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A CONSTRUÇÃO

DA DOCÊNCIA
A Residência Pedagógica em Artes na
Universidade Federal de Ouro Preto (2020-2022)

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Conselho Editorial Autografia

Adriene Baron Tacla


Doutora em Arqueologia pela Universidade de Oxford;
Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.

Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva


Doutora em História Social pela UFF;
Professora Adjunta de História do Brasil do DCH e do PPGHS da UERJ/FFP.

Daniel Chaves
Pesquisador do Círculo de Pesquisas do Tempo Presente/CPTP;
Pesquisador do Observatório das Fronteiras do Platô das Guianas/OBFRON;
Professor do Mestrado em Desenvolvimento Regional – PPGMDR/Unifap.

Deivy Ferreira Carneiro


Professor do Instituto de História e do PPGHI da UFU;
Pós-doutor pela Université Paris I – Panthéon Sorbonne.

Elias Rocha Gonçalves


Professor/Pesquisador da SEEDUC/RJ.

Elione Guimarães
Professora e pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora.

Rivail Rolim
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História-UEM-PR.

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organização

E rnesto V alença
G uilherme P aoliello
G iovany de O liveira S ilva
S amir A ntunes
E rika C urtiss dos S antos

A CONSTRUÇÃO
DA DOCÊNCIA
A Residência Pedagógica em Artes na
Universidade Federal de Ouro Preto (2020-2022)

Rio de Janeiro, 2022

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A construção da docência: A Residência Pedagógica em Artes
na Universidade Federal de Ouro Preto (2020-2022)
valença, Ernesto (org.)
paoliello, Guilherme (org.)
silva, Giovany de Oliveira (org.)
antunes, Samir (org.)
santos, Erika Curtiss dos (org.)

isbn: 978-85-518-4701-5
1ª edição, outubro de 2022.

capa e editoração eletrônica: Fernando Zanardo

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
rio de janeiro, rj – cep: 20090-050
www.autografia.com.br

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.

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SUMÁRIO

O Subprojeto de Artes do Programa de Residência


Pedagógica da Universidade Federal de Ouro Preto�����11
Ernesto Valença
Guilherme Paoliello

I – REFLEXÕES

Uma experiência interdisciplinar de formação


de professores: o Subprojeto de Artes do Programa
de Residência Pedagógica da UFOP ��������������������������������������33
Dieiny Kelly Gonçalves Braz dos Santos
Laura de Figueiredo Impellizieri Ribeiro
Gabriela Sánchez Leão de Oliveira Araújo

Desafios da Docência Polivalente em Artes����������������������45


Marco Túlio de Paula
Victor de Jesus Ferreira

Os desafios iniciais da adaptação ao ensino remoto:


pontos e contrapontos ������������������������������������������������������������55
Hiago Aparecido dos Reis Fernandes
Luisa Doné Totini Espagnolo

Interação e introspecção dos residentes em reuniões


remotas do Programa de Residência Pedagógica ������������64
Adélia Cristina Júlio Benedito
Maria Eduarda Costa Pereira

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A quem serve uma Base Nacional Comum Curricular?
Uma leitura da BNCC e sua relação com a
Reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/2017) ������������������������71
Letícia Pavão Schinelo

II – ENCONTROS

Relações étnicas e raciais na escola ����������������������������������97


Luana Tolentino
Marcelo Donizete

Escola Sem Partido e militarização das escolas������������106


Ramuth Marinho
Analise da Silva

Qual é o partido da farda? Reflexões sobre o


Escola Sem Partido e o Programa de Escolas
Cívico-Militares ����������������������������������������������������������������������126
Isabela Freiria Yeda Macedo
Pedro Gaban Petindá Moreira

Questões LGBTQIAP+ e a educação ������������������������������������154


Fredda Amorim
Giovany de Oliveira Silva

Afeto e educação: comunidade LGBTQIAP+


e o Corpo-Encruzilhada no espaço escolar ��������������������171
B Campos
Caroline Silva de Paula

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III – O CHÃO DA ESCOLA

Sobre uma formação docente: questionamentos


e estratégias de ensino para arte-educadores���������������185
Samir Antunes

Preceptoria na Escola Estadual Dom Pedro II:


desafios e possibilidades no ensino remoto ��������������������207
Matheus Felipe Marques Pessôa
Isabela Cristina Resende Silva

Tu e eu docentes, todes nós aprendizes:


considerações de percurso de um fessô da
Escola Estadual José Leandro����������������������������������������������226
Giovany de Oliveira Silva

Sobre os organizadores e a organizadora


deste livro����������������������������������������������������������������������������������246

Participaram do Subprojeto Artes do Programa de


Residência Pedagógica/Capes da Universidade Federal
de Ouro Preto (2020-2022)������������������������������������������������������249

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O SUBPROJETO DE ARTES DO PROGRAMA
DE RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
Ernesto Valença
Guilherme Paoliello

Habitar um recinto é mais do que estar nele, é


crescer com ele, é dar significação à casca-ovo.
(Hélio Oiticica)

Quando, em 15 de janeiro de 2020, um grupo de professores dos


departamentos de Música e de Artes Cênicas da Universidade
Federal de Ouro Preto foi convocado pela Pró-Reitoria de Gra-
duação a integrar a equipe que implementaria os programas de
Residência Pedagógica e PIBID, financiados pela CAPES, a edu-
cação pública brasileira enfrentava uma das crises mais agudas de
sua história. Os severos cortes orçamentários, a perda de direitos
e conquistas das classes trabalhadoras e o assalto ao orçamento
da União imposto pelo Parlamento às políticas sociais de distri-
buição de renda através do teto de gastos ajudavam a compor um
quadro – ainda em marcha – de adesão radical do governo bra-
sileiro a um projeto neoliberal. Tal quadro era conformado tanto
pela constante hostilidade do discurso oficial à educação pública,
como por políticas efetivas cujo objetivo evidente é o desmonte

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daquilo que representou uma série de avanços construídos durante
governos anteriores.
Não obstante as incertezas daquele contexto, foi possível tomar
uma série de decisões a respeito do perfil e das áreas dos subproje-
tos que constituíram o Programa de Residência Pedagógica (PRP)
na UFOP. Assim, o programa seria composto pelas seguintes áreas:
Alfabetização (anos iniciais), Alfabetização (EJA), Matemática,
interdisciplinar de Química, Física e Biologia, Educação Física,
Letras (língua inglesa e portuguesa), História e Artes.
Embora o subprojeto de Artes não fosse caracterizado como
interdisciplinar, decidiu-se pela formação de um grupo misto,
constituído por duas licenciaturas, Música e Artes Cênicas, com 2
coordenadores e 24 estudantes residentes, distribuídos igualmente
entre essas duas licenciaturas. Num momento posterior, quando
da seleção, pudemos contar com três preceptores egressos dos cur-
sos de licenciatura da UFOP, sendo dois de Artes Cênicas e uma
de Música. Na prática lidaríamos com um grupo interdisciplinar,
vide as diferenças não apenas entre os processos de formação de
professores nessas áreas como as especificidades inerentes a cada
uma dessas duas linguagens artísticas. Ao contrário do desestí-
mulo proporcionado pela conjuntura de precarização da educação
pública, esse era um desafio estimulante, ao qual os integrantes do
subprojeto se sentiriam motivados a enfrentar.
Entretanto, as indefinições das políticas orçamentárias do
Ministério da Educação acabaram por retardar a implementação
e as ações iniciais do PRP, que só puderam ser iniciadas em outu-
bro de 2020. Nesse ínterim, somou-se à sensação de instabilidade
institucional vivida no país o início da pandemia do Covid-19.

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Essa circunstância que alterou profundamente as relações inter-
pessoais, obrigou a um replanejamento das ações do programa a
ser implementado. Além de toda a instabilidade num contexto
político já regressivo, somavam-se as incertezas quanto aos desdo-
bramentos de uma pandemia que “nos atravessa em meio a uma
crise econômica e a uma divisão social organizada pela gramática
paranoica da produção de inimigos, da autopurificação e do higie-
nismo anticorrupção” (DUNKER, 2020, p. 8). Haveria, e quando,
uma vacina? Qual a perspectiva de retomada de algum grau de
normalidade no cotidiano?
Desse modo, o PRP – UFOP teve início num contexto geral de
insegurança e de contradições. A própria escolha das escolas-campo
obedecia a um critério que buscava diversificar a experiência dos
residentes: A Escola Municipal Professora Juventina Drummond,
localizada no Morro Santana, em Ouro Preto; a Escola Estadual
Dom Pedro II, localizada no centro histórico de Ouro Preto e a
Escola Estadual José Leandro, localizada no distrito de Santa Rita
de Ouro Preto. Se esse critério espacial foi comprometido pela
impossibilidade de mobilidade, a distribuição temporal das ati-
vidades também precisou ser repensada. O PRP fora planejado
inicialmente para cumprir três módulos de 6 meses, tendo cada
módulo uma duração de 138 horas assim distribuídas: 86 horas
para preparação da equipe, 12 horas para elaboração de planos de
aula e 40 horas de regência. Assim, o maior desafio inicial parecia
ser a participação direta dos residentes nas escolas-campo como
professores regentes, juntamente com os preceptores.
Mas se pensarmos na carga metafórica do termo “residência”
alguns outros sentidos e direções podem emergir. Para além da

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regência conforme geralmente se pratica nos estágios supervisio-
nados, colocava-se em jogo a ideia de residir, morar, permanecer,
conviver. O conceito de Residência, artística ou pedagógica, como
espaço e ambiente de formação ou de criação artística, implica
algumas características específicas. Tem a ver com a experiência
compartilhada de permanecer e demorar num determinado lugar
(pessoas habitando uma mesma casa).
No entanto, antes de habitar uma residência, estar nela, crescer
com ela, é necessário planejá-la, projetar suas dimensões, medir suas
partes, definir suas funções. Depois, encontrar quem deseja estar ali,
compartilhar seus espaços e seus limites. Só então pensar nas for-
mas de aproveitar esses lugares, presenças, essa lenta descoberta do
que, afinal, podem fazer ali. Ainda depois, conhecer as perguntas, as
dúvidas e as angústias de quem ali permanece. Esse espaço projetado,
agora habitado, se torna também tempo, duração, permanência.
Quanto mais nele se demora mais ele expande.
Nossa casa, o subprojeto de artes do Programa de Residência
Pedagógica Artes/UFOP, estava bagunçada, muito bagunçada,
assim que nós, habitantes, pusemos os “pés” nela pela primeira
vez. O primeiro módulo do programa, definido para ocorrer entre
outubro de 2020 a março de 2021, foi inicialmente marcado por
incertezas e inseguranças. A Universidade Federal de Ouro Preto
tinha suas atividades suspensas em virtude da pandemia, a exemplo
de praticamente todas as Instituições de Ensino Superior do país.
Não havia uma recomendação ou normativa oficial do Ministério
da Educação sobre como agir naquele contexto, de maneira que
cada instituição precisou repensar suas formas de contato com os
alunos. A UFOP então decidiu por um “Período Letivo Especial”,

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com a reformulação geral das disciplinas do semestre, que passaram
a ser ofertadas totalmente por meio virtual em videoconferências, a
título experimental e com uma série de particularidades: a matrícula
não era obrigatória e não era exigido que os estudantes assistissem
às aulas de modo síncrono, estas sendo gravadas e disponibiliza-
das posteriormente.
Foi em meio a essa situação que o PRP-Artes precisou arrumar
a casa. Nossos encontros foram então transferidos para a mesma
plataforma utilizada pela UFOP nas aulas do Período Letivo
Especial, que prosseguiu por toda a pandemia. Mas esta era ape-
nas a antessala da casa. O cômodo principal estava ainda mais
desordenado: as escolas selecionadas por edital para integrarem
o PRP, citadas acima, também estavam com as aulas suspensas e,
no caso delas, acumulavam-se dificuldades materiais das insti-
tuições e dos professores (dificuldades de acesso à internet, com-
putadores adequados etc.) e dos próprios estudantes das escolas
(alguns deles muito jovens e em condições sociais, muitas vezes,
precárias). Tínhamos a certeza de que, nessas condições, não seria
possível realizar as atividades conforme previamente idealizadas,
todas baseadas no princípio do convívio direto com as escolas e
os preceptores.
A solução encontrada foi dupla: por um lado, os residentes se
reuniriam com os professores preceptores e acompanhariam as
atividades que estivessem realizando em casa, seja ela qual situação
fosse – acompanhamento dos alunos por meio de e-mail e What-
sApp, elaboração de aulas. Por outro lado, realizaríamos atividades
gerais de estudo e discussão de textos, contando com a participação
de todos os residentes e preceptores.

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O PRIMEIRO MÓDULO: ESTUDOS,
DISCUSSÕES E CRESCIMENTO
O primeiro módulo deu início à estratégia traçada. Para isso,
decidimos estabelecer três momentos de leitura e discussão de
textos previamente acordados: um período de introdução, onde
foram lidos e debatidos os textos “Sobre a lição”, de Jorge Larrosa;
“Educação após Auschwitz”, de Theodor Adorno e “Estágio: dife-
rentes concepções”, de Selma Pimenta e Maria Socorro Lima. O
segundo período foi dedicado ao estudo da Base Nacional Comum
Curricular – BNCC. Finalmente, no terceiro período, nos apro-
fundamos no livro “Documentos de Identidade”, de Tomaz Tadeu
da Silva.
O período introdutório foi essencial para o estabelecimento
das dinâmicas dos encontros virtuais, do nível de dedicação que
cada um teria com o projeto e do tipo de reflexão que faríamos
nos encontros gerais. O texto de Larrosa foi particularmente
importante para esses objetivos. Afinal, para um período de
isolamento e aulas virtuais, nada melhor que começar com uma
reflexão sobre o ato de leitura como um jogo de aprendizagem.
Nas palavras do autor:

O que se trata aqui é de propor a experiência da leitura em comum


como um dos jogos possíveis do ensinar e do aprender. E, simulta-
neamente, estabelecer o que tem a ver esse jogo com a experiência
da liberdade, com essa curiosa relação de alguém consigo mesmo, à
qual chamamos de liberdade, e com a experiência da amizade, com
essa curiosa forma de comunhão com os outros que chamamos de
amizade (LARROSA, 1999, p. 139).

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Nossa intenção era exatamente a de estabelecer uma dinâmica
de leituras em que a liberdade de participação combinasse com o
compromisso, a responsabilidade em relação ao aprender e a refle-
xão a respeito do que seja tornar-se professora ou professor. Nesse
sentido, o texto de Larrosa causou forte impressão em todos os
participantes, sendo revisitado no decorrer de vários encontros pos-
teriores, de forma a que a lição do autor foi sendo compreendida e
pouco a pouco reformulada, como um ensinamento de longo prazo.
Já o texto de Theodor Adorno provocou uma reflexão sobre
o papel mais amplo que a educação deve ter. Segundo este texto,
“a exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas
para a educação” (ADORNO, 2012, p. 119), de modo que

Isto não pode ser minimizado por nenhuma pessoa viva como sendo
um fenômeno superficial, como sendo uma aberração no curso da
história, que não importa, em face da tendência dominante do pro-
gresso, do esclarecimento, do humanismo supostamente crescente.
O simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma
tendência social imperativa (ADORNO, 2012, p. 120).

Esse forte alerta de que o princípio geral da educação deveria


ser a não repetição da barbárie decorrida do avanço do nazifas-
cismo na Europa se desdobrou em importante reflexão sobre qual
seria o papel fundamental da educação no Brasil atual. No mesmo
sentido apontado por Adorno: quais aspectos da barbárie a educa-
ção brasileira deveria enfrentar a fim de não permitir uma regres-
são civilizatória? Quais aspectos regressivos sobrevivem no seio
da sociedade brasileira atual a ponto de que haja uma prioridade

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de enfrentamento pela educação? Nosso racismo estrutural? A
violência cotidiana contra grupos minoritários, sub-representa-
dos politicamente? Os horrores recalcados da ditadura perpetrada
pelo golpe civil-militar de 1964? Perguntas pertinentes a partir da
perspectiva do próprio texto de Adorno, segundo o qual “amanhã
pode ser a vez de um outro grupo que não os judeus, por exem-
plo os idosos [...] ou simplesmente alguns grupos divergentes”
(ADORNO, 2012, p. 136).
A partir do alerta de Theodor Adorno, o texto de Pimenta e
Garrido (2017) nos levou a pensar como o papel dos professo-
res no contexto mais geral da educação brasileira já deve estar
presente nos processos de formação docente. Assim, a identidade
docente, o modo como o professor se vê e vê sua atuação profis-
sional nesse contexto deveria já ser objeto de discussão no estágio
supervisionado, conforme praticado nas licenciaturas. Com base
nessas premissas, realizamos discussões sobre como o PRP poderia
se constituir em espaço de formação docente no qual o modelo
tradicional de estágio, baseado na dicotomia observação/regên-
cia, tenderia a ser substituído por uma prática enriquecida por
instrumentos e métodos de pesquisa sobre o que é ser educadora
e educador. Nesse sentido, Paulo Freire já apontava que,

na formação permanente dos professores, o momento fundamental


é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a
prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática.
O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser
de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. O seu
“distanciamento” epistemológico da prática enquanto objeto de sua

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análise, deve dela “aproximá-lo” ao máximo. Quanto melhor faça esta
operação tanto mais inteligência ganha da prática em análise e maior
comunicabilidade exerce em torno da superação da ingenuidade pela
rigorosidade (FREIRE, 1998, p. 43-4).

Ou seja, trata-se da formação de uma identidade profissional


que exercita permanentemente a crítica da própria prática e cuja
prática estimula a reflexão. Uma formação que pressupõe o ato
reflexivo não apenas durante o período de estágio, mas como um
aspecto inerente à profissão docente, configurando um professor
reflexivo e pesquisador.
Uma das exigências constantes na vida do profissional docente
é o conhecimento – crítico e investigativo, conforme a perspectiva
levantada acima – da legislação educacional do país. Assim, a leitura
e discussão da BNCC no segundo momento do primeiro módulo
foi igualmente impactante. A maior parte dos estudantes admitiu
desconhecer por completo o documento. Sendo um documento
oficial, imaginavam ser uma leitura pesada e distante da realidade
da sala de aula. O que se descobriu foi que a BNCC continha mui-
tas possibilidades de aplicação e apresentava-se como um possível
aliado na execução das ações de artes nas escolas. Sem dispensar
críticas necessárias ao teor do documento, que se mostrava um
tanto confuso em virtude de seu material heterogêneo, os estudantes
entenderam que a existência do tema de Artes na BNCC, como
área própria no Ensino Fundamental e integrado às linguagens no
Ensino Médio, justificava e reconhecia o trabalho das artes, forne-
cendo uma base a partir da qual se pudesse estabelecer discussões
dentro das escolas em defesa do ensino de música e teatro.

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Finalmente, o terceiro período do Primeiro Módulo foi o mais
alongado e certamente o mais frutífero. Uma grande quantidade de
reflexões foi trazida à discussão em grupo pelo livro “Documentos
de Identidade: uma introdução às teorias do currículo”. Para muitos
estudantes, preceptores e nós mesmos, coordenadores, as diversas
concepções de currículo apresentadas no livro foram enriquecedo-
ras. Tratou-se de uma verdadeira descoberta em comum.
O livro foi lido na íntegra por todos, mas a cada encontro um
pequeno grupo ficava responsável por iniciar uma discussão cole-
tiva. Seguindo a divisão proposta pelo autor, nos aprofundamos nas
concepções tradicionais, críticas, pós-críticas e atuais do currículo.
A diversidade de concepções apresentadas permitiu que cada um se
identificasse com um aspecto ou modelo de pensamento sobre o cur-
rículo, enriquecendo as discussões dos módulos posteriores. Muitos
estudantes relataram que a leitura conjunta trouxe mais referências
à discussão da pedagogia do que muitas das disciplinas dos cursos.
Finalmente, pode-se afirmar que esse terceiro momento do pri-
meiro módulo possibilitou a percepção da escola como espaço de
disputa por concepções de educação, dentro das quais as diversas artes
podem encontrar meios de luta para sua afirmação e colaboração com
uma educação libertadora e contestadora. Conforme o próprio autor:

As teorias do currículo não estão, neste sentido, situadas num campo


“puramente” epistemológico, de competição entre “puras” teorias.
As teorias do currículo estão ativamente envolvidas na atividade de
garantir o consenso, de obter hegemonia. As teorias do currículo estão
situadas num campo epistemológico social. As teorias do currículo
estão no centro de um território contestado (SILVA, 2005, p. 14).

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Assim, as reuniões gerais do primeiro módulo se constituíram
exclusivamente de estudos teóricos, a partir de leituras e temas
propostos pelos coordenadores. Paralelamente, cada uma das pre-
ceptorias desenvolveu atividades voltadas às escolas-campo. Os
trabalhos se concentraram no estudo dos projetos pedagógicos,
das legislações específicas e num primeiro contato com a cultura,
as características e a história de cada uma dessas escolas.

SEGUNDO MÓDULO: A ABERTURA PARA O MUNDO


Como o retorno ao regime presencial não foi possível, as ativida-
des do segundo módulo continuaram sendo desenvolvidas através
de meio remoto. Àquela altura, os dados relativos à pandemia eram
extremamente alarmantes, com o governo federal adotando um dis-
curso negacionista em relação aos protocolos de biossegurança, ao
distanciamento social e à validade das vacinas, de modo que a expec-
tativa em relação ao retorno das atividades presenciais se colocava
num horizonte distante. No entanto, os primeiros aspectos da nossa
residência já estavam organizados e já havia uma construção no sen-
tido do funcionamento do grupo, das relações e das possibilidades
de aprendizagem nos limites do meio remoto. Compreendeu-se
que a primeira etapa se caracterizou como um olhar para dentro,
uma vivência interna do próprio grupo de residentes, preceptores e
coordenadores. Decidiu-se então dar ao segundo módulo do PRP
um aspecto menos introspectivo. Assim, houve um maior protago-
nismo dos próprios residentes que decidiram organizar uma série
de encontros com convidados externos ao PRP. Para isso, foram
organizados os chamados “Seminários temáticos abertos”, encontros
públicos transmitidos pelo YouTube com pessoas ligadas à educação.

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Além de toda organização técnica do evento, o aspecto que
talvez tenha efetivamente contribuído para o processo de forma-
ção docente foi a escolha dos temas a serem debatidos. Foram
três seminários realizados que abordaram os seguintes temas: (1)
Relações étnicas e raciais nas escolas, (2) Escola Sem Partido e
militarização das escolas, e (3) Questões LGBTQIAP+ e a educação,
todos eles transcritos neste livro. Além de constituírem preocu-
pações fundamentais na contemporaneidade, vários desses temas
estavam latentes nas leituras e discussões anteriores. Como cada
encontro foi realizado com um intervalo de um mês, o grupo se
preparou para os debates com leituras de textos relativos às ques-
tões abordadas.
O nível de organização que os próprios alunos atingiram foi
notável, com os Seminários Temáticos Abertos sendo realizados
com grande autonomia. Foram formadas três comissões de orga-
nização, uma voltada para a comunicação interna (divisão de tare-
fas e atualizações dos andamentos dos seminários), outra para
divulgação (criação de artes para cada seminário, divulgação em
redes sociais, listas de e-mails dos Departamentos e do próprio
PRP), e uma terceira para a parte técnica (execução da transmissão
ao vivo das discussões). Os seminários foram conduzidos com
excelência pelos estudantes, inclusive a mediação das mesas de
debate e exposição, o que evidenciou, para nós coordenadores,
o comprometimento e dedicação que é possível atingir com um
programa como o Residência Pedagógica.
Vale notar que o acompanhamento dos seminários com dis-
cussões internas teve o mérito de avançar ainda mais na desco-
berta de novos autores e temas. Como exemplo, tivemos ainda a

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oportunidade de estudar o texto “A teoria como prática libertadora”,
da educadora norte-americana bell hooks. Seus livros estavam em
alta nos meios da educação em 2021 – um desses lances inespera-
dos do destino: lemos e discutimos seu texto poucos meses antes
da autora falecer. O texto foi fundamental para nos proporcionar
uma reflexão sobre como relacionar a teoria com a prática, um de
nossos focos num Segundo Módulo que se pretendia mais “prá-
tico” do que o Primeiro, mas ainda dentro de limitações extremas
impostas pela pandemia.
Na visão de hooks, a teoria tem o poder de intervir diretamente
na realidade quando ela surge das práticas sociais efetivas, reconhe-
cendo as dores e angústias individuais como fontes importantes, e
quando se engaja nas lutas de libertação feministas e negras. Mas
afirma que “a teoria não é intrinsecamente curativa, libertadora e
revolucionária. Só cumpre essa função quando lhe pedimos que
o faça e dirigimos nossa teorização para esse fim” (hooks, 2017, p.
86). O texto de hooks foi recebido de forma bastante intensa por
estudantes, preceptores e nós, coordenadores, sendo citado e reto-
mado em diversos momentos posteriores. Tentamos realizar o que
pudemos, no sentido de uma teoria que se comprometesse com a
prática libertadora, através dos seminários virtuais do PRP-Artes,
o formato – bastante limitado, reconhecemos – que tínhamos à
mão naquele momento.
Ainda dentro desse espirito de “abrir a residência aos convi-
dados” e dar publicidade aos trabalhos do PRP, foram organiza-
dos eventos nas escolas-campo nos quais os residentes, sempre
através da mediação dos preceptores, puderam estabelecer um
contato mais próximo, ainda que remoto, com outros atores das

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escolas: professoras, diretoras, funcionários, pais, mães e – o mais
importe – com os alunos. Esse contato com a escola, limitado
pela virtualidade, foi, de todo modo, fundamental para o encon-
tro com a realidade, a percepção das dificuldades que cada escola
passava durante a pandemia e também a descoberta e colabo-
ração com ações que buscavam superar os entraves, realizados
por preceptores das áreas de artes. Foi possível dimensionar a
importância de uma atitude ativa por parte da professora ou
professor de artes para a transformação do espaço escolar num
ambiente de participação e comprometimento.

TERCEIRO MÓDULO: CANSAÇO E


REGISTRO DA CAMINHADA
Diante de um Segundo Módulo extremamente positivo na
avaliação de todos os envolvidos, o Terceiro Módulo se colocava
como um grande desafio. Havia a esperança e o desejo de que o
PRP-Artes mantivesse, ou mesmo superasse, o nível do vínculo
pedagógico, da relação aprender-ensinar com outras pessoas e
com o mundo, que tínhamos vivenciado até então.
Entretanto, se de algum modo conseguimos sustentar a par-
ticipação e a motivação dos residentes, permanecia inalterado
o quadro de instabilidade em relação à educação pública pelo
Governo Federal1. Essa sensação de incerteza se agravou com um
atraso no pagamento das bolsas devido a um erro de programa-
ção orçamentária.

1. Desde o início do governo eleito em 2018 até a escrita deste texto houve quatro exo-
nerações de ministros da Educação, uma das áreas mais afetadas pelos cortes de gastos.

24 A construção da docência

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Instalou-se então um mal-estar em relação ao trabalho, pois a
maioria dos residentes dependia do valor da bolsa para a sobre-
vivência durante este período. Como se dedicar com o mesmo
empenho de até então sendo necessário buscar a sobrevivência
através de outros meios, comprometendo o tempo, os esforços e
a dedicação ao Programa? Essa situação provocou uma espécie de
síncope, de abalo no andamento do projeto. Somente depois de
resolvida essa questão burocrática, um procedimento corriqueiro
na administração pública – após dois meses de expectativa – pude-
mos retornar com plenitude aos trabalhos.
Entretanto, superado desse desgaste desnecessário, era urgente
reencontrar o sentido e a direção do projeto. Após um momento
de diálogos e discussões, um caminho encontrado foi a organiza-
ção, sistematização e o registro da experiência do PRP – Artes até
aquela etapa. Se, conforme Larrosa (2014, p. 18), a experiência
é “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” pode-
mos perguntar: o que restou dessa experiência? Até que ponto
essa residência foi construída e habitada? O que dela poderia ser
relatado? Em que ela nos transformou? A partir dessas questões
tomamos a decisão de organizar o presente livro, decisão que tem
a ver com o desejo de elaborar a experiência em forma de relato
a fim de melhor compreendê-la e também de compartilhá-la, afi-
nal, “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo.
O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos
sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (FREIRE,
2020, p. 108).
Os temas que compõem este livro estavam já esboçados nos
relatórios acumulados e produzidos em todas as etapas anteriores,

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faltava pronunciá-los, no sentido dialético-freireano. Desse modo,
um primeiro capitulo (Reflexões) reúne textos que exploram aspec-
tos debatidos ou desdobrados das leituras e das discussões; no
segundo capitulo (Encontros) os Seminários Temáticos Abertos,
protagonizados pelos residentes, foram não apenas transcritos, mas
as provocações e sugestões dos convidados suscitaram também
desdobramentos reflexivos sobre os temas abordados; já o terceiro
capitulo (O chão da escola) reúne experiências mais próximas aos
trabalhos das preceptorias, reunindo atividades desenvolvidas,
questões administrativas do cotidiano, da realidade, do ambiente
e da cultura das escolas durante o período pandêmico.
Esses registros refletem parte da experiência do subprojeto de
artes do PRP – UFOP e fazem emergir algumas direções possíveis:
a necessidade de os projetos pedagógicos dos cursos de licencia-
tura em artes se adequarem não apenas às questões normativas
dos documentos oficiais, mas às concepções interdisciplinares da
arte contemporânea; a urgência de uma aproximação efetiva entre
universidade e as redes municipais e estaduais de educação; uma
dinâmica de estágios supervisionados que promova uma efetiva
inserção dos licenciandos no ambiente das escolas, centrado na
figura do preceptor, mediador essencial dessa relação; e finalmente
a valorização e a defesa da escola pública, cuja ideia central é rece-
ber os alunos a partir de sua condição de igualdade. Uma mesma
escola para todos, cuja lógica de funcionamento não esteja subme-
tida às ideias de competitividade, empreendedorismo, hierarqui-
zação, individualismo, uma construção na qual predomine não os
interesse privados de algumas partes, mas aquilo que diz respeito
a todos, ao comum.

26 A construção da docência

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UMA BREVE CODA
Ao final dos 18 meses do PRP – Artes o tão desejado retorno
às atividades presencias não aconteceu. Ainda assim, mesmo
em meio remoto, através de conexões precárias, podemos con-
siderar que vínculos de trabalho, conhecimento e afeto foram
estabelecidos. Prevaleceu uma sensação compartilhada de que
residimos um mesmo espaço, convivemos e permanecemos ali.
Apenas um último e único encontro presencial se realizou, a
título de encerramento do projeto, numa sala do Departamento
de Música da UFOP, em 28 de março de 2022. Nessa ocasião,
uma derradeira atividade foi proposta e realizada: um longo fio
deveria ser entrelaçado pelas pessoas numa roda – agora real,
presencial, corporal – configurando uma rede de múltiplas cone-
xões, contatos, olhares, vozes reais, silêncios palpáveis. Foi então
solicitado que cada um escrevesse, naquele exato momento e
lugar, uma carta destacando o significado e a importância do
PRP em sua própria trajetória formativa e o que os próximos
residentes poderão encontrar nesse espaço de formação docente
que começamos a construir.

Alguns fragmentos dessas cartas:

“É uma casa muito engraçada, tinha teto, tinha tudo, todo mundo
pode entrar nessa casa porque o chão é firme e foi construído a
várias mãos.”

“Estar nessa casa foi um tanto caótico, morar com várias pes-
soas sem conhecê-las, ir aos poucos desvendando cada um, me

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desvendando, desvendando a educação e os estudantes num
período tão conturbado.”

“Em seus cômodos arejados pude arejar minhas ideias; em seus


armários de saber, tanto saquei quanto depositei pensamentos; sua
acústica reverbera sonhos que ecoam das mentes dos professores
do futuro; sinto a vibração percorrer meu copo sutil.”

“Foi como entrar numa casa bagunçada e ir ajustando as coisas até


sentir aquele alívio da organização.”

“...nesta casa cujas paredes eram virtuais...”

“Que tempos passamos sendo e buscando abrigos, uns para os


outros, de nós mesmos. Sei que, a partir de agora, você não mais
acompanhará o desenvolvimento dessas e desses estudantes, agora
não mais residentes, mas sim futuras e futuros docentes.”

“Compartilhar, arriscar e experimentar são as melhores formas de


se conhecer, conhecer o outro e ensinar.”

“Há um florescer no ser docente que só pode ser coletivo. Por isso
também agradeço; hoje sou o lírio do meu delírio.”

“Agradecimentos ao que vivi nessa residência, e sei que irei agra-


decer também quando noutra casa morar, a casa do eu docente
que conheci na sala de estar, sentado numa poltrona como quem
esperava por mim. Meu novo abrigo será a docência.”

28 A construção da docência

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Terra, 2012.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.
Brasília, 2018.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Prefácio à edição brasileira. In: ZIZEK,
Slavoj. Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo. São Paulo:
Boitempo, 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2020.
HOOKS, bell. A teoria como prática libertadora. In: Ensinando a trans-
gredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2017. p. 83-104.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte:
Autêntica, 2014.
PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria do Socorro Lucena. Estágio e
docência. São Paulo: Cortez, 2017.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução
às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 29

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Escola Estadual Dom Pedro II,
centro histórico de Ouro Preto

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I – REFLEXÕES

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UMA EXPERIÊNCIA INTERDISCIPLINAR
DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES:
O SUBPROJETO DE ARTES DO PROGRAMA
DE RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA DA UFOP
Dieiny Kelly Gonçalves Braz dos Santos
Laura de Figueiredo Impellizieri Ribeiro
Gabriela Sánchez Leão de Oliveira Araújo

INTRODUÇÃO
“Arte-educação, Educação através da Arte e Educação Artística” são
a mesma coisa? Alguns autores dizem que sim, porém outros acre-
ditam que essas três concepções “compartilham somente a mesma
finalidade, a saber: a arte dentro do sistema educacional” (ROCHA;
MARQUES, 2021. p. 38975 ). Dentre esses termos, Educação Artís-
tica se encontra como disciplina no currículo escolar brasileiro
incluído pela LDB (lei das diretrizes e bases da educação nacional,
nº 9394/1996), na qual as atividades propostas pelo governo dão
ênfase ao processo criativo e expressivo dos alunos.
Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)2, são instauradas
seis dimensões das artes, que atuam como ponto comum para se

2. Em 2017 foi aprovada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – documento


normativo que visa definir uma gama de aprendizagens essenciais a todos os alunos
durante as etapas da Educação Básica no Brasil. O documento entrou em vigor em

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trabalhar qualquer expressão artística. São estas: criação, crítica,
estesia, expressão, fruição, reflexão. Além disso, o ensino da disci-
plina arte contempla os seguintes eixos temáticos: música, dança,
artes visuais, teatro e artes integradas.
A BNCC (2019, p. 197) apresenta a unidade temática referente
às Artes Integradas da seguinte maneira: “explora as relações e
articulações entre as diferentes linguagens e suas práticas, inclusive
aquelas possibilitadas pelo uso das novas tecnologias de informa-
ção e comunicação”.
No contexto dos séculos XX e XXI, as artes cada vez mais se
aproximam e expandem suas fronteiras. Ao explorar o território
interseccional, surgem obras de arte e novas expressões, derivadas de
vínculos entre diferentes mídias. São estas as Artes Integradas, que
atestam a dissolução dos muros entre as diferentes mídias, e se unem
nos propósitos comuns e essenciais da arte como um todo – assim,
se desdobra em ideais como imaginação, ampliação do conceito de
arte, metáforas, criatividade, contextualização (FARIA, 2009, p. 4).
A inserção do conceito de Arte Integrada na arte-educação
propõe uma mudança de estrutura no ensino, que ao invés de
fornecer instrução específica em um ou mais fazeres artísticos,
fornece ao indivíduo uma perspectiva holística sobre sua interação
com o meio e com a sociedade, e estimula o desenvolvimento de
capacidades lógicas, comunicativas, imaginativas.
Na BNCC a apresentação do conceito de Artes Integradas
não traz consigo metodologias ou sugestões de abordagem,

2019 para a educação infantil e o ensino fundamental, e para o ensino médio em 2022 (dois
anos após planejado, por decorrência da pandemia de Covid-19).

34 A construção da docência

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possibilitando confusão sobre seu significado, principalmente
em relação a outros conceitos próximos, como o de polivalência.
Sendo assim, cabe às instituições de ensino superior, que formam
docentes em artes, articular a matriz curricular com essas dimen-
sões considerando as diversas realidades culturais, sociais e eco-
nômicas que tais futuros professores irão encontrar durante sua
vida profissional.
A polivalência é uma questão amplamente discutida quanto à
formação e atuação de professores de arte. Deve-se ao fato de que
os cursos de licenciatura atualmente formam educadores em uma
linguagem específica, que muitas vezes atuarão como professores
da disciplina “arte” no ensino básico – que abrange as artes visuais,
música, dança, teatro e artes integradas (BRASIL, 2019). Um argu-
mento amplamente utilizado é o de que estes professores não esta-
riam aptos a lecionar, já que suas formações não lhe dão suporte ao
ensino de conteúdos relacionados a mais de uma linguagem artística.
Entretanto, o cenário onde haveria aulas de música, teatro,
dança, artes visuais e artes integradas com um professor especia-
lizado para cada área, está aparentemente muito distante. Além
disso, é importante refletirmos acerca das atuais demandas do
ensino de artes na educação básica brasileira, onde a hiperespe-
cialização talvez seja menos interessante que um outro tipo de
abordagem mais ampla ou interdisciplinar. Isso não quer dizer
que o conhecimento ou os conteúdos devam ser abordados de
maneira superficial, mas a partir do ponto de vista de uma arte
cada vez mais híbrida, integrada, multimídia, ou seja, uma arte
não fragmentada, tais quais as produções artísticas atuais, como
bem destacam Cunha; Lima (2020, p. 110).

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Os campos artísticos que antes ocupavam espaços isolados, territórios
exclusivos para cada uma das linguagens artísticas, passaram a dissol-
ver suas fronteiras e mesclar elementos. Isso pode ser visto nos museus
de arte contemporânea, nos espaços alternativos de arte, assim como
no dia a dia das cidades, onde a música, as artes visuais e as cênicas
se mesclam, se inter-relacionam, dialogam e se integram. Com maior
frequência, a produção artística busca integrar e dialogar com as artes,
apesar das circunstâncias institucionais favorecerem um ensino artís-
tico que privilegia o isolamento das artes.

Apesar desta tendência, os cursos superiores de formação inicial


de professores nas áreas artísticas ainda não correspondem com
essa realidade, sendo tratadas, de maneira fragmentada e tecnicista,
como no caso dos de artes cênicas e da música, considerando áreas
que estão em permanente diálogo e possuem relações intrínsecas,
como pode ser observado no relato de Fernandino (2008, p. 9)

Em minha experiência como musicista, atriz e docente da Escola de


Música da UFMG, tenho vivenciado a complementaridade existente
entre essas áreas sem, no entanto, ter presenciado um trabalho siste-
matizado nesse sentido. Mesmo em gêneros onde a integração des-
sas duas manifestações artísticas possui maior evidência, como no
caso dos Musicais e da Música cênica, a atuação de músicos e atores
sempre é direcionada de maneira desconexa: preparação musical e
preparação cênica. Na realidade, considerando o contexto brasileiro,
a fragmentação da experiência ocorre desde a formação básica, tanto
do músico como do ator, pois, mesmo quando há um trabalho ou

36 A construção da docência

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disciplinas específicas para tal fim, estas ficam distanciadas da prática
e das especificidades do campo artístico em questão.

Tendo em vista, portanto, as relações cada vez mais aproxima-


das ou até mesmo híbridas entre as artes e as demandas educacio-
nais, torna-se importante discutir a formação inicial de professores,
a fim de elaborar estratégias condizentes e melhor preparar estes
profissionais para a atuação docente. Uma destas possíveis estra-
tégias, é a abordagem interdisciplinar.

Pensar as artes sob uma perspectiva integradora requer a criação de


cursos de formação acadêmica dotados de uma matriz curricular
diferente daquela que reafirma as especificidades e o tecnicismo no
ensino das linguagens artísticas; um ensino capaz de possibilitar aos
alunos a noção de arte enquanto campo de conhecimento integrali-
zado, que se coaduna com os anseios socioculturais que permeiam
uma determinada civilização. Nesse sentido, uma formação artística
interdisciplinar parece se adequar mais prontamente a atender esse
ensino. (CUNHA et LIMA, 2020, p. 113-114).

Nos cursos de licenciatura em Música e Artes Cênicas da UFOP


(as licenciaturas em arte ofertadas pela universidade em questão),
nota-se que as abordagens predominantes dentro das disciplinas
do currículo articulam pouco as linguagens artísticas. Portanto,
faz-se necessário pensar novas maneiras de fornecer uma formação
mais interdisciplinar aos licenciandos. O presente trabalho trata da
análise crítica de relatos dos discentes dos cursos de licenciatura em
música e em artes cênicas, residentes do programa de residência

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 37

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pedagógica – Artes da UFOP, que realizaram uma experiência
interdisciplinar de formação entre os anos de 2020 e com previsão
de conclusão em 2022.

O SUBPROJETO DE ARTES DO PROGRAMA


DE RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA – UFOP
Na UFOP, o subprojeto Artes do Programa de Residência
Pedagógica envolve os cursos de licenciatura em Artes Cênicas
e Música – as duas licenciaturas em arte ofertadas pela universi-
dade em questão. A proposta do PRP – UFOP – Artes dividiu o
corpo discente em grupos de preceptoria de maneira homogênea
entre os alunos de ambas as licenciaturas, assim proporcionando
uma troca rica de experiências entre licenciandos, docentes e pre-
ceptores. Vale frisar que todas as atividades foram realizadas de
maneira totalmente remota entre os anos de 2020 e 2022, devido
à pandemia de Covid-19.
No primeiro módulo, lemos os seguintes textos: “Sobre a lição”
de Jorge Larossa, “Educação após Auschwitz” de Theodor Adorno, e
“Estágio: diferentes concepções” de Selma Garrido Pimenta e Maria
Socorro Lucena, além de uma entrevista com Jorge Larossa deno-
minada “Desafios da Educação”. Já no segundo módulo, focamos
em leituras da BNCC sobre o tópico Artes, de projetos políticos
pedagógicos (PPPs) das escolas-campo e da LDB, com o intuito de
iniciarmos nossa prática de escrita institucional, como as sequências
pedagógicas, planejamentos anuais e planos de aula exigidos pelas
escolas. Também fizemos a leitura dos livros “Documentos de iden-
tidade: uma introdução às teorias do currículo” de Tomaz Tadeu da
Silva e “A teoria como prática libertadora” de bell hooks. Realizamos

38 A construção da docência

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seminários na plataforma YouTube mediados pelos discentes e que
contaram com a presença de convidados3. Finalmente, no terceiro
módulo, optamos pela escrita de um livro que resumisse todas as
nossas experiências e aprendizados durante esses três módulos.
Todas as atividades propostas foram realizadas sempre em
busca de integrar os residentes, realizando trocas de experiências
e percepções. Para além dos conhecimentos trocados referentes
às diferentes linguagens artísticas, o PRP proporcionou a criação
de um espaço de vivência múltiplo, heterogêneo e interdisciplinar,
dissolvendo hierarquias.
São realizados dois encontros semanais com duração de
duas horas cada, sendo um geral, com a participação de todos
os residentes, preceptores e coordenadores, e outro em grupos
menores com residentes e preceptores de cada uma das escolas.
Durante estes encontros e a atuação dos residentes em escolas da
rede pública, a troca de experiências, ideias e percepções entre
residentes dos distintos cursos evidenciou a importância de uma
formação integrada, visto que pudemos analisar e refletir sobre
assuntos relacionados à educação, à atividade docente e à arte
de maneira geral, sob perspectivas diversas, o que enriqueceu de
maneira considerável o debate.
Além disso, trabalhamos de maneira integrada na elaboração
de conteúdos voltados para a arte-educação, proporcionando o
aprendizado e possivelmente preenchendo lacunas dos currí-
culos dos cursos de licenciatura em questão, nos diversos eixos

3. Os Seminários Temáticos Abertos estão transcritos e comentados no capítulo “Encon-


tros” neste livro.

