possíveis em
constante construção, Pavis elabora um pensamento que pode
ser identificado como uma estrutura aberta de cada montagem,
ou de como as representações, pela natureza de cada linguagem,
podem propor um campo comum propício para ser reinterpretado
pelo receptor. Essa noção foi nomeada por Pavis como vetorização
ou como apreensão global da encenação. O autor ainda utiliza a
metáfora da flecha (PAVIS, 2003, p.  24), que apresenta a ideia
de um movimento ou um olhar que é lançado sobre o espetáculo,
e que não possui uma leitura fechada. Segundo suas palavras,
Pavis define a vetorização:

Em lugar de decompor a percepção, de sequenciar as


sensações, de multiplicar os sentidos e, logo, de frag-
mentar arbitrariamente o significante para traduzi-lo em
significados possíveis, concebemos antes os significantes
como se à espera de significados possíveis e repensamos
a noção de signos individualizados para estabelecer
séries de signos agrupados segundo um processo que
poderíamos descrever como vetorização. A vetorização
é um meio ao mesmo tempo metodológico, mnemotéc-
nico e dramatúrgico de estabelecer ramais de signos.

Teorias e olhares sobre o espectador teatral contemporâneo 93

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Ela consiste em associar e conectar signos que são pegos
em ramais no interior dos quais cada signo só tem sentido
na dinâmica que o liga aos outros. (PAVIS, 2003, p. 13)

A vetorização não deve ser vista como um instrumento aplicável


a todo espetáculo, mas um modo de se buscar a dinâmica singular
e intransferível de cada representação teatral, que se baseia tanto
em elementos informacionais – fábula do espetáculo, temas da
representação e escolhas da dramaturgia – quanto em elementos
sensoriais – som, luz, sinestesias, odores, plástica, espacialização,
escolhas da atuação e da encenação –, relacionados com a recepção.
A ideia é buscar, no interior de cada encenação, os tensionamentos,
ou seja, ou vetores existentes entre os signos teatrais, sem esquecer
que esses tensionamentos são direcionados, por via de mão-dupla,
com o espectador, pois a produção não apenas despeja de modo
unilateral os sentidos, mas também sofre alterações ao ser apresen-
tada para o público. A ideia mental do vetor numa encenação veicula
a possibilidade de que cada espetáculo possa apresentar uma lin-
guagem singular para cada espectador.

O espectador segundo Marco de Marinis

Para o espectador, nunca existe percepção sem


interpretação.1

(MARINIS, 2005, p. 91, tradução nossa)

Segundo o teórico italiano, as teorias que auxiliavam as análises


sobre os espetáculos consideravam o espectador como um aces-
sório, e assim vigorava uma tendência metodológica que ia da

1 “Para el espectador jamás existe percepción sin interpretación”.

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análise do espetáculo para depois considerar as impressões da
recepção. O teatrólogo identifica uma inversão desse movimento
de análise e diz ser necessário repensar, primeiramente, as estra-
tégias de relação com espectador e as suas consequentes leituras
para, num segundo momento, debruçar-se sobre a análise da obra
cênica, como um crítico costuma fazer. Assumindo em suas formu-
lações o termo sociossemiótica para destacar a importância social
da recepção, Marinis acusa parte dos estudos teatrais de dar exces-
siva relevância ao espectador imaginário, e pouca atenção para o
espectador real. E é sobre essa perspectiva que Marinis identifica
três concepções de relação entre espetáculo-espectador, ou entre
o atuante-espectador: a objetiva, a niilista e a relativista.
A relação objetiva seria uma concepção na qual os significados
circulariam de maneira inalterável de um polo a outro, ou seja,
do espetáculo para o espectador, sem perda de informações e
sentidos. Tal prerrogativa seria impossível e só funcionaria como
um modelo abstrato, pois até mesmo em processos comunicacio-
nais não artísticos, nos quais se busca o máximo de objetividade
do assunto, toda recepção possui traços de intencionalidades e
espaços de significação abertos ao ponto de vista de cada sujeito,
que é intransferível e incompreensível a um grande coletivo,
com aspectos psicológicos e culturais distintos.
A segunda relação é a niilista, que se define por ser con-
trária à primeira, a objetiva, pois é uma relação que consi-
dera de maneira ampla a distância existente entre produção e
recepção, admitindo que são realidades distintas e que o espec-
tador nunca irá apreender as significações da obra teatral, mas,
ao mesmo tempo, cada um terá uma leitura única do espetáculo.
Toda e qualquer forma de leitura possível de uma obra teatral,
numa concepção niilista, seria uma tarefa inútil, já que o espetá-
culo é considerado inapreensível para o espectador.
A terceira concepção chamada de relativista é subdividida em
duas formas: integral e parcial. Relativista é a forma de relação
que agrupa as duas outras relações explicitadas acima – seria uma

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Pesquisa.indb 95 30/11/2022 16:45:59


junção da objetiva e da niilista –, que considera elementos objetivos
de comunicação e elementos de percepção subjetiva e individual
que ultrapassam o entendimento conciliador e comum. A concepção
relativista-integral é uma relação que considera de maneira global
toda e qualquer ação da recepção na produção, dando mais ênfase
ao espectador e menos às intenções dos criadores, já a concepção
relativista-parcial considera que a recepção é tão relevante quanto
a produção, e que cada um possui especificidades particulares de
relação com a manifestação teatral.
Considero essa última relação, a relativista-parcial, como uma
efetiva síntese das formulações de Marinis. O autor destaca que a
ideia relativista-parcial demarca que uma obra pode conter sen-
tidos que nem sempre são direcionados de maneira objetiva ao
seu receptor, pois se observa que não há uma objetividade abso-
luta. Desse modo, qualquer evento teatral vai apresentar lacunas de
compreensão que serão preenchidas pelas subjetividades de espec-
tadores distintos. E, por fim, esse processo de relação deve consi-
derar também as diferentes naturezas e funções entre os artistas e
os espectadores.
Marinis reflete sobre os aspectos cognitivos e emocionais
por meio do trabalho de focagem da atenção, pois aquilo que nos
comanda é aquilo que mais nos atrai. Marinis fundamenta e condi-
ciona todo o ato de percepção do espectador e, ao mesmo tempo,
o próprio ato de composição, que só pode ser desencadeado pelo
receptor. Para o teórico, a atenção é uma estratégia ou operação pri-
mordial que propõe um jogo de interação fluido com o espectador.
Desdobrando o seu modelo em subitens ou procedimentos cha-
mados de focagem, desfocagem e refocagem, a atenção do espec-
tador depende de um tipo de disposição ou atitude psicofisioló-
gica, a qual Marinis denomina como estado de interesse e que, por
sua vez, pode desencadear outros estados: de surpresa, de estupor,
de assombro, de espanto, de identificação, de comoção, entre outros
que fazem com que o espectador vivencie o espetáculo como se esti-
vesse no lugar do personagem ou inserido imaginariamente dentro

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do contexto de representação. A focagem de atenção proporciona um
jogo de proximidade espacial e interlocução entre ator e espectador.
Desse modo, o artista cênico, ao gerenciar a atenção e interesse do
espectador, pode abrir espaços de construção de sentidos e ser, ao
mesmo tempo, retroalimentado pelas reações do espectador.

O espectador emancipado, de Jacques Rancière

O espectador também age, assim como o


aluno ou o intelectual. Ele observa, seleciona,
compara, interpreta. Relaciona o que vê com
muitas outras coisas que viu em outras cenas,
em outros tipos de lugares.

(RANCIÈRE, 2012, p. 17)

A questão sobre o diálogo entre a produção e a recepção também é


discutida por Jacques Rancière, que traz importantes contribuições
para o estudo sobre o espectador teatral. O autor francês afirma que
infelizmente as constantes distâncias impostas pela estética teatral
com o público instauraram o que nomeia de paradoxo do espectador:
a tendência que gera uma lacuna de entendimento entre o teatro
e a realidade, entre representação teatral e o mundo empírico,
entre o simulacro e o real, entre o ato de ver e a passividade.
Segundo suas ideias, o teatro sempre foi criticado por corroborar
a ideia de que os espectadores são passivos frente aos eventos
cênicos e, assim, numa tentativa de erradicar esse mau teatro e
compensar a culpa de não atingir a comunicação com a plateia,
surgiram experiências, como as de Bertolt Brecht, que buscaram
uma ativação da consciência do receptor. O objetivo, segundo lei-
tura de Rancière, era, através dos espetáculos, ensinar os espec-
tadores como eles deviam abandonar a condição de espectadores
para se tornarem atores de uma atividade coletiva. Porém, apesar

Teorias e olhares sobre o espectador teatral contemporâneo 97

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do objetivo de esclarecimento das massas, ensinar as plateias
ainda estaria longe de uma efetiva ativação da recepção, gerando
uma ideia pejorativa de submissão intelectual do público. A solução,
segundo Rancière, não é o espectador deixar sua função de ver o
espetáculo para participar do mesmo, mas retornar ao papel pri-
mordial de visão do espectador, como uma ação importante e ativa
no processo de recepção do espetáculo.
Para justificar seu argumento, o filósofo faz uma comparação
entre a relação do espectador-espetáculo com a do mestre-aprendiz,
já desenvolvida em seu texto anterior: Mestre ignorante. O autor
afirma que o processo hierarquizante de causa e efeito, ou seja,
da passagem da ignorância para o esclarecimento ou conhecimento,
é um modelo de desigualdade e de embrutecimento intelectual,
e provoca ainda mais uma distância entre recepção e produção,
ao invés de aprofundá-la. Rancière afirma categoricamente que a
emancipação é o contrário do embrutecimento. A noção de espec-
tador emancipado parte do argumento de que nenhum espectador é
ignorante, porque o saber é uma categoria relativa:

Pois, na verdade, não há ignorante que não saiba um monte


de coisas, que não as tenha aprendido sozinho, olhando e
ouvindo o que há ao seu redor, observando e repetindo, enga-
nando-se e corrigindo seus erros. (RANCIÈRE, 2012, p. 13)

É a ideia de que eu sei aquilo que você não sabe, porém, você sabe
muitas coisas que eu não sei, e neste ponto é possível um processo
de retroalimentação de saberes. Rancière (2012, p. 14), desse modo,
defende a igualdade das inteligências quando afirma: “A emanci-
pação intelectual é a comprovação da igualdade das inteligências”.
Cada sujeito possui algum tipo de saber que pode ser compartilhado,
se for colocado em processo de diálogo e trocas de conhecimentos.
Cada espectador pode identificar signos teatrais e produzir sentidos
através do processo de comparação do desconhecido com aquilo
que ele conhece. Jacques Rancière afirma que a tarefa do artista é

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proporcionar uma experiência ao espectador, e não manipular de
forma fechada os sentidos de uma obra.

Contribuições da estética relacional de Nicolas Bourriaud

Toda obra de arte pode ser definida como um


objeto relacional, como o lugar geométrico
de uma negociação com inúmeros
correspondentes e destinatários.

(BOURRIAUD, 2009, p. 37)

O crítico de arte Nicolas Bourriaud discute, no livro nomeado Estética


Relacional (2009), quais são os interesses da arte contemporânea
e suas efetivas relações com a sociedade, e lança algumas eluci-
dações que abordam a tarefa das redes e como elas se conectam
com os procedimentos de relação com o espectador. Bourriaud,
já em sua introdução, identifica as dificuldades que os críticos apre-
sentam ao analisarem as práticas contemporâneas, por acharem
que a originalidade está dizimada ou que as obras se apresentam
por demais estilhaçadas, fragmentadas e ilegíveis de sentido para
o público. O autor defende uma visão de superação do hábito dos
críticos em questionarem a validade das práticas contemporâ-
neas, recorrendo a discursos conceituais para afirmar que elas não
se configuram como arte.
Para tanto, Bourriaud se arrisca e define que a arte é uma “ativi-
dade que consiste em produzir relações com o mundo com o auxílio
de signos, formas, gestos ou objetos” (BOURRIAUD, 2009, p. 147)
e, ao final do livro, há um glossário, no qual o autor define inclu-
sive o que é arte relacional e estética relacional, com sentidos que
se entrecruzam. A arte relacional é um “conjunto de práticas artís-
ticas que tomam como ponto de partida teórico e prático o grupo

Teorias e olhares sobre o espectador teatral contemporâneo 99

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de relações humanas e seu contexto social, em vez de um espaço
autônomo e privativo”. (BOURRIAUD, 2009, p. 151)
Já a chamada estética relacional é a “teoria estética que con-
siste em julgar as obras de arte em função das relações inter-
-humanas que figuram, produzem ou criam”. (BOURRIAUD, 2009,
p. 152) Bourriaud compreende que a obra de arte é por si mesma
relacional, porém, a comunicação contemporânea está condicio-
nada por espaços de controle, devido à proliferação desenfreada
dos espaços virtuais: mídias, internet, redes sociais. Segundo o
autor, a mediação presencial é um fato cada vez menos frequente
em nossa atualidade.
Além da ausência de momentos de troca presencial entre
artistas e espectadores, que o autor francês intitula de “espaços de
convívio”, Bourriaud aponta uma falta de interesse pelas práticas
contemporâneas por causa do intenso aumento do consumismo. O
espectador estaria fadado a assumir uma condição de “consumidor
do tempo e espaço” (BOURRIAUD, 2009, p.  11), pois as relações
sociais estão cada vez mais mediadas ou simbolizadas pelas mer-
cadorias e pelos produtos padronizados. Uma importante visão
crítica sobre o consumismo na cultura é elaborada por outro estu-
dioso, Nestor Canclini (1995), ao afirmar que a massificação veicula
produtos baseados na busca do novo e do descartável e, principal-
mente, no espírito de encantamento dos consumidores.

Muito do que é feito atualmente nas artes é produzido e


circula de acordo com as regras das inovações e da obso-
lescência periódica, não por causa do impulso experimen-
tador, como no tempo das vanguardas, mas sim porque as
manifestações culturais foram submetidas aos valores que
dinamizam o mercado e a moda: consumo incessantemente
renovado, surpresa e divertimento. (CANCLINI, 1995, p. 18)

No sentido de afastar um olhar alienado e massificador sobre a


cultura e a arte, a tentativa das práticas contemporâneas, portanto,

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incidem diretamente sobre como as experiências propostas pelos
artistas podem negar hábitos condicionantes e alienantes para as
relações sociais. No lugar da expressão obra de arte, Bourriaud uti-
liza as noções de experiência, prática e encontro, com o objetivo de
consolidar a ideia de que a arte contemporânea opera a partir de
um objeto fixo, mas pela mediação entre sujeitos num determinado
tempo-espaço. O crítico francês afirma:

A obra de arte não é mais aberta a um público universal


nem oferecida ao consumo numa temporalidade ‘monu-
mental’; ela se desenrola no tempo de acontecimento para
um público chamado pelo artista. [...] espectador vai ao local
para constatar um trabalho, que existe como obra de arte
apenas em virtude dessa constatação. (BOURRIAUD, 2009,
p. 41)

Nicolas Bourriaud defende uma função social do artista contem-


porâneo que deseja reestabelecer relações subjetivas e afetivas que
foram minimizadas, devido a uma sociedade altamente tecnológica
e globalizada, pautada pela cultura de massa, através de práticas
simplórias e localizadas que buscam o contato individual e poético.
Dentro do contexto da arte, entendida como um encontro breve com
o receptor, Bourriaud cita outro artista conhecido: Marcel Duchamp,
que intitula rendez-vous d’art – encontros de arte –, um ato realizado
em determinado espaço e momento do dia, em que o artista esco-
lheria o primeiro objeto que estivesse ao seu alcance e o transformaria
em ready-made – objeto pronto de arte. Duchamp defende que são
“os espectadores que fazem os quadros” (BOURRIAUD, 2009, p. 37)
e estabelece que a transitividade é uma condição primordial para os
artistas e receptores contemporâneos. Os momentos de sociabili-
dade são experiências que proporcionam aos visitantes-espectadores
das obras-instalações um encontro que é mediado por alguma ação
coletiva, como, por exemplo, a feitura de uma comida, a instauração de

Teorias e olhares sobre o espectador teatral contemporâneo 101

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casamentos, festas, velórios, visitas, shows e outros modelos de conví-
vios sociais reconhecidos pelos espectadores.

Olhares do espectador

Toda forma é um rosto que nos olha.

(BOURRIAUD, 2009, p. 32)

Percorrido o caminho de revisão e reflexão de algumas teorias do


espectador, considero que a relação entre o espetáculo e aquele
sujeito que assiste à obra cênica é um lugar de constante cons-
trução de sentidos, consequência de um processo vivo de nego-
ciação, trocas, perdas, ganhos entre a produção e a recepção.
É impossível, nesse campo de investigação, uma análise cristali-
zada e fechada. A metáfora do “circuito de focagem da atenção”,
proposta por Marinis, ou de um processo de “vetorização da análise
teatral”, como propõe Pavis, vislumbram a possibilidade de um trân-
sito contínuo entre a produção-criação e a recepção, que são forne-
cidas pelos próprios procedimentos de criação, advindos das esco-
lhas de cada encenação. É relevante destacar que Marco de Marinis
e Patrice Pavis apresentam formas distintas de se conceituar a aná-
lise do espetáculo ou a relação do espectador com a cena, porém,
é certo afirmar que ambos dão relevância à presença e ao ponto
de vista da recepção, autorizando a essa uma maior participação na
complexa máquina teatral.
As breves elucidações que desenvolvi neste texto não são sufi-
cientes para dar conta da amplitude do tema e das questões sobre o
espectador teatral, mas, de todo modo, ainda que de maneira recor-
tada, são tentativas que mostram que tais experiências merecem
um lugar privilegiado dentro dos estudos das artes cênicas.
Uma das preocupações da arte contemporânea está justamente

102 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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situada nas relações entre a experiência e a obra em contínua
construção. A noção de público não apresenta apenas o sentido
de conjunto de espectadores, mas como um bem comum que
tem o objetivo de ser compartilhado, como um ato ético de ação.
Defende-se um papel pedagógico, filosófico e coletivo da ação
junto ao espectador, relacionado à tarefa estética, pois a obra tea-
tral é uma rede de linguagens maleáveis, conduzida pelo artista
que provoca uma experiência poética em conexão com a recepção.
Relações humanas são culturalmente construídas para além da efe-
meridade do evento cênico. Torna-se imprescindível o encontro e o
confronto com o espectador, a fim criar uma esfera ampla de expe-
riências e, finalmente, uma mediação criativa e sensível.

Referências

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução Denise Bottmann.


São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CANCLINI, Nestor. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais
da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da
língua portuguesa. 2. ed. 15. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
DESGRANGES, Flávio. A inversão da olhadela: alterações no ato do
espectador teatral. São Paulo: Hucitec, 2012.
MARINIS, Marco de. En busca del actor y del espectador. Buenos Aires:
Galerma, 2005.
OLIVEIRA, Letícia Mendes de. Estamos trabalhando para vocês: práticas e
teorias da dramaturgia do espectador no teatro contemporâneo brasileiro.
2014. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. Tradução Sérgio Sálvia Coelho.
São Paulo: Perspectiva, 2003.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução Ivone Benedetti.
São Paulo: Martins Fontes, 2012.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre emancipação
intelectual. Tradução Lílian do Valle. São Paulo: Autêntica, 2007.

Teorias e olhares sobre o espectador teatral contemporâneo 103

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Capítulo 6

SUBLIME É A NOITE: PROCESSOS DE


CRIAÇÃO DRAMATÚRGICA PARA UM
ESPETÁCULO DE FORMATURA COM
ESTUDANTES DE TEATRO

Paulo Henrique Alcântara

O presente artigo apresenta uma reflexão sobre como se deu o pro-


cesso de criação da dramaturgia de um espetáculo de graduação
do curso de Artes Cênicas da Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia (UFBA): Sublime é a noite. Abordo aspectos envol-
vendo a construção da peça, procedendo uma análise das esco-
lhas que conduziram a elaboração do texto, base da encenação
com os discentes.
A cada ano, um professor ou professora dirige o espetáculo
com o qual uma turma conclui seu ciclo de aprendizado. Assim,
fui o docente designado para a montagem de formatura em inter-
pretação teatral no ano de 2017. Tal convite ensejou a procura por
textos que comportassem 14 integrantes do elenco, considerando
seus desejos e expectativas legítimas de atuação significativa e visi-
bilidade na cena, afinal, um espetáculo de formatura culmina numa
trajetória de aprendizados, o corolário de um período acadêmico
voltado para o estudo da arte de interpretar.
As opções de obras de outros dramaturgos a serem encenadas
não foram mais atraentes do que a escolha por uma dramaturgia
autoral, impondo-me, assim, o desafio de escrever e encenar uma

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peça para os estudantes, que acolheram com entusiasmo a opção
do professor por montar algo de sua autoria. Antes do primeiro dia
de encontro, já havia a convicção de criar o texto, o que aconteceria
ao longo dos ensaios, realizados durante todo um semestre letivo.
Quanto ao universo temático, percebia que a criação seria tocada
e inspirada por aspectos do realismo mágico, o que levou o elenco,
seguindo uma recomendação, a ler o romance Cem anos de solidão,
de Gabriel García Márquez (2005).
O primeiro dia de ensaio estabeleceu a parceria entre o elenco
ávido e o professor na função de dramaturgo-encenador motivado
a escrever e encenar a peça. O compromisso firmado com a turma
impeliu o autor à criação, precisando dar conta de uma nova obra,
sem os adiamentos que acontecem quando, no ato solitário da
escrita, esta é desenvolvida, por vezes, de forma intermitente.
Algumas ideias que não chegaram a ser finalizadas foram recu-
peradas, “tiradas da gaveta”, como se costuma dizer na linguagem
de quem escreve. Recorri a duas sinopses que esperavam a hora
de serem engendradas na trama de textos e tomarem corpo em
cena. Era chegada a hora, diante da missão à frente do espetá-
culo de formatura, de desenvolver as propostas, as quais foram
conectadas a outras histórias que resultaram em Sublime é a noite.
(ALCÂNTARA, 2021)
Uma das sinopses dizia respeito a uma inimizade entre duas
vizinhas. Uma delas, pela sua beleza, é dotada de um fascínio que
atiça nos homens a danação, a perdição, para desespero da per-
sonagem rival, cujo noivo ficou encantado com a tal mulher irre-
sistível. Já a outra sinopse envolvia o dia a dia de uma zeladora de
cemitério, às voltas em colóquios com os mortos. Sempre apreciei
narrativas envolvendo fantasmas, seres dramaturgicamente fas-
cinantes em seu inconformismo com o fim da existência, ousando
extrapolar o silêncio definitivo, pois ainda têm muito o que falar e,
por vezes, tais falas são impulsionadoras de conflitos no mundo dos
vivos. Como exemplo, entre tantos, há o fantasma do pai de Hamlet,
de Shakespeare (2003), autor que apreciava tais personagens,

106 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 106 30/11/2022 16:46:00


os quais aparecem também em outras de suas realizações, como
Macbeth. (SHAKESPEARE, 2012)
Na sinopse, que serviu de base para Sublime é a noite, os fan-
tasmas rompem os limites do além para conversar com a zeladora,
dotada de um dom todo especial para ouvir e falar com os finados, res-
ponsáveis por transformar, paradoxalmente, o cemitério em um lugar
cheio de vida. Aqui, Érico Veríssimo (2006), por meio de seu Incidente
em Antares, foi uma inspiração. Assim, à medida que o jovem elenco
ficava sabendo de mais uma referência literária para a dramaturgia,
era incentivado a conhecê-la, o que, consequentemente, amparava e
inspirava o processo de interpretação.
Da consulta às sinopses engavetadas e entrecruzadas, portanto,
surgiu um primeiro esboço de trama, a qual mostrava a rivali-
dade entre Juventa e Dona Aminta, como foram batizadas as vizi-
nhas inimigas. Dona Aminta fazia visitas regulares ao cemitério,
cuidado por Dona Maria D’Ajuda, onde depositava suas rosas no
túmulo do noivo, o finado Serafim, o qual, por não ter seus senti-
mentos correspondidos por Juventa, morreu de amor.
E, assim, Sublime é a noite começava a ganhar um enredo e uma
definição de lugar: Paiol, “porque toda história se passa em algum
lugar, seja na Grécia, em Livramento de Nossa Senhora ou no Leblon”
(ALCÂNTARA, 2021, p. 15), como anuncia o narrador ao introduzir a
peça. Ele é a figura a quem recorri para ajudar a conduzir a trama,
ambientada nos anos 1930 e composta por muitos personagens e
suas vastas emoções. O narrador surge como o braço direito do autor,
contribuindo para interligar acontecimentos, esclarecer aspectos
importantes e, por vezes, relatar o já acontecido, mas não presen-
ciado pelo público. É o que se pode constatar no fragmento abaixo:

BROMUALDO-NARRADOR: E a noiva de Zaulo, vinda da


capital, vai entrar pra história. E ela já desfrutava o que os
moradores de Paiol desconheciam: o bonde, a última moda
e o cinema. (ALCÂNTARA, 2021, p. 65)

Sublime é a noite 107

Pesquisa.indb 107 30/11/2022 16:46:00


Bromualdo, além de narrar, tem sua existência própria e, quando
não está às voltas na sua condição de conquistador e boêmio,
apaixonado por uma prostituta, Marie Monjour, também se incumbe
da missão de contar a história, portando-se como um personagem-
-narrador. Bromualdo atreve-se, por vezes, a incorporar algumas
figuras episódicas, como a já citada Dona Maria D’Ajuda, zeladora
do cemitério, e Dona Colotilde, que, quando põe as cartas para seus
clientes, assume a identidade de “Madame Colotilde”, munida,
devidamente, de um forte sotaque espanhol.
Ao longo dos ensaios, as cenas, sem ordem cronológica,
eram entregues à turma, partes de um todo em construção,
fragmentos de uma escrita em curso, cujos dados iam sendo
interligados a um mosaico dramático, o qual, pouco a pouco,
ganhava liga e recebia ajustes. Os estudantes, assim, vivenciavam
um processo de criação em aberto. Algumas certezas sempre exis-
tiram e foram impressas no texto final, como o realismo mágico,
que concedeu o tom maior da obra, a envolver, sobretudo, a família
moradora da casa das nove janelas, marcada por uma sina: os nas-
cidos nessa residência nunca podem sair de dia, apenas à noite,
caso contrário, estão sujeitos a um revertério, ou seja, a uma
grande e irreversível transformação em suas vidas.
Ora, o que é o revertério senão uma peripécia, uma reviravolta,
termos tão familiares para a dramaturgia, cujos elementos estru-
turantes precisam movimentar a máquina do drama, colocá-la em
ação pela mudança de rumos, pela reversão de expectativas, pela
eclosão do inesperado. O revertério, portanto, provoca turbulências,
dispara problemas, impulsiona a ascensão dos personagens pelo
arco dramático que enreda o público num crescendo de aconteci-
mentos, intrigas e emoções. Na linguagem do drama, revertério leva
à complicação, termo que Luiz Marfuz (2017, p. 34) define bem:

A complicação é o conjunto de situações que se sucede


ao conflito, marcado por crises, revelações, expectativas,
novas informações, armadilhas, promessas não cumpridas

108 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 108 30/11/2022 16:46:00


e ações que mudam o curso dos acontecimentos por meio
do suspense e da surpresa. Um elemento novo é intro-
duzido, a trama evolui, as personagens se complicam e,
em decorrência, a ação adquire maior ou menor inten-
sidade. Além disso, é diante das situações derivadas da
complicação que as personagens podem revelar atitudes
e praticar atos antes desconhecidos, surpreendendo ou
criando o suspense no espectador.

As complicações, advindas do revertério, envolvem a família que


ocupa grande espaço na cena e, em torno dela, gravitam demais
personagens que interferem no rumo dos acontecimentos e preci-
pitam a exposição de Juventa e seus parentes ao sol, a força temida
e desejada em Sublime é a noite.
O elenco ajudava a dar forma à dramaturgia, pois, à medida
que as cenas eram entregues e ensaiadas, o professor-dramaturgo
ia percebendo, com a ajuda das atuações, para onde direcionar a
trama. Importante ressaltar que os estudantes contribuíam com
sugestões de nomes para seus personagens e dados significativos
para suas biografias. Houve impasses em relação a certos dados
da narrativa, dúvidas sobre como concluir uma cena, por exemplo.
Em situações assim, a turma também opinava, participando ativa-
mente da confecção da peça.
Com o avanço dos ensaios e do texto, o passado da família
era reconstituído por meio da revelação de um álbum de retratos,
guardando a memória dos antepassados, alvos do revertério, entre
eles, Tia Marcolina, a qual, ainda jovem, saiu ao sol e, subitamente,
envelheceu; Vovó Florilda, que despertou derramando lágrimas para
sempre; e Tio Chico, vitimado pela loucura. Herdeira da mesma sina,
Juventa, nome da deusa da juventude, é vista liderando a casa e
dando ordens. Ela também cumpre as consequências de seu rever-
tério, que a fez permanecer eternamente jovem, a contrariar o tempo.
Como ela mesma declara: “Eu sou Juventa, uma moça quase secular”.
(ALCÂNTARA, 2021, p.  132) Entretanto, o que parece ser razão de

Sublime é a noite 109

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contentamento, para a personagem é motivo de tormento, e ela,
no terceiro ato, explica o porquê.
A história ia sendo estruturada ao longo de três blocos de
cenas ou atos, constituídos de apresentação, desenvolvimento-
-complicação e resolução, movimentados por personagens per-
tencentes a uma galeria diversa, da qual fazem parte a moça-
-senhora rica abandonada no altar pelo noivo (Juventa); a noviça
expulsa do convento (Prima Filumena); o rapaz transformado
em mulher (Zaulo); irmãs que se rebelam contra convenções
(Prudência e Virtudes); e uma beata presa a um amor do passado
(Dona Aminta). Há, também, a moça ousada da capital (Petúnia);
um professor apaixonado (Professor Simplício); um boêmio con-
quistador (Bromualdo); o velho padre da paróquia (Padre Sinval);
uma viúva fogosa (Viúva Sizernanda); e um rapaz vindo da capital
(Valeriano Terceiro). Criadas, meretriz e até fantasmas, como já
mencionado, somam-se ao painel de personagens.
Tais criaturas foram entrelaçadas de formas diversas. A uni-las,
um temor em comum: a chegada de um “vento mau”, como dizem
os moradores, que de tempos em tempos atravessa a cidade, arras-
tando consigo tudo e todos. Nunca se sabe quando surgirá, mas,
ao passar por Paiol, causa estragos. Enquanto o vendaval não chega,
o que só acontece no terceiro ato, cada um leva sua vida, pondo-a,
por vezes, de cabeça pra baixo.
O primeiro ato tem a função de introduzir os personagens e seus
objetivos. Nele, são abertas as portas da morada das nove janelas.
Em artigo para o livro Reflexões sobre a cena (2005), Enaura Silva
e Sheila Maluf expressam bem as diferentes simbologias da casa,
importantes para entender a dramaturgia de Sublime é a noite:

A casa se apresenta como símbolo feminino, com o sentido


de útero, refúgio, seio maternal ou casulo, cárcere, túmulo,
podendo ainda significar o ser interior, seus aposentos ou
andares os estados da alma ou os diversos níveis do psi-
quismo. A fachada figura o lado manifesto do ser, a máscara

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ou a aparência; o telhado, o pensamento e o controle da
consciência; os andares inferiores marcam o inconsciente.
Os quartos são o espaço das dilacerações íntimas. (MALUF;
SILVA, 2005, p. 122)

Tais conexões ganham correspondência nas cenas que acon-


tecem dentro da casa das nove janelas, onde assistimos a Juventa
e seus sobrinhos: Zaulo, Severa, Prudência e Virtudes. Zaulo espera
a chegada da noiva, Petúnia, a qual nunca viu, mas a quem está pro-
metido por um acordo entre famílias. Enquanto Petúnia não vem, ele
se diverte no bordel de Madame Liúba com o amigo Bromualdo e
foge das investidas da Viúva Sizernanda, obcecada por ele. Não tarda
muito, Zaulo viaja para buscar a Prima Filumena, uma parenta dis-
tante expulsa de um convento, e retorna no segundo ato trazendo-a.
Antes, cabe a ele também a missão de contratar seu amigo, Professor
Simplício, para ensinar as irmãs Prudência e Virtudes a ler. As moças,
numa atitude de insubmissão, insistem em ser letradas numa cidade
onde as mulheres não tinham acesso aos estudos.
Outra personagem conhecida no primeiro ato é Severa. Ela havia
fugido após romper o noivado. Tempos depois, tentou voltar, mas foi
expulsa por Juventa. O que esta não sabe é que Severa, se fazendo
passar pela criada Maria Aparecida, está ocupando o posto de cozi-
nheira na casa das nove janelas, devidamente escudada por uma
norma: os patrões não vão à cozinha e as criadas nunca se aproximam
da sala. Severa vai trabalhar ao lado de outra criada, Gerundina,
a quem coube, dramaturgicamente, a função de alívio cômico,
ou seja, trazer o componente do humor. Gerundina serve aos patrões
e relata para Dona Aminta, em troca de pagamento, os aconteci-
mentos envolvendo a família.
Foi recomendado ao elenco assistir ao seriado inglês Downton
Abbey (2005), criado pelo roteirista Julian Fellowes, passado num
casarão de nobres ingleses no início do século XX. A obra audiovi-
sual expõe o convívio entre nobres e seus criados, dividindo ambos
o protagonismo. Dela veio a inspiração para criar Gerundina e

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Severa, serviçais apresentadas em suas íntimas e complexas rela-
ções com os patrões. Para subsidiar o processo criativo, a turma
conferiu Downton Abbey e, assim, travou contato com o mesmo pro-
duto artístico que serviu de referência para o professor-dramaturgo.
Além do seriado, a turma viu o filme Bodas de sangue (2017),
de Carlos Saura, baseado na peça homônima de Federico Garcia
Lorca (1975), dramaturgo que também inspirou Sublime é a noite.
O elenco ainda leu Helena, de Machado de Assis (2009), em torno
do qual gira umas das cenas, quando o romance é assunto de uma
aula ministrada pelo Professor Simplício. Desta forma, os estu-
dantes eram incentivados ao ato de pesquisar, aprendendo a impor-
tância de buscar referências (audiovisuais, literárias e outras) para o
processo de criação em teatro.
Após o primeiro ato, o segundo poderia ter como subtítulo
“os que chegam de longe”. É nele que a ação avança, impulsio-
nada por personagens provenientes de fora de Paiol para complicar,
segundo as leis do drama, a vida dos habitantes. Uma das forasteiras
é Petúnia, a noiva prometida de Zaulo, que chega da capital e entra
em conflito com Juventa e Viúva Sizernanda, a eterna pretendente
ao posto de esposa do varão da casa das nove janelas. Petúnia,
do alto de seu porte aristocrático, rejeita os costumes da província e
da família “estranha”, como adjetiva os parentes do noivo.
Petúnia não se mostra subserviente à matriarca e escandaliza
fumando e usando calças. Enquanto aguarda impaciente a volta de
Zaulo, que havia viajado para resgatar a Prima Filumena do con-
vento, ela se depara com a Viúva Sizernanda, que a assusta com as
histórias sobre a família, a quem define como “uma gente dada a
sortilégios”. (ALCÂNTARA, 2021, p. 77) A viúva denuncia o tempe-
ramento explosivo e boêmio de Zaulo, acusa Juventa de perigosa e
adverte contra o vento, ameaça comum a todos da cidade.
Após Petúnia, mais uma personagem, Prima Filumena, aparece
e é a disparadora de um revertério em Zaulo, cujo efeito gera a
grande expectativa em torno da qual o segundo ato é construído.
Prima Filumena foi expulsa do convento após dizer às freiras que

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conversava com os santos. Trazida pelo rapaz, chega em Paiol,
onde estão os únicos parentes que a podem acolher. Tal acontecimento
teve sua inspiração literária comentada pelo Professor Simplício, que,
ao reencontrar Zaulo, diz: “O amigo, então, cumpriu sua missão tal qual
nos romances de cavalaria: resgatou do convento a inocente Prima
Filumena e a trouxe em seu cavalo”. (ALCÂNTARA, 2021, p. 86)
E assim, Zaulo, atraído pelos predicados da Prima Filumena,
não resiste a tomar banho de rio com ela. E de dia! Ele encanta-
-se pela ex-noviça e, sucumbindo ao desejo, assume os riscos para
atender a um impulso que desagrada as leis da sua família, mas favo-
rece as leis do drama, pois o desatino incrementa a história. Após a
familiaridade com o termo revertério e suas consequências impla-
cáveis, a plateia ouve o moço anunciar para os parentes o que lhe
aconteceu: a família, como pode ser lido abaixo, especula e surgem
elocubrações que inquietam os personagens e chegam ao público,
alvo do intento do autor de mantê-lo capturado pela resposta à clás-
sica e infalível questão – “O que teria acontecido”?

JUVENTA: Valha-me, Deus! O revertério de Zaulo está


a caminho.
PRUDÊNCIA: E agora, o que será de você?
ZAULO: Será que vou amanhecer velho?
JUVENTA: Ou louco?
ZAULO: Louco?
JUVENTA: Feito tio Chico, irmão de mamãe. Tio Chico teve
o revertério e ficou desvairado. Subia no telhado e ficava lá
olhando a lua. Quando saia de casa, calçava apenas um pé
do sapato. O outro, levava na mão, para jogar em quem o
chamasse de doido.
ZAULO: Doido, eu? Será?
PRUDÊNCIA: A senhora não nos falou de tio Chico.
JUVENTA: Aquele baú não comporta todos os fantasmas
da família.
ZAULO: Amanhã não serei mais o mesmo.
(ALCÂNTARA, 2021, p. 89-90)

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Em seguida, Zaulo fecha-se dentro do quarto à espera da grande
guinada. Antes da resposta ao que lhe aconteceu ser dada, a tensão
aumenta no segundo ato, pois Prima Filumena provoca novos e
sempre bem-vindos conflitos. Um deles leva Dona Aminta à casa
de Juventa, acreditando ser ela a mulher de véu que deposita rosas
no túmulo do seu falecido noivo. Em verdade, é Prima Filumena
quem faz isso. Como insiste no envolvimento entre o finado
Serafim e Juventa, a carola deduz ser a rival quem coloca as rosas
na lápide, levando-a a inquirir Juventa, que nega. No final da cena,
surge uma confissão. Dona Aminta arrefece a ira ao ouvir Juventa
abrir o coração, reafirmando seu amor frustrado por um noivo que
a abandonou no altar, o que provocou uma profunda decepção,
fazendo-a fechar-se para outros relacionamentos.

JUVENTA: (tempo. Segura Dona Aminta pela mão e a coloca,


sentada, ao seu lado) Dona Aminta, seu noivo pôs os olhos
em mim e viu uma moça por quem se encantou, à minha
revelia, mas não viu a velha que está dentro de mim e que
não se encantou, nem por ele, e nem por homem nenhum
nunca mais. Está vendo esta moça?
DONA AMINTA: Estou.
JUVENTA: O seu noivo também viu. Está vendo esta velha?
DONA AMINTA: Não!
JUVENTA: O seu noivo também não viu. Existe uma moça
do lado de fora, mas existe uma velha aqui dentro. E o meu
coração, Dona Aminta, a senhora vê? Não! Ele está trancado
a sete chaves. Eu também não vejo o seu, mas sei que ele é
igual ao meu: fechado. Valeriano, meu noivo, levou com ele
as chaves do meu coração, assim como Serafim levou com
ele as chaves do seu. (ALCÂNTARA, 2021, p. 102)

Dona Aminta fica convencida com os argumentos e indaga


sobre a razão das rosas de Juventa serem mais belas do
que as suas. A resposta dá a motivação para a instalação de
um flashback, dispositivo dramatúrgico responsável por fazer

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a ação recuar no tempo e mostrar um flagrante do romance de
Juventa com um jardineiro negro, Valeriano. Ousando desa-
fiar a família e a sociedade, ela se envolve com o empregado,
com quem pretendia se casar. Tal cena, curtíssima, é decisiva
para um momento futuro no terceiro ato.
Além do romantismo presente no flashback entre Juventa e
Valeriano, surgem cenas nas quais o realismo mágico mescla-se ao
humor, a exemplo da cena entre Prima Filumena, Dona Aminta e
Dona Maria D’Ajuda. Trata-se de um diálogo importante sob vários
aspectos. O cenário é o cemitério, local no qual Dona Maria D’Ajuda
conversa com os mortos e transmite, vindo deles, os recados para
Prima Filumena. Esta, por sua vez, é revelada como a tal moça de véu
que deposita rosas para o Finado Serafim. Dona Aminta faz a desco-
berta ao ver a própria Prima Filumena à beira do túmulo. Enciumada,
esbraveja e entra em choque com Dona Maria D’Ajuda, instalando-se
um embate cômico entre elas que destoa da atmosfera lúgubre de
um cemitério. A cena teve inspiração nos quiprocós que tanto aju-
daram dramaturgos como Ariano Suassuna, Martins Pena e Molière.
Em seguida, a peça atinge o seu terceiro e último ato. Nele,
a carpintaria do drama instalou duas estruturas básicas sobre as
quais assenta o trecho final da obra. O terceiro ato pode, portanto,
ser subdividido em duas partes. Na primeira, as consequências
do revertério de Zaulo são conhecidas. Com inspiração no perso-
nagem-título do romance de Virgínia Woolf (2014), Orlando, o qual
se transforma em mulher, Zaulo, ao se deparar com o espelho,
se vê encarnado numa moça. Com um adendo importante: em cena,
no lugar do ator que o interpretava, surge uma atriz, que passa a
ser a versão feminina do rapaz. As cenas seguintes vão da autorre-
jeição de Zaulo à incompreensão, às dúvidas, até chegar, finalmente,
à aceitação de quem se é.
Portanto, toda a primeira parte do terceiro ato está ancorada
na forma como Zaulo lida com seu revertério e como os demais
encaram a virada do personagem. A escolha dramatúrgica recaiu
por diferentes formas de reação. Diante do amigo professor,

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Zaulo ouve palavras de conforto e estímulo. Ao escutar Zaulo falar
da “desgraça” que o atingiu, o professor pondera: “E não pense
em desgraça. Isso não é um privilégio seu. Como diz um poeta,
de quem gosto muito e que morreu tão moço, ‘somos iguais em
desgraça’”. (ALCÂNTARA, 2021, p.  116) A dramaturgia, aqui,
pede licença poética, desafia as leis da exatidão cronológica e faz
o professor, situado nos anos 1930, citar o cantor e compositor
Cazuza, falecido em 1990, com apenas 32 anos.
Zaulo, transmutado em mulher, segue centralizando as cenas do
terceiro ato, uma delas acontece com Petúnia, com quem dialoga
sem revelar a verdade sobre quem é. Zaulo mostra-se como uma
parenta que acabara de chegar e suas falas são dúbias, evitando
a confissão. A próxima a ver o personagem é Viúva Sizernanda.
Ela apenas olha a mulher que assumiu a nova pele que Zaulo habita
e logo se dá conta de estar diante do seu amor. Não é preciso dizer
nada e a viúva desfalece ao perceber o que sucedeu.
Em seu derradeiro diálogo, Zaulo encara a Prima Filumena,
cuja reação é natural, afinal, como ela mesma diz: “Os santos
me contam cada façanha!”. (ALCÂNTARA, 2021, p.  127) O des-
fecho da Prima Filumena cruza com o de Zaulo, que se encar-
rega de levar a prima para um novo convento, na esperança de, no
meio do caminho, convencê-la a desistir de se tornar freira. Zaulo
já não possui mais um corpo masculino, todavia, em seu coração,
ainda persiste o mesmo amor que o fez ficar seduzido pela jovem,
com quem sai definitivamente de cena.
À saída de Zaulo e Prima Filumena, segue a segunda parte do
terceiro ato, no qual o passado bate à porta de Juventa. Ela recebe
um rapaz, Valeriano Terceiro, trazendo uma carta do avô, Valeriano,
para ela. O tempo pregou, com a licença do trocadilho, uma “peça”
em Juventa. O neto do jardineiro que a abandonara no altar traz
a tal carta na qual o avô pede desculpas e explica o que acon-
teceu. Entretanto, o que a matriarca não esperava é que Valeriano
Terceiro fosse idêntico a Valeriano, o que a faz sentir-se, novamente,
diante do próprio noivo.

