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ISSN: 2525-8761
RESUMO
Neste artigo, trazemos uma discussão sobre duas distintas experiências de iniciação
musical ao piano para crianças realizadas no programa de extensão “Escola de Música da
UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul)” a partir de 2018: aulas presenciais
coletivas e aulas virtuais individuais, que se fizeram necessárias a partir do contexto de
pandemia. As autoras deste artigo são também as professoras de piano, que
constantemente analisam os seus próprios procedimentos de ensino e acompanham o
desenvolvimento das crianças ao instrumento, o que caracteriza este trabalho como
ABSTRACT
In this article, we present a discussion on two distinct experiences of musical beginning
at the piano for children carried out in the extension program "Escola de Música da UFMS
– Universidade Federal de Mato Grosso do Sul" (Music Scholl at Federal University of
Mato Grosso do Sul) since 2018: collective presential classes and individual virtual
classes, which were necessary based on the context of pandemic. The authors of this
article are also the piano teachers, who constantly analyze their own teaching procedures
and follow the children's development to the instrument, which characterizes this work as
research-action. Regarding the understanding of the child's learning and development
processes – for a more conscious performance in piano lessons – we sought theoretical
support in the field of Psychology, and thus we brought to this article important concepts
from the work of Lev Vygotsky (1896-1934) that relate to our research object. To support
our discussion in terms of pedagogical-pianistic practice, we start with an article in which
we analyze the proposal for classroom collective teaching and its results (GABORIM-
MOREIRA ET. AL, 2019), and thus seek to explain the changes that have occurred in
piano teaching given the current situation, taking into account the challenges of musical
education through technological means - virtual teaching. Thus, we seek to contribute to
the dissemination of these two teaching modalities aiming at a more effective
psychopedagogical action of the piano teacher and, consequently, a more meaningful and
motivating learning for the students.
1 INTRODUÇÃO
Até pouco tempo atrás, as pesquisas sobre o ensino de piano para crianças, no
Brasil, estavam mais voltadas ao desenvolvimento de estratégias para que as aulas
presenciais se tornassem mais interessantes e criativas, bem como à proposição de novos
materiais didáticos que fossem mais atrativos pelo seu aspecto visual e pelo uso de
diferentes abordagens, inclusive com propostas de criação e improvisação (MOREIRA,
2005; TELES, 2005; ILLESCAS, 2008; ALMEIDA, 2015). Além disso, buscava-se cada
vez mais elementos lúdicos para incorporar a rotina das aulas, como contação de histórias,
exploração sonora, brinquedos e brincadeiras musicais, de forma a motivar as crianças ao
aprendizado do piano. Nessa perspectiva, as aulas coletivas de instrumento também foram
ganhando adesão nas escolas de música e conservatórios, como um elemento motivador
para a participação de crianças. Cerqueira (2009) destaca, nesse contexto, o
compartilhamento positivo na construção do aprendizado: “os alunos com dificuldade são
ajudados pelos colegas, tanto na técnica quanto no entendimento musical” (p.135). Há,
portanto, uma interação constante, em uma dinâmica própria das aulas em grupo, que leva
ao aprendizado.
Aos poucos, o tradicional ensino de piano no Brasil foi incorporando elementos
da contemporaneidade, como a inclusão de jogos, aplicativos e até métodos em formato
digital; o repertório também foi se abrindo com a inclusão de canções do repertório
popular, incluindo os hits da mídia e melodias do cotidiano (BOZZETTO, 2009). Novos
projetos para o ensino virtual - ou a distância - foram gradativamente ganhando destaque
no cenário da pedagogia pianística1, uma vez que o deslocamento para uma aula
presencial passou a ser impeditivo para conquistar novos alunos ou mesmo para permitir
a continuação das aulas de alguns alunos já adiantados. Essas novas propostas on-line
foram sendo experimentadas e investigadas, como uma alternativa inovadora, produzindo
resultados satisfatórios.
Contudo, desde o início da pandemia (março de 2020), o ensino de piano precisou
ser rapidamente adaptado ao modo virtual, uma vez que o isolamento social se
estabeleceu como regra para evitar a contaminação pela COVID-19. O que era antes
totalmente presencial, passou a ser essencialmente virtual na pandemia, e pôde-se
observar as constantes dificuldades de adequação de muitos professores e alunos ao
ambiente on-line. Os professores de piano – assim como professores de outras áreas do
conhecimento – precisaram rapidamente se voltar às possibilidades de ensino com novas
ferramentas através do meio digital, para garantir a continuidade de suas aulas, e assim,
se fizeram presentes nas aulas o uso de plataformas e aplicativos que estabelecessem a
comunicação entre professor e aluno.