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temáticos. Exemplo disso foi a elaboração em conjunto por dois
residentes – um de Música e um de Artes Cênicas – de proposta
de atividade voltada aos alunos da Escola Municipal Professora
Juventina Drummond, envolvendo música, artes visuais, memória
e conceitos sobre patrimônio.
Sendo assim, dadas as nossas reflexões quanto à formação dos
licenciandos em Artes Cênicas e Música na UFOP, realizamos um
questionário com o objetivo de coletar dados sobre a experiência
dos residentes em relação à formação interdisciplinar proporcio-
nada pelo Programa.

OS RELATOS
Em busca de entender a percepção dos residentes do pro-
grama no que diz respeito a uma proposta de formação inicial
interdisciplinar, elaboramos um questionário contendo as seguin-
tes perguntas:
1 – Você considera a formação interdisciplinar relevante para
a sua formação docente enquanto professor de artes?
2 – Antes de entrar na residência, você teve alguma experiência
interdisciplinar de formação? Descreva.
3 – Você acredita que o Programa de Residência Pedagógica
tenha contribuído para sua formação interdisciplinar? Se sim,
descreva de que maneira você acha que isso aconteceu (pode ser
através de descrição de momentos, atividades realizadas, ou outro).
Selecionamos, de maneira aleatória, quatro residentes para res-
ponderem ao questionário, sendo dois do curso de música e dois
do curso de artes cênicas.

40 A construção da docência

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Em relação ao primeiro questionamento, a resposta foi unâ-
nime. Todos os participantes declararam considerar importante
uma formação interdisciplinar de professores de artes. Os resi-
dentes, em suas justificativas, apontaram a importância da for-
mação interdisciplinar em sua atuação profissional polivalente,
que, conforme citado anteriormente, é a mais comum na educa-
ção brasileira quando colocada em prática. Além disso, também
mencionaram que essa formação pode proporcionar ferramentas
de ensino que tornem os futuros professores capazes de elaborar
aulas mais atraentes para seus alunos. Em sua resposta, uma das
residentes justifica que “em geral na escola pública não há uma
disciplina específica de teatro, e ter contato com outras expres-
sões contribui não só para a minha formação sensível e artística
quanto para a experiência na sala de aula”. Transparece, na fala
da residente, a necessidade dos cursos de licenciatura em pro-
porcionar experiências que se aproximem da docência real para
os alunos.
A segunda pergunta levantada pelo questionário buscava com-
preender se os residentes já haviam passado por alguma experiên-
cia interdisciplinar antes do programa. Nas respostas, nota-se um
padrão: os alunos do curso de licenciatura em Música afirmam não
ter passado por experiências interdisciplinares prévias, enquanto os
alunos de Artes Cênicas afirmam já ter passado por essas vivências.
Tal discrepância pode ser justificada pelo fato de que o teatro é
uma linguagem intersemiótica – contendo em si a mescla de dife-
rentes expressões artísticas. Segundo Ernani Maletta, em entrevista
concedida a Lee (2014, p. 310):

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A semiologia teatral já considerou devidamente a natureza intersemió-
tica do teatro, ao evidenciar que o discurso teatral não é apenas verbal,
mas também gestual, plástico e musical. Portanto, coexistem várias
instâncias discursivas que, entrelaçadas, compõem o discurso teatral.

Apesar de identificarmos na música o diálogo com outras


instâncias discursivas, como poesia e artes visuais no curso de
música da UFOP, essa intermídia é pouco trabalhada nas disci-
plinas pelos docentes.
A terceira pergunta, finalmente, buscava compreender a
influência do programa na formação interdisciplinar dos futuros
professores. A maioria dos residentes afirmou que o programa
foi agregador para sua formação interdisciplinar. Seguem abaixo
algumas respostas do questionário:
“Fiz planejamento sobre balé e o stencil, por exemplo.”
“Sim, pois tive experiência de explicar atividades dos PETs que
contemplavam outros campos da arte além de presenciar outras
atividades e apresentações de outros colegas.”
“Durante a terceira preceptoria, elaborei um plano de aula que
se pautava nas origens dos conceitos de ‘mau gosto’ e ‘breguice’.
Utilizei exemplos na música, moda, arquitetura e artes visuais para
atingir o ponto de reflexão estética que eu queria.”
“Realizei uma atividade em dupla completamente fora da minha
zona de conforto que é a música. Nossa proposta foi voltada para
as artes plásticas, com um trabalho que buscava criticar a quan-
tidade de lixo descartada em lixões a céu aberto e seus impactos
nas comunidades que ali residiam. Para isso estudamos um artista
brasileiro que transformava lixo em arte, construindo lindas obras a

42 A construção da docência

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partir de materiais descartados no lixão, essas obras em sua maioria
eram retratos das pessoas que trabalhavam no local.”
Em contrapartida, uma residente apresentou a necessidade do
projeto em fortalecer uma abordagem interdisciplinar entre as
artes. Em suma, percebemos que o questionário trouxe à tona que
o Programa de Residência Pedagógica foi um agregador de conhe-
cimentos para os integrantes, trazendo experiências determinantes
para a formação para além das abordadas no estágio comum dos
cursos. Tendo em vista que essa foi a primeira experiência do sub-
projeto Artes da UFOP, ainda vemos a necessidade do projeto em
expandir suas abordagens para melhor articular os conhecimen-
tos de cada linguagem artística às dimensões de criação, crítica,
estesia, expressão, fruição e reflexão pautadas na BNCC, assim
aproximando a uma real docência interdisciplinar dado o con-
texto da educação brasileira. Entretanto, o modelo adotado (com
a articulação de discentes de distintos cursos) proporciona um
aprimoramento da formação docente, assim podendo ser replicado
para projetos pedagógicos de licenciatura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, T. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 119-154.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.
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ção da polivalência com a interdisciplinaridade e o ensino integrado
das artes. Revista Música, v. 20 n. 1. Universidade de São Paulo, jul.
de 2020.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 43

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DESAFIOS da Educação – Jorge Larrosa Bondia / Espanha. Produção:
Rodrigo Simon. YouTube. 25:32. Disponível em: https://www.youtube.
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FARIA, Aline Folly. Artes Integradas: características das práticas
desenvolvidas em escolas de Goiânia. Goiânia, 2009. 177f. Dis-
sertação (Mestrado em Música). Escola de Música e Artes Cênicas,
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DESAFIOS DA DOCÊNCIA
POLIVALENTE EM ARTES

Marco Túlio de Paula


Victor de Jesus Ferreira

CONTEXTO E REFLEXÃO SOBRE O TEMA


Logo no início das atividades do subprojeto de Artes do Programa de
Residência Pedagógica, antes mesmo de residirmos de forma remota
nas escolas, discutimos sobre a dificuldade de diluir as barreiras entre
teoria e prática, uma questão comum e relevante para aqueles que
estão começando no período de estágio ou tendo experiências na
docência durante a graduação na licenciatura. Essa discussão surge
porque há uma defasagem entre o que o currículo da Licenciatura
em Música da UFOP oferece e capacita e o que as Diretrizes Curricu-
lares Nacionais da Educação Básica (DCN), juntamente com a Base
Nacional Curricular Comum – BNCC, requisitam para cumprir o
planejamento educacional escolar. Essa defasagem existe a partir do
momento em que os currículos não contemplam todas as áreas de
conhecimento exigidas na lei 13.278/2016, conforme expresso em
seu parágrafo 6º: “as artes visuais, a dança, a música e o teatro são as
linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o
§ 2º deste artigo” (BRASIL, 2016). Em certa medida, o currículo da

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Licenciatura em Música articula atividades pedagógicas que abran-
gem o universo das Artes Cênicas – ainda que de forma sucinta – mas
de maneira ínfima as áreas de Dança e Artes Visuais, o que dificulta
a transposição da teoria e prática enfrentada nas escolas.
Sendo assim, já desde o início das reuniões dos residentes
com os preceptores, foram realizadas dinâmicas de construções
de planejamentos de aulas nas quais vários residentes relataram a
dificuldade de lecionar em áreas que não são de suas formações e
especialidades. A leitura do documento oficial da BNCC (BRASIL,
2018) deu as diretrizes para o planejamento pedagógico, desde
aspectos formais das escolas, divisões dos anos de ensino, até o
currículo, que é a parte principal de tal documento. Ao entrar em
contato com a área de linguagens, nos deparamos com o compo-
nente curricular Arte. Nesta secção, de forma direta, são apresen-
tadas as quatro linguagens que serão contempladas pelo currículo
dessa disciplina, sendo elas: Artes visuais, Dança, Música e Teatro,
de forma que essas dimensões percorrem o Ensino Fundamental
e Ensino Médio, uma vez que, Educação Infantil, o ensino de Arte
está integrado aos outros saberes.
Ao longo da BNCC é reforçada a importância da interdiscipli-
naridade e de acordo com este documento, a articulação das seis
dimensões do conhecimento (criação, crítica, estesia, expressão,
fruição e reflexão) irão proporcionar uma maior conexão entre
as artes. Essa relação se intensifica na seção da unidade temática
intitulada artes integradas.
Vale ressaltar que, apesar de enfatizar a integração das artes,
o documento também explicita os aspectos individuais de cada
linguagem artística, destacando as competências e habilidades que

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deverão ser trabalhadas. Nesse aspecto, a BNCC se apresenta de
forma bastante específica, o que estimulou os residentes a utiliza-
rem o documento como guia e fonte de consulta para os planeja-
mentos de aulas. Todavia, o documento não expressa a necessidade
de docentes com formações em cada área das linguagens citadas.
Nesse momento, mesmo que a BNCC contemple uma grande
gama de ideias e orientações, os recursos práticos que serão uti-
lizados em salas de aula são específicos a cada escola e situação,
pois, como sabemos, o ensino de Arte requer muitos recursos como
espaços amplos e apropriados; materiais didáticos; instrumentos
musicais; equipamentos, entre outras coisas. Daí surge a proble-
mática que queremos discutir nesse artigo, porque as formações
iniciais da licenciatura em questão, não nos proporcionam soluções
para as especificidades requisitadas pelas linguagens não cursadas
durante a graduação, o que cria uma defasagem entre a formação
de professores e a futura docência nas escolas.

CURRÍCULOS DE ARTES NA LICENCIATURA


Deve-se ressaltar que este artigo não pretende detalhar aspectos
estruturais e formais dos currículos da licenciatura, e sim discutir,
baseado nas experiências dos residentes, até que ponto, e como o
currículo da Licenciatura em Música da UFOP consegue propor-
cionar uma formação polivalente.
Sendo assim, com uma breve análise das disciplinas obrigatórias
do currículo do Departamento de Música da UFOP (DEMUS),
percebe-se o grande foco nas disciplinas da educação, juntamente
com o suporte da teoria e prática musical, sendo que disciplinas
como Harmonia, Contraponto e Instrumento, são exclusivas na

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área da música. Todavia, algumas disciplinas que também são
exclusivas do curso como: Práticas Pedagógicas em Música, Edu-
cação e Voz, Metodologia da Educação Musical e Flauta Doce,
conseguem expandir os horizontes e trazem uma proposta mais
interdisciplinar visto que essas disciplinas trabalham com ativi-
dades, jogos e conceitos que ultrapassam as especificidades da
linguagem musical.
Dentre as atividades trabalhadas nessas disciplinas, há uma
articulação maior com a área das Artes Cênicas, desenvolvendo a
expressão corporal, o diálogo e a interação dos corpos no espaço.
Partindo disso, as práticas experimentadas nas salas de aula da
universidade criam aberturas que podem ser exploradas no longo
prazo ou em outras experiências na futura docência, possibilitando
uma melhor relação com esse aspecto polivalente que os professo-
res de ensino básico estão lidando. Nesse sentido,

cabe ao professor escolher os modos e recursos didáticos adequados


para apresentar as informações, observando sempre a necessidade de
introduzir formas artísticas, porque ensinar arte com arte é o caminho
mais eficaz. Em outras palavras, o texto literário, a canção e a imagem
trarão mais conhecimentos ao aluno e serão mais eficazes como porta-
dores de informação e sentido. O aluno, em situações de aprendizagem,
precisa ser convidado a se exercitar nas práticas de aprender a ver,
observar, ouvir, atuar, tocar e refletir sobre elas. (BRASIL, 1997, p. 35).

Ainda assim, essa interdisciplinaridade eventualmente viven-


ciada no curso não abarca completamente a polivalência requi-
sitada pela BNCC, visto que não vivenciamos disciplinas que

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permeiam propostas pedagógicas dentro do universo das Artes
Visuais, Dança e outras áreas importantes para a formação cultural
do indivíduo. Como acrescenta Subtil:

Mesmo que se questione essa “polivalência” implícita nas DCE, é


necessário pontuar que a formação nas Licenciaturas em seu afã de
abordar apenas os conteúdos de cada área não contempla o universal
do qual todas as áreas da Arte se alimentam e se constituem: história,
sociologia, política, conhecimentos culturais gerais, que são produ-
zidos na sociedade e que são escamoteados em nome do “específico”
(SUBTIL, 2016, p. 898-899).

Portanto, com frequência vem à tona uma reação de surpresa


dos residentes com relação às demandas da sala de aula, quando
há um contato direto com a realidade escolar, sendo comum a
identificação de déficits de preparação na formação inicial para
atuar nessas outras linguagens artísticas.

PERÍODO DE EXPERIÊNCIA NAS PRECEPTORIAS


A experiência vivida nas preceptorias do Programa de Residên-
cia Pedagógica levou os residentes a pesquisar materiais didáticos
referentes às outras linguagens, bem como habilidades que vão
além das especificidades acadêmicas dos seus cursos de origem.
Após discussões, conversas e planejamentos entre preceptores
e residentes, foi encontrada uma possível forma de diluir essa
barreira da polivalência. Vimos que a alternativa mais plausível
é encontrar formas de associar as linguagens artísticas que não
dominamos com a nossa área de formação, transitando no espaço

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da interdisciplinaridade, de forma que o planejamento cumprisse
com os requisitos curriculares da BNCC e que, ao mesmo tempo,
não fosse um território totalmente desconhecido para o professor.
Assim, residentes do curso de Artes Cênicas utilizaram os
conhecimentos específicos de sua área para criar planos de ensino
das outras linguagens artísticas, explorando as possibilidades inter-
disciplinares. A mesma lógica ocorreu com residentes do curso
de Música. Nesse quesito a BNCC oferece grande liberdade para
explorar essas transições e relações entre as diversas linguagens,
já que nas competências específicas e habilidades que compõem
os currículos de cada ano, há menções de assuntos transversais e
interdisciplinares. Vale ressaltar que passar por essa experiência
durante as preceptorias foi de suma importância para conscienti-
zar os residentes de que é necessário buscar aprofundamento em
outras linguagens artísticas.

O ENTENDIMENTO SOBRE A ARTE E SEUS IMPACTOS


Sabemos que a escola sente a interferência do sistema político
e econômico em sua forma de existência. Larrosa (UNIVESPTV,
2013) numa entrevista, destaca essa interferência ao dizer que, no
ensino, tudo é um grande negócio e que os pais estão majorita-
riamente preocupados com os rendimentos financeiros que seus
filhos e filhas receberão após concluírem os estudos. Dessa forma, a
escola produz mão de obra para garantir que as relações de trabalho
se perpetuem e que o capital continue sendo gerado e explorado.
Segundo Subtil (2016, p. 899): “formação e trabalho docente são
práticas que dependem diretamente do que é priorizado pelos
organismos nacionais e internacionais para a educação e a cultura

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como insumos do desenvolvimento econômico e da acumulação
do capital”. Posição que, segundo Christian Laval, tem a ver com
as reformas de viés neoliberal às quais a escola pública vem sendo
submetida, numa lógica individualista e mercadológica, que reduz
“a cultura ensinada na escola às competências indispensáveis para
a empregabilidade dos assalariados” (LAVAL, 2019, p. 37).
Acontece que essa influência política e econômica incide tam-
bém no ideal social, ou seja, na forma de ver e viver daqueles dis-
centes que irão frequentar essas escolas. Portanto, tendo como caso
de estudo a escola pública no Brasil – cada vez mais submetida a
um sucateamento planejado em benefício de grupos privados –
podemos propor uma reflexão sobre a seguinte problemática: o que
é arte, qual a sua importância para os estudantes no ensino básico
e como o professor de Artes é visto por eles?
Consideramos essa pergunta a partir da forma como os alu-
nos veem o componente curricular Arte. Eles estão acostumados a
uma rotina incessante de várias outras disciplinas mais tecnicistas,
“sérias” ou menos lúdicas. Dessa forma, no momento em que o
professor de Artes entra na sala de aula, é grande a possibilidade
de haver um desinteresse quase generalizado pelos discentes ou
uma percepção de que essa aula não tem a mesma “seriedade” das
demais, como se tratasse de um momento de descontração e apenas
brincadeiras em relação ao resto dos dias de aula.
Apesar desse fenômeno, uma experiência vivida na precepto-
ria do segundo módulo do PRP, ministrada pelo professor Samir
Antunes, nos mostra que, ao menos para os alunos e alunas do
Ensino Médio, as noções do que é arte vem sendo ressignifica-
das e melhoradas.

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Exemplo disso é uma vivência realizada durante um encon-
tro entre residentes e parte do corpo discente da Escola Estadual
Dom Pedro II. Neste dia, tivemos uma troca de ideias com aque-
les estudantes e conseguimos perceber que há, por parte deles,
um avanço em relação a um pertencimento artístico próprio. Em
alguns relatos, chegaram a afirmar que se sentiam artistas com suas
escritas, desenhos, performances musicais e danças. Além disso
observaram que também entendiam produções audiovisuais de
consumo cotidiano como arte.
Sabendo-se dessa “virada de chave”, cabe aos docentes possibilitar
um espaço de troca em que os discentes possam compartilhar seus
trabalhos de arte. Ações desse tipo teriam o propósito não apenas de
valorizar suas produções, mas também de proporcionar uma inclusão
delas no conteúdo escolar, apresentando um esforço docente em apli-
car os conteúdos das Artes. Desse modo, sem esquecer do momento
histórico, a identidade cultural e os lugares de onde vêm, os alunos e
alunas poderiam se sentir incluídos e com seus trabalhos legitimados
pela instituição escolar. Dessa forma,

é necessário ressaltar que o saber pedagógico para o ensino de Arte


deve contemplar conteúdos gerais do campo da Arte em sentido lato
como produção humana e social, conhecimentos da especificidade das
áreas artísticas, conhecimentos culturais do tempo e dos espaços onde
se situam os alunos e, evidentemente, os saberes históricos, didáticos e
pedagógicos que são próprios do fazer docente. (SUBTIL, 2016, p. 912)

Nessa perspectiva, apresenta-se um impasse entre o papel


desempenhado pelo professor e as demandas sociais e externas

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ao currículo escolar. Deve-se pensar que há uma influência da
própria escola dentro do ensino das Artes. Considerando nos-
sas próprias experiências como crianças e adolescentes no ensino
regular, provavelmente lembraremos das vezes em que fomos sub-
metidos a algumas atividades artísticas, como danças, teatro, canto
coral ou artesanato, no intuito de presentear os pais em suas datas
comemorativas, por exemplo. Dessa forma, observa-se um dos
problemas no ambiente escolar: designar ao professor de Arte,
o trabalho, às vezes sem tempo hábil, de criar propostas peda-
gógicas em função de datas comemorativas. Qual seria então, o
papel das Artes na escola e na formação dos alunos: uma função
decorativa e de entretenimento em datas comemorativas? Auxi-
liar outros componentes curriculares “mais importantes”? Ou a
Arte pode exercer um papel central nas relações interpessoais, na
compreensão e exploração da complexidade das relações sociais,
visando um panorama civilizador que aponta para um caminho
mais justo e igualitário?
Devido a essa ampla possibilidade de abrangência das Artes
no contexto escolar, há uma evidente secundarização do potencial
da Arte em transformar o indivíduo, desbloqueando suas expres-
sões, movendo sua dimensão sensível e elucidando questões pes-
soais e sociais.

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BRASIL. Lei nº 13.278, de 2 de maio de 2016. Altera o § 6o do art. 26 da
Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que fixa as diretrizes e bases
da educação nacional, referente ao ensino da arte. Diário Oficial da
União, Brasília, 02 mai. 2016. Disponível em: <http://www.planalto.

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cação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em
ataque ao ensino público. São Paulo: Boitempo, 2019.
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Práxis Educativa, vol. 11, núm. 3, p. 897-916, 2016. Universidade
Estadual de Ponta Grossa.
UNIVESPTV. Desafios da Educação – Jorge Larrosa Bondia / Espanha.
YouTube, 15 mai. de 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=AzI2CVa7my4>. Acesso em: 18 mar. 2022.

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OS DESAFIOS INICIAIS DA ADAPTAÇÃO AO
ENSINO REMOTO: PONTOS E CONTRAPONTOS

Hiago Aparecido dos Reis Fernandes


Luisa Doné Totini Espagnolo

INTRODUÇÃO
Com a da pandemia, a saída emergencial para continuidade do
ensino foi a migração do sistema presencial para o online, que
por sua vez traz uma série de pontos negativos. Tal fato se torna
mais complexo quando estamos lidando com o ensino de artes em
escolas públicas, visto que os desafios para lecionar a disciplina
giram em torno da duração da aula (cinquenta minutos semanais),
a importância atribuída ou que a arte e o ensino de artes vivenciam,
sobretudo nos dias atuais – reverberando na maneira como os
alunos, pais, pessoas com cargos superiores nas escolas e colegas
de trabalho enxergam o arte-educador.
Embora sejam questões relevantes, acreditamos que esse ponto
não seja abordado no âmbito deste texto, visto se tratar de um conhe-
cimento de senso comum as questões que envolvem o arte-educador
dentro e fora de seu ambiente de trabalho. Assim, nos concentraremos
em outros pontos que podem ser de grande valia para a reflexão do
ensino online de artes em escolas públicas, relatados sobre a perspectiva

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dos residentes do Programa de Residência Pedagógica na região de
Ouro Preto, no momento de penumbra vivido pela humanidade.

ENSINO A DISTÂNCIA: DIFERENÇAS ENTRE


EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (EAD) E ENSINO REMOTO
Para melhor entendimento, devemos ter a clara noção da distin-
ção entre Educação a Distância (EAD) e Ensino Remoto. Ambos os
termos pertencem ao Ensino a distância – que por sua vez, refere-se
aos processos de ensino-aprendizagem por meio de alguma insti-
tuição, mas não executada presencialmente.
Educação a Distância, possui metodologia e planejamento de cur-
sos elaborados para sua realização através de plataformas, sites e AVA
(Ambiente Virtual de Aprendizagem). No surgimento dessa modali-
dade em meados do século XVII nos Estados Unidos da América, o
EAD acontecia por meio de jornais, cartas e meios de comunicações
disponíveis na época – neste caso, a internet ainda não existia.

Provavelmente a primeira notícia que se registrou da introdução desse


novo método de ensinar a distância foi o anúncio das aulas por cor-
respondência ministradas por Caleb Philips (20 de março de 1728, na
Gazette de Boston, EUA), que enviava suas lições todas as semanas
para os alunos inscritos. Depois, em 1840, na Grã-Bretanha, Isaac
Pitman ofereceu um curso de taquigrafia por correspondência. Em
1880, o Skerry’s College ofereceu cursos preparatórios para concursos
públicos. Em 1884, o Foulkes Lynch Correspondence Tuition Service
ministrou cursos de contabilidade. Novamente nos Estados Unidos,
em 1891, apareceu a oferta de curso sobre segurança de minas, orga-
nizado por Thomas J. Foster. (LITTO; FORMIGA, 2009, p. 2).

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Segundo LITTO; FORMIGA (2009, p. 2) durante a segunda
guerra, o desenvolvimento do EAD ocorreu imbricando com algu-
mas tecnologias já disponíveis na época, como o rádio, por exem-
plo. O ensino-aprendizagem nesse contexto da radiodifusão na
segunda guerra, era usado para treinamento e capacitação. Assim
também ocorreu com o surgimento da televisão, que se proliferou
após a segunda guerra, despontando-se em meados dos anos 60
aos anos 80 como um novo meio educacional. O nome dado a
esse ensino transmitido pela televisão é “TV educativa”. É válido
destacar o projeto integrado pela Fundação Roberto Marinho, que
desenvolveu o “Telecurso”, criado nos anos 70 objetivando ampliar
o acesso a educação básica no Brasil. Apesar do surgimento da
internet ter ocorrido em 1969, seu uso passou a ser comum no
meio educacional somente em 1982, liberada apenas para meios
acadêmicos e educativos. Em 1987, a utilização da internet passou
a ser comercial. A partir da década de 90 a internet chega ao Brasil,
e segundo JUNIOR (2016, p. 351), através da (Lei n.º 9.394, de
20 de dezembro de 1996) é utilizada no Ensino a Distância ofi-
cialmente desde 1996, para cursos que vão do nível fundamental
até pós-graduação. Ademais, algumas instituições possuem polos
de atendimentos presenciais, para realizações de atividades que
deve ser executada presencialmente, sendo parte da metodologia
proposta, como é o caso da Universidade Aberta do Brasil (UAB).
Em suma, o modelo de ensino desta modalidade é pensado para
ser realizado a distância.
E se tratando de Ensino Remoto, a maneira como o
ensino-aprendizado acontece nessa modalidade, se distingue do
EAD por conter um caráter resolutivo de uma situação emergencial,

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onde o plano de ensino antes realizado presencialmente é trans-
posto para o ambiente virtual – se consolidando principalmente
com a chegada da pandemia. Assim, a complexidade envolvendo o
tema está no fato de o Ensino Remoto ter se tornado a alternativa
mais adequada para que a educação fosse continuada, implicando
fatores negativos para a troca de conhecimento e experiências entre
professor e aluno.

Consequentemente, a emergência causou uma urgência na busca por


respostas, e com isso as instituições que optaram pelo ensino
remoto tiveram que relevar muitas questões sociais e territoriais. Nem
todos os professores e alunos vivem em regiões com internet de boa
velocidade e têm acesso aos equipamentos necessários, o que provoca
desafios tecnológicos e socioeconômicos (GOHN, 2020, p. 158).

Através da perspectiva de GOHN (2020, p. 158) e de experiên-


cias relatadas e presenciadas no Programa de Residência Pedagó-
gica, a acessibilidade por meio dos professores e alunos tornou-se
talvez um dos fatores mais complexos diante tal situação. Deste
modo, pelos fatores mencionados, talvez poderíamos concluir que
o ensino online (EAD e Ensino Remoto) não seria a melhor opção
para estudantes e professores da educação básica. Entretanto, como
a situação imposta pela pandemia não proporcionou outras saídas,
o ensino online foi a única maneira de prosseguir – ainda que pre-
cariamente – com os processos de ensino e aprendizado.

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O ENSINO ONLINE NA PANDEMIA: UMA
PERSPECTIVA DOS RESIDENTES
A trajetória do presente Programa de Residência Pedagógica
foi um tanto quanto inusitada, ainda mais tratando-se de um pro-
grama realizado nos cursos de artes. Como já mencionado no
início deste texto, a disciplina artes na educação básica enfrentou
e enfrenta situações nem tão favoráveis ao ensino da mesma, e com
o advento da pandemia, essas situações se amplificaram.
Com um futuro incerto, logo no início do PRP a ideia era que
a relação entre residentes, preceptores, coordenadores e escolas
fosse mantida integralmente online, até que houvesse possibilidade
de volta ao ensino presencial. No entanto, o tão esperado retorno
foi até cogitado em momentos específicos, mas infelizmente esse
retorno só se apresentou possível no início do ano de 2022, ou seja,
quase no fim do programa. Segundo relatos, esse foi um dos fatores
que desestimulou grande parte os residentes, além de outros fatores
que desgastaram de forma negativa o processo, como o atraso das
bolsas durante alguns meses do Programa.
Dessa maneira, a única opção para que o contato com a prá-
tica docente por parte dos residentes acontecesse foi por meio do
ensino online. Ou seja, a adaptação e criação de atividades deve-
riam contemplar o que a situação nos impunha. Há de se imagi-
nar que o ato de ensinar em um ambiente escolar, proporciona
sensações completamente distintas das que tivemos em ambiente
remoto. O “frio na barriga” ao imaginar como será a primeira aula,
a quantidade de alunos das turmas, as reações dos alunos a partir
de uma atividade proposta, os colegas de trabalho, enfim, sensações
que só poderão ocorrer no ambiente presencial.

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PROBLEMÁTICAS DO CARÁTER
EMERGENCIAL DO ENSINO REMOTO
Dado o caráter emergencial do ensino remoto, pudemos obser-
var em tal aplicação o surgimento de algumas problemáticas cons-
tantes: O primeiro problema observado foi a falta de acesso à inter-
net e aparelhos digitais para as aulas. A inserção no ambiente online
requer que alunos e professores tenham acesso a tais tecnologias
para se comunicarem e acessarem as aulas. Como vivemos em
um país em que tal acesso não é democratizado e grande parte
das pessoas não têm alcance a tais tecnologias, existiram alunos
que não puderam acessar as aulas, não tendo acesso à educação
durante este período.
O segundo problema observado é a difícil interação entre pro-
fessores e alunos. Por conta do novo ambiente e funcionamento,
pudemos observar certa timidez e falta de envolvimento da parte
dos alunos. Em aulas mediadas por salas virtuais como o Google
Meet, poucos alunos se sentiam livres o suficiente para abrir o
microfone e expressar suas opiniões e dúvidas. Seja pela distância,
seja pela possibilidade de as aulas serem gravadas, por tudo ser
novo ou pela falta do contato humano, muitas foram as vezes em
que as aulas pareciam grandes monólogos dos professores, o que
reflete certa dificuldade da parte dos alunos e professores em se
adaptar à modalidade online e suas especificidades.
Sendo uma das causas da problemática anteriormente citada,
o terceiro problema observado por nós foi a falta de tempo dispo-
nível para os educadores elaborarem métodos de ensino qualifi-
cados para o ensino online. A súbita e urgente migração para tal
modalidade como consequência da pandemia fez com que muitos

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professores tivessem que pensar a adaptação dos métodos e didá-
ticas enquanto as aulas já tinham começado. Assim, metodologias
que contemplassem os limites e possibilidades do ensino online e
pudessem contribuir para a interação dos alunos não foram previa-
mente estudadas ou aplicadas. De todo modo, devemos salientar
que, na medida em que o processo do Ensino Remoto ocorreu,
houve aperfeiçoamento nas práticas docentes diante o contexto,
que por sua vez proporcionaram experiências inusitadas aos resi-
dentes no acompanhamento do trabalho de cada preceptor.
Apesar de todas as perdas e prejuízos da transição para as
aulas online, fomos direcionados a buscar maneiras de dialogar
e interagir com os alunos. No segundo módulo do programa, na
preceptoria do professor Samir Antunes, realizamos monitorias
para a disciplina de Artes da Escola Municipal Dom Pedro II. Tais
monitorias ocorrerem de maneira dinâmica e interessante para os
alunos e entendemos que propiciaram aprendizado, uma vez que
buscamos criar dinâmicas de interação que gerasse um ambiente
seguro para que os alunos se comunicassem. As respostas foram
modestas e, aos poucos, obtivemos resultados.
Além disso, tivemos a oportunidade de criar vídeos explica-
tivos das matérias dos PETs (Plano de Ensino Tutorado) para os
alunos e os ajudando na resolução. Em tais vídeos, buscamos ao
máximo uma comunicação dinâmica, assertiva e criativa, criando
vídeos com edições e linguagens que buscavam acessá-los. Os
vídeos variavam entre vídeos explicativos mostrando as questões
do PET com mais profundidade, e vídeos fazendo uso de uma
linguagem mais coloquial e familiar aos alunos, usando de edi-
ções semelhantes às dos vídeos que essa faixa de idade costuma

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consumir, buscando entrar no mundo deles. Com essa estratégia,
obtivemos respostas de mais interação dos alunos.
Por outro lado, de acordo com GOHN (2020, p. 167), devido
as condições sociais de um país periférico e submetido a um pro-
cesso de sucateamento da educação pública como o Brasil, a EAD
não é para todas a pessoas. Mais uma vez, devemos entender que
a importância do ensino presencial no momento de inserção de
um licenciando é inquestionável, pela imensa complexidade do
ensino-aprendizagem que envolve o ambiente virtual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A busca por maneiras de tentar diminuir a distância criada
pela pandemia no ensino remoto foi intensa e, em certo nível,
incompleta. Nesse contexto, em meio às dificuldades citadas neste
texto, pudemos observar que nada substitui o contato presencial
diário professor-aluno. Tal interação se faz essencial para a edu-
cação acontecer em sua plenitude.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fundação Roberto Marinho: Telecurso. 2021. Fundação Roberto Mari-
nho. Disponível em: <https://frm.org.br/acoes/telecurso/>. Acesso
em: 20 de Março de 2022 às 13:20 de 2022.
GOHN, Daniel Marcondes. Aulas online de instrumentos musicais: novo
paradigma em tempos de pandemia. Tulha, Ribeirão Preto, volume
6, n. 2, p. 152-171, julho de dezembro 2020.
JÚNIOR, Hélio da Silva. Violão online: encontrando caminhos
para superar desafios. ANAIS DO IV SIMPOM 2016-SIMPÓSIO

62 A construção da docência

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BRASILEIRO DE PÓS-GRADUANDOS EM MÚSICA. p. 351 a 358.
[s.n.]. UNIRIO/PROEMUS, 2016.
LITTO, Fredric Michael; FORMIGA, Manuel Marcos Maciel. Educa-
ção a distância: o estado da arte. São Paulo: Pearson Education do
Brasil, 2009.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 63

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INTERAÇÃO E INTROSPECÇÃO DOS
RESIDENTES EM REUNIÕES REMOTAS DO
PROGRAMA DE RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA
Adélia Cristina Júlio Benedito
Maria Eduarda Costa Pereira

Em razão da atual situação sanitária mundial, diversas áreas de


trabalho foram atingidas, e de forma especial a educação e as escolas
pelo fato de não poderem exercer suas atividades presencialmente.
Assim como os atuais, os futuros profissionais da educação também
foram afetados no percurso da sua formação. Diante de todo esse
cenário, muitas adaptações ocorreram para que houvesse continui-
dade no desenvolvimento das atividades, e com isso as reuniões
online passaram a ser recorrentes. Todas as dinâmicas metodológi-
cas tiveram que, subitamente, migrar para o ambiente virtual, o uso
das telas se tornou corriqueiro e a “quinta parede”4 foi estabelecida.
O subprojeto de Artes-UFOP do Programa de Residência Peda-
gógica iniciou seus estudos e aperfeiçoamento no ano de 2020 já no
formato remoto, o que era desconhecido para a maioria dos residen-
tes. Coordenadores e preceptores também tiveram que se adaptar a

4. Termo adotado em referência à soma da tela do computador às paredes de um cômodo


comum, em relação ao período de encontros online por consequência da pandemia e do
isolamento social.

64 A construção da docência

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novos métodos de trabalho e ensino. Novas metodologias surgiram,
o formato da condução das dinâmicas em sala de aula passou a ter
o uso mais recorrente de materiais virtuais, como PDFs e vídeos,
por exemplo. Sabendo disso, o núcleo de Artes se desenvolveu por
meio de encontros virtuais, com leituras e discussões didáticas,
realização de seminários online, perpassando por conteúdos dire-
tamente ligados à educação e que pudessem contribuir na formação
dos residentes. Os encontros foram organizados em dois formatos:
uma reunião geral, reunindo os coordenadores, preceptores e todos
os 24 residentes, e uma reunião com grupos menores destinada às
preceptorias, que foram divididas em 3 grupos e cada uma dessas
reuniões agrupava um número de 8 residentes. As preceptorias con-
tavam com estudos inclinados às escolas atendidas pelo programa.
Durante as discussões e diálogos nas reuniões gerais, pôde-se
perceber um comportamento curioso que se repetia: havia uma
participação reduzida dos residentes, uma introspecção, um baixo
volume de contribuições por meio da fala dos residentes e, na
maioria das vezes, eram os mesmos residentes fomentadores das
discussões. Em contrapartida, notou-se uma boa relação dos resi-
dentes com seus respectivos grupos de preceptoria, uma liberdade
maior para relatar e trocar experiências. Outro comportamento
percebido foi a desistência da “fila de fala”, ferramenta de organi-
zação disponibilizada pela plataforma de reunião. Vale ressaltar
que existem outras movimentações e comportamentos que podem
desdobrar nesse baixo volume participativo, tais como o tempe-
ramento do indivíduo que seja mais introspectivo, toda a questão
técnica que envolve a conexão da internet e também o formato
organizacional das plataformas.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 65

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É importante pontuar que a internet e as reuniões online, foram
facilitadoras da comunicação e desenvolvimento das atividades,
encurtando o distanciamento geográfico nesse momento de isola-
mento social e ajudando nas interações. Mas até que ponto o for-
mato online é benéfico para alimentar as discussões em grupo e
dar autonomia aos ouvintes que queiram participar de forma ativa,
sobretudo em reuniões com maior número de participantes? Pode-se
questionar se esse baixo índice de participação dos residentes pode
estar relativamente ligado ao formato de organização das reuniões
online e se a fila de fala vem a ser um limitante para a fluidez das
discussões, visto que presencialmente há mais liberdade de trans-
passar sobre os diálogos, interpolar comentários, assentimentos ou
discordâncias – não como forma de interrupção, mas agregando
elementos aos assuntos discutidos e enriquecendo o tecido dialogal.
Partindo desses questionamentos, foi necessário perpassar por
questões pré-pandêmicas para entendermos o perfil dos residentes,
se o comportamento mais introspectivo era já comum durante
diálogos e discussões presenciais. Qual era a frequência de parti-
cipação em rodas de conversa? Havia outros comportamentos que
pudessem contribuir com esse volume baixo de contribuições?
Timidez, insegurança na fala e não conhecimento dos assuntos
discutidos foram pontos trazidos para o levantamento. Além disso,
questões sobre a organização dessas rodas de conversa foram colo-
cadas, de forma que pudéssemos comparar se, antes mesmo desse
formato online, a “fila de fala” era já um componente limitador de
participação ou um auxílio para os diálogos.
Essa breve reflexão analítica objetivou-se por buscar e elucidar
diferentes resultados positivos e/ou negativos a respeito do formato

66 A construção da docência

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remoto tanto durante as reuniões gerais quanto às reuniões mais
reduzidas de preceptorias. Esse escrito contou com a elaboração
de um formulário pelo Google Forms, sendo ele respondido pelos
residentes do subprojeto. Com esse levantamento obtivemos os
seguintes dados:
Dos residentes que responderam ao formulário, 78,6% afirmam
se considerar uma pessoa comunicativa, outros 21,4% dizem ser
medianas. Pensando no período presencial, 64,3% participavam
na maioria das vezes de discussões, debates, entre outros eventos
presenciais, enquanto 28,6% dizem que sempre participavam e
7,1% raramente. Durante esses eventos, a maioria dos residentes
afirmam que participavam com recorrência e se sentiam confiantes
para expor suas opiniões às vezes ou sempre.
Em contrapartida, nas reuniões online 50% dos residentes se
consideraram comunicativos e ativos, outros 35,7% raramente
e 14,3% disseram que sempre foram comunicativos. Buscando
entender o que colaborou com a variedade dos dados acima,
descobrimos que 50% alegam não se sentir à vontade para par-
ticipar ativamente e expressar suas opiniões nas discussões cria-
das durante as reuniões gerais. 42,9% se sentem confiantes na
maioria das vezes e 7,1% sempre se sentiram confiantes. Entre
os motivos pelos quais os participantes não se sentiam à vontade
para participar das discussões se encontra o não conhecimento
dos assuntos e o desânimo, que juntos totalizam 57,1% da esta-
tística, seguido de 21,4% de insegurança na fala. Já nas reuniões
das preceptorias, 71,4% afirmaram se sentir à vontade para par-
ticipar e se sentiam mais confiantes em poder compartilhar suas
opiniões e experiências.

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Acredito que muitas pessoas na reunião me desmotivavam, em alguns
momentos, a falar sobre meus processos; não por culpa da reunião
geral, mas em muitos momentos não sentia que tinha um espaço
para discussões, meus posicionamentos na maioria das vezes eram
apresentados durante a reunião da preceptoria

Todos os participantes consideram importante a participação


direta e indireta de cada um dos residentes no programa, ao mesmo
tempo que 71,4% acreditam que o modo online pode ter contri-
buído para a não participação direta dos colegas, visto que presen-
cialmente podemos atravessar os diálogos, e manifestar opiniões
de forma mais fluida.

Como não é um ambiente aberto de falas, olhares, e visibilidade, às


vezes não conseguimos ter tanta conexão com as pessoas que estão
falando, como por exemplo para comentar ou acrescentar algo ao
assunto que está sendo discutido, e a ideia de fila acaba passando
uma posição de que temos que respeitar o próximo até conseguirmos
falar. Presencialmente seria mais fácil acrescentar ideias e questões
pela conexão do momento.

Um fator muito importante para o desenvolvimento das discus-


sões é a fila de inscrição de fala, ou a ordem de pronunciamento.
No modelo presencial, em algumas atividades como assembleias
e debates era possível observar uma organização desse tipo e a
maioria dos residentes afirmam que a fila é muito importante para
a dinâmica. No ambiente virtual, mais precisamente na plataforma
online “Google Meet”, quando alguém “levanta a mão”, abre-se uma

68 A construção da docência

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fila de espera para que as falas não saiam atravessadas umas às
outras, um meio de organizar determinada reunião.

Considero importante as inscrições, ainda mais online, onde o tempo


(devido à internet) é “diferente” dependo de cada conexão. Penso que
para todos falarem e serem ouvidos se inscrever seja bom, já que deixa
livre para qualquer um se inscrever.

Acho que podemos falar, não acho a cadência do presencial melhor,


até porque já fui interrompida várias vezes presencialmente; no online
quase nunca.

Mesmo havendo um grande número de participantes alegando


que a fila de fala é importante, 42,9% acreditam que esse método
da fila pode influenciar negativamente na fluidez das discussões,
tornando-se assim um limitante aos participantes. No entanto,
78,6% alegam ter entrado na fila e desistido de contribuir por
mudança de assunto antes de sua fala, além da insegurança, que
também foi evidenciada.

[…] algumas vezes o pensamento se perde em outras falas que o


assunto muda, acredito que o número alto de residentes também foi
limitante durante as reuniões, porque são muitas pessoas para opinar
e em alguns momentos me senti insegura.