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Para fins de efeito cênico coerente com o que o drama pede,
o mesmo aluno-ator que interpretara Valeriano no flashback do
segundo ato assume o papel do seu neto, Valeriano Terceiro, no ato
final, quando a cena descrita acima acontece e mescla gêneros dis-
tintos: o melodrama, traduzido na entrega de uma carta e na noiva
abandonada no altar, e o realismo mágico, expresso no encontro
entre o rapaz incrédulo diante da antiga noiva de seu avô, tão moça
quanto ele. Tais aspectos aproximam a peça do que se pode definir
como um “melodrama mágico em três atos”.
Próximo ao final, Juventa confronta-se com a outra sobrinha,
Severa, que, finalmente, após quebrar uma xícara de valor sen-
timental, revela-se por trás de sua condição de criada, recurso
adotado para ficar mais perto da família. O passado, mais uma
vez, vem à tona. Severa explica a razão de ter fugido e a conse-
quência de seu revertério: o espelho não a reflete mais. Tal infor-
mação é importante para Juventa e o público concluírem que
o revertério está simbolicamente ligado ao espelho, que passa
a refletir a nova faceta dos integrantes da família, após estes
ousarem sair ao sol.
O epílogo da peça acontece com o vendaval que chega a Paiol.
E já que, segundo adverte a dramaturgia, nada está tão mau para os
personagens que não possa piorar, a ventania encarrega-se do clímax
e varre a cidade, levando consigo uma das personagens, Prudência.
Ao longo de todo o processo de criação, a dramaturgia,
aqui exposta, foi erguida tanto individualmente quanto coletiva-
mente com os estudantes, os quais iam estabelecendo intimidade
com seus personagens e vendo-os avançar à medida que Sublime
é a noite ia sendo concebida. O texto emergiu, assim, tanto no ato
solitário do dramaturgo quanto no calor dos ensaios, quando diá-
logos inteiros surgiram, sendo imediatamente testados durante a
contracenação.
A montagem contou, em sua ficha técnica, com profissionais
experientes e destacados do teatro baiano, que contribuíam para
uma encenação criada especificamente para 14 formandos que

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desenvolveram seus personagens a partir de um texto inédito con-
cebido com eles e, especialmente, para eles.
O espetáculo teve sua estreia em setembro de 2017, no Teatro
Martim Gonçalves, localizado na Escola de Teatro da UFBA, onde o
elenco teve a oportunidade de apresentar o resultado de sua gra-
duação em interpretação teatral. Tal vivência artística, surgida em
meio a um processo didático, foi responsável pela criação de
uma peça sobre família, as difíceis mudanças pelas quais o ser
humano passa e o medo diante de tais transformações, próprias ao
ato de existir.

Referências

ALCÂNTARA, Paulo Henrique. Sublime é a noite. Salvador: Edufba, 2021.


ASSIS, Machado de. Helena. Rio de Janeiro: Paulus, 2009.
BODAS de sangue. Direção: Carlos Saura. Produção: Emiliano Piedra.
Espanha, 2017. 1 DVD (72 min), son; color.
DOWNTON Abbey. Direção: Brian Percival; Bem Bolt; Brian Kelly; Andy Goddard;
James Strong; Ashley Pearce. Produção: ITV Studios; Carnival Filmes;
WGBH-TV. Londres, 2015. 1 DVD (55 min), son; color.
LORCA, Federico Garcia. Bodas de sangue. São Paulo: José Aguilar, 1975.
MALUF, Sheila; SILVA, Enaura. As casas da morte em Lúcio Cardoso,
Nelson Rodrigues e Garcia Lorca. In: AQUINO, Ricardo; MALUF, Sheila (org.).
Reflexões sobre a cena. Maceió: Edufal; Salvador: Edufba, 2005.
MARFUZ, Luiz. Dramaturgia do acontecimento no telejornal: a emoção no
palco da notícia. Salvador: Edufba, 2017.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 2003.
SHAKESPEARE, William. Macbeth. Porto Alegre: L&PM, 2012.
VERÍSSIMO, Érico. Incidente em Antares. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
WOOLF, Virginia. Orlando. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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Capítulo 7

O MAL-ESTAR NO TEATRO
ANTIDRAMÁTICO E OS IMPASSES
DIANTE DA REPRESENTAÇÃO

Carlos Cézar Mascarenhas de Souza

O que dizer a respeito de haver algum mal-estar no teatro? E o que


o “drama” teria a ver com isso? Sem que se caia em algum exagero,
assistimos à emergência de toda uma voga de pensamentos anti-
dramáticos que, de algum modo, já se configura numa espécie de
antidramatismo. Por isso, ao lado destas interrogações, há quase
que imediatamente atrelada uma questão referente à problemática
da representação. Se existe um conceito que tanto tem sofrido com
os maus tratos provenientes dos equívocos nos processos de cog-
nição e entendimento, não apenas no campo da arte teatral como, de
resto, em todos os espaços em que se faça presente a ação humana
nos âmbitos das coletividades, esse tal conceito é, precisamente,
o da “Representação”. Não à toa, as crises políticas e culturais que
atualmente abundam, disseminando sobre o planeta, indicam, de
certa forma, uma intensa falta de credibilidade perante os discursos
que, em geral, vêm sendo enunciados. E isso não seria já um sin-
toma suficientemente eloquente, sinalizando haver aí certa falência
na linguagem por parte de quem tenta se representar através
dela? Quiçá, uma reflexão a partir desse “mal-estar no teatro” pro-
mova ao menos uma curiosidade para se pensar esses outros mal-
-estares que hoje contaminam nosso mundo em todos os setores da

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atividade humana. Todavia, no presente texto, iremos, a princípio,
restringir nossa reflexão ao campo da estética teatral, almejando,
ainda que de forma embrionária, delinear certo esboço no qual
possamos contribuir à articulação de uma teoria psicanalítica vol-
tada para o teatro. Portanto, abordo esse debate a partir de uma
perspectiva epistemológica transdisciplinar, em que os elementos
conceituais provenientes da Teoria poética do drama articulam-se
às contribuições teóricas dos campos da Filosofia e da psicanálise,
considerando que certos pressupostos do pensamento desenvol-
vido por Jacques Lacan, tais como as noções de Real e Semblante,
venham ajudar no entendimento de questões relativas ao problema
da representação e de seus respectivos impasses decorrentes da
relação do sujeito humano com a linguagem.
Peter Szondi, em Teoria do drama moderno (2006), refere haver
uma “crise do drama”, cujos primeiros sinais já teriam surgido por
volta de 1880, quando algumas obras começam a surpreender ao
denunciarem o esgotamento da estética naturalista, por meio de
procedimentos que visavam apresentar uma nova imagem do ser
humano diante das mudanças nos valores e sentidos da sociedade
daquele momento.
Entretanto, até que se chegasse às tais inovações, antes predo-
minou, durante muito tempo, o pressuposto da cena absoluta do
“drama puro”, também conhecido como “primário” ou “fechado”.
Nessa concepção, aí seria um lugar no qual se deveriam espelhar,
dramaticamente, os valores dos ideais burgueses na nascente
modernidade renascentista que sucedia à decadência da imagem do
mundo medieval. Assim, na idealização clássica do drama moderno,
buscou-se refletir uma realidade em que o elemento humano ocu-
paria o centro das ações nas cenas do palco à italiana, esta edifi-
cação erguida, por sua vez, a partir das descobertas dos estudos
ópticos sobre a perspectiva, cujas coordenadas estão na base da
ideia de representação desse período.
A noção de “drama” – que desde a poética de Aristóteles com-
porta o sentido referido à “ação” – tornou-se capital à constituição

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de um modelo fabular no qual se buscou dar relevo às ações susci-
tadas pelos diálogos entre os seres humanos. A partir dessa esfera
“inter” relacional impulsionada pelos posicionamentos das falas
é que se teve a oportunidade de refletir sobre a importância das
decisões e das escolhas, bem como das determinações e dos
valores relativos à liberdade. Então, instituiu-se a representação de
uma “ação interpessoal no presente”, supostamente acontecendo
no interior de uma moldura, livre de qualquer interferência externa
que não seja o que já se encontra inserido na situação do presente
da cena. Acreditou-se, aliás, que todo o poder do ilusionismo do
“ser” dramático iria depender dessas condições de existência. Daí,
Szondi (2006, p. 13-14, tradução nossa) afirma que:

Tudo o que estava aquém ou além desse ato deve se con-


siderar alheio ao drama: inexprimível enquanto expressão,
a alma fechada sobre si mesma já como ideia alienada ao
tema. E, especialmente o que não se exprime, o mundo das
coisas, quando ele não entrou nas relações inter-humanas…
A exclusiva primazia do diálogo, quer dizer, da expressão
inter-humana no drama, reflete o fato de que este aqui não
é outra coisa que a reprodução das relações inter-humanas,
que ele só conhece o que se vê à luz dessa esfera.1

Contudo, essa formulação mais rígida foi perdendo força, a ponto


de demonstrar-se ineficaz diante dos temas e problemas atinentes
às etapas seguintes da modernidade. Daí, foram sendo criadas as
condições para que aquela forma inicialmente fechada do drama

1 “Tout ce qui était en deçà ou au-delà de cet acte devait rester étranger au drame:
l’inexprimable aussi bien que l’expression, l’âme fermée sur elle-même comme l’idée
déjà aliénée au sujet. Et surtout ce qui ne s’exprime pas, le monde des choses, quand il
n’entrait pas dans le rapport interhumain… La primauté exclusive du dialogue, c’est-à-dire
de l’expression interhumaine dans le drama, reflète le fait que celui-ci n’est rien d’autre que
la reproduction des rapports interhumains, qu’il ne connaît que ce qui voit le jour dans cette
sphère”.

O mal-estar no teatro antidramático e os impasses diante da representação 121

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começasse a ceder e dar ocasião à aparição de uma forma dramá-
tica mais aberta. Autores como Ibsen, Tchekhov e Strindberg deram
início às primeiras manifestações de uma dramaturgia sintonizada
a certos aspectos das transformações históricas que afetaram de
modo substantivo os indivíduos. Uma outra paisagem humana se
revelou, chamando à atenção para uma gama de sentidos mais
complexos, no tocante à percepção da existência e, sobretudo, no
que concerne às questões da subjetividade. Consequentemente, os
autores intensificaram seus experimentos, explorando novos expe-
dientes e aprimorando as possibilidades da linguagem dramática.
É nesse sentido que Jean-Pierre Sarrazac (2017, p. xviii) observa:

A desordem com a qual se encontram confrontados Beckett


e tantos autores é a massificação consubstancial à socie-
dade industrial e que se agrava no mundo pós-industrial; é
a perda do sentido num universo pós-moderno; é o estado
geral do planeta no momento da globalização. É a devas-
tação generalizada. É o eco sem fim de Auschwitz e de
Hiroshima. Mas, se olharmos mais atrás, é forçoso cons-
tatar que os autores do início do século XX, os que foram
contemporâneos da Primeira Guerra Mundial, como expres-
sionistas, surrealistas, dadaístas, Artaud…, não tiveram que
gerir menos que seus sucessores essa inadequação funda-
mental, esse divórcio original entre forma e conteúdo que
engendra o princípio da desordem.

Nota-se que outras esferas, tidas como externas ao drama,


tal como a política e a economia, começaram a colocar em xeque a
ordem do modelo aristotélico – no qual a fábula se desenvolvia obe-
decendo aos princípios da unidade e da continuidade, com começo,
meio e fim –, ressaltando, assim, no trabalho de atualização e
de renovação da linguagem dramática, a importância de outros
fatores que nem sempre se apresentaram diretamente associados.
Desse modo, o que se vem assistindo, a partir de 1880, é algo da
ordem, diz Sarrazac, “de uma ruptura, permitindo a instauração

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de um novo paradigma, de um drama com uma forma mais aberta
e livre, ou, numa palavra, mais ‘rapsódico’”. (SARRAZAC, 2017,
p. XXI)2
Entretanto, a inovação estética muitas vezes dificultava a per-
cepção dos elementos que se introduziam no jogo, o que possi-
velmente motivou a precipitação de julgamentos e hipóteses em
desfavor do drama, que passou a ser visto como algo superado e,
para alguns, até morto. Mais uma vez, recorreremos a Sarrazac,
que efetuou um excelente balanço dessa questão:

Alguns, entre os quais Hans-Thies Lehmann, que forjou o


vocábulo ‘pós-dramático’, veem nesse processo os signos
evidentes da morte do drama. Eles se posicionam assim seja
na linha de Adorno, que considera que Fim de Festa, peça de
Beckett, teria realizado a autópsia do cadáver do drama, seja
na óptica do Brecht mais radical, o dos anos de 1920, que
‘esperava da sociologia que ela liquidasse o drama atual’.
(SARRAZAC, 2017, p. XIX)

Porém, Sarrazac adverte que uma avaliação colocada assim


nesses termos é bastante aquém e é insuficiente, na medida em que
não se dá conta de apreender as mutações que incessantemente vêm
acometendo o fenômeno dramático. Faz-se necessário acompanhar
certas nuances que, principalmente do ponto de vista do trabalho
com a escritura, nunca param de florescer, o que vai exigir da parte do
leitor/espectador uma atenção mais apurada para detectar “a vasta
empresa de desconstrução do modelo aristotélico”. (SARRAZAC,
2017, p. xxii) Somente assim será possível reconhecer certas pecu-
liaridades de uma realidade textual na qual a coexistência de ele-
mentos heterogêneos, cada vez mais, alarga o alcance do horizonte
em que o drama se expande. E é por isso que, a propósito desse

2 A escolha desse termo, segundo o autor, “vinha, em parte, do fato de que em música a
rapsódia era a forma mais livre, mas não ausência de forma”. (SARRAZAC, 2017, p. 332)

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“alargamento do drama”, Sarrazac (2017, p.  XX) se posiciona,
afirmando:

Deve-se entender que não subscrevo, de modo algum,


essa ideia da morte do drama e da entrada do teatro numa
era resolutamente ‘pós-dramática’. E é precisamente
sobre esse ponto que a fórmula aparentemente evasiva
e seguramente provocativa de Heiner Müller, um drama
é o que chamo de drama, se revela o mais precioso dos
viáticos: pensar o alargamento do drama – do lado épico,
mas também do lírico, e até mesmo do diálogo filosó-
fico, do documento e do testemunho –, de preferência
a ruminar sua morte e deplorar, à maneira de Lehman,
seu encolhimento e sua incapacidade de dar conta do
mundo no qual vivemos.

O que o autor firmemente observa é que, para se acompanhar


a evolução e o alargamento do texto dramático, será necessário
evitar a fixação nos critérios de um gênero que se pretendia “puro”.
Pois uma vez ocasionadas certas rupturas, promoveu-se uma
espécie de remanejamento nas concepções dos textos; tornando-os
abertamente permeáveis, mesclando-se aos discursos de diversos
gêneros e fazendo com que o produto daí resultante venha a ser
um desafio muito mais complexo à apreensão, não só para o leitor/
espectador como também ao trabalho da crítica.
Como foi dito anteriormente, os acontecimentos do mundo
externo que configuram a realidade da paisagem sociocultural
não deixam de repercutir e, até mesmo na inserção dos signos da
desordem, tornam-se fundamentais à construção estética dos
textos dramáticos. Não por acaso que, em certas circunstâncias
históricas nas quais se evidencia uma decepção com a própria con-
dição humana, o sintoma mais imediato se traduz numa espécie de
falência da e na linguagem, que, desacreditada, resulta no senti-
mento da perda de sentido em relação à vida. E é isso que, também,
faz da linguagem a via principal por onde se propagam, praticamente,

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todos os mal-entendidos que obscurecem a possibilidade de se
situar quanto ao que está se passando nos diversos planos da ativi-
dade humana. Então, como esse sintoma não afetaria, igualmente,
o plano do discurso artístico, este campo onde concretamente a
linguagem mais se debate com o problema da representação!?
E aqui chegamos ao eixo mais delicado através do qual tentaremos
avançar nesta discussão. Mas, para tanto, vamos recorrer às contri-
buições do pensamento filosófico e psicanalítico, com o intuito de
tentar indicar certas coordenadas, a partir das quais se geram os
impasses referentes à questão da representação.
Como se sabe, desde Platão, a reflexão em torno do fenômeno
da representação está em pauta: seja nos questionamentos sobre o
valor do discurso mimético da arte em comparação com a narração
da epopeia, seja refletindo sobre a articulação das ideias na cons-
trução do pensamento no discurso filosófico. E não será muito difícil
identificar que o que permeia todos esses debates é, precisamente,
a questão da relação entre a linguagem e o real. Não à toa que o
filósofo Alain Badiou reitera a relevância do tema em sua obra Em
busca do real perdido, na qual refere:

O problema é que, em se tratando do real, é muito difícil saber


como começar. Esse problema atormenta a filosofia desde
suas origens. Onde começa o pensamento? E como começar
de maneira que esse começo ajuste o pensamento a um real de
verdade, um real autêntico, um real real? (BADIOU, 2017, p. 8)

Aí se divisa, portanto, o nervo espinhoso de uma dificuldade


que, inevitavelmente, remete ao problema da representação. Como
indicar o tal real autêntico representando-o através da linguagem?
Com que pensamento seria possível traduzi-lo de maneira mais
justa e verdadeira, diz ele, “um real real”? Ao que, um pouco mais
adiante, acrescenta:

O mal-estar no teatro antidramático e os impasses diante da representação 125

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Isso é muito importante, porque a questão do real é eviden-
temente também a questão de saber que relação a atividade
humana, mental e prática, mantém com o referido real. E,
mais especificamente, se ele funciona como um impera-
tivo de submissão ou se pode ou poderia funcionar como
um imperativo aberto à possibilidade de uma emancipação.
(BADIOU, 2017, p. 11-12)

A observação formulada por Badiou é um questionamento que


incide direto no sentido de “saber” até onde seria possível res-
ponder a um funcionamento “imperativo” do real, e se o estatuto
das ações e das respostas humanas em relação a ele se traduz em
termos de “submissão” ou de “emancipação”. No teatro, onde con-
cretamente se presencia a própria “arte da representação”, também
não são poucos os debates e os questionamentos sobre o alcance
da relação que essa “atividade humana, mental e prática, mantém
com o referido real”. Ironicamente, é mesmo neste domínio onde
a própria noção de representação não deixa de suscitar equívocos
corriqueiros, pois, como observa Anne Ubersfeld:

Na ideia de ‘representação’, há a de uma chance de apre-


sentar uma segunda vez, ou então – este é o primeiro equí-
voco da palavra – a ideia de apresentar novamente, graças ao
teatro, o que já existe na realidade. É em torno deste equí-
voco semântico que está em jogo a significação específica do
teatro: o teatro é a repetição, por meio de um artefato, do que
já foi vivido uma vez? Ou é um modo de mostrar as coisas,
de apresentá-las de uma maneira tal que ela seja reprodutível
(mas, também, se possível esclarecedora…). Talvez, a palavra
que convém seria a palavra apresentação: fazer teatro,

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é apresentar ao espectador um mundo concreto, significante.3
(UBERSFELD, 1996, p. 84-85, tradução nossa)

Então, justamente aí, nesse “equívoco semântico”, é que


parece repousar toda a dificuldade em relação ao entendimento
do alcance da questão da representação. Talvez, pelo que ainda
se perpetua como herança de uma leitura moralista efetuada por
Platão sobre os “perigos” da linguagem poética; principalmente
em direção às artes, que, segundo ele, tem por ofício jogar com
as aparências. A base epistemológica dessa dicotomia platônica
entre o real e o ilusório já pode ser constatada desde a sua mítica
alegoria da caverna, e se prolongou através dos outros textos sobre
as condições da representação nos discursos, onde havia sempre
uma suspeição com relação às imagens produzidas pelas obras
de arte, como, por exemplo, no discurso mimético do ator no ato
de representar. Platão introduziu uma questão que irá sobreviver
até os dias de hoje; posto que apontava no ofício do ator um risco
moral à sociedade, na medida em que a ação de se passar como se
fosse um “outro”, por aquilo que não se “é”, faz com que esse ser
de aparência falsa, além de enganar e desviar a atenção do verda-
deiro real, influencie negativamente, através de comportamentos
não recomendáveis.
Com efeito, parece que essa fratura estrutural entre a razão ideal
e a experiência sensível ainda insiste em se perpetuar, sobrevivendo
nas querelas modernas das oposições entre o real e o ficcional,
entre a imagem representada e o que seria verdadeiramente vivido

3 “Dans l’idée de ‘représentation’, il y a celle de présenter une seconde fois, ou bien – là est la
première équivoque du mot – l’idée de présenter à nouveau, grâce au théâtre, ce qui a déjà
existé dans la réalité. C’est autour de cette équivoque sémantique que se joue la signification
même du théâtre: le théâtre est-il la répétition, par le moyen d’un artefact, de ce qui a déjà été
vécu une fois? Ou est-ce une façon de montrer les choses, de les présenter d’une manière telle
qu’elle soit reproductible (mais aussi éclairante, si possible…). Peut-être le mot qui convient
serait-il le mot de présentation: faire théâtre, c’est présenter au spectateur un monde concret,
signifiant”.

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no aqui e agora, e assim por diante. Disso, resulta uma espécie de
esquizofrenia epistemológica que parece nunca ligar os planos do
“pensar” e do “sentir”. No campo da linguagem teatral, essa fratura
se reflete sob a forma de uma dicotomia que se sustenta ressal-
tando a separação entre as expressões do corpo na cena e o texto
das falas relativo à fábula dramática.
Antonin Artaud é, seguramente, o autor mais paradigmático
na introdução de uma crítica ao teatro ocidental, denunciando
essa fratura e, ao mesmo tempo, reivindicando, através dessa
separação, a autonomia da teatralidade em relação ao texto dra-
mático. Pois, segundo ele, para se fazer teatro, seria preciso “que-
brar a linguagem para tocar a vida”.4 (ARTAUD, 2019, p. 47, tra-
dução nossa) Em “La mise en scène et la métaphysique”, Artaud
enuncia:

Como se fez com que o teatro ocidental não se veja sob


um outro aspecto que não seja esse do teatro dialogado?
O diálogo – coisa escrita e falada – não pertence especi-
ficamente à cena, ele pertence ao livro; e a prova, é que
reservamos nos manuais da história literária um lugar para
o teatro considerado como um ramo acessório da história
da linguagem articulada. Eu digo que a cena é um lugar
físico e concreto que nos pede para preenchê-lo, e que lhe
façamos falar sua linguagem concreta. Eu digo que esta
linguagem concreta, destinada aos sentidos e indepen-
dente da palavra, deve satisfazer primeiro aos sentidos,
que há uma poesia para os sentidos como há uma para
a linguagem, e que essa linguagem física e concreta à qual
fiz alusão é verdadeiramente teatral, apenas, na medida em

4 “Briser le langage pour toucher la vie”.

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que os pensamentos que ela exprime escapam à linguagem
articulada.5 (ARTAUD, 2019, p. 81-82, tradução nossa)

A crítica enunciada por Artaud tornou-se a pedra angular para


toda uma gama de produções estéticas ulteriores, nas quais se
constata a onipresença da crítica dirigida ao “textocentrismo”. A
partir de então, proclama-se por uma “verdadeira teatralidade”,
pautada na corporalidade física, da qual se pressupõe exprimir tudo
aquilo “independente da palavra” e que escapa às repetições dos
sentidos já estereotipados nas representações da linguagem verbal
articulada. Com efeito, resulta disso que o autor dramático venha
a ter sua autoridade refutada. Muito se especulou sobre a “morte
do autor”, que, sobretudo após os escritos de Foucault e Barthes,
tornou-se uma espécie de palavra de ordem, não apenas no terreno
específico das especulações em torno da criação literária, como,
de certa forma, nos campos da teoria e da crítica da arte em geral.
Gérard Thiériot (2013) aponta o que estava em questão no
movimento que veio a se denominar “pós-dramático”, citando
uma observação bastante esclarecedora de Jacques Derrida a
esse respeito. Vejamos:

Este movimento, que nomearemos o teatro pós-dramático,


marca uma ruptura que se inscreve na violência feita ao
estatuto do texto e do autor, em que a posição, o papel,
o direito ao reconhecimento são redefinidos. E é bem um

5 “Comment se fait-il que le théâtre occidental ne voie pas le théâtre sous un autre aspect
que celui du théâtre dialogué? Le dialogue – chose écrite et parlée – n’appartient pas spé-
cifiquement à la scène, il appartient au livre; et la preuve, c’est que l’on réserve dans les
manuels d’histoire littéraire une place au théâtre considéré comme une branche acces-
soire de l’histoire du langage articulé. Je dis que la scène est un lieu physique et concret
qui demande qu’on le remplisse, et qu’on lui fasse parler son langage concret. Je dis que
ce langage concret, destiné aux sens et indépendant de la parole, doit satisfaire d’abord
les sens, qu’il y a une poésie pour les sens comme il y en a une pour le langage, et que
ce langage physique et concret auquel je fais allusion n’est vraiment théâtral que dans la
mesure où les pensées qu’il exprime échappent au langage articulé”.

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parricídio, que Derrida já constata: ‘A origem do teatro que
está a restabelecer é uma mão elevada contra o detentor
legítimo do logos, contra o pai, contra o deus de uma cena
submissa ao poder do discurso e do texto’.6 (THIÉRIOT,
2013, p. 7, tradução nossa)

Ou seja, estamos exatamente no cerne de uma cena de con-


flito político entre modalidades de linguagens que, no entanto,
são constitutivas de uma mesma arte. Todavia, Anne Ubersfeld
também esclarece, oportunamente, que:

O teatro é uma arte paradoxal. Pode-se ir mais longe e


considerá-lo a própria arte do paradoxo, a um só tempo
produção literária e representação concreta; arte a um só
tempo (indefinidamente reprodutível e renovável) e ins-
tantânea (nunca reprodutível como idêntica a si mesma):
arte da representação que é de um dia e nunca a mesma
no dia seguinte; quando muito, arte feita para uma única
representação […] Aqui também se abre um abismo entre
o texto – que pode ser objeto de leitura poética infinita –,
e o que pertence à representação, de leitura imediata.
(UBERSFELD, 2010, p. 1)

Entretanto, esse caráter paradoxal, que poderia fazer com que


o teatro fosse considerado “a própria arte do paradoxo”, parece ficar
esquecido em meio às disputas de territórios que terminam optando
por dar mais ênfase ao corte que separa as dimensões do texto e
da cena, do que apontar o liame nas operações e nas costuras em
torno dessa ferida nunca suficientemente cicatrizada. Assim, a partir

6 “Ce mouvement, que l’on nommera le théâtre postdramatique, marque une rupture
que s’inscrit dans la violence faite au statut du texte et de l’auteur, dont la position, le
rôle, le droit à la reconnaissance sont à redéfinir. Et c’est bien un parricide, que cons-
tatait déjà Derrida: ‘L’origine du théâtre qui est à rétablir est une main élevée contre
le détenteur légitime du logos, contre le père, contre le dieu d’une scène soumise au
pouvoir du discours et du texte’”.

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das críticas à supremacia do texto na composição dos espetáculos,
decorrem os votos pela ascensão da teatralidade, emancipada em
relação ao discurso pré-formado antes da cena propriamente dita. É
a busca pela autenticidade de uma ação vivenciada livremente, sem
qualquer vínculo com uma fábula anteriormente escrita para ser repro-
duzida na circunstância da representação; pois esta passa a ser vista
como um mero dispositivo à serviço das repetições enganosas de um
falso espelho, cada vez mais distante da realidade que supõe refletir.
Antonin Artaud pretendia, com “o teatro da crueldade”, fazer
explodir o espelho da representação que se dispunha subserviente,
repetindo o texto de um drama que, segundo ele, anestesiava o olhar
do espectador, alienando-o diante da cena, que se exibia indiferente,
apenas como objeto de contemplação por trás da “quarta parede”.7
O desmantelamento dessa linha de demarcação, que assegura o
conforto do pacto ficcional da tradição representativa, é a base do
fundamento estético da cena artaudiana. Disso se espera um teatro
de ação contagiosa, semelhante a uma “peste”, cujo impacto busca
estabelecer uma comunicação direta entre o ator e o espectador,
fazendo com que aconteça uma imediata interação da ação com
o real, tal como explica Robert Abirached (1994, p. 353, tradução
nossa):

O teatro mesmo da ação; uma vez cortado o cordão umbilical


que ligava a representação ao mundo exterior, o lugar cênico
é completamente investido pelo real, ou, mais exatamente,
ele se torna o real mesmo. O que se passa aí, não precisa
mais se reportar a uma vida individual ou coletiva dos espec-
tadores para receber um certificado de autenticidade:
sua verdade, porque ela está tremendo imediatamente nos
sentidos e nos nervos do público, não precisa ser provada.
Basta se comunicar ao modo de um delírio e, como um

7 Trata-se do conceito forjado por Diderot para se referir à linha que demarca a separação
imaginária entre a cena do palco e a sala onde se acomoda a plateia.

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delírio, alterar naquele que o recebe toda distinção entre
o vivido e o imaginado. Ela não tem que testemunhar:
basta estar suscetível ao toque, e por contágio ela se espalha
entre todos.8

Só que a reflexão sobre o corte desse cordão umbilical que


Artaud reivindicava através da criação desse lugar cênico “com-
pletamente investido pelo real” também se tornou tema central
nos textos dramáticos que começaram a problematizar as condi-
ções de representação no drama. Sarrazac se refere, por exemplo,
ao “drama recusado” na obra Seis Personagens à Procura de um
Autor, em que Pirandello traz à baila “um drama que não será
representado”. (SARRAZAC, 2017) Essa peça conta sobre a falta
de interesse do autor pelas histórias das suas personagens,
inclusive, expressando a dificuldade de unificar no mesmo drama
os relatos parciais de cada um. Por outro lado, é nessa exposição
do impasse dramático diante de uma história que estaria sendo,
ao mesmo tempo, recusada em ser representada, onde Sarrazac
observa a possibilidade de detectar que “nesta aporia, se encontra
inscrito o segredo da evolução da forma dramática e das profundas
mutações que ela conheceu desde a virada do século XX, e que
continua a conhecer até os dias de hoje”. (SARRAZAC, 2017, p. 2)
Portanto, o colapso da representação significa um desafio, tanto na
esfera da encenação – quando se lida com signos não linguísticos
na construção da teatralidade cênica – quanto no trabalho da

8 “Le théâtre même de l’action: une fois coupé le cordon ombilical qui relie la représentation
au monde extérieur, le lieu scénique est tout entier investi par le réel, ou, plus exactement,
il devient réel lui-même. Ce qui s’y passe n’a pas besoin être rapporté à la vie individuelle
et collective des spectateurs pour recevoir un certificat d’authenticité: sa vérité, parce
qu’elle ébranle immédiatement les sens et les nerfs public, n’a pas à être prouvée; il lui
suffit de se communiquer à la façon d’un délire et, comme le délire, d’altérer chez qui la
reçoit toute distinction entre le vécu et l’imaginaire. Elle n’a que faire de témoin: il lui faut
des patients à toucher, et c’est par contagion qu’elle se répand parmi eux”.

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criação dos textos dramáticos, demandando outros procedimentos
à sua renovação.
E a perspectiva aberta pela psicanálise também nos con-
vida a repensar a representação. Principalmente após Freud
reconhecer na função da repetição uma lei maior, efetivamente
no comando do funcionamento dos processos psíquicos, que
supera a própria dicotomia conflitual entre as outras pulsões
de vida e de morte. Essencialmente atrelada ao inconsciente,
a “compulsão à repetição” é, para Lacan, um dos aspectos que
caracterizam o Real. Com efeito, falar em representação no
campo da psicanálise implica reconhecer naquilo que se repete
não apenas o que ficou fixado no passado, mas, sobretudo,
a possibilidade de estar diante de algo que retorna disfarçada-
mente como um enigma, solicitando acolhimento e transfor-
mação no trabalho de decifração com a linguagem. É isso que
retorna sob a lei da compulsão à repetição, nada mais nada
menos, naquilo que faz sintoma; que Lacan nomeou por sujeito do
inconsciente, cujo advento inesperado emana para fazer relem-
brar aquilo que não cessa de insistir a partir do Real. Sendo assim,
a representação vem a ser o próprio estofo através do qual se
engendra a vida psíquica e os processos da subjetividade humana
que, segundo Lacan, como se fosse um nó,9 enlaça o Real às outras
dimensões ou registros do Imaginário e do Simbólico. Em outras
palavras, a importância que se atribui à representação remonta,
psicanaliticamente, ao acontecimento que fez do ser humano um
animal simbolicamente castrado e dependente da linguagem,
tornando-se um animal falante e desejante, no seio da cultura.
O psicanalista Charles Melman (2003) aborda com clareza esse

9 Trata-se do célebre “Nó Borromeano” que é, como refere Melman, um objeto matemático
advindo da topologia e utilizado por Lacan desde 1972 para mostrar a articulação dos três
registros, Real, Imaginário e Simbólico. O nó borromeano se caracteriza pelo enlaçamento
de três “anéis” ou “rodinhas de barbante”, tal que a ruptura de um acarreta o desliga-
mento dos três. (MELMAN, 2003, p. 206)

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complexo relativo à constituição do desejo humano a partir do
corte efetuado pela linguagem e da imbricação entre as instân-
cias do Real, do Imaginário e do Simbólico. Vejamos:

O desejo do animal humano, que passa obrigatoria-


mente pela linguagem, se organiza, pois, em torno do que
a partir de então é uma perda, já que esse sistema não é
‘fechado’, nunca está ‘completo’, nunca está terminado.
Nenhum objeto, então, seria suscetível de vir perfeita-
mente preencher e satisfazer o desejo humano, assim como
nenhuma palavra poderia ser o equivalente perfeito de
uma ‘coisa’. Falar das leis da linguagem é então, evidente-
mente, se referir primeiro à lei do Simbólico, enquanto cada
elemento da linguagem é símbolo dessa pura perda. Mas a
essa dimensão do Simbólico deve-se acrescentar, como nos
convida Lacan, as dimensões do Real e do Imaginário: a do
Real vem conceitualizar esse fato de que existe um espaço
resistente à formalização, um impossível de dizer; a outra,
a do Imaginário, remete a essa capacidade de que temos
de dar uma forma ao que vem responder à perda, a essa
pura falta. (MELMAN, 2003, p. 88-89)

Embora não sendo citadas literalmente, já se torna de algum modo


possível conceber que, ao falar do laço simbólico entre a linguagem
e a “perda”, as funções da representação e da memória se façam
inevitavelmente presentes. Pois é justamente aí onde caberia ima-
ginar uma espécie de teatro mental, cujo palco vazio dá lugar à ence-
nação de alguma lembrança virtualmente evocada, em que o sujeito
tem a oportunidade de, ao se deparar com os efeitos dessa perda,
tentar responder de forma significante a “isso” que sempre retorna,
lembrando a falta que inaugurou o movimento desejante.
Todavia, o problema é que o desejo nunca se satisfaz ple-
namente, e o resultado disso é que seus objetos, sempre par-
ciais, carregam a marca da insuficiência relativa à condição de
representantes da representação; mas nunca, portanto, sendo a

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própria representação em si mesma. Quer dizer, por uma razão
mesmo de estrutura, a representação articula-se em função do
vazio que se desloca, não se deixando apreender totalmente pelas
redes da linguagem. Daí, Lacan enunciou em seu texto Televisão:
“Digo sempre a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se con-
segue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as palavras.
É justamente por isso impossível que a verdade provém do real”.
(LACAN, 1993, p. 11)
A “verdade que provém do real” remonta à verdade da “falta-
-a-ser” referente ao momento traumático do corte efetuado pela
linguagem, fazendo com que o que se tornou recalcado no incons-
ciente, como um resto, reapareça sob a máscara do sintoma,
interpelando e interrogando o sujeito ao longo da sua existência.
Razão pela qual, por mais exitoso que seja um enunciado proferido
por alguém, ele nunca recobre todo o sentido daquilo a que se refere.
É mesmo devido a isso que Lacan não se cansava de repetir ao longo
dos seus seminários: “a verdade é um semi-dizer” e “toda verdade
tem uma estrutura de ficção”, posto que ela se articula mascarando
a falta do que resta relativo ao real que faz furo, esburacando a lin-
guagem. Donde, para falar como Charles Melman, “os seres que
amamos, os objetos de satisfação são as rolhas do ‘buraco’ assim
aberto no nosso mundo pela linguagem, por falta dessa ‘coisa’,
da qual só resta o semblante”. (MELMAN, 2003, p. 45-46)10
E é por causa da falta dessa “coisa”, “da qual só resta o sem-
blante”, que a psicanálise se aproxima do teatro para, através da

10 Segundo Melman (2003, p.  209), “a categoria do Semblante, para Lacan, não remete ao
falso semblante. Ao contrário, o Semblante designa o que organiza a vida psíquica para além
do que seria a aparência por oposição à essência. O Semblante deve ser relacionado com a
Verdade. Assim, pelo fato da falta e da defasagem introduzida pela linguagem, não é difícil
dar-se conta de que somos todos um pouco divididos, nunca completamente garantidos
do que afirmamos, sempre um pouco no Semblante – mas irredutivelmente e, então, sem
nenhuma conotação pejorativa. Tal é, antes, nossa verdade de humanos”.

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representação, indicar a eventual incidência de uma “Outra cena”,
que, segundo Octave Mannoni:

É como se no mundo exterior se abrisse um outro espaço,


comparável à cena teatral, ao campo do jogo, à superfície da
obra literária – e tudo isso no fim das contas consiste em um
certo uso da linguagem e da negação que ela comporta – e a
função dessa outra cena, podemos dizer também que é mais
de escapar do princípio de realidade do que de lhe obedecer.
(MANNONI, 1985, p. 97, tradução nossa)11

É importante ressaltar que a intuição freudiana em relação à


“outra cena” – cuja função “é mais de escapar do princípio de rea-
lidade do que de obedecer” (LACAN, 2005, p.  42) –, surgiu logo
em sua obra fundamental Interpretação dos sonhos. A partir daí,
diz Lacan, Freud introduz o inconsciente como um lugar que ele deno-
minou ein anderer Schauplatz, uma outra cena. “Desde o começo,
desde que entra em jogo a função do inconsciente a partir do sonho,
esse termo é introduzido como essencial”. (LACAN, 2005, p.  42)
Essencial porque, devido ao fenômeno do sonho, é que se tornou
possível detectar os mecanismos específicos do inconsciente par-
ticipando da montagem de uma encenação que Freud denominou
com a expressão Traumarbeit, o “trabalho do sonho”.
O desafio implicado na interpretação dos sonhos dos seus
pacientes proporcionou vir à luz uma epifania que se tornou a pedra
angular do saber psicanalítico: a existência do inconsciente e a “ence-
nação do sonho” como sendo uma via pela qual o desejo humano
busca se realizar. Só que o desejo no interior da encenação onírica

11 “C’est comme si dans le monde extérieur s’ouvrait un autre espace, comparable à la scène
théâtrale, au terrain de jeu, à la surface de l’oeuvre littéraire – et tout cela en fin de compte
consiste en un certain usage du langage et de la négation qu’il comporte – et la fonction de
cette autre scène, on peut dire aussi bien que c’est d’échapper au principe de réalité que de lui
obéir”.