1É importante, nesse contexto, destacar a realização do CONVEP (Congresso Nacional Virtual de Ensino de Piano), organizado pela
pesquisadora Naira Poloni. A primeira edição do Congresso aconteceu de 24 a 30 de agosto de 2015, e segundo a pesquisadora, teve
716 inscritos, de vários estados do Brasil e também do exterior.
2Antes mesmo da pandemia, por iniciativa do pianista Eduardo Fontes (ES), já existia um grupo de professores de piano que visava
o compartilhamento de materiais denominado “Professores de Piano”, no aplicativo Whatsapp. Posteriormente, e devido à grande
procura, o grupo também foi aberto no aplicativo Telegram.
forma, tentar ensinar para essa mesma criança conceitos musicais complexos ou
habilidades práticas que vão muito além de sua capacidade de aprender naquele momento
(como tocar encadeamentos harmônicos, por exemplo), será algo demasiado ineficaz.
Vygotsky denomina nível de desenvolvimento real as “conquistas que já estão
consolidadas na criança, aquelas funções ou capacidades que ela já aprendeu e domina,
pois já consegue utilizar sozinha (...), os processos mentais da criança que já se
estabeleceram, ciclos de desenvolvimento que já se completaram” (Rego, 2014, p.72).
Por outro lado, o nível de desenvolvimento potencial, segundo Zanella (1994, p.98), é o
“conjunto de atividades que a criança não consegue realizar sozinha mas que, com a ajuda
de alguém que lhe dê algumas orientações adequadas (um adulto ou outra criança mais
experiente), ela consegue resolver”.
Já a zona de desenvolvimento proximal (ZDP) vai representar a distância entre o
nível real e potencial, definindo aquelas funções mentais que ainda não amadureceram,
mas que estão em processo de maturação – o que precisa ser compreendido pelo professor.
Assim, a ZDP “é definida como a diferença (expressa em unidades de tempo) entre os
desempenhos da criança por si própria e os desempenhos da mesma criança trabalhando
em colaboração e com a assistência de um adulto” (Ivic, 2010, p. 32). Nas palavras de
Vygotsky, a ZDP
Consideremos então, que por meio do ensino coletivo de piano a criança aprende
habilidades musicais, na interação com as colegas e com a mediação do professor. Essas
habilidades são postas em prática quando a criança estuda em casa, individualmente,
reforçando o conteúdo da aula – algo que já pode realizar sozinha – e isso permite que ela
se desenvolva ainda mais no aprendizado do piano, transcendendo o conteúdo aprendido
nas aulas – buscando, até mesmo, outros repertórios ou outras formas de executar músicas
ao piano que vão além da partitura. Desta maneira, a criança tende a evoluir mais
rapidamente e permanece motivada para aprender – até mesmo porque no grupo, todas se
esforçam para estar no mesmo nível de desenvolvimento. De certa forma, temos um
ambiente saudavelmente competitivo, em que ninguém perde ou ganha, porém, nenhuma
criança quer ficar “para trás” em relação às suas colegas de grupo.
Lessons”, da coleção Hal Leonard (Kreader, Kern, Keveren e Rejino, 2000), que avançam
os conteúdos de maneira mais progressiva. Cabe dizer que o método “The Music Tree”
apresenta muitas semelhanças com o método de Gonçalves, e isso provavelmente se
justifica pelo contato direto de Gonçalves com Clark, nos Estados Unidos, na década de
1970. Contudo, outras lições complementares também são utilizadas e apresentadas na
aula, e exercícios de fixação do conteúdo são elaborados para serem feitos em casa.
Os livros didáticos de piano adotados no projeto3 apresentam estilos variados de
ritmos, melodias e propostas de criação e improvisação. Segundo os autores do método
“The Music Tree” (Clark, Goss e Grove, 1973, p.15), “todas as crianças são criativas. Os
alunos de piano demonstram entusiasmo e orgulho, produzindo ideias originais e criativas
ao instrumento, se forem encorajadas desde o início”. Assim, os alunos partem daquilo
que já aprenderam para criar peças muito simples, isto é, utilizando poucos elementos
musicais e sem a exigência de grandes habilidades técnicas. Porém, à medida que o
conhecimento vai se expandindo, as criações vão envolvendo um maior número de
elementos musicais e aumentando sua complexidade.