Muitas vezes o assunto acaba mudando por alguém ter levan-


tado a mão antes e falar de outra coisa e aí perde a fala de algum
assunto anterior.

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Ao mesmo tempo que a “quinta parede” dá suporte para a rea-
lização das atividades diante do distanciamento social, ela também
pode inibir a espontaneidade das relações dos indivíduos presentes
em determinadas situações de EAD. No ambiente do Programa
de Residência Pedagógica, no qual as discussões traspassaram
os temas estritamente relacionados à educação e adentraram em
aspectos interpessoais da formação do educador, pode-se observar
a introspecção dos residente tendencialmente relacionada à orga-
nização dessas discussões e também aos sentimentos de insegu-
rança e desânimo que estão atrelados ao uso da internet. Levando
em consideração tais questionamentos relacionados às dinâmicas
estabelecidas no ambiente virtual das reuniões online, pôde-se
encontrar pontos positivos e negativos e que estes poderão ser ana-
lisados a fim de auxiliarem em planejamentos de práticas futuras
aos que interessarem.

70 A construção da docência

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A QUEM SERVE UMA BASE NACIONAL
COMUM CURRICULAR? UMA LEITURA
DA BNCC E SUA RELAÇÃO COM A REFORMA
DO ENSINO MÉDIO (LEI 13.415/2017)
Letícia Pavão Schinelo

INTRODUÇÃO
A Base Nacional Comum Curricular é um documento normativo
que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todas5 as estu-
dantes devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da
Educação Básica6. Ainda em fase de implementação, o documento
que integra a política nacional da Educação Básica foi proposto como
referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e
das redes escolares de todo o país e das propostas pedagógicas das
instituições educativas. Segundo o próprio, seu principal objetivo
é ser “[o] balizador da qualidade da educação no país por meio do
estabelecimento de um patamar de aprendizagem e desenvolvimento
a que todos os alunos têm direito”.

5. Neste texto utilizamos o plural feminino, referindo-nos às “pessoas” leitoras, professo-


res, pesquisadoras etc., na grande maioria dos casos. Buscamos, com isso, desacostumar
a leitura de aspectos sexistas da língua portuguesa, experimentando-a em possibilidades
(um pouco mais) inclusivas.
6. Retirado de <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base>. Acesso em 15 de jan;
de 2021.

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Para a construção de sua primeira versão em 2015 foi composta
uma equipe de docentes indicadas pelo Consed (Conselho Nacio-
nal de Secretários de Educação) e pela Undime (União Nacional
dos Dirigentes de Educação), e profissionais de 35 universidades
(NEIRA et al, 2016). Houve um largo processo de consulta pública
entre a primeira e segunda versões (segundo NEIRA [2016], foram
recebidas mais de 12 milhões de contribuições da sociedade civil
nesta etapa). Sua terceira versão foi composta por redatoras dife-
rentes da primeira e segunda e contou com a retirada de termos
como “identidade de gênero” e “orientação sexual” pelo Ministério
da Educação7, presentes na versão anterior.
Tendo sido homologada em 2017 (etapas da Educação Infantil
e Ensino Fundamental) e 2018 (etapa do Ensino Médio), o docu-
mento ficou estruturado em: textos introdutórios (geral, por etapa
e por área); competências gerais que devem ser desenvolvidas pelas
alunas ao longo de todas as etapas da Educação Básica; competências
específicas de cada área do conhecimento e dos componentes curri-
cular e Direitos de Aprendizagem ou Habilidades relativas a diversos
objetos de conhecimento (conteúdos, conceitos e processos) que as
estudantes devem desenvolver em cada etapa da Educação Básica –
da Educação Infantil ao Ensino Médio.
Após sua homologação, foi colocada como primeira tarefa de
responsabilidade direta da União a revisão da formação inicial e
continuada de professoras para alinhá-las à BNCC.

7. CANCIAN, Natalia. Ministério tira ‘identidade de gênero’ e ‘orientação sexual’ da base


curricular. Folha de São Paulo. 2017. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/
educacao/2017/04/1873366-ministerio-tira-identidade-de-genero-e-orientacao-sexual-
da-base-curricular.shtml>. Acesso em: 17 de jan. de 2021.

72 A construção da docência

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HISTÓRICO DA BASE NACIONAL
COMUM CURRICULAR
A construção da BNCC apoiou-se legislativamente nos seguin-
tes documentos públicos:

1. A Constituição Federal, em seu artigo 210:


“Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino funda-
mental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito
aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.”

2. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB, Lei nº 9.394/1996), em


seu artigo 26:
Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e
do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complemen-
tada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar,
por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e
locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.

3. As Diretrizes Curriculares Nacionais, em seu artigo 14:


Art. 14. A base nacional comum na Educação Básica constitui-se de
conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente, expres-
sos nas políticas públicas e gerados nas instituições produtoras do
conhecimento científico e tecnológico; no mundo do trabalho; no
desenvolvimento das linguagens; nas atividades desportivas e cor-
porais; na produção artística; nas formas diversas de exercício da
cidadania; e nos movimentos sociais.

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Tendo como referência os documentos supracitados, em 2015
foi instituído pelo MEC (Portaria No 592), juntamente com o Con-
selho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União
Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), o
grupo de redação responsável pela primeira versão de uma base
nacional comum curricular.
As etapas de construção da base foram a publicação da versão
preliminar em setembro de 2015; consulta pública com órgãos da
sociedade civil entre setembro de 2015 e março de 2016; publica-
ção da segunda versão do documento em maio de 2016, realização
dos seminários estaduais entre junho e agosto de 2016, entrega ao
Conselho Nacional de Educação (CNE) da terceira versão da Base
(com as partes do Ensino Infantil e Fundamental) em abril de 2017
e homologação desta parte em dezembro do mesmo ano, e, por
fim, apresentação da parte referente ao Ensino Médio ao CNE e
homologação da mesma em dezembro de 20188.

O DOCUMENTO
O documento da Base aplica-se à educação escolar tanto
pública quanto privada e orienta a formulação dos currículos das
três etapas da educação básica. Já em sua introdução apresenta-se
como sendo orientado por “princípios éticos, políticos e estéticos
que visam à formação humana integral e à construção de uma
sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, 2017). Entre
as suas noções fundantes está a de que os conteúdos curriculares

8. Retirado de <https://movimentopelabase.org.br/linha-do-tempo/>. Acesso em 15 de


jan. de 2021.

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que estão a serviço do desenvolvimento das competências, assim
como estabelecer a relação entre o que é básico-comum e o que é
diverso em matéria curricular.
Sua redação define aprendizagens essenciais que devem, ao longo
da Educação Básica, concorrer para assegurar às e aos estudantes o
desenvolvimento de dez competências gerais. Para a BNCC, com-
petência seria “a mobilização de conhecimentos (conceitos e pro-
cedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais),
atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida coti-
diana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”
(BRASIL, 2017). O documento também destaca que as dez compe-
tências apresentadas

inter-relacionam-se e desdobram-se no tratamento didático proposto


para as três etapas da Educação Básica (Educação Infantil, Ensino
Fundamental e Ensino Médio), articulando-se na construção de
conhecimentos, no desenvolvimento de habilidades e na formação
de atitudes e valores, nos termos da LDB. (BRASIL, 2017)

De maneira resumida9, são elas:

1. Conhecimento; 2. Pensamento científico, crítico e criativo; 3. Reper-


tório cultural; 4. Comunicação; 5. Cultura digital; 6. Trabalho e pro-
jeto de vida; 7. Argumentação; 8. Autoconhecimento e autocuidado;
9. Empatia e cooperação; 10. Responsabilidade e cidadania

9.  A versão integral das competências pode ser consultada em <http://basenacionalcomum.


mec.gov.br/abase/#introducao>.

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Tais competências expressam-se de maneira específica em cada
uma das áreas do conhecimento e são construídas por habilidades.
Todas articulam-se e se desdobram em expectativas de aprendizagem
nos cinco campos de experiência da Educação Infantil, e no Ensino
Fundamental e Médio estendem-se para competências específicas de
cada área do conhecimento, com habilidades a serem contempladas.
Os fundamentos pedagógicos da BNCC são dois: Foco no
desenvolvimento de competências (o que estudantes devem “saber”
e “saber fazer”) e Compromisso com uma educação integral (uma
construção intencional de processos educativos que promovam
aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades
e os interesses das estudantes e, de igual maneira, com os desafios
da sociedade contemporânea).
De modo geral, a BNCC está organizada em campos de expe-
riências na Educação Infantil e áreas do conhecimento nas etapas
do Ensino Fundamental e Médio. Para cada área de conhecimento
existem as competências específicas.

ETAPA DO ENSINO MÉDIO


A etapa do Ensino Médio, últimos três anos do Ensino Básico
brasileiro, somente foi efetivada como obrigatória em 2009, por
meio da Emenda Constitucional nº 59/2009 (BRASIL, 2009) que
previu a obrigatoriedade do ensino de quatro a dezessete anos de
idade. Sua versão na BNCC foi a última a ser proposta e homo-
logada, e teve que atender às demandas da Lei 13.415/2017, que
propôs a Reforma do Ensino Médio.
De maneira igual à etapa do Ensino Fundamental, o Ensino
Médio é composto por áreas de conhecimento (Linguagens e suas

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Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e
suas Tecnologias, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas) mas, dife-
rentemente da etapa anterior, estas não são divididas em componen-
tes curriculares. A Base argumenta que “as áreas do conhecimento
têm por finalidade integrar dois ou mais componentes do currículo,
para melhor compreender a complexa realidade e atuar nela” (BRA-
SIL, 2017), apoiada no Parecer CNE/CP nº 11/2009, que defende que
esta divisão não é necessariamente uma exclusão das disciplinas, mas
sim “o fortalecimento das relações entre elas e a sua contextualização
para apreensão e intervenção na realidade” (BRASIL, 2009).
Deste modo, cada área do conhecimento possui suas competên-
cias específicas e as habilidades (a área de linguagens possui também
as competências específicas da língua portuguesa, que, juntamente
com Matemática, é o único componente obrigatório nos três anos
do EM. Não há garantias de que as outras disciplinas serão oferta-
das no Ensino Médio, já que só há referência a “estudos e práticas”
de educação física, arte, sociologia e filosofia, em contraste com a
obrigatoriedade do ensino de português e matemática, conforme
alteração no artigo 35-A da LDB (BRASIL, 2017).
Paralelo às aprendizagens propostas nesta parte estão os itinerá-
rios formativos – cujo detalhamento é prerrogativa dos diferentes
sistemas, redes e escolas, conforme previsto na Reforma do Ensino
Médio. Como uma proposta de itinerário formativo está a forma-
ção técnica e profissional.
É importante ressaltar que a BNCC não ocupa a carga horária
completa do Ensino Médio, que, com a lei nº 13.415/2017, terá
seu tempo ampliado de forma progressiva para mil e quatrocentas
horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo

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de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária (pre-
viamente o EM contava com oitocentas horas anuais). A Base tem
como limite 1800 horas da carga total da etapa, representando a
formação geral básica do Ensino Médio.
As outras horas serão compostas pelos já mencionados itinerários
formativos. Segundo a BNCC estes podem ser estruturados com
foco em uma área do conhecimento, na formação técnica e profis-
sional ou, também, na mobilização de competências e habilidades
de diferentes áreas, compondo itinerários integrados. Como não há
menção de obrigatoriedade mínima de oferecimento dos itinerários
na lei 13.415/2017, é possível que haja uma diferença aprofundada
entre as possibilidades de escolha de estudantes de escolas com maior
acesso à estrutura e recursos e instituições de pequenos municípios
do interior, por exemplo, o que reforçaria ainda mais as desigualda-
des existentes no país e, principalmente, o acesso à educação básica.

A BNCC E A REFORMA DO ENSINO MÉDIO


A última etapa seria marcada pela consolidação do processo de cons-
trução democrática com a submissão da versão final da BNCC ao
CNE, não fosse a publicação da Medida Provisória (MP) n.º 746, de
22 de setembro de 2016, que modifica substancialmente o currículo
do ensino médio, marcando assim a maior alteração na atual Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Com essa MP, o MEC terá
que empreender alterações significativas no documento (NEIRA et
al, 2016, p. 37, grifo meu).

O trecho acima foi retirado do artigo “A primeira e segunda ver-


sões da BNCC: construção, intenções e condicionantes” (NEIRA et al,

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2016), que, do ponto de vista de um dos seus partícipes, narra o pro-
cesso de construção da primeira e segunda redações do documento,
assim como as intenções que mobilizaram as pessoas envolvidas.
Apresentando, de modo geral, a construção da Base como um
processo democrático, bem quisto aos olhos dos autores, o pará-
grafo referente a etapa do Ensino Médio (ainda a ser construída,
naquele momento10) destaca-se ao apontar a Medida Provisória
746 como o único impedimento para que fosse completamente
democrático a submissão da BNCC ao CNE (Conselho Nacional
de Educação). Os autores comentam, ainda, que a MP, modifi-
cando substancialmente o currículo do Ensino Médio e provo-
cando grande alteração na LDB faria com que a equipe responsável
pela terceira etapa (diferente daquela das duas anteriores, já que
logo após a publicação da MP 746 houve a dissolução do Fórum
Nacional de Educação (FNE)11 – composto democraticamente por
entidades da sociedade civil que deveriam opinar sobre a BNCC)
tivesse que empreender mudanças significativas no documento.
Para a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação,

Toda política pública é elaborada com intencionalidades, tendo objeti-


vos, públicos alvos e mecanismos de financiamento, implementação e
fiscalização. Sua elaboração deve primar pelo debate público, sobretudo

10.  Esta etapa foi apresentada somente na terceira versão do documento, no começo de
2018, posterior ao artigo citado.
11.  SHAW, Camila. Entenda o que é o Fórum Nacional de Educação (FNE) e como a
ação arbitrária do MEC pode dissolver sua missão construída democraticamente na
última década. Disponível em: <https://anped.org.br/news/entenda-o-que-e-o-forum-
nacional-de-educacao-fne-e-como-acao-arbitraria-do-mec-pode-dissolver>. Acesso em:
17 de jan. de 2021.

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quando os objetivos focarem verdadeiramente a sociedade e não os agen-
tes privados. Portanto, os parâmetros de elaboração das políticas públicas
são fundamentais para se verificar a quem de fato elas atendem e o que
pretendem mediar/intervir nas relações sociais. (CNTE, 2018, p. 413)

Já existindo um projeto de lei (PL 6.840/2013) que tramitava uma


reforma do Ensino Médio desde 2013 e que já havia inclusive passado
por várias consultas públicas, questiona-se: qual a necessidade de
interromper o debate até então democraticamente elaborado acerca
do assunto com uma medida provisória? Que intencionalidades
há na MP proposta pelo então governo interino de Michel Temer?
A medida provisória foi aprovada no Congresso Nacional em
apenas cinco meses12 e tornou-se a Lei 13.415/2017. O Parlamento
aprovou empréstimo junto ao Banco Internacional para Recons-
trução e Desenvolvimento (BIRD) para financiar a reforma educa-
cional em algumas escolas de referência nos estados; o Ministério
da Educação publicou a portaria 727/17 para instituir regime de
colaboração de custeio nas escolas de referência utilizando recursos
do empréstimo contraído no Bird; e, com base na Constituição
Federal – CF (art. 210), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB (art. 26) e no Plano Nacional de Educação – PNE
(estratégias 2.1 e 3.2), enviou minutas da BNCC e de alteração das
DCN-EM ao Conselho Nacional de Educação, e este órgão coa-
dunado ao MEC convocou cinco audiências públicas para debater
parte dessas minutas, referentes somente a BNCC (CNTE, 2018).

12.  A MP foi apresentada ao Congresso em setembro de 2016 e sancionada como lei em


fevereiro de 2017.

80 A construção da docência

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Faz-se necessário recordar que a MP foi apresentada rapida-
mente justamente por ter o PL n.º 6.840/2013 como proposta
base. Entretanto, tanto ela quanto seus desdobramentos (Lei n.º
13.415/2017, BNCC e DCNEM/Parecer n.º 03/2018 CNE/CEB)
representaram um rompimento do Projeto de Lei n.º 6.840/2013
cujas discussões, assim como críticas e propostas alternativas,
haviam se iniciado em 2011 (KOEPSEL et al, 2020). É importante
destacar também que ela foi sancionada antes mesmo da apro-
vação e publicização da BNCC do Ensino Médio, seu “corpo e
alma” (idem). Caso o documento não fosse aprovado, a lei ficaria
praticamente inconclusa.
Para Koepsel et al (2020), a MP, “intensamente questionada e
rejeitada por inúmeros brasileiros que entenderam ser este enca-
minhamento inapropriado para uma alteração curricular numa
sociedade que, considerada democrática, ao menos deveria ter tido
a oportunidade de discuti-la” (KOEPSEL et al, 2020, p. 02), foi o pri-
meiro ato antidemocrático. Sua continuação, para as autoras, seria
o modo como o MEC encaminhou a sua versão de BNCC para o
Conselho Nacional de Educação (CNE), interrompendo a discussão
que vinha sendo travada, e finalizou com a aprovação da atualização
das DCNEM (idem). Tendo como razão de sua proposição comple-
tar a reforma inicialmente apresentada como Medida Provisória,
esta etapa da Base provoca discussões e questionamentos diversos.
Como sabido, a primeira versão da BNCC foi apresentada em
2015. Foi a pedido do Conselho de Secretários Estaduais de Edu-
cação (CONSED) que o ensino médio foi retirado do conjunto de
discussões da BNCC de toda a educação básica, sendo reapresen-
tado somente após a aprovação da Lei n.º 13.415/2017.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 81

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A reforma vendida como “O Novo Ensino Médio – Escolas em
tempo integral”, foi, de maneira geral, publicada com a finalidade
de produzir mudanças de duas ordens: na organização curricu-
lar do ensino médio e no financiamento público desta etapa da
educação básica (SILVA, 2018). Para fazê-lo, provocou alterações
significativas em diversos documentos, conforme listado a seguir
(e sobre a qual comentarei especificamente o primeiro tópico):

• Lei nº 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional (LDB);
• Lei nº11.494/2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação básica e de Valorização de Pro-
fissionais da Educação;
• A Consolidação das Leis do Trabalhos – CLT, aprovada pelo
Decreto-Lei nº5.42/1943 e o Decreto-Lei nº 236/1967;
• Revogou a Lei 11.161/2005 que dispõe sobre o ensino de lín-
gua espanhola;
• Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino
Médio em Tempo Integral.

Quanto à organização curricular, a proposta consiste em dividir


o EM em duas partes, conforme alteração na LDB:

Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacio-
nal Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser
organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares,
conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos
sistemas de ensino, a saber:

82 A construção da docência

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I – linguagens e suas tecnologias;
II – matemática e suas tecnologias;
III – ciências da natureza e suas tecnologias;
IV – ciências humanas e sociais aplicadas;
V – formação técnica e profissional. (BRASIL, 2017)

Dentro dessa divisão, o artigo 35-A, parágrafo 5, define que a carga


horária da BNCC não poderá ser superior a mil e oitocentas horas.
Outra possibilidade seria a organização do EM em módulos, adotando
o sistema de créditos com finalidade específica. Não há menção ao
mínimo de itinerários que cada escola deva oferecer. Essa escolha será
feita pelo sistema estadual, que levará em conta as especificidades dos
municípios para o oferecimento de itinerários em cada escola.
Também houve modificação quanto à carga horária total da
etapa, presente no Art. 24 da LDB:

§ 1º A carga horária mínima anual de que trata o inciso I do caput


deverá ser ampliada de forma progressiva, no ensino médio, para
mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no
prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga
horária, a partir de 2 de março de 2017.

§ 2o Os sistemas de ensino disporão sobre a oferta de educação de


jovens e adultos e de ensino noturno regular, adequado às condições
do educando, conforme o inciso VI do art. 4o. (BRASIL, 2017)

Observa-se que só existe prazo para se chegar às mil horas, uma


hora em relação à carga horária atual. Não há, tampouco, referência

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 83

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clara sobre como essa expansão irá acontecer no ensino médio
noturno. Caso as mil e quatrocentas horas sejam implementadas, o
que representaria sete horas diárias, como incluir essa carga horária
aos estudantes do Ensino de Jovens e Adultos, que normalmente
é à noite, ou quaisquer turmas nessa modalidade?
Do mesmo modo, caso realmente se chegue à jornada integral
no Ensino Médio, como financiar mudança tão extrema respeitando
a Emenda Constitucional n.º 095/2016, do teto de gastos? É mais
uma contradição aprovar a Lei 13.415/2017 e não revogar a maior
PEC de contenção de investimentos públicos que o país já viu.
A retirada da exigência de que apenas em universidades e ins-
titutos superiores de educação se faça a formação de docentes em
nível superior (art. 62 da LDB, BRASIL, 2017) poderão atuar na
educação básica, e a inclusão, de que profissionais com notório
saber poderão atuar na mesma (art. 61 da LDB, BRASIL, 2017),
é um ataque à docência tanto quanto à qualidade do ensino13.
A alteração do art. 36, § 11 apresenta um flerte com a privati-
zação da educação:

Os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar


convênios com instituições de educação a distância com notório reco-
nhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação:
I – demonstração prática;

13. “O docente mais adequado a essa tendência é o adaptável, cuja formação inicial e con-
tinuada se adequa às demandas mais imediatas e se volta para a prática e a desvalorização
do conhecimento teórico, o que resulta na possibilidade de que sua formação tenha custos
menores e se processe de forma mais rápida.” (KOEPSEL et al, 2020, p. 12)

84 A construção da docência

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II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência
adquirida fora do ambiente escolar;
III – atividades de educação técnica oferecidas em outras insti-
tuições de ensino credenciadas;
IV – cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais
ou estrangeiras;
VI – cursos realizados por meio de educação a distância ou edu-
cação presencial mediada por tecnologias. (BRASIL, 2017)

As comprovações listadas serviriam para ocupar parte da carga


horária do Ensino Médio.
Para além das problemáticas já apresentadas, acredito que a
maior dentre elas seria a chamada “falácia da possibilidade de esco-
lha”. Uma propaganda televisiva14 de dezembro de 2016 mostrava
diversas estudantes levantando-se em uma sala repleta de adoles-
centes e falando afirmações como “Eu escolho o que estudar? Eu
aprovo!” (exatamente nos meses prévios à aprovação da MP 746
enquanto lei).
A escolha tão publicizada refere-se aos itinerários formativos,
que, como já visto, acontecerão conforme disponibilidade de recur-
sos humanos e financeiros das escolas, o que aprofundará o abismo
entre o ensino particular e público. Essa “escolha” não leva em
consideração condições sociais e econômicas determinantes nos
contextos escolares e de cada estudante, construindo a imagem de

14. “Com o Novo Ensino Médio, você tem mais liberdade para escolher o que estudar!”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kdERkLO3eTs>. Acesso em: 18 de
jan. de 2021.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 85

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que a aprendizagem resulta unicamente do desejo e da boa escolha
do sujeito, constituindo-se independente de todas as condições de
materialidade da vida (KOEPSEL et al, 2020).
Sancionar a lei de uma reforma proposta por meio de uma
medida provisória, e com tantas problemáticas é ir em direção con-
trária à construção de políticas públicas que promovam a melhora
da qualidade de ensino, o acesso à educação e a permanência nas
escolas. A Lei 13.41/2017 possui perversas consequências, sendo
a maior delas, nas palavras de Koepsel et al (2020),

a construção de uma formação que se fixa no presentismo, no utilita-


rismo, no imediatismo que tem como resultado a perda da perspectiva
do sujeito jovem enquanto ser social, enquanto um sujeito com “deter-
minada origem familiar, que ocupa um determinado lugar social e se
encontra inserido nas relações sociais” (DAYRELL, 2003, p. 43). Tal
condição é imprescindível para que o segmento jovem assuma os fra-
cassos como determinantes de suas próprias “escolhas”, de forma que
as relações de produção material fiquem intocáveis no atual regime
de acumulação do capitalismo. (KOEPSEL et al, 2020, p. 14)

A QUEM SERVE UMA BASE COMUM CURRICULAR?


A professora Maria do Carmo Martins, líder do Grupo de
Pesquisa Memória, História e Educação (Memória) da Faculdade
de Educação (FE) da Unicamp, relata em entrevista ao Jornal da
Unicamp (2017):

86 A construção da docência

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A Base não é uma pauta específica dos segmentos privatizantes. Ao
contrário, ela está na agenda de diferentes grupos sociais, inclusive
os que fazem uma forte defesa da escola pública de qualidade. No
entanto, os representantes dos interesses mercadológicos se vincu-
laram ao Estado e conseguiram explicitar suas demandas. Uma das
consequências dessa estratégia foi a saída de alguns movimentos do
processo, porque perceberam que não poderiam mais fazer a defesa
da escola pública.

Ela também comenta sobre o caráter conservador do docu-


mento: “Mas um olhar atento verificará que a Base é muito tímida
em relação a direitos sociais, a ações de inclusão e a questões de
gênero, posição que está em consonância, por exemplo, com a
postura daqueles que defendem o Escola sem Partido”.
Realmente, é sabido que da segunda para a terceira versão da
BNCC, como já comentado, foram retirados termos referentes à
igualdade de gênero (para os movimentos conservadores, como o
ESP, o conteúdo “esquerdista” e de ideologia de gênero). Conforme
reportagem da Folha de São Paulo15, na página onze da segunda
versão da Base havia a frase: “A equidade requer que a instituição
escolar seja deliberadamente aberta à pluralidade e à diversidade, e
que a experiência seja acessível, eficaz e agradável para todos, sem
exceção, independentemente de aparência, religião, etnia, sexo,
identidade de gênero, orientação sexual ou quaisquer outros
atributos, garantindo que todos possam aprender”.

15. Ver nota nº 2.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 87

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Na versão seguinte a frase foi alterada para “A equidade requer
que a instituição escolar seja deliberadamente aberta à pluralidade
e à diversidade, e que a experiência seja acessível, eficaz e agra-
dável para todos, sem exceção, independentemente de aparência,
religião, etnia, sexo, ou quaisquer outros atributos, garantindo que
todos possam aprender”. Ou seja, como comenta Elizabeth Macedo
(2020), “a BNCC é apresentada como uma política para todos, e a
exclusão que ela potencialmente promove é decorrência da ação
individual daqueles que são excluídos”.
Outra questão bastante criticada na BNCC é o seu direciona-
mento de todo o conhecimento ali esquematizado para o desen-
volvimento e cumprimento de competências. Embasada nos artigos
32 e 35 da LDB, a Base nomeia este termo como o conhecimento
mobilizado, operado e aplicado em situação (BRASIL, 2017).
Para Nogueira e Dias (2018, p. 41), “competências”, predicada
como conhecimento aplicado, interessado, se opõe a “conheci-
mento desinteressado”, predicado como conhecimento erudito,
o qual é posto tendo como fim apenas em si mesmo”. As autoras,
então, questionam como seria esse conhecimento desinteressada
dentro do jogo de forças em que atua (a competitividade merca-
dológica), e retomam as palavras de Mariza Vieira da Silva (2018):

O que chama a nossa atenção é a noção de conhecimento, que pode


ser discutida em relação a outros elementos não ditos como “infor-
mação”, “reconhecimento”. A BNCC toma o conhecimento como uma
racionalidade instrumental, naturalmente objetivo e neutro, mobi-
lizado como algo pronto, acabado, capaz de ser aplicado, ativado,
utilizado por um sujeito intencional e consciente capaz de dominá-lo

88 A construção da docência

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e controlá-lo. Um conhecimento transparente, sem equívocos, em
situação de uso, de comunicação como ação individual na solução de
problemas coletivos, sociais (SILVA, 2018, p. 112 apud NOGUEIRA
E DIAS, 2018, p. 42).

Como pode ser este um conhecimento “naturalmente obje-


tivo e neutro” se encontramos no componente História (Ensino
Fundamental), na Unidade Temática “A organização do poder e
as dinâmicas do mundo colonial americano”, dentro do Objeto
de Conhecimento “A conquista da América e as formas de orga-
nização política dos indígenas e europeus: conflitos, dominação e
conciliação”, as seguintes habilidades:

(EF07HI08) Descrever as formas de organização das sociedades


americanas no tempo da conquista com vistas à compreensão dos
mecanismos de alianças, confrontos e resistências.
(EF07HI09) Analisar os diferentes impactos da conquista europeia
da América para as populações ameríndias e identificar as formas
de resistência (BRASIL, 2017, grifo meu).

Ao referir-se ao processo de colonização e exploração das Amé-


ricas, que causou o maior genocídio das populações indígenas visto
até então, além de uma das maiores chagas da humanidade, a escra-
vatura dos povos africanos, de conquista europeia, a BNCC reforça
um modelo de conhecimento imperialista e colonial, afastando-se
das epistemologias decoloniais e da construção de saberes que
reconhecem o processo violento e exploratório de construção da
América Latina e do Brasil. Não é, de maneira nenhuma, neutra.

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Outra questão apontada por diversos pesquisadores e pesqui-
sadoras é a de a BNCC possuir traços neoliberais fortíssimos. Para
Koepsel, Garcia e Czernizs (2020, p. 10), “as indicações para forma-
ção, presentes na reforma do ensino médio pela BNCC, estão em
sintonia com o que preconiza a OCDE para o desenvolvimento da
educação com inspiração capitalista, visando tanto a um modelo
de formação, quanto a um modelo de escola”. Esse modelo, para as
autoras, estaria bem representado na definição de Pereira:

Essa concepção de educação assenta-se em quatro eixos, a saber: i)


assemelhar escolas com empresas, com o intuito de oferecer uma
formação polivalente, centrada em conhecimentos rudimentares;
porém, úteis ao mercado de trabalho; ii) tratar a educação como
treinamento e instrução de competências e habilidades individuais,
estimulando a competitividade; iii) exigir, por meio de avaliações
externas, as características de escola-empresa no quase-mercado edu-
cacional, objetivando a exigência de alunos preparados e adaptados
às demandas do mercado; e iv) exigir e responsabilizar os estudantes
e jovens pela aquisição das destrezas necessárias aos padrões capita-
listas de empregabilidade (PEREIRA, 2018, p. 111 apud KOEPSEL
et al, 2020, p. 10).

Ao apresentar o currículo como responsável por mudanças


quantitativas em relação aos parâmetros utilizados para medir
qualidade (como as avaliações internacionais em educação e os
vestibulares), sem levar em conta as condições materiais e huma-
nas necessárias para que o processo de aprendizagem ocorra, e ao
centralizar o que se espera do conhecimento (as competências),

90 A construção da docência

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em detrimento dele, a BNCC reforça um modelo de educação que
se sujeita à razão econômica.
Ao excluir de seu documento menção explícita a pluralidade que
a equidade exige também em questão de diversidade de gênero e de
orientação sexual, a Base não só cede à pressão de movimentos con-
servadores como apaga subjetividades e maneiras de existir, negando
os seus próprios “princípios éticos, políticos e estéticos que visam à
formação humana integral e à construção de uma sociedade justa,
democrática e inclusiva” (BRASIL, 2017).
Ao construir uma de suas etapas de modo a encorpar uma
reforma antidemocrática, a Base Nacional Comum Curricular dá
base para um aprofundamento das desigualdades educacionais e
sociais do país.
Atuar perante a Lei 13.415/2017 e à adoção da BNCC, de modo
a impedir ou, ao menos, alterar o curso desta educação bancária16,
que cabe será um labor incessante. Como fazê-lo caberá à formação
continuada de professoras, ao trabalho na formação docente dentro
das licenciaturas nas universidades, da liberdade individual em sala
de aula, das organizações escolares, de pais, mães e comunidades,
da sociedade civil organizada para reivindicar seus direitos e con-
tinuar garantindo que aquilo que está previsto na Constituição: a
liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o saber, o pen-
samento e a arte; o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas

16. Refiro-me à concepção freiriana de educação bancária, que critica a transformação


da educação, em principal pela sua tônica narradora, no ato de depositar conteúdos nas
estudantes, deixando como única margem de ação a estas a de “receberem os depósitos,
guardá-los e arquivá-los” (FREIRE, 1977, p. 62), enxergando-a na proposta da Base Nacional
Comum Curricular e, em principal, a reforma do Ensino Médio.

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e a valorização das profissionais da educação escolar, garantidos,
em forma de lei, planos de carreira, com ingressos exclusivamente
por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas.
Como reforça Macedo (2020, p. 520), “a luta possível [...] é o
trabalho incessante para retomar o político ou a diferença consti-
tutiva que se tem tentado erradicar”.

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zante e ameaça autonomia, avaliam especialistas. Jornal da UNI-
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92 A construção da docência

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FREIRE, Paulo. Educação bancária e educação libertadora. In: PATTO,
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KOEPSEL, Eliana C. N.; GARCIA, Sandra R. O; CZERNISZ, Eliane
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A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 93

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Escola Municipal Professora Juventina Drummond,
Morro Santana, Ouro Preto.

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II – ENCONTROS

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RELAÇÕES ÉTNICAS E RACIAIS NA ESCOLA

Luana Tolentino17
Marcelo Donizete18

Mediação: Bruno Vinícius de Souza e Lawanda Ritchely


Equipe técnica: Caroline Garcia e Laura Ribeiro
Transcrição: Evelyn Aparecida Grope Oliveira

Por raça entende-se a construção social forjada nas tensas relações


entre brancos e negros, muitas vezes, disfarçadas como harmoniosas,
já o termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para marcar que
essas relações tensas são devidas a diferenças na cor da pele e traços

17. SANTOS, L. D. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMG,


professora de História da educação básica desde 2008, tem se dedicado à formação inicial
e continuada de professores. É autora do livro “Outra Educação É Possível: Feminismo,
Antirracismo e Inclusão em sala de aula” (2018), é colunista da revista “Carta Capital” e
pesquisadora do NEIA, Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Alteridade na UFMG.
18. Graduado em Filosofia pela PUC Campinas, mestre e doutor em Educação pela Facul-
dade de Educação da Unicamp, professor da área de Fundamentos da Educação com ênfase
nas áreas de políticas educacionais, filosofia e história da educação para as relações étnico-ra-
ciais. Na UFO é participante do núcleo dos estudos africanos e indígenas e foi coordenador
do PIBID AFRO e do PIBID AFRO-INDÍGENA. É autor do livro “A Formação Étnico-racial
nas Escolas de Mariana, os ecos da Lei 10639/2003”.

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fisionômicos, ou são também devido à raiz cultural plantada na ancestra-
lidade africana, diferindo em visão de mundo, valores e princípios das de
origem indígena, europeia e asiática. (Alves; Stoll; Spindola, 2016, p. 04).

A citação acima abre a discussão sobre as relações étnicas e raciais


na escola e nos posiciona frente ao significado dos temos “raça e
étnico”. Luana Tolentino inicia afirmando que é preciso ressaltar o
valor da oportunidade que os residentes estão tendo de se prepara-
rem para a docência, para a sala de aula. A partir de algumas leituras
sabemos que há lacunas na formação inicial dos professores, para
tratar da educação das relações étnico-raciais e da diversidade. Diz
ela: ver esse projeto de Residência Pedagógica, este compromisso dos
cursos de Música e de Artes Cênicas preparando vocês para o trato
dessas questões é uma realização, um motivo de muita felicidade
para mim. Minha identidade profissional está na educação básica,
professora de História de escolas públicas periféricas. Desde 2019
tenho me dedicado à formação inicial e continuada de professores.
Passando pela UFOP como professora substituta e dando aulas nos
departamentos de Música e de Artes Cênicas, fico muito feliz em
ver essa caminhada, ver que mesmo com todo esse contexto (pande-
mia Covid-19), com as dificuldades que sabemos quais são – sejam
dificuldades institucionais, seja esse processo de desqualificação
deliberada dos professores, de perseguição, de um acirramento da
violência racista – e estamos aqui tratando dessas questões.
O racismo é algo muito presente e que tem provocado abismos
enormes no nosso país. A educação tem sido um instrumento de
manutenção das desigualdades. Por isso a luta da população negra
pelo direito de estar e de permanecer, de ter êxito na escola, é muito

98 A construção da docência

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antiga. Desde o século XIX, já encontramos registros nos jornais da
imprensa negra sobre essa luta e esse desejo da população negra pelo
direito de frequentar a escola. Quando voltamos para o século XXI,
percebemos que esse direito continua sendo negado pelo que se faz
necessário que estudantes e professores das universidades assumam
o compromisso de mudar essa história.
Em 2020 o IBGE divulgou uma pesquisa que apontou os seguintes
dados: no ano de 2019, 10.000.000 (dez milhões) de jovens com idade
de 14 a 29 anos não concluíram o ensino médio e desse total 70% eram
negros. Outra pesquisa promovida pela Fundação Tide Setúbal, uma
organização da sociedade civil, a respeito da avaliação e rendimento
escolar em turmas do quinto ano de Escolas Municipais da cidade de
São Paulo, constatou o seguinte: que em relação às notas, os meninos
negros apresentaram as notas mais baixas, e na mesma pesquisa as
meninas negras ficaram em penúltimo lugar.
A escola produz e reproduz esses processos discriminatórios
que observamos na sociedade. A escola ainda um espaço bastante
excludente, com bastante dificuldade de se repensar e de perceber
os estudantes como sujeitos que estão ali na sua integridade. Pre-
cisamos afirmar e reafirmar a questão da formação dos professores
para ter uma preparação adequada para o ambiente escolar.
De acordo com o pensamento do professor José Jorge de Car-
valho19, um dos impeditivos para uma formação adequada dos

19. Membro do Comitê Científico do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares,


José Jorge de Carvalho é graduado em Composição e Regência pela Universidade de Bra-
sília – UnB (1973), mestre em Antropologia Social (Etnomusicologia) pela The Queen’s
University Of Belfast (1978) e doutor em Antropologia também pela The Queen’s University
Of Belfast (1984). Concluiu pós-doutorado pela Rice University (1995) e pós-doutorado pela
University of Florida (1996). Foi Catedrático Tinker Professor na University of Wisconsin

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 99

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professores é o racismo acadêmico. Quando refletimos sobre a
nossa formação em relação aos planos de ensino, percebemos
que esses são orientados por uma matriz branca e eurocêntrica.
O professor Kabengele Munanga20 utiliza-se da expressão “o cânone
acadêmico é formado por machos, brancos e mortos”. Desse modo,
como podemos ensinar? Como aprendemos? Como nos prepara-
mos para o trato da diversidade que marca o nosso país? Preci-
samos saber que recebemos uma educação extremamente racista
desde os primeiros anos de vida e é por esse olhar que somos edu-
cados, que olhamos a vida em grupo. Tratar a questão étnico-racial
nas escolas, é um exercício de olhar para dentro, perceber quem
somos enquanto educadores e cidadãos. Nesse sentido, a Resi-
dência Pedagógica torna-se um movimento de resistência e muita
esperança, pois é preciso a valorização da profissão docente e o
compromisso da sociedade como um todo.
O comunicólogo Muniz Sodré21, ativista histórico do movi-
mento negro, propõe que a superação do racismo passa pelo sen-
sível, por olhar para dentro, enxergar, rever e desconstruir a partir

– Madison (1999). É professor titular no Departamento de Antropologia da UnB e Coor-


denador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia e Inclusão no Ensino Superior e
na Pesquisa (INCT), do Ministério de Ciência e Tecnologia e do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Seu trabalho como antropólogo se
desenvolve principalmente nas seguintes áreas: Etnomusicologia, Estudos Afro-brasileiros,
Estudo da Arte, Religiões Comparadas, Mística e Espiritualidade, Culturas Populares, e
Ações Afirmativas para os Negros e Indígenas. É Pesquisador 1A do CNPq.
20. Antropólogo e professor brasileiro-congolês. É especialista em antropologia da popula-
ção afro-brasileira, atentando-se à questão do racismo na sociedade brasileira. É graduado
pela Université Oficielle du Congo e doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo.
21. Muniz Sodré de Araújo Cabral é um jornalista, sociólogo e tradutor brasileiro, professor
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação.

100 A construção da docência

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da empatia da sociedade. Questionado a respeito de qual seria(m)
o(s) caminho(s) para a superação do racismo afirmou que a saída
“é a educação sensibilizadora, que está fora do juízo antropológico,
da argumentação, no discurso racional. É o afeto, o sentimento, a
compaixão, pois apenas o sentimento pode agir contra o racismo.
Para ele o que contribuirá para a superação do racismo é exata-
mente a sensibilidade e nós vivemos em meio a uma insensibili-
dade social. Ou seja. Precisamos pensar a educação das relações
étnico-raciais a partir do afeto, do sensível, do olhar para dentro
e de reconhecer que somos moldados para e por uma sociedade
racista, reproduzindo esses preconceitos em sala de aula.
Luana Tolentino conclui sua exposição que há uma falta de
reconhecimento do direito desses sujeitos de frequentar e perma-
necer na escola, causada pelos mecanismos de exclusão, ora sutis,
ora violentos.
O convidado Marcelo Donizete inicia sua fala com a leitura
do poema “O Passado e o Futuro” do livro “Contos Populares de
Angola”, sobre a literatura Quimbundo22:

Dois homens caminhavam por uma estrada onde encontraram um


vendedor de vinho de Palma. Os viajantes pediram-lhe o vinho. E o
homem prometeu satisfazê-los, mas com uma condição: terão que me
dizer os vossos nomes. Um deles falou: – chamo-me De Onde Venho. E
o outro: – chamo-me Para Onde Vou. O homem aplaudiu o primeiro
nome e reprovou o segundo negando Para Onde Vou, o vinho de Palma.

22. A língua quimbundo (em quimbundo: kimbundu), bundo (em quimbundo: mbundu),
loanda, loande, luanda, lunda ou ambundo (mbundu) do norte é uma língua africana falada
no noroeste de Angola, incluindo a província de Luanda.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 101

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Começou uma discussão e dali saíram à procura do juiz. Este ditou logo
a sentença: – o vendedor de vinho de Palma perdeu, Para Onde Vou
é que tem razão, porque De Onde Venho, já nada pode-se obter, pelo
contrário, o que se pode encontrar está Para Onde Vou.

Quando tratamos das relações étnicas-raciais, temos que


olhar para esse lugar da história que marcou a tradição dos povos
negros, não apenas no Brasil, mas também na África. Assim, o “De
Onde Venho” se justifica, mas o “Para Onde Vou” é justamente
esse debate necessário que fazemos para entender essas constru-
ções da identidade do sujeito na própria condição específica da
sua realidade.
Olhando para dentro da escola essa discussão se torna mais
específica, porque há uma resistência muito grande por parte de
indivíduos que tratam dessa temática. A lei 10.63923 e a lei 11.64524
destacam justamente como sendo disciplinas obrigatórias fun-
damentais para o entendimento, o resgate e a reconstrução dos
principais pilares de formação da cultura brasileira, resgatando
discussões sobre a cultura africana e indígena.
Nesse sentido, Marcelo Donizete oferece um testemunho pessoal:

23. A lei 10.639 é uma lei do Brasil que estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história
e cultura afro-brasileira” dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares
dos ensinos fundamental e médio. Também estabelece o dia 20 de novembro como o Dia
da Consciência Negra no calendário escolar.
24. Lei nº 11.645. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº
10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

102 A construção da docência

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Quando coordenei tanto o PIBID AFRO, quanto o PIBID AFRO-IN-
DÍGENA, a minha preocupação junto com os estudantes foi tentar
trabalhar não apenas o problema do racismo – embora seja a questão
central – mas trabalhar a cultura, literatura e história dos povos afri-
canos e indígenas, compreendendo todo o processo e importância
que tiveram na formação social e ética da nossa sociedade.