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apresenta-se disfarçado, devido à trama da representação que con-
voca processos de repetições e de mascaramentos. Por outro lado,
a narrativa que se tenta elaborar a posteriori, o relato sobre o que
teria sido sonhado, já é uma leitura tecida entre a memória e o tra-
balho da significação consciente, cuja verdade se traduz como fruto
“de um certo uso da linguagem e da negação que ela comporta”,
transformada e organizada pelo semblante. E é isso que conduz o
entendimento da psicanálise no sentido de reconhecer a função do
semblante como algo essencial na articulação de qualquer discurso.
Acontece que, no discurso do campo teatral, essa condição do sem-
blante é sine qua non, uma vez que constitui a própria referência
consignada à ação na arte de representar. Colocar-se na dimensão
do semblante significa entrar na relação que funda o “parecer”.
Nem sempre se consegue estar à altura do semblante; e é no jogo
ocasionado pela representação que se tem a oportunidade de veri-
ficar se o sujeito, enquanto agente da exibição, efetivamente con-
segue responder à altura do acontecimento da cena.
A representação, portanto, seja na ação de um tratamento no
campo da prática clínica, seja na experiência estética com as obras,
é o que permite franquear repetições evocando elementos de um
conteúdo recalcado que, segundo Freud, não será imune aos riscos
da interpretação. Pois é como se a experiência estética viabilizasse
a abertura de um campo relacional entre o leitor/espectador e a
obra, onde fragmentos do passado são despertados e transferidos
para o ato da leitura no agora; porém, também já permeada pela
fantasia. Nisso, consiste o fato de, por vezes, alguém não conseguir
falar e explicar sobre a afetação sofrida no ato da recepção de uma
obra de arte. Certos incômodos endereçados à arte, muitas vezes,
se devem à desorientação e ao sentimento de perda em relação
àquilo em que se supunha haver algum domínio. Há uma espécie de
deposição aí, em função do espanto, do impacto ou da estranheza
promovida por algo que, no entanto, parecia supostamente inofen-
sivo e familiar. Em outras palavras, a obra de arte, assim como um
objeto que causa o desejo, faz o inconsciente trabalhar. E é isso que

O mal-estar no teatro antidramático e os impasses diante da representação 137

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faz com que a leitura seja, de algum modo, impulsionada e mar-
cada por conteúdos provenientes da própria fantasia inconsciente
do leitor/espectador. De modo que, para a psicanálise, o valor confe-
rido à natureza da ilusão teatral desempenha um papel importante
não apenas a serviço do gozo imaginário; mas, sobretudo, a favor do
trabalho simbólico do qual depende a produção dos sentidos arti-
culados pela leitura no ato da recepção. Vejamos o que diz Octave
Mannoni, referindo-se ao momento em que o teatro também joga
um papel simbólico:

O teatro, neste momento, jogaria um papel propriamente


simbólico. Todo ele seria como a grande negação, o sím-
bolo da negação, que torna possível o retorno do repri-
mido sob a sua forma negada. Evidentemente, é arriscado
querer encontrar muita precisão deste lado, mas nós vemos
o quanto estamos longe de uma ilusão que seria a apresen-
tação de um falso real. Desde que esta ilusão, claro, não é no
teatro jamais a nossa, mas sempre um tanto quanto bizarra-
mente aquela de um outro espectador que nós não sabemos
onde situar.12 (MANNONI, 1985, p. 166, tradução nossa)

E quem seria esse “outro espectador que nós não sabemos onde
situar” senão aquele que emerge, paradoxalmente, como efeito do
semblante da ilusão teatral? Aquele que só aparece como produto da
articulação significante do que se mascara, fazendo apelo à possibili-
dade de se ter acesso a uma “outra cena”? Pois a “outra cena” evocada
em função do semblante não é a mesma que faz furo, esburacando a

12 “Le théâtre, à ce moment, joue un rôle proprement symbolique. Il serait tout enier comme
la grande négation, le symbole de négation, qui rende possible le retour refoulé sous sa
forme niée. Évidemment, il est risqué de vouloir trop chercher de précisions de ce côté,
mais on voit combien nous serions loin d’une illusion qui serait la présentation d’un faux
réel. Puisque cette illusion, c’est certain, n’est au théâtre jamais la nôtre, mais toujours
assez bizarrement celle d’un autre spectateur que nous ne savons où situer”.

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visibilidade superficial de uma representação? É nesse sentido que,
segundo Lacan, ao nível do semblante, “o sangue vivo é o mais inútil”:

Se, na última vez, falei do sangue vivo como o sangue mais inútil
de propulsionar contra o semblante, foi justamente porque é
impossível avançar para derrubar o ídolo sem assumir seu
lugar logo depois, como aconteceu, como sabemos, com um
certo tipo de mártires. (LACAN, 2009, p. 28)

Sendo assim, tanto no palco da escrita como no palco da cena


física, é o furo aspirante da falta que inaugura o movimento da ação
em que são postos os significantes da encenação. É aí onde eles
atuam articulando o semblante da ilusão teatral que, como refe-
rido acima, desperta para um trabalho “propriamente simbólico”.
Importa sublinhar, ainda, que os efeitos desse furo surgem ao modo
de um “dito” surpreendente, que por algum motivo conseguiu escapar
e despistar o “interdito” do “princípio de realidade” que sustenta a
ordem aparente da representação. Então, eis a “visita” inesperada
de algo que interpela e desestabiliza o domicílio habitual no “eu” do
leitor/espectador, que o real cênico, a pretexto da representação,
favorece certa abertura nesse espaço transferencial “entre” o que
se apresenta como semblante e o leitor/espectador, para evocar a
verdade inconsciente da “outra cena”. Da relação entre a verdade e
o semblante, Lacan (2009, p. 25-26) afirma que “[…] a verdade não é
o contrário do semblante. A verdade é a dimensão, ou diz-mansão…
estritamente correlata àquela do semblante. A diz-mansão da ver-
dade sustenta a do semblante. Alguma coisa é indicada, afinal,
de onde quer chegar esse semblante”.
Portanto, se é mesmo nessa “diz-mansão”, a “mansão do dito”,
onde se hospeda a verdade, no caso específico do discurso teatral, essa
“diz-mansão” não seria, precisamente, a dimensão ou a “diz-mansão”
da cena? Esta que, em função da representação, é “estritamente corre-
lata àquela do semblante” onde “alguma coisa será indicada”, como se

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estivesse a provocar o leitor/espectador, interrogando-o: o que queres
e onde pretendes chegar a partir do que se vê do semblante?
O mal-entendido em torno da representação, portanto, consiste
em imaginar ter acesso de uma forma direta à pretensa verdade de
um real cru e desnudado de semblante. Pois, como bem elucida
Melman (2003, p. 21):

A relação do sujeito com o mundo, como também com ele


mesmo, não é organizada pelo que seria uma ligação direta
e simples com um objeto, como no mundo animal, no qual
basta se deixar guiar pelos instintos. Se há, pois, descoberta
de Freud é a seguinte: nossa relação com o mundo e com nós
mesmos não é instalada por um objeto, mas pela falta de um
objeto, e de um objeto de eleição, essencial, de um objeto
querido […] É preciso, para esse infeliz sujeito humano,
passar por essa perda a fim de ter acesso a um mundo de
representação sustentável para ele.

Quer dizer, humanamente falando, trata-se de um blefe afirmar


que se está diante da presença do real em si. Visto que, assim,
se esquece de todo um lado imaginário que, na verdade, é o suporte
necessário à materialização do real cênico, uma das dimensões
constitutivas do teatro, além de responsável na produção dos seus
efeitos específicos. Não por acaso, Octave Mannoni, ao falar das
condições constitutivas do teatro, refere-se ao risco que poderia
ter corrido o próprio Brecht, caso cedesse exageradamente para
atender às demandas do seu estilo. Vejamos:

Abordando o teatro por seu lado imaginário, somos condu-


zidos a colocar logo à noção de ilusão (se bem que não seja
fácil dizer onde situar esta ‘ilusão’) e, portanto, a noção de
identificação que lhe é mais ou menos claramente ligada […]
E o teatro não parece jamais escapar realmente a essas condi-
ções que são, sem dúvida, constitutivas […] Brecht, que visava
um efeito contrário para escapar precisamente do imaginário

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e das identificações, pelo distanciamento e estilização,
não poderia ir mais longe que esta mudança de estilo sem cair
fora do teatro.13 (MANNONI, 1985, p. 161, tradução nossa)

É preciso, assim, reconhecer as condições constitutivas para se


assegurar de certos efeitos da representação “sem cair fora do teatro”.
E o maior risco para um discurso teatral é cair no engodo de um real
puro e sem semblante, esquecendo-se de que a suposta relação sim-
ples e direta com o objeto já não mais existe como verdade para um
animal metafórico e desnaturado pela linguagem. Por isso, reitera
Lacan (2009, p.  31), “[…] somente nesse nível do discurso, que ele
é levado, permitam-me dizer, para algum efeito que não fosse sem-
blante… nos limites do discurso, na medida com que se mantenha o
mesmo semblante, de vez em quando existe o real”.
Esse real que “de vez em quando existe” nos limites do discurso,
Lacan (1985, p. 178) ainda elucidou em O seminário, livro 20: mais,
ainda, afirmando que “[…] um real que nada tem a ver com o que o
conhecimento tradicional suportou e que não é o que ele crê, reali-
dade, mas sim fantasia. O real, eu diria, é o mistério do corpo falante,
é o mistério do inconsciente”.
Ao abordar a questão do “Holocausto e o abjeto da represen-
tação” (Holocauste et l’abject de la représentation), Arnaud Rykner
compara a representação com os trabalhos da memória e da tra-
dução, formulando, ao final, uma pergunta sobre até onde podemos
considerar a presença do real na representação. Vejamos:

13 “En abordant le théâtre par son côté imaginaire, on est amené `à mettre en avant la notion
d’illusion (bien qu’il ne soit pas facile de dire où peut se situer cettte ‘illusion’) et, donc,
la notion d’identification qui lui est plus ou moins clairement liée. Et le théâtre ne semble
pas pouvoir jamais échapper réellement à ces conditions qui sont sans doute constitutives…
Brecht, qui visait un effet contraire pour échapper précisément à l’imaginaire et aux identifi-
cations, par l’éloignement et la stylisation, ne pouvait pas aller plus loin que ce changement
de style sans tomber hors du théâtre”.

O mal-estar no teatro antidramático e os impasses diante da representação 141

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Como a memória, a re/apresentação é uma apresen-
tação segunda: ela tem a ver de uma parte com a tradução
(trabalho sobre um conteúdo suposto preexistir), de outra
parte com a mostração (colocar em presença propriamente
dita). Se a mostração é muito exitosa, a representação des-
morona e tetaniza o olhar do espectador, engolido num
presente que ele não pode se desprender. Se a tradução é
muito assertiva, é o real pretendido que desmorona ou desa-
parece por trás da representação. Estamos sempre muito
longe ou muito perto: representar é sempre sancionar uma
perda, impondo uma transformação da realidade em objeto,
destacado do sujeito que a observa constituindo-a assim.
A página do livro, o quadro da pintura, o que está na televisão,
o corpo do ator fazem tela. No processo parcial de masca-
ramento, de filtragem, a representação joga o papel de uma
trama colocada sobre o seu objeto, e através da qual passa
mais ou menos o real bruto. A pergunta, então, se torna:
qual quantidade e qual qualidade do real está na
representação?14 (RYKNER, 2000, p.  275-276, tradução
nossa)

A citação acima reitera o que já havíamos referido acerca da


relação entre a representação e o real. Este, por uma questão
mesmo de estrutura, não se deixa representar plenamente.
E quanto à interrogação no final, sobre “qual quantidade e qual

14 “Comme la mémoire, la re/présentation est une présentation seconde: elle a à voir d’une part
avec la traduction (travail sur un contenu censé préexister), d’autre part avec la monstration
(la mise en présence proprement dite). Si la monstration est trop réussie, la représenta-
tion s’écroule et tétanise le regard du spectateur, englué dans un présent dont il ne peut se
déprendre. Si la traduction est trop affirmée, c’est le réel visé qui s’écroule ou s’efface derrière
la représentation. On est toujours trop loin ou trop près: représenter c’est toujours sanctionner
une perte, celle qu’impose la transformation de la réalité en objet, détachée du sujet qui la
regarde et la constitue ainsi. La page du livre, la toile du tableau, le poste de télévision, le corps
de l’acteur font écran. Processus de masquage partiel, de filtrage, la représentation joue le
rôle d’une trame posée sur son objet, et au travers de laquelle passe plus ou moins de réel
brut. La question devient alors: quelle quantité et quelle qualité de réel se dépose dans la
représentation?”

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qualidade do real está na representação” – depois de ter passado
por todo um “processo parcial de mascaramento” e de “filtragem” –,
não estaria o autor indicando sobre a importância de haver uma eco-
nomia, também, nos processos criativos da arte? O excesso da mos-
tração, diz o autor acima, é o que “tetaniza o olhar do espectador”,
paralisando-o sob o blefe falacioso em que se apoia a ereção de
uma imagem bastarda do real. Por isso mesmo, Lacan situou um
“mal-estar no teatro”, observando, “[…] falo de algo que se exprime,
vou lhes dizer como Freud, no mal-estar do teatro. Para que ele
continue de pé, é preciso haver Brecht, não é?, que compreendeu
que isso não podia sustentar-se sem uma certa distância, um certo
esfriamento”. (LACAN, 2009, p. 144)
O Antidramatismo talvez seja um dos sintomas desse “mal-estar
do teatro”, no contexto cultural contemporâneo. Atualmente,
a urgência e a relação com o excesso é o que parece dar sentido à
busca de uma coincidência exata com o “aqui e agora”, para que,
assim, afinal, se tenha um sentimento de realidade. Nesse sen-
tido, trata-se de um fenômeno discursivo bastante alinhado ao que
refere Melman (2003, p.  16), quando afirma que “estamos lidando
com uma mutação que nos faz passar de uma economia organizada
pelo recalque a uma economia organizada pela exibição do gozo”.
Uma cultura movida, portanto, pelo excesso da mostração, para obe-
decer aos imperativos de uma lei imaginária, cuja exigência de trans-
parência desconhece limites; posto que “hoje a questão é exibir.
O que se chama de gosto pela proximidade vai tão longe que é pre-
ciso exibir as tripas, e o interior das tripas, e até o interior do interior”.
(MELMAN, 2003, p. 23)
Quem sabe terá sido exatamente aí, no enfrentamento dos desa-
fios específicos requeridos pela própria economia poética da arte,
onde muitos parecem ter tropeçado em confusões e mal-entendidos?
Pois, como enunciou Beckett, em algum lugar, “perdas e ganhos
se equivalem na economia da arte, em que o calado é a luz do dito,
e toda presença, ausência”. (BECKETT apud RYNGAERT, 2013, p. 202)

O mal-estar no teatro antidramático e os impasses diante da representação 143

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Referências

ABIRACHED, Robert. La Crise du personnage dans le théâtre moderne. Paris:


Gallimard, 1994.
ARTAUD, Antonin. Le Théâtre et son double. Paris: Payot & Rivages, 2019.
BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (1900). In: FREUD, S. Obras
completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. IV-V.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse
semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, Jacques. Televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
MANNONI, Octave. Clefs pour l’imaginaire ou l’autre scène. Paris: Seuil, 1985.
MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço:
entrevistas por Jean-Pierre Lebrun. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.
RYKNER, Arnaud. Paroles perdues: faillite du langage et représentation.
Paris: José Corti, 2000.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2013.
SARRAZAC, Jean-Pierre. Poética do drama moderno: de Ibsen a Koltès.
São Paulo: Perspectiva, 2017.
SZONDI, Peter. Théorie du drame moderne. Paris: Les éditions Circé, 2006.
THIÉRIOT, Gérard. Le Théâtre postdramatique: vers un chaos fécond?.
Clermont-Ferrand: Presses Universitaires Blaise Pascal, 2013.
(Littératures publiée par le CELIS).
UBERSFELD, Anne. Les Termes clés de l’analyse du théâtre. Paris: Seuil, 1996.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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Capítulo 8

UM OLHAR SOBRE PROCESSOS DE


CRIAÇÃO CÊNICA E PESQUISA NO DEART/
UFRN: Cruor ARTE CONTEMPORÂNEA

Adriano Marinho dos Santos


Nara Salles
Jéssica de Lima Torreão Cerejeira

Iniciamos com o pressuposto de que a percepção pode ser fun-


damental em um processo de criação. Ostrower (2014, p.  12)
afirma que “a percepção é a elaboração mental das sensações”.
As sensações nos permitem idealizar o resultado do que preten-
demos fazer e construir; são mecanismos que podem nos levar
à obtenção de resultados almejados em um processo criativo.
Assim sendo, no processo de criação, a sensibilidade é um ele-
mento primordial, pois:

Representa uma abertura constante ao mundo e nos


liga de modo imediato ao acontecer em torno de nós.
Na verdade, esse fenômeno não ocorre unicamente com
o ser humano. É essencial a qualquer forma de vida ine-
rente à própria condição de vida. Todas as formas vivas
têm que estar ‘abertas’ ao seu meio ambiente a fim de
sobreviverem, tem que poder receber e reconhecer estí-
mulos e reagir adequadamente para que se processem
as funções vitais do metabolismo, numa troca de energia.
(OSTROWER, 2014, p. 12)

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Quando estamos dispostos a receber novos estímulos, sejam
externos ou internos, as ideias surgem como se fossem lampejos
de memória que se somam aos conhecimentos adquiridos ao longo
da vida, fazendo com que o processo criativo se torne algo fluente e
prazeroso para quem está criando. Algo que acontece muito quando
se está imerso em um processo criativo artístico são as associações,
elas nos permitem relacionar o que estamos imaginando com o que
vimos de concreto e, assim, podemos criar algo novo de imediato,
pois “Espontâneas, as associações afluem em nossa mente com
uma velocidade extraordinária. São tão velozes que não se pode
fazer um controle consciente delas”. (OSTROWER, 2014, p. 20)
Embora nem sempre possamos considerar o artista docente
um ser sensível, reconhecemos que se faz necessário ter conheci-
mento e percepção aguçada para criar uma obra. Cada linguagem
artística tem sua especificidade e cada artista tem suas maneiras
de criar. O processo criativo na linguagem cênica é uma busca em
que os artistas constroem o encontro de pessoas com a encenação
ou instauração cênica a partir do momento que passam a colocar
suas ideias na cena, concretizando-a e, com isso, as experiências,
as formações de todos se ampliam; nas linguagens artísticas,
esse processo, segue a mesma linha. (MOURA, 2014, p. 15)
Em nossas pesquisas, no percurso metodológico, definimos que
as abordagens são qualitativas e descritivas e optamos pela obser-
vação participante juntamente com análise e revisão bibliográfica,
mas lançamos mão, também, do acaso, da intuição e das sincronici-
dades junguianas como viés metodológico; por entendermos que esse
tipo de abordagem pode ter melhor relação com a natureza das pes-
quisas, pois acreditamos, também, que a natureza do objeto requer
interpretação por parte do(a) pesquisador(a) sobre a situação pro-
blema apresentada pelo objeto. Nesse sentido, Adilson Florentino
(2012, p. 124) afirma que “A pesquisa qualitativa pode ser encarada
como a intenção de obter uma profunda compreensão dos significados
e das situações-problemas apresentadas pelos sujeitos, mais do que
uma medida quantitativa de suas características básicas”.

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Com base nesses preceitos procuramos respostas que
nos levem à solução de problemas propostos; em nosso caso,
investigar e desvendar processos criativos. Antônio Carlos Gil
(2008, p. 103) aponta que:

A observação participante, ou observação ativa, consiste na


participação real do conhecimento na vida da comunidade,
do grupo ou de uma situação determinada. Nesse caso,
o observador assume, pelo menos até certo ponto, o papel
de um membro do grupo. Daí que se pode definir observação
participante como a técnica pela qual se chega ao conheci-
mento da vida de um grupo a partir do interior dele mesmo.

Dentro dessa perspectiva, procuramos reconhecer o espaço cênico


e enxergá-lo naquilo que se propõe como desafios e possibilidades
no momento de criação, mesmo com as limitações encontradas,
pois ao decidir o espaço da cena, o utilizamos com tudo que lá está
contido: ambiente e pessoas. E aqui podemos citar, como exemplo,
o caso da encenação (Lou)Cure-se!!!, criada para ser vivenciada dentro
do Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado, em Natal, Rio Grande do
Norte. Ao tempo do desenrolar das várias cenas, uma em cada ponto
do referido hospital, tudo continuava a acontecer conforme seu coti-
diano, mas lá estavam atores, atrizes, pacientes, profissionais da saúde,
visitantes e público juntos, em um encontro previsto para alguns e inu-
sitado para outros. Acreditamos que ao nos deparamos com desafios,
isso no move a querer criar mecanismos que nos possibilitem avançar.
As dificuldades nos tornam seres capazes de agir e reagir diante das
adversidades que encontramos ao longo de nosso caminho, seja ele
no âmbito pessoal ou profissional. Esse viés do processo de criação é
extremamente desafiador e importante no processo formativo de pro-
fessores artistas.
Acreditamos, veementemente, que,

O potencial criador elabora-se nos múltiplos níveis do ser


sensível-cultural-consciente do homem, se faz presente nos

Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 147

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múltiplos caminhos da vida. Os caminhos podem cristalizar-se
e as vivências podem integrar-se em formas de comunicação,
em ordenações concluídas, mas a criatividade como potência
se refaz sempre. A produtividade do homem, em vez de se
esgotar, liberando-se, amplia-se. (OSTROWER, 2014, p. 27)

O Cruor Arte Contemporânea

O Cruor Arte Contemporânea se configurou como o laboratório de


práticas da cena, do Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes
Cênicas e Espetaculares, ligado ao Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas do Departamento de Artes da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN); aglutinando uma coligação de artistas,
alunos e alunas em formação na UFRN que estiveram presentes na
cena nos anos de 2010 a 2018. As pesquisas realizadas pelo Cruor
atuaram nos três pilares da universidade: ensino, pesquisa e extensão.
O Cruor era formado por artistas do Rio Grande do Norte e de outros
estados brasileiros, tendo trabalhado também com dois artistas mexi-
canos do Instituto de Arte e Cultura de Mazatlan, México, a saber:
Silvia Flores e Jorge Gorostiza. Essa coligação teve destaque interna-
cional pela implantação da Residência Artística no Hospital Psiquiátrico
Dr. João Machado, sendo citado no blog de Florence de Meredieu1 por

1 Filósofa por formação, escritora, especialista em arte moderna e contemporânea, palestrante


na Universidade Paris I 1981-2004. Autora de livros sobre desenho infantil, a respeito de Van
Gogh, André Masson, Duchamp, Picasso, Gutai, novas tecnologias, uma história material e ima-
terial da arte moderna e contemporânea que lança as bases para uma nova história da arte;
publicados pelas editoras Bordas, 1994 e Larousse, 2004, 2017. Colabora nas revistas Art
Press, Art News, Comunicações, The New French Review, Traverses, The Review of Estética,
Parachute, Vertigo etc. Dedicou nove livros às diferentes vidas de Antonin Artaud. Em 1984,
publicou seu primeiro livro sobre os desenhos do poeta Antonin Artaud, Portraits et Gris-gris;
em 2006, uma biografia Foi Antonin Artaud. Obras sobre psiquiatria: Sobre eletrochoque, o caso
de Antonin Artaud e Antonin Artaud na guerra, de Verdun a Hitler, higiene mental. Textos de ficção:
Borges & Borges ilimitados e Beckett perdido nas rosas. Também realiza pesquisas sobre foto-
grafia. Disponível em: http://florencedemeredieu.blogspot.com. Acesso em: 4 out. 2018.

148 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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esta ação, também se internacionalizou por participar dos festivais
ENCENA Mazatlan, no México.
A coligação iniciou suas atividades no ano de 2010, investi-
gando processos de criação, conceitos e procedimentos artísticos
ligados às proposições da arte contemporânea, deslocando-se,
desta forma, do conceito de arte que esteve presente durante seis
séculos no Ocidente e que era compreendida como uma represen-
tação de realidades exteriores ou interiores, nas quais as distor-
ções e ilusões eram apenas reflexos de representações ditas reais.
Os seus integrantes trabalharam com as noções de processos cria-
tivos colaborativos e de instauração cênica propondo, desta forma,
uma arte provocativa e catalisadora para novos significados a partir,
principalmente, do olhar e da apropriação de imagens dos filmes
de Pedro Almodóvar e da obra de Frida Kahlo, em interlocução com
os cotidianos dos lugares frequentados pelos artistas, provocando
estranhamentos e questionamentos.
O grupo fez uso de técnicas corpóreo/vocais fundamentadas
no Teatro da Crueldade, de Antonin Artaud (1987); técnicas de
Viewpoints,2 de Bogart e Landau (2005); na dramaturgia corporal
de Barros (2011); o teatro pós-dramático, de Hans-Thier Lehmann
(2007); além da biodança de Rolando Toro (2002); processos de
criação e instauração cênica, de Salles (2004); e os estudos de per-
formance e técnicas orientais como a Dança Butho e o Tai Sabaki.3
O principal conceito investigado pelo grupo nos procedimentos
metodológicos criativos é o de Instauração Cênica. Instauração é um
termo usado pela curadora Lisette Lagnado. Segundo ela, é um dos

2 As diretoras teatrais Anne Bogart e Tina Landau propõem o treinamento Viewpoints como
uma filosofia traduzida em técnica para a formação de performers, através de um tipo de
construção em grupo e criação de movimento para o palco. (BOGART; LANDAU, 2005)

3 Tai-sabaki é como se chama o controle do corpo. Ele envolve principalmente os movi-


mentos giratórios, que devem ser fluidos e rápidos. O corpo deve se mover com leveza e
você precisa manter o equilíbrio o tempo todo. Dominar o tai-sabaki é indispensável para
executarmos de maneira eficiente as técnicas de arremesso. (FUSUMA, 2011)

Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 149

Pesquisa.indb 149 30/11/2022 16:46:02


conceitos fundamentais para a arte contemporânea atual e futura.
Quem promoveu o uso do termo instauração foi o artista TUNGA,4
com a obra Xipófagas capilares, em 1985 (LISETTE, 1981), uma obra
na qual duas adolescentes se movimentavam unidas por seus
cabelos. O conceito instauração é cunhado a partir dos termos perfor-
mance e instalação, significando um híbrido destas categorias. A ins-
tauração traz e guarda dois momentos: um dinâmico e um estático.
Ainda de acordo com Lagnado (1981), a acepção de instauração
supera a característica efêmera da performance, a instauração deixa
resíduos, avançando no sentido de perpetuar a memória de uma
ação, o que lhe tira o caráter de ser somente uma instalação.
O conceito de Instauração Cênica serve para indicar que naquele
local serão instauradas ações cênicas e a ambientação não será des-
truída, mas alterada com a presença dos corpos em ação no espaço,
durante um tempo, sendo que este lugar não será preparado para a
ação que acontecerá com tudo que lá está e, algumas vezes, com o
acréscimo de objetos trazidos pelos participantes. (SALLES, 2004)
Embora, o Cruor utilize para o princípio da montagem, na delimi-
tação do objeto de estudo, os conceitos de performance, não deno-
minamos os trabalhos como performance, porque em nosso entendi-
mento, o termo instauração é mais abrangente e ultrapassa o anterior.
Nesse sentido, a performance serviu como catalisador do processo
criativo para o conceito de instauração cênica.
Nessa coligação, Cruor Arte Contemporânea, os procedimentos
e processos criativos estão ligados ao conceito de instauração
cênica, como já mencionado. O termo foi criado por Nara Salles,
uma das autoras deste texto, em sua tese de doutorado, defendida
no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal da Bahia (PPGARC/UFBA), em 2004, intitulada Sentidos:

4 Nasceu em Palmares, Pernambuco, foi para o Rio de Janeiro estudar arquitetura e


urbanismo na Universidade Santa Úrsula. Filho do escritor Gerardo de Mello Mourão,
Tunga conheceu o modernismo brasileiro muito cedo. Iniciou sua carreira nos pri-
meiros anos da década de 1970.

150 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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uma instauração cênica – Processos Criativos a Partir da Poética
de Antonin Artaud. Partindo desse conceito, todos os integrantes
criam suas personas em laboratórios de pesquisa sobre o tema defi-
nido pelo grupo. O Cruor trabalha com a construção de personas
no entendimento de Lemos (2018, p. 48), através do pensamento
de Jung, ao apontar “[…] uma das máscaras usadas ao longo do dia
no exercício da vida”. E complementa:

Esse termo provém do teatro grego, pois cada ator utilizava


uma máscara para construir o seu personagem. A palavra per-
sonagem, por sua vez, surgiu da palavra persona. Em latim,
persona quer dizer através do som. A persona é um dos papéis
que interpretamos para sermos vistos e reconhecidos pelos
outros. Jung percebeu que nós agimos de maneira diferente
em cada ambiente social, em que precisamos ser aceitos
para pertencer a esse grupo específico; assim temos de nos
adaptar, dependendo da circunstância. (LEMOS, 2018, p. 48)

Os integrantes – a maioria alunos dos cursos de teatro, dança,


artes visuais, design, medicina e ecolologia – criam todos os ele-
mentos de cena e a estruturação delas sob a coordenação da pro-
fessora e diretora Nara Salles. Cada elemento cênico é confeccio-
nado de forma coletiva e colaborativa, mesmo que haja alguém
responsável por criar esse elemento. Sobre isso, Lemos (2018,
p. 54) afirma que

Mesmo que o Cruor se divida em núcleos com suas especi-


ficidades, o processo criativo é desenvolvido em conjunto;
então, mesmo que eu faça parte do núcleo de figurino,
não significa que vou trabalhar somente para a criação dos
trajes da cena, pois o grupo acredita na ideia de um processo
de criação que só é possível de ser desenvolvido com a con-
tribuição e sensibilidade de cada um. Logo, o processo de
criação realizado pelo Cruor é intuitivo, é coletivo, é mútuo,
é troca, é compartilhamento, é memória, é pessoal, é profis-
sional, é individual, mas também é grupal, é horizontal.

Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 151

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Nessa perspectiva, traremos a montagem “Carmin”, na qual
Lemos (2018) participou, para falarmos sobre o processo de criação.
Essa montagem do Cruor Arte Contemporânea aconteceu no espaço
Território de Educação, Cultura e Economia Solidária (TECESOL) –
local que antes era uma escola e que agora abriga um importante
polo de cultura no bairro de Neópolis – sob os cuidados do Grupo de
Teatro Facetas, Mutretas e outras Histórias.
Quanto ao processo de criação da luz, não foi muito complexo
em termos de montagem, já que algumas cenas não comportavam o
uso de refletor, pois poderia interferir na estética da cena. O uso de
projeção com imagens das obras de Frida Khalo compunha a atmos-
fera cênica em relação à luz e a própria poética cênica. A iluminação
das cenas foi definida de acordo com o roteiro e trabalhada segundo
a proposta definida pelo grupo. Grande parte dos equipamentos
foram cedidos pelo Grupo Facetas, para que o Cruor pudesse
complementar a iluminação das cenas, já que os equipamentos
do Cruor não eram suficientes para dar conta de todo o espaço. O
grupo não dispõe de alguém responsável pela iluminação, mas teve
a colaboração permanente do técnico Adriano Marinho dos Santos,
autor deste texto, que executou a criação, montagem e operação.
Houve um trabalho de criação em relação ao figurino e maquiagem,
além da supervisão na construção das cenas com a contribuição de
todos os integrantes.
No Cruor, o uso de materiais não convencionais na cena teatral
tradicional é uma constante. Nem por isso o grupo deixa de fazer
uso da tecnologia. A tecnologia usada pelo grupo vem da necessi-
dade de criação da atmosfera luminosa para cada cena e dos cená-
rios. No livro Filosofia da Tecnologia, escrito por Val Dusek (2009),
é possível entender mais sobre o contexto do uso das tecnologias
que fazemos referência aqui. O autor nos diz que:

[…] para que um artefato ou peça instrumental seja tecno-


logia, ele precisa ser colocado no contexto das pessoas que
o usam, que o mantém e reparam. Isto dá origem a noção de

152 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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sistema tecnológico, que o inclui instrumental, assim como
as habilidades e organização humanas necessárias para
operá-lo e mantê-lo. (DUSEK, 2009, p. 46)

Durante o processo de criação das cenas pelos atores e atrizes,


havia a liberdade de experimentar diversos elementos para compor
figurino, cenário e iluminação. Cada elemento selecionado para
uso fazia parte da tecnologia cênica usada pelo coletivo. O uso que
foi dado ao objeto de forma funcional possibilitou a execução das
cenas propostas sem que fosse necessário recorrer a equipamentos
tecnológicos de ponta.
O espaço em que foi realizado “Carmin” não era usual para espe-
táculos e precisou de várias adaptações em termos de luz. O conhe-
cimento prático cotidiano ajudou muito nesse processo de criação,
tendo em vista que usamos materiais criados na indústria para atender
uma demanda diferente da nossa, mas que possui funções parecidas.
Assim, conseguimos atingir o objetivo de cada cena pesquisando o
instrumento que melhor atendia a nossa necessidade. Nosso pro-
cesso de criação é permeado por pesquisa, por mais simples que
seja a ideia, a materialização dela requer conhecimento sobre como
torná-la possível. Esse conhecimento é valorizado em todas as áreas,
tanto nas indústrias quanto no meio artístico. Sobre esse ponto
de vista, Francisco Moreira Turbiani (2012, p. 13) afirma que:

Na indústria, o valor do conhecimento prático está na possibili-


dade de obter maior eficiência, assim como diminuir ao máximo
as possibilidades de erro. No caso de uma pesquisa teatral, não
são exatamente esses objetivos que estão em jogo, mas sim
como descobrir outras formas de iluminar que contribuam para
o efeito estético desejado.

Em se tratando da pesquisa teatral a que o autor faz referência


e devido à amplitude do espaço destinado à apresentação do espe-
táculo, foi preciso recorrer às mais diversas fontes luminosas que

Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 153

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pudemos ter acesso para iluminar a cena. Isso precisou ser feito
em conjunto, pois o processo de criação deve ter a participação de
todos os envolvidos, de forma que cada um exponha suas opiniões,
dúvidas e soluções para a encenação.
As cenas eram itinerantes e ocupavam todos os lugares do
espaço, tanto interno quanto externo. A instalação dos equipa-
mentos foi feita de forma bem simples, mas com o cuidado neces-
sário para não atrapalhar a movimentação dos atores e do público.
Essa encenação não é estática, portanto, o deslocamento em cena
ocorria desde a entrada até a saída do público. Esse deslocamento
fazia parte da dinâmica das cenas, que provocava sensações em
todo o processo, no qual os aromas e sabores se misturavam com
as cores e texturas espalhadas pelo ambiente.
Essa encenação foi concebida utilizando a colagem das instau-
rações cênicas “Peitos”, “TAI” e “Água” como procedimento cria-
tivo, sendo necessário reorganizar e unir isso tudo em uma narrativa
não linear, a qual fosse possível construir as atmosferas pretendidas
com os materiais que estivessem disponíveis ali naquele espaço.
Sendo assim, “Carmin” foi um bom exemplo de utilização de equi-
pamentos não teatrais ou artesanais como parte do cenário e ilumi-
nação, possibilitando a liberdade criativa de todos os integrantes do
Cruor durante a montagem e execução do espetáculo.
A seguir, apresentaremos os projetos integrados de pesquisa,
extensão e ensino desenvolvidos pela coligação Cruor.

Laboratório de Criação em Dança Teatro (2011)

Este projeto constituiu-se como espaço onde foram desenvolvidas


atividades que visavam dilatar e ampliar as capacidades psicofí-
sicas dos participantes das práticas, com fundamento nas teorias
da dança e do teatro em consonância com as pesquisas desenvol-
vidas pelas professoras responsáveis pelo desenvolvimento das
aulas. A proposta foi trabalhar e qualificar bailarinos e bailarinas e

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atores e atrizes, bem como contribuir para a formação de profes-
soras e professores de dança e teatro através da investigação de
modos diversos da sistematização de processos de criação na cena
contemporânea, tendo como foco a pesquisa de movimento por
meio da expansão do treinamento psicofísico e de laboratórios com
variadas técnicas da dança contemporânea e do teatro.
O projeto proporcionou o desenvolvimento e a produção de tra-
balhos coreográficos a partir de encontros semanais, bem como a
discussão e socialização desses processos visando contribuir com a
formação de professores de dança e teatro no estado do Rio Grande
do Norte, além de possibilitar a formação continuada de professores
da rede de ensino. No ano de 2011, o viés escolhido foi investigar os
processos criativos em dança sob a ótica da dança Butoh, em conso-
nância com os conceitos de fisicidade e subpartículas da ação física,
baseadas nos métodos de Grotowski, no Teatro da Crueldade de
Antonin Artaud, na Antropologia Teatral de Eugenio Barba, e no tra-
balho de pesquisa de campo da Antropologia Clássica, cujo resul-
tado prático pode ser observado na construção de coreografias
criadas pelos participantes do projeto, que partiram das noções
teórico-práticas fundantes do treinamento e metodologia para a for-
mação e aperfeiçoamento do trabalho do(a) bailarino(a) e ator(atriz).

Almodóvar e Kahlo: estéticas constituintes para processos


criativos (2011-2013)

Este projeto de pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de


Iniciação Científica (PIBIC) foi altamente integrado e propôs várias
ações de extensão visando desenvolver uma pesquisa multilinguagem
em arte contemporânea, investigando e realizando uma análise pic-
tórica das obras de Frida Kahlo e o estudo estético-poético das obras
de Pedro Almodóvar, com objetivo de: construir uma estética consti-
tuinte para processos criativos na concepção cênica, fundamentada na
teoria de Antonin Artaud (1997), nas teorias do teatro pós-dramático

Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 155

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de Lehmann (2007), na noção de Processos Colaborativos e de
Viewpoints; enfocar um trabalho de montagem cênica e desvendar os
processos criativos colaborativos neste contexto; mesclar artes visuais,
música, teatro e dança; e, por fim, apresentar ao público a encenação
intitulada “Carmin”.

Figura 1 – Cartaz da instauração cênica Carmin

Fonte: acervo do Cruor Arte Contemporânea.

Processos de criação em arte: vivenciando e apreendendo


cinema, dança flamenca, cultura espanhola e teatro (2013)

As ações estiveram em consonância com o projeto de pesquisa


PIBIC mencionado anteriormente, “Almodóvar e Kahlo: Estéticas
Constituintes Para Processos Criativos”, aprovado pela Pró-Reitoria
de Pesquisa (PROPESQ), o qual agenciou ações de extensão incluindo
as disciplinas de Encenação (Profa. Dra. Nara Salles) e Fotografia
(Prof. Dr. Marcos Andruchak), com o objetivo de desenvolver uma
pesquisa multilinguagem em arte contemporânea, investigando e

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realizando uma análise pictórica das obras de Frida Kahlo e o estudo
estético das obras cinematográficas de Pedro Almodóvar. Visou-se a
montagem de uma obra de Teatro-Dança a partir da estética destes
artistas e da recepção das comunidades envolvidas e das discus-
sões geradas a partir das obras, nas comunidades e nas disciplinas
com os alunos e alunas.

Arte contemporânea e cultura investigadas para conhecer,


apreender e transformar (2013-2018)

Este projeto foi contemplado com o edital Programa de Extensão


Universitária (ProExt/MEC/SESU) por duas vezes. Foram articu-
ladas ações nas dimensões de pesquisa, extensão e ensino con-
gregando cinco áreas artísticas: teatro, dança, performance,
cinema e artes visuais. Manteve-se relação com cursos de gra-
duação, cujo envolvimento em diversos contextos sociais contri-
buiu na formação pedagógica dos discentes envolvidos e na con-
secução das diretrizes assumidas pela UFRN no Plano de Gestão
e de Desenvolvimento Institucional no que se refere às ações arti-
culadas no campo da arte e da cultura. Assim, proporcionou-se a
elaboração e a difusão de processos e obras em integração com
segmentos sociais do Rio Grande do Norte, contribuindo para a
formação estética daqueles que atuam nas áreas educacionais e
culturais bem com na formação de plateias a partir das problema-
tizações inerentes à arte contemporânea.
As ações compreenderam a realização de minirresidências,
objetivando fomentar a arte e a cultura e viabilizar o acesso da
comunidade ao resultado de projetos de pesquisa e ações extensio-
nistas e de pesquisa; de disciplinas da graduação e pós-graduação,
desenvolvidos nos anos 2010 a 2013; de minicursos focados nos
processos criativos em arte contemporânea; de conferências com
artistas; de curso de formação continuada em interface com o
Programa de Extensão Escambo de Saberes: estágio e formação

Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 157

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docente nas licenciaturas em artes da UFRN, e de introdução ao
cinema contemporâneo através de filmes no Cine Cruor; por fim,
debates e execução de pintura mural-artística com a comunidade.
Aconteceu a internacionalização do Programa no Escena Mazatlán
2013 e 2014, em Sinaloa, México, em convênio já firmado entre a
UFRN e o Instituto de Arte e Cultura de Mazatlan no ano de 2012.