Algumas lições apresentam um acompanhamento a ser executado pelo professor;
para isso, é preciso estimular o aluno a se empenhar para tocar com segurança. Esta
também é uma forma de fixar o conteúdo da lição e buscar uma execução precisa, livre
de erros ou atrasos. Outra estratégia utilizada nas aulas é a gravação (em vídeo) da música
aprendida na aula, para enviar aos pais: as crianças tocam repetidas vezes, sem se
chatearem, até que se sintam satisfeitas e orgulhosas com sua própria performance e
assim, demonstrem o que aprenderam por meio do Whatsapp – o que também podemos
classificar como um recurso tecnológico utilizado para motivação dos alunos.
Os livros são em língua inglesa e esse é outro fator bastante estimulante para os
alunos, ampliando seus conhecimentos em outra área. Os alunos criam textos em
português para serem cantados juntamente com as lições, ou traduzem os títulos
apresentados. São também utilizados materiais complementares para leitura na aula,
como “Poco Piano” (Alfred’s), alguns métodos brasileiros de iniciação ao piano ou livros
com propostas de criação e improvisação (como “Divertimentos”, da autora Laura Longo)
e “Europäische Klavierschule” (método alemão), que traz ilustrações ricamente coloridas
e peças para serem tocadas por imitação.
As crianças se sentam ao piano diante de um dos seus três registros: grave, médio
ou agudo. A aula é bem dinâmica, e durante a aula os alunos trocam de posição,
alternando os registros. A aula dura 45 minutos – o tempo que consideramos ser suficiente
para que elas não se cansem e voltem motivadas na semana seguinte. Inicialmente, a
notação musical das lições não traz pautas ou claves, de modo que podem ser tocadas em
qualquer região do piano. Apresenta-se a posição das mãos ao teclado, determinando as
teclas a serem tocadas. A professora estimula a curiosidade dos alunos a cada nova lição,
perguntando quais são os elementos novos e os já conhecidos, ao que as crianças
respondem instantaneamente. Em seguida, são lidos pequenos trechos individualmente
(tocando) e depois, em duplas ou trios (simultaneamente), juntando os trechos até que se
complete a lição. Isso exige maior atenção e concentração dos alunos e os ensina como
devem estudar em casa: sempre por trechos pequenos e de forma cumulativa,
concentrando-se nos detalhes (como dedilhado e indicações de dinâmica e articulação,
por exemplo) e procurando manter o andamento da capo al fine.
O que pudemos perceber nesse período de realização das aulas de piano coletivo
(2018-2019) é que as crianças interagem positivamente, buscando ajudarem-se umas às
outras. É bastante perceptível o nível de facilidade ou de dificuldade de cada criança
frente às habilidades pianísticas, e naturalmente, as crianças demonstram uma atitude
cooperativa: as que têm mais facilidade auxiliam as que têm mais dificuldade de
aprendizado, criando estratégias ou explicando a lição em sua linguagem, própria da
idade. Além disso, o ambiente cooperativo inibe a preguiça ou o desânimo (muito comuns
em aulas individuais) e permite que a aula se torne leve e divertida.
Dentre os resultados obtidos, citamos a realização de “Recitais” ao final do
semestre, onde cada aluno preparou uma peça escolhida para ser tocada em situação de
apresentação pública. Devido ao pouco espaço físico da sala disponibilizada para os
recitais, não foi possível que cada criança trouxesse mais convidados além dos familiares
mais próximos (pais e irmãos). Houve uma preparação técnica e psicológica dos alunos
para esse momento de apresentação, e apesar de todo nervosismo causado pela
expectativa e ansiedade – o que é perfeitamente normal – todas as crianças conseguiram
se apresentar com êxito.