Em seguida, destaca que lhe foi apresentado um dado do Con-


selho de Promoção de Igualdade Racial da cidade de Ouro Preto
muito preocupante. Diz respeito à população que vive em áreas
periféricas sendo em sua maioria pessoas negras. O quantitativo
de pessoas que se contaminam e consequentemente vêm a óbito
com a Covid-19 são moradores pretos na idade dos 20 aos 40 anos.
Todo esse contexto está ligado a uma questão de gênero, social e
geográfico, são três elementos que mostram o quanto ainda pre-
cisamos avançar quando tratamos de discussões relacionadas às
questões étnico-raciais. Há uma tendência na consciência social
de achar que frisar essa temática em específico, significa fortalecer
ainda mais o problema racial e o racismo na sociedade e na escola.
Muito pelo contrário, é justamente desconstruirmos esses conceitos
para tentar diminuir o que vivenciamos na realidade.
Qual seria, então, o papel do branco na luta antirracista? De
acordo com a professora Luana Tolentino tem-se criado uma
expectativa de que a luta antirracista é apenas dos negros, quando
na verdade é de toda a sociedade. Ao lembrar-se de uma das coi-
sas mais sábias que já ouviu na vida, a doutora cita a fala de sua
ex-aluna: “professora, não fomos nós que inventamos o racismo,
sendo assim, não é justo, que nós negros tenhamos que dar conta

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 103

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disso, é preciso que toda a sociedade assuma o seu compromisso
de superar esse racismo que estrutura o nosso país.”
A escola brasileira nasceu de uma lógica excludente. Então fica
evidente que esse sujeito não se enxerga nesse espaço e isso vai
criar preconceitos e os problemas raciais que vivenciamos. Essas
legislações educacionais vêm exatamente para tensionar esse apa-
gamento, esse silenciamento em relação às artes não oriundas do
continente europeu, que são entendidas como legítimas, como
manifestações artísticas. O Teatro Experimental do Negro25, por
exemplo, foi um movimento importantíssimo, capitaneado por
Abdias Nascimento26 e não aparece na formação escolar. Tudo isso
passa pela necessidade de rever o currículo, de fazê-lo caminhar na
direção dessa legislação. Não me refiro apenas à Educação Básica,
mas um dos pontos que as diretrizes nacionais curriculares da edu-
cação das relações étnicas-raciais trata é a questão da formação dos
professores. Daí a necessidade de a universidade rever seus projetos
pedagógicos, para poder formar os professores para a diversidade.
As manifestações artísticas oriundas de grupos não hegemônicos
precisam de reconhecimento, pois elas existem e fazem parte do
nosso país, da nossa cultura. Mas têm sido negligenciadas, não
têm sido entendidas como conteúdo obrigatório. Portanto, está aí

25. O Teatro Experimental do Negro foi uma companhia teatral fundada por Abdias Nasci-
mento em 1944, no Rio de Janeiro. Sua fundação concentrava o desejo de valorizar e abrir
novos caminhos para pessoas negras nas artes cênicas e na sociedade brasileira.
26. Abdias do Nascimento foi ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor
universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras brasilei-
ras e um dos maiores pensadores do Brasil. Dentre seus diversos feitos, Abdias Nascimento
foi responsável pela idealização do Teatro Experimental do Negro.

104 A construção da docência

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a necessidade da universidade se repensar, de enxergar essas vozes
de outras maneiras.
Luana Tolentino completa o debate chamando atenção para o
contexto que a BNCC foi gestada. O contexto de um avanço de
uma política neoliberal, de uma disputa em relação aos temas de
gênero, de raça, de uma tentativa de escamotear e de apagar esses
temas deste documento. Percebe-se que esse documento muitas
vezes é pensado como único elemento orientador do fazer docente,
por isso a BNCC precisa estar em diálogo com a realidade na qual
estamos inseridos, pois ela pode ser um instrumento que colabora
com o nosso trabalho, se olhada de uma maneira crítica. A educa-
ção precisa fazer sentido em uma relação dialógica na qual todo
mundo aprende e que todo mundo ensina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Alves, S. S., Garcia Stoll, V., & Colman Espíndola, Q. (2016). (Re)Edu-
cação das Relações Étnico-Raciais: Ação-reflexão na formação de
professores na Educação Básica. RELACult – Revista Latino-Ame-
ricana de Estudos em Cultura e Sociedade, 2(1), 13-29. <https://
doi.org/10.23899/relacult.v2i1.91>

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 105

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ESCOLA SEM PARTIDO E
MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS

Ramuth Marinho27
Analise da Silva28

Mediação: Leticia Pavão Schinelo e Isabela Freiria Yeda Macedo


Equipe técnica: Pedro Gaban Petindá Moreira e Matheus Felipe Marques Pessôa
Transcrição: Pedro Henrique Bezerra Lopes

27. Graduado em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre
em educação pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). Atualmente atua como
professor no Ensino Municipal de Belo Horizonte, sendo parte do fórum mineiro de EJA
(Educação Jovens e Adultos) e membro do comitê regional da Campanha Nacional pelo
Direito à Educação. Sua atuação na área de educação ocorre principalmente nos temas de
educação de jovens e adultos, ciclos de formação humana, educação inclusiva, educação
do trabalhador, e política educacional.
28. Pedagoga e historiadora, mestra e doutora em Educação pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e pós-doutora em Educação de Jovens e Adultos (EJA) pela Uni-
versidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Trabalhou com educação básica em redes
públicas e no setor privado por vinte e nove anos. Atualmente é coordenadora da linha
de pesquisa em Educação de Jovens e Adultos no Programa de Pós-Graduação, mestrado
profissional, educação e docência da Faculdade de Educação (FAE) da UFMG. É também
professora associada do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino (DMTE), e coor-
denadora do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos, também da Faculdade de Educação
da UFMG e tem experiência com ênfase na Educação de Jovens e Adultos, nas temáticas de
didática, juventude, política pública, educação antirracista, formação docente, “diferentes
diferenças” e EJA como ação afirmativa.

106 A construção da docência

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Letícia: O tema de nosso seminário de hoje é o projeto de lei Nº
857/2015, o “Escola Sem Partido” (ESP), do deputado Izalci Lucas
(PSDB – DF). Embora tal projeto defenda que não haja dissemina-
ção de nenhuma ideologia por parte de professores nas escolas, o
ESP abre espaço para implementação de projetos como o Programa
Nacional de Escolas Cívico-Militares – Pecim (BRASIL, 2019), que
aponta para a militarização de parte da rede pública de educação
e traz consigo ideias e valores expressamente conservadores. Já
existem instituições públicas nesse sistema, em que parte da admi-
nistração da escola é de responsabilidade de militares. Sobre este
tema, vamos iniciar escutando o professor Ramuth.

Ramuth: É mais do que importante que conversemos, façamos esse


debate! Porque uma das grandes consequências do não debate é
justamente o crescimento, o recrudescimento, dessa matriz autori-
tária. E devemos fazê-lo sem medo de errar, sem medo de parecer
parcial, porque a busca da imparcialidade deve ser uma constante
na pesquisa, mesmo em ciências sociais e humanas. Mas essa
imparcialidade não é absoluta. O Escola Sem Partido (ESP) está
no bojo de um viés de quem enxerga uma tentativa de retorno a
uma sociedade fortemente hierarquizada, em que as diferenças,
as diversidades, são muito pouco toleradas, se é que o sejam. Mas
comecemos pelo princípio.
O movimento ESP não é novo. Ele não é, como algumas pessoas
acreditam, de cinco ou seis anos atrás, quando obteve uma evidên-
cia maior. Foi fundado, em 2004, em São Paulo, por um procura-
dor chamado Miguel Nagib. Por que que estou falando essa data
importante? Importante também quem inicia esse processo, não

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é? Primeiro, a data diz muito da situação política do país naquele
momento. Pela primeira vez desde o processo de redemocratização
nós tínhamos um governo de centro-esquerda, que, apesar de todas
as avaliações que podem ser feitas, já inaugurava pelo menos uma
mudança significativa e simbólica na concepção de sociedade que
se queria construir naquele momento.
Se tentarmos lembrar, por exemplo, uma das primeiras leis
promulgadas pelo então presidente Lula naquele tempo, em 2003
ainda, foi justamente a 10.63929 que fala da obrigatoriedade do
estudo da história e cultura africana e afro-brasileira. Embora fosse
uma lei construída no governo anterior, o mesmo não teve forças,
desejo ou ambas as coisas, para que ela fosse de fato efetivada.
Ela é, então, efetivada no governo Lula. Isso em si é um indício
de um outro horizonte de afirmação de direitos e de diversidade,
mesmo que simbolicamente falando e considerando que em 2004
não tínhamos ainda uma repercussão, uma efetivação maciça desta
lei. O ESP surge como uma resistência a essa nova orientação que
estava em voga no país, e não é à toa que este surge no Estado de
São Paulo (embora não queira cometer o equívoco de caracterizar
toda uma população de um Estado com características monolíticas,
como se todo paulista ou paulistano fosse dessa ou de tal forma).
Fato é que alguns governos estaduais sempre se colocaram como

29. A lei 10.639/2003 estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-bra-


sileira” dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fun-
damental e médio. Também estabelece o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência
Negra no calendário escolar. Foi promulgada em 9 de janeiro de 2003 pelo então presidente
Luís Inácio Lula da Silva.

108 A construção da docência

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oposição às orientações, às leis e às construções que estavam sendo
feitas naquele momento, mesmo que de forma coletiva.
Nós, que somos parte do fórum mineiro de EJA, lembramos
de muitas discussões da agenda territorial, da agenda propositiva,
para o chamamento, reconhecimento e pesquisa do campo da Edu-
cação de Jovens e Adultos. E os estados que naquele momento se
recusaram a participar efetivamente eram o Estado de São Paulo,
o Estado de Rio Grande do Sul e o Estado de Minas Gerais. Não
coincidentemente, estes eram governados naquele momento por
partidos de oposição ao governo federal. O ESP surge, então, como
uma reação, sempre se colocando da forma da “não partidarização”
do processo escolar, pelo menos discursivamente.
Para o Escola Sem Partido a educação brasileira sempre foi
“partidarizada” de esquerda, e os professores, os educadores e as
educadoras, se utilizavam da “audiência cativa” (termo que aparece
inúmeras vezes na história do projeto de lei), num processo de dou-
trinação ideológica dos estudantes. Em resumo, na visão do ESP
a escola seria um “antro de doutrinação das teorias de esquerda”,
e estas ideologias seriam um conjunto de concepções em que a
transformação do mundo coloca-se a partir da destruição do que
eles chamam da “célula-mater” da sociedade, que seria a família. O
ESP entende a escola como um antro de esquerdistas que pretende
destruir essa “família” a partir das políticas de liberação ampla e
irrestrita de drogas pesadas e da hiperssexualização das crianças.
Então, na concepção do ESP, os professores agiam como sujeitos
que não somente hiperssexualizavam as crianças, mas também
as promoviam contra os valores que eles consideravam sagrados,
como, por exemplo, a masculinidade. Para o ESP, a escola teria esse

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poder de incutir na cabeça das crianças, não o que nós enquanto
educadores sempre defendemos, que é o respeito às diferenças,
identidades e orientações sexuais, mas sim como uma fábrica de
produzir identidades sexuais diferentes da heteronormativa, da
identidade hétero (como eles sempre falam: “menino é menino,
menina é menina”, é sempre muito dentro dessa lógica). Obvia-
mente num primeiro momento isso ficou restrito a grupos muito
pontuais espalhados pelo Brasil, lembrando que, como todo fenô-
meno social, não foi um fenômeno que ocorreu de uma hora para
outra, foi bastante processual.
Esse movimento vai, então, crescendo, desaguando principal-
mente a partir da segunda metade da década de 2010 em processos
extremamente pesados e autoritários. Há um ponto que em um
debate para a construção do Plano Estadual de Educação (PEE), na
Assembleia Legislativa de Minas Gerais, vários grupos opositores
ao PEE que estava sendo construído apresentaram cartazes tão
acusatórios ao ponto de dizer que os educadores eram abusado-
res (“tirem as mãos das nossas crianças, vocês são abusadores”).
Configura-se, portanto, um processo, uma tentativa de desqualifi-
cação dos educadores, talvez da forma mais terrível, colocando-os
como análogos a quem cometia crimes sexuais contra crianças. E
sabe-se inclusive da tolerância ou intolerância que existe sociedade
em relação a quem comete crimes de tal natureza.
Essa analogia foi bastante utilizada a partir de 2014, quando o
ESP começa a tomar um corpo nacional mais organizado, numa
reverberação muito maior, e isso se torna um jargão. Esse era o
cartão de visita para quem acessava os espaços, os sites do ESP.
Foram então experimentando, com o decorrer do tempo, diferentes

110 A construção da docência

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“chaves de entrada” na sociedade para causar essa reverberação. Por
diversos motivos históricos e sociais, a chave de entrada que obteve
maior reverberação em um determinado momento histórico, é
justamente essa analogia dos educadores enquanto abusadores
de crianças.
Ocorre que, quando fazíamos a defesa, naquele momento,
da construção do Plano Estadual de Educação, para Educação
de Jovens e Adultos (EJA), o contra argumento era: “vocês estão
doutrinando as nossas crianças!”. No entanto crianças não fazem
parte do programa. Se muito, a EJA tem adolescentes, mas crianças
não é o seu público. Eles continuavam rebatendo, utilizando deste
argumento, ou seja, o importante não é a defesa racional, o embate
dessas ideias, o importante é a construção desta narrativa e que ela
encontrasse essa reverberação.
Gostaria de lembrar que os movimentos de minorias – que
são historicamente oprimidas no nosso país – defendem que a
pauta trazida pelo ESP não só tentava construir a imagem desse
professor como abusador, mas também tentava impedir todas as
formas de debate em relação às pautas do movimento negro, o
movimento LGBTQIA+, o movimento de mulheres, o movimento
pelo desencarceramento da população. Então a escola não seria o
local, por exemplo, do debate sobre a violência doméstica ou do
enfrentamento ao racismo. E como o ESP tem um componente
moral muito forte, muito evidente, a escola jamais seria o local
para a defesa da diversidade das orientações sexuais, e esse é o
ponto principal pelo que o ESP se articula. Na lógica do ESP, não
importa se o Brasil ainda é o país campeão em homicídios contra
as pessoas trans; isso não é debate, não deveria ser pauta da escola,

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e se a escola está fazendo esse debate, ela está fugindo da sua função
principal do que é ensinar e do que é aprender.
A partir de um determinado momento, o ESP toma como
grande inimigo simbólico, o patrono da educação brasileira, Paulo
Freire. Isso porque para Paulo Freire é impossível ter um processo
educativo que não seja político por excelência. Não político parti-
dário, mas que seja um processo educativo que debata, que reflita
sobre as condições objetivas às quais os sujeitos estão submetidos.
Então, quando Paulo Freire afirma que o processo educativo está
sempre a favor ou reforçando determinados discursos, determina-
das narrativas, e sempre se colocando ao contrário de outras, para
o ESP, em que o debate não pode ser oposto e não é colocado, isto
é inaceitável. O programa tem uma moralidade ultraconservadora,
cristã, para esse debate educacional.
Existe sempre uma intolerância muito grande na presença de
outras religiosidades não cristãs no espaço escolar, mas principal-
mente as religiosidades de matrizes africanas. Não quer dizer que
eu defenda que a escola deve ser um local de religiosidade. Con-
tudo, tradicionalmente, as escolas são profundamente tolerantes
com a presença de elementos de religiosidade cristãs, a começar
pelos nomes. São vários nomes de padres e santos, no município
onde moro usam nomes também de pastores. A presença de cru-
cifixos em escolas, de imagens cristãs, a presença de células de
estudos bíblicos, a obrigatoriedade de, na entrada ou na saída das
escolas, principalmente dos primeiros anos, orar um “Pai Nosso”,
isso tudo é tolerado na escola, mas se, por exemplo (e estou exa-
gerando porque sabemos que isso é muito difícil numa efetividade
completa), algum estudante, e principalmente algum educador ou

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educadora, convocasse as crianças a cantar um ponto da umbanda
ou do candomblé, a reação seria: “isso não é religiosidade, é um
escândalo na escola”, enquanto todos esses outros elementos da
religiosidade não o são.
O ESP, em resumo, foi um movimento que cresceu muito, é um
fenômeno que ainda precisa ser estudado e que se alimenta muito de
um discurso da internet, do que hoje a gente chama de “olavismo”
cultural (em referência a Olavo de Carvalho e às suas influências) de
uma matriz conservadora cristã e autoritária. Toda a argumentação
legal, jurídica, narrativa, do ESP, interdita o debate. O debate é a pri-
meira coisa a ser interditada por esse movimento, onde ideológicos
são os “outros”. Sempre o discurso de doutrinação é dos “outros”, mas
este posicionamento, que está na defesa de uma matriz cristã para o
ESP, para eles não é ideológico. A defesa de uma família heterocen-
trada como a única forma válida de família, não é ideológica; a defesa
da submissão da autoridade não é ideológica, para o ESP. Então é
muito difícil existir debate, e, como diria um amigo, o pesquisador
Rogério Junqueira, “o conservadorismo é o alimento, é o elo que
mantém esses grupos unidos durante muito tempo”.
Para encerrar, pode-se dizer o seguinte: o movimento ESP está
em vias de acabar, mas a ideologia que ele ajudou a construir e
reverberou, está longe disso. O próprio fundador Miguel Nagib
anunciou o fim do grupo, o fim destes “espaços”, mas esta ideolo-
gia lançou raízes significativas, e que ainda enfrentamos em todos
esses discursos no cotidiano ou nos debates da construção das
políticas educacionais.
O melhor exemplo disso é essa retomada, essa tentativa
do governo em implementar escolas militares. Além de serem

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absurdamente mais caras que o investimento feito nas escolas públi-
cas tradicionais, a grande intencionalidade delas é justamente elimi-
nar o debate sobre a diferença. Então, pode-se dizer que o retorno
da escola militar é uma consequência, é um desdobramento de
todo esse embate que foi iniciado pelo ESP. Assim como o homes-
chooling30, que aliás foi o primeiro movimento feito por eles e que,
naquele tempo de 2004 e 2005, encontrou pouca reverberação, mas
que volta hoje nessa perspectiva. O homeschooling que é defendido
hoje pelo governo está em projeto, está em disputa, é um homes-
chooling para todos e para todas? Quem defende esse modelo? Para
fazer quais discussões? Se refletirmos sobre isso, podemos perceber
a unidade que existe em tais formas de pensamento e em tais formas
de ideologização, que é o ESP. Muito obrigado novamente.

Isabela: Convido agora a professora Analise.

Analise: Boa tarde a cada um e a cada uma, é uma satisfação


enorme estar aqui com vocês, eu agradeço mais uma vez pelo con-
vite. Começo minha participação nesta conversa falando sobre
a aplicabilidade da teoria socrática. Se pensarmos em Sócrates,
vamos lembrar que ele é uma figura da antiguidade, um sofista,
portanto um instrutor. Se estivéssemos falando nos termos de hoje,

30. O homeschooling é um projeto de lei que permite a educação domiciliar no Brasil, cuja
relatora é a deputada federal Greyce Elias, do Avante – MG. O PL foi aprovado em junho
de 2021 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, sendo 35 votos favoráveis e 24
contrários. Não há previsão de votação no plenário da Câmara Federal. Caso seja aprovado,
seguirá para apreciação dos senadores e senadoras.

114 A construção da docência

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Sócrates seria um professor que ensinava questões muito relevan-
tes, por isso até hoje na história ele ainda é tão trazido.
Segundo Sócrates, só age erradamente quem desconhece a ver-
dade, e, para ele, a busca do saber é o caminho para se alcançar o
que ele chamava de “perfeição humana”. Essa reflexão introduziu
na história do pensamento da humanidade a discussão sobre a
finalidade da vida. Sócrates comparava a sua profissão com a de sua
mãe, que era parteira, e dizia assim: “Minha mãe não está gerando
um menino, ela só vai ajudar a gestante a colocar para fora aquilo
que está dentro dela”.
Nesse sentido, o papel de educador é de ajudar o discípulo a
caminhar, e Sócrates avaliava que isso era possível se despertásse-
mos a cooperação entre educador e educando para que o estudante
pudesse conseguir, ele próprio, iluminar (expressão empregada pelo
filósofo) sua inteligência, sua consciência, iluminar o que Sócrates
chamava de alma. Assim, o verdadeiro mestre não é o provedor de
conhecimentos, mas alguém que vai despertar os espíritos, que vai
fazer com que esse estudante queira o conhecimento; e ele deve,
o tempo todo, (isso é fundamental na teoria socrática) admitir a
reciprocidade quando estiver exercendo sua função iluminadora.
Então esse mestre precisa permitir que o estudante conteste os seus
argumentos, da mesma forma que este vai o tempo todo contestar os
argumentos dos estudantes, para que se deem conta, eles próprios, de
elaborar seu conhecimento. Na teoria socrática, só a troca de ideias
é que vai dar liberdade ao pensamento e à sua expressão, e estas são
condições imprescindíveis para que o ser humano se aperfeiçoe.
Por isso eu comecei a nossa conversa falando sobre a teoria
socrática, para sabermos: Existe aplicabilidade nisso? Vocês estão

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se formando como futuros professores e professoras: quando forem
preparar suas aulas, levarão em conta a necessidade de que essas
aulas contribuam para o processo dos estudantes com os quais vocês
estiverem trabalhando, com os quais vocês estiverem partilhando
os saberes, para que eles deem conta de desenvolver procedimen-
tos, de pensarem por si próprios, de construir conhecimentos?
Antes de começarem a escrever as respostas ao que acabei de per-
guntar no bate-papo, gostaria de dizer outra coisa. Gostaria de discutir
os fundamentos legais que temos na educação, que podem nos fazer, ao
fim e ao cabo, concluir porque o movimento ESP (de militarização das
escolas, de educação domiciliar) na verdade fere as legislações do país.
Primeiro vou discorrer sobre o meu compromisso como for-
madora de futuros professores e a construção da tal da cidadania
plena. E vou fazer isso enquanto reafirmo a minha concepção, a
minha convicção, que é de que sem o pluralismo de ideias (de con-
cepções pedagógicas para que consigamos chegar na tal construção
do conhecimento, para que consigamos ‘colocar o menino para
fora’, como diria Sócrates) não há escola cidadã. Não existe constru-
ção dessa efetiva cidadania, ao concordar com a descaracterização
de uma educação que seja pública, gratuita, laica, com qualidade
social. Pois é a isto que se propõe o movimento ESP, nessa proposta
obscurantista, reacionária. É uma descaracterização da educação
como direito, e eu o chamo de obscurantista e reacionária pois é
uma proposta de pensamento único, que contraditoriamente se
intitula de escola livre, se intitula Escola “Sem Partido”. Mas quanto
àquilo ao que se propõe, este difunde mesmo a prevalência de um
pensamento que é único e que, para mim, equivale sim a uma “Lei
da Mordaça”, que vai propor a proibição do trabalho na construção

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dos saberes com temáticas como sexualidade, religiosidade, polí-
tica, diversidade na sala de aula, como Ramuth já apresentou.
Isso é grave porque muitas vezes e em muitas situações a omissão
da escola fomenta não só a discriminação como também o precon-
ceito que exclui crianças e adolescentes com direito a escolarização,
e que depois continua excluindo jovens, adultos e idosos do mesmo
direito, que já lhes foi negado anteriormente. Dessa forma, quando
me refiro a “proposta” do ESP de descaracterização da escola
pública, coloco entre aspas pois quero frisar que, pelo contrário, se
trata da defesa de uma escola de partido, de pensamento, ideologia
e pedagogia únicos, e que prega a construção de um conhecimento
que legitime a prática da intolerância, do não reconhecimento com
os diferentes, com visões antagônicas. Uma escola, portanto (na
minha leitura), que ameaça a liberdade, a democracia, a vida, dis-
seminando ódio e intolerância, o que ela difunde é uma pedagogia
que conduz à eliminação, inclusive física, do diferente.
Avalio, então, que a educação em todos os seus níveis, suas eta-
pas e suas modalidades é direito humano. E por ser um direito é
que impulsiona, fomenta e possibilita a aquisição de outros direitos,
que por sua vez regem-se por princípios que asseguram a liberdade.
Aqui, refiro-me à liberdade de aprender e de ensinar, de pesquisar
e que se mantém pelo pluralismo mesmo das ideias e das concep-
ções pedagógicas. Por isso, a construção da escolarização do povo
brasileiro precisa estar aberta plenamente ao debate democrático e
dialético, que é um caminho seguro para darmos conta de consolidar
os saberes, os conhecimentos e os valores sociais.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos garante, no
artigo dezenove, que todo ser humano tem direito à liberdade de

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opinião e de expressão, e que esse direito inclui a liberdade, sem
interferência, de que todo ser humano tenha suas opiniões. Sabe-
mos que a obediência à Constituição Federal jamais permitirá que
projetos educacionais de única vertente sejam implantados. Eles
serão barrados todas as vezes em que for conferida a sua cons-
titucionalidade, e precisa-se também barrar a promoção não só
dessas legislações, como também dos efeitos nefastos da própria
discussão trazida por esses projetos de lei.
A contribuição que esses projetos trazem para as bases de
uma relação social é antipedagógica, anticidadã, antidemocrática,
anti-ideológica, desumanizadora, anti-hiática, e favorece o auto-
ritarismo, o machismo, o sexismo, a LGBTQIA+fobia, o racismo,
a discriminação, a segregação, a educação que ataca sistematica-
mente o pensamento crítico, plural e libertador.
Se faz necessário, o tempo todo, não só contrastar como combater
com rigor e com consistência esse tipo de proposta. A Constituição
brasileira fala sobre a livre expressão de atividade intelectual, de
atividade artística, do pleno desenvolvimento da pessoa, do preparo
da pessoa para exercer a cidadania, da qualificação da pessoa para
o trabalho, a liberdade de aprender e de ensinar (assunto discutido
no artigo 206). Quando o ministro do Supremo Tribunal Federal,
Luís Roberto Barroso, fez o parecer sobre a inconstitucionalidade
da lei que propõe o ESP31, ele colocou com todas as letras que se
trata de uma proposição larga e genérica, e que pode se prestar ao

31. Em 24 de agosto de 2020 o projeto de lei alagoana “Escola Livre”, semelhante ao projeto
do Escola Sem Partido, foi declarado inconstitucional por nove votos contra um. O projeto
já estava suspenso desde 2017 por uma liminar do ministro José Roberto Barroso, relator
do processo.

118 A construção da docência

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contrário daquilo que diz, porque ela diz se prestar a promover uma
educação sem doutrinação de qualquer ordem, quando na verdade,
no parecer daquele ministro, é uma lei que limita direitos e valores
que são protegidos constitucionalmente. Barroso ainda diz que o ESP
viola o princípio constitucional da proporcionalidade, que o projeto
subverte a Constituição, e completa afirmando (o que concordo
plenamente e acredito que qualquer pessoa que presta uma leitura
atenta à proposta entende isso) que aquela proposta confunde a
educação escolar com a educação que é fornecida pelos pais, espaço
público com espaço privado, e acaba impedindo a liberdade de que
se tenha uma possibilidade ampla de aprendizagem, terminando
por ser também contrária ao princípio de laicidade do Estado, todos
princípios previstos na Constituição Federal.
Se pensarmos à luz da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB)32, tanto a Constituição quanto a LDB definem
uma educação escolar necessariamente inspirada em princípios
como liberdade e solidariedade humana. Por fim, a liberdade de
aprender, de ensinar, de pesquisar, de divulgar cultura, a arte de
divulgar o saber, conecta-se ao reconhecimento da liberdade e do
diferente. É o que está colocado nos artigos segundo e terceiro da
LDB33 onde os princípios da Constituição Federal são reiterados.

32. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96) é a legislação que
regulamenta o sistema educacional (público ou privado) do Brasil (da educação básica ao
ensino superior).
33. “Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade
e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
O Art. 3º lista quinze princípios nos quais o ensino será baseado, entre eles o “III – plura-
lismo de idéias e de concepções pedagógicas”.

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Se chegarmos ao Plano Nacional de Educação (PNE), que obje-
tiva contribuir para que a sociedade brasileira tome consciência
da relevância dos processos de gestão democrática e de uma edu-
cação voltada para emancipação do povo, da necessidade de que
a democracia prevaleça sobre a insensatez, perceberemos que o
PNE é exatamente o contrário da proposta do ESP.
Boaventura de Sousa Santos diz que: “É importante afirmar a
igualdade quando a diferença nos inferioriza, assim como é impor-
tante afirmar a diferença quando a igualdade nos descaracteriza”. A
partir disso, eu pergunto a vocês, futuros professores e professoras:
como pretendem encarar a desigualdade no exercício da profissão?
Assim, trago o seguinte questionamento:

A minha prática pedagógica é capaz de acolher a diversidade dos sujei-


tos que dela fazem parte? Ou ainda a está desconhecendo? Que saídas
encontramos para lidar com a diversidade na sala de aula? Ainda conti-
nuamos tratando muitos e diversos como se fossem um? Que metodolo-
gias utilizamos para o trato com diversidade? Quando eu estiver lá com
os estudantes, as nossas práticas, as minhas e as deles, vão desmistificar
os processos históricos que transformam diferença em desigualdade?

Como pesquisadora da área da educação básica, da educação


superior, como professora universitária, gostaria de evidenciar meu
ponto de vista a partir de muito estudo, muita leitura, sobre o movi-
mento ESP, e posso começar falando sobre os próprios projetos. Os
projetos escritos, físicos, que são apresentados em várias câmaras
municipais, em várias assembleias legislativas, porque lá todos eles
são um copia e cola como os mencionados pelo professor Ramuth.

120 A construção da docência

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O primeiro apontamento é a neutralidade religiosa do Estado,
o que se sabe que não é verdade. O que está colocado na legisla-
ção, desde a Constituição, passando pelos Direitos Humanos até o
Plano Municipal de Educação de cada município, é que o Estado
é laico, não neutro. Da mesma forma que o Estado Brasileiro não
é neutro politicamente, ele é democrático, está definido isso. E
também o Estado não é neutro em termos ideológicos, ele é capi-
talista, está colocado a questão dos bens, os bens adquiridos, está
colocado na lei.
Se nos atentarmos para um argumento muito recorrente do
ESP, que afirma que “O professor respeitará o direito dos pais a que
seus filhos recebam a educação moral que seja de acordo com suas
próprias convicções”, não há a menor dúvida de que não é educação
escolar nem é educação ética, é educação moral; e a moral está
dentro da dimensão do privado. Fui professora na educação básica
durante vinte e nove anos; nesse tempo eu conheci, convivi, vi,
abracei, ri, chorei, ouvi relatos de crianças, adolescente, de jovens,
de adultos e idosos estudantes, e, consequentemente, me relacio-
nei com os pais, com as mães, com os responsáveis legais, com
os responsáveis de fato, enfim, com as famílias desses estudantes.
Eu fico aterrorizada imaginando que, se esse projeto (que na
verdade é um projeto de legalização do adoecimento social e
humano) de retrocesso vigorasse nesses vinte e nove anos que eu
atuei como docente da educação básica, eu estaria proibida de, no
exercício das minhas funções, realizar junto a muito dos milha-
res de estudantes as atividades de cunho antirracista, antissexista,
anti-homofóbica e antidiscriminatória que desenvolvi. Estaria
impedida de trabalhar em sala de aula uma série de estratégias

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com as quais eu buscava contribuir para que essas pessoas tives-
sem compreensão, denunciassem, tivessem segurança e pudessem
colocar fim, pudessem cessar com os problemas vivenciados por
aqueles estudantes.
Os alunos e alunas me relatavam (e geralmente isso acontecia
depois da aula, no recreio, na hora da saída; eles vinham cami-
nhando comigo até o ponto do ônibus, e algumas vezes isso aconte-
cia durante as aulas) momentos em que assistiam em casa, no seio
das suas famílias, a partir da convicção moral dessas famílias, os
pais espancarem as mães, os pais e as mães espancarem os filhos,
parentes abusarem sexualmente de crianças e de adolescentes,
abuso de drogas, famílias que ensinavam a eles que mulheres lés-
bicas deviam passar por estupro corretivo, que abusavam fisica-
mente e economicamente de idosos, que ensinavam aos filhos que
negros eram inferiores, que empregadas podiam ser estupradas,
que pessoas de religiões diferentes podiam ser apedrejadas, que
torcedores de outros times de futebol diferentes daqueles para os
quais eles torcem precisam ser ridicularizados, subalternizados,
humilhados, famílias que ensinavam que os empregados não
podiam comer da mesma comida feita para os patrões, que crian-
ças gordas, indígenas, pessoas com deficiências, pessoas pobres,
empregados devem ser humilhados, devem ser animalizados,
devem ser subalternizados.
Sempre foi fundamental a conversa, o ombro, o abraço, o enxu-
gar das lágrimas – que muitas vezes eram derramadas em conjunto,
tanto por quem trazia a notícia quanto por mim. E por se tratar de
quase três décadas, eu ouvia de alguns pais que eles não fariam com
os filhos as crueldades que sofreram na infância e na adolescência

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em suas famílias. E de ouvir isso, eu sinto que eu cumpri as minhas
atribuições humanas e profissionais, quando eu interferi nas con-
vicções morais das famílias daqueles estudantes. Sempre foi funda-
mental, também, buscar parcerias das mais diversas: parceria com o
posto de saúde, com liderança religiosas, com o ministério público,
com advogados, com assistentes sociais, com outras famílias.
Finalizo minha fala como pesquisadora da área da educação
e como professora da educação superior, porque avalio que devo
continuar trabalhando com os graduandos, futuros professores e
professoras assim como vocês, os incisos três e quatro lá do artigo
treze da LDB34, como eu venho trabalhando nas minhas aulas,
sempre que posso, como até agora nessa conversa.
Nesses incisos, está colocado que são incumbências dos docen-
tes da educação básica zelar pela aprendizagem dos alunos, e não
há quem aprenda vivendo subjugado a esse modelo de convic-
ção moral das famílias. Consta também que é incumbência dos
docentes da educação básica estabelecer estratégias de recuperação
para os alunos de menor rendimento, que, via de regra, é causado
pelos efeitos dessa violência que está presente na tal da convicção
moral das famílias, e isso vem conjugado com fatores de nossa
desigualdade econômica, de nossa desigualdade social, de nossa
desigualdade racial, que são históricos. Perante tudo isso, basta
refletirmos: qual o nosso papel diante desta realidade?
Ao analisarmos as pinturas de Galileu e Copérnico, mostradas
na apresentação, e relacionarmo-las às concepções do movimento

34. Inciso III – zelar pela aprendizagem dos alunos. Inciso IV – estabelecer estratégias de
recuperação para os alunos de menor rendimento.

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ESP, podemos traçar um paralelo. Vocês devem estar lembrados
do que Copérnico e Galileu têm em comum: a discussão do helio-
centrismo. Na verdade, essa discussão já era proposta na Antigui-
dade, e, séculos mais tarde, Copérnico foi o primeiro a formu-
lar a teoria heliocêntrica, porque ele produziu literatura, provas,
produziu modelos matemáticos que foram bastantes substanciais
sobre isso. Anos depois esse assunto foi investigado pela Inquisição
Romana, em 1615, e esta então concluiu que o heliocentrismo era
um “absurdo”, uma heresia que contradizia explicitamente o sen-
tido daquilo que estava colocado na Bíblia. Galileu foi julgado pela
Inquisição, considerado herege e forçado a se retratar, passando o
resto da vida em prisão domiciliar35.
Qual é o problema de se trabalhar a teoria evolucionista, por
exemplo, se há pais que concordam? Mas, para o movimento ESP,
eu apenas posso discutir a teoria criacionista; que estranho isso,
não deveríamos nos concentrar nas convicções dos pais? E os pais
que concordam com a teoria evolucionista? Esse movimento con-
funde privado e público, como nos lembra o ministro Barroso
em seu parecer. A escola é um espaço público (mesmo aquelas
mantidas pelo setor privado), um lugar em que se convive com o
diferente. Não é o lugar onde eu educo meu filho de acordo com
o que eu acredito. Há outros filhos lá, outras formas de acreditar
lá. Se não pode ser pensamento único, pode ser teoria única?36.
Vamos discutir, vamos trazer todos os elementos em termos da

35. Neste momento estava escrito na apresentação de slides “Educação de acordo com as
convicções dos pais. Quais convicções? Quais pais?”.
36. Nos slides via-se “Senso crítico: / é discutir isso / O Brasil foi descoberto, foi ocupado
ou foi invadido?”

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história, da antropologia, da filosofia, vamos trazer tudo da geogra-
fia, vamos discutir sobre economia e então que cada um formule
seu pensamento. Mas vamos discutir tudo, todas as possibilidades.
Eu entendo que a proteção e a segurança dos estudantes do
nosso país será efetivada quando o poder público estiver sendo
monitorado pela sociedade civil e esta garanta que a educação
ofertada seja uma educação democrática, popular, pública, gratuita,
laica, inclusiva, de qualidade social, de forma que ela se contra-
ponha a todas as manifestações de preconceito e que o profissio-
nal que a oferta seja valorizado. Entendo que quando tratamos
do movimento ESP, é necessário reafirmar um posicionamento
contrário. E por isso eu conclamo vocês a estudarem mais apro-
fundadamente essa temática e a se mobilizarem, manifestando
seu posicionamento, que eu espero que seja de desacordo e de
indignação com essa proposta, lembrando o tempo todo a nossa
função de formar vocês como futuros professores e professoras,
e a função de vocês, que é a de atuarem junto com estudantes das
redes públicas e do setor privado, contribuindo o tempo todo para
a melhoria das condições de vida de cada estudante com os quais
vocês trabalharem. Eu agradeço mais uma vez.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso
em: 14 de fev. de 2020.

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QUAL É O PARTIDO DA FARDA?
REFLEXÕES SOBRE O ESCOLA SEM PARTIDO E
O PROGRAMA DE ESCOLAS CÍVICO-MILITARES
Isabela Freiria Yeda Macedo
Pedro Gaban Petindá Moreira

INTRODUÇÃO
A implementação e expansão do Programa Nacional de Escolas
Cívico-Militares (Pecim) aquece o debate sobre a militarização da
educação brasileira e revigora o ataque reacionário ao seu caráter
público, emancipatório e democrático, observado em outros momen-
tos desde a redemocratização, como é o caso do Escola Sem Partido.
Diante deste cenário, é fundamental aprofundarmos as análises e
estudos sobre este tema, sem perder de vista a urgência em estendê-lo
para além dos muros e discussões acadêmicas, a fim de refletirmos,
ao lado da população, qual o projeto de sociedade que está em curso
com esta proposta do grupo político atualmente no poder.
Algumas perguntas elaboradas pela professora da Faculdade de
Educação, Catarina de Almeida Santos, podem nos ajudar nessa
empreitada37. Frente ao aparente apoio popular ao modelo, caberia

37. Retiradas do debate público “Militarização das escolas públicas no Brasil”, rea-
lizado pelo programa televisivo Participação Popular, promovido pela Câmara dos

126 A construção da docência

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nos questionarmos: por qual razão precisamos de militares nas
escolas? O que faria de um militar alguém mais capacitado que um
professor para a gestão escolar? Conforme nos explica Mendonça
(2019, p. 595), “as supostas credibilidade e eficácia dessas escolas
[militares], aliadas ao rigoroso controle disciplinar e ao respeito
à hierarquia, além da valorização do civismo […] o combate à
violência e ao envolvimento com drogas” são argumentos que jus-
tificariam a presença militar em instituições de educação básica,
e têm sido frequentemente apresentados às famílias de crianças e
jovens em idade escolar.
A professora Catarina insiste: a violência, o tráfico de drogas,
tudo isso que corrompe a juventude e exige disciplina e controle
é próprio da escola ou se verifica na sociedade onde ela está inse-
rida? Sem a pretensão de exaurir quaisquer dessas provocações,
buscamos aprofundar o tema abordado no I Seminário Temático
Aberto: Escola Sem Partido / Militarização das Escolas, realizado
pelo subprojeto de Artes do Programa de Residência Pedagógica,
em que estiveram presentes a professora Analise da Silva e o profes-
sor Ramuth Marinho, sob mediação das residentes Isabela Freiria
e Letícia Schinelo38, transcrita neste livro.
Para isso, enveredamos por uma pesquisa bibliográfica e audiovi-
sual especializada, com trabalhos acadêmicos e diálogos entre profis-
sionais da educação e agentes públicos que discutem a militarização

Deputados, no Distrito Federal, em 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/


watch?v=aFTR1wL8BAg&ab_channel=C%C3%A2maradosDeputados.
38. O Programa de Residência Pedagógica é idealizado e contemplado pela Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e tem como objetivo induzir o
aperfeiçoamento da formação prática em diversos cursos de licenciatura.

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da rede pública de ensino. A maioria dos trabalhos acadêmicos
consultados estão organizados no dossiê “Militarização das Esco-
las Públicas no Brasil” (SANTOS; ALVES; MOCARZEL; MOEH-
LECKE, 2019), e as vídeo-referências podem ser gratuitamente
acessadas por plataformas virtuais. Ademais, recorremos também
a noticiários com o intuito de atualizar a discussão e trazer exemplos
práticos da implementação do Pecim durante os últimos anos.
Considerando os apontamentos do/a professor/a convidado/a
Analise e Ramuth, dedicamo-nos ao estudo do projeto Escola Sem
Partido (ESP), movimento reacionário que deslocou o debate da
educação pública para o retrocesso e neoliberalismo. Em análise
comparativa, Santos e Pereira verificam que o ESP e o Pecim con-
vergem em quatro pontos, a saber:

i) são propostos por parlamentares de partidos conservadores;


ii) atacam a educação e a escola pública;
iii) detêm apoio do empresariado educacional e dos detentores dos
meios de produção;
iv) partem do pressuposto de que os professores e as professoras fazem
proselitismo político-partidário e cerceiam o direito de aprender dos
estudantes. (SANTOS; PEREIRA, 2019, 265)

Enxergamos as duas iniciativas na perspectiva da despolitiza-


ção do processo de ensino aprendizagem, dedicando a educação
pública aos interesses de mercado e desvirtuando seu principal
objetivo de formação integral, resguardado pela Constituição
Federal (BRASIL, 1988), em detrimento do civismo, da rigidez
disciplinar e hierarquização próprias dos quartéis, além de incitar

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a desvalorização docente através das falácias do “doutrinador
de esquerda” ou da “ausência de conhecimentos sobre gestão na
formação de professores”39. Por isso, também trazemos o dossiê
“Escola Sem Partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade
brasileira” (FRIGOTTO, 2017), que reúne trabalhos dedicados à
reflexão e discussão ao ESP e oferece alternativas ao programa.
Para o estudo do Pecim, debruçamo-nos sobre a segunda edição
das Diretrizes das Escolas Cívico-Militares (BRASIL, 2021), com
ênfase na apresentação do programa, seus objetivos e organização
escolar em gestões de natureza didático pedagógica, administrativa
e educacional, esta última sendo integralmente militar. Também
consideramos como material de análise a Cartilha de Orientação,
igualmente disponível no site oficial do Programa.
Este texto divide-se, além da introdução, em outras três partes,
sendo a primeira delas dedicada à breve contextualização do projeto
ESP; na sequência, partimos para a análise de algumas experiências
anteriores de militarização escolar e das Diretrizes que orientam as
Escolas Cívico-Militares (Ecim); finalmente, trazemos algumas consi-
derações finais, discutindo observações elaboradas durante Seminário

39. “Nós não temos a expectativa nem a pretensão de que o militar faça o trabalho sobre-
posto [ao do professor], por isso é uma gestão compartilhada. O militar participa da gestão
escolar fazendo algo que é ensinado desde o momento que ele entra na academia. Ele é
treinado para comandar, para fazer a gestão de locais, fazer a gestão de quartel. Quando
ele chega a major, tenente coronel, ele teve ao longo de sua carreira um preparo muito
grande. Ao contrário do nosso corpo de professores, que… desejam muito, querem muito
ajudar a escola, e temos muitos casos de sucesso, isso é importante falar. Então nós estamos
falando de uma capacidade adicional característica do corpo militar que vai fazer a gestão
administrativa e disciplinar da escola” Fala do Secretário da Educação de DF em debate
com a professora Catarina Santos, em 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=aFTR1wL8BAg&ab_channel=C%C3%A2maradosDeputados.