Criação e apresentação da instauração cênica: “Homens,


libertem-se!” (Men Get Free!), em parceria com o Living
Theatre, Nova York, e o Mo[vi]mento, MG/RJ (2014)

Este projeto foi concebido a partir de um convite do grupo Mo[vi]


mento, do Rio de Janeiro, em parceria com o histórico The Living
Theatre, de Nova York, ao Cruor Arte Contemporânea, da UFRN,
para investigar processos de criação, conceitos e procedimentos
artísticos ligados às proposições da arte contemporânea, com apoio
do Núcleo Tirésias/UFRN. A ação teatral “Homens, Libertem-se!” é
uma grande campanha artística a ser realizada durante os jogos por
grupos de teatro residentes nas 12 cidades-sede da Copa do Mundo
da FIFA Brasil 2014; em Natal, o grupo selecionado para concretizar
a atuação foi o Cruor Arte Contemporânea.
A ação aborda as opressões sofridas pelo gênero masculino pro-
vocadas pelo machismo. Acreditamos que a Copa do Mundo seja
o evento perfeito para a realização das ações desta campanha por
trazer ao público um esporte que, infelizmente, ainda dá mostras de
grande intolerância e preconceito contra a diversidade e os direitos
dos homens. A proposta visa promover uma cultura em Direitos
Humanos com o objetivo de difundir a paz, conscientizar e informar
acerca dos direitos individuais e sociais do cidadão, valorizar a diver-
sidade étnica e cultural, a convivência social solidária e a superação
de preconceitos e das desigualdades sociais e de gênero.
Dessa forma, o Brasil, em ação conjunta com os quinze grupos
teatrais sob a orientação do Living Theatre, em cada cidade sede,

158 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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se colocou um passo à frente em matéria de conscientização e
humanização da sociedade, especialmente daquela ligada ao
futebol, tornando-se um exemplo diante de outras nações através
do apoio e desenvolvimento de projetos deste teor. A equipe
conta com parceiros em doze estados do Brasil, além do grupo
nova-iorquino, num total de aproximadamente cinquenta pes-
soas e quinze grupos teatrais. Foram 12 projetos de performance,
ocorridos nas cidades sede da Copa do Mundo; um de audiovisual,
que deu uma mostra documental desta realidade a ser combatida;
e um de moda, que ajudou a compor a ação central da campanha.
Esta ação foi consolidada por uma queima simbólica de calças,
trocadas pelos homens por saias estilizadas da campanha, com
estampas que trouxeram um manifesto do movimento, escrito em
muitas línguas e símbolos, com frases como: “eu choro, eu dou de
mamar, eu me emociono com o voo dos pássaros”, entre outras pes-
quisadas no decorrer do processo de criação. Cada grupo criou uma
ação performativa em torno do tema em vários pontos da cidade
ao final das cinco apresentações da encenação, que culminou na
queima simbólica, assim, as calças trocadas foram doadas a insti-
tuições e organizações que atendem pessoas carentes.
O desenvolvimento do projeto na UFRN aconteceu com três
ações de extensão abertas à comunidade em geral e visou a cons-
cientização e a formação de público, paralelo ao processo de criação
da obra. Assim, foi realizado ao longo do ano de 2014, uma vez
por semana, com duração de quatro horas cada, da seguinte maneira:
1. segundas-feiras: exibição de filmes relacionados ao tema descons-
trução de gênero e opressão, com o apoio do Núcleo Tirésias/UFRN,
com debates orientados ao final de cada sessão; 2. terças-feiras:
palestras sobre moda, figurino e desconstrução de gênero e
opressão, tendo ao final a confecção de saias a serem utilizadas
nas instaurações cênicas; 3. quartas, quintas e sextas-feiras:
laboratórios abertos de treinamento psicofísico, corpóreo/vocal,
procedimentos criativo e desenvolvimento da criação de “Homens,
Libertem-Se!” (Men Get Free!).

Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 159

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Alfabetização em arte contemporânea e processos de
criação: investigações sobre a loucura (2016-2018)

A pesquisa analisou, com abordagem quantitativa e qualitativa dos


dados, o trabalho de alfabetização em arte contemporânea e pro-
cessos de criação realizado no Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado,
além de dar continuidade à Residência Artística dentro do referido hos-
pital manicomial, que culminou na montagem teatral “(Lou)Cure-se!!!”,
apresentada neste local para o público convidado, como resultado da
citada Residência Artística e do trabalho de mestrado do psicólogo
Josadaque Pires. O material produzido foi divulgado entre pesquisa-
dores do ensino de arte e saúde mental, bem como para professores
e professoras de artes, em forma de artigos e apresentações em con-
gressos, seminários e encontros da área. A pesquisadora Jéssica
Cerejeira (2017) desenvolveu seu trabalho de conclusão de curso
durante esta pesquisa. Em seu trabalho, apresentou os resultados
de uma articulação entre as artes visuais, moda e a loucura dentro da
Residência Artística implementada no Hospital Psiquiátrico Doutor
João Machado, explorando o espaço da própria residência para prá-
ticas de alfabetização estética com os internos em tratamento no hos-
pital, a fim de reafirmar a relevância das artes visuais e dos processos
criativos utilizados nas ações artísticas dentro do espaço hospitalar.
A pesquisa teve como objetivo desenvolver a linguagem das
artes cênicas e visuais através de atividades que exploravam as
habilidades artísticas dos internos e de uma alfabetização estética,
com o apoio de uma equipe de profissionais do campo da saúde
mental (Josadaque Pires, Nara Salles, Ionara Ferreira, Telma Lira,
Ataildo Sergio, Fátima Roberta e estagiários de psicologia) e artistas
(Francisco Junior, Ewerton Rangel, Emisandra Helena, Renan Carlos).
Seu desfecho foi a realização de uma exposição no hall do prédio
anexo ao Departamento de Artes da UFRN, em dezembro de 2017.
Como já mencionado, foi neste âmbito desenvolvido o trabalho
de conclusão de curso de Jéssica Cerejeira, autora deste texto,

160 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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que partiu de um desejo da pesquisadora em contribuir para a
autonomia e humanização das pessoas usuárias do hospital psi-
quiátrico, minimizando os prejuízos causados pelo descaso social
que passaram durante anos, promovendo uma vivência em artes
que pode levar ao bem-estar psíquico com possibilidades de
reestabelecimento da saúde mental desses pacientes, a curto,
médio e longo prazo. É, ainda, fruto de um extenso percurso de
pesquisa in loco no hospital, desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa
Transdisciplinar de Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares
Cruor Arte Contemporânea, do qual o autor e as autoras deste
artigo estiveram presentes efetivamente.

O processo de criação colaborativa no Cruor


Arte Contemporânea

A criação colaborativa surgiu após as décadas de 1970 e 1980,


como uma espécie de sucessora da criação coletiva. Um dos
expoentes da criação colaborativa no Brasil, Antônio Araújo, explica o
surgimento do processo colaborativo em sua tese, ao afirmar que:

A expressão processo colaborativo começou a ser usada na


segunda metade da década de 90 dentro de um contexto de
retomada do movimento de teatro de grupo na cena paulistana.
O retorno desta perspectiva grupal, que aparece quase como
um contraponto à hegemonia do encenador no teatro brasi-
leiro da década anterior, vai, pouco apouco, ganhando uma
dimensão nacional. Não que os grupos tenham deixado de
existir após a década de 70 – entre outros coletivos impor-
tantes e atuantes nesse período, poderíamos destacar o Grupo
Galpão, o Imbuaça, o Ponkã ou ainda o ÓiNóis Aqui Traveiz –
mas o forte da produção nacional teatral orbitava em torno
dos encenadores. São, desse período, montagens importantes
de Gerald Thomas, Ulysses Cruz, Bia Lessa, Gabriel Vilella,
entre outros. (ARAÚJO, 2008, p. 57)

Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 161

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No processo colaborativo, os integrantes são parte fundamental
na construção das cenas. Apesar desse processo aglutinar algumas
práticas do processo de criação coletiva, como o estímulo à criação
em coletivo, cada integrante participa dentro da sua área de atuação
em função do todo. Não significa que cada um tenha que ser res-
ponsável só por uma função. Sobre isso, o dramaturgo Luiz Alberto
de Abreu (2004) entende que o processo colaborativo se con-
trapõe ao modelo tradicional do fazer teatral onde cada participante
atua, apenas, dentro da sua função. Essa é uma forma de teatro
funcionalista no qual a única preocupação é o resultado da obra.
Assim sendo, o artista se torna um mero participante e executante
dos comandos do diretor, fazendo o que lhe é pedido de maneira
alienada do restante da obra. Na visão de Abreu (2004, p. 33), o pro-
cesso colaborativo pode ser definido como:

[…] um processo de criação que busca a horizontalidade


nas relações entre os criadores do espetáculo teatral.
Isso significa que busca prescindir de qualquer hierarquia
pré-estabelecida e que feudos e espaços exclusivos no pro-
cesso de criação são eliminados. Em outras palavras, o palco
não é reinado do ator, nem o texto é a arquitetura do espe-
táculo, nem a geometria cênica é exclusividade do diretor.
Todos esses criadores e todos os outros mais colocam expe-
riência, conhecimento e talento a serviço da construção do
espetáculo de tal forma que se tornam imprecisos os limites e
o alcance da atuação de cada um deles.

Nesse sentido, podemos ressaltar a importância da intervenção


e do diálogo entre os componentes dos grupos em seus campos de
atuação. Apesar da experiência de cada um na função que exerce,
na hora de organizar o trabalho serão necessários ajustes. É nessa
hora que a interação no processo de criação se torna parte fun-
damental no resultado do trabalho. O processo criativo individual
dos integrantes precisa se completar ao do outro de forma que
haja unicidade na ideia geral. Mesmo com a definição de funções

162 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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preestabelecidas, não há limite de interferência entre os integrantes
do grupo. Cada um contribui com sua experiência no processo de
construção da obra, como descreveremos mais adiante.
Sobre os processos de criação, seja ele coletivo ou colaborativo,
destacamos que o lugar de pesquisas e ensaios é o principal espaço
utilizado para tal trabalho e que os(as) atores(atrizes) são o núcleo
central desse processo. Eles criam não só o texto, mas todos
os outros elementos que compõem seu personagem e a cena,
e o roteiro da encenação é ponto de partida de todo o processo.
Isso é comum nos grupos teatrais em que há uma formação sólida,
ou seja, o grupo se mantém junto a bastante tempo, facilitando o
diálogo entre os componentes e o entendimento das ideias pro-
postas durante a criação das cenas.
Sobre hierarquia, Antônio Araújo (2002) defendeu, na sua dis-
sertação de mestrado, a ausência de hierarquia, sendo a autoria
partilhada por todos os integrantes do grupo, já em sua tese de dou-
torado (2008), passou a considerar que essa pode ser partilhada
por todos. Vejamos,

Hoje, contudo, acreditamos que melhor do que ‘ausência’ de


hierarquias, seja mais apropriado pensarmos em hierarquias
momentâneas ou flutuantes, localizadas, por algum momento,
em um determinado polo de criação (dramaturgia, encenação,
interpretação, etc.) para então, no momento seguinte, se mover
rumo a outro vértice artístico. (ARAÚJO, 2008, p. 56)

A flutuação de hierarquias, como fala Araújo (2008), funciona,


em nosso entendimento, como forma de integralização do grupo.
Cada integrante, apesar de ter sua função definida, irá entender o
que acontece nas outras funções e irá propor a criação segundo seu
entendimento artístico. Entendemos também que o processo cola-
borativo, hoje, talvez seja o principal meio de criação entre os grupos
de teatro no Brasil. As pesquisas que tratam de processo de criação
relacionam grupos profissionais com muito tempo de existência,

Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 163

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com uma história já consolidada. O processo criativo gira em torno
das experiências de vida dos participantes. Direcionados pelos coor-
denadores, os integrantes criam seus personagens e suas partituras
corporais, além de todos os elementos constitutivos da cena.
A interação dos responsáveis pelos elementos dará consistência
ao que se pretende atingir no processo de criação. As propostas
surgidas durante os ensaios ou reuniões devem ser apresentadas a
todos, de forma que um possa opinar sobre a proposta do outro e
construir um trabalho com as características e a identidade do grupo.

Referências

ABREU, L. A. Processo colaborativo: relato e reflexão sobre uma


experiência de criação. Cadernos da Escola Livre de Teatro,
Santo André, SP, v. 1, 2004.
ARAÚJO, A. A encenação no coletivo: desterritorialização da função do
diretor no processo colaborativo. 2008. Tese (Doutorado em Artes Cênicas)
– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
ARAÚJO, A. A gênese da vertigem: o processo de criação de
O paraíso perdido. 2002. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) –
Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1987.
BAIOCCHI, M. Butoh: dança veredas da alma. São Paulo:
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Um olhar sobre processos de criação cênica e pesquisa no Deart/UFRN 165

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Capítulo 9

POSSIBILITANDO OUTROS TEXTOS E


CONTEXTOS: ENTRE AÇÕES CULTURAIS
E EDUCATIVAS NA EXPOSIÇÃO
“OLHARES PRA DANÇA”

Valéria Maria Chaves de Figueiredo


Luciana Gomes Ribeiro

Do amoroso esquecimento
Eu agora – que desfecho!
Já nem penso mais em ti…
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

(QUINTANA, 2005, p. 49)

Primeiro, é preciso dizer que não somos das artes visuais.


O museu não é a nossa casa. Mas resolvemos fazer uma expo-
sição. Nasceu de nossa prática, de nossa experiência, mas princi-
palmente do desejo como professoras e pesquisadoras de revelar
uma história muito pouco conhecida. Entramos nesse desafio
com uma exposição sobre dança numa galeria de arte. Nasceu de
uma possibilidade de reflexão sobre a dança e que pouco adentra
este espaço: o museu.
Construímos, então, uma exposição sobre dança e queríamos
pensar este novo lugar também como espaço da dança. O que

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permitiu essa construção de narrativas foi encarar desafios e criar
condições, caminhos e rotas para dar protagonismo às histórias
dos outros, em composição com o corpo, o movimento, as memó-
rias e os afetos. Nosso olhar foi sempre atento, mas provisório e
encarnado na experiência dos diferentes e das diferenças entre os
sujeitos. Assim, foi organizada de uma maneira espacial que sub-
vertia a ordem cronológica, ao mesmo tempo em que foi apresen-
tada por meio de três camadas de contação de histórias: a imagem,
a oralidade e a escrita.
A exposição “Olhares pra Dança: histórias e afetos da dança
cênica goianiense de 1970-2000”,1 compreendeu a constituição
e publicização de uma cartografia da história e memória da cena
artística da dança na cidade de Goiânia, dos traços modernos à
contemporaneidade. Foi um convite para olhar a dança e enxergar
suas características e prerrogativas. O objetivo perpassou o mapear,
o conhecer e o delimitar do campo e da dimensão contextual e artís-
tica da dança, entendendo como fundamental (re)conhecer as pro-
duções da área e suas espessuras artísticas constituídas ao longo
das décadas.
O recorte foi da década de 1970 até a primeira década dos
anos 2000, e elegeu-se um conjunto de grupos independentes
e/ou movimentos que provocaram o surgimento e inserções das
estéticas moderna e contemporânea na capital. A exposição apre-
sentou 23 imagens fotográficas escolhidas por curadoria composta
pelas pesquisadoras do projeto, acompanhadas, cada qual, por um
depoimento oral e um depoimento escrito. A proposta foi disparar
o encontro imediato com essas imagens que vieram de acervos
pessoais e que contam muitas histórias paralelas e pouco conhe-
cidas. Os depoimentos orais revelaram percursos desconhecidos e

1 Este texto foi produzido a partir da exposição artística: “Olhares pra dança: histórias e
afetos da dança cênica goianiense 1970-2000”, realizada pelas autoras/curadoras em
maio de 2017, com financiamento do Fundo Estadual de Arte e Cultura de Goiás, que se
tornou uma exposição permanente virtual: http://olharespradanca.art.br/.

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impressões particulares que atravessam temporalidades e subjeti-
vidades, os textos alargaram o contexto das épocas e criaram um
ambiente maior de conhecimento dos grupos.
Buscou-se ressaltar as diferenças e os diferentes modos
de se fazer e apresentar essas danças/estéticas, conhecendo
e identificando as contaminações de gerações de artistas,
professores, trabalhadores da dança em geral. A exposição contou
com ações educativas que foram construídas em torno de muitas
questões envolvendo a relação que poderia se estabelecer com o
público a partir do objeto em questão, a prática cultural da dança.
Como fazer essas histórias e memórias atravessarem o público,
seus corpos, seus afetos? A exposição esteve em cartaz durante
um mês na galeria de arte do Centro Cultural da Universidade
Federal de Goiás (UFG), que possui uma galeria de arte e uma
equipe específica da ação educativa.
Criado em junho de 2016, o Núcleo de Intercâmbio e Ações
Educativas do Centro Cultural da UFG (CCUFG), se propõe a forta-
lecer e reconhecer a importância das interações entre o público e
ações de educação, formação e comunicação dentro do centro cul-
tural, em especial, a galeria. Entendidas como formas de mediação
entre o sujeito e o bem cultural, as ações educativas facilitam a
criação de significados sobre as obras, as curadorias, os con-
textos bem como potencializam o conhecimento e a valorização do
patrimônio público cultural da UFG. Porém sabemos que a cons-
trução de políticas públicas ainda é insuficiente, principalmente
se pensarmos na permanência de políticas pública continuadas,
em que há, portanto, um longo caminho de embates e de lutas a
serem travadas em torno de uma construção coletiva de políticas
públicas e de desenvolvimento de uma sociedade civil empode-
rada no campo das artes.
Este texto busca explicitar um pouco da experiência de cons-
trução e realização da ação educativa dessa exposição de dança.
Entretanto, analisar as pessoas que vivenciaram nossa exposição
não significa entendê-las; o que se quer é destacar como essa

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experiência se deu. Interessa-nos conhecer os pontos de vista
desses que estiveram em contato com nosso objeto de estudo e
como foram pensadas as ações educativas para que ampliasse a
possibilidade de garantir que essas práticas culturais artísticas se
transformassem em experiência sensível.
De início, tivemos uma estranheza, talvez compreensível, já que
nos deparamos com um novo e diferente ambiente para a dança.
Asséptico, cheio de proibições, onde não é permitido tocar, falar
alto, comer, apenas passar pelos quadros e ir embora, sem con-
dições de perceber visivelmente se algo foi apreendido ou não.
Perguntávamo-nos o que pode afetar a adesão às práticas artísticas?
O gosto pela arte? O que a escola valoriza? Pensamos em como rea-
lizar uma ação de prática cultural que transformasse ou construísse
uma relação com a mesma que ultrapassasse apenas o interesse raso
e/ou ocasional de apreciação.
Em seu estudo sobre apreciação da arte, O amor pela arte,
Pierre Bourdieu e Alain Darbel (2003) chegam à conclusão de
que o gosto pela cultura, alimentado por esse contato frequente
com o museu – como local de apreciação, de fruição da arte –
não acontece do dia para a noite, e que quando vem desde
a infância, ou seja, quando é enraizado e alimentado pela família e
pela escola, possui uma chance muito maior de se manter durante
toda a vida do indivíduo.

Quem não recebeu da família ou da Escola os instrumentos,


que somente a familiaridade pode proporcionar, está con-
denado a uma percepção da obra de arte que toma de
empréstimo suas categorias à experiência cotidiana e ter-
mina no simples reconhecimento do objeto representado [...]
(BOURDIEU; DARBEL, 2003, p. 79)

Existem abismos entre as diferenças sociais e culturais?


Bourdieu e Darbel professam que o desconforto com o lugar e a
estranheza afastam muitos das experiências de apreciação, em

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especial, nos museus, que são ambientes da ordem do silêncio,
da higiene, da retidão. Para as pessoas que não estão habituadas a
frequentar tal espaço, logo na entrada, são intimidadas pela orga-
nização das peças, autores desconhecidos e pessoas que parecem
entender tudo que ali está acontecendo. É como se adentrassem
a um clube do qual não foram convidados. Talvez esse descom-
passo afaste muitos, de maneira que dificilmente voltariam para
uma nova visita.

E se os visitantes oriundos das classes populares preferem


visitar o museu, seja com parentes ou com colegas, é porque,
sem dúvida, encontram no grupo um meio de conjurar seu
sentimento de mal-estar; pelo contrário, o desejo de fazer
sozinho tal visita exprime-se com uma frequência cada vez
maior à medida que é mais elevada a posição na hierarquia
social. (BOURDIEU; DARBEL, 2003, p. 87)

A visão do museu como local sagrado e pertencente a apenas


uma parte da população, dos detentores dos códigos de signifi-
cação e de maior aquisição material, deixa claro que muitas vezes
o discurso de amor pela arte é apenas uma fachada para manter
os interesses daqueles que possuem dinheiro e poder na hierarquia
social, é uma maneira de marcar esse espaço como pertencente a
uma classe superior em que nem todos são desejados. Ao tentar
compreender como o gosto pela arte acontece em algumas pessoas
e outras não, os autores chegam a dois fatores, a escola e a família;
no que concerne à escola, destaca-se:

Por falta de uma organização específica, diretamente


orientada para a inculcação da cultura artística e encar-
regada de sancionar sua assimilação, as operações esco-
lares de difusão cultural são abandonadas à iniciativa dos
professores, de modo que a influência direta da Escola é
bastante reduzida: 7% somente dos visitantes franceses
afirmam ter descoberto o museu pela Escola e aqueles

Possibilitando outros textos e contextos 171

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que devem seu interesse pela pintura à influência direta
de um professor são relativamente pouco numerosos.
(BOURDIEU; DARBEL, 2003, p. 98)

Ainda que existam aulas de artes na escola, dificilmente o


público está presente nos museus, realidade que pode ser esten-
dida aos teatros. Sabe-se que esses espaços talvez afastem ainda o
público em geral, seja por valores cobrados dos ingressos, falta de
afinidade ou principalmente por falta de ações educativas, de inte-
ração, reconhecimento e identificação para os diferentes contextos.
A professora Virginia Kastrup (2012) discute o funcionamento da
atenção durante a experiência estética e lança luz sobre a potência
de transformação que a arte possui tanto para o artista como para
o percebedor/receptor. A aprendizagem é, sobretudo, invenção de
problemas, é a experiência de problematização. Será que escola,
a família ou a sociedade valorizam de fato a arte? Promovem o
conhecimento da experiência estética? Da aprendizagem inventiva?
Em Mil Platôs, de Deleuze e Guattari (1997), a aprendizagem
ressurge refletida através do conceito de território. Aprender não é
somente adaptar-se a um meio ambiente dado, a um meio físico,
envolve a criação do próprio mundo. Entretanto, quando perce-
bemos a formação cultural dos professores, esbarramos em proble-
máticas diversas. A rede pública de ensino, no Brasil, pouco valoriza
a experiência artística. Então, seja na universidade, nas escolas ou
na vida privada, a pouca bagagem de informação não é capaz de
alargar as experiências próprias dos alunos.
A professora Monique Nogueira (2008) dedica leituras e estudos
sobre a formação cultural dos professores e apresenta a discussão
como pertinente. Defende que esse tema deveria ser relevante,
mas que não tem recebido a devida atenção por parte da aca-
demia e das políticas educacionais. A importância da formação cul-
tural dos professores para a atividade docente, para a formação de
seus alunos é fundamental, também é a possibilidade de estarmos
atentos às peculiaridades e aos contextos do mundo atual.

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Pode-se destacar que essa falta de debate sobre o tema é uma
consequência da histórica hierarquização entre as disciplinas, cada
vez mais presente na estrutura escolar brasileira. Nesse sistema,
é atribuída à disciplina de Artes uma carga horária mínima.
Nogueira (2008) acrescenta, ainda, que essa incipiente atenção à for-
mação cultural do professor ocorre tanto dentro quanto fora da sala
de aula, em virtude da falta de hábito no tocante à apreciação das
experiências estéticas na vida cotidiana. A autora destaca seu desejo
latente por uma escola como palco de respeito às diversidades,
de iguais oportunidades e de estímulos que priorizem uma formação
integral dos alunos e professores.
Podemos dizer que a educação museal também se encontra
nesse espaço que conhecemos como da educação não escolar,
ou seja, a educação não formal ou educação extraescolar,
como cita Fávero (1980). De acordo com autor, essas classi-
ficações foram elaboradas sobre aqueles objetivos que dão
peso maior ao aumento de produtividade em detrimento de
uma mudança de atitudes. Assim, as atividades formativas não
formais são tidas como meras atividades complementares,
sem políticas próprias de valorização e organização.
Atentas a essas questões, o projeto de exposição “Olhares pra
Dança” quis que o acontecimento gerasse pontes concretas e dire-
tivas com a cidade e com as pessoas. Para além da formatação
específica da exposição, apresentada em três camadas de acesso
às histórias e memórias e sua disposição espacial não cronológica,
a ação educativa ganhou uma espessura e uma dinâmica visando
modos de participação e inclusão.
Durante todo o período da exposição, foram programadas visi-
tações de escolas da rede pública, do ensino fundamental ao
médio, além de instituições de educação especial, como a Apae.
Recebemos crianças e adolescentes de variadas camadas sociais.
Estabelecemos, assim, um momento especificamente formativo,
construindo possibilidades de apresentar e/ou aprofundar a relação
com a arte, a dança, o corpo e a experiência.

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Figuras 1 e 2 – Alunos do ensino médio do IFG/campus Goiânia
realizando uma das propostas de corpo/intervenção com a exposição

Fonte: acervo das autoras.

Figura 3 – Alunos do ensino médio do IFG/campus Goiânia realizando


uma das propostas de corpo/intervenção com a exposição

Fonte: acervo das autoras.

174 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Figura 4 – Alunos do ensino fundamental de escola estadual de Goiânia
realizando uma das propostas de corpo/intervenção com a exposição

Fonte: acervo das autoras.

A ação educativa teve o seguinte roteiro: em roda, o monitor


apresentava a exposição e sua temática central, história e
memória da dança cênica goianiense, a organização espacial,
as misturas e as possíveis camadas. Introduzia pequenas pro-
vocações, entre confiança e interesse jogava com perguntas:
o que as imagens revelam de dança, de cidade, do corpo,
das histórias? Na escuta dos depoimentos, o que chama a atenção?
E na leitura dos textos, o que eles dizem? Assim, abria-se um pas-
seio para contemplação livre pela exposição durante um tempo,
poderia ser sozinho, com seu grupo ou em pequenos coletivos.
Logo após, chamava-se de volta para uma roda e fazia-se um tra-
balho corporal de acordar, alongar e alinhar o corpo. Esse trabalho
foi experimentado em diferentes espaços, no estacionamento,

Possibilitando outros textos e contextos 175

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ao ar livre, dentro das salas, nas antessalas etc. Logo após,
emendava-se indo à frente de uma imagem e convidando todos a
reproduzi-la corporalmente. Provocava-se sobre o que as pessoas
na imagem estariam fazendo. Que tipo de ação/movimento e como
se poderia terminar aquele movimento da fotografia? Instigava-os
a inventar a história do movimento, a coreografar o abstrato,
o imaginário. Fazia-se isso em duas ou três imagens, com seus
grupos, sozinhos, com seus pares.
Num segundo momento, formavam-se grupos de três ou quatro.
Escolhia-se uma imagem que não tinha sido vivenciada ainda e
convidava-se a se transformar naquele espetáculo/grupo, reprodu-
zindo corporalmente a imagem, recriando a coreografia, dando vida
a ela, ou seja, inventando o que vinha antes ou depois da fotografia.
A ideia coreográfica dessa experiência vivida mostrou a potencia-
lidade de uma aprendizagem inventiva e de codependência de um
mundo que não se vê e que não se viu. Um ponto de vista onde se
experimenta o mundo e o imaginário. Ao final, cada grupo apresen-
tava corporalmente sua imagem, trazendo suas informações, nome
do grupo/espetáculo, data, como se chegou a ele. Também res-
pondiam algumas questões: como ele é? Como foi recoreografar?
Como foi ser coreografo e/ou bailarino da companhia?
Vale ressaltar que a maioria das crianças e jovens que foram
à exposição praticamente não conheciam os grupos de dança
apresentados na mostra, nem mesmo a Quasar Cia de Dança
Contemporânea, grupo mais famoso da capital e reconhecido
mundialmente. Nunca foram assistir a um espetáculo de dança,
em sua maioria, nem mesmo com a escola.
O envolvimento dos estudantes foi surpreendente, ao mesmo
tempo em que relataram como foi interessante e curioso conhecer
mais sobre a dança, sobretudo sua história, a variedade de pro-
duções em quarenta anos, a particularidade dos grupos artísticos
e suas histórias de existência. Consideraram que as estéticas e
os movimentos corporais apresentados deveriam ser inovadores
para a época.

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Essas ações confirmaram a importância em dar visibilidade
a essas memórias e histórias; em busca de trajetórias artísticas,
abrimos novos olhares para a dança na cidade. Micro-histórias cheias
de vazios, de buracos, que por vezes se mantiveram no experimen-
talismo, no anonimato, mas foram traços e iniciativas que romperam
com a atitude canônica da dança em busca de autoria e autonomia.
Pudemos apresentar a eles vidas artísticas de exploradores e
inventores da arte da dança que buscaram brechas para fugir dos tra-
dicionalismos, criando espaços arejados no corpo, na exploração do
movimento, nas singularidades. Convivemos com artistas, ativistas de
seu tempo, que trouxeram a dança como conhecimento, trabalho, luta,
e fizeram parte da história cultural da nossa cidade e de nosso estado.
Fizemos um trabalho diferenciado de mediação, pensando for-
mação e interação de ações artísticas e educativas em uma expo-
sição de dança. Buscamos elaborar, refletir, inventar, experimentar
e aprender conjuntamente. Acreditamos na potencialidade
pedagógica da arte e decidimos por ações afetivas, corporais,
experienciais e complexas que aproximassem as crianças e os
jovens de uma temática possivelmente pouco conhecida: a história
da dança goianiense.
Essas experiências foram intensas, potentes, também pro-
postas para adultos que ali passavam. Observou-se esse lugar de
conhecer, de recuperar seu próprio corpo, de sair à sua procura,
restabelecendo certo compromisso e capacidade de recuperar um
plano de liberdade expressiva.
A arte reclama por um olhar diferente do mundo e a escola frag-
menta o conhecimento. A professora Ana Angélica Albano Moreira
(1984) já indicava as tensas relações de continuidade e desconti-
nuidade entre a arte da criança e a arte do adulto, apontando que
são visíveis a inteireza e a concentração da criança no brincar,
ao desenhar com esse corpo inteiro, mas quando adulto, insiste em
se perder numa única racionalidade.
Numa tentativa de compor um plano de forças e de afetos,
nos preocupamos com um compromisso ético, estético e histórico

Possibilitando outros textos e contextos 177

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da exposição. Realizamos uma espécie de cartografia sentimental
de uma história pouco contada e conhecida. Cartografamos com
afetos, abrindo nossa atenção e sensibilidade ao imprevisível que
nos atravessava o tempo todo. Foram parte de nossas memórias e
das memórias dos outros que ali estavam nas imagens, nas falas,
nos escritos, nos corpos e nas danças expostos nas paredes e no
chão das salas de exposição.
Tivemos um público recorde, principalmente para uma expo-
sição de/sobre dança. Isso, nos trouxe o compromisso eminente de
reconhecimento da cultura goiana e a sensação de pertencimento
pela comunidade.
Foi pensando em como poderíamos ir além de nossos territórios
demarcados que as ações formativas e educativas se tornaram neces-
sárias e urgentes. Vivemos na escola, na família e na sociedade com a
demarcação de muitos tempos e espaços. Propusemos, assim, a pos-
sibilidade de oferecer também outros mapas temporais e sensoriais.
Nesse jogo simbólico e nessa trama de pessoas e histórias diferentes
que as questões da troca, das contradições e de uma espécie de con-
taminações se tornaram condições fundamentais no processo.

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Edusp: Zouk, 2003.
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178 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 178 30/11/2022 16:46:14


Capítulo 10

COMO CONFABULAÇÕES DO CORPO NOS


RECANTOS DOS CORPOS NA ÁRVORE

Lela Queiroz

Sobreviventes em áreas urbanas – as árvores conformam a moti-


vação que está na raiz do desenvolvimento desta performance.
Instigada pela Bienal do Recôncavo de 2012, da qual participei com
um pequeno laboratório/resultante de um ateliê de criação “Oficina
Corpo instalação”, com participantes da ação pedagógica promovida
no Centro Dannemann, São Félix de Paraguaçu, experimentamo-nos
e dimensionamo-nos em torno de árvores gigantes centenárias.
No rastro de Corpos Presentes, de Antony Gormley, “Recantos:
Corpos nas árvores” é uma pesquisa em arte realizada em diversos
espaços da capital Salvador, entre 2013 e 2014.
Ao me deparar cada vez menos com árvores e sua presença
saudável nas cidades – e elas, mais necessárias do que nunca,
nesta emergência climática – me pareceu vital contemplá-las mais
e mais. Aspirava confabular com a árvore, o seu convívio humano
no espaço da cidade.
Os primórdios de minha pesquisa sobre mudanças de estado e
sobre funcional-criativo se deu relativamente dentro da investigação
desta performance. Minha formação em Body Mind Centering (BMC®)
me abastecia de inquietações e expandia a minha compreensão de tal
modo que é a partir da possibilidade desta abordagem especial somá-
tica de dança, que se conformou o bastidor permanente em que se

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deu a proposta. “Corpulações”, pesquisa desenvolvida entre 2011-
2013, por mim como líder do Grupo de Pesquisa DC-3 na Universidade
Federal da Bahia (UFBA), ligada, então, ao Programa de Pós-Graduação
em Dança (PPGDança). O GPDC3UFBA CNPq desenvolveu laboratórios
de BMC® para performance, com a participação de performers, estu-
dantes de graduação e pós-graduação da UFBA, o que resultou na pes-
quisa em dança “Como confabulações do Corpo”.
No mundo todo, BMC® é referência indutora de um corpo
expressivo para procedimentos em performance. Práticas somá-
ticas tramam, então, os procedimentos artísticos em performance.
Em torno da corporalização, de mudanças de estado, de princí-
pios funcionais-criativos, da exploração de princípios evolutivos
de movimento, tendo em vista estratégias improvisacionais para
a construção da ação de performance, me abasteci de uma visão
integrada e em continuum, entre experimentos e experiência.
BMC demonstra que o corpo, em suas múltiplas dimensões
e eixos, através de movimentos & contato, e sua exploração no
ambiente, faz parte do processo de categorização perceptiva, em
concordância com o legado de Gibson (1969). Na mesma direção,
confluem as assertivas de movimento como categoria percep-
tiva defendida pela dinamicista e cientista cognitiva Esther Thelen
(1995b), que se dedica a explicar o papel dos movimentos nos pro-
cessos de desenvolvimento cognitivo.
Essas perspectivas nos fazem pensar como um tipo de informação
migra do formativo, manipulativo para o informativo, como se geram
as mudanças de estado e, no campo da significação, como se compõe
um processo seletivo contínuo como espaço de relações.
Em meados de 2012, fiquei comovida com a instalação de Antony
Gormley no centro antigo da cidade de São Paulo. Corpos gigantes
plantados no topo de 27 edifícios causaram um profundo impacto na
cidade. Na área interna do edifício do Centro Cultural Banco do Brasil
(CCBB-SP), corpos espalhados por todo lado, pendendo do teto, amon-
toados ou abalroados por nós a cada passo que dávamos. Aos poucos,
intrigada, me perguntava por que aquelas posições de corpo.

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Antony Gormley, artista contemporâneo inglês, escultor que ins-
tala maquetes corporais em espaços públicos ao ar livre, ocupando
campo e cidade, em maio de 2012, trouxe seu projeto a São Paulo,
ocupando o entorno e o interior do Centro Cultural Banco do Brasil
(CCBB-SP), com a modelagem de 27 corpos de tamanho natural,
de 600 toneladas cada, espalhadas pelo topo dos edifícios na cidade.

Figura 1 – Maquete referente a modelo de moldagem de escultura


do autor. Durante a exposição “Corpos Presentes”, de Antony Gormley,
no CCBB-SP, 2012

Fonte: acervo da autora.

Gormley é estudado por sua concepção de espaço. Assume um


olhar antropológico à investigação das posturas e da diversidade
gramática, por presumir que culturas se valem de posições raízes
do corpo humano – fetal, agachada, ajoelhada, sentada, deitada,
em pé – consideradas universais nas mais diferentes culturas, cujas
variáveis referem-se a processos significativos distintos, revelando
mais do que a princípio se vê: “Gormley considera isso dizer res-
peito a sintaxe oculta do corpo humano”. (LEVINSON, 2001) Fiquei
fortemente impregnada pela leveza engendrada por seiscentas

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toneladas de cada uma das esculturas gigantes de corpos sobre os
edifícios e vãos internos do CBBB-SP em “Corpos Presentes”, Still
Being, de Antony Gormley (2012). Seria isso fruto dessa concepção
de espaço e de sintaxe oculta?
Levinson (2001) acrescenta que nosso pensamento é funda-
mentalmente espacial e o nosso conhecimento espacial é funda-
mentalmente de ordem complexa, enraizada na velha estrutura
do hipocampo. Passei a considerar a obra de Antony Gormley,
Corpos presentes [Still Being], que havia vivenciado, como corpos
esculpidos através das direções no espaço da evolução humana
até a postura bípede; e valendo-me de sete posições básicas,
passei a investigar, por exploração, as relações da física do átomo
na construção do corpo e o seu espaço de relação.
Segundo Bonnie B. Cohen (1993), do BMC®, no interior dos
ossos restam mandalas de espaços internos. Assim, passei a me
deter nas relações de peso, volume, a partir dos ossos e do espaço,
silêncio e presença.
Tanto o rigor antropológico de Antony Gormley como o rigor somá-
tico de Bonnie Bainbridge Cohen confluem para a questão do espaço
como sendo central para o nosso entendimento do que seja corpo.
Outras questões são despertadas: no corpo humano resta a sintaxe
oculta que antecede a organização da linguagem? A construção do
significado é preliminar ou posterior a ela? Ambas as questões sobre
cognição e consciência tangenciam, ainda, um outro ponto: a cons-
trução do conhecimento com o corpo.
Na performance “Recantos: Corpos nas árvores”, desenvolvida
dentro da pesquisa em desdobramento da anterior, “Como confabula-
ções do corpo”, dois pontos são centrais: mudanças de estado e espaço
de relação na forma de participação do público na performance.
Nos processos de investigação com o corpo, coexiste espaço de
possibilidades com espaço de relações demarcados por repertó-
rios anteriores. Foi possível perceber relações que se estabelecem
a partir de ambas as perspectivas, num jogo de composição por
manipulação dos corpos em improvisação estruturada, a partir do

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processo relacional corpo e outro, ligando a postura com o aspecto
intencional comunicativo, com essas variações direcionais e das
frentes esculpindo corpos in natura, na base de árvores ao ar livre,
buscando interagir e reocupar o espaço em seu entorno, cada vez
mais reduzido ou obstruído pelo ocaso urbano.
Havia notado o uso da árvore para acumulação de entulho à
sua volta e como sombra para carro, ou moto, e passei a fotografar
árvores em Salvador, em busca de árvores com copas grandes,
galhadas baixas. Esse foi o início para a pesquisa, e quase não
encontrei árvores no meu raio de ação local, em áreas por onde
transitava, correspondendo a este parâmetro.
Um dos enfoques da investigação diz respeito a como realizar
performance partindo da dança como sistemática improvisacional,
valendo-se da prática somática BMC, com treinamento e processo
cognitivo de movimentos funcionais-criativos, para gerar mudanças
de estado e transbordar o aspecto experiencial que transforma o
preparo em processo autoral do performer junto ao público.
Fora do eixo de dominância e controle motricional, levados à
tona de forma imprevisível e sistemática, codependentes em grande
medida das experiências que passam o organismo e das pressões
internas, assim também se dá a sistemática improvisacional.
A pesquisa foi fundamentada pelos estudos de BMC acerca
do movimento, para além da concepção macroscópica a olho nu,
a partir do desenvolvimento ontogenético e filogenético evolutivo
do organismo; entre as práticas estão as de sentidos & percepção e
os Basic Neurocelular Patterns (BNPs), os padrões neurocelulares
basais, na construção de procedimentos exploratórios, para tramar
procedimentos artísticos em dança/performance.
Estou propondo uma descrição não comum, ligada às ciências
cognitivas, aos procedimentos artísticos e às investigações em per-
formance aberta com explorações somáticas. Proponho escrever
em torno de três pontos: corporalização, mudanças de estado e
princípios funcionais criativos em sua utilização como estratégia
improvisacional em arte da performance.

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Dos laboratórios de BMC para performance às ações de perfor-
mance realizadas por esta pesquisa em arte, mantivemos nossos
estudos de processos centrados no corpo. Cada processo de criação,
composição e configuração foi gerado dentro do escopo da pesquisa,
da investigação com os princípios evolutivos e sua ressignificação
improvisacional, visando torná-los procedimentos artísticos.