De modo geral, não houve um número significativo de desistências das aulas de
piano presenciais por desmotivação ou desinteresse. Algumas crianças pararam de
frequentar as aulas por problemas pessoais (trabalho/estudo dos pais, mudança de cidade
ou incompatibilidade de horários com as atividades da escola, por exemplo). Alunos e
seus pais preocuparam-se em acompanhar os estudos e raramente faltavam nas aulas, pois
sabiam que isso prejudicaria o andamento do grupo como um todo. Um fato interessante
e inesperado é que as crianças buscaram, por conta própria, recursos midiáticos e novas
tecnologias (tutoriais em canais como o “Piano X”, no site YouTube, e aplicativos para
tablets e celulares) para expandir o conteúdo apreendido nas aulas. Esses recursos foram
compartilhados entre as crianças e vieram a complementar o repertório desenvolvido,
contemplando músicas mais atuais e ouvidas nas mídias. Hartmann (2021) analisa esse
tipo de aprendizado pelos tutoriais no YouTube em artigo recentemente publicado, e
pondera que se trata de materiais que podem ser usados eventualmente, porém, “não como
objeto exclusivo ou mesmo central no processo de aprendizagem” (p.113). Segundo a
análise do autor, “este tipo de tutorial pode colaborar para o repertório de estratégias,
desde que não se torne, sistematicamente, a única abordagem a ser empregada, subtraindo
a leitura musical e os essenciais trabalhos técnico e expressivo, presentes em qualquer
abordagem séria” (HARTMANN, 2021, p.114). Portanto, é necessário sempre reafirmar
a importância das aulas com a orientação de um professor de piano, e oferecer recursos
diferenciados que levem o aluno a perceber seus progressos nas aulas, independentemente
de suas práticas autodidatas e/ou alternativas.
Ao longo das aulas, as crianças fizeram novas amizades e sem dúvida, e o encontro
com novos amigos já é um elemento motivador no processo de aprendizagem do piano.
Assim, consideramos que atingimos nosso objetivo de proporcionar um aprendizado
pianístico prazeroso e significativo para as crianças nas aulas presenciais coletivas.
Consideremos que, ao agrupar crianças com diferentes experiências pessoais e advindas
de distintos contextos culturais, proporcionamos uma troca de conhecimentos gerais e
estabelecemos um ambiente favorável, tanto ao desenvolvimento global das crianças,
quanto ao aprendizado de algo novo – no caso, tocar piano. Encontra-se aí, a motivação
para o estudo individual, para a participação nas aulas, e, porque não, motivação para o
professor preparar com mais entusiasmo e afinco suas aulas coletivas.
vivenciando o período de pandemia e que a cada dia surgem novos aplicativos, programas
plataformas e outros recursos digitais, esse desafio ainda se faz presente, conforme
comenta Barros:
4 É importante, nesse contexto, destacar a atuação da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) com a iniciativa de
disponibilizar um repositório coletivo com diversas propostas pedagógico-musicais para o ensino remoto emergencial de música, bem
como a realização do "Fórum de Temas Emergentes da Educação Musical Brasileira", em seu canal no YouTube.
5 É importante mencionar que nos Estados Unidos os métodos para piano têm um custo bastante acessível e oferecem versões digitais,
Amazon.com.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência do ensino de piano em grupo (em aulas presenciais), já consolidada
no Brasil, se mostrou bastante positiva no contexto do programa de extensão Escola de
Música da UFMS. Além dessa experiência contribuir para a formação acadêmica dos
Licenciandos e constituir um objeto de pesquisa contínua, a proposta da Escola tem
tornado esse ensino acessível a um grande número de interessados, fomentando o
aprendizado de piano na comunidade.
Com relação ao ensino virtual, pelo fato de ainda estarmos vivenciando a situação
de pandemia, podemos inferir que ainda é cedo para analisarmos os resultados dos
processos de ensino-aprendizagem, que se verificam a longo prazo. Porém, como
resultados da experiência, podemos afirmar que as professoras do Programa e a maior
parte dos alunos já se adaptaram ao modo on-line, e esses alunos permaneceram
estudando, mesmo diante das adversidades – o que, a nosso ver, representa que houve
motivação suficiente para que não desistissem das aulas. Estamos estabelecendo uma
nova metodologia para o ensino de piano on-line, que ainda não se consolidou, mas que
está inserida no caminho da pesquisa acadêmica.
Pretende-se, portanto, estabelecer uma pesquisa contínua acerca desses processos
de ensino e aprendizagem realizados na Escola de Música da UFMS. O primeiro passo é
refletir sobre a formação do professor de piano, em nível de graduação, e suas concepções
enquanto um educador musical contemporâneo. Dando segmento, pretendemos
REFERÊNCIAS
BERNARDO, C.S.N. Relatório final das aulas de piano do Programa Escola de Música
da UFMS. Não publicado. 2021.
CLARK, F.; GOSS, L.; GROVE, R. Teaching The music tree. A Handbook for teachers.
New Jersey: Summy-Bichard, 1973
HARTMANN, E.F. Aprendendo piano pelo YouTube: a Arabesque Op. 100 n.º 2 de
Burgmüller em cinco tutoriais – uma análise. HARTMANN, E.F.; CERQUEIRA, D.L.
(orgs.). Ensino de música a distância: experiências. São Luís: EDUFMA, 2021.