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Temático Aberto organizado pelo PRP – Artes – CAPES – UFOP,
como a constitucionalidade e interesses do ESP e Pecim e alternativas
para os desafios colocados atualmente à educação pública brasileira.

ESCOLA SEM PARTIDO: A FAGULHA


DA MILITARIZAÇÃO
Após atravessarmos os estágios comercial e industrial, estamos
inseridos num contexto econômico capitalista financeiro, organi-
zando um mundo globalizado e diverso, que supostamente diminui
as distâncias e aumenta as oportunidades, calcado no discurso
meritocrático do self-made man, a partir da ideia de que as pes-
soas dependem unicamente de seus desejos e esforços próprios
para alcançar o tão desejado sucesso, sem depender de condições
externas. O que não é novidade é a posição do Brasil neste admirá-
vel mundo novo: à margem, aqui onde os donos da bola chamam
de “Terceiro Mundo” o que antes era colônia, reféns das cotações
monetárias e interesses daqueles que eram metrópoles.
O que também não é novidade é a organização em classes de
diferentes poderes aquisitivos e socioeconômicos, daqueles que
detêm os meios de produção e daqueles que têm a força de tra-
balho. Essas duas classes, tradicionalmente chamadas de burgue-
sia e proletariado, possuem interesses naturalmente conflitantes,
estabelecendo constantemente uma luta de classes: de um lado,
pelo lucro acima de tudo, e do outro, por direitos que garantam
condições de pleno desenvolvimento e fruição da vida, dentre eles,
o direito à educação de qualidade e emancipatória.
Especificamente no Brasil, o que se verifica não é somente uma
cisão, mas um abismo socioeconômico que separa burguesia e

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proletariado. Apesar da classe proletária ser muito mais expres-
siva, a burguesia detém o maior poder econômico, e não precisa
muito para entender que a banda vai tocar a música de quem tem
condições de pagar.
No âmbito político, a partir da Constituição Federal de 1988,
e dos mandatos presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva em
(2003-2006; 2007-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014; 2015-2016),
houve grandes avanços em direitos humanos e sociais. Através da
implementação de políticas públicas, a classe trabalhadora teve
acesso a direitos que antes lhes eram furtados, dentre eles, o direito
à educação, com medidas como o Programa Universidade Para
Todos – PROUNI (BRASIL, 2005), o Programa de Apoio a Pla-
nos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais –
REUNI (BRASIL, 2007), e a promulgação de leis como a 10.639/03
(BRASIL, 2003) e 11.645/08 (BRASIL, 2008), que regulamentam a
obrigatoriedade do ensino das culturas Afro-Brasileiras e Indígenas
na Educação Básica, e a lei 12.711/12 (BRASIL, 2012), conhecida
como a Lei de Cotas, que dispõe sobre o ingresso nas universidades
federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio,
e regulamenta cotas étnico-raciais e socioeconômicas.
Logo, não demora para que os interesses da burguesia recaiam
sobre a Educação, afinal, é através dela que o compasso da socie-
dade será determinado e a dança organizada. A partir da pers-
pectiva marxista de Althusser, a escola é também um espaço para
a luta de classes. Em Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado
(ALTHUSSER, 1980), o autor dirá que a escola é um importante
Aparelho Ideológico de Estado (AIE), operando pela manutenção
do capitalismo, justamente por reproduzir as relações de produção

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(escolas específicas para os filhos da burguesia e os filhos do prole-
tariado) e inculcar a ideologia e valores da classe dominante através
do currículo e da organização escolar.
Sendo a educação um território de disputa de interesses daqueles
que buscam a emancipação e daqueles que buscam “manter as coisas
como estão”, surgem propostas reacionárias a todas as medidas acima
citadas, de modo a retaliar os direitos humanos (especificamente de
trabalhadores[as]). O que observamos são projetos de lei como o
Escola Sem Partido (ESP), de 2005, o qual confunde muitas pessoas
com seu nome; mas, num estudo mais cuidadoso, logo se revela a que
Partido se referem e qual partido estão tomando.
Entendendo de que contexto estamos falando40 – pós-eleição do
metalúrgico e cria do movimento operário Lula e descontentamento
da burguesia ao se deparar com a conquista de direitos de sua classe
antagônica – partiremos para uma breve análise da tentativa de
esvaziamento político da Educação, dando espaço para o recrudes-
cimento do discurso conservador e para a desvalorização docente.
A partir do pressuposto da hierarquização da sociedade em classes
e acúmulo de capital pela burguesia, majoritariamente constituída
por homens brancos, e que a escola é um lugar político e ideológico
por natureza, alguns temas que não interessam a esta elite são priva-
dos de entrar em sala de aula. Temas que trazem consigo um debate
emancipatório, ou seja, que estimule a análise crítica da sua realidade
e a possibilidade de superação das adversidades materiais através da
instrução e da reflexão. Nesse balaio, podemos incluir a educação de

40. Para maior entendimento deste contexto,cf.: “Seminário temático aberto – Escola Sem
Partido e militarização das escolas” artigo encontrado neste mesmo livro. E “ESCOLA ‘SEM’
PARTIDO: Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira” de Gaudêncio Frigotto.

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gênero, educação sexual, das relações étnico-raciais, diversidades,
inclusão... afinal, se trata de um sistema extremamente excludente e
interessado na manutenção das estruturas de poder como estão, uma
vez que quem está no poder não quer imaginar que pessoas diferentes
ocupem esse espaço.
Para tal, o discurso que embasa o movimento/programa/projeto
Escola Sem Partido é que os temas que perpassam pela inclusão na
Educação são ideologias. Ideologias partidárias. Ideologias partidá-
rias petistas41. Nesse sentido, a Educação vai se tornando cada vez
mais esvaziada de temas que constroem a cidadania e a sociedade,
para se preencher de uma Educação tecnicista, direcionada para um
extenso caminho de segregação e manutenção da desigualdade. No
limite, alguns aspectos fundamentais da formação de qualquer pes-
soa – como o fato de que os processos educacionais passam, neces-
sariamente, pelo corpo – acabam por ser alijados de toda discussão.

Ninguém me falara sobre o corpo em relação à situação de ensino. O


que se faz com o corpo na sala de aula? Ao tentar recordar os corpos
de meus professores e professoras, eu me sinto incapaz de lembrar
deles. Eu ouço vozes, lembro de detalhes fragmentados, mas muito
pouco de corpos inteiros. (hooks, 2000)

Falar sobre corpo em sala de aula, implica em falar sobre si,


sobre o outro, sobre respeito e limites. O Escola Sem Partido
defende a “liberdade, educação e família”, no entanto, consegue

41. Aqui, o que estiver riscado pode ser lido em sussurro, assim como a censura em sala
de aula.

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deturpar estas três palavras, utilizando-se da própria Constituição
Federal (BRASIL, 1988). Para o ESP, o corpo que bell hooks fala,
é o ideal: inexpressivo, neutro, nulo e sem afeto. A anulação do
corpo anula expressões, pensamentos e reflexões, afinal, corpo e
mente são a mesma coisa, não são? Se anularmos o corpo, anu-
lamos tudo o que ele carrega, e isso implica em anular o ser e o
que ele pode vir a ser. Somos iguais por sermos seres humanos,
mas nessa igualdade cabe uma infinidade de diferenças, e essas
diferenças têm de ser consideradas para não haver exclusão – de
corpos negros, indígenas, diferenciados, trans.
É possível encontrar a conduta que o ESP quer seguir no pró-
prio site, conduta que o professor deve acatar, conhecida como
Deveres do Professor, e que de acordo com o Projeto de Lei, deve-
ria haver um cartaz afixado em todas as salas de aula com esses
deveres (grifo nosso):

1. O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para


promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou prefe-
rências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.
2. O professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão
de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da
falta delas.
3. O professor não fará propaganda político-partidária em sala de
aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos
públicos e passeatas.
4. Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, o pro-
fessor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma

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profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões
e perspectivas concorrentes a respeito.
5. O professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos
recebam a educação moral que esteja de acordo com suas pró-
prias convicções.
6. O professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens
anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.

Conforme dito anteriormente, o ESP entende que as políticas


de inclusão na escola são ideologias, e a partir deste discurso os
idealizadores e os apoiadores do movimento tecem argumentos
que justificam a exclusão. No 4º “dever do professor”, podemos
observar que há duas versões de questões políticas, socioculturais e
econômicas: a principal e as perspectivas concorrentes. Analisando
o contexto ao qual vivemos no Brasil, a “principal” versão seria da
perspectiva de quem é dominante: homens brancos ricos – e talvez
seja o caso de acrescentar “cristãos”, visto que o próprio Ministro
da Educação, Milton Ribeiro acatou o pedido do presidente da
República de repassar verba prioritariamente às prefeituras ami-
gas do pastor evangélico Gilmar Santos: “a minha prioridade é
atender primeiro os municípios que mais precisam e, segundo,
atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar.”42 (RIBEIRO,
2022). Sendo assim, as “perspectivas concorrentes”, seriam todas
as outras que fogem a este padrão, como perspectivas de negros

42. Depoimento registrado em áudio vazado de WhatsApp, acessível em: https://g1.


globo.com/politica/noticia/2022/03/23/crise-no-mec-o-que-ja-se-sabe-sobre-audio-em-
que-ministro-admite-pedido-de-bolsonaro-para-passar-verba-a-municipios-indicados-
por-pastores.ghtml

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e indígenas com relação à colonização, do feminismo, perspecti-
vas anticapitalistas etc.
Já no 5º “dever do professor”, é extremamente questionável a
“educação moral que esteja de acordo com as convicções dos pais”.
Por exemplo, essa “moral” pode dar vazão para que aconteçam
diversas atrocidades que venham a ser comuns ou pouco discu-
tidas nas famílias, assuntos que muitas vezes são tabus, como a
educação sexual, e que podem culminar em abuso infantil. Afinal,
novamente se tratando do corpo: se a criança não conhece o
respeito e os limites que pode estabelecer para o próprio corpo,
é possível ela entender que um abuso ou qualquer outro tipo de
agressão seja normal, quem sabe isso até pode se confundir com
demonstração de afeto, como ocorre em muitos casos. E aqui não
podemos ignorar o índice de abuso infantil que ocorre no Brasil,
segundo o “Panorama da violência letal e sexual contra crianças
e adolescentes no Brasil”, de 2017 a 2020, foram registrados em
média 45 mil casos por ano.
Felizmente, o ESP vem perdendo a adesão, segundo o próprio
fundador, Miguel Nagib, que em 2020 anunciou o fim de sua par-
ticipação no Movimento. Ele afirma que “o Ministério Público é
o grande omisso em toda essa temática, e é quem teria o dever de
fazer o que o Escola Sem Partido estava tentando fazer: combater
estas práticas ilícitas que acontecem dentro das escolas [...] Infeliz-
mente isso acontece no nariz deles, mas eles não sentem, porque
no fundo eles levam a mesma cartilha ideológica” (NAGIB, 2020).
Nagib entende como “práticas ilícitas” a “doutrinação de alunos”,
“campanha partidária em sala de aula” e “ideologia de gênero”.
Para além de órgãos competentes, a própria população não abraçou

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a causa do ESP, e assim, o movimento foi perdendo apoio. No
entanto, não deixa de ser uma preocupação, pois a mera existên-
cia de ideias que chocam com uma Educação ampla e inclusiva, é
motivo para estarmos atentas/os, pois estas ideias chegam por todos
os lados, como podemos ver a crescente onda de militarização das
escolas, por exemplo. Onda essa que, além de flertar com o ESP,
tem ganhado força no país, principalmente em âmbito municipal
e estadual. E quem sabe não seja esse mesmo o plano dos “donos
da bola”: jogar o jogo deles.

ESCOLA OU QUARTEL? QUANDO OS


MILITARES VÃO À ESCOLA
As escolas e colégios militares já são amplamente difundi-
dos pelas unidades federativas brasileiras, reconhecidos pela
forte valorização da disciplina, da hierarquia e do civismo, além
da rígida organização do espaço e tempo escolar. Também se
caracterizam por apresentarem bom desempenho nos índi-
ces de avaliação da educação, como o Ideb (Índice de Desen-
volvimento da Educação Básica), e seus egressos apresentam
um bom desempenho em exames e processos seletivos para o
Ensino Superior.
Por todos esses motivos e acrescentando-se a necessidade de
combater o suposto aumento de violência nas escolas, que nos
últimos anos da década de 1990 tivemos, no Estado de Goiás, a
primeira experiência de escola militar oferecida à sociedade civil.
O Colégio Militar Coronel Cícero Bueno Brandão foi fundado a
partir de uma “legislação do período da Ditadura Militar, a Lei
n°8.125, de 18 de junho de 1976” (ALVES; TOSCHI; FERREIRA,

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2018, 273), que se dedicava à formação de novos quadros da Polícia
Militar, sem nenhuma referência à formação de civis, através dos
Colégios da Polícia Militar de Goiás (CPMG).
No ano de 1998, após pedido da PM junto ao Conselho Esta-
dual de Educação, a Academia da Polícia Militar passou a ofe-
recer cursos de Ensino Fundamental II (na época, 5ª a 8ª série)
e Médio. É certo que estamos falando de uma escola criada no
seio da corporação e portanto responsabilidade desta, não se tra-
tando de uma escola pública militarizada “ainda que a solicitação
incluísse a admissão de matrículas de servidores e dependentes
legais de funcionários públicos, além de já contar com profes-
sores da rede pública de ensino estadual colocados à disposição
da corporação policial” (MENDONÇA, 2019, 597). Todavia,
como já não atendia exclusivamente a militares e lançava mão
de profissionais da educação do Estado, pode ser considerada
uma experiência precursora da militarização da rede estadual
de ensino de Goiás.
Segundo a análise da professora da Faculdade de Educação da
UnB, Catarina de Almeida Santos, temos no Estado de Goiás o
caso mais emblemático de militarização da rede pública de ensino,
não só pelo tempo como também pela maior incidência de escolas
dessa natureza no local; em 2018, somavam-se 55, e em todo terri-
tório nacional eram 120 instituições de ensino (ALVES; TOSCHI,
2019). Lançada em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bol-
sonaro, a Cartilha de Orientações do Pecim planejava “implantar
216 Escolas Cívico-Militares em todo o país, até 2023, sendo 54
por ano” (BRASIL, 2019). No ano de 2021, durante uma cerimônia
de certificação de 43 escolas da educação básica que aderiram ao

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Programa de Escolas Cívico-Militares (Pecim)43, o então Ministro
da Educação e pastor evangélico Milton Ribeiro anunciou que,
naquele momento, havia 127 Ecim’s no Brasil, e que para 2022,
seriam abertas 89 vagas para alcançarem as almejadas 216 escolas.

Tenho certeza que a multiplicação e a adesão no ano de 2021 das 61


escolas ao Pecim, e também a assinatura das 89 para 2022, represen-
tam a superação das nossas expectativas. Só não atendemos mais por
causa das questões administrativas, somente por isso. Se não atende-
ríamos hoje, como se diz, 300 cidades, que clamam pela presença da
escola cívico-militar. Nós estamos, nesse ano de 2022, antecipando
a meta que seria alcançada somente em 2023, e teremos 216 escolas
ao final do ano. (RIBEIRO, 2021)

Pela fala do ministro, percebemos que o Governo Federal


aposta veementemente no sucesso do Programa, quando acelera
sua implementação e afirma que pretende ampliá-lo para atender
uma suposta demanda de escolas que se interessam pelo modelo
proposto. Se revermos os dados anteriores à implementação do
Pecim, o número de escolas públicas com a presença de militares
mais que dobrou no curto período de três anos.
Mas, afinal de contas, do que se trata o Pecim? Quais são seus
objetivos e em que ele interfere no cenário da educação nacional?
Segundo as Diretrizes das Escolas Cívico-Militares (BRASIL, 2021),

43. A cerimônia realizada no Palácio do Planalto em 24 de novembro de 2021 contou


com a presença do presidente Jair Bolsonaro e outros agentes políticos, militares e profis-
sionais da educação envolvidos com o Pecim. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=8aRlpKuh4kw.

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O Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), esta-
belecido pelo Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019, visa
implantar um modelo de gestão de excelência em unidades escolares
públicas de ensino regular que ofereçam as etapas dos anos finais
do ensino fundamental e do ensino médio e que possuam baixo
resultado de Ideb e alunos em situação de vulnerabilidade social.
Destaca-se que a adesão ao Programa ocorre de forma voluntária
por parte dos estados, dos municípios e do Distrito Federal (BRA-
SIL, 2021, 7)

Trata-se de uma colaboração entre o Ministério da Educação e


o Ministério da Defesa, articulando-se com o apoio da Secretaria
de Segurança Pública do Distrito Federal, demais Secretarias de
Educação das Unidades Federativas e forças militares. De acordo
com o documento, o Programa se dedica a otimizar a gestão e o
ambiente escolar, bem como as práticas pedagógicas e o desempe-
nho escolar dos alunos e alunas. Para isso, o Governo Federal toma
como referência as mencionadas escolas e colégios da Polícia Mili-
tar, Corpo de Bombeiros e Forças Armadas, apostando na alocação
de militares para a escola pública.
Debruçados sobre o mesmo documento, encontramos uma
série de orientações e propostas para a implementação do modelo
de Escola Cívico-Militar (Ecim) elaborado pelo MEC: modelo de
gestão, planejamento estratégico, orientações para conduta dos
estudantes e uniformes, atribuições de cada quadro etc. Em aná-
lise mais aprofundada, não raro percebemos o enrijecimento da
cultura militar aplicado ao cotidiano da escola. Por exemplo, nos
artigos que seguem:

140 A construção da docência

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Art. 33. A formatura é uma disposição ordenada de um grupo de
alunos. Os alunos devem participar de uma breve formatura, den-
tro de cada turma, antes do início das aulas do dia letivo, que será
conduzida pelo Oficial de Gestão Educacional e pelos monitores.
Essa formatura tem por objetivo comunicar as ações da escola,
desenvolver algum aspecto do Projeto Valores, verificar o uniforme
dos alunos etc.
Art. 34. O líder de classe é o responsável por colocar a sua turma em
forma e a apresentar ao monitor com as frequências apuradas.
Art. 35. É recomendável que, pelo menos uma vez por semana, ocorra
uma formatura geral, com entoação de uma canção, hasteamento
da Bandeira Nacional e desfile dos alunos, se for o caso. (BRA-
SIL, 2021, 21)

Não só o cotidiano escolar é atravessado por um ritual marca-


damente militar como também os corpos são enquadrados a partir
dos valores e objetivos desta cultura. Os uniformes sugeridos pelas
Diretrizes reproduzem a indumentária dos quartéis, com boinas,
casquetes, distintivos, tarjetas de identificação com nome da aluna
ou aluno, sapato social, além de trazerem rigorosas orientações
quanto ao seu uso.

[O casquete deve ser] confeccionado em tecido, na cor azul escuro,


com borda inferior com costura aparente; aplicação do símbolo do
Pecim bordado, com tecido de fundo na cor da camisa, devendo
estar alinhado com a têmpora craniana direita. Deve possuir brasão
“Escola Cívico-Militar”, bordado do lado esquerdo de quem veste.
(BRASIL, 2021, 102)

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Por mais que o documento das Diretrizes para as Escolas
Cívico-Militares afirme que o Pecim “não é a imposição da cultura
militar comumente chamada de militarização. Não é ronda osten-
siva. Não é assumir a direção da escola, nem ocupar as funções dos
profissionais de educação” (BRASIL, 2021, 40), compreendemos
o Programa enquanto militarização da cultura escolar a partir do
momento que ele se espelha nas Forças Armadas e demais cor-
porações para alterar rituais e uniforme da escola e sua comuni-
dade. Além disso, mesmo que o militar não “ocupe a função” de
um professor, ele emprega sim atividades de caráter pedagógico,
colocadas como atividades cívicas, como hasteamento da bandeira
nacional, hinos e afins.
Evidentemente que há diferenças entre escolas e colégio mili-
tares, instituições de ensino públicas militarizadas e Ecim. A mais
objetiva se encontra no modelo de gestão. Os colégios militares
“reportam às Forças Armadas ou se subordinam, administrati-
vamente, à Polícia Militar [...]. Seu quadro docente é composto,
preferencialmente, por militares do exército ou da polícia.” (TIEL-
LET, 2019, 807). Já as escolas militarizadas possuem a maioria de
profissionais da educação e alguns quadros militares, sendo que as
relações entre estes apresentam grande diversidade e cada Unidade
Federativa se organiza de uma maneira.
As Ecim são instituições de educação básica públicas, que ofe-
recem Ensino Fundamental II e/ou Ensino Médio certificadas pelo
Governo Federal e que se organizam a partir de um modelo do
MEC, das Diretrizes das Escolas Cívico-Militares, da Cartilha de
Orientação, dentre outros documentos. Além disso, são fomentadas
e fortalecidas pelo Pecim; fomentadas técnica e financeiramente e

142 A construção da docência

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fortalecidas pelo “apoio técnico e financeiro destinado às escolas
públicas regulares que já adotem um modelo de gestão com cola-
boração civil/militar, com o objetivo de padronizá-lo ao modelo
MEC de Ecim” (BRASIL, 2019, 7).
O documento propõe dois organogramas que definem como deve
se desenhar a gestão escolar, dividida em três naturezas: administra-
tiva, didático-pedagógica e educacional. O primeiro esquema de ges-
tão seria o “ideal”, contando com maior porcentagem de profissionais
da educação envolvidos; o segundo é o atual, aquele que efetivamente
é posto em prática, uma alternativa “flexível”, que “se aproxima mais
da realidade das escolas públicas brasileiras”, que conta com menos
profissionais e praticamente equidade no número de militares e civis.
A gestão administrativa é compreendida em várias “áreas de
atuação, como pessoal, manutenção, materiais, patrimônio e
finanças. Essas áreas zelam pela vida funcional das pessoas, pela
formação continuada dos profissionais e pela infraestrutura da
escola” (BRASIL, 2021, 112). Dentre os quadros, há um desti-
nado a militares, o Oficial de Gestão Escolar, abaixo somente
da Direção Geral da Escola. Já a Gestão Didático-Pedagógica é
composta integralmente por profissionais da educação: o corpo
docente em si sob o comando da supervisão pedagógica (não
mais coordenação pedagógica). Por fim, a Gestão Educacional é
composta basicamente por um Corpo de Monitores subordina-
dos a um Oficial de Gestão Educacional, todos eles militares que
“cooperam nas ações pedagógicas e atuam nas dimensões afetiva,
social, ética e simbólica da gestão escolar” (BRASIL, 2021, 13).
Também há diferenças no que diz respeito ao processo seletivo.
Em estudo que se dedica a compreender a escolha das famílias

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em matricularem seus filhos em colégios militares, e mais especi-
ficamente no Colégio Tiradentes do Rio Grande do Sul, Margrid
Burliga Sauer e Karla Saraiva observam que os/as estudantes que
aspiram ingressar no dito colégio devem passar por três etapas,
sendo a primeira delas “um exame intelectual, com questões de lín-
gua portuguesa e matemática. Os classificados nessa etapa passam
por um exame de saúde e, posteriormente, por um teste físico, con-
forme critérios descritos no edital de seleção” (SAUER; SARAIVA,
2019, 769). Já as escolas militarizadas e as Ecim não têm processos
seletivos de qualquer natureza, a não ser o padronizado sorteio de
vagas, objetivando a equidade de acesso à educação pública.
Finalmente, também as legislações se diferem, entre colégio
militares e Ecim’s ou outros modelos de escolas militarizadas. Con-
forme nos expõe Mendonça,

as escolas propriamente militares fazem parte de um sistema espe-


cífico que não é regulado pela Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação Nacional (LDB), uma vez que o seu Artigo 83 dispõe que o
ensino militar é regulado em lei específica. [...] As escolas milita-
res organizam-se com base em rígida hierarquia, férrea disciplina,
obediência incontestável aos superiores, proibição de determinados
comportamentos socialmente normais em outros ambientes, como
demonstração de afeto, uso de adereços, cortes personalizados de
cabelo, dentre outros elementos que marcam a identidade das pessoas,
particularmente em uma fase como a adolescência. O ensino escolar
civil, por sua vez, tem seus princípios insculpidos no Artigo 206 da
Constituição Federal de 1988, que inclui, dentre outros, igualdade
de condições para o acesso e a permanência na escola, gratuidade

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do ensino em estabelecimentos oficiais, liberdade de divulgar o pen-
samento, pluralismo de ideias e, especialmente, gestão democrática.
(MENDONÇA, 2019, 596)

O autor continua sua crítica à militarização escolar pública


defendendo que “a comparação da dinâmica escolar de unidades
pertencentes a sistemas diferentes, regidos por legislação e nor-
mas diferentes nem sempre pode ser eficaz, já que as normati-
vas aplicadas a uma não são necessariamente adequadas à outra”
(MENDONÇA, 2019, 596). Tensionando ainda mais essa leitura,
também os objetivos da educação militar se diferem da educação
civil: a primeira está compreendida na lógica dos quartéis, dedi-
cada a formação de corpos fortemente disciplinados, obediente
à hierarquias e controlados por códigos de conduta que definem
comportamentos padronizados. Já a escola deve ser um espaço
praticamente oposto, fértil às múltiplas formas de ser, estar e pen-
sar no mundo, garantindo seu caráter democrático e dedicado à
formação integral da pessoa humana, compreendendo também
suas dimensões sensíveis e críticas, onde o conhecimento deve ser
construído, não informado de cima para baixo.

A escola não é uma empresa, em que se contrata um empresário,


ou um gestor, ou administrador para cumprir metas. A escola é um
espaço de construção de aprendizado. A gestão administrativa não
pode se dissociar da gestão pedagógica. Por exemplo, digamos que
uma escola, para que o pedagógico aconteça, queria desenvolver
uma proposta que seja contrário àquilo que a gestão militar acha.
E aí, como é que faz? Se a ideia for trabalhar a cultura africana e

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afrobrasileira, com penteados próprios desta forma de ser. A polícia
vai dizer “não, pra você estar aqui, tem que estar com o cabelo curto.
É claro que é um exemplo extremo, mas que diz: pedagógico e admi-
nistrativo não podem ficar separados, porque o administrativo tem
que andar em função do pedagógico. Nós estamos lidando com duas
áreas completamente díspares: a lógica da polícia é a lógica do quartel;
a lógica da escola tem que ser a lógica da liberdade. (SANTOS, 2019)

O exemplo trazido pela professora Catarina Santos foi hipoté-


tico e, aparentemente, absurdo. Entretanto, quando vamos para
o Centro de Ensino Fundamental 1, no Núcleo Bandeirante do
Distrito Federal, nos deparamos com a história de um estudante
negro ao qual foi sugerido por um sargento do Corpo de Bom-
beiros que cortasse o cabelo pois o aluno estaria “se camuflando
entre as meninas”. Mesmo com a flexibilização para cabelos crespos
da norma que prevê o penteado curto para alunos, “o Corpo de
Bombeiros informou que o cabelo do aluno estava fora dos padrões
das escolas cívico-militares e que o monitor orientou o menino, de
forma didática, a se adequar ao regulamento” (GLOBO, 2021). A
“maneira didática” que o sargento monitor encontrou foi perguntar
se o garoto estava “fazendo uma promessa”, para logo na sequência
sugerir que o mesmo “parecia uma menina”. Logo depois, a família
foi informada que o garoto de 12 anos só poderia permanecer na
escola (que é pública) se aderisse a orientação do monitor.
Exemplos como este evidenciam que o despreparo pedagógico
de militares, mesmo que destinados a uma função “administra-
tiva”, reverbera diretamente na formação de crianças e jovens.
Na reportagem de fevereiro de 2022, a família relata que depois

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da abordagem, o aluno “chorou e queria ficar sozinho”, e por fim
decidiu cortar o cabelo para permanecer na escola. O impacto
na construção da identidade negra desta criança que o episódio
relatado foi positivo? Qual é a ideia de “parecer menino” e “parecer
menina” que o monitor emprega na sua relação com as alunas e
alunos e no que ela influencia em sua conduta?
Também o caráter democrático da escola sofre ameaça,
compreendendo-a enquanto espaço público, interessado no bem
comum e aberto à diversidade cultural. A rigidez manifestada
no padrão de comportamento, no corte de cabelo, no uniforme,
nas relações entre alunos/as e monitor, furta a possibilidade de
manifestar-se livremente. Mesmo que se repita várias vezes nos
documentos reguladores do Pecim, inclusive dentre seus princípios
descritos no artigo 6° “I – igualdade de condições para o acesso e a
permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesqui-
sar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III – respeito
às diferenças individuais;”(BRASIL, 2021, 10), existe uma contradi-
ção muito grande entre educação para a diversidade e rigor militar.
‘ Por fim, este descompasso interfere também no acesso e per-
manência de crianças e jovens na educação básica, furtando-lhes
o direito fundamental à educação. Isso porque, conforme chama
atenção a professora Catarina dos Santos, mesmo que as escolas
militarizadas e Ecim’s respeitem o processo de sorteio de vagas
para ingresso de estudantes, existem mecanismos internos de sele-
ção que privilegiam alguns alunos em detrimento da exclusão
de outros. O que observa a professora, quando trata especifica-
mente do Estado de Goiás, é que se o aluno/a não se enquadra
nos parâmetros militares, ele recebe uma, duas advertências, até

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ser transferido para outra instituição de ensino. Também não lhe
escapa de análise o nível de renda das famílias de escolas milita-
rizadas, expressivamente maior que das demais escolas públicas.

ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA TANTO BATE ATÉ QUE


FURA: PELO FURO, OUTRA EDUCAÇÃO É POSSÍVEL

Os alunos invisíveis aprendem o óbvio, nada além do necessário, tudo


o que é preciso: para trabalhar, preciso para comer, matematicamente
preciso. Nem dois pra lá, nem dois pra cá, não! Sem danças, sem
tempo, sem baile nem defeito. Os alunos números, alúmeros, inúme-
ros sem diferenças, sem peculiaridades, sem música preferida, passeio
de final de semana ou saudades de um parente distante: não! Sem
diferenças, igualmente invisíveis. Alúmeros tem hora pra tudo, pra
levantar e para sentar, para falar e (quantas!) horas para ouvir, arma-
zenar as datas, as equações, as regras semânticas e sintáticas… para
ver se são preenchidos e assim, serem vistos, serem alguém na vida.44

Imagine que você está caminhando pelos corredores de uma


escola. Corredores longos, largos. Ao passar em frente às salas de
aula, você sente o cheiro de giz, sente o cheiro da merenda escolar,
sente o cheiro que exala dos corpos – a essência de cada um. Ao
virar o corredor, você dá de topa com uma câmera, ela é inofen-
siva, mas você sabe que está sendo observada/o. Não sabe quem
te observa, mas sabe que alguém vigia seus passos e movimentos.

44. Trecho de uma escrita em fluxo proposta em exercício criativo coletivo durante um
encontro do PRP – Artes.

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Ao entrar na sala de aula, encontra sua turma de classe e, olha só
que sorte: é a aula do/a professor/a que você mais admira! Mas ao
olhar os olhos dessa pessoa, percebe algo diferente... um reflexo.
Quando olha para o fundo da sala, há um corpo fardado em estado
de prontidão. Eu não sei qual é sua experiência com corpos farda-
dos, mas daqui consigo sentir o cheiro de medo, eu não sei bem
de onde vem, mas é bem forte e incômodo.
Dizem que cães são capazes de farejar o medo. E quando o medo
está com eles, ladram, avançam, mordem... por puro m e d o. Sabem
que tem dentes fortes e afiados, não lhes custa nada morder, mesmo
que por engano. No entanto, são adestrados para atacar. Passam por
treinamentos intensos, alguns infelizmente não suportam e acabam
morrendo. É matar ou morrer, como em videogames. E ao mero
sinal de ameaça, qualquer movimento brusco, eles atacam, com jus-
tificativas que acreditam ser plausíveis: “aquele guarda chuva parecia
uma arma”, “ele se virou pra pegar algo no carro, achei que fosse uma
arma”, “carro suspeito com cinco jovens”, “aquele menino com o
livro na mão parecia estar armado”. Na dúvida (leia-se com medo),
atire quantas vezes for necessário pra desafogar o incômodo, aqui os
incomodados não querem mudar. Os incomodados estão querendo
operar em mais lugares, aumentar o campo de concentração.
A escola parece ser um lugar propício para o treinamento. Não
mais aprendizado. Agora, já não cabe mais aquela professora ou
professor com brilho nos olhos, com afeto e opinião. Só tem espaço
para fardas cinzas, camufladas, tecido grosso, rijo, obediência, dis-
ciplina, exatamente. Aqui a violência não entra, mas está violenta-
mente controlada aqui dentro. Aqui cabe a denúncia, aliás, a dela-
ção, daqueles/as que suspeitam ter Partido. Não cabe improviso,

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malemolência nem samba, pois partem do princípio de unificação,
homogeneidade, resultados... e para se ter resultados, não há tempo
para o tempo, para o afeto, para a troca de aprendizados; não é
aprendizado, é treinamento. “É necessário compreender que a edu-
cação, assim como tudo na vida, precisa fazer sentido. Tanto para
quem aprende, quanto para quem ensina.” (TOLENTINO, 2019)
No livro “Outra Educação é Possível: feminismo, antirracismo
e inclusão em sala de aula”, Luana traz crônicas de práticas que
desenvolve há dez anos com turmas da Educação Básica (Ensino
Fundamental e Médio) a fim de “promover uma educação que res-
peite os saberes, a dignidade e a identidade de meninas, meninos,
jovens e adultos.” (TOLENTINO, 2019, p. 17). Não se trata de um
livro de receitas, com fórmulas prontas para combater injustiças
sociais. A autora, ao relatar experiências vividas em sala de aula, nos
aponta possibilidades de como lidar com os diversos preconceitos
já inculcados na mente de crianças e jovens, e que vêm à tona com
facilidade. No entanto, a mesma resposta ou prática didática não
funciona em todas as turmas. É necessário justamente ter escuta e
flexibilidade para desenvolver Outra Educação, bem como o enten-
dimento de que cada corpo é uma pessoa diferente, e essas pessoas
não são vazias, pelo contrário, elas já trazem uma bagagem de vida.
Dito isso, reconhecemos a importância de enfatizar a urgência
em contrapor ideias de militarização das escolas, de neutralidade
e unificação dos corpos, e de exclusão de pessoas. Enquanto edu-
cadoras/es temos o dever de propor reflexões acerca do contexto
ao qual estamos inseridas/os. Para tal, como proposta de reflexão,
nos apoiamos no livro de Luana. E como proposta de ordem prá-
tica, apontamos uma sugestão de ações feministas, antirracistas e

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inclusivas e que podem ser desenvolvida por qualquer docente,
seja homem ou mulher, cis ou trans, negra, indígena ou branca.
Só assim iremos reforçar o caráter democrático da escola pública
e garantir que não se desvie do seu principal objetivo, que é a
formação integral de uma sociedade mais justa e igualitária, com-
prometida com o que é de interesse comum a todos e todas, e não
de alguns setores particulares da sociedade.

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QUESTÕES LGBTQIAP+ E A EDUCAÇÃO

Fredda Amorim45
Giovany de Oliveira Silva46

Mediação: Caroline Garcia e Luís Felipe Monteiro


Equipe técnica: Matheus Felipe Marques Pessôa e Laura Ribeiro
Transcrição: Lorena Bragança e Aline Martins

Caroline Garcia: A sigla (LGBTQIAP+) nem sempre foi como


conhecemos. Aliás, a manutenção constante dessa sigla diz muito
sobre a comunidade e a sua trajetória. Não precisamos voltar muito
para lembrar que nos anos 1990 nos referíamos à nossa comuni-
dade pela sigla GLS, que significava “gays, lésbicas e simpatizantes”.

45. Mestra em Artes Cênicas pela UFOP, doutoranda em teatro pela UDESC e compõem
os coletivos Mika, Academia Transliterária, Outro Preto, Plataforma Queerlombos e Museu
Multa Brasil. É professora na pós-graduação em Lideranças Transformadoras do Centro
Universitário Celso Lisboa e produtora cultural no Bangalô de Irene Produções Artísticas.
46. Artista de teatro e professor licenciado em Artes Cênicas pela UFOP. Atualmente é pro-
fessor da educação básica, preceptor pedagógico do Programa de Residência Pedagógica da
CAPES/UFOP, subárea de Arte, e mestrando acadêmico do Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas (PPGAC) da UFOP. Possui trabalhos como ator, curador, dançarino, diretor
teatral, performer, dramaturgo e músico. Compõe a Cia Ajayô Teatro Em Pé e a Plataforma
Coletiva Queerloombos. Antes de tudo isso é bicha, preta e de muito axé!

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Todas as outras existências afetivo-sexuais e de gênero que são
reconhecidas hoje não eram devidamente representadas pela sigla,
se não somente enquanto o “S”, de simpatizantes.

Luís Felipe: Como a questão da representatividade se tornou cada


vez mais forte e importante, outras letras também foram incorpora-
das até conhecermos a sigla tal como ela é hoje. Uma das mudanças
mais significativas dessa trajetória aconteceu em 2008 na 1ª Con-
ferência Nacional GLBT, onde foi aprovada a alteração da sigla
para LGBT. A decisão de transferir a letra “L” para a frente correu
para dar maior visibilidade ao movimento lésbico. Desde então,
a letra inicia a sigla, que cada vez mais abrange outras formas de
existir e resistir. Para que possamos discutir mais profundamente
as questões LGBTQIAP+ na Educação, apresentaremos as letras
de forma breve.

Caroline Garcia: A letra “L” representa pessoas lésbicas; “G”: gays;


“B”: bissexuais; “T”: transexuais, travestis, transgêneros, dentre
outras; “Q”: queer; “I”: intersexuais; “A”: assexuais, “agêneros”; “P”:
pansexuais. Como a sexualidade e os gêneros humanos são múlti-
plos e complexos, o símbolo (+) foi adicionado para abranger todas
as demais identidades e orientações não mencionadas.

Luís Felipe: Mesmo sendo bastante abrangente, é importante res-


saltar que a sigla une dois conceitos bem diferentes: identidade
de gênero e orientação sexual, o que pode confundir quem tenta
compreender a diferença entre esses dois conceitos. A identidade de
gênero é como uma pessoa, em sua cabeça, se identifica, é a química

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que a compõe e como ela se interpreta e se vê. Já a orientação sexual
é fala sobre a atração física ou emocional, baseado na relação entre
seu sexo e gênero e o sexo/gênero das outras pessoas. A sigla traduz
um longo processo de luta por respeito e direitos. Quando voltamos
o nosso olhar para a educação, essa luta se amplia cada vez mais,
visto o crescente esforço de fazer desaparecer os corpos e as iden-
tidades dentro das escolas que decorrem, em parte, da explosão de
temas como identidade de gênero e sexualidade do currículo básico
comum. Para falar sobre este tema convidamos Gio de Oliveira e
Fredda Amorim a comporem a roda de conversa da semana.
Artísticas.

Fredda Amorim: Venho sendo convidada para participar desses


espaços de troca e isso se deve à minha atuação nos coletivos que
participo. Atuo em diversas frentes sociais e artísticas entendendo
que, ao participar desses lugares, encontramos a possibilidade de
levantar questões, resolvê-las e experimentá-las, tanto dentro do
espaço educacional, quanto nas nossas próprias vidas. Percebo que,
estando dentro desses espaços e debates, precisamos partir de nós
mesmas pensando as nossas questões, nossos atravessamentos, as
nossas dúvidas e as nossas dores. Vejo que são muitos os elementos
que compõem aquilo que nos transforma, que cria as nossas identi-
dades: a identidade de gênero. Identidade na qualidade de pessoas
que fazem parte de processos sociais, que são, na maioria das vezes,
institucionalizados. Sendo assim, falar sobre mim, sobre minhas
práticas, sobre minha “corpa”, dentro e fora desses sistemas e desses
espaços institucionalizados, é partir de uma compreensão de códigos
e signos que compõem os nossos corpos e que compõem as nossas

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transgressões. É partir da ideia de que os nossos corpos são vistos
por várias pessoas, e que essas pessoas fazem várias leituras sobre os
nossos corpos. Estamos inseridos numa sociedade na qual somos
lidos o tempo inteiro. Somos lidos quando vamos à rua, quando
estamos dentro de uma escola, como professoras ou mesmo como
alunas. Existe uma leitura que essa sociedade faz de nós. Para mim,
falar sobre nós e refletir sobre os corpos dissidentes é pensar na ideia
de TRAVESSIA. A travessia é um lugar que está entre determinados
pontos e pode ser um ponto de partida ou de chegada, ao qual não
necessariamente se precisa chegar, mas que representa a transforma-
ção desses corpos. Com isso, venho localizando e entendendo que
esses estados de reflexão, esses espaços de pensamento e de fruição
estão acontecendo – principalmente nesse momento de pandemia
– no espaço virtual. Estamos inseridas no processo educacional, e
considerando a Educação como um processo, sabemos como é
importante estar presente, ver, trocar olhares, abraços. Sendo assim,
estamos em um contexto no qual precisamos reinventar, inclusive,
a TRAVESSIA. O espaço virtual também é um lugar de travessia.
Esses processos que ocorrem nessas travessias e que incidem sobre
os nossos corpos são como ROTAS. Então que dentro destes espaços
constituímos determinadas rotas e escolhas, trago, enquanto bicha
de axé e candomblé, a ideia de encruzilhada. Essas rotas fazem parte
dessas encruzilhadas que se apresentam, essas “encruzi-travas”, como
nos traz Dodi Leal – essa ideia já está presente no candomblé, onde
várias rodas se apresentam em um espaço espiritual mas também
físico. Uma encruzilhada, pensada geograficamente, é um lugar onde
existem várias rotas. Estar no seu meio é ocupar um lugar onde se
pode refletir e pensar sobre as possibilidades de rotas e caminhos.