Entre intervenção e instalação

“Corpulações” teve seu enfoque dirigido ao estudo dos processos


de movimentos evolutivos para nortear procedimentos artísticos
de criação das performances, apoiado pelo campo exploratório
e pelas estratégias improvisacionais de BMC. Como pesquisa-
dora na Pós-graduação em Artes Cênicas na UFRGS, em 2008,
com bolsa recém-doutor da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes), o primórdio daquelas experi-
mentações se valeu da iniciação de movimentos instintivos per-
tencentes a uma escala anterior à humana. Buscava-se, com as
atrizes, iniciar movimentos no corpo partindo especificamente
das ignições reptílicas, o ponto de ligação posterior aos anfíbios
e anterior aos mamíferos quadrúpedes. Dentro do escopo da
pesquisa, havia um papel especial para a evolução, deslocando
o eixo do linear temporal para o eixo seletivo, desestabilizando a
linearidade antes-depois, em que se expõem e se impõem eixos
migratórios. Estaria a discussão tangenciando a construção das
narrativas em deslocamento para o corpo? “Como confabulações
do corpo” e “Recantos: Corpos na árvore” são, em boa medida,
fruto desta pesquisa anterior.
Para entender um pouco mais sobre a hipótese evolutiva de
movimentos, nos detemos sobre os princípios evolutivos de BMC
dos BNPs, os padrões neurocelulares basais, que indicam que
uma gama de movimentos é herdada de uma espécie. A formação

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do padrão contralateral se dá nas espécies mamíferas, avançando
no desenvolvimento do padrão de movimento homolateral dos
répteis e do padrão homólogo herdado dos anfíbios. Todos eles
surgem enquanto uma possibilidade de atualização de um tipo de
movimento específico fundamental para a sobrevivência daquela
espécie, e isso, posto em perspectiva, para a sobrevivência daquela
espécie de movimentos em nossos corpos. Temos movimentações
em torno de eixos tridimensionais focais que se integram por sub-
sistemas múltiplos em crescente desdobramento, gerando padrões
de movimentos em direção a um desenvolvimento mais com-
plexo e sofisticado de movimentações. Daí a noção de princípios
funcionais-criativos e a vertente de eixos migratórios.
Somado a isso, partia-se de um princípio evolutivo preverte-
brado, um padrão neurocelular basal dos BNPs, propostas de desa-
fiar a gravidade ou de buscar a locomoção em ações da ordem da
sobrevivência do organismo no ambiente, em instigantes possibi-
lidades de, assim, desfazer-se dos códigos dominantes de movi-
mentos de repertórios conhecidos.
Ao processo dinâmico entre fazer, dar forma e recorrer à fonte
mais reflexiva e primitiva de movimentações, passou-se a inves-
tigar a dobra redobra do corpo. Valendo-se das posições de corpo
tangibilizadas pelos moldes de Antony Gormley, buscou-se notar
o velar, desvelar, revelar, entre dobra-redobra, e o desdobrar,
num continuum entre e dentre os experimentos-experiência.
Uma das formas de presenciar isso é por investigação em duos,
onde uma pessoa é manipulada pela outra até chegar ao posi-
cionamento desejado. As duplas alternam, observam e variam as
posições aleatoriamente até obter uma massa crítica de expe-
riências, familiarizando-se com o sistema de reconhecimento das
formas geradas em estado de paragem e os intervalos produzidos
entre elas.
Nessas investigações de movimentos evolutivos, busca-se mer-
gulhar em escuta e manter-se disponível para tomadas de decisão
não totalmente controladas pelo cérebro. Sheets-Johnstone propõe

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que movimentos agem pela sobrevivência do organismo junto ao
meio: “Distinguir movimento de imobilidade, mover-se de repouso
é, sem dúvida, uma discriminação natural fundamental das criaturas
vivas, vital para a sua sobrevivência”. (JOHNSTONE, 1998, p.  17)
Há uma ressonância em diálogo: o intervalo da paragem, prenhe de
movimento, confabula um novo espaço de relação.
Imobilidade – mobilidade e a distinção entre movimento e não
movimento ganhou força com a fonte pesquisada em Antony Gormley
e passou a constituir uma das indagações centrais da pesquisa, rela-
tiva à entrada dos corpos em torno da árvore, e gerou uma guinada em
relação ao espaço disposicional. O procedimento artístico de esculpir
os corpos nas árvores precisou se valer de estratégias de pensar a dis-
posição dos corpos em torno da árvore.
Os procedimentos envolvidos se apresentaram em encruzi-
lhada na abertura da performance, entre performers e o público
trazido pela mão e disposto em torno da árvore. O público
recebeu o toque e o balanceamento dos ossos (bone levering)
de BMC que, neste contexto-sensitivo, Sebeok (1991, 1995)
extrapola o terapêutico dentro do artístico, na geração de mudança
de estado corpórea que leva o experiencial para a plateia,
deixando de lado a divisão expectador-ação, entendendo público
e performers como participantes unidos, no sentido do processo
cocriativo e do progresso coevolutivo das ações. Na direção de
interferir na vida, propomos romper a separação performer-
-público, tramando o risco participativo, gerando mudanças de
estado como transformação no corpo do expectador, cuja parti-
cipação passa de laboratório dos sentidos & percepção para sua
participação integrada à performance.
Corpo agachado ou corpo acocorado nos informa de sua situação
transicional. O engatinhar, ou a posição de quatro, também. No pro-
cesso de experimentação de levar o corpo a assumir um posiciona-
mento, valemo-nos da compreensão de sistemas corporais de BMC
para investigar, pelos ossos e pela sua segmentação, como o corpo
chega ao posicionamento pela eficiência e pela economicidade,

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esculpido por um outro corpo, como espaço de relações; como
esculturas vivas.
Os duos de carregamento dos ossos, com o sistema do organismo,
levando a locomoções e deslocamentos até a sua instalação na base,
raízes e galhos alcançáveis das árvores, foi desenvolvido pouco a
pouco. Focar na experimentação a partir da noção de espaço/volume
do corpo, explorando a deformação e reconfiguração, esculpindo o
movimento em duos, trios e grupos, expressando motivações inter-
pessoais. Juntam-se corpos em contato, por carregamentos, transi-
ções, travessias e deslocamentos, compondo esculturas instantâneas
em jogos de improvisação estruturada, chegando eventualmente ao
jogo de contato-improvisação.
No diálogo com “Corpos Presentes”, Gormley nos informa em
seus moldes de corpo-esculturas, de estados de permanência,
o modo de ser perene sendo-estando, uma compreensão da física
atômica paira em seu projeto. Acabamos por programar uma ação
junto ao público, esculpindo corpos de adultos voluntários, convi-
dados na hora a serem instalados; envolvendo o público no trabalho,
em pontos, formas, volumes e modos de disposição dos corpos na
raiz da árvore; ligando-se a modificação do volume por contato entre
corpos como espaço de relação, também de ressignificação impro-
visacional, de caráter compositivo em aberto.
Uma árvore permanece sendo-estando (still-being) num mesmo
espaço. De nós para ela, liberamos gás carbônico, dela para nós,
oxigênio. Por que, então, o progressivo e sucessivo extermínio das
árvores, quando o contrário seria plenamente e absolutamente o
mais indicado? Devolver o corpo para as árvores me pareceu ser a
coisa certa a fazer.
Questionamos o quanto a relação cotidiana com a natureza
vem sendo paulatinamente extirpada e se torna praticamente
impossível devido a uma constelação de fatores que importam,
como o medo, a violência, a presença de dejetos inoportunos,
entulhos, mas há outro fator que pesa bastante e mantém as pes-
soas longe do convívio com as árvores: a presença de formigas,

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insetos, devido ao forte dano ambiental de temperatura ele-
vada. Nesse sentido, essa proposta visa ser disparadora na nossa
relação com as árvores, pois são fundamentais para nossa res-
piração, assim, pretende-se trazer as pessoas para perto, evo-
cando a natureza dentro delas.
Inicialmente, boa parte da pesquisa foi realizada dentro de sala;
mas na continuidade a prática se estendeu para fora do prédio, tendo a
referência no corpo dessa imersão em outros espaços. Movimentar-se
ao ar livre informa o corpo de maneira diferente, modifica os referen-
ciais e proporciona estímulos que não existem em sala, alterando
sentidos & percepção. As escolhas, reações, os reflexos, as tomadas
de decisão, a alternância maior entre atenção e intenção na cons-
ciência, ampliam o repertório de movimentos e geram uma mudança
de perspectiva inteira para o intérprete criador.
Dessa inquietação surgiu, para o escopo da investigação,
o mergulho em escala de movimentos de transição, mesclando-os
com os regidos pelo controle motor em ascensão, formando reatores
imprescindíveis das explorações que passaram a desenhar e esculpir
os corpos do público-plateia como (re)cantos corpos ao pé da árvore,
os que ficam, os que vão, a imobilidade versus mobilidade. Tendo
como base de fundamentação a minha hipótese funcional-criativa de
movimentos evolutivos e as posições de corpo, me deparei também
com a imanência de cura proporcionada pela árvore.
Na experiência da ação de performance, após permanecer 10
minutos debaixo da árvore participando da performance, o público
relatou que não escutava mais o ruído sonoro da cidade. O detalhe
é que estávamos apenas a 20 metros de uma rua bastante agitada,
com parada de ônibus e saída do estacionamento. Animais e pás-
saros surgiram na copa da árvore. Após a experiência, relataram
profunda sensação de bem-estar e recuperação. A performance foi
acompanhada pelo tecido sonoro improvisacional do músico violon-
celista Felipe Massumi.

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Figura 2 – “Árvores são Copas” e “Recantos: Corpos na Árvore”.
Performers em destaque: Leo Serrano (Arg.), Anna Paula Brandão,
Wicho Ray Mo (Arg.)

Fonte: acervo da autora.

Acreditamos que a frequência sonora e a movimentação lenta,


sustentada e contínua, como pousos humanos prolongados abaixo
da copa, trouxe aos animais a segurança de que não seriam atacados.
A propósito disso, Sebastião Salgado, em entrevista concedida ao
SESC Belenzinho, por ocasião de Exposição Gênesis, 2013, quando
perguntado como se aproximara tantos dos animais selvagens para
o clique fotográfico em sua última expedição, sem que o atacassem,
disse que a presença demorada imóvel, o contato dos olhos e a ter-
nura demonstravam ao animal que nada aconteceria a ele.
Fui convidada, por Aruane Garzedin, para a programação oficial
da Semana de Arquitetura da UFBA, em 2013, e compartilhei da

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instalação “Árvores são copas”, momento em que o Brasil recebia o
evento da Copa do Mundo. Nessa ocasião, estabelecemos uma pes-
quisa de campo em que promovemos um ateliê imersivo em BMC
com 18 pessoas, no projeto Fusion no Pelourinho. Propusemos a
recuperação do espaço vital de uma árvore de 148 anos de exis-
tência, que cotidianamente servia para a acumulação de entulho e
cobertura para automóveis junto ao estacionamento. Infelizmente,
a árvore onde fizemos o trabalho foi derrubada em início de 2019.
Compuseram o jogo criado das esculturas instantâneas a noção
de espaço curvo dentro-fora, do volume do corpo, explorando espa-
cialidade, deformação e reconfiguração; esculpindo o movimento
em duos, trios e grupos; expressando motivações interpessoais
interligadas à espacialidade do corpo e do entorno, dos corpos em
contato, alternância, paragem, stillness e carregamentos; viabili-
zando transições, travessias e deslocamentos. A sistemática impro-
visacional enquanto procedimento artístico permeado por lances de
dados incidentais, corrobora, em certo grau, com a noção de con-
texto-sensitivo, de Sebeok (1991, 1995).
Para melhor entender no que se constitue a ideia lançada pelo
semioticista Sebeok, recorremos ao conceito de neuroplasticidade
de Antonio Damásio (1999), que nos explica, sobre regulações bio-
lógicas, o papel destas para propiciar condições vantajosas e reduzir
riscos. Ele diz que as regulações biológicas modelam o design do
cérebro, em como ele responde e reage os estímulos, dependente
das próprias atividades que o organismo se engaja voluntária e invo-
luntariamente no ambiente. Temos dele outra afirmação no sentido
de esses circuitos predisposicionais, além da regulação, agirem no
desenvolvimento e na atividade madura das estruturas evolutivas
mais recentes do cérebro. O cientista nos aponta um caminho para
o entendimento de plasticidade e completa, por isso, a inadequação
da proposição de separação entre natureza e cultura.
Segundo o cientista, são os genes que também especificam
que esses circuitos basais predispostos exercem grande influência
em praticamente todo o conjunto de circuitos que podem ser

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modificados pela experiência. Damásio afirma que os registros das
experiências e as novas respostas a elas se dão balizadas por um
conjunto de preferências construídas no ínterim da sobrevivência
no curso da experiência, os marcadores somáticos. Esse ponto se
mostra crucial para a perspectiva do BMC, tanto no alfabeto do
movimento e nos sistemas diretamente ligados aos reflexos, quanto
para o entendimento destes como fundamentais para o desenvolvi-
mento dos padrões de movimento no corpo. Ainda, a sua incidência
como sinal de construção de conhecimento com o corpo.
Tomamos de Damásio (1998) como incitação para criação
improvisacional: 1) a estrutura precisa; 2) a atividade individual des-
tacando circunstâncias e acaso; 3) auto-organização surgidas das
pressões internas da própria complexidade do sistema. Tomamos
de Varela (2002) o conceito de autopoesis, e de Thelen (1995a),
o de automovimento.
O entendimento sobre alfabeto dos movimentos nos leva ao de
coemergência e ao de processos coevolutivos, como mistura gené-
tica e ambiental, a mostrar a coevolução entre natureza e cultura,
que não cessa. Os genes são desenhados para o meio ambiente,
para atuar nele da melhor forma. Corpo, entre biologia e cultura,
como combinatórias que resultam da implementação dos pro-
cessos de desenvolvimento de movimentos, que se dão em escala
invertebrada, prevertebrada e vertebrada, desde os princípios
neurocelulares basais, alfabeto de movimentos, sua integração
geradora da auto-organização em padrões de movimentos no fluxo
em tempo real. Nessa visão,

Os genes são dentes de engrenagem da máquina, não deuses


do céu. Ativando e desativando a vida, por eventos externos
bem como pelos internos, sua tarefa é absorver informação
do ambiente com a mesma frequência com que a transmite
do passado. Os genes fazem mais do que portar informação;
eles reagem à experiência. (RIDDLEY, 2003, p. 289)

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Riddley indica que a formação do organismo depende do gene,
mas também da informação do ambiente.
Edelman (2000) liga a produção dos genes, fonte das similari-
dades herdadas de uma espécie, à emergência de padrões e formas.
A conclusão geral é que essas determinações são moldadas pela
“experiência no mundo” (THELEN, 1995a, p. 159), assim, ambiente e
organismo são inseparáveis.
A intervenção artística urbana se configurava mais e mais como
espaço de instalação.
Os marcadores somáticos formam dispositivos tendenciais
de preferências do organismo que, muitas vezes, empobrece
o repertório criativo de movimentações. Assim, há uma con-
tínua tensão em permanecer perdendo terreno num sentido ou
em outro. Estão em questão espaço de possibilidades e de rela-
ções dos repertórios anteriores em eminência que desaparecem
para dar lugar a novos, assim, colidem na sistemática improvi-
sacional e ainda são perturbados por disparos energéticos dos
princípios funcionais-criativos provenientes do alfabeto do movi-
mento aliado aos princípios dos BNPs.
Entre espaço de possibilidades e de relações postas, apre-
sentam-se constrições vindas da ambiência e do organismo em
alienação, lembrando Darwin (1965), mas para além delas estão
as constrições propositivas para pensarmos o jogo improvisacional
como sistema. Em outras palavras, o que mais faz parte quando se
experimenta o corpo em movimento? A concepção envolvida nos
laboratórios de BMC para performance, a escolha dos eixos evolu-
tivos representando um recorte central do trabalho indicava o que
mais havia em jogo em direção à sintaxe oculta mencionada por
Antony Gormley.
O happening precursor de Allan Kaprow transmitiu para as futuras
gerações que a “fronteira entre arte e vida deve se manter tão fluída e
indistinta quanto possível”. (HOFFMANN; JONAS, 2006, p. 1)
O performer Lúcio Agra cita, em texto não publicado, que Suely
Rolnik (2004) o provoca com a ideia de uma arte que interferisse na

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vida, se afastando do formalismo e das estratégias tradicionais de
criação espetaculares.
Joseph Beuys construiu uma obra referencial para a concepção
contemporânea de arte. Artista trans-performer, integrante do Fluxus,
ao lado de Nam June Paik e George Maciunas, sob um viés político,
Beuys foi defensor da arte como revolucionária: “libertar as pessoas
é o objetivo da arte: logo, a arte, para mim, é a ciência da Liberdade”.
(BEUYS, 2010) Fundador da Universidade Livre Internacional, em 1974,
agregou ações performances dentro do seu campo de escultor, em que
defendia “a ideia de escultura social – a transformação da sociedade
como obra artística coletiva dentro da Academia Alemã de Dusseldorf”
(BEUYS, 2010) e debateu o tema de arte vida, defendendo-a exausti-
vamente como revolução “Jeder Mensch ist ein Kunstler” (1979), em
que publica o seu manifesto político Aufruf Zur Alternative, conforme
apresentado por ocasião de sua maior retrospectiva na exposição “A
revolução somos nós” no MAM Bahia em 2010.
Em Performance como linguagem, Renato Cohen (2002) recu-
pera um vasto panorama, muitas vezes catalogando performance
como arte de ruptura – anarquicamente, como mínimo múltiplo
comum, em que o aspecto central é alternado: ora a imagem, ora o
deslocamento da ação, ora o rito; mantendo performance como
tópos artístico divergente.

Num ato de performance, o performer anula as diferenças,


promove o signo corporal ao status de seu verdadeiro agente
[...] Para pensar dança como campo da performance, ‘o deno-
minador comum seria um novo insight das relações entre o
indivíduo e o meio’. (GLUSBERG, 2009, p. 122-123)

Nesse sentido, “A ideia de performance foi seriamente reexami-


nada nos últimos dez anos… passando dos métodos estruturalistas ao
estudo dos processos”. (HOFFMANN; JONAS, 2006, p. 2) Com o fluxo
arte-vida sempre cada vez mais presente em performance, o trabalho
do corpo do artista em evidência na obra de Tracy Warr e Amelia

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Jones (2000) ganha contornos, dimensões e demove fronteiras em
formas de investigação incontroláveis do corpo como linguagem.

Analisemos agora uma definição mais evidente – mas igual-


mente mais estreita – da performance, que coloca o corpo
no centro da investigação e da expressão artísticas e da
qual um sinônimo poderia ser o termo em inglês, ‘body art’.
O livro de Lea Vergine, Body Art and performance: The body
as language (1971) (Body Art e performance: o corpo como
linguagem) foi o primeiro a reunir artistas que trabalhavam
com ou sobre o corpo. Esta definição de performance como
ação centrada no corpo influencia ainda hoje nossa con-
cepção do que ela é. (HOFFMANN; JONAS, 2006, p. 4)

Pelo continuum entre experimento-experiência, interessa


bastante o aspecto dos modos de apresentação dos trabalhos.
“Em seu livro O espetáculo da vida cotidiana (1959), o soció-
logo Erving Goffmann fala do processo de socialização como uma
forma de performance”. (HOFFMANN; JONAS, 2006, p. 2)

Uma performance é geralmente executada por um artista


ou grupo de artistas diante de um público sentado ou em
pé, em um tempo e lugar dados. Contrariamente ao teatro,
a performance não dá a ilusão do acontecimento mas a
presentifica o acontecimento real como obra. (HOFFMANN;
JONAS, 2006, p. 3)

Sem dúvida, a forte ruptura de um modelo não se deu somente em


uma área artística, no teatro e em outros modos de construção artís-
tica tece-se uma ruptura generalizada dos modelos preconcebidos:

Na passagem para a expressão artística performance, uma


modificação importante vai acontecer: o trabalho passa a
ser muito mais individual. É a expressão de um artista que
verticaliza todo seu processo, dando sua leitura de mundo,

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e a partir daí criando o seu texto, no sentido sígnico,
seu roteiro e sua forma de atuação. (COHEN, 2009, p. 100)

Toda a pesquisa segue a premissa “soma” para corpo-mente,

Os organismos vivos são SoMAS: eles são parte ordenadas


integrais de processos de elementos corporalizados/embo-
died, que não podem ser separados nem de seu passado evolu-
tivo nem de seu futuro adaptativo. A soma é qualquer corporali-
zação/embodiment individual de um processo, que resiste e se
adapta ao longo do tempo, e continua a ser um soma, enquanto
viver. No momento em que morre deixa de ser um Soma e se
torna corpo… Como central no campo da somática está a soma
- um processo integral e individual que rege a sua própria exis-
tência, enquanto tiver existência. (HANNA, 1976, p. 31)

Thomas Hanna entende soma como corpo vivo e sua fala depreende
para a arte de improvisação em dança-performance, o sinal interno
de ignição dinâmica dos processos. O cérebro não está à parte do
corpo, e ter isso claro é vital e central para os processos de investi-
gação, bem como para os de exploração e improvisação, levando-se
em conta que ele atua como o nosso órgão de comunicação interna-
-externa, tanto no sentido de não haver uma clausura neural como
no sentido da informação ser gerada perifericamente numa intensa
malha de comunicação que não tem o seu centro de comando na
cabeça nem segue o conceito de partituras ou coreografia previa-
mente delimitada.
Tendo por base que o cérebro não somente computa ou pro-
cessa, nossa hipótese segue reforçada, evolutivamente falando,
do cérebro enquanto órgão que atua como “câmera de ecos” –
fundamentando-nos em Gerald Edelman (2000) – e codepende
dos sinais da periferia e dos sinais internos para a troca de infor-
mações. No nosso entender, dessa confabulação incessante
emergem os princípios funcionais-criativos em corporalização de
repertórios de movimentações.

Como confabulações do corpo nos Recantos dos corpos na Árvore 195

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Dentro da perspectiva beemecista, os movimentos conformam
o fluxo dentro-fora pertencente a escalas temporais múltiplas, reali-
zando boa parte da organização neurocelular do organismo desde os
seus primórdios, e acoplam a informação.
Nos laboratórios de BMC para performance voltados aos prin-
cípios evolutivos de movimentos, realizamos experimentações por
exploração.
Entramos num campo de investigação pela porta da exploração
num espaço de possibilidades de criação fomentadas pelo mergulho
nos sistemas do corpo. Nas explorações, passa-se pelo reconheci-
mento dos processos por escuta, por processos de atenção-intenção
alternados, pelos espaços de relação com repertórios anteriores e
pelas constrições do ambiente versus agenciamento com maior aber-
tura e disponibilidade de escuta, cuja meta ultrapassa a de ampliar
repertórios cabais e se dirige a colocar o corpo à disposição de expe-
riências que decolem da tentativa e erro e do reconhecimento, em
deslocamento para como se dá essa experiência com o conjunto de
estímulos e motivações em processo. Nesse campo improvisacional,
soma-se o disparador da não ação da paragem (stillness).
Toda ação é intencional em seu âmago. Em busca da escuta, a
presença de estados de atenção variados, que revele outros sen-
tidos a uma mesma ação, expandindo o repertório disponível de
intenções. O surgimento de sentido imanente das ações experi-
mentadas na dimensão interpessoal em embate, que eclodem e
explodem sem previsão, tem o frescor de gerar significado, ressig-
nificar outros repertórios anteriores, voltando-nos, ainda mais, ao
acontecimento no momento presente. Na paragem, sobressai a
exploração do estado de atenção, na ação sobressalta a exploração
do estado de intenção do corpo.
A pesquisa do trabalho “Recantos: Corpos na árvore” forneceu
evidências maiores sobre essa premissa de BMC. Princípios funcio-
nais criativos modificam nossa compreensão sobre forma e função
e processos mente-corpo nos afastam do dualismo do cérebro
processador. Processos de atenção e intenção são parte de uma

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tessitura de categorização perceptiva complementar voltada para
dentro e para fora com gradientes voltado para o espaço interno e
para o espaço externo.
Isso se dá evolutivamente por transições encadeadas, e em
todos os seus processos se aliam o aspecto formativo e o informa-
tivo. Ao  mesmo tempo que auto-organizam, desempenham uma
estratégia evolutiva de sobrevivência. Edelman (2000) aponta como
o movimento atua na categorização perceptiva e Thelen (1995a)
apresenta uma teoria de ação em que a auto-organização é a prin-
cipal força na evolução do automovimento.
Traduzindo em metodologia de criação, convivem de perto a escuta
e a tomada de decisão no circuito improvisacional que brotam rea-
gentes ao ambiente. Nos intervalos maiores de não ação da paragem,
cunha-se uma forma de suspensão atemporal, assim, na mesma pro-
porção, podemos admitir que “a paragem é grávida de movimento”
afirma a criadora da proposta, Lela Queiroz.

Movimentos constituem processos de organização e de


mudança das informações que se transformam em corpo (cor-
poralização/embodiment como internalização de informações)
e que, a partir desse corpo, agem no ambiente, modificando-se
e modificando o ambiente. Essa cadeia de fluxos, sendo ines-
tancável, está sempre promovendo transformações. Sempre
trocando as suas agora novas informações com o ambiente que,
junto, dinamicamente, se modifica. (GREINER, 2005, p. 130)

A categorização perceptiva por movimentos vem a ser central para


a organização neurocelular, vital para a auto-organização complexa de
tomadas de decisão, para a propulsão do corpo no espaço e para com-
preender a transição entre padrões de movimentos ao conjunto reper-
torial do corpo. A hipótese evolutiva de movimentos nos oferece um
meio de entendê-los como um dos modos de organização e de comu-
nicação entre sistemas vivos dentro e fora, e constitui uma informação
relevante no sistema e uma diferença para a sua sobrevivência.

Como confabulações do corpo nos Recantos dos corpos na Árvore 197

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Algumas hipóteses das ciências cognitivas ressaltam questões
voltadas a mudanças de entendimento entre processo de criação,
composição e configuração que esta pesquisa abriga. Destaco a hipó-
tese de reedição de Daniel Dennett (1991) nas estratégias improvi-
sacionais. Estes pontos versam sobre a construção de sentido. Como
uma poética é construída por processos aparentemente tão árduos
para a arte?
De acordo com esta hipótese, o mesmo princípio de agir com
o corpo de um determinado jeito se torna recorrente, é mantido até
o fim na obra, como o seu traço, como o seu valor de negociação no
ambiente, seja para (1) aquecer o organismo, (2) preparar o corpo ou
processo criativo, bem como (3) composição, cena e procedimento
artístico. Qual o combustível da ressignificação? Um dos sentidos de
work in progress, e uma motivação para o work in process, é a mudança
de entendimento sobre processo da obra e produto da obra, sobre
estados de presença ou apresentação.
O abandono da grafia a priori na dança, e a opção por uma grafia
processual de improvisação estruturada, ganha o atravessamento
interacional com o público e o aspecto experiencial dentro da obra.
Visamos, aqui, observar as mudanças nos procedimentos necessários
ao fazer artístico que se refletem na configuração de “Recantos: Corpos
nas árvores”, iniciado dentro do programa da XI Bienal do Recôncavo
Baiano, em 2012.
Para aquele trabalho, investigamos posições do corpo ligadas à obra
“Corpos Presentes”, de Antony Gormley (2012), que, segundo o artista,
correspondem à evolução antropológica do corpo em várias culturas.
Fascinou-me que tais posições dialogassem tão veementemente com
posturas relacionadas à yoga, que, por sua parte, se ligassem às pos-
turas evolutivas em BMC. Essas posições de corpo seriam desdobradas
da interação dos performers com o público, formando esculturas vivas.
O movimento interno do trabalho trazia o público para a constituição
dessas esculturas e da interação dos performers, avançando sobre
um conceito de paisagem para o de transformação, inspirando-me em
Beuys.

198 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 198 30/11/2022 16:46:17


Muitos participantes tinham extrema dificuldade com as posições
corporais engendradas, o que levou a sucessivas adaptações. Em geral,
apresenta-se o quadro elevado de dores crônicas, males da coluna,
predisposição à indisposição e ao sedentarismo. Esses sintomas se
valem do alto índice de desconhecimento e contato com o próprio
corpo. Para sobrepujar tais dificuldades, pequenos eixos adaptativos
se formaram em prol da práxis.
Estas escolhas foram alterando as tomadas de decisão entre o tra-
cejo do caminho transicional para a posição de corpo final e do corpo
que não dança conseguir permanecer na posição de corpo engendrada,
explicitando o conceito de metáfora de domínio fonte para o conceito
da metáfora de domínio cruzado (LAKOFF; JOHNSON, 1999), repes-
cadas do processo evolutivo de interiorizações e exteriorizações e mar-
cadores somáticos da experiência já no corpo. Um exemplo pode ser
dado a partir do contato que prevalece sobre o espaço de possibilidades.
A discussão sobre espaço – com o isolamento, violência e sepa-
ração vigente na urbes – através da socialização ao pé da árvore é mais
do que ocupar o seu espaço, e permanecer ao ar livre é mais do que
estar no ambiente fora de casa. É o entendimento de corpo ambiente,
que permite, em relação ao corpo, não mais ser entendido como coisa
ou posse, mas como mediador do corpo e ambiente como espaço de
relações. Espaço não entendido mais na medida euclidiana, mas como
campo de possibilidades interno ou externo. A cidade regula o cidadão
como lugar de passagem.
Durante o processo de experimentação dos estudantes na uni-
versidade, um guarda se aproximou de um estudante que pesqui-
sava junto a uma árvore, dizendo que era proibido subir em árvore no
campus da UFBA. Ora, está posto em discussão o espaço do corpo na
cidade, o espaço de direito de permanência em áreas públicas e par-
ques, o espaço de convivência entre as pessoas e as árvores. O estu-
dante, um exímio dançarino acostumado a riscos muito maiores do que
a queda de uma árvore, perplexo ante à cena, recuou. O que importa,
me parece, é a separação entre o corpo, que deve ser sempre de pas-
sagem, e a natureza, na cidade.

Como confabulações do corpo nos Recantos dos corpos na Árvore 199

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Figura 3 – Performers e um integrante do público sobem na árvore.
Performers em destaque: Leo Serrano (Arg.), Luciano Silva Pereira,
Índio Medeiros e Lela Queiroz; ao fundo, o violoncelista Felipe Massumi
tocando o improviso relativo ao tema da performance

Fonte: acervo de Paulo Cesar Lima.

200 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Quatro das performances foram realizadas dentro do campus.
Inicialmente, em respeito ao B.O. ocorrido, não incluímos a
subida na árvore por razões óbvias. Na última performance,
no Encontro da Semana do Meio Ambiente, realizada com a
participação de quase 20 estudantes, com novas investigações,
estabeleceu-se uma corrente de movimentações entre duas
árvores, subindo em ambas, ao final.

Conclusões

Assim, acreditamos que opere a ressignificação improvisacional em


performance de dança construída por laboratórios de processos
corporais de BMC para performance.
A apropriação da obra pelo público, entrando na cena para o
balanceamento dos ossos e se apropriando do trabalho, aconteceu
no Parque da Cidade, quando participamos, em 2012, da X  Feira
Ecossolidária, na programação oficial, no eixo Arte e Transformação.
Trabalhar com dança, valendo-se de mudanças de estado,
implica dizer que ocorrem reações no organismo que alteram
o seu estado, de tal modo a mudá-lo, e implica levar em conta
os aspectos biológicos, além de, também, um entendimento
sistêmico para o organismo. É a hipótese de plasticidade
neural de Gerald Edelman (2000) e um entendimento evolu-
tivo para o cérebro, que balizam nossas reflexões acerca do
processo artístico, despertando um outro tipo de interesse, o de
processos em tempo real dos estados de presença.
Com as várias experimentações, pela experiência de um campo
próprio e apropriado da interação dos performers com as esculturas
vivas, por contato-improvisação, surge da zona de contato, que opera
com zonas de desacomodação individual para acomodações em fluxo
e negociações em intervalos de dois corpos ou mais. Notou-se que
a ação demorada com as esculturas vivas indicou uma operação de

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outra ordem, ao estabelecer o contato sutil, por vezes na forma do
acocorar-se, um processo de acolhimento, de escoramento solidário
entre os corpos, sugerindo um acalento. Uma sugestão sutil para
a convivência debaixo da árvore, um campo de significação cons-
truído pelos sentidos-movimento-contato, indicando, internamente,
a geração da auto-organização de uma poética.
Verificou-se uma mudança de estado sensível e visível junto
aos participantes da performance que permaneceram como escul-
turas vivas, relatando-nos como os tinham afetado, como o estado
de espírito mudara durante a sua participação na performance.
Como chegaram cansados, tensos, nervosos, aflitos, afobados,
ansiosos ou negativos, e saíram da performance num profundo
estado de paz, revigorados e revitalizados.
As hipóteses nas ciências cognitivas consideradas para essa
espécie de investigação contida em “Como confabulações do
corpo” são, a saber: predisposições de Damásio (1999) e a hipótese
Teoria de Seleção Grupo Neuronal (TSGN) de plasticidade neural de
Gerald Edelman (2000), a consciência corpórea de Maxine Sheets
Johnstone e como ela atesta o papel da propriocepção na cons-
trução de sentido, a reedição de Daniel Dennett (1991) para o
fazer improvisacional, a autopoiésis de Varela e Maturana (2002).
Maxine Sheets Johnstone (1998) atesta como, evolutivamente,
a circulação, o tato, o sentido cinestésico e a propriocepção
dotam o organismo de novos disparadores de sua sobrevivência.
A autopoiésis, segundo Maturana e Varela (2002, p.  52), é literal-
mente-produzirem de modo contínuo a si próprios... /autoprodutores
– capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com
o meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver.
A pergunta que Damásio (1999) faz: “[…] por que deveriam
essas circuitações interferir com a modelagem dos circuitos
mais recentes plasticamente envolvidos em representar nossas
experiências tidas?”.

202 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Porque portam informações genéticas, energéticas e vitais para
o organismo, assim formando o alfabeto de movimentos para a
construção de vocabulários.
Movimentos, evolutivamente falando, operam como pode-
rosos signos de informação e comunicação, tanto dos processos
internos de regulação do corpo (dentro-fora), como dos estí-
mulos de informação que chegam ao corpo e se transformam
em corpo (fora-dentro).
Nesse sentido, os processos em tempo real dos corpos do
performer com o do público inspiraram um campo para auto-
poiésis coletiva, uma vez que a intervenção-instalação e o subir
na árvore, ao final, aconteceu por parte do público em cena.
Lembradas as características do dinamicismo, da autopoiésis,
de auto-organização, temos em mente que: movimentos replicam
a si mesmos e, em seu curso, se reeditam e organizam novas
redes no processo de acontecimento em escalas modais distintas.
Segundo esta hipótese, são os aspectos de duração, contato e
pausa que igualmente alavancam processos de ressignificação
por movimentos, na constituição de ações físicas deliberadas.
No campo da ressignificação, entre processo criativo, compo-
sição e obra, os conceitos de teoria dos sistemas, teoria da evo-
lução e teorias das ciências cognitivas auxiliam a notar a nas-
cente de linguagem no corpo, na hipótese de sintaxe oculta de
Antony Gormley.
Sem cair nas discussões filosóficas leibnizianas, aristotélicas
ou newtonianas, o (re)entendimento de movimento como o parâ-
metro de mudança, na dupla asserção de movimento ser percepção
e informação, nos concede a oportunidade de abrir o olhar e ampliar
a visão do que se passa na passagem para o campo da linguagem,
sendo o corpo, mediação. Tais premissas continuam a trazer inquie-
tações moventes para instigar modos potentes a dar continuidade a
esta pesquisa.

Como confabulações do corpo nos Recantos dos corpos na Árvore 203

Pesquisa.indb 203 30/11/2022 16:46:19


Referências

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Disponível em: https://issuu.com/lucioagra/docs/name38c474/2.
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204 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 204 30/11/2022 16:46:19


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Como confabulações do corpo nos Recantos dos corpos na Árvore 205

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Créditos aos participantes das performances:

Mestrandos: Leo Serrano (Argentina), Bruna Roncari, Luciano Silva


Pereira. Graduandos: Diane Portella, Ariana Andrade dos Santos,
Índio Medeiros, Anna Paula Brandão, Wicho Ray Mo (Argentina).
Ação de Extensão: Julia Spinelli (Argentina), Marcos Figueroa
(Argentina), Drica Rocha, Elton Mendes, Roberta Nascimento.

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Capítulo 11

GRUPO X DE IMPROVISAÇÃO EM DANÇA:


DIÁLOGOS ABERTOS

Carlos Eduardo Oliveira do Carmo


Fátima Campos Daltro de Castro

O que é o Grupo X de Improvisação em Dança? Muitas


coisas!

Toda forma de conhecimento tem por base


a necessidade de sobrevivência do sistema
cognitivo ou, na linguagem da Teoria Geral
de Sistema, a garantia da permanência.

(VIEIRA, 2012, p. 48)

O Grupo X de Improvisação em Dança pode ser um lugar possível.


Um canto de passarinho ou um canto da sala, uma espera ansiosa
ou uma dança na banheira de Marilyn. Também pode ser solos espa-
lhados e O canto de cada um1 interligado a uma espera: ei, vou ficar
e esperar para ver! Quem sabe lá o que cada pessoa que o assiste
pode elaborar no pensamento sobre suas danças?

1 Ao longo do textos serão apresentados alguns títulos de espetáculos e projetos do


Grupo X destacados em itálico.

207

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O Grupo X é o que cada olhar debruça sobre ele. Se assim for,
o Grupo  X, em suas poéticas, são múltiplos contextos de dança.
Danças que se constituem sob o olhar do outro e que têm seus
significados compartilhados. Dança X e olhar implicado são code-
pendentes. Eles são elaborados juntos no processo e a partir de
pontos de vista distintos.
Explicando um pouco mais, o contexto em que a dança se confi-
gura é estabelecido via conexões entre as dinâmicas das trajetórias
dos movimentos e do corpo dos dançarinos no espaço cênico. Junto a
essas dinâmicas, contamos com a cumplicidade do olhar observador
do espectador participante/atuante. Aquele espectador que cria seu
contexto poético tendo como referência a sua própria experiência.
Pode-se dizer que o Grupo X é um lugar de múltiplas poéticas que
afeta e é afetado pelo ambiente numa troca contínua de informações.
Grupo X de Improvisação em Dança… uma coleção de informações.
O Grupo X é esse espaço de partilha de experiências mediadas pela
dança e, sobretudo, pelo encontro com o outro. Ao longo do tempo,
vem apresentando uma poética singular que investe nas potencia-
lidades e particularidades de cada corpo-pessoa que se aproxima e,
também, na exploração de objetos que são transformados em cena.
O X não existe sem suas tralhas. Quantas tralhas! Pequetitas
coisas entre nós mesmos que vão tecendo nossas redes e drama-
turgia. A coreógrafa e dançarina francesa Helene Charles, da Cie.
Artmacadam, escreve no Livro do X (CARMO; CASTRO, 2019), sobre a
importância dos objetos no nosso trabalho:

A cadeira de Edu, os sapatos vermelhos de Fafá, flores e ori-


gamis de pássaro, cobertores vermelhos roubados no avião,
fios de lã, véus de tule, giz branco... o objeto completa a dança
deles como uma cereja em cima de um bolo. Ele surge a fim
de inscrever uma mensagem pelo seu caráter simbólico,
transformar as rotinas do movimento, abrir um imaginário,
fazer uma pergunta, ‘habitar’ o corpo, completá-lo adicio-
nando asas para fazer voar, pernas selvagens, animalescas,
para destacar uma estranheza, uma hibridização… O objeto

208 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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com Edu e Fafá se torna um ‘objogo’ (neologismo inventado
por Francis Ponge). Ele é o objeto do jogo para dialogar com o
outro. Ele é revirado para provocar o olhar do espectador ao
questionamento, para interpelar suas certezas e sugerir novas
possibilidades… (CARMO; CASTRO, 2019, p. 52)

Uma das características da maioria dos trabalhos do Grupo X é o


encontro com diversas linguagens. Entendemos nossa dança enredada
pela visualidade das instalações, música, poesia, textos improvisados,
vídeos, fotografias; como se pudéssemos criar um mundo próprio,
onde todas as pessoas envolvidas, sejam artistas ou público – aliás,
em quantos momentos esses papéis se confundem! –, habitam esse
universo ficcional/real. Difícil estabelecer essas diferenciações entre
artista-público, real-ficcional. Se estamos vivendo aquele momento,
ele não é real?
A suspensão de um tempo-espaço X estabelece novas relações de
mundo e o ambiente não é mais o que se nos apresentava. Imersos no
tempo vivido, no tecido poético, a obra, oportunamente, toma seu
próprio rumo com o passar do tempo que aos poucos se torna visível
para nós, justo quando vamos refletir sobre o ocorrido. Situações sur-
preendentes nos tomam de assalto! O que de fato ocorreu?
Muitas ações escapam à nossa percepção. Reis (2001) nos explica
que os sentidos dos eventos não são conhecíveis enquanto eles
ocorrem, porque são processuais. A história é sucessão processual,
logo, a história do Grupo X também ocupa esse lugar: os acontecimentos
emergem, submergem, explodem, adormecem, dependem de seu
ritmo próprio e, sendo a improvisação no ato de encenação a escolha
estética do Grupo X, por si só é, caracteristicamente, processual.
Sem sombra de dúvida, as provocações emergem no percurso
e a performance também apresenta seu ritmo próprio, variado e de
duração determinada. Os estados de corpo que dançam no Grupo X
são oxigenados por essas vias, expondo suas dinâmicas na cena,
modificando-as, modificando-se constantemente, organizando-
-as, organizando-se para que se ajustem às diversas provocações

Grupo x de improvisação em dança 209

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inovadoras em tempo hábil. Mobilidade, continuidade, mudança
que exige do corpo habilidade de interpretação.
O X dança como quem faz cinema, repete a cantora Andréa
Daltro, integrante do grupo. Os roteiros coreográficos são criados
como um storyboard de cinema. Cena a cena desenhada por Fafá,
rabiscada em giz pelo chão, papéis com desenhos em caneta espa-
lhados pelas coxias nos recordam os acordos estabelecidos previa-
mente que, com certeza, não serão cumpridos à risca.
Suaves mudanças – às vezes, drásticas mudanças – são neces-
sárias porque é da própria natureza da improvisação saber apro-
veitar as oportunidades que surgem no momento em que se impro-
visa, e tudo, qualquer elemento que surge, é motivo para dobrarmos
a esquina e desviarmos a rota.
O caminho nunca é reto. Não há um ponto de chegada. É neces-
sário perceber o trajeto, observar a água que escorre, o movimento
da parceira, uma criança que atravessa, um carro que passa tocando
uma canção e nos mobiliza, nos move. Uma janela tocando Alcione,
numa esquina do bairro do Santo Antônio, torna-se cenário para um
baile X que não entende a situação como interrupção do ensaio que
fazia, mas agrega-se à cena predeterminada porque, assim como
a vida, é necessário estar atento aos sinais.
Este artigo foi elaborado como um diálogo, no qual a sua escrita é
conduzida por perguntas e provocações sobre a história do Grupo X
de Improvisação, suas memórias, estratégias de criação e reflexões
acerca de corpo e de dança.