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Nessa perspectiva, a educação é também um caminho. Nela, entre-
cruzamos Educação, Arte, Vida e Política. O espaço escolar é onde
precisamos dialogar e onde desfrutamos de várias possibilidades:
sociais, políticos e afetivos, além de todos esses signos que as nossas
corpas e as nossas identidades apresentam como possibilidade no
mundo, e que fazem parte desses elementos de travessia. A encruzi-
lhada é esse lugar do caminho, da possibilidade, da oferenda, do Axé,
da transformação. Neste sentido, a minha corpa se localiza em uma
“encruzi-trava”, porque eu sou uma travesti preta, e não só por isso.
Essa corpa trilha várias rotas e transita por vários lugares. Eu estou
aqui presente representando o coletivo MICA, que é uma Organiza-
ção da Sociedade Civil (OSC), a plataforma Queerlombos, o coletivo
Outro Preto e o MUTHA Brasil e a Academia Transliterária. Para
quê estar em tantos espaços?, me perguntam. Temos entendido nos
últimos anos que se não nos posicionarmos ou encontrarmos nesses
lugares de aqueerlombamento47 deixaremos de existir. Se estivermos
nesses lugares onde determinadas coisas e determinados afetos nos
são negados socialmente, estaremos resistindo, porque estar nesses
lugares também é uma modalidade de (RE)existência – e são várias
as modalidades. É como se fosse um instinto de sobrevivência, pois,
se você não está naquele lugar, o seu corpo, a sua existência e a sua
identidade são passíveis de ser apagadas em outros espaços. Mas é
um processo no qual precisamos também localizar a demanda de

47. Ao empregar o termo “aqueerlombamento”, Fredda Amorim resgata Abdias Nascimento,


pesquisador que discute a importância do quilombismo na construção de um espaço simul-
taneamente organizacional, de resistência e, principalmente, de liberdade, pensado e cons-
truído pelos negros escravizados em favor do enaltecimento de sua cultura. Ela disse, ainda,
que a necessidade de erguerem-se quilombos ainda é existente no Brasil, e que tal demanda
evidencia a urgência de criarem-se espaços permissíveis à população preta e LGBTQIAP+.

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nos inserir em espaços institucionais, e para fazer isso nós realizamos
um processo chamado de “hackeamento”. Para hackear, precisamos
entrar no sistema (quem é hacker, sabe!), e se trata de um sistema
com “C”. Assim, dentro do “Cistema48”, podemos fazer essa mudança:
é de dentro da instituição – da engrenagem – que podemos identificar
e romper as bolhas, promovendo, assim, alguma transformação. A
Educação é um fenômeno que mistura e brinca entre vida, arte e
conhecimento, e meu percurso nela foi sempre o de estabelecer diá-
logo com várias temáticas. Tenho uma experiência de dez anos de
docência na Educação Básica. Quando comecei a dar aula, na minha
primeira graduação em história, lecionei turmas de sexto, sétimo e
oitavo anos de uma Escola Municipal, e foi uma experiência muito
angustiante no início. Primeiro, porque eu estava no começo do curso
de licenciatura, então tinha a angústia de não saber o que encontraria,
pois, até o momento, só havia sido aluna, não professora. Naquela
época ainda não tinha me identificado como uma pessoa trans, mas
era uma bicha, sempre fui uma bicha, uma criança viada, uma criança
“afetada”. A travesti estava ali, nasceu em mim, dentro de mim, só
precisava ser libertada. Mas esta libertação representava um risco de
vida. Ainda assim, voltando para a experiência da sala de aula, sabe-
mos que as licenciaturas e a Universidade ainda apresentam um
déficit para nos preparar para a prática docente, prática essa que está
sendo revista nos espaços de pesquisa como os coletivos que men-
cionei, e que, ao ser recriada traz temáticas muito importantes como
a questão LGBT, a temática racial, as ações afirmativas, a questão
Indígena e Quilombola. Se essas questões estão fora da escola, já

48. Alusão à cisgeneridade.

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percebemos que existem lacunas que precisam ser preenchidas pela
universidade que nos forma. São déficits curriculares que a tornam
defasada e é um processo contínuo de transformação do currículo
da licenciatura. Não para que estejamos sempre preparadas, porque
a prática é muito diferente da teoria, mas para que cheguemos dentro
da sala de aula com um mínimo de preparo, isto é, para poder res-
ponder a todas as realidades e demandas diversas que a própria escola
nos apresenta. Quem entra em cinco salas de aula diferentes, com
trinta alunos cada, para lecionar durante cinquenta minutos, sabe
bem o que é encontrar uma sala diversa. São trinta crianças, trinta
adolescentes, cada um com sua particularidade, com a sua identidade,
com as suas questões, e precisamos sempre estar com o foco nisso.
A minha experiência na sala de aula é essa: uma experiência de mais
ou menos dez anos. Eu dei aula no Ensino Fundamental, no Ensino
Médio e na EJA também. Fui transitando nesses espaços ora como
professora, ora como aluna. E essa trajetória foi marcada por diversos
desafios, traçados e vividos nessa encruzilhada. Tudo isso a partir de
marcadores sociais que constituíam as minhas identidades em todos
os espaços. Na infância, quando estava na Educação Infantil, eu tinha
o marcador social de ser essa criança viada e negra. No Ensino Fun-
damental, viada, afeminada, negra e gorda. Todos esses marcadores
demonstram as leituras que são feitas dos nossos corpos dentro desses
espaços institucionalizados, bem como as escolhas que fazemos no
meio dessa encruzilhada. Digo isso, pois, sendo uma pessoa Trans,
me identifico em todas as investigações e dossiês que são possíveis
de serem feitos, isto é, no grande índice de evasão escolar de crianças
viadas, de travestis, trans masculinos e pessoas não binárias. Então,
precisamos pensar também nesses marcadores que determinam essas

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relações, não só de professores para com alunos, mas dos alunos para
consigo mesmos, pois tudo é circular. Tudo está circulando dentro
de uma escola: da secretaria à cantina, da sala de aula à pessoa que
abre o portão para a criança entrar. São marcadores que sempre me
levaram a lugares de extrema exclusão, pois definiam a minha corpa
de diferentes formas e maneiras, conduzindo-a a diversos e variados
tipos de violência. Se estamos falando sobre educação e escola, pre-
cisamos falar sobre violência, pois são vários os tipos de violências
que são reproduzidas dentro desse espaço institucional. Então, falar
sobre encruzilhada é falar sobre dor, escolhas e sobre as diversas
violências que as nossas corpas sofrem dentro dos espaços institu-
cionais: dentro da escola básica, do Ensino Fundamental, do Ensino
Médio e, principalmente, da universidade. É, também, falar sobre
saúde mental dos alunos e professores desses espaços. E gostaria de
encerrar a minha fala trazendo essas questões porque não vim aqui
para trazer respostas. Eu estou cheia de questões, então, eu gostaria
de dividir com vocês algumas, que são: Você já viu ou já presenciou
algum tipo de violência LGBTQIAP+ no Ensino Fundamental
enquanto aluno? E quantas foram presenciais? Quantas foram sim-
bólicas? Quantas foram físicas? Quantos coleguinhas LGBTQIAP+
você tinha na sua escola, no seu Ensino Fundamental, no Ensino
Médio? Quantos são trans? Quantos professores trans vocês já tive-
ram? Quantos professores gays/lésbicas que podiam fruir suas iden-
tidades de gênero de forma livre dentro da escola sem sofrer nenhum
tipo de represália ou de discriminação? Discriminação que podia,
inclusive, vir de colegas e da direção das escolas. Afinal, estamos
falando da escola como um mecanismo institucional, com hierarquia
e relações de poder. Nós sabemos que na escola temos a direção, a

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pedagoga, os professores e alunos. Todos muito bem colocados em
suas respectivas funções hierárquicas. Então, quantos? Quantas pes-
soas LGBTs ou trans vocês já trocaram e trabalharam? E essa pessoa
estava em um lugar de poder? De tomada de decisões na escola? Não
estou aqui para propor uma ditadura gay, como as pessoas cisgêneras
falam, mas propondo uma reflexão, pois, se precisamos transformar
esses espaços, significa que identificamos, neles, várias questões que
precisam ser pensadas, repensadas e refeitas. Estou propondo pari-
dade: que todas as pessoas tenham direito e a possibilidade de leva-
rem o(a) seu(sua) corpo(a) para todos os lugares, porque nós temos
um problema gravíssimo: o da representatividade, e que precisa ser
resolvido. Aliás, já apresentei vários problemas para serem resolvidos
ou pensados, mas creio que é isso: o caminho da travessia, da encru-
zilhada é esse caminho de reflexão, de problemática, de questão. É
um processo, uma transformação com a qual precisamos nos com-
prometer de fato, pois, se não, ela não acontecerá. É estar e ser quem
você é sem medo, porque o Brasil ainda é o país que mais mata
pessoas trans no mundo. A taxa de evasão do Ensino Fundamental
e do Ensino Médio é de setenta por cento de pessoas Trans e pessoas
LGBTQIA+. Então, é isso, vamos pensar nas nossas práticas e refletir.

Caroline Garcia: Agradeço demais a sua fala, depois de ser atraves-


sada por essa travessia. Só queria, antes de chamar o Giovanny, res-
saltar que essa “corpa”, esse corpo docente, o corpo físico mesmo,
e o corpo como coletivo, pode romper essas bolhas que você men-
ciona, esse sistema com “C”. Pode romper ou afirmar essas próprias
violências, não? Enfim, para complementar esse debate, chamo o
professor Gio de Oliveira.

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Giovany de Oliveira: Novamente uma boa tarde a todos, todas,
todes. Começo pedindo bênção – eu sou essa pessoa que pede
bênção até hoje, sempre! – e axé. Quero pedir a bênção a todas
as LGBTs que já passaram por essa terra, que já colocaram a sua
“cara no sol”, colocaram seu suor, seu sangue e sua luta para que
pudéssemos habitar esse mundo hoje e propor novos movimentos.
Queria pedir a bênção das LGBTs viventes, as LGBTs do agora, e
queria pedir a bênção da Fredda aqui nesse momento. Fredda,
minha irmã de santo, minha irmã de tantas caminhadas, queria
pedir sua bênção, por todas as LGBTs que estão vivas e estão agindo
na educação, na saúde, na segurança, nas diversas áreas do conhe-
cimento humano.

Fredda Amorim: Motumbá, minha irmã!

Giovany de Oliveira: Motumbá, mana! Quero também pedir a


bênção para as LGBTs, sobretudo as pretas, que ainda virão, que
estão chegando para habitar essa terra. Espero, sinceramente, que
elas encontrem um mundo melhor, um Brasil melhor, uma Escola
Pública melhor do que as que eu, Fredda e as LGBTs antigas já
encontramos e vemos até hoje. A fala da Fredda me provoca em
muitos sentidos, em muitos lugares e queria que tivéssemos tempo
para tratar de tantas encruzas, de tantas encruzilhadas. A encruzi-
lhada, como a Fredda colocou, aponta diversos caminhos. Para
mim, a ideia de “cruz e travas” atualiza a discussão e nos aponta
novos lugares para pensar, ser, existir e refletir. Ela traz diversos
caminhos: os que são abertos, os que são confusos e os caminhos
que são fechados. Que caminhos são esses? São muitos, e esse

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exercício de permeá-los, de buscar vias que permitam as nossas
existências, só acontece pela necessidade de viver que temos, não
é mesmo? Então, como a Fredda bem coloca, se estamos aqui hoje,
discutindo tudo isso, é pela força e pelo desejo, é pela ação dos
próprios movimentos LGBTQIA+ através dos tempos e além. É
uma necessidade nossa e por isso brigamos tanto por isso. Nós já
entendemos durante esse processo histórico que viemos cons-
truindo, que se não for pela nossa própria ação, do nosso próprio
protesto, continuaremos silenciados também através dos tempos e
além. Sendo assim, é por essa necessidade de viver – e de viver bem
–, que nos organizamos e empreendemos essa luta já de muito
tempo. Pensando na minha própria trajetória, sei que a minha for-
mação no Ensino Superior serviu bastante para me fazer pensar
nessas questões. Eu sempre havia me visto como bicha, pura e sim-
plesmente bicha, uma bicha do interior de Minas Gerais, da cidade
de Ferros, muito caladinha, muito católica… Na Universidade, a
diversidade de pessoas que há ali me apontou para outras possibi-
lidades de ser e de existir. É lá que eu descubro, por exemplo, que
eu sou preto, além de bicha, e que não é algo dado, sempre soube
que eu não era branco, mas preto também nunca quis ser, nunca,
jamais. Pensando nesse exercício de habitar a escola, que a Fredda
nos colocou muito sabiamente, temos que as várias personagens
que compõem a escola são também bichas, lésbicas, travestis, desde
o estudante da Educação Infantil até o estudante do Ensino Superior,
a pessoa do portão, da secretaria, da cantina. E como pensar as
diferentes recepções que a escola dá para essas diferentes pessoas,
em diferentes posições hierárquicas, que sejam LGBTQIAP+?
Como a Escola recebe a criança “viada”, a criança transviada? Como

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a escola recebe a professora trans, a professora lésbica? Como que
a escola recebe esse casal de pais, de dois pais homens? Como a
escola recebe um casal de duas mães? Como ela vai mediar essas
relações ali dentro? A escola está preparada para pensar isso? A
escola está, no mínimo, preocupada em pensar isso? São questões
que já penso agora. Com isso, pensar meu corpo bicha na escola
enquanto professor é outra variante muito engraçada, porque
quando estamos ali enquanto estudante, geralmente nos defende-
mos, mas quando somos o “professor bicha”, nesse contexto, sinto
que é preciso dobrar sua defesa e encontrar formas de lidar com a
hierarquia, a fim de preservar o seu próprio cargo e sua sanidade
mental – afinal você precisa do emprego, precisa estar em um
ambiente de trabalho que permita sua existência minimamente, e
encontrar respeito ali é um desafio. Não era para ser uma pauta,
isso era para ser algo do Regimento Interno, mas durante meu exer-
cício de formação acadêmica na licenciatura em Artes Cênicas,
encontrei a Plataforma Coletiva Queerlombos, que me deu aportes
para pensar fora da norma, e foi estruturada em meados de 2015,
começando a ter ações mais efetivas no início de 2016. Naquela
época nos chamávamos “Diversidade de Ouro Preto”, e esse delírio
coletivo foi crescendo por meio de muitas rodas de conversa e even-
tos que produzíamos, além de diversos estudos internos e com
outras comunidades. Ainda em 2016, fomos “tomados de assalto”
por um grupo de estudantes que ocupavam uma escola no centro
de Ouro Preto e que queriam uma oficina de teatro em sua ocupa-
ção. A plataforma se organizou prontamente para atender à neces-
sidade desses estudantes e foram designados dois professores de
teatro para organizar essa oficina e aplicá-la na ocupação. Fomos

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eu e Saulo Calixto, também da Plataforma Queerlombos, e aplica-
mos essa oficina que gerou uma série de discussões na coletiva a
fim de que nos organizássemos de maneira mais objetiva para aten-
der essas demandas das escolas. Durante esses estudos nós estru-
turamos o eixo “Diversidade com a escola”. Como a Fredda bem
coloca, a escola já é o puro espaço da diversidade, e talvez o que
nós estivéssemos propondo naquela época fosse levar um olhar
mais mais pontual e organizado para essa questão. Nessa época em
2016, estávamos tendo o aprofundamento em algumas legislações
que aprofundam o debate da diversidade de gênero e sexual no
espaço escolar, e uma dessas legislações é a “Semana Estadual das
Juventudes”, uma lei estadual de Minas Gerais, mas que faz parte
também de um momento de cinco anos atrás, quando essas questões
ficam ainda mais vivas dentro dos espaços de redação e aprovação
das leis, as Assembleias Estaduais. Durante esse percurso na Queer-
lombos, entendemos que era importante olhar para a legislação da
educação e ter uma compreensão vívida e nítida de como ela se
estrutura, porque é de onde vai partir, muitas vezes, os respaldos
contra a censura dentro do seu exercício docente, algo colocado
por Fredda também e que realmente acontece. A censura pelo pró-
prio corpo docente, pela gestão escolar, pelos seus estudantes, pelas
famílias. Passamos, então, a estudar com mais profundidade a Legis-
lação brasileira entendendo-a como um lugar importante, um lugar
de defesa do servidor e do professor, mas também como defesa do
conteúdo que o estudante tem direito a ter, passamos a estudar em
diversos momentos, em diversas épocas. Chegamos a estudar a
Constituição do Império, pensando quem era “gente” no século
XIX aqui no Brasil. Quem tinha acesso à educação? Havia uma

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educação pública já no século XIX aqui? Para quem? No século XX,
com a modernização dos processos educacionais, temos a moder-
nização desses mesmos problemas: quem é cidadão no Brasil do
século XX? Quem é cidadão no Brasil hoje? Como a escola pensa
essas questões neste século e agora? E aí um salve para as manas
feministas, as manas da contracultura dos anos 1960, os movimen-
tos negros e indígenas, que estão “batendo em várias teclas” para
que tivéssemos essa possibilidade de discussão. E isso não aconteceu
nas Constituições dos anos 1940, nem na Ditadura Militar – essa
dispensa comentários, pois sabemos que foram vinte e um anos de
tristeza e muita censura. Com a volta do jogo Constitucional no
Brasil vamos ter o amadurecimento de várias legislações que são
importantes para a manutenção do trabalho que mencionamos, e
por isso se faz tão importante a compreensão dessa legislação e a
sua constante defesa e atualização. Ela existe para que a defendamos,
apliquemos, e a reinventemos com muito cuidado, já que inclusive
existe um desgoverno neste momento que quer atualizar as legis-
lações para educação, e não é para o bem. Lembro que desde 1989
temos a liberdade de cátedra, que está no 206º Artigo da Consti-
tuição Federal, além de outros documentos oficiais como a Lei de
Diretrizes e Bases para a Educação, os Parâmetros Curriculares
Nacionais, que apontavam já na década de 1990 um foco para o
trabalho da sexualidade, ainda por um viés muito “biologizante”:
hormônio masculino, hormônio feminino, útero etc. A BNCC, que
também é gerada a partir da LDB, dos PCNs, do Plano Nacional
de Educação, prevê alguns desses tópicos, e trago aqui mais espe-
cificamente a Lei Federal da Semana de Educação para Vida de
2009 e a Semana Estadual das Juventudes. Essas leis já colocam

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questões que vinham dos PCNs, e como parece que não estavam
sendo aplicadas, surge uma legislação para fazê-lo. Nós já havíamos
experimentado legislações parecidas antes, como a Lei N°10.639
para o trato das questões de África e cultura africana na educação
e a Lei N° 11.628 que previa o estudo das comunidades indígenas
nos espaços escolares. É de extrema importância ter noção dessas
e de outras legislações para que possamos nos defender das possíveis
censuras que ocorrem. Antes da censura, precisamos estar atentas
e fortes para agir de maneira programada e objetiva nas nossas
disciplinas, ou seja, vai depender do docente buscar uma metodo-
logia que seja a mais adequada para o seu estudante. Não faz sentido
pensar uma metodologia para um estudante da zona urbana de BH
e aplicar a mesma metodologia para a zona rural de Mariana ou
Ouro Preto. A metodologia precisa ser atualizada, e em alguns
momentos são necessárias ações pontuais e de emergência para
colocá-la em prática, tendo que afirmar nossa hierarquia de pro-
fessor – e professor bixa. A hierarquia existe, por que não jogar com
ela a nosso favor? Dentro do que os regimentos preveem, por que
contestar o meu poder? O meu poder é contestado. Minha voz não
é a mesma voz de um professor cisgênero. Essa performatividade
se espraia no espaço. Às vezes as pessoas me olham e veem um
“viadinho”, mas sem considerar do que um “viadinho” é capaz. É
capaz de escrever, de falar, de organizar uma aula, de dar um close,
e nesse sentido, modéstia à parte, eu tenho muita confiança no
“viadinho” que eu me tornei. Pensando em ações e programas para
sua disciplina, é necessário pensar uma curadoria muito delicada
para trazer esses materiais externos, seja lá qual material você vai
usar, ou que profissional que irá trazer. A escola adora trazer médico

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e polícia. Não que eles não possam ser convidados, mas vamos
pensar em uma outra curadoria que possa tratar dessas questões
no espaço da escola. Recentemente venho recorrendo muito à cole-
tiva Ninfeias, à própria Queerlombos, pois existem coisas que esca-
pam ao meu entendimento, sendo preciso buscar pessoas que tra-
gam esse trato delicado e profundo para comunidade. Agora, se do
contrário, a censura persistir, não tema, siga adiante, chame o sin-
dicato, a Secretaria Municipal de Educação, a Superintendência
Regional de Ensino, o Ministério Público, estadual, federal, chame
todo mundo. Porque já está lá: está na constituição que protege essa
LDB vigente, essa BNCC, então, qualquer coisa contra isso é atentar
diretamente contra a constituição. Nós sabemos que a constituição
brasileira tem valido muito pouco durante os últimos anos. Tem
sido difícil defendê-la, mas, talvez, o exercício também seja esse,
de falar sobre o que precisamos defender e cuidar. Sinto que a
Queerlombos me ensinou muito sobre o cuidado, de si e da comu-
nidade que já vem aí. Eu preciso encontrar um mundo minima-
mente organizado para que ela possa existir sem dores. A escola é
linda, mas ela traumatiza. Acho engraçado como nosso corpo se
fecha na escola. Eu me sentia uma pessoa mais queer, mais “viada”,
antes de ser professor. É cobrado uma postura de professor que na
qual ser “viado” não combina com ser professor, essa cobrança é
real, ela existe. Então, eu queria dizer para todos que estão nos
ouvindo: professoras, professores, LGBTs, e partir da fala que a
Fredda acabou de fazer – o “travearcado49” já começou, as regras
são outras e estamos aqui atualizando o mundo. Para todos os

49. Junção das palavras “travesti” e “patriarcado”.

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professores LGBT que estão aí ouvindo: depende muito de nós, pois
os professores cisgênero estão pouco preocupados. Com isso,
mando esse recado para os professores cisgênero, para que nos
preocupemos a partir do lugar de fala que temos, que realmente
lutemos contra essas coisas. Acho ótimo que nos abram espaço para
que falemos das coisas, mas você também pode falar a partir do
espaço onde você está. E é isso gente, muito obrigado.

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AFETO E EDUCAÇÃO:
COMUNIDADE LGBTQIAP+ E O CORPO-
ENCRUZILHADA NO ESPAÇO ESCOLAR
B Campos
Caroline Silva de Paula

Nesta escrita, a partir das falas apresentadas por Fredda Amorim


e Giovany de Oliveira Silva, no “Seminário Temático Aberto sobre
Questões LGBTQIAP+ e a Educação”, proposto pelo Programa de
Residência Pedagógica Artes – UFOP, refletiremos sobre a noção
de corpo-encruzilhada e a afetividade dentro da escola.
Quando Leda Martins (2003) nos mostra a importância da
memória na construção des sujeites e bell hooks (2013) descreve
suas primeiras vivências na escola num espaço seguro e comunitá-
rio, logo somos levades a retomar nossas experiências escolares: os
diálogos, as situações, certos momentos que nunca foram ultrapas-
sados e que hoje fazem parte de quem somos. Desde o útero, nossos
corpos são marcados pelo afeto, pela memória e pela sociedade,
essas marcas, por sua vez, gritam por voz: o corpo transcreve cada
uma de suas vivências nos espaços que habita.
Com isso, fica posto que é impossível falar da escola sem falar
de interseccionalidade, de corpo-encruzilhada. Mas afinal, o que
é esse “corpo-encruzilhada”? A partir da fusão do conceito de

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“encruzilhada” e da dimensão de “corpo”, o pesquisador Jarbas
Siqueira Ramos expõe a noção de “corpo-encruzilhada” para mos-
trar que nossos corpos experienciam e trocam através dos tempos.
Estar em corpo é estar aberte e vulnerável aes outres, estar em
corpo é levar um pouco do espaço para si e se deixar no espaço.
Aqui, “corpo” deve ser compreendido em sua forma plural: material
e simbólica (RAMOS, 2011).
Sobre a concepção de encruzilhada, Martins (1997, p.
28) desenvolve:

A encruzilhada, locus tangencial, é aqui assinalada como instân-


cia simbólica e metonímica, da qual se processam vias diversas de
elaborações discursivas, motivadas pelos próprios discursos que a
coabitam. Da esfera do rito e, portanto, da performance, é o lugar
radial de centramento e descentramento, interseções, influências e
divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergências, uni-
dade e pluralidade, origem e disseminação.

É válido ressaltar que a ideia de entrecruzamentos em nós e de


nós, não é algo novo: a filosofia africana há séculos entendia tempo
e comunidade enquanto encruzilhadas. Com a chegada nas Amé-
ricas durante o processo de escravização, os povos africanos que
aqui passaram a viver sofreram um apagamento cruel e estratégico
imposto por seus colonizadores europeus. A filosofia europeia
extingue os ideais da filosofia africana: a ideia de convergência
é deixada de lado para que a “linearidade” e “sucessão”, além da
falaciosa ideia de “evolução”, tomem o seu lugar.

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Como parte de nossa “herança colonial”, a cultura africana
(dentre outras tantas influências culturais que guardamos em
nossos corpos) se faz presente em nosso país:

[...] pensar as culturas brasileiras como culturas de encruzilhadas é


perceber os entrecruzamentos constituídos nos encontros e misturas
entre as diversas etnias e suas práticas e simbologias culturais, bus-
cando pensá-las por meio de processos interpretativos que propõem
a mediação entre os elementos que a constituem como, por exemplo,
as corporalidades e os discursos. (RAMOS, p. 6)

Assim, entendemos que diversos aspectos se afunilam em nossa


cultura e nossa história desaguando em nossas encruzilhadas, o
campo simbólico, nossos corpos e vivências.
Com base nessas conceituações, Ramos desenvolve a ideia de
corpo-encruzilhada: não apenas como algo físico e tangível, mas
também simbólico, que parte do sensível. Para trazer o exemplo
para mais próximo a nós, podemos pensar na experiência de se
nascer no Brasil: a encruzilhada vivida por nós brasileires se dá
quando não somos apenas brasileires, somos também mulhe-
res, mas também mulheres negras, também trans, somos indíge-
nas, somos mães, filhas, estudantes, esposas, empregadas… Há
mulheridades, maternidades, academicismos, religiões ou classes
sociais, vivências diversas. Não somos uma unidade estanque,
a experiência nunca se limitará a uma condição social isolada,
mas a um grande emaranhado delas. Esse é o corpo-encruzi-
lhada, é aquele que

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[...] tanto é como cria pontos de encontros entre caminhos que se
atravessam, gerando e sendo (ao mesmo tempo) os entre-lugares.
Esse entre-lugar é, portanto, um novo espaço que se constitui por
meio da inter-relação entre os diversos elementos que coabitam a
encruzilhada. Uma vez que esses elementos estão entrecruzados/
entremeados/misturados, são capazes de produzir novas simbologias
sobre esse próprio tempo-espaço e, inevitavelmente, sobre o corpo.
Na medida em que demarca a sua existência, esse entre-lugar se
estabelece de modo que sua interpretação somente pode acontecer
por meio da sua distinção, singularidade e particularidade, sendo
impossível tratá-lo de modo genérico ou de generalizá-lo. (RAMOS,
2019, p. 12)

E é justamente a partir dessa concepção que podemos nos colocar


a pensar para além do senso comum, somos convidades a compreen-
der novos espaços, a nos colocar enquanto corpo atento, reflexivo e
crítico: a docência tem grande importância nessa tarefa.
É importante que compreendamos a educação como mais um
lugar de entrecruzamento, onde habitamos um tempo, um espaço
e vivências específicas. Mas há um diferencial crucial: a escola é o
primeiro lugar de socialização da criança, é o local responsável por
nos colocar pela primeira vez frente ao diferente, ao desconhecido,
e por esse motivo é o local que deveria nos ensinar a conviver com
outres, a exercer o afeto. Na tentativa frustrada e despreparada de
se colocar corpos alheios em interação, é que vemos a violência ser
reproduzida. Lidar com o diferente se torna uma tarefa perigosa.
Sobre a relação entre memória e afeto, Leda Martins (2003, p. 64)
nos diz que

174 A construção da docência

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Tudo o que escapa, pois, à apreensão do olhar, princípio privilegiado
de cognição, ou que nele não se circunscreve, nos é ex-ótico, ou seja,
fora de nosso campo de percepção, distante de nossa ótica de com-
preensão, exilado e alijado de nossa contemplação, de nossos saberes.

Frente a tal dificuldade, nos fica a questão: como fica o corpo


negro, o corpo lésbico, o corpo trans, o corpo não-binário, como se
dá a inserção dos corpos transviados dentro dos muros da escola?
O que nós enquanto corpo docente estamos fazendo para que haja
uma mudança efetiva na situação de evasão, violência e abandono
contra tais estudantes?
A pesquisadora bell hooks em seu livro “Ensinando a Transgre-
dir: A Educação como Prática Libertadora”, descreve que “Para os
negros, o lecionar – o educar – era fundamentalmente político, pois
tinha raízes na luta antirracista.” (HOOKS, 2013, p. 10), sobre sua
condição de menina negra em uma escola racialmente segregada,
conta que desde cedo aprendeu que a “devoção ao estudo, à vida do
intelecto, era um ato contra-hegemônico, um modo fundamental
de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista”
(HOOKS, 2013, p. 10). Assim que se vê dentro de um espaço de
educação pautado em uma ideologia hegemonicamente opressora,
já no período da dessegregação racial, a visão da autora sobre a
escola muda por completo:

Qualquer falta de conformidade da nossa parte [des estudantes


negres] era vista com suspeita, como um gesto vazio de desafio
cujo objetivo era mascarar a inferioridade ou um trabalho abaixo
do padrão. [...] À medida que nos deparávamos com os constantes

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preconceitos, uma corrente oculta de tensão afetava nossa experiência
de aprendizado (HOOKS, 2013, p. 14).

bell hooks é um exemplo de que a educação é experienciada


de maneira subjetiva para cada indivíduo, para cada corporali-
dade. Ainda sobre sua experiência com a educação, hooks traz a
importância do diálogo e da presença dentro da sala de aula, onde
professories e estudantes, devem se colocar “em jogo”, prontes para
se abrir umes com es outres. Assim se cria a comunidade: “A visão
constante da sala de aula como um espaço comunitário aumenta
a probabilidade de haver um esforço coletivo para criar e manter
uma comunidade de aprendizado [e sobretudo, uma comunidade
de respeito à diversidade].” (HOOKS, 2013, p. 18). Talvez a resposta
para um ensino mais consciente e afetivo seja justamente essa: a
troca, o senso de comunidade.
Não estamos dizendo aqui que cabe apenas a escola ensinar es
sujeites lidar com a diversidade, mas que a escola é um espaço ideal
para tal formação, onde é possível implantar a mediação para even-
tuais conflitos e o acolhimento necessário para combater o abandono
de alguns corpos, principalmente porque em muitos casos essus
estudantes não têm acolhimento algum vindo de suas casas. Afinal,
só aprendemos a lidar com outres, lidando com outres, e na escola
essa convivência é inevitavelmente necessária.
No Brasil, a escola infelizmente vem sendo local de sofrimento
para pessoas LGBTQIAP+ pois as condições de gênero e orientação
sexual se somam aqui a diversos outros fatores, dentre eles raça e
classe social. Segundo a Comissão da Diversidade Sexual da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) concentramos 82% da evasão

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escolar de travestis e transgêneros, já segundo o Dossiê de Assas-
sinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em
2021, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA),
5% das vítimas de assassinato no Brasil tinham entre 13 e 17 anos.
Viver se torna hostil, ser um corpo trans matriculade nesse
“CIStema” é um grande desafio. No livro “Juventudes na Escola,
Sentidos e Buscas: Por que frequentam?” foi demostrado pela
socióloga Miriam Abramovay (2010) que 19,3% dos alunos de
escola pública não gostariam de ter um colega de classe travesti,
homossexual, transexual ou transgênero. A pesquisa de Miriam
prova que sistemicamente pessoas LGBTQIAP+ são ceifadas dos
ambientes escolares, além de privadas de afeto e acolhimento no
mesmo. No dossiê já citado feito pela ANTRA também nos é dado
um nítido recorte de gênero onde “o total de vítimas menores de
idade nos últimos cinco anos somam 27 casos ou 5,6% das 483
fontes que trouxeram informações sobre a idade das vítimas. Sendo
26 pessoas transfemininas e 1 pessoa transmasculina.” (ANTRA,
2022, p. 40). Podemos ver tal problemática na figura abaixo:

Vítimas menores de idade entre 2017 e 2021

Fonte: BENEVIDES, Bruna, (ANTRA,2022, p. 40)

Outro argumento de extrema importância exposto no dos-


siê é que:

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Muitas escolas não têm garantido o direito ao uso do nome social e/ou o
respeito à identidade de gênero dessas pessoas, alargando os motivos que
propiciam à exclusão do ambiente escolar, interrompendo o direito à Edu-
cação de uma parcela considerável da população (ANTRA, 2022, p. 43).

O corpo de alunes LGBTQIAP+ se torna encruzilhada para


diversos traumas e privações enquanto deveria exercer o direito
pleno à educação e afeto pelo corpo docente e discente. No artigo
de Camila Bacellar, “Performance e feminismos: diálogos para
habitar o corpo-encruzilhada”, a autora discorre sobre a consciência
do corpo nas obras de “artistas-encruzilhada”:

[...] tais artistas articulam seus modos de existência com processos


de criação desestabilizando um sistema de mundo no qual a opressão
de gênero é racializada e oriunda de uma lógica colonial, capitalista
e heterosexista [além de binária]. Seus corpos – e suas performan-
ces – parecem nos lembrar que não temos o direito de renunciar a
existência e que a sobrevivência não basta (2016, p. 64).

Isso para nos lembrar constantemente de que, assim como na


arte, devemos reconhecer e colocar nosso corpo no espaço. Não
basta não reproduzir a violência, devemos lutar para extingui-la.
A omissão tem um lado e apenas silencia as situações de opressão.
É hora de nos colocarmos enquanto corpo ativo nas escolas! De
nada vale a formação docente sem que levemos em conta todos
os impasses políticos e sociais existentes dentro de uma aula, sem
nos propormos enquanto docentes a reconhecer e tentar alterar a
realidade brutal que perpassa esses corpos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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buscas: Por que frequentam? / Miriam Abramovay, Mary Garcia
Castro, Júlio Jacobo Waiselfisz. Brasília-DF: Flacso – Brasil, OEI,
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LIVROWEB_Juventudes-na-escola-sentidos-e–buscas.pdfASSOCIA-
ÇÃO BRASILEIRA DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS DO BRASIL
(ANTRA). Dossiê assassinatos e violências contra travestis e tran-
sexuais brasileiras em 2021 / Bruna G. Benevides (Org). Brasília:
Distrito Drag, ANTRA, 2022. Disponível em: https://antrabrasil.files.
wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf. Acesso em: 10
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habitar o corpo-encruzilhada. Florianópolis: Urdimento, v. 2, n. 27,
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php/urdimento/article/download/8637/6504/29840. Acesso em: 18
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HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da
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MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do rosário
do jatobá. São Paulo: Perspectiva, 1997.
MARTINS, Leda. Performances da Oralitura: corpo, lugar da memó-
ria. Língua e Literatura: Limites e Fronteiras, n. 26, p. 63-81, jun.
2003. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/
view/11881/7308. Acesso em: 13 jul. 2021.

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RAMOS, Jarbas Siqueira. Desvelando o corpo-encruzilhada: reflexões
sobre a encruzilhada como espaço de interseção. Uberlândia/MG:
Universidade Federal de Uberlândia – UFU, 2019. Professor; artista;
pesquisador das culturas brasileiras. Disponível em: https://www.
publionline.iar.unicamp.br/index.php/abrace/article/view/4470.
Acesso em: 17 jan. 2022.

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Escola Estadual José Leandro,
distrito de Santa Rita de Ouro Preto

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III – O CHÃO DA ESCOLA

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SOBRE UMA FORMAÇÃO DOCENTE:
QUESTIONAMENTOS E ESTRATÉGIAS
DE ENSINO PARA ARTE-EDUCADORES
Samir Antunes

“A Arte existe porque a vida não basta.”


Ferreira Gullar

INTRODUÇÃO
Para contextualizar o trabalho proposto por mim nesse ensaio é
importante informar que sou arte-educador efetivo da rede pública
estadual do Estado de Minas Gerais, sendo lotado na Escola Esta-
dual Dom Pedro II, a qual atende alunas e alunos do Ensino Médio
(1º, 2º e 3º Anos) tanto do Ensino Regular quanto da Educação
de Jovens e Adultos (EJA). A escola atende cerca de novecentos
discentes por ano, nos três turnos (manhã, tarde e noite), vin-
dos de várias regiões da cidade de Ouro Preto/MG, onde a escola
encontra-se localizada. Atualmente a escola conta com vinte e
cinco turmas nos três turnos, as quais sou o único professor que
ministra o conteúdo de Arte50.
A partir de 2020, com o surgimento da pandemia de Covid-19,
a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG)

50. O nome da disciplina é adotado pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais.

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passou a adotar o formato de ensino remoto, onde alunas e alu-
nos assistiam aulas através da Rede Minas (TV que pertence ao
governo de Minas Gerais) e tinham acesso a um material – tam-
bém produzido pela Secretaria de Educação do Estado – deno-
minado Plano de Estudo Tutorado (PET), ao qual estudavam e
resolviam as atividades propostas. Esses PETs eram distribuídos
bimestralmente e possuíam conteúdos separados entre cinco a
seis semanas, de acordo com o bimestre e a carga horária. Após
a resolução do material, as atividades eram enviadas, de forma
digitalizada, pela plataforma Google Classroom ou pelo aplicativo
Conexão Escola, desenvolvido pela secretaria. Durante todo esse
período pandêmico, que ocorreu durante os anos de 2020 e 2021,
a função de professoras e professores da rede estadual de ensino
se limitou na orientação do conteúdo contido nos PETs, além de
desenvolverem, cada um de sua maneira, estratégias que dimi-
nuíssem o impacto educacional negativo entre alunas e alunos da
rede pública de ensino.
Foi nesse contexto e com base na proposta de difundir a arte-e-
ducação que ingressei como preceptor do Programa de Residência
Pedagógica (PRP) em Artes da Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP), que tem como objetivo contribuir na formação docente
de graduandas e graduandos dos cursos de licenciatura em Artes
Cênicas e Música que irão se tornar arte-educadores. O programa
era coordenado pelo Prof. Dr. Guilherme Paoliello, representante
do Departamento de Música (DEMUS) e pelo Prof. Dr. Ernesto
Valença, do Departamento de Artes Cênicas (DEART). O pro-
grama era dividido em três módulos e teve início em outubro de
2020, durante a pandemia de Covid-19, e término em março de

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2022. Todas e todos residentes do programa fizeram um “rodízio”
entre as três preceptorias existentes, que eram: Escola Municipal
Professora Juventina Drummond, com coordenação da Profa.
Erika Curtiss; Escola Estadual José Leandro, com coordenação
do Prof. Giovany de Oliveira Silva e Escola Estadual Dom Pedro
II, coordenada por mim. A Residência era dividida em dois encon-
tros remotos semanais, onde em um estávamos todos os partici-
pantes (residentes e coordenadores) e um encontro específico por
cada preceptoria.
Durante esse período de um ano e meio orientei vinte e quatro
residentes dos cursos de licenciatura em Artes Cênicas e Música,
onde propus atividades e reflexões acerca do que penso sobre o
que é arte-educação e qual a função que acredito que ela deva
exercer na formação cidadã de alunas e alunos da Educação Básica.
Todo o trabalho desenvolvido com as e os residentes do PRP nesse
período tem como proposta contribuir no processo de construção
docente de cada um(a).
Sendo assim, o que se encontra a seguir é um pouco da abor-
dagem proposta por mim durante todo esse processo de formação
docente, tendo como base minha visão acerca do ensino de Arte
nas escolas, além de conter também algumas impressões das e dos
residentes durante sua trajetória no PRP-Artes.

ARTE-EDUCAR
Pensar em uma formação educacional por meio da Arte é pen-
sar em diversos questionamentos que permeiam o imaginário das
pessoas que estão no entorno desse ensino, sendo elas pesquisado-
ras, artistas e, principalmente, espectadoras do fazer artístico, que

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irão compor a maioria de estudantes da Educação Básica e que são
aquelas as quais devemos desfazer as amarras que as prendem em
conceitos antiquados que permeiam a Arte. É muito provável que
a pergunta inicial no ensino-aprendizado artístico seja: “O que é
Arte?”. Considerando que o ser humano é o único, entre todos os
seres viventes, capaz de produzir Arte, e que a mesma está pre-
sente em todos os períodos históricos de nosso planeta, é provável
que venhamos a ter inúmeras respostas para essa pergunta, e que,
mesmo nesse incontável número, não haja uma resposta satisfa-
tória para a gama de estudiosos que se debruçaram – e ainda se
debruçam – sobre o resultado do fazer artístico.
Com base nisso, se fizermos uma breve conversa entre alunas
e alunos da Educação Básica, desde o Ensino Fundamental II até
o Ensino Médio, é muito provável que a maioria já tenha ouvido
tal questionamento, e que o mesmo sempre traz uma enorme
dúvida de como ele deve ser respondido durante às aulas de
Arte. Ou seriam aulas de Artes? Confesso que durante minha
Educação Básica o nome da disciplina era Educação Artística
e, por mais estranho que pareça, nenhuma das professoras e
professores que ministraram o conteúdo para mim possuíam
formação em qualquer área artística. Para se entender melhor
um pouco desses meandros que envolvem o ensino de Arte no
Brasil veja o que diz Carla Adriana Machado, Mestra em Edu-
cação pela Universidade Federal de Santa Maria/RS.

A partir da década de 1970, na Lei de Diretrizes e Bases n.º 5.692/71,


a Arte foi incluída como obrigatória no currículo escolar, mas como
“atividade educativa” e não disciplina, sendo chamada de Educação

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Artística. O parecer 540/77 esclarecia que a Educação Artística não
era matéria, que respeitaria as tendências e que a livre-expressão
deveria ser utilizada; mas nem por isso deixaram de ser exigidos os
planejamentos com objetivo, conteúdo, método e avaliação. A Edu-
cação Artística se diferenciou das demais disciplinas do currículo, e
seu conteúdo não recebeu a devida atenção em documentos. Mesmo
assim, essa obrigatoriedade foi considerada um avanço, principal-
mente pelo fato de que houve uma percepção em relação à Arte na
formação dos indivíduos. Como muitos professores não estavam
habilitados e preparados para o domínio de várias linguagens (Artes
Plásticas, Educação Musical, Artes Cênicas), o resultado foi contra-
ditório. Um processo de elaboração de uma nova Lei de Diretrizes
e Bases da Educação se iniciou em dezembro de 1988. Após oito
anos de debates, a nova Lei de Diretrizes e Bases foi sancionada pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo Ministro da Educação
Paulo Renato, em 20 dezembro de 1996. A nova lei regulamentou o
ensino em todo o país, estabelecendo diretrizes para os currículos em
seus três níveis de ensino: Fundamental, Médio e Superior. Os dois
primeiros são chamados de Educação Básica, que inclui ainda a edu-
cação infantil, as creches e as pré-escolas (MACHADO, 2013, p. 10).

Como é possível perceber, o surgimento de uma lei que formali-


zasse a Arte, enquanto disciplina dentro do currículo da Educação
Básica é recente, contando agora 26 anos, mas, ainda com muito
a ser discutido sobre o formato que é ensinado na sala de aula.
São tantas (con)fusões durante a trajetória artística na formação
educacional básica que é mais que natural que a pergunta inicial
seja irrelevante para alunas e alunos, principalmente se pensarmos

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na questão primordial que cerca seu pensamento discente, que é:
“Por que eu devo estudar Arte?”. E é óbvio que, se fazem essa per-
gunta, ela só pode ser destinada à uma pessoa: nós, professoras e
professores que ministram o conteúdo. Sendo assim, é com base
nesse questionamento feito a nós que devemos desenvolver nossa
proposta didática, entendendo que não estamos formando artistas,
muito menos ensinando variadas formas de Arte, pois, além do
fato de que docentes da área não possuírem uma formação ampla
em todas as linguagens que devem ser trabalhadas (Artes Visuais,
Dança, Música e Teatro), também não há tempo hábil para tanto,
visto que a carga horária destinada para o ensino de Arte na Edu-
cação Básica é de cinquenta minutos semanais (01h/aula), em um
total de quarenta horas anuais (40h/ano). Sendo assim, acabamos
chegando à uma outra questão, que é: “Como se deve trabalhar a
Arte em sala de aula?”
Assim como a questão inicial contida nesse ensaio (O que é
Arte?), penso que não há uma única resposta e tampouco uma
que vá agradar a maioria de docentes que trabalham o conteúdo
em sala de aula, porém, é a partir da resposta dessa questão que
conseguiremos satisfazer a questão que envolve o porquê de se
estudar Arte durante a Educação Básica. Penso também, que é
dever de cada profissional encontrar a forma que seja mais eficaz
para desenvolver os conteúdos artísticos com alunas e alunos em
sala de aula sendo, a explanação que virá a seguir, a maneira que
desenvolvi em meus mais de quinze anos como professor e minis-
trante de oficinas arte educacionais.
Ao pensar em uma terminologia para o ensino das artes nas
escolas, me apego naquilo que reflete exatamente a maneira como

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penso que deva ser trabalhado o conteúdo em sala de aula durante
toda a jornada da Educação Básica. O termo arte-educação resume
exatamente o trabalho que deve ser feito em sala de aula, ou seja,
educar estudantes através da Arte. É muito importante que alu-
nas e alunos saibam sobre especificidades da história da Arte, até
mesmo porque são essas as questões que serão cobradas em pro-
cessos seletivos, como ENEM e vestibulares. Porém, a questão não
está naquilo que é abordado durante as aulas, mas sim na forma
como abordamos cada um desses temas. A meu ver, não é função de
professoras e professores apenas falar sobre como a Arte influencia
cada período da história, nem tampouco tentar ensinar o “ofício” de
artista, mas sim propor uma educação libertadora que se valha da
Arte e que seja capaz de formar mais do que concluintes do Ensino
Médio; uma educação que forme cidadãs e cidadãos participativos
socialmente, cada vez mais compreendendo as diferenças existentes
entre as mais variadas culturas, valorizando-as e defendendo-as, de
forma que possam acabar com as diversas intolerâncias que temos
presenciado em nossa sociedade. É dessa maneira que eu penso uma
educação através da Arte e é como eu acredito que a formação de
profissionais voltados para o ensino das artes deve agir, para que
assim, tenhamos um ensino mais homogêneo e que faça sentido
para alunas e alunos durante sua trajetória na Educação Básica.
É importante perceber que a Arte vem se tornando ao longo
do tempo algo distante para estudantes da Educação Básica; algo
quase inalcançável, muitas das vezes até mesmo pela falta de
entendimento daquilo que “é ou não é Arte”. É muito comum ver
nas mais variadas mídias uma abordagem que designa determi-
nadas “coisas” como sendo Arte, como, por exemplo, o locutor

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esportivo, que ao narrar um gol durante uma partida de futebol,
se refere a ele como sendo uma “pintura”; uma “obra de arte” e até
mesmo classificando determinados jogadores como praticantes
de um “futebol-arte”. É óbvio que em todos esses casos ele se usa
de uma figura de linguagem, uma expressão utilizada para fazer
referência à plasticidade, porém, ao mesmo tempo, ele acaba por
se valer de um conceito estético arcaico onde a beleza é o que
importa dentro da Arte; conceito esse que tentamos desconstruir
já há algum tempo, pois, além de propor uma visão limitada do
que é proposto por artistas em suas obras, também pode acarre-
tar uma visão preconceituosa, onde só é bom aquilo que é “belo”.
Isso ainda, sem considerarmos que uma frase similar ao exemplo
futebolístico citado anteriormente, pode gerar uma confusão e
até mesmo uma falsa ideia de que qualquer coisa pode ser Arte,
o que, de certa forma desvaloriza não apenas o fazer artístico,
mas, também, o conteúdo estudado em sala de aula.
Uma coisa curiosa é perceber que, em muitos casos, as e os
estudantes consideram várias coisas como sendo arte (como o
futebol, por exemplo), mas não reconhecem no seu dia a dia a
presença de Arte. Um exemplo disso é a música que, de tão pre-
sente em suas vidas – ao ponto de uma variedade de estudantes
portarem fones de ouvido nos corredores da escola – acabam
por não a reconhecer como uma manifestação artística, prin-
cipalmente se estão ligadas à uma camada social mais popu-
lar e acabam entendendo Arte como aquilo que está distante
deles, principalmente aquelas que são destinadas a lugares
específicos aos quais não têm por hábito frequentarem, como
galerias, teatros, casas de ópera etc. Sendo assim, cabe a nós,

192 A construção da docência

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arte-educadoras e educadores, desconstruir essas visões limi-
tadas acerca de que Arte é apenas aquilo que não está acessível
intelectualmente; aquilo que é extremamente erudito, pois, essa
visão irá acompanhá-los durante a vida adulta e será passada
adiante, criando uma “cultura” de que a Arte é coisa chata. Da
mesma forma, é de extrema importância valorizar as produções
artísticas mais presentes na camada popular, aquelas que estão
por toda parte, seja nas ruas ou mídias sociais, pois são nelas que
a maioria das alunas e alunos da Educação Básica se reconhecem
e valorizá-las é também uma forma de valorizar aquilo que elas
e eles são. Por fim, é preciso se conscientizar de que qualquer
tipo de Arte é importante, mesmo que não nos reconheçamos
nela, e que todas e todos, sem distinções, são capazes de aces-
sar as mensagens contidas na Arte; basta vinculá-las àquilo que
se faz presente na sociedade; àquilo que faz sentido em nossas
vidas, principalmente se associarmos com os fatos relevantes
que compõem a nossa época atual.

ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NA PRECEPTORIA


DA ESCOLA ESTADUAL DOM PEDRO II
Durante esse período de um ano e meio, recebi as e os residentes
do PRP na Escola Estadual Dom Pedro II onde, mesmo que de
forma remota, desenvolvemos atividades importantes que engran-
deceram nossa formação educacional, assim como a experiência
das e dos estudantes, que puderam ter outros materiais de estudo
durante esse momento tão difícil que foi (e ainda tem sido) a pan-
demia de Covid-19. Além de terem que “encarar” o estudo remoto
com uma estrutura quase irrisória, também tiveram que enfrentar

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os mais sérios problemas impostos pela pandemia, como perda de
entes próximos e o surgimento de sequelas sociais, como fobias e
dificuldade de se relacionarem. Foi com base nesse contexto que a
preceptoria Dom Pedro II agiu e procurou desenvolver atividades
que amenizassem o impacto dessas dificuldades enfrentadas.
Logo a seguir, há uma série de atividades realizadas durante o PRP
que servem apenas como registro de experiências. A sua ordem de
apresentação não reflete a forma como foram realizadas, muito menos
graus de importância de uma em relação à outra, pois considero que
cada uma, à sua maneira, foi de extrema importância para o desen-
volvimento do projeto e na formação profissional de cada um(a).

1. ESTUDOS
Por mais que a prática tenha sido um desejo constante e, muitas
vezes, até acompanhada por uma ânsia de um retorno ao ensino
presencial, os estudos foram muito importantes para fortalecer o
preparo docente para desafios futuros. Entre os estudos realizados
durante o projeto estão os seguintes:

1.1 BNCC
Junto às e aos residentes, propus um estudo sistemático sobre
a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), onde analisamos os
pontos mais interessantes e levantamos eventuais problemas que
ela pode produzir na educação.

1.2 Novo Ensino Médio


Assim como no estudo sobre a BNCC, o Novo Ensino Médio
– que teve início em 2021 como plano piloto de algumas escolas

194 A construção da docência

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e que entrou efetivamente em vigor em 2022 – também fizemos
uma análise dos problemas e soluções que podem surgir com sua
implementação. Com base no próprio slide fornecido pela SEE,
foram apresentas todas as mudanças que entraram em vigor nas
turmas de 1os Anos, como Itinerários Formativos, separação dos
conteúdos por áreas de conhecimento e a adoção de um material
didático mais amplo, assim como a ampliação da carga horária
com a institucionalização do 6º horário.

1.3 Projeto Político-Pedagógico


Com a presença das pedagogas da Escola Estadual Dom Pedro
II, Miriam Chaves (turno da manhã) e Uiara Penna (turno da
tarde), foi apresentado o Projeto Político-Pedagógico (PPP) da
escola, além de uma explanação sobre sua importância para um
trabalho mais coeso e profissional na educação.

1.4 Currículo Básico Comum


Outra ferramenta de estudo foi o Currículo Básico Comum
(CBC) do Estado de Minas Gerais. Ele foi analisado de forma que
as e os residentes entendessem a proposta do desenvolvimento de
competências e habilidades que acabaram servindo de base para
a construção da BNCC.

1.5 Educação Básica no sistema carcerário


Junto aos arte-educadores Saulo Campos e Daniela Moreno,
ambos profissionais da Educação Básica no Estado de Minas
Gerais, foram apresentadas experiências educacionais ocorridas
dentro do sistema carcerário de mulheres e homens, assim como

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estratégias didáticas para se trabalhar com estudantes que com-
põem esse sistema.

1.6 Arte-educação
Durante esse período de um ano e meio, muito se discutiu
e se debateu sobre a importância da arte-educação dentro da
Educação Básica, principalmente na rede pública de ensino.
Além das propostas levadas por mim, também houve discussões
muito importantes com a presença de profissionais ligados à
Educação Superior, sendo a Profa. Dra. Neide das Graças de
Souza Bortolini (professora do Departamento de Artes Cênicas
da UFOP) e o Prof. Jhon Weiner de Castro (professor do curso
de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas), levantando
questões sobre a formação em Arte-Educação.

1.7 Plano de Estudo Tutorado


Uma das ferramentas que se fizeram mais presentes durante
o estudo remoto da Educação Básica no Estado de Minas Gerais
foram os Planos de Estudos Tutorados (PETs), que eram todo o
conteúdo educacional fornecido às alunas e alunos para o seu
estudo bimestral. Esse material foi amplamente estudado pelos(as)
residentes, de forma crítica, e fazendo apontamentos daquilo que
poderia ser melhor desenvolvido na elaboração desse material,
inclusive nas atividades propostas nele.

1.8 Currículo-referência de Minas Gerais


O site desenvolvido pela Secretaria de Estado de Educação de
Minas Gerais (SEE/MG), conhecido como Centro de Referência

196 A construção da docência

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Virtual do Professor, também foi apresentado para as e os residen-
tes como um material importante de consulta, principalmente para
quem está entrando na profissão educacional e precisa de auxílio
em questões escolares, inclusive para a elaboração dos planos de
aula mensais, bimestrais ou anuais.

1.9 Avaliação diagnóstica


A avaliação diagnóstica é uma ferramenta importante para
professoras e professores ao início do ano letivo. É através de sua
utilização que conseguimos entender o nível de cada uma das
alunas e alunos e também saber quais conhecimentos estão ou não
consolidados para, a partir daí, desenvolver estratégias de ensino
mais eficientes. Toda essa abordagem e sua importância foram
temática de estudo com as e os residentes, principalmente ao pen-
sarem na elaboração e desenvolvimento de seus planos de aula.

2 PRÁTICAS JUNTO À ESCOLA


Além do estudo de materiais importantes para o processo de for-
mação profissional em educação, as e os residentes, em momentos dis-
tintos, desenvolveram ações que contribuíram para o ensino-aprendi-
zagem dos(as) estudantes durante o ensino remoto nos anos de 2020
e 2021, fazendo com que a compreensão do material desenvolvido
pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais fosse mais
fluida e de maior compreensão, entre os quais estão os listados abaixo.

2.1 Reunião síncrona com estudantes da E. E. Dom Pedro II


Uma das ações que marcaram mais a preceptoria da E. E. Dom
Pedro II foi o encontro virtual entre residentes do PRP e estudantes

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 197

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da escola. Durante esse encontro foram discutidas as dificuldades
enfrentadas durante a pandemia, não só no âmbito educacional,
mas também no pessoal. Houve uma troca muito grande de expe-
riências onde as e os residentes puderam entender melhor o con-
texto estudantil durante a pandemia e desenvolver melhor estra-
tégias que tinham como propósito elaborar monitorias para cada
um dos anos escolares do Ensino Médio Regular (1º, 2º e 3º Anos).

2.2 Elaboração de videoaulas


As videoaulas se tornaram uma realidade necessária durante o
ensino remoto. Além de serem importantes para auxiliar na com-
preensão do material que estavam estudando sozinhos em casa
(PET), a estratégia dialogava com um recurso muito próximo à
juventude, que são os vídeos com recado claro e rápido (Reels,
TikTok, Stories etc.). Dessa forma, as e os residentes desenvolveram
um material de auxílio educacional, tanto durante o ano letivo
corrente quanto também para contribuir na recuperação anual ao
final de 2021. Além do material ser enviado para as alunas e alu-
nos através do mural de sua turma contido no Google Classroom,
ele também foi disponibilizado através do canal do PRP-Artes no
YouTube, servindo também como um material de boas práticas.

2.3 Elaboração de planos de aula


Uma das formas encontradas para tornar a experiência prática de
residência mais próxima da realidade da sala de aula foi a apresentação
de planos de aula. Após um estudo sobre como elaborá-los e qual sua
importância dentro do contexto escolar e também profissional, cada
residente elaborou um plano de aula, com base na BNCC e apresentou

198 A construção da docência

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aos demais colegas. Ao final de cada apresentação foi levantado um
debate onde se apresentaram sugestões para engrandecimento da
experiência, bem como se levantaram questões que poderiam ser um
complicador na aplicação do conteúdo em sala de aula.

2.4 Monitorias síncronas


Como mencionado no item 2.1, foram pensadas estratégias para
auxiliarem nos estudos remotos, principalmente no que diz respeito
ao entendimento dos PETs bimestrais. Sendo assim, semanalmente,
três residentes mantinham um plantão de monitoria, cada um com
um ano específico do ensino regular (1º, 2º e 3º Anos) com o intuito
de auxiliar no entendimento do conteúdo a ser estudado naquela
semana e também na resolução das atividades vinculadas ao con-
teúdo. As monitorias tinham a duração de uma hora (01h) e acon-
teciam das 14h às 15h, sempre às sextas-feiras. Após às 15h, quem
estava na monitoria acessava a reunião da preceptoria e comparti-
lhava a experiência com o restante do grupo.

2.5 Elaboração de questões


Uma das grandes dúvidas existentes era quanto à maneira de
se elaborar questões avaliativas, seja em atividades cotidianas ou
em avaliações durante o ano letivo. As questões mais levantadas
eram referentes a “De que forma elas devem ser pensadas e quais
critérios devem seguir?”
Sendo assim, fizemos um estudo com base nesses questiona-
mentos e cada residente elaborou questões de múltipla escolha,
com cinco opções cada, levando em consideração o formato ado-
tado pelo ENEM até o momento.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 199

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Após a elaboração das questões, cada residente as apresentou
durante nosso encontro semanal e depois fizemos uma discus-
são com apontamentos específicos sobre cada uma, de forma que
contribuíssem para uma reflexão conjunta sobre as formas e méto-
dos avaliativos.
Vale ressaltar que algumas das questões elaboradas pelos(as)
residentes foram utilizadas, após supervisão e revisão do preceptor,
com as turmas da E. E. Dom Pedro II, tanto como atividades, como
também em avaliações bimestrais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA


DA ARTE-EDUCAÇÃO

“Se a educação sozinha não transforma a socie-


dade, sem ela tampouco a sociedade muda.”
(Paulo Freire)

Esse ensaio não possui considerações finais, ou talvez existam


várias, já que ele é o resultado de muitas vozes. De tal forma, e
como não poderia deixar de ser, reservo um espaço destinado
às reflexões feitas pelos(as) residentes durante sua trajetória no
PRP, afinal de contas foi em sua função que todo esse conteúdo
foi pensado, elaborado e executado, sendo elas e eles o futuro da
arte-educação nos diversos cantos do país.
Após nosso um ano e meio de reflexões sobre o que é arte-edu-
car e quais os caminhos que se deve percorrer para que haja uma
educação através da Arte, que contribua para uma formação cidadã
para alunas e alunos da Educação Básica, mais uma vez levantei,

200 A construção da docência

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agora não uma, mas duas questões ao final de nossa caminhada
juntos e início de suas jornadas individuais. Sendo assim, cada
uma das reflexões abaixo se torna uma consideração acerca da
arte-educação. As perguntas foram “Para você, o que é arte-edu-
cação?” e “Quais os desafios em ministrar esse conteúdo?”. O que
se segue abaixo é o compilado de algumas das respostas das reais
protagonistas desse programa.

“Uma das maneiras de trazer conexão ao nosso interior é nos


expressando, e isso traz conhecimento sobre nós mesmos e sobre
o mundo. Portanto, nós, arte-educadores, carregamos uma missão
ilustre que vai além de cortar bandeirinhas para festa junina e
organizar eventos desse gênero. Devemos ter uma dedicação a mais
para alunos que passam por certas dificuldades e que muitas vezes
são silenciados dentro e fora do ambiente familiar. Estimular os
alunos através de conteúdos artísticos, elaborando réplicas, criações
e reflexões desses conteúdos, contribuem para que eles cresçam
com a sensibilidade e percepção mais engajadas. Entender a vivên-
cia dos alunos e poder ser agente transformador em suas vidas é a
coisa mais bela que podemos fazer.” (Hiago Fernandes – Música)

“Na junção das duas, a arte-educação não é só uma e nem outro,


muito menos será também os dois ao mesmo tempo, mas sim algo
novo, que junta os dois conceitos numa nova ideia com suas pró-
prias inovações, barreiras, méritos, mazelas etc. A arte-educação
é o ato do ensino e aprendizado da arte, não só se prendendo a
essas palavras, mas a arte-educação é o estimulo da criatividade e
comunicação de um indivíduo, uma forma de demonstrar a partir

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 201

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dos moldes da arte como pode ser entendida a nossa sociedade, e
como nos vemos na mesma. [...] A partir da arte-educação explora-
mos outras histórias, outros conceitos, outras realidades, que serão
passadas para cada geração.” (Pedro Henrique – Artes Cênicas)

“Temos duas vertentes ao falar sobre arte-educação, no meu ponto


de vista: primeiro é a arte de ensinar, e, segundo, ensinar arte! O
maior desafio em ministrar esse conteúdo, na minha opinião, é a
forma que as aulas serão ministradas, para que o aluno sinta-se
interessado no ensino e absorver o conteúdo.” (Higor Gonçalves
Ferreira – Música)

“É uma pergunta complexa, pois sempre me vem em mente pri-


meiro ‘O que é arte?’, e a resposta é muito ampla e nunca tem uma
resposta. Começando pela educação, eu creio que posso dizer que
é a base de toda nossa sociedade basicamente, todos passam pela
educação e todos deveriam passar pelas artes também, pois a arte vai
trabalhar questões que ajudam os alunos/alunas/alunes a crescerem
de forma aberta aos questionamentos do mundo, se desenvolverem,
se questionarem e entenderem que podem se expressar de várias
maneiras artísticas que vão ser ouvides, vão ter visibilidade. Os
desafios da arte-educação é na maior parte das vezes o próprio sis-
tema da educação em que estamos inseridos, a arte é desvalorizada
e sucateada, essas problemáticas reverberam por toda formação
dos discentes e consequentemente acaba criando professores frus-
tades e desanimades, mas que mesmo sem energia sempre dão um
jeitinho de causar um balanço na educação.” (Wellingthon Patrick
Schneider – Artes Cênicas)

202 A construção da docência

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“Arte-educação é uma forma de pensar o ensino de arte a partir
da interdisciplinaridade e da polivalência, não dando ênfase às
linguagens individuais, e sim, pensando essas linguagens de forma
integrada. A dificuldade em lecionar está justamente na formação
inicial da graduação, que não contempla a complexidade e a abran-
gência de todas as linguagens artísticas que são requisitadas pela
BNCC.” (Marco Túlio de Paula – Música)

“Para mim, quando falamos em arte-educação, estamos falando de


um diálogo entre as áreas pedagógicas e artísticas. É inegável que a
arte em si, muitas vezes, carrega um caráter pedagógico, porém, falar
de arte-educação para mim é muito mais do que isso, é entender o
papel da arte no desenvolvimento humano. É não necessariamente se
atentar a questões conteudistas em uma aula, mas pensar em como
fazer uma vivência artística significativa em prol de desenvolver
algum aspecto da formação humana. Quanto aos desafios, eles são
inúmeros. Muitos deles advém, ao meu ver, de questões históricas,
que por consequência se apresentam como problemas estruturais
da própria instituição Escola na atualidade. As Artes não ocupam
um lugar de privilégio (e muitas vezes nem de respeito) dentro de
diversas instituições, isso associado a pouca infraestrutura são, sem
dúvidas, dificultadores pra a realização de atividades artísticas.
Porém existem também desafios relacionados a formação docente,
[...] existe uma luta constante para aproximar a vivência escolar do
processo de formação docente.” (Matheus Pessôa –

“Considero uma pergunta muito difícil, ainda tenho dificuldades


de responder o que é arte. Acredito que é relativo à percepção de

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cada individuo, seja na música, no teatro, na dança ou nas artes
visuais, dizer se é arte ou não depende de como a obra afeta quem
a aprecia. Sobre educação, acredito que tem a ver com aprendizado
e estímulo de pensamento, que pode ser feito de varias maneiras
e priorizando os métodos que os alunos tem facilidade. (…) ima-
gino que seja muito complicado estimular a criatividade, o fazer
artístico de alunos tão diferentes, que podem se identificar ou não
com as atividades, além disso há uma necessidade de cumprir um
currículo predeterminado que pode ser um norte interessante para
que eu como professor possa seguir, entretanto tenho medo de ser
uma coisa que me limite.” (Bruno Vinícius de Souza – Música)

“Arte-educação é (ou deveria ser) linguagem, é cultura, é política,


é criticidade, é conexão com outres, é história, é levantar vozes,
é afeto, é corpo, é ancestralidade, comunidade e formação cons-
ciente. Penso que o principal desafio da arte em sala de aula é o
de desconstruir essa ideia eurocentrada e apolítica que se criou
da mesma, é abolir a sala de aula entediante e desconectada de
nossa realidade, e como diria bell hooks “O entusiasmo é gerado
pelo esforço coletivo” (2013, p. 18), é um desafio mover todes.” (B
Campos – Artes Cênicas)

“Arte-educação para mim, é transformação pedagógica. É o uso


do que nós temos de sensível, a fim de aflorar a sensibilidade de
quem recebe. Não é apenas a introdução da arte na vida das pes-
soas, na justificativa de que isso as ajudará em outras disciplinas e
conhecimentos, mas também de inquietar os sentidos e questionar
indivíduos quanto à sua própria existência, seus costumes e sua

204 A construção da docência

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cultura. Os desafios são vários, mas talvez partam do olhar que
a sociedade tem para a Arte e para a Educação, pois ela costuma
valorizar só o que mais convém a ela, de forma rápida e superficial.
Dessa forma, há impactos socioeconômicos no trabalho de quem
atua na arte-educação, como por exemplo, a sua desvalorização
ou até a baixa remuneração para essa pessoas.” (Victor de Jesus
Ferreira – Música)

“Para mim, arte-educação tem a ver com o lidar com o sensível,


o criativo e o artístico, passando pelas linguagens em sua parte
prática, teórica e histórica. Sou arte-educadora porque isso faz
parte da minha visão de mundo (específica a quem sou, ao que
vivo e acredito), não só porque sou professora de artes – quase
formada. Os desafios são INÚMEROS [...] Desvalorização da classe
docente, retrocesso conservador no país, perda de direitos, visão
neoliberal da educação e da escola enquanto empresa, na qual não
há espaço além de um mísero tempo de aula para Artes, a questão
da polivalência, censura, além de preconceito de classe e racismo
(imaginemos trabalhar o funk na aula de artes, por exemplo, a isso
me refiro nesses dois últimos tópicos). Como se sabe, as questões
sociais atravessam a escola (mesmo que os muros da escola parti-
cular tentem barrá-las), e, consequentemente, todas as disciplinas.”
(Letícia Pavão Schinelo – Artes Cênicas)

“Arte-educação para mim é utilizar-se da arte como veiculo e/ou


como ferramenta para atingir um objetivo pedagógico. Os desafios
esbarram sempre no preconceito e falta de credibilidade dadas a
essa vertente da educação.” (Vinicius de Melo – Música)

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(Pedro Gaban Pentidá Moreira – Artes Cênicas)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MACHADO, Carla. O Ensino de Arte na Educação Básica: um olhar
para a música e a interdisciplinaridade, 2013. Disponível em: <https://
rd.uffs.edu.br/bitstream/prefix/253/1/MACHADO.pdf>. Acesso em:
05/03/2022.

206 A construção da docência

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PRECEPTORIA NA ESCOLA ESTADUAL
DOM PEDRO II: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES NO ENSINO REMOTO
Matheus Felipe Marques Pessôa
Isabela Cristina Resende Silva

INTRODUÇÃO
Buscamos trazer aqui um amplo relato acerca das atividades rea-
lizadas durante o módulo II do Projeto de Residência Pedagógica
Artes da UFOP, mais especificamente as realizadas a partir do dia
07 de abril de 2021, na preceptoria da Escola Estadual Dom Pedro
II (Ensino Médio), com acompanhamento do preceptor e professor
de Artes da escola, Samir Antunes.
A preceptoria, composta pelos(as) seguintes residentes Caro-
line Silva de Paula, Isabela Cristina Resende Silva, Isadora Matri-
carde, Lawanda Ritchely Gonçalves Modesto, Luisa Doné Totini
Gomes, Matheus Felipe Marques Pessôa, Vinicius de Melo e Victor
de Jesus Ferreira, teve como foco principal de seus estudos os
Planos de Estudos Tutorados (PET’s), que é uma série de mate-
riais didáticos formulados e fornecidos pela Secretaria de Estado
de Educação (SEE) de Minas Gerais para as escolas estaduais,
visando à realização dos estudos dos(as) alunos(as) durante o
período pandêmico.

A Residência Pedagógica em Artes na Universidade Federal de Ouro Preto 207

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Tal estudo, junto às demais atividades aqui apresentadas, teve
sua motivação a partir de uma vontade de todos(as) residentes em
retomar o contato com os(as) alunos(as) e vivenciar a atividade
docente, mesmo que remotamente, diante de um cenário tão des-
favorável para a educação como o daquele momento. Com isso, a
primeira atividade trazida aqui foi a criação de vídeos explicativos e
com dicas acerca dos PET’s. Inicialmente esse material não foi feito
para ser divulgado, mas sim, como uma forma de experimentar a
produção de um material didático que servisse de auxílio aos estu-
dos, sendo que tal iniciativa já era realizada pelo preceptor Samir.
Em um segundo momento, trouxemos para a escola a proposta
de um encontro aberto entre os(as) residentes e os(as) alunos(as),
com o objetivo de entender melhor suas dificuldades durante a
pandemia. Por fim, decidimos oferecer um auxílio mais direto a
partir de duas ações: continuar a elaboração dos vídeos explicati-
vos sobre as atividades dos PET’s, que dessa vez seriam divulga-
dos, e abrir um espaço para que os(as) alunos(as) pudessem tirar
suas dúvidas em tempo real através de reunião via Google Meet:
as monitorias.
Portanto, nas próximas páginas buscaremos detalhar cada um
desses momentos, explicitando os caminhos tomados, as inquieta-
ções que levaram a realização de tais atividades e as reverberações
de cada momento em nossa experiência de formação docente.

2 – ESTUDO E PRODUÇÃO DE VÍDEOS


EXPLICATIVOS SOBRE OS PET’S
Conforme dito anteriormente, nossas atividades tiveram
início com um estudo acerca dos PET’s, sendo este enfoque

208 A construção da docência

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proposto pelo professor preceptor. Os PET’s são um compilado
de atividades formuladas pela SEE de Minas Gerais divididas nos
diferentes anos da Educação Básica e que contemplam todas as
matérias obrigatórias escolares. Seu objetivo é servir de material
de estudo para alunos(as), visto que, frente ao cenário em que
nos encontrávamos, o ensino presencial não era possível. Sendo
assim, tais documentos se mostravam como principal material
documental de aporte para o trabalho docente nas escolas assis-
tidas pelo Estado durante a pandemia, o que torna seu estudo de
extrema importância.
Junto a isso, Samir também compartilhou como vinha sendo
sua experiência ao trabalhar com esses materiais. Em seus relatos,
vimos que um dos principais pontos negativos dos PET’s, é o fato
de serem apenas uma série de exercícios elaborados por pessoas
sem contato com as especificidades de cada escola, e que acabam
por impor ao professor ou professora a mera função de enviar
as atividades e depois corrigi-las, sem debatê-las com os(as) alu-
nos(as). A partir disso, foi nos apresentado o meio encontrado
por ele para minimizar esse impacto negativo: gravar vídeos
curtos explicativos para os(as) estudantes sobre as atividades de
cada semana.
Partindo disso, decidimos então trabalhar na mesma linha e
fizemos, cada um(a), um vídeo explicando as atividades de uma
semana específica para as turmas de cada um dos anos destinados
a nós. Essa foi uma forma de realizarmos uma experimentação
e exploração de recursos didáticos virtuais. Assim, chegamos a
seguinte divisão:

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ATIVIDADE DE RESOLUÇÃO PETs

2° ANO 3° ANO
SEMANA 1 Isabela Victor
SEMANA 2 Lawanda Isadora
SEMANA 3 Matheus Caroline
SEMANA 4 Matheus Vinícius
SEMANA 5 Luisa Vinicius

Divididas as semanas, os(as) residentes ficaram responsáveis


por resolver as atividades correspondentes a elas e elaborar um
vídeo, com aproximadamente 5 minutos, trazendo orientações
para facilitar sua resolução, ficando a cargo de cada um(a) o
método de gravação. Posteriormente, apresentamos nossas pro-
duções uns para os outros e fizemos comentários que engrande-
cessem a experiência.
Um ponto que vale ser ressaltado aqui, foi a diversidade de
meios utilizados para a realização desta atividade. Alguns (umas)
optaram por utilizar a gravação do próprio Google Meet, outros(as)
gravaram de seu próprio celular e depois trouxeram detalhes com
a edição. Entretanto, um dos trabalhos mais surpreendentes foi o
da residente Lawanda Modesto, que sintetizou uma série de dicas
rápidas e as apresentou no formato de vídeo de reels do Instagram,
uma linguagem audiovisual muito comum entre adolescentes e
com uma capacidade enorme de captar a atenção desta faixa etária.
Depois de assistirmos a todas a produções ficou claro para
todos(as) que nosso repertório havia aumentado, pois, além de
buscarmos por nós mesmos(as) os meios para produzir o mate-
rial; ver as soluções utilizadas pelos demais, as escolhas didáticas,

210 A construção da docência

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formas de explicar e de se fazer entender, tudo isso evidentemente
acabou por expandir nosso leque de possibilidades.
Porém, algumas questões ainda eram latentes: como saber se
estes vídeos estão sendo benéficos para os(as) estudantes. Apenas
material serve de apoio para as atividades? E para além de uma
simples resolução de atividades, o que mais podemos contribuir
para a educação deles(as)? E como? Com isso, decidimos que pre-
cisávamos de um contato direto, de falar diretamente com eles(as).
Assim partimos para a próxima proposta: um encontro entre resi-
dentes e alunos(as) via Google Meet.

3 – ENCONTRO ENTRE RESIDENTES E


ALUNOS(AS) DA DOM PEDRO II
Movidos pela vontade de conhecer os(as) alunos(as), começa-
mos a estruturar a realização do encontro virtual. Uma das primei-
ras questões que pensamos, foi sobre a adesão dos(as) estudantes
ao evento, pois já tínhamos noção que, assim como no caso dos
sábados letivos da Dom Pedro II, poucos(as) alunos(as) compa-
reciam, e menos ainda participavam ativamente.
Com isso, nós, os autores deste texto, nos responsabilizamos
de estruturar um roteiro com as falas de cada um, e foi sugerida a
ideia de que gravássemos pelo OBS51 a reunião do Google Meet pois,
assim conseguiríamos gravar com os dispositivos e ferramentas do
próprio Meet, permitindo assim um visual de mosaico para o vídeo
e uma dinâmica de “liga e desliga” das câmeras, tudo isso com o

51. Open Broadcaster Software: é um programa de streaming e gravação gratuito e de código


aberto mantido pelo OBS Project.

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intuito de deixar o vídeo mais dinâmico e convidativo. Gravado
o material, a residente Luísa ficou responsável pela edição e com
isso, nosso vídeo convite estava pronto.
O encontro foi marcado para o dia 09 de julho, no mesmo
dia e horário no qual realizamos nossas reuniões da preceptoria
(sexta-feira às 14h). E para o mesmo, elaboramos o seguinte roteiro:

1 – Abertura com fala do Samir


2 – Apresentação individual de cada um(a) dos(as) residentes
3 – Dinâmica para “quebrar o gelo”: Uma letra, uma música.52
4 – Conversa aberta entre alunos(as) e residentes.

Traçadas as etapas do encontro, resolvemos criar uma lista de


presença via Google Forms, não só para termos controle da quan-
tidade de alunos(as), mas também coletarmos dados e feedback,
que inclusive serão trazidos mais à frente.
Quanto ao encontro em si, foi uma imensa surpresa positiva
para todos(as), pois a adesão e participação foi muito maior do
que a que esperávamos. Em média, é possível afirmar que na reu-
nião estavam online em torno de 50 pessoas, dentre essas, além da
grande maioria de alunos(as), também estavam presentes a coor-
denadora pedagógica da escola e dois docentes. Vale ressaltar que,
a presença e participação dos(as) alunos(as) no dia, não se limitou
apenas a interações no chat escrito, mas vários(as) se dispuseram a
abrir as câmeras e o áudio e dialogar diretamente conosco.

52. Tal dinâmica consistia em uma pessoa falar uma palavra e pedir para outro cantar uma
música que tivesse a palavra, posteriormente, quem cantou passaria outra palavra para
outra pessoa e assim sucessivamente.

212 A construção da docência

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Durante a parte da conversa – que por sinal durou mais de uma
hora – vários foram os tópicos que conseguimos abordar, desde
questões sobre a valorização das Artes e da importância desta área do
conhecimento, até a exposição dos(as) discentes ali presentes sobre
as inúmeras dificuldades encontradas no estudo remoto durante a
pandemia, dificuldades essas às vezes associadas até com problemas
psicológicos prévios à pandemia, ou desenvolvidos durante a mesma.

3.1 – Dados e opiniões dos discentes


Agora, acreditamos ser pertinente trazer aqui os dados coleta-
dos no formulário, tanto os quantitativos quanto os qualitativos,
visto que eles ajudam a visualizar a dimensão e aceitação que obti-
vemos com esse encontro. Vale ressaltar que, apesar da presença de,
em média, 50 pessoas, apenas 26 se disponibilizaram a responder
o questionário, porém acreditamos que isso não torna menos sig-
nificativo apontar os dados coletados.
O gráfico abaixo apresenta proporção de alunos(as) por ano,
como podemos notar, a grande maioria dos(as) alunos(as) eram
do 1° Ano.

Fonte: Acervo pessoal

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A segunda imagem apresenta a avaliação do encontro pelos(as)
alunos(as), como podemos observar, a grande maioria avaliou
como muito bom.

Fonte: Acervo pessoal

Por último, trazemos alguns depoimentos recolhidos pelo Goo-


gle Forms. Tais depoimentos tiveram como ponto de partida a
seguinte pergunta: Conte-nos como tem sido sua experiência nas
aulas e nas questões de arte nessa pandemia?
“Não é fácil! Mas diferente do ano passado, agora consigo tirar
minhas dúvidas tendo o professor para passar atividades mais ela-
boradas e fáceis de entender (complementares), que seguem com
o mesmo assunto do PET estudado. Algumas matérias despenca-
ram como a física, matéria onde vou ter que rever o Pet 1 e 2 para
melhor compreensão”
“Minha experiência é bastante controversa, na maioria das vezes
eu acho muito boa, mas às vezes acho que falta uma coisa a mais,
como um incentivo uma coisa para distrair o aluno e incentivar
ele a se interessar pela matéria. Pois estudar na pandemia exige
uma atenção a mais do que era preciso na sala de aula. Mas é claro

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que nosso desenvolvimento é aos poucos. E daqui a algum tempo
vamos superar essa fase”
“A minha experiência está sendo muito boa, graças aos vídeos
explicativos do professor Samir, pois com eles está sendo bem mais
fácil compreender a matéria”
“Então a minha experiência nas aulas sem ser presenciais está
muito complicado pois você não tem o professor pra tirar a dúvida
na hora e ele te responder tem a questão do foco muitas vezes e a
mãe que chama e a irmã ai nisso você perde o foco da atividade
que você está fazendo. A minha questão da arte estou gostando
mais de estudar, estou compondo música, estou tentando realizar
meu sonho de ser MC então essa pandemia não só atrapalhou,
mas sim também ajudou.”

3.2 – Opiniões dos(as) residentes sobre o encontro


O presente tópico visa expor a perspectiva de outros(as) residen-
tes acerca deste encontro geral, buscando assim, contemplar uma
nova perspectiva sobre este acontecimento. Com isso, segue abaixo
os depoimentos coletados por nós, autores, referentes a este dia:
“O encontro foi bem melhor do que o esperado por mim, pois
houve um grande número de discentes da escola presentes e par-
ticipativos. A participação efetiva dos alunos e alunas, nos mostra
uma falta desse espaço de troca, visto que a pandemia os afastou de
suas amizades. Foi interessante também, perceber o quão relevante
eram as inquietações e opiniões levantadas a partir de nossas falas”
(Victor de Jesus Ferreira)
“Percebi que o encontro foi muito importante para o nosso aper-
feiçoamento, para as atividades que iríamos desenvolver depois

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e para os discentes. Estávamos com as expectativas baixas, ima-
ginando que iriam poucas pessoas e que não teríamos uma boa
participação, mas foi o contrário do imaginado. Contamos com a
presença de professoras(es), da coordenadora pedagógica e de mais
de trinta alunas/os que expuseram suas vulnerabilidades e descon-
tentamentos com o ensino remoto. No decorrer do encontro as(os)
discentes falaram sobre muitas questões que estavam as/os afligindo
e sendo dificultadoras ao seu desenvolvimento escolar, entre elas
estava a necessidade de conciliar trabalho e escola. Foi um debate
entusiasmante que envolveu muitas(os) estudantes, aflitas(os),
que estavam necessitando desse amparo. A partir desse encontro
percebemos que as(os) estudantes precisavam ser escutados, que
possuíam muitas questões tanto relacionadas com o ensino remoto,
quanto com suas vidas pessoais, que acabam de certa forma influen-
ciando a vida escolar, por estarem relacionadas. Elas(es) sentem
falta, assim como nós, do contato, da possibilidade de conversar
entre uma disciplina e outra e no intervalo, de terem o apoio da(o)
professora(o) no dia a dia e de sentirem que são parte de um todo,
pois o contato virtual não consegue suprir essas necessidades. O
encontro foi muito importante para crescermos dentro da precep-
toria, entendendo os nossos acertos, erros e como poderíamos agir
a partir do escutado” (Lawanda Ritchely Gonçalves Modesto).

4 – MONITORIA SOBRE OS PET’S


Frente à adesão ao evento, junto às informações coletadas e
apresentadas acima, tivemos a certeza que, para minimizar os
impactos do ensino remoto no desenvolvimento educacional
dos(as) alunos(as), tínhamos que, de alguma forma, estabelecer

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um contato mais direto com eles(as), ouvir suas dúvidas, suas difi-
culdades e, porque não, seus interesses e inquietações.
Para tanto, optamos por continuar nossos trabalhos sobre duas
frentes: na primeira, demos continuidade ao processo já realizado
pelo preceptor Samir de gravar vídeos explicativos sobre as ativida-
des semanais dos PET’s, e, na segunda, nos disponibilizamos a dar
monitorias via Google Meet, com duração de uma hora às sextas a
partir das 14h, para que os(as) discentes pudessem tirar suas dúvidas.
Consequentemente, fizemos a divisão das semanas de atividades
dos próximos PET’s a serem realizados (Volume 3), para que cada
um pudesse, além de estudar o conteúdo a ser explicado, também
gravar seu vídeo com as dicas de resolução. Sendo assim, chegamos
na seguinte divisão:

1° ANO 2° ANO 3° ANO


SEMANA 1 Luisa Matheus Lawanda
SEMANA 2 Vinícius Matheus Lawanda
SEMANA 3 Carol Matheus Lawanda53
SEMANA 4 Luisa Victor Isabela
SEMANA 5 Vinícius Victor Isabela
SEMANA 6 Carol Victor Isabela

4.1 – Experiência dos(as) autores(as) nas monitorias


Neste tópico apresentaremos em primeira pessoa, as impressões
e experiências de nós autores(as), visto que, podemos descrever
com mais detalhes apenas nossas próprias vivências.

53. Nesta semana especificamente, a monitoria foi ministrada pela residente Isabela, visto
que Lawanda não pode estar presente por ser a data de sua banca de TCC.