Sobre trajetória e porvires… Assim está bom?

O Grupo  X de Improvisação em Dança (GXID) ou Grupo  X (GX)


surgiu das oficinas, projetos de extensão e pesquisas dos profes-
sores Fafá Daltro e David Iannitelli, ambos da Escola de Dança da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), no período de 1998 a 2002.

210 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 210 30/11/2022 16:46:20


Com encontros semanais, o projeto recebia, além de estudantes da
graduação em Dança, pessoas de diversas áreas interessadas na
proposta. Portanto, o grupo conta com 21 anos de pesquisa insis-
tindo, resistindo e despertando as possibilidades latentes em múlti-
plos corpos que passam pelos encontros GX.
Ainda em curso, o grupo continua com suas atividades exten-
sionistas vinculado à Escola de Dança/UFBA e ao Programa de
Extensão Universitária (ProExt), de 1998 a 2019, coordenado,
nesse momento, pelo Prof. Ms. Carlos Eduardo Oliveira do Carmo
(Edu O.) com colaboração da Profa. Dra. Fátima Daltro, aposentada
em 2016. Sem dúvida, o vínculo com a instituição, o apoio de pro-
fessores pesquisadores, de estudantes e da comunidade externa
foram e são suportes importantes para comunicar ao mundo os tra-
balhos criados pelo grupo.
De caráter artístico educativo, as ações/atividades do Grupo  X
são divididas em três eixos de atuação: oficinas de dança, criação
artística e acessibilidade. Suas produções abrangem seminários,
minicursos, performances em distintos espaços, intercâmbio inter-
nacional, participação em eventos científicos com argumentações
que abordam processos e configurações em dança, além de polí-
ticas de acessibilidade.
As pesquisas contrapõem-se às propostas dos ditos corpos
ideais, desenvolvendo ações junto a pessoas com ou sem expe-
riência em dança, com diversas corporalidades, dando especial
atenção às pessoas com deficiência, seja como artista ou em ações
de acessibilidade ao público. A pesquisadora e professora Lúcia
Matos (2012, p. 140) destaca que

a ênfase dada pelo grupo na inserção de diferentes singula-


ridades não se restringe apenas à questão da inclusão de um
dançarino com deficiência […] A perspectiva adotada pelo
X faz com que a singularidade de cada corpo, explorado na
improvisação em cena, gere uma estética própria, baseada na
especificidade da fiscalidade do corpo que dança […].

Grupo x de improvisação em dança 211

Pesquisa.indb 211 30/11/2022 16:46:20


O Grupo  X ainda explora, em suas pesquisas, espaços não
convencionais para fins performáticos. As casas, apartamentos,
casarões, salas, galerias, ruas, praças, corredores, passeios,
quintais, atrás das portas, cantos e recantos são lugares de inte-
resse do grupo.
É interessante, nesse momento, trazer o pensamento de
Reis (2001), suporte importante para explicar as ocorrências do
grupo numa perspectiva histórica. Esse autor nos brinda ao falar
sobre a sensibilidade histórica e nos convida a avançar no tempo,
para melhor entender como se deram/dão os processos de perma-
nência (VIEIRA, 2012) do Grupo X de Improvisação em Dança:

Toda interpretação que é uma atribuição do sentido vivido,


se assenta sobre ‘um mirante temporal’, um ponto de vista,
em um presente – vê-se a partir de um lugar social e um
tempo específicos. Os desdobramentos do tempo podem
mudar a qualidade da história, interpretações inovadoras
emergem com a sua passagem. (REIS, 2001, p. 9)

O Grupo  X de Improvisação em Dança, em suas paragens


e passagens artísticas que ainda não findaram, posto que é
continuidade, é aqui considerado sob a perspectiva sistêmica.
Um sistema social compositivo lida com vários outros subsistemas:
coreógrafos, dançarinos, iluminadores, sonoplastas, produtores,
figurinistas, dramaturgos, aderecistas. (VIEIRA, 2012)
O sistema lida com pessoas, com o movimento, com distintas
relações espaço-tempo que interagem entre si para criar as condi-
ções necessárias à criação. Vieira (2012, p. 19) explica que “a capa-
cidade de um sistema permanecer no tempo reside em sua habili-
dade de elaborar adequadamente seu meio ambiente, criar estoque
de informações e função memória e assim permanecer”.
Sob esse ponto de vista e analisando o tempo de atuação dos
processos artísticos educativos que envolvem o grupo, além do mon-
tante de obras artísticas realizadas e o evidente reconhecimento no

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campo da dança, pode-se atribuir que o vivido pelo grupo é carre-
gado de influências sociais, técnicas e pessoais.
O grupo tem suas histórias no tempo vivido e situa-se a partir
do presente. O que é o grupo hoje e quais foram as suas estraté-
gias de permanência são questões que residem na capacidade de
desenvolver sensibilidades e habilidades, no sentido de reagir ade-
quadamente e a tempo às variações e diferenças que ocorrem no
ambiente. Para Vieira (2012), a capacidade de um sistema social
elaborar estoque de informações eficientes é a função memória.
Cada presente seleciona um passado que deseja e lhe interessa
conhecer. (REIS, 2001, p. 11)
Considerando que somos seres sociais, é possível observar que
o sentimento de cooperação, comum a todos os seres humanos,
no grupo, é potencializado em seus projetos, porque lida com a
habilidade da cooperação que se manifesta de diversas maneiras.
Um grupo que trabalha com a improvisação no ato de encenação
exige de seus intérpretes a escuta atentiva. É preciso estar alerta,
com o pensamento-corpo atento às ocorrências do ambiente de
encenação, e que são muitas, devido à própria característica pecu-
liar da improvisação. Esta, além de fornecer os meios para explorar
camadas de experiências mais profundas, exige a habilidade de
lidar como o outro.
Os riscos, nos quais os dançarinos são submetidos na ence-
nação, com a prática, fornecem os alicerces que potencializam a
compreensão de como determinado movimento se organiza, as res-
postas que precisam ser antecipadas e aquelas que atendam com
eficiência às exigências do instante poético.
A habilidade de cooperação tem importância fundamental.
Essa prática em continuidade junto ao grupo e a convivência com
o exercício da improvisação nos ajudou/ajuda a compreender o
outro e a nós mesmos, apreender as consequências de nossos
atos em cena, quando é preciso esperar com calma, pressionar um
esvaziamento de cena ou mudar de ideia quando não se tem uma
resposta que se ajuste às exigências do momento.

Grupo x de improvisação em dança 213

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Sente-se aqui que precisamos conversar!
No jogo compositivo, essa frase imperativa de tom ameaçador
indicava que teríamos que abandonar imediatamente o que está-
vamos fazendo, nos dirigir para um ponto definido previamente no
espaço e nos sentar. Significava também que teríamos que mudar o
rumo das nossas ações para encontrar, em pouco tempo, outro dis-
positivo para ajustar o que não correspondia ao que se pretendia
na cena. Nessa conversa, “burburinho”, qualquer elemento do grupo
poderia ser o disparador da nova ideia para ajudar a dramaturgia
que estava em curso. Precisávamos ser ágeis, hábeis, sensitivos,
atentivos e correr riscos. Era uma situação especial que tinha
força de convergência e de união. Lidamos, aqui, com habilidade
e cooperação. Sennett (2012, p. 17) considera que

o mais importante na cooperação intensa é o fato de exigir


habilidades. Para esse autor, elas podem percorrer toda
gama de ações implicadas em ouvir com atenção, agir com
tato, encontrar pontos de convergência e de gestão da dis-
cordância ou evitar as frustrações em uma discussão difícil.

Em nosso caso, sentar-se para conversar e ajustar em tempo


hábil uma composição em curso significava a necessidade ime-
diata de encontrar um referencial. Essa ação imediata e de auto-
nomia é uma prática comum na improvisação durante o ato de
encenação. Por ser uma prática aberta, propiciava a liberdade
de interação em uma estrutura disciplinar (SENNETT, 2012);
repassamos várias vezes, treinamos dias e meses, dançamos
com os riscos e em busca de resoluções favoráveis à composição.
Repetir é melhorar a cada dia, sempre.
Pensando corpomidia, ao elaborar o movimento, repetindo-
-o várias vezes, ele se modifica, se torna consciente e potente.
Nós nos aperfeiçoamos repetindo o mesmo assunto que não é mais
o mesmo a cada repetição. Nós nos transformamos a cada repetição.
A experiência do melhorar fazendo ao longo do tempo estrutura as

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mudanças necessárias para que a comunicação se dê de forma
eficiente. Para a improvisação em dança, ser atentivo, perceber,
escutar o outro, ter boa experiência, são fatores que interferem e
facilitam a tomada de decisão para a resolução dos problemas no
instante da cena. Para Sennett (2012, p. 37), a conversa é como um
ensaio que depende da capacidade de escuta.
Vem, meu amor! Vamos em frente…
Ao longo desses anos, temos produzido bastante memórias.
Uma das principais diz respeito ao diálogo que viemos estabele-
cendo com artistas internacionais, promovendo e divulgando as
pesquisas em dança no Brasil, ao realizar, desde 2004, o projeto
Euphorico, que consiste numa residência artística de pesquisa em
dança contemporânea junto à companhia francesa Artmacadam e
artistas convidados.
Com produção ininterrupta, este projeto alterna, anualmente,
realizações no Brasil e na França, respondendo aos territórios con-
temporâneos da arte e às novas tecnologias. Tem o propósito de
trocar experiências entre culturas, fomentando discussões e possi-
bilitando o trânsito de informações entre esses países, com apresen-
tações em cidades como: Marseille, Le Pradet, Istres, Nice, Sanary e
La Seyne-sur-mer, na França; Salvador, Santo Amaro, Jequié e São
Francisco do Conde, na Bahia; e Belo Horizonte, em Minas Gerais.
A história do projeto Euphorico nasceu no ambiente de oportu-
nidade. Oportunidade pensada no sentido de como certas circuns-
tâncias disponibilizadas em um dado momento favorecem as boas
escolhas e impulsionam outras possibilidades.
Compreendemos este projeto na sua dimensão humana,
como espaço de engajamento micropolítico no cotidiano das
cidades e lugares onde passa, considerando as ações ordinárias –
compartilhadas no dia a dia – como parte fundamental do trabalho.
A todo instante, estamos em estado de atenção e percepção aflo-
rada para os acontecimentos e afetações que surgem ao longo dos
dias: sabores, odores, cores, texturas, sons, comportamentos etc.,
nutrindo nossos olhares poéticos.

Grupo x de improvisação em dança 215

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Um projeto que desafia o tempo e permanece pela força do afeto
e do encontro, pelo desejo de estarmos juntos atualizando nossas
experiências, compartilhando a cada ano novas conquistas, perdas,
sonhos. Um tempo que se estende e ultrapassa as fronteiras,
os espaços. As experiências vividas em cada encontro reverberam
durante todo o tempo em que não estamos mais juntos até o pró-
ximo desembarque, lá ou aqui.
Quando voltamos da França, percebemos a influência do que
experimentamos nas ruas, casas, conversas, ensaios, performances;
é como se não acabasse. Mantemos contato via internet, trocando
ideias, fotografias, músicas, momentos íntimos.
No Euphorico vivenciamos nascimento, morte, separações,
amores, brigas, abraços, risadas, mais risadas, colos, amanheceres,
castanhas de caju, pôr do sol, adormecimentos e silêncios.
Para Helene Charles,

o tempo do Euphorico, com o Grupo  X e a Artmacadam,


esconde seus indícios de começo e de fim. Ele estende
seus minutos para que cada um possa gozá-lo como deseja.
Às vezes eu tenho a sensação de que o tempo não existe...
Ele não é definido previamente, ele é o tempo necessário para
cada um poder vivenciar sua dança. Ele é o presente para ser
vivido sem regra de aparição e de desaparecimento. Ele mistura
suas fronteiras com o tempo do cotidiano. O tempo em que a
dança acontece se confunde com o tempo de comer, dormir,
caminhar. Ele não se limita ao tempo do trabalho em estúdio,
ele transborda para além do tempo acordado e vibra até em
nossos sonhos. O tempo do Euphorico é poroso como os espaços
onde ele escolheu habitar; (CARMO; CASTRO, 2019, p. 53)

Sentimos que escolhemos habitar nesse suspiro do tempo


entre um Euphorico e outro, nesse fio que nos liga e nos aproxima,
apesar da distância. “Tudo está lá, mais presente do que nunca”
(CARMO; CASTRO, 2019, p.  100), sentencia Wilfrid Jaubert,
o quarto pilar que alicerça essa casa habitada por tanta gente:

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Florence, Marielle, Clênio, Iara, Nei, Agnés, Annie, Louise, Rose,
Jeanne, Jules, Gilles, Katia, Natalia, Hugo…
O encontro com a Cie Artmacadam, seus familiares e amigos,
afetou e continua afetando procedimentos e as relações X. Assim,
percebemos o quanto eles também se transformam nessa relação.
São maneiras de pensar e fazer dança distintas, embora com
algumas semelhanças pela escolha da improvisação como mote
central de pesquisa.
No entanto, as questões culturais impactam fortemente as
duas companhias, e quando estamos juntos, observamos como nos
relacionamos de maneiras distintas em relação ao tempo, música,
silêncio, espaço, movimento, mas também como nos aproximamos
em muitas outras questões.
Do nosso lado, percebemos como nos aproximamos das questões
de deficiência e acessibilidade. Sempre que estamos lá, na França,
nos convidam a falar sobre o assunto porque sentem que em seu país
a relação desses temas com a dança ainda é muito precária.
No Brasil, mesmo que tenhamos inúmeros problemas no cum-
primento das leis e na conscientização sobre respeito às pessoas
com deficiência, percebemos avanços e pequenas conquistas,
embora vivamos, atualmente, um desmonte de todas as políticas
públicas de cultura e direitos das pessoas com deficiência.
O que é isso? Dança, deficiência e acessibilidade.
Essa pergunta foi o mote para a realização de dois eventos pro-
movidos pelo Grupo X, nos anos de 2010 e 2011, respectivamente,
o “1º Encontro de Dança Inclusiva. O que é isso?” e “2º Encontro o
que é isso? de Dança”.
Esses eventos reuniram artistas, pesquisadores, professores,
estudantes e profissionais de diversas áreas com e sem deficiência
para refletir acerca da relação entre dança, deficiência e acessibili-
dade, políticas públicas de cultura, formação e profissionalização do
artista com deficiência.
Esses assuntos foram tomando força no Grupo  X por causa da
presença de Edu, dançarino e cadeirante. O grupo começou a ser

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convidado a participar de eventos que refletiam sobre o tema, embora
esse não fosse/seja o foco principal das pesquisas do grupo que,
como já foi dito, interessa-se em investigar a dança produzida em
diferentes contextos corporais, tendo a improvisação como mote de
suas pesquisas. No entanto, é óbvio que as questões sobre deficiência
começaram a emergir e esse passou a ser um fator de interesse para
os próprios integrantes e para pesquisadores da área atraídos pelos
procedimentos e reflexões que o Grupo X produzia sobre o assunto.
Vale ressaltar que, no momento de surgimento do grupo, a pro-
dução em dança profissional com pessoas com deficiência, no Brasil,
era um fenômeno recente, o que justifica o interesse dessas pes-
quisas pelo Grupo X. Os seus próprios integrantes passaram a pes-
quisar as relações de corpo, dança, deficiência e acessibilidade,
sobretudo Fafá Daltro e Edu O.
Assim, o grupo passou a promover uma série de ações que
também acolhiam o público com deficiência. O interesse era poten-
cializar as discussões entre colaboradores, estudantes de graduação
e pós-graduação, participantes das oficinas, seus cuidadores e a
comunidade, fortalecendo as discussões e compartilhando as expe-
riências e avanços no que se refere à informação, formação e profis-
sionalização artística dessas pessoas e o acesso ao mundo comum.
Nas oficinas e comunicações em eventos, surgiam reflexões
acerca dos diversos obstáculos inscritos nos discursos hegemônicos
de corpo perfeito, pautado no rendimento e eficácia que impedem e
dificultam a participação da pessoa com deficiência tanto nas ativi-
dades da vida cotidiana quanto na vida artística.
Entendemos que essa visão é pautada pela Bipedia Compulsória,
campo conceitual que Edu O. vem desenvolvendo em sua pesquisa
no Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão de
Conhecimento (DMMDC). Nesse estudo, a Bipedia é compreendida

não como forma de locomoção sobre dois membros, mas


como estrutura sociopolítica determinante nas relações,
principalmente no que se refere às pessoas com deficiência.

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Assim, entende-se Bipedia como aquela que organiza o
mundo a partir de uma única perspectiva e ponto de vista
que exclui e nega qualquer outra possibilidade de existência
e rejeita as diversas experiências corporais que fogem ao
padrão dominante. (CARMO; RIBEIRO, 2019, p. 921)

Ou seja, vivemos pela perspectiva de um pensamento hege-


mônico bípede que estabelece relações de poder e exclusão
sobre os corpos considerados fora do padrão da normatividade,
sobretudo no que se refere ao corpo com deficiência.
No campo da dança, também é possível identificar esse problema
quando o corpo com deficiência é considerado antagônico ao padrão
de normalidade. Percebe-se, sobretudo nas estruturas de organi-
zação e produção da dança, normalmente produzida por pessoas sem
deficiência, o olhar capacitista (CARMO; ROCHA, 2019), aquele que
discrimina e considera a pessoa com deficiência como incapaz.
Ainda que se mantenha essa concepção dicotômica e mecani-
cista sobre os corpos na dança, há uma série de outras abordagens
que, desde o século XX, “sustentam, em seus discursos, a impos-
sibilidade de separações entre a rede complexa de negociações
que se estabelece entre a fisicalidade, a subjetividade, a cultura e a
identidade dos corpos dançantes” (MATOS, 2012, p. 23), em que foi
possível aparecer em cena corpos que não correspondiam mais aos
padrões impostos pela dança clássica e moderna.
As ações do Grupo X apontam nessa direção e entendem o corpo
com deficiência em sua potencialidade artística, estética e política,
construtor de conhecimento e de significativa contribuição para a área
da Dança na transformação de paradigmas que insistem em perma-
necer na relação corpo e movimento.
Em função de suas pesquisas, o grupo passou a observar, além
do corpo-artista com deficiência, também o acesso do público
com deficiência.
Assim, em 2008, o Grupo  X tornou-se pioneiro nas pesquisas
que envolvem audiodescrição de imagens de dança para o acesso

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da pessoa com deficiência visual. Uma parceria com a Escola de
Letras e Escola de Dança (2008), vinculada aos Grupos de pesquisa
TRAMAD e Poética da Diferença. Essa pesquisa culminou na reali-
zação de Os 3 Audíveis… Ana, Judite e Priscila, primeiro espetáculo
de dança com audiodescrição no Brasil.
Desde então, em suas mostras performáticas, conta com a par-
ticipação de audiodescritores (2008/2022), principalmente nos
projetos financiados por editais públicos de cultura. Com isso,
o Grupo X alinha-se às políticas públicas vigentes que determinam
normas de acessibilidade para espaços e projetos culturais, des-
tacando-se por sua produção que visa o acesso de pessoas com
deficiência aos bens culturais.
O que mais interessa ao X? Citando Berman (2007, p.  11),
“Uma visão mais ampla de nossa experiencia mostra-nos que em
nossa vida há mais do que imaginamos, e dá ao tempo, ao tempo
em que vivemos, mais intensidade e profundidade”.
As propostas cênicas e performáticas do Grupo X de Improvisação
em Dança são centradas na investigação e análise das possibilidades
e potencialidades do movimento e nos processos de criação em dança
que utilizam improvisação em cena como elemento gerador do movi-
mento. Transitando nas fronteiras da dança com as demais artes, visa
explorar a criação e expressão coreográfica com cantores, dançarinos,
atores e artistas nas múltiplas linguagens de performance.
Nosso interesse é o corpo que dança (seja ele qual for) e
a dança. Entender a dança que se articula impulsionada pelo fazer
do momento e leva em consideração as relações com o outro.
O outro, que pode ser um espaço restrito, uma garrafa de água,
um dançarino sentado perto de outro, ou bem longe, um fiapo
de sol ou uma janela com frestas de luz, uma risada ou um som
qualquer, um passeio, a casa e seus cômodos, o amor, os des-
fechos, os encontros, os desencontros, a presença, os cheiros...
A escuta, o outro que pode ser qualquer dispositivo (SENNETT,
2012), o tempo, o espaço, o movimento. O Grupo X vem lidando,
ao longo do tempo, com afetos e afetações.

220 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Quando improvisamos, temos controle de todas as provocações
e ocorrências que o corpo realiza?
Nas experiências GX, o corpo sinaliza que muitos detalhes passam
despercebidos enquanto outros são potencializados. Estar consciente
do ato e dançar não significa que temos o controle de tudo. E não temos
mesmo. De qualquer sorte, e entendendo que tudo o que colocamos
no mundo é construído com base nas relações, significa que podemos,
de algum modo, prever e antecipar algo que pode ou não ocorrer
(LLINÁS, 2003) quando estamos dançando. Temos apenas uma noção
da ocorrência sentindo-a no corpo, uma vez que estamos conscientes
do ato de dançar, do esforço depreendido, dos giros, saltos e escorre-
gadas realizadas. Percebemos os desafios que invadem o corpo tirando-
-o do conforto das respostas esperadas. E a improvisação pode nos
favorecer meios para que a comunicação atravesse nossas camadas
de sensações, percepções e sentimentos que normalmente supri-
mimos no dia a dia. O acesso a esse universo de experiência é singular,
particular, codependente da vida de cada dançarino, das experiências
compartilhadas, da continuidade incansável da pesquisa e da dedi-
cação com desejos que estão fora de nossos alcances e, ao mesmo
tempo, tão perto, tão perto, tão perto e não nos damos conta.

Como lidar com essas extravagâncias, com tais


interrupções e incertezas?

De qualquer sorte, criar dança sob a perspectiva contemporânea


envolve a pergunta sobre o que se pretende investigar, algo que se
gostaria de aprofundar para entender com maior propriedade as
nuances que a constituem. Conhecer melhor uma dança e os con-
teúdos que a cercam ajuda a entender como seus elementos cons-
titutivos se organizaram e se modificaram diante da realidade ime-
diata. A realidade imediata de uma dança é aquela na qual jogos e
desafios são postos para experiência em dança.

Grupo x de improvisação em dança 221

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O jogo pode ser qualquer um, e suas regras também. Cabe a nós,
jogadores, no percurso, buscarmos os ajustes necessários para uma
aproximação do conteúdo que se está investigando. É um tipo de pro-
posição que delega responsabilidade e abraça reflexões singulares
e particularidades de seus integrantes. Todos precisam agir em con-
sonância para encontrar pontos de interseção, sobretudo porque a
convivência com o inusitado e os acordos imprevisíveis resvalam por
entre nossos corpos e os perdemos. Perdemos momentaneamente
para encontrar outra oportunidade ali, mais adiante.
A improvisação sempre vem carregada de dúvida e põe o corpo
em dúvida. Ela nos favorece os meios para que a comunicação atra-
vesse nossas camadas de sensações, percepções e sentimentos
que normalmente suprimimos no dia a dia. O acesso a esse universo
de experiência é singular, particular, codependente da vida de cada
um, das experiências compartilhadas, da continuidade incansável
da pesquisa e da dedicação com desejos que estão fora de nossos
alcances e, ao mesmo tempo, tão perto. Como lidar com essas
extravagâncias, com tais interrupções e incertezas? Ah! O corpo que
não nega ação e negociação. É preciso mover-se, sempre, sempre,
sempre… e nunca esquecer da pausa e da respiração.
A insistência e a resistência no fazer irão proporcionar ao corpo
improvisador os equilíbrios (acordos) e os meios eficazes para criar
o campo de ressonância entre seus participantes, aquele momento
em que a dança se ocupa do seu significado em conexão com o
entorno. Ele é momentaneamente estável, mas móvel porque é
de sua característica mover-se. Os tecidos poéticos entrelaçam-
-se e sustentam-se sempre que há ocorrência de acordos mútuos
e escuta. A persistência viabiliza as ocorrências da poética.
A improvisação com fins estéticos é um sistema complexo que
delineia o processo artístico com muitas mudanças sem aviso
prévio. É um espaço de reflexão, aprofundamento e decisão.
Diálogo, negociação e escuta entre as energias favorecem as rela-
ções circundantes, e por ser ativo, e não algo estático imposto de
fora para dentro, o próprio sistema desenvolve-se. Negociação é

222 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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um fator comum e indispensável a qualquer corpo. O corpo sujeito
implicado não recusa negociação. (KATZ, 2005)
Há oferta de espaço de cumplicidade e união?
A cumplicidade, a aceitação do outro, a união e o consenso são
fatores relevantes para estimular as trocas e fortalecer o processo
de encontro. Essa é uma prática comum no Grupo X. “Uma vez que
o artista se importa de modo peculiar com a fase da experiência em
que a união é alcançada, ele não evita os momentos de resistência
e tensão”. (DEWEY, 2012, p. 77)
A beleza desses processos são suas incógnitas e o inesperado.
Seu início não é necessariamente o início e, porventura, pode vir
a ser sua finalização, entremeio e até mesmo uma pausa longa
e silenciosa. Uma proposição, muitas vias. Muitas, mesmo.
Criar perguntas a partir da sentença, tantas questões quanto
forem necessárias é uma tarefa significativa, elas funcionarão como
disparadoras de ideias para fomentar a curiosidade e liberar energia
dos participantes. Também é uma oportunidade de aproximar o
leitor de caminhos que podem ser trilhados para criar dança e apre-
sentar uma das estratégias compositivas utilizadas pelo Grupo X de
Improvisação em Dança.
Olá! Se quiser, deixe sua lembrança.
Se você quiser... vá em frente. O seu modo de pensar é uma
possibilidade de abertura.

Temporalidades x inconclusivas

Imaginar o futuro e recordar o passado são


tramas muito parecidas. Imaginar a beleza que
cerca as possíveis poéticas do encontro é um
lidar com diversos atravessamentos
que caracterizam a complexidade
desse sistema cênico aberto.

(CARMO; CASTRO, 2019, p. 15-16)

Grupo x de improvisação em dança 223

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O tempo não se revela de uma só vez, o tempo vem acontecendo
dia a dia e recheado das múltiplas ocorrências do viver cotidiano.
(REIS, 2001) Por ser processo, ele não se revela de vez e, a depender
do seu ritmo, se veloz, lento, indiferente ou fugaz, ele se dará no
tempo necessário à sua aparição.
Pensando os processos de construção e a tomada de decisão do
Grupo X de Improvisação em Dança, o grupo precisou de um tempo
para poder contar a sua história. Uma longa história de 23 anos de
atuação e de escuta junto a pessoas que buscam se conhecer e
conhecer o outro. Pessoas que se responsabilizam por seus posicio-
namentos no mundo e tomam suas histórias por vias de mão dupla.
A história do grupo e de sua permanência no tempo vem preen-
chida de surpresas, desafios, riscos, alegrias e satisfações de ter o pri-
vilégio de vivê-la no fazer da dança que se fundamenta em poéticas
do Extraordinário do ordinário. A dança que se constrói no processo e
apoiada em suportes que propiciam a oxigenação de ideia inovadoras.
O acesso ao processo de permanência no tempo do Grupo  X
já está configurado nas entrelinhas deste texto. Sua história torna
visível e dizível a experiência de manutenção temporal. No sen-
tido de que a história é a reconstrução narrativa, conceitual e docu-
mental de um presente, da assimetria entre passado e futuro.
(REIS, 2001, p. 9) Na vida, como na dança, estamos o tempo todo
nos transformando e buscando outras possibilidades de existências
e resistências.
No Grupo  X, viabilizar o acesso à informação e à prática da
encenação em improvisação em dança é suportado por leituras,
pesquisas, elaboração de artigos científicos, participação em con-
gressos e mostras de trabalhos em eventos e encontros do grupo.
São iniciativas que estimulam o interesse e criam o ambiente pro-
pício para fortalecer os laços afetivos, também importantes no
modo de agir do grupo.
A autonomia, a iniciativa e a liberdade de ação, no GX, são regadas
de desejos, afetos, trabalhos, pesquisas, argumentações, caminhos
incertos que se bifurcam para poder avançar.

224 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 224 30/11/2022 16:46:20


O Grupo X de Improvisação em Dança, para além das existên-
cias e resistências, fomos/somos insistentes na busca dos sonhos
não conhecidos e invisíveis, muitas vezes excludentes no exercício
dessa profissão.
Participar de um grupo de dança, ser um grupo de dança e
mantermo-nos no tempo revela, agora, após 23 anos de trabalho,
como a escuta e o respeito ao outro numa construção poética de
dança se justificam e se fazem compreender por vias perceptivas.
Aceitar, entender e desafiar o interlocutor a se organizar e ajustar o
seu tempo no processo de organização de suas ações, para que todos
que ali estão, à espera, possam, em tempo hábil, responder com qua-
lidade e competência ao que se está exigindo é poder de autonomia.
Para alcançar os objetivos pretendidos, o sucesso da obra e per-
manecer no tempo, Vieira (2012) explica que é imperativo que os ele-
mentos de um sistema coreográfico se relacionem entre si. A auto-
nomia de ação é um elemento constitutivo de qualquer sistema social.
Uma dança de passos pré-determinados ou uma dança impro-
visada, ambas entendidas como um sistema social, utilizam ele-
mentos semelhantes em suas proposições compositivas. Nesses dois
sistemas, o que as diferenciam são as capacidades de cada qual.
O corpomidia, presente na negociação dos acordos, se faz inde-
pendente das técnicas adotadas. Os sentidos e significados preten-
didos se assentam na comunicação e transmissão de informações.
Em ambos os casos, se dá a construção de sentidos em dança.
Saltos de sonhos foram dados diante de todos os riscos e caos
organizacionais pelos quais o grupo e seus componentes passaram.
Entendendo o Grupo X como um sistema social, é possível compreender
seu percurso histórico, as organizações e os esforços empreendidos
em torno de suas performances. Também destacamos o afeto e o aco-
lhimento do outro, o exercício da prática da escuta tão importante em
todos os processos que envolvem pessoas humanas. Seus vestígios,
certamente, estão nos corpos dançarinos que por aqui passaram
e que, lá adiante, fazem reverberar as belezas poéticas construídas por
cada um deles.

Grupo x de improvisação em dança 225

Pesquisa.indb 225 30/11/2022 16:46:20


Referências

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Letras, 2007.
CARMO, C. E. O.; CASTRO, F. Livro do X. Salvador: Carlos Eduardo Oliveira
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ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA - ANDA. Salvador,
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GREINER, C.; KATZ, H. Arte e cognição. Corpomidia, Comunicação, Política.
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226 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

Pesquisa.indb 226 30/11/2022 16:46:20


Capítulo 12

A PESQUISA NOS ESTUDOS DA


PERFORMANCE: TRANSITANDO
EM TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS
NEBULOSAS E MOVEDIÇAS

Felipe Henrique Monteiro Oliveira

Hoje em dia, são diversas as pesquisas acadêmicas e artísticas que


tentam explicar o que é performance. O próprio ato de fazer essa
elucubração recai sobre a complexidade de questionamentos e de
possíveis respostas, às vezes inconclusas, que buscam descrever e
compreender essa vasta atividade humana que vem sendo estudada,
especialmente a partir do século XX, por diferentes estudiosos de
várias áreas do conhecimento.
Em virtude da popularidade do termo performance, a potência e
variedade de suas teorias e práticas vêm sendo rapidamente difun-
didas, sobretudo por vários artistas e pesquisadores no campo das
artes cênicas. Ao pesquisar performance, é impossível tentar definir o
que é e o que não é de forma estanque e definitiva, mas permite favo-
recer um diálogo contínuo e enriquecido em suas problematizações.
No ambiente acadêmico, a performance não se restringe a uma
disciplina, um campo ou um método que serve para subsidiar a varia-
bilidade e a diversidade de seus aportes teóricos e metodológicos,
pois sua intenção é dar suporte aos significados potenciais da produção
e da experiência artística, dos fatores da vida cotidiana e da cultura.

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Para estudar e pesquisar com (pesquisa com prática), em (prática
como pesquisa) e sobre (pesquisa teórica) performance, faz-se neces-
sário ter a consciência de que é imprescindível desenvolver a habilidade
de um desbravador que adentra territórios nebulosos e movediços que
não indicam quais são os caminhos a serem seguidos de forma defi-
nitiva e segura. Geralmente, aqueles que se predispõem a pesquisar
performance se deparam com os alicerces limitados de outras disci-
plinas que servem de referências epistêmicas, mas que não dão conta
da complexidade e profundidade do fenômeno.
Nesse contexto, o pesquisador da performance deve explorar
ponderadamente as atividades e os pensamentos que fogem
das fronteiras disciplinares tradicionais, bem como considerar a
expressiva constatação de que irá se deparar com as constantes
transformações de seu objeto de estudo ao longo de sua trajetória
acadêmica e/ou artística.
Para teorizar e praticar performance, faz-se necessário reconhecer,
não de modo ortodoxo e etnocêntrico, a importância da diversidade
das ações práticas corpóreo-vocais derivadas de várias culturas e seus
modelos de transmissão. Até porque, a performance, nesse contexto,
passa a ser caracterizada como uma larga abertura contraditória e hete-
rogênea para as mais diferentes vozes, opiniões, questionamentos,
temas e sujeitos que resistem às definições fixas.
Na esteira dessa variedade de ações, conhecimentos e transmis-
sões nas culturas, é imprescindível reiterar que a performance não
conjuga juízos de valor sobre o que é lícito ou ilícito, visto que a sua
abertura para o entendimento dos indivíduos e suas ações cotidianas
se tornam os fundamentos para compreender o fato de que o indivíduo
age e vive sob a égide dos valores apreendidos no decorrer da sua vida.
Seguindo por uma abordagem antropológica, pode-se preconizar
que os valores se formalizam como um dos elementos da perfor-
mance, pois eles são os esboços circunstanciais do nascimento e da
perpetuação das trocas de tradições culturais entre as pessoas e o
mundo. É nesse contingenciamento de ações que o valor (inter)rompe
com a ideia de que tudo e todos são frutos de vontades divinas ou

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naturais e passa a dar acesso ao indivíduo às ideologias, libertárias ou
opressivas, sociais e históricas, para que ele saiba deliberar em suas
ações culturais, sociais, individuais e até mesmo perante o sagrado.
É também importante salientar que as “[…] performances existem
apenas como ações, interações e relacionamentos”. (SCHECHNER,
2013, p. 30, tradução nossa)
Tal empreitada de exploração e experimentação dá ferramentas
ao pesquisador que permitem a compreensão de que a própria
ontologia da performance está em permanente estado de fluxo e
trânsito que resiste e impossibilita qualquer tipo de conclusão e/ou
delimitação das fronteiras e dos territórios dessa (anti)disciplina.
Ressalto que a defesa do uso da terminologia (anti)disciplina
para se referir à performance no âmbito acadêmico, e até mesmo
fora desse domínio, se dá porque o termo escapa às tradicionais
estruturas acadêmicas ancoradas em epistemologias cartesianas
que são constituídas com o objetivo de classificar, organizar e definir
o pensamento científico, amparadas em disciplinas ditas puras,
estruturadas pela harmonia e consenso dos conhecimentos produ-
zidos e difundidos; conhecimentos coerentes, estáveis e contínuos.
Na contracorrente, a performance, considerada uma (anti)dis-
ciplina, continuamente, prioriza a autorreflexão, a contradição,
as multifacetas e a porosidade processual de suas ações, pois
seu foco depende da área de interesse daquele indivíduo que virá
a pesquisá-la.
Desse modo, a disponibilidade e a vontade de fazer pesquisa
com/em/sobre performance demanda do pesquisador o exercício
hercúleo de delimitar alguns preceitos que estruturam e acabam
servindo de base para a compreensão do seu objeto e, sobretudo,
de que seus conceitos não são verdades fixas e imutáveis.
Zeca Ligiéro (2011) adverte que o pesquisador da performance
deve compreendê-la como um fenômeno em si e em suas inter­
relações, cabendo a ele, também, o papel de não se eximir da
tentativa de compreender, mesmo que irrisoriamente, a comple-
xidade do que se está estudando. Se tal pesquisa for relacionada

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à performance que aconteceu em épocas diferentes, o estudioso
deve investigar o porquê do seu acontecimento, seu contexto e os
elementos utilizados no seu processo de criação.
As performances na vida cotidiana são de diferentes tipos:
1) as formas estruturantes localizam-se nos diferentes tipos de com-
portamentos que ocorrem durante os esportes, o ritual, o jogo e a polí-
tica pública; 2) as interpretações da variedade dos modos de comuni-
cação e dos significados das palavras e suas enunciações; 3) designar
as possíveis analogias de comportamento entre o ser humano e os
animais, dando ênfase ao comportamento ritualizado durante o jogo;
4) os traços psicoterapêuticos que buscam enfatizar as interações
entre as pessoas, nas quais os indivíduos agem sem e com consciência
corporal; 5) partindo de uma perspectiva ocidental, é a busca para
compreender as culturas tradicionais e as consideradas primitivas,
a partir de estudos arqueológicos, de preferência os pré-históricos e
da etnografia; 6) o entendimento de que as teorias da performance são
reverberações das teorias do comportamento. (SCHECHNER, 2013)
A pesquisa com/em/sobre performance não enseja apresentar,
no âmbito acadêmico e/ou artístico, resultados exatos e defini-
tivos, pois o mais importante é a experiência vivida pelo pesqui-
sador durante seus processos de estudos, visto que esse sujeito
acaba imbricando-se e tornando-se parte da pesquisa justapondo,
dessa forma, arte e vida, como já havia sido preconizado por Antonin
Artaud (2006) na década de 1930, no século passado.
Seguindo esses princípios, Guillermo Gómez-Peña, performer e
fundador do coletivo La Pocha Nostra, diz:

[…] A maioria dos artistas da performance são escritores,


mas somente um punhado de nós escreve para a publicação.
Nós teorizamos sobre arte, política e cultura, mas nossas
metodologias interdisciplinares são diferentes das dos teó-
ricos acadêmicos. Eles têm binóculos; nós temos radares.
Os artistas da performance passam a maior parte do nosso
tempo ‘digitalizando’, ao invés de ‘focalizando’, como fazem

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Pesquisa.indb 230 30/11/2022 16:46:21


os teóricos, estabelecendo-se em um ponto e, em seguida,
tirando os binóculos. Quando os acadêmicos dos estudos
da performance se referem ao ‘campo da performance’,
eles geralmente significam algo diferente do que significam
os artistas da performance: um campo muito mais amplo que
engloba todas as coisas performativas, incluindo antropologia,
práticas religiosas, cultura pop, e eventos esportivos e cívicos.
Enquanto nós cronologamos nossos tempos, ao contrário de
jornalistas ou comentaristas sociais, nossas crônicas tendem a
ser não-narrativas, simbólicas e polivocais. É uma forma dife-
rente de cronologia. […] Nós estamos mais interessados em
provocar a ambivalência de risadas melancólicas ou sorrisos
dolorosos, embora uma ocasional explosão de riso seja sempre
bem-vinda. (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p. 21-22, tradução nossa)

E, enfim, a performance reafirma que na pesquisa em artes se tenta


rejeitar a exclusividade das convenções e a seguridade canônica de
teorias e práticas para sancionar, sobretudo, a experiência de si e as
experimentações no aporte constitutivo do conhecimento efêmero.
Acresce-se a essa argumentação o fato de que a performance
tem sua base teórica e prática no pós-estruturalismo, movimento
filosófico francês nascido no período pós-Segunda Guerra Mundial
que visa romper com os modelos científicos de pensamento
materialista-dialético para dar ênfase às epistemologias híbridas
e desconstrucionistas.
Em face do exposto, encontro o estímulo teórico que oferece
e permite pensar que a performance vem se desenvolvendo em
uma complexa rede de ideias que propõem fornecer interconexões
e sobreposições de saberes com outras áreas de atividades e de
pensamentos sobre as questões que reverberam nos interesses
políticos, intelectuais, sociais e culturais que foram prescritos e
estão presentes na sociedade contemporânea.
Na contemporaneidade, cabe à performance adequar-se aos
tentáculos da globalização, uma vez que esse paradigma capi-
talista tem como base provocar, a partir da formação de uma

A pesquisa nos estudos da performance 231

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sociedade global e da homogeneização da cultura, disfarçadamente,
a ascensão de alguns e o declínio de outros, a total interdepen-
dência e interconexão em diferentes âmbitos e em escala global,
sob a égide de que as suas empreitadas proporcionaram a har-
monia e o controle da livre circulação econômica, política, cultural,
ideológica, tecnológica, social e de informações.
Obviamente, deve-se levar em consideração que a globalização
pode até possibilitar o intercâmbio em diversas esferas e a diluição
do espaço e do tempo, o que facilita em demasiado a vida do ser
humano, entretanto, por outro lado, o sistema global tende a desen-
cadear em termos geopolíticos, culturais e econômicos alguns
processos que determinam a “superioridade” de alguns países
anglo-saxões e europeus que, tempos atrás, foram responsáveis
pelo colonialismo e imperialismo em detrimento do declínio de
outras nações, geralmente ex-colônias, pobres, latino-americanos,
subsaarianos e localizados em zonas de guerras.
Nas artes cênicas, o processo de globalização não é tão execrável
quanto aparenta, porque propicia e possibilita o intercâmbio de pro-
dutos artísticos e de artistas pela vastidão do globo terrestre, e um dos
aspectos desse sucesso é a interculturalidade. Vários artistas, como
Peter Brook, Ariane Mnouchkine, Eugenio Barba e Antonin Artaud,
em suas teorias e práticas cênicas, influenciam-se e apropriam-se
de algumas características culturais estudadas ou trazidas por outros
artistas estrangeiros de diferentes etnias para trabalhar em seus pro-
cessos, elementos que subvertem os cânones e tornam a cena tradi-
cional mais autêntica, heterogênea, nômade, híbrida e intercultural.
Com base nos pressupostos defendidos por Richard Schechner
(2013) – fundador do The Performance Group, professor e um dos
fundadores do Departamento de Estudos da Performance,1 o qual

1 Este departamento passou a chamar-se oficialmente de Departamento de Estudos da


Performance somente em 1980, pois até então pertencia ao Departamento de Drama e
Cinema da New York University.

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foi constituído por ele em parceria com Michael Kirby e Brooks
McNamara no fim da década de 1970, na Tisch School of the Arts
da New York University –, a performance, considerada como ação
a partir do século  XX, começou a ganhar notoriedade com base
em pesquisas teóricas e práticas desenvolvidas por vários acadê-
micos e artistas que proporcionaram um diversificado horizonte no
ambiente universitário: os estudos da performance.
Os estudos da performance, de acordo com Schechner (2013)
caracterizam-se como um espectro que é mais do que a soma de
conclusões fixas, por esse motivo, passam a incluir uma varie-
dade de estudos interdisciplinares que se desdobram nas diversas
áreas do conhecimento. Sendo assim, nenhuma teoria da perfor-
mance é universal, haja vista que, seguindo a linha de pensamento
schechneriana, as performances são de diferentes tipos, acon-
tecem em diversos domínios e devem ser planejadas e executadas
no vasto repositório de ações que os indivíduos realizam – desde o
ritual, jogo, esportes, entretenimentos populares, as artes cênicas
e as ações da vida diária – para sancionar os saberes sociais,
profissionais, de gêneros, de raça e de papeis sociais.
No âmbito acadêmico, os estudos da performance configuram-
-se mais como sendo fluídos, interativos, hipertextuais e virtuais, e
é justamente devido a essas características que eles são as cen-
telhas epistêmicas dos conhecimentos, assim como as vanguardas
são significativas para as artes, visto que se caracteriza como uma
(anti)disciplina democrática e contracultural.
Para o pesquisador francês Patrice Pavis, essa é a definição dos
estudos da performance:

Os estudos da performance reivindicam a sua interdiscipli-


naridade, enquanto proclamam […] que eles não são uma
disciplina. Através da sua institucionalização […], sua orga-
nização […], eles solidificam-se em uma ou mais disciplinas,
como antes do tempo de seu reagrupamento estratégico.
Cada estudo de caso encontra sua liberdade de associação,

A pesquisa nos estudos da performance 233

Pesquisa.indb 233 30/11/2022 16:46:21


sua preferência pragmática para um ou outro acompanha-
mento teórico. Os estudos da performance não podem ser
substituídos por uma outra disciplina ou contrariados por
uma nova metodologia, mas podem sofrer mutações a qual-
quer momento em um outro conjunto, uma outra aglome-
ração de disciplinas e direções metodológicas, sem também
engendrarem tantas teorias explicativas mais confiáveis.
(PAVIS, 2014, p. 177, tradução nossa)

Aos estudos da performance cabe a tarefa de desfazer qualquer


conduta hegemônica do conhecimento, tendo como centro ético de
seu paradigma a tentativa de responder às necessidades intelec-
tuais e artísticas que estão se cambiando e se realizando diante das
circunstâncias que existem tanto em escala local quanto global.
Seguindo esses princípios, o pesquisador norte-americano Bryan
Reynolds, diretor artístico da Transversal Theater Company, preconiza:

A conduta ética no centro dos estudos da performance


torna o campo sério, benevolente e ativista. Por mais idea-
lista e utópico que isso possa soar, acredito que o campo
é ocupado predominantemente por pessoas que desejam
contribuir positivamente com o mundo através da sua
escolarização e ensino. A conduta ética dos estudos da
performance é o denominador comum do campo, seu atri-
buto mais impressionante e sua maior fonte de inspiração.
Não leva como objetivo principal a determinação do certo e
do errado em geral ou dentro de um determinado contexto.
Em vez disso, trata-se de revelar as apostas, as contingên-
cias, as perspectivas e outros fatores que entram em jogo
quando os seres humanos interagem uns com os outros,
[…] quando uma modalidade de performance está envol-
vida, a performance aqui definida como expressão inten-
cional para uma audiência. A conduta ética para os estudos
da performance é benéfica, afirmativa e generativa em vez
de julgamento, divisão e policiamento. (REYNOLDS, 2014,
p. 3, tradução nossa)

234 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Portanto, essa conduta ética dos estudos da performance legitima
o fato de que as pesquisas com/em/sobre performance podem ser,
segundo Schechner (2013), contextualizadas em quatro eixos:

1. Tendo o comportamento como o principal objeto de estudos,


o pesquisador recorre à descrição do repertório de atividades
que as pessoas fazem;
2. Sendo grande parte dos pesquisadores também artistas, a prá-
tica artística passa a ser assumida de forma integral às fontes
teóricas daquele que a estuda, e vice-versa. Além disso, a arte
é extensivamente pesquisada em seus aspectos históricos,
práticos e teóricos;
3. A apropriação e o uso diferenciado do método antropológico da
observação participante, em que o pesquisador passa a assumir
uma posição crítica e distancia-se do seu objeto de estudo para
aprender e elucidar as discrepâncias entre a sua cultura hege-
mônica e as culturas consideradas exóticas. Tradicionalmente,
a observação participante foi utilizada como um instrumento
metodológico para distinguir, em termos culturais, a “supre-
macia” do Ocidente face à “estranheza” do Oriente. Entretanto,
o pesquisador de estudos da performance não se coloca no
pedestal de quem é o portador do saber, porque sabe que nada
é fixo e que, ao estar envolvido racional e emocionalmente,
deve permanecer crítico perante sua pesquisa;
4. Sabe-se que a performance é uma ação que se entrelaça e
advoga para o fomento do ativismo ao assumir o lugar de oposi-
ção a qualquer tipo de neutralidade ideológica. Essa assevera-
ção assegura e resvala na atitude política do pesquisador ante
às problemáticas da realidade, mas não significa afirmar que se
tenha de aderir a partidos políticos.

Entendendo que a performance origina e desenvolve-se a partir da


atividade intencionalmente efetuada pelo ser humano. Seguindo por
uma abordagem socioantropológica, pode-se dizer que o ser humano

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Pesquisa.indb 235 30/11/2022 16:46:21


performa diariamente, pois, em suas relações sociais, o indivíduo é
obrigado a seguir as convenções sociais do processo civilizatório e a
comportar-se de forma diferente do seu eu verdadeiro, seja momenta-
neamente ou em um estado psicofísico distinto.
Tanto na arte quanto na vida, a performance realizada pelo ser
humano é intencionalmente e inconscientemente um aspecto cons-
tituinte do paradigma da cultura e da criação da cultura.
Para Schechner, as performances produzem identidades, recon-
figuram temporalidades e espacialidades, ressignificam e expressam
esteticamente os corpos e contam histórias, logo, pode-se perceber
que “[…] qualquer e todas as atividades da vida humana podem
ser estudadas ‘como’ performance”. (SCHECHNER, 2013, p.  29,
tradução nossa) Reconhecer esse fenômeno possibilita distinguir a
performance realizada pelo cidadão comum, da arte efetuada pelo
performer, ou seja, durante seus atos cotidianos, o ser humano pode
executar ações sem necessariamente ter a consciência, pois a vida
cotidiana permite que o indivíduo tenha anos de treinamento e prática
acerca da aprendizagem corpóreo/vocal e da apropriação cultural de
comportamentos específicos ou das trocas dos papéis sociais perante
as circunstâncias sociais e pessoais, enquanto o performer produz sua
arte justamente a partir dessa tomada de consciência de si mesmo,
a qual confere às suas ações o status de arte da performance.
Nesse contexto, é importante perceber que, na performance e
nos seus processos criativos, nada é considerado novo, feito pela
primeira vez. E esse entendimento contribui para afirmar que os
eventos que estão por vir são caracterizados pelas repetições
daqueles que já ocorreram, imputados no presente que está sempre
em movimento, isto é, o processo de repetição é caracterizado pela
recontextualização e/ou reformulação de eventos, ou fragmentos
deles, efetuados no passado. Pode-se dizer que o evento conside-
rado presente ou original, de fato, não é completamente idêntico ao
que passou, ou ao que está por vir, pois, no campo de estudos da
performance, o futuro e o passado estão sempre em dinâmicas de
experimentação e interação.

236 Pesquisa em arte e difusão do conhecimento

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Para Peggy Phelan (1993), a ontologia da performance reside
na representação sem reprodução, ou seja, a principal carac-
terística da performance é o seu acontecimento único e efê-
mero, definido a partir da sua singularidade, e não das tentativas
de reproduzi-los. Sendo a performance uma linguagem artís-
tica efêmera que não tem a pretensão de criar uma obra de arte,
ocorre a abertura de um leque de possibilidades políticas que
rechaçam a lógica reprodutiva capitalista, pois uma de suas fina-
lidades é oportunizar aos espectadores o compartilhamento da
efemeridade a partir da suspensão de qualquer tipo de controle
e permitir o desenvolvimento das subjetividades dos indivíduos
durante o acontecimento artístico. A ontologia da performance
acontece quando o objeto artístico desaparece para permanecer
uma recordação que as pessoas compartilham da efemeridade
de seu acontecimento.
Portanto, fugindo de uma abordagem tradicional, o pesquisador
dos estudos da performance

[…] procura a confrontação direta com o vivido, o compor-


tamento vivenciado, concentra-se, portanto, na observação
do fenômeno em si sem, contudo, abrir mão da pesquisa
de campo e de todo material do processo da produção do
evento. Torna-se importante a análise do seu contexto his-
tórico, o uso do espaço e dos elementos que constituem a
performance, vistos como um conjunto de igual valor em
seus atributos. (LIGIÉRO, 2011, p. 13)

Assim, a performance, sendo criada e desenvolvida nas variadas


instâncias artísticas e na vida social a partir de processos de repe-
tição, acaba permitindo o ato do indivíduo conjecturar sobre a
complexidade do comportamento humano e suas possíveis proba-
bilidades de ações simbólicas, contraditórias e plurais que se ins-
crevem, conservam, transmitem e se transformam no continuum
espaço-temporal individual e coletivo da realidade.

A pesquisa nos estudos da performance 237

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As ações que permitem ao indivíduo performar diferentes eus,
tanto para si quanto para a sociedade, são o que Schechner (1988)
denomina comportamento restaurado, ou seja, um comportamento
considerado como simbólico e reflexivo, visto que é resultante das
mais variadas ações. É possível refletir que todo comportamento
vivido é uma recombinação de ações asseguradas em tradições e
circunstâncias culturais que, por conseguinte, estabelecem possí-
veis ações futuras.
Sobre o significado do conceito de comportamento res-
taurado, o pesquisador norte-americano faz esta advertência:
“Performances – de arte, rituais, ou vida ordinária – são ‘com-
portamentos restaurados’, ‘comportamentos duas vezes efe-
tuados,’ ações performadas que as pessoas treinam e ensaiam”.
(SCHECHNER, 2013, p. 28, tradução nossa)
Ademais, o comportamento restaurado permite diferenciar a
forma que o indivíduo pretende realizar a sua performance, pois na
vida cotidiana o ser humano pode performar de forma intencional
em diferentes realidades sociais, bem como pode não se dar conta
dos papéis que estava realizando, tendo em vista a fronteira tênue
que separa o real e o simulado. O trânsito entre as situações da vida
diária e da arte depende das circunstâncias e da consciência em que
o sujeito quer se encontrar, e essa variação dos comportamentos
restaurados corresponde ao espectro da performance que se quer
demonstrar e experienciar para si e para os outros.
Anterior ao conceito de comportamento restaurado proposto
por Schechner, o sociólogo canadense Erving Goffman (2011)
defendeu a ideia de que o indivíduo pode expressar a si mesmo para
lograr em suas interações sociais que os outros fiquem impressio-
nados por ele em sua performance.2 Para isso acontecer, o indivíduo
deve ter êxito na transmissão e emissão de sua expressividade para

2 A tradução brasileira do livro A representação do eu na vida cotidiana (GOFFMAN, 2011)


utiliza os termos representação e desempenho no lugar da palavra performance.

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que os outros o aceitem e permitam sua presença e participação
durante a interação, e que para permanecer na convivência com os
seus pares deve realizar as ações adequadas que resultem na valo-
rização dele diante da influência exercida em outros participantes.
O indivíduo, no decorrer de suas interações na vida cotidiana,
realiza sua performance através das ações que lembram o fazer
teatral, ou seja, dependendo do contexto, o sujeito passa a agir
de acordo com o que é demandado pelo papel a ser representado,
a fim de alcançar o êxito da comunicação com o público que foi per-
suadido a acreditar no que está sendo performado ordinariamente,
sendo assim, sua performance passa a agir segundo o respaldo das
ações atribuídas e reconhecidas pela sociedade, e não apenas em
conformidade com as suas pretensões.
A escolha do papel a ser representado pode variar depen-
dendo da pessoa que vai realizar a performance, do que se deseja
alcançar e do grupo no qual está inserida, tendo em vista que o
indivíduo às vezes pode escolher e assumir papéis até então não
representados por ele diante da diversidade existencial da vida
privada e em sociedade.
Além disso, cada performance que o sujeito pretende apresentar
para os outros, durante a sua interação, potencializa nele situações da
realidade nas quais o indivíduo envolve o seu eu em algum tipo de iden-
tificação com o papel em diferentes instâncias sociais. Ainda assim,
tendo consciência de si mesmo, não vislumbra provocar qualquer
espécie de ruptura ou desapontamento em suas interações, pois sabe
que, se realizar alguma dessas ações, por conseguinte, pode acontecer
a desvalorização de sua personalidade.
À vista disso, o indivíduo que prefere confiar nas aparências por
ele forjadas acaba não percebendo, mesmo que momentaneamente,
a realidade em que está inserido e a qual vive, e assim, confere à sua
performance a valorização de suas aparências performadas cotidia-
namente e não presta atenção à realidade tal como ela é.
Para Goffman (2011), o indivíduo, durante as representações
do eu, pode assumir duas atribuições: a de ator e a de personagem.

A pesquisa nos estudos da performance 239

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Em relação à personagem, o sujeito não é necessariamente criador
dela, é apenas o portador desta figura fictícia a qual toma de
empréstimo seu corpo como um veículo para expressar e trans-
mutar o que é mais adequado às pretensões de quem vai participar
da encenação social. Ao assumir a função de ator, esse indivíduo
permeado pela natureza psicológica da personagem tem a opor-
tunidade de treinar analogamente as emoções fictícias do que vai
ser representado nas situações sociais reais, para, desta forma,
expressar as demandas da vida cotidiana.
O sujeito, quando está em interação com os outros, é atraves-
sado por inúmeros papéis a serem representados, contudo, ele tem
a garantia de deliberar sobre a escolha de qual de seus papéis é
o mais adequado para ser assumido, o que, consequentemente,
faz com que o sujeito dissimule ou despreze possíveis papéis inade-
quados que não atendam às expectativas ideais estabelecidas para
as relações interpessoais durante a performance.
Nesse ínterim, acrescenta-se um dos fundamentos impres-
cindíveis para os estudos da performance: performatividade.
Ressalto que o conceito de performativo, proficuamente estudado
pelo inglês J. L. Austin (apud SCHECHNER, 2013) e explanado em
suas palestras na Harvard University, permanece perene diante da
vastidão de sua abrangência em vários âmbitos – político, social,
pessoal, econômico e artístico.
O pesquisador inglês concebe a singularidade da linguagem como
performance, também considera que os atos de fala, compreendidos
como performativos, proferidos pelos sujeitos, não são apenas decla-
rações sobre determinada coisa que não se dissociam, em hipótese
alguma, das ações por eles realizadas. Além disso, o performativo
refere-se à erosão e à porosidade entre as realidades do real e do fic-
cional; sugere e corrobora com palavras ou sentenças que enunciam a
realização de algo e dirigem as qualidades da performance.
Coaduna-se com Ciane Fernandes (2017, p.  139) o entendi-
mento de performatividade “[…] como mover com e ser movido
por seres, coisas e palavras, criando conhecimento na e a partir da

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conexão com nossas pulsões celulares e seguindo-as no processo
deste descobrimento mútuo entre ser e meio. Este aprendizado de
corpo inteiro sustenta nosso estar no mundo e contribuir com ele”.
Nesse ínterim, Pavis (2014, p. 177, tradução nossa) explica que
“[…] a performatividade tornou-se o modelo teórico universal que
engloba todos os funcionamentos humanos, tornando a explicação
e a análise individual dos espetáculos um pouco mais difícil”.
Para Schechner (2013), a performatividade é relevante para os
estudos da performance porque se relaciona com o pós-modernismo.
Esse paradigma, no âmbito artístico, vem sendo desenvolvido a
partir da efervescência cultural e da ruptura com o estabilishment
dos anos 1960. Tem como um de seus objetivos colapsar qual-
quer ideologia que procura a instauração de narrativas imutáveis,
visto que os pressupostos do pós-modernismo provocam a des-
construção e a desmistificação de realidades fixas, de hierarquias
de diferentes tipos, de autoridades, de demarcação de territórios
e de categorias, entre elas, as artísticas.
No âmbito das artes cênicas, o pós-modernismo desencadeia
cenas com características disjuntivas, expandidas, fragmentadas,
lúdicas, contingentes, sem linearidades entre e nas ações, inertes,
instáveis, ausentes de movimentos figurativos e do acaso, propi-
ciando, com isso, a quebra das principais e tradicionais teorias e prá-
ticas ocidentais da representação, as quais procuram imitar, refletir,
expressar, representar e reproduzir realidades individuais e coletivas.
Tal problemática traz à tona o poder da criatividade, a possibilidade
de incitar o espectador a subverter sua passividade e experienciar
processos de fruição com diferentes perspectivas parciais, e viabiliza
a existência de artistas que priorizam a autenticidade de seus experi-
mentos em cena.
Retornando aos estudos da performance, outro pressuposto é
o de que o ser humano e os animais realizam performances que se
imbricam com os rituais. Schechner (2013) reivindica para a perfor-
mance algumas funções interativas que não se hierarquizam nem se
sobrepõem umas às outras e não se dissociam: ensinar ou persuadir,

A pesquisa nos estudos da performance 241

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criar a beleza, entreter, criar ou fomentar uma comunidade, curar,
produzir e mudar a identidade e lidar com o sagrado ou o demoníaco.
A tentativa de tracejar uma possível origem da performance evi-
dencia uma imbricação desta com o ritual, pois a partir da obser-
vação dos desenhos rupestres e dos artefatos que estão localizados
em cavernas e sítios arqueológicos datados de 20 mil a 40 mil anos
atrás, os pesquisadores defendem a ideia especulativa de que a arte
“primitiva” foi o meio de produção encontrado pelos primeiros indi-
víduos para expressar esteticamente as ações e os seus significa-
tivos bem como os diferentes rituais cotidianos.
Ressalta-se que a performance tem sua origem quando o
ser humano articulou em seu jogo a eficácia e o entretenimento
das ações, a partir do espaço em que foram realizadas as circuns-
tâncias e a reverberação de seus propósitos. A performance surgiu
no momento em que o ser humano conscientemente teve o intuito
de realizar eficazmente suas atribuições, de entreter, de performar
suas personas ludicamente e de regozijar-se com isso, de mostrar
e esconder as diferentes facetas do seu eu, tanto individual quanto
coletivamente, de vivenciar o aqui e o agora, de aprender e transmitir
sua cultura à sua comunidade e aos outros, e de dirimir os aconte-
cimentos religiosos, sociais e pessoais. Levando em consideração a
efemeridade e a epifania das ações dos primeiros seres humanos,
é possível afirmar que não existem evidências históricas ou arqueo-
lógicas que sirvam como provas para tal afirmação.
As possíveis origens da performance estão relacionadas à neces-
sidade que os pesquisadores e os praticantes têm de resolver feitos,
entreter, expor a existência de como as coisas são e sua durabili-
dade, transformar-se em outro e aproveitar isso, incorporar-se em
um outro transcendental e vivenciar o aqui e agora, desfrutar con-
troladamente a experiência de transe ou algum estado alterado de
consciência, despir e entregar-se ao que está vivendo, participar do
jogo a fim de satisfazer as pretensões pessoais, sociais ou religiosas.
Diante da variedade de rituais, percebe-se que eles seguem
dois tipos de ações que se complementam, como sugere Schechner

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(2013): o sagrado e o secular. Entretanto, antes de apontar as dife-
renças entre ambos, é válido ressaltar que em algumas culturas
não há evidentes distinções entre as duas formas de ritualização.
Ao ritual sagrado é, frequentemente, imputado sistemas de crenças
religiosas que pretendem legitimar formas de comunicação doutri-
nárias, holísticas e teológicas que permitem ao indivíduo comunicar-
-se com Deus, com qualquer parte da natureza ou com outra enti-
dade sobrenatural na qual se tenha fé, e dar coerência à crença do
indivíduo em seus aspectos individuais e coletivos. Por outro lado,
o ritual secular na vida cotidiana não está relacionado aos pressu-
postos religiosos, como os praticados pelo ritual sagrado, visto que
a secularidade é responsável pela simbolização, geralmente laica,
de ações privadas e públicas, por exemplo, eventos governamen-
tais, discursos políticos, julgamentos, festivais, celebrações oficiais,
esportes, passeatas, festividades.
As relevantes pesquisas do antropólogo escocês Victor Turner
(1982, 1988) são de extrema importância para os estudos da per-
formance, sobretudo a partir da parceria entre ele e Schechner.
Para Turner, os atributos de liminaridade permitem, às pessoas que
participam deste tipo de ritual, fugir de qualquer tipo de símbolos,
estados e posições fixas, visto que

As entidades liminares […] podem ser representadas como


se nada possuíssem. Podem estar disfarçadas de monstros,
usar apenas uma tira de pano como vestimenta ou aparecer
simplesmente nuas para demonstrar que, como seres limi-
nares, não possuem status, propriedade, insígnias, roupa mun-
dana indicativa de classe ou papel social, posição em um sis-
tema de parentesco […] Seu comportamento é normalmente
passivo e humilde. Devem, implicitamente, obedecer aos ins-
trutores e aceitar, sem queixa, punições arbitrárias. É como se
fossem reduzidas ou oprimidas até uma condição uniforme,
para serem modeladas de novo e dotadas de outros poderes,
para se capacitarem a enfrentar sua nova situação de vida.
(TURNER, 2013, p. 98)

A pesquisa nos estudos da performance 243

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Ainda no processo liminar, o indivíduo adquire novas formas
identitárias e é iniciado a transformações potencializadas que o
possibilitam tomar para si experiências elementares e significativas
para sua vida. Por conseguinte, o processo liminar do ritual permite
aos praticantes que ações sejam praticadas e que possuam signifi-
cativos valores simbólicos, os quais possibilitam que as experiên-
cias vividas se tornem realidade.
O propósito da performance é considerado determinante para o
sucesso das suas ações. A performance do ritual serve de garantia
para a estabilidade e auxilia os indivíduos nas mudanças das suas
pretensões e das circunstâncias sociais nas quais está inserido,
desta forma, fica evidente a eficiência que o ritual tem de introduzir
transformações para as suas performances e seus praticantes,
bem como de ser forjado tanto pela cultura quanto pelos indivíduos.
A isso, soma-se a compreensão de que o ritual não é estático.
Ao atentar para as suas dinâmicas de invenção e modificação,
o ritual demonstra a ruptura de regras e de tradições que perma-
necem aceitas e praticadas imutavelmente por todos. O ritual,
além de possibilitar a deliberação e o entendimento acerca da natu-
reza simbólica que preconiza certos valores e comportamentos
estabelecidos, tenta erradicar qualquer mudança em detrimento
da continuidade do passado através de repetições de rituais.
Nessa perspectiva, os rituais caminham lado a lado com as
mais variadas instâncias da vida humana e animal. O ritual permite
aos seus praticantes a resolução de conflitos relacionados à aqui-
sição de poder, status, sexo, espaço e, nos períodos de transição,
interação e troca de status sociais.
Dessa forma, o ritual possibilita aos envolvidos a ligação deles
com a coletividade, a religação e a elaboração de um passado mítico
fortificado pelas tradições, sentimentos fraternos e solidariedade,
a criação e a continuidade da comunidade, a feitura e a celebração
de importantes eventos. O ritual adentra nos territórios e nas fron-
teiras das artes cênicas por intermédio de artistas que desejam pro-
blematizar a cultura ou estudar os processos ritualísticos.

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O ritual está fortemente ligado ao jogo, visto que permite ao
indivíduo a chance de experienciar, de forma temporal, as situa-
ções de risco, de excesso e de tabu, também são portadoras de
circunstâncias transmissíveis, codificadas e fomentadoras de com-
portamentos restaurados. É possível refletir que o ritual acon-
tece em determinados espaços e tempos preestabelecidos e que,
por conseguinte, está sobrecarregado de ações repetitivas e estili-
zadas que visam expressar a transformação de algo que é de funda-
mental importância para aquele que a realiza.
Em relação ao jogo, o ritual é importante por ao indivíduo a
breve vivência de uma “segunda realidade” que possibilita tornar
as memórias em ações. Essas ações são codificadas e transformam,
momentânea ou permanentemente, a vida cotidiana daquele que
está no ritual.
Pode-se compreender que o ritual tem como estrutura as ações
realizadas nas perspectivas espaciais e temporais que permitem aos
indivíduos assegurar funções importantes das esferas individual,
grupal e cultural nos processos ritualísticos das experiências vividas.
Em concomitância, os rituais promovem aos indivíduos a ajuda que
necessitam para subverter as transições situacionais de identidades,
hierarquias, relacionamentos ambivalentes, realidades e vontades que
transformam as normas sancionadas na vida cotidiana. Consoante com
essa perspectiva está a definição de performance dada por Schechner
(2013, p. 52, tradução nossa): “Comportamento ritualizado condicio-
nado e/ou permeado por jogo”.
A relação entre o ritual e o jogo está no fato de que eles se
complementam e se configuram como variantes de demasiada
importância para a performance, uma vez que esta é considerada,
no âmbito do ritual, um comportamento restaurado que passa a ser
condicionado e/ou permeado pelo jogo.
O jogo tem a sua importância para as artes cênicas porque é um
dos princípios básicos do relacionamento dos participantes da cena,
e para os estudos da performance, porque é fundamental para as
interações dos seres humanos e dos animais. O jogo é permissivo,

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espontâneo, irrestrito, ambíguo, simultâneo, flutuante em diversas
direções, perverso, irreverente, indisciplinado, subversivo e,
por conseguinte, difere do ritual por este ser sério, condicionado,
reflexivo, ensaiado.
O jogo passa a ser considerado como performance quando os
indivíduos e os animais realizam ações em tempos e espaços espe-
cíficos com o objetivo de exibir suas habilidades para os outros,
para que o público aprecie e participe efetivamente das ações.
Assim, é legítimo considerar que o jogo e o jogar são performativos
por natureza, haja vista que tende a dar base e a questionar o esta-
belecido e normatizado na sociedade.
Por fim, seguindo os pressupostos descritos ao longo do texto,
ao tentar responder o que é performance, percebo que essa ação
intelectual não se conclui, pois se torna evidente que os terri-
tórios e as fronteiras da performance, tanto no âmbito acadê-
mico quanto artístico, não se estabelecem definitivamente, mas
sim efemeramente.

Referências

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FERNANDES, C. Do pensamento sentado ao movimento cristal:
a criação coreográfica como repadronização de deficiências normativas.
Revista Científica/FAP, Curitiba, v. 17, p. 132-153, 2017.
GOFFMAN, E. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis, 
RJ: Vozes, 2011.
GÓMEZ-PEÑA, G. Ethno-techno: Writings on Performance, Activism, and
Pedagogy. London: Routledge, 2005.
LIGIÉRO, Z. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras.
Rio de Janeiro: Garamond, 2011.
PAVIS, P. Dictionnaire de la performance et du théâtre contemporain. Paris:
Armand Colin, 2014.
PHELAN, P. Unmarked: The Politics of Performance. London: Routledge,
1993.

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Pesquisa.indb 246 30/11/2022 16:46:21


REYNOLDS, B. (ed.). Performance Studies: Key Words, Concepts,
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SCHECHNER, R. Essays on Performance Theory. London: Routledge, 1988.
SCHECHNER, R. Performance Studies: An Introduction. London: Routledge,
2013.
TURNER, V. The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications,
1988.
TURNER, V. From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play. New
York: PAJ Publications, 1982.
TURNER, V. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis, 
RJ: Vozes, 2013.

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Capítulo 13

INVENTÁRIOS DO SERTÃO NAS CENAS


MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Diogo Ramon da Silva Costa


Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira

Inventariando

O presente trabalho é parte da pesquisa, ainda em andamento, inti-


tulada SerTãoVida em Cena: a busca por um solo poético caipira e
sertanejo, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena
(PPGAC) e ao Laboratório de Montagens Cênicas e Teatro Educação
(LabMonTe), ambos vinculados à Escola de Música e Artes Cênicas
da Universidade Federal de Goiás (EMAC/UFG).
Constituímos a possibilidade de uma experiência em território
goiano, a qual dará subsídio para a composição poética da pre-
paração corporal do ator à concepção de um espetáculo cênico.
No processo de delimitação do objeto, a cultura, o sertão e a iden-
tidade do sertanejo e do caipira foram expressões que apareceram
de maneira determinante. Para tanto, a proposta de uma práxis sen-
sível com as realidades caipiras e sertanejas – diversas e plurais,
mas se apresentam genéricas pelo sistema – fez-se necessária no
andamento da investigação.
Baseando-nos no histórico de trabalhos artísticos, acadêmicos
e de registros específicos acerca dos sujeitos caipiras e sertanejos,
notamos tensões entre tradição e contemporaneidade, que se

249

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apresentam visíveis na construção e desconstrução concomitante
de clichês. De acordo com nossos estudos para a produção do artigo
“‘Nestes versos tão singelos’ buscando uma cantoria reflexiva:
A representação do Jeca Tatu em contraste com a identidade cai-
pira e sertaneja” (RAMON; OLIVEIRA, 2019), concluímos que
em algumas obras artísticas da modernidade – visuais, literárias,
teatrais, cinematográficas, radiofônicas e teledramatúrgicas –
é explicitado um olhar estereotipado ou distante do convívio com
essas comunidades. Paradoxalmente, há também uma busca do
olhar “estrangeiro” pela aproximação e convivência com esses
sujeitos e seu ambiente. Dessa forma, compreendemos que,
tanto para analisar as obras modernas e contemporâneas acerca
do sertão quanto para criar outros objetos artísticos que envolvam
o mesmo tema, exige-se um olhar antropológico.
Algumas vezes, conceitos são construídos e técnicas são
desenvolvidas propiciando novas possibilidades do fazer cênico
em diálogo com os saberes populares. No que se refere aos auxí-
lios dos saberes populares, de uma imersão nas comunidades
tradicionais e nas realidades do seu cotidiano, a antropologia,
enquanto área de conhecimento, tem sido fundamental no acesso
e desenvolvimento de pesquisas etnográficas e autoetnográficas
no campo das artes cênicas.
Pensando especificamente nas artes, esses homens e mulheres
caipiras e sertanejos, bem como o lugar que habitam, compõem
historicamente obras artísticas, as quais demonstram o pro-
cesso de transformações dos pontos de vista sobre esses sujeitos.
Nos materiais levantados, encontramos os estereótipos e os arqué-
tipos acerca deles. Nesse aspecto, os sentidos de encenação,
atuação e dramaturgia necessitam de novas metodologias e proce-
dimentos de colaboração de seus respectivos processos criativos,
no que diz respeito ao tema aqui exposto.
Nas artes da cena, o trabalho com a imagem dessas figuras
deveria ser sensível, ouvindo efetivamente suas vozes e potenciali-
zando suas possíveis formas de visibilidade. Muitos são os trabalhos

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que vão desde a encenação de textos literários ou dramatúrgicos,
os quais retratam a temática caipira e sertaneja, até a investigação
da vivência e da relação com os lugares do cotidiano dessas comu-
nidades. Primeiramente, é importante salientar que essas consta-
tações estão relacionadas ao próprio caminho das artes cênicas,
que na contemporaneidade acessa outros campos de saberes que
colaboram nos processos de criação e pesquisa em arte.
Vale dizer que algumas das criações acerca do sertão não
partem de um texto dramático clássico, ou dito clássico, sobretudo
experimentam outras possibilidades de construção dramatúrgica.
Encontros com objetos, imagens, personalidades, pessoas,
ambientes, espaços, energias, entre outros, constituem formas de
organização de um texto cênico que pode estar inscrito na palavra,
mas também na corporalidade da atuação e na materialidade
da encenação; dando forma à tessitura cênica. Dessa maneira,
fica evidente que o textocentrismo não tem sido mais tão utilizado,
quando colocado em comparação com a cênica, a performativi-
dade e os caminhos contemporâneos do fazer teatral.
Essas colaborações se dão, em sua maioria, nos processos que
explicitamente encenarão determinada temática, o que faz com que
os artistas envolvidos em determinado trabalho mantenham o acesso
aos lugares relacionados ao tema cênico-dramático. Em alguns outros
casos, artistas-pesquisadores vivenciam práticas com determinados
grupos populares e propõem analogias entre o cotidiano desses e
as teatralidades, assim, podem produzir tanto saberes tradicionais
quanto contemporâneos. Em certa medida, aquilo que é tradicional
não é também contemporâneo?
Na presente pesquisa, visamos trabalhar com ambas as alterna-
tivas expostas: inspirar-nos por meio da convivência e do afeto com
os sujeitos caipiras e sertanejos na composição poética e estética
de uma criação cênica, bem como fazer do momento de convivência
o próprio processo de concepção dramatúrgica.
Como parte dessa práxis, compartilhamos o aprofundamento epis-
temológico, necessário nesse primeiro momento, como possibilidade

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de entendimento e ampliação das perspectivas acerca do objeto
de pesquisa. Esse aprofundamento epistemológico se constitui na
análise reflexiva acerca de obras referentes ao tema do projeto.
Entre os trabalhos acessados, citamos obras: literárias, que cons-
troem a imagem dos sujeitos rurais enquanto sertanejos e caipiras
em reflexão crítica com suas constantes transformações; históricas e
sociológicas, de autores que contextualizam essas comunidades;
acadêmicas, nas quais os pesquisadores pensam a representação
desses sujeitos na cena convencional (no teatro, no cinema e no audio-
visual). Também expomos como a identidade caipira e sertaneja está
presente nas manifestações populares.

A constituição do sertão e de seu sujeito

Com raízes etimológicas vindas do latim sertãnu, sertão sugere


sentido de “bosque” ou “afastamento”. O Novo Dicionário da
Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
(1975, p. 1.293), apresenta a palavra sertão enquanto

1.
Região agreste, distante das povoações ou terras
cultivadas. 2.Terreno coberto de mato, longe do litoral.
3.
Interior pouco povoado. 4.Bras. Zona pouco povoada
do interior do país, em especial do interior semiárido
da parte norte-ocidental, mais seca do que a caatinga,
onde a criação de gado prevalece sobre a agricultura,
e onde perduram tradições e costumes antigos.

Essas perspectivas são reflexos do contexto histórico-cultural de


construção da ideia de um ambiente sem perspectivas de subsistência,
induzindo aos estereótipos da fome e da morte (plantações, criações
de animais e os próprios moradores do ambiente). Esse sertão mítico,
ou estereotipado, transforma-se de acordo com o tempo, seja nas
construções ficcionais de seu uso, seja na relação geográfica a

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qual é constituída pelas intersecções com a história, sociologia,
economia e antropologia.
Em aula pública, intitulada “Sertões: Vivendo numa região ima-
ginada”, ministrada pelo Prof. Dr. Roberto Cunha Alves de Lima
(11 out. 2019 – informação verbal), realizada na Tenda Bacurau –
Em defesa da Educação Pública, na Universidade Federal de Goiás
(UFG), o docente refletiu sobre três dimensões possíveis do sertão,
a saber: o aspecto geográfico, dados os conceitos já apresentados
acima; o cultural, criado através da elevação e destituição cons-
tante do que é e não é sertão; e o imaginário, imagético ou mítico,
relacionado ao sertão lendário criado popularmente. No entanto,
de tantas contribuições compartilhadas pelo professor, o que fica
é a reflexão acerca do histórico uso da palavra sertão, que se des-
dobra não a um lugar fixo, mas ao lugar de passagem, que possui
raízes nas peregrinações, migrações e constantes movimentações
andarilhas. O sertão, nesse sentido, trata-se do deslocamento do
sujeito e a constituição de sua trajetória, num interstício entre um
lugar e outro, portanto, o local do caminho e não o do descanso.
Historicamente o termo era utilizado para indicar um local
distante das expedições coloniais do território brasileiro, o que
dava aos sujeitos que conseguiam morar nesses lugares o título
de sertanejo. A palavra sertanejo tem registro histórico datado de
1663 (HOUAISS, 2001, p. 2.558), e sugere o morador do interior,
naquela época, entendido como o espaço da própria selva.
Com as mudanças realizadas no território brasileiro, o termo
ganhou outras sugestões, como caipira ou caboclo, ou mesmo as
formas preconceituosas, como “mameluco”, “bugre” e “jeca”.
Essas expressões são frutos dos preconceitos estabele-
cidos contra as matrizes africanas e indígenas, ambas constitui-
doras da identidade brasileira junto de diversas outras etnias,
povos e sociedades. Isso fica evidente quando estudamos os
termos “mameluco”, “jeca” e “bugre”. “Mamelucos” eram os des-
cendentes dos indígenas que ganhavam o posto de capitães do
mato ou bandeirantes mestiços para serem tratados como servos

Inventários do sertão nas cenas moderna e contemporânea 253

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pelos portugueses durante a colonização. O objetivo imposto a
eles era o de chegar aos demais indígenas no intuito de levá-los
aos seus senhores para os escravizarem. Portanto, esses sujeitos
não ganhavam o título de capitães, formalmente, como os demais
que, quando brancos e com ascendência europeia, gozavam de
direitos explícitos. (SETUBAL, 2005, p.  13) Para os demais
indígenas, o termo “bugre” era o mais utilizado pelos europeus
durante o período de colonização. (NEPOMUCENO, 1999, p. 96)
Já o termo “jeca” ganhou forte influência após a publicação,
em 1918, da obra Urupês (1951), de Monteiro Lobato (1882-1948),
na qual a figura dos caipiras e sertanejos era ridicularizada por
meio da personagem Jeca Tatu. Esse nome estava ligado ao sen-
tido de ignorante e preguiçoso, tornando estes insultos carac-
terísticas quase estritas dos moradores do interior. Esse modo
de se referir a alguém continua em utilização na atualidade cada
vez que alguma pessoa não se insere num padrão específico,
por exemplo, quando não consegue seguir a moda ou tem difi-
culdade de interação com as novas tecnologias, como podemos
ver/ouvir na canção “Nóis é Jeca, mais é Jóia”, de Juraildes da
Cruz (2004): “Se farinha fosse americana, mandioca importada.
Banquete de bacana era farinhada”. Em diálogo com a contem-
poraneidade, o caipira da canção ressalta: “Mas já tô na internet.
Nóis é jeca mais nóis é jóia”. No entanto, ele também desabafa:

Andam falando que nóis é caipora


Que nóis tem que aprender ingleis
Que nóis tem que fazê sucesso fora
Deixe de bestaje, nóis nem sabe o portugueis.

Segundo Houaiss (2001), a palavra caipira data de 1872 e surge


com frequência no sudeste do Brasil, diminuindo o uso do termo
sertanejo que ganhou, mais tarde, maior utilização no nordeste.
É justamente nesse sentido que Darcy Ribeiro (1995) vai apresentar
o sertão como sendo expressão de duas regiões – atualmente

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centro-oeste, nordeste e sudeste. Por isso, ele organiza os mora-
dores dessas regiões como: sertanejos, referindo-se aos nordes-
tinos brasileiros; caipiras, aos habitantes da paulistana – regiões da
Província de São Paulo.
Nesse mesmo sentido, Antonio Candido (2010) apresenta a ideia
amparada pelo estudo histórico do país. O autor explicita, por meio
de um mapa, a divisão do território brasileiro em “áreas teóricas”,
sendo a área do jagunço o atual nordeste, e a do caipira, as atuais
regiões centro-oeste e sudeste. Dessa forma, na maioria das vezes,
o caipira e o sertanejo, em ambos os territórios, são os sujeitos apre-
sentados com o estereótipo do interiorano, ignorante, trabalhador de
serviços manuais pesados e com características desmerecedoras.
Trata-se do mesmo sujeito que participa do múltiplo grupo de for-
madores da cultura e da identidade brasileira. Assim, esse sujeito
transformou a realidade rural de muitos estados, propôs diversas
festividades e saberes populares e inaugurou tradições do país,
tornando-as próprias das regiões por onde passa.
Numa perspectiva histórica, Maria Setubal (2005) nos apresenta
caipira como o homem e a mulher do campo do sudeste brasileiro
– principalmente São Paulo e Minas Gerais. Eles migraram para as
regiões do centro-oeste, ainda não povoadas, chamadas sertão, e
lá construíram moradias, tradições e realidades. Tais sujeitos aca-
baram formando um jeito próprio de ser, viver e conviver, haja vista
os costumes acumulados historicamente e as novas relações que
teriam de criar na região recém-habitada, por exemplo, com o clima
e o espaço geográfico. Importante salientar que, no último século,
os estados do Mato Grosso e Goiás foram divididos, originando Mato
Grosso do Sul e Tocantins.
Historicamente os lugares do centro do Brasil eram dados como
não povoados por conta da divisão em capitanias, as quais superva-
lorizavam os territórios do atual sudeste por conta do ouro e do café.
O centro do território brasileiro, visto como sertão, ou seja, lugar seco
e desértico, não tinha muita importância, inicialmente, aos grandes
fazendeiros proprietários das faixas de terra. Com a nova divisão do

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Brasil em províncias, a partir de 1822, a capitania de São Paulo acabou
por cuidar das atuais regiões do centro-oeste inteiro, Minas Gerais e
alguns pontos do Paraná. Por conta disso, os moradores do atual inte-
rior paulista, os caipiras, almejaram novas alternativas de vida e come-
çaram a habitar mais fortemente essas regiões.
No nordeste, o termo sertanejo aparece com mais frequência,
seja pelo estigma dos sertões nordestinos – áreas geográficas com
seca e problemas sociais – ou mesmo pelas obras O Sertanejo
(2007), de José de Alencar (1829-1877), publicada em 1875, e,
mais tarde, em 1902, Os Sertões (1984), de Euclides da Cunha
(1866-1909). No decorrer das transformações de organização de
poder, as autoridades e os mais poderosos economicamente cons-
truíram aspectos grotescos ligados aos sujeitos do interior nordes-
tino, bem como naturalizaram, na maioria das vezes, os trabalhos
forçados dessas comunidades, sugerindo ser algo biológico tal
disposição. O Nordeste era inicialmente espaço dos poderes esta-
belecidos do, até então, Estado brasileiro, com a atual cidade de
Salvador, na época Baía de Todos os Santos, como capital do país,
de 1549 a 1763, durante o período colonial. Foi palco de guerras
contínuas organizadas pela luta por poder político e terras, podendo
ser citada a guerra de Canudos, que teve sua imagem remetida ao
mesmo sertão – seco, desértico e distante –, diferenciando apenas
na constante povoação do espaço, o que não ocorria com frequência
na região do centro do Brasil, atual centro-oeste.
Cabe aqui um parêntese pessoal e familiar, para dizer que o
bisavô do autor da presente pesquisa, Manoel Isidório de Aguiar
(1877-1941), foi um dos combatentes da guerra de Canudos.
Ele conseguiu fugir para o norte do país, onde morou no Pará,
Acre e Amazonas, local onde faleceu. Para tanto, há perspectivas
sobre a guerra que foram transmitidas aos parentes por meio da
oralidade e da tradição familiar, ao registrar memórias e detalhes
do sertanejo nordestino. Vislumbramos nessa história um tanto de
“sertão” na constituição da subjetivação do pesquisador, aspectos que
poderão ser aprofundados em futuros registros desta investigação.

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Entre tantos processos de idas e vindas, os moradores de ambos
os interiores do país (atuais sudeste e nordeste) concentraram-
-se em diversas outras regiões do território brasileiro, ficando evi-
dente a migração para a região centro-oeste. Seja inicialmente dada
pelas expedições bandeirantes, por volta de 1682, ou, mais tarde,
pela “Campanha Marcha para o Oeste”, criada por Getúlio Vargas
(1882-1954), em 1938, na qual incentivava a ocupação dos estados
do Centro-Oeste, Norte e o estado do Paraná, no Sul, como garantia de
emprego e melhor qualidade de vida que seria ofertada pelo governo.
O objetivo principal dessa campanha federal era o de descentralizar o
acúmulo populacional do país no Sudeste.
Percebe-se a construção de uma cultura caipira ou sertaneja nessa
determinada região, bem como ações que tentaram invisibilizar os cos-
tumes e tradições rurais. Várias das tradições construídas no ambiente
do campo foram incorporadas às cidades, dada a busca pela cons-
trução da identidade nacional, na qual o contexto urbano representava
o avanço e as relações neste espaço eram as mais adequadas para um
padrão de vida burguês dentro do sistema capitalista.
Tattiussa Martins (2006) aprofunda a perspectiva desses sujeitos
do campo, especificamente no estado de Goiás, que apresenta uma
realidade totalmente inserida no contexto do sertão, tanto geogra-
ficamente quanto culturalmente. Com dados e levantamentos his-
tóricos, a autora demonstra o objetivo da criação da nova capital do
estado como alternativa do governo de se desfazer da identidade e
cultura caipira e sertaneja do povo. Salientando o plano federal de
retirada da imagem rural do país como sinal de evolução econô-
mica e tecnológica. O governo goiano tinha um intuito político que
“atende a um projeto nacional que busca modernizar o sertão”,
que acabou não dando certo, pois “no caso goianiense, o vínculo
com o sertão era mais intenso do que com o urbano, visto que,
mesmo entre a elite as práticas sertanejas prevaleciam, quer por
gosto quer por falta de opção”. (MARTINS, 2006, p. 20, 103)
Para tanto, vivenciar uma práxis caipira e sertaneja, em diversos
espaços possíveis da região goiana, é a alternativa de investigação

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artística que propomos realizar e que já se apresenta em processo
no decorrer do registro deste trabalho. Mas, antes disso, como forma
de elaboração estratégica para o andamento da investigação,
consideramos importante um panorama histórico das relações desses
sujeitos com a cena e as teatralidades. Apresentamos dados refe-
rentes a esses campos específicos, refletidos e organizados através do
levantamento de referências e de contatos com alguns artistas citados
no decorrer das exposições. O intuito é perceber como o sertão é ence-
nado; como os atores interpretam os caipiras e sertanejos; e como
alguns sertanejos e caipiras são atores de si mesmos.

Sertão à contemporânea

Os personagens-tipo dos caipiras e sertanejos sempre fizeram


parte da cena teatral brasileira, ainda que a ideia da identidade
nacional influenciasse na tentativa do apagamento desses sujeitos,
até então habitantes do campo. Os trabalhos teatrais e cinema-
tográficos desenvolvidos com a atmosfera do sertão traziam em
sua representação a figura dos seus constituidores. Inicialmente,
exibiam fortes relações com os estereótipos, clichês e ima-
gens cristalizadas do cotidiano rural. Essas perspectivas, em sua
maioria, foram registradas e legitimadas historicamente na lite-
ratura e em obras das artes visuais. Citamos, entre tantas,
a já mencionada obra literária de Lobato (1951), com a perso-
nagem “Jeca Tatu”, e as visuais, de Almeida Júnior (1850-1899),
com “O Violeiro” (1898), e de Óscar Pereira da Silva (1867-1939),
com “Caipira Violeiro” (1918). Ambas as obras visuais sugerem
estampas-clichês da imagem do homem e da mulher do campo,
o que influenciou na reprodução desses pontos de vista.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do
século XX, destacaram-se algumas obras que figuram uma época
da dramaturgia em que os autores escreveram sobre o caipira

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e o sertanejo. Na maioria dos textos teatrais, o enredo era quase
sempre o mesmo: moradores do interior chegavam à cidade grande
e tinham problemáticas no processo de adaptação. Cássio Melo
(2007) lembra que as encenações com essa temática sempre bus-
caram trazer um tom cômico aos personagens, podendo ser através
de exageros na interpretação ou mesmo na elaboração dos figurinos
e indumentárias que chamassem a atenção dos espectadores.
Confirmando a constatação de que as temáticas caipiras e
sertanejas tomaram boa parte das produções teatrais do Brasil,
podemos notar que, do final do século XIX até a segunda década,
em São Paulo, pelo menos 35 peças com cunho regionalista
foram encenadas. Dentre essas obras, destacamos os autores:
França Júnior (1838-1890), com Festa do Divino ou Festa do Divino
em Arajá (final do século XIX); José Piza (datas desconhecidas),
com Os dois Jucas (1888) e em parceira com Arthur Azevedo
(1855-1908) escreveu O mambembe (1904); este último drama-
turgo, mais tarde, faria sucesso com a obra A Capital Federal (1897),
com diversas sessões no Rio de Janeiro; e Arlindo Leal (1871-
data desconhecida), com as peças Cena da roça e Flor do sertão,
ambas de 1917. (MELO, 2007) Cabe ressaltar que as peças ence-
nadas mexeram com o cotidiano de São Paulo e do Rio de Janeiro,
fazendo com que os teatros lotassem, vez que o público mostrou
“preferência pela comédia regional, a comédia popular com os ridí-
culos da nossa vida sertaneja, caipiras e violeiros, e este gênero
acabou, de novo por dominar os demais”. (MELO, 2007, p. 64)
Na contemporaneidade cênica, constatamos que o universo do
sertão ainda continua sendo temática de muitas obras, e dentro desse
mesmo universo, as possibilidades de composição apresentam-se
múltiplas. Podemos identificar peças que se estruturam pelo caráter
textual dramatúrgico por ponto de partida, como a do texto tea-
tral Agreste – Malva Rosa (2001), do dramaturgo brasileiro Newton
Moreno. (MASOTTI, 2016) A dramaturgia textual aborda questões
referentes ao conservadorismo do sertão nordestino e à existência
velada da homossexualidade nesse espaço, bem como apresenta a

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realidade do preconceito e da homofobia, justificada pelos intole-
rantes como ato contra o pecado ou a imoralidade. O texto incen-
tivou diversas montagens em diferentes lugares do país. Em 2004,
a Cia. Razões Inversas, em Campinas, montou a peça do texto
Agreste sob direção de Mário Aurélio, dando à companhia os prê-
mios SHELL e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA)
de melhor ator. (MASOTTI, 2016, p. 55)
Entre tantas montagens realizadas a partir da obra de Moreno,
citamos e refletimos em específico acerca de uma apresentação
realizada pelo grupo de estudantes de teatro da Faculdade de Artes
Dulcina de Moraes, em Brasília, assistida pelo pesquisador e autor
deste trabalho. O espetáculo, intitulado O Causo de Maria e Etevaldo,
com direção de Ricardo Cruccioli, ocorreu durante a programação
do XXVIII Congresso Nacional da Federação de Arte/Educadores
do Brasil (CONFAEB), no Teatro Plínio Marcos da Fundação Nacional
de Artes (FUNARTE), em 8 de novembro de 2018. Os alunos-atores,
num momento de debate pós-espetáculo, relataram que a mon-
tagem se deu de forma colaborativa e, no que se relacionava ao uni-
verso sertanejo, os envolvidos buscaram inspirações para além do
texto dramatúrgico, como em pesquisas imagéticas, fotográficas,
filmográficas e nas artes visuais.
Continuando a apresentar obras que se construíram nesse
mesmo aspecto, encontramos o musical Bem Sertanejo (2017),
idealizado pelo cantor sertanejo Michel Teló (2017), com o apoio
da indústria cultural na dinâmica de produção e estética drama-
túrgica. Essa obra apresenta referências históricas do desen-
volvimento da música caipira até à sertaneja, bem como possui
aparências análogas à peça A estrambótica aventura da música
caipira, de Carlos Alberto Soffredini (1939-2001). (BALISTA, 2018)
A montagem foi organizada de forma cronológica, ainda que sua
sinopse aponte outra perspectiva, e composta com a colaboração
de obras visuais consagradas relacionadas à temática sertaneja,
como as de Tarsila do Amaral (1886-1973). O texto traz discursos
que misturam entrevistas reais de personalidades da música

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sertaneja com falas ficcionais criadas para estas mesmas pessoas.
Seu desenvolvimento acontece por meio da colaboração lógica
entre letras de músicas conhecidas no mercado fonográfico ser-
tanejo, dos discursos de seus criadores e apreciadores, bem como
dos próprios sertanejos e caipiras que são as inspirações da obra.
Para esta pesquisa, foram assistidos trechos da peça, os quais
estão disponibilizados na internet. Da mesma forma, discursos e
entrevistas relacionados foram acessados pelo mesmo meio.
Para tanto, salientamos que o processo receptivo da obra,
aqui exposto, não parte do olhar de um espectador no teatro
convencional, mas de registros videográficos de uma obra teatral
que se deu num espaço convencional. (CENA MUSICAL, 2017)
Apontando uma outra perspectiva, na qual o processo cria-
tivo se dá através da “mimesis corpórea” (FERRACINI, 2004) e do
teatro antropológico (BARBA, 2010), citamos o espetáculo Café com
Queijo (1999), do LUME Teatro – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas
Teatrais da Unicamp. Esta obra foi composta através de vivências
dos atores que formavam seu elenco, com moradores do estado
de Tocantins. A dramaturgia desenvolveu-se distante dos requisitos
temporais aristotélicos, organizando-se através de recortes dos dis-
cursos, memórias e desabafos dos sujeitos das áreas rurais visitadas.
A técnica da “mimesis corpórea”, utilizada pelos atores no processo
composicional de personagens e criativo do espetáculo, organiza-se
como “uma linha de pesquisa que busca a observação, a imitação,
a codificação e a teatralização de ações físicas e vocais encontradas
no cotidiano, nas lendas e nos costumes do povo rústico do interior
do Brasil”. (FAVA apud FERRACINI, 2004, p. 291)
O título, Café com Queijo, sugere uma tradição culinária na qual os
atores do processo foram convidados a experimentar em algumas das
casas por onde passaram. Nelas, o café era servido misturado com o
queijo ralado dentro da caneca. A perspectiva de afeto, construída no
processo criativo entre atores-criadores e inspiradores-criadores do
processo, estabeleceu-se para além do momento espetacular. Após a
realização do espetáculo, os espectadores, junto dos profissionais

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do grupo, reúnem-se num momento de compartilhamento de ali-
mentos, de diálogos e apresentações de poesias, cantos ou cenas.
À esta ocasião, o grupo dá o nome de trueque, organizado pelo dis-
curso dos atores e demais profissionais como um encontro cultural
e festivo. Fica evidente que este encontro pós-espetáculo se origina
das trocas de afetos sentidas e observadas pelo elenco do grupo no
decorrer das visitações de comunidades tocantinenses.
A autora que assina este presente texto possui pesquisa especí-
fica voltada à investigação das atividades do LUME (OLIVEIRA, 2009),
possuindo, desta forma, uma forte relação com o método de trabalho
do grupo. No que se refere ao momento supracitado, trata-se de
experiências vivenciadas pelo pesquisador e autor deste trabalho,
que realizou conversas com o elenco e com a produtora do grupo
quando o espetáculo esteve em passagem pela cidade de Manaus,
em 17 e 18 de maio de 2018, através do Projeto Café com Queijo:
Brasis em um só Brasil. Observa-se trocas durante o trueque, a partir
de notações e fruições com o próprio espetáculo.
Destacamos também a obra Meu Seridó (2017), da Produtora
Casa de Zoé do Rio Grande do Norte. Em diálogo com o elenco dessa
obra, numa roda de conversa, em 11 de outubro de 2019, durante a
passagem do espetáculo pela cidade de Goiânia, o autor deste tra-
balho conseguiu notar, no discurso da atriz, que o seu desejo enquanto
artista da cena foi o ponto primordial para a construção do espetáculo.
Titina Medeiros buscava encenar nostalgias, memórias e reflexões
que suas origens sertanejas lhe provocavam e poderiam se mate-
rializar cenicamente. Seridó é uma faixa territorial que abrange
espaços do território dos estados do Rio Grande do Norte e da
Paraíba, envolvendo 54 municípios. A atriz Titina, idealizadora da obra
Meu Seridó, morou durante a infância e a adolescência nessa região.
A dramaturgia desse espetáculo foi composta por meio da
dinâmica de um processo em formato de folhetim (circunstancial),
organizado através da entrega de textos em pedaços durante
os ensaios. O espetáculo retrata um ambiente imaginário que
busca projetar um sertão para além do processo de colonização,

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trabalhando uma dramaturgia através da estética de um teatro
popular e do uso do termo Seridó.
Os espetáculos aqui citados fazem parte do teatro realizado no
Brasil no século XXI. Partindo desses quatro exemplos, notamos as
particularidades e especificidades de cada produção espetacular
presente na história das artes cênicas, bem como as singularidades
de cada criação nas apropriações acerca do sertão e dos sujeitos cai-
piras e sertanejos. Percebemos, também, distâncias, aproximações e
entre-lugares de complexidade no desenrolar das possibilidades
de atuações, interpretações, performações dos desejos dos artistas
cênicos que se dispuseram a encenar essas personagens.
Entre os séculos XIX e XX, os primeiros atores, intérpretes de cai-
piras e sertanejos, encenavam e trabalhavam com a comédia como
alternativa de composição das personagens. Eram guiados pelo texto
dramatúrgico que organizava o sentido cênico e, em sua maioria,
especializavam-se em atuar este determinado papel. Citamos,
por exemplo, João Augusto Soares Brandão (1844-1921), também
conhecido como “o Popularíssimo”, e Genésio Arruda (1889-1967);
ambos os atores fizeram dos personagens caipiras a sua própria car-
reira enquanto atores. “O Popularíssimo” investia tempo na dila-
tação corporal durante a interpretação, enquanto Arruda exagerava
na maquiagem cênica, buscando trazer bigodes e sardas no rosto.
Essas atitudes e preocupações eram artimanhas de composição e
de estética específicas das personagens que lhes eram confiadas.
(ALMEIDA, 2011) Organizavam-se “pelos aspectos piadísticos do Jeca,
que a personagem assumiria, também (e principalmente) no palco,
um tônus grotesco” (apud ALMEIDA, 2011, p. 91)
Na mesma época, de virada do século, surgiu o artista Cornélio
Pires (1884-1954), que se propôs a trazer a cultura caipira do inte-
rior e colocá-la no palco através de suas próprias interpretações,
seja em momentos como ator, humorista, palestrante-cômico
ou cantor. O artista, além de encenar, escreveu diversas obras,
como a Musa Caipira (1924), publicada em 1910, na qual buscou
retratar genuinamente os aspetos do homem e da mulher rural,

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desmistificando equívocos acumulados até aquela época. Mais tarde,
tornando-se produtor musical, foi o primeiro a conseguir fazer com
que a música caipira chegasse até a rádio e o mercado fonográfico,
transformando-a no sucesso da música sertaneja, hoje reconhe-
cida como sertaneja raiz. Por conta disso, Rosa Nepomuceno (1999)
entende a figura de Pires como um divisor no tempo da música cai-
pira. Já a respeito de sua influência em levar esta respectiva cultura
aos palcos, ela demonstra sua preocupação através do relato de um
episódio específico, no qual o artista

Montou caravanas de violeiros, cantadores e humoristas,


e percorreu muitos cantos do país, especialmente o interior
paulista,’ e que mesmo ‘apresentando-se em palcos nobres
ou nos picadeiros dos circos pobrezinhos dos vilarejos.
Não lhes faltavam plateias. (NEPOMUCENO, 1999, p. 101)

Diante do exemplo das ações de Pires (1924), que trouxe o


homem e a mulher rural ao palco, gostaríamos de traçar um para-
lelo entre a representação do caipira e do sertanejo em cena até
a sua presença real, com sua própria intervenção cênica nas obras
que o representavam. Ação esta que se deu por meio do incentivo
do próprio produtor musical Cornélio Pires (1924), que conseguiu
organizar objetivos éticos com os profissionais e alcançou bons
resultados econômicos a partir das obras lançadas referentes à cul-
tura caipira. Tais obras se desdobraram dentro do campo do teatro
tradicional, apresentado à italiana na caixa preta, com textos dra-
matúrgicos estabelecidos e demais convenções características dos
espetáculos textocêntricos.
No entanto, cabe ressaltar que foram as manifestações da iden-
tidade caipira – suas músicas, danças e demais atividades artís-
ticas – que fizeram com que, primeiramente, Pires (1924) buscasse
representar essas realidades em cena. Após não conseguir mais dar
conta dessa imitação, ele mesmo, como produtor, trouxe os pró-
prios realizadores das festas para compor a obra teatral. O objetivo

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dele foi realizar no palco aquilo que era rotina e cotidiano para
sertanejos e caipiras: roda de viola, cateretê, siriri, religiosidades,
devoções etc. (BALISTA, 2018)
Nessas mesmas dimensões, apresentaram os saberes e as prá-
ticas desses homens e dessas mulheres. Os aspectos do cotidiano
desses atores caipiras e sertanejos também foram abordados:
a perspectiva da cultura popular, as manifestações culturais e a arte.
Arte e vida entendidas não como coisas separadas, mas como ações
humanas imbricadas.

Vir a (ser)tão

Sobre a ideia de arte-vida no teatro, Constantin Stanislavski (1989),


por exemplo, apresentou pensamentos contínuos constatados
durante sua vida na arte, na qual o fazer artístico e a rotina se encon-
tram através do cotidiano, das ideologias, das crenças e demais rela-
ções humanas. Essa perspectiva fica mais sensível de ser percebida
pelo encenador russo, por conta de seu contato com algumas
culturas, as quais teve contato, sobretudo as orientais. Nesse sentido,
remetemo-nos a esse importante autor por entendermos que ele
elucida a busca por possibilidades cênicas pelas quais os artistas da
cena perseguem ou são perseguidos nos processos de criação. Aqui,
elencamos essa possibilidade de nos encontrarmos com nosso sertão
e abrirmos diálogos em camadas com as personagens-tipo, também
estudadas por Stanislavski (2002) nas figuras dos sertanejos e caipiras.
Nosso objeto encontra-se nesse lugar de passagem entre os
sujeitos moradores dos campos e das zonas rurais, atualmente,
também habitantes das cidades. O próprio êxodo rural foi um dos
colaboradores na extinção de vários grupos mantedores das tradi-
ções caipiras e sertanejas. No entanto, muitas obras artísticas foram
criadas e outras, refeitas, adaptando-se às urbanidades e mantendo
diálogo com as novas possibilidades de comunicação. É partindo

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dessa percepção que observamos as problemáticas contemporâneas
e traçamos alternativas viáveis de continuidades dessas tradições.
Tal como a identidade caipira e sertaneja se misturaram e se
adaptaram em meio ao contexto urbano, suas representações
também assim o fizeram, e quando não, deveriam fazer. Nossa pro-
posta nessa investigação é nos distanciarmos do preconceito arrai-
gado historicamente acerca desses sujeitos, tentando aproximarmo-
-nos afetuosamente desses homens e dessas mulheres, buscando
um diálogo afável. Propomos uma verticalização nas interações,
mas não para representar esses sujeitos. As escolhas deverão se
constituir no decorrer das experiências, das experimentações e da
práxis artística, que consequentemente, será realizada por meio de
reflexões que estão sendo e serão desenvolvidas no decorrer deste
processo investigativo.
Assim, salientamos a importância da vivência enquanto aspecto
dialógico na compreensão dessas dimensões do que era, do que
se tornou e do vir a ser o sertão. É preciso, portanto, experimentar
no/com sertão.
Identificar e reconhecer os vestígios do sertão e dos sertanejos
e caipiras em nossa própria corporalidade e em nossa constituição
enquanto sujeitos da cultura brasileira tem sido uma das investidas
dos artistas-pesquisadores autores deste trabalho.
Quando migrantes ou imigrantes saem em busca de um lugar
para constituir morada, eles não sabem exatamente o que encon-
trarão pelo caminho, que está sendo trilhado, tampouco conhecem
plenamente as estradas por onde vão passar e nem mesmo as per-
sonagens que irão encontrar. Nesse momento, somos dois errantes
na busca – da atuação e da direção – de nosso sertão. Portanto,
os lugares que darão o percurso desses caminhos não estão com-
pletamente definidos, pois, assim como a vida, em nossa arte preci-
samos lidar com o desconhecido da criação.
Dessa forma, continuamos percorrendo o caminho com um obje-
tivo, buscando uma práxis sensível e a compreensão de nossas
trajetórias. Contudo, temos em vista que mais importante do que o

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lugar no qual almejamos chegar é o percurso necessário a tracejar.
Como um boiadeiro errante (1945), vamos “tocando a boiada,
auê-uê-uê-ê boi, eu vou [nós vamos] cortando a estrada”.

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Inventários do sertão nas cenas moderna e contemporânea 269

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Apresentação dos autores

Sobre as organizadoras

Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira


Graduada em Licenciatura em Teatro, mestre em Artes Cênicas e
doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Professora associada III e Chefe do Departamento II da Faculdade de
Educação (FACED/UFBA), Professora Permanente do Doutorado Multi-
Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC)
e do mestrado profissional em Educação. Professora colaboradora do
curso de licenciatura em Teatro (UFBA), desenvolve projetos acadêmicos
buscando inter-relacionar as ações artística e educacionais oriundas do
envolvimento do processo de ensino-aprendizagem.

Maria Inês Corrêa Marques


Docente titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
Departamento de Educação II da Faculdade de Educação (Faced),
Vice-coordenadora do Doutorado Multi-Institucional Multidisciplinar
em Difusão do Conhecimento (DMMDC/UFBA). Graduada em História
pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), mestrado e douto-
rado pela UFBA, no campo do ensino de História e História da Educação
Superior, respectivamente. Realizou dois estágios de pós-doutora-
mento, o primeiro pela Universidade de Valladolid, Espanha, sobre
internacionalização da educação superior. Concluiu o segundo pós-
-doutorado pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), no campo
da pesquisa (auto)biográfica. Na graduação, atua no campo de Didática
para o ensino de História pela intervenção pedagógica e pesquisa
formação. Coordena o subprojeto História do Programa Residência
Pedagógica Capes da UFBA. Na pós-graduação, orienta e leciona temá-
ticas ligadas à difusão e gestão do conhecimento, metodologia da

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pesquisa em análise cognitiva, criatividade, metodologia projetual da
pesquisa e do ensino. É pesquisadora, líder do grupo de pesquisa Rede
Cooperativa de Pesquisa e Intervenção em (In)formação, Currículo
e Trabalho (Redpect); no qual e coordenou as linhas de pesquisa:
Cultura Economia Criatividade e Inovação e Memória, (Auto)biografia,
História e Interdisciplinaridades, campos em que continua pesqui-
sando e desenvolvendo projeto de internacionalização da UFBA
pelo Programa Capes Print. É assessora da Faculdade de Educação
para Assuntos Internacionais e para Assuntos de Direitos Humanos,
desenvolve projeto de intervenção pedagógica em escolas públicas
de Salvador por meio da Educação em Direitos Humanos.

Adriana Bittencourt Machado


Graduação em licenciatura em Dança pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA), especialização em Coreografia (UFBA), mestrado e
doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente, é associada IV UFBA.
Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Dança, atuando
principalmente nos seguintes temas: corpo, imagem, memória, erma-
nência, termodinâmica do não equilíbrio, sistemas comunicacionais/
complexos, semiótica, imagens e bio-políticas etc. Publicou o livro
Imagens como acontecimentos: dispositivos do corpo, dispositivos
da dança (Edufba, 2012). Nas funções de gestão, atuou como vice-
-chefe e chefe de departamento, vice-coordenadora e coordenadora
do Programa de Pós-Graduação em Dança e Vice-diretora da Escola
de Dança da UFBA. Pesquisadora, docente do Programa de Pós-
Graduação em Difusão de Conhecimento e (PPGDC) do Programa de
Pós-Graduação em Dança (PPGDANÇA).

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Sobre os autores

Adriano Marinho dos Santos


Graduado em Artes Cênicas/Teatro pela Universidade Federal de
Alagoas (UFAL) e em Tecnologia em Produção Cultural pelo Instituto
Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), especialista em Libras pela
Faculdade Educacional da Lapa (FAEL) e mestre em Artes Cênicas
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Iluminador
cênico. Cenotécnico da UFRN. Fundador do Centro Internacional
de Pesquisas Artísticas e Acadêmicas sobre Antonin Artaud. Pós­-
-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo
(USP), com bolsa pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes). Doutor em Artes Cênicas pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA), com bolsa pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).

Carlos Cézar Mascarenhas de Souza


Graduado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia do Recife
da Congregação de Santa Doroteia do Brasil. Mestre e doutor
em Teoria Literária no Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Fez pós-doutorado
no Centro de Pesquisas sobre Literatura e Sociopoética (CELIS), na
Université Clermont-Auvergne (UCA), em Clermont-Ferrand (França).
Atualmente, é professor do Departamento de Teatro (DTE) e do
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cinema (PPGCINE),
ambos na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde vem desenvol-
vendo pesquisas interdisciplinares sobre a questão da hospitalidade
a partir das relações entre dramaturgia, psicanálise, estética teatral e
cinematográfica.

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Carlos Eduardo Oliveira do Carmo
Professor da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Desenvolve pesquisa no Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar
em Difusão do Conhecimento (DMMDC). Mestre em Dança e graduado
em Artes Plásticas, ambos pela UFBA. Colíder no grupo de pesquisa
PORRA e também pesquisador no grupo de pesquisa Enlace. Diretor e
artista do Grupo X de Improvisação em Dança.

Cilene Nascimento Canda


Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGE) e doutora em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas (PPGAC) pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA). É poeta, atriz, ilustradora e arte-educadora. Atuou como
professora da Escola de Teatro da UFBA, na área de processos cria-
tivos em teatro, e na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB), no campo da arte e da infância. É pesquisadora da área de
educação e artes cênicas e tem artigos publicados em revistas e
eventos acadêmicos. É integrante do Coletivo Canduras e Artes, que
atua na promoção de ações diversas no campo da cultura. Atualmente,
é professora da Faculdade de Educação (Faced) da UFBA e pesqui-
sadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Didática e
Ludicidade (Gepel).

Diogo Ramon da Silva Costa


Ator e professor de Artes Cênicas. Mestre em Artes da Cena pela
Universidade Federal de Goiás (UFG) e licenciado em Teatro pela
Universidade do Estado do Amazonas (UEA). É integrante do
Laboratório de Montagem Teatral e Teatro Educação (LabMonTe), do
Laboratório de Criação de Figurinos, Acervo de Indumentárias e Ateliê
de Costura (LabCriaa), ambos da Escola de Música e Artes Cênicas
(EMAC/UFG); e do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em Artes
da Cena (Lapiac) da Faculdade de Educação Física e Dança (FEFD/
UFG). Como associado da Federação de Arte/Educadores do Brasil

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(FAEB), já representou a região Norte do país em apresentações e
eventos nacionais e na organização de regionais. Suas produções artís-
ticas e pedagógicas organizam-se nos seguintes eixos: interpretação,
atuação e improvisação teatral, pedagogia do ator e da atriz, sistema
Stanislavski, processos criativos, cultura popular e ensino de arte.

Fátima Campos Daltro de Castro


Professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), com pós-doutorado pela Midlesex University, Londres, e pela
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona, Espanha.
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestra em Artes Cênicas, especia-
lista em Coreografia e licenciada em Dança, todos pela UFBA. Lidera
o grupo de pesquisa Poética da Diferença e é diretora artística, coreó-
grafa e dançarina do Grupo X de Improvisação em Dança.

Felipe Henrique Monteiro Oliveira


Pós-doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
da Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Artes Cênicas pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Performer. Fundador do Centro
Internacional de Pesquisas Artísticas e Acadêmicas sobre Antonin
Artaud.

George Mascarenhas
Professor adjunto na Escola de Teatro da Universidade Federal
da Bahia (UFBA), integra o corpo docente permanente do
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UFBA
e do Programa de Mestrado Profissional em Artes (PROFARTES).
Ator e diretor teatral. Doutor em Artes Cênicas e mestre em Artes
pela UFBA, formado em Mímica Corporal Dramática pela École de
Mime Corporel Dramatique (Londres), Licence em Estudos Teatrais
pela Université de la Sorbonne-Nouvelle, Paris III. Pesquisador de
processos criativos a partir da mímica corporal dramática de Etienne

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Decroux, do teatro físico e de estudos de dramaturgia. Editor-chefe da
Revista Repertório, do PPGAC/UFBA. Ator, diretor teatral e diretor artís-
tico da Mimus Companhia de Teatro e coordenador da Revista Mimus,
publicação on-line gratuita de mímica e teatro físico. Membro da World
Mime Organization (WMO), organização sem fins lucrativos e parceira
oficial do International Theatre Institute (ITI).

Geraldo Rui Almeida Cunha


Advogado, professor, artista-ator, especialista em Administração
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Direito pelo
Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UFBA. Fundador
do Centro Internacional de Pesquisas Artísticas e Acadêmicas sobre
Antonin Artaud. Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade
de São Paulo (USP), com bolsa pela Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes). Doutor em Artes Cênicas pela
UFBA, com bolsa pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da
Bahia (Fapesb).

Hélio José Santos Maia


Doutor em Educação no eixo de pesquisa Ensino de Ciências. É pro-
fessor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília
(UnB), no Departamento de Métodos e Técnicas (MTC), docente do
Programa de Pós-Graduação em Educação na Modalidade Profissional
(PPGEMP/UnB).

Jéssica de Lima Torreão Cerejeira


Mestranda em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas (PPGARC) da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Graduada em Design de Moda pela Universidade
Potiguar e em Artes Visuais Licenciatura pela UFRN. Tem formação
em Vestuário Nível Técnico pelo Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (Senai) Clóvis Motta, do Rio Grande do Norte, e em Estilista

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de Confecção do Vestuário, na mesma instituição. Tem experiência
na área de artes visuais, teatro, instaurações cênicas, performance,
figurinos, desenvolvimento/planejamento e confecção de coleções de
moda, comunicação e moda, criação de figurinos para teatro, dança,
shows e produções audiovisuais. Estuda a obra de Antonin Artaud,
Pedro Almodóvar, Frida Khalo e pesquisa as relações entre arte, lou-
cura e moda. É designer da marca de moda autoral Cerejeira Lab.

Lela Queiroz
Pesquisadora na área de dança, performer, bailarina e coreógrafa com
graduação em Língua, Literatura Inglesa e Tradução e licenciatura em
Línguas Estrangeiras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Mestra pelo Programa em Comunicação e Semiótica da PUC-
-SP, códigos intersemióticos, e doutora em Artes pelo Programa de Pós-
-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, tecnologias da
informação em signos e significações das mídias. Educadora Somática
do Movimento com especialização pelo Programa Certificado em
Educação Somática pela School for the Body Mind Centering (SBMC),
Massachusetts, EUA.

LetÍcia Mendes de Oliveira


Conhecida artisticamente como Letícia Andrade (sobrenome materno),
é atriz, dramaturga e diretora. Atualmente, é professora efetiva do
Departamento de Artes (Deart) e do Instituto de Filosofia, Arte e
Cultura (IFAC) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), na área
de teoria da encenação e iluminação. De 2013 a 2016, foi professora
de Práticas Cênicas, Iluminação e Teoria Teatral do curso de licen-
ciatura em Teatro da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutora
em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade
Federal de Minas Gerias (UFMG), com a tese O papel do espectador
nas dramaturgias contemporâneas brasileiras, orientada pelo dr.
Antonio Hildebrando. Mestra em Teoria da Literatura pelo Programa
de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG, com a disser-
tação intitulada Instantâneos: o conto mínimo e a cena teatral em

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Fernando Bonassi, orientada pelo dr. Luis Alberto Brandão. Formada
no curso de formação de atores Teatro Universitário da UFMG. Foi pro-
fessora de Teoria do Teatro e Dramaturgia do Deart/UFOP entre os
anos de 2009 e 2011 e orientadora de dramaturgia do curso profis-
sionalizante de Teatro da Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes
de Belo Horizonte entre 2006 e 2010. Possui ampla experiência em
composição dramatúrgica para grupos de teatro, com mais de 17
textos teatrais compostos em Belo Horizonte, Ouro Preto e Ribeirão
Preto: Estamos trabalhando para você, Medeiazonamorta, Cara preta,
Arriscamundo, Prato do dia e Ondas de onde parto. Atuou como atriz
em 24 espetáculos em 23 anos de carreira teatral. Concentra seu
foco de estudos e pesquisas nas áreas de encenação, dramaturgia e
visualidades. Investe na composição de espetáculos de autorias com-
partilhadas nas linguagens fragmentárias e performativas entre texto
e cena e na investigação da ação do espectador como um elemento
ativo em processos criativos contemporâneos. Atualmente, desen-
volve pesquisa sobre o teatro performativo, visualidades, tecnologias
da cena e história das diretoras brasileiras. Em 2016, dirigiu Res[sus]
citações e outras formas de sangue, com o grupo Midiactors, e realizou
também a composição do figurino e a iluminação. Coordenou o projeto
“Lumiar de aulas virtuais de iluminação teatral” e o grupo de pesquisa
Midiactors, da UFOP. Em 2018, dirigiu e escreveu Ela veio para ficar,
com o Midiactors, apresentado no Festival de Inverno de Ouro Preto e
Mariana. Em 2019, escreveu duas dramaturgias: Amazônia em cinzas,
solo de Tiago Gambogi, e Mulher que bufa, solo de Joyce Malta.

Luciana Gomes Ribeiro


Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com
investigação nas interfaces entre a história e a dança a partir da cons-
tituição da prática artística de dança na cidade de Goiânia. Mestra em
Pedagogia do Movimento/Educação Física pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), com pesquisa em dança e processos de
criação. Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de Goiás (IFG), campus Aparecida de Goiânia, e de Artes, licenciatura

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em Dança, ministrando as disciplinas História da Dança e do Corpo
I e II, Estudos de Caso I: Dança e Sociedade, Estudos de Caso III:
Dança e Mundo do Trabalho e Estágios III e IV – Ensino Fundamental e
Médio. Membro do Núcleo Docente Estruturante do curso de licencia-
tura em Dança. Vice-líder do grupo de pesquisa InComum. Autora do
livro Breves danças à margem: explosões estéticas de dança na década
de 1980 na cidade de Goiânia (2019).

Nara Salles
Graduada em Artes Plásticas pela Universidade para o Desenvolvimento
de Santa Catarina (Udesc) e em Teatro pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), mestra em Antropologia pela UFPE e doutora em
Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Artista e psi-
canalista. Professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), do
mestrado em Artes Cênicas e do mestrado Profissional em Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Coordenadora
do grupo de pesquisa Processos de Criação: Arte e Loucura. Pesquisa
processos criativos, instauração cênica, Antonin Artaud.

Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira


Diretora teatral, atriz e professora da Universidade Federal de Goiás
(UFG), na Escola de Música e Artes Cênicas (EMAC). É doutora em
Educação pela UFG, mestra em Artes pela Universidade de Brasília
(UnB) e bacharela em Artes Cênicas – Interpretação Teatral pela
UnB. Atualmente, ministra aulas nos cursos de graduação em Teatro,
Direção de Arte e mestrado em Artes da Cena. Está envolvida com os
campos da cultura, das artes e da educação, trabalhando com edu-
cação corporal, teatro e infância, performances e intervenções em
espaços urbanos e processos de montagem de espetáculos com
ênfase na criação coletiva e na investigação das interações artísticas.
Também é coordenadora do Laboratório de Criação de Figurinos,
Acervo de Indumentárias e Ateliê de Costura (LabCriaa) na EMAC/UFG.
Integrou diversos elencos de importantes produções de Goiânia e de
Brasília: como atriz, em Contos de alcova (2007), O rei da vela (2005),

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Iago (2004) e Êta Goiás 2 (2000); e dirigiu algumas obras, das quais
destacam-se O abajur lilás (2017), premiado com a Lei Municipal de
Incentivo à Cultura de Goiânia, A contrapelo (2016), Antígo na cidade
(2014) e Cata(dores) recicláveis (2013), contemplado com o Prêmio de
Teatro Myriam Muniz 2012, entre outras obras.

Paulo Henrique Alcântara


Professor doutor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), onde também está ligado ao Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas (PPGAC). Integra o grupo de pesquisa Dramatis. Ministra
componentes de Dramaturgia e Análise de Texto, cujas interfaces com
o cinema são temas de suas pesquisas e publicações na área. Algumas
de suas peças encenadas foram lançadas em livros, como Lábios que
beijei (1998), Bolero (2000) e Partiste (2010), com a qual recebeu o
seu segundo prêmio Braskem de teatro na categoria texto. Em 2017,
Sublime é a noite, também de sua autoria, foi montada com uma turma
de concluintes do curso de Interpretação.

Valéria Maria Chaves de Figueiredo


Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), mestra em Artes pelo Instituto de
Artes da Unicamp, licenciada em Educação Física pela Universidade
Gama Filho, Rio de Janeiro, e formação técnica em Dança e Educação
Somática pela atual Faculdade Angel Viana, Rio de Janeiro. É profes-
sora associada da Universidade Federal de Goiás (UFG); membro-fun-
dadora do Fórum Goiano de Dança; editora setorial da Revista Pensar
a Prática, ligada à Faculdade de Educação Física e Dança (FEFD/UFG).
Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em Artes da
Cena (Lapiac). Coordena os estágios curriculares obrigatórios. Atua
nos cursos de licenciatura em Dança e Teatro da UFG. Pesquisas na
área de corpo, arte e educação, processos interartísticos, processos
educativos e processos de criação e na área de história e memória.

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Formato: 17 x 24 cm
Fontes: IBM Plex Sans, Roboto Slab
Miolo: Papel Off-Set 75 g/m2
Capa: Cartão Supremo 300 g/m2
Impressão:
Tiragem:

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