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Matheus: Como apresentado acima, fiquei responsável por oferecer
a monitoria para os(as) alunos(as) do 2º Ano nas três primeiras
semanas. Nessas 3 semanas, ainda estaríamos dentro do período
de atividades da residência, portanto estabelecemos que os(as)
monitores(as) iriam realizar a monitoria das 14h às 15h ingres-
sariam depois na reunião da preceptoria para compartilhar sua
experiência na monitoria, reunião esta que já estaria acontecendo
com os(as) demais que não fossem monitores(as) no dia vigente.
Já aqueles que manteriam suas monitorias no período de férias,
deveriam trazer seus relatos no retorno às atividades.
Como no meu caso, optei por estar nessas 3 primeiras semanas
tive o privilégio de não só receber o retorno de colegas e preceptor,
mas como também de de ouvir as experiências dos(as) residentes
que também realizaram monitorias naqueles dias.
Se no encontro geral a adesão foi grande, no caso da minha
monitoria não foi tanto, no primeiro encontro foram 2 alunos(as),
no segundo uma aluna, e no terceiro 2, sendo que somente uma
aluna esteve em todos os 3 encontros. Porém, por mais que a pri-
meira vista isso indique ter sido uma experiência negativa, diria
que, no meu caso, não foi tanto, pois os poucos que ali estavam,
muitas vezes não tinham mais dúvidas sobre as atividades em si
e já as tinham realizado, o que me deu uma maior abertura para
ampliar o debate e conversar diretamente com os(as) alunos(as) ali.
Nessas três semanas, todas as atividades eram relacionadas
à música, portanto, os diálogos tinham como tema principal
esse tópico. Tirei proveito da presença de perguntas dissertativas
nas atividades para tomar seus enunciados como propositores
de debate. Com isso, creio ser relevante trazer aqui, a título de

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exemplo, a experiência realizada na última monitoria. As ativi-
dades daquela semana trabalhavam com um debate acerca das
diferenças entre músicas tradicionais e músicas atuais. A partir
disso, conseguimos criar um espaço de apreciação de músicas via
YouTube, primeiramente trazendo músicas atuais de gosto pessoal
de cada um na chamada e, posteriormente, procurando exem-
plos do que a atividade entendia enquanto músicas tradicionais,
nos levando a músicas de roda de capoeira, pontos de umbanda,
dentre outras.
Para encerrar meu relato pessoal, vale ressaltar que, pela minha
percepção, as experiências nos outros anos acabaram sendo bas-
tante diferente da minha. Os relatos dos(as) que trabalharam com o
1º Ano, apontaram que sempre ocorria ali uma maior presença de
alunos(as), tendo em torno de 10 alunos(as) cada dia, entretanto,
poucos (as) interagiam diretamente com o(a) monitor (a) e mui-
tos(as) se limitavam a interagir pelo chat escrito. Já na monitoria do
3º Ano, além da baixíssima adesão, a participação não se mostrou
efetiva, foi talvez, ao meu ver, o ano mais complicado de se lidar.

Isabela: Após o encontro com os alunos(as) fui responsável pelas


últimas três semanas de monitoria do 3º ano do ensino médio,
vale ressaltar que na primeira semana, troquei a monitoria com
a residente Lawanda, que estava em processo de apresentar o
Trabalho de Conclusão de Curso, sendo assim, a atividade apli-
cada foi um aquecimento para descontração e aproximação com
os(as) alunos(as), em que foi corrigida a atividade da semana
anterior e esclarecido as dúvidas dos(as) alunos(as) em relação
à atividade seguinte. A adesão na primeira semana foi baixa,

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contando com a presença de cerca de três alunos(as), que inte-
ragiam abertamente pelo chat da reunião.
Na segunda semana de atividades nas monitorias, foram
cerca de seis alunos(as) presentes. Neste encontro, levei em
consideração a reunião geral entre alunos(as) e residentes, na
qual, em muitos momentos foram apontadas questões sobre a
dificuldade do ensino remoto. Então, para além das correções
e dúvidas sobre os PET’S, como ponto de partida, e sabendo
que os alunos(as) fariam o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) utilizei de estratégias que ensinassem os alunos(as) a
manter uma organização dos estudos, criando alternativas para
aprenderem a ter disciplina, organização e estratégias para melho-
rar a qualidade da aprendizagem naquele momento. Muitos(as)
dos(as) alunos apontaram novamente as dificuldades e desafios
que foram discutidos, procurando formas de melhorar em con-
junto, nessa semana, apenas um aluno abriu o microfone para
dialogar sobre essas questões, o que foi muito importante para
mim como docente, por saber que ele estava realmente interes-
sado no conteúdo discutido.
A última semana de monitoria, contou com a presença de
apenas uma aluna, que se sentiu a vontade de abrir o micro-
fone e discutir livremente sobre suas dificuldades e sobre como a
monitoria estava ajudando-os(as) no processo de aprendizagem
do ensino de Artes. Vale ressaltar que a aluna também apontou
sobre a dificuldade de estar distante dos professores em relação
à resolução dos PET’s e a diferença que as monitorias estavam
fazendo em sua vida. Apesar de me sentir frustrada pela parti-
cipação de apenas uma aluna na última monitoria, também me

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senti muito bem por esse espaço em que foi possível dialogar
e que ela se sentiu a vontade de apontar suas dúvidas, medos e
frustrações. Apesar de todas essas questões apontadas, estar mais
uma vez em contato com a sala de aula, exercendo a autonomia e
tudo o que criamos durante o programa, foi deveras satisfatório
e importante ao mesmo tempo, ajudava a entender as diversas
realidades e fazer um estudo aprofundado sobre os caminhos da
educação durante e pós-pandemia.

4.2 – Opiniões dos(as) residentes sobre as monitorias


Como feito anteriormente, aqui buscamos trazer a perspectiva
de demais residentes, mais especificamente acerca das monitorias
e vídeos explicativos elaborados:

“O trabalho dos vídeos e as monitorias foram muito relevantes


para mim, visto que tive uma experiência nova, de realmente
lidar com o ensino e ter que “levar” algo que ajudasse discentes
a resolverem os PETs. Tive frustrações e aprendizados, pois tive
que treinar o exercício de preparar uma “aula”, mesmo não sendo
especificamente uma, além do fato de que pra esse exercício, pre-
cisei estudar sobre assuntos que fugiam da minha área artística
principal. A frustração se deu na pequena quantidade de pessoas
presentes e interessadas em participar da monitoria. Esse fenô-
meno apresenta algumas justificativas, como a falta de relação
de alunos e alunas entre si; a possibilidade de desligar câmera
e microfone no Google Meet e se comunicar apenas através do
chat; a troca de monitores após um período de tempo; e também
timidez” (Victor de Jesus Ferreira).

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“Considero que os encontros foram um tanto frustrantes, mas não
culpo os alunos. Senti que participaram pouco, eu também não
pude encontrá-los muito. Fazer os vídeos me animou e me enga-
jou a respeito da preceptoria. As monitorias foram para mim algo
frustrante” (Caroline Silva de Paula).

“Para desenvolver os vídeos e as monitorias eu procurava me colo-


car no lugar das(os) discentes, entendendo o quê em cada uma das
questões poderia me gerar dúvidas ou quais fatores dificultariam a
execução delas. Para as monitorias criei formulários de presença e
links de salas no Google Meet que foram disponibilizados às(aos)
estudantes por Samir, estudei mais um pouco o PET e me preparei
para as possíveis perguntas, tendo a convicção de que não poderia
me preparar para tudo. No final da minha primeira monitoria eu
me encontrava um tanto quanto frustrada, pela pouca presença de
estudantes, o fato de não ligarem as câmeras e os microfones, e a
inexistência de uma participação ativa. Mas, após conversar com
as(os) residentes e o preceptor pude refletir sobre como o trabalho
docente é feito de altos e baixos, como as mudanças causadas se
encontram em pequenos detalhes e que o aperfeiçoamento só é
possível com a prática. Na segunda monitoria saí satisfeita com o
encontro, tendo realizado uma troca proveitosa com as alunas que
expuseram suas opiniões e com um retorno positivo acerca dos
vídeos e monitoria. Tive a reafirmação de que a docência não é um
caminho linear e que, se conseguirmos propor ao menos uma refle-
xão sobre um determinado assunto já é algo valioso. Na terceira
e última monitoria finalizei o ciclo com o coração contente, havia
aprendido muito com as(os) estudantes e com meus erros e acertos.

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Os vídeos só me fizeram confirmar isso, pois apesar de terem dado
um certo trabalho em questão de planejamento, gravação e edição,
percebi durante as trocas com o preceptor que havia alunas/os
assistindo eles e executando as tarefas por causa desse auxílio. Saber
que eu estava contribuindo ainda que minimamente na formação
e no desenvolvimento da criatividade dessas(es) alunas(os) me
deixou extremamente feliz e realizada enquanto residente, com
o sentimento de que venho traçando um bom caminho dentro
da minha jornada docente e que, apesar dos desafios, conseguirei
causar fissuras e contribuir de forma efetiva para o processo de
ensino aprendizagem” (Lawanda Ritchely Gonçalves Modesto).

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS E OPINIÕES


SOBRE A PRECEPTORIA
O ensino remoto carrega uma série de dificuldades, percebe-
mos que as dificuldades de acesso e a falta de motivação, tornam
a adesão às atividades online muito baixas. A todo momento em
nossos debates nos perguntávamos: Como acessar, e posteriormente
auxiliar esses jovens? Essa foi, na nossa concepção, o motor princi-
pal que nos levou a realizar todas essas ações. Frente a isso, e como
forma de encerrar este texto, achamos pertinente trazer aqui as
opiniões de alguns(umas) residentes acerca da preceptoria como
um todo:

“Nessa preceptoria, pela primeira vez em muito tempo de pandemia,


me senti um pouco mais perto do trabalho docente, desde a pro-
posta inicial de criar os vídeos instrutivos até efetivamente estar em
contato com os(as) alunos(as). Criar os vídeos foi o gatilho inicial

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para percebermos que precisávamos dar vozes aos(as) estudantes e,
após ouvi-los(as), percebemos o quanto eles(as) precisavam deste
espaço de escuta, e mais ainda, o quanto a falta das atividades pre-
senciais estava afetando não só o processo de aprendizagem, mas
também a saúde psicológica” (Matheus Felipe Marques Pessôa).

“Considero que a preceptoria foi construída de uma maneira muito


diversificada, a produção dos vídeos, encontro com os alunos(as),
monitorias e discussão entre preceptor e residentes foi de extrema
importância para minha formação como docente, porque trouxe
a aproximação com os alunos e foi também um momento em que
discutimos as diversas possibilidades no campo educacional para
aquele momento” (Isabela Cristina Resende Silva).

“Acredito que foi uma oportunidade de colocar em prática grande


parte dos conceitos que foram discutidos na reunião geral, visto
que estamos nos reunindo apenas online. Acho que foi de grande
valia para não só aplicar os conceitos mas também nos motivar a
continuar a produzir. Samir sempre muito disposto e objetivo pro-
punha discussões e atividades interessantes e animadoras que nos
incentivaram a trabalhar” (Vinicius de Melo).

“A minha experiência geral durante a preceptoria foi ótima, de


muito valor, pois fui me sentindo mais próximo do campo da
docência por causa das experiências compartilhadas pelo preceptor
Samir. Nos nossos primeiros encontros, criamos vídeos relacio-
nados aos PETs passados para nós mesmos da preceptoria, e eu
vejo que esse trabalho nos rendeu boas reflexões, nos colocamos

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no lugar de quem iria resolver aquelas questões e surgiram boas
problematizações, como o imediatismo no consumo dos vídeos
pelas alunas e alunos ou então o fato da tecnologia não ser acessível
a todas as pessoas, por exemplo” (Victor de Jesus Ferreira).

“Considero a preceptoria muito boa, gostei das dinâmicas e encon-


tros, acho que ela foi muito agregadora. Me marcou o fato de fazer-
mos as questões e fazermos vídeos depois” (Caroline Silva de Paula).

“Percebi através das leituras realizadas e das ações executadas dentro


da preceptoria que a função de arte-educadora é desafiadora, enfren-
tando o constante sucateamento, a má remuneração e fatores que
interferem de maneira subjetiva em cada uma/um, minando as ener-
gias, desestabilizando e gerando frustração. Mas a educação é um
processo demorado, muitos resultados só serão colhidos posterior-
mente e a aprendizagem é mútua. Consegui, através da experiência
na Escola Estadual Dom Pedro II, entender minhas limitações, mas
também o meu potencial. Me percebi como alguém que realmente
acredita no processo educacional e que ele é uma das bases para a
construção de uma sociedade democrática. Percebi desde o primeiro
dia do programa que participar dele é um grande privilégio e con-
tinuo a enfatizar isso, pois são nessas ocasiões que temos a chance
de errar e aprender com cada um dos erros, crescendo de forma
profissional e pessoal. Auxiliando umas(uns) as(aos) outras(os) na
trajetória educacional. Compreendo que o trabalho se dá em todos
os pequenos detalhes do dia a dia e que por vezes não estaremos
certas(os) sobre determinados assuntos. A beleza de compor e trocar
juntamente” (Lawanda Ritchely Gonçalves Modesto).

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TU E EU DOCENTES, TODES NÓS APRENDIZES:
CONSIDERAÇÕES DE PERCURSO DE UM FESSÔ
DA ESCOLA ESTADUAL JOSÉ LEANDRO
Giovany de Oliveira Silva

Viva! Viva! Viva! Sempre vivam as inteligências dos professores do


passado, que ao nos preparar para o futuro, nos agraciam com a
beleza de pensar no presente! Peço licença a Jonara Gonçalves, Du
Carmo Nicácio, José Paulo Pi, Dona Dilma, Karla de Dona Dilma,
Cíntia Vieira, Wesley Marlon Barbosa Dias, Maria da Educação
Física, Maria Angélica Dias, Dona Maria Lucinda, Dona Cármem,
Fredda Amorim, Kassandra Muniz, Marcelo Donizete, Clóvis
Domingos; Elvis Thaniel, Eude Barbosa, Meriane Rosa, Waldirene
Rodrigues, Ritinha da secretaria, Aline Carvalho, Rosângela Mou-
tinho (a tia Rosa do Salto), Lúcia Mapa, Dalvinha, Nádia, Sabrina
Gomes, Maria Cristina, Ângela da Horácio, Evandro Nunes, mes-
tras e mestres negros com quem, desde a infância, muito aprendi
sobre o meu Eu Docente.
A formação docente em Arte suscita sempre amplo espectro de
reflexões, que se atualizam de acordo com as épocas. Vivendo um
mundo extremamente informatizado, às vezes me questiono sobre
quais espaços e possibilidades estão abertos ou podem ser cria-
dos, para refletir sobre as expressividades das artes. Desta forma,

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busco organizar nesse texto um pouco do percurso que fiz desde
a minha formação docente em Artes Cênicas Licenciatura pela
Universidade Federal de Ouro Preto, passando pelo meu traba-
lho de professor da educação básica, chegando até as discussões
em formação docente em arte junto ao Programa de Residência
Pedagógica – Arte/CAPES/UFOP.
Entre 2017 e 2021, fui professor de Arte pela Secretaria Estadual
de Educação de Minas Gerais (SEE/MG), onde sou muito mais
aprendiz que mestre, conduzindo práticas em arte, afeto e educação
para alunos da zona rural de Ouro Preto. Ser fessô de artes continua
um exercício maluco e acredito cada vez mais que ser professor
de maneira geral será sempre um exercício fora do eixo. Acontece
um sem-fim de coisas num dia na escola e tudo se cola na pele da
gente, constituindo, fazendo a nossa história.
Percebo agora, no trabalho diário, as reverberações das vivên-
cias que experimentei antes, durante a minha formação acadêmica.
Aprendi de novo a língua dos jovens, me lembrei o quão legal é
ser criança e, por outro lado, mergulhei na burocracia do sistema.
De março de 2017 até o fim de 2021, trabalhei com a disciplina
Arte no Ensino Regular e na Educação de Jovens e Adultos, nos
Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, na Escola
Estadual José Leandro (EEJL), situada no distrito de Santa Rita
de Ouro Preto, e que é considerada desde 2016 pelo governo do
Estado, uma Escola do Campo.
Nesta escola, percebi um espectro discente muito diferente dos
jovens com os quais havia trabalhado anteriormente em projetos
ou estágios obrigatórios, dado o contexto de distrito. Muitas vezes,
os sinto parecidos comigo anos atrás: juventude rural contra o

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baixo astral. Com os meus alunos da EJA também me identificava
muito! Porque em muito se parecem com pessoas que marcaram
a minha trajetória, meu imaginário, minha formação e o que mais
faz parte de mim; sinto-os como os velhos vizinhos, conhecidos e
amigos lá de Ferros – MG, lugar onde nasci e fui criado, só que em
um distrito de Ouro Preto e num contexto escolar. Sendo assim,
mesmo na hora da chamada, me pegava chamando minhas alunas
e alunos de “dona” ou de “sô”. Era um tal de D. Maria Lúcia pra cá,
Sô Milton aqui, D. Maria Peruce acolá…
A primeira vez que fui ao distrito de Santa Rita de Ouro Preto,
onde se situa a escola, foi me deslocando de carona, contando
apenas com indicações de amigos e leituras na internet da locali-
zação do distrito. A contratação estava marcada para as 16 horas
de algum dia de março de 2017, então acordei cedo e conferi bem
os documentos, originais e cópias de cada coisa, não poderia errar,
e me sentindo pronto caminhei até o ponto final do ônibus do
bairro Saramenha. Ali na ponta do asfalto consegui uma carona
muito bem-humorada com um rapaz artista também, um hippie
nato e de ideias de liberdade que vagava pela região no seu Fusca
azul; embora alegre, essa carona durou pouco e fiquei no trevo de
Lavras Novas para tentar uma nova carona.
Ali fiquei uma hora fritando ao sol. Como não sabia a distân-
cia exata entre Lavras Novas e Santa Rita, desesperei a andar pela
estrada. Havia o sentimento forte de que eu deveria concorrer a essa
vaga, me preparei direitinho, conferi os documentos e não ia errar.
Sem sinal no celular, sem internet e sem mapas. Pela estrada a fora
eu ia renitente. Alguém ia me valer. Fui caminhando bravamente,
determinado a chegar. Desci um morro enorme, atravessei uma

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ponte e já ia subindo um trecho muito íngreme, uma curva severa
de um lado e do outro o abismo, acima o sol latejante e em mim o
arrependimento de ter saído de casa.
Caminhava entre determinações e lamentações quando um
senhor parou um carro muito chique que eu não sei dizer o nome;
fez uma breve entrevista sobre quem eu era e o que fazia. Era um
médico aposentado que seguia para Ouro Branco e me ofereceu
uma grave e solene carona dali até o trevo de Santa Rita de Ouro
Preto. Tentando puxar conversa elogiei Beethoven, mas era Fre-
deric Chopin no som do carro e o doutor era de poucas ideias. No
trevo ele me desejou uma boa sorte no processo e seguiu.
Não me lembro da carona que me levou até o centro do distrito
nesse dia, mas agradeço imenso a quem foi. Chegando lá, que
surpresa! Bem no portão da escola uma informação recém fixada,
a direção havia acabado de evacuar estudantes, professores e fun-
cionários em função de uma infestação de abelhas. Nesse momento
eu quis um monte de coisas, rir e chorar inclusive, mas caminhei
um pouco mais por ali, conversei com a galera, fui entrando numas
ruas para conhecer mais o distrito e por um acaso mesmo encon-
trei a casa da diretora; hoje percebo o quão invasivo eu fui, mas
já conversamos sobre isso e o que rolou foi que eu bati na porta
para conhecê-la; conversamos sobre o ocorrido e ela disse para
continuar acompanhando o site que a vaga seria anunciada de
novo. Veja bem! Manso igual pardal de igreja.
Voltei para Ouro Preto com caronas várias. Então repeti o pro-
cesso no dia seguinte. Caminhei até o Saramenha, fui pegando
carona por carona até chegar em Santa Rita e novamente o edital
havia sido remarcado para o dia seguinte, pois os bombeiros ainda

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não haviam conseguido remover as abelhas. E assim percebi que
haveria de pegar muitas caronas se quisesse mesmo esse emprego,
essa experiência.
Fui no terceiro dia e encontrei a escola aberta. Já era uma per-
sonagem comentada por ali. Afinal de contas, quem seria aquele
professor moço que veio três dias seguidos? E com mais um dife-
rencial, nos três dias fui o único candidato a comparecer para o
edital. Fui contratado e comecei no dia seguinte. Sempre de carona,
esse início do meu exercício docente foi bem penoso embora inte-
ressantíssimo. Fui muito bem recebido pela equipe da EEJL, e com
os estudantes tive que disputar lugar com a memória da professora
anterior, minha amiga Estela Vale Vilegas, que é muito querida e até
hoje lembrada pela comunidade por sua competência, inteligência
e alegria em fazer arte; mas dei meus pulos e consegui uma boa
conversa com as turmas. O que pegava mesmo era o percurso e o
transporte entre Ouro Preto e Santa Rita de Ouro Preto.
Chegava sempre cansado à escola em função das caronas, mas
em poucas vezes cheguei atrasado. A necessidade de acordar muito
tempo mais cedo, caminhar por cinquenta minutos e depois tentar
entre duas e quatro caronas para chegar antes das sete da manhã foi
me arrasando com o tempo. Era difícil estabelecer uma gestão da
minha energia e às vezes me sentia muito mal nas aulas da noite,
cansado e fazendo o que dava. Fiquei preocupado com isso. De
manhã até dava conta de segurar, mas quanto mais distante das 13
horas o dia ficava, mais esforço eu fazia para manter as pálpebras
abertas, e a noite minha estafa era nítida na sala de aula.
Então decidi mudar para o distrito onde fui prontamente aco-
lhido pela comunidade e residi por cinco meses. Foi um período de

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extrema troca com a comunidade e com muitas das suas persona-
gens conceituais. Conheci diversos subdistritos como Pasto Limpo,
Bandeiras, Barragem, Mata dos Palmitos, Piedade, Moreiras, Santo
Antônio, Serra dos Cardosos, Mata do Gama, Tejuco e Maciel; e
neles muitas pessoas e com elas suas muitas histórias. Também
nesse período, morando em Santa Rita de Ouro Preto, consegui
serenar o coração e realizar o meu trabalho de conclusão de curso
com tranquilidade.
Me recordo que no dia de apresentar meu trabalho de conclu-
são de curso para a banca e convidados, dei aula durante toda a
manhã em Santa Rita e fiquei um bom tempo travado no trevo
sem conseguir carona para Ouro Preto. E para a minha salva-
ção, uma nova carona cinematográfica como as de todo dia me
salvou. Uma professora estava levando seu filho ao IFMG-OP
e ao saber que eu apresentaria o TCC dali há alguns instantes
me levou diretamente para o Departamento de Artes Cênicas
da UFOP, atrasando assim a aula do seu filho, mas fazendo com
que eu chegasse a tempo da minha banca. Chegando ao depar-
tamento uma nova emoção, minha mãe lá já estava para assistir,
havia combinado tudo com meus amigos pela internet e veio de
surpresa; era a professora mais rigorosa dessa banca.
Isso tudo para dizer de algumas emoções que vivenciei na
escola. Foram muitas, sempre foram. Bastou que acreditassem
na minha potência e dei o máximo do meu trabalho e da minha
criação, da minha dedicação, da força da minha limitada juven-
tude. Tive e tenho bons colegas de profissão ali. Destaco sempre
Waldirene Rodrigues e Lucimar Campos, respectivamente Dire-
tora e Vice-Diretora, que sempre dão base para os nossos sonhos.

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Na EEJL, pude trabalhar em experimentos artísticos diversos que
aumentam não só as possibilidades do artista que eu sou, mas
também tensionam as metodologias do professor que há em mim.
Sempre um processo intenso e em convergência de várias forças,
o aprendizado se dá a cada instante na escola.
Não conseguiria muito do que fiz sem o apoio de diversos cole-
gas professores e demais funcionários. É uns minutinhos da aula
de um professor aqui (e o planejamento fessô?), uma tinta que só
a tia do portão sabe onde está, um papel diferente que só a biblio-
tecária localiza e por aí vai. Dessa forma consegui montar o Sarau
Amor Em Minas com a participação dos estudantes da EJA Ensino
Médio de 2017 e 2018. Atuei como a personagem Zueiro nº 3 no
esquete Re – Ação! montada com estudantes do Fundamental II
e do Ensino Médio à partir dos Jogos Para Atores e Não Atores
de Augusto Boal e apresentada por quatro vezes ao longo de 2019
com elencos diferentes.
Também recordo com muito carinho, duas exposições fotográ-
ficas. Todos os nomes constam nas fichas técnicas. Paralelo a esse
trabalho, fiz a provocação e a curadoria da exposição Um Salto
Para a Memória, dispondo da mesma metodologia utilizada em
Santa Rita, com os estudantes do 3º ano do Ensino Médio do nosso
segundo endereço no distrito de Santo Antônio Do Salto; nessa
exposição os estudantes fotografaram espaços e locais do distrito,
como praças, fundos de casas e partes do rio.
Também em 2019, ano movimentado para a disciplina Arte na
EEJL, recordo um experimento em artes visuais que estava tra-
balhando no segundo e terceiro bimestres daquele ano com uma
turma do terceiro ano do ensino médio. A culminância desses

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estudos, seria a execução de um mural planejado coletivamente
entre os estudantes, através da condução do artista Bruno Miné
durante a Feira de Ciências, Arte e Cultura, programação da
Semana Estadual das Juventudes. O processo de construção da
imagem que seria reproduzida na parede da escola, teve colabora-
ção, mediação e condução do hoje residente Pedro Gaban, àquela
altura meu estagiário.
No entanto, por terem se envolvido numa briga momentos
antes, quando disputavam uma partida do campeonato inter
classes, a atividade se desestruturou e ficamos sem público por
motivos de emoções maiores. Em conversa com Pedro decidimos
abrir a atividade para outros estudantes do ensino médio e não
obtivemos retorno, outras programações aconteciam simultanea-
mente, como o próprio concurso de desenhos que eu também
coordenava naquele dia.
Temíamos perder a oportunidade de ter num só momento um
multiartista do gabarito de Bruno Miné, com a sua disposição
para ensinar a técnica e com tintas e materiais diversos dispo-
níveis. Então, com a ajuda, colaboração e orientação da nossa
Vice-Diretora Lucimar Campos, uma pedagoga de excelência,
diga-se de passagem, aplicamos a atividade aos estudantes dos
anos iniciais do ensino fundamental. Foi um tanto caótico, mas o
resultado no fim, se configurou como a criação de vários agentes
desde os anos iniciais até o ensino médio e foi positivo.
Já o I Concurso Otacílio Gomes de Desenho, constituiu uma
pesquisa linda no meu percurso na comunidade escolar da EEJL
e até esse momento, não havia sido documentada. Desde sempre
percebi a potência para o desenho e outras apresentações das Artes

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Visuais entre os estudantes da escola, o que não causa espanto à
primeira vista, uma vez que é relativamente grande a presença
de artistas visuais/escultores na comunidade e entre os familiares
dos estudantes; diversas vezes fui cobrado por estudantes para
que fizesse um “campeonato de desenhos”, uma vez que as minhas
proposições quase sempre versam sobre as linguagens da música
e das artes cênicas. Elaborei a ideia de um concurso e os estudan-
tes curtiram.
No entanto, não gostaria que fosse somente um concurso gené-
rico de desenhos e iniciei uma pesquisa na escola e na comu-
nidade, sobre algum artista que pudesse ser homenageado com
esse concurso. Dessa forma, esperava estimular nos estudantes
a pesquisa dessa linguagem, através de um exemplo próximo de
um artista local e assim, valorizar a obra deste artista. O nome de
Otacílio Gomes foi recorrente durante toda pesquisa e junto da
direção e pedagogas da escola, optamos por homenageá-lo. Então
fui procurar familiares desse artista já falecido há mais de trinta
anos. Me interessei por ver seu trabalho e conversar sobre a sua
vida, carreira. Foi quando encontrei na própria escola uma prima
e uma sobrinha do artista que são professoras.
Através dos relatos delas e de outros familiares, pude com-
preender melhor as escolhas estéticas de Otacílio. Estive inclusive
com sua mãe, Dona Chica54 e com ela provei um dos melhores
cafés da tarde de toda a região dos Inconfidentes! Pude passear
em seu belíssimo e bem cuidado jardim enquanto nos falávamos.

54. Dona Chica se encantou no princípio deste ano de 2022 e cá já estamos com muitas
saudades de suas histórias.

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Ela mesma me mostrou algumas obras de seu finado filho, quanta
emoção! Como abordar uma memória tão delicada, uma pessoa
tão querida, com uma mãe nonagenária? Não imaginava que a
visitaria naquele dia. Tive que descobrir esse tato ali mesmo.
Quando Lígia Gomes, a professora e sobrinha do artista que citei
acima, ligou para a escola, à princípio foi para uma breve conversa
sobre a memória de seu tio. No vendaval de acontecimentos daquela
sexta feira a tarde, acabei por me dirigir a sua casa sem nem um cader-
ninho para anotações; pequei por não documentar devidamente esse
processo de pesquisa da obra de Otacílio Gomes, que me levou a des-
cobertas incríveis e até a uma conversa com seu irmão e responsável
pelo cuidado da maioria das suas obras, o Professor Albano Gomes.
Durante essa pesquisa, organizei um edital com instruções
básicas para inscrição no concurso. Me orientei com o professor
de Química, Wilton Santos, um exímio desenhista, e juntos elabo-
ramos um kit básico para desenho contando com diferentes tipos
de lápis e papeis para a premiação dos quatro primeiros colocados.
Havia papel comum e para desenho, lápis de cor comum e aquarela,
lápis de grafites diferentes; a maioria dos itens a escola adquiriu
por meio de licitação, outros itens para a montagem dos kits foram
custeados por alguns professores e organizados muito lindamente
pela professora Silvane Muniz.
Vale lembrar que em nenhum momento tive acesso aos desenhos,
uma vez que as inscrições foram feitas na secretaria da escola e após
isso, entregues diretamente aos jurados. Nosso júri era composto
estritamente por pessoas externas à escola e, portanto, sem conheci-
mento prévio dos estudantes. Os artistas Pedro Gaban, Bruno Miné
e Vítor Mourão analisaram os trabalhos durante a Feira de Ciências,

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Arte e Cultura do ano de 2019 sem a presença ou interferência de
qualquer professor ou outro agente da comunidade escolar.
Já em 2020 começamos o ano com tudo. Há na escola alguns
instrumentos musicais que são parte de um grande esforço das ges-
toras atuais para que os estudantes componham uma fanfarra. Mui-
tas são as questões estruturais que fizeram com que um professor
regente de música não fosse contratado. Mas atendendo a pedidos
de diversas pessoas da escola, entre estudantes e professores e até
alguns pais, dispus dos meus parcos conhecimentos em música e
ensaiei com alguns estudantes algumas músicas a serem apresen-
tadas no carnaval. Como eram estudantes da manhã, ensaiamos
durante a tarde e fizemos um pequeno concerto com cinco mar-
chinhas no nosso setlist. Foi uma beleza! Apesar de terem sido
poucos ensaios, fizemos um som legal e que agradou toda a gente.
No entanto, o contexto pandêmico instaurado pela Covid-19
mudou radicalmente a forma como lidamos com o ensino. Distân-
cias se acentuaram de forma vigorosa. E ficou mais nítido quem
dispõe mais ou menos de alguns acessos, como internet por exem-
plo, ou no mínimo um ambiente adequado às práticas escolares.
Com muitas transformações em curso em um espaço de tempo
muito rápido, foram inúmeras as questões a atravessarem nosso
exercício desde o início da pandemia.
No início do ano de 2020, estávamos os professores da EEJL
muito animados com o início do ano letivo. Pudemos trocar mui-
tas ideias durante a Semana de Formação em Serviço daquele ano,
onde conversamos sobre as últimas resoluções e memorandos da
SEE-MG e questões particulares da BNCC. Um fato importante desse
ano, foi a extensão para as outras turmas dos anos finais do Ensino

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Fundamental, das aulas de Arte; foi a primeira vez que lecionei a disci-
plina para estudantes dos 6º’s, 7º’s e 9º’s anos do Ensino Fundamental.
Em março as escolas foram fechadas em virtude da pande-
mia por Covid-19 que nos assola até o presente momento. Foram
muitas as indefinições até que começássemos a trabalhar com o
Programa de Estudos Tutorados (o famoso PET) em junho daquele
ano. Entre março e junho, o que fizemos foi elaborar nós mes-
mos as atividades que seriam remetidas aos estudantes das mais
variadas maneiras, inclusive de forma impressa. Fizemos cursos
ofertados pela Secretaria Estadual de Educação a respeito do uso
de ferramentas, metodologias, sites, aplicativos e outros recursos
tecnológicos aplicados à docência.
No mês de julho de 2020, foi iniciado o uso dos PET’s elabora-
dos pela Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, sendo
este o material utilizado até o fim daquele ano e no ano seguinte,
2021. Implementamos aulas virtuais no Google Meet e também
atendemos pelo Google Class Room. É neste contexto que me
inscrevo para a experiência de Preceptor Pedagógico junto ao Pro-
grama de Residência Pedagógica – subárea de Arte, CAPES/UFOP.
Estimulado pela diretora Waldirene Rodrigues, sempre atenta à
formação continuada de seu corpo docente, fiz a inscrição no pro-
cesso seletivo para preceptoria no programa. Me chamou bastante
atenção, o fato de pedirem um memorial docente na inscrição. Quis
fazer com muito afeto e memória. A entrevista foi conduzida pelos
coordenadores de área e transcorreu numa lisura tão grande, que
me senti bastante à vontade. Com alegria, aprovado.
Organizamos os encontros gerais e de preceptoria. Uma vez
por semana haveria encontros entre preceptores e seus respectivos

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residentes e em outro momento haveria o encontro do grande
grupo. De início, estava um tanto quanto perdido, sobre como
fomentar trocas com os residentes de Arte de forma a contribuir
efetivamente em sua formação, e estando em contexto de pan-
demia, com todas as atividades escolares e universitárias sendo
desenvolvidas remota e virtualmente.
Desta forma, redigi um planejamento semestral de preceptoria
pedagógica para o Módulo 1 do programa, a fim de organizar
conceitos, práticas, metodologias e legislações que considero cen-
trais na formação de artistas-educadores. Uma vez que estávamos
distantes fisicamente da escola, me imbuí do desejo de repassar da
maneira mais simples e objetiva, o que sei sobre a educação pública
brasileira, mineira e ouropretana.
Para o início das discussões, propus uma discussão com os resi-
dentes do programa, relacionadas ao desenvolvimento de processos
de educação no Brasil a partir do período colonial. Partimos da
invasão portuguesa ao território dos povos originários até a atua-
lidade, passando pelas ditaduras de Vargas e Militar e a chegada da
Constituição de 1988. Busquei circunscrever os diálogos a partir
da Constituição do Império de 1824, na perspectiva de refletir
acerca da ideia de “humanidade” e “cidadania” naquele período.
Sabemos que a construção de uma educação pública já era
uma questão no período do império, mas a quem se destinavam
os bancos escolares? Pretos e indígenas seriam considerados
nesta equação? De que maneira se deram os processos escolares
na primeira república, república esta que já nasce oligárquica?
Há de fato uma expansão nas redes públicas de ensino brasilei-
ras a partir das décadas de 1930/40 do século XX, mas como

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o governo Vargas pautava a educação? E na ditadura militar?
Como educar diante de um regime violento e repressivo, que
censurava e matava vidas, ideias, livros e obras de arte?
Pontuei com firmeza a importância da Constituição de 1988,
enquanto um marco histórico de consolidação de direitos e con-
quistas fundamentais aos brasileiros. A liberdade de cátedra para
professores e instituições de ensino por exemplo; também a previsão
da existência de uma lei de diretrizes e bases da educação e parâme-
tros curriculares que fossem nacionais. Acontecimentos das décadas
de 1990 e dos anos 2000 também são importantes nesse sentido.
São conquistas muito preciosas a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente, a criação do Programa Nacional do Livro
Didático, a criação do Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da
Educação Básica, do Programa Nacional de Alimentação Escolar, as
leis para o ensino e trato das relações étnico raciais, história e cultura
africana, afro brasileira e indígena, a lei de cotas e outras mais ainda.
Há muito pelo que lutar, sem dúvida. Mas há muito para se manter e/
ou aprimorar. Realizamos ainda, a redação de planejamentos anuais,
sequências pedagógicas e planos de aula, discutindo passo a passo
a utilização desses tipos de documentos. Estimulei a criação de um
Caderno de artista e produzi os meus próprios. Redigimos textos
coletivos pensando de forma poética o exercício docente em arte.
Criamos um vídeo a que chamamos de Síntese Sensível.
Para o Módulo 2, busquei organizar um planejamento semes-
tral de preceptoria, parecido com o anterior, mas com algumas
adaptações. Por exemplo, adicionei a pergunta “COMO VAI SEU
EU DOCENTE?”, ao rol de atividades da preceptoria. Através de
um formulário eletrônico, a pergunta é feita semanalmente a cada

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reunião aos residentes, e funciona principalmente para a reflexão
sobre a sua própria formação docente.
Um pouco mais habituado ao exercício de preceptor, senti cres-
cerem as possibilidades de orientação dos residentes. Fizemos o
mesmo percurso histórico e também produzimos planos de aula,
sequências pedagógicas e planos de aula, textos coletivos, mas tam-
bém realizamos um sábado letivo juntos ao vivo pela internet, par-
ticipamos do Encontro de Saberes da UFOP e realizamos práticas
pedagógicas dos residentes do programa, junto aos estudantes da
EEJL, de forma remota durante as aulas virtuais ministradas no
segundo semestre de 2021.
Sobre o Módulo 3, digo ter sido o módulo da reflexão. A essa
altura, já estávamos habituados ao fluxo de trabalho que estabele-
cemos. Diversos foram os atravessamentos desta época a interferir
nos ânimos de toda a equipe e é bonito como a educação encon-
tra formas de revigorar a gente. Desta forma busquei organizar
um planejamento semestral de preceptoria, como fiz nos módu-
los anteriores. Para começar, propus aos residentes uma “deriva”
conceitual, a que chamei de “A Sankofa do saber”, onde dispus de
uma sequência de materiais entre textos e vídeos, que fruiríamos
antes de nos encontrar para a primeira preceptoria.
Nas primeiras semanas, consegui conduzir o planejamento con-
forme previra, mas com o retorno das aulas presenciais na rede esta-
dual de ensino ao fim do ano passado, deslocamos as discussões para
o entendimento da conjuntura daquele momento e nos dedicamos
a reorganizar o processo. A cada semana, dedicamos tempo à escri-
tas coletivas e discussões da conjuntura da EEJL a cada momento.
Também fizemos os exercícios de redação de planejamentos anuais,

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sequências pedagógicas e planos de aula, bem como reuniões dedi-
cadas a conversar sobre o processo de ingresso na rede estadual de
educação de Minas Gerais, discutindo desde os últimos concursos
públicos da educação, passando pelas discussões sobre o piso salarial.
Também foi uma pauta presente nas preceptorias do Módulo 3,
a adaptação de exercícios de escrita que eu conhecia e a criação de
novos exercícios. A feitura desses exercícios e a criação junto aos
residentes de novos deles, me ajudaram de certa maneira a treinar
a escrita e propor novas formas de comunicar e pensar educação
através de uma escrita performada, viva e dançante. Escrever para
gerar movimentos, infinitudes.
Concluo minha participação enquanto Preceptor Pedagógico
junto ao PRP-ARTE/CAPES/UFOP com muita alegria e a sensação
de ter minha formação renovada, atualizada em alguma dimensão,
frequência ou sintonia. Poder ao longo de dezoito meses orien-
tar trabalhos e discussões em Arte e Educação junto a Residentes
Pedagógicos dedicados e curiosos, contribui diretamente para o
aprofundamento da técnica do meu ofício. Sendo esta a implemen-
tação do programa na UFOP e nas comunidades de Ouro Preto
e Mariana, faço votos de vida longa e intima aproximação com as
comunidades escolares da região.
Que essa parceria possa construir vínculos efetivos e perenes de
construção de conhecimento e pesquisas de qualidade, de maneira
a formar professores, artistas-educadores do mais alto gabarito e
da mais atenta sensibilidade. Sigamos atentos e fortes por uma
educação que seja equânime, igualitária, com condições de acesso
e permanência e livre exercício ético e científico de ser estudante
e professor. Tu e eu docentes, todes nós aprendizes!

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Sobre os organizadores e a
organizadora deste livro

Ernesto Valença é professor de Pedagogia do Teatro na Universi-


dade Federal de Ouro Preto. Tem graduação em Licenciatura em
Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo – ECA/USP (2002),
mestrado (2010) e doutorado (2014) em Artes pela Escola de Belas
Artes da UFMG. Realiza pesquisa sobre as múltiplas dimensões
do jogo no teatro, levando em conta aspectos políticos, sociais,
artísticos, técnicos e filosóficos da questão do jogo teatral dentro e
fora do teatro. Foi cocoordenador do subprojeto Artes do Programa
de Residência Pedagógica – CAPES/UFOP.

Guilherme Paoliello é professor do curso de licenciatura em


música da Universidade Federal de Ouro Preto. Tem graduação em
música/composição e doutorado em Educação. Pesquisa música
contemporânea latino-americana e relações entre linguagens artís-
ticas na educação musical. Foi coordenador do subprojeto Artes
do Programa de Residência Pedagógica – CAPES/UFOP.

Erika Curtiss é licenciada em Música pela Universidade Fede-


ral de Ouro Preto e em Pedagogia pela Uninter. É pós-graduada
em Psicopedagoga Clínica e Institucional e MBA em Gestão
Pública e Administração de Cidades. Foi preceptora pedagógica

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do subprojeto Artes do Programa de Residência Pedagógica –
CAPES/UFOP junto à Escola Municipal Juventina Drummond,
em Ouro Preto. É arte-educadora com mais 25 anos de experiência
em Educação Infantil e Ensino Fundamental e também professora
de canto, cantora e intérprete na pesquisa e difusão de música e
ritmos brasileiros.

Giovany de Oliveira Silva é licenciado em Artes Cênicas e mes-


trando do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da pela
Universidade Federal de Ouro Preto. Foi preceptor pedagógico do
subprojeto Artes do Programa de Residência Pedagógica – CAPES/
UFOP junto à Escola Estadual José Leandro. Desenvolve trabalhos
como ator, dançarino, diretor teatral, dramaturgo, músico, curador
e crítico de arte, produtor cultural e performer.

Samir Antunes é mestre em Artes Cênicas pela Universidade


Federal de Ouro Preto com pesquisa na área cênico-literária. É
licenciado em Artes Cênicas com foco em Arte-Educação e bacha-
rel em Interpretação Teatral. Arte-e​​ducador do quadro efetivo
da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, lotado na
Escola Estadual Dom Pedro II em Ouro Preto/MG, desde 2018 e
ministrante de oficinas cênicas, literárias e educacionais. Na área
teatral desenvolve trabalhos como dramaturgo, ator e diretor.

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Participaram do Subprojeto Artes do Programa
de Residência Pedagógica/Capes da Universidade
Federal de Ouro Preto (2020-2022)

Coordenadores
Ernesto Gomes Valença e Guilherme Paoliello

Preceptora e preceptores
Erika Curtiss dos Santos, Giovany de Oliveira Silva e Samir Antunes

Residentes
Adélia Cristina Júlio Benedito, Aline Batista Martins, B Campos,
Bruno Vinícius de Souza, Caio Chaves Faria, Caroline Garcia
Martins, Caroline Silva de Paula, Dieiny Kelly Gonçalves Braz
dos Santos, Evelyn Aparecida Grope Oliveira, Gabriela Sánchez
Leão de Oliveira Araújo, Hiago Aparecido dos Reis Fernandes,
Higor Gonçalves Ferreira, Isabela Cristina Resende Silva, Isabela
Freiria Yeda Macedo, Isadora Matricarde, Laura de Figueiredo
Impelizzieri Ribeiro, Lawanda Ritchely Gonçalves Modesto, Letícia
Pavão Schinelo, Lorena Bragança Soares de Oliveira, Luís Felipe
Monteiro, Luisa Doné Totini Gomes, Marco Túlio de Paula, Maria
Eduarda Alexandrino Ferreira, Maria Eduarda Costa Pereira,
Matheus Felipe Marques Pessôa, Pedro Gaban Petindá Moreira,
Pedro Henrique Bezerra Lopes, Victor de Jesus Ferreira, Vinícius
de Melo e Wellingthon Patrick Schneider.
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Este livro foi composto em Minion Pro
pela Editora Autografia e impresso
em papel pólen 80 g/m².